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CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
João Pessoa-PB
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
João Pessoa-PB
2009
G633f Gomes, Maria de Lourdes Sousa Vieira.
________________________________________
Profª. Drª Maristela Oliveira de Andrade
Orientadora
________________________________________
Profª Drª Maria Otília Telles Storni
Supervisora Interna
________________________________________
Prof. Dr. Adriano de Leon
Supervisor externo
AGRADECIMENTOS
Ao Divino Pai Eterno, Trindade Santa, por permitir que conseguisse chegar ao término desta
caminhada, apesar das adversidades, e pela certeza de que este trabalho foi mais um passo da
nova trajetória a ser percorrida, que mudou a minha vida, tornando-a mais humana e mais
espiritualizada.
À minha família, esposo, filhos e colaboradores do dia-a-dia, que foram compreensivos, nas
ausências e nas presenças, apenas físicas e, ao mesmo tempo, distantes, pelo envolvimento
com o curso e com a elaboração do presente trabalho.
Aos professores do curso, que transmitiram os seus ensinamentos, possibilitando que este
trabalho tomasse corpo. Em especial, à Professora Maristela, que, de forma segura e muitas
vezes até maternal, me apoiou; a Maria Otília e Patrícia Formiga, Professoras que me
apoiaram no primeiro momento em que me decidi pelo tema, conseguindo trabalhos
científicos sobre o assunto, e à Mestra Marileuza, colega de turma que vem me
acompanhando nos passos deste trabalho, gestado na Especialização, em Ciências das
Religiões; ao Mestre amigo Wallace pelo apoio, na formatação, ao Prof. Nivaldo Rodrigues,
pela revisão de linguagem, à Luciene pela formatação, Drª Ana Maria Ferreira, Drª Ana Maria
Córdula, pelo apoio que me foi dado e a Enélio, amigo que de repente chega, e com sua
simplicidade foi um instrumento na mão de Deus e conseguiu me levantar.
Aos colegas de turma, com os quais muito aprendi, meu muito obrigada.
A experiência do sagrado torna possível a fundação do
Mundo’: lá onde o sagrado se manifesta no espaço, o real
se revela, o Mundo vê à existência.
Mircea Eliade (2001, p. 59)
GOMES, Maria de Lourdes Sousa Vieira. Phenomenon of glossolalia and their meanings
in the Catholic Charismatic Renewal Movement. 120f. Dissertation of Master in Science of
Religion - UFPB. João Pessoa, 2009.
This dissertation has as object of study to identify the meaning of glossolalia in the Catholic
Charismatic Movement and its correlation between the increase of believers in that movement
with the emergence of this phenomeno besides investigate the frequency of that phenomenon
in the Church and Community of Mercy in this Capital, where he was carried out field
research among its members. This was a theoretical route of glossolalia phenomenon as
language, religious or historical emphasis on biblical field, enters the debate about its size and
psychopathological symptoms in eyes of psychology and psychiatry mystical expression or, in
the following theoretical reasons: Mircea Eliade, Rudolf Otto, Emile Durkheim, Freud, Jung,
Brenda Carranza, Benigno Juanes, Mauricio Ricci, among others, and culminated with a field
research on Glossolalia - Gift of Languages. We did a quick analysis of the Catholic
Charismatic Renewal in Brazil, its characteristics and doctrine, and presents a vision of the
charismatic, addressing the Holy Spirit and baptism in the Holy Spirit. We presents some
considerations on the Catholic Charismatic Renewal and the Church, casting a glance at the
rapture, the trance and possession of those believers. In field research methodology was used
as the ethnographic method, through participant observation and ethnographic description,
with interviews and analysis of interviews between these members. The research shows the
gift of tongues like a prayer, where the believers often showing states of bliss and where the
experience of the phenomenon by speaking of the faithful, it is an emotional experience.
According to the response of respondents who believe it is not the gift of language that is
responsible for the increase of believers in the church.
1 INTRODUÇÃO............................................................................................................... 12
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA................................................................................. 15
2.1 A DIMENSÃO PSICOLÓGICA E EMOCIONAL DA RELIGIÃO......................... 15
2.2 A GLOSSOLALIA SOB DIVERSOS OLHARES.................................................... 21
2.2.1 A glossolalia como fenômeno lingüístico.......................................................... 23
2.2.2 A glossolalia como fenômeno psicológico e psicopatológico........................... 24
2.2.3 A dimensão religiosa e o elemento místico da glossolalia................................. 32
2.2.3.1 Glossolalia como prece.......................................................................... 36
2.2.4 A glossolalia como fenômeno histórico no discurso Bíblico............................. 38
3 MOVIMENTOS RELIGIOSOS................................................................................. 45
3.1 O PROTESTANTISMO: PENTECOSTALISMO E
NEOPENTECOSTALISMO....................................................................................... 45
3.2 O PENTECOSTALISMO E O NEOPENTECOSTALISMO NO
BRASIL....................................................................................................................... 47
3.3 CARISMAS E OS DONS ESPIRITUAIS........................................................... 49
3.3.1 A palavra “carisma” – sua trajetória e conceitos..................................... 49
3.3.2 Conceito sobre os dons espirituais........................................................... 49
3.3.3 Os dons espirituais na Bíblia e no contexto da Obra Paulina................... 51
3.4 O MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO CARISMÁTICO CATÓLICO (MRCC):
HISTÓRICO E SUAS CARACTERÍSTICAS................................................... 52
3.4.1 Os carismáticos e o Espírito Santo........................................................... 56
3.4.2 O batismo no Espírito Santo..................................................................... 58
3.4.3 O êxtase, o transe e a possessão entre os carismáticos católicos.............. 58
3.5 O MOVIMENTO DA RENOVAÇÃO CARISMÁTICA EM JOÃO PESSOA –
HISTÓRICO................................................................................................................ 65
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................... 90
6 REFERÊNCIAS.............................................................................................................. 94
APÊNDICES.................................................................................................................. .107
Apêndice A – Roteiro de Entrevista................................................................................ 108
Apêndice B – Autorização dos Entrevistados................................................................. .109
Apêndice C – Depoimentos.............................................................................................. 110
12
1. INTRODUÇÃO
1
[do latim Adam, ‘Adão’ + ico] Adj, 1. Relativo a, ou próprio de Adão, o primeiro homem, segundo a tradição bíblica.
13
Esse fato provocou muito espanto e admiração na cidade de Jerusalém, onde viviam
povos originários de diferentes lugares, que falavam distintas línguas, conforme relatam as
Escrituras. Com o passar do tempo, a festa de Pentecostes foi recebendo outros significados.
Durante o período inter-bíblico e posteriormente a ele, a festa de pentecostes também passou a
comemorar o aniversário da transmissão da lei dada por Deus a Moisés no Sinai. Mas não é só
isso. Assim como a celebração das primícias, Pentecostes também apontava para bênçãos
maiores que Deus concederia no futuro, como por exemplo, a inauguração da Igreja
Neotestamentária em Atos 2.2.
Nesta dissertação pretendemos estudar como problema o fenômeno da glossolalia, a
sua constituição como oferta religiosa de experiência com o sagrado, que seria
hipoteticamente o grande fator de atração de católicos que optaram por se manter fiéis a sua
religião, sem necessitar buscar experiências similares de êxtase, transe ou possessão
oferecidas por outras religiões concorrentes, como o pentecostalismo ou as religiões de
possessão propriamente ditas.
2
Significa “cinqüenta”, é o nome grego para a Festa das Semanas do Antigo Testamento, visto que esta festa ocorria no
qüinquagésimo dia (sete semanas) depois da Páscoa. Junto com as festas da Páscoa e dos Tabernáculos, Pentecostes era
uma das três festas de peregrinação anual dos judeus: Uma festa de colheita, ela marcava o começo do tempo quando o
povo trazia suas ofertas das primícias. Levítico (23.15-21) fornece o relato mais detalhado do ritual observado durante a
festa. A observância é também conhecida como Festa da Sega (Ex. 23.16) e Dia das Primícias (Nm. 28.26). Dicionário do
Movimento Pentecostal, verbete da p. 631.
14
.
15
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
coletiva universal. Neste sentido é pertinente lembrar Schuler apud Santos, (2006, p. 14) que
diz que as “demandas da clínica levaram Freud a refletir sobre a religião”.
A religião para Jung (1971) personifica as dimensões mais profundas da psique
humana e na sua ausência poderá ser desenvolvida a neurose. Freud em O Mal Estar da
Civilização (1927/1966), explica que o instinto, através de suas formas e dos princípios que o
estruturam despertou-lhe preocupações. Isto é percebível quando, ao final desta obra, o autor
chegou a falar de instinto (pulsão) de vida ou Eros e do instinto de morte ou Thanatos. É neste
contexto, que ele explica: o instinto (pulsão) de vida se expressa, por exemplo, no amor,
criatividade e na construtividade. Enquanto que o instinto (pulsão) de morte se expressa por
meio do ódio e da destruição. Este último instinto é forte e tem poder, porque o homem é
agressivo (homo homini lupus)3. Ele não condena a civilização, mas condena às repressões
em dar origem à angústia, podendo chegar até a morte propriamente dita.
É, no entanto, neste contexto de desamparo e de sofrimento que ele insere a sua
discussão sobre a religião e assim, as pessoas ao se depararem com o sofrimento que a vida
oferece, no seu discurso, são obrigadas a criar uma pretensa esperança de uma vida melhor.
Assim ele escreve: “A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-
nos muito sofrimento, decepções e tarefas impossíveis (p. 83).” Neste contexto de desamparo,
Freud enfatiza a solução para esse sofrimento, encontrando sua solução na religião.
A religião é responsável em conferir esperança para as pessoas, onde há tristeza.
Portanto, nessa linha de raciocínio, a maneira para a pessoa se livrar do sofrimento e alcançar
a felicidade está na vivência da religião. Freud, ainda no seu escrito antes citado, no Mal Estar
da Civilização, a experiência na religião com o sagrado encontra relação com a figura do pai.
Em 1931 Freud publica O Futuro de uma Ilusão, onde ele procura explicar que a
religião está associada às experiências infantis. A criança poderá criar em sua consciência
uma imagem muito perfeita e angelical da figura dos pais, principalmente do pai, que nunca
erra e que protege os filhos, e à medida que vão crescendo percebem que esses pais são fracos
e passam a projetar uma figura equivalente ao pai, que por sua vez é um celeste e que através
da língua dos anjos, como é conhecido o dom de línguas, os entrevistados podem através da
presença do Espírito Santo, em cada um, chegar a Deus, que é Pai. É um pai que pune e
também perdoa.
Freud (1931, p. 41) vê a religião como uma ilusão. “Avaliar o valor de verdade das
doutrinas religiosas não se acha no escopo da presente investigação. Basta-nos que as
3
“O homem é lobo do próprio homem”.
17
tenhamos reconhecidas como sendo, em sua natureza psicológica, ilusão”. Ilusão esta que
nem sempre é verdadeira, mas é melhor acreditar que seja verdadeira, ora favorável ora
desfavorável, como dizem Zilboorg (1969) e Slavutzky (2003) apud Santos (2006, p.16),
“cultivar um sentimento de ilusão, não é um erro, porque imaginar é preciso”.
Fromm (1956) apud Santos (2006) ensina que as pessoas precisam se esforçar para
superar a compreensão infantil de Deus, muitas vezes transmitida pelas religiões. Esse
estudioso identifica dois aspectos da religião: o patriarcal e o matriarcal. No aspecto patriarcal
há uma prevalência do desejo de amar a Deus como um pai, um pai que poderá ser rigoroso e
punir, mas também poderá recompensar, em relação os atos realizados pelo indivíduo, que ele
irá escolher como favorito. No aspecto matriarcal prevalece um amor a Deus como se fosse
um amor de mãe. É um amor incondicional, não há punição, porque o filho sente-se
importante, acolhido e compreendido.
Santos (2006) continua dizendo que Fromm (1987) fala em dois princípios na maneira
de crer do indivíduo. É o sentido do ter, e o modo de ser. A fé no sentido do ter significa uma
espécie de posse diante de uma realidade, em que não é possível ter provas racionais. Em
outras palavras, a fé no modo de ter leva o indivíduo à relação com Deus como se este fosse
um ídolo.
É a fé no modo de ter funciona como uma “muleta” para os que querem andar e viver
na pura certeza, porém, esse modelo de fé não leva o indivíduo a procurar as respostas acerca
das contradições da vida por si mesmo. Pode-se viver, por exemplo, no comodismo, como
assinala Fromm (1987).
Quanto ao papel da religião na vida de alguém, Fromm (1987) apud Santos acredita:
Carl Gustav Jung (1875-1961) se tornou conhecido por meio de seus escritos na área
da psiquiatria e da psicanálise. Para ele, o inconsciente pessoal (1971/2005) é formado
fundamentalmente de vivências complexas, enquanto o inconsciente coletivo (1971/1986) é
formado por meio de arquétipos (SANTOS, 2006).
O inconsciente coletivo, em seu dizer, é hereditário. Esta explicação esta que será feita
com mais precisão na parte do estudo de Deus como arquétipo do inconsciente coletivo. No
entanto, é dito como hereditário (1971/1986) porque aparenta ser idêntico em todas as
18
particular; por isso, ele admite a existência de um universal religioso presente em todas as
religiões. O numinoso precisa ser experienciado somente por um nível pré-reflexivel, isto é,
pela intuição, sendo, portanto, capaz de ser tratado por meio dos predicados e não por meio de
definições, porque existe aí um elemento não racional. Ele não apresenta um método
conceitual no estudo da religião, mas descritivo. Para ele o numinoso pode se expressar por
meio da música, da arquitetura e da poesia existentes nos hinos religiosos. É por isso que o
numinoso em sua compreensão é tido como a essência não-racional presente em todas as
religiões.
E continua Santos (2006), para Otto (1917/1985) o cristianismo possui conceitos
claros, ponderados e completos para falar do Divino, por exemplo, onipotência, vontade
finalista, espírito, razão e outros. Seguindo, portanto, este seu pensamento pode-se afirmar no
seu postulado que a pessoa com experiência religiosa consegue perceber o Sagrado como
Mysterium Tremendum. Sendo, portanto, que o Divino se manifesta como Mysterium
Tremendum, o mesmo não pode ser abarcado em sua totalidade, mas, os vestígios do
Mysterium Tremendum podem ser encontrados por meio dos monumentos e edifícios
religiosos. O Mysterium nesta ótica, em seu dizer, indica além do oculto, isto é, o não-
manifesto. O Mysterium corresponde ao admirável, por isso, o homem religioso é um
indivíduo que carrega em seu ser um maravilhamento estupefato diante do mistério, o qual ele
experiência como totalmente Outro.
Otto (1917/1985) apud Santos (2006), enfatiza, portanto, o aspecto vivencial da
religião, o qual passa pelos sentimentos, que leva à experiência do Sagrado. Para ele, o
homem é visto como um ser que possui uma predisposição conatural para a vivência religiosa.
Pode-se dizer que Otto (1917/1985) se interessa pelo estudo dos sentimentos que surgem no
homem mediante a experiência religiosa do numinoso.
Em Santos (2006) a concepção de homem religioso de Mircea Eliade (2001), converge
com o pensamento de Otto que, deseja viver e habitar um “(...) cosmos puro e santo” (p.61).
Esse autor complementa dizendo que o homem religioso percebe que à medida que sua
história vai se construindo, o Sagrado precisa ser apreendido. O cosmos se percebe como
mundo, na medida em que se revela como Sagrado. O mundo se vê como mundo, ou o
homem percebe o mundo de fato, como manifestação do Sagrado. O homem religioso
consegue captar as manifestações do Sagrado no universo.
É certo, portanto, observar que em seu pensamento ele assegura que ao falar do
Sagrado é preciso também falar do profano. O profano, em seu dizer, não possui um
significado particular na vida das pessoas. Por outro lado, o Sagrado é o responsável em
21
conferir um caráter de significado particular. Por isso, é que o Sagrado apresenta vários
aspectos, de acordo com as condições em que o homem se encontra em seu existir.
Para Santos (2006), no entender de Eliade (1957/2001), o homem religioso, no que
tange ao papel da religião em sua vida, tem como finalidade “(...) assegurar-lhe a
integridade”. (p.173), por isso, ele acentua que a vivência religiosa é, todavia, uma vivência
conatural presente na história e nas variadas culturas ao longo dos séculos.
Vale lembrar a importância de Eliade (1957/2001) para o estudo da religião. Portanto,
a religião em sua compreensão precisa ser explicada como função de algo, não importa o que
seja este algo, um aspecto da psique, da cultura, da sociedade ou outro qualquer. É certo,
portanto, que Eliade (1957/2001; 1963/2004) estuda o homo religiosus, à mercê dos
acontecimentos histórico-culturais.
Apesar de ser a linguagem inerente à existência humana esta tem sido negligenciada
pelos historiadores, mas finalmente graças à nova história social, tem aumentado o interesse
pela fenomenologia da vida. Em décadas passadas, os críticos estruturalistas ensinaram-nos a
“desconstruir” textos, desenvolvendo novas técnicas para desnudar seus significados
complexos, segundo afirmaram Burke e Porter (1997, p. 15).
A teoria literária tem proporcionado contribuições de grande valia, mas, o maior
estímulo ao estudo sócio-histórico da linguagem no passado recente, afirmam Burke e Porter
(1997, p. 15), foi a análise do poder do discurso, por sua presença ou ausência, para definir,
coagir ou permitir, para vitimizar e transformar em bode expiatório, para exercer hegemonia e
organizar o consenso e para fazer, desfazer e refazer mundos vividos.
Como observa Burke e Porter (1997, p. 7), sem dúvida,
Existem em outras religiões orações que são mera repetição de sons que não querem
dizer nada, como no budismo, mas na maioria das sociedades todos falam, embora os
membros de algumas ordens religiosas optem por não fazê-lo durante muito tempo Há outros
que são silenciados por deficiências que podem ou não ser naturais: a censura arquetípica é a
excisão da língua. Escrever e ler são mais exclusivos. Conseguir que seus escritos sejam lidos
é motivo de especial autocongratulação, conforme o entendimento de BURKE e PORTER
(1997, p. 23).
A palavra “glossolalia” tem origem na língua grega, e é formada por dois elementos:
glossa (língua) e lalia (ato de falar línguas). O Dicionário Aurélio (1999. p, 992) aponta os
seguintes significados:
“[De glosso (o) + lal (o) + ia]. E. Ling. Psiq. Fenômeno que pode ocorrer
em situação de exaltação religiosa, caracterizado pelo comportamento de
certos indivíduos que começam, espontaneamente, a falar em línguas
desconhecidas, tidas como frutos de dom divino, mas que, ger. são línguas
inexistentes. [Tais línguas, ger. não apresentam significado sistemático para
palavras ou frases, têm poucas unidades estruturais previsíveis, muitas
repetições na cadeia sonora, e os falantes não conseguem repetir os
enunciados como os haviam pronunciado antes”.
Oliveira Júnior (2000, p.34) afirma que também podem ser encontradas no mundo
artístico formas diversas de práticas glossolálicas, com mais ênfase na música e na poesia. E
acrescenta:
“Revisitando os poetas de vanguarda do começo do século, tem-se alguns
registros de casos semelhantes. Na língua espanhola, o acontecimento
glossolálico na poesia é recorrente. O dadaísta Vicente Huidobro é
provavelmente a experiência mais radical. Ele se propôs a substituir a
realidade real pela realidade da imagem verbal.Em seus primeiros poemas,
Criacionistas, isso é exemplarmente figurado. Já num momento posterior,
Altazor, vai tirando das palavras sua carga de significados e nesta espécie de
canto elas, as palavras, buscam ser apenas “chocalhos, sementes”[...].
“Já o cubano Mariano Brull fez famosas suas “jitanjáforas”. Versos curtos,
poemas breves, frases e palavras de puro ritmo. Alusões a realidades
sensíveis? Quase nenhuma, muito raramente uma ou outra. Elas são para
Alfonso Reyes a materialização do lado irracional, mágico, extremo da
poesia. Sob este prisma, Reyes pensa o falar em línguas como mero jogo
verbal, o jogo está no limiar, no campo fronteiriço do sagrado [...]”.
23
O dom de falar línguas foi estudado a partir de vários ângulos por pesquisadores de
diferentes campos científicos: etnografia, sociologia, lingüística, psicologia e teologia.
Contudo, esses campos do conhecimento ainda podem contribuir muito para a compreensão
de um dom que, mesmo parecendo em nossos dias como algo exótico, tem uma existência tão
longa quanto a da Igreja. A seguir, são apresentadas as mais importantes afirmações sobre a
matéria em estudo:
Afirma Congar apud Juanes (1997, p. 45):
“salvo casos muito raros, se é que ocorreram, nos quais algumas frases de
algum dialeto realmente existente foram reconhecidas e, portanto, ignoradas
pelo indivíduo, não nos encontramos verdadeiramente diante de uma língua,
nem no nível de um fenômeno nem no de combinações lexicais”.
Vê-se então como tem sido difícil reconhecer o falar ou orar em línguas. A. Bittlinger
apud Juanes (1997, p. 46) afirma que, nos informes em que pareciam ter-se reconhecido
idiomas estrangeiros, no ato de orar em línguas, tratava-se, muito provavelmente, de
assonâncias com determinados idiomas estrangeiros, acrescentando: “Trata-se de uma forma
24
Acresce que, o fenômeno da glossolalia pode ser analisado sob outro enfoque. Laffal
apud Telles (2006) in O dom de falar em línguas: algumas idéias sobre a glossolalia, remete
seus estudos a Freud, o qual considerava a linguagem como um mecanismo de descarga
energética, que tem a função de trazer para a consciência o inconsciente. Em seus estudos
com Breuer sobre a histeria, Freud entendia seus sintomas como a presença de um “corpo
estranho” ou de “reminiscências” fora da associação consciente que necessitavam ser a ele
integradas através da fala, o que proporcionava uma catarse.
A fala seria então um mecanismo de descarga de afetos retidos e também um substituto
da ação direta. Freud retomou tais idéias no “Projeto,” onde apontava como primeiro paradigma
25
da linguagem os gritos de dor e fome da criança. Ao mesmo tempo, entendia que os gritos eram
descargas motoras que também traziam alívio ou ajuda, na pessoa da mãe.
A vocalização é entendida como um mecanismo para a descarga de energia associada
a várias tensões corporais, tornando-se um meio de comunicação social sobre tais estados.
Dessa forma, a linguagem continua a funcionar como uma descarga, ao lado de sua função
principal, que é ser um instrumento de comunicação e união social. A primeira função será
ativada em detrimento da segunda toda vez que fortes necessidades físicas ou psíquicas se
impuserem. A linguagem funcionará então como mera descarga desses impulsos,
mentalizando-se na função de comunicação social.
Pela verbalização, a glossolalia aproxima da consciência aquilo que o indivíduo não
pode expressar por palavras. Como a compreensão fica impossibilitada, sentimentos como
vergonha, culpa, desespero ou ansiedade, que poderiam acompanhar o significado dessa fala,
são evitados, permanecendo a pessoa com a sensação de ter expressado o inefável. A fantasia
de estar tomado pelo Espírito Santo ajuda a pessoa a negar os conflitos psíquicos e as
necessidades comuns a todos os homens, não satisfeitas.
Conforme o entendimento de Telles (2006), idem, a glossolalia parte do pressuposto
de que “a aquisição da linguagem é um processo cuja transcendência e importância
dificilmente se poderia exagerar”. Segundo esclarece, essa aquisição não é o mero
aprendizado de um código de comunicação para usos imediatos e pragmáticos, possibilidade
que os seres humanos compartilham com alguns animais. Trata-se do ingresso no mundo
simbólico, que caracteriza a dimensão humana ao dar sentido à cultura, e marca o limite do
homem com a natureza. O citado autor lembra dois fatos característicos do nascimento do ser
humano que põem em relevo a magnitude desse processo:
materna, a criança dele não mais poderá sair. A mãe fala e, através da linguagem,
introduz a criança no mundo simbólico.
Portanto, durante seus primeiros anos de existência a criança se sente visceralmente
ligada à mãe e não se reconhece como um ser independente e diferente dela. A tarefa mais
importante com a qual ela se depara é realizar essa separação, perder a fantasia dessa união
fusional. Para tanto, as palavras desempenham um papel fundamental, na medida em que
representam e simbolizam toda a realidade do mundo externo, assim como a realidade interna
de sentimentos e relações intersubjetivas.
A linguagem vai representar também a relação primordial e constitutiva da criança,
aquela que lhe é a mais importante: a relação materna. As palavras vão representar a mãe, vão
simbolizá-la e assim permitir sua introjeção, sendo este um processo necessário para que a
criança admita perdê-la.
Freud (1996 V. XVIII, p. 25) ilustrava esse processo de representação e simbolização
da separação da mãe através da observação do jogo executado por uma criança. A criança
brinca com um carretel que está amarrado com um cordão. Ela joga fora do berço o carretel e,
simultaneamente, emite um som que os familiares entendem como sendo proveniente da
palavra alemã fort, que significa saiu, foi-se. E com grande satisfação, recolhe o carretel pelo
fio gritando da (estou aqui). Ou seja, a criança representa a separação da mãe e seu retorno
através do carretel, e pronunciando as palavras fort e da.
Além do mais, o jogo funciona como uma tentativa de controlar a criança ativamente
algo que sofre passivamente: a dolorosa separação da mãe. Essa analogia significa que, com o
desenvolvimento, a criança precisará menos da brincadeira e mais da palavra, da linguagem.
Analisando esse processo, Pontalis (1991, p. 143), afirma que:
“No detalhe, no ínfimo, no passo a passo dos restos, a fala, quando nada a
comanda a não ser seu próprio impulso, reconduz ao objeto perdido, para
dele se desligar (...) separar-se, desunir-se do objeto e de si, desligar-se do
semelhante ao idêntico, medir incessantemente a distância entre a coisa
possuída e a palavra que a designa, e que, ao designá-la, diz de imediato que
ela não está ali”.
momento mítico onde a criança e a mãe eram uma coisa só, agora para sempre desfeita e
perdida (KAUFMANN, 1996, p. 143).
4
Palavra ou expressão nova numa língua. Significado novo que uma palavra ou expressão de uma língua pode assumir –
verbete – Novo Dicionário Aurélio – o Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1999, p.
1402).
5
Emprego de palavras novas, ou de novas acepções – (Op. Cit. 1999 p. 1402).
28
6
(Querulenta. A doente utiliza alternadamente sua língua materna, o alemão, ou sua neolíngua da qual ela forneceu [...]
(FREIRE, 2007, p. 24).
29
do ponto de vista rítmico e tonal, com exceção de um forte acento tônico nas últimas sílabas
da palavra. O sentido das palavras era bastante fixo. Essa língua teria sido comunicada à
paciente por uma via alucinatória, pelo menos de início. O autor atribuiu seu uso à
necessidade de exprimir certos acontecimentos delirantes vividos mais ou menos cercados de
mistérios unida a um prazer ‘estético’ de se expressar ou uma tendência ao puro jogo de
palavras (FREIRE, Op. cit).
A tese de doutorado em medicina de Cénac, em 1925 apud Freire (2007), tentava
estabelecer no interior das glossolalias ditas psiquiátricas uma distinção entre o que ele
chamou glossomanias, definidas por seu caráter automático e lúdico, e as glossolalias
verdadeiras que seriam a dos esquizofrênicos. No primeiro grupo estava uma doente que dizia
ter o ‘dom das línguas’ e falava todas as línguas da terra, mais uma, que apenas ela conhecia,
o Tasmahouët. Cénac não apresentou exemplos de glossolalias verdadeiras, mas afirmava que
nos dois casos os doentes se mostraram incapazes de dar uma tradução estável de sua
neolíngua. Não foi possível também destacar nenhuma sintaxe, nem supor nenhum sentido
nela: eram apenas jogos fonemáticos.
Em 1027, Teulié apud Freire (2007) dedicou sua tese ao estudo das ‘linguagens
neológicas’ na sua relação com o delírio. Ele introduziu uma nova classificação e distinguiu
três tipos: as línguas neológicas por sua sintaxe – as línguas pseudo-incoerentes –, as línguas
neológicas por seu vocabulário – as glossomanias a que se referia Cénac – e as línguas
neológicas por sua sintaxe e seu vocabulário – as glossolalias verdadeiras de Cénac.
O primeiro tipo se caracterizava por perturbações na rapidez e na emissão das
palavras, na pronúncia, na sintaxe, na supressão de palavras e proposições, no excesso de
algumas categorias verbais, nos paralogismos (raciocínio falso que se estabelece
involuntariamente), nas estereotipias, na seriação de palavras assonantes e aliterativas. Estas
perturbações tinham um caráter automático e o sujeito não tinha consciência disso.
No segundo tipo, as glossomanias, Teulié apresentou o caso de uma doente que
pretendia falar todas as línguas. Este grupo era caracterizado por uma língua feita de séries
silábicas recitadas sem parar. Bastava um comando para que a série fosse desencadeada ou
interrompida. Ela era desprovida de toda significação, seu emprego era voluntário e os
doentes tinham consciência de sua estranheza.
Para ilustrar o terceiro tipo, as glossolalias verdadeiras, Teulié trouxe o exemplo de
um demente precoce paranóico, cuja neolíngua, explica o autor, surgiu sob a influência de um
delírio de grandeza, sendo de formação voluntária, mas com emprego inconsciente.
30
Teulié considerou que, em todos os casos, a ‘causa fundamental’ das neolínguas era o
delírio e que tanto os termos neológicos quanto a língua neológica constituíam um único e
mesmo fenômeno em graus diferentes. Nesse artigo, Dorgueille chama a atenção também para
o ‘jargão’ das afasias7 sensoriais chamadas Wernicke. Acometido por esse distúrbio, o doente
não é mais capaz de apreender o sentido da linguagem humana ao mesmo tempo que perde o
controle de sua própria enunciação e começa a ‘jargonar’. Esta jargonofasia às vezes se
mostra muito próxima de um ‘discurso’ glossolálico. Embora aparentemente similares, não
podem ser comparáveis, pois se sabe que a jargonofasia é conseqüência direta de uma lesão
cerebral.
Da mesma forma, adverte Dorgueille, não é comparável o lapso e o chiste8 à
glossolalia, pois aqueles invocam os processos primários de condensação e deslocamento.
Para Laffal apud Telles, op.cit, isso é evidente nas psicoses e, especialmente, na glossolalia,
que é “o exemplo mais claro da função de descarga da linguagem”. Esse fenômeno aparece no
discurso esquizofrênico, sendo, porém, mais comum em indivíduos aparentemente normais.
Segundo Laffal, um falante em êxtase religioso se encontra tomado pelo Espírito, balbuciando
“palavras atribuídas pelo Senhor,” de uma língua estranha que ele mesmo não entende. Com
base nas leituras realizadas, pode-se presumir que esses balbucios, incompreensíveis para
todos, servem como descarrega de energia psíquica ligada a desejos e conflitos.
Para o autor em análise, no caso dos fiéis, “pode-se imaginar que eles, ao falarem em
línguas, estão em um nível psicótico; outros estão em um nível neurótico (histérico),
regredidos e identificados com a mãe, com os adultos, com os portadores da língua, com os
falantes. Revivem, assim, aqueles momentos fundamentais e constitutivos do psiquismo, em
que ouviam a língua estrangeira, carregada de sentidos e desejos dos adultos.” Por fim, faz o
seguinte comentário:
7
Afasias – denominação com que TROUSEAU (1895) substituiu o termo afemia, proposto por BROCA (1861), para
designar, inicialmente a perda de linguagem articulada na ausência de lesões dos nervos ou de órgãos de execução, que
concorrem para essa articulação. PIERON, H. Dicionário de Psicologia. Tradução de Dora de Barros Cullignan. São Paulo:
Globo, 1995.
8
Uma piada ou anedota é uma breve história, de final engraçado e às vezes surpreendente, cujo objetivo é provocar risos ou
gargalhadas em quem a ouve ou lê. É um termo muito utilizado, na psicanálise. Disponível em
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Chiste> Acesso em 01.03.2009.
31
Partindo dessa premissa, Mannoni (1992, p. 66; 71) explica a estranheza provocada
pela poesia de Mallarmé:
Com base nesse raciocínio, Telles (ibidem) afirma que poetas e fiéis falam línguas,
com uma diferença: no poeta há o fino e complexo manejo da linguagem com fins literários,
enquanto nos fiéis, o que aparece são sintomas regressivos, formas de identificação arcaica
em estado bruto, não reelaboradas esteticamente, que é o que distingue, a arte do mero
sintoma.
Mannoni, (1992, p. 15), cita uma passagem da vida de De Quincey: este sentia
inexplicável prazer de assistir a uma missa rezada em espanhol. Ouvir aqueles sons totalmente
estranhos lhe era muito prazeroso: “Penso que essas visitas o faziam voltar aos primeiros
meses de sua existência, quando sua língua materna ainda lhe era estranha”.
Para Bastide (1996, p. 154), os sentimentos e condutas dos místicos também podem
ser vistos como patológicos e diz:
É no campo religioso que pode ser reconhecido algo como sendo “sagrado,”
Identificar e reconhecer algo como sendo ‘sagrado’ é em primeiro lugar, uma avaliação
peculiar que, nessa forma, somente ocorre no campo religioso. Apesar que também tanja
outras áreas, como no campo da ética, não é daí que provém a categoria do sagrado. Ela
apresenta ‘momento’ bem específico, que foge ao acesso racional, sendo algo árreton
[“impronunciável”], um ineffabile [“indizível”] na medida em que foge totalmente à
apreensão conceitual (OTTO, 2007, p. 37).
32
“Tanto nas formas mais baixas como nas mais elevadas da via mística se
encontram no cerne das religiões – quer das religiões emergentes, que se
criam em meio a crises de êxtase, estranhos enlevos e exaltações coletivas,
quer das religiões já constituídas – e se apresentam então como protesto da
consciência religiosa contra o formalismo antiquado, a rotina eclesiástica e
as dogmáticas mortas”.
Os atos religiosos estarão orientados a essa Realidade máxima, que se lhe manifesta
através das hierofanias9, semelhante a algo totalmente diferente do profano e um misterioso,
como um “Outro” que se epifaniza, constituindo, assim, a essência da experiência religiosa,
com infinitas formas de expressá-lo: símbolos, mitos, ritos, figuras divinas, animais, plantas,
seres humanos e tantos outros. Na hierofania, podem-se diferenciar três elementos: uma
criatura (por exemplo, uma árvore), a Realidade invisível e aquela mesma criatura que, por ser
mediadora, reveste-se de sacralidade (CROATTO, 2001, pp. 58-59). A partir desse estudo
pode-se concluir que o Dom de Línguas é uma hierofania, porque o sagrado é mostrado aos
fiéis a partir daqueles balbucios.
A experiência religiosa que tem por objetivo o transcendente, o divino, é algo que não
pertence ao plano das idéias e diante da grandeza do experienciado, a pessoa se sente como
nublada, infinitamente pequena e entregue, sendo este o entendimento de Amatuzzi apud
Antunes (2005, p. 8), estando nesse plano a glossolalia, como foi encontrado na pesquisa
junto aos entrevistados.
Em seu artigo de título “Experiência religiosa: busca de uma definição Amatuzzi apud
Antunes (2005, p. 9) procurou diferenciar “experiência religiosa” e “conhecimento
religioso.” Ao usar o termo “experiência”, normalmente deseja-se designar “não qualquer
conhecimento, mas aquele obtido na prática, na lida concreta com objetivos particulares, e
não nos livros ou no mero exercício dedutivo da raciocinante”. E a partir daí, o termo
“experiência” pode ser usado para designar o conhecimento que existe na relação com o
objeto, que faz parte desta relação e que lhe constitui a consciência imediata. Enquanto tal
inclui dois aspectos: consciência do contato com o religioso, e consciência de significados aí
contidos. Pode-se dizer que a experiência é um conhecimento imediato, e ao mesmo tempo
transporta um conhecimento tácito. Isto é diferente de uma dedução intelectual, embora possa
originar uma reflexão ou uma elaboração posterior.
Vários autores propuseram diferentes definições para o conceito de religião, mas
nenhum foi tido como completo para que fosse encerrada a busca pela melhor definição
9
Hierofania" é a manifestação do sagrado, ou seja, algo sagrado que é mostrado ao homem. (ELIADE, M., 2001, p. 17)
34
(VALLE, 1998 apud ANTUNES, 2005, p. 5). Tal variedade de conceitos revela a amplitude
do tema e, consequentemente, a dificuldade de se chegar a um acordo sobre este assunto. Para
tentar organizar melhor esses conceitos, Clark (VALLE, 1998 apud ANTUNES, 2005, p. 5)
reuniu em 1958, cerca de quarenta e oito definições sobre o que seria religião, entre elas:
“Para Amatuzzi (1999) a palavra religião tem dois sentidos: o primeiro está
relacionado a Deus, sendo que para ser considerada uma pessoa religiosa é
necessário que esta tenha fé em Deus. O segundo sentido é mais global, ou
seja, ser religioso é estar ligado de maneira completa a tudo, numa
totalidade; é estar re-ligado a uma fonte, ou ter feito assim uma releitura do
mundo, compreendendo e vivendo o seu significado mais radical, mesmo
que o significado “Deus” não se faça explicitamente presente”.
“Para Willwoll citado por BENKÖ (1981, p.16), o ato religioso em sua plena
maturidade: “é um envolver-se da alma espiritual, com a totalidade de suas
disposições com Deus, como supremo valor transcendente e operante na sua
vida, ante o qual a alma se situa em atitudes, que mutuamente se exigem e se
completam de distância, de respeito e de amor que deseja a união”.
Edmund Leach (1972) ampliou ainda mais o estudo dos ritos, que ele considera como
uma forma de comunicação, “como uma linguagem que serve para exprimir o status do
indivíduo e para expressar a estrutura social”. Afirma também que se pode considerar o rito
como o aspecto comunicativo de todo comportamento. Para Croatto (2001, p. 330): “o rito
aparece como uma norma que guia o desenvolvimento de uma ação sacra. O rito é uma
prática periódica, de caráter social, submetida a regras precisas”.
Por se tratar de uma norma para o desenvolvimento de uma ação sacra, pode ser dito
que os ritos buscam o contato com o sagrado, e sendo assim, o rito consegue uma participação
com o transcendente imitando simbolicamente um gesto primordial. É assim que entendeu a
autora nos ensinamentos de CROATTO (2001, p. 331).
Eu Navegarei
(Canção Nova)
uma dupla evolução: de início ela era rica em ritos mecânicos, materiais e precisos, em
crenças formuladas principalmente por imagens sensíveis e depois foi gradualmente
mudando, dando lugar a que os ritos se tornassem atitudes da alma, mais do que atitudes do
corpo; enriqueceu-se de elementos mentais e de idéias, ao mesmo tempo em que se
espiritualizava; a religião tem a tendência de individualizar-se, dando mais e mais espaço à
consciência. Em seguida, os ritos passam a ser sobretudo coletivos, realizados pelo grupo
reunido.
Para Bastide (2006, p. 147), o estudo da prece é algo complexo e de díficil
delimitação, apresentando inúmeras dificuldades, entre elas se o problema está ligado, em
primeiro lugar, a todo um conjunto de problemas para os quais os antropólogos, apresentam
respostas diferentes, entre os indivíduos e o grupo. A oração individual pode ou deve existir
em paralelo à oração cultural coletiva.
Ao se fazer uma oração, sempre estar-se-á remetendo às idéias e doutrinas de certa
tradição religiosa institucionalizada, em seus dogmas, princípios e tabus, porque a prece, no
entendimento de Mauss, em seu ensaio antes comentado, é um conjunto das representações
religiosas apropriadas pelo indivíduo que as dinamiza, ou seja, quando o indivíduo está
orando não é mais um simples indivíduo, mas uma força social e com esse entendimento, fica
acentuado o caráter também social da prece, que poderá ser individual ou institucionalizada.
Em seguida a glossolalia será analisada à luz da tradição religiosa cristã, a partir do
seu texto sagrado – a Bíblia, especialmente na obra paulina.
Robert Sungenis apud Freire (2007, pp. 11-120) faz um percurso histórico da
glossolalia, desde os tempos mais remotos aos atuais:
Durante esses estados, Deus inspira nele a fala e visões que ele não pode
entender nem interpretar”.
10
O geólogo americano Jelle Zellinga de Boer afirmou que a zona do monte Parnaso assenta-se sob uma fratura geológica
subterrânea da qual fluem gases hidrocarburetos e hidrossulfúricos (tais como metano e etano) que seriam os responsáveis
pelas revelações em transe das pitonisas.
40
que atingia e iluminava o coração de cada um, segundo Denis apud Freire (2007, p. 13): “[...]
um verbo que penetra a carne e a transfigura”.
Como explicação para a prática da glossolalia no culto cristão, Denis apud Freire
(2007, p. 13) propõe a rejeição à lei escrita dos judeus e acrescenta que, nesse mesmo ato que
rejeita, o cristianismo retoma um ritual característico do culto pagão, que é o da fala extática.
Centrado o assunto no dia de Pentecostes, diz em Atos, 2, 5-14:
“Pois aquele que fala em línguas, não fala aos homens, mas a Deus.
Ninguém o entende, pois ele em espírito, enuncia coisas misteriosas. Mas
aquele que profetisa fala aos homens, edifica, exorta, consola. Aquele que
fala em línguas edifica a si mesmo, ao passo que aquele que profetiza edifica
a assembléia. É por isto que aquele que fala em línguas, deve orar para poder
interpretá-las. Se oro em línguas, meu espírito está em oração, mas a minha
inteligência nenhum colhe” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2004, p. 2001, 207
- 2008 – 1Cor 12: 26, 14: 2.3.4.5.13.14)
“Ide por todo o mundo e proclamai o Evangelho a toda a criatura. Quem crer
e for batizado, será salvo; o que não crer, será condenado. Estes são os sinais
que acompanharão os que tiverem crido: em meu nome expulsarão
demônios, falarão em novas línguas”. (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2004, p.
1785; Marcos: 15.16.17).
Mas é nos Atos dos Apóstolos que a manifestação da glossolalia; ou dom de línguas –
expressão utilizada no meio cristão – é esclarecida com mais precisão, na Festa de
41
11
Refere-se a qualquer indicação da participação divina na vida humana – verbete – HOUAISS. A. Dicionário Houaiss da
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
42
que pregavam um rígido ascetismo como o montanismo. Era a doutrina defendida por
Montano (157-212), líder frígio que rompeu com a Igreja institucionalizada e, dizendo-se
porta-voz do Espírito Santo, exigia um severo ascetismo, declarava estar próximo o fim do
mundo e defendia o estabelecimento da nova Jerusalém na Frígia, o que comprova que a
glossolalia não desapareceu totalmente (FREIRE, 2007).
Com a queda do Império Romano do ocidente, no Século V, surgiram duas linhas na
Igreja Católica: a do Ocidente, seguindo uma vertente mais prática e autoritária; e a do
Oriente, mais mística. Com o desenvolvimento da Igreja católica do Ocidente (Século VI–X),
falar em línguas passou a ser uma prática ligada ao demônio.
Apesar disso, as práticas glossolálicas persistiram e chegaram ao Século XII ligadas à
vida de vários santos católicos, como comprova o relato da abadessa beneditina Hildegard
Von Bigen (1098–1179), visionária, mística, poeta e cantora, que testemunhou ter cantado
com palavras desconhecidas. Embora pudesse ser reconhecida uma combinação do dialeto
alemão local e do latim, ela descreveu sua música como ‘concerto do espírito’, pois sentia
fortemente que o Espírito Santo a guiava. Seus contemporâneos a consideravam possuída pelo
demônio. (FREIRE, 2007, p. 15).
Cem anos mais tarde, São Domingos (1170–1221), espanhol, relata ter falado alemão
após muita oração. Também Santo Antônio de Pádua (1195 – 1231) relatou que sua língua se
transformou em ‘pena do Espírito Santo’.
A lista é importante, mas faço referência apenas a alguns dos santos que relataram sua
experiência glossolálica: São Vicente Ferrer (1350 – 1419), São Francisco Xavier (1506 –
1552), São Louis Bertrand (1526 – 1581). Nos séculos XV e XVI, sob o nome de Illuminati,
grupos entre os quais se incluíam místicos como São João D’Ávila (1500 – 1569), Santa
Teresa D’Ávila (1515 – 1582), São João da Cruz (1542 – 1591) e Inácio Loyola (1491 –
1556), escreveram sobre vários fenômenos milagrosos que ocorreram em suas vidas,
incluindo o de falar em línguas. (FREIRE, 2007. p 16).
Ainda na Idade Média, uma biografia de Martinho Lutero (1483 – 1546), líder da
Reforma Protestante, afirma que ele falava em línguas, embora essa versão seja considerada
falsa pelos reformistas. Os Anabatistas, ala radical da Reforma, não se contentavam apenas
com a escritura de Lutero e João Calvino (1509 – 1564) e reivindicavam que uma voz interna
do Espírito Santo precedia as palavras externas das Escrituras. Entre eles há vários relatos de
prática da glossolalia. Também o Pietismo, movimento surgido na Igreja Luterana alemã no
final do século XVII, seguia princípios austeros coincidentes com os do Anabatismo
(reiterados batismos). (FREIRE, 2007. p 16).
43
Em 1685, Luís XIV anulou o Édito de Nantes que permitia a liberdade de culto aos
protestantes. O grupo dos huguenotes foi perseguido e considerado herege pelo papa
Clemente XI. Esse grupo estava ligado a uma seita cristã, surgida no fim do século XII, início
do século XIII, no sul da França e que defendia o Novo Testamento como único padrão de
autoridade, desafiando o poder papal. Relata-se que crianças dessa seita tinham manifestações
extáticas, incluindo a glossolalia. Tais episódios continuaram até 1711. Esse grupo foi
perseguido e eliminado pela inquisição. (FREIRE, 2007. p 16).
Os jansenistas, liderados por Cornélio Jansênio (1585–1638), reagiram contra a Igreja
Católica, e advogaram a prática glossolálica. O cientista, filósofo e místico Blaise Pascal, um
dos mais famosos adeptos do jansenismo, praticava a glossolalia. Há uma curiosidade em sua
biografia que permite supor um interesse precoce pelo dom das línguas. Na segunda metade
do século XVII, surgiu na Inglaterra uma comunidade chamada Quaker (quake significa
‘tremor’), de origem protestante, enfatizando experiências do Espírito Santo. A glossolalia
fazia parte do seu ritual. Um outro grupo chamado Shakers (shake significa ‘abalo, agitação,
sacudida’) liderado por Ann Lee (1736–1784) separou-se do movimento Quaker, mantendo,
no entanto, os mesmos princípios. (FREIRE, 2007. p 16).
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, outros movimentos Protestantes ainda podem ser
citados como tendo dentre os seus rituais a prática da glossolalia: o movimento missionário
moraviano, a renovação Metodista liderada por Charles Wesley (1707–1788), seu seguidor
John Fletcher (1729–1785), o americano Charles Finney (1792–1875), os Mórmons que, no
início do movimento, praticavam a glossolalia, mas foram desencorajados pelos líderes, pois
estavam sendo ridicularizados e desrespeitados, entre outros motivos, por esta prática. O
também americano Charles Parhan, chamado pai do moderno movimento Pentecostal,
ensinava aos seus alunos que o sinal do batismo do Espírito Santo era falar em línguas.
Com o Movimento da Renovação Carismática, que surgiu logo após o Concílio
Vaticano, em 1964, deu-se o ressurgimento da glossolalia, e aqui no Brasil, essa prática foi
intensificada, tanto por católicos como pelas igrejas pentecostais. Tal fenômeno é explicado
pelos momentos históricos em que essa prática surge e ressurge, coincidindo com momentos
de desvalorização das instituições (eclesiásticas ou sociais) de fala, deterioração de usos e
costumes, degradação das convenções da linguagem, entre outros.
A vida moderna se apresenta com uma série de exigências e compromissos que fazem
do quotidiano algo estressante e a religiosidade surge como um antídoto para tais situações de
distanciamento, pois minimamente se uma determinada família cultivar hábitos religiosos, ao
menos nas situações de oração, culto, cerimônias religiosas, entre outros, seus membros
44
estarão juntos e poderão partilhar desses laços sanguíneos com bastante intensidade
(ANGERAMI, 2008).
45
3. MOVIMENTOS RELIGIOSOS
troncos foram surgindo outros grupos, havendo uma fragmentação ainda hoje. Como
resultado, há uma grande variedade nas manifestações do cristianismo protestante evangélico.
Entre os aspectos cristãos comuns, destacam-se: a divindade de Jesus Cristo, como
filho do Deus trino; o terceiro elemento da Santa Trindade (o Espírito Santo) e a Biblia, como
Livro Sagrado, com algumas divergências quanto ao número de livros que a compõem. A
palavra pentecostal vem de Pentecostes, evento marcado pela efusão do Espírito Santo,
cinquenta dias após a ascensão de Cristo. No Livro de Atos, capítulo 2, consta a narrativa
desse evento, quando os apóstolos se encontravam reunidos em Jerusalém.
falou em línguas e outras pessoas o acompanharam. Alves e Oliveira (2004, p. 31) explicam
melhor esse movimento:
A palavra “carisma” é utilizada pelo próprio Paulo com cautela, usando-a nas duas
epístolas aos Coríntios e uma vez na Carta aos Romanos. Segundo Juanes Benigno (2001, pp.
14-15) mesmo a literatura cristã primitiva não a levou a sério. Na época da teologia chamada
escolástica (Idade Média), foi substituída pela expressão gratia gradisdata (graças gratuitas).
Essa tendência ao desuso se acentuou quando, nos tratados de eclesiologia, observa-se
fortemente a intenção de defender a dimensão institucional e hierárquica da Igreja, com a
reforma protestante.
O termo “carisma” voltou a reaparecer principalmente com o Papa Pio XII, em sua
encíclica Mystici Corporis, de 1943. Seu uso foi consolidado com o Concílio Vaticano II, que
inseriu o termo em vários documentos, principalmente no Lumen Gentium. Segundo Juanes
(2001, p. 15) parece ter sido a Renovação Carismática que se encarregou de transformá-lo em
um dos mais empregados no vocabulário religioso da atualidade.
Segundo Amaral (2002. p. 9-11), os dons do Espírito Santo são dádivas concedidas
aos fiéis, para a sua santificação pessoal e para o serviço aos irmãos. Os dons de santificação
50
estão enumerados em Isaías 11, 1-2 e são os seguintes: temor de Deus, fortaleza, piedade,
conselho, ciência, entendimento e sabedoria. Esses dons são necessários para a santificação.
Os dons espirituais de serviço aos fiéis são chamados também carismas. São infinitos, e os
auxílios que podem prestar são os mais variados (AMARAL, 2003, p. 9). Na Primeira Carta
aos Coríntios, Paulo fala muitas vezes sobre os dons espirituais.
“Não paro de agradecer a Deus por vós, pela graça de Deus que vos foi dada
em Cristo Jesus. Por ele fostes enriquecidos em tudo,em toda palavra e em
toda ciência, na medida em que o testemunho de Cristo se firmou em vós, de
modo que não vos falta nenhum dom da graça durante a espera da revelação
de nosso senhor Jesus Cristo (1Cor., 1, 4-7).
São vários os dons espirituais, mas o Espírito é o mesmo. As obras também
são várias, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é
dado manifestar no Espírito uma palavra de sabedoria; a outro, uma palavra
de ciência segundo o mesmo Espírito; a outro, a fé no mesmo Espírito; a
outro, o dom de curar nesse único Espírito; a outro o poder de operar
milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro,
a diversidade das línguas; a outro, o dom de interpretação. Mas é o único e
mesmo Espírito que realiza isso tudo, distribuindo a cada um como quer (1
Cor., 12, 4-11).
Por isso Deus estabeleceu na Igreja, em primeiro lugar, uns como apóstolos;
em segundo lugar outros como profetas; em terceiro lugar, como doutores.
Depois vêm os dons de realizar milagres, de curar, de assistir, de governar e
de falar em línguas” (1Cor., 12-28).
Sobre os dons espirituais, Paulo escreveu também aos Romanos, aos Efésios e a
Timóteo. No mesmo sentido, São Pedro exorta os fiéis: “Cada qual use o dom recebido a
serviço dos outros, como bons administradores da multiforme graça de Deus”. (1 Pd., 4-10).
O Concílio Vaticano II, em diversos documentos, a seguir citados, faz referência aos dons de
serviço na vida da Igreja, segundo Juanes (2001, p. 15):
“O Espírito habita na Igreja e nos corações dos fiéis, como num templo;
dentro deles ora e dá testemunho da adoção de filhos. A Igreja, que Ele
conduz à verdade total e unifica na comunhão e no ministério, enriquece-a e
guia com diversos dons hierárquicos e carismáticos e adorna com os seus
frutos (LUMEN GENTIUM, 4).
- É um mesmo Espírito que distribui os seus vários dons segundo a sua
riqueza e as necessidades dos ministros para utilidade da Igreja. Entre estes
dons, sobressai a graça dos apóstolos, a cuja autoridade o próprio Espírito
submeteu mesmo os carismáticos (LUMEN GENTIUM, 7)
- À medida que se avança na idade, revela-se mais cada um e assim pode
descobrir melhor os talentos com que Deus enriqueceu os carismas que lhe
foram dados pelo Espírito Santo para bem dos seus irmãos”
(APOSTOLICAM ACTUOSITATEM, 30)
51
O corpus paulino é constituído por quatorze epístolas, contando-se com a epístola aos
Hebreus, a qual adquiriu certo status, porque no Ocidente, a pertença de Hebreus ao cânone
das Escrituras cristãs levou certo tempo para impor-se. Por exemplo, ela não consta na lista do
Cânone Muratoriano,12 documento romano datado comumente do fim do século II. No
Oriente, se sua canonicidade jamais foi posta em dúvida, alguns autores, como Orígenes,
põem em dúvida a autoria paulina dessa Epístola (QUESNEL, 2004, p. 91).
A grande maioria dos dons espirituais mencionados na Bíblia encontra-se em três
capítulos principais de Paulo: Rm., 12, I Co., 12 e Ef., 4. Há ainda outros textos importantes
que fazem referência aos dons espirituais: I Cor., 13-14, I Pe 4, I Cor., 7 e Ef., 3. No capítulo
12, de sua Carta aos Romanos, Paulo menciona os seguintes dons espirituais: profecia
(pregação, declaração inspirada); serviço (ministério); ensino (comunicação de princípios
bíblicos); exortação (estímulo à fé, encorajamento); contribuição (doação, generosidade);
liderança (autoridade, governo, administração); misericórdia (simpatia, consolo, bondade).
No capítulo 12 da Primeira Carta aos Coríntios, acrescenta os seguintes: sabedoria
(conselho sábio, palavra sábia); conhecimento (falar com propriedade); fé (crer na intervenção
divina); cura (sarar mágoas e doenças físicas); milagres (realização de grandes feitos);
discernimento de espíritos (percepção espiritual); línguas (falar em línguas nunca aprendidas);
interpretação de línguas (tradução compreensiva); apóstolo; socorro; administração (governo,
presidência, liderança). Finalmente, no capítulo 4 da carta aos efésios, aponta mais dois:
evangelista (missionário, pregador da salvação em Cristo); pastor (conduzir o povo de Deus).
Essas três listas básicas fornecem vinte dons espirituais distintos, mas nenhuma delas é
completa. Há dons mencionados em Efésios que também são mencionados em Romanos.
Alguns dos dons mencionados em Romanos são mencionados na Primeira Carta aos
Coríntios, os quais, por sua vez, são repetidos em Efésios. Como se observa, esses catálogos
não pretendem ser listas completas dos dons que Deus confere. Poder-se-ia, então, concluir
que, não sendo completa nenhuma dessas três listas, provavelmente todas elas juntas também
não o são.
Há, pelo menos, outros dez dons mencionados no Novo Testamento: celibato
(continência, abstinência sexual); pobreza voluntária (desprendimento material); martírio
(submissão ao sofrimento); hospitalidade (alegria em receber pessoas); missões (amor
12
Tradução francesa em Lagrange. M.-J Histoire ancienne Du Canon Du Nouveau Testament. Paris, 1993. pp. 71-73.
52
Padre Jonas é fundador da Canção Nova, uma comunidade com sede em Cachoeira
Paulista13, São Paulo, caracterizada por manter costumes católicos tradicionais. Essa
comunidade tem um pequeno império de comunicações no Brasil para divulgar as idéias da
Renovação Carismática Católica, incluindo uma rede de comunicação de rádio e TV com
retransmissão para várias regiões do Brasil. Alguns criticam a forma de arrecadação de
dinheiro feita pela TV Canção Nova. Como não possui patrocínios comerciais, seus
patrocinadores são os telespectadores. Daí as permanentes campanhas de doações em dinheiro
para cobrir os custos de produção e transmissão dos seus programas.
Padre Marcelo Rossi, na cidade de São Paulo, tornou-se um fenômeno de mídia e
cultura de massas, a partir do final dos anos 90. Ele canta, dança e faz coreografias em missas
lotadas e programas de televisão. Essas atividades são mantidas ainda atualmente, inclusive
com Programas também da Emissora Rede Vida de Televisão, por exemplo na oração do
terço “Bizantino”, onde ele se propõe levar aos fiéis a mensagem de Cristo. Seu estilo já foi
criticado por alguns setores da Igreja Católica Romana no Brasil, mas isso só fez contribuir
para aumentar seu prestígio. Padre Marcelo já gravou quatro discos desde 1998. Aparece em
programas de TV com certa regularidade, e comanda um programa de rádio com mais de
100.000 ouvintes em todo o país. Suas missas celebradas a céu aberto, na época da Páscoa,
atraem milhares de fiéis.
O fenômeno da Renovação Carismática Católica não pode ser visto como algo novo
ou inédito na história do cristianismo. Já nas primeiras comunidades cristãs, os estados
alterados da mente causavam êxtase e suscitavam divergências. Paulo, por exemplo, viu-se
coagido a intervir na comunidade de Corinto (1 Cor, 12-15) para estabelecer a hierarquia dos
valores e lembrar os critérios de avaliação dessas manifestações, que lembram o que acontece,
hoje, na Renovação Carismática Católica. Eram comuns os estados de êxtase, sob formas
variadas, especialmente no primeiro milênio do cristianismo.
Em vários períodos da Idade Média, há registros desses movimentos, suscitando adesões
entusiasmadas ou rejeições apaixonadas. Foi assim, por exemplo, nos tempos de Gioachino di
Fiori ou na época da difusão da "devotio moderna". Tratava-se de um movimento espiritual que
chegou a levantar as suspeitas do Tribunal da Inquisição até contra o fundador dos jesuítas,
conforme a pesquisa bibliográfica realizada (VALLE, 2004. Op. cit., p. 3).
Entretanto, a onda carismática que marca os dias atuais não pode ser vista como uma
mera repetição de movimentos anteriores. Tem características próprias e seu acolhimento no
13
A Comunidade Canção Nova, fundada em 1978.
55
seio das igrejas cristãs apresenta diferenças com relação ao que se verificou no passado. O
Pentecostalismo atual, além disso, é um movimento bastante estudado. Existem, hoje,
recursos bem mais refinados para avaliá-lo, sob os mais variados pontos de vista. Mas é falso
supor que a Renovação Carismática Católica seja um fenômeno já totalmente analisado e
assimilado no âmbito do "campo religioso católico." A concepção, a dinâmica, a doutrina e as
perspectivas futuras da Renovação Carismática Católica não estão ainda claras, conforme
reconhecem os estudiosos do assunto (ANJOS, 1998, p. 61-79).
Por isso, novos estudos devem ser realizados, na tentativa de se chegar a uma visão
mais elaborada do significado da Renovação Carismática Católica, no conjunto das
extraordinárias transformações pelas quais passa o catolicismo no mundo inteiro
(CARRANZA, 2000, p. 24). Porém, já é amplamente aceito que a onda pentecostal que
invadiu a Igreja Católica no pós-concílio não é um modismo passageiro. Cresce o número de
teólogos e analistas que vêem o pentecostalismo como uma manifestação que afeta toda a
Igreja. A doutrina, hoje, adotada pela Renovação Carismática Católica faz parte do cenário do
catolicismo desde tempos mais antigos, mas vem se renovando e se fortalecendo
continuamente. É preciso, portanto, retomar a análise desse fenômeno para que se possa
dimensionar este crescimento.
Algumas situações conflitivas vêm ocorrendo no âmbito da própria Igreja Católica,
afetando a convivência interna nas dioceses e paróquias. As principais causas geradoras desse
conflito são divergências teológicas e pastorais e, sobretudo, o entusiasmo com que os
carismáticos se lançam na defesa e propagação de seus princípios e propostas. Fora da Igreja
Católica, as dificuldades maiores derivam de relacionamentos com o neopentecostalismo
protestante.
A Renovação Carismática Católica adota princípios como uma fé introspectiva, uma
experiência pessoal com Deus e uma representação que ressalta a figura de Satanás como raiz
das tentações e de todos os males. Seus seguidores opõem-se à Teologia da Libertação,
vertente da Igreja Católica que buscou aplicar à religião conceitos vindos do marxismo,
enfatizando a participação política, por exemplo, para se combater a desigualdade social.
Carranza (2000, p.5) descreve alguns desses elementos comportamentais típicos dos
carismáticos e detectáveis ao primeiro olhar: Rezar de braços elevados para o alto; [...] a
emotividade, a afetividade e a espontaneidade atuando como meios de comunicação; a
referência constante das sensações como indicativas de experiências místicas e a certeza da
presença de Deus. Além de tudo isso nota-se também a necessidade de citar o que seus
membros denominam de “milagres” que servem como prova da existência divina e,
56
Para os cristãos, é o Espírito Santo que conduz as pessoas à fé em Jesus Cristo e que
lhes dá a capacidade para viverem um vida cristã. “Com uma atitude sapiencial e auto-
implicativa, põem-se a escutar e analisar, para tirar lições para si mesmas, de como serem
fiéis aos sinais do Espírito que sopra onde quer, que os guia no caminho da verdade. (ANJOS,
1998, p. 9); é como o vinho novo e que todos os fenômenos ocorridos nos Encontros são
frutos do Espírito Santo, invocado a todo momento, como por exemplo a letra da música a
seguir transcrita (CD Padre Marcelo Rossi):
57
ESPÍRITO
Vem espírito,
Vem espírito,
Sozinho eu não posso mais (2x)
Sozinho eu não posso mais viver.
Eu quero amar,
Eu quero ser,
Aquilo que Deus quer
Sozinho eu não posso mais (2x)
Sozinho eu não posso mais viver.
Vem espírito,
Vem espírito.
Sozinho eu não posso mais (2x)
Sozinho eu não posso mais viver.
De acordo com a mesma fonte, o termo “transe” (do francês transe) é definido como
momento aflitivo, ato ou feito arriscado; ocasião perigosa; lance, crise de angústia,
falecimento, passamento, morte, combate, luta e, também, estado de médium ao manifestar-se
nele o espírito. São apontadas também as seguintes conotações: ''a todo o transe [...]: a todo o
custo; à viva força''; ''transe hipnótico [...]: estado de profunda sonolência, provocado por
hipnose; transe histérico [...]: estado que acompanha certas crises de histeria''. Já o termo
“possessão” é assim definido pelo Dicionário Aurélio (1999, p.1616):
Esses fenômenos estão presentes nas tradições religiosas desde os tempos mais
remotos. Para o historiador Peter Brown, eles encontram-se na origem do culto dos santos,
manifestando e revelando aos pagãos, nos santuários do Baixo Império Romano, a praesentia
e a potentia desses mesmos santos. Possessão é, pois, o fenômeno que expressa a crença das
pessoas em determinados sintomas manifestados por alguém. Acredita-se que essa pessoa
tenha o corpo invadido ou tomado por alguma entidade espiritual ou de outra natureza que
permita essa forma de intrusão (VALLE, 2004, p. 6).
O comportamento dessa pessoa ''possuída'' pode ser descrito (numa versão um tanto
'behaviorista') como uma forma de ''transe'', na qual se pode distinguir um tipo ''hipercinético''
(de caráter mais espetacular e agitado), diferente do que se pode chamar de transe
''hipocinético'', que está freqüentemente associado ao chamado misticismo.
Segundo Gerrie Ter Haar apud Maués (2003, p. 12), ''a questão do bem e do mal é
acrescentada por teólogos e outros, que desejam defender uma ideologia particular. É,
portanto, irrelevante para uma discussão que leve em conta os processos psicossomáticos e
bioquímicos que constituem o background desses fenômenos”. Não obstante, para a cultura
ocidental, em cuja tradição está situada a Igreja Católica, a possessão por espírito tornou-se
um assunto delicado.
As crenças ocidentais geralmente consideram a possessão por espírito como
involuntária, uma experiência maléfica, que deveria ser evitada. Na linguagem comum, essa
atitude negativa se reflete na maneira como as pessoas se referem a alguém que está
''possuído''. “Esse indivíduo expressa um estado de histeria, agindo como louco e perdendo,
em geral, o controle de si mesmo [...]. As referências ao demônio ou a outros espíritos
indicam que tal pessoa é um perigo para a sociedade” (MAUÉS, 2003, p. 13).
O significado negativo emprestado à possessão por espírito é evidente na Bíblia. Toda
vez esse fenômeno mencionado, no Novo Testamento, invariavelmente faz referência a maus
espíritos, particularmente ao diabo. A maneira adequada de lidar com tais espíritos é expulsá-los.
Quando surge um bom espírito (o Espírito Santo), a Bíblia usa um vocabulário bem diferente,
para enfatizar a natureza positiva da crença em tal possessão. Por exemplo, no episódio do
Pentecostes, as pessoas ficaram “cheias” do Espírito Santo e ''falam em línguas''; já, no caso de
um espírito ''mau'' ou ''impuro,”' usa-se o termo ''possessão'', e as manifestações do espírito são
vistas como sinais de seu comportamento inadequado [...] (MAUÉS, 2003, p. 13).
No Ocidente, os cristãos usualmente se referem à presença do Espírito Santo numa
pessoa em termos de um ''êxtase'' religioso, ao invés de uma ''possessão'', a qual é tratada com
uma conotação negativa. Essa associação negativa com a presença de espíritos não é
61
exclusiva da cristandade e pode ser observada em outras religiões de natureza dualista. Elas
fazem uma distinção absoluta entre o bem e o mal e, como resultado, entre possessão por um
espírito que é absolutamente bom e por outro que é absolutamente mau. Aos olhos dos
crentes, a possessão por um é uma experiência completamente diferente da possessão por
outro, não havendo nada em comum entre esses espíritos (MAUÉS, 2003, p. 14).
Neste ponto, recorrendo a uma literatura de origem francesa, Maués (2003, p. 14)
chama a atenção para as distinções estabelecidas por Marion Aubrée, que se inspirou nas
formulações de seu compatriota Gilbert Rouger. Considerando o transe como um fenômeno
composto, ao mesmo tempo, de elementos psicofisiológicos e culturais, Aubrée propõe uma
distinção entre o transe e o êxtase. Para ela, o êxtase é uma reação muito empregada no meio
cristão, diferenciando-se do transe tanto pelos modos de indução quanto pelos estados
psicofisiológicos, podendo-se acrescentar o simbolismo expresso por aqueles que o
vivenciam.
De fato, o êxtase, independentemente de que esteja relacionado à mística cristã,
xamânica ou espírita, é sempre descrito como uma saída do indivíduo de algo como se fosse
uma dinâmica de viagem, enquanto o transe corresponde sempre à descida na pessoa de uma
divindade ou de um espírito.
Com esses argumentos, Aubrée procura definir mais claramente o transe, de modo a
distingui-lo do êxtase. Para ela, ''a indução ao transe passa pelo ruído e pela agitação. Requer
a presença de outros, enquanto o êxtase surge na imobilidade e no silêncio da solidão''. No
que diz respeito a esse estado, invocando Rouget, refere-se ''uma superestimulação sensorial,
uma dissociação da consciência que não permite memorizar a experiência e, enfim, uma
ausência de alucinações'' (MAUÉS, 2003, p. 15). Ao contrário, no que concerne ao êxtase,
retomando uma idéia de Lapassade, Aubrée afirma que nele se pode observar ''uma
consciência clara do que se passa e, em conseqüência, a possibilidade de se recordar (cf. os
místicos cristãos), assim como de freqüentes alucinações''.
Rouget apresenta as formas de transe que encontrou, por exemplo, entre os adeptos do
xangô e do pentecostalismo: o ''transe de possessão'' (que, segundo ela, é uma característica
do primeiro) e o ''transe de inspiração'' (que caracteriza o pentecostalismo, especialmente no
que diz respeito à glossolalia). ''No primeiro caso, o possuído muda de personalidade no
sentido de que ele se transforma na divindade; no segundo [pentecostalismo], o indivíduo
conserva sua personalidade, mas é cercado (investi) pela divindade que, ao dominá-lo, faz
dele seu porta-voz'' (MAUÉS, 2003, p. 15).
62
Essas observações de Marion Aubrée são bastante úteis para se compreender o êxtase,
o transe e a possessão, de modo especial, na Renovação Carismática Católica. Neste ponto do
trabalho, pretende-se entrar diretamente na discussão sobre estados alterados de consciência –
êxtase, transe e possessão -, a partir dos dados da pesquisa bibliográfica realizada, retornando,
especialmente, às idéias de Marion Aubrée.
A glossolalia, cujo significado mais comum é ''falar'' ou ''orar em línguas”, é um
fenômeno muito mais amplo, que transcende o campo religioso. É utilizado em contextos
variados, inclusive na música profana e, portanto, não se restringe ao cristianismo. Ela
acontece mais facilmente em alguns momentos das reuniões da Renovação Carismática
Católica, quando os iniciados começam a orar em conjunto, cada um entoando suas próprias
orações, com palavras diferentes, uns dos outros. Ouve-se, sobretudo, a fala do líder, que
muitas vezes está usando um microfone. Todas as pessoas oram, em voz alta, ao mesmo
tempo, de forma idiossincrática, de modo que se tem a impressão de uma balbúrdia de vozes.
Isso ocorre sobretudo, se há maior exaltação emocional entre os integrantes do grupo ou
multidão, como em ginásios e estádios (MAUÉS, 2003, p. 20).
É nesse momento que ocorre, também, o ato de orar em línguas, como seqüência
natural de uma série de orações para as quais, muitas vezes, faltam palavras compreensíveis.
E assim, as pessoas que têm esse dom passam a orar como já o faziam há tantos anos os
profetas do Antigo Testamento. O fenômeno continuou se repetindo nas primeiras
comunidades cristãs descritas no Novo Testamento, a partir do episódio de Pentecostes. Essas
pessoas recebem a efusão do Espírito de Deus e – na concepção dos carismáticos – já não são
mais elas que oram, mas sim o Espírito Santo através de suas bocas.
Há também uma identificação da glossolalia, isto é, um conjunto de sons pronunciados
de modo rítmico, sem significação aparente. Essa linguagem de oração, com as variações com
que pode se apresentar o dom de línguas, é usada em várias situações: quando não se
encontram palavras para louvar a Deus; quando não se sabe como interceder pelos outros;
como arma poderosa contra o pecado, para cantar sua alegria no Espírito Santo (OLIVEIRA,
1978, p. 54).
A discussão sobre se ocorre, no caso, um fenômeno de estados alterados de
consciência pode ser longa, especialmente em se tratando de questão que se coloque para
adeptos da própria Renovação Carismática ou do pentecostalismo. Nesse aspecto, há uma
discussão sobre a ocorrência do transe, com ou sem consciência de parte da pessoa afetada.
Até mesmo naquilo que é interpretado, emicamente, como ''possessão demoníaca'', a
percepção consciente do que acontece, durante as crises mais violentas, é atestada por vários
63
relatos, como o da famosa superiora possessa do Convento de Loudon, Madre Joana dos
Anjos, que escreveu suas memórias no ano de 1640:
As cadeiras são rearrumadas para que possa caber no chão muita gente deitada. Tanto
os neófitos como os iniciados já haviam repousado no Espírito, geralmente por vários
minutos. Quando se levantavam, procuravam sentar-se logo nas cadeiras do auditório, mas,
por alguns minutos, permaneciam como que concentrados, aparentemente meditando ou se
recobrando da experiência. Esta pode ser, para os neófitos, a experiência do ''batismo no
Espírito'', que também ocorrerá de outras maneiras, e que, muitas vezes, é precedida ou passa
a ser seguida pela glossolalia (OLIVEIRA, 1978, p. 55).
Em várias outras situações é possível observar fenômenos extáticos na Renovação
Carismática Católica. O estudo realizado parece indicar que não é possível fazer completamente
as distinções propostas por Marion Aubrée. Embora o êxtase seja referido, com freqüência, na
literatura como relacionado ao cristianismo, ele não se limita a essa manifestação religiosa, nem
pode se caracterizar apenas como algo que implica ''sair de si'', ou uma “viagem”. Dois outros
aspectos das formulações de Marion Aubrée merecem também uma análise: o primeiro
distingue o êxtase do transe pelo caráter consciente daquele; o segundo diz respeito à presença
de alucinações no transe, as quais estariam ausentes no êxtase. “A questão da consciência ou da
inconsciência quanto à presença ou não de ‘alucinações’ encontram-se em situações variadas na
pajelança e na RCC” (MAUÉS, 2003, p. 23).
Na Renovação Carismática Católica, o mesmo se dá no caso considerado como
possessão demoníaca. Nos dois casos, quando se trata de pajé experiente ou de fiel católico
que recebeu os dons do Espírito Santo, a tendência é a ocorrência de formas de transe ou de
êxtase controlados, nos quais, geralmente, a pessoa a eles sujeita é capaz de relatar alguns
aspectos de sua experiência.
Já no que diz respeito à presença ou ausência de alucinações, no sentido de ilusões,
devaneios e fantasias, Oliveira (1978) pôde constatar que tanto na Renovação Carismática
Católica como em outras tradições religiosas elas estão presentes no êxtase ou no transe. Na
Renovação Carismática Católica, por exemplo, por ocasião das chamadas ''visões proféticas'',
o pesquisador teve a oportunidade de escutar relatos fantásticos a respeito da presença ou
aparição de anjos e da Virgem Maria, ou também da presença do Espírito Santo, no recinto da
igreja ou no local da reunião. Esses relatos apresentam abundância de detalhes e forte colorido
na descrição feita por fiéis em êxtase ou sob efeito do transe de que estavam tomados.
14
Já falecido
66
grupos se formaram e seguiram para outros Bairros e Cidades, como o grupo do Lar da
Providência, sob a Coordenação de Dª. Ieda Cardoso.
Por volta de 1984, instalou-se um grupo em Guarabira, e entre 1980 e 1990,
instalaram-se vários grupos em Princesa Isabel, Cajazeiras, Pombal, Sousa, São João do Rio
do Peixe. Os grupos de Orações e todos os demais trabalhos são desenvolvidos nas Igrejas de
cada localidade e quase sempre, como no caso do grupo estudado, o da Igreja das Mercês, tem
uma Comunidade cujo objetivo é de sustentação aos trabalhos pastorais de cada Igreja.
67
Um dos principais métodos utilizados nesta pesquisa foi o etnográfico, onde a palavra
Etnografia (do grego έθνος, ethno - nação, povo e γράφειν, graphein - escrever) é por
excelência o método utilizado pela antropologia na coleta de dados. (Disponível em
<http//pt.wikipedia.org/wiki/Etnografia. Acesso em 17.01.08). Baseia-se no contato inter-
subjetivo entre o pesquisador e seu objeto, seja ele uma tribo indígena ou qualquer outro
grupo social sob qual o recorte analítico seja feito.
Uma das formas de propor e definir a etnografia foi de Bronislaw Malinowski, em seu
clássico estudo Os Argonautas do Pacífico Ocidental (publicado em 1922), que marcou a
história da antropologia moderna, que envolveu a detalhada e atenta observação participante,
que também é da sua autoria. Antes dele também foi criada outra etnografia clássica, como a
de Franz Boas; temos também a dos Naven de Gregory Bateson e Nós, os Tikopia de
Raymond Fyrth.
Principalmente a partir da antropologia interpretativa ou pós-moderna, autores como
James Clifford (1986), Clifford Geertz (1989) e George Marcus (1989) passaram a discutir o
papel político, literário e ideológico da antropologia e de sua escrita, em esforços
verdadeiramente metalingüísticos e intertextuais. O objetivo principal da Etnografia é
identificar a passagem do indivíduo inserto nos microcoletivos mutáveis, que albergam nos
seus comportamentos sociológicos, os conceitos maiores de etnia, região, povo e, por fim,
nação (FINO, 2003).
Na sua obra, Padrões de Cultura, Ruth Benedict escrevia:
A descrição etnográfica não consiste em apenas ver, mas em fazer ver, ou seja, em
escrever o que vemos, no entendimento de Laplantine (2004, p.10). Transformando o olhar da
71
A pesquisa ocorreu na Igreja das Mercês, no Centro de João Pessoa à Rua Padre Meira
e na Comunidade situada na Rua Francisca Moura nº 360, localizada aproximadamente a uns
800m, também no Centro da Capital mas fora da Igreja, já na vizinhança do Bairro de
Jaguaribe.
Foram utilizadas as técnicas de observação na Igreja e na Comunidade das Mercês,
quando havia reuniões do Movimento da Renovação Carismática (MRCC), bem como, foram
feitas entrevistas semi-estruturadas para coletar os dados sobre os significados das ocorrências
de glossolalia nessas ocasiões. A pesquisadora portou um caderno de notas para anotar os
dados observados e para o registro dos depoimentos foi utilizado o gravador. As entrevistas
foram gravadas com a permissão dos entrevistados, conforme formulário em anexo.
72
Na Igreja e na Comunidade existe uma média de 100 pessoas estáveis em torno dessa
prática, além das pessoas que entram, fazem suas orações e vão embora. Pelo fato de sua
própria localização, no centro da cidade e por onde há um fluxo maior de passagem de
pessoas, na Igreja há um número maior de fiéis constantes e visitantes. Na Comunidade o
número é mais reduzido, por ser esta mais distante e mais isolada da Igreja e para lá vão mais
os membros do grupo. Este foi o percebido na observação realizada.
É no “louvorzão”, que dura uma média de três horas, tanto na Igreja como na
Comunidade das Mercês, onde emerge a glossolalia – dom de línguas. Tem início com a
oração do terço, se for aos sábados, após o terço, reza-se o Ofício de Nossa Senhora, e o
Coordenador sempre presente, após estas orações, faz a leitura de algum texto bíblico, o
interpreta, pede que alguns dos fiéis presentes dêem também a sua interpretação, inclusive foi
solicitado à pesquisadora, em várias oportunidades que também desse a sua interpretação a
algum texto lido.
São entoados vários cânticos de louvor e após algum tempo, nesse ambiente de
orações, louvores e cânticos, o Coordenador pede que todos falem em línguas, sem a
preocupação se estão ou não realmente falando em línguas e em seguida escuta-se a
assembléia orando em língua estranha, que a pesquisadora não entendeu. Notamos então que
ali a glossolalia tem sua ocorrência planejada e programada dentre as atividades mensais da
comunidade das Mercês, ainda que seja uma ocorrência de cunho emocional que deveria ser
espontânea e imprevisível.
Ao terminar esse momento de oração em línguas, o Coordenador pergunta se alguém
quer falar sobre a experiência do orar em línguas e algumas pessoas diziam que haviam
“pressentido que alguém estava passando por momentos difíceis, mas que o Senhor havia dito
que isto passaria”; outros diziam que tinha visto “a Via Sacra passando”; outros, “campos
75
floridos”; “o Santíssimo exposto”; “que viam Nossa Senhora” e se apresentavam com muita
alegria, riam, outros emocionados, choravam.
Outro momento da pesquisa aconteceu no Retiro, onde a pesquisadora fez, nos
intervalos, as entrevistas, para a coleta de dados para aparelhar a pesquisa, com os membros
tanto da Igreja como da Comunidade das Mercês. Essas entrevistas tiveram como tema
principal o fenômeno da glossolalia – e a experiência de cada um, com esse fenômeno.
A amostra para a coleta de dados foi de 12 (doze) pessoas, presentes na Igreja, bem
como na Comunidade da Igreja das Mercês. Dessas 12 pessoas entrevistadas, participaram
tanto pessoas do sexo masculino, bem como, do sexo feminino, em uma faixa de idade dos 25
aos 67 anos, com grau de escolaridade do 1º grau incompleto ao superior completo. São
solteiros/as, casados/as e viúvos/as, o que não altera a correlação entre o universo e a amostra.
Estabelecemos, como critério de inclusão dos participantes nesta amostra, os sujeitos que
oram ou falam em línguas há mais de cinco anos, tendo sido excluídos aqueles nos quais
aflorou o dom de línguas durante o período da pesquisa.
À 1ª pergunta: O Sr.(a) tem o dom de orar ou falar em línguas, todos os entrevistados
responderam sim. À 2ª pergunta: Se tem, há quanto tempo? Foram várias as respostas, mas
sempre há mais de cinco anos. Às demais perguntas, as respostas foram as mais diversas,
como essas a seguir, que foram transcritas:
A pessoa entrevistada nº 01, respondeu que:
Já em Parentins uma amiga me sugeriu que procurasse padre Dilson que ele
me ajudaria. Fui me confessar, contei a minha história, porque sentia falta de
paz, sentia que Deus não me amava (muito emocionada). Então o padre
Dilson, me ungiu com óleo nas mãos, mudou de cor e ficou muito suado e
entregou 5 cópias de orações, para que eu rezasse e se começasse a chorar
deixasse para o outro dia.
O Padre disse-me que eu fizesse o Retiro de 1997 que iria receber bênçãos,
muitas bênçãos e disse-me que o inimigo faz tudo, para tirar um filho de
Deus do caminho certo.
No momento do Louvor, no Retiro, recebi uma força sobrenatural, não tenho
como explicar. Era uma energia com força total, estava consciente, mas não
sabia sair da situação.
Quando entro em oração, sinto o rosto crescido, mãos e corpo formigando,
uma energia muito grande em todo corpo. O Universo cresce e sinto-me
pequenininha, um nada.
Quando vivencio a experiência do dom de línguas, sinto uma alegria
inexplicável, por mim passaria para todo mundo. Sinto o amor de Deus.
Quando estou na experiência já vi a presença de um anjo imenso, vejo
padres chorando, principalmente quando estou na adoração do Santíssimo.
Dizem que não estão dando conta e pedem orações. Vejo freiras, sendo
humilhadas e o Senhor mandando orar por elas.
O Senhor manda que reze pelas almas que morreram afogadas, de acidentes
(no ouvido), (ficou emocionada - chorou).
Peço em voz alta ajuda ao Senhor pelas almas dos que morreram afogados,
acidentados, pelos presos injustiçados.
Diz que “estou trabalhando em casa e começo a rezar, por tantos pedidos, no
ouvido”.
Afirma que recebeu o dom de línguas, quando estava nas Santas Missões, na
cidade onde morava (em cidade do Amazonas) e só podia ir se tivesse sido
batizada no Espírito Santo.
Diz que “estava cantando, quando pediram para rezar uma Ave-Maria e a
sua língua, ficou crescida, grande, dobrando, como se estivesse
desgovernada. Pediu, Senhor, me ajude. No consciente, mais uma vez veio o
medo, foi terrível, mas aí foi diminuindo, até que parou”.
Comentou: “O dom de línguas não precisa está sob a ação do Espírito Santo.
Se você recebe uma vez, não precisa está renovando. Deus é quem decide. É
a ação dele. Na oração de línguas, vem o discernimento do que o irmão está
precisando, naquele momento. Ex: Havia uma senhora amiga no hospital,
chamada Maria muito doente e só esperando a hora de morrer e ela mandou
me chamar, ao chegar lá, pensou consigo mesmo, vou rezar a oração do
perdão e ao terminar, logo depois Maria fechou os olhos e morreu em paz.
Disse não acreditar que o dom de línguas faça aumentar o número de fiéis na
Igreja.
Há pessoas que duvidam do dom de línguas, mas existe mesmo e não sabem
elas o que estão perdendo, o seu poder de intercessão. É um mergulho no
amor de Deus. É algo novo e que traz renovação para quem ora em línguas.
Em oração, já viu campos verdes, com pombinhos de um lado para outro, na
maior alegria. “Estava vivendo uma provação e uma irmã orando por mim
chegou a ver uma Via Sacra, Jesus estava passando coroado”.
Disse não acreditar que o dom de línguas faça aumentar o número de fiéis na
Igreja.
nós. Nessa hora, o Espírito Santo levanta a pessoa que o chamou, enche o
seu coração de força, de ousadia e a pessoa é empurrada para a luta de tal
maneira que vem uma força além do normal.
Continuou: “O dom de línguas é oração que vem de Deus. É dom dele, há
pessoas que não acreditam, mas existe, nós não inventamos, mas o Senhor a
coloca em nosso coração. É um verdadeiro descanso no colo do Pai amado.
Quando rezamos e nos disponibilizamos a fazer a nossa parte, tudo pode
acontecer. O homem não pode fazer nada sem Deus, e Deus não quer fazer
nada sem o homem.”
Após o orar, em línguas, sinto-me em paz. Já virou um hábito. É um
verdadeiro mistério, precisamos ter experiência.
Ontem, no momento da vigília, presenciei um fenômeno, vi o “Senhor”
descendo, fiquei parada. Nem uma palavra consegui pronunciar.
Entendo que tenho que ter cuidado para não perder esse dom e tenho que
manter os sacramentos, em dia. A pesquisadora perguntou: quais? Ela
respondeu: “ Confissão, Eucaristia...”.
Não acredito que o dom de línguas atraia fiéis, porque existem outros dons,
como: da sabedoria, da profecia, de cura.
Logo que entrei na Renovação não orava em línguas. Certo dia estava
orando por um casal que estava para se separar e de repente comecei a orar
em línguas e nem sabia como era orar em línguas e escutou “deixa Jesus te
lapidar.” Disse: “Eu tinha muito medo, que ia de encontro com a alegria e
familiaridade das pessoas que, parecia uma grande família, bem unida, lá na
Igreja e Comunidade das Mercês.” (Ficou em silêncio, baixou a cabeça e
chorou).
Disse: “O dom de línguas é uma capacidade que Deus nos dá. Ao receber o
Espírito Santo, mas você não é dono dele, recebe dele o poder de agir em
favor dos outros por conta de Deus.”
Acrescentou: “A experiência do orar em línguas, aprofunda o meu
relacionamento com Deus e me fez descobrir a força do Espírito Santo. A
vida no Espírito é de renúncias, para não tomar as coisas de Deus, como
nossa, nem mesmo o dom que Ele nos deu, ou até mesmo a nossa própria
vida. Somos chamados a ser humildes, despojados, sempre prontos para ir
aonde ele quer fazer a sua vontade A oração em línguas é um fato concreto,
uma realidade na Igreja e facilita para que nós nos ponhamos diante de
Deus.”
Durante as orações em línguas já tive várias visões, como por exemplo: “o
próprio Cristo vivo, falando comigo. Após a experiência parece que estou
flutuando”.
Disse: “O dom de línguas é um dos menores dons, mas edifica a igreja,
porque quando você está orando, o inimigo não sabe o que você está orando,
porque você está falando na língua dos anjos. Não há definição. É um
encontro de dois corações: o meu e o de Deus. Não depende de mim.”
Disse, “não acredito que o dom de Línguas faça aumentar o número de fiéis
na Igreja”.
Com a transcrição das entrevistas foi possível falar sobre os questionamentos feitos e
as respostas dadas. Enfatizamos os dados sobre as sensações físicas que foram vivenciadas no
momento da ocorrência do fenômeno do orar em línguas – glossolalia, como relatadas pelos
entrevistados, conforme quadro abaixo.
- “No momento da oração vê uma luz acesa, sente um calor muito forte
nº 09
[...]”
- “No momento da oração vê uma luz acesa, sente um calor muito forte
nº 10
[...]”
- “Após a experiência de orar em línguas, às vezes fica tonto, mas fico
nº 11
alegre [...]”
grave ou sem ressonância. Mesmo o esforço para encobrir o sentimento trai a si próprio,
revelando o caráter de uma tentativa forçada.
Maués (2000, p. 123-124) cita, entre as várias técnicas e simbolismos da Renovação
Carismática, as seguintes:
“O toque corporal, que pode ocorrer de diferentes maneiras, como, por
exemplo, o aperto de mão e, muitas vezes, o abraço fraterno como forma de
saudação; a imposição de mãos que, também, apresenta muitas variações,
incluindo o próprio toque corporal; gestos corporais variados, como colocar
as palmas das mãos para cima e para fora (do corpo), tremer as mãos e/ou
agitá-las – com os braços estendidos para o alto, para baixo ou para a frente
– de um lado para outro; palmas e aplausos, que também ocorrem em várias
situações, durante os cantos, na ocasião da missa, em vários momentos de
louvor etc.; a dança, com a execução de várias coreografias; a oração, que
pode ser feita de diferentes maneiras, inclusive através do exercício da
glossolalia”;
Pessoas
Sensações Emocionais/Psicológicas
entrevistadas
- “estou ficando louca”; (medo)
- “alegria inexplicável”;
- “Deus vê o que não temos coragem de mostrar”.
- “O desejo de se sentir amada”;
nº 01
-“Deus tem um grande amor por nós e não para de nos ajudar e fortalecer. O
Espírito Santo vem em nosso auxílio nesses momentos de fraqueza e intercede por
nós”.
- “paz”.
- “a necessidade de nos sentirmos amparados, apoiados em nossas fraquezas”. nº 02
- “... que sentiu-se muito feliz, é tão bom... (parou e ficou em silêncio) e disse
nº 03
“não tem palavras”;
- “...permite que a minha boca fale de sentimentos...”
nº 04
- “...Quando estou orando em línguas, sinto-me fora de mim...”
- “É um verdadeiro descanso no colo do Pai amado”. nº 05
- “Eu tinha muito medo, que ia de encontro com a alegria e familiaridade das
pessoas que, parecia uma grande família, bem unida, lá na Igreja e Comunidade
n° 06
das Mercês”. (Ficou em silêncio, baixou a cabeça e chorou).
- “humildes”
- “A fé anula a força do inimigo. Quando esse inimigo (o diabo) encontra uma
pessoa que crê, ele dá um passo para trás”;
nº 07
- “Orar em línguas é avançar na fé, pode parecer loucura para os homens cultos
deste mundo, mas é sabedoria para Deus”.
- “De início achava estranho, tinha medo, ficava com vergonha”; “Após a
nº 08
experiência, fico muito feliz, por mim e pelos outros. Sinto-me muito bem”.
- “Tudo era muito vivo e espontâneo. Sinto, primeiro, a libertação o Dom do
Espírito Santo. Jesus fala muito forte, Ele vê o que você não tem coragem de
nº 09
mostrar a ninguém”;
- “feliz...”
- “O seu desejo é a salvação e o crescimento do povo de Deus, bem como a
edificação da igreja”. nº 10
- “No momento da oração...fico feliz e realizada”.
- “Há momentos em que não conseguimos dizer com palavra o que sentimos.
Quando a alegria é muito intensa ou a dor é muito grande, não encontramos um
modo adequado de expressar o que se passa em nosso interior, mas Deus sempre
percebe quando choramos e quando o coração está em sofrimento, então Ele vem nº 11
em nosso socorro, porque Deus não quer ver a nossa ruína, os nossos gemidos. Há
no coração das pessoas um desejo para que a lamparina do Espírito Santo não se
apague. Um desejo de rezar, rompendo com toda a frieza espiritual de por para
fora um grito”;
- “A oração vai ungindo um desejo como um poço que transborda”;
- “Deus pôs a nossa disposição uma fonte infinita de força de poder, que deve ser
levado ao mundo inteiro através de cada cristão e que por abrir mão dessa graça
poderemos nos tornar infelizes, abatidos, sem forças, em vez de procurar socorro
na fonte inesgotável e poderosa de Deus, que é capaz de destruir o domínio do nº 12
inimigo (satanás) e de transformar a sua vida e de tantas outras pessoas”;
- “Aquele que ora em línguas fala diretamente com Deus”;
- “Após a experiência do orar em línguas, vem a paz e o refrigério, o equilíbrio.
O dom de línguas traz conquistas, renova o cristão”.
85
Murício Ricci (2006) citou na sua Dissertação de mestrado, dois depoimentos que
falam sobre o fenômeno da glossolalia – o dom de línguas, que coincidem com o
entendimento das pessoas entrevistadas para o trabalho de campo desenvolvido pela
pesquisadora, autora da presente dissertação sobre o poder que recebem emanado do Espírito
de Deus, o Espírito Santo:
“[ o dom de línguas] é um contato que você tem com Deus, quando você fala
baixo, pelo qual Ele nos passa graças, poder. Deus te reveste de poder
através disso. Quando você fala alto, em línguas, tem sempre uma revelação,
alguém que interprete para o português. O dom de línguas para mim é uma
edificação de Deus, Ele te reveste de poder”. (22 anos, metalúrgico)
“[o dom de línguas] é uma comunicação que a gente tem com Deus. É a
única maneira de nos comunicarmos com Deus sem que o inimigo [o diabo]
escute. Para receber tem que buscar. Você sente que outras pessoas têm o
dom de línguas, você até consegue se comunicar com ela se ela tem o dom
de línguas. (22 anos, confeiteira)”
Falar sobre essas emoções sentidas por esses fiéis é falar do anseio pelo sagrado, que
nada mais é do que a própria necessidade humana, em que se busca a compreensão do sentido
de vida, e por assim dizer, da própria finitude. Angerami (2008, p. 29) expressa que:
Pessoas
Sensações Místicas
entrevistadas
- “Quando estou na experiência já vi a presença de um anjo imenso, vejo
padres chorando, principalmente quando estou na adoração do Santíssimo.
Dizem que não estão dando conta e pedem orações. Vejo freiras, sendo
humilhadas e o Senhor mandando orar por elas.
O Senhor manda que reze pelas almas que morreram afogadas, de acidentes
(no ouvido), (ficou emocionada - chorou)”.
nº 01
-“fiquei sofrendo, sinto-me com uma plantinha, coisinha pequena, um nada”;
- “força sobrenatural”;
- “Havia uma senhora amiga no hospital, chamada Maria, muito doente e só
esperando a hora de morrer e ela mandou me chamar. Ao chegar lá, pensou vou
rezar a oração do perdão e ao terminar, logo depois Maria fechou os olhos e
morreu em paz.”
- “É um mergulho no amor de Deus”.
- “já vi campos verdes, com pombinhos de um lado para outro, na maior
nº 02
alegria. Estava vivendo uma provação e uma irmã estava orando por mim ela
chegou a ver uma Via Sacra, Jesus estava passando coroado”;
- “Quando estou em oração, parece que me transporto para o outro lado;”
- “há um aprofundamento no seu relacionamento com Deus e descobriu o nº 03
Espírito Santo agindo em si”.
- “O dom de línguas é o carisma ideal para as pessoas que precisam de força,
porque o Espírito Santo se faz presente, quando você está necessitando, Ele
vem em seu auxílio. Somos fracos, mas Deus é forte e vem socorrer os fracos,
aqueles que o chamam. É no sofrimento que Deus fica mais perto de nós.
Nessa hora, o Espírito Santo levanta a pessoa que o chamou, enche o seu nº 05
coração de força, de ousadia e a pessoa é empurrada para a luta de tal maneira
que vem uma força além do normal”;
- “Ontem, no momento da vigília, presenciei um fenômeno, vi o “Senhor”
descendo, fiquei parada. Nem uma palavra consegui pronunciar”.
- “Durante as orações em línguas já tive várias visões, como por exemplo: “o
próprio Cristo vivo, falando comigo.”
Após a experiência parece que estou flutuando.
nº 06
Disse: “O dom de línguas é um dos menores dons, mas edifica a Igreja, porque
quando você está orando, o inimigo não sabe o que você está orando, porque
você está falando na língua dos anjos. Não há definição. É um encontro de dois
corações: o meu e o de Deus. Não depende de mim”.
- “Deus revela para eu tomar o Espírito Santo e me transformar, daí a pouco
nº 08
não me lembra de mais nada. Jesus manda buscar”.
-“Acrescentou: “Sente primeiro a libertação, o Dom do Espírito Santo. Jesus
nº 09
fala muito forte, Ele vê o que você não tem coragem de mostrar a ninguém.”
-“Sente primeiro a libertação, o Dom do Espírito Santo. Jesus fala muito forte”. nº 10
- “ao orar em línguas vem a palavra de ciência, mostrando para ele operar em
Deus, pelo Espírito Santo”;
- “O que a oração em línguas diz não se escreve em nosso raciocínio, mas é no
espírito, no coração que produz o seu efeito. Somente é compreensível a
oração em línguas como uma linguagem espiritual e portanto somente pode ser
nº 11
entendida com o espírito. Quem ora em línguas, não sabe o que está dizendo, a
não ser que também tenha o dom da interpretação, o que é raro”;
- “O Espírito Santo coloca em nós um desejo interminável de louvar, de adorar,
de interceder. Provocado por Deus, esse murmúrio que brota do coração
intercede por nós. Quando o desejo é sincero e se une à oração, às vezes mal
87
abrimos a boca e Deus nos atende. Assim, podemos vivenciar uma experiência
profunda, mística. Por isso, se no seu coração você deseja sinceramente viver
essa experiência do orar em línguas, peça-a a Deus, Ele irá lhe atender. Os
dons de Deus são tão perfeitos e cheios de bondade que São Paulo pedia para
que não fossem ignorados”.
- “Sente Deus perto de si, colocando palavras em sua boca”;
- “Na experiência do orar em línguas já viu uma pessoa em uma grande
nº 12
cachoeira e ela estava ungida; já viu resgate de pessoas; outro dia viu ao lado
de um rio, um campo cheio de lírio”.
E continua Maués (2003, p.11) dizendo que o mapa da Europa católica, tal como se
apresentava a um recém-chegado, no final do século VI, era traçado pelos lugares onde se
produzia tais fenômenos e diz: que a propósito do primeiro choque experimentado pela
peregrina romana Paula, diante dos túmulos dos profetas, na Terra Santa, Jerônimo escreveu:
“Ela foi aterrorizada por um grande número de fatos espantosos. Com efeito,
viu demônios rugirem sob o jugo de diversos tormentos e, diante dos túmulos
dos santos, homens uivarem como lobos, latirem como cães, rugirem como
leões, silvarem como serpentes, mugirem como touros, uns, com a cabeça
88
Angerami (2008, p. 29-30) diz que certa vez, Madre Tereza de Calcutá declarou que
via Cristo e que este tocava em seu corpo diariamente. Os doutos do Vaticano procuraram por
ela para averiguar, com base em seu crivo de cientificidade, o fenômeno por ela narrado e
assim validar sua condição de milagre e fenômeno divino. Ele afirma que: “Ela simplesmente
confirmou dizendo que via Cristo em cada doente que cuidava e que este tocava em seu corpo
e auxiliava-a nessa tarefa e arrematou dizendo que via Cristo na figura dos doentes, mendigos
e necessitados”. Isto quer dizer que, se por um lado procuramos buscar fenômenos grandiosos
que possam sedimentar e dar sustentação à religiosidade de cada um, por outro lado, deixa-se
de lado a observação dos detalhes que simplesmente fazem a grandiosidade da alma humana.
Passando a analisar as outras perguntas da entrevista, como falante e orante em
línguas, como foi observado esse dom antes, durante e após a ocorrência desse fenômeno e se
existe alguma representação artística, chegou-se a ver ou ouvir algo e houve uma
unanimidade nas respostas, pois, alguns entrevistados apresentavam um pouco de timidez, de
medo, mas, essas sensações logo passavam e ficavam maravilhados, felizes, como verdadeiros
apaixonados, ficavam em paz, pelo seu encontro com Deus e da SUA ação neles, através do
Espírito Santo, chegando a terem momentos de visões, e audições.
As respostas no tocante ao significado, na vida de cada um, quando descobriram e
passaram a usufruir do dom de línguas, vêm confirmar os estudos ao longo do tempo de que a
religião desempenha um papel importante na vida das pessoas. Segundo Neto, apud Santos
(2006, p. 11), a religião ajuda no controle social, desencorajando desvios, delinqüência e
comportamentos autodestrutivos, incentivando a harmonia familiar e a comunicação entre
pais e filhos. Outro aspecto é que a religião nas relações traz efeito benéfico quando esta
consegue despertar no indivíduo o desejo de perdoar a si mesmo e aos outros.
Com relação à última pergunta - se o dom de línguas – a glossolalia - traz mais fiéis
para a Igreja -, apenas 16,7 % dos entrevistados acreditam que esse dom é capaz de trazer
mais fiéis para a Igreja, e houve quase um consenso de que a razão da procura de fiéis pela
Igreja é devido a outras causas, como a procura, pelo religioso, em busca de outros dons,
como o do discernimento, da cura, da profecia, sendo o dom de línguas o menor deles, o que
lembra a palavra de Paulo quanto ao falar em línguas em 1Cor, 14:5 “Desejo que todos faleis
em línguas, mas prefiro que profetizeis. Aquele que profetiza é maior que aquele que fala em
línguas, a menos que este as interprete, para que a assembléia seja edificada”.
89
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
presentes aos Encontros falem e orem em línguas, o que é uma constante evidência do caráter
planejado dessa ocorrência, ainda que, vale ressaltar, seja aceito e incorporado plena e
espontaneamente pelos freqüentadores destes rituais.
Os efeitos individuais e coletivos da glossolalia nos fiéis que desenvolvem e
presenciam o Dom de Línguas são vários: choro, emoções as mais diversas, alegria. A
impressão que passa é que algo muito bom acontece naqueles ambientes carregados de uma
paz reconfortante com que terminam os Encontros, como se algumas pessoas ficassem
fechadas dentro de si e outros se expandissem. O presente estudo mostrou que a experiência
religiosa dos membros participantes da pesquisa não se pretende conclusiva, nem esgota as
possibilidades de análise do fenômeno, mas representa um continuum.
O dom de línguas, quer queiram, quer não, faz parte de uma realidade em que se
estabelece no Movimento da Renovação Carismática Católica, também. O seu estatuto de
existência pode ser localizado, lado a lado dos que testemunham e validam sua ocorrência,
situando as posições enunciativas no interior de uma comunidade. A fala se instaura a partir
do outro, ao mesmo tempo em que o outro é instaurado por ela. Se não houver repercussão
coletiva não há constituição do sujeito psicanalítico lacaniano. Desse ponto, um relato é
construído, inventado em torno dessa produção vocal reconhecendo-a como um fenômeno de
ordem mística, religiosa, mágica, psicológica ou até patológica.
Estudar um tema como a glossolalia tem sua importância para que se possa retomar
os conceitos aos quais ela não se ajusta. Pode-se perguntar: É língua? Não na acepção do
idioma. Também, não constitui uma subjetividade, como a língua materna. Poderá ser apenas
um balbuciar? Mas, pode haver fala, sem língua? Pode haver fonema, mas, sem ele estar
vinculado a uma língua poderá ser apenas o contorno da imagem, um contorno sonoro. Do
negativo da foto, uma imagem poderá ser revelada, mas desse negativo sonoro, o que se
revela? Vai ser revelado o mesmo material recalcado do funcionamento da língua como um
avesso.
No sentido da experiência religiosa dos participantes, este estudo mostrou a sua
relação com o desenvolvimento pessoal. Uma relação ocorrida no sentido de mudanças
subjetivas, particulares e singulares, que trouxeram como consequência, mudanças no
comportamento dos mesmos, os quais relataram sentir uma melhora na qualidade de vida.
Dessa forma, pode-se entender que a experiência religiosa proporcionou para esses sujeitos
um crescimento pessoal.
A partir das respostas dos fiéis verificou-se, também que não é o fenômeno da
glossolalia – dom de línguas uma estratégia para atrair um maior número de fiéis à Igreja
93
Católica e sim outros dons, como o de discernimento, da profecia, da cura e uma compreensão
da experiência religiosa de forma mais complexa não cabendo exagerar o papel da glossolalia
no conjunto das práticas e crenças carismáticas.
Acreditamos que pesquisas sistemáticas, com envolvimento dessas questões,
podem trazer grandes contribuições e que devem ser aprofundadas, porque a dimensão
espiritual faz parte da natureza humana, da mesma forma que a física e a psíquica, e, como tal
necessita igualmente ser investigada.
94
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APÊNDICES
108
APÊNDICE A
Roteiro de Entrevista
109
APÊNDICE B
Autorização dos Entrevistados
110
APÊNDICE C
Depoimentos
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