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Fevereiro 2010
CAÇA À
ENERGIA ESCURA
INOVAÇÃO NA
INDÚSTRIA
DA CERÂMICA
UNIVERSIDADES
UNIDAS PELA
BIOENERGIA
PESQUISA FAPESP
ENTREVISTA
ELISALDO CARLINI
MACONHA COMO
REMÉDIO
Cogumelos
iluminam
a floresta
ISSN 1519-8774
52 COSMOLOGIA
> CAPA > POLÍTICA CIENTÍFICA Astrônomos e físicos
14 Mecanismo que E TECNOLÓGICA do mundo todo tentam
faz cogumelos desvendar do que são
brilharem leva 26 COOPERAÇÃO feitos 96% do Universo
a método para detectar Com investimentos do
contaminação governo paulista, 58 QUÍMICA
das universidades Fluorescência de
> ENTREVISTA estaduais e da FAPESP, raios X dá acesso à 94 LITERATURA
8 Especialista em será criado o Centro intimidade de pinturas Projeto recupera
psicofarmacologia, Paulista de Pesquisa do século XIX trajeto da criação de
Elisaldo Carlini em Bioenergia Mário de Andrade
diz que é hora de
reconhecer as 30 BIOENERGIA > TECNOLOGIA 100 MÚSICA
qualidades médicas Laboratório em Villa-Lobos deixa
da maconha no Brasil Campinas vai investir 84 ENGENHARIA DE de ser ícone
em gargalos da pesquisa MATERIAIS nacionalista para
do álcool de celulose Inovações nos processos ressurgir como grande
> ESPECIAL e esmaltes especiais compositor moderno
63 CRODOWALDO PAVAN 32 ENSAIOS CLÍNICOS colocam indústria
A contribuição à Rede de pesquisa em paulista de 104 HISTÓRIA CAPA MAYUMI OKUYAMA | FOTO CASSIUS STEVANI/USP
> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 4 CARTAS 5 CARTA DA EDITORA 6 MEMÓRIA 20 ESTRATÉGIAS 38 LABORATÓRIO
62 SCIELO NOTÍCIAS 80 LINHA DE PRODUÇÃO 108 RESENHA 109 LIVROS 110 FICÇÃO 112 CLASSIFICADOS
Dino
em cores
Numa descoberta pioneira, paleontólogos
do Reino Unido, da Irlanda e da China
conseguiram vislumbrar a cor de um pequeno
dinossauro bípede e carnívoro, de pouco
mais de um metro de comprimento. Segundo
pesquisa publicada na revista Nature,
o Sinosauropteryx, encontrado na região
de Jehol, no nordeste da China, era laranja
e branco e tinha a cauda listrada. Estruturas
vinculadas à pigmentação de pele e penas,
conhecidas como melanossomos, foram
identificadas em cerdas da cauda de um fóssil
de mais de 100 milhões de anos. Melanossomos
são organelas que contêm cor e são
encontradas na estrutura das penas e pelos
de pássaros e mamíferos. Como integram
uma estrutura rígida de proteína, podem
resistir por centenas de milhões de anos.
A pesquisa, liderada por Mike Benton, da
Universidade de Bristol, também encontrou
melanossomos em partes do corpo de
um fóssil do pássaro primitivo Confuciusornis.
Foram encontrados padrões nas cores
branca, preta e marrom-alaranjada.
JIM ROBINS/UNIVERSIDADE DE BRISTOL
Copenhague tratadas direta e privadamente com eles lizados artigos de Pesquisa FAPESP. Em
mesmos; 4) o Brasil possui um sistema primeiro lugar, queria parabenizá-los
Parabéns pela reportagem “Sob o signo de revisão ética de pesquisa de seres pelas publicações, que aparentam ter
de Copenhague” (edição 166), de Fa- humanos de excelente qualidade. Em um altíssimo grau de qualidade.
brício Marques. O artigo relaciona os relação a outros sistemas nacionais de
efeitos da falta de freios ao problema revisão ética, o sistema CEP’s – Conep Lucas Sales Fidelis
das emissões de CO2 no planeta, que não se subordina ao governo, mas ao Santo André, SP
deveriam ter sido a tônica da confe- Conselho Nacional de Saúde; 5) o siste-
rência. Além de quantificar os efeitos, o ma entende – e o MS também – que sua Nota da Redação: Mais informações na
artigo projeta as consequências sociais principal tarefa é garantir a integridade página 24 desta edição.
sobre as regiões Norte, Centro-Oeste e física e psíquica dos sujeitos da pes-
Nordeste do Brasil, concluindo, muito quisa. A competitividade do Brasil no
sabiamente, pelo aumento do problema mercado mundial de pesquisa clínica Vídeos no site
social nestas regiões brasileiras devido é importante, mas deve subordinar-se
à falta de decisões das nações ricas e àquela tarefa; 6) a Rede Brasileira de Muito bom o vídeo das saúvas na nova
seu desinteresse pelo futuro das regiões Pesquisa sobre o Câncer é também uma área do site de Pesquisa FAPESP (www.
mais pobres. iniciativa conjunta do MCT, através do revistapesquisa.fapesp.br). Agradeço
CNPq, e do MS. o compartilhamento das informações.
Francisco J.B. Sá Que a autora do vídeo, Joana Fava Al-
Salvador, BA Reinaldo Guimarães ves, possa realizar muitos mais.
Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos
Estratégicos/Ministério da Saúde I.R. Hesse
Pesquisa clínica Brasília, DF Guarulhos, SP
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PESQUISA FAPESP 168
FUNDAÇÃO DE AMPARO À
PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CELSO LAFER
PRESIDENTE
C
ogumelos povoam há muito tempo o imagi- alguns em andamento, outros previstos para ini-
CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO
RICARDO RENZO BRENTANI
nário infantil. Mais coloridos ou menos colo- ciar nos próximos anos que procuram desvendar
DIRETOR PRESIDENTE
ridos, eles podem, como nos contos de fada, o que realmente são a energia escura e a matéria
CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ
DIRETOR CIENTÍFICO ser muito grandes e servir de abrigo para fadas e escura que, tudo indica, compõem quase 96% do
JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER
DIRETOR ADMINISTRATIVO
gnomos, recordaram-me crianças antenadas. E Universo. Esses dois tipos de, digamos, elementos,
quando luminosos, lembraram-me elas, podem descobertos nos últimos 80 anos, permanecem
funcionar como belas luminárias em labirínticos tão intrigantes, apesar de toda a pesquisa teórica e
formigueiros, a exemplo do que se vê no filme de experimental que têm mobilizado, que não chega a
ISSN 1519-8774
animação Vida de inseto. É certo que cogumelos soar estranho que ainda se possa dizer da energia
CONSELHO EDITORIAL
LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS também alimentaram sonhos juvenis, delírios li- escura em relação à matéria escura que se trata de
(COORDENADOR CIENTÍFICO),
CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ,
CYLON GONÇALVES DA SILVA, FRANCISCO ANTÔNIO
sérgicos rasgados de luz, em décadas inclinadas a “algo que não se sabe muito bem o que é afetando
BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO
ENGLER, JOÃO FURTADO, JOSÉ ROBERTO PARRA,
experiências perceptivas radicais. Mas é mesmo à de alguma forma outra coisa sobre a qual não se
LUÍS AUGUSTO BARBOSA CORTEZ, LUÍS FERNANDES
LOPEZ, MARIE ANNE VAN SLUYS, MÁRIO JOSÉ
fantasia de Vida de inseto que a reportagem de capa tem o menor conhecimento”, conforme escreveu o
ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO
BRENTANI, SÉRGIO QUEIROZ, WAGNER DO AMARAL,
desta edição de Pesquisa FAPESP remete logo nas autor da reportagem, o editor de ciência, Ricardo
WALTER COLLI
primeiras linhas do texto para contar com graça Zorzetto (página 52).
DIRETORA DE REDAÇÃO
MARILUCE MOURA os bons resultados da pesquisa com cogumelos O destaque na seção de política científica e
EDITOR CHEFE
NELDSON MARCOLIN
bioluminescentes que vem sendo empreendida tecnológica vai para a reportagem sobre o Cen-
EDITORES EXECUTIVOS há quase uma década por um grupo da USP. Tal tro Paulista de Pesquisa em Bioenergia (página
CARLOS HAAG (HUMANIDADES),
FABRÍCIO MARQUES (POLÍTICA), empenho os levou à descoberta, entre 2002 e 2007, 26), fruto de um acordo de cooperação celebrado
MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA),
RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA) de 12 das 71 espécies de cogumelos luminescentes entre o governo do estado, as três universidades
EDITORES ESPECIAIS
CARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE)
já identificadas em todo o mundo até hoje, o que estaduais paulistas e a FAPESP no último dia de
EDITORAS ASSISTENTES
não é desprezível. Para além do simples encontro 2009. Como relata o editor Fabrício Marques, o
DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES
dos cogumelos, Cassius Stevani e sua turma estão que se busca com essa iniciativa é criar uma for-
REVISÃO
MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO empenhados em entender os mecanismos quími- te base científica para ampliar a competitividade
EDITORA DE ARTE
MAYUMI OKUYAMA
cos que geram a luz desses fungos e, nessa busca, já internacional da pesquisa paulista e brasileira em
ARTE depararam com um potencial uso prático que eles energia obtida de biomassa.
MARIA CECILIA FELLI
JÚLIA CHEREM RODRIGUES podem ter na detecção da contaminação do solo Em tecnologia, duas reportagens combinadas,
FOTÓGRAFOS por metais. Tudo isso é relatado em detalhes pela ambas da editora assistente Dinorah Ereno, mos-
EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN
SECRETARIA DA REDAÇÃO
editora assistente de ciência, Maria Guimarães, a tram a partir da página 84 como a indústria paulista
ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201
partir da página 14. de revestimentos conquistou qualidade com ino-
COLABORADORES
ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), CELSO No processo livre de associação a que tanto nos vações nos processos e esmaltes especiais e, ainda,
MAURO PACIORNIK, DANIELLE MACIEL, EDUARDO
GERAQUE, EVANILDO DA SILVEIRA, JOSELIA AGUIAR, acostumou a poderosa influência de Freud sobre a como a parceria do setor industrial com centros de
LAURABEATRIZ, LUIZ EDMUNDO MAGALHÃES, MARCOS
GARUTI, SALVADOR NOGUEIRA E YURI VASCONCELOS cultura no século XX, os cogumelos alucinógenos pesquisa nesse segmento da cerâmica resultou em
OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM acima mencionados levam naturalmente ao texto considerável redução na perda de produtos, sempre
NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL
que nesta edição trata da maconha – ou melhor, melhores. Para mostrar os efeitos da pesquisa tec-
DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
das razões farmacológicas, alegadas por diferentes nológica sobre o setor, Dinorah, depois de abordar
PARA ANUNCIAR
(11) 3838-4008
grupos de cientistas, para que a maconha seja aceita a cerâmica de Santa Gertrudes, foi até Pedreira,
PARA ASSINAR para uso médico no Brasil. Refiro-me à corajosa cidade na qual é sensível a influência do Centro de
FAPESP@TELETARGET.COM.BR
(11) 3038-1434 entrevista de Elisaldo Carlini, 79 anos, concedida Cerâmica, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e
FAX: (11) 3038-1418
GERÊNCIA DE OPERAÇÕES
ao editor chefe, Neldson Marcolin, e ao editor de Difusão (Cepids) apoiados pela FAPESP.
PAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008
e-mail: publicidade@fapesp.br
ciência, Ricardo Zorzetto, em que ele explica em Para concluir, peço atenção à reportagem de
GERÊNCIA DE CIRCULAÇÃO termos científicos e históricos por que, em sua vi- abertura da seção de Humanidades (página 94).
RUTE ROLLO ARAUJO TEL. (11) 3838-4304
e-mail: rute@fapesp.br são, o país precisa deixar de lado a demonização Nela, o editor Carlos Haag trata de um projeto de
IMPRESSÃO
PLURAL EDITORA E GRÁFICA
da maconha e admitir o lado positivo da Cannabis pesquisa em que se busca desvendar o processo
TIRAGEM: 37.300 EXEMPLARES sativa. Carlini, que é, aliás, contra o uso de qualquer de criação literária de Mário de Andrade a partir
DISTRIBUIÇÃO
DINAP
droga para fins recreativos, há 50 anos pesquisa de seus próprios manuscritos e de sua correspon-
GESTÃO ADMINISTRATIVA obsessivamente a ação da Cannabis sobre o orga- dência. De presente para o leitor, esse pequeno tre-
INSTITUTO UNIEMP
FAPESP
nismo humano, daí a autoridade e a tranquilidade cho que dá início à reportagem, no qual o escritor
RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901
ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP
com que ele discorre sobre o tema e os preconceitos discorre sobre seu processo criativo: “Isso corria
SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR
que o cercam, a partir da página 8. É uma prosa de o mês de abril. Peguei um resto de caderno em
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO especial sabor que não se deve perder. branco, e na letrinha penteada dos calmos come-
A seção de ciência tomará mais um pedaço ços de livro comecei escrevendo. Mas logo a letra
desse editorial porque é imprescindível destacar ficou afobada, rapidíssima, ilegível para os outros,
a reportagem que trata da participação de bra- frases parando no meio com ortografias mágicas...”
INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO sileiros na série de experimentos internacionais, Maravilhoso, não?
INFLUENZA
AS PESTES
Museu de Microbiologia do Instituto
Butantan inaugura a exposição itinerante
As grandes epidemias | Neldson Marcolin
A
pandemia de gripe suína que assustou o planeta de Alessandra Fernandes Aids e influenza (gripe).
no ano passado trouxe à lembrança um fato que Bizerra e Milene Tino de Os filmes foram feitos pelo
andava esquecido: não importa quanto Franco, a diretora do museu. cineasta André Luiz de
conhecimento, tecnologia e informação estejam “Certamente a Luiz a partir do roteiro das
disponíveis, sempre existirá o risco de epidemias. população e os envolvidos curadoras e são didáticos,
A peste negra (ou bubônica) foi responsável por com a área da saúde repletos de imagens e de
pelo menos 10 epidemias entre 1400 e 1720, devem se preocupar com entrevistas com o próprio
quando se estima que tenham morrido 25 milhões de as epidemias”, diz Isaias Raw, o médico Dráuzio
pessoas no total. A varíola matou e deformou milhões Raw, do conselho Varella e o secretário
na metade do século XVII na Europa. A meningite causou técnico-científico da estadual da Saúde, Luiz
enormes transtornos na saúde pública até a metade dos Fundação Butantan. É dele Roberto Barradas Barata.
anos 1970 no Brasil. A Aids e a gripe – esta de modo a concepção da exposição, Todos usam uma
sazonal – seguem infectando pessoas em todos os países. imaginada há alguns anos linguagem simples para
A exposição As grandes epidemias, que pode ser visitada e concretizada agora com falar de história, saúde,
no Centro de Difusão Científica do Instituto Butantan, em apoio FAPESP/Vitae. Na ciência e, principalmente,
São Paulo, fala de um assunto que continua relevante nos mostra há painéis ilustrados da importância da
dias de hoje. “Queremos informar e alertar o público para e cinco filmes de até vacinação. A exposição,
o perigo que as epidemias representam”, explica Gláucia sete minutos. Cada um deles gratuíta, deverá ser levada a
Colli Inglez, coordenadora do Museu de Microbiologia trata de uma epidemia: outras regiões da capital
do Instituto Butantan e curadora da exposição ao lado peste, varíola, meningite, paulista em breve.
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VARÍOLA
FOTOS MUSEU DE MICROBIOLOGIA/
INSTITUTO BUTANTAN
Elisaldo Carlini
O uso medicinal da maconha
Especialista em psicofarmacologia diz que já está mais do que na hora
de reconhecer as qualidades médicas da droga no Brasil
O
médico Elisaldo Carlini parece mente para tratar dessa questão. Carlini 1888, que guardo até hoje, com a receita
ter uma obsessão como espe- vê grande preconceito contra a maconha, da maconha para vários males. Era uma
cialista em psicofarmacologia, mas aposta que se os pesquisadores insis- terapêutica corrente no mundo todo, in-
área que ajudou a difundir no tirem na direção correta, com o apoio da clusive no Brasil. O simpósio internacio-
Brasil nos anos 1960 depois de ciência, essa aprovação será obtida algum nal terá o título “Uma agência brasileira
uma passagem de quatro anos dia. É preciso ressaltar que esse médico de da Cannabis medicinal?”. A Organização
pelos Estados Unidos, três de- 79 anos é contra o uso dessa e de outras das Nações Unidas (ONU) reconhece que
les na Universidade Yale. O foco de seu drogas para fins recreativos. a maconha pode ser medicamento – ape-
trabalho é procurar entender como a Carlini tem uma atuação social que, sar da proibição da Convenção Única de
Cannabis sativa – a maconha – age no por vezes, ofusca o cientista. Ele é o cria- Entorpecentes, de 1961 – desde que os
organismo humano, seu alvo de pesqui- dor do Centro Brasileiro de Informações países oficializem uma agência especial
sa há 50 anos. Herdou esse interesse de sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) – para Cannabis e derivados nos seus mi-
José Ribeiro do Valle, seu professor de um importante fornecedor de informa- nistérios da Saúde. Já há uns 10 países que
farmacologia na Escola Paulista de Medi- ções para a formulação de políticas de fazem esse uso: Estados Unidos, Canadá,
cina na década de 1950. Desde então tem educação – e da Sociedade Brasileira de Reino Unido, Itália, França, Alemanha,
trabalhado no sentido de desmitificar o Vigilância de Medicamentos (Sobravi- Espanha, Suíça, entre outros.
conceito de que a maconha é uma droga me), em 1990. Entre 1995 e 1997 esteve
maldita, sem utilidade. à frente da Secretaria Nacional de Vigi- ■ Quando e como o senhor decidiu eleger
Nas décadas de 1970 e 1980 liderou lância Sanitária, órgão predecessor da a maconha como objeto de estudo?
no Brasil um grupo de pesquisa publi- atual Anvisa, onde enfrentou a espinhosa — Quando entrei na Escola Paulista de
cando mais de 40 trabalhos em revistas missão de combater a corrupção no setor. Medicina [a EPM, hoje Universidade Fe-
científicas internacionais. Esses resulta- Com sucesso, diga-se. Atualmente está deral de São Paulo (Unifesp)] em 1952. E
dos, juntamente com as investigações de no sétimo mandato como membro do como aluno do 2º ano comecei a me in-
outros grupos internacionais, possibili- Expert Advisory Panel on Drug Depen- teressar pela farmacologia e estagiei com
taram o desenvolvimento no exterior de dence and Alcohol Problems, da Orga- o professor José Ribeiro do Valle. Ele foi
medicamentos à base de Cannabis sativa nização Mundial da Saúde (OMS). Tem o primeiro que fez trabalhos verdadeira-
utilizados atualmente em vários países seis filhos e cinco netos. Em dezembro, mente científicos sobre a Cannabis sativa
do mundo para tratamento da náusea e entre uma reunião e outra, Carlini deu em animais de laboratório no Brasil.
dos vômitos causados pela quimioterapia a entrevista abaixo.
do câncer, para melhorar a caquexia (en- ■ Quais experimentos?
fraquecimento extremo) de doentes com ■ Qual será a proposta do simpósio inter- — Ele procurava saber os tipos de reação
HIV e câncer e para aliviar alguns tipos nacional sobre maconha, que ocorrerá em [comportamental] que os animais apre-
FOTOS EDUARDO CESAR
de dores. Para ele, já está mais do que na maio em São Paulo? sentam quando submetidos aos efeitos da
hora de reconhecer o uso medicinal da — Vamos propor que a maconha seja maconha e queria quantificar a potência
maconha no Brasil. aceita para uso médico no Brasil. Meu dos diferentes tipos dessa planta. Naquela
Em maio deste ano haverá um simpó- avô se formou médico no fim do século época, a psicologia experimental estava
sio internacional em São Paulo especial- XIX e naquela época já usava um livro de pouco desenvolvida no Brasil. Em 1960
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Luzes vivas
N
o filme de animação Vida de inseto, toda a iluminação interna
do formigueiro é feita com cogumelos luminosos. “Há um
tanto de licença poética na criação”, comenta Cassius Stevani,
do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP),
“mas na essência é verdade”. De fato existem cogumelos que
emitem luz, ou bioluminescentes, e muitas formigas cultivam
fungos em suas tocas – mas não desse tipo. Stevani está empe-
nhado em entender o mecanismo químico que gera essa luminosidade
e qual a sua função no organismo. No caminho já encontrou um uso
prático: detectar contaminação por metais no solo.
Bastou meia década para Stevani e colegas descobrirem 12 espécies
de fungos luminescentes no Brasil. Entre elas estão a amazônica Mycena
lacrimans, encontrada por Ricardo Braga-Neto, do Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e uma espécie parecida com um
guarda-chuva invertido que nasce na base de palmeiras como a pia-
çava ou o babaçu, no Piauí. No mundo são 71 espécies, de acordo com
um artigo de revisão feito por Stevani em colaboração com o biólogo
norte-americano Dennis Desjardin, da Universidade Estadual de São
Francisco, na Califórnia, que em março estampará a capa da revista
Mycologia. “Deve haver muito mais espécies por descobrir”, imagina o
químico, “ainda não descritas porque são difíceis de encontrar; pouca
gente anda sem lanterna pela mata em noites sem luar”.
Até 2002 não se tinha notícia de fungos bioluminescentes no Brasil.
Ou melhor, havia uma espécie, descrita no século XIX pelo britâni-
co George Gardner com o nome científico Agaricus phosphorescens
(mais tarde rebatizada como Pleurotus colaboração com a primatóloga Patrí- liderei uma expedição para uma ilha
gardneri), mas hoje os especialistas em cia Izar, do Instituto de Psicologia da na Micronésia, no oceano Pacífico, on-
fungos questionam essa classificação, USP – que ele imediatamente procu- de os cogumelos nunca tinham sido
baseada em espécies semelhantes na rou em busca da pista do cogumelo. documentados; das 128 espécies que
Europa. E ficava difícil corrigir o erro É uma dessas histórias de acaso, em encontramos, sete eram luminescen-
porque a única amostra preservada que informações precisam correr o tes”, conta, deixando claro que os fun-
está num herbário na Inglaterra. mundo antes de chegarem quase ao gos brilhantes são minoria.
Um cogumelo que parece ser da mesmo lugar. O Brasil é promissor porque tem
mesma espécie foi recentemente encon- Deu certo: o dono da propriedade uma imensa área de floresta cujos
trado brilhando na base de uma pal- onde Dorothy e Patrícia trabalhavam, fungos ainda não foram estudados,
meira-piaçava pela primatóloga norte- Marino Gomes de Oliveira, secou ao diz Desjardin. “Sabemos muito pouco
-americana Dorothy Fragaszy, que ter- sol e mandou a Stevani 4 quilogramas sobre os cogumelos do Brasil, então es-
minava a jornada de perseguição aos do cogumelo brilhante. Agora os pes- peramos encontrar muitas novas espé-
macacos mais tarde do que o habitual quisadores estão perto de corrigir a cies, luminescentes ou não.” Ele explica
no Piauí. Fascinada, ela mostrou as identificação, com o exame detalhado também que, para encontrar fungos
fotos a um conterrâneo do Jardim Bo- dos cogumelos pelos micólogos (espe- luminosos, é preciso pensar nisso. A
tânico de Nova York, que entrou em cialistas em fungos) Marina Capelari, maior parte dos micólogos que estu-
contato com Dennis Desjardin, consi- do Instituto de Botânica de São Paulo, dam diversidade de fungos descreve
derado um dos maiores especialistas na e Desjardin. Ele tem se dedicado a ex- os cogumelos durante o dia (quando
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Mycena fera:
cogumelos
brilham o
tempo todo,
mas só são
vistos no
escuro
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RASTROS DA CATÁSTROFE
o WWF. Em dezembro, o ricanos e franceses pro-
IPCC viveu outra crise: gramaram visitas ao Haiti
uma polêmica sobre e-mails nas semanas seguintes ao
divulgados por hackers em terremoto de 12 de janei-
que pesquisadores do ro em busca de dados que
painel pareciam desdenhar ajudem a explicar o de-
evidências importantes sastre. De acordo com a
(mas que, diga-se, revista Nature, Eric Calais,
acabaram incorporadas geofísico da Universidade
aos relatórios). A química Purdue, viajou para o Haiti
Pauline Midgley, que com o geólogo Paul Mann,
participará da elaboração da Universidade do Texas,
dos relatórios de 2014, para trabalhar na análise
disse ao blog da revista das marcas produzidas pe-
Science que será reforçado lo sismo, que matou mais
o treinamento dos cientistas de 170 mil pessoas e teve Escombros de catedral em Porto Príncipe
do painel para ajudá-los 7 graus de magnitude na
CIÊNCIA DUVIDOSA
qualidade munidade científica chi-
nesa. Editores da revista
Três anos após aderir britânica Acta Crystallo-
à União Europeia, a Bulgária graphica Section E des-
trabalha para melhorar seu cobriram que são falsas
desempenho científico, mas 70 estruturas de cristais
um projeto de lei que busca publicadas pelos pesqui-
aperfeiçoar o ambiente sadores Zhong Hua e Liu
de pesquisa atraiu protestos Tao, da Universidade Jing-
dos próprios cientistas. gangshan, na província de
A lei propõe o fim de uma Jiangxi. A falsificação foi
comissão que concede graus flagrada por um software
acadêmicos e supervisiona capaz de sinalizar erros
as universidades. Em seu ou características quími-
lugar, cada instituição seria cas incomuns. O progra-
responsável pela concessão ma identificou grande
de seus diplomas, como número de estruturas
acontece no resto da Europa. cristalinas que não fazia
Alguns pesquisadores dizem sentido quimicamente e
que a medida vai eliminar os graus mais elevados. a verificação indicou que os pesquisadores mudaram um ou
o controle de qualidade dos “Concordamos que este mais átomos de um composto existente, apresentando o re-
trabalhos de doutoramento sistema é arcaico”, disse sultado como novo. Hua e Tao foram demitidos. Universidades
e pós-doutoramento, tido à revista Nature Oleg chinesas frequentemente oferecem prêmios em dinheiro e
como essencial nas novas Yordanov, físico do Instituto auxílios-moradia, entre outras vantagens, para pesquisadores
universidades. A Bulgária de Eletrônica em Sofia. que publicam em revistas de impacto – e a pressão parece
tinha apenas quatro “Mas é preciso garantir estar crescendo. Um estudo da Universidade de Wuhan estima
universidades em 1990. um mínimo de qualidade.” que o mercado da chamada ciência duvidosa, que envolve
Agora elas são 53. Um grupo contratar desde quem escreva um artigo até quem simule
denominado Movimento pesquisas inexistentes, foi da ordem de US$ 150 milhões em
Civil de Apoio à Ciência e à > Em grade 2009 - cinco vezes o montante de 2007.
Educação da Bulgária pediu e em nuvem
ao Parlamento mudanças no
projeto, como a criação de A Unesco, braço das pesquisadores dos países computadores em uma
um esquema de credenciamento Nações Unidas para a ciência, africanos e árabes, rede para trabalhar em um
das universidades antes de cultura e educação, está garantindo a eles acesso mesmo problema científico,
permitir que elas ganhem ampliando um esquema que a redes científicas enquanto a computação em
autonomia para conceder busca reduzir o êxodo de internacionais e a recursos nuvem permite o acesso a
computacionais. A Brain aplicações recentes da web e
Gain Initiative, fruto a bancos de dados. Segundo
ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
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PESQUISA FAPESP 168
FOTOS ROOSEWELTPINHEIRO/ABR
nológicas (IPT) e o Instituto
Nacional de Pesquisas Espa-
ciais (Inpe) estudam uma par-
ceria para monitorar o risco de
deslizamentos de terra em me-
trópoles e cidades serranas. O
projeto, que ainda está em dis-
cussão no âmbito do governo
paulista, seria baseado num
sistema de alerta ancorado
em previsões e modelos clima-
tológicos desenvolvidos pelo
Inpe e na expertise do IPT na
avaliação de risco de desliza-
mentos – o instituto é o braço
técnico do plano de prevenção
de riscos que identifica áreas
ameaçadas em municípios de
São Paulo. Um dos desafios Morro da Carioca, em Angra dos Reis: deslizamentos em janeiro
do projeto é criar sistemas
robustos de coleta de dados,
capazes de monitorar as chuvas e o movimento das encostas reconhecer pesquisas intitulado “Cardiomiopatia
continuamente, para abastecer os modelos. O Inpe tem ex- seminais”, afirma Galvão. induzida por ácido
periência no estudo da dinâmica dos deslizamentos de terra Os candidatos devem ser 3-nitropropiônico (3-NP)
que ocorrem em períodos de muita chuva em áreas da serra indicados por pelo menos em camundongos – possível
do Mar. Mas, para viabilizar o projeto, seria necessário coletar cinco cientistas de renome. modelo de estudo para
uma quantidade bem maior de dados sobre as característi- As indicações serão a doença de Huntington
cas das áreas de risco, a fim de desenvolver novos modelos. analisadas pela Comissão (DH)”, foi escolhido entre
Outros pontos a serem desenvolvidos são a integração das do Prêmio, integrada por 83 inscritos. O estudo
informações das duas instituições – avaliando, por exemplo, pesquisadores. O ganhador, tem apoio da FAPESP
dados sobre chuvas intensas em sobreposição à situação das que vai receber R$ 20 mil, na modalidade bolsa de
encostas da região atingida pela água – e a estratégia de será conhecido em maio. doutorado e está sendo
divulgação dos alertas para a população em risco. orientado por Antonio
Augusto Coppi, responsável
> Trabalho pelo Laboratório de
> Contribuição área. Segundo o diretor premiado Estereologia Estocástica e
seminal do centro, Ricardo Galvão, Anatomia Química (LSSCA)
a ideia é premiar O doutorando Fernando da Faculdade de Medicina
O Centro Brasileiro de contribuições pontuais Vagner Lobo Ladd, da Veterinária e Zootecnia da
Pesquisas Físicas (CBPF), no de excelência no campo da Universidade Federal de Universidade de São Paulo
Rio de Janeiro, recebe até física. “A intenção do prêmio São Paulo (Unifesp), ganhou (FMVZ-USP). A doença
19 de março indicações é reconhecer descobertas e o Prêmio José Carlos de Huntington é uma
de nomes para a primeira desenvolvimentos singulares Prates 2009, concedido pela moléstia neurodegenerativa
edição do Prêmio CBPF de que tenham impulsionado instituição aos melhores hereditária que afeta
Física, que será concedido a o conhecimento na área de trabalhos apresentados principalmente o sistema
um pesquisador de fora dos física. Por essa razão ele não durante o 12o Congresso do nervoso central e atinge
quadros da instituição que será concedido para coroar Programa de Pós-graduação cerca de 50% dos filhos de
tenha realizado trabalho cientistas pelo conjunto em Morfologia, realizado pais e mães portadores
científico de excelência na da obra, mas sim para em dezembro. O trabalho, da desordem.
de professores que formulou o exame. “Normalmente não faze- milhões, divididos entre um dos principais centros
mos isso”, afirma Pedrosa. “Mas Pesquisa FAPESP é uma boa o ministério brasileiro da
revista de divulgação científica, é da FAPESP, que é do estado Ciência e Tecnologia (MCT)
de São Paulo e não tem fins lucrativos. Esperamos que, com e o governo da Alemanha.
esse gesto, os jovens Estão envolvidos no
conheçam a revista.” projeto a Secretaria de
Ele explica que essa Estado de Ciência e
deve ter sido a pri- Tecnologia do Amazonas
meira e a última vez (Sect), a Universidade
que uma prova da Uni- do Estado do Amazonas
camp se baseou numa (UEA), o Instituto Max
única fonte. Afinal, a Planck de Química, da
universidade não pode Alemanha, e o Instituto
dar pistas de onde vai Nacional de Pesquisas
retirar as ideias para da Amazônia (Inpa).
suas provas. As torres, uma com
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universidades de primeira
linha e importantes
clientes das mais diversas
indústrias, o Brasil é a
escolha lógica para a nossa
próxima instalação”, disse o
executivo-chefe da empresa,
Jeff Immelt, que visitou o
Brasil em janeiro. Segundo
Immelt, a GE investe
anualmente US$ 6 bilhões
em pesquisa no mundo.
COOPERAÇÃO
Esforço multiplicado
Com investimentos conjuntos do governo paulista,
das universidades estaduais e da FAPESP, será criado
o Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia
N
o último dia de 2009 o governo do estado de vênio veio em resposta a uma proposta amadurecida
São Paulo, a FAPESP e as três universidades pelas universidades e pela FAPESP, que foi apresentada
estaduais paulistas celebraram um acordo de ao governo estadual. “A Fundação e as universidades
cooperação que marcou o lançamento do Cen- estaduais paulistas discutiram longamente a ideia de se
tro Paulista de Pesquisa em Bioenergia, uma implantar um centro de pesquisa em bioenergia, sediado
iniciativa que busca criar uma base científica nas três universidades”, diz Brito Cruz, que coordenou
para ampliar a competitividade da pesquisa a proposta. “O governo estadual aprovou a proposta
paulista e brasileira em energia obtida de biomassa. Pelo formatada, dedicando os recursos orçamentários para
convênio, a Secretaria de Ensino Superior do estado uso na infraestrutura necessária. O plano apresentado
vai repassar R$ 18,4 milhões para as universidades de previa investimentos do governo estadual para infraes-
São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp) e trutura, pela FAPESP para projetos de pesquisa e pelas
Estadual Paulista (Unesp), que serão usados para a cons- universidades para admissão de professores”, afirmou.
trução de laboratórios, eventuais reformas e compra de Os R$ 18,4 milhões do convênio assinado em de-
equipamentos. As universidades, por sua vez, se compro- zembro correspondem ao investimento do governo es-
meteram em contratar pesquisadores em diversas áreas tadual para a primeira fase da implantação do centro. O
da pesquisa em bioenergia, que trabalharão em conjunto governador de São Paulo, José Serra, afirmou durante
com os pesquisadores já atuantes neste campo nas três a inauguração do Laboratório Nacional de Ciência e
instituições, num esforço integrado. Já a FAPESP assu- Tecnologia do Bioetanol (CTBE), no dia 22 janeiro, que
miu a missão de selecionar e financiar os projetos em os recursos para o Centro Paulista de Pesquisa em Bioe-
bioenergia vinculados ao centro, além de participar da nergia deverão superar R$ 150 milhões, o que projeta
coordenação de seu conselho superior, cuja sede será na um investimento superior a R$ 50 milhões para cada
Fundação. “O Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia uma das partes.
vem complementar os esforços no país para a criação Os novos laboratórios deverão ter um caráter multi-
de conhecimento e tecnologia em bioenergia, reforçan- disciplinar e envolver pesquisadores de áreas como agro-
do a parte de ciência básica e a formação de recursos nomia, química, biologia, física, matemática, engenharia
humanos, objetivos nos quais nossas três universidades e ciências sociais. “A aglutinação de competências das
estaduais são excelentes”, explica o diretor científico da universidades é o forte desse projeto e o objetivo é que
FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. o Brasil avance no que diz respeito ao conhecimento em
O formato do novo centro, que foi alvo de discus- bioenergia”, diz o reitor da Unesp, Herman Voorwald.
sões ao longo de todo o ano de 2009, é baseado numa Para o reitor da Unicamp, Fernando Costa, a experiên-
partilha de investimentos e de responsabilidades. Cada cia pode definir um modelo novo de fazer pesquisa. “A
um dos três atores envolvidos – governo, universidades parceria entre universidades, governo e FAPESP é uma
e FAPESP – vai investir montantes equivalentes. O con- experiência inovadora”, diz. “Temos agora o desafio de
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No mapeamento foram consultados insumos químicos e polímeros verdes, em julho de 2008 com o objetivo de
456 docentes e pesquisadores, sendo estimulando a substituição de petró- avançar em ciência básica e em desen-
que 365 deles, ou 80% do total, respon- leo por etanol como matéria-prima. volvimento tecnológico relacionados à
deram ao questionário. A conclusão foi “A meta do centro não é simplesmente geração de energia obtida de biomassa.
que existe um número significativo de produzir mais combustível com custos Além de buscar a competitividade eco-
pesquisadores das três universidades menores, mas produzir riqueza a partir nômica do biocombustível brasileiro, o
que desenvolvem pesquisa em bioener- do conhecimento. Se quisermos que centro tem uma meta socioambiental,
gia e que a capacitação concentra-se na a biomassa seja sucedânea dos com- que é produzir conhecimento capaz de
produção de biomassa e nos processos bustíveis fósseis, precisamos torná-la melhorar os indicadores de sustentabi-
industriais ligados à produção de bioe- lucrativa como o petróleo, investindo lidade da cadeia produtiva da cana-de-
nergia. “A presença brasileira no âmbito em novas aplicações, como a geração de -açúcar. “A estratégia fundamental do
das publicações científicas é grande na energia e a alcoolquímica, que ampliam centro é aumentar o número de cien-
área de agronomia e de desenvolvimen- a renda para o setor e a sociedade”, afir- tistas em áreas de ciência básica rela-
to de variedades da cana, mas não é tão ma Cortez. cionadas aos temas do Programa Bioen
expressiva em outras áreas”, diz Cortez, da FAPESP em São Paulo”, disse Brito
da Unicamp. “Precisamos investir em Vantagem competitiva - A base cien- Cruz, diretor científico da Fundação.
pesquisa para que o Brasil busque a tífica produzida pela iniciativa busca “É muito significativo que o governo
liderança em todas as áreas, pois não ajudar o Brasil a competir com outros estadual tenha aprovado a proposta da
basta ser forte em apenas algumas de- países, notadamente os Estados Unidos, FAPESP e das universidades, garantin-
las”, afirma. na transição para as tecnologias de se- do apoio adicional com investimento
Há um número relativamente baixo gunda geração, aquelas que prometem direto, para um programa de pesquisas
de pesquisadores que atuam, por exem- extrair energia de celulose. O Brasil, que organizado pela Fundação”, afirmou.
plo, na área de motores automotivos, o dispõe da tecnologia mais eficiente de Os programas de pesquisa do cen-
que coloca um problema para o futuro etanol de primeira geração, extraída da tro deverão compreender as mesmas
dos motores flexíveis para álcool e gasoli- sacarose da cana-de-açúcar, tem uma áreas previstas na criação do Bioen, e
na – eles só existem atualmente no Brasil, vantagem competitiva na corrida da tec- que envolvem toda a cadeia produtiva
não são alvo de investimentos vultosos nologia de segunda geração, que é uma da cana-de-açúcar. São elas a produção
pelas filiais das montadoras e tendem a enorme disponibilidade de biomassa, na da biomassa para bioenergia, a pesquisa
perder competitividade para os motores forma de bagaço e palha de cana. Tais de meios de produção de bioenergia, as
a gasolina e diesel, cujo desenvolvimento substratos correspondem a dois terços biorrefinarias e alcoolquímica, a área
é impulsionado pelas matrizes dos fabri- da energia disponível na cana e hoje são de aplicação em motores automotivos
cantes de carros. “Com a identificação aproveitados na queima e geração de e, por fim, os aspectos de sustentabili-
dos pontos de estrangulamento, podere- eletricidade. Mas o país não tem inves- dade, como os impactos econômicos,
mos definir melhor onde alocar recursos tido tanto quanto seus competidores na sociais e ambientais do uso da bioener-
humanos, reforçando áreas já existentes superação dos desafios tecnológicos que gia. Cada uma dessas linhas de pesquisa
e suprindo lacunas nas menos pesqui- persistem – hoje ainda não há tecnologia promoverá iniciativas nas áreas de edu-
sadas”, afirma Antonio Roque Dechen, economicamente viável para extração cação e de difusão, a fim de estimular
da Esalq-USP. Para Nelson Stradiotto, da de energia de celulose. Para vencer esses a transferência para a sociedade do
Unesp, a ampliação do contingente de desafios e buscar conquistas de impac- conhecimento produzido.
pesquisadores e o estímulo à formação to, o centro investirá em pesquisa bási- Duas áreas consideradas fundamen-
de doutores permitirão que o país con- ca, deixando para outras iniciativas já tais para ampliar a produtividade da
te com uma nova geração de cientistas existentes a preocupação com avanços cana são as dos mecanismos que envol-
trabalhando em temas de fronteira num incrementais. A pesquisa aplicada e o vem a fotossíntese na cana-de-açúcar
horizonte de 10 anos. “Temos que pensar desenvolvimento tecnológico realizados e a das relações funcionais da genômi-
alto, pois é isso que os Estados Unidos no centro deverão acontecer em coope- ca da cana. No caso da fotossíntese, a
estão fazendo hoje”, afirma. ração com o setor privado. ambição é conhecer melhor o processo
Outra área que conta com um nú- O novo centro vai incorporar-se ao pelo qual a planta fixa o carbono, con-
mero limitado de pesquisadores é a de esforço do Programa FAPESP de Pes- vertendo a energia solar em energia
biorrefinarias, que busca desenvolver quisa em Bioenergia (Bioen), lançado química. Tal processo é reconhecido
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F
oram inauguradas em Campi- cooperação com o Imperial College, da os outros dois da Unicamp”, afirmou.
nas (SP), no dia 22 de janeiro, Inglaterra, e a Universidade Lund, da Serra citou a criação do Centro Paulista
as instalações do Laboratório Suécia, com os quais desenvolverá pes- de Pesquisa em Bioenergia, no final de
Nacional de Ciência e Tecno- quisas conjuntas. Também foi celebrado 2009, que irá integrar os pesquisadores
logia do Bioetanol (CTBE), um um acordo com a Empresa Brasileira de das três universidades e contratar novos
centro de pesquisa voltado para Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em pesquisadores em temas de fronteira,
o desenvolvimento do etanol torno de estudos no campo da susten- no âmbito do Programa FAPESP de
de segunda geração, aquele produzido tabilidade da cultura da cana. Pesquisa em Bioenergia (Bioen).
a partir da celulose. O laboratório foi Presente à inauguração, o presiden- Segundo o diretor científico do
concebido em 2007 e já contou com te Luiz Inácio Lula da Silva ressaltou a CTBE, Marcos Buckeridge, a abran-
R$ 69 milhões de investimentos do go- importância do CTBE para que o Brasil gência dos trabalhos do novo centro
verno federal. Algumas pesquisas em dê um novo salto tecnológico. “Espero coincide com a do Bioen, que deverá
andamento têm apoio da FAPESP, num que este laboratório possa utilizar todo contribuir com o laboratório e também
montante de R$ 2 milhões, segundo o seu potencial para que a gente possa se beneficiar da sua infraestrutura. “Es-
Marco Aurélio Pinheiro Lima, diretor transformar o etanol no combustível tá em formação um sistema brasileiro
do CTBE. Além de desenvolver proje- mais utilizado do mundo”, disse. Lula de bioenergia que reunirá os trabalhos
tos de pesquisa relacionados a todas lamentou o aumento no preço do etanol de uma elite de especialistas espalha-
as etapas de produção do etanol, o combustível e criticou os usineiros que dos pelo país”, anuncia Buckeridge, que
centro tem a ambição de oferecer uma reduziram a produção de também dirige o Institu-
plataforma que possa ser utilizada por álcool para fabricar mais Laboratório to Nacional de Ciência e
pesquisadores de todos os lugares do açúcar. “Se a gente passar do CTBE, em Tecnologia do Bioetanol
Brasil, e também da América Latina, para o mundo a ideia de Campinas: fôlego e é membro da coordena-
em moldes semelhantes aos do uso das que não estamos dando para o sistema ção do Bioen. ■
instalações do Laboratório Nacional conta sequer do nosso de pesquisa em
de Luz Síncrotron (LNLS). O LNLS, mercado interno, nós não bioenergia Fabrício Marques
o CTBE e o Laboratório Nacional de
Biociências (LNBio) dividem o mesmo
EDUARDO CESAR
campus em Campinas e são coordena-
dos por uma instância que acaba de ser
criada pelo governo federal, o Centro
Nacional de Pesquisa em Energia e Ma-
teriais (CNPEM).
Demandas do SUS
Rede de pesquisa em hospitais de ensino é ampliada
O
s ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia anunciaram
no final de 2009 a ampliação da Rede Nacional de Pesquisa
Clínica em Hospitais de Ensino (RNPC), cuja estrutura
passou de 19 para 32 centros espalhados pelo país. A rede,
criada em 2005, tem um duplo objetivo. De um lado, busca
institucionalizar a pesquisa clínica em hospitais de ensino
de vários lugares do país, fazendo com que ganhem com-
petência na realização em ensaios clínicos, uma expertise que, até
pouco tempo atrás, se limitava a instituições hospitalares de grandes
metrópoles. De outro, dá ênfase a demandas da saúde pública, testan-
do medicamentos, procedimentos e dispositivos para diagnóstico de
doenças de interesse do Sistema Único de Saúde (SUS). “A ideia da
rede é dar uma chance ao SUS de ter estudos clínicos que atendam
a suas necessidades”, diz o secretário de Ciência, Tecnologia e Insu-
mos Estratégicos do Ministério da Saúde, Reinaldo Guimarães. “Até
poucos anos atrás, a contratação de protocolos de estudos clínicos
pelas empresas farmacêuticas era habitualmente realizada em padrões
privados, diretamente com um pesquisador, sem nenhuma interven-
ção institucional, a despeito de as pesquisas usarem infraestrutura e
pessoal das instituições públicas. Com a colaboração de universida-
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Entre o laboratório
e o gabinete
Oscar Sala aliou excelência científica à liderança institucional
Neldson Marcolin
E´
comum pesquisadores mudarem a direção de uma extraordinária geração de físicos brasileiros.
suas atividades principais com o passar dos “Já tinha lido um pouco sobre radiação cósmica e
anos. Alguns optam por se tornarem gestores fiz algumas perguntas a ele, que perguntou o que
de ciência e tecnologia e acabam absorvidos eu fazia e, afinal, me convenceu a sair da Poli e a
pela burocracia de tal maneira que raramen- entrar para a Física.” As experiências faziam parte
te voltam a frequentar laboratórios ou salas da expedição liderada pelo norte-americano Arthur
de aula. Mas há uma classe de cientistas que Compton, que visitou o Brasil em 1941. No mesmo
consegue conciliar todas as diferentes atividades com ano Sala começou como aluno da Física e se formou
a mesma aptidão e qualidade durante a maior parte em 1945. Ainda estudante, colaborou com o Exér-
da vida. Oscar Sala foi uma dessas invulgares perso- cito brasileiro construindo transmissores portáteis
nalidades da ciência brasileira, a julgar por todos os usados na campanha na Itália durante a Segunda
ACERVO IF/USP
depoimentos sobre ele. Morto no dia 2 de janeiro em Guerra Mundial.
consequência de uma parada cardíaca, aos 87 anos, Em 1946 tornou-se assistente da cadeira de físi-
foi um dos principais físicos do país e um gestor com- ca geral e experimental, regida por Marcello Damy
petente e importante, intimamente
ligado à história da FAPESP como
seu diretor científico, entre 1969 e
1975, e presidente, entre 1985 e 1995.
Deixou esposa, Rosa Augusta, três
filhos e seis netos.
Oscar Sala nasceu em Milão, na
Itália, de pai brasileiro e mãe italia-
na. Veio com a família para Bauru,
no interior paulista, aos 2 anos. For-
mou-se em música no conservatório
da cidade, mas optou por cursar en-
genharia na Escola Politécnica. Sua
passagem para a física se deu duran-
te o período de férias em Bauru. “No
campo de aviação havia uma grande
movimentação com os balões que
eram soltos a grandes altitudes para
medirem a radiação cósmica. Um
dia estava lá e comecei a conversar
com um senhor, que era justamente
o Gleb Wataghin”, contou Sala em
entrevista a Amélia Império Ham-
burger, publicada no livro Cientistas
do Brasil (SBPC, 1998). Wataghin,
russo radicado na Itália, foi um dos
professores estrangeiros que ajuda-
ram a consolidar a Universidade de Os físicos: Ernst Hamburger (em pé), Sérgio
São Paulo (USP), responsável por Mascarenhas, Damy, José Goldemberg e Sala
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Sala trabalhando com colaborador: escolha correta de máquinas, adequada ao orçamento da C&T brasileira
A MAÇÃ DE NEWTON
glês Isaac Newton teria con-
cebido a lei da gravitação uni-
versal ao observar a queda de
uma maçã de uma árvore tem
sido ora negada, ora alimenta-
da. A mais recente indicação
de que pode realmente ser
verdadeira foi a publicação
on-line, pela Royal Society, de
Londres, das 100 páginas do
manuscrito do físico William
Stukeley, Memórias da vida de
Newton. É a primeira descri-
ção da experiência de Newton
com a maçã mais famosa da
Na internet: ciência. Um trecho: “Depois
manuscrito do jantar, fomos ao jardim e
conta origem tomamos chá, sob a sombra
da lei da
de algumas macieiras. Ele me
gravitação
universal contou que estava antes na
mesma situação quando a noção de gravidade veio à mente
dele. Foi em decorrência da queda de uma maçã, e ele sentou-
-se contemplativamente. Por que deveria aquela maçã sempre
REPRODUÇÃO
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NOÇÃO MATEMÁTICA
Nos laboratórios da
NASA
ASSÍDUAS EM HOSPITAIS
paulistas detectou uma al- de 2009, ainda não sabem
ta prevalência de bactérias se as construções tinham
resistentes a antibióticos. finalidades defensivas ou
Em geral, 31% das varieda- cerimoniais. Elas indicam
des de Streptococus aureus que sociedades regionais
se mostraram resistentes organizadas e densamente
à oxacilina, antibiótico povoadas viveram
bastante usado contra es- nessa região entre os anos
sa bactéria causadora de 1250 e 1378, antes da
infecção hospitalar, e a chegada dos colonizadores
maioria das bactérias mul- europeus, em uma região
tirresistentes sobrevive- de ocupação antes
ram a três medicamentos considerada improvável.
(clindamicina, ciprofloxa-
cina e levofloxacina), de
acordo com um estudo de > Vinhos com mais
Streptococcus aureus: pouco suscetível a antibióticos Ana Gales e Helio Sader, gosto e aroma
da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp), em Reforçar o teor de taninos
> Círculos perfeitos colaboração com pesquisadores de hospitais do Distrito fez com que vinhos
sob a Amazônia Federal, Florianópolis e Santa Catarina. Segundo os autores, Cabernet Sauvignon
os achados enfatizam a importância de inclusão de drogas cultivados na região de
Sinais do que poderia ter ainda eficazes contra variedades multirresistentes, como Bento Gonçalves, no Rio
sido uma civilização antiga a vancomicina, linezolida e daptomicina, desde o início do Grande do Sul, ganhassem
desconhecida pode estar tratamento de infecções hospitalares. Detalhado na revista em aroma e sabor, de
emergindo no rastro de Brazilian Journal of Infectious Diseases, esse levantamento acordo com um estudo
árvores caídas da Amazônia. consistiu em análises de 3.907 amostras de bactérias co- realizado por Vitor Manfroi,
Duas centenas de lhidas de pacientes tratados em quatro hospitais paulistas da Universidade Federal do
entre janeiro de 2005 e setembro de 2008, como parte de
um programa internacional de vigilância antimicrobiana que
MAURO CELSO ZANUS/EMBRAPA UVA E VINHO
SANNA SAUNALUOMA
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Morder
ou fugir?
Depende do
tamanho dos
próprios teiús
Rio Grande do Sul (UFRGS), empresas fez as análises ENERGIA Símbolos de preguiça por ficarem
publicado na Ciência Rural. sensoriais. A acidez e a SOLAR estirados ao sol, os lagartos na ver-
Manfroi e outros maciez foram menores nas dade estão mais próximos de baterias
especialistas da UFRGS, amostras que receberam solares. Incapazes de aquecer o cor-
Embrapa Uva e Vinho e tanino de castanheira, que po sem fonte externa de calor, eles precisam lagartear para
da Universidade Federal de levou a um vinho com mais acumular energia para a vida cotidiana, que inclui fugir de
Pelotas (UFPel) aplicaram corpo que o tratado com predadores. Em busca de entender a relação entre compor-
dois taninos comerciais – tanino de quebracho. tamento anti-predatório, temperatura ambiente e tamanho
o de quebracho, de origem Os vinhos com tanino do corpo, a bióloga Tiana Kohlsdorf, da Universidade de São
argentina, e o de castanheira, de quebracho tendiam a Paulo (USP) em Ribeirão Preto, coordenou um trabalho com
italiano – em três dosagens apresentar mais amargor teiús, lagartos que chegam a ter 1,5 metro de comprimento.
diferentes em três que os de castanheira. O risco ficou por conta do mestrando Fábio Cury de Barros,
momentos distintos – O objetivo do uso do tanino, que fez as vezes de predador dando tapinhas junto à base da
dois dias, oito dias e quatro autorizado pela legislação cauda dos lagartos – o que lhe rendeu algumas mordidas. Os
meses após o esmagamento internacional sobre vinhos, resultados, publicados em janeiro na revista Animal Behaviour,
das uvas. Um grupo de é facilitar a precipitação de mostram que a estratégia de defesa dos teiús varia conforme
14 avaliadores do grupo proteínas em excesso e o tamanho e a temperatura a que estão submetidos. Jovens
de degustação da Embrapa auxiliar na clarificação. com menos de 100 gramas sempre fogem, mesmo quando
Uva e Vinho e enólogos de Há relatos de taninos estão frios e não conseguem correr (neste caso se afastam
usados também para devagar). Já os adultos, de quase 1 quilograma, só correm
melhorar aromas e gostos e quando estão quentes. No frio, compensa mais enfrentar o
estabilizar a cor dos vinhos. predador com uma dolorosa mordida.
BIOLOGIA CELULAR
AUTOFAGIA
PARA A
SOBREVIVÊNCIA
A manipulação da autodigestão
celular inspira novas estratégias
para combater doenças
Carlos Fioravanti
S
omos todos autofágicos – e isso é bom. A todo
momento nossas células se digerem e se renovam,
desfazendo e reaproveitando proteínas, por meio
de um mecanismo biológico chamado autofagia.
Vista antes apenas como um processo de morte
celular, essa forma de autodestruição seletiva de
componentes celulares mostra-se agora como um
artifício de sobrevivência dos organismos – só quando não há
mais conserto possível é que as células se apagam. Como apa-
rentemente pode ser acelerada ou retardada, a autofagia tor-
nou-se uma estratégia nova para combater doenças e prolongar
a vida das células, cujo interior deve guardar tanto movimento
quanto os quadros do artista plástico Jackson Pollock.
De imediato, a autofagia está abrindo perspectivas de apli-
cações novas para velhos medicamentos. Por exemplo, o lítio,
usado para tratar pessoas com transtorno bipolar de humor,
marcado por saltos repentinos da euforia à depressão profunda,
pode ser útil para deter o mal de Alzheimer, uma forma de de-
generação dos neurônios que tende a se agravar com o envelhe-
cimento. A cloroquina, além de aplacar a malária, pode ajudar a
combater tumores. A rapamicina, antibiótico usado para evitar
Jackson a rejeição de órgãos transplantados, prolongou a longevidade
Pollock, de um grupo de camundongos, em comparação com outro
Number 3, grupo, que seguiu o curso normal do envelhecimento.
1949: Tiger “Estabelecer a segurança de usos e acertar as dosagens de
novas aplicações de medicamentos já aprovados é bem mais
fácil do que começar tudo do zero”, argumenta Soraya Sou-
bhi Smaili, professora da Universidade Federal de São Paulo
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PESQUISA FAPESP 168
(Unifesp), à frente de um dos poucos pesquisa já haviam indicado que as morte das células. Sob sua orientação,
grupos de pesquisa nessa área no país. células tumorais podem adquirir re- Eduardo Chiela comparou os efeitos
Cláudia Bincoletto, também professora sistência aos estímulos que induzem à de resveratrol e da temozolomida, um
da Unifesp e pesquisadora da equipe de morte celular. Uma das características dos principais medicamentos usados
Soraya, mostrando por que essa estraté- típicas da célula tumoral é justamente a contra gliomas que, já se sabia, pode
gia de busca de novos remédios poderia capacidade de escapar da morte celular induzir à morte por autofagia. O es-
ser conveniente para países de recursos geneticamente programada. tudo, em fase final de redação, indi-
financeiros limitados como o Brasil, Como a apoptose e a autofagia se cou que o ingrediente da casca de uva
acrescenta: “Drogas novas são muito relacionam, uma estimulando ou frean- (principalmente as escuras) estimula
mais caras que as mais antigas”. do a outra, Massaro adotou a estratégia os dois mecanismos de morte celular,
inversa: acrescentou um composto que a autofagia e a apoptose, em culturas
bloqueia a autofagia, o 3-metil-adenina de células humanas tumorais.
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MIGUEL BOYAYAN
trutura sintética de RNA (ácido ribo-
nucleico) que aciona proteínas específi-
cas e promove autofagia, como descrito
em um artigo de 2009 na revista Cancer
Cell. Tormo trabalha também em sua
empresa nascente, a BiOnco Tech, para
levar adiante o desenvolvimento dessa
molécula, que se mostrou eficaz para
deter o crescimento de tumores de pele,
que com frequência se tornam resis-
tentes a medicamentos, nos primeiros
experimentos realizados em cultura de
células e em camundongos genetica-
mente modificados.
interior
das células
muito mais estudada. “Pode-se dizer gia acionam a produção de proteínas, de grandes bolsas, chamadas vacúolos
que a autofagia antecede a morte ce- que aos poucos se encaixam formando autossômicos, que levam adiante a
lular ou que é cruzada à morte celular, membranas que cercam os componen- transformação de resíduos em matéria-
mas hoje não é mais correto afirmar- tes celulares a serem desmontados antes -prima para moléculas novas. Segun-
mos que a autofagia seja um tipo de de causarem problemas. Em seguida, do Lenz, aparentemente é o número
morte celular”, comenta Soraya. movida por outras proteínas especí- de mitocôndrias eliminadas por esses
Os genes que controlam a autofagia ficas, a membrana se funde com os vacúolos que marca o momento em
começaram a ser identificados em 1997, lisossomos, compartimentos da célula que a célula sai da fase da reciclagem
inicialmente em leveduras, organismos ricos em enzimas que rotineiramente para a da destruição completa. O pro-
unicelulares, empregados na fabricação fragmentam proteínas. blema é encontrar esse limite. Ou, em
de pão, vinho, cerveja e álcool combus- termos práticos, descobrir quantas
tível. A partir dos genes, os especialistas mitocôndrias uma célula precisa per-
conheceram quais são e como intera-
gem as proteínas que levam adiante esse
mecanismo flexível de reciclagem de
componentes celulares. Além de des-
montar o que não está funcionando di-
O s lisossomos digerem proteínas
defeituosas celulares mais lentamente
que outro mecanismo de limpeza celular
der – uma célula possui em média 200
mitocôndrias – para entrar no caminho
irreversível da morte celular.
O conhecimento sobre essa linha
de desmontagem celular, à medida
reito, a autofagia tem outras funções ao chamado proteossomo. Embora mais que encorpava, levantou as primeiras
longo do desenvolvimento das células, lentos, os lisossomos podem eliminar possibilidades, hoje mais concretas, de
nem sempre levando à morte. É neces- estruturas celulares maiores, quando intervir nessa cadeia de reações bioquí-
sária, por exemplo, para as leveduras se danificadas ou deficientes, principal- micas para prolongar a vida das células
reproduzirem e para as larvas de insetos mente as mitocôndrias, compartimen- sadias e reduzir a das tumorais. Em um
se transformarem em pupas. tos celulares que convertem a energia estudo publicado em fevereiro de 2008
“Hoje vemos que a autofagia está obtida dos alimentos em moléculas de na revista PNAS, pesquisadores italianos
mais para sobrevivência e resistência ATP, fundamentais para a manutenção mostraram que o lítio, aplicado durante
do que morte celular”, observa Soraya. das células. Na Unifesp, sob orientação 15 meses em um grupo de 44 pessoas,
“Diante de um estímulo agressor ou de de Soraya, Juliana Terashima irrigou poderia adiar a progressão da esclerose
um defeito celular, a célula pode entrar células com um composto conhecido lateral amiotrófica, uma doença neuro-
em autofagia como uma tentativa de pela sigla FCCF, extremamente tóxico degenerativa.
reparo e só quando não há mais con- para as mitocôndrias. Em resposta, as Um mês antes uma equipe da Uni-
serto é que entra em processo de morte células entraram em autofagia, que, versidade de Cambridge havia mostrado
celular.” Vários estudos sugerem que os uma vez acionada, ajudou a remover na Human Molecular Genetics as possi-
genes e as proteínas que estimulam a as mitocôndrias que haviam sido da- bilidades de uso do lítio e da rapami-
autofagia podem bloquear a apoptose, nificadas pelo composto. cina, combinados, para tratar a doença
ou o contrário, a partir de estímulos Ao participar da linha de desmon- de Huntington, outra enfermidade com
muito bem definidos, estabelecendo as- tagem celular, os lisossomos permitem perda contínua da funcionalidade dos
sim uma conversa cruzada entre esses às células construir novas moléculas neurônios. “A autofagia parece remover
dois fenômenos. mesmo quando não são abastecidas os agregados de proteínas malformadas,
Quando recebem estímulos internos por matéria-prima habitual, vinda que atrapalham o funcionamento das
ou externos, as duas dezenas de genes já dos alimentos. A fusão das membra- células nervosas e estão presentes em
identificados que controlam a autofa- nas com os lisossomos leva à formação doenças neurodegenerativas como a de
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Huntington, Parkinson e Alzheimer”, estimular esse tipo de limpeza celular. “Não acredito que os novos antitu-
observa Soraya. Segundo ela, estudos “Recebendo menos glicose”, comenta morais apenas estimulem a autofagia”,
realizados em seu laboratório com Soraya, “a célula vai produzir menos comenta Lenz. “Seria arriscado. A saída
células de pacientes com Huntington energia pelas vias metabólicas habi- talvez seja algo, como o resveratrol, que
mostraram que estimular a autofagia tuais, mas também produzirá menos possa ter múltiplos alvos e ativar mais
pode retardar o aparecimento da morte resíduos que aceleram o envelhecimen- de um processo bioquímico que leve à
celular por apoptose. to, além de estimular a autofagia, que morte dos tumores, inclusive por au-
Uma célula que se limpou por meio pode remover mitocôndrias e proteínas tofagia.” Mesmo que novos compostos
da autofagia pode viver mais, de acordo malformadas”. não cheguem logo, a capacidade de in-
com um estudo realizado nos Estados Em um artigo publicado em 2006 duzir ou bloquear a morte celular deve
Unidos e publicado na Nature em julho na Cancer Cell, Melanie Hippert, Pa- tornar-se uma característica dos medi-
de 2009. Para chegar a essa conclusão, trick O’Toole e Andrew Thorburn, da camentos em geral, ajudando a explicar
os pesquisadores cuidaram de cerca de Universidade de Colorado, em Den- como atuam no organismo – muitos
3 mil ratos idosos, com uma idade equi- ver, Estados Unidos, reconhecem que medicamentos antitumorais já em uso,
valente a 60 anos em seres humanos. a manipulação da autofagia deve ser por sinal, podem induzir à autofagia.
Administraram rapamicina, composto útil para deter a evolução de tumores Pode ajudar também a retomar mui-
que estimula a autofagia, a uma parte e aumentar a eficiência dos tratamen- tas pesquisas interrompidas. “Fármacos
dos animais e esperaram todos morrer tos contra câncer. O problema é que a que falharam em testes clínicos talvez
naturalmente, de cinco a sete meses de- autofagia tem um papel duplo: pode precisem ser revisitados”, cogita Silvya
pois. Os camundongos que receberam inibir ou favorecer o crescimento de Stuchi Maria-Engler, da USP, “porque
rapamicina apresentaram um tempo tumores, dependendo das circunstân- podem se tornar excelentes se usados
de vida de 28% a 38% maior que os do cias. Por essa razão, a autofagia poderia com outros, capazes de induzir ou ini-
grupo que não recebeu nada. ser estimulada para evitar a formação bir a autofagia”. ■
de tumores em pessoas com risco de
câncer, mas reduzida se um tumor já
E
> Artigos científicos
tiver se estabelecido no organismo.
Depois de encontrar um composto 1. ZAMIN, L.L. et al. Resveratrol and
sse experimento impressionou adequado, o desafio seguinte será defi- quercetin cooperate to induce
pela grandiosidade, já que o número de nir a melhor dosagem, para que apenas senescence-like growth arrest in C6 rat
animais raramente é tão elevado, mas as células tumorais morram. Chi Dang, glioma cells. Cancer Science. v. 100,
sua aceitação não foi consensual – e da Universidade John Hopkins, Estados n. 9, p. 1.655-62. 2009.
2. HIPPERT, M.M. et al. Autophagy in can-
muitos pesquisadores argumentaram Unidos, relatou em janeiro de 2008 na cer: good, bad, or both? Cancer Research.
que os camundongos podem ter vivi- Journal of Clinical Investigation que a v. 66, n. 19, p. 9.349-51. 2006.
do mais por outras razões ou que esse cloroquina, um antimalárico, pode aju- 3. HARRISON, D.E. et al. Rapamycin fed
resultado não é o bastante para associar dar a prevenir a evolução de tumores. late in life extends lifespan in genetically
o controle da autofagia ao prolonga- Ele advertiu, porém, que o uso prolon- heterogeneous mice. Nature. v. 460,
mento da vida celular. De todo modo, gado desse composto, que inibe a au- p. 392-5. 2009.
4. TORMO, D. et al. Targeted activation
os mecanismos de funcionamento da tofagia e estimula a apoptose, pode ter of innate immunity for therapeutic induc-
autofagia tornam-se mais claros. Ou- efeitos colaterais ainda não previstos, já tion of autophagy and apoptosis in melano-
tros experimentos sugeriram que a que o conhecimento sobre o equilíbrio ma cells. Cancer Cell. v. 16, n. 2, p. 103-14.
simples privação de nutrientes pode celular ainda é rudimentar. 2009.
MEDICINA
O veneno
do
remédio
Efeitos nocivos limitam potenciais
usos terapêuticos da curcumina
Salvad or No gueira
A
curcumina, substância encontrada no pó amarelo-
-alaranjado extraído da raiz da curcuma ou aça-
frão-da-índia (Curcuma longa), aparentemente
pode ajudar a combater vários tipos de câncer, o
mal de Parkinson e o de Alzheimer e até mesmo re-
tardar o envelhecimento. Usada há quatro milênios
por algumas culturas orientais, apenas nos últimos
anos passou a ser investigada pela ciência ocidental, com
resultados surpreendentes em alguns casos e alarmantes em
outros. Estudos conduzidos na Universidade de São Paulo
em Ribeirão Preto (USP-RP), interior do estado, indicam que
em dosagem baixa a curcumina previne danos no material Curcuma: usado
genético das células provocados por compostos tóxicos. Em como tempero,
teores elevados, porém, a curcumina pode até matá-las. extrato obtido do
Recentemente a curcumina vem sendo tratada como açafrão-da-índia
panaceia pelos meios de comunicação ávidos por dicas de é rico em
curcumina
saúde. Corante rotineiro na indústria alimentícia, ela está
presente nos mais diversos produtos, de biscoitos a sorvetes,
de sopas a margarinas. Também é a base de condimentos
como o curry. Na Índia, aliás, seguindo a dieta típica do país,
as pessoas chegam a consumir ao redor de dois gramas de
curcumina por dia. Nos países ocidentais, onde a quanti-
dade nos alimentos é bem menor, a expectativa de que a
curcumina possa melhorar a qualidade de vida e prevenir
doenças a transformou num suplemento alimentar.
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Mas alguns pesquisadores alertam: protetor contra o câncer, e só foi dito tentando observar redução de danos
vale a pena levar em conta um velho di- que quanto maior o consumo, maior a na estrutura dos cromossomos e de-
tado segundo o qual a diferença entre o proteção”, afirma Lusânia. “Mas a gente pois na sequência do próprio DNA”,
remédio e o veneno está na dose – uma sabe, pelos dados disponíveis, que não conta a pesquisadora. Os testes foram
adaptação do que teria escrito no sécu- é bem assim.” Pesquisadores da Univer- feitos tanto com células (in vitro) como
lo XVI o médico, botânico e alquimista sidade de Sevilha também alertaram em animais (in vivo) para verificar se a
suíço Paracelso. É basicamente isso que para o risco-benefício da curcumina curcumina, com atividade antioxidante
vêm sugerindo as pesquisas realizadas como agente terapêutico. já demonstrada, também evitaria mu-
pelo grupo de Lusânia Maria Greggi O interesse inicial do grupo de tações no material genético celular.
Antunes, pesquisadora da Faculdade de Ribeirão era estudar o potencial anti- Essas pesquisas iniciaram-se mais
Ciências Farmacêuticas da USP em Ri- mutagênico da curcumina, ou seja, sua de 10 anos atrás e hoje formam um
beirão Preto. “Foi muito divulgado no capacidade de diminuir danos e altera- corpo que justifica o alerta. Nos pri-
final do ano passado, até em programas ções no material genético (DNA) das meiros testes, o grupo de Lusânia usou
de TV, que a curcumina teria um efeito células. “Começamos nossos estudos uma cultura de células de ovário de
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Caso esse esforço seja bem-sucedido, cer de bexiga, a equipe de São Paulo foi ge de entender os mecanismos exatos
deve se tornar possível começar a es- mais longe: realizou uma série de expe- de ação da curcumina”, explica Kátia.
pecular sobre qual seria a dosagem rimentos in vivo, com camundongos. “Por isso mesmo ainda precisamos de
máxima segura para ingestão oral por Os testes mostraram um efeito locali- muitas outras pesquisas.” ■
seres humanos. Hoje os estudos só são zado contra as células cancerosas, sem
capazes de mostrar que, depois de uma danos colaterais nos animais. “Está nos
determinada quantidade, a curcumi- planos fazermos no futuro próximo > Artigos científicos
na faz mal. Mas, como quase todos os testes clínicos com a curcumina con-
testes foram in vitro, não permitem tra o câncer de bexiga, possivelmente 1. MENDONÇA, L.M. et al. Evaluation of
calcular a dosagem ameaçadora para para ser usada como segunda linha de the cytotoxicity and genotoxicity of curcu-
min in PC12 cells. Mutation Research. v.
um organismo. Isso porque a ingestão tratamento”, explica Kátia Leite, pes-
675, p. 29-34. 2009.
de alguns gramas de curcumina resul- quisadora do grupo de Srougi. 2. LEITE, K.R.M. et al. Effects of curcumin
ta em concentrações muito baixas no A vantagem no caso dos tumores de in an orthotopic murine bladder tumor
sangue, medidas em nanogramas, bem bexiga é a facilidade de aplicação direta model. International Brazilian Journal of
menos do que a quantidade a que as da curcumina. É possível injetá-la dire- Urology. v. 35, p. 599-607. Set./Out. 2009.
Ricard o Zorzet to
Universo
A
Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês) divulgou
no final de janeiro uma imagem mostrando a concentração
de galáxias a diferentes distâncias em uma pequena região
do Universo. Cada ponto colorido da imagem (veja ao lado)
Astrônomos e corresponde a um agrupamento com centenas a milhares de
físicos do mundo galáxias – cada uma delas formada por centenas de bilhões de
estrelas e uma quantidade elevada de gás muito quente. São o
todo tentam que os astrônomos chamam de aglomerados de galáxias, as estruturas
desvendar do em equilíbrio de maior dimensão e massa já identificadas no Cosmo.
Calculando o número de corpos celestes que podem existir ali, fica di-
que são feitos fícil imaginar que eles contribuam para compor apenas 4,6% de tudo
96% do Cosmo o que existe no Universo. O restante, na verdade quase tudo, não pode
ser visto. Os outros 95,6% são formados, de acordo com a vasta maioria
dos físicos e dos astrônomos, por dois tipos de elementos descobertos
apenas nos últimos 80 anos: a matéria escura e a energia escura, sobre as
quais quase nada se sabe além do fato de que precisam existir para que o
Universo seja como se imagina que é. Alvo de uma série de experimentos
internacionais que contam com a participação de brasileiros, alguns já
em andamento e outros previstos para iniciar nos próximos anos, essa
forma de matéria e de energia não absorve nem emite luz e, portanto, é
invisível ao olho humano.
Nenhum equipamento em atividade até o momento foi capaz de
detectá-las diretamente. Mas os físicos preveem a existência das duas
em seus modelos de evolução do Cosmo, e os astrônomos inferem
a presença delas a partir de assinaturas que deixam na estrutura do
Universo, identificáveis em imagens como essa produzida pela ESA,
resultado do Levantamento sobre a Evolução Cosmológica (Cosmos)
– esse projeto usa os maiores telescópios em
terra e no espaço para vasculhar uma região
do céu do tamanho de oito luas cheias. Aquarela cósmica:
cada círculo
Foi apenas no último século que a com-
representa
preensão do Universo se complicou tanto. Na um agrupamento
década de 1920 o astrônomo norte-ameri- de galáxias,
cano Edwin Hubble percebeu que o Cosmo as mais próximas
era formado por grandes agrupamentos de em azul e as
estrelas – as galáxias – e que elas estavam se mais distantes
afastando umas das outras. A constatação de em vemelho
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Fase
inicial de
inflação
satélite
Grande WMAP
explosão
a composição da matéria bariônica [a mações obtidas durante anos por meio acordo com esse modelo, a energia es-
matéria comum, composta de prótons, da observação de quasares, núcleos de cura liberaria radiação e se converteria
nêutrons e elétrons, e formadora das es- galáxias muito brilhantes e antigos; em matéria escura – uma consequência
trelas, dos planetas e de tudo o mais que supernovas, estrelas que explodiram e da famosa equação E=m.c2, segundo a
se conhece] e, como as partículas que passaram a emitir uma luz milhões de qual, em determinadas condições, ma-
a formam interagem entre si, não há vezes mais intensa que o normal; e da téria pode se transformar em energia e
motivo para duvidar que também possa radiação cósmica de fundo em micro- energia em matéria.
existir interação entre a matéria escura -ondas, uma forma de energia eletro-
e a energia escura”, afirma Abdalla. magnética produzida nos instantes ini- Interação - Mas não era o suficiente.
Inicialmente Abdalla, Micheletti e ciais após o Big Bang, a explosão inicial Com o físico Luis Raul Abramo, Ab-
Bin Wang, da Universidade Fudan, em que gerou o Universo e o próprio tempo dalla aprimorou o modelo e, dessa vez,
Xangai, elaboraram um modelo rudi- 13,7 bilhões de anos atrás. procurou uma assinatura da interação
mentar no qual descreveram a matéria Mesmo sem determinar o modo co- entre energia escura e matéria escura
escura e a energia escura com proprie- mo a matéria escura e a energia escura nas informações obtidas de 33 aglome-
dades semelhantes às de líquidos e ga- interagiam – apenas supuseram que a rados de galáxias, 25 deles estudados
ses como a água e o ar – os físicos os interação ocorreria –, eles verificaram anos atrás em detalhes por Laerte Sodré
chamam de fluidos, materias formados que, ao resolver essas equações mais e Eduardo Cypriano, pesquisadores do
por camadas que se movimentam conti- as formuladas por Einstein na teoria Instituto de Astronomia, Geofísica e
nuamente umas em relação às outras e, da relatividade geral, obtinham um Ciências Atmosféricas (IAG) da USP.
nesse deslocamento, podem se deformar Universo semelhante ao que se conhe- Em colaboração com Sodré, Abdalla,
reciprocamente. Na construção do mo- ce hoje: em expansão acelerada, com Abramo e Wang usaram três métodos
delo, uma série de equações matemáticas tudo o que existe nele se afastando conhecidos para estimar a quantidade
que tentam descrever o que aconteceu cada vez mais rapidamente, segundo de matéria (massa) dos aglomerados
no passado e predizer o que ocorrerá artigo apresentado em junho de 2009 de galáxias. Se não houvesse interação,
no futuro levou em consideração infor- na Physical Review D. Na interação, de os resultados teriam de ser iguais ou,
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Em 12 bilhões
de anos: sob a experimentos
ação da matéria mais avançados,
escura, gás se que integram a
aglomera e quarta fase da
forma estrelas busca da ener-
e galáxias gia escura e só
(áreas brilhantes),
devem começar
que passam
a se afastar
a funcionar em
empurradas pela alguns anos: o
energia escura do satélite Eu-
clid e o do te-
lescópio de mi-
cro-ondas Square Kilometre Array, a
ser construído na África do Sul ou na
Austrália. “Se for alguma incorreção nas
equações de Einstein, que explicam bem
a atração gravitacional nas galáxias”, co-
mentou Filipe durante uma visita a São
Paulo em agosto de 2009, “esses experi-
mentos nos permitirão saber”. ■
Segredos debaixo
da tinta
Fluorescência de raios X dá acesso
à intimidade de pinturas do século XIX
Maria Guimarães
D
urante mais de um século, a jovem retratada nay por meio de fluorescência de raios X, que revela
pelo pintor Eliseu Visconti no quadro Gio- os átomos que compõem as camadas de tinta, e de
ventú escondeu um estudo para outra obra radiografias computadorizadas. O objetivo central era
de arte do mesmo autor, Recompensa de São caracterizar os pigmentos usados por cada pintor e
Sebastião. A revelação vem do trabalho ar- integrar essas informações num banco de dados que
queométrico da química Cristiane Calza, pes- ficará à disposição de restauradores, conservadores,
quisadora do programa de pós-graduação estudantes de arte e pesquisadores.
em engenharia da Universidade Federal do O trabalho foi possível porque no doutorado
Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ). Em vez Cristiane desenvolveu um sistema portátil de
do estereótipo do laboratório repleto fluorescência de raios X sob medida para
de tubos de ensaio e substâncias fu- analisar obras de arte e arqueológicas. É
megantes, seu ambiente de traba- uma caixa um pouco maior do que um
lho é em meio a obras de arte de livro, que ela pode levar ao museu e
todos os tempos, desde as pin- já carregou até o Peru, para analisar
turas que decoram sarcófagos ouro pré-colombiano. Obras muito
do Egito Antigo até quadros do grandes ou valiosas (o quadro Pri-
século XIX, passando por tangas meira missa, de Victor Meireles, uma
de cerâmica do povo marajoara das obras estudadas pela especialista,
– que ocupou a ilha de Marajó, está segurada em US$ 3 milhões) não
no Pará, entre os séculos V e XIV. podem ser transportadas para labora-
Ao examinar pinturas até o detalhe tórios equipados com o aparelho comum
dos átomos com auxílio das técnicas de de fluorescência de raios X.
fluorescência de raios X e de radiografias, “A técnica não é invasiva e não causa dano
ela põe a nu segredos que se escondem debaixo às obras de arte”, frisa a pesquisadora. O aparelho
da tinta, caracteriza os pigmentos que compunham a lança um feixe focalizado de raios X num círculo de
paleta de cada pintor e aponta retoques e desgastes nas meio centímetro e produz um processo conhecido como
telas, orientando futuros trabalhos de restauração. efeito fotoelétrico: enquanto se movimentam para res-
Convidada a analisar obras do Museu Nacional de tabelecer o equilíbrio, os elétrons também emitem raios
Belas Artes, no Rio de Janeiro, Cristiane – que sempre X, que o equipamento detecta e reproduz na tela do
teve uma queda por arqueologia, história e artes plás- computador na forma de curvas de emissão de energias.
ticas – se apaixonou pela pintura brasileira do século A energia emitida é característica para cada elemento
XIX e acabou por analisar 33 quadros de artistas como químico e, de posse dessa informação, Cristiane pode
Rodolfo Amoedo, Eliseu Visconti e Félix Émile Tau- inferir o pigmento usado naquele ponto do quadro.
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Pedro Américo:
equipamento
portátil
esquadrinha o
quadro Moisés
e Jocabed
REPRODUÇÃO
Eliseu Visconti:
sob a tinta de
Gioventú
(acima), um
esboço de
Recompensa de
São Sebastião
O importante é que alguns pigmentos são reveladores sitos artísticos à base desse pigmento,
da época em que foi feita a pintura. De aparência semelhan- indicando que os quadros foram reto-
te, o que distingue a tinta usada são os elementos químicos cados no século XX.
que a compõem – e que a pesquisadora da Coppe consegue Cristiane caracterizou a paleta de
enxergar. O branco de zinco, usado até hoje, começou a pigmentos usada por oito pintores do
ser produzido no século XVIII, mas só em 1835 chegou a século XIX em 12 quadros. Os resulta-
um preço acessível para a maior parte dos pintores; já o dos já estão aceitos para publicação na
branco de titânio surgiu apenas no século XX. Um ponto revista especializada Applied Radiation
azul analisado por fluorescência de raios X pode revelar a and Isotopes e mostram, por exemplo,
presença de átomos de ferro ou de cobalto, por exemplo. No que Eliseu Visconti e Henrique Bernar-
primeiro caso, o pintor usou o pigmento azul da prússia, delli usaram azul de cobalto, enquanto
criado em 1704; o segundo indica azul de cobalto, em uso Pedro Peres adotou o azul da prússia.
desde 1807. Os pigmentos de ocre não ajudam: desde a E confirmam algumas coisas que já se
pré-história colorem as pinturas rupestres de cavernas e são sabia informalmente, como o fato de
usados até hoje. “São pigmentos baratos, obtidos a partir os brasileiros do século XIX fazerem
de terras argilosas”, explica Cristiane. Outros pigmentos, tons de vermelho misturando vermelho
por outro lado, hoje são proibidos por serem cancerígenos, ocre e vermilion. Saber isso será fun-
como aqueles à base de mercúrio, arsênio e chumbo. damental para que restauros futuros
Na análise, a pesquisadora analisa múltiplos pontos empreguem pigmentos semelhantes
para caracterizar os quadros e evitar que retoques em perío- aos originais, sempre que ainda pos-
dos posteriores levem a erro. “Se virmos grandes extensões sam ser adquiridos.
de um pigmento mais recente do que a data suposta de
produção da obra, sabemos que é uma falsificação”, conta. Camadas expostas - Achados mais
Remendos de rasgos na tela também são reveladores: a tela intrigantes vieram do exame do quadro
é restaurada com uma mistura de carbonato de cálcio, ou Gioventú, que rendeu a Eliseu Visconti
crê, com cola de peixe. Por cima, aplica-se uma camada de uma medalha de prata na Exposição
tinta branca antes de retocar o quadro. A tinta branca ajuda Universal de Paris em 1900. Uma radio-
a datar a restauração, porque alguns pigmentos brancos grafia computadorizada – semelhante à
são muito característicos de determinadas épocas. É o que usada por radiologistas para investigar
revela o branco de titânio que Cristiane encontrou nas telas ossos fraturados em pacientes – revelou
O último tamoio e Busto da senhora Amoedo, pintados por outra pintura oculta pela jovem repre-
Rodolfo Amoedo em 1883 e 1892, respectivamente. De sentada no quadro. É, sem dúvida, um
acordo com artigo de 2009 na X-Ray Spectrometry, só em estudo para outra pintura, a também
1921 entrou no mercado uma tinta adequada para propó- premiada Recompensa de São Sebastião,
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PESQUISA FAPESP 168
CRISTIANE CALZA/COPPE-UFRJ
usado no século XX, misturado com
amarelo ocre. Na vegetação do fundo se
revelam as misturas com que o artista
criou diferentes tons de verde: viridian,
óxido de cromo, amarelo ocre e azul
de cobalto.
Em mergulhos num passado mais
distante, Cristiane já avaliou também
tangas marajoaras e peças egípcias do
acervo do Museu Nacional do Rio de
Janeiro. A cerâmica marajoara é con-
siderada uma das mais sofisticadas re-
presentações da arte pré-colombiana e,
Rodolfo Amoedo:
Estudo de mulher,
pintado sobre
branco de chumbo
Notícias
■ Literatura Tiemi Nagao-Dias, Ana Carla Pereira, Michelly Freitas e Silva
e Janete Elisa Soares Lima, da Universidade Federal do Ceará,
Saudosismo de Gilberto Freyre Eugenie Desiree Rabelo Néri e José Wilson Accioly, do Hospital
Universitário Walter Cantídio.
No artigo “Saudosismo e crítica so-
cial em Casa-grande & senzala: a arti- Brazilian Journal of Pharmaceutical Sciences – vol. 45 –
culação de uma política da memória nº 3 – São Paulo – jul./set. 2009
e de uma utopia”, Alfredo César Melo,
da Universidade de Chicago, Estados
Unidos, procura analisar a retórica de ■ Biologia
Casa-grande & senzala, de Gilberto
Efeitos do pisoteio
REPRODUÇÃO
WWW.JAXSHELLS.ORG/822E.HTM
memória, uma dialética sutil entre lembrança e esquecimento. Biociências da Universidade de São
Paulo, foi aplicado um desenho de
Estudos Avançados – vol. 23 – nº 67 – São Paulo – 2009 blocos randômicos para avaliar
experimentalmente os efeitos de
duas intensidades de pisoteio na
■ Medicina riqueza, diversidade, densidade,
recobrimento e biomassa da fau-
Alergia à penicilina na de um costão situado na praia
do Obuseiro, em Guarujá (SP). Os
O teste cutâneo para alergia imediata à penicilina é o único blocos foram alocados em dois po-
teste validado internacionalmente, sendo que sua grande utilidade voamentos diferentes, dominados,
reside na avaliação de pacientes com história positiva de alergia respectivamente, pela classe de
à penicilina. O teste positivo para determinantes principais e crustáceo Chthamalus bisinuatus (Cirripedia) e pelo molusco
secundários da penicilina apresenta um valor preditivo positi- Isognomon bicolor (Bivalvia, foto). O pisoteio foi aplicado durante
vo de 50% e valor preditivo negativo de 99%. O Ministério da três meses, simulando a temporada de férias no Brasil, e os blocos
Saúde disponibiliza um protocolo para o preparo dos reagentes, foram monitorados nos nove meses seguintes. Os resultados in-
uma vez que eles não estão disponíveis comercialmente. Como dicaram que Chthamalus bisinuatus é vulnerável aos impactos do
esse protocolo não apresenta muitos detalhes sobre o cuidado pisoteio. Estratégias de manejo devem envolver o isolamento de
relativo às etapas de preparo das soluções, os autores do artigo áreas sensíveis, a construção de passarelas, a educação dos visitantes
“Implementation of a penicillin allergy skin test” se propuseram e o monitoramento das comunidades impactadas.
a operacionalizar o teste, avaliando de forma crítica e minuciosa
cada etapa, de forma que outros profissionais possam reprodu- Brazilian Journal of Biology – vol. 69 – nº 4 – São Carlos –
zi-lo de maneira mais segura e eficaz. Os autores são Aparecida nov. 2009
> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no site da Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br
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PAVAN
A contribuição à biologia,
à política científica e
tecnológica
e à difusão da ciência
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PESQUISA FAPESP 168
Pavan ao
volante do Ford
Mercury com
Brito da Cunha
ao lado e
Sophie
Dobzhansky
(atrás) durante
trabalho de
campo no litoral
Pavan em seu
gabinete nos
anos 1950,
no sótão do
departamento,
na alameda
Glete
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PESQUISA FAPESP 168
A institucionalização da pesquisa
Dreyfus, Dobzhansky e Pavan foram importantes para o desenvolvimento da genética
E VANI L D O DA S I LVEI R A
Hampton no Brasil estava concentrado em três centros e didática e, através da sua influência, para a
Carson (esq.) de pesquisa: IAC, Esalq e FFCL da USP. “Po- própria instalação material de seus laborató-
e Edmundo demos dizer que nessa época as pesquisas em rios”, conta.
Magalhães genética no Brasil estavam divididas em duas Segundo Brito da Cunha, a admiração por
(de camisa linhas”, diz. “Uma delas se concentrava no me- Dreyfus e a confiança nele depositada levaram
branca) em
lhoramento vegetal e era encontrada no IAC e Harry M. Miller Jr., da Fundação Rockefeller,
pesquisa de
campo em
na Esalq. A segunda linha, ligada aos estudos não só a trazer para o laboratório da FFCL
Mongaguá, dos animais, basicamente invertebrados, foi Theodosius Dobzhansky, como também a
nos anos adotada pelo grupo da USP.” financiar a compra de equipamentos e a pes-
1950 Nessa segunda linha, um papel de destaque quisa do laboratório. “Dreyfus, Dobzhansky,
coube a Dreyfus. Médico formado pela Facul- seus amigos e colegas Brieger, em Piracicaba,
dade de Medicina do Rio de Janeiro, natural Krug, no Instituto Agronômico de Campinas,
de Pelotas (RS), veio para São Paulo em 1927 e Harry M. Miller Jr. são os primeiros res-
quando foi nomeado assistente na Faculdade ponsáveis pelo desenvolvimento da genética
de Medicina. Era um dos membros do gru- moderna no Brasil.”
po que fundou a USP. Geneticista de cultura
ampla, era menos um pesquisador – embora Tempo integral
tenha publicado trabalhos científicos, inclu- Também colaborou para esse desenvolvimen-
sive em parceria com Dobzhansky – e mais to a adoção do regime de tempo integral, em
um aglutinador e incentivador do grupo que 1947, nas instituições de pesquisa do estado
montou em torno de si no Departamento de de São Paulo. Até então, para sobreviver, os
Biologia Geral da FFCL. professores precisavam dar aulas em diversos
Em um artigo publicado na revista Estudos lugares, o que dificultava as atividades cien-
Avançados, em 1994, Antonio Brito da Cunha, tíficas propriamente ditas. O tempo integral
que foi um de seus assistentes, fala do papel contribuiu para a consolidação da genética – e
dos três anjos da guarda de Pavan na institu- outras áreas também – como ciência estabe-
cionalização da genética no Brasil. “[Dreyfus] lecida. Dreyfus, por exemplo, pôde largar as
recebeu, no seu departamento, docentes de outras faculdades e se concentrar apenas na
vários laboratórios do Brasil e do exterior, FFCL para se dedicar à pesquisa. Por interfe-
contribuindo para a sua formação científica rência da Fundação Rockefeller, que exigia que
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Rhynchosciara o aparecimento de determi- vro Cientistas do Brasil (CNPq, 1998). “Até que
nadas formações em pontos específicos dos verificaram que certos genes se multiplicam
cromossomos politênicos (cromossomos gi- mais do que outros no cromossomo, que isso
gantes que aparecem nas células das glândulas não era exceção e acontecia até no homem.”
salivares da mosca), que cresciam muito, e as As pesquisas com a Rhynchosciara foram
chamou de pufes. “Estudando a formação o ponto culminante da carreira científica de
desses pufes com uma técnica especial, ele Pavan. Antes disso, ele realizou pesquisas com
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foi o bagre-cego, Typhlobagrus kronci, que corpo de um grande número de espécies tro-
vive nas cavernas de Iporanga (SP), sobre o picais”, explica Perondini. “Depois o trabalho
qual escreveu sua tese de doutorado, concluí- progrediu com análises de correlações entre
da em 1944. espécies e ambiente, tamanho da população e
Após o doutorado, o geneticista se dedicou distribuição geográfica dos diferentes grupos
às pesquisas com drosófilas, influenciado por de espécies.”
Theodosius Dobzhansky, que veio a primeira Em meados dos anos 1970, Pavan demons-
vez ao Brasil em 1943. “O grupo do qual Pavan trou interesse por uma nova área de pesquisa.
fazia parte fez um levantamento das espécies Ele sugeriu a alguns cientistas que estavam
nativas de drosófilas de praticamente todo desenvolvendo pesquisas em genética básica
o Brasil”, conta Perondini. “Foi um trabalho que começassem a usar como modelo insetos
muito importante na época em que o estu- de interesse econômico, isto é, que causam da-
do populacional de drosófilas estava ainda nos a seres humanos ou prejuízos à agricultura Drosófilas,
começando.” e pecuária, por exemplo. Assim, até o fim de moscas-de-
Nos anos seguintes, num primeiro mo- sua vida continuou ligado ao laboratório. Em -frutas:
mento, o seu trabalho foi direcionado basica- seus últimos anos, por exemplo, ele voltou sua organismo
mente no sentido de coleção, catálogo e descri- atenção a outro problema biológico de grande modelo para
ção das espécies brasileiras dessa mosca. “Isso importância, o papel das bactérias na fixação pesquisa em
genética
resultou em um detalhamento da descrição do nitrogênio. ■
Influências e desdobramentos
Brasil tem vários grupos trabalhando na fronteira do conhecimento
E DUARD O G ER AQU E
Artigo sobre a amplificação gênica, de 1955, e anotação de Marta Breuer sobre pufes da Rhynchosciara
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Estação Ciência, em São Paulo: um centro interativo para jovens aprenderem ciência
A finalidade era ampliar os auxílios para a pesquisa e camente o ‘dono’ do Congresso – ajudando-nos com
discutir as prioridades e as áreas a serem exploradas os líderes partidários para que nossas proposições
em genética no Brasil. “Tratava-se de um programa fossem aceitas”, disse ele em entrevista. Pavan se or-
integrado no qual se discutia o que estava sendo fei- gulhava de ter concedido mais bolsas no país nos
to, o que havia sido feito e o que deveria ser feito”, três primeiros anos à frente do CNPq do que nos
contou ele em depoimento para o livro 50 anos do 30 anos anteriores. Quando ele iniciou sua gestão,
CNPq contados pelos seus presidentes. eram por volta de 13 mil bolsas por ano; quando
De 1981 a 1984 o geneticista foi diretor presidente saiu, deixou a concessão anual de 44.110 bolsas, no
do conselho técnico administrativo da FAPESP e teve mínimo, estabelecida por lei. A agência federal con-
participação importante na recuperação econômi- seguiu também aumentar seu valor ao vinculá-las ao
ca da Fundação, debilitada pelo atraso no repasse salário de professores das universidades federais. Um
governamental das verbas, que, por sua vez, eram doutorando ganhava 70% do salário do professor-
corroídas pela alta inflação. No mesmo período, por -assistente doutor, por exemplo.
três mandatos, de 1981 a 1986, presidiu a Socieda-
de Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Consolidação
Pavan soube utilizar os dois cargos em instituições Durante a Constituinte, em 1988, o CNPq convocou
importantes que ocupava simultaneamente e sua os pesquisadores para elaborar propostas. Para cada
reconhecida capacidade de mobilização para, jun- trecho que se pretendia inserir na Carta Magna nas
to com professores das três universidades públicas questões de ciência e tecnologia havia um grande
paulistas e pesquisadores dos institutos de pesquisa trabalho de preparação de textos e de convencimento
do estado de São Paulo, promover o simpósio “Crise, pessoal dos deputados constituintes. “As discussões
universidade e pesquisa” na Assembleia Legislativa. mais importantes se referiam à universidade, ao es-
Como resultado da pressão política, o então depu- paço de pesquisa em territórios (como no subsolo e
tado Fernando Leça propôs uma emenda que obri- na Amazônia) e às relações entre produção científica
gava o governo a fazer os repasses em duodécimos e propriedade intelectual”, conta Luiz Curi, chefe de
(mensalmente) no próprio ano da arrecadação. Antes gabinete adjunto e depois assessor especial da presi-
o pagamento deveria ser feito em quatro parcelas dência do CNPq na época de Pavan. Depois da Cons-
anuais, o que ocorria com cerca de dois anos de atra- tituição aprovada, começou outro trabalho: manter a
so. A Emenda Leça terminou aprovada em 1983. “A vigilância e a pressão no momento da definição das
liderança de Pavan foi importante nesse episódio”, emendas orçamentárias, não apenas para evitar que
lembra Motoyama. a pesquisa perdesse verba, mas para garantir dinheiro
O geneticista estava no seu terceiro mandato na para outros projetos.
presidência da SBPC quando foi convidado por Rena- “Pavan consolidou a política de ciência e tecnolo-
to Archer, primeiro ministro do então recém-criado gia no Brasil”, diz Curi. De acordo com ele, também
Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), para assu- deu muita atenção às políticas estratégicas de C&T,
mir a presidência do CNPq, em 1986. Pavan deixou a abrindo espaço para as discussões sobre questões
SBPC e por cinco anos comandou a principal agência relativas à inovação, como novos materiais, quími-
de fomento à pesquisa do país. “Antes disso, ele foi ca fina, informática e necessidade de pesquisa em
um importante apoiador da criação do MCT”, teste- fármacos. “Não foi ele quem realizou tudo isso, mas
munha o presidente da FAPESP, Celso Lafer. passou a lidar com esses temas, que se relacionavam
No CNPq Pavan tratou de recuperar verbas pa- à inovação”, esclarece. “Com Pavan, a política como
ra bolsas e pesquisas agindo não só no âmbito do marco de uma ação de Estado foi aprofundada.”
governo, mas amealhando apoio no Congresso Na- Nos cinco anos que ficou no CNPq, Pavan con-
cional. “Nós tínhamos o Ulysses Guimarães – prati- viveu com cinco ministros de Ciência e Tecnologia
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PAINÉIS CINTILANTES
MURAT OKANDAN/SANDIA
Cultura de
bactéria modificada catalisador para converter que usa uma quantidade
geneticamente o gás em isobutanol. reduzida de DNA, além de
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FUJITSU LABORATORIES
a equipe possibilitou a totalmente feita de
detecção de moléculas de polímero acaba de ser
DNA por meio da passagem inventada por um grupo
delas através de nanoporos de pesquisadores da
de nitreto de silício Universidade de Tóquio,
presentes em uma estrutura no Japão, do Instituto Max
semelhante a um chip. Planck, na Alemanha,
A tecnologia utiliza campos e da Universidade de Linz,
elétricos para colocar longos na Áustria. Esse tipo de
cordões de DNA em memória eletrônica é Futuro
nos transistores
poros de quatro usada em câmeras digitais,
de grafeno
nanômetros de largura pen-drives e tocadores
como se fosse uma de MP3. A nova tecnologia,
agulha passando um fio baseada em transistores O grafeno, material semicondutor feito de folhas de
CIRCUITOS AVANÇADOS
num tecido. Nos orifícios orgânicos, utiliza compostos carbono com apenas um átomo de espessura, é a
são detectadas as bases à base de carbono sobre aposta da empresa japonesa Fujitsu para a produção
químicas que compõem substratos plásticos, finos de circuitos eletrônicos. Esse material é considerado
um gene sem a necessidade e flexíveis. A novidade abre por muitos pesquisadores como o sucessor do silício
de ampliar as moléculas. caminho para a produção quando os limites de miniaturização dos atuais com-
Os pesquisadores preveem de dispositivos eletrônicos ponentes microeletrônicos forem atingidos. A Fujitsu
que o sequenciamento flexíveis como os tocadores conseguiu comprovar a viabilidade de fabricar chips de
de um genoma com esse de música. Os pesquisadores grafeno em escala industrial empregando equipamen-
método passe de 800 para demonstraram que o tos e processos normalmente utilizados pela indústria
8 mil pares de base em protótipo – um conjunto de semicondutores, como, por exemplo, a técnica de
cada molécula de DNA. de 26 por 26 células de deposição de vapor químico em baixa temperatura.
memória – mantém Os pesquisadores da empresa reduziram a tempera-
os dados armazenados
EDUARDO CESAR
APARECEU O MICKEY
OSWALDO ALVES/IQ-UNICAMP
so ou não, a verdade é que
nano Mickeys estão lá e eles
estão sorrindo”, é assim que
o professor Oswaldo Alves,
do Instituto de Química (IQ)
da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), se refe-
re à inusitada figura que apa-
receu em um experimento e
foi identificada por meio de Nanofio com
um microscópio eletrônico nanopartículas
de transmissão. Coordena- de prata e
a figura inusitada
dor do Laboratório de Quími-
ca do Estado Sólido (LQES) e
vice-coordenador do Instituto
Nacional de Ciência, Tecnolo-
gia e Inovação em Materiais das Nações Unidas (Unesco)
Complexos Funcionais, Alves e Agência Internacional
viu as imagens dos ratinhos de Energia Atômica
depois de preparar em uma autoclave nanofios de vanadato > Óptica em (IAEA). Mendonça
de prata (AgVO3) decorados com nanopartículas de prata, uma desenvolvimento ganhou o prêmio de
nanoestrutura com ação antibacteriana quando incorporada a US$ 1 mil e convite para
vários materiais como plásticos, tecidos e tintas. Um close em Um prêmio internacional uma palestra no congresso
uma parte do nanofio revelou a imagem de Mickey Mouse, famo- para pesquisadores com da ICTP que acontece
so personagem de Walt Disney. “Um deles estava direcionado menos de 40 anos que se neste mês de fevereiro na
para a frente e permitiu uma melhor visualização, mas existem destacam pelos estudos Itália. O reconhecimento
outros envolvendo nanopartículas de prata”, diz Alves. O nano na área de óptica em países é pelas pesquisas do
Mickey se perfila ao lado de outras nanofiguras que se formam em desenvolvimento foi professor na área de óptica
espontaneamente como os nanotubos ou são construídas por conquistado pelo professor de pulsos ultracurtos
pesquisadores como nanopinças, nanorrádios, nanocarros e Cleber Renato Mendonça, de laser, que inclui a
nanosseringas. “A diferença é que a fama do Mickey pode con- do Instituto de Física de produção de estruturas
tribuir para popularizar a nanotecnologia, especialmente entre São Carlos da Universidade nanométricas (leia
as crianças”, diz Alves, que contou no experimento com o aluno de São Paulo (USP). O reportagem na edição 165
de doutorado Raphael Dias Holtz e com o professor visitante Prêmio Gallieno Denardo de Pesquisa FAPESP).
Antônio Gomes de Souza, da Universidade Federal do Ceará, 2010 foi oferecido pela
ambos financiados pela FAPESP. Para a ciência, segundo Alves, Comissão Internacional
IFSC-USP
a figura do rato famoso faz surgir novas perguntas. “Ela nos para a Óptica (ICO, na
traz algumas questões inerentes à nanoescala: é o nanomundo sigla em Inglês) e pelo
imitando o macromundo ou o macromundo que imita o nano- Centro Internacional de
mundo? O Mickey é uma imagem acidental? Como podemos Física Teórica Abdus Salam
controlar e entender essa auto-organização? Nós conhecemos (ICTP), com sede em
muito pouco sobre os mecanismos que levam à formação des- Trieste, na Itália, e mantido
ses sistemas. O que sabemos é que repetindo o experimento o pelo governo italiano,
Mickey aparece. Isso é importante porque a reprodutibilidade Organização Cultural,
pode levar à fabricação controlada de sistemas complexos.” Científica e Educacional
Para o professor Oswaldo Alves, o aparecimento do Mickey é
no mínimo curioso e parece anunciar a chegada de sistemas
de nanoestruturas e sistemas de nano-objetos. “Ciência e arte Pulsos ultracurtos
estão novamente de mãos dadas.” de laser moldam objetos
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cruzadas, quando o
dentista, ao manusear os
> Caixinha pinos, leva bactérias para
antimicrobiana a caixa onde estão peças
que serão usadas por outros
> Auxiliar Uma embalagem plástica pacientes”, diz Lygia Madi,
didático para acondicionar pinos gerente de desenvolvimento
para reconstrução de produtos da empresa.
Sobre quatro rodas, o movimento e, por meio de dentes com propriedades A caixa foi desenvolvida
Robodek se movimenta de um software, transmite antimicrobianas que em uma parceria da equipe
suavemente e pode ser útil para o robô a informação”, eliminam bactérias de pesquisa da Angelus
tanto como uma ferramenta diz Antônio Valério Netto, e fungos foi apresentada com pesquisadores
didática em projetos de diretor de tecnologia da pela empresa Angelus, da Universidade Federal de
pesquisa e aprendizado Cientistas. Em janeiro de Londrina, no Paraná, São Carlos e Universidade
sobre programação e já existiam pedidos para o que em dezembro ganhou Estadual de Londrina.
maquinário robótico como robô de seis universidades,
em serviços de segurança como as federais de Sergipe,
ou mesmo para levar carga Campina Grande (PB) e Uma esfera microscópica de polímero, menor que um grão de
de até 10 quilos. Ele é Viçosa (MG). O Robodek sal, capaz de interromper o fluxo de sangue para um tumor é a
uma criação da empresa é fruto de um projeto proposta de pesquisadores do Laboratório de Modelagem, Si-
Cientistas Associados, iniciado em 2007 mulação e Controle de Processos do Instituto de Pós-Graduação
de São Carlos, no interior do programa Pesquisa e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do
paulista, para outra empresa Inovativa em Pequenas Rio de Janeiro. “Interrompido o fluxo de sangue, o tumor morre
são-carlense, a Xbot, Empresas (Pipe) da FAPESP. ou diminui de tamanho”, diz o doutorando Marco Oliveira. A
que fará a fabricação e técnica, chamada de emboliza-
comercialização desses ção, já é utilizada em oncologia
robôs. O conceito do e ganha agora a possibilidade
MINÚSCULAS GUERREIRAS
MARCO OLIVEIRA/COPPE-UFRJ
ENGENHARIA DE MATERIAIS
Requinte sobre a
matéria-prima
Indústria paulista de revestimentos
conquista qualidade com inovações nos
processos e esmaltes especiais
Dinorah Ereno | fotos Eduard o Cesar
O
Brasil tornou-se o segundo maior fabricante mundial de
revestimentos cerâmicos, segmento que engloba pisos e
azulejos, ao atingir a produção de 713 milhões de metros
quadrados em 2008, à frente de tradicionais fabricantes
como Itália e Espanha e atrás apenas da China. Desse to-
tal, 485 milhões de metros quadrados foram produzidos
no estado de São Paulo, sendo que 400 milhões de metros
quadrados, correspondentes a 56% da produção nacional, saíram
dos fornos de empresas do Polo Cerâmico de Santa Gertrudes, que
abrange, além da cidade de Santa Gertrudes, os municípios de Cor-
deirópolis, Araras, Iracemápolis, Ipeúna e se estende por Rio Claro,
Limeira e Piracicaba. “A grande vantagem da região, representada
por 47 empresas do setor cerâmico, está na excelente qualidade da
matéria-prima, uma argila de cor vermelha que é plástica, portanto
fácil de ser moldada, e refratária ao mesmo tempo”, diz o engenheiro
José Octavio Armani Paschoal, especialista em cerâmicas especiais e
presidente do Centro Cerâmico do Brasil (CCB), instituição certifi-
cadora de qualidade criada pela Associação Nacional dos Fabricantes
de Cerâmica para Revestimento (Anfacer).
O fato de a região ter uma argila de primeira linha é uma vanta-
gem indiscutível, mas para que ela chegasse a ocupar um lugar de
destaque no cenário nacional foi preciso um trabalho sistemático de
pesquisa e desenvolvimento realizado por pesquisadores paulistas
com apoio da FAPESP na modalidade Consórcios Setoriais para
Inovação Tecnológica (Consitec). O projeto envolveu desde a escolha
de matérias-primas mais adequadas até a criação de novas tintas e
esmaltes especiais de alta dureza e resistência ao desgaste.
Quando o projeto teve início, no final de 2001, o produto cerâmi-
co para revestimento da região apresentava baixa qualidade técnica.
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“Atualmente, pelo menos 98% de cada A produção de porcelanato – produ- das conquistas contabilizadas ao final
lote produzido se enquadra na classe A, tos cerâmicos especiais que englobam do projeto em agosto de 2009. “Quando
o que significa que as peças não apre- desde pastilhas até peças de grandes di- o projeto teve início, apenas três em-
sentam defeito nenhum”, diz Paschoal, mensões com alto valor agregado usada presas paulistas fabricavam pastilhas de
pesquisador recentemente aposentado em pisos e placas para fachadas de edifí- porcelana, que são peças de pequenas
do Instituto de Pesquisas Energéticas e cios – pelas indústrias paulistas foi uma dimensões para decoração e revesti-
Nucleares (Ipen). Em 1997, no máximo mento”, diz a pesquisadora Ana Paula
50% do que era produzido pelas cerâmi- Margarido Menegazzo, superintendente
cas paulistas podia ser classificado como do CCB e coordenadora de duas linhas
classe A. O restante era classificado como > O PROJETO
de pesquisa no projeto. “Quando foi fi-
classe B – peças com pequenos defeitos nalizado, 13 empresas já fabricavam o
Consórcio setorial da indústria
na superfície – ou C, com defeitos mais de cerâmica para revestimento porcelanato.” O produto divide-se em
graves. Na época, o Brasil produzia 200 do estado de São Paulo: inovação duas categorias: porcelanato técnico, de
milhões de metros quadrados de re- tecnológica e competitividade - altíssima qualidade, que concorre com
vestimentos cerâmicos por ano. Santa nº 01/10783-5 as pedras naturais e não tem esmalte na
Catarina respondia por 70% do total superfície, e o esmaltado.
MODALIDADE
produzido e São Paulo por 30%. “Como Das sete linhas de pesquisa conduzi-
Programa Consórcios Setoriais
a cerâmica tinha um bom preço, mesmo para Inovação Tecnológica das durante o Consitec, três tiveram co-
com as perdas as empresas conseguiam (Consitec) mo foco o porcelanato e contemplaram
se manter.” Uma situação bem diversa da o desenvolvimento de matérias-primas
enfrentada hoje, com todas as indústrias COORDENADOR para fabricação dessas peças, o estudo
fabricando produtos com padrão inter- JOSÉ OCTAVIO ARMANI PASCHOAL – da tecnologia de processo de fabricação
nacional. “Como a margem de lucro ho- Ipen/CCB e a formulação de esmaltes especiais. As
je é pequena, com grande concorrência INVESTIMENTO
outras linhas de pesquisa envolveram
no setor, a empresa corre risco de fechar R$ 586.715,13 (FAPESP) desde inovações na área de ensaios para
se mais do que 2% das peças apresenta- avaliação de produtos, como o desen-
rem defeitos”, diz Paschoal. volvimento de uma metodologia para
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N
a cidade de Pedreira, localizada a 130 quilômetros de
São Paulo, as principais ruas de comércio ostentam
em suas vitrines uma grande variedade de objetos de
decoração feitos de cerâmica, como miniaturas, pra-
tos, copos e pinguins coloridos em vários formatos
e tamanhos também conhecidos como produtos de
louça. “Praticamente toda a cidade vive em função da
cerâmica”, diz o professor Elson Longo, coordenador do Centro
Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos
(CMDMC), um dos 11 Centros de Pesquisa, Inovação e Difu-
são da FAPESP, que desenvolve há quatro anos um projeto de
parceria com 29 empresas do município para que elas possam
produzir peças de melhor qualidade, baseadas no conhecimento
acadêmico, com o mínimo de perdas no processo produtivo. “Co-
meçamos fazendo um controle da qualidade da matéria-prima”,
diz a pesquisadora Shirley Cosin, convidada pelo CMDMC para
coordenar o projeto na cidade de Pedreira e que durante 28 anos
trabalhou na indústria cerâmica.
No início desse processo, por exemplo, as empresas recebiam
a argila com excesso de ferro magnético. “Quando a argila tem
ferro em sua composição as peças ficam com pintas pretas e
com um defeito no centro da peça chamado de coração negro,
Canecas
que só aparece após o processo de queima”, explica Longo, do depois de
Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) secas, antes
de Araraquara. Para avaliar se a argila tem realmente resíduos de irem
de ferro são necessários alguns ensaios feitos no Laboratório para a etapa
Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec) da Uni- de queima
versidade Federal de São Carlos (UFSCar), ligado ao CMDMC. no forno
FOTOS EDUARDO CESAR
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Canecas feitas sob encomenda e outras peças cerâmicas são decoradas com adesivos
ENSAIO MARINHO
A
o longo da costa brasileira, no Pontifícia Universidade Católica do Rio rias. De acordo com o professor Ka-
fundo do oceano, repousam de Janeiro. Fazem parte ainda da Galileu zuo Nishimoto, do Departamento de
grandes depósitos de gás e pe- outras 10 universidades e instituições Engenharia Naval e Oceânica da Poli e
tróleo, principalmente na Re- de pesquisa. coordenador do TPN, com a capacidade
gião Sudeste do país onde tudo A ampliação e modernização do dos flaps de absorverem ondas e não
indica que foram encontradas TPN atende às novas demandas surgi- refleti-las, é possível também simular
grandes reservas na camada das principalmente com o anúncio da condições de mar infinito, como se o
pré-sal. Retirá-los de lá requer estrutu- descoberta de petróleo e gás da camada tanque não tivesse laterais e as ondas
ras flutuantes – plataformas e navios – e abaixo do sal existente no fundo do mar se propagassem sem reflexão. Os flaps,
sistemas submarinos com tecnologia de em 2007. O sistema computacional do ventiladores e outros sistemas permitem
última geração e muito caros. Para saber laboratório ganhou um novo cluster, representar, além de ondas, as principais
se vão funcionar a contento e se o di- um aglomerado de computadores, com condições ambientais que agem sobre
nheiro investido não será perdido, esses 1.792 processadores que trabalham em navios e plataformas marinhas, como
equipamentos antes de serem construí- paralelo. Para abrigar esse novo recur- correntezas e ventos, desde uma leve
dos e lançados ao mar precisam passar so, além do tanque físico, foi erguido brisa até furacões. Além disso, também
por testes de validação em tanques vir- um edifício com uma área construída é possível reproduzir a dinâmica das
tuais formados por computadores e em de cerca 1.600 m² e acomodações para linhas de ancoragem – cabos fixados no
tanques de provas físicos semelhantes mais de 80 pesquisadores. No total, fo- solo marinho que mantêm a plataforma
a piscinas, duas formas de experimen- ram investidos R$ 9,5 milhões, dos quais no lugar – e dos risers, dutos rígidos, de
to que estão reunidas desde dezembro R$ 9 milhões vieram da Petrobras e o aço ou flexíveis, que levam o óleo extraí-
na Escola Politécnica da Universidade restante da Financiadora de Estudos e do até a plataforma de produção.
de São Paulo (Poli-USP). Batizado de Projetos (Finep). Apesar das vantagens, esse tipo de
Tanque de Provas Numérico (TPN), o O tanque físico, chamado de Ca- tanque também tem alguns inconve-
laboratório virtual da Poli existe desde librador Hidrodinâmico (CH-TPN- nientes. Além de custos elevados, ele
2002 por meio de uma parceria com a USP), tem 14 metros (m) por 14 m de tem limitações físicas para simular situa-
Petrobras. Em 2006, o TPN se tornou lado e 4 m de profundidade e é dotado ções que ocorrem em ambientes com
um dos quatro nós da Rede Temática de de geradores e absorvedores de ondas grande profundidade, não permitindo
Computação Científica e Visualização, (flaps). No total são 148 deles, dispos- reprodução fiel da dinâmica de todo o
conhecida como Rede Galileu – os ou- tos ao longo de todo o perímetro do sistema. Para melhor representar condi-
tros três estão nas universidades fede- tanque, em que é possível criar ondas ções em ambientes com profundidades
rais do Rio de Janeiro e de Alagoas e na multidirecionais, regulares ou aleató- ao redor de 3 mil metros ou mais seria
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necessário um tanque de dimensões in- opção por esse sistema foi feita em 2002 desafio, porque elas sofrem deformações
viáveis fisicamente. Ou os modelos das quando foi criado o TPN. “Decidimos e podem colapsar a coluna de perfura-
embarcações e das plataformas ficariam que, em vez de investir em supercom- ção”, explica Nishimoto. “Para cada poço
tão pequenos que comprometeriam a putadores especializados, o melhor seria é preciso criar um modelo numérico,
representação física e a análise em escala desenvolver um cluster com desempe- que simule as condições do mar, do solo
real. Para superar essas limitações exis- nho semelhante e a um custo muito e calcule a dinâmica das embarcações
tem os tanques virtuais ou simuladores menor”, conta Nishimoto. Hoje a capa- envolvidas na exploração.”
numéricos, que é o caso do TPN. Tra- cidade de processamento do TPN é de Os testes realizados no TPN geram
ta-se de um programa computacional 55 teraflops, o que significa 55 trilhões uma quantidade de dados tão grande
capaz de representar matematicamente de operações matemáticas por segundo. que é quase impossível analisá-los por
as mesmas condições geradas por um Só para comparar, os computadores pes- processos convencionais. Para resolver
tanque de provas físico, com a vantagem soais mais velozes existentes não chegam esse problema foi criado o TPNView,
de não haver as restrições dimensionais a 0,1 teraflops. Flops significa floating um programa de computador de visua-
e obter os resultados com maior rapidez point operations per second ou operações lização, baseado em técnicas de com-
e precisão. Além disso, o simulador nu- de ponto flutuante por segundo. putação gráfica em tempo real, que
mérico calcula a dinâmica das unidades As simulações realizadas no TPN possibilita uma representação precisa
flutuantes, dos esforços e tensões nas serão fundamentais para o sucesso da do ambiente em realidade virtual. Ele
linhas de amarração e nos risers. exploração das reservas petrolíferas alia a visualização em três dimensões
da camada pré-sal, segundo Luiz Le- (3D) e ferramentas de análise de dados
Tarefa veloz - O cluster de computado- vy, gerente de métodos científicos do como estatísticas, gráficos e diagramas.
res é capaz de realizar centenas de simu- Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Apesar da sofisticação do TPN, ele não
lações de diversas condições ambientais (Cenpes) da Petrobras. “As reservas estão substitui o tanque de provas físico. Um
em questão de minutos. Nishimoto ex- muito longe da costa e em grande pro- complementa o outro e é justamente es-
plica que um cluster de computadores é fundidade, o que torna um desafio sua se trabalho conjunto que torna o labora-
um agregado de processadores dedica- exploração”, diz. “No TPN será possível tório da USP raro no mundo. “Existem
dos, que resolvem uma tarefa única de realizar uma série de cálculos e simula- muitos tanques físicos na Noruega, na
forma cooperativa e integrada. Assim, as ções.” Além das simulações convencio- Holanda e no Japão, porém não existe
operações de cálculo são subdivididas e nais da exploração de óleo e gás, a Rede um laboratório que acople tanque físico
distribuídas por todos os processadores Galileu também poderá representar os com numérico com cluster do porte de
que compõem o grupo, tornando a re- processos de perfuração das camadas de 55 teraflops. Assim hoje o TPN torna-se
solução dos problemas mais rápida. A sal. “Perfurar essas camadas é um grande único no mundo.” ■
Nas entranhas
da invenção
Projeto recupera trajeto da criação de Mário de Andrade
Carlos Haag
‘I
sso corria o mês de abril. Peguei um res- vulgada em um banco de dados, um catálogo
to de caderno em branco, e na letrinha analítico (catálogo raisonné) dos manuscritos
penteada dos calmos começos de livro literários e um índice dos títulos de todas as
comecei escrevendo. Mas logo a letra áreas, acompanhado de uma cronologia da
ficou afobada, rapidíssima, ilegível para criação e da publicação. “A novidade do catá-
os outros, frases parando no meio com logo é que se tenta montar o trajeto de cria-
ortografias mágicas em que tanto eu bo- ção. Os pesquisadores vão poder examinar o
tava um ípsilon na palavra ‘caderno’, como um manuscrito no fac-símile e vão contar com a
hífen em ‘jardim’, eu escrevia com fogo. Tudo trajetória montada no dossiê, bem como com
vinha dócil, pressentido com ardor apaixonado, as notas de pesquisa que justificavam os ca-
numa adoração de mim, da minha possível in- minhos tomados na organização e todas as
teligência, como poucas vezes me tenho gozado outras informações encontradas”, avisa Telê.
assim tão fácil nesta vida”, descreveu Mário “Será um celeiro de pesquisas.” A classificação,
de Andrade (1893-1945) sobre seu processo no catálogo e no índice, prolonga-se na pro-
criativo. Como seria igualmente fácil a vida dos dução de cópias em fac-símile escaneadas e na
REPRODUÇÕES DO LIVRO A IMAGEM DE MÁRIO; FOTOBIOGRAFIA DE MÁRIO DE ANDRADE/MÁRIO, 1938
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É
tempo, continua o pesquisador, Mário nas cartas, porém, que o escritor para criar música, da mesma forma que
atuou diretamente sobre o processo de inspira os amigos a criar. Numa se usavam palavras para criar versos.” O
criação de artistas como Di Cavalcanti, delas, conta a pesquisadora, ar- temático vai igualmente recuperar um
Brecheret, Mignone, Guarnieri, Anita ranja uma forma bastante peculiar de diálogo perdido nas cartas. Sempre que
Malfatti, Cícero Dias, entre outros. “Ele “arrancar” de Villa-Lobos as Cirandas recebia cartas com informações para
e os artistas plantam no terreno da carta “de caso pensado, sabendo que ia dar o seu Dicionário de música, nos anos
a expressão essencial de seu trabalho, certo”, usando como argumento um 1930, o escritor colocava a correspon-
desenhos como expressão lúdica e esbo- compositor chileno, Humberto Al- dência na seção de manuscritos em vez
ços de obras em processo ou concluídas, lende, compositor das Doze Tonadas, de na de cartas, já que essas entravam
desejando compartilhar o trabalho de melodias populares para piano, feitas no processo de criação. Agora esse fluxo
invenção e, ao mesmo tempo, aspiran- para serem tocadas por alunos. será restabelecido.
do a eventuais sugestões do amigo que “Sei que isso é bem elementar para Por fim, a marginália dos livros co-
muitas vezes atuou como crítico de arte você e nem ousaria pedir algo assim pa- mo manuscrito. “O que se percebe é
na imprensa. A carta torna-se território ra um compositor da sua estatura, mas um diálogo, já que leitura anotada, um
da criação e o processo de autoria se es- nem imagino quem no Brasil, além do movimento na pesquisa do artista que
facela na criação a quatro mãos na troca nosso grande Villa, seria capaz de com- se desenrola em consonância com suas
de experiências, versos, ideias etc. Isso por algo no estilo do Allende.” O peixe obsessões, subentende crítica, seleção
é totalmente moderno e o instrumento musical morde a isca e em breve saem e assimilação. A marginália em Mário
são as cartas”, diz Marcos. as Cirandas nos moldes desejados por é seara e celeiro convivendo paralelos
Mas, polígrafo exemplar, o arquivo Mário, cujo nacionalismo, na contra- ou fundidos nos arquivos da criação”,
de Mário também guarda a sua paixão mão do de Villa, preconizava melodias analisa Telê. “As notas marginais au-
pela música com partituras anotadas, mais folclóricas, como as das Cirandas, tógrafas fazem parte do percurso do
cartas a compositores, textos sobre algo que era difícil de se arrancar do universo da criação de outros textos e,
crítica musical, entre outros manus- compositor carioca. O diálogo era mui- na medida em que se enquadram no
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T
udo isso não passaria de mera in-
vestigação fria e impessoal se não
servisse ao autor e a seus leitores.
Para tanto há a bela história de Os con-
tos de Belazarte, que revela a necessida-
de de acompanhar a criação sempre em
movimento de Mário, nunca termina-
da com seus muitos e infindos exem-
plares de trabalho. Em 1968, em ple-
na ditadura militar, Valentim Faccioli,
estudante de direito e revisor de uma
editora, viu um livrinho cor de vinho
calçando a mesa em que trabalhava.
Ao pegá-lo viu que era um boneco de
Belazarte (que, entre outros contos,
trazia “O besouro e a rosa”) cheio de
anotações feitas a lápis que julgou feitas
pelo autor. Preso, perdeu o emprego e
abandonou a universidade. Anos mais
tarde, já professor da USP, resolveu en-
tregar o livrinho para o IEB-USP, que,
agora se sabe, é um documento impor-
tantíssimo, um exemplar de trabalho
com anotações de Mário de Andrade.
Para felicidade do escritor, as correções
chegaram em tempo. ■
Mário em foto de
1932: corrigindo suas
obras sempre
MÚSICA
Muito além da
vitória-régia e do vatapá
C
om boa dose de raivosa ironia, sempre citado como um gigante da mais livres e, em 1923, o grande marco
Mário de Andrade desancava música do século XX, mas nunca me- foi a viagem a Paris, onde estabelece um
certo tipo de brasileirismo receu o cartão VIP dos compositores diálogo com a música dos modernos,
musical que via permeado de seminais, como Stravinsky, Schoen- em especial com Stravinsky. A tercei-
“sensações fortes, vatapá, jaca- berg, Varèse ou Messiaen, que geram ra fase, nos anos 1930, é a da volta ao
ré, vitória-régia”. Infelizmente teorizações e reverberam na linguagem Brasil, quando, aparentemente para ga-
para muitos, o interesse pela dos compositores do século XXI. Em rantir a sobrevivência, em pleno regime
música de Heitor Villa-Lobos (1887- geral, Villa-Lobos é o filho da nature- varguista, o compositor incorporou a
1959) estaria justamente na proximi- za, que cavoucou a terra e encontrou o imagem que se queria dele como um
dade com que o compositor, pleno de talismã da identidade nacional, que o símbolo da cultura brasileira. A partir
ritmos e melodias, teria chegado dessa tornou maior entre os maiores de uma de 1948, a fase final, quando recebe o
exótica mistura, aparentemente uma arte que intuímos ser importante, mas diagnóstico do câncer, Villa, para fa-
receita tipicamente brasileira que ele que ainda não nos pertence”, concorda zer frente às despesas crescentes com
dominaria bem com sua genialidade o violonista Fábio Zanon, professor do tratamentos de saúde, passa a atender
intuitiva de arrancar da terra o que era Royal College of Music e autor de uma encomendas e a se apresentar nos EUA
nacional. “É preciso rebater a ideia de recém-lançada biografia do composi- e na Europa.
que o maior ou o único mérito da obra tor. Efetivamente, enquanto seus con- Tantas fases e tantas mudanças não
musical de Villa-Lobos esteja em seu temporâneos merecem análises infin- seriam uma tarefa de amador, tampou-
caráter nacional, identificável pela uti- das, Villa ganhou um lugar periférico co de um autodidata casual. “Quem vê
lização de melodias folclóricas e even- em que figura como caso exótico, um Villa como um compositor de pouca
tuais usos de ritmos e instrumentos de latino-americano cuja intuição teria técnica, que comporia sua música tal
música popular brasileira. Outro ponto levado às vezes a resultados sublimes, qual a anarquia idealizada de selvas tro-
importante é demonstrar que as qua- mas quase sempre desiguais. “Ele, po- picais, que teria pouquíssimo domínio
lidades de certas obras do compositor rém, teve várias mudanças de estilo em da forma e das estratégias composicio-
não são resultados de mero casuísmo, sua vida que deixam entrever não um nais da tradição, parte de uma visão
mas de um labor composicional sinto- ‘dândi tupiniquim’, mas um compositor quase sempre baseada em gagues plan-
nizado com os problemas importantes que se autoimpunha uma pesada carga tadas pelo próprio Villa-Lobos, ou que
no tempo em que foram compostas e de trabalho e estudo, o que contradiz simplesmente tentam fundamentar-se
que ainda instigam os músicos de ho- o mito em torno de seu autodidatismo em uma falta de conhecimento quan-
je”, observa Paulo de Tarso Salles, da e facilidade, no mau sentido, de inven- to às obras e aos compositores com os
ECA-USP, autor de Villa-Lobos: proces- ção”, analisa Salles. Entre 1900 e 1917, quais a música de Villa-Lobos dialoga-
sos composicionais (Editora Unicamp, temos o jovem compositor em sua fase va”, avalia o compositor e pesquisador
264 páginas, R$ 50). inicial adotando modelos franceses e Sílvio Ferraz, da Unicamp. “Seus diá-
“Villa-Lobos é muitas vezes consi- wagnerianos, buscando ser reconhecido logos foram marcados por encontros:
derado como o ‘maior compositor das pelos músicos e críticos brasi- Bartók, Varèse, Milhaud,
Américas’, mas esse rótulo ainda carece leiros. A partir do contato em Revueltas. Todos defensores
Compositor
de substância, pois sua obra tem um 1917 com o compositor Da- em seu labor: de uma estética musical de
mérito maior do que o mero exotismo rius Milhaud, a cantora Vera diálogo com cunho experimental. Villa
e trouxe real contribuição à música do Janacopoulos e o pianista Ar- os grandes dialogava com esses com-
Ocidente, embora poucos estudiosos thur Rubinstein, todos no Rio nomes positores que, por sua vez,
se debrucem efetivamente sobre essas de Janeiro, a música de Villa musicais do traziam, assim como ele,
questões”, avisa o pesquisador. “Ele é apresenta formas e estruturas seu tempo muito da força musical dos
A
ntes de mais nada, é preciso reco-
nhecer que a melodia, nota o pes-
quisador, é um item secundário na
composição villa-lobiana, uma questão
complicada num país com uma tradi-
ção tão forte na canção popular, em que
a linha melódica é tão importante. Daí o
primeiro processo com as transforma-
ções obtidas a partir de simetrias, que se
tornam progressivamente assimétricas
ou balanceadas pela ocorrência de “aci-
dentes”. Essas transformações ocorrem
como resultado da superposição entre
“figura” e “fundo”, com a funcionalida-
de da figuração melódica interagindo
sobre um fundo textural mais ou menos
estático. A melodia villa-lobiana tem
um papel “acidental” de transformação
da textura. Assim, a música de Villa ga-
nha uma implicação notadamente tex-
Villa na povos de seus países. Que força seria tural, ou seja, todos os componentes da obra geram uma
dedicatória essa? Não aquela que se imita facil- sonoridade indivisível, um universo de timbres que são
a Mário de mente, numa simplificação melódica agregados sem uma hierarquia preestabelecida. “As ciran-
Andrade avisa à qual muitos acabaram por ceder, das para piano ilustram soberbamente essa questão: nelas
que não é mas a força sonora, a força inventiva as melodias folclóricas não são ‘harmonizadas’, mas sim
samba, mas desses povos, no modo de cantar, de inseridas em um ‘ambiente sonoro’ que lhes confere um
Bach tocar um instrumento e na maneira sentido retórico, metafórico.” Esse conceito de ambiente
como a música é feita com aparente sonoro, continua Salles, é constantemente afirmado em
facilidade e rapidez. Villa foi um com- suas obras sinfônicas, nas suas densas orquestrações. “Em
positor genuinamente brasileiro, no sentido de que teve Uirapuru se descortina qual o recorte do compositor: não
de inventar o Brasil musical que lhe cabia.” Daí o aspecto se trata de uma reprodução naturalista da melodia ca-
acumulativo e não excludente da pesquisa de Salles, que racterística do pássaro. O ‘canto do uirapuru’ criado por
revela ainda mais a riqueza musical do compositor. “Não Villa é uma melodia abstrata, um ‘hiperpássaro’. O que o
pretendi substituir a já tão bem conhecida apreciação atraiu foi a série simétrica de intervalos que é submetida
da identidade nacional presente na obra de Villa-Lobos. a vários processos de alargamento e distorção. Villa se
Meu objetivo foi apenas complementá-la com mais um comprazia em tornar assimétrica a cuidadosa simetria
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No Choros nº 8, obra sinfônica que, nota o pesquisador, ssa imagem ficou tão forte que mesmo músicos foram
Stravinsky poderia ter assinado, Villa usou 36 ostinatos, consumidos por ela e taparam os ouvidos diante da
os quais são superpostos, justapostos, montados e des- música de Villa-Lobos. Foi o caso do compositor
montados para gerar adensamentos texturais. vanguardista e pesquisador da USP Willy Correa de Oli-
“Desse modo pode-se perceber que a música de Villa veira, antigo detrator de Villa, que apenas recentemente
dialogava com a de seus contemporâneos, como Stra- voltou atrás em suas críticas ao “nacionalista sem valor”
vinsky, Bartók, Varèse, por exemplo. Todos eles operavam para, hoje, ver o autor de Uirapuru com olhos renovados.
num território ainda inexplorado dos sons, acima e além “Pensar Villa como compositor nacionalista é reduzi-lo.
dos manuais de composição formal de seu tempo”, afirma É pensar tacanho, reacionário: mesquinhamente fim de
Salles. “É preciso escutar um Villa-Lobos muito além da século XIX. Revela ignorância ou avaliação incorreta
apreensão de suas melodias ou dos ritmos sincopados dos de sua obra. Autêntico compositor do século XX, Villa-
chorões, elementos superficiais que dão a ele cor local, -Lobos foi homem do seu tempo, como Ives, Schoenberg,
mas não são os aspectos mais instigantes de suas obras. Stravinsky, Bartók, Webern. O arrojo de Villa na con-
A série de Choros, por exemplo, é uma ampliação de fecção de imagens abstratas em movimento é de tal im-
possibilidades sonoras latentes em toda a música popular portância que se pode emparelhá-lo com o Schoenberg
brasileira, não apenas a partir de parâmetros como altura maduro, com o último Scriabin, com Debussy, Varèse
e ritmo (melodia), mas essencialmente do timbre e de e até Webern. Para gaúdio de todos, Villa consta de um
todas as propriedades atreladas a esse aspecto tão com- programa ideal, possível, focando a música do século XX
plexo do som como afinação, ressonância, difusão etc.”. no que houve de mais criativo, efetivo: em um mundo
O mesmo aconteceu com as Bachianas, observa Salles, sem língua musical erudita falada, onde cada voz fosse
que deram a Villa o rótulo de “fértil melodista” e pra- um testemunho necessário do homem como ser criador,
ticamente sepultaram o interesse especulativo por suas sobrevivendo em ambiente adverso, hostil, agressivo.”
criações. “Villa-Lobos não foi menos inquieto e capaz do Foi com ele que o Brasil entrou, pela primeira vez, na
que outros compositores em buscar e encontrar soluções música do século XX e, desde então, pouco se aventurou
interessantes para os problemas de composição musical por esses caminhos, já que o compositor não deixou
que não se enquadram apenas na questão de identidade “herdeiros” musicais. “As novas gerações de compositores
racial. Sendo brasileiro, foi tachado prematuramente de têm muito a aprender com os procedimentos técnicos de
‘ingênuo’ por ter tido a audácia de se lançar a uma aven- suas obras”, nota Salles. “Villa criou uma possibilidade
tura criativa sem precedentes e sem um manual escrito de música brasileira, em vez de ser criado por ela. Ele
por um europeu. A América Latina por essa ótica está ‘tornou-se’ folclore”, completa Zanon. ■
BRASIL À FRANCESA
Os anos brasileiros, entre as décadas de 1930 e 1940, marcaram
a vida e a obra do historiador francês Fernand Braudel
Joselia Aguiar
‘P
ara quem se via acuado entre a historiografia con- adotivo e o jovem se uniram para criar O Mediterrâneo e
vencional, a vulgata marxista e o sociologismo, as raízes de uma nova forma de fazer história. “Se os no-
Braudel foi uma autêntica libertação. Ali estava vos leitores não perceberem com nitidez a novidade que
finalmente um historiador que nem tinha o ranço a obra representou em sua época, isso talvez se deva, de
de uma nem o reducionismo da outra nem o dou- certo modo, ao fato de o próprio Braudel ter influenciado
trinarismo do terceiro; e que, munido dos instru- sucessivas gerações que aderiram à Escola dos Annales, da
mentos da erudição mais recente, era capaz, como qual fez parte. Uma escola que renovou a historiografia,
os grandes historiadores do século XIX, de dar corpo, alma aproximando-a das ciências sociais, e fez surgir novos
e vida a largas fatias do passado”, escreveu o historiador temas e horizontes. Tratava-se, naquele tempo, de um
pernambucano Evaldo Cabral de Mello. O elogio dá uma tipo de narrativa histórica incomum.”
noção do encantamento que gerações experimentaram Ao iniciar o doutorado, o período escolhido por Corrêa
há cinco décadas com a leitura de O Mediterrâneo, obra Lima foi justamente dos anos brasileiros de Braudel, deci-
monumental de Fernand Braudel (1902-1985) e do peso sivos para toda sua obra. Foi nessa época, por exemplo, que
da influência do historiador francês. O que poucos sabem elaborou parte do mesmo O Mediterrâneo. A tese de Corrêa
é que o seu pensamento, incluindo-se a criação dessa sua Lima investiga desde a chegada das missões francesas que
obra máxima, foi gestado durante sua estada no Brasil contribuíram, nos anos 1930, para a fundação da USP até o
durante os anos 1930 e 1940. Essa temporada tropical de período imediatamente posterior à volta para a França, em
Braudel é o tema do estudo do historiador Luis Corrêa que esteve por cinco anos numa prisão nazista. “A França
Lima, paulista, radicado no Rio de Janeiro, da PUC-RJ, era considerada a líder da latinidade e a sua cultura, o
autor de Fernand Braudel e o Brasil – Vivência e brasilia- caminho seguro da modernidade e do progresso verda-
nismo (1935-1945), recém-lançado pela Edusp, resultado deiro. Oferecia simultaneamente tecnologia e humanismo,
de sua tese de doutorado pela Universidade de Brasília laicidade e religião. Por isso acreditava-se que a França
(UnB), em que analisa justamente o impacto que o país poderia nos salvar da ‘barbárie’ de uma civilização mera-
teve sobre o intelectual francês e vice-versa. mente industrial. Os conflitos ideológicos naquela época
“Para ele, foi uma mudança de perspectiva. A partir do eram bastante fortes, e a presença francesa correspondia ao
contato com a sociedade brasileira e sua história, Braudel projeto da elite paulista de educar a juventude nos ideais
conseguiu imaginar a Europa do Antigo Regime”, expli- democráticos, longe do fascismo”, explica Corrêa Lima.
ca o pesquisador. “Além disso, ele foi muito importante Entre as dificuldades da empreitada, houve a própria
para o Brasil e para a USP, pois ajudou a formar toda a vastidão da obra de Braudel a ser lida: como exemplo,
segunda geração de professores da universidade.” País considere-se que seus dois livros principais somam cinco
O jovem
Braudel em
foto tirada
quando de
sua estada no
Brasil
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volumes e mais de 3 mil páginas. A tanto, o fazia imaginar o passado dis- e não se deixa aprisionar em uma fór-
segunda, conforme Corrêa Lima, foi tante da Europa. “Foi no Brasil que ele mula”, acrescenta.
quanto à questão específica que que- ‘vestiu a camisa’ da renovação historio- Depois da Segunda Guerra Mundial,
ria pesquisar: Braudel e o Brasil. “Será gráfica preconizada pelos Annales, com ao finalizar sua tese, Fernand Braudel
que haveria material suficiente para se um conjunto de intuições que confi- foi autorizado a substituir a tese secun-
escrever uma tese? Ou o assunto se esgo- guraram o seu Mediterrâneo e fizeram dária por dois artigos já publicados so-
taria em um capítulo ou pouco mais?”, dele um grande historiador, ao mesmo bre os espanhóis na África do Norte. E
perguntava-se. Tal dúvida lhe provocou tempo original e herdeiro de Lucien Fe- foi assim que o ensaio sobre o Brasil
angústia por muito tempo. A terceira bvre”, argumenta Corrêa Lima. do século XVI permaneceu inacaba-
dificuldade foi o acesso aos arquivos do. Pouco a pouco, seus interesses de
de Braudel na França. “Foi uma longa Coroas - Quando aqui esteve, entre pesquisa se voltaram para o conjunto
espera até que as portas se abrissem”, 1935 e 1937, Braudel elaborava sua te- da América Latina, e mais tarde para
conta. Entre as felicidades, houve a de se de doutorado sobre o Mediterrâneo a história mundial da vida material e
encontrar documentos inéditos, conser- no tempo de Filipe II. A obra o ocupou do capitalismo. Desse modo, ele nunca
vados pela viúva do historiador, então por aproximadamente 20 anos. Como mais retomou o ensaio. Braudel pen-
com 87 anos, em seu apartamento em exigência da universidade francesa, era sava que, para terminá-lo, precisaria
Paris. Como resultado, a obra de Corrêa preciso também preparar uma tese se- consultar os arquivos de Portugal, que
Lima se concentra particularmente em cundária, na qual o material pesquisado na época não estavam organizados.
anos que são pouco abordados nas duas na pesquisa principal poderia ser reuti- Em seu período brasileiro, Brau-
maiores biografias do autor, escritas lizado. Escolheu, então, estudar o Brasil del conviveu com intelectuais, formou
por Pierre Daix, na França, e Giuliana do século XVI, que chegou a fazer parte historiadores e até hoje fomenta novas
Gemelli, na Itália. do reino de Filipe II quando da união leituras e pesquisas. Com três grandes
Discreto, pesquisador incansável, das coroas ibéricas. amigos manteve a correspondência:
com fama de excelente professor, Fer- Na historiografia de Braudel, como João Cruz Costa e Eurípedes Simões de
nand Braudel iniciou sua trajetória co- explica Corrêa Lima, certas realidades Paula, professores da USP, e o jornalista
mo historiador no final dos anos 1920. coletivas ou inanimadas atuam de mo- Júlio de Mesquita Filho. Como discípu-
Nas duas décadas seguintes viveria fora do coerente como se fossem um sujeito: las, destacam-se Alice Canabrava, Cecí-
da França. De início, parte para a Argé- tornam-se “personagens”. Isso se dá, por lia Westphalen e Maria Luíza Marcílio.
lia, onde o mar lhe provoca a primeira exemplo, com o mar Mediterrâneo, que Durante o regime militar, empenhou-
grande inspiração. O acaso o traz ao se transforma em personagem em sua -se em libertar da prisão seus amigos e
Brasil: o suicídio de um professor titu- história da Europa, e também com a conhecidos. Braudel usou seu prestígio
lar que já havia sido nomeado para o imensidão do Brasil, seus fatores geográ- internacional como intelectual francês e
cargo. Traz tanto material de pesquisa ficos, imprescindíveis para compreen- escreveu cartas aos presidentes militares
que, ao se instalar em São Paulo, precisa der sua história. “Braudel escolheu uma brasileiros. Assim, como conta Corrêa
alugar um outro quarto de hotel. perspectiva bem definida para focalizar Lima, ele conseguiu tirar da cadeia Caio
Dizia Braudel que “se tornou in- o Brasil: uma Europa americana, ou seja, Prado Jr., Milton Santos, João Cruz Cos-
teligente” quando conheceu o Brasil. uma civilização europeia na América. E, ta e Yedda Linhares. Aos alunos, futuros
Para entender tal afirmação é preciso, de modo especial, a única Europa tropi- professores, recomendava simplicidade,
antes, conhecer aquilo que caracteriza cal e subtropical em todo o mundo com que resulta de clareza.
sua obra: trata-se, como destaca Corrêa certa envergadura”, afirma o historiador De volta à França, Braudel foi um
Lima, da busca da longa duração, ou brasileiro. dos responsáveis pela divulgação da
seja, das permanências e das realidades Tal perspectiva fez Braudel lançar obra de Gilberto Freyre. Contribuiu
duradouras nos processos históricos, outro olhar sobre o passado brasileiro com pesquisadores como a historiadora
tanto nas relações do ser humano com e, desse modo, captar as interações do greco-baiana Katia de Queiros Mattoso,
o meio quanto nas formas de vida co- país com o oceano. Braudel, porém, que assumiria pela primeira vez a cáte-
letiva e nas civilizações. No Brasil ele cedeu em parte a um etnocentrismo dra de história do Brasil da Sorbonne,
encontrou um país novo, de dimensões inaceitável, diz Corrêa Lima. “De qual- e o etnofotógrafo Pierre Verger, que
continentais e natureza tropical, uma quer maneira, ele teve a humildade e a dedicou ao historiador a sua tese Fluxo
sociedade em formação contrastando grandeza de reconhecer que a história e refluxo e teve nele seu grande incenti-
com o Velho Continente, que, no en- brasileira, como toda a história, é vida vador na volta à academia –Verger havia
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ROGER VIOLLET/AFP
no Brasil conviveu com
intelectuais, formou
historiadores e até hoje
fomenta pesquisas e ideias
A exuberância da barbárie
Estudo recupera pensamentos sobre a natureza brasileira
Fernando Amed
A
s discussões mais ou menos recentes É assim que podemos tomar contato com os escritos de
acerca da teoria da história, espe- Mateus de Albuquerque, Rodolfo Teófilo, Alberto Rangel,
cialmente em sua vertente anglo- Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, Fábio Luz e
-americana, têm nos acostumado a um Júlia Lopes de Almeida, dentre outros. Percebemos então que
certo estado de impasse, como se não o conceito de natureza não se ancora em nenhuma baliza
fosse mais possível conceber produtos de mais segura. A partir dos marcos cronológicos situados pela
pesquisas que venham a nos mobilizar historiadora, observa-se que a natureza brasileira, de um
no exame de supostas evidências, dos ponto de vista mais tributário das concepções deterministas,
preconceitos que se estabelecem no en- já foi vista como fornecedora de um perfil diferenciado, o
torno de determinados conceitos e, en- que demarcaria um certo caráter nacional. Outro tipo de
fim, no encetamento das suspeitas acerca sentimento é aquele em que a exuberância natural brasileira
Natureza das linearidades que vêm a compor a se coloca como um obstáculo quase que intransponível.
e cultura historiografia e a literatura. Assim, Alfredo d’Escragnole Taunay, na Retirada de Laguna,
no Brasil A esse respeito, o livro Natureza e parecia apontar que o nosso principal inimigo não eram
(1870-1922) cultura no Brasil (1870-1922), de Lucia- os paraguaios liderados por Solano López, mas sim toda
Luciana Murari na Murari, traz contribuições para que espécie de intempéries interpostas pela fauna e flora selva-
percebamos os riscos da aderência irre- gens do Brasil. Percepção diferenciada, especialmente mais
Alameda fletida às últimas vagas de pensamento sofisticada e sutil, é a que perfizeram autores enfeixados no
Editorial, 2009 num mundo que se deseja globalizado. terceiro capítulo, que possui como subtítulo o sentimento
474 páginas Tendo como suporte uma rica oferta de de sertão na alma brasileira. Trata-se de reminiscências, no
R$ 50,00 fontes, que variam “da prosa de ficção e mais das vezes regionais, que buscavam recompor as qua-
não ficção, a crítica literária, a historio- lidades existentes no modo de vida sertanejo. Finalmente,
grafia e o ensaísmo político e social”, a Alberto Torres, Monteiro Lobato e Júlia Lopes de Almeida
pesquisadora terminou por nuançar a oferecem exemplos quanto às projeções para o futuro. Ou
utensilagem mental do campo intelectual seja, assimilaram as dificuldades consideradas inerentes à
brasileiro quando remetido às diferentes natureza brasileira, mas se colocaram como proponentes
concepções acerca da natureza. quanto ao que poderia ser feito para colocá-la a favor do
A opção pelo recorte cronológico, progresso do país.
como a autora aponta, também cum- A obra de Murari recupera um repertório necessário para
priu a função de checagem quanto ao que adentremos os complexos sentimentos embutidos no
tipo de produção escrita que se fazia conceito de natureza, bem como lança luz à tensão ainda
num momento ofuscado pelo aparato presente entre civilização e barbárie. A pesquisa fornece
modernista – de produção e recepção subsídios para que reflitamos sobre a permanência de orien-
– que se estabeleceu a partir das alusões tações, que parecem se configurar na percepção de que temos
ao ano de 1922. Assim, destoando de um um compromisso adiado com o futuro e que dependemos
coro que parece somente se mobilizar de opções corretas para que consigamos cumprir aquilo que
pelos marcos associados às vanguardas nos parece predestinado. A quebra de continuidade para
modernas e que, quando muito, faz con- com as chaves históricas e literárias mais consagradas abre
cessões às obras de Machado de Assis, espaço para que recuperemos nossa identidade para com
Joaquim Nabuco ou Euclides da Cunha, dilemas percebidos na virada para o século XX.
por entender que nelas já se encontra
uma espécie de protomodernismo, Lu-
ciana Murari nos brindou com citações Fernando Amed, doutor em história pela FFLCH da USP, pro-
de autores abandonados pela rendição fessor da FAAP e do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo
inconteste às linhas do tempo histórico e autor de As cartas de Capistrano de Abreu: sociabilidade e vida
ou literário. literária na belle époque carioca.
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Este trabalho, vencedor do Prêmio Arco- José Luís Cabaço entende as políticas de
íris de Direitos Humanos, conta a história identidade como expressão de um dese-
de amor de duas mulheres, Lota Macedo nho político subordinado a um poder que
Soares e a poetisa Elizabeth Bishop, no Rio se pretende hegemônico. Além de se valer
de Janeiro dos anos 1950 e 60. Dessa forma, de autores como Althusser, Bourdieu, Hall
busca resgatar o silêncio histórico a que e Derrida, o livro é um retrato da própria
estiveram submetidas as relações homoe- vivência colonial e das lutas de indepen-
róticas femininas, bem como desconstruir dência das quais Cabaço foi testemunha
o discurso médico legal, que diagnosticou e agente, nos mostrando assim como foi
as mulheres envolvidas em tais relações forjada a identidade moçambicana.
como nocivas ao convívio social. Editora Unesp (11) 3242-7171
Editora Apicuri (21) 2533-7917 www.editoraunesp.com.br
www.apicuri.com.br
de intelectuais, entre eles José Arthur Gia- tir de documentos de papel fundamental
notti, Ruy Fausto e Bento Prado Jr.. na difusão dos valores imperiais.
Editora Unesp (11) 3242-7171 Alameda Editorial (11) 3012-2400
www.editoraunesp.com.br www.alamedaeditorial.com.br
… ssssssss
E
nte se expande em inquieta exultação. memória absoluta das eras em todos seus infinitos rodeios
Escoa o tempo ondulante aos solavancos por ex- enlaces desenlaces. Expansão se compraz comove e infla
tensões dobras refluxos. A emanação se arroja para com a cósmica carga da acumulação abissal. Nada que
fora para longe a bolha esferoidal infla inexoravelmente foi está ausente, tudo que é se distende retesa no esforço
insuflada pelo avanço irreprimível agora bem mais rápido condensado da busca.
que a expansão geral das coisas para o princípio e o fim, Quantidades ínfimas e cósmicas, abstrações voláteis e
o centro e o extremo. densas, certezas sólidas e fugazes, dúvidas atrozes, credos
Ente reordena persistentemente as massas esvoaçan- inconstantes e impotentes se recombinam e reconfiguram
tes de sua emanação sobrepondo subpondo envolvendo no avanço incessante, mistérios engendrando mistérios,
contrapondo entretecendo dados equações sensações a memória organizada do caos.
memórias teorias significados em novas combinações Ente estremece sob os impulsos de um prazer mui-
estimulantes prazerosas aflitivas inquietantes. to antigo, feito o espanto no achado de uma solução de
Emanar preenche expande excita apavora engolindo problema excruciante e o defrontar-se nos solavancos da
tempos e espaços e outras tantas coisas inapreensíveis expansão com as demais emanações no cosmos.
rumo ao extremo e ao âmago da expansão cósmica. Uma recordação insistente de matéria mortal entre-
Emanar é a maneira inelutável, a potência em plenitude meia o deleite das equações se propondo e se resolvendo
carregada de probabilidades possíveis e impossíveis inci- nas urdiduras do tempo. Razão virou crença e vice-versa;
dentes acasos encontros, insuflada pelo sopro primitivo matéria continha limitava e expandia e transmutava ener-
da rocha. gia e espírito em novas singularidades vitais. Angustiante
A memória da emanação revasculha incansável os mistério de uma suspeita de explosão primordial se eno-
turbilhões do acúmulo onipresente; incontrolável sen- vela agora com novas provisórias certezas sobre antes e
sação de ancestral riso infantil percorre as reverberações depois do princípio singular, antes do princípio, depois
do avanço. do fim, o que é o meio, é meio?
Ente sente. Agora.
Ente infere compara deduz separa recombina noções A emanação se aferra ao presente da jornada ine-
certezas lembranças harmonias em novas percepções e lutável.
possibilidades, as memórias de pó e vento e pedra e fon- Outras emanações no percurso traziam bagagens pare-
te se interpenetram agora com sobressaltos primais dos cidas apenas apreensíveis, o espaço temporal de cada uma
primeiros viventes espasmos multiplicadores da bactéria, favorecia enleios e trocas provisórias e depois se rompiam
lágrimas uivos espantos de primitivos êxtases, dúvidas e desfaziam-se os enlaces mas a emanação persistia ainda
angustiantes de primeiras inferências, vento assobiando que levemente alterada. Ente sente.
em frestas, marulho de águas, farfalhar de folhas, estrondos Emanar é um perpétuo reordenar de lembranças e
de vulcões, tormentas silvos rugidos grasnidos trinados sensações noções certezas dúvidas lembranças longínquas
combinam-se e transformam-se com novas vibrações em de um balé de rochas celestes rodopiando em torno de
harmonias mais e mais extasiantes. um astro radiante, de moléculas inertes transmutando-
Ente condensa na fina crosta inconsútil da bolha a -se em moléculas instáveis irrequietas, em criaturas vitais
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