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Vicedom
1996 A Editora
fSinodal
Traduzido do original Missio Dei. Einführung in eine Theologie der Mission,
© 1958, Chr. Kaiser Verlag, Munique, República Federal da Alemanha.
Capítulo 3: O envio.................................................... 40
1. O sentido do envio............................................... 40
2. Enviador e enviado.............................................. 40
3. Eleição e envio...................................................... 41
4. A missio Dei specialis ............................................. 44
5. Os apóstolos.......................................................... 46
6. O nome “apóstolo” ............................................... 49
7. Ministério apostólico e comunidade.................. 50
8. Comunidade e envio, o apostolado.................... 52
9. Teologia do apostolado........................................ 53
10. O que é “apostólico”? .......................................... 55
11. A premissa do apostolado........................ ............ 56
12. O discipulado........................................................ 57
13. Discipulado e apostolado..................................... 59
14. O serviço do discipulado..................................... 61
15. Missão e Igreja...................................................... 62
16. Igreja e apostolado..................................................................................... 63
17. O novo povo de Deus................................................................................. 66
18. Igreja e m u n d o ........................................................................................... 68
Capítulo 4: O alvo da m issão........................................................................... 71
1. A conversão dos povos............................................................................... 71
2. O conceito ta ethne ..................................................................................... 73
3. O objetivo da missão........................................................................... 74
4. As peculiaridades dos povos...................................................................... 75
5. Os cristãos procedentes dos gentios......................................................... 76
6. A linha pedagógica..................................................................................... 77
7. Missão e civilização.................................................................................... 78
8. O desenvolvimento gradativo................................................................... 80
9. O método evangelístico............................................................................. 81
10. Tornar-se crente.......................................................................................... 82
11. Os meios da missão.................................................................................... 83
12. A missão e o milagre.................................................................................. 85
13. A comunidade como alvo.......................................................................... 87
14. A importância do Batismo para a missão................................................ 88
15. Santa Ceia e missão.................................................................................... 90
16. A Igreja - uma grandeza sui generis ......................................................... 91
Capítulo 5: A comunidade da salvação............................................................92
1. Comunidade e reino de Deus.......................................................................92
2. A comunidade do apostolado........................................................................93
3. A testem unha..................................................................................................94
4. A comunidade do sofrimento........................................................................95
Publicar um livro como Missio Dei no Brasil, quase 40 anos após a sua
edição original na Alemanha (Munique, 1958), exige uma explicação. Vicedom
provavelmente é um grande desconhecido das igrejas cristãs brasileiras. Sabe-se,
todavia, que existem alguns pastores da Igreja Evangélica de Confissão Luterana
no Brasil que foram seus ouvintes e até alunos. Além disso, suas idéias influen
ciaram a prática comunitária e até mesmo a opção pelos povos indígenas no
Brasil. Baseados na teologia que este livro revela, podemos nos perguntar por
que não frutificou muito mais. Por isso, achamos por bem traçar, nesta Apresen
tação, alguns aspectos de sua biografia e teologia que ajudem os leitores e leito
ras brasileiros a conhecer mais de perto o autor deste livro. É bom lembrar que
sua abordagem da missão figura como relevante em compêndios de missiologia1.
Só este já seria um bom motivo para traduzir parte de sua obra para o portu
guês. Destacamos abaixo alguns pontos que nos parecem importantes na obra
de Vicedom. Antes, porém, vejamos alguns dados da biografia do autor.
Vicedom: m issionário
e teólogo da missão
1 Cf. Karl MÜI.LER, Teologia da Missão, trad. Henrique Perbeche, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 66-69.
Este professor de Teologia católico, que escreve em colaboração com o luterano Hans-Werner
Gcnsichen, defende que os “pensamentos desenvolvidos nos cinco primeiros capítulos deAd Gen
tes [documento do Vaticano II sobre a missão entre povos não-cristãos] correspondem no essencial
às colocações de Vicedom sobre a Missio Dei” (p. 68).
7
eclesiogênese autóctone entre os aborígenes na Nova Guiné23.Em 1929, após
estudos complementares na Universidade de Hamburgo, foi enviado pela
Obra Missionária de Neuendettelsau para a Nova Guiné. Na linha de Keysser,
conviveu por dez anos com tribos no planalto central daquela ilha, povos até
então não alcançados pelos brancos nem por qualquer ação evangelizadora
(uma obra etnológica de três volumes documenta esta experiência*), fundan
do aí dois postos missionários. Durante esse trabalho pioneiro, viveu separa
do da esposa e dos quatro filhos por quatro anos. Em 1939, viajando de
licença à terra natal, foi surpreendido pela Segunda Guerra Mundial c con
vocado ao serviço militar.
De 1946 em diante atuou como professor no seu Seminário. Mais tarde, foi
o primeiro catedrático de Missiologia na Escola Superior de Teologia da mesma
localidade, além de tornar-se livre-docente na Universidade de Erlangen (Baviera).
Foi um período rico, em que lecionou e publicou centenas de obras teológicas,
entre as quais estas duas que são agora editadas no Brasil. Nessa época, ele
cooperou em inúmeros grupos de trabalho, congressos, sínodos e assembléias,
tanto em nível regional e nacional quanto internacional, no âmbito da família
universal evangélica luterana, bem como do Conselho Mundial de Igrejas. As
sim, chegou a visitar todos os continentes, vindo ao Brasil em 1967. As impres
sões que colheu da então Federação Sinodal - Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil, foram por ele resumidas no ensaio “Igreja velha em terra
nova”4. Nessa oportunidade, acompanhado pelo pastor Norberto Schwantes, vi
sitou também duas áreas indígenas, o Parque Nacional do Xingu e uma aldeia
Xavante no Mato Grosso. Onde quer que Vicedom andasse, colhendo informa
ções, ouvindo ou falando, discutindo ou rebatendo, agia constrangido pela wiAsio
Dei, engajado na militância pela Igreja de todo e qualquer lugar, para que esta se
tornasse autêntica na sua autocompreensão e no seu serviço.
2 Cf. Roberto Hofmeister PICH, Big Man Christian Keysser cm Papua-Nova Guiné; os Papuanos e a
Missão Crista, Estudos Teológicas, São Leopoldo, 35(2): 146-176, 1995.
3 Georg V1GEDOM, l>ieMbtnvamb; die Kultur der Hagenbergstämme im östlichen Zentral-Neuguinea.
Vol. 1: Materielle Kultur, Hamburg, 1943-48, 264 p. Vol. 2: Gesellschaft, Religion und Weltbild,
Hamburg, 1943, 484 p. Vol. 3: Mythen und Erzählungen, Hamburg, 1943, 196 p.
4 Alte Kirche imjungen Raum, ed. pelo Martin-Luther Verein, Evang.-Luth. Diasporadienst in Bayern
e.V., Neuendettelsau, Freimund, abr. 1968.
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preensão equivocada que precisa ser superada. Missão é missio Det\ ação in
condicional e livre de Deus que tem por objetivo a salvação da humanidade. A
missio de Deus se revela na vida e na obra, na morte e na ressurreição de Jesus
Cristo. Cristo é o centro da missão de Deus. A Igreja é o seu povo, chamado
para participar dessa missio. Por conseguinte, a Igreja e a missão não podem
ser grandezas autônomas, mas se implicam mutuamente a partir da vontade
amorosa de Deus.
Deus envia e é, ao mesmo tempo, o enviado. E assim como atuou em Jesus
de Nazaré, hoje o faz pelo Espírito Santo, a presença atual do mesmo Jesus, que
atua no mundo por meio de seu povo de testemunhas. A concepção missiológica
de Vicedom é trinitária: Deus envia seu Filho, e o Filho e o Pai enviam o Espíri
to. Decorre daí que, na missão, a soberania de Deus é incontestável, pois ele não
se deixa cercear nem pela religião nem pela descrença das pessoas. A ação de
Deus nos atinge e envolve constantemente de modo surpreendente (extra nos).
Esta concepção de missão é bastante crítica em relação às igrejas estabe
lecidas, normalmente muito envolvidas consigo mesmas em detrimento de sua
razão primeira: ser o povo que testemunha o evangelho hoje e aqui, ainda que
isto lhe custe caro.
2. Vicedom faz a crítica ao paradigma civilizatório como referencial para a
concepção de missão. Ele defende o caráter disfuncional e inconformista da
missão diante de qualquer status quo (Rm 12.1-2). Não sendo assim, a conse
quência é confundir e afastar os povos do evangelho de Cristo. Por esta razão,
Vicedom não concorda com o social gospel (“evangelho social”) de inspiração
norte-americana. Pois, a seu ver, a liberdade que o evangelho confere necessa
riamente implica a transformação da vida social, econômica e política. O evan
gelho confronta pessoas e povos com o Cristo de Deus diante do qual se decide
a salvação da humanidade. A concepção missiológica de Vicedom é, pois, emi
nentemente teológica.
Importa para Vicedom que todo esse processo acontece a partir da miseri
córdia de Deus (Rm 11.32). Esta nada mais é do que a materialização da graça
divina, da sua missão amorosa. Neste particular, Vicedom retoma um pensamen
to caro a Martim Lutero exposto na sua interpretação do Magnificai (1521), onde
afirma que a primeira e maior obra de Deus é a misericórdia (Ix 2.46-55). Esta
caracteriza e conforma a ação da Igreja e a nossa ação como pessoas cristãs. A fé
cristã é fé na compaixão de Deus e dessa fé flui o serviço que atua pelo amor (G1
5.6). Caso contrário, desprezamos a graça e podemos perdê-la.5
5 Urn dos primeiros que caracterizou a missão como atividade do próprio Deus foi Karl Barth, em
1932. No ano seguinte, Karl Hartenstcin esposou convicção similar no seu livro “Missão como
Problema Teológico”. Mas foi na 5* Conferência Mundial de Missão em W illingen/Alemanha
(1952) que este conceito ganhou foros de cidadania c reconhecimento na teologia da missão e nas
mais diversas igrejas. A concepção da missio Dei afirma que o Pai enviou o Filho, que, por sua vez,
enviou o Espírito. Estes três na sua unidade indissolúvel enviam a Igreja ao mundo. A missão da
Igreja c, pois, derivada da missio Dei. Vicedom foi quem mais aprofundou e alastrou o referido
conceito (cf. David J. BOSCH, Transforming Mission; Paradigm Shifts in Theology of Mission,
Maryknoll, Orbis, 1993, p. 389-393).
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Tal compreensão de missão, desfazendo os nossos complexos e a nossa
permanente mania de autocomiseração, coloca-nos no caminho onde a missio
está acontecendo. Ela nos convida a entrar na liberdade dos filhos e filhas de
Deus dispondo-nos ao seu serviço, com ânimo, lucidez e senso crítico. Ao
mesmo tempo, aponta para uma compreensão comunitária de missão: a mis
são nunca é tarefa apenas de especialistas, mas de todo o povo de Deus, onde
estiver, na casa, na rua, no bairro, na aldeia, na fábrica, na praça, na associa
ção, no governo e assim por diante.
3. Vicedom é responsável por uma fundamentação reformatória da mis
são. No apêndice selecionado especialmente para esta edição, a justificação
somente pela fé é o único fundamento firme para a missão. A missão realizada
pela Igreja no âmbito da missio Dei é uma ação de fé, impulsionada pelo Espí
rito Santo. Ela só pode ser assumida em atitude de profundo agradecimento
pela misericórdia recebida de Deus. Assim a Igreja se torna sinal da vida plena,
dádiva da graça divina.
Por isso, o paradigma da obediência não serve, como por via de regra se
interpreta o famoso texto de Mateus 28.18-20. Quando nos engajamos na mis
são, não o fazemos atendendo a uma ordem, como se Deus fosse um general e
a Igreja seu lugar-tenente. O que verdadeiramente nos conduz a participar
daquela missio é a graça eficaz que se realiza no meio de todos os povos. Nesta
perspectiva, a missão é obra do Espírito Santo, que trabalha sem cessar para
que a Igreja de Deus - de muitas e diferentes maneiras - anuncie a compaixão
de Deus por toda a humanidade.
4. Vicedom sempre é missionário. Quer somente ganhar e reunir gente
para a missio Dei. Prático da missão, nunca faz dela teoria, campo de pesquisa
ou fonte de prestígio. Vive na selva da Nova Guiné com pessoas tão diferentes,
mas igualmente tocadas e transformadas pela missio Dei. Aqui Vicedom experi
menta o milagre da comunidade de Jesus Cristo entre os povos, comunidade à
disposição da missio Dei. Assim parte para conscientizar homens e mulheres,
paróquias e igrejas da importância da missão. Ele as instiga a acompanhar a
missio Dei e a se deixar envolver por ela. Vê nisso o centro e a meta de quantos
crêem no Deus que se revela em Jesus Cristo. Alerta e chama para a única coisa
que vale, enquanto todo o resto “não nos conforta, mas abate e é sem valor”
(Hinos do Povo de Deus, 171, 1).
Com a profundidade e o entusiasmo que apenas uma vida sob a missio
Dei confere, Vicedom desdobra, então, a justificação por graça e fé como úni
co motivo e critério da missão: “a fé vive do testemunho” e “inexiste sem co
munhão” (citando N. von Zinzendorf); “a missão nada mais é do que a Igreja
que se m ovim enta” (retom ando W. Lòhe, fundador do Seminário de
Neuendettelsau); os sacramentos fazem experimentar a missio Dei e viver ale
gremente para a missão e na missão; a comunidade contextualizada é alavanca
de Deus no mundo, mostrando a vida partilhada, antecipação da vida plena no
reino de Deus; a comunidade se auto-sustenta com o dízimo dos membros,
usando 10% do orçamento para manter um missionário de tempo integral e
colocando os outros 90% à disposição da missio Dei local e universal.
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A missio Dei - embora liberte indusivc paróquias c igrejas sufocadas pelos
encargos religiosos e cansadas devido ao peso do seu aparelho administrativo -
causa estranheza. Vicedom o exemplifica de muitas maneiras. Mostra como cada
pessoa e grupo, cada povo e sociedade, cristãos ou não, igrejas inteiras até,
afirmam ter a sua visão e tarefa junto aos demais e as defendem com unhas e
dentes, não raras vezes contra a missio Dei. Num contexto desses, a missio Dei só
pode causar estranheza, que resulta em resistência, e esta em perseguição, den
tro e fora das paróquias e igrejas. Exclusivamente em tal situação se evidencia,
para Vicedom, a missio como sendo de fato Dei, já que depende, em definitivo,
de Deus. A cruz revela o caráter da missio Dei, sinalizando a sua consumação
irresistível no “novo céu e nova terra, onde habitará a justiça” (2 Pe 3.13).
No entanto, a partir das nossas experiências e motivações, levantamos as
seguintes perguntas diante desta teologia da missão aqui brevemente esboçada:
a) Relação entre evangelho e culturas'. Vicedom critica fortemente concepções
e práticas que amarram o evangelho a certas civilizações e culturas, etnias e
nações. Assevera que agindo assim compreenderíamos mal o evangelho e redu
ziríamos o seu alcance global. O evangelho se dirige a todos os povos e os trans
forma. Não os elimina nem submete - isto é pacífico -, mas cria neles novas e
surpreendentes expressões de sua cultura. Tal convicção de Vicedom surgiu da
sua experiência na frente missionária e da rejeição bíblico-teológica tanto do
american way of life como motivo da missão quanto dos desvirtuamentos naciona
listas do evangelho na Alemanha de Hitlcr e onde mais se manifestem.
Será que hoje essa opção está superada? Na América Latina sabemos que
a missão cristã, desde o século XVI, se impôs a ferro e fogo, eliminando povos
inteiros, descaracterizando outros e destruindo culturas milenares. Essa histó
ria bárbara, cuja abrangência nem de longe temos suficientemente claro, nos
constrange a valorizar e a defender, com carinho e garra, etnias e culturas.
Cremos que Deus na sua missio está presente entre elas e no que delas sobrou.
Ousamos estar ao seu dispor. Tentamos seguir o evangelho que, justamente na
cultura de cada povo, assume uma forma concreta e convincente. A duras
penas descobrimos que apenas na inculturação - tão particular, frágil e escan
dalosa - se evidencia a universalidade do evangelho. Fazemos, pois, a mesma
experiência de Vicedom, só que na via contrária. Enquanto ele confessa a uni
versalidade da missio Dei acima de todas as particularidades, nós confessamos a
universalidade da missio Dei nas particularidades. Não podemos saber o que
Vicedom diria em nossa situação. Mas certamente teria insistido no fato de
que o evangelho é fermento transformador em toda e qualquer cultura.
b) Conversão ejuízo divino: Para Vicedom, a missão começa com a manifes
tação do juízo de Deus. Só a partir do reconhecimento do nosso pecado e da
aceitação do juízo acontecem a conversão e a entrada na vivência da graça. Esta
questão, entretanto, necessita de cuidadosa interpretação. Pois entre nós se
acusam as igrejas de manipularem a noção de pecado e de sei em responsáveis
pela culpabilização de consciências no intuito de manter as pessoas submissas
ao seu poder e torná-las objetos mansos da sua exploração financeira. Não
podemos nem queremos negar que tais práticas antievangélicas existam, quem
sabe até aumentem em nosso contexto neoliberal. Nenhuma Igreja está a salvo
delas. Em meio a essa versão eclesiástica da opressão geral, lembramo-nos de
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que a missio Dei vem, antes de mais nada, libertar. Ela parte bem de baixo e do
mais insignificante (cf. Mt 13.31s.). Eis o juízo de Deus. Na medida em que a
missio Dei liberta, aparecem as nossas amarras, inclusive eclesiásticas. Assim
continua o juízo de Deus, pois ele “começa na casa de Deus” (1 Pe 4.17).
Vicedom, o crítico incansável da Igreja estabelecida e autoconfiante, ressalta
do seu jeito o seguinte: apenas penitentes podem chamar pessoas ao arrepen
dimento. Como gente confessa e arrependida, nos aproximamos delas para
conviver com elas solidariamente a partir do perdão de Deus.
c) Diálogo inter-religioso: Em relação às religiões, Vicedom nos choca.
Importa ver, no entanto, que a sua opção em absoluto vem de uma superiorida
de moral ou qualquer coisa parecida. Trata-se simplesmente da manifestação
da sua fé no homem de Gólgota. Ela se funda sem rodeios e meandros em
trechos bíblicos que proclamam Jesus Cristo como único e universal. Ela se
sente confirmada ao registrar que a missio Dei chama e congrega o seu povo de
dentro das religiões e o envia para o meio delas. Visto assim, Vicedom nos
desafia. A quantas anda a nossa fé, qual o seu centro e fundamento, o que nos
é inalienável nela? Para o nosso afã no diálogo inter-religioso temos muitos e
bons motivos, mas qual é o nosso objetivo último?
Pensando na visão crítica da Igreja que Vicedom revela e na soberania
da missio Dei que esboça, será que ele se oporia a um diálogo com as religiões,
com a finalidade de obter a paz com justiça entre os povos, a sobrevivência da
espécie humana e a conservação da criação? Sempre tão sensível aos aconteci
mentos do mundo, seria ele insensível aos clamores cada vez mais ensurdece
dores dos pobres e postergados, às absurdidades criminosas que os fundamen-
talismos de qualquer matiz provocam às vésperas do século XXI? Certamente
não lhes ficaria alheio. Continuaria aprendiz. Encararia aquilo que as religiões
oferecem em nossos dias - rejeição da filosofia de vida e da cosmovisão oci
dentais; exemplos de convivência pacífica entre as pessoas e com a natureza -
como mais um chamado da missio Dei para que a Igreja dê meia-volta. Nem a
Igreja nem comunidades cristãs exemplares (se um dia surgirem) salvam o
nosso mundo conturbado, mas unicamente a missio Dei, quando e do jeito que
a ele apraz. Graças a Deus!, diria Vicedom. Nós também? A nossa gratidão não
nos tira dos conflitos do mundo, pelo contrário, nos joga para dentro deles a
fim de colocarmos sinais da compaixão de Deus, materializada na cruz de
Jesus Cristo. Sob e com esta cruz quebramos outras cruzes nas quais nós mes
mos e outras pessoas e idéias colocamos homens, mulheres e crianças. Alegramo-
nos que hoje podemos aprender de pessoas não-cristãs como se eliminam cru
zes. Ainda assim o fazemos - oxalá o façamos - por causa do Crucificado e em
seu nome. Para que não nos esqueçamos disto, lemos e relemos Vicedom.
Esperamos que o estudo do presente livro seja também um estímulo
para obreiros e obreiras, presbíteros e presbíteras, enfim, para todo o povo
das comunidades. Urge que nos conscientizemos de que a missio Dei nos con
voca a lhe emprestar a nossa cabeça, as nossas mãos e pés, e a nossa boca.
12
Introdução
* N. do E.: Ju stian ian von Welz (1621-1668): leigo lu teran o , contestou a concepção da
ortodoxia luterana a respeito do trabalho missionário, que negava a validade atual da Grande
Comissão (Mt. 28.18-20). Welz insistiu no envio de estudantes cristãos como voluntários do anúncio
do evangelho cm terras pagãs. Foi um dos que impulsionaram a formação de sociedades
missionárias evangélicas.
** N. do E.: Gustav W arneck (1834-1910): teólogo alem ão, foi o p rim e iro a sistem ati
zar, nos tempos modernos, a compreensão da tarefa missionária da Igreja cristã. Por isso a teolo
gia européia o considera “pai da ciência da missão”. Apoiou decididamente as sociedades
missionárias do séc. 19. Cf. James A. SCHERER, Evangelho, Igreja e Reino; Estudos Comparativos
de Teologia da Missão, São Leopoldo, Sinodal, 1991, cap. 2; Valdir STEUERNAGEL, Obediência
Missionária e Prática Histórica; em Busca de Modelos, São Paulo, ABU, 1983, cap. 5.
13
é, sem dúvida, um resultado do redescobrimento da mensagem reformatória
pela teologia dialética. A Igreja recebeu novo ânimo para o testemunho.
Não obstante, é preciso constatar que a teologia no território alemão per
maneceu estéril e imune com vistas à missão, apesar da detalhada reflexão sobre
ela na Kirchliche Dogmatik de K. Barth. A teologia limitou-se essencialmente à
definição do conteúdo do testemunho, mas não se deixou chamar por Deus a
ponto de se desencadear uma dinâmica missionária. Difundiu-se um subjetivismo
tal que hoje ninguém mais sabe dizer em que consiste a fé dos cristãos, da qual
a Igreja vive (Tambaram*). Por isso mesmo ela não pode ser transmitida a outros.
A pregação e atividade da Igreja se desenvolvem em convulsões nervosas, de
maneira que é preciso perguntar se ainda existe uma autoridade para a missão.
Isso tem profundas influências sobre a missão. Visto que ela não é uma
grandeza sui generis, mas apenas traço característico e expressão de vida da Igre
ja, acabam manifestando-se nela sintomaticamente as mazelas da Igreja e da
teologia. Em conseqüência, toda fundamentação da missão terá que tocar nas
falhas básicas da Igreja. Esse trabalho poderia ser empreendido de modo
abrangente apenas por um teólogo universal. Por isso temos que tomar o outro
caminho: elaborar a autocompreensão da missão sem que nos percamos em
discussões sem fim. É possível que, por este caminho, possamos ajudar também
a Igreja a encontrar uma nova autocompreensão. Na Escandinávia, Holanda e
Suíça foram feitos significativos começos nesse sentido. Nos capítulos seguintes
iremos ocupar-nos essencialmente com os resultados alcançados na Holanda,
porque se preocupam de maneira mais incisiva que os outros com as fraquezas
da teologia alemã e com o conceito alemão sobre missão. Desde 1945 nós somos
os atacados. A crítica foi muito proveitosa e frutífera, apesar de ter cometido
exageros e não ter merecido atenção por parte da teologia alemã.
Acusam-nos de uma visão dc povo e identidade étnica oriunda do romantismo
que teria levado a uma ideologia etnopatética, redundado em numerosos desvios
do posicionamento bíblico básico para a Igreja e missão, eliminado o momento
escatológico e, finalmente, levado a enxergar a comunidade somente como “um
prolongamento do povo” e da identidade étnica, como “cumprimento abençoador
da estrutura étnica”.1
Há que se encontrar uma resposta a esses ataques bastante duros. Não a
daremos defendendo-nos contra cada uma das objeções feitas. Os interessados
nisso podem consultar o supramencionado trabalho de Knak. Nós preferimos
aceitar esses estímulos muito frutificantes e tentar, num confronto crítico com
eles, construir uma nova fundamentação da missão e das demais tarefas da
Igreja. Procederemos de maneira a sempre estabelecermos primeiro o que a
Bíblia diz a respeito, para então fazer a comparação.*1
* N. do F„: Conferência missionária organizada pelo antigo Comin - Conselho Missionário Interna
cional em Madras, índia, no ano de 1938, no campus do Madras Christian Collcge. A Conferência
anterior havia se realizado em Jerusalém, dez anos antes, no Monte das Oliveiras. Essas reuniões
fazem parte dos primeiros esforços, neste século, para elaborar um pensamento missionário
ecumênico.
1 S. KNAK, Oekumenischer Dienst in der Missionswissenschaft, Theologia Viatorum, 1950, p. 157.
14
Capítulo 1:
A missio Dei
2 Cf. a rica bibliografia indicada cm Walter HOLSTEN, Das Kerygma und der Mensch, 1953, pp.
24ss., 32ss.
3 W. ANDERSEN, A uf dem Weg zu einer Theologie der Mission, 1957, pp. 30ss.
* N. do E.: Conferência organizada nesta cidade da Alemanha, em 1952, pelo Conselho Missioná
rio Internacional, cuja tarefa consistiu em reformular o mandato missionário c revisar as políticas
de missão tradicionais. Valeu-se para tanto do conceito central de missio Dei. A declaração final
afirma que o movimento missionário tem sua origem na própria ação do Deus Triúno. A Igreja
cristã e cada pessoa cristã são co-participantes dessa ação que visa a salvação do mundo. Elas são
enviadas ao mundo para discernir os sinais dos tempos e proclamar o reinado oculto do Senhor.
4 K. HARTENSTEIN, in: W. FREYTAG, Mission zwischen G estern u n d Morgen, 1952, p. 54.
15
O m o v im en to m issio n ário d o q u a l so m o s p a rte te m su a fo n te n o p r ó p r io D eus
tr iú n o .J
1. O conceito
Missio Dei significa, antes de mais nada, que a missão é obra de Deus. Ele é
o senhor, o doador da tarefa, o proprietário, o executante. Ele é o sujeito ativo
da missão. Se atribuímos a missão desse modo a Deus, ela está isenta de todo
arbítrio humano. Portanto, temos que mostrar que Deus quer a missão e como
ele próprio a executa. Com isso já estão estabelecidos todos os parâmetros ne
cessários. A missão, e com ela a Igreja, são obra do próprio Deus. Portanto, não é
possível falar da “missão da Igreja”, muito menos podemos falar de “nossa mis
são”. Visto que tanto a Igreja quanto a missão têm sua origem na vontade amoro
sa de Deus, podemos falar de Igreja e missão somente na medida em que elas
não são entendidas como grandezas autônomas. Ambas são tão-somente instru
mentos de Deus, através dos quais Deus promove sua missão. Somente se a Igre
ja cumpre, em obediência, a intenção missionária dele, ela pode também falar
de sua missão, porque esta então está acolhida na missio Dei.
Com isso nosso tema se reveste de grande seriedade. Se é verdade que
Deus quer a missão, porque ele próprio faz missão - o que deve ser demonstra
do -, então a Igreja nada mais pode ser do que vaso e instrumento de Deus, se
ela se deixar usar por ele. Se ela resiste à intenção de Deus, ela se torna desobe
diente e já não pode mais ser Igreja no sentido divino: “Não há participação
em Cristo sem participação em sua missão ao mundo.”56 Portanto, não cabe à
Igreja decidir se ela quer fazer missão, mas ela só pode decidir se quer ser
Igreja. Ela não pode determinar quando e onde será feito missão; pois missão
sempre é iniciativa de Deus, como fica evidente sobretudo no livro dos Atos
dos Apóstolos. Missão como causa de Deus significa que ele reivindica o direi
to de dispor sobre todos os seus crentes da mesma forma como é seu desejo
compartilhar com todos os seres humanos seu amor através de seus crentes.
Deus torna clara essa pretensão executanto primeiramente a missão por si mes
mo. A Igreja somente pode repetir o que Deus fez e faz, e pode apontar para o
que ele fará. Com isso a missão está fundamentada na ação do próprio Deus.
16
qual Deus não se torna apenas o enviador, mas também o enviado. Por isso a
dogmática católica fala, desde Agostinho, de envios ou da missio intratrinitária.
“Sob ‘envio’ se entende a comunicação de uma das pessoas divinas através de
outra às criaturas, o que ocorre em virtude da ordem original intradivina.”78
Todo envio de uma das pessoas tem por conseqüência a presença da outra. A
teologia evangélica não trata desses envios como artigo dogmático próprio,
porque existiria o perigo de a unidade essencial de Deus tornar-se inconcebí
vel. Ela tenta, antes, compreender os processos imanentes à Trindade na
relacionalidade de Deus com os seres humanos. Na piedade evangélica, po
rém, a compreensão para o envio divino, essencial à Trindade, permaneceu
vivo em alguns corais: “Ao Filho disse o Pai no céu: ‘O tempo está chegado...’”
{Hinos do Povo de Deus, 155,5.) Ou: “Vai, Filho, te compadecer...” (Ibid., 43,2.)
Essas e outras estrofes descrevem esse enviar intratrinitário e nos lembram
novamente o verdadeiro motivo da missio.
Neste ponto nos encontramos diante de um derradeiro mistério de Deus,
que só pode ser percebido a partir do agir de Deus com os seres humanos. O
derradeiro mistério da missão, do qual ela emana e do qual vive, é: Deus envia
seu Filho, Pai e Filho enviam o Espírito. Com isso ele não apenas se torna o
enviado, mas, simultaneamente, o conteúdo do envio, sem que com essa trin
dade da revelação fosse anulada a consubstancialidade das pessoas divinas.
Pois em cada uma das pessoas da divindade Deus age por inteiro. Esse proces
so do envio intradivino é de eminente importância para a missão e o serviço
da Igreja. Sua missão está prefigurada na missão divina, seu serviço está
preestabelecido pelo serviço divino, o sentido e conteúdo do trabalho estão
determinados a partir da missio Dei.
Por sua missio Deus se revela, ao mesmo tempo, como Senhor soberano.
Ele não se deixa prescrever, nem por parte das religiões nem da incredulidade,
o que pode e o que não pode. Faz parte da divindade de Deus o fato de não
estar sujeito a nenhuma restrição humana. Desse modo ele dispõe de si de uma
forma não mais acessível a nenhum conceito humano. O agir de Deus encon
tra-se extra nos*. Assim justamente a missio Dei, como está estabelecida na dou
trina da Trindade, se torna a expressão do singular governo de Deus, fato,
aliás, que Maomé, p. ex., não entendeu ao tentar, através da negação da divin
dade de Cristo e do Espírito Santo, restabelecer a Deus em sua unidade e
transcendência. Com isso, na verdade, degradou a Deus e o privou da plenitu
de de revelação e essência.
17
3. Agir salvifico de Deus e envio
Visto que a Sagrada Escritura não tem interesse especulativo, ela revela a
Deus sempre somente na medida em que isso é importante para seu agir com
os seres humanos. Nela Deus faz asserções a respeito de si mesmo somente na
medida em que são necessárias para a salvação dos seres humanos. Por isso
toda revelação de Deus em sua missio acontece na intenção de salvar a humani
dade. Ao revelar-se através de seu agir, faz, ao mesmo tempo, enunciados a
respeito do ser humano, coloca-o sob seu juízo e, desse modo, capacita seus
mensageiros a levarem ambas as coisas às pessoas: o conteúdo do envio e, com
isso, a salvação dos seres humanos. Portanto, a missão outra coisa não pode ser
do que a continuação do agir salvífico de Deus através da transmissão dos atos
salvíficos. Esta é sua maior autoridade e sua maior incumbência.
Na Escritura esse agir de Deus, conforme estabelecido pela missio Dei, sua
relação com o mundo e seu agir com as pessoas são descritos com o conceito
“envio”. Ele é, com efeito, a essência da atividade criadora e do agir de Deus, de
maneira que toda a história salvífica se apresenta como história da missio Der*.
Por isso não forçamos a Escritura, se tentarmos definir a tarefa da Igreja a partir
desse conceito. Ao mesmo tempo permanecemos dentro dos moldes da teologia
autêntica, que jamais pode ser um sistema de pensamentos a respeito de Deus,
mas que tem por tarefa descrever o agir de Deus na História910.
Se por ora não nos referimos à especial missio Dei cm Jesus Cristo e no
dom do Espírito Santo e deixamos de lado o envio dos profetas e apóstolos,
ainda nos restam muitas passagens que descrevem a missio Dei. Deus envia inclu
sive realidades totalmente impessoais e expressa com isso que também atua dire
tamente sobre o mundo. Envia, p. ex., a espada após seu povo (Jr 9.16). Envia
cereal e vinho, e também azeite (J1 2.19), e dessa maneira revela-se como Deus
do amor através de seu agir; por isso envia especialmente ao povo de sua propri
edade bondade e fidelidade (SI 57.S), bondade e sabedoria (SI 43.3), sua palavra
(SI 107.20) e fome da Palavra (Am 8.11), sua redenção (SI 111.9). Através de seu
envio, portanto, Deus sustenta o mundo e conduz os seres humanos. Ele se
revela um Deus que não dispensou sua criação de seus cuidados.
Nesse enviar Deus sempre está presente. Por isso envio é expressão de
sua presença atuante em juízo e graça. Com isso a missio se torna uma afirma
ção de sua divindade. Deus não seria o Deus dos seres humanos, se não agisse
com vistas ao mundo e para dentro da realidade mais próxima das pessoas.
Teria o mesmo destino que levaram todos os deuses-criadores dos seres huma
nos, que, na melhor das hipóteses, ainda estão presentes na lembrança das
pessoas, mas já não são mais realidade. Deus, porém, sempre se revelou como
um Deus que a ninguém e a nada dispensou de seu governo. Através de seu
9 K. II. RENGSTORFF, quanto ao uso dos conceitos apostolas eapostellein, in: Theologisches Wörterbuch
zum bleuen Testament, vol. I.
10 O. CULLMANN, Christus und die Zeit, 1946, p. 19.
18
enviar ele se confronta com todos os seres humanos em sua divindade. Todas
as pessoas estão confrontadas efetivamente com ele, que sustenta a criação por
meio de seu agir. Seu enviar se torna uma revelação específica onde ela se
torna uma palavra ao povo (SI 19.1-6; 7-10), e em Jesus Cristo, no qual dá aos
seres humanos o Redentor. Aqui serve de fundamentação da missio em geral o
mesmo fato objetivo do qual Holsten deriva sua fundamentação da missiologia:
“Essa base é, em breves palavras, o querigma neotestamentário, a mensagem
do agir decisivo de Deus em Cristo e que, por sua vez, chama à decisão.”11
Portanto, a missio de Deus sempre é, ao mesmo tempo, um chamado à
decisão; seu agir, aconteça ele de maneira pessoal ou impessoal, sempre é um
mensageiro que transmite o chamado; sua intervenção sempre é uma incum
bência que exige resposta. Ninguém pode subtrair-se a esse chamado ou sim
plesmente ignorá-lo. O agir de Deus sempre compromete o ser humano (At
14.17; Rm 1.8). Portanto, quem se nega a pôr-se à disposição da missio Dei tenta
restringir o senhorio de Deus em seu serviço com vistas ao mundo e à salvação
da humanidade. Direito, autoridade, mandato e obrigação para a missão sem
pre emanam do agir do próprio Deus triúno. “Enquanto um culto é divulgado
somente entre compatriotas, mesmo que seja fora da pátria, Deus somente é o
Senhor para esta uma tribo ou cidade. Se, porém, se faz missão de fato, então
se alcançou a idéia da kyrioles (senhorio) absoluta.”12Essa missio Dei, que abran
ge todo o agir de Deus, pode, por isso, ser descrita também com o senhorio de
Deus.
19
Capítulo 2:
O senhorio de Deus
1. O motivo da missão
13 W. LÜTGERT, Reich Gottes und Weltgeschichte, 1928; Das Reich Gottes und die Mission, Neue
allgemeine Missionszeitschrift, 1927, pp. 97ss.
14 As discussões sobre os motivos da missão encontram-se em W. FREYTAG, Vorn Sinn der
Wcltinission, Evangelische Missionszeitschrift, 1959, pp. Iss.
15 Cf. S. KNAK, op. cit., pp. 157s.
20
o objetivo da redenção e da missão? - Por isso não se pode fundamentar a
missão como o faz Holsten na fundamentação da missiologia. Ele parte tão-
somente do motivo. Este, porém, só se torna efetivo se, simultaneamente, tam
bém tivermos sempre em vista o alvo16. Hoje se tenta encontrar a resposta funda-
mentando-se a missão a partir do senhorio régio de Deus. Seria possível concili
ar essa resposta com a idéia básica da missio Dei?
Creio que podemos compreender o agir de Deus com os seres humanos
objetivamente tanto sob a idéia do senhorio de Deus quanto sob a idéia da
missio Dei. Os dois conceitos, certamente, não descrevem o mesmo processo,
mas têm muitos pontos em comum. Vendo a missio Dei fundamentada no fato
de que Deus é Deus, então também o senhorio de Deus tem nela sua origem
última. O alvo da missio Dei é incorporar os seres humanos na basileia tou theou,
no senhorio de Deus, e transmitir-lhes seus dons. Com isso a justificação, que
para Holsten constitui o ponto de partida para todo pensamento missioná
rio17, não é depreciada, e, sim, está envolvida pelo agir global de Deus com as
pessoas, que é maior do que a mera declaração de que o ser humano é justo e
a recepção em sua comunhão, porque com o Reino é dado tudo que ele tam
bém faz alhures em favor do pecador justificado.
Pois a justificação consiste cm nada menos do que na recepção no reino de
Deus, c a doutrina da justificação destina-se a responder nenhuma outra per
gunta a não ser como entramos no reino de Deus... Quem está justificado está
aceito no serviço de Deus.18
Portanto, o reino de Deus poderia ser descrito como alvo da missio Dei. Outra
relação existe no parceiro tanto da missio Dei quanto da basileia, a saber, o
mundo do gênero humano. A partir dele é motivado o agir de Deus em seu
amor e a ele está voltado. Por isso queremos, num primeiro passo, descrever
esse vis-à-vis, para que se nos tornem claros o alvo do envio e o dom da basileia.
2. O parceiro de Deus
16 W. HOLSTEN, op. cit. Cf. tainbém W. ANDERSEN, Die kerygmatischc Begründung der Religions
und Missionswissenschaft, Evangelische Missionszeitschrift, 1954, pp. 29ss.; Hendrik KRAEMER,
Religion and the Christian Faith, London, 1956, pp. 196ss.
17 W. HOLSTEN, op. cit., pp. 52ss.; 61.
18 W. LÜTGERT, Das Reich Gottes und die Mission, p. 97.
21
essas formas de explicação, conhecidas das outras religiões, estão completa
mente fora de cogitação. O mundo com os seres humanos é criação de Deus,
que veio a existir através de sua palavra todo-poderosa, de acordo com sua
vontade. Portanto, ele próprio criou para si um parceiro, um tu, e com isso um
campo de atuação. Este já era o caso antes da queda, pois a palavra acerca da
imagem de Deus só pode significar que Deus criou para si um ser que pudesse
ler comunhão com ele e que encontrava nela o cumprimento de sua vida. Nessa comu
nhão não havia necessidade de um envio especial nem da acentuação do se
nhorio de Deus. Este existia simplesmente. A comunhão que Deus concedia
aos seres humanos era a basileia de Deus. Com isso o ser humano se encontra
va sob o governo de Deus. Essa parceria de Deus na comunhão é restabelecida
pela redenção, sem que com isso o ser humano fosse absorvido na divindade,
como o imaginam outras religiões. Redenção não é retorno à divindade, mas
à atitude correta em relação a Deus.
O ser humano caiu fora dessa parceria na qual se encontrava pela cria
ção. A queda somente foi possível porque o ser humano era uma criatura de
Deus. Se tivesse sido uma emanação de Deus, não poderia ter ofendido a Deus
ou perder seu caráter divino. Por isso, sem dúvida, encontramos delitos do ser
humano nas outras religiões, mas não pecados que tornassem a pessoa culpada
perante Deus. Nelas, se entende pecado sempre como atitude errada em rela
ção ao divino, através da qual o ser humano se prejudica a si mesmo. Pecado
como delito contra Deus é reconhecido somente quando a pessoa conhece a
Deus como Criador e Senhor através da revelação. Então também necessita de
um redentor.
Por meio da queda foi perturbada a relação entre Deus e o ser humano, a
inter-relação se tornou uma relação hostil por culpa do ser humano. Com isso
o ser humano saiu da comunhão com Deus. Ele fugiu de Deus e passou a
desenvolver-se ao lado dele - é o que pensa - para chegar a ser uma grandeza
autônoma que teria a liberdade de aceitar a Deus ou de não o aceitar. Todo seu
esforço vai no sentido de impor-se ao lado de Deus ou contra Deus. Nessa
tentativa chega ao cúmulo de crer estar fazendo um favor a Deus se retornasse
a ele, de maneira que agora Deus se tornaria dependente da mercê do ser
humano. Portanto, o ser humano pecador questiona o senhorio de Deus.
Por meio de sua natureza determinada pela queda, porém, o ser humano
também envolve toda a criação restante na inimizade com Deus. Visto, porém,
que possui na relacionalidade com Deus sua verdadeira razão de ser, sem o
que não pode existir, tenta encontrar para si um substituto, procurando numa
outra religião uma relação com a divindade que lhe seja conveniente. As religi
ões, por mais profundas que sejam as idéias que defendem, são uma prova
evidente desse desenvolvimento. Elas revelam a todo instante que também o
ser humano após a queda não pode negar sua destinação para a comunhão com
Deus. Portanto, surgiu no âmbito da criação uma área que quer subtrair-se
constantemente ao senhorio de Deus e que o combate. Superar essa área que
lhe é hostil, recolocar o ser humano na correta posição de parceria, restabele
cer a comunhão da pessoa com Deus e libertá-la do pecado - este é o objetivo
e o conteúdo da missio Dei e do senhorio de Deus.
22
Ao mesmo tempo, também depois da queda, Deus considera seu parcei
ro uma criatura. Por isso não destruiu simplesmente o ser humano pecador,
como teria merecido seu desejo rebelde de ser ele mesmo o senhor. Antes,
permaneceu fiel a si mesmo em sua relação com suas criaturas, e desde a
queda procura reconquistar os seres humanos, com longanimidade e paciên
cia, através de juízo e misericórdia, e proporcionar-lhes a participação na basileia.
Se não for por outra razão, deveríamos, a partir dessa atitude de Deus, guar
dar-nos de descrever o senhorio de Deus em analogia ao domínio humano.
3. O outro reino
23
cia do ser humano, nem tomar a sério o pecado em sua força real. Jamais
conseguirá desvencilhar-se do sonho de que o reino de Deus seja um reino a
ser realizado no mundo, que poderia ser configurado com recursos humanos.
Em última análise, as outras religiões devem ser entendidas a partir das liga
ções com esse outro reino. Sem dúvida, elas contêm muitas coisas boas, mas
estas estão inseridas no mal e por ele ocultas. Nelas atuam os satânicos pode
res antidivinos. Somente reconhecendo isso, chega-se ao verdadeiro juízo mi
sericordioso sobre a pessoa gentia, que é escrava desses poderes.
O reino do mundo ou o reino do diabo como oposto do reino de Deus e
da missio Dei é mais perigoso ainda porque jamais se manifesta com sua verda
deira face. Sempre tenta disfarçar-se sob a máscara do bem, do que con%'ém ao
ser humano, com objetivos muitas vezes ideais. Por isso o limite entre ele e o
reino de Deus pode ser traçado com nitidez e de modo visível somente em
casos raros. Nele os bons propósitos dos seres humanos se manifestam para o
mal e a ruína. Por isso K. Heim afirma, na controvérsia sobre o livro de H.
Kraemer intitulado Die christliche Bolschaft in einer nichtchristlichen Welt:
Nada do que Deus criou está a salvo dessa dcmonização. Tudo pode ser atingido
por ela. Por isso existe uma auto-adoração demoníaca do eu, que é imagem de
Deus, uma sexualidade demoníaca, que o ser humano não domina mais, o
demonismo da técnica, o demonismo do poder, a depravação demoníaca do
nacionalismo. Existe o demonismo da piedade, inclusive a oração pode degene
rar em convulsão demoníaca. Até mesmo o dom do Espírito Santo pode ser
demonizado, como o presenciamos no movimento pentecostal. O aspecto satâ
nico cm questão reside no seguinte: o poder demoníaco vive apenas de Deus e
do que ele criou. Ele nada tem que não viesse de Deus. Sempre é um reflexo da
glória de Deus o que é demonizado e usado contra Deus. 19
Em seu recente livro sobre as religiões, Kraemer avançou repetidas vezes
até essa profundeza da compreensão das religiões. Ele chama a atenção para o
fato de que nem o ser humano em sua profunda miséria, nem as religiões
podem ser entendidas sem o poder do mal, do diabo, que transforma todo o
mal em luz e perverte todo o bem.
O mundo da religião e das religiões (da cultura como um todo) pertence à esfe
ra do “velho homem”, do homem não-redimido, ainda não recriado à imagem
de Deus, a cuja semelhança íbi criado originalmente, e por isso se encontra, com
seus maravilhosos feitos e desvios satânicos, sob o o juízo de Deus, aguardando
de modo obscuro ou inconsciente sua redenção .20
No entanto, não nos cabe desenvolver aqui a compreensão bíblica das
religiões; isso seria um estudo em separado. Aqui basta esboçar o outro reino
que expressa com maior nitidez a realidade da perdição dos seres humanos.
Somente está livre do reino deste mundo quem se deixa salvar dele para o
reino de Deus pelo envio de Jesus Cristo. Esse é o único caminho. Nem o
nascimento o leva para o reino de Deus (Caim e Abel), nem o fato de perten
24
cer ao povo (Rm 2), nem a ocupação (Mt 24.40), nem a mais íntima comunhão
das pessoas entre si (Lc 17.34), c podemos acrescentar, também não o fato de
pertencerem à mesma Igreja. Somente a fé traça o limite, somente o fato de se
pertencer ao reino de Deus. É a ele que as pessoas devem ser chamadas pela
missio Dei.
4. O reino de Deus
25
justamente como tal o reino de Deus é, ao mesmo tempo, um chamado, um
apelo às pessoas. Por meio de sua proclamação, elas são chamadas a Deus e
assim à decisão, à conversão (Mt 6.33; Rm 14.17). O reino é o alvo de Deus
com os seres humanos.
Esse reino de Deus não pode se restringir a formas terrenas, mas sempre
tem, enquanto o reino do mundo existir, caráter escatológico. Visto que a comu
nidade de Deus tem que viver sempre no mundo, ela pode pertencer ao reino de
Deus somente na medida em que, em oposição ao mundo, se deixar determinar
por ele em sua atitude de vida pela fé. Ela vive sempre no anseio e na esperança
de ver o reino de Deus realizado. Primeiramente Deus satisfez esse anseio, dan
do a sua comunidade as promessas messiânicas e ensinando-a a esperar pelo
Redentor. O reino realizou-se pela aparição do Messias, todavia, de acordo com
sua oposição ao reino do mundo, de modo diferente do que os seres humanos o
haviam imaginado. Continua sendo tropeço para as pessoas e tentação para sua
comunidade o fato de o Messias não ter estabelecido na terra um reino terreno
com as características do reino de Deus, mas ter apenas revelado aos seres huma
nos o modo de ser do reino. Somente se tivermos isso em mente seremos preser
vados de muitos caminhos errados na Igreja e na missão.
O reino de Deus não pode ser realizado em formas humanas. Deus, po
rém, o realiza para os seres humanos, permitindo que seu Filho se torne ser
humano, enviando o Messias, tornando-o portador do reino de Deus, porque
o Messias se encontra e vive na comunhão com Deus e, conseqüentemente, na
basileia. Ele é o enviado em nome do Senhor (Mt 21.8), ao qual competem
todas as honras reais pela glorificação nas maiores alturas (Lc 18.38). Ele é o
rei, que cuida dos seus regiamente e lhes retribui centuplicado o que tiverem
sacrificado por ele (Lc 18.29). Não existe poder que não lhe estivesse submisso
e que ele não destruirá ao estabelecer seu reino (Mt 28.18). Por isso o senhorio
de Deus e Jesus Cristo são a mesma coisa. Portanto, quem proclamar o nome
de Jesus também proclama o senhorio de Deus (At 8.12; 28.31). Jesus é a res
posta de Deus às perguntas das pessoas e por isso, o conteúdo da mensagem
do reino (2 Tm 4.1). Tudo isso se encontra resumido na Epístola aos Colossenses,
onde se afirma de Cristo tudo que no Antigo Testamento é atribuído' a Deus23.
Todavia, é preciso lembrar que o reino de Deus é mais abrangente do que as
obras salvíficas dejesus; ele abrange todo o agir do Deus triúno com o mundo.
O reino consiste sobretudo no agir do Pai, e por conseguinte tem por conteú
do aquilo que se poderia chamar de divindade. A Epístola aos Colossenses
mostra isso.
23 Com referenda a todo o asunto: K. L. SCHMIDT, art. basiUia, in: Theologisches Wörterbuch zum
Neuen Testament, vol. I.
26
6. A alteridade do reino de Deus
27
Não por último, o reino de Deus é diferente por causa de seu caráter
escatológico. Associa-se a ele um alvo distante que anima a presença do reino
em Jesus Cristo com a grande esperança da realização do reino pela volta de
Cristo. Não se pode falar do reino sem efifatizar essa realização. O reino é
vindouro em sentido duplo: a) Por ocasião de sua volta, Cristo estabelecerá o
reino de Deus de tal maneira que Deus será tudo em tudo. Isso quer dizer que
não apenas derrotará o reino do mundo e do diabo com todas as suas varia
ções de poderes, mas o destruirá, de modo que o conflito na criação de Deus
acarretado pelo pecado estará resolvido para sempre. Nele só haverá uma nova
criação, b) Até sua volta, Cristo fará proclamar seu reino (Mt 24.14), por meio
de sua missio congregará os cidadãos do reino, chamará as pessoas à decisão e
estará presente em sua comunidade com os dons do Espírito, até que ele ve
nha. Portanto, com seu reino e, conseqüentemente, com sua missão, Deus tem
em vista um alvo bem definido na História que ele, por sua vez, levará à consu
mação por meio da missão. Desse modo a missão se torna uma decisiva força
formadora da História no senhorio de Deus.
28
mado, que sempre é um chamado à obediência. Portanto, o reino pressupõe
na pessoa a atitude receptiva, pedinte, expectadora (Mt 10.15; Lc 18.17; Mc
15.43). Somente quem toma essa atitude receberá e herdará o reino inabalável
(Hb 12.28; Mt. 25.34). A recepção, portanto, está igualmente associada kmetanoia,
à conversão. A pessoa tem que permitir que Deus atue nela e sobre ela, tem
que deixar-se renovar pelo Espírito de Deus; só então poderá tornar-se cidadã
do reino (Jo 3.5).
Esses princípios do senhorio de Deus deveriam, na verdade, ser eviden
tes para todo pregador do reino. Não obstante, são esquecidos muitas vezes.
Essa é a razão por que é tão difícil hoje alcançar uma compreensão correta do
envio e do serviço na Igreja e na missão. A oposicionalidade ao mundo deixou
de existir em grande parte. Muitas vezes se procura o caminho para o ser
humano na assimilação, quando somente uma confrontação lhe prestaria o
único serviço [de que necessita].
29
destruir o mundo do pecado e estabelecer, por meio de uma nova criação, a
plena comunhão com os seus, que se deixaram salvar pela mensagem do reino,
por meio de Jesus Cristo. Ele não o faz por desejo de poder, mas a partir da
atitude íntima de seu ser, por amor (Jo 3.16), através do que está sendo descri
ta sua relação com o mundo. Ele não quer que as pessoas permaneçam no
reino das trevas (Cl 1.13) e se percam. Por isso envia seu Filho, que busca e
salva o perdido (Mt 18.11; Lc 19.10).
O Filho é o portador do reino e lhe dá o conteúdo. Portanto, aplicado aos
seres humanos, isso não pode consistir em outra coisa do que na redenção
realizada por Jesus Cristo e na nova vida dada por ele, que é concedida por ele
com a justificação e o renascimento, na vida eterna que ele conquistou para os
seus pela morte e pela ressurreição. Esses feitos salvíficos ocorridos são o cum
primento de toda pregação da salvação, na qual se baseia o reino vindouro.
Porque Deus reconciliou o mundo consigo mesmo por meio de Cristo, estabe
leceu a comunhão envolvida pelo reino de Deus. Dessa maneira se cumpriram
todas as promessas em Jesus Cristo. Nele o reino de Deus se aproximou dos
seres humanos (Mt 3.2; 4.17; 10.7; Mc 1.15) e se tornou presente de tal maneira
(Lc 17.20) que Deus já fez anunciar na mensagem da salvação o que aconteceu
por meio da cruz e ressurreição.
Apesar de ser servo de Deus e por scr servo de Deus, Deus faz do Filho o
Messias, isso é, o portador da pregação do reino e da vontade do reino. Se,
todavia, o reino é vida eterna, então também o portador desse reino tem que ter
conhecimento dessa vida. O sim ao reino de Deus é o sim à vida a partir de
Deus, e por isso o Messias é aquele que vai ao encontro da ressurreição. O Messias é o
reino de Deus que se tornou realidade presente no oculto e na irrupção .25
É preciso acrescentar que com isso ainda não está dita a última palavra
sobre o reino de Deus. Ele entregou o reino ao Filho, o Filho o realizou por
meio de sua paixão e morte e na ressurreição deu aos seres humanos a espe
rança da vida eterna. Com isso criou as condições para assumir o reino por
meio de sua ascensão. “O fim e a virada escatológica não é essa ressurreição,
mas a exaltação, que concede ao Ressurreto todo o poder do céu e da terra.”26
Agora ele é o Senhor que desde a direita de Deus chama as pessoas a seu reino
e os livra do outro reino.
30
Dei seja bíblica. Ela se encontrará sempre na expectativa da volta de Cristo e
apontará para o reino vindouro; no entanto, poderá fazer isso somente através
do discurso a respeito daquele que veio a fim de poder presentear aos seres
humanos a salvação por ocasião de sua volta. Se nosso discurso fosse outro,
estaríamos tirando o reino da História na qual foi revelado. Se, todavia, falásse
mos tão-somente do reino já vindo, estaríamos despojando a História de seu alvo
e tornando a proclamação do reino sem efeito por não ter cumprimento. Por
importante que seja acentuar isso, não obstante é preciso observar que essa
esperança terá um fundamento sólido somente se soubermos que o Senhor que
voltará é o mesmo que veio e fez tudo que é necessário para a redenção. Somen
te a partir desse pretérito perfeito o crente pode testemunhar o futuro do juízo
e da consumação do reino. O reino se baseia em fatos e tem um alvo. Por isso a
mensagem do reino não é atemporal e a-histórica como o mito das religiões
gentílicas. Por essa razão ele também não pode ser realizado através de represen
tações dos eventos, o que é perfeitamente possível nos mitos gentílicos. O reino
é único em seu passado e em seu futuro. A revelação do reino baseia-se em fatos
históricos. Isso perfaz sua singularidade e com base nisso tem a pretensão de ser
verdade. Esta, por sua vez, dá o direito c a autoridade para a execução do envio.
Bem diferente é a situação do descrente, ao qual a mensagem do reino de
Deus primeiro tem que ser proclamada. Para ele o reino de Deus ainda não
veio. Ele se encontra cronologicamente antes do estabelecimento do reino.
Este vem a ele através do mensageiro de Jesus, por meio da proclamação da
mensagem do reino, e dessa maneira chega perto dele. Isso não é contradição,
pois o reino de Deus pode avizinhar-se de uma pessoa somente porque se
tornou um fato em Jesus Cristo. Também aos descrentes ele pode ser procla
mado somente nestes termos: que ele já veio e que o futuro se realizará com
base no pretérito. Dessa forma a proclamação do reino adquire o aspecto
escatológico e a seriedade da responsabilidade, visto que a rejeição do reino é,
simultaneamente, uma negação do evento salvífico. Dessa maneira também
aqui ela se torna juízo e o provoca.
Não fosse assim, o Senhor e seus apóstolos não poderiam ter feito do
reino de Deus o conteúdo de sua proclamação. Ao retomar a mensagem de
João Batista, ordenando-a também a seus discípulos, Jesus o faz com vistas ao
alvo de seu envio e sua redenção. Por isso o Novo Testamento emprega as
mesmas expressões para descrever a proclamação do reino que usa para des
crever a proclamação da mensagem salvífica. A proclamação do evangelho é a
mensagem do reino (Mt 4.23; 9.35). Quem anuncia ajesus, anuncia o reino (At
8.12). Por isso Paulo só pode chamar-se um proclamador do reino (At 20.25).
Por meio da proclamação, o reino se torna presente.
31
O pretérito perfeito da salvação, o evento salvífico como história sc torna presen
te na proclamação, para a fé que responde à proclamação e reconhece seu teste
munho, e se torna presente no sacramento: toma-se pretérito presente pelo Espí
rito Santo que garante ambos os modos de tornar o reino presente e os cumpre.27
Como o reino de Deus é diferente do reino do mundo e este deve ser
superado por aquele, essa proclamação' leva à decisão. “Jesus não se satisfaz com
o rechaço dos ataques demoníacos. Ele ataca. Por isso o conceito de reino tem uma
conotação expressamente polêmica nos ditos do Senhor.”28Jesus declara guerra
aos demônios e aos poderes demoníacos e quer derrotá-los. Quer salvar o ser
humano de suas garras. Isso ele faz envolvendo os seus na luta através da procla
mação, libertando do outro reino os que são atingidos pela proclamação e envol-
vendo-os igualmente na luta por meio do arrependimento. A pessoa tem que
reconhecer seu comprometimento com o outro reino e cortar as ligações no
poder de Cristo. É chamada ao reino a fim de abandonar o outro reino. Nenhu
ma pessoa pode tornar-se obediente ao reino de Deus sem converter-se, sem
arrepender-se e permitir que o senhorio de Cristo atue nela.
Os dons do reino estão descritos nas bem-aventuranças. O arrependi
mento se manifesta na procura do tesouro (Mt 13.44ss.), no rompimento com
o passado e com o ambiente (Lc 9.62). Portanto, a metanoia abrange a vida toda
e a configura de tal maneira que na vida da pessoa chamada ao reino já se
perceba algo da presença do reino de Deus, pois esse reino de Deus é a vida
dada por Deus.
A metanoia é o chamado ao reconhecimento da situação de morte da pessoa fora
do reino de Deus. É a renúncia radical a toda tentativa de alguém querer dispor
de sua vida autonomamente c o voltar-se para a qualidade diferente da vida que
vem de Deus. Se o pecado como separação do ser humano de Deus é a morte,
então a superação do pecado através do perdão é premissa para a vida. O reino
de Deus pode ter um começo somente onde há perdão dos pecados.29
Por meio do arrependimento provocado pela proclamação do reino de Deus,
este faz com que as pessoas comecem a buscar o perdão e o possam encontrar
por meio de Jesus Cristo.
Somente depois de dadas essas condições, podemos falar também de uma
realização do reino. Jesus jamais concede seus dons de maneira a complementar
elementos humanos ou potenciá-los. Através da nova vida presenteada no arre
pendimento e na justificação ele proporciona à pessoa uma nova relação com o
mundo em que vive e um novo objetivo de vida. Dessa nova vida surge então o
serviço que Deus quer prestar ao mundo através dos seus e que tem por resulta
do que todas as esferas da vida sejam invadidas e renovadas por Cristo. Transmi
tir aos seres humanos os dons do reino à parte dessa nova vida significa entregá-
los às mãos de pessoas que ainda estão sujeitas ao outro reino. Onde isso não é
32
observado, a atividade da Igreja e da missão apenas contribui para que o reino
de Deus sucum ba no desejo de poder do ser hum ano pecador.
Esse reino de Deus, com sua plenitude de dons divinos, não é proprieda
de de determinado grupo de pessoas. Ele está destinado a todos os seres huma
nos, também aos gentios. Se assim não fosse, não poderíamos falar de um
senhorio de Deus, o reino de Deus não poderia ser o oposto ao reino do
mundo que também se apresenta em sua universalidade, unidade e coesão. Na
disposição de Deus em transmitir sua salvação a todas as pessoas e salvá-las ele
se revela como o Deus e Senhor de todas as pessoas. Isso, porém, nem sempre
foi reconhecido na teologia. No Antigo Testamento o senhorio de Deus foi
relacionado teocraticamente com Israel. No Novo Testamento Jesus se apre
senta como o Filho de Davi, portanto como o sucessor legítimo preconizado
pela profecia de Natã (2 Sm 7.12ss.) que tem direito ao senhorio. Em parte
alguma se põe em dúvida que Israel se encontra sob um governo muito especi
al de Deus. Israel tem uma posição específica dentro do plano salvífico. Ele é a
comunidade de Deus entre os povos, que se tornou o centro do universo dos
povos, a fim de que os gentios pudessem aderir a ela e conhecer o Deus único
e o verdadeiro culto a Deus. Foi essa a vocação de Israel, o sentido de sua
eleição. Nele e através dele, portanto, o reino se tornou visível, a fim de que
pudesse ser concedido aos outros povos30. Por isso Jesus declara a esse povo
que ele não tem parte em Deus como povo, em virtude de um direito de povo
eleito, mas somente como comunidade de Deus31 e somente na medida em
que os membros individuais desse povo se submetem à vontade de Deus. O
nascimento não é garantia para ser membro da comunidade de Deus e, conse-
qüentemente, do senhorio de Deus; no reino pode entrar somente aquele que
faz jus à justiça desse reino (Mt 5.20; 7.13s.,21). O senhorio de Deus é concedi
do a Israel porque é povo eleito, mas se este recebe parte no reino depende
inteiramente da maneira como recebe a oferta de Deus. Deus sempre rejeita a
reivindicação de um direito. Deus também não entrega seu reino às mãos de
Israel. Na pretensão nacional, Israel decidiu-se contra Jesus e, assim, contra o
reino. Em contrapartida, Jesus enaltece gentios individuais e lhes promete par
te no reino (Mc 5.1ss.; 7.24ss.; Mt 8.5ss.; Lc 7.1 lss.). A salvação não é tirada de
Israel. Pelo contrário, sempre lhe é oferecida em primeiro lugar, mas dele ela
passa para os gentios. O trabalho missionário entre eles torna-se sinal dos
últimos tempos32.
33
Israel rejeita a salvação, renuncia ao reino e tem que ser rejeitado por
Deus. Apesar disso, Jesus continua entendendo-se como o portador legítimo do
reino. O exemplo de Israel evidencia duas coisas: como representante do reino,
Jesus pertence a todas as pessoas; Deus mantém seu reino livre de todos os ideais
humanos, age contra o desejo de poder dos seres humanos, exclui qualquer
auto-salvação, relaciona a redenção com o fim. É um reino escatológico que,
todavia, teve seu início no tempo presente. Com ele o outro éon já começou,
embora o éon deste mundo ainda não tivesse chegado ao fim33. Por isso Jesus,
como representante do governo de Deus sobre o novo éon, exerce seu governo
neste mundo (Mt 13.41). Nesse reino seus cidadãos sentarão a sua mesa e expe
rimentarão, desse modo, o maior privilégio que um rei pode conceder, enquan
to que aqueles que acreditavam terem direito a esse reino serão expulsos.
A rejeição do reino por parte de Israel, o rechaço de Israel por Deus é a
razão por que o reino de Deus passa para os gentios, criando entre eles direta
mente a comunidade de Deus. O Livro de Atos constitui uma ilustração singu
lar desse fato. A salvação sempre é oferecida em primeiro lugar aos judeus.
Portanto, seu privilégio é reconhecido. Sua inimizade, porém, sempre se cons
titui em motivo para ela ser pregada aos gentios. Por culpa de Israel a salvação
passa para os gentios (Rm 11.11). Estes, naturalmente, aceitam a salvação como
pessoas que recebem parte na salvação destinada em primeiro lugar a Israel
exclusivamente pela misericórdia de Deus. Portanto, não existe um reino espe
cial para os gentios. Deus iniciou seu reino com seu povo. Por isso os gentios
só podem ser acrescentados, enxertados na oliveira como ramos bravos (Rm
11.17). Por esse motivo a comunidade neotestamentária não está suspensa no
vazio, ela não se encontra sem nenhuma relação na história salvífica, mas está
encerrada no agir salvífico de Deus na História. Tanto Lucas no Livro de Atos
quanto Paulo em suas epístolas têm grande interesse em provar que o povo de
Deus surgido dentre os gentios está intimamente relacionado com o antigo
povo de Deus e que essa ligação corresponde à vontade de Deus e, conseqüen-
temente, à revelação.
Também a eleição dos gentios nos últimos tempos tem um objetivo especi
al: levar novamente aos judeus essa salvação em Jesus Cristo, de maneira que, no
final, toda a humanidade se encontre sob a proclamação do reino. A missão
entre os gentios tem por finalidade última a conquista de Israel para o reino. Sua
readmissão faz parte dos sinais dos últimos tempos (Rm 11.1 lss.). Por isso H.
Schlier tem razão ao constatar: “De acordo com essas afirmações, missão entre
os gentios existe, portanto, no período entre a queda e a restauração de Israel.”34
Antes de definirmos melhor a posição histórico-salvífica da missão entre
os gentios, temos que falar mais uma vez de sua pressuposição concreta dentro
da história da salvação. Na rejeição de Israel Deus se revela como o Senhor de
todos os seres humanos. O caráter divino de seu senhorio se evidencia justa
34
mente no fato de ele não se restringir, mas querer abarcar todas as pessoas, a
fim de conduzir para a verdadeira relação com Deus aqueles que lhe perten
cem pela criação e que também lhe estão subordinados compulsoriamente
pelo governo mundial de Deus sobre o mundo, e de agregá-los a sua comuni
dade. Portanto, Deus não está mais amarrado a qualquer povo. Isso também
contradiria ao envio do Filho, cuja morte redentora e ressurreição se revelari
am sem sentido para o mundo, de maneira que uma missão entre os gentios
não teria embasamento. Morte e ressurreição, porém, são as premissas para a
proclamação da mensagem salvífica para todos os povos, que principia com
sua exaltação. Isso se evidencia numa palavra como a d ejo 12.23s. Jesus inter
preta a chegada dos gregos como uma glorificação, mas também sabe que essa
somente se poderá realizar se o grão de trigo cair na terra e morrer. Somente
depois de consumada sua obra redentora, seu evangelho é uma mensagem
para todos os povos. Pela morte e ressurreição de Cristo a mensagem do reino
adquire importância cósmica, agora ela é a mensagem para todas as pessoas
(Jo 3.16; 2 Co 5.18,21; Cl 1.10).
Não existisse esse evento salvífico, a mensagem a respeito de Jesus talvez
desse uma boa ética, mas não seria evangelho para todos os seres humanos e
não seria capaz de resolver suas necesssidades. Agora, porém, a mensagem
tem por conteúdo o evento salvífico, o perdão dos pecados e a vida eterna.
Nisso podem consolar e alegrar-se todos os que se deixam chamar ao reino. A
Igreja é a portadora dessa mensagem destinada a todos, mas não é sua senho
ra. Ela somente pode pôr-se a serviço do reino, mas não deve restringi-lo.
35
das pelo Espírito Santo. Isso levou à ênfase na conversão individual, porque os
povos ainda não estariam maduros para a missão gentílica por meio da eleição
de Deus. O trabalho de ambos, porém, demonstra que, assim como os autores
acima mencionados, também eles não duvidavam que a tendência interior do
evangelho urgia a missão entre os gentios e que a Igreja primitiva foi levada a
ela por meio do dom do Espírito Santo. Portanto, também existiria difusão do
evangelho entre as nações, missão legítima, se Jesus não tivesse dado a ordem
missionária. O horizonte do evangelho seria a humanidade toda. Com isso,
porém, não estaria sendo dito que Jesus teve em mente a missão entre os
gentios já em seu tempo de vida terrena.
Podem-se aduzir passagens neotestamentárias de muito peso para uma
resposta negativa à pergunta em questão35, p. ex., Mt 15.24; 15.26; 10.5ss.;
10.23. De acordo com H. Schlier, Jesus viveu na expectativa imediata do juízo
final e acreditava não conseguir percorrer todo o povo de Israel antes desse
acontecimento. De acordo com ele, a missão entre os gentios teria surgido
somente quando, através da ressurreição de Jesus e da dispensação do Espírito
Santo, em virtude da demora do fim do mundo, se abriu espaço e se haviam
criado as condições para ela. Resta perguntar se as citações em questão têm
que ser interpretadas nesse sentido ou se não expressam uma preocupação
bem prática. A restrição de Jesus a Israel pode ter sido perfeitamente uma
auto-restrição de sua atuação salvífica em benefício da recepção de sua mensa
gem por todos os seres humanos. Para ser efetiva, ela tem que concretizar-se
em uma comunidade. Tem que haver uma comunidade que acredita na mensa
gem, que cuida dela e a preserva, de maneira que as pessoas não possam abu
sar dela. O evangelho tem que lançar raízes antes de poder crescer como árvo
re. Ele não é uma parasita que se agarra em toda parte e suga a fartar. Por isso
ele tem que tornar-se primeiro independente, exclusivo, para então poder tor
nar-se universal. Se Jesus ainda estava preso no particularismo, como pressu
punha Warneck, então não se deveria dizer essa palavra num só fôlego com a
afirmação de que ele é o Redentor do mundo. Se Jesus visava uma preocupa
ção prática, então o particularismo era o pressuposto para o universalismo.
Em todo caso, Jesus não foi um evangelista mundial, que tivesse posto à
disposição dos gentios o evangelho por meio de sua proclamação, sem insistir
numa decisão. O movimento mundial do sincretismo revela como o evange
lho, entregue às mãos dos gentios por meio de um método de trabalho equivo
cado, pode sofrer abuso, se não tiver o apoio de uma comunidade preservadora,
na qual se evidencia o evangelho de modo exemplar na vida e mentalidade. Já
os apóstolos tiveram que enfrentar apavorados a interpretação errada da men
sagem por parte dos gentios. O Livro de Atos nos relata a respeito três exem
plos: Simão, o mágico (cap. 8), a deificação de seres humanos em Listra (cap.
14), os exorcistas em nome de Jesus (cap. 19). Já Paulo debateu-se com corren
tes sincretistas em suas epístolas. Portanto, Jesus teve que criar primeiro uma
comunidade na qual o evangelho era realizado de maneira adequada ao reino.
36
Não poderia ter sido esse o motivo por que restringiu sua atividade a Israel?
Que nessa.auto-restrição Jesus teve uma posição muito especial em relação aos
gentios, isso o demonstra J. Jeremias96. Também Lohmeyer a evidencia. “O
problema dos povos gentílicos tem um lugar seguro na proclamação de Jesus
(Mt 8.11; 21.43; 26.28). O alvo de os povos terem que tornar-se ‘filhos do reino’
está expresso claramente.”97
Não obstante terá que se dizer, com base nessa concepção, que Jesus
admitiu a missão entre os gentios somente depois de sua ressurreição, quando
Israel o havia rejeitado. A transição para a missão entre os gentios não foi um
ato de desespero, e, sim, do ponto de vista escatológico, o rechaço de Israel
teve que servir ao propósito de tornar Jesus o Redentor das pessoas. Somente
com os feitos salvíficos estavam dadas as condições para o universalismo da
salvação. Isso é elaborado em muitas passagens do Novo Testamento. Pela res
surreição e pela exaltação Jesus se torna o kyrios (At 2.36). “Por meio de sua
ressurreição dentre os mortos, Jesus, outrora o Messias dos judeus, foi
entronizado como Senhor e Salvador do mundo inteiro (Rm 1.1 ls).”36378 Portan
to, Jesus se torna Senhor de toda a criação e, ao mesmo tempo, daquele outro
reino que ele já derrotou prolepticamente (Cl 1.13). Agora o kyrios de Israel e
o kyrios do mundo é o mesmo, e com isso está resolvida a contradição entre Mt
15.24 e Mt 28.18ss. A respeito disso afirma também Liechtenhan: “O envio é
um ato único (Lc 10.17-20). Por isso não se pode tirar da restrição às ovelhas
perdidas de Israel uma conseqüência adicional. O objetivo é ampliar o peque
no rebanho.”39 Schlier o expressa de modo ainda mais incisivo: “Pelo fato da
ressurreição, a ordem missionária do Ressurreto é a superação legítima da
proibição de se dirigir aos gentios, e essa proibição é o estágio preliminar
legítimo daquela ordem missionária.”40
37
anúncio da subida de Jesus ao trono, sua entronização41. Jesus tornou-se o rei
do reino, e nessa qualidade manda agora que a mensagem do reino seja procla
mada às pessoas, para que sejam preparadas para sua volta e salvas por meio da
pregação. A missão sempre se encontra sob o signo do Senhor vindouro. Isso
proporciona a seu serviço seu sentido mais profundo e seu alvo derradeiro.
Se a vinda do Filho do homem abrange um juízo sobre todos os povos, então
também exige a pressuposição de que foi dada a todos a oportunidade de apro-
priar-se da salvação e que, dessa maneira, são imputáveis. Portanto, a proclama
ção do evangelho a todos os povos é um postulado da escatologia; por isso
também se encontra aqui o dei (= é preciso que) do determinismo escatológico.42
A Igreja tem por obrigação preparar essa vinda de Jesus através da mis
são. O fim somente virá quando a mensagem do reino tiver sido pregada a
todos os povos para testemunho sobre eles (Mt 24.14). Por isso o Espírito San
to, como o fato do tempo final, leva a Igreja passo a passo à missão entre os
gentios e desse modo prepara a vinda de Jesus. Missio é agora a atividade do
Senhor exaltado entre sua ascensão e volta. Assim a Igreja tem somente uma
tarefa: dar continuidade à história salvífica por meio da proclamação do even
to salvífico já acontecido e por meio da anunciação de seu reino na congrega
ção da comunidade, “até que ele venha”4®. Boa parte dos teólogos holandeses
tiram conseqüências importantes dessas observações, para, a partir daí, elabo
rarem uma nova compreensão de Igreja e missão. Primeiramente quero ofere
cer um resumo de nossas observações de acordo com o trabalho básico de
Hoekendijk, que, ao mesmo tempo, faz a ponte para o próximo capítulo44.
Em seu capítulo básico sobre o contexto da missão, Hoekendijk nos mos
tra que ela não somente aponta para o fim vindouro, para a irrupção do reino
de Deus, mas que ela própria já é um prenúncio dessa vinda. Sua tarefa está
relacionada com os prenúncios e ais apocalípticos. Com isso ela faz parte dos
derradeiros sinais que Deus dá aos seres humanos antes do fim (Mc 13.10; Mt
24.14). Ela própria é um evento apocalíptico. Hoekendijk adota a tese defendi
da por Cullmann45: 2 Ts 2.6-7 refere-se à missão, de maneira que o fato de a
humanidade ainda não se ter arrependido e o anúncio do evangelho ainda
estar incompleto entre os povos são os elementos retardantes antes da vinda do
Senhor. Por isso esse período intermediário é a expressão da grande paciência
de Deus com os seres humanos.
Por meio dessa visão a missão adquire sua importância histórico-salvífica.
Todo o poder no céu e na terra está entregue às mãos do Filho do homem (Dn
38
7.13-14; Mt 28.18). O serviço dos povos faz parte de seu triunfo. Sua glória
começou (Mt 16.27; 26.62). A promessa messiânica de ls 2.2 se cumpriu. Pela
proclamação da mensagem do reino, a fé em Javé abrange toda a humanidade,
conforme o previu Dêutero-Isaías. Por meio da proclamação não existem mais
limites entre os povos. Todos são chamados ao reino. Esse período começou
com a rejeição de Israel. No entanto, a missão entre os gentios depende expres
samente do dom do Espírito Santo (Lc 24.49; At 1.8). Este é o grande evento
do tempo final.
O Espírito Santo leva ao apostolado pneumático, que é expressamente
apostolado dos gentios. Mais adiante analisaremos esse conceito com mais de
talhes.
Com base nessa exposição deverá ter ficado claro que a Igreja somente
pode ser entendida como grandeza escatológica e que, conseqüentemente, a
missão outra coisa não pode ser senão continuação da história salvífica através
da atuação do Senhor glorificado com sua comunidade entre os povos. Ela é a
característica do novo éojv.do qual todos os crentes recebem parte e que deve
ser proclamado a todolTôs descrentes, até que ele se cumpra. Com isso a Igreja
recebe uma tarefa voltada para o fim. Toda a ação da Igreja encontra-se agora
sob esses sinais escatológicos. Ela somente pode ser correta se objetiva, em
todas as suas ramificações, a conquista dos descrentes. No serviço da Igreja
realiza-se a missio Dei. Cumpre-nos agora descrever sua execução.
39
Capítulo 3:
O envio
1. O sentido do envio
A missio Dei é a obra de Deus através da qual manda oferecer, por meio
de seus enviados, aos seres humanos tudo que tem em mente para sua salva
ção, toda a plenitude de seu reino da redenção, para que, libertos do pecado,
arrebatados do outro reino, possam entrar de novo inteiramente em sua comu
nhão. Dessa maneira o envio se torna um ato do amor de Deus para com os
seres humanos perdidos. Ele é expressão de sua misericórdia4647.Esta tem pouco
a ver com o motivo pietista da compaixão com os gentios. Esta não estava
determinada somente pela preocupação com a pessoa perdida, mas fortemen
te marcada pela consciência dos beati possidentes no sentido de não trazer às
pessoas apenas a salvação por meio da mensagem, mas de poder redimi-las
também de sua depravação terrena e moral e proporcionar-lhes uma vida dig
na. Para levar a salvação às pessoas, Deus empenha-se por elas através da reve
lação, por meio de sua palavra. Por isso a missio Dei está estritamente asssociada
à revelação. Deus se revela efetuando ele mesmo o envio. Se não houvesse
missio Dei, também não teríamos revelação. Ele envia sua palavra aos seres
humanos e se revela de maneira a vir em pessoa a eles em Jesus Cristo por
meio do Espírito Santo (Jo 3.16; Rm 1.16).
2. Enviador e enviado
Por meio do amor de Deus que assume forma na revelação e que é transmi
tido aos seres humanos no envio, o Deus que se revela e envia se une, através de
sua palavra, seu Espírito e sua missão, com o enviado e, através deste, por sua
vez, com os ouvintes da mensagem. Foi o mérito da Conferência de Whitby,
ainda hoje pouco reconhecida em seus resultados teológicos, ter elaborado isso4'.
Por meio do envio Deus lança a ponte, faz a conexão com as pessoas que ele
46 G. F. VICEDOM, Die Rechtfertigung ab gestaltende Kraft der Mission, 1952, pp. 9ss. (Neste volume,
pp. 99ss.)
47 W. FREYTAG,... Der grosse Auftrag, 1948, pp. 32ss.
40
quer salvar. Por isso, do ponto de vista de Deus só existe envio com uma missão
determinada e um objetivo concreto que deve ser alcançado. Por meio da in
cumbência a Igreja com sua missão é somente um elo de ligação, não uma enti
dade própria, uma obra independente; ela não tem tarefa auto-escolhida. Com
sua missão ela jamais é uma instituição necessária em vista da religiosidade inata
do ser humano; menos ainda ela é uma entidade cultural, e por isso mesmo, em
princípio, não tem tarefa cultural. Ela também não é objeto de política eclesiás
tica. Muito menos ainda tem a ver algo com qualquer expansionismo nacional.
A Igreja pode cumprir uma variedade de tarefas. Mas não deve procurá-las ela
mesma, à parte de sua única e verdadeira missão. Separadas desta, todas as
coisas secundárias pertencem ao outro reino.
A Igreja e a missão jamais são concebíveis separadas de Deus e por isso
somente podem ser compreendidas a partir da existência de Deus e de sua
missio. Elas nada mais são do que uma forma de conduta, um método de traba
lho de Deus em sua relação com suas criaturas e uma congregação dos que se
deixaram chamar a ele através do envio determinado por Deus. Por isso, em
assuntos de Igreja e missão, a ênfase sempre recai no enviador que, através
delas, quer realizar seus objetivos entre as pessoas. Por isso todo envio é, pri
meiramente, um enunciado sobre o enviador, sobre o Deus que se empenha
pelos seres humanos (Is 6.8; Gn 12.lss). Os termos que a Escritura usa para
referir-se ao envio expressam simultaneamente o caráter absoluto da vontade
de quem dá a incumbência. O enviado sempre é necessariamente aquele que
se encontra sob a vontade do enviador (1 Co 9.16ss.). Este chama o enviado ao
serviço. Para isso lhe dá autoridade e poder, pois o enviado sempre tem que
agir em lugar daquele que envia. Com isso a missão está livre de todo arbítrio
e capricho humano, mas também dos desejos humanos e eclesiásticos, por
mais que estes estejam arraigados em determinada piedade ou determinada
teologia. “No começo da missão sempre se encontra o eu de Deus, o único eu
que tem consistência na Escritura.”48 Por isso os enviados somente podem
anunciar a mensagem falando com os profetas: Assim diz o Senhor.
3. Eleição e envio
41
tinha uma vocação missionária. Seria um engano sério ver na eleição de Israel
apenas um ato arbitrário do Deus autônomo que, em sua soberania, deixa
todos os demais povos entregues a seu próprio destino, para escolher para si
um povo e privilegiá-lo. Precisamente a eleição de Israel foi um serviço de
Deus aos povos encerrado em sua missio. Por meio dela também os demais
povos foram, a princípio, colocados sob sua promessa (Gn 12.1ss.). Israel tor
nou-se para eles o portador da promessa e o mediador da bênção, um sinal
visível de que também eles podem ser salvos e que têm parte na salvação. “O
Deus ao qual pertence o mundo é o Deus que escolheu seu povo (...) A Bíblia
não começa com o Deus que escolhe, mas com o Deus que é o Criador e,
portanto, o Senhor que pode escolher.”50 É o Deus que pode escolher e que
por isso também escolhe os gentios. Por isso escolheu primeiramente, para
serviço aos gentios no Antigo Testamento, seu povo como um todo. Pois na
posição do povo no concerto dos povos, na fé e obediência do povo, na forma
como Deus o conduzia, também em sua desobediência e apostasia, os outros
povos deveriam perceber como Deus, em seu amor e sua santidade, age com
seu povo, com seres humanos que ele quer salvar. Ao mesmo tempo os povos
podiam reconhecer de que modo a vida de um povo pode estar determinada
por sua fé em Deus. Dessa maneira Israel se tornou tanto ponto de atração
quanto advertência para os gentios.
A rigorosa lei de Deus, que separava Israel dos gentios, estava em vigor até a
vinda de Jesus Cristo, com a intenção de manter os gentios afastados, de mos
trar-lhes a santidade de Deus, testemunhar-lhes que ninguém pode tornar-se
membro do povo de Deus por escolha própria ou comportamento decente.51
Deus executa o envio agindo ele próprio com o povo, enviando-lhe ho
mens que deveriam governar e dirigi-lo em seu lugar. Já a essa altura surge a
idéia de que, desde a queda, a humanidade está sem liderança e à deriva (1 Rs
22.17; Is 13.14; Zc 10.2). A comunhão do mundo dos povos com Deus está
rompida, mas a seu povo Deus conduz por pura graça. Por isso envia a seu
povo homens para governar e dirigi-lo. Isso não mudou quando Israel pediu
um rei. É significativo que, na verdade, Deus admite o reinado, mas primeiro
lhe confere o verdadeiro sentido: o rei deverá ser o pastor que conduz o povo
em lugar de Deus. Portanto, o rei tinha uma missão salvífica. Deus é o Pastor
(SI 23 e 80) e envia pastores que pastoreiam o povo em seu lugar (Is 40.11; Jr
3.15; Ez 34.23). Portanto, Israel se encontra sob os cuidados especiais de Deus,
e com isso estão criadas todas as possibilidades para permanecer povo de Deus
entre os demais povos e para poder dar testemunho de Deus por meio de sua
vida e existência. Ele se encontra sob a direção de Deus. Esse desejo salvífico
de Deus de dirigir seu povo ainda penetra profundamente no Novo Testamen
to (Mt 9.36; Jo 10; 1 Pe 2.25; Hb 13.20). De início, portanto, Deus executa o
envio servindo ao povo através de sua condução.
42
Israel vivia entre os demais povos. Estava sempre tentado a acomodar-se
a estes. Sobretudo após a tomada da terra, conheceu os deuses da terra cultiva
da, sem cuja mercê era inimaginável gozar dos frutos da terra. A transição da
vida no deserto para o scdentarismo, do nomadismo para o cultivo do solo e
por fim o progresso civilizatório e cultural do reinado - tudo isso afinal não
eram questões técnicas, mas eminentemente religiosas. A recepção de novos
cultos e formas de vida tornou-se uma questão vital para Israel. Ele sempre
estava cercado por apostasia. Por isso Deus não enviou reis a seu povo, mas
sobretudo profetas, aos quais manifestava sua vontade. São eles que, perma
nentemente, traçam os limites em relação à apostasia. Os profetas inculcavam
nos pastores do povo de Deus a vontade divina e destacavam a exigência e a
promessa de condução genuinamente divina. A separação dos demais povos
estava definida pela lei. Os profetas proclamavam tanto a compreensão correta
da lei quanto sua aplicação correta. Dessa maneira Israel pôde, apesar de mui
ta infidelidade, atuar de modo exemplar em seu meio. Através dessa separação
dos demais povos, o particularismo da salvação em Israel se tornou a condição
para que a salvação se tornasse evidente também a outros povos.
Em tudo isso se tornam evidentes duas coisas que são importantes para o
surgimento da idéia de missão no Antigo Testamento e prenunciam prolepti-
camente o que aconteceu mais tarde no tempo de Jesus: a idéia de missão
cresce sob o chamado ao arrependimento e os profetas desenvolvem a visão
universal na medida em que Israel não podia mais ser chamado o povo de
Deus por causa de sua apostasia. Quando se sentiu seguro, quando passou a
identificar-se com o governo de Deus, Israel estava fadado ao fracasso. Somen
te agora nasce nele a compreensão para a salvação escatológica e para a dimen
são da comunidade de Deus constituída de todos os povos. A transmissão da
salvação passa a ser compreendida pelo resto de Israel, portanto pela verdadei
ra comunidade de Deus dentre o povo, como a verdadeira vocação. A partir
daí Jerusalém se torna o centro da genuína adoração de Deus e todos os povos
deverão receber parte nela82.
Com isso, porém, ainda não está alcançado o verdadeiro objetivo de Deus
com Israel e ainda não está cumprida sua missão específica. Quanto mais um
“resto” se entende como o verdadeiro Israel, tanto mais sua existência aponta
para aquele um que deverá vir como Messias e Salvador prometido, o Servo de
Deus, que trará a salvação a todas as pessoas. Portanto, mesmo como comuni
dade dos restantes, Israel permanece povo de Deus e portador da revelação, e
Deus confirma as promessas por amor daquele um vindouro que Deus quer
presentear a toda a humanidade e que a conduzirá a sua comunhão. A vocação
missionária de Israel se cumpriu somente quando Deus enviou seu Filho como
Filho de Davi, o Filho do homem, para, em seu amor, revelar-se a todas as
pessoas e executar sua obra da graça em todas elas63.523
52 J. HEMPEL, Die Wurzel des Missionswillens im Glauben des Alten Testaments, Zeitschriftfü r die
alltesUmentliche Wissenschaft, ano 66, pp. 244ss.;J. JEREMIAS, op. eil., pp. 47ss.
53 O. CULLMANN, op. cit., pp. 99ss.
43
4. A missio Dei specialis
44
maneira de Deus e por isso de maneira absolutamente válida. O ser humano
foi tirado de sua autodivinização e transformado novamente em criatura e vis-
à-vis de Deus. Com Jesus Cristo está encerrado o tempo das trevas e da igno
rância. Por isso, quem se encontra com Cristo está chamado à decisão e, conse-
qüentemente, ao arrependimento.
Com Jesus está encerrado o processo de dar conteúdo ao envio e estão
estabelecidos o sentido e alvo de todo envio. Além de Jesus não existe mais
revelação de Deus. Também o Espírito Santo tomará do que é dele e justamen
te dessa maneira conduzirá todos os seres humanos à verdade. Desde que Jesus
morreu e ressuscitou por causa da salvação das pessoas, tornou-se impossível
qualquer redenção fora dele, por mais que as pessoas tentem enquadrar a
Cristo entre as muitas figuras que quiseram mostrar um caminho de reden
ção. Quem põe em dúvida a unicidade de Cristo também põe em dúvida o
único Deus que o enviou. Somente através do Filho as pessoas aprendem a
conhecer a esse Deus e somente através dele encontram o caminho ao Pai. Por
isso Jesus não é apenas uma figura única na História, ele também é único em
seu agir e seu objetivo (Rm 6.10; Hb 6; 1 Pe 3.18). Por causa desse fato fracas
sarão todas as tentativas das religiões e das filosofias de substituí-lo, e nele se
frustra toda tentativa do sincretismo que quer complementá-lo, apropriar-se
dele e pô-lo a seu serviço. Por meio dele toda auto-redenção, por mais piedosa
que seja, se torna rebeldia contra a vontade redentora de Deus e por isso deve
rá revelar sempre a conseqüência da queda. As pessoas somente podem aceitar
a Jesus como ele é, ou então não recebem parte nele. Podem somente confron-
tar-se com sua mensagem, sujeitar-se a ela, crê-la e deixar-se salvar por ele. Sua
mensagem é exclusiva, pois está totalmente presa ao Deus uno. Ao mesmo
tempo, porém, ela é universal, porque é a correspondência do reino e do
senhorio de Deus que abrange o mundo inteiro (At 4.12; Jo 6.68). Ela pertence
a todas as pessoas.
Fora dessa missio Dei em Jesus Cristo não pode mais existir envios hoje.
Tudo que acontece em termos de envio desde sua missio partiu dele, está deter
minado por ele, encerrado em seu envio, é continuação de seu envio por ele
mesmo. Tudo que para nós abrange o conteúdo e objetivo do envio é ele.
Assim como nós todos nos tornamos semelhantes de Jesus por meio de sua
encarnação, e assim como nos tornamos irmãos por meio de sua redenção
(Rm 8.29; Hb 2.11), isto é, cidadãos de seu reino, do mesmo modo somos,
também como pessoas que ele chamou a seu serviço, apenas co-enviados, va
sos de seu envio. Dessa forma, nele o serviço da Igreja e da missão continua
sendo a obra do próprio Deus.
A misssão entre os gentios como está sendo praticada hoje é possível
somente porque Deus deu continuidade a seu envio e porque, por meio do
dom do Espírito Santo, fez da unicidade do envio do Filho uma »iAmocontinuala.
Agora fica evidente para todas as pessoas que Deus condicionou toda a salva
ção a seu Filho e que, em seu amor, continua empenhando-se para atrair os
seres humanos. Não existiria Igreja, não existira comunidade de Deus na terra
entre todos os povos, e por isso também não existiria missão, se o próprio
Deus não agisse desse modo entre todos os povos pelo dom do Espírito Santo,
45
como Lutero o descreveu na explicação do terceiro artigo do Credo. O Espíri
to Santo é a força motora da missão. Os apóstolos têm ordem expressa de
iniciar seu trabalho e cumprir sua vocação somente depois do derramamento
do Espírito Santo (Lc 24.49; At 1.8). Pelo derramamento do Espírito Santo eles
são conduzidos à pregação pentecostal, à fundação da primeira comunidade e,
a partir daí, paulatinamente, à missão. Para onde vão, são movidos pelo Espíri
to, e onde quer que preguem a mensagem, o Espírito está colaborando com
eles. Sem o dom do Espírito Santo jamais teriam encontrado o caminho aos
gentios, e a redenção acontecida em Jesus Cristo teria permanecido sem im
portância para a humanidade. Talvez se tivesse formado uma seita judaica, mas
não uma Igreja que abrange os povos.
Também o Espírito Santo é enviado (Jo 14.26; 15.26; 16.7). Ele procede
do Pai e do Filho; por isso temos em seu envio a plenitude da graça do Deus
triúno. Onde ele atua, está atuando o Deus triúno. Nele Deus, em sua relação
com o mundo, dá continuidade a sua presença entre os seres humanos e lhes
transmite o que foi feito por eles. “Entre sua (sc. de Jesus) ascensão e volta ele
está entre os povos na pessoa do Espírito Santo. O Espírito Santo é o poder por
meio do qual e no qual Cristo Jesus, sentado à direita de Deus, está presente na
terra.”MDeus jamais é impiedoso. Onde incumbe os seus de alguma tarefa ele
também colabora, e não fica à parte como o Senhor, à maneira humana. O
Espírito Santo traz a presença de Deus e a certeza dessa sua presença. O Deus
triúno está presente em seu Espírito.
Também o Espírito Santo é Senhor (2 Co 3.17). Com ele está dado o
reino, pois ele próprio é o reino na ação de Deus (Mt 3. 11; Jo 1.20; 1.27,33; At
1.5). Por meio dele Jesus realiza sua presença prometida (Mt 28.20). Portanto,
quem é movido e guiado por ele tem a prova de que através dele Deus quer
realizar alguma coisa especial na comunidade ou, através da comunidade, no
mundo. O Espírito sempre é a co-testemunha na proclamação e na doutrina
(At 5.32; 15.28). Em sua dádiva e presença se mede o sucesso da proclamação,
pois ele é a expressão para a eficácia da Palavra (At 10.26; 19.2ss.). Nessas
qualidades o Espírito Santo dá continuidade à missão que Deus começou por
meio de seu Filho Jesus Cristo, até o dia em que o próprio Jesus voltará e
encerrará a missão. O Espírito Santo faz isso chamando as pessoas à fé, levan
do-as a testemunhar e pondo-as a serviço.
5. Os apóstolos
46
essa missão imediata transformando pessoas em seus mensageiros e instru
mentos, comissionando-as em nome de Jesus e enviando-as. Essas pessoas cha
madas especialmente pelo Senhor e enviadas com determinada missão são
denominadas apóstolos no Novo Testamento. Elas são escolhidas pelo próprio
Senhor e equipadas com sua autoridade. Elas mesmas não puderam escolher
sua profissão. Muitas vezes consentiram somente sob relutância interior e tive
ram que primeiro ser convencidas por ele. Sempre foram incumbidas da tarefa
específica de proclamar a mensagem salvífica, a fim de levarem os seres huma
nos à fé naquele que comissionava os apóstolos e congregá-los na comunidade
do Senhor. Portanto, seu serviço sempre é um serviço derivado da missio Dei.
No Novo Testamento encontramos uma vocação e um envio duplos para
os apóstolos. O Senhor Jesus os escolhe, durante sua vida terrena, dentre o
grande número de seus seguidores. Portanto, eles se tornam apóstolos em virtu
de de uma tomada de decisão especial e de uma missão especial. Para isso Jesus
buscou a certeza na oração (Mc 6; Mt 10; Lc 9). Essa primeira escolha leva,
conforme supõe hoje a maioria dos exegetas, a um envio único, bem delimitado,
com uma missão igual à que seu Senhor tinha que cumprir’5. Portanto, recebem
a autoridade por parte de seu Senhor de fazerem a mesma coisa que também ele
próprio faz: apoiar e ampliar sua atividade messiânica (Lc 9.2; 10.7-9). Parece
que seu envio foi um ato único, pois, após a volta, encontramo-los trabalhando
apenas na companhia de seu Senhor. Enquanto seu Senhor estava com eles aqui
na terra, os apóstolos não tiveram uma tarefa independente.
É sabido que na hora da provação do sofrimento, os apóstolos abandona
ram seu Senhor. Por isso, depois da Páscoa ele tem que reuni-los novamente,
reequipá-los, explicar-lhes o sentido dos eventos, e chamar e enviá-los uma
segunda vez. O segundo envio, agora pelo Ressurreto, é um envio definitivo
(Mt 28.19; Lc 24.47ss.; Jo 20.21; Mc 16.15). Jesus perdoou aos apóstolos, resta
beleceu a comunhão com eles e removeu todos os empecilhos. Conforme suas
instruções, a proclamação dos apóstolos de agora em diante nada mais é do
que a interpretação dos acontecimentos históricos de sua vida terrena, especi
almente desde a prisão até a ascensão. “Deus precisa de seus apóstolos, de seu
empenho e fidelidade, a fim de abrir os olhos das pessoas para esse evento
divino, para que permitam que ele aconteça também nelas e se ponham a
serviço dele.”5®Por isso esse segundo envio não está mais delimitado por espa
ço e tempo, mas conduz a todo o ecúmeno ou ao cosmo, o que significa que
ele é universal sob o duplo aspecto: até o fim do tempo e até o fim do mundo.
Por meio desse envio o Senhor reivindica para si a humanidade toda e inter
preta suas obras salvíficas de maneira que vêm a ser para cada pessoa o ele
mento decisivo para a sua redenção.
Em ambos os envios chama a atenção o fato de Jesus enviar somente
homens, embora tivesse muitas mulheres como seguidoras e embora também 56
55 G. STÄHLIN, Die Endschaujesu und die Mission, Evangelische Missionszeitsckrifi, 1950, pp. 99ss.
56 R. LIECIITENIIAN, op. cit., p. 74.
47
houvessse mulheres entre as testemunhas de sua ressurreição. Além disso, é
preciso constatar que esse segundo envio não coincide com o derramamento
do Espírito Santo, mas lhe antecede. Portanto, poder-se-ia dizer que a vocação
parte do próprio Senhor, enquanto a execucão é derivada do Espírito Santo.
“Isso, porém, significa que o apostolado não se deriva do fato de a Igreja
possuir o Espírito, por mais que se necessite do Espírito para a execução da
missão, mas do mandato do Senhor ressurreto. Isso está evidente em todas as
fontes.”57 De acordo com isso, a ressurreição é a premissa para o envio a partir
do qual os apóstolos recebem sua incumbência. No entanto, esta é realizada
somente pela concessão do Espírito.
Somente a partir daí (a partir de Páscoa e Pentecostes) eles são aquilo para o
qual são destinados e ordenados aqui: portadores do querigma. Somente neste
ponto a comunidade se desenvolve, a partir de sua forma originária do círculo
de amigos crentes no Jesus Cristo vivo, transformando-se na Igreja que se espa
lha pelo mundo afora e cresce.5859
A instalação no apostolado e o envio têm sua base nas aparições pós-pascoais, no
faio de, por um lado, o Ressurreto renovar- e confirmar a condição de apóstolos
de seus discípulos e, por outro, lhe dar uma fundamentação totalmente nova.39
Esse fato tem repercussão tão grande que na pregação apóstolica não é a cruz
que está no centro, mas sempre a ressurreição. Ela é o fato decisivo. Somente
se existirem ressurreição, juízo e vida eterna com Deus, a cruz adquire sua
importância. Por isso a missão está fundamentada sobretudo a partir da ressur
reição. Sem ela, Jesus não seria o Redentor do mundo.
Ainda outro fato está relacionado com a difusão da mensagem da ressur
reição. Na questão de quem poderia chamar-se apóstolo, não se coloca a ênfase
primordialmente na vocação e envio, ou na capacidade para a profissão, mas no
fato de alguém ser testemunha do evento da ressurreição. Ele tinha que poder
testemunhar as aparições do Ressurreto, portanto, o fato decisivo na redenção
(Lc 24.49; At 1.22; 1 Co 15.8ss.). Também Paulo pode comprovar seu apostolado
como legítimo somente pelo fato de também ele ter visto o Ressurreto (1 Co
9.1). Além disso, os apóstolos também devem ter sido acompanhantes do Se
nhor (At 1.21). Eles são, portanto, testemunhas oculares de eventos históricos, da
vida, morte e ressurreição do Senhor. Com isso a proclamação dos apóstolos
está acima de qualquer espiritualização. Por isso a pregação cristã é proclamação
da história de Jesus e não exposição popularizada de um sistema doutrinário.
Isso também pode ter sido necessário, mas sempre é secundário.
Eles (os apóstolos) são conclamados por Deus perante todos os demais seres hu
manos como testemunhas de sua própria obra. Eles podem e devem confirmar
perante o mundo inteiro, e para que todo o mundo o ouça, que e como ele falou
e agiu cm Jesus Cristo e em seu povo.60
48
Eles são, portanto, testemunhas da obra de Jesus. Nesse contexto, porém, é
decisivo constatar que nem todas essas testemunhas se tornam apóstolos, mas
somente aquelas que são chamadas especialmente para isso e que recebem
uma tarefa específica. Sabemos que existiram muitas testemunhas do Ressurreto,
porém somente doze são escolhidos.
Por mais que se tenha que enfatizar a vocação e envio dos doze pelo
Ressurreto, não obstante é preciso constatar, por outro lado, que esse envio
partiu simultaneamente do Deus triúno. Também os apóstolos são enviados
pelo Pai, pois no ato do envio, Jesus, como o Ressurreto, representa o Pai e
agrega o envio dos apóstolos a sua própria missio. Em última análise, portanto,
não estamos diante de diversos envios. Trata-se sempre da mesma missio Dei
que acontece aqui (Mt 28.18s.; Jo 20.21)61.
6. O nome “apóstolo”
49
ressurreição, e tem consciência de que isso é um fato incrível e incompreensível
(1 Co 15.8ss.). Portanto, recorre à mesma fundamentação e aos mesmos creden
ciais para seu ministério que os demais apóstolos, e estes o reconheceram, ainda
que hesitantes. No entanto, rejeita a fundamentação com a qual argumentariam
todos os sucessores - a fundamentação entusiasta (1 Co 14.1ss.). Ele justamente
não apela a visões e experiências (2 Co 12.1ss.). Por mais importantes que estas
sejam para ele, elas não lhe dão a garantia do comissionamento. Decisivo para
ele é o fato de o Ressurreto lhe ter aparecido e de ter agido nele através de
Ananias e da comunidade (At 9.1ss.; 22.3-16; 26.9-18). Também ele viu o
Ressurreto (1 Co 9.1). Aos colaboradores de Paulo, a um Timóteo ou a um
Apoio, por exemplo, não é concedido o título de apóstolo.
O problema com que nos deparamos aqui é analisado sobretudo por
Fridrichsen62. Com base nessas constatações e em G1 2.7, Fridrichsen crê po
der afirmar que, em última análise, somente teriam existido dois apóstolos:
Pedro para os circuncisos, Paulo para os incircuncisos. Cada um deles teria
estado cercado de um grupo de colaboradores, sobre os quais exercia autorida
de em virtude de sua vocação especial. Tiago, por sua vez, teria sido o líder da
Igreja judaica. Pedro teria proclamado a ressurreição como cumprimento da
esperança messiânica dos judeus, enquanto que Paulo teria anunciado a Jesus
como Senhor do mundo com base na ressurreição. O serviço dos doze se teria
encerrado com o primeiro envio. Depois da ressurreição eles não eram mais
apóstolos. Dessa maneira o apostolado da Igreja se teria desenvolvido sob Pedro
e Paulo. Em conseqüência disso, Pedro se teria sentido responsável pela propa
gação do evangelho entre os judeus, embora não se tivessse limitado a eles,
enquanto que Paulo, por sua vez, pela missão entre os gentios, embora sempre
tomasse os judeus por ponto de partida. Ao lado deles, teriam existido nume
rosos outros trabalhos missionários. Portanto, somente duas pessoas puderam
aspirar ao ministério apostólico, enquanto que o serviço desse ministério, o
apostolado, teria sido executado por muitos. No entanto, somente os dois após
tolos teriam tido autoridade final. Podemos deixar em aberto a questão se
Fridrichsen compreendeu corretamente o apostolado. O que nos interessa,
porém, é a última afirmação: que o serviço do ministério pôde ser exercido
também por outros.
50
munidades ou entre os gentios sob sua autoridade. Parece que os demais apósto
los eram, em geral, trabalhadores individuais, que escolhiam sua tarefa, se é que
se punham à disposição do serviço missionário. O Livro de Atos apenas revela
que sua grande preocupação era a de estabelecer, por um lado, a conexão com o
povo de Deus do Antigo Testamento e, por outro lado, com o novo povo de
Deus, cor por ifiçado na comunidade primitiva em Jerusalém. Paulo, porém, não
se sente responsável apenas perante os demais apóstolos e perante a comunida
de primitiva. No mínimo à comunidade de Antioquia concede o direito de ser
informada sobre sua atividade. Com isso já se evidencia com clareza a posição
que o missionário passou a ocupar mais tarde na Igreja. Ele atua em nome da co
munidade e essa é co-responsável por seu trabalho. No caso de Paulo, portanto,
existem os dois elementos: a autoridade apostólica e a co-responsabilidade da co
munidade. Isso mostra também o fato de ele, como único dentre os apóstolos
que é comissionado pela comunidade, ter o direito de intitular-se apóstolo (2 Co
8.23; Fp 2.25; At 13.1-3). Portanto, a comunidade tinha o direito de transmitir o
serviço dos apóstolos a outros, mas não tinha a autoridade de conceder a al
guém o título de apóstolo. Por isso o ministério apóstolico não era um ministé
rio da comunidade, mas único e básico. Por isso os apóstolos responsáveis pela
ordem da comunidade não nomearam sucesssores, mas criaram um novo minis
tério para a administração da comunidade (At 14.23; 20.17ss.). Entregaram a
liderança da comunidade, mas não nomearam apóstolos, e, sim, bispos. Por isso
a autoridade dos bispos jamais pode ser comparada à autoridade dos apóstolos.
Assim, o ministério dos apóstolos é considerado único na Igreja. Eles
têm o serviço e a tarefa de fundar a Igreja e eles mesmos se tornam o funda
mento da construção, no qual todo trabalho posterior deve fundamentar-se (1
Co 3.9ss.; 12.38s.ss.). O começo sempre é decisivo. Os pósteros somente podem
construir de acordo com o fundamento colocado, ou então têm que derrubar
e destruir. Os apóstolos colocam o alicerce porque são testemunhas diretas de
Jesus e porque podem agir de acordo com as instruções do próprio Jesus. Isso
confere a seu trabalho e a sua proclamação o caráter de revelação. Os bispos
não podem ter essa pretensão. “Anciãos e bispos são somente vigilantes, cuja
tarefa é vigiar para que de fato se construa somente sobre o fundamento dos
apóstolos; eles próprios não são fundamentos.”63
Com isso surge a pergunta se existe um ministério missionário na Igreja.
Na resposta a esta pergunta, poderíamos reportar-nos aos evangelistas, que já
existiam na época dos apóstolos; ao mesmo tempo, porém, deveríamos per
guntar imediatamente como esse ministério está ancorado. O fato é que a
Igreja fez missão em todos os tempos e se propagou. Com isso se constata, em
todo caso, que a missão não depende da transmissão do ministério apostólico,
mas da atitude missionária que o serviço apóstolico suscitou, o qual foi trans
mitido à Igreja pelos apóstolos. Através dele, através do apostolé, do apostolado,
a Igreja está conclamada a levar, nesse ínterim, a salvação em Jesus Cristo a
todas as pessoas. Nessa tarefa estão resumidos todos os serviços da Igreja e
51
nela recebem seu sentido último. Isso também seria verdade, ainda que não
conhecêssemos uma ordem missionária expressa.
52
plano de salvação. Esses pontos de vista já elaborados estão implícitos também
no apostolado. De acordo com 2 Ts 2.6s., a missão seria a grande força retarda
tária. Através dela, portanto, o mundo tem que ser preparado para a vinda de
Cristo e, conseqüentemente, para o juízo. A missão está inserida nesse alvo da
História. Ela tem uma tarefa de conformação da História implícita no apostolado.
Por isso se pode falar do apostolado somente durante o tempo intermediário.
Por ocasião dos envios anteriores, a salvação ainda não estava providenciada.
Agora, porém, ela existe, e por isso o envio tem caráter e incumbência univer
sal, que desemboca no alvo de toda História e, simultaneamente, na consuma
ção do reino. Por isso os apóstolos são mensageiros do tempo final (Is 49.8s.;
cf. 2 Co 6.1s.). O apostolado gentílico do apóstolo Paulo, quanto ao conteúdo
igual ao apostolado para os judeus, está inteiramente determinado de modo
escatológico. Por meio do dom do Espírito, o apostolado gentílico recebe sua
independência em relação aos envios anteriores (Mt 28.18ss.; Lc 24.47ss.; At
1.6ss.; Jo 20.21s.). Apostolado e Espírito sempre estão inter-relacionados, de
maneira que o primeiro não pode ser concebido sem o último. Isso é verdadei
ro a ponto de Paulo falar do ministério do Espírito (Jo 20.21; 2 Co 3.6). O
Espírito introduz os apóstolos no plano de salvação de Deus, ele os incita ao
trabalho e lhe dá forma (At 16.6;1 Co 9.16). A condução do Espírito é tão forte
que toda a missão nada mais é do que uma marcha triunfal de Deus, na qual
Paulo marcha como um adversário vencido. Dessa maneira o apóstolo se torna
inteiramente um órgão de Deus em seu plano salvífico. Através dos apóstolos
e, portanto, através da missão, Cristo conduz o mundo ao encontro de sua
consumação. Num trabalho posterior, Hoekendijk resumiu e precisou mais
detalhadamente essa doutrina do apostolado:
No apostolado cumpre-se o evangelho (Rm 15.19; cf. Cl 1.2); ele é levado ao alvo,
trava-se o combate de Deus com o mundo para o mundo. Sujeito do apostolado
continua sendo “o apóstolo” Jesus (Hb 3.1); as “obras de Cristo” (Mt 11.2) têm
continuação nas “obras” apostólicas “do Senhor” (1 Co 15.58; 16.10). O espaço
do apostolado é o mundo; seu conteúdo é o estabelecimento dos sinais da salva
ção do reino, do shalom; o apostolado se realiza no querigma (praesentatio
proclamadora do shalom), na koinonia (participado corporativa no shalom) e na
diakonia (demonstrado servidora do shalom).66
9. Teologia do apostolado
53
mundo e o agir de Deus sobre o mundo. O próprio Deus está em atividade
ainda hoje. O apostolado se torna a forma de expressão da Igreja, de maneira
que a missão se torna o limiar no qual o agir imediato de Deus passa a ser
mediato. Através de seus mensageiros Deus chama os que preparou para a
salvação por meio da predestinação. Nesse processo, apostolado e Espírito for
mam uma unidade, sendo que o Espírito é considerado o poder que sempre
age entre os seres humanos.
As conseqüências que essa teologia tira desses enunciados para a com
preensão do serviço da Igreja iremos retomar no lugar oportuno. No entanto,
quero intercalar já agora que se trata aqui de uma revolução na teologia. Os
próprios holandeses têm consciência disso. “Se, por exemplo, no lugar que
vinha sendo ocupado na sistemática pela Igreja agora se põe o reino, o aposto
lado ou o Espírito, isso tem por conseqüência um terremoto cujas erupções
serão perceptíveis até na cristologia.”fi7Portanto, eles têm consciência dos peri
gos que residem nessa compreensão dinâmica. Sabem que podem tornar-se
escatológicos, predestinacionistas de modo demasiadamente unilateral; eles
nos dizem que é preciso observar que o ser humano é capaz de agir, por exem
plo, na confissão. Portanto, se deveria manter o elemento pneumatológico
tanto quanto o antropológico. Onde isso acontece, seria inclusive possível fun
damentar a partir do apostolado o elemento étnico e o elemento confessional
na Igreja.
A missão, porém, enxerga mais do que a natureza, ela enxerga a História. Ela
enxerga mais do que a Igreja, também enxerga os povos. Ela enxerga mais do
que a cristologia, no mínimo também enxerga a pneumatologia. Ela conhece o
evangelho do reino, que não é de todo idêntico com o evangelho de Jesus Cris
to. (Ele é o reino apenas cm determinada modalidade, na modalidade da
encarnação e da velação do reino.) Ela entende que o apóstolo tem um ministé
rio, não na Igreja, mas no reino. Ela não enxerga somente a Jesus Cristo e sua
comunidade, mas vê para além e através dela: o próprio Deus e seu mundo.6768
Nessas frases podemos perceber que a teologia do apostolado ainda está em
fase de construção e que ainda se está em busca de clareza sobre as relações
com o oposto de cada um dos conceitos.
Diante do que foi dito, façamos, antes de mais nada, um resumo do que
elaboramos até agora. O envio não é um fato apenas relacionado com o tempo
final, mas está fundamentado no agir do triúno Deus em sua relacionalidade
com o mundo; no entanto, ele recebe seu lugar escatológico e, simultaneamen
te, sua urgência pela vinda do reino em Jesus Cristo. Ele também não está
relacionado apenas com o dom do Espírito Santo. Podemos constatar da mes
ma forma que ele se baseia na consumação dos fatos salvíficos na ressurreição.
Pelo envio do Espírito, porém, ele recebe sua força especial, sua autoridade, e
por meio dele é inserido na missio Dei. A ordem do envio está objetivamente
estabelecida na revelação e não depende da experiência do Espírito. Por meio
54
dela a Igreja recebe sua direção, que, aliás, ela não pode manter sem o Espíri
to. Apostolado e Espírito Santo, portanto, só podem estar inter-relacionados
com vistas à execução do envio, de maneira que a Igreja é preservada da estag
nação do status quo eclesiástico. E o Espírito que constantemente mantém viva
a comisssão da Igreja. Ele chama as pessoas ao serviço do apostolado e é para
elas o equipamento para esse serviço. O dom se manifesta onde a pessoa obe
dece à ordem missionária. Como equipamento para o serviço, como participa
ção na intenção de Deus, o Espírito Santo dá a capacitação para o apostolado e
congrega na terra, através dos mensageiros, a comunidade que testemunha
seu Senhor até que ele venha. Pela ordem do Senhor glorificado e pela colabo
ração do Espírito Santo a Igreja adquire seu caráter apostólico, tornando-se
uma grandeza que atua tanto por sua existência quanto por seu envio especial.
55
Se, todavia, entendemos o apostolado como se os mensageiros ainda hoje
tivesssem todos os dons e todas as funções dos apóstolos, isso é inaceitável em
virtude do que foi dito acima. Visto que no que se segue nos depararemos
reiteradas vezes com a doutrina do apostolado, haveremos de perguntar se
realmente podemos aplicar o termo “apostólico” à Igreja. O Credo Niceno usa
o termo “apostólico” para expressar que a Igreja se baseia no fundamento dos
apóstolos e dos profetas e que por isso ela é uma Igreja apostólica, e que ela o
pode ser somente na medida em que em sua tradição ela se fundamenta nos
apóstolos. Se, no entanto, empregarmos o conceito de outra maneira, é preci
so analisar primeiro se isso pode ser feito de modo legítimo. Até agora os
teólogos holandeses nos ficaram devendo essa prova.
56
apóstolico surgem por si. Portanto, é condição para o apostolado, para o servi
ço missionário o fato de o Senhor criar para si uma comunidade de crentes.
Esta sempre existe antes da missão da Igreja, é ela que assume a atitude apostó
lica. A missão, porém, não é um evento que procede exclusivamente do Espíri
to. Ela tem uma base terrena no grupo de discípulos que o Senhor congrega
ainda hoje e que se torna portador da missão. Por isso uma Igreja só pode
fazer missão na medida em que existe nela esse discipulado. É preciso ser
discípulo antes de poder tornar-se testemunha de Jesus.
12. O discipulado
57
se terem decidido por ele pelo Batismo de infantes. Este foi somente um pri
meiro passo. Cada indivíduo é colocado diante da decisão pessoal, porque a
Igreja não deixa de enunciar o chamado e tenta levar a pessoa a um relaciona
mento pessoal com o Senhor. No chamado a iniciativa sempre parte dos que
chamam. Não posso me tornar discípulo porque tenho vontade, mas porque
Deus me dirige a palavra. Onde nasce o desejo, ele sempre provém do fato de
a pessoa ter sido atingida pela palavra de Deus, ao que deve seguir-se a respos
ta. No Novo Testamento os discípulos são chamados ao seguimento (Mc 1.17;
Mt 4.19; Mc 2.,14; 10.21; Jo 1.35s.). Em última análise isso também se aplica ao
grande grupo de seguidores de Jesus, que foram atingidos por sua pregação e
atraídos por seus feitos. Também eles não puderam integrar-se no discipulado
por iniciativa própria (Jo 15.16). Isso se evidencia de modo especial no caso da
cura do endemoninhado geraseno (Mc 5.18ss.) que Jesus manda para casa, ou
no caso dos três seguidores (Lc 9.57ss.) aos quais Jesus impõe condições tão
severas que acabam desistindo de segui-lo.
Quem se decide pelo discipulado deve antes ter rompido com seu pró
prio ideal de vida, pois nele só vale a vida do Mestre, portanto, entrega irrestrita.
Por isso Jesus exige na admissão ao discipulado o rompimento de todas as
ligações anteriores. Os seguidores devem estar inteiramente a sua disposição e
não dar ouvidos a nenhuma outra voz. Isso se nos evidencia com clareza ainda
maior do que no caso dos três seguidores nas palavras que literalmente anu
lam o quarto mandamento (Mt 10.37; Lc 14.26). Aqui todas as relações têm
que ceder, inclusive as mais veneráveis e que comprometem a piedade. O discí
pulo deve pertencer irrestritam ente ao Senhor. Por isso o chamado ao
discipulado desfaz as relações anteriores das pessoas e elas passam a ser propri
edade do Senhor. Jesus quer ser seu kyrios (Mt 24.45ss.; 25.14ss.; Lc 12.35ss.,
42ss.). Os discípulos são aceitos como servos e devem sujeitar-se a seu Senhor,
pois a essência do discipulado consiste no ouvir, cumprir e guardar sua palavra
(Jo 8.31). Como discípulos, são tão dependentes de seu Senhor que fora dele
sequer têm condições de existir. São determinados por ele em tudo e permeados
por seu ser. Sem ele, nada são; com ele e por meio dele, são tudo (Jo 15). Por
isso têm que cuidar para que nada os afaste do Senhor, que nada os coloque
em concorrência com Jesus, ainda que tenham que sofrer em conseqüência
dessa atitude e serem mal-entendidos e odiados pelas pessoas (Mt 10.17ss.).
Sua vida está tão intimamente ligada à do Mestre que pessoalmente não po
dem trilhar outro caminho a não ser aquele no qual o Senhor lhes precedeu
(Jo 15.18ss.; 16.1 ss.). Isso não seria possível se também essa vida, que aos olhos
da pessoa comum parece injustificada e difícil, não fosse um dom de seu mes
tre. Jesus lhes dá tudo que os capacita para o discipulado. Em sua comunhão,
transmite-lhes sua vida (Jo 14.4s.) e, conseqüentemente, seu poder. Ele lhes
restitui centuplicado tudo que abandonaram por sua causa, de maneira que
não sentem perda e se sentem ricamente compensados por ele. Assim podem
servir-lhe sem restrições (Mt 19.29).
Em virtude da morte de seu Senhor, esses discípulos passaram pela mes
ma transformação que nos foi relatada a respeito dos apóstolos. A princípio,
também eles tiveram em mente como alvo terreno a reconstrução de Israel.
58
Somente pela ressurreição compreenderam o significado do apostolado (Jo
2.2 ls.; Lc 22.38). Também eles têm que novamente ser congregados pelo
Ressurreto, e assim, em virtude da ressurreição, surge a primeira comunidade
(Lc 24.36ss.;Jo 20.24ss.; Mt 28.17). Isso nos mostra que o ingresso no discipulado
não se resume a um rompimento com o meio ambiente, mas que se trata de
uma conversão do coração (Mt 19.28; Jo 3.5), de um renascimento para a nova
vida presenteada por Cristo, de maneira que a pessoa também se apossa interi
ormente dos objetivos de Jesus com seu grupo de discípulos. Portanto, o
discipulado sempre exige o ser humano todo, e tem por alvo a nova pessoa.
Dentre esses discípulos o Senhor escolheu seus apóstolos e os enviou ao mun
do para o serviço. Condição para o chamamento ao discipulado era, portanto,
o fato de alguém ser e permanecer discípulo. Nem todo discípulo é chamado
para ser apóstolo. Todo apóstolo, porém, era discípulo, e todo discípulo é tes
temunha de seu Senhor, com o qual está comprometido inteiramente.
72 K. H. RENGSTORFF, art. mathetes, in: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, vol. IV.
59
ço de testemunha. De fato encontramos, já no tempo dos apóstolos, um gran
de número de tais colaboradores, independentemente do fato de a comunida
de testemunhar a morte e a ressurreição de Jesus por meio de sua própria
existência (1 Co 11.26; 15.3ss.). Cada um desses discípulos está equipado por
seu Senhor com os dons de que necessita para seu discipulado. Paulo fala dos
cristãos em termos indicativos tais que nos deixam pasmos. Portanto, eles pos
suem os dons de que necessitam para seu serviço no mundo. Podem viver no
mundo somente de forma a se encontrarem no seguimento (Jo 14.13ss.). Tam
bém eles receberam a ordem missionária e devem, por isso, ser colaboradores
do reino (Cl 4.11). E. Lohmeyer737475 analisa o conceito “discipulado” detalhada
mente; ele transfere a reunião dos discípulos para a Galiléia, onde também
teria sido dada a ordem missionária; não em conexão com uma aparição pós-
pascoal, mas por um Senhor que revela aos discípulos a continuidade de seu
reino. Ele entende os discípulos como a continuação do povo de Deus do An
tigo Testamento e compreende a existência deste em termos puramente esca-
lológicos.
Eles se compreendem como o povo de Deus dos dias derradeiros, como o verda
deiro Israel, e por isso se abrem para a missão entre os povos, vivendo do santo
passado do povo de Israel e, por isso, entregues ao próximo e santo porvir com
o Senhor.74
Portanto, receberam a ordem missionária como discípulos, não como apósto
los, e por isso todos os discípulos são conclamados à divulgação do reino.
“Portanto, ser discípulo significa tornar-se mensageiro para todos os povos;
eles não chegam a sê-lo por autoridade própria, e, sim, em seu nome e pelo
poder de seu reino.”75 Com isso Lohmeyer forneceu, sem querer, a fundamen
tação do apostolado da Igreja e por isso constatamos, com razão, que cabe aos
discípulos cumprir funções apostólicas. Assim, o apostolado também faz parte
das características do verdadeiro discipulado. Quem se deixa engajar no servi
ço da divulgação do evangelho, este é discípulo. Ele produz o fruto que seu
Senhor espera dele.
Para poderem prestar o serviço, o Senhor também equipa os discípulos
com o dom do Espírito Santo. Este dá testemunho de Jesus Cristo e, assim,
conduz à missão (At 9.17). Na perseguição, o Espírito enche os discípulos de
alegria (At 13.52) e também nessa situação lhes concede a coragem para fala
rem com ânimo (At 4.31). O Espírito quer falar e atuar em lugar de Jesus. Em
virtude desse dom, um discípulo não pode fazer outra coisa do que também
divulgar a Palavra.
60
14. O serviço do discipulado
61
ter, como pessoa, direitos e pretensões especiais, pelos quais se deveria orien
tar inclusive o apostolado. A rebeldia do ser humano se evidencia, desse modo,
na essência íntima da Igreja. Não obstante, continua tarefa da Igreja cumprir o
serviço apostólico, se ela quiser permanecer fiel a sua natureza e não abando
nar seu lugar escatológico. E ela terá que cumprir essa tarefa com as pessoas
que se deixam chamar ao discipulado autêntico e que, por isso, também se
deixam engajar na divulgação do evangelho. E a preocupação da Igreja como
instituição terá que ser representar justamente aqueles que assumem esse ser
viço. Portanto, a Igreja deve estabelecer constantemente certos limites dentro
de seus próprios domínios e orientar-se pela Igreja estabelecida pelo discipulado.
Por meio dessa tomada de consciência da natureza da Igreja, a ordem missionária
já não será mais uma tarefa especial para determinados círculos, e já não será
mais uma obrigação legalista para os indecisos, mas sua execução será expres
são de vida que emana da fé e é determinada pelo agir de Deus na missio Dei.
Surge agora a pergunta pela relação entre missão e Igreja. Nossa resposta
terá que ser dupla. Primeiramente, a própria Igreja é um produto do apostolado.
O envio que Deus efetuou por meio de Jesus Cristo e que continua atuante até
hoje através dos apóstolos, levou à formação da Igreja. Se Deus não tivesse envi
ado seu Filho, não existiriam Igreja, nem apostolado, nem missão. A Igreja sur
giu porque Jesus ordenou a proclamação de sua palavra através de seres huma
nos e porque pessoas se deixaram chamar para fora do mundo pela mensagem
da redenção. Assim justamente a Igreja é a prova mais evidente de que o evange
lho pertence também aos gentios. Portanto, não é nosso dever missionar porque
possuímos o evangelho, e, sim, possuímos o evangelho somente porque ele é
destinado aos gentios. Do contrário, nos arvoraríamos em senhores do evange
lho e abusaríamos do ministério da reconciliação. Somos Igreja porque Deus
quis a missão gentílica. Visto, porém, que somos Igreja de gentios, também não
podemos ser outra coisa senão um membro da missio Dei, um instrumento no
agir de Deus, um sinal de que Deus está levando o mundo a sua consumação.
^Assim como Deus deu continuidade à obra de seu Filho por meio dos
apóstolos, assim levou avante a atividade destes por meio do fruto de sua obra,
e ainda continua até alcançar seu objetivo (Mt 24.14). Dessa maneira a missão
da Igreja é, simultaneamente, a missio Dei nos tempos de hoje, por esta encer
rada e promovida (Mt 10.16; Lc 10.1; 9.2; Jo 17.18). Ela não é uma obra autô
noma, de iniciativa própria, arbitrária da Igreja; ela também não se justifica
pelo contexto; missão é, antes, a obra fundamental de Deus, obra do próprio
Deus segundo seu início, sua natureza, sua tarefa. Também na missão da Igreja
ele continua sendo aquele que envia, orienta, determina. \
Também existiria missão se não tivéssemos a ordem missionária, pois
pela atuação do Espírito Santo Deus não concede a seus discípulos uma fé
62
quiescente, muda, contemplativa e usufruidora, mas será sempre uma fé que
inquieta o cristão por causa da salvação do outro, uma fé viva e atuante, que
arranca o cristão de sua edificação pessoal, transformando-o em pedra de cons
trução e pedreiro. Por isso os apóstolos não podem deixar de falar (At 4.20).
Esse falar, porém, sempre é expressão da certeza de redenção e salvação (Rm
10.8ss.). Eles também falam por meio de suas vidas (2 Co 4.11; 5.15). Pela fé, os
discípulos sempre se encontram a serviço da reconciliação, de oferecer a salva
ção aos seres humanos. A comunidade somente pode prestar esse serviço por
que o Espírito Santo a capacita (2 Co 3.5s.). Ele lhe concede o impulso para o
testemunho e com isso a arranca constantemente do sossego. Por meio do
Espírito, a Igreja pode agir em lugar de Deus do modo como Deus agiu com
seu Filho. O primeiro exemplo disso é At 13.1-3. A Igreja agora executa a
missão e, através dela, a missio Dei se torna visível ao mundo. Nesse processo
Deus determina quem deverá enviar e quem deverá ser enviado. Esse envio é
descrito em At 14.26: "... de onde haviam sido recomendados à graça de Deus
para a obra que já haviam cumprido”. O sentido último do envio consiste no
fato de os mensageiros estarem sendo colocados à disposição de Deus para o
serviço entre os gentios. Com isso não está sendo dito apenas que os missioná
rios encontravam sua ajuda, alegria e consolo em Deus, mas que Deus podia
dispor inteiramente deles. A vida dos missionários estava colocada inteiramen
te nas mãos de Deus, de onde não havia mais retorno. Do mesmo modo como
os discípulos se põem a serviço do Senhor com tudo que são, assim podem
agora ser recomendados a ele. Tudo isso se evidencia na vida do apóstolo
Paulo. Para ele não existia evasiva; ele tinha que engrandecer a Jesus Cristo em
seu corpo, “quer pela vida, quer pela morte” (Fp 1.20). Nem a comunidade
podia chamar esses mensageiros de volta. Tinha que deixá-los entregues à gra
ça de Deus. O quanto era séria essa concepção percebe-se no fato de nãe co
nhecermos as circunstâncias exatas da morte de quase nenhum dos apóstolos
e de a vida da maioria se perder na obscuridade. Eles se encontravam na graça
de Deus, e isso bastava.
Hoje o próprio ser humano se sente responsável por sua vida, e por isso
não admite mais que o Senhor da vida e do serviço a use até a morte. Já não é
mais decisiva a vontade de Deus, nem o objetivo do envio, nem o andamento
do reino de Deus, mas o bem-estar dos mensageiros, a segurança da vida, a
cobertura financeira. Se esses fatores deixam de existir, a missão é interrompi
da, como se o indivíduo ou a comunidade pudesse dispor da missio Dei. Hoje,
numa situação que exige empenho máximo, é preciso perguntar se, sob esses
princípios ditados pela imagem do ser humano, Deus ainda pode executar sua
missio.
Aqui é preciso perguntar mais uma vez qual o lugar que a Igreja ocupa
nessa concepção de apostolado. A resposta de Hoekendijk é radical:
63
Onde se encontra a Igreja nesse contexto? Certamente não no ponto de partida,
nem no ponto dc chegada. Exagerando, se deve dizer: ela não se encontra em
parte alguma; ela se processa, acontece, vem a ser enquanto o evangelho do
reino é anunciado ao mundo. Igreja só existe in actu Christi, isto é, in actu apostoli.
Por isso ela não tem um lugar fixo, mas é uma paroikia, um assentamento que
jamais se torna pátria; a caminho rumo aos confins do mundo, em direção ao
fim dos tempos. “Assentada” sobre o fundamento dos apóstolos e profetas a
Igreja permanece somente se ela vai com os apóstolos a anunciar o reino (...)
Testemunhar o reino ao mundo, eis seu opus proprium, que, todavia, não é mais
sua obra, mas ergon kyriou. Na medida em que a Igreja tem parte nessa obra - no
apostolado - ela é “Igreja”.'7
Por mais que possamos subscrever a última frase, sentimos, não obstante, que
aqui não está sendo questionado apenas, a partir de um conceito, todo o pen
samento eclesiástico desenvolvido até hoje, mas que também a Igreja se dissol
ve num evento, numa grandeza incompreensível, que se dilui constantemente
no apostolado. Aqui se rompe com a visibilidade da Igreja, pela qual, por exem
plo, Bonhoeffer778 se empenha tão apaixonadamente. Aqui também se abando
nou o que acima descrevemos como discipulado, o que se manifesta não so
mente nessa comunhão mas também no envio. Pode-se descrever a natureza
da Igreja dessa maneira?
Sem dúvida, também conforme a Confissão de Augsburgo, art. VII, a Igre
ja não é instituição; mas para que se possa pregar corretamente a Palavra e
administrar os sacramentos de acordo com sua instituição, tem que se apresen
tar uma comunidade, tem que existir um ministério. Acaso a Igreja não é muito
mais que apostolado? Inclusive se a reduzirmos aos verdadeiros crentes, se apli
carmos a ela rigorosamente o conceito de discipulado, ela não é apenas envio e
querigma. É certo que aqui o Senhor pode ser tudo em seu agir. Onde, porém,
está o Senhor, também surge uma comunidade visível, e essa vive79 não somente
no anunciar, mas sobretudo no ouvir, que é premissa para o testemunhar. Ela
também vive no amor, que se torna efetivo nela por meio de Jesus Cristo justa
mente pelo ouvir, e ela vive na adoração e no louvor. Vive no sacramento e,
assim, na comunhão com seu Senhor glorificado. Também nessas realidades se
realiza igualmente a Igreja, porque com elas está associado o testemunho.
Dois homens se opuseram a essa superficialização do conceito de Igreja e
devem ser mencionados neste contexto: Johannes Blauw demonstra que a essên
cia da Igreja consiste na comunhão com Cristo e que kerygma, diakonia e leiturgia
devem ser vistos sempre em inter-relação e condicionar-se mutuamente.
Com que facilidade a missão perde o elo com as demais manifestações de vida
da Igreja! Naturalmente é possível dizer que a Igreja tem somente uma função: a
missão ou o apostolado, mas, ao se dizer isso, sempre se tem consciência de que
não é isso e não pode ser isso. Que todas as manifestações da Igreja devem estar
64
voltadas para o martyrion, isso é outro assunto (...) Com a mesma razão, porem,
se pode dizer que tudo na Igreja deve visar ao louvor de Deus, ao culto, inclusive
a missão.80
Ao lado disso, é sobretudo van Ruler que reconhece as fraquezas da dou
trina do apostolado, que sente sua discrepância da compreensão correta de
Igreja e que tenta repensar todo esse tema. “A essência do apostolado da Igreja
não consiste no fato de ela ir mundo afora, dando nele seu testemunho, e de
ocupar um espaço no mundo, e, sim, no fato de ser usada. Ela é instrumento.”
Aqui, portanto, a Igreja é contraposta ao apostolado como grandeza determi
nada por Deus. Por sua vez, o apostolado é definido mais precisamente a partir
da predestinação: ele não é uma qualidade, isso seria uma redução eclesiológica.
Ele é mais que uma incumbência, pois do contrário a Igreja correria o risco do
ativismo. Também é mais que testem unho, senão a Igreja sucumbe à
humanização. “O apostolado é a essência da Igreja”, ela é instrumento de Deus8182.
Por mais alvissareiras que sejam essas delimitações, elas ainda não acer
tam o cerne da questão. Se a essência da Igreja realmente consiste em sua
destinação ou em seu ser, portanto no fato de Jesus Cristo, como cabeça da
Igreja, ter feito dela seu corpo, lhe conceder sua comunhão, unir os membros
a si, permeando-a com Palavra e sacramento para fazer dela uma Igreja, dan
do-lhe uma destinação como grandeza formada e determinada por ele e que
tem todas as características do discipulado, então se desenvolve a partir dos
dons que ele lhe concedeu e a partir dessa vida em Cristo o apostolado, que,
sem dúvida, não tem outro objetivo do que levar a Igreja ao serviço para a
salvação da humanidade.
Para isso ela foi eleita para fora do mundo, a fim de prestar ao mundo o serviço
de que ele inais necessita e que consiste justamente em lhe dar testemunho de
Jesus Cristo e de chamá-lo à fé nele. Ela teria esquecido c posto a perder sua
eleição se quisesse viver para si mesma e fosse abandonar esse serviço, se não
fosse mediadora de fato.
Além disso, nossas objeções são confirmadas também a partir de outro
raciocínio, que é muito importante tanto para os irmãos holandeses quanto
para K. Barth, mas que também ali é concebido inteiramente a partir da elei
ção. Trata-se da idéia de povo de Deus. Também neste caso queremos primei
ramente perguntar o que a Bíblia diz a respeito.
80 J. BLAUW, Mission lebt von der Kirche, in: Die Botschaft vonJesus Christus in einer nichtchristlichen
Welt, Studentenbund für Mission, 1952, p. 16.
81 A. A. van RULER, op. cit., p. 7.
82 K. BARTH, op. cit., 1942, vol. 11,2, p. 217.
65
17. O novo povo de Deus
Não existe missão sem envio bem concreto. Ela não acontece numa atua
ção dinâmica da comunidade, mas na transmissão concreta do serviço e em
instrução. Por um lado, esse envio já está estabelecido no sacerdócio de todos os
crentes juntamente com o Batismo, mas se torna um envio real ao mundo onde
mensageiros são chamados e enviados. A comunidade não teria o direito para
isso se não fosse ela própria, conforme constatado acima, um membro da missio
Dei. Ora, através dela acontece à Igreja a mesma coisa que já constatamos na
introdução com vistas ao próprio Deus. Assim como Deus se confronta com o
mundo pecador em sua missio e, não obstante, estabelece seu relacionamento
com o mundo através do envio, ele agora concede a sua comunidade a mesma
posição. A Igreja sempre estaria no perigo de conformar-se com o mundo, de
ser absorvida pelo mundo ou de estabelecer a unidade com o povo. O perigo é
tão grande porque as religiões entendem a comunhão religiosa como comu
nhão cultural e nacional, e porque todos os estados querem garantir a unidade
do povo pela unidade da religião. Esse perigo sempre existe na Igreja porque
ela, necessariamente, também se torna comunhão por nascimento.
Ela pode defender-se contra esse perigo se, por um lado, pelo envio se
souber colocada inteiramente ao lado de Deus e, por outro, entender-se como
inteiramente enviada ao mundo. Ela está colocada ao lado de Deus porque
seus membros foram tirados do mundo por Jesus Cristo pelo amor e unidos na
comunidade para serem o povo de Deus. A esse novo povo de Deus se aplicam
todas as qualidades que o povo de Deus do Antigo Testamento possuía (1 Pe
2.9). Através delas a comunidade se distingue do mundo. Em sua vida e atitude
interior ela é diferente do mundo; não pertence a si mesma, nem ao mundo, e,
sim, a Deus. Nela se revela a vida a partir de Cristo. Por isso ela é uma carta de
Cristo ao mundo (2 Co 3.3), visível e legível para o mundo. Em meio ao mundo
das trevas, ela é a luz, na corrupção ela é o sal. Mas também isso ela não é a
partir de si mesma, mas de Deus. Não o é para si mesma, mas para o mundo.
Por isso só se pode falar da essência do mundo partindo de Deus e definindo
a partir do vis-à-vis o que é comunidade. Assim, somente a partir da missão
pode revelar-se a verdadeira essência da comunidade.
Com isso estamos afirmando que a comunidade tem que atuar no mun
do sobretudo através de sua presença. Ou ela é uma comunidade do testemu
nho, do serviço, do louvor, ou ela não é comunidade de Jesus Cristo.
É ela que, com seu conhecimento e experiência da graça de Deus, responde
vicariamente pelo resto do mundo que ainda não tem parte nos testemunhos do
Espírito Santo, e que, então, nessa sua singularidade, está investida, por sua vez,
no serviço da reconciliação, para testemunho da graça de Deus diante desse
resto do mundo.83
66
A co n g re g a ç ã o c ren o v ação d a Ig re ja n ã o são fin s e m si, m as serv em ao serv iço
d a Ig reja n o m u n d o , d a Ig re ja q u e é a luz d o m u n d o e o sal d a te rra , n ã o p ela
fo rça d o s seres h u m a n o s, m as p e lo p o d e r d e C risto, p e la d in â m ic a d o re in o d e
D eus q u e m ove o m u n d o , o re in o d e D eu s q u e veio, vem c v irá ao m u n d o .84
67
19.20). Por um lado, isso só pode significar que, juntamente com a comunida
de, crescem também a força e a área de atuação da Palavra, porque crescem as
possibilidades do Espírito Santo através de um grande número de testemu
nhas. Por outro lado, porém, isso também significa que o ministério que tem
a tarefa de proclamar a Palavra, precisa ter em vista a expansão da comunida
de. Portanto, a Palavra assume forma na própria comunidade e se torna na
comunidade uma Palavra que cria vida e se espalha.
68
A crítica de Hoekendijk partiu sobretudo do conceito alemão de povo e
nacionalidade determinado pelo romantismo e defendido por diversos teólo
gos e missiólogos. Para definir a posição correta da comunidade no mundo e
perante o povo, os missiólogos holandeses perguntaram pela importância
propedêutica do povo de Israel, o povo de Deus no Antigo Testamento, para a
essência da Igreja e sua posição frente ao mundo. Uma contribuição infeliz
mente muito pouco considerada veio de A. Oepkc87, que, embora tivessse tira
do de suas conclusões poucos ensinamentos para a missão, disse coisas decisi
vas para a Igreja. Oepke mostrou o quanto a idéia de povo de Deus é
determinante para a compreensão da comunidade neotestamentária, de ma
neira que, baseada nela, a cristandade primitiva adquiriu sua autocompreensão.
A pesquisa mais profunda foi fornecida por J. Blauw88. Ele examina o que a
Sagrada Escritura entende por gentios. Como os gentios são o oposto do povo
de Deus, necessariamente teve que ser analisado também o que a Sagrada
Escritura entende por povo de Deus.
O surpreendente é que os diversos pesquisadores chegam aos mesmos
resultados. A eleição de Israel foi chamado ao serviço. Israel deveria confron-
tar-se com o mundo de maneira que no exemplo do povo de Israel se revelasse
aos povos o senhorio de Deus. Por isso a eleição de Israel já tinha importância
cósmica e perspectiva escatológica. Daí resulta, através da autocompreensão
da Igreja como novo povo de Deus, sua posição perante o povo e o mundo. A
Igreja se encontra em contraposição ao mundo, e por isso é enviada ao mun
do. Por essa razão seu serviço é quantitativamente ilimitado, ela tem que al
cançar todas as pessoas. No entanto, surge uma limitação qualitativa pelo fato
de a Igreja, como portadora da revelação, ter que defender a verdade e con
frontar o mundo com a pergunta pela verdade. Somente se quiser ser povo de
Deus em tudo e, assim, Igreja de Jesus Cristo, ela poderá ter a mais forte influ
ência sobre o mundo. Desse modo sua posição especial se torna premissa para
o universalismo de seu serviço salvífico. Disso também resulta que a Igreja
somente poderia ser comunidade de Deus entre os povos89. Essas idéias foram
trabalhadas mais intensamente na Conferência Missionária Mundial de
Willingen, na qual se chegou à compreensão de missão aqui exposta e se defi
niu a Igreja como povo peregrino de Deus, que vive em tendas e realiza seu
serviço até que o Senhor venha90.
Por meio dessas percepções foi, por um lado, fundamentado mais deta
lhadamente o pensamento já exposto acima de que a predestinação e o aposto
lado estão inter-relacionados. Por outro lado, também se mostrou o perigo que
resulta de uma compreensão puramente dinâmica de Igreja. Se a Igreja se
entende como povo de Deus, não se está defendendo certamente a instituição,
69
a sedentariedade ou lerdeza, a restrição a limites territoriais; não obstante, está
sendo dito que, de algum modo, a comunidade tem que assumir forma para
poder arrostar o mundo. Justamente se quiser exercer o apostolado, ela tem
que ser uma grandeza sui generis. No entanto, esses pensamentos são reprimi
dos pelo temor de que, em virtude do conceito de Igreja como organização,
ela teria que ocupar-se tão intensamente consigo mesma que não lhe sobrari
am forças para um testemunho perante o mundo. Esse perigo naturalmente
também existe em qualquer outra forma de Igreja. Nenhuma a protege de
vestir a couraça da organização e de tornar-se estéril. Antes, ela sempre deveria
deixar-se empurrar para o gueto por meio de seu serviço no mundo. Pois se
isso acontecer por iniciativa do mundo, o gueto se torna o lugar de sua atuação
pública. Se agora, em virtude desses perigos, fôssemos eliminar a idéia de
Igreja, também se perderia a idéia do apostolado. Apostolado autêntico só é
possível onde a Igreja é uma grandeza visível bem definida, que se expressa na
confissão. Com isso a catolicidade da Igreja não sofre restrição, antes adquire
sua multiplicidade universal, que, por outro lado, também está implícita no
fato de estar determinada etnicamente. Portanto, o apostolado não leva ao
ilimitado, nem apaga os limites; onde se pensa a partir da essência da Igreja, o
próprio apostolado leva às singularidades das diferentes igrejas.
E significativo que, no contexto da situação especial da Igreja, não haja
referência à importância dos sacramentos. A verdadeira Igreja, porém, sempre
recebe seu lugar no mundo pelo fato de se reunir em seus cultos, de se deixar
incluir na comunhão com seu Senhor no sacramento e influenciar o mundo
pela força recebida por Palavra e sacramento. Ela só pode transmitir a vida
com a qual ela mesma se deixa presentear. Todavia, tem que passá-la adiante se
quiser ficar com ela, do contrário ela fenece. A posição da Igreja perante o
mundo, portanto, não resulta apenas do fato de Deus lhe ter confiado o tesou
ro da Palavra e do sacramento, para, através deles, pregar a reconciliação ao
mundo. Esse serviço, que faz dela um membro da missio Dei, confere então à
Igreja a posição de que necesssita para alcançar seu alvo missionário.
70
Capítulo 4:
O alvo da missão
Muitas das coisas que deveriam ser ditas sob este título já foram expostas
e mencionadas, pois não se pode expor o embasamento da missão sem ter em
vista seu alvo, que confere ao embasamento a expressão derradeira. Por isso
queremos restringir-nos ao que ainda não foi dito, sobretudo sobre a confor
mação da comunidade.
71
somente poderia ser alcançado em etapas e apenas até certo grau. Cada um
deles, sobretudo os missionários, buscaram caminhos próprios que se reco
mendavam a partir da nacionalidade que se tinha em vista. Nenhum deles
acreditava que com isso estaria excluindo o trabalho missionário básico, que
consiste na proclamação; a nenhum deles ocorreu a idéia de contornar a deci
são individual. Que fique constatado isso, porque esse fator é facilmente es
quecido na crítica. Ainda se deve acrescentar o fator positivo de que justamen
te o objetivo missionário nessa formulação obrigou os missionários a tomarem
o lado oposto bem a sério, e a ensejar-lhe uma decisão própria a favor do
evangelho. Eles também sabiam que nunca se pode tomar o ser humano como
ser individual. Pois ele sempre é influenciado em suas decisões de alguma
forma por seus semelhantes, quer pertença a uma massa anônima, quer a uma
comunidade orgânica. Conseqüentemente, a comunidade deve ser permeada
pela mensagem, quando se quer conquistar o indivíduo.
Na conversão dos povos se havia colocado um amplo e compensador
objetivo missionário, que tirou o trabalho missionário do confinamento e lhe
propôs uma grande tarefa pedagógica. Esta deveria levar os povos a objetivos
cristãos, sob o maior respeito possível à nacionalidade, de maneira que da
síntese de evangelho e nacionalidade pudesse nascer uma cultura sustentadora
própria. As experiências pareciam dar razão aos defensores desse objetivo,
pois onde ele foi perseguido, surgiram igrejas fortes, profundamente enraizadas
no povo. Assim, cristianização nacional ou dos povos se tornou o objetivo do
trabalho missionário e como tal foi adotado em grande escala pela missão
continental, embora executado em diferentes variações. Sobretudo a missiologia
alemã se encontrava sob esse “etnopatos” (Hoekendijk). A crescente expansão
da civilização ocidental com suas influências desagregadoras entre os povos, a
acentuação de um cristianismo normativo pelas missões anglo-saxônias tive
ram por conseqüência que a missiologia alemã se tornasse mais e mais defen
sora do cristianismo condicionado à nacionalidade, sendo que os perigos de
se colocar a nacionalidade acima do evangelho ou de se extrair do evangelho
mais do que estava dito sobre o povo nem sempre foram vistos e considerados.
Somente com Hartenstein e Freytag começou o reexame acima mencio
nado, que distinguia a comunidade rigorosamente de seu ambiente natural.
Durante a última guerra, os perigos dessa missiologia foram ilustrados de modo
avassalador pelos excessos do nacionalismo. Por isso mesmo tornou-se objeto
de rigorosa crítica, que teve em Hoekendijk seu porta-voz91. A missão alemã
deve deixar-se chamar à razão por sua publicação, e Hoekendijk merece que a
teologia alemã se ocupe com ele. Para tanto certamente forneceu suficientes
desafios histórico-eclesiásticos, exegéticos, sistemáticos e missiológicos. Infe-
lizmente, porém, até hoje o livro com suas exposições profundas e básicas não
mereceu atenção. Ou a teologia é tão introvertida a ponto de não dar atenção
a tais publicações, ou ela se sente muito superior ao que um homem da missão
tem a dizer.
72
2. O conceito ta ethne
92 J. DÜRR, Sendende und werdende Kirche in der Missionstheologie G. Warnecks, 1947,pp. 146ss.
93 K. BERTRAM, & K. L. SCHMIDT, art. ethne, in: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament,
vol. 11.
73
sentido histórico-salvífico, poderiam então os seres humanos ser concebidos
sem seu referencial nacional? Também a partir da história da salvação, o ser
humano é visto em sua ambientação natural. Na Escritura, o termo ethne sem
pre é usado no sentido de “liga nacional” e pode ser aplicado também a Israel.
Associado a panta, o vocábulo ethne significa os povos em conjunto e também
em sua diferenciação (Mt 24.9; 24.14; 25.32; 28.19; Mc 11.17; 13.10; Lc 21.24;
24.47; Rm 11.25; G1 3.8). Em outras passagens, o termo é usado inteiramente
no sentido histórico-salvífico como oposto ao povo de Israel (Mt 6.7; Lc 12.30;
Mt 10.5; 20.19; At 14.16). Aqui não está incluído Mt 28.19, versículo com o
qual Warneck fundamenta seu objetivo missionário. Com a diferenciação dos
povos também se tem em mente a religião gentílica. Não obstante, é impossível
demonstrar que ethne pode ser traduzido simplesmente por “gentios” ou “seres
humanos”, tampouco que panta ta ethne, como pressupõe Hoekendijk, seria
um equivalente de pasa ktisis ou hapas kosmos.
Todavia, é de se perguntar se a missiologia alemã tinha razão, porque
ethne é um termo muito ambíguo já no Antigo Testamento. Ele não transmite
mais a consciência de que o plural designa uma pluralidade de povos em sua
singularidade. O termo significa “os seres humanos fora de Israel” sem consi
derar seu caráter sociológico. Nesta acepção o termo também foi entendido
no mundo grego, na época do Novo Testamento. Os romanos designavam
com ele os não-romanos, portanto, os estrangeiros e bárbaros. Desse modo o
conceito também expressaria o contraste cultural. Assim, podemos dizer: com
o termo ethne se designam pessoas e povos fora da comunidade de Deus, ou
fora da cultura dominante. No entanto, temos que deixar em aberto se devem
ser vistos em seu contexto sociológico e condicionamento nacional. Portanto,
não é possível demonstrar o objetivo missionário de Warneck a partir da or
dem missionária. Também a idéia dos costumes étnicos, que devem ser preser
vados, não pode ser fundamentada com o mero conceito ethne.
3. O objetivo da missão
74
ser anunciada em todo o ecúmeno, que é o habitat das nações e, por conse
guinte, o espaço da proclamação da Igreja. Dessa maneira ecúmeno e cosmo se
tornam correlatos da basileia e, assim, o oposto da missio Dei e do apostolado.
Portanto, o alvo da missão é a proclamação da mensagem a toda a humanidade
e sua congregação na Igreja. Em nenhuma parte da Escritura, porém, está dito
que esse objetivo será atingido. E inerente à natureza da revelação e, conse-
qüentemente, da natureza de Deus, que a palavra seja dirigida a toda pessoa. É-
lhe oferecida a oportunidade da fc c da redenção. A Escritura, todavia, tam
bém é suficientemente sóbria para nos deixar claro que apenas parte das pes
soas aceitará a mensagem. Como não é possível constatar quem é essa parte, a
Igreja é responsável por toda a humanidade.
75
J. Blauw constata que a Bíblia sempre fala dos gentios do mesmo modo
como fala do ser humano natural. Este peca sem revelação, transgredindo suas
próprias leis. Mas, assim como a revelação não é anulada porque as pessoas
não a conhecem, tampouco são anuladas as ordenações porque a consciência
do ser humano está turbada. Evidentemente, não é possível escrever uma teo
logia das ordenações, como aconteceu repetidas vezes; para isso a base é insu
ficiente. Nesse sentido Hoekendijk tem razão com sua crítica severa a essa
teologia. Em sua revelação, Deus estabeleceu outras ordenações que devem
entrar em vigor através da comunidade. Mas também santificou ordenações
existentes e as colocou sob seu mandamento. Por isso, é somente a partir da
Escritura que se pode determinar e a partir da comunidade definir o que em
cada caso pode permanecer na confrontação entre evangelho e cultura nacio
nal. Deus deu o mandamento do amor também à comunidade e com isso todas
as ordenações da esfera humana receberam um sentido totalmente novo. Com
o conceito ethne está associada também a determinação étnica, que não é anu
lada pelo mandamento do amor. Onde o amor deveria revelar-se como tal,
senão justamente nos compromissos que determinam o convívio das pessoas?
Em tudo isso é preciso que saibamos que um bom número de ordenações que
aceitamos naturalmente como cristãs, não estão ancoradas na Escritura, mas
têm sua origem na moderna imagem do ser humano e, por isso, muitas vezes
se contrapõem ao pensamento bíblico, sem que nos sintamos autorizados a
nos opormos a elas. Agora, a partir da Escritura é a mesma coisa adotar orde
nações antigas ou introduzir as que surgirem em outro ambiente humano.
Também estas últimas não oferecem à comunidade a garantia de uma confron
tação autêntica. Na melhor das hipóteses, destacam a estranheza da Igreja. Em
última análise, toda ordenação é um perigo para a comunidade, se não for
sustentada por pessoas que sabem pelo renascimento que Jesus faz novas todas
as coisas.
6. A linha pedagógica
77
e B. Gutmann bem como C. Keysser, em sua prática de comunidade, procura
vam, seja de modo consciente, seja inconsciente, em última análise a síntese de
história salvífica e história profana. Ao fazerem isso, certamente havia o perigo
de despir a história salvífica de seu caráter ontológico e de erigir na história
profana certa teocracia. Isso, porém, não é somente o caso deles. Existem mui
tas igrejas jovens no mundo em relação às quais é de se perguntar se se trata de
uma nação cristianizada ou de um cristianismo nacionalizado.
Por outro lado, esses métodos oferecem grandes possibilidades para co
locar todas as esferas da vida sob a palavra de Deus e, desse modo, permear a
vida toda. Hoekendijk reconhece essas fraquezas; no entanto, quer garantir
esse último fator sobretudo pela “ecologia”. Em geral, impõe-se a pergunta se
Hoekendijk, no afã de preservar a posição singular da comunidade, não acaba
num afunilamento piclista, que também não é superado pela recomendação
do comprekensive approach (“abordagem inclusiva”). Hoje as perguntas por povo
e nacionalidade, pelo caráter autóctone da Igreja são de importância eminente
para as igrejas jovens que sofrem sob o nacionalismo e, conseqüentemente,
sob a acusação de serem alienígenas. Sua busca por autonomia certamente não
é apenas reação contra o expansionismo e colonialismo eclesiástico, e, sim, a
luta por uma configuração própria, em seu ambiente de vida. Em todo caso, a
reflexão e o diálogo devem continuar.
O assunto recebeu novo estímulo pelos trabalhos de MacGavran e S.
Trimmingham, que mostram94 que a Igreja e a missão só podem ter sucesso se
oferecerem sua mensagem através dos canais naturais como parentesco e ami
zade, onde é repassada de pessoa para pessoa. Desse modo não ocorre nenhu
ma ruptura social; o convertido continuaria em contato com sua família e pa
rentela; a comunidade se tornaria, desde sua criação, uma grandeza social que
oferece segurança, e, dessa maneira, uma comunidade também poderia ser
elemento transformador. Uma das perguntas vitais mais candentes para as igrejas
jovens hoje é se elas têm uma contribuição a dar para a cultura de seus povos,
de modo que princípios cristãos venham a ser fatores determinantes para a
construção da nação. Se isso é possível, depende, em grande parte, de até que
ponto a comunidade analisou os problemas de sua própria cultura inata e se
confrontou com eles.
7. Missão e civilização
Será que Hoekendijk não se excedeu em sua crítica? Acaso não escreveu
unilateralmente a partir da imagem moderna do ser humano? Em todo caso,
ele nos mostra que hoje, em vista da imensa influência da civilização, as parti
cularidades étnicas não têm mais futuro. As pessoas não querem mais arrastar
94 D. A. MacGAVRAN, The ßridges of God, 1955; S. TRIMMINGHAM, Die christliche Kirche und
der Islam, Evangelische Missionszeitschrift, 1955.
consigo suas próprias formas, mas buscam o contato com a greal society, com a
família da humanidade criada pela civilização. - Neste sentido ele tinha razão,
em grande parte, por ocasião da publicação de seu livro. Parece que o ponto
crítico está ultrapassado e que as características próprias estão sendo enfatizadas
novamente. Com isso as perguntas acima tornam a ser muito candentes para
toda Igreja jovem e para toda missão. Nessa situação, Hoekendijk recomenda o
comprehensive approach. De acordo com ele, todas as esferas da vida do ser
humano devem ser permeadas com pensamentos cristãos, de maneira que as
pessoas aprendam como se pode ser cristão e agir de modo cristão em tudo.
No fundo ele tem o mesmo objetivo que o trabalho relacionado à nacionalida
de: não excluir nada da esfera de Deus95. A pergunta principal aqui é: que se
entende por “cristão”? A Bíblia dá instruções concretas somente em poucos
casos. A conseqüência é que por meio do comprehensive approach é transmitido
como cristão aquilo que percebemos como tal, nossa civilização. E temos nós
o direito de transmiti-la? Seria ela cristã pelo simples fato de se ter formado
através de uma história secular com o cristianismo? Não acontece, neste caso,
a mesma coisa que o outro método quer atingir com base na cultura nacional?
Temo que os problemas que surgem neste ponto sejam piores do que na teoria
da nacionalidade.
O problema nesse approach não consiste nos fatores locais existentes, mas
na incapacidade do missionário de reconhecer seu valor e de confrontar-se
com eles através da comunidade. Enquanto o missionário se coloca acima do
povo com seu pretenso modo de vida cristão, dificilmente reconhecerá como
aproveitável e em condições de ser desenvolvido o que encontrou. Conseqüen-
temente o rejeitará. Deste modo, porém, justamente não acontecerá uma con
frontação autêntica! Pois esta não se dará entre evangelho e cultura nacional,
mas entre civilização e cultura nacional. Até hoje somente muito poucos missi
onários compreenderam o que é um contato e confrontação autênticos. O
contato nunca pode ocorrer de modo diferente do que o contato que o pró
prio Deus estabeleceu por meio de Jesus Cristo. Este veio como ser humano a
determinado povo e viveu sob as mesmas condições sob as quais esse povo
tinha que viver. Dessa maneira suportou com o povo suas mazelas e, sob as
mesmas condições em que o povo teve que comprovar sua fé, mostrou a seus
semelhantes como o ser humano pode tornar-se e permanecer filho de Deus
em todas as circunstâncias da vida. Ele criticou muitas interpretações das orde
nações de seu povo, discutiu com as lideranças do povo. Reiteradas vezes con
trapôs a comunidade de Deus, o reino, ao que os judeus imaginavam que fosse
esse reino. Em tudo, porém, permaneceu um igual. Onde um missionário
consegue tornar-se isso, resolvem-se por si muitas perguntas que, por via teóri
ca, recebem um peso imenso.
Não devemos acentuar as ordenações comunitárias de um povo a ponto
de se oporem às ordenações do amor na comunidade. Também não as deve
mos apresentar como forma inicial da comunidade. Mas também não as deve
95 E. Jansen SCIIOONHOVEN, Wort und Tat im Zeugnisdienst, in: Mission - Heute, 1954.
79
k.
mos desprezar ou desmerecer. Somente podemos perguntar o que a palavra de
Deus diz a respeito e como podem ser estruturadas essas ordenações a partir
dela. Também é preciso saber que toda particularidade da Igreja determinada
pela nacionalidade não passa de uma roupagem terrena. A relação com a cultu
ra nacional somente se tornará correta, quando se sabe que essa roupagem é
efêmera e que a comunidade se livra dela na medida em que se deixa moldar
pela vida nova, determinada pelo Espírito Santo. Em todo caso, precisa saber
que não deve enfatizar essas particularidades, pois a comunidade de Jesus Cris
to se constitui de membros de todos os povos, seu fator comum, sua comunida
de, é a lei de Cristo, sob o qual ela vive.
A n a c io n a lid a d e n ã o se a p re s e n ta c o m o p ré-estág io p a ra a re c e p ç ã o d o evange
lho, e ta m p o u c o o efeito d o ev an g elh o co n siste n o d e sd o b ra m e n to d a in d iv id u
alid a d e d e u m povo (...) O carac te rístic o é ju s ta m e n te a in te n ç ã o univ ersal, su-
pra-ética, su p ra-racial d a m en sag em d e C risto .96
8. O desenvolvimento gradativo
9. O m étodo evangelístico
81
bém ter havido contato com testemunhas. É uma experiência tanto da Escritu
ra quanto da missão que o Espírito Santo atua sempre através da testemunha.
A palavra anunciada que se torna evidente em sua vida, que pode ser sentida
em sua personalidade, impressiona o ouvinte. Ao ouvir sempre tem que associ
ar-se o exemplo. Por isso o cristianismo sempre se espalha mais onde o efeito
do evangelho se torna visível numa comunidade ou na vida de uma pessoa.
Disso se evidencia o quanto é importante que a mensagem se torne reali
dade através do envio. Por isso ela também é uma porção da atividade e capa
cidade humana, sem que com isso se pusesse em dúvida a atuação do Espírito
no mensageiro. Mas o próprio mensageiro tem que ser obediente à mensagem
e deixar-se moldar por ela. Sem dúvida, ninguém pode, como ser humano,
tornar alguém crente. Não obstante, isso depende em grau incrivelmente ele
vado da atitude do mensageiro. Paulo diz em 1 Co 9.19ss. que se tornou escra
vo de todos a fim de ganhar alguns; e em Rm 1.5 afirma que recebeu seu
ministério para produzir obediência da fé entre os povos. Com isso está dizen
do também que o missionário tem que ter um objetivo bem concreto, e que
terá que tentar permanecer fiel a esse objetivo por meio de seu próprio com
portamento. Portanto, há que ser muito cauteloso com o discurso, justificado
em princípio, de que Deus tem que fazer tudo. Sobre isso não se discute. Deus,
porém, realiza sua obra sempre na medida em que seu mensageiro se tornou
instrumento. Sempre é decisivo se este se subordina ao agir de Deus. No en
tanto, fica em aberto até que ponto os ouvintes acolhem a mensagem e como
ela se manifesta em suas vidas. Em todo caso, podemos deduzir das descrições
da vida comunitária nas epístolas do apóstolo, de suas admoestações, das com
parações da comunidade com os gentios, que também as comunidades do
Novo Testamento estavam longe de qualquer perfeição. Não obstante, Paulo se
refere a elas com elogios.
82
No caso da fé, a história é outra. Como confiança em Deus, ela precede a
conversão. Confiança nele, dependência dele, alegria por causa do perdão dos
pecados e da certeza de redenção também podem existir sem que a pessoa tenha
conhecimento de tudo que contradiz a Deus em sua vida. Com essa progressão
da nova vida, que sempre se fundamenta na fé e que é dada pela ação do Espírito
Santo, o ser humano aos poucos é tranfigurado na imagem de Cristo. Evidente
mente, essa fé pode sofrer abalos, pode ser levada a dúvidas. Ela passa por trans
formações. Nem por isso, porém, a nova vida tem que se tornar flutuante. A
pessoa humana pode permanecer firme em seus conhecimentos, sua vida pode
ter um cunho determinado. Segundo a Escritura, existe uma fé pequena e uma
fé grande. Existe a fé fraca e a fé forte. Em nenhuma parte, porém, é dito que a
fé fraca não seja fé e que ela possa ser aprofundada, ponto sobre o qual se
concentra grande parte de nossa prática eclesiástica. Deus é realidade em todas
essas formas de fé, sempre de acordo com a medida da fé. Isso, porém, nada
muda no fato de que também a pessoa com uma fé pequena ou fraca se tornou
crente. Por isso deveríamos ser bastante cautelosos em nossos juízos sobre con
versão e fé. Elas não são um processso tão simples que se possa formar um juízo
a respeito. Aliás, não está no arbítrio do ser humano o que ele crê. Em todas
essas formas de fé existe uma relação com Cristo e, conseqücntcmente, com
Deus. A pessoa distante de Deus não tem fé. O crente pode deixar-se conduzir
por Deus progressivamente de obediência em obediência. Com ela também
cresce sua fé. O crente pode deixar-se permear por Jesus e tornar-se ativo no
amor. Na fé, pode deixar-se presentear com a medida do Espírito e, na confiança
em Deus, levar uma vida nova. Onde, porém, não existe a fé, falta tudo. Ela
sempre é o sim ao agir misericordioso de Deus e com isso tudo está encerrado
em Deus. Quão maior seria nosso regozijo com a vida dos cristãos gentílicos se
tivéssemos a compreensão correta para a fé!
83
entenderá seus pecados como ato contra Deus, não se sentirá responsável,
rejeitando, por isso, a Jesus Cristo como Redentor.
Também em Corinto estava no centro da pregação o anúncio da ressur
reição. Se, não obstante, Paulo nada sabe senão a cruz, isso acontece porque as
pessoas determinadas pela filosofia grega acreditavam que podiam ser redimidas
segundo a sabedoria humana. Paulo não lhes pôde pregar outra redenção exceto
aquela uma que procede da ressurreição.
Portanto, a fé na ressurreição de Cristo c um elemento necessário não somente
na fé em Cristo, mas também na fé em Deus. Por si só, a morte de Cristo é a
crise da fé, porque ela faz duvidar ou de Cristo, ou de Deus. Sua ressurreição é
a superação da crise, porque nela o Pai - conforme costumamos dizer em analo
gias humanas - se identifica com o Filho.97
Somente por meio da proclamação de todo o agir de Deus em Jesus Cris
to as pessoas se tornam semelhantes de Jesus Cristo e recebem parte em sua
história. Por issso a fé não é uma opinião, uma convicção adquirida por meio
de conclusões lógicas, mas é a certeza da história da salvação. A esta os apósto
los tinham o dever de proclamar. Podemos fazer isso somente na medida em
que essa história se tornou nossa história por meio de Cristo, a história do agir
de Deus conosco.
Com isso, porém, se descreve apenas um aspecto da tarefa missionária e
dos meios da missão. O querigma sempre deve visar a ser ouvido pelas pessoas.
Elas não podem entrar no reino de Deus por si mesmas, têm que ser chamadas
a ele. Não podem se tornar discípulos se não dão ouvidos ao chamado ao segui
mento. Por isso a mensagem deve ser apresentada de maneira que seja ouvida e
entendida. A proclamação dos fatos salvíficos sempre remete os ouvintes a Deus
e os obriga a permitirem que seu relacionamento com Deus seja determinado a
partir dele. Deus o faz concedendo aos crentes perdão dos pecados, justificação,
renascimento e, conseqüentemente, uma vida nova, e preservando-os nela por
meio da santificação. Onde a revelação de Deus atinge o ouvinte sempre surge
algo novo: participação na vida eterna, que consiste na fé em Cristo (Jo 17.3).
Com isso está alcançado o objetivo imediato da missão. O ser humano está salvo,
foi arrebatado do outro reino e recebeu uma nova existência. Embora creiamos
que esse ouvir seja obra do Espírito Santo, vale, também neste caso, o que disse
mos acima sobre a auto-atividade de Deus. Também o ouvir passa pela testemu
nha. Ele é simultaneamente compreender. Se o pregador anuncia a Palavra de
tal maneira que as pessoas não a podem entender, ela permanece um eco vazio.
Se não for oferecida às pessoas em sua linguagem, não a podeião compreender.
Por causa da linguagem estranha ela não chega a ser a palavra do próprio Deus
para as pessoas. O ouvinte precisa fazer um grande esforço para entendê-la. Mas
Deus quer falar às pessoas. Por isso é imprescindível que o mensageiro fale a
linguagem do ouvinte. Um exemplo claro do que acontece quando se dá aos
ouvintes oportunidade para uma interpretação errônea por causa da linguagem
estranha é a história de Listra. Através da proclamação, Deus quer chegar tão
84
p erto das pessoas que toda a sua hum anidade seja envolvida p o r ela. Por isso o
m ensageiro deve dar-se o trabalho de traduzir sua pregação p ara form as de
pensar estranhas, deve confrontar-se interiorm ente com o m undo gentílico, a
fim de p o d er anunciar o evangelho.
A tarefa missionária dos apóstolos tem ainda outro aspecto: “Os enfer
mos curai, os mortos ressuscitai, os leprosos purificai, espíritos imundos expe
li!” (Mt 10.7; cf. Lc 9.1s; 10.9; além disso, o final secundário de Marcos). Aí
encontramo-nos diante de uma questão muito difícil, mas que justamente hoje
é sentida de novo com grande intensidade. Como sabemos, os apóstolos toma
ram essa incumbência a sério, pois ela de fato faz parte da pregação do reino.
Ela é incompleta quando a ordem do milagre não é cumprida.
Eles (os milagres) devem ser entendidos como manifestações do reino de Deus,
efetivamente presente em Jesus, e como tais, prenúncios da vindoura ação de
Deus na ressurreição. Ao estabelecimento do reino se opõem potestades deste
mundo, o poder satânico-demoníaco, o pecado, a enfermidade, a morte.98
Essas potestades do outro reino devem ser superadas porque Jesus as venceu.
Por isso o serviço da proclamação é incompleto quando não pode ser
comprovado por meio do ato salvífico. Os milagres, como os apóstolos os rea
lizaram, certamente não eram condicionados ao tempo em virtude de uma fé
mais forte dos apóstolos, ou porque naqueles tempos não se conhecessem ou
tros recursos contra as potestades além da magia. Também não é verdade que
estaríamos muito acima daquela época e que, por isso, esses atos salvíficos não
seriam mais necessários. Sabemos da existência de inúmeros sofrimentos pro
fundamente sentidos e que ainda hoje as pessoas necessitam de um Salvador,
do mesmo modo como naqueles tempos. A medicina moderna não tornou o
milagre supérfluo nem o substituiu. Ela não apenas possibilitou a cura das
doenças, mas também provocou outras. O progresso não apenas esclareceu o
ser humano; ele também o enredou em um demonismo ainda pior. O ser
humano continua sujeito a doença e morte. Por isso não se pode simplesmente
substituir a superação sobrenatural dos sofrimentos humanos pelas ciências
como dádiva de Deus. Elas jamais serão capazes de livrar as pessoas de doença
e morte e de eliminar os demônios. Procuramos na cristandade, nas obras de
misericórdia e também na missão externa a ligação com o progresso científi
co; cremos que com isso podemos substituir o mandato de curar, e muitas
vezes sequer suspeitamos o quanto nos submetemos a suas leis.
Tam bém a missão achou que podia cum prir a segunda parte da ordem
m issionária através de missões m édicas, escola, educação e serviço social. Com
85
esses empreendimentos propôs-se a preparar o serviço missionário propria
mente dito, conquistar as pessoas para darem ouvidos à mensagem; no entan
to, não considerou que essa segunda parte da ordem missionária já pressupõe
a fé. Do lado anglo-saxão acreditava-se inclusive poder realizar o reino de Deus
na terra. Deram-se falsas esperanças às pessoas. Em muitos campos missionári
os a proclamação era, na melhor das hipóteses, uma complementação do servi
ço social. () resultado não podia ser outro: essas instituições da missão contri
buíram para que se proporcionasse tudo à pessoa sem que ela fosse compro
metida com Deus. A própria missão colaborou na disseminação do secularismo.
A segunda parte da ordem missionária também não pode ser substituída
pela edificação de centros de peregrinação. Ainda que a fé nos santos expresse
a continuidade da Igreja, não se trata (abstraindo do contexto histórico-religi
oso) de testemunhas vivas que aí atuam, mas de mortos. Não seria justamente
a maior mazela da Igreja o fato de ela crer no Espírito Santo, mas de este, na
verdade, não constituir mais uma realidade para ela? Não está a teologia refre
ando-o constantemente porque, naturalmente, só pode proceder dele o que
seja conciliável com nossa maneira de pensar, com nossas ordens eclesiásticas
encardidas e com a ciência?
Entretanto, a Igreja também entendeu hoje que há uma carência, uma
deficiência em seu serviço; por isso surgiu o debate sobre o ministério da
cura. No entanto, essa segunda parte de sua tarefa missionária não deve ser
entendida de maneira errada. Falta nela o “todos” que encontramos na primei
ra parte da ordem missionária. Isso é significativo. Jesus não curou todos os
doentes, nem ressuscitou todos os mortos, nem deu ordem para isso. Também
não expeliu os demônios de todos os possessos. Se pretendêssemos a aplicação
geral, estaríamos levando a ordem para a esfera humana. No caso de Jesus, a
vida desempenhava um papel bem menos importante do que entre nós, onde
chegamos ao ponto de o bem-estar físico estar acima dos mandamentos de
Deus. Em contrapartida, tomou bem mais a sério e considerou mais importan
te o sofrimento em seu significado para a pessoa. Para ele, o sofrimento era
uma passagem para a salvação da pessoa. Jesus também sabia que com o afas
tamento do sofrimento ainda não está eliminado o outro reino. Ele pode
irromper novamente a qualquer momento, se não existem as condições para o
milagre. O que, porém, ele quis e o que seus apóstolos deveriam fazer foi o
seguinte: erigir sinais do reino e, desse modo, revelar ao mundo que, a princí
pio, o outro reino está vencido. Com isso ficava confirmada a pregação de que
ele é o Senhor de todos os senhores e, simultaneamente, o Senhor da vida
humana. Ele não usou o milagre para proporcionar ao ser humano uma huma
nidade em sentido autônomo, e, sim, justamente para romper a autonomia de
um mundo separado de Deus e vincular a pessoa a Deus. A segunda parte da
ordem missionária deve ser vista sob essas restrições.
86
13. A comunidade como alvo
Com isso está traçada a linha clara da fé. Onde ela não existe, ergue-se
uma frente contra a execução da ordem missionária. Nem todas as pessoas se
deixam levar à fé e, desse modo, salvar. Enquanto for pregado o evangelho,
acontecerá que pessoas deverão ser tiradas de seu ambiente, de sua comunhão
pela palavra de Deus. Com isso o cristianismo entra em oposição a todas as
demais religiões. Onde comunhão religiosa e comunhão por nascimento coin
cidem, a religião não necesssita de uma comunidade própria. Isso também
vale para o caso em que a comunhão religiosa é maior que a comunhão nacio
nal. A pregação do evangelho, porém, cria uma barreira entre os seres huma
nos, porque todos os que chegaram à fé são congregados em um modo de vida
próprio, a comunidade.
A comunidade cristã é um fenômeno único no mundo das religiões. Atra
vés dela surge igualmente um sinal do reino de Deus na terra. A comunidade é
a comunhão dos que, na fé, se entregaram ao Senhor e que vão ao encontro
dele. Seus membros também pertencem ao povo. A comunidade participa da
vida do povo, influencia-o através da proclamação e de sua vida diferente, e
representa o povo vicariamente perante Deus. Não obstante, ela é uma grandeza
sui generis, com leis de crescimento próprias. Ela pertence ao Senhor e, não
obstante, ele a ordenou de tal maneira que sua integração no povo seja impor
tante para ela. Pois se fosse e pudesse separar-se dele, ela seria, simultaneamente,
uma instituição político-social e não mais se distinguiria das formas de religião
gentílicas. Se, porém, constituísse uma comunhão de fé com o povo, deixaria de
ser comunidade de Jesus Cristo. Sua dupla pertença lhe confere o caráter especí
fico. Pela palavra de Deus e a comunhão dos discípulos entre si, ela está subordi
nada somente a seu Senhor e a partir dele tem que agora caminhar com o povo,
ou também contra ele, sob o juízo da palavra de Deus. No entanto, ela não pode
se isolar do povo. Ela tem participação na vida nacional e, não obstante, não
pode aceitar para si os limites do povo, pois pertence à única Igreja de Jesus
Cristo e tem seus irmãos e suas irmãs entre todos os povos.
Sem dúvida, ela tem que sofrer sob o desenrolar da história, mas não está
sujeita a ele como os povos, pois sempre se encontra na continuidade que vem
de Jesus Cristo e vai ao encontro de sua vinda. Nela estão congregados os filhos
de Deus de todos os povos e unidos na fé no único Senhor (Jo 11.52). Sem
dúvida existem nela pessoas de diferentes raças, mas essas diferenças não se
expressam nela. Embora possa reunir-se somente em comunidades locais, apre
sentando, portanto, todas as características humanas, ela vive, não obstante, de
acordo com as leis da Igreja que é uma só. O decisivo não são as peculiaridades
de sua roupagem humana, e, sim, a fé comum e o único Senhor, que tem riqueza
para todos (Rm 10.12; Cl 3.11). Ela se encontra em meio a esta vida e trabalha
em sua conformação, seguindo suas próprias leis, mas não se entrega à vida
como a querem moldar os seres humanos de acordo com seus próprios ideais.
87
E q u a n d o a c o m u n id a d e se to rn o u u m só c o rp o , n o q u a i estão e lim in ad as as
an tig as d iferen ças n acio n a is e sociais, cia a n te c ip a o novo povo d c D eus, q u e se
e n c o n tra sob a basikia d e seu kyrios celestial, a g u a rd a n d o sua parousia, su a e n tra
d a triu n fa l com o r e i ."
89
vida cria para si um espaço. Nela devem estar sob o amor, de maneira que um
membro ajude a carregar o outro e se lhe torne um auxiliador para a vida. Como
comunidade, são constantémente ouvintes da Palavra e reúnem-se para oração e
louvor. A nova vida não é uma vida desarraigada. Ela sempre precisa nutrir-se
das dádivas que Deus oferece a sua comunidade. Por seus cultos, a comunidade
torna e retorna a colocar-se do lado de Deus num mundo hostil a Deus. Na
comunidade dos batizados se tornam visíveis justamente o senhorio de Deus e a
vida nova a ele associada (Hb 9.4; Ef 4.13; Fp 3.12; GI 3.27).
Tornar-se crente, portanto, é apenas um alvo preliminar. O próximo passo
é viver como crente na comunidade, e nela e com ela servir ao Senhor. Com isso
está decidido que o reino de Deus não pode consistir apenas in actu. Palavra da
aliança, sinal da aliança são algo constitutivo. Com isso, naturalmente, não estamos
dizendo que o reino coincida com a comunidade. Abstraindo do fato de que
também entre os batizados há hipócritas, o reino de Deus é bem maior do que a
Igreja empírica. Esta nunca pode ser mais do que uma forma preliminar ou um
estágio intermediário. Se ela considerasse isso, certamente se orientaria mais
pelo reino vindouro e não se exauriria no stalus quo eclesiástico.
Para nutrir a nova vida criada no Batismo, preservar os crentes nos dons
salvíficos, fortalecer sua comunhão e estreitar sua união com o Senhor, Cristo
instituiu sua Ceia como Ceia da Aliança. No entanto, seria insuficiente entendê-
la apenas como meio de edificação. Também a Ceia tem caráter missionário.
P o r m e io d o a to d a C eia, J e s u s n ã o q u e r e x p lic a r so m e n te o s e n tid o d e su a
m o rte e revelar a d e stin a ç ã o u n iv ersal d a a lia n ça q u e se fu n d a m e n ta n ele, m as
q u e r ta m b é m c o m p ro m e te r os p a rtic ip a n te s, ao c o m e re m o p ã o c to m a re m o
v in h o , com a fid e lid a d e e p o s te rio r e x ten são aos m uitos. N este se n tid o pode-se
c o n sid e ra r a C eia c o m o a h o r a d o n a sc im e n to d a m issão e n tre o s g e n tio s.101
Mais importante do que essa muito arriscada ênfase na Santa Ceia nos
parece ser o fato de ela separar nitidamente a comunidade da Ceia do mundo
e do povo com sua religião. Ela não é apenas a expressão da comunhão mais
íntima do Senhor glorificado e vindouro com os membros de seu corpo, ela
não efetua apenas comunhão entre os membros baseada no perdão, de manei
ra que seja formadora de comunidade no mais alto grau, mas separa os crentes
das demais pessoas. Entre todos os povos a refeição conjunta expressa a comu
nhão daqueles que têm a mesma fé e que, em virtude do perdão, vivem em paz
uns com os outros. Na Ceia se torna evidente que a comunhão com Cristo
exclui qualquer outra comunhão. Por isso Paulo pôde, de acordo com 1 Co 10
e 11, usar a Ceia para combater do modo mais rigoroso o gentilismo, a comu
nhão com os demônios e, assim, o outro reino.
90
Ao mesmo tempo, através da Santa Ceia a comunidade se torna constan
temente uma comunidade confessante. Por meio dessa celebração ela procla
ma ao mundo a revelação que aconteceu uma vez por todas (1 Co 11.26). Por
tanto, também os dons de Deus nos sacramentos têm o seguinte aspecto du
plo: servem à salvação do ser humano e, ao mesmo tempo, são o conteúdo do
testemunho dos salvos. Por isso os sacramentos são de grande importância
para a missão entre os povos 102 .
• ~
102 W. FREYTAG, Die Sakramente auf dem Missionsfeld, Evangelische Missionszeitschrifi, 1940.
91
Capítulo 5:
A comunidade da salvação
92
4.20). Portanto, o reino está presente na comunidade e, por conseguinte, entre
as pessoas na medida em que Deus atua diretamente e as pessoas se deixam
chamar a ele. Estará presente, porém, em plenitude somente quando Jesus
Cristo voltar com poder (Mc 9.1). A comunidade vive sempre num estágio
preliminar do reino. Por isso seu testemunho e serviço devem encontrar-se sob
o signo do reino vindouro e ser prestados na esperança.
93
O serviço da comunidade corresponde a sua salvação e a sua posição no
mundo. Ambas as coisas se impõem a partir da escatologia, são determinadas a
partir da volta de Cristo e do juízo. A salvação existe porque há juízo e condena
ção. Por isso a comunidade sempre tem que chamar a atenção para os meios
através dos quais a salvação é conseguida. Em Jesus Cristo, ela é o fato decisivo
na história da humanidade. Por isso somente podemos cumprir o testemunho
do reino através da proclamação da promessa do reino afirmando que ele já
veio. Com isso, pelo conhecimento da salvação, a comunidade está colocada no
serviço da revelação e da salvação. Por meio de Jesus Cristo, ela se tornou uma
comunidade da salvação, e por isso também pode levar a salvação aos povos.
3. A testem unha
94
4. A comunidade do sofrim ento
95
sinais dos últimos tempos se revelam com especial nitidez. Kla não está livre
deles, mas recebe neles a incumbência de sofrer vicariamente pelo mundo. Ela
está reconciliada com Deus, e por isso sempre está a serviço da reconciliação.
É precisamente no sofrimento que comprova sua posição especial no mundo e
demonstra assim estar disposta a submeter-se a seu Senhor com toda a sua
existência.
O sofrimento da comunidade tem maior poder de testemunho do que a
Palavra isoladamente. Ele se torna um testemunho de atos, uma confirmação
da Palavra. Por essa razão os mártires sempre ocuparam o lugar de maior
destaque entre as testemunhas. Por isso a fuga do sofrimento sempre foi consi
derada, com razão, como apostasia, como negação do Senhor. Negar-se a so
frer é a mesma coisa que rejeitar a missão da comunidade. Com isso ela pró
pria se separa do corpo de Cristo (Lc 24.14ss.). Por isso a tarefa primordial do
ministério eclesiástico é preparar a comunidade para os tempos de sofrimento
(At 14.22), como também o Senhor advertiu seus discípulos acerca desse teste
munho derradeiro.
Nesse sofrimento, a comunidade pode ter a certeza de que o Senhor, que
nos precedeu no caminho do sofrimento, lhe concede sua presença de modo
especial, para, com ela, levar a missão da comunidade, dentro do contexto da
missio Dei, a um resultado especial (Mt 10.20-21; Jo 14.26; Lc 12.1 ls.). Ele o faz
estando próximo dela com seu Espírito, expondo-se, assim, repetidamente ao
juízo e indo ao sofrimento com a comunidade.
É estranho o fato de que a missiologia mais recente, com efeito, fala do
sofrimento, tenta esclarecer a situação da Igreja, mas dificilmente chega a falar
do significado histórico-salvífico e escatológico do sofrimento. A cristandade
de nossos dias teme o sofrimento, continua sonhando com um mundo
cristianizado, apela a direitos humanos e liberdade de consciência e procura
fazê-los vigorar: para escapar do sofrimento, torná-lo impossível, ao invés de
reconhecer sua vocação para o sofrimento. Não há espaço para o sofrimento
na necessidade eclesial de segurança, nem no conceito moderno de ser huma
no. Também não se coaduna com as idéias que a maioria das pessoas tem do
reino de Deus.
A idéia do sofrimento se manifesta na teologia contemporânea somente
quando se chega a falar do pequeno rebanho, do resto que a Igreja representa
rá no tempo derradeiro. Inclusive nesse contexto, fala-se apenas do apostolado,
mas não do sofrimento. Com isso surge a pergunta se a referência ao resto,
que, sem dúvida, encara a realidade, não acaba sendo igualmente uma fuga
para a derradeira possibilidade de existência da Igreja.
O Senhor não nos deixou na incerteza sobre o fato de que o mundo
questionará constantemente o direito de ser da comunidade. O Livro do
Apocalipse mostra de modo assustador o caminho da comunidade pelo mun
do. Ela será sempre uma comunidade perseguida, atribulada, sofredora. Sem
pre será estranha e peregrinadora no mundo (1 Pe 2.11). Seu protótipo sem
pre será o povo de Deus migrante. Justamenle através dessa migração Deus
chega ao alvo da missio Dei com sua comunidade, e precisamente nela se evi-
96
dencia que Deus concede a sua comunidade sua presença todos os dias, até o
fim do mundo. Há sobretudo três características da mensagem que tornam a
comunidade sem pátria e a fazem parecer perigosa para o governo do mundo:
1) Por causa da posição especial que lhe foi conferida pelo Batismo, a
comunidade é uma prova de que ainda existe outro senhor, o Senhor do céu e
da terra, ao qual devem servir todos os seres humanos e por cuja vontade
devem orientar seu próprio governo. Desse modo a comunidade se torna um
testemunho contra uma autoridade que se comporta como se fosse absoluta.
Por meio de sua presença e da orientação de sua vida, a comunidade remete
constantemente ao único Senhor perante o qual também a autoridade é res
ponsável. Com isso ela destrói o sonho de que, em última análise, o bem-estar
da comunhão nacional deveria ser determinante e que a comunhão nacional
somente pode ser estabelecida dentro dos parâmetros que os governantes esta
belecem com base em sua posição.
2) A comunidade é corpo de Cristo e, em virtude disso, tem a comunhão
com todos os membros de seu corpo. Quem não se confessa membro da comu
nidade do Senhor no mundo inteiro e age contra ela, esse também não pode
pertencer ao corpo de Cristo. A comunidade não pode tomar em considera
ção juízos nacionais, étnicos e raciais, pelo contrário, tem que destruí-los, se
não quiser tornar-se infiel à fraternidade criada pela morte de Jesus.
3) Existe uma responsabilidade eterna e, pelo senhorio de Jesus e sua
volta, existe um juízo. O ser humano somente pode considerar-se um senhor
soberano enquanto a parúsia ainda não é um fato consumado. Quando tenta
impedir a pregação de juízo e condenação, somente pode, com isso, rejeitar a
Jesus Cristo e sua redenção. Diante da pregação do juízo caem por terra toda
auto-redenção, todo niilismo, também toda imbecilização do ser humano. Ela
abre os olhos para as verdadeiras inter-relações das coisas.
Por essas razões o mundo não tem outra opção do que posicionar-se
contra a comunidade e, por meio de rejeição, restrição e combate, levá-la cons
tantemente ao sofrimento. Com esses recursos acredita poder impedir a men
sagem da comunidade, a proclamação da verdade, que para ele é loucura. Deus
é tão grande que coloca inclusive essa atitude do mundo a serviço de sua
missio. Porque seu go%'erno difere do do mundo, o testemunho da comunidade
tem que brilhar mais ainda justamente através do sofrimento. Em última análi
se, é neste ponto que irrompe a luta decisiva entre o senhorio de Deus e o
senhorio do diabo, que atinge seu auge no anticristo. Nesse embate, que, ape
sar de toda a alegria com os sucessos da missão, nos confere a necessária sobri
edade, a missão se torna literalmente o oponente do anticristo (2 Ts 2.6). Por
isso o sofrimento da comunidade tem que evidenciar-se permanentemente, de
modo especial, na missão.
A comunidade só é capaz de suportar esse sofrimento e, através dele,
exercer corajosamente seu testemunho, porque pode ter a certeza de que Deus
a leva ao alvo derradeiro por meio de sua missio. Por meio dessa esperança, a
comunidade está interiormente livre do mundo, no qual tem que viver para
nele exercer seu testemunho. Ela sabe que, nesses assuntos, não será o mundo
97
que terá a última palavra, mas o Senhor, que sofre com sua comunidade e que
põe termo à luta por meio de sua intervenção. Por isso a comunidade não luta
pelo mundo, mas pelo reino, ao qual já pertence pela morte e ressurreição de
Jesus. Ela já está transportada para o reino celestial (Ef 2.5). Por isso busca as
coisas do alto (Cl 3.1) e busca a Jerusalém celestial como sua pátria (Hb 12.22).
Com isso está incluída na Igreja de todos os tempos que com ela trilhou esse
caminho. Essa fascinante esperança é a razão básica para a atitude da comuni
dade.
O sofrimento da comunidade desemboca na redenção que está encerra
da no estabelecimento do reino por meio de Jesus Cristo. Com ele Deus encer
ra sua missio. Então a comunidade cumpriu sua missão. Ele pode, então, cantar
o hino de vitória dos redimidos, não como comunidade governante, não como
comunidade que tem a registrar grandes sucessos missionários, não como co
munidade triunfante, mas como comunidade vencida, que tem parte na vitória
de Jesus por meio da redenção (Rm 8.3 lss.). Então, porém, também poderá ter
parte juntamente com seu Senhor, que em sua missio trilhou o caminho da
cruz, em sua glória. A comunhão plena com Deus estará restabelecida. Deus
terá chegado ao alvo com sua missio. Na nova criação não haverá mais necessi
dade de missio. No entanto, agora, no tempo entre ascensão e parúsia, ela é
tanto mais urgente, porque somente ela pode anunciar às muitas pessoas que
se encontram fora da comunidade de Jesus o caminho para a comunhão com
Deus e salvá-las do juízo.
Apêndice
1. A situação
Nenhum setor vital da Igreja se encontra hoje numa crise interna e externa tão
grave como a missão entre os gentios. Porém só se pode passar por esta crise sem
lhe dar atenção, caso não se tenha percebido que através dela a própria igreja
é levada à reflexão. Pois a missão é o sismógrafo da vida eclesial, onde se
esboçam com a maior intensidade as catástrofes que ameaçam a Igreja. Em
vista da atual auto-segurança geral da Igreja, é preciso dar boa atenção a ela.
Na missão a Igreja pode reconhecer quão frágeis são todos os amparos humanos dentro
do “mundo rebelde”, no “atual éon perverso" (G1 1.4). Os estados nacionalistas e
totalitários do leste, com sua cosmovisão anticristã e seu messianismo político,
não se importam com garantias jurídicas ou financeiras para a Igreja. Eles
negam à missão e às igrejas novas o direito à divulgação do evangelho, rejei
tam Deus como Senhor e Juiz e estigmatizam seus servidores como agentes da
política expansionista do capitalismo ocidental. A partir daí, a Igreja e a mis
são precisam deixar-se perguntar constantemente se trilharam o caminho cor
reto, em conformidade com a vontade de Deus, e como, nesta situação, podem
conformar sua tarefa*1.
99
Soma-se a isto, em segundo lugar, algo muito mais grave: as igrejas ou
ainda não estavam totalmente conscientes de sua tarefa missionária ou se tor
naram inseguras quanto a ela. Ela é contestada hoje em suas próprias fileiras
num duplo sentido. Isto se torna especialmente claro para nós a partir do
segundo dos escritos abaixo indicados. Para falar primeiro a partir da frente
de batalha, isto acontece por parte das igrejas novas, que, em sua aspiração por
autonomia, se deixam determinar em suas ações também por idéias nacionais
e fazem depender de seu consentimento um trabalho independente das igre
jas antigas, a colaboração ou cooperação da missão no campo missionário, ou
que, para assegurar sua existência, como na China, têm de renunciar a toda
cooperação com igrejas estrangeiras. Neste processo elas dificilmente estão
conscientes de que assim se tornam, em meio a uma esmagadora maioria pagã,
senhor da ordem missionária e questionam a irmandade cristã. Em relação a
algumas delas precisa-se perguntar se elas conhecem o dei divino (= “é necessá
rio”) (Mc 13.10) e se sabem que “autonomia” não é um conceito bíblko-teoló-
gico, mas que a koinania (= comunhão) ê a definição da natureza da Igreja em
vista do mundo não-cristão e frente a ele.
O relatório de Whifby*, porém, prova também de modo inequívoco que a
causa primordial para a atual situação crítica da missão deve ser procurada nas
igrejas antigas e em sua teologia. Foram elas que, no marco da ideologia do
Corpus Christianum (= cristandade), limitaram a tarefa missionária da Igreja, se
pararam o ministério eclesiástico e o missionário e relativizaram a pretensão do
evangelho. Compreendeu-se em medida demasiado diminut a que somente se pode
ser Igreja deJesus na medida em que se deixa que se seja usado por seu Espírito para
anunciar o evangelho como a revelação da verdade divina universal em todo o mundo
da descrença e para levar a salvação única de Deus a todas as pessoas. Contentamo-
nos demais com uma teologia como ciência, sem considerar “que toda teologia
cristã, conforme sua natureza mais íntima, é história bíblica”, i. é, proclamação
dos fatos salvíficos e, assim, continuação da história da salvação entre os povos2.
Por isso, a missão só pôde ser uma expressão da vida da Igreja contrarian
do os fatos fatídicos há pouco mencionados. A comunidade missionária, como
a parte mais ativa de tais igrejas, precisou constantemente procurar meios e
motivos para justificar sua atividade e, como “tropa de elite” da Igreja, levar os
cristãos negligentes quanto à missão a conscientizar-se de süa tarefa. É signifi
cativo como, nestes motivos, também sempre se refletem a teologia dominante
em cada época, a situação edesial em seu todo e uma parte da história mundi
al5. Isto indica até que ponto a comunidade missionária precisou se adaptar às
100
correntes dominantes e estava sujeita a elas. Aqui posso me contentar em des
tacar apenas alguns desses motivos a fim de esboçar a situação, bles podem ser
encontrados em qualquer obra maior de missiologia45. O motivo colonial, que
impulsionava principal mente missões no exterior, mas também influenciava
as missões alemãs, foi empregado já pelos carolíngeos e remonta, no final das
contas, à concepção do cuius-regio-eius-religio (= a religião é aqnela da pessoa
que exerce o governo). Ele perdeu sua força em virtude da dissolução dos
impérios coloniais que já ocorreu e que continua em grau crescente. O motivo
pielisla da compaixão pelos “pobres pagãos” e sua redução individualista e sub
jetiva do conceito de reino de Deus por um lado não têm mais influência por
causa de sua ligação com a psicose cultural dos “superiores” e, por outro, por
que hoje os próprios círculos piedstas são portadores de fenômenos próprios
da Igreja nacional, de modo que ele não mais é determinante. O motivo cultural
do racionalismo e idealismo, com seu compromisso de os povos “superiores”
levarem aos “inferiores” a cultura cristã e, com isto, o próprio cristianismo foi
um grande fiasco, porque essa cultura “cristã” se revelou no mundo corno uma
cultura bárbara e a pessoa “cristã” ocidental revelou-se como a mais brutal das
pessoas. Além disso, hoje todos os povos podem participar da cultura e civili
zação sem ter que adotar o cristianismo. Com isto, toda a prática missionária
foi fundamenta]mente modificada, pois, enquanto que até agora se podia fazer
missão “de cima para baixo”, hoje lida-se com povos que estão zelosamente
atentos à sua igualdade de direitos e que reconheceram que a “cultura cristã”
está sob o juízo exatamente da mesma maneira como todo o mundo ociden
tal'”. O motivo confessional com seu objetivo da plantatio ecdesiae (= implantação
da Igreja) não pode mais se impor numa época na qual se pensa que o testemu
nho da Igreja contra a frente comum da descrença somente pode ser um único
e numa época na qual em círculos missionários ocasionalmentc se fala com
tanto entusiasmo do ecumenismo, que todo aquele que ousa enfatizar a confis
são a partir do Novo Testamento é considerado “inútil” para o ecumenismo.
Como único fundamento sustentável resta a “ordem missionária” junto com o
motivo da obediência. Onde, porém, a missão somente ainda é obediência a uma
ordem, ela não é mais o que deve ser a partir do Novo Testamento, ou seja,
fruto da fé6.
É como se Deus tivesse destroçado tudo para a missão de sua Igreja.
Trata-se de uma situação muito crítica, mas também muito fecunda. Está aí o kairós
para que o juízo comece pela casa de Deus (1 Pc 4.17). Onde, porém, há kairós
e juízo, há também graça de Deus, senão no Novo Testamento tempos de
4 J. RICHTER, Evangelische Missionskunde, vol. II, Leipzig, 192*7; M. SCI ILUNK, Die Welt-mission iter
Kirche Christi, Stuttgart, 1951. Em vista da situação atua) tratado em: W. FREYTAG, Vom Sinn
der Weltimssion, EMZ, 1950, p. Iss.; A. G, HERBERT, The Missionary Obligation o f the Church, p.
385ss.; K. Tracey JONES, The Missionary Vocation, IRM, 1951, p. 403s.
5 K. HARTENSTEIN, Zur Neubesinm mg über das Wesen der Mission, Deutsche, evangelische
Heidenmission, 1951, Hamburg, p, 7ss.; A. G. HERBERT, The Mission of die Church, IRM, 1951,
p. 383.
ö A. G. HERBERT, op. <it., p. 358. - r - r .
101
ç
sofrimento não poderiam ser designados com o termo kairos7. É o tempo no
qual Deus, para a salvação das pessoas, quer exortar as igrejas de modo especi
al e chamá-las à reflexão. Sua voz já foi ouvida muitas vezes na missão. Já em
1938 a delegação alemã em Tambaram não assinou a declaração conjunta da
conferência, mas redigiu uma palavra a partir da escatologia, o que naquela
ocasião dificilmente foi entendido8. O KirchenkampJ* provocou a reação princi
palmente de teólogos suíços910.A terrível catástrofe da Segunda Guerra Mundi
al e suas consequências na Alemanha e no exterior chamaram o mundo da
missão a uma nova reflexão e trouxeram a convicção de que, no fundo, nessa
crise estaria em pauta o problema “ecológico” Igreja-povo™, que somente pode
ser entendido e resolvido a partir da escatologia e em vista do senhorio de
Cristo. A Igreja viveria como povo de Deus entre os povos na paroikia (= “es
trangeiro”), que é o âmbito de seu testemunho, e entre os tempos, a saber,
entre ascensão e regresso, e como tal teria somente uma tarefa, ou seja, a de
testemunhar ao mundo e comunicar-lhe por meio de sua vivência que Jesus
Cristo é o Senhor, ao encontro de quem se deveria ir.
Em torno dessas idéias centrais gravitam, em vista da atual situação da
missão, as exposições que querem chamar a Igreja à reflexão11. No fundo, elas
não são nada mais do que uma nova teologia da história. Elas têm seu valor no
fato de fazer valer novamente importantes pontos de vista neotestamentários
sobre a posição correta da Igreja dentro do mundo e conscientizar insistente
mente a Igreja de sua tarefa salvífica. Porém elas só poderão levar à atividade
missionária se a cristandade souber e anunciar ao mundo que o Senhor não
vem somente a fim de consumar sua comunidade e assumir seu senhorio sobre
toda a criação, mas também para julgar o mundo - não apenas nos julgamen
tos do mundo, mas no juízo sobre o mundo, onde a todos será revelada a ira de
Deus (1 Ts 1.9ss.)12. Somente sob este saber a cristandade poderá reconhecer
102
sua própria culpa, chamar as pessoas ao arrependimento, procurar perdão e
despertar o anseio por perdão. Somente a partir do juízo do mundo a escatologia
torna-se existencial, como pretende Rosenkranz1*.
Este saber é dado pela mensagem plena da lei e do evangelho e será sempre uma-
pedra de toque para verificar até que ponto nós mesmos ainda lemos a compreensão
reformatória do evangelho. Se, pelo contrário, a escatologia se tornar autônoma
através da acentuação do senhorio de Cristo que se realiza já agora, então não
somente faltará, com o ensinamento sobre o juízo, o pressuposto para isto, mas
acontecerá o que Althaus expressa: a comunidade de Jesus teria que desesperar,
pois ela não pode reconhecer o senhorio de Cristo e precisa assistir ao reino de
Deus diminuindo nos povos cristianizados1314. A missão e a escatologia têm suas
raízes nos fatos salvíficos já acontecidos e seu alvo na salvação das pessoas diante
da condenação15. A perdição das pessoas é o pressuposto de ambas, porque
Deus, em sua compaixão, quer salvar as pessoas. Este ponto de partida decerto é
mencionado nos escritos citados e está por trás deles, porém não leva à confor
mação do tema; aliás, é em vão que se procura na literatura de missão por uma
fundamentação minuciosa da missão a partir dajustificação16. A alegria missionária,
porém, somente pode crescer lá onde, em vista do juízo, os fatos salvíficos se tornam
eficazes. Isto nos mostra claramente uma palavra como Rm 14.9. Portanto, preci
samos tentar fundamentar a missão a partir dajustificação.
19 Por isso eu também não rejeitaria o período colonial com o mesmo rigor com que isto é feito
hoje: H. DÜRR, Die Stellung de Mission zum “kolonialen Nationalismus”, EMM, 1947, p. 170ss.
20 A. SCHLA1TER, Die Verkündigung der Rechtfertigung unter den Völkern, Essen, 1935, p. 4.
21 A. KÖBF.RLE, Rechtfertigung und Heiligung, Leipzig, 1929, p. 94.
22 G. WARNECK, Evangelische Missionslehre, vol. 1, Gotha, 1892.
23 A. G. HERBERT, The Missionary Obligation o f the Church, p. 386.
104
missão de Deus) e com isto torna seu amor realidade entre os povos. Ele mes
mo assume o envio. Torna seu Filho apostolos (= missionário) (Hb 3.1) e, na
plenitude do tempo (G1 4.4), o envia ao mundo como revelador de seu amor (1
Jo 4.9). Com isto, sua compaixão excede todos os limites humanos. É como
disse um africano: “Deus tinha apenas um único filho e a este fez com que se
tornasse missionário”24. Através desse envio Deus se mostra como verdadeiro
e misericordioso, pois seu Filho é dado a Israel por causa da veracidade, como
cumprimento de todas as promessas, porém aos gentios por causa da miseri
córdia por bondade imerecida (Rm 15.8s.). Nele a promissio universalis encon
tra sua confirmação e os gentios são incluídos na comunidade de Deus (Ap
7.9). Portanto, Deus não faz mais nenhuma distinção entre os povos. Assim
como, na história de Israel, do Servo de Deus, toda a história da salvação se
concentra em direção àquele Um, que se torna Redentor e Representante dos
seres humanos, da mesma maneira ela caminha, desde então, “de modo inver
so a partir do Um, progressivamente, para os muitos”2526,para que os crentes, o
mundo, sejam bem-aventurados através deste Um (Jo 3.17)2t>. Deus mesmo tes
temunha ao mundo o sentido e o início dessa missio, bem como seu fim. Assim
como, por ocasião da entrada do enviado no mundo, anjos se tornam seus
arautos e anunciam o início da missio dei “a todo o povo” (Lc 2.10), também a
missio que ele faz levar a efeito por meio de sua comunidade será concluída
através dos arautos da última missio dei, quando o anjo correrá apressadamente
pelos povos com um evangelho eterno, a fim de lhes dar a última possibilidade
de conversão, de redenção da perdição (Ap 14.6).
Assim, vivemos no grande tempo da graça, que iniciou com a vinda do
Apóstolo de Deus e que terá fim através de seu regresso. É o tempo da
longanimidade e paciência de Deus. Ninguém poderá acusá-lo de condenar
pessoas que não tiveram oportunidade de encontrá-lo. Pacientemente ele car
regou os vasos da ira, “a fim de manifestar a riqueza de sua glória em vasos de
misericórdia, que para glória preparou de antemão. Como tais ele nos chamou
não apenas dentre os judeus, mas também dentre os gentios” (Rm 9.23s.).
Assim ele torna os gentios co-herdeiros e membros do mesmo corpo (Ef 3.6).
Compaixão, gratia increata (= graça incriada), é, portanto, a causa primordial
de sua missio. Provavelmente ninguém entendeu isso melhor e o descreveu de
forma mais clássica do que Lutero em seu hino: “Agora alegrai-vos, queridos
cristãos juntos”.
Com isso o trabalho missionário está acima de qualquer dúvida humana,
qualquer limitação, suspeição e superficialização. Ele não é paixão de determi
nados círculos, mas obra do próprio Deus, pela qual hoje ele leva sua comuni
dade ao trabalho, a fim de exercer sua misericórdia para com os perdidos. Não
24 W. FREYTAG, Mission als Tai der Liebe, EMZ, 1941, p. 195; M. JÄGER, Die Vollmacht Jesu,
München, 1938, p. 1Iss.; G. STÄHLIN, Engclwelt und Weltmission, EMZ, 1949, p. 22s.
25 O. CUI.LMANN, op. cit., p. 100s.
26 K. S. LATOURE ITE, W hat Can Wc Expect in the World Mission?, 1RM, 1951, p. 142.
105
é por nosso intermédio, mas pelo próprio Deus que sua graça vem aos povos, e nós
temos apenas uma escolha: sermos instrumentos dessa compaixão ou perdermos a gra
ça de Deus (Mt 25.24-30).
Através de seu enviado, seu Filho, Deus põe em ordem seu relaciona
mento com as pessoas, a fim de livrá-las do juízo (Jo 3.17s.). O amor de Deus
converte o enviado em Salvador, em resposta a todas as perguntas das pessoas,
naquele que traz a vida (Jo 6.6s.). A. G. Herbert procura colocar, a partir desta
palavra, o trabalho missionário sobre sua base correta27.Jesus se entende como
o enviado28. Ele é a resposta de Deus (At 4.12). Visto que a compaixão o en
viou, ele próprio não pode fazer nada diferente daquilo que vê o Pai fazer (Jo
5.19) e é, por isto, mediador dessa compaixão. Para compreender isto deve-se
examinar o sentido da palavrinha dei (= “é necessário”) na vida de Jesus; toda a
sua vida é determinada por ela2930.Para que a compaixão de Deus, após a morte
de seu Filho, alcance as pessoas, Jesus declara que a humanidade é uma lavou
ra a ser colhida (Jo 4.35-38) e encomenda o pedido missionário ao coração e à
consciência dos discípulos (Mt 9.36s.; Mc 6.34). Com este fím ele dá a ordem
missionária. O povo lhe provocava compaixão! Assim a compaixão torna-se
motivo missionário legítimo, autêntico, não como sentimentalismo para com
os pobres pagãos, mas como dynamis (= força) divina, como ato gracioso do amor
salvador de Deus. Por isso, ai de nós se a carência exterior das pessoas nos
comove mais do que a perda da salvação de sua alma e se acreditamos poder
salvar as pessoas através da ajuda exterior. Neste caso, entendemos erronea
mente a incumbência de Deus50. Lõhe destacou energicamente a missão como
obra da misericórdia de Deus:
A missão entre os gentios é a grande obra da misericórdia no Novo Testamento.
Porém a missão entre os judeus não é meramente associada a ela, mas constitui,
antes, o círculo mais íntimo, e mais: seu centro (...) Não pode haver misericórdia
maior no mundo do que estender a palavra e os sacramentos do Altíssimo, com
sua plenitude de graça, para os pobres e perdidos seres humanos de todos os
séculos e de todas as terras.31
106
3. Deus realiza sua obra através
de sua comunidade
32 Isso é detalhado nos escritos indicados na nota 11, onde, entretanto, a ênfase é colocada no
senhorio de Jesus. Em relação a esta questão, veja CULLMANN, op. cit., p. 138ss.
33 O. MICHEL, Berufung zur Mission, EMZ, 1940, p. 195.
34 V. nota 30.
107
Esse serviço da Igreja somente é possível porque ela mesma experimentou com
paixão através da ação redentora do Filho de Deus e agora representa a comunidade
dos crentes e justificados. Deus compadeceu-se dela e a agraciou para ser crente
(1 Co 7.25). Por isso sua fé, que então será ativa no serviço, é sempre uma fé na
misericórdia divina, como já o reconheceram os pais da Reforma85. A partir
dessa fé, que vive da compaixão e por isso pode ser uma confiança ousada e
ativa, flui o serviço que atua pelo amor, portanto pela compaixão (Cl 5.6).
Senão ele nem poderia ser obra agradável a Deus, e até obra do próprio Deus,
mas seria pecado, conforme Rm 14.23. Pois, de fato, o que não é fruto da fé
provém de algum modo do egoísmo religioso.
Deus quer ser misericordioso por meio daqueles que experimentaram,
eles próprios, misericórdia (Lc 6.36; 10.25-37). Esse serviço continua, assim,
sendo obra do próprio Deus, mesmo que ele aconteça na comunidade e atra
vés da comunidade. Não somos nós que temos Deus na fé, mas ele é que nos
tem8*’, para, por nosso intermédio, manifestar ao mundo seu amor e estabele
cer seu senhorio. Quem crê na ação redentora de Jesus vive no reino da graça
e se submeteu com isto ao senhorio de Deus. Por isso, nossa fé na justificação
está profundamente vinculada com esse senhorio87. “Para que tal tesouro não
ficasse enterrado, mas fosse investido e usufruído, Deus fez com que se difun
disse e proclamasse sua palavra”35367383940. Através da justificação Deus introduz as
pessoas em seu serviço aos descrentes, e a recusa desta incumbência não seria
apenas desobediência, mas resistência à atuação divina (Fp 4.12s.) e desprezo
da força que ele torna ativa na pessoa através da redenção apreendida35. Por
conseguinte, esse serviço é engajamento na atuação de Deus, obediência da fé,
não estar desligado de Deus, mas ser tomado por ele, não é algo que é acrescen
tado à ação de Deus, mas é submeter-se ao agir de Deusm.
Por isso, se realmente há uma justificativa para a fundação de sociedades
missionárias, então ela reside neste ponto. Visto que a Igreja estabelecida como
tal não se deixou utilizar por Deus para proclamar a compaixão de Deus aos
gentios, homens movidos pelo Espírito Santo precisaram reunir em torno de si
aquelas pessoas que haviam experimentado a compaixão de Deus e enviar
homens que se tornaram testemunhas do acontecimento salvífico entre os po
vos. A pergunta, porém, é sc com isso Deus indicou o caminho à missão da
Igreja para todos os tempos e se hoje, quando a maioria das sociedades
missionárias sucumbiu à lei da estagnação da vida, elas ainda podem ser tidas
35 Ansbacher Ratschlag, citado conforme W. ELERT, Morphologie des Luthertums, vol. 2, München,
1931, p. 81.
36 1,. FENDT, Luthers Schule der Heiligung, Leipzig, 1929, p. 10.
37 O. MICHEL, Gottes Herrschaft und die Völkerwelt, F.MZ, 1941, p. 226s.
38 F.. SC1ILINK, Theologie der Bekenntnisschriften, München, 1946, p. 152.
39 H. I IOFER, Die Rechtfertigungsverkündigung des Paulus nach neuerer Forschung, Gütersloh, 1940, p.
13, 44 e 94.
40 E. GAUGI.ER, Die Heiligung im Zeugnis der Schrift, Bern. 1948, p. 55.
108
como visualização da Igreja de Jesus nas igrejas estabelecidas. Não é verdade
que hoje a missão é sustentada, em considerável medida, pelos grupos reavivados
da Igreja estabelecida que não são membros daquelas sociedades, e que se
modificou amplamente a autocompreensão da Igreja estabelecida? Com refe
rência a esta mudança basta ler o ensaio redigido por um jurista eclesiástico
sobre a Igreja territorial bávara4142.Hoje as sociedades missionárias podem se enten
der, no máximo, como órgãos da vontade missionária da Igreja.
Porém a pergunta acima colocada também precisa ser feita a essas socie
dades ainda sob outro ponto de vista. Certamente será sempre mérito delas o
fato de terem dado expressão à vontade salvadora de Deus na Igreja. Por outro
lado, contudo, devido ao conceito pietista de Igreja, elas contribuíram de modo
considerável para fazer com que a missão apareça como obra especial da Igre
ja, como algo que não faz parte de uma Igreja organizada. Elas também são co-
responsáveis pelo fato de a tarefa missionária não ter sido percebida em sua
unidade, pois fizeram unilateralmente propaganda pela missão entre os genti
os. É significativo, p. ex., quão poucas sociedades, no período sem missão dos
anos da guerra e do pós-guerra, reconheceram uma tarefa missionária voltada
aos pagãos da própria Alemanha e objetivaram não apenas a reunião dos cren
tes (“amigos da missão”), mas a conquista desses descrentes. Elas não pensavam a
partir da unidade da vontade missionária da Igreja e para a Igreja, mas conti
nuavam vendo apenas a missão entre os gentios, que naquela ocasião lhes era
impossível. Dessa maneira intensificou-se a impressão fatídica de que a missão
entre os gentios seria algo assim como uma paixão de certos círculos e não
uma parte do envio amplo da Igreja a todos os perdidos.
No trabalho missionário Deus não atua como um comandante, que so
mente pode dar as armas a suas tropas, mas não a preparação interior. Com o
envio através do qual ele continua sua missio e a associa à do Filho (Mt 10.16;
Lc 9.2; Jo 17.18; 20.21), ele transmite à comunidade, através da misericórdia
que nela opera, também a força e preparação interior para o serviço. Assim
como nossa fé sempre é um receber, uma entrega da pessoa toda à ação graciosa de
Deus12, também a capacitação para o trabalho missionário é uma dádiva através da
qual Deus equipa para o serviço e o ministério. Assim como todo dom de Deus só
pode ser recebido na fé (sola fide) e imediatamente se associa à tarefa (Mt
25.14ss.), também a missão somente pode ser feita através de uma fé alegre,
certa da vitória, que torna todo cristão testemunha do sofrimento e da glória,
portanto do acontecimento salvífico, e emprega o dom de Deus (1 Pe 5.1). E a
fides viva (= fé viva) que dá testemunho. Esta “não é cogitação ociosa, mas (...)
liberta da morte e produz vida nova nos corações (...) produz bons frutos tanto
109
tempo quanto está presente (..,).”43 É a fides da qual se diz: “Eu creio, por isto é
que falo” (2 Co 4.13), a força propulsora da qual os apóstolos dizem: “Não
podemos deixar [de falar das coisas que vimos e ouvimos]” (At 4.20), uma
conseqüência da nova criação44 que nos torna iguais a seu Filho, o enviado de
Deus, “para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal”
(2 Co 4.11), a fim de que sejamos semelhantes a ele e tomados por Deus, “que
nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo, e nos deu o ministério da
reconciliação” (5.18), para que vivamos para aquele “que por nós morreu e
ressuscitou” (5.15). É a fé pela qual Deus exerce seu senhorio. Assim a missão
torna-se uma obra do amor do Senhor, amor que busca e impele, o efeito da
compaixão de Deus que nos é transmitida na justificação. O envio da comuni
dade resulta do ser enviado do Filho, que continua atuando nela. “O amor de
Cristo nos impele, portanto45, para que os que vivem não vivam mais para si
mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (5.14s.).
Assim sendo, Deus conduz sua comunidade ao serviço missionário e com
ele dá também a preparação para a diaconia da nova aliança, cuja realização é
graça. E ele que capacita (2 Co 3.5), que dá aos seus o Espírito Santo e com isto
a autoconfiança cristã (Rin 8.16) e que, através deste Espírito, atua, ele pró
prio, entre os povos e em sua comunidade; pois “poder do Espírito Santo” não
quer dizer outra coisa do que o efeito produzido pelo próprio Deus. Através
dele Deus levou sua comunidade ao serviço missionário. Por meio dele os apósto
los se tornaram testemunhas dos atos salvíficos (At 1.8; cap. 2). Ele lhes presen
teou a ousadia de falar sua palavra (4.13,29,31). Ele levou os homens relutantes
à missão entre os gentios (caps. 10 e 11, especialmente vv. 15-17; também cap.
8) e deu às comunidades a autoridade de enviar (13.1-4). Ele revelou aos após
tolos e profetas “que os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo e
co-participantes da promessa em Cristo por meio da pregação da salvação” (Ef
3.5s.). Portanto, ele é a força motriz.
Com isso, Deus retira dos cristãos toda dúvida a respeito da missão entre
os gentios e tira as comunidades de uma existência de isolamento piedoso,
contemplativo e egoísta. Portanto, nós não podemos nos vangloriar por fazer
missão; Deus nos impele, porque podemos participar de sua vontade amorosa,
da gratia efficax (= graça eficaz) entre os gentios. Por isso, a missão não pode ser
outra coisa do que a atitude agradecida do cristão pela misericórdia recebida de Deus,
um sinal da vida presenteada. “Pelo que, tendo este ministério segundo a miseri
córdia que nos foi feita, não desfalecemos” (2 Co 4.1). Assim é Deus, como
causa efficiens (= causa produtora), que constantemente arranca de sua cristan
dade cansada o serviço aos descrentes e através dela, como causa instrumentalis
(= causa instrumental), opera grandes coisas apesar de suas fraquezas. Para
43 Apologia da Confissão de Augsburgo IV, 64, in: I.ivro de Concórdia, 3. ed., São I.eopoldo, Sinodal;
Porto Alegre, Concórdia, 1983, p. 119.
44 M. JÄGER, op. eit., p. 97ss.
45 Assim conforme Preuschen, Wörterbuch zum Neuen Testament; v. T. KITI'EL, ThWNT, vol. 2, p.
816, nota 1, contra Wendland em Neues Testament Deutsch, vol. 7, p. 132.
110
1 '
tanto, cie emprega todos os meios, até a perseguição (At 11.19-21)4®. Vê-se
quão pouco apropriadas são aqui as categorias da obediência, do desempenho
humano.
Porém o que significa então ainda a assim chamada “ordem” missionária
na qual se fundamenta a missão e com base na qual Schlunk diz que a obediên
cia continua sendo o mais forte e decisivo motivo da missão4647? Parece-me que
aqui quase sempre é muito pouco considerada a ligação de Mt 28.18s. com o
que se segue, a qual é dada na palavrinha oun (= “por isso”). Será que ela não
significa: porque ao Redentor exaltado é dada toda exousia (= poder) no céu e na
terra, por isso sua comunidade na terra pode entrar em sua obra graciosa?
Também a execução da ordem não é obra dela, mas fruto, resultado, realização e
efetivação da autoridade presenteada a ela pelo Pai. Por isso o Batismo acontece
“em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!” Com isto a ordem não seria
outra coisa do que a nova expressão da missio dei através da comunidade, o
resumo reiterado da vontade salvífica universal de Deus. A ordem missionária
tem certa afinidade com os demais mandamentos de Deus. Ela é dada aos
mornos, a fim de chamá-los ao arrependimento por causa de sua resistência à
atuação salvífica de Deus; porém é dada aos crentes para lhes servir de instru
ção e consolo, para que façam a obra dele de modo correto; ela é dada à Igreja
como advertência, para que ela se dê conta de que a missão não depende de
seu bel-prazer48.
A partir do que foi dito fica claro para nós o quanto falta em nossa vida
missionária e, por conseguinte, na vida da Igreja. A rigor, trata-se de coisas
óbvias, que, porém, não são consideradas, justamente porque se pensa que
Deus opera por si mesmo, sem sua comunidade, e se esquiva assim da exigên
cia existencial. Como teria que ser diferente se a atuação de Deus pudesse se
manifestar na comunidade “como correntes de água viva”! A penosa e
dispendiosa propaganda da missão se tornaria supérflua. Por outro lado, en
tretanto, os fatos nus e crus nos dizem que a missão não pode ser uma obra da
empolgação e do entusiasmo, mas somente uma obra do Espírito de Deus, que
constantemente torna a Igreja disposta para a pregação de sua compaixão en
tre os povos. Ele faz isto por meio das pessoas para as quais o profundo nexo
entre justificação e missão se tornou obrigação de consciência, “uma necessi
dade que pesa sobre mim” (1 Co 9.16), e por isso sabem do “ai” que as atingi
ria, do juízo que recairá também sobre elas se não se deixarem usar como
instrumento.
Todo o viver e pensar recebem um novo conteúdo através dessa percep
ção; isto se pode constatar num homem como L. Harms, para o qual toda a
palavra de Deus era uma indicação do Seu amor salvador. Ele podia comparar
a missão com o nascimento de João Batista, visto que ela nasceu na época mais
111
estéril da Igreja, ou fundamentá-la, p. ex., a partir do Natal ou da Santa Ceia495012.
Neste sentido, de repente todo texto fala a favor da missão. A partir dajustificação
aprende-se a entender que a Igreja que adora e que agradece não pode ter nenhum outro
serviço do que o de constantemente levar a salvação às pessoas perdidas’°. Portanto, se
queremosfazer missão, então nossa propaganda não deve se esgotar em relatos informa
tivos, mas precisa querer despertar tal fé e dar a certeza do amor misericordioso.
Quanta coisa deveria ser posta em ordem justamente nesta área, porque
fora da Igreja estabelecida e em oposição a ela há missões que consideram
como sua prerrogativa divina reunir em torno de si os membros da Igreja que
foram despertados pela pregação da justificação e assim se apropriar da dispo
sição ao sacrifício que a Igreja precisaria para a realização da missão de que é
incumbida! Quão poucas sociedades missionárias têm a consciência de que é a
Igreja que faz missão através delas! Será que muitas missões, ao se apropriarem
da disposição ao sacrifício em ambiente estranho, não acabaram obstruindo
para si mesmas o caminho para tal reflexão? Ai de nós se não mais soubermos
que a missão é uma ação do Espírito de Deus e, por conseguinte, fruto da fé.
Ora, podem-se separar fé e Igreja?
Deus realiza sua obra missionária por meio de sua Igreja. Esta percepção não
é dada à sua comunidade sem mais nem menos, mas precisa ser-lhe transmiti
da pela pregação dos grandes indicativos da Bíblia que falam a seu respeito.
Deus toma a comunidade sal e luz do mundo, cidade sobre o monte (Mt 5.13ss.).
Através de sua palavra ela se transforma em fermento entre os povos (13.33),
numa árvore cada vez maior (13.31 s.). Seus fiéis são reis e sacerdotes, lavados
dos pecados por meio do sangue de Cristo (Ap 1.5), “a fim de proclamarem as
virtudes daquele que os chamou das trevas para sua maravilhosa luz” (1 Pe
2.9). São eles os que executam o trabalho missionário, a carta de Cristo ao
mundo (2 Co 3.3).
Nesse sacerdócio geral, a teologia encontra fundamentado o ministério
missionário - e o entendemos como um sinal de que também ela vê a justifica
ção e a missão em estreita relação -, ao passo que utiliza todas as passagens
sobre o ministério apostólico para o ministério pastoral na comunidade. Tam
bém Lõhe ainda pensava que, como o apostolado terminou, não haveria mais
nenhum ministério missionário da Igreja. Ele fundamentou a missão com o
sacerdócio geral dos crentes, pois entre os descrentes todo cristão teria a obri
gação de pregar o evangelho®1. Ele seguiu assim a Lutero, que também atri
buiu a responsabilidade pelo dever da missão aos cristãos que vivem entre os
gentios02. Ambos observaram corretamente que nos primeiros séculos a cris
tandade se disseminou mais por meio do testemunho das comunidades do que
112
através de um envio organizado. Também nós queremos insistir com toda a
ênfase que Deus habilita todo cristão para o testemunho e o orienta para profes
sar sua fé. Se o sacerdócio geral tivesse sido praticado, o evangelho teria se
difundido mais rapidamente entre os povos e às missões teriam sido poupados
muitos problemas que surgiram com a penetração da descrença ocidental. A
realização do sacerdócio geral traria consigo outra compreensão de missão e
leria por conseqüência uma transformação da prática missionária, algo que se
pretende alcançar hoje na missão através do serviço cristão dos leigos. Algo
semelhante se aplicaria também à Alemanha’3.
Por outro lado, é realmente de se perguntar se o ministério missionário
não é um ministério da Igreja e se o Senhor deixou desaparecer junto com os
apóstolos também o envio organizado e o ministério decretado para a conquista
dos gentios. Trabalhos mais recentes, como o de 0. Micheloi, indicam que o
Senhor exaltado criou, através da vocação do apóstolo Paulo, um novo ministé
rio, um novo apostolado, um novo início da missão entre os povos. Eis a razão do
conflito entre o apóstolo Paulo e os outros apóstolos, bem como - por causa da
unidade da Igreja - de sua inserção na tradição. Apesar- disto, porém, atualmen
te nenhum missionário poderia se reportar diretamente a esse ministério:
Mas o missionário, assim como o pastor, não é diretamente enviado, represen
tante de Jesus igual ao apóstolo. Sua vocação realiza-se de outra forma do que a
do apóstolo, sua autoridade é diferente da autoridade do apóstolo e sua relação
com a comunidade é diferente da relação de um apóstolo com a comunidade. O
apóstolo fundava as comunidades; nós, porém, somos membros nessas comuni
dades, os quais não receberam seu ministério sem comunidade. A palavra apos
tólica transmitiu o ministério e fundou comunidades, mas colocou ambas as
coisas em estreita relação mútua; nós somos apenas membros no ministério e na
comunidade c assim transmitimos tal ministério c tarefa na comunidade a nos
sos sucessores. Entre nós e o Senhor Cristo está o modelo apostólico.535455
Contudo, parece-me que Michel, ao formular este texto, tinha em vista
por demais o pastor e o missionário de comunidade. Ainda que o tempo da
missão pioneira esteja chegando ao fim, hoje ainda há missionários e, no exte
rior, também pastores que podem fundar comunidades. Também o apóstolo
era suficientemente humilde para se deixar enviar por uma comunidade ape
sar de sua vocação direta, e, com isso, receber seu ministério da comunidade à
qual era remetido. Neste aspecto, portanto, o ministério do missionário não é
tão fundamentalmente diferente do ministério do apóstolo. Também o apósto
lo tinha sempre consciência de ser responsável pela comunidade e obrigado a
lhe prestar contas; portanto, ele não estava sobre a Igreja, mas na Igreja.
Em todo caso, uma coisa o missionário pode fazer: aplicar a si as palavras
sobre o ministério expressas em 2 Co 3-5 com a mesma certeza com a qual o
113
apóstolo o fez e como o fazem com naturalidade os dignitários eclesiásticos.
Precisa estar claro para nós que estes capítulos singulares fazem primordial
mente afirmações sobre o ministério missionário e não, como se supõe eo ipso
(= por si mesmo) na teologia, sobre o ministério do pastor assim como ele é
hoje. O ministério é primeiro ministerium verbi divini (= ministério da palavra
de Deus) e somente a partir desta função básica pode se dividir em ministérios
segundo a finalidade. Devem-se observar os muitos “nós” nestes capítulos, com
os quais Paulo se refere em primeiro lugar a seus colaboradores, se não está até
mesmo falando na forma inclusiva. Algo semelhante se poderia dizer de mui
tas outras passagens que fazem afirmações sobre o ministério. Porém o que a
teologia, desde Lutero, tem feito dessas passagens? Ela as aplicou primordial
mente ao ministério do pastor de comunidade e inverteu a relação, de modo
que se relegou o missionário ao sacerdócio geral, sem, ao fazê-lo, ter transmitido
a responsabilidade e a obrigação missionárias ao ministério eclesial, como é indica
do por estes capítulos. Com isto, fez-se do missionário um ser híbrido, que não
cabe na vida eclesial. Decerto ele é ordenado para a pregação pública e para a
administração dos santos sacramentos - e, ainda assim, não seria um dignitá
rio em sentido pleno? Como isto combina teologicamente? Que conscqüênci-
as tem isso para o conceito de ministério? Isto precisa ser ouvido principal
mente pelas igrejas alemãs, pois elas como tais - em contraposição a igrejas de
outros países - até hoje não praticam, elas próprias, o envio.
Ora, com base na fé na justificação não há duasformas de autoridade minis
terial na Igreja, mas somente um único ministério, aquele que prega a reconci
liação e assim leva a efeito o acontecimento salvífico entre as pessoas a serem
reconciliadas (2 Co 5.18). Sob esta autoridade ministerial também o missioná
rio faz seu serviço.
O ministério da reconciliação pode ser exercido pela Igreja de dois modos
entre os gentios; primeiro, por meio do sacerdócio geral dos cristãos que mo
ram entre os gentios, uma tarefa que somente é reconhecida por muito pou
cos, embora Paulo, em Rm 10.8ss., faça dela, por assim dizer, a causa salutis:
“Porque com o coração se crê para ser justo, e com a boca se confessa a fim de
ser salvo.” Segundo, através do envio de missionários56, o qual tem seu modelo
nos Atos dos Apóstolos e foi praticado pela cristandade toda vez que os gentios
moravam a uma distância muito grande das comunidades cristãs. Ambas as
coisas são uma exigência da fé na justificação, pois o ato redentor de Cristo
somente pode ser tornado perceptível para as pessoas quando ele for crido,
proclamado e ensinado pela Igreja. Os dons da justificação, a preparação para
o serviço somente podem se tornar eficazes quando conduzem ao testemu
nho. “Como, porém, crerão se nada ouviram? Como ouvirão, se não há cjuem
pregue? Como, porém, pregarão se não forem enviados?” (Rm 10.14ss.)
Por isso, servir ao evangelho significa “zelar pela manutenção da prega
ção do evangelho e pela vocação e envio de pregadores do evangelho”57. Não se
114
pode serjustificado e deixar outras pessoas na condenação. A vontade salvadora de
Deus precisa ser revelada a todas as pessoas, para que também elas tenham
parte em sua compaixão e, por conseguinte, em seu senhorio. Assim, em Paulo
justificação e missão se tornam conceitos correlatos08. Sem fé na justificação a
missão está sem pressuposto, sem a misericórdia de Deus está sem conteúdo,
sem reconciliação, sem objetivo. Ora, uma fé na justificação que não atua no
testemunho, portanto no serviço missionário, é um saber morto ou uma fé egoísta - e
sobre ela é proferida a sentença na Escritura.
Ora, a missão como missio dei não pode ser realizada pela comunidade se
esta não se entende sempre como instrumento e tem a consciência de estar a
serviço do Senhor. A melhor expressão disto é a oração da comunidade
missionária. Por isto, a missão e a oração estão relacionadas tão estreitamente
quanto a missão e a justificação. Seria necessário um trabalho específico para
descrever tais nexos. Handmann fez um trabalho preliminar referente a esta
questão, mesmo que sob outro ponto de vista1’9. Como a justificação leva à
adoração, ao agradecimento e ao louvor mostra-nos a vida de oração da pri
meira comunidade e do apóstolo Paulo. Deles podemos também aprender
como os dons da justificação e a preparação para o serviço se tornam eficazes
através da oração, como a oração abre as portas, como os mensageiros são
enviados sob oração, como a intercessão mútua sustenta todo o trabalho e
como, assim, a ação toda é posta nas mãos de Deus. Aqui, na oração, tudo é
desligado das pessoas para que somente Cristo atue através do serviço dos crentes.
“Para que eu seja ministro de Cristo Jesus entre os gentios, no sagrado encargo
de anunciar o evangelho de Deus, de modo que a oferta deles seja aceitável,
uma vez santificada pelo Espírito Santo. Tenho, pois, motivo de gloriar-me em
Cristo Jesus pelo meu serviço a Deus. Pois não ousarei discorrer sobre coisa
alguma senão daquelas que Cristo fez por meu intermédio” (Rm 15.16ss.)
De uma fé assim se originou, através da atuação do Espírito Santo, a
Reforma. Nela pode-se reconhecer a dynamis divina dajustificação', pois o ideário
reformatório foi transmitido de boca em boca por inúmeros leigos anônimos.
Mas mesmo a Reforma não levou à missão entre os gentios? As vozes que
expressam a censura de que para os reformadores a ordem missionária nada
significava ainda não desapareceram. Sem levar em conta que essa censura
não está totalmente correta585960, podemos afirmar que a Reforma foi um dos maio
res movimentos missionários da história da Igreja, pois os reformadores ainda se
atinham à unidade da tarefa missionária. Visto que o trabalho missionário
estava proibido a eles nos reinos coloniais católicos, eles fizeram missão junto
aos descrentes de seu próprio meio61.
115
Em todo caso, na época da Reforma estava viva uma convicção que só
pode resultar da fé na justificação e que repetidamente levou aos maiores fei
tos missionários: a convicção de que sem a fé no evangelho ninguém pode ser
salvo. Os reformadores ainda não sofriam do “enfraquecimento dos ossos” de
nossa época, que relativiza a pretensão de salvação do evangelho, mas estavam
convencidos da necessidade salvífica absoluta do evangelho. Com isto eles ti
nham um autêntico motivo bíblico para a missão, que produziu efeitos até os dias
de hoje e que permanecerá enquanto alguém esperar ser salvo pela fé na mise
ricórdia de Deus. Por isso é um tanto unilateral a afirmação de Hartenstein de
que “a identificação da voz viva do evangelho com a doctrina sobre Cristo para
lisou, a partir da Reforma, a vontade missionária”62. Deve-se admitir que os
epígonos de Lutero e Calvino quiseram fazer da inexistência de missão uma
doutrina. Mas o que reiteradamente se manifestou em August Hermann Franke,
Zinzendorf e nos fundadores da missão até Hudson Taylor63foi precisamente a
tese da necessidade salvífica da justificação, de modo que um John G. Paton pôde
reagir a um jovem missionário com seu motivo cultural dizendo-lhe: “Jovem,
você acredita que eu teria arriscado minha vida entre os selvagens e canibais
das Novas Hébridas se eu não acreditasse que cada homem, cada mulher, cada
criança que encontrei estariam sujeitos ao inferno?”64
A miséria de nosso tempo é que nós não mais possuímos essa convicção
reformatória, de modo que ela atuasse deforma determinante em nosso serviço65. Nes
te sentido ainda sofremos as conseqüências da época liberal de nossa teologia
e da escola da história das religiões, que aplicaram sua reflexão relativizante
também à revelação de Deus e com isto tiraram da Igreja o âmago de sua fé.
Certamente Deus também pode salvar pessoas que não tiveram nenhuma opor
tunidade de ouvir o evangelho. Só que a pergunta é se ele não exigirá suas
almas de nós. Neste sentido Spurgcon (cuja palavra, entretanto, não posso do
cumentar) decerto tem razão ao dizer: “Se os gentios podem ser salvos sem o
evangelho, isto eu não sei, mas uma coisa eu sei: que nós não poderemos ser
salvos sem levar-lhes o evangelho.” Portanto, o erro decerto não foi ter identi
ficado a voz do evangelho com a doctrina, mas não ter mais descrito e entendi
do a doctrina como “palavras da vida eterna”. Em todo caso, poderíamos nos
considerar felizes se essa dinâmica da justificação irrompesse novamente em
nossa Igreja.
116
4. A conformação da pregação m issionária
Nesta parte não se trata de oferecer uma doutrina da missão, mas de tirar
as conseqüências resultantes do que até aqui foi dito. Se até agora tratamos do
sujeito da missão, então agora temos que perguntar por seu objeto. Com base
em Rm 1.18-3.20, este não pode ser senão todas as pessoas. Todas pecaram e,
por conseguinte, estão em dívida com Deus (3.19). Por isto, todas também
serão julgadas por Deus. No juízo não há distinção de pessoas e, em conse-
qüôncia, nenhum povo privilegiado. Todas as pessoas estão sob o pecado (3.9)
e perdidas. Porém, visto que Deus quer salvar a todas através do ato amoroso
de seu Filho, por meio da justificação, na missão elas são confrontadas com a
mensagem desse amor. Elas são, assim, o “tu” da salvação e, por conseguinte,
da missão66. Uma vez que a humanidade é vista corno unidade, ela se defronta
como unidade com aquele Um que é seu Redentor e Reconciliador. Assim
como há somente uma humanidade caída, da mesma maneira há somente um
evangelho, uma salvação. Esta Deus realiza. “Ele deseja que todas as pessoas
sejam salvas e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1 Tm 2.4.) Por
tanto, a missão é dirigida a toda a humanidade. Assim como todas elas peca
ram naquela uma pessoa, da mesma maneira também poderão ser salvas so
mente por meio daquele Um (Rm 5.12,18). Por isso, a pregação missionária
não pode levar em consideração limites de povo e raça.
Em meio a esta humanidade pecadora vive a comunidade de Jesus Cristo.
Também ela é pecadora, portanto se encontra numa solidariedade de pecado e
culpa com o meio que a cerca. Por outro lado, contudo, ela é “tirada para fora”
do mundo pecador pelo amor de Deus67, ela faz parte, através do perdão recebi
do e do novo nascimento, da nova criação que inicia com aquele Um, e, na
condição de comunidade dos justificados e reconciliados, é a portadora da pro
messa divina e da vontade amorosa de Deus entre os povos. O amor de Deus é
vertido em seu coração (Rm 5.5b). Com isto Deus não a tira do mundo, mas faz
deste o espaço do testemunho da comunidade. Seu agraciamento é, portanto, com
promisso. A comunidade possui algo que as outras pessoas não têm, mas que
precisam em vista de sua salvação. Por isto, a comunidade ingressa numa relação
de culpa com a parte restante da humanidade, à qual ela tem que servir com o
evangelho (Rm 1.14). Como pretende louvar e agradecer a Deus por seu
agraciamento, se ela como nova criação não continua a obra daquele que foi a
primícia, mas subtrai a seus próximos o que Jesus conquistou também para eles?
Como ela pode ser uma comunidade crente em desobediência e egoísmo? Neste
sentido as igrejas antigas correm constantemente o risco de restringir ao pró
prio povo a dinâmica da justificação que rompe todos os limites. O fato de pen
sarmos e agirmos no âmbito da Igreja territorial e nacional é uma expressão da
limitação de nosso cristianismo. Ambos os conceitos e sua fundamentação na
teologia c no direito eclesiástico prejudicaram repetidamente a vida eclesial pelo
118
A fim de reunir tal comunidade dentro do mundo, Deus usa, através do
Espírito Santo, sua Igreja e faz proclamar sua salvação entre as pessoas perdidas.
O que está em jogo aí é unicamente a redenção do pecador. Receio que hoje, no
trabalho missionário, esse objetivo seja sobreposto, em grande parte, pelas mui
tas preocupações e necessidades, bem como pela definição do relacionamento
com as igrejas novas, de modo que ele não mais ocupa a posição dominante e
que a tudo perpassa. Também o trabalho missionário pode se tornar rotina
eclesial, e este talvez seja seu maior perigo. Se tivesse permanecido determinante
no trabalho, as discussões com as igrejas novas teriam que ter tomado outro
rumo, pois a missão como salvação do pecador transmite ambas as coisas: simul
taneamente autoconfiança cristã e subordinação. Onde a perdição das pessoas arde
na alma, passam para o segundo plano as questões relativas à necessidade de ter
seu valor reconhecido. Assim as igrejas novas teriam aprendido que a verdadeira
autonomia somente é obtida na oferta do evangelho, na confrontação com o
mundo da descrença, e as igrejas antigas teriam experimentado que no trabalho
missionário uma Igreja nova chega à força da idade adulta e que seu relaciona
mento mútuo nunca pode ser uma questão de subordinação ou superioridade,
mas somente de um enquadramento comum na mesma e única atividade. Então
também as igrejas antigas teriam evitado que o objetivo se deslocasse durante as
discussões e se teriam dado por satisfeitas com um serviço de assistência, que só
pode servir ao objetivo de forma indireta. Acaso hoje o trabalho missionário
não é determinado preponderantemente a partir da situação, isto é, a partir do
ser humano? Ora, no trabalho do reino de Deus decisiva nunca é a situação, mas
sim a Igreja que se defronta com ela a partir da palavra de Deus.
Com uma definição correta do objetivo, em todo caso não se teria podi
do dizer, em meio a um mundo de descrença, que o tempo da missão pioneira,
portanto da conversão e da fundação de comunidades, tenha chegado ao fim.
A situação que se modifica é sempre um bloqueio do caminho; justamente por
causa disto deve-se constantemente abrir novos caminhos. De modo algum tenho a
impressão de que com a existência das igrejas novas o trabalho tenha se torna
do mais fácil e menor. Por isso precisa-se também dos “escoteiros” da Igreja
antiga e nova, “a fim de ganhar muitos” e “salvar alguns” (1 Co 9.16-23). Leia-
se mais uma vez estes versículos para que se tenha uma noção do que significa
estabelecimento do objetivo missionário. Neste curto trecho Paulo usa seis
vezes o hina (= para que) divino e com isto dá cada vez a mesma fundamenta
ção. Ele também teve uma Igreja nova e suas dificuldades realmente não eram
menores do que as nossas, mas ele perseverou no objetivo.
O objetivo é alcançado através da proclamação dos fatos salvíficos, da
oferta da reconciliação. Neste sentido é óbvio que as pessoas que se tornaram
ignorantes precisam saber primeiro contra quem e como elas pecaram, por
que estão perdidas e com quem devem se deixar reconciliar a fim de serem
salvas. Neste ponto a pregação do primeiro artigo do credo adquire sua impor
tância. Assim, a tarefa da Igreja somente pode consistir em chamar, através da
pregação da lei e do evangelho, do juízo e da graça, as pessoas para se coloca
rem sob o senhorio de Deus, levá-las à fé, para que abracem a sola gratia.
Assim, através da ação do Espírito Santo é alcançado o objetivo da revelação de
Deus: a salvação e renovação das pessoas.
119
Este serviço a Igreja só pode prestar aos descrentes se ela emprega os
meios de missão que Deus lhe deu na revelação. Ele acontece através da viva vox
evangelii em palavra e sacramento, que são o conteúdo da revelação. Esta não
é uma cosmovisão ou um programa social, “não é especulação ou gnose, mas
justificação, santificação, renascimento, vida eterna (Jo 17.3). Deus nunca se
revela de outra forma do que fazendo algo novo da pessoa.”'1 Somente a revelação,
através da ação do Espírito Santo, leva ao reconhecimento da situação de peca
do e ao arrependimento, porque ela mostra à pessoa como ela realmente é.
Somente ela tem a força de libertar a pessoa dos vínculos com os demônios,
com os pecados e com o mundo alheado de Deus - incluindo o povo. Por outro
lado, ela lhe mostra Deus na imagem do Deus invisível (Cl 1.15) e coloca-a
assim bem pessoalmente diante da decisão. Ela dá ao ser humano a força de
romper com sua vida, de agarrar a salvação na fé e de se deixar presentear com
o perdão dos pecados'2. Assim, através da apresentação dos fatos salvíficos é
desencadeado o processo fundamental que leva à conversão e ao renascimento
e, por conseguinte, à renovação da pessoa.
Todo método missionário precisa considerar essas linhas básicas da apro
priação da salvação, se pretende levar à fundação da comunidade de Jesus e
proclamar seu senhorio entre os povos. Infelizmente justo neste ponto pecou-
se muito no campo da missão através da impaciência humana, insuficiência,
descrença e sabedoria mundana, porque se cria ter que apoiar a ação do Espí
rito Santo através de meios humanos, seja através da atividade filantrópica, da
proclamação do social gospel**, da disseminação da civilização ou adaptação à
índole nacional. Queria-se tornar a decisão do gosto das pessoas ou facilitá-la,
e precisamente com isto impediu-se que as pessoas interpeladas chegassem à
alegria da filiação divina. O resultado disso foi que os atingidos associaram
expectativas errôneas com a aceitação do cristianismo e acreditaram que o
essencial da vida em comunidade consistisse no cumprimento de determina
das prescrições sociais, a fim de obter um nível de vida mais elevado. Os cris
tãos foram levados a um novo legalismo, sem terem experimentado a liberda
de dos filhos de Deus. - Sem dúvida, junto com o trabalho missionário aconte
cerá a promoção do povo, mas ela não deve ser antecipada; precisa, isto sim,
ser uma conseqüência da pessoa renovada e, por conseguinte, do evangelho.
Portanto, ela precisa partir da comunidade, para não resultar numa superficia-
lização da mensagem.
Deus salva a pessoa interpelando-a de forma bem pessoal e conduzindo-a à
fé através de sua palavra. Com a aceitação da salvação, porém, ele a coloca simul
taneamente na comunhão dos salvos, para que ela permaneça no estado de pessoa
justificada e encontre a força e ajuda de que precisa para sua nova vida. Isto
acontece através da inserção na Igreja visível, da participação no corpo de Cristo,
120
que é comunicada pelo Batismo13. Através dele a velha pessoa é entregue à mor
te, morre para o pecado, torna-se uma nova pessoa através do Espírito Santo e
recebe participação na ressurreição do Senhor (Rm 6; Cl 2.11). Com isto, o
batizando experimenta o perdão único dos pecados, como a Igreja ensinou
reiteradamente e como testemunham os batizados em todas as áreas de missão
em que o Batismo é praticado de acordo com a Sagrada Escritura737475.Simultane
amente, porém, eles recebem participação na salvação e na vida eterna (Tt 3.3-7;
1 Pe 1.3s.). Assim, ao batizando é transmitido tudo o que Cristo fez por ele; por
conseguinte, o Batismo não está fundamentado somente na compaixão de Deus,
mas comunica à pessoa no renascimento ajustificação, pois transmite-lhe o mérito
de Cristo. Aqui coincidem o renascimento e ajustificação, e a pessoa não pode fazer
outra coisa do que se deixar presentear tudo na fé1''.
No Batismo, portanto, a nova vida torna-se existente. Porém ela não teria
nenhuma duração posterior se Deus não desse ao renascido, através da comu
nicação do Espírito Santo, a força para levar uma vida agradável a Ele. Por isso,
através do Batismo a pessoa é renovada em sua consciência (1 Pe 3.21), purificada
das obras mortas, portanto dotada de uma nova norma de consciência, para
servir ao Deus vivo (Hb 9.14). Ela, de agora em diante, está sob o senhorio de
Deus. Com isto a santificação, que o Espírito Santo iniciou prolepticamente
através do ouvir da palavra e realizou no Batismo, torna-se repetidamente atu
ante no Batismo, por meio da confiança da pessoa crente na ação de Deus no
Batismo767, para que ela possa produzir frutos (Cl 1.10-14).
Portanto, na nova vida todo dever baseia-se num ser11, trata-se sempre de ser
santificado78. Por isso não se podem separar ajustificação e a santificação;
ambas coincidem no Batismo. Somente com base nisto Paulo pode fazer as
muitas afirmações indicativas e positivas sobre as qualidades da nova pessoa
ou falar sobre os frutos do Espírito. Quando, porém, contempla sua própria
vida, ele sabe que não alcançou o objetivo da santificação por meio de esforços
próprios (Ef 4.13; Fp 3.12). Só se pode tomar com base no ser tomado por Cristo. O
Batismo, assim, nos coloca na comunhão com Cristo, no âmbito de sua ação. O
ser eleito, o ser plasmado por ele são a base e o conteúdo de nossa vida de
cristãos (Jo 15.1-17). “Porque todos quantos fostes batizados em Cristo, de Cristo
vos revestistes.” (G1 3.27.)
Essa comunhão, esse estar-em-Cristo são a base da vida da Igreja, da co
munidade dos batizados. Nela a cabeça, através de sua comunhão com cada
121
um dos membros, junta todos os batizados em seu corpo e torna a comunida
de dos reconciliados uma comunhão de vida. Por isto, ser justificado significa
sempre estar na comunidade deJesus. Não há Batismo sem comunhão batismal79.
Esta frase, entretanto, pressupõe a ação de Cristo no sacramento. Neste senti
do, seria de se perguntar até que ponto as missões para as quais o Batismo é
somente uma cerimônia, um símbolo, um ato de aceitação na comunidade
(que é determinado ou sobrepujado pela experiência da conversão ou do batis
mo do Espírito!) agem corretamente e estão aptas a transmitir a graça do
Batismo aos crentes. Cristo vinculou sua ação à palavra e ao sacramento. Uma
prática superficial do Batismo junto com uma compreensão imprópria do sacramento
não pode levar à vivência da justificação e, por conseguinte, também não a uma
comunidade cristã autêntica. Um missionário que duvide da ação do sacramento
não pode fundar sua comunidade somente em Cristo, que oferece tudo aos
seus de graça no sacramento e transforma os batizados em propriedade sua.
Se encontramos tão poucas comunidades verdadeiras no campo da missão, a
razão disto decerto está na prática batismal. Isto pode ser percebido claramen
te na comparação com as comunidades nas quais a graça do Batismo e a nova
aliança tornaram-se realidade.
Onde não se tem essa compreensão de Batismo também não se sabe o
que é confissão e que importância ela tem para a comunhão dos cristãos com
seu Senhor e na vida da comunidade, que se baseia no perdão. Além disso,
dever-se-ia perguntar neste ponto qual é o alcance da comunhão batismal e se
o movimento ecumênico age corretamente em seus esforços de tornar visível a
unidade da Igreja quando acolhe em suas fileiras também os que desprezam o
Batismo. O Batismo é o elemento comum que une toda a cristandade. Justa
mente por causa disso dever-se-ia encará-lo com muita seriedade no trabalho
missionário. Como através dele é fundada a comunidade, assim ele também
seria capaz, se entendido biblicamente, de plasmar a unidade da Igreja. Por
meio dele é eliminado entre os batizados tudo o que divide, a cerca é derruba
da, eles são transformados em cidadãos e companheiros de Deus aqui nesta
terra (Ef 2.2s.). O laço mais íntimo dessa comunhão é, por isso, o perdão, que é
praticado nela e por meio dela e que ela só pode presentear porque ela mesma
recebeu perdão. E sempre o Senhor que continua a agir na comunidade através de
seu ato sacrifical. “Se procuras a Igreja, não a encontrarás antes de veres a ele e
a seu amor. A Igreja é o milagre de que neste mundo no qual vivemos haja um
grupo de pessoas que, em Cristo, Deus livra, por amor, do medo, sofrimento,
pecado e morte. A Igreja vive do amor. O amor é seu fundamento de vida”80.
Em parte alguma esse amor se expressa e se consuma de forma tão acen
tuada na comunidade quanto lá onde a comunidade pratica o perdão e vive,
ela própria, da fonte do perdão: na Santa Ceia, onde ela celebra a morte
reconciliadora de Jesus, torna-o atuante em seu meio e o proclama através de
seu comer e beber, até que ele venha (Rm 5.6-11; 1 Co 11.26). Na Ceia a vida
122
da comunidade é constantemente renovada. Aqui cada membro individual
mente recebe a força do amor, o fortalecimento da fé e torna-se consciente de
sua condição de membro do corpo de Cristo, da comunhão que o próprio
Cristo estabelece reiteradamente através da partilha de sua carne e seu sangue.
Por isso a Santa Ceia é a ligação mais forte e íntima do Senhor com sua
comunidade e a antecipação da comunhão eterna que ela pode ter com ele. Cada
celebração da Ceia é um acontecimento escatológico, que torna a própria comuni
dade uma grandeza dofinal dos tempos-, ela ainda está neste mundo para executar
sua tarefa salvífica no mundo em vista da vinda do Senhor81, porém não perten
ce mais a este mundo perdido, mas é tirada dele por amor e destinada à alegria
e glória eternas. Na Santa Ceia o Senhor dá à sua comunidade tudo o que ela
precisa para sua vida no estrangeiro. Por isso, sobre cada celebração da Ceia está
a seriedade do fim dos tempos, a expectativa dos que estão de partida. Por isso,
uma autêntica comunidade de Ceia não pode se prender mais a este mundo,
mas, através da Ceia, separa-se de tudo que não é de seu Senhor. Assim a Santa
Ceia adquire a maior importância para o trabalho missionário, para a condução
da comunidade, para a vida da Igreja. Freytag a salientou em dois trabalhos82
que nunca mais deveriam deixar de ser levados em conta ao se abordar a Ceia na
teologia e na condução da comunidade. Ele expõe ali como o Senhor, através da
dádiva de sua carne e sangue, estabelece comunhão, se corporifica na comuni
dade e a capacita a se separar de tudo o que atrapalharia essa comunhão. Assim
como a Igreja antiga usou a Ceia como a arma mais forte contra o paganismo, da
mesma maneira a Ceia também desfaz, nos campos missionários, todos os víncu
los com poderes extracristãos e leva as comunidades a romperem sua casca. Ou
uma comunidade vive no sacramento ou ela morre.
Esses são os meios de missão que a comunidade tem para levar a reden
ção à humanidade perdida. “São três os que dão testemunho”, diz João, “o
Espírito, a água e o sangue” (1 Jo 5.6). Estes três dão a fé que vence o mundo.
Se a missão se recordar destes três, então a crise na qual ela agora se encontra será uma
crise fecunda. Então as muitas conferências não se ocuparão com programas,
relatórios, propostas de melhoramento e questões da impregnação dos povos
com o espírito cristão e democrático, aos quais Deus tantas vezes ignora e
passa para a ordem do dia, mas levarão a um apreço alegre desses meios da
graça e da missão e assim também a um exame consciencioso de seu emprego e a
uma confrontação autorizada da Igreja com os descrentes. Então a missão tam
bém poderá experimentar que seu êxito não reside em sua atividade social,
filantrópica ou civilizatória, mas na oikodome (= edificação), na construção es
piritual da Igreja de Jesus Cristo através dos três meios da missão. Mas então
ela também saberá que sua tarefa não termina com a conversão de pessoas, a
fundação de comunidades e a formação de novas igrejas autônomas, mas so
mente quando as igrejas novas, através da administração própria e correta
123
desses três meios de missão, realmente se tornarem “autônomas”, isto é, livres
de todos os vínculos falsos, e orientarem sua vida somente pelos três meios. O
serviço da missão somente estará concluído quando Deus levar a cabo a reden
ção das pessoas através do retorno de seu Filho.
124
direcionada toda a nossa existência (Cl 1.16; 1 Co 15.49), tem direito sobre
todas as pessoas. Por isso todas estão sujeitas ao juízo. Porém ele não exerce
seu senhorio como um tirano antes, o âmbito de seu senhorio é o reino da
graça. Sua basileia (= reino), por conseguinte, se torna menos visível no êxito
da pregação do que no fato da pregação8586.Esta irá passar pelos povos no tem
po intermediário. A ela o Senhor vinculou sua vinda (Mt 24.14). Assim, a pre
gação da justificação sempre tem como objetivo a consumação81’.
Aqui não considero como minha tarefa reproduzir in extenso (= detalha
damente) o conteúdo dos trabalhos muito ricos que fundamentam a missão a
partir da escatologia87. Eles têm o grande valor de aguçar a consciência da
Igreja com vistas à responsabilidade última, mostrar-lhe as autênticas tarefas
eclesiais e indicar-lhe a postura correta dentro do mundo. Meu objetivo era o
de salientar como a missão e o senhorio de Cristo têm sua fundamentação e
possibilidade na ação salvífica de Cristo. Esta ação salvífica, porém, somente
pode ser entendida a partir da escatologia. Isto se aplica especialmente aos
feitos centrais de sua atividade terrena, à sua morte e ressurreição (Rm 4.23ss.;
8.33ss.). Somente através de sua morte e através de sua ressurreição Jesus se
tornou o Senhor e se tornará por toda parte onde for anunciada esta mensa
gem (Fp 2.5-11). Neste sentido sempre se apontou para os nexos escatológicos.
O testemunho da comunidade acerca da ação salvífica de Jesus sempre a
levará ao caminho que foi trilhado por seu próprio Senhor, pois pelo fato de
pregar a reconciliação e assim proclamar o senhorio de Jesus ela desafia o mal,
que se apresenta para o combate8889.Assim como o Senhor somente chegou ao
objetivo por meio de seu sofrimento, também sua comunidade é exposta a
sofrimentos e tribulações8<J. Quanto mais progride a proclamação do evangelho,
tanto mais o reino do mal irá se preparar para a batalha final. Também a
realidade intensificada do mal é um sinal do fim dos tempos. A vida da comu
nidade se realizará sempre na ecdesia militans (= Igreja militante). Está de acor
do com o evangelho o fato de se perceber algo dessa batalha. A comunidade
não pode esperar uma vida diferente da que tinha seu Senhor (Jo 15.18ss.).
Este é um fato dado simplesmente porque a comunidade precisa se confrontar
com o mundo. Ao fazê-lo, ela é levada ao sofrimento e ao estrangeiro (1 Fe
2.11), em que aprende a se alegrar com a polüeuma (= pátria) no céu, onde ela vai
chegar à perfeição quando o Senhor submeter a si todas as coisas (Fp 3.15-21).
Também o sofrimento faz parte do serviço de testemunho da Igreja de Cristo90.
Este é um fato que, nos trabalhos sobre a relação entre escatologia e missão
125
que conheço, parece-me, com exceção daquele de Stáhlin, não ter sido consi
derado com a mesma ênfase como ocorre no Novo Testamento. Com isto, é
evidente que eles correm o risco de se tornarem, sob o ponto de vista do
senhorio de Cristo, uma theologia gloriae (= teologia da glória), que é inoportu-
najustamente hoje, quando se reconheceu a comunidade em sua posição como
povo de Deus.
O caminho da Igreja e da missão passa, até atingir seu alvo, por sofrimen
tos cada vez mais intensos. Hoje dificilmente se reconhece o significado deles
para a educação da Igreja por Deus e na representação pelos pecados dos
povos. Isto se deve, por um lado, ao fato de que, nesta época em que a Igreja
nacional está no fim, as igrejas ainda não conseguem imaginar como o teste
munho e a proclamação seriam possíveis sem a atitude fundamental benévola
dos povos, com base na qual se pode proteger juridicamente os “direitos” da
Igreja. A conseqüência sempre é ainda que se confia mais em garantias jurídi
cas do que nas manifestações vitais da comunidade oriundas da fé. Por outro
lado, nas missões, principalmente nas anglicano-americanas, ainda perduram
os efeitos das idéias liberais do século 19, das doutrinas do social gospel e do
reino de Deus erroneamente entendido, de modo que praticamente não se
tornou familiar o pensamento de que os sofrimentos fazem parte da profissão da
Igreja. Porém elas são uma advertência para repararmos aonde pode levar um
trabalho missionário fundado no senhorio de Deus ou de Cristo quando se o
afasta da fundamentação na soteriologia. Quando se segue Schaeder* e se
fundamenta a missão com uma “imperiologia”, então a redenção se torna con
seqüência do senhorio de Jesus e não como no Novo Testamento (cf. Fp 2.5-11
e todas as passagens que remontam a Is 53.11s.), onde, justamente ao contrá
rio, o ser Senhor de Cristo é conseqüência do sofrimento e da morte. Neste
caso Jesus não é mais o dominus (= pai de família) em seu dominium (= âmbito
de proteção) conquistado por meio de sofrimento e morte, mas um despotes (=
imperador)91. Então, porém, também se precisa necessariamente ignorar o fio
condutor que, a partir de Is 53, também no que diz respeito à Igreja, se estende
por todo o Novo Testamento. A melhor referência a ele é a palavra de At 14.22:
“Fortalecendo as almas dos discípulos, exortando-os a permanecer firmes na
fé; e mostrando que, através de muitas tribulações, nos importa entrar no
reino de Deus.” Aqui não se deixou os cristãos com nenhuma ilusão, não se
lhes prometeu um paraíso e também não se quis fundar nada parecido. Antes,
de forma bem sóbria, mas também numa atitude poimênica correta, chamou-
se-lhes a atenção para as conseqüências do ser cristão e instituiu-se-lhes anciãos,
portanto pastores que, nos acontecimentos escatológicos, os conduzissem no
caminho indicado por Deus.
* N. doE.: Erich Schaeder (1861-1936), teólogo alemão que exigia uma teologia bíblica teocêntrica
em contraposição à visão antropocêntrica da época liberal. De certo modo, foi um precursor da
teologia dialética, cujo maior expoente foi Karl Barth.
91 W. ELERT, Zwischen Gnade und Ungnade, München, 1948, p. 74s. e 78ss.
126
Com isto é dado ao ministério, à direção da missão e da Igreja nova, uma
tarefa especial: preparar as comunidades para os sofrimentos e as tribulações.
Aqui reside decerto o maior pecado de omissão do trabalho de missão, mas também
uma deficiência na direção das comunidades em nosso país. Provavelmente teria-se
agido mais de acordo com o modelo do Senhor e seus discípulos preparando
os cristãos chineses para o sofrimento do que construindo universidades para
eles. Com este pecado de omissão relaciona-se decerto também o fato de que
hoje as igrejas novas enfatizam mais seus direitos do que suas obrigações; que
elas aspiram a direitos iguais e buscam identificação com as igrejas antigas
justo ali onde, segundo a palavra de Deus, poderiam plasmar sua vida de for
ma própria; que elas pensam encontrar no modelo ou sistema ocidental de
educação a chave para a vida independente e com igualdade de direitos, ao
passo que deveriam se deixar determinar totalmente a partir do Novo Testa
mento.
A pregação do sofrimento, da capacidade para o sofrimento, do sentido
dos sofrimentos, do sacrifício, do consolo, da força no sofrimento era uma
parte essencial da proclamação neotestamentária. Por isto, a primeira comuni
dade não recorre aos tribunais, nem pede a Deus que a livre do sofrimento,
mas suplica: “Concede a teus servos que anunciem com toda a intrepidez tua
palavra!” (At 4.29), a palavra da reconciliação, em cuja persistência e compro
vação a comunidade experimenta sua justificação final (Mt 24.13; Ap 2.10).
Assim também o sofrimento e a missão estão estreitamente relacionados. Isto, porém,
só é possível porque a comunidade pode ser fiel na grande certeza da salvação
que flui da justificação, como se expressa em seu canto de vitória de Rm 8.3 lss.
Palavras como estas a comunidade somente pode aplicar a si mesma por
que sabe que Cristo abarcou tudo em sua morte e ressurreição e ofereceu-lhe
na palavra e no sacramento o que lhe quer presentear na eternidade. Ele a
transformou já agora no ser celeste (Ef 2.5s.), para que ela procure o que é do
alto (Cl 3.1), ajerusalém celeste (Hb 12.22); para que ela espere o novo céu e
a nova terra (2 Pe 3.13), onde Deus irá enxugar todas as lágrimas e sua condi
ção de estrangeira terá fim (Ap 21.1-7), porque ele, em seu juízo, por causa de
Cristo lhe dará a recompensa de sua fidelidade. Assim, sobre cada trabalho de
missão estão a seriedade da partida e a pressa, mas também uma certeza confiante: a
certeza de que na justificação final será revelado tudo o que Deus já agora nos
ofereceu na justificação por meio da palavra e do sacramento.
Por isso, a justificação não é nenhuma “almofada de descanso”, como foi
entendida erroneamente com muita freqüência, mas o fundamento e motor para
o esplêndido serviço de levar a salvação às pessoas perdidas e edificar a comu
nidade do Senhor, na qual ele consumará tudo o que ela pôde, na fé, aceitar de
sua mão.
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