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Georg F.

Vicedom

A missão como obra de Deus


Introdução a um a teologia
da missão

1996 A Editora

fSinodal
Traduzido do original Missio Dei. Einführung in eine Theologie der Mission,
© 1958, Chr. Kaiser Verlag, Munique, República Federal da Alemanha.

Os direitos para a língua portuguesa pertencem à:


Editora Sinodal
Rua Amadeo Rossi, 467
Caixa Postal 11
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Tel.: (051) 592-6366
Fax: (051) 592-6543

Tradução: Ilson Kayser


Vilmar Schneider (Apêndice)
Revisão da tradução: Martin N. Dreher
Luís M. Sander
Revisão das provas: Luís M. Sander
Coordenação editorial: Luís M. Sander
Produção gráfica: Editora Sinodal
Série: Teologia Prática - Estudos Pastorais 11

Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológicas/Instituto Ecumênico


de Pós-Graduação da Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil.

CIP - BRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


Bibliotecária responsável: Rosemarie Bianchessi dos Santos CRB10/797

V 632m Vicedom, Georg


A missão como obra de Deus : intro­
dução a uma teologia da missão / Georg
Vicedom ; tradução de Ilson Kayser. -
São Leopoldo : Sinodal, 1996.
127 pp.
Título original: Missio Dei.
ISBN 85-233-0426-6
1. Teologia Prática. 2. Missiologia. I. Título.

CDU 24: 266


Sumário

Apresentação da edição brasileira............................ .. 7


Introdução................................................................... .13
Capítulo 1: A missio D e i................................................... .15
1. O conceito............................................................... .16
2. A missão através de Deus....................................... .16
3. Agir salvífico de Deus e envio............................... .18
Capítulo 2: O senhorio de Deus................................ .20
1. O motivo da missão.............................................. 20
2. O parceiro de D eus.............................................. 21
3. O outro reino........................................................ 23
4. O reino de D eus................................................... 25
5. Jesus, o conteúdo do Reino................................. 26
6. A alteridade do reino de D eus............................ 27
7. O reino de Deus como dádiva............................ 28
8. O Reino como salvação....................................... 29
9. Presente e futuro do R eino................................. 30
10. O caráter decisório do Reino.............................. 31
11. A universalidade da salvação............................... 33
12. Quis Jesus a missão entre os gentios?................. 35
13. O lugar escatológico da missão entre os gentios 37

Capítulo 3: O envio.................................................... 40
1. O sentido do envio............................................... 40
2. Enviador e enviado.............................................. 40
3. Eleição e envio...................................................... 41
4. A missio Dei specialis ............................................. 44
5. Os apóstolos.......................................................... 46
6. O nome “apóstolo” ............................................... 49
7. Ministério apostólico e comunidade.................. 50
8. Comunidade e envio, o apostolado.................... 52
9. Teologia do apostolado........................................ 53
10. O que é “apostólico”? .......................................... 55
11. A premissa do apostolado........................ ............ 56
12. O discipulado........................................................ 57
13. Discipulado e apostolado..................................... 59
14. O serviço do discipulado..................................... 61
15. Missão e Igreja...................................................... 62
16. Igreja e apostolado..................................................................................... 63
17. O novo povo de Deus................................................................................. 66
18. Igreja e m u n d o ........................................................................................... 68
Capítulo 4: O alvo da m issão........................................................................... 71
1. A conversão dos povos............................................................................... 71
2. O conceito ta ethne ..................................................................................... 73
3. O objetivo da missão........................................................................... 74
4. As peculiaridades dos povos...................................................................... 75
5. Os cristãos procedentes dos gentios......................................................... 76
6. A linha pedagógica..................................................................................... 77
7. Missão e civilização.................................................................................... 78
8. O desenvolvimento gradativo................................................................... 80
9. O método evangelístico............................................................................. 81
10. Tornar-se crente.......................................................................................... 82
11. Os meios da missão.................................................................................... 83
12. A missão e o milagre.................................................................................. 85
13. A comunidade como alvo.......................................................................... 87
14. A importância do Batismo para a missão................................................ 88
15. Santa Ceia e missão.................................................................................... 90
16. A Igreja - uma grandeza sui generis ......................................................... 91
Capítulo 5: A comunidade da salvação............................................................92
1. Comunidade e reino de Deus.......................................................................92
2. A comunidade do apostolado........................................................................93
3. A testem unha..................................................................................................94
4. A comunidade do sofrimento........................................................................95

Apêndice: A justificação como força


conformadora da m issão................................................................991
1. A situação........................................................................................................99
2. A missão como obra de Deus...................................................................... 103
3. Deus realiza sua obra através de sua com unidade................................... 107
4. A conformação da pregação missionária..................................................117
5. O caminho da comunidade até a justificação final.................................. 124
Apresentação da edição brasileira

Publicar um livro como Missio Dei no Brasil, quase 40 anos após a sua
edição original na Alemanha (Munique, 1958), exige uma explicação. Vicedom
provavelmente é um grande desconhecido das igrejas cristãs brasileiras. Sabe-se,
todavia, que existem alguns pastores da Igreja Evangélica de Confissão Luterana
no Brasil que foram seus ouvintes e até alunos. Além disso, suas idéias influen­
ciaram a prática comunitária e até mesmo a opção pelos povos indígenas no
Brasil. Baseados na teologia que este livro revela, podemos nos perguntar por
que não frutificou muito mais. Por isso, achamos por bem traçar, nesta Apresen­
tação, alguns aspectos de sua biografia e teologia que ajudem os leitores e leito­
ras brasileiros a conhecer mais de perto o autor deste livro. É bom lembrar que
sua abordagem da missão figura como relevante em compêndios de missiologia1.
Só este já seria um bom motivo para traduzir parte de sua obra para o portu­
guês. Destacamos abaixo alguns pontos que nos parecem importantes na obra
de Vicedom. Antes, porém, vejamos alguns dados da biografia do autor.

Vicedom: m issionário
e teólogo da missão

Georg Friedrich Vicedom (190S-1974) foi um missiólogo peculiar. Nasceu


na Baviera, Alemanha, numa região rural há séculos ligada à Igreja Evangélica
Luterana. Filho de camponeses, trabalhou até os 19 anos na roça com sua famí­
lia. Quem o conheceu mais de perto podia testemunhar como era visível na sua
maneira de ser essa origem popular e trabalhadora, curtida pela vida rude e
aberta às experiências do povo da terra, de poucas palavras e sem cerimônias, às
vezes jovial e com algum humor, todavia profundamente piedosa e ética. Essas
marcas também transpareciam quando Vicedom viajava pelo mundo como uma
das maiores autoridades em missiologia, a ponto de ser chamado de xmsdom,
sabedoria em inglês, numa alusão carinhosa ao seu nome alemão.
Vicedom entrou no Seminário para Missão e Diáspora de Neuendettelsau
(Baviera), em 1922, tornando-se aluno de outro missionário, Christian Keysser,
conhecido im pulsionador da indigenização do evangelho e de uma 1

1 Cf. Karl MÜI.LER, Teologia da Missão, trad. Henrique Perbeche, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 66-69.
Este professor de Teologia católico, que escreve em colaboração com o luterano Hans-Werner
Gcnsichen, defende que os “pensamentos desenvolvidos nos cinco primeiros capítulos deAd Gen­
tes [documento do Vaticano II sobre a missão entre povos não-cristãos] correspondem no essencial
às colocações de Vicedom sobre a Missio Dei” (p. 68).

7
eclesiogênese autóctone entre os aborígenes na Nova Guiné23.Em 1929, após
estudos complementares na Universidade de Hamburgo, foi enviado pela
Obra Missionária de Neuendettelsau para a Nova Guiné. Na linha de Keysser,
conviveu por dez anos com tribos no planalto central daquela ilha, povos até
então não alcançados pelos brancos nem por qualquer ação evangelizadora
(uma obra etnológica de três volumes documenta esta experiência*), fundan­
do aí dois postos missionários. Durante esse trabalho pioneiro, viveu separa­
do da esposa e dos quatro filhos por quatro anos. Em 1939, viajando de
licença à terra natal, foi surpreendido pela Segunda Guerra Mundial c con­
vocado ao serviço militar.
De 1946 em diante atuou como professor no seu Seminário. Mais tarde, foi
o primeiro catedrático de Missiologia na Escola Superior de Teologia da mesma
localidade, além de tornar-se livre-docente na Universidade de Erlangen (Baviera).
Foi um período rico, em que lecionou e publicou centenas de obras teológicas,
entre as quais estas duas que são agora editadas no Brasil. Nessa época, ele
cooperou em inúmeros grupos de trabalho, congressos, sínodos e assembléias,
tanto em nível regional e nacional quanto internacional, no âmbito da família
universal evangélica luterana, bem como do Conselho Mundial de Igrejas. As­
sim, chegou a visitar todos os continentes, vindo ao Brasil em 1967. As impres­
sões que colheu da então Federação Sinodal - Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil, foram por ele resumidas no ensaio “Igreja velha em terra
nova”4. Nessa oportunidade, acompanhado pelo pastor Norberto Schwantes, vi­
sitou também duas áreas indígenas, o Parque Nacional do Xingu e uma aldeia
Xavante no Mato Grosso. Onde quer que Vicedom andasse, colhendo informa­
ções, ouvindo ou falando, discutindo ou rebatendo, agia constrangido pela wiAsio
Dei, engajado na militância pela Igreja de todo e qualquer lugar, para que esta se
tornasse autêntica na sua autocompreensão e no seu serviço.

A im portância da teologia de Vicedom

1. Vicedom decididamente adota um conceito ecumênico de missão. Mis­


são não é em primeiro lugar um conjunto de ações da Igreja. Esta é uma com­

2 Cf. Roberto Hofmeister PICH, Big Man Christian Keysser cm Papua-Nova Guiné; os Papuanos e a
Missão Crista, Estudos Teológicas, São Leopoldo, 35(2): 146-176, 1995.
3 Georg V1GEDOM, l>ieMbtnvamb; die Kultur der Hagenbergstämme im östlichen Zentral-Neuguinea.
Vol. 1: Materielle Kultur, Hamburg, 1943-48, 264 p. Vol. 2: Gesellschaft, Religion und Weltbild,
Hamburg, 1943, 484 p. Vol. 3: Mythen und Erzählungen, Hamburg, 1943, 196 p.
4 Alte Kirche imjungen Raum, ed. pelo Martin-Luther Verein, Evang.-Luth. Diasporadienst in Bayern
e.V., Neuendettelsau, Freimund, abr. 1968.

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preensão equivocada que precisa ser superada. Missão é missio Det\ ação in­
condicional e livre de Deus que tem por objetivo a salvação da humanidade. A
missio de Deus se revela na vida e na obra, na morte e na ressurreição de Jesus
Cristo. Cristo é o centro da missão de Deus. A Igreja é o seu povo, chamado
para participar dessa missio. Por conseguinte, a Igreja e a missão não podem
ser grandezas autônomas, mas se implicam mutuamente a partir da vontade
amorosa de Deus.
Deus envia e é, ao mesmo tempo, o enviado. E assim como atuou em Jesus
de Nazaré, hoje o faz pelo Espírito Santo, a presença atual do mesmo Jesus, que
atua no mundo por meio de seu povo de testemunhas. A concepção missiológica
de Vicedom é trinitária: Deus envia seu Filho, e o Filho e o Pai enviam o Espíri­
to. Decorre daí que, na missão, a soberania de Deus é incontestável, pois ele não
se deixa cercear nem pela religião nem pela descrença das pessoas. A ação de
Deus nos atinge e envolve constantemente de modo surpreendente (extra nos).
Esta concepção de missão é bastante crítica em relação às igrejas estabe­
lecidas, normalmente muito envolvidas consigo mesmas em detrimento de sua
razão primeira: ser o povo que testemunha o evangelho hoje e aqui, ainda que
isto lhe custe caro.
2. Vicedom faz a crítica ao paradigma civilizatório como referencial para a
concepção de missão. Ele defende o caráter disfuncional e inconformista da
missão diante de qualquer status quo (Rm 12.1-2). Não sendo assim, a conse­
quência é confundir e afastar os povos do evangelho de Cristo. Por esta razão,
Vicedom não concorda com o social gospel (“evangelho social”) de inspiração
norte-americana. Pois, a seu ver, a liberdade que o evangelho confere necessa­
riamente implica a transformação da vida social, econômica e política. O evan­
gelho confronta pessoas e povos com o Cristo de Deus diante do qual se decide
a salvação da humanidade. A concepção missiológica de Vicedom é, pois, emi­
nentemente teológica.
Importa para Vicedom que todo esse processo acontece a partir da miseri­
córdia de Deus (Rm 11.32). Esta nada mais é do que a materialização da graça
divina, da sua missão amorosa. Neste particular, Vicedom retoma um pensamen­
to caro a Martim Lutero exposto na sua interpretação do Magnificai (1521), onde
afirma que a primeira e maior obra de Deus é a misericórdia (Ix 2.46-55). Esta
caracteriza e conforma a ação da Igreja e a nossa ação como pessoas cristãs. A fé
cristã é fé na compaixão de Deus e dessa fé flui o serviço que atua pelo amor (G1
5.6). Caso contrário, desprezamos a graça e podemos perdê-la.5

5 Urn dos primeiros que caracterizou a missão como atividade do próprio Deus foi Karl Barth, em
1932. No ano seguinte, Karl Hartenstcin esposou convicção similar no seu livro “Missão como
Problema Teológico”. Mas foi na 5* Conferência Mundial de Missão em W illingen/Alemanha
(1952) que este conceito ganhou foros de cidadania c reconhecimento na teologia da missão e nas
mais diversas igrejas. A concepção da missio Dei afirma que o Pai enviou o Filho, que, por sua vez,
enviou o Espírito. Estes três na sua unidade indissolúvel enviam a Igreja ao mundo. A missão da
Igreja c, pois, derivada da missio Dei. Vicedom foi quem mais aprofundou e alastrou o referido
conceito (cf. David J. BOSCH, Transforming Mission; Paradigm Shifts in Theology of Mission,
Maryknoll, Orbis, 1993, p. 389-393).

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Tal compreensão de missão, desfazendo os nossos complexos e a nossa
permanente mania de autocomiseração, coloca-nos no caminho onde a missio
está acontecendo. Ela nos convida a entrar na liberdade dos filhos e filhas de
Deus dispondo-nos ao seu serviço, com ânimo, lucidez e senso crítico. Ao
mesmo tempo, aponta para uma compreensão comunitária de missão: a mis­
são nunca é tarefa apenas de especialistas, mas de todo o povo de Deus, onde
estiver, na casa, na rua, no bairro, na aldeia, na fábrica, na praça, na associa­
ção, no governo e assim por diante.
3. Vicedom é responsável por uma fundamentação reformatória da mis­
são. No apêndice selecionado especialmente para esta edição, a justificação
somente pela fé é o único fundamento firme para a missão. A missão realizada
pela Igreja no âmbito da missio Dei é uma ação de fé, impulsionada pelo Espí­
rito Santo. Ela só pode ser assumida em atitude de profundo agradecimento
pela misericórdia recebida de Deus. Assim a Igreja se torna sinal da vida plena,
dádiva da graça divina.
Por isso, o paradigma da obediência não serve, como por via de regra se
interpreta o famoso texto de Mateus 28.18-20. Quando nos engajamos na mis­
são, não o fazemos atendendo a uma ordem, como se Deus fosse um general e
a Igreja seu lugar-tenente. O que verdadeiramente nos conduz a participar
daquela missio é a graça eficaz que se realiza no meio de todos os povos. Nesta
perspectiva, a missão é obra do Espírito Santo, que trabalha sem cessar para
que a Igreja de Deus - de muitas e diferentes maneiras - anuncie a compaixão
de Deus por toda a humanidade.
4. Vicedom sempre é missionário. Quer somente ganhar e reunir gente
para a missio Dei. Prático da missão, nunca faz dela teoria, campo de pesquisa
ou fonte de prestígio. Vive na selva da Nova Guiné com pessoas tão diferentes,
mas igualmente tocadas e transformadas pela missio Dei. Aqui Vicedom experi­
menta o milagre da comunidade de Jesus Cristo entre os povos, comunidade à
disposição da missio Dei. Assim parte para conscientizar homens e mulheres,
paróquias e igrejas da importância da missão. Ele as instiga a acompanhar a
missio Dei e a se deixar envolver por ela. Vê nisso o centro e a meta de quantos
crêem no Deus que se revela em Jesus Cristo. Alerta e chama para a única coisa
que vale, enquanto todo o resto “não nos conforta, mas abate e é sem valor”
(Hinos do Povo de Deus, 171, 1).
Com a profundidade e o entusiasmo que apenas uma vida sob a missio
Dei confere, Vicedom desdobra, então, a justificação por graça e fé como úni­
co motivo e critério da missão: “a fé vive do testemunho” e “inexiste sem co­
munhão” (citando N. von Zinzendorf); “a missão nada mais é do que a Igreja
que se m ovim enta” (retom ando W. Lòhe, fundador do Seminário de
Neuendettelsau); os sacramentos fazem experimentar a missio Dei e viver ale­
gremente para a missão e na missão; a comunidade contextualizada é alavanca
de Deus no mundo, mostrando a vida partilhada, antecipação da vida plena no
reino de Deus; a comunidade se auto-sustenta com o dízimo dos membros,
usando 10% do orçamento para manter um missionário de tempo integral e
colocando os outros 90% à disposição da missio Dei local e universal.

10
A missio Dei - embora liberte indusivc paróquias c igrejas sufocadas pelos
encargos religiosos e cansadas devido ao peso do seu aparelho administrativo -
causa estranheza. Vicedom o exemplifica de muitas maneiras. Mostra como cada
pessoa e grupo, cada povo e sociedade, cristãos ou não, igrejas inteiras até,
afirmam ter a sua visão e tarefa junto aos demais e as defendem com unhas e
dentes, não raras vezes contra a missio Dei. Num contexto desses, a missio Dei só
pode causar estranheza, que resulta em resistência, e esta em perseguição, den­
tro e fora das paróquias e igrejas. Exclusivamente em tal situação se evidencia,
para Vicedom, a missio como sendo de fato Dei, já que depende, em definitivo,
de Deus. A cruz revela o caráter da missio Dei, sinalizando a sua consumação
irresistível no “novo céu e nova terra, onde habitará a justiça” (2 Pe 3.13).
No entanto, a partir das nossas experiências e motivações, levantamos as
seguintes perguntas diante desta teologia da missão aqui brevemente esboçada:
a) Relação entre evangelho e culturas'. Vicedom critica fortemente concepções
e práticas que amarram o evangelho a certas civilizações e culturas, etnias e
nações. Assevera que agindo assim compreenderíamos mal o evangelho e redu­
ziríamos o seu alcance global. O evangelho se dirige a todos os povos e os trans­
forma. Não os elimina nem submete - isto é pacífico -, mas cria neles novas e
surpreendentes expressões de sua cultura. Tal convicção de Vicedom surgiu da
sua experiência na frente missionária e da rejeição bíblico-teológica tanto do
american way of life como motivo da missão quanto dos desvirtuamentos naciona­
listas do evangelho na Alemanha de Hitlcr e onde mais se manifestem.
Será que hoje essa opção está superada? Na América Latina sabemos que
a missão cristã, desde o século XVI, se impôs a ferro e fogo, eliminando povos
inteiros, descaracterizando outros e destruindo culturas milenares. Essa histó­
ria bárbara, cuja abrangência nem de longe temos suficientemente claro, nos
constrange a valorizar e a defender, com carinho e garra, etnias e culturas.
Cremos que Deus na sua missio está presente entre elas e no que delas sobrou.
Ousamos estar ao seu dispor. Tentamos seguir o evangelho que, justamente na
cultura de cada povo, assume uma forma concreta e convincente. A duras
penas descobrimos que apenas na inculturação - tão particular, frágil e escan­
dalosa - se evidencia a universalidade do evangelho. Fazemos, pois, a mesma
experiência de Vicedom, só que na via contrária. Enquanto ele confessa a uni­
versalidade da missio Dei acima de todas as particularidades, nós confessamos a
universalidade da missio Dei nas particularidades. Não podemos saber o que
Vicedom diria em nossa situação. Mas certamente teria insistido no fato de
que o evangelho é fermento transformador em toda e qualquer cultura.
b) Conversão ejuízo divino: Para Vicedom, a missão começa com a manifes­
tação do juízo de Deus. Só a partir do reconhecimento do nosso pecado e da
aceitação do juízo acontecem a conversão e a entrada na vivência da graça. Esta
questão, entretanto, necessita de cuidadosa interpretação. Pois entre nós se
acusam as igrejas de manipularem a noção de pecado e de sei em responsáveis
pela culpabilização de consciências no intuito de manter as pessoas submissas
ao seu poder e torná-las objetos mansos da sua exploração financeira. Não
podemos nem queremos negar que tais práticas antievangélicas existam, quem
sabe até aumentem em nosso contexto neoliberal. Nenhuma Igreja está a salvo
delas. Em meio a essa versão eclesiástica da opressão geral, lembramo-nos de

11
que a missio Dei vem, antes de mais nada, libertar. Ela parte bem de baixo e do
mais insignificante (cf. Mt 13.31s.). Eis o juízo de Deus. Na medida em que a
missio Dei liberta, aparecem as nossas amarras, inclusive eclesiásticas. Assim
continua o juízo de Deus, pois ele “começa na casa de Deus” (1 Pe 4.17).
Vicedom, o crítico incansável da Igreja estabelecida e autoconfiante, ressalta
do seu jeito o seguinte: apenas penitentes podem chamar pessoas ao arrepen­
dimento. Como gente confessa e arrependida, nos aproximamos delas para
conviver com elas solidariamente a partir do perdão de Deus.
c) Diálogo inter-religioso: Em relação às religiões, Vicedom nos choca.
Importa ver, no entanto, que a sua opção em absoluto vem de uma superiorida­
de moral ou qualquer coisa parecida. Trata-se simplesmente da manifestação
da sua fé no homem de Gólgota. Ela se funda sem rodeios e meandros em
trechos bíblicos que proclamam Jesus Cristo como único e universal. Ela se
sente confirmada ao registrar que a missio Dei chama e congrega o seu povo de
dentro das religiões e o envia para o meio delas. Visto assim, Vicedom nos
desafia. A quantas anda a nossa fé, qual o seu centro e fundamento, o que nos
é inalienável nela? Para o nosso afã no diálogo inter-religioso temos muitos e
bons motivos, mas qual é o nosso objetivo último?
Pensando na visão crítica da Igreja que Vicedom revela e na soberania
da missio Dei que esboça, será que ele se oporia a um diálogo com as religiões,
com a finalidade de obter a paz com justiça entre os povos, a sobrevivência da
espécie humana e a conservação da criação? Sempre tão sensível aos aconteci­
mentos do mundo, seria ele insensível aos clamores cada vez mais ensurdece­
dores dos pobres e postergados, às absurdidades criminosas que os fundamen-
talismos de qualquer matiz provocam às vésperas do século XXI? Certamente
não lhes ficaria alheio. Continuaria aprendiz. Encararia aquilo que as religiões
oferecem em nossos dias - rejeição da filosofia de vida e da cosmovisão oci­
dentais; exemplos de convivência pacífica entre as pessoas e com a natureza -
como mais um chamado da missio Dei para que a Igreja dê meia-volta. Nem a
Igreja nem comunidades cristãs exemplares (se um dia surgirem) salvam o
nosso mundo conturbado, mas unicamente a missio Dei, quando e do jeito que
a ele apraz. Graças a Deus!, diria Vicedom. Nós também? A nossa gratidão não
nos tira dos conflitos do mundo, pelo contrário, nos joga para dentro deles a
fim de colocarmos sinais da compaixão de Deus, materializada na cruz de
Jesus Cristo. Sob e com esta cruz quebramos outras cruzes nas quais nós mes­
mos e outras pessoas e idéias colocamos homens, mulheres e crianças. Alegramo-
nos que hoje podemos aprender de pessoas não-cristãs como se eliminam cru­
zes. Ainda assim o fazemos - oxalá o façamos - por causa do Crucificado e em
seu nome. Para que não nos esqueçamos disto, lemos e relemos Vicedom.
Esperamos que o estudo do presente livro seja também um estímulo
para obreiros e obreiras, presbíteros e presbíteras, enfim, para todo o povo
das comunidades. Urge que nos conscientizemos de que a missio Dei nos con­
voca a lhe emprestar a nossa cabeça, as nossas mãos e pés, e a nossa boca.

Albérico Baeske e Roberto E. Zwetsch

12
Introdução

Vivemos numa época em que todas as coisas surgidas historicamente são


desvalorizadas. Isto também acontece na teologia. Com vistas a nosso tema,
retorna repetidas vezes a pergunta se Jesus quis a Igreja e sua missão e se
ambas são dimensões legítimas do evangelho. Essa pergunta já vinha sendo
feita à missão desde sempre. No entanto, é significativo que hoje, na era da
eclesiologia, essa pergunta também seja dirigida à veiculadora da missão. Em
si, a ampliação do questionamento é objetivamente necessária, pois a missão
não é uma dimensão independente, mas sempre pode ser somente um resulta­
do do comportamento da Igreja de acordo com o evangelho. Por isso, questio­
nar a missão diz respeito também ao direito de existência da própria Igreja.
No contexto do presente trabalho, porém, é impossível expor uma fundamen­
tação nova e autorizada da Igreja. Por outro lado, a missão não pode ser fundamen­
tada como dimensão autônoma. Por isso a fundamentação da missão que ora em­
preendemos também terá que oferecer, necessariamente, referências à fundamenta­
ção da Igreja e de sua tarefa. Permanece, todavia, a pergunta se não seria preferível
o caminho inverso. Para isso, porém, não me sinto autorizado nem habilitado.
A fundamentação da missão não é coisa nova. Ela foi tentada repetidas
vezes desde os dias de Justinian von Welz*. Na missiologia evangélica alemã
ela recebeu sua forma clássica através de Gustav Warneck** e de seus discípu­
los. Pouco considerada pela teologia científica, constantemente atacada pela
massa dos incrédulos e indiferentes, objeto de mofa e zombaria por parte da
imprensa sensacionalista, muitas vezes contestada por governos totalitários, a
missão sempre se viu na contingência de comprovar sua razão bíblica de sen
Por esse motivo ela se encontrou numa posição apologética até tempos recen­
tes. Em nossos dias, porém, ocorreu uma grande mudança. Todas as funda­
mentações da missão de que temos notícia hoje não tentam mais justificá-la em
termos teológicos e, eventualmente, também fundamentá-la com argumentos
secundários, como, por exemplo, o fez G. Warneck. Falam, antes, da autorida­
de e do comprometimento com a missão. Há uma mudança evidente de uma
abordagem antropocêntrica para uma abordagem teocêntrica da missão. Isso

* N. do E.: Ju stian ian von Welz (1621-1668): leigo lu teran o , contestou a concepção da
ortodoxia luterana a respeito do trabalho missionário, que negava a validade atual da Grande
Comissão (Mt. 28.18-20). Welz insistiu no envio de estudantes cristãos como voluntários do anúncio
do evangelho cm terras pagãs. Foi um dos que impulsionaram a formação de sociedades
missionárias evangélicas.
** N. do E.: Gustav W arneck (1834-1910): teólogo alem ão, foi o p rim e iro a sistem ati­
zar, nos tempos modernos, a compreensão da tarefa missionária da Igreja cristã. Por isso a teolo­
gia européia o considera “pai da ciência da missão”. Apoiou decididamente as sociedades
missionárias do séc. 19. Cf. James A. SCHERER, Evangelho, Igreja e Reino; Estudos Comparativos
de Teologia da Missão, São Leopoldo, Sinodal, 1991, cap. 2; Valdir STEUERNAGEL, Obediência
Missionária e Prática Histórica; em Busca de Modelos, São Paulo, ABU, 1983, cap. 5.

13
é, sem dúvida, um resultado do redescobrimento da mensagem reformatória
pela teologia dialética. A Igreja recebeu novo ânimo para o testemunho.
Não obstante, é preciso constatar que a teologia no território alemão per­
maneceu estéril e imune com vistas à missão, apesar da detalhada reflexão sobre
ela na Kirchliche Dogmatik de K. Barth. A teologia limitou-se essencialmente à
definição do conteúdo do testemunho, mas não se deixou chamar por Deus a
ponto de se desencadear uma dinâmica missionária. Difundiu-se um subjetivismo
tal que hoje ninguém mais sabe dizer em que consiste a fé dos cristãos, da qual
a Igreja vive (Tambaram*). Por isso mesmo ela não pode ser transmitida a outros.
A pregação e atividade da Igreja se desenvolvem em convulsões nervosas, de
maneira que é preciso perguntar se ainda existe uma autoridade para a missão.
Isso tem profundas influências sobre a missão. Visto que ela não é uma
grandeza sui generis, mas apenas traço característico e expressão de vida da Igre­
ja, acabam manifestando-se nela sintomaticamente as mazelas da Igreja e da
teologia. Em conseqüência, toda fundamentação da missão terá que tocar nas
falhas básicas da Igreja. Esse trabalho poderia ser empreendido de modo
abrangente apenas por um teólogo universal. Por isso temos que tomar o outro
caminho: elaborar a autocompreensão da missão sem que nos percamos em
discussões sem fim. É possível que, por este caminho, possamos ajudar também
a Igreja a encontrar uma nova autocompreensão. Na Escandinávia, Holanda e
Suíça foram feitos significativos começos nesse sentido. Nos capítulos seguintes
iremos ocupar-nos essencialmente com os resultados alcançados na Holanda,
porque se preocupam de maneira mais incisiva que os outros com as fraquezas
da teologia alemã e com o conceito alemão sobre missão. Desde 1945 nós somos
os atacados. A crítica foi muito proveitosa e frutífera, apesar de ter cometido
exageros e não ter merecido atenção por parte da teologia alemã.
Acusam-nos de uma visão dc povo e identidade étnica oriunda do romantismo
que teria levado a uma ideologia etnopatética, redundado em numerosos desvios
do posicionamento bíblico básico para a Igreja e missão, eliminado o momento
escatológico e, finalmente, levado a enxergar a comunidade somente como “um
prolongamento do povo” e da identidade étnica, como “cumprimento abençoador
da estrutura étnica”.1
Há que se encontrar uma resposta a esses ataques bastante duros. Não a
daremos defendendo-nos contra cada uma das objeções feitas. Os interessados
nisso podem consultar o supramencionado trabalho de Knak. Nós preferimos
aceitar esses estímulos muito frutificantes e tentar, num confronto crítico com
eles, construir uma nova fundamentação da missão e das demais tarefas da
Igreja. Procederemos de maneira a sempre estabelecermos primeiro o que a
Bíblia diz a respeito, para então fazer a comparação.*1

* N. do F„: Conferência missionária organizada pelo antigo Comin - Conselho Missionário Interna­
cional em Madras, índia, no ano de 1938, no campus do Madras Christian Collcge. A Conferência
anterior havia se realizado em Jerusalém, dez anos antes, no Monte das Oliveiras. Essas reuniões
fazem parte dos primeiros esforços, neste século, para elaborar um pensamento missionário
ecumênico.
1 S. KNAK, Oekumenischer Dienst in der Missionswissenschaft, Theologia Viatorum, 1950, p. 157.

14
Capítulo 1:

A missio Dei

As antigas fundamentações da missão sofriam sobretudo dos seguintes


defeitos: ou tentavam comprovar apologeticamente que a missão estaria
justificada em virtude do pensamento missionário da Bíblia, e que seria possí­
vel e necessária entre os povos; ou fundamentavam missão secundariamente
como tarefa da Igreja, ou, inclusive, a derivavam da difusão da cultura “cristã”2.
No presente contexto não nos iremos ocupar com as fundamentações secundá­
rias. No entanto, a fundamentação apologética também não faz jus à Escritura.
Ela destaca a missão como obra especial desejada por Deus, enquanto, de acor­
do com a concepção global da Escritura, se atribui a Deus somente uma inten­
ção: salvar as pessoas. Por isso o serviço missionário não pode ser derivado do
serviço da Igreja. Todo serviço da Igreja só tem sentido se levar à missão e
nisso encontrar seu objetivo último. Por mais louvável que seja o fato de a
Igreja e a missão se aproximarem cada vez mais e de em muitos pontos da terra
a missão se identificar com a Igreja, nem por isso está banido o perigo da
indolência missionária, e o mal-entendido da missão não está resolvido. Existe
o perigo de a Igreja tornar-se o ponto de partida da missão, seu objetivo, seu
sujeito. No entanto, com base na Escritura ela não é isso. Pois o atuante sem­
pre é o próprio Deus triúno, que incorpora seus crentes em seu reino3. Tam­
bém a Igreja é apenas um instrumento na mão de Deus. Ela própria é o resul­
tado da atividade do Deus que envia e salva. Para descrever esse fato, a Confe­
rência de Willingen* adotou o conceito de missio Dei.
A missão não c somente obediência a uma palavra do Senhor, não é apenas o
compromisso dc congregar a comunidade; ela é participação na missão do Fi­
lho, na missio Dei, com o abrangente objetivo do estabelecimento do senhorio de
Cristo sobre toda a criação redimida.'4

2 Cf. a rica bibliografia indicada cm Walter HOLSTEN, Das Kerygma und der Mensch, 1953, pp.
24ss., 32ss.
3 W. ANDERSEN, A uf dem Weg zu einer Theologie der Mission, 1957, pp. 30ss.
* N. do E.: Conferência organizada nesta cidade da Alemanha, em 1952, pelo Conselho Missioná­
rio Internacional, cuja tarefa consistiu em reformular o mandato missionário c revisar as políticas
de missão tradicionais. Valeu-se para tanto do conceito central de missio Dei. A declaração final
afirma que o movimento missionário tem sua origem na própria ação do Deus Triúno. A Igreja
cristã e cada pessoa cristã são co-participantes dessa ação que visa a salvação do mundo. Elas são
enviadas ao mundo para discernir os sinais dos tempos e proclamar o reinado oculto do Senhor.
4 K. HARTENSTEIN, in: W. FREYTAG, Mission zwischen G estern u n d Morgen, 1952, p. 54.

15
O m o v im en to m issio n ário d o q u a l so m o s p a rte te m su a fo n te n o p r ó p r io D eus
tr iú n o .J

1. O conceito

Missio Dei significa, antes de mais nada, que a missão é obra de Deus. Ele é
o senhor, o doador da tarefa, o proprietário, o executante. Ele é o sujeito ativo
da missão. Se atribuímos a missão desse modo a Deus, ela está isenta de todo
arbítrio humano. Portanto, temos que mostrar que Deus quer a missão e como
ele próprio a executa. Com isso já estão estabelecidos todos os parâmetros ne­
cessários. A missão, e com ela a Igreja, são obra do próprio Deus. Portanto, não é
possível falar da “missão da Igreja”, muito menos podemos falar de “nossa mis­
são”. Visto que tanto a Igreja quanto a missão têm sua origem na vontade amoro­
sa de Deus, podemos falar de Igreja e missão somente na medida em que elas
não são entendidas como grandezas autônomas. Ambas são tão-somente instru­
mentos de Deus, através dos quais Deus promove sua missão. Somente se a Igre­
ja cumpre, em obediência, a intenção missionária dele, ela pode também falar
de sua missão, porque esta então está acolhida na missio Dei.
Com isso nosso tema se reveste de grande seriedade. Se é verdade que
Deus quer a missão, porque ele próprio faz missão - o que deve ser demonstra­
do -, então a Igreja nada mais pode ser do que vaso e instrumento de Deus, se
ela se deixar usar por ele. Se ela resiste à intenção de Deus, ela se torna desobe­
diente e já não pode mais ser Igreja no sentido divino: “Não há participação
em Cristo sem participação em sua missão ao mundo.”56 Portanto, não cabe à
Igreja decidir se ela quer fazer missão, mas ela só pode decidir se quer ser
Igreja. Ela não pode determinar quando e onde será feito missão; pois missão
sempre é iniciativa de Deus, como fica evidente sobretudo no livro dos Atos
dos Apóstolos. Missão como causa de Deus significa que ele reivindica o direi­
to de dispor sobre todos os seus crentes da mesma forma como é seu desejo
compartilhar com todos os seres humanos seu amor através de seus crentes.
Deus torna clara essa pretensão executanto primeiramente a missão por si mes­
mo. A Igreja somente pode repetir o que Deus fez e faz, e pode apontar para o
que ele fará. Com isso a missão está fundamentada na ação do próprio Deus.

2. A missão através de Deus

No entanto, para fazer jus à concepção bíblica, o conceito de missio Dei


deve ser entendido, simultaneamente, como genitivo atributivo, por meio do

5 Norman GOODAL, Missions under the Cross, 1953, p. 189.


6 ID., ibid., p. 190.

16
qual Deus não se torna apenas o enviador, mas também o enviado. Por isso a
dogmática católica fala, desde Agostinho, de envios ou da missio intratrinitária.
“Sob ‘envio’ se entende a comunicação de uma das pessoas divinas através de
outra às criaturas, o que ocorre em virtude da ordem original intradivina.”78
Todo envio de uma das pessoas tem por conseqüência a presença da outra. A
teologia evangélica não trata desses envios como artigo dogmático próprio,
porque existiria o perigo de a unidade essencial de Deus tornar-se inconcebí­
vel. Ela tenta, antes, compreender os processos imanentes à Trindade na
relacionalidade de Deus com os seres humanos. Na piedade evangélica, po­
rém, a compreensão para o envio divino, essencial à Trindade, permaneceu
vivo em alguns corais: “Ao Filho disse o Pai no céu: ‘O tempo está chegado...’”
{Hinos do Povo de Deus, 155,5.) Ou: “Vai, Filho, te compadecer...” (Ibid., 43,2.)
Essas e outras estrofes descrevem esse enviar intratrinitário e nos lembram
novamente o verdadeiro motivo da missio.
Neste ponto nos encontramos diante de um derradeiro mistério de Deus,
que só pode ser percebido a partir do agir de Deus com os seres humanos. O
derradeiro mistério da missão, do qual ela emana e do qual vive, é: Deus envia
seu Filho, Pai e Filho enviam o Espírito. Com isso ele não apenas se torna o
enviado, mas, simultaneamente, o conteúdo do envio, sem que com essa trin­
dade da revelação fosse anulada a consubstancialidade das pessoas divinas.
Pois em cada uma das pessoas da divindade Deus age por inteiro. Esse proces­
so do envio intradivino é de eminente importância para a missão e o serviço
da Igreja. Sua missão está prefigurada na missão divina, seu serviço está
preestabelecido pelo serviço divino, o sentido e conteúdo do trabalho estão
determinados a partir da missio Dei.
Por sua missio Deus se revela, ao mesmo tempo, como Senhor soberano.
Ele não se deixa prescrever, nem por parte das religiões nem da incredulidade,
o que pode e o que não pode. Faz parte da divindade de Deus o fato de não
estar sujeito a nenhuma restrição humana. Desse modo ele dispõe de si de uma
forma não mais acessível a nenhum conceito humano. O agir de Deus encon­
tra-se extra nos*. Assim justamente a missio Dei, como está estabelecida na dou­
trina da Trindade, se torna a expressão do singular governo de Deus, fato,
aliás, que Maomé, p. ex., não entendeu ao tentar, através da negação da divin­
dade de Cristo e do Espírito Santo, restabelecer a Deus em sua unidade e
transcendência. Com isso, na verdade, degradou a Deus e o privou da plenitu­
de de revelação e essência.

7 M. SCHMAUS, Katholische Dogmatik, 1948, vol. I, p. 377.

8 W. HOLSTEN, op. cit., p. 44.

17
3. Agir salvifico de Deus e envio

Visto que a Sagrada Escritura não tem interesse especulativo, ela revela a
Deus sempre somente na medida em que isso é importante para seu agir com
os seres humanos. Nela Deus faz asserções a respeito de si mesmo somente na
medida em que são necessárias para a salvação dos seres humanos. Por isso
toda revelação de Deus em sua missio acontece na intenção de salvar a humani­
dade. Ao revelar-se através de seu agir, faz, ao mesmo tempo, enunciados a
respeito do ser humano, coloca-o sob seu juízo e, desse modo, capacita seus
mensageiros a levarem ambas as coisas às pessoas: o conteúdo do envio e, com
isso, a salvação dos seres humanos. Portanto, a missão outra coisa não pode ser
do que a continuação do agir salvífico de Deus através da transmissão dos atos
salvíficos. Esta é sua maior autoridade e sua maior incumbência.
Na Escritura esse agir de Deus, conforme estabelecido pela missio Dei, sua
relação com o mundo e seu agir com as pessoas são descritos com o conceito
“envio”. Ele é, com efeito, a essência da atividade criadora e do agir de Deus, de
maneira que toda a história salvífica se apresenta como história da missio Der*.
Por isso não forçamos a Escritura, se tentarmos definir a tarefa da Igreja a partir
desse conceito. Ao mesmo tempo permanecemos dentro dos moldes da teologia
autêntica, que jamais pode ser um sistema de pensamentos a respeito de Deus,
mas que tem por tarefa descrever o agir de Deus na História910.
Se por ora não nos referimos à especial missio Dei cm Jesus Cristo e no
dom do Espírito Santo e deixamos de lado o envio dos profetas e apóstolos,
ainda nos restam muitas passagens que descrevem a missio Dei. Deus envia inclu­
sive realidades totalmente impessoais e expressa com isso que também atua dire­
tamente sobre o mundo. Envia, p. ex., a espada após seu povo (Jr 9.16). Envia
cereal e vinho, e também azeite (J1 2.19), e dessa maneira revela-se como Deus
do amor através de seu agir; por isso envia especialmente ao povo de sua propri­
edade bondade e fidelidade (SI 57.S), bondade e sabedoria (SI 43.3), sua palavra
(SI 107.20) e fome da Palavra (Am 8.11), sua redenção (SI 111.9). Através de seu
envio, portanto, Deus sustenta o mundo e conduz os seres humanos. Ele se
revela um Deus que não dispensou sua criação de seus cuidados.
Nesse enviar Deus sempre está presente. Por isso envio é expressão de
sua presença atuante em juízo e graça. Com isso a missio se torna uma afirma­
ção de sua divindade. Deus não seria o Deus dos seres humanos, se não agisse
com vistas ao mundo e para dentro da realidade mais próxima das pessoas.
Teria o mesmo destino que levaram todos os deuses-criadores dos seres huma­
nos, que, na melhor das hipóteses, ainda estão presentes na lembrança das
pessoas, mas já não são mais realidade. Deus, porém, sempre se revelou como
um Deus que a ninguém e a nada dispensou de seu governo. Através de seu

9 K. II. RENGSTORFF, quanto ao uso dos conceitos apostolas eapostellein, in: Theologisches Wörterbuch
zum bleuen Testament, vol. I.
10 O. CULLMANN, Christus und die Zeit, 1946, p. 19.

18
enviar ele se confronta com todos os seres humanos em sua divindade. Todas
as pessoas estão confrontadas efetivamente com ele, que sustenta a criação por
meio de seu agir. Seu enviar se torna uma revelação específica onde ela se
torna uma palavra ao povo (SI 19.1-6; 7-10), e em Jesus Cristo, no qual dá aos
seres humanos o Redentor. Aqui serve de fundamentação da missio em geral o
mesmo fato objetivo do qual Holsten deriva sua fundamentação da missiologia:
“Essa base é, em breves palavras, o querigma neotestamentário, a mensagem
do agir decisivo de Deus em Cristo e que, por sua vez, chama à decisão.”11
Portanto, a missio de Deus sempre é, ao mesmo tempo, um chamado à
decisão; seu agir, aconteça ele de maneira pessoal ou impessoal, sempre é um
mensageiro que transmite o chamado; sua intervenção sempre é uma incum­
bência que exige resposta. Ninguém pode subtrair-se a esse chamado ou sim­
plesmente ignorá-lo. O agir de Deus sempre compromete o ser humano (At
14.17; Rm 1.8). Portanto, quem se nega a pôr-se à disposição da missio Dei tenta
restringir o senhorio de Deus em seu serviço com vistas ao mundo e à salvação
da humanidade. Direito, autoridade, mandato e obrigação para a missão sem­
pre emanam do agir do próprio Deus triúno. “Enquanto um culto é divulgado
somente entre compatriotas, mesmo que seja fora da pátria, Deus somente é o
Senhor para esta uma tribo ou cidade. Se, porém, se faz missão de fato, então
se alcançou a idéia da kyrioles (senhorio) absoluta.”12Essa missio Dei, que abran­
ge todo o agir de Deus, pode, por isso, ser descrita também com o senhorio de
Deus.

11 W. HOLSTEN, op. cit., p. 42.


12 W. FOERSTER, Herr istJesus, 1924, p. 78.

19
Capítulo 2:

O senhorio de Deus

1. O motivo da missão

A fundamentação da missão sob o ponto de vista do senhorio de Deus é


antiga. Já Zinzendorf argumentava a partir desse princípio. Daí a linha passa
pelo pietismo até G. Warneck. Para este o senhorio de Deus era apenas uma
idéia a partir da qual também se podia fundamentar a missão. Sua intenção era
libertar a missão do afunilamento pietista, que interpretava a idéia do reino de
Deus de modo individualista, propondo-se assim a conquistar somente os que
haviam sido chamados para o reino. A idéia do reino de Deus encontrou
receptividade especialmente na teologia americana, e as missões americanas
procuravam concretizá-la no serviço social. Diante desse fato a missiologia
alemã se tornou muito cautelosa. Sentiam-se escrúpulos de fundamentar a mis­
são a partir da idéia do reino de Deus que havia sido usurpada de modo tão
unilateral. Isso foi um erro. W. Lütgert foi o único que tentou mostrar como o
reino de Deus se realiza também na História Mundial, dando-lhe conteúdo e
sentido, e que reino de Deus e atividade estão relacionados tão intimamente
que a pessoa que pertence ao reino de Deus também se deixa engajar no
serviço social13. Se nos tivéssemos ocupado seriamente com a idéia do reino de
Deus, teríamos obtido, como nos mostram os holandeses, o necessário aspecto
escatológico. Hoje, quando todas as motivações para a missão se revelam insus­
tentáveis14, a missão alemã, estimulada por essa fundamentação, volta à idéia
do reino de Deus15.
O motivo da missão sempre se ocupa com a pergunta: por que temos que
fazer missão? Antigamente a resposta mais simples era: Deus quer salvar a todos
os seres humanos. Essa resposta tem sua validade ainda hoje. No entanto, hoje
também as outras religiões se oferecem para salvar as pessoas e resolver seus
problemas existenciais e contestam a pretensão da mensagem cristã. Desse modo
surgem no mínimo mais perguntas: por que quer Deus salvar os seres humanos?
Sua pretensão se justifica? Que resposta temos que dar às outras religiões? Qual

13 W. LÜTGERT, Reich Gottes und Weltgeschichte, 1928; Das Reich Gottes und die Mission, Neue
allgemeine Missionszeitschrift, 1927, pp. 97ss.
14 As discussões sobre os motivos da missão encontram-se em W. FREYTAG, Vorn Sinn der
Wcltinission, Evangelische Missionszeitschrift, 1959, pp. Iss.
15 Cf. S. KNAK, op. cit., pp. 157s.

20
o objetivo da redenção e da missão? - Por isso não se pode fundamentar a
missão como o faz Holsten na fundamentação da missiologia. Ele parte tão-
somente do motivo. Este, porém, só se torna efetivo se, simultaneamente, tam­
bém tivermos sempre em vista o alvo16. Hoje se tenta encontrar a resposta funda-
mentando-se a missão a partir do senhorio régio de Deus. Seria possível concili­
ar essa resposta com a idéia básica da missio Dei?
Creio que podemos compreender o agir de Deus com os seres humanos
objetivamente tanto sob a idéia do senhorio de Deus quanto sob a idéia da
missio Dei. Os dois conceitos, certamente, não descrevem o mesmo processo,
mas têm muitos pontos em comum. Vendo a missio Dei fundamentada no fato
de que Deus é Deus, então também o senhorio de Deus tem nela sua origem
última. O alvo da missio Dei é incorporar os seres humanos na basileia tou theou,
no senhorio de Deus, e transmitir-lhes seus dons. Com isso a justificação, que
para Holsten constitui o ponto de partida para todo pensamento missioná­
rio17, não é depreciada, e, sim, está envolvida pelo agir global de Deus com as
pessoas, que é maior do que a mera declaração de que o ser humano é justo e
a recepção em sua comunhão, porque com o Reino é dado tudo que ele tam­
bém faz alhures em favor do pecador justificado.
Pois a justificação consiste cm nada menos do que na recepção no reino de
Deus, c a doutrina da justificação destina-se a responder nenhuma outra per­
gunta a não ser como entramos no reino de Deus... Quem está justificado está
aceito no serviço de Deus.18
Portanto, o reino de Deus poderia ser descrito como alvo da missio Dei. Outra
relação existe no parceiro tanto da missio Dei quanto da basileia, a saber, o
mundo do gênero humano. A partir dele é motivado o agir de Deus em seu
amor e a ele está voltado. Por isso queremos, num primeiro passo, descrever
esse vis-à-vis, para que se nos tornem claros o alvo do envio e o dom da basileia.

2. O parceiro de Deus

Ao contrário do que acontece em outras religiões, o parceiro de Deus


existe pelo fato de Deus haver criado o mundo e as pessoas. O mundo não é
uma emanação da divindade e, portanto, uma parte dela. Ele também não
surgiu através de um nascimento. Sobretudo, porém, o mundo não surgiu ao
lado de Deus ou em oposição a ele, de modo que representasse uma força
oposta. Portanto, a relação não é nem dualista nem emanacionista. Ambas

16 W. HOLSTEN, op. cit. Cf. tainbém W. ANDERSEN, Die kerygmatischc Begründung der Religions­
und Missionswissenschaft, Evangelische Missionszeitschrift, 1954, pp. 29ss.; Hendrik KRAEMER,
Religion and the Christian Faith, London, 1956, pp. 196ss.
17 W. HOLSTEN, op. cit., pp. 52ss.; 61.
18 W. LÜTGERT, Das Reich Gottes und die Mission, p. 97.

21
essas formas de explicação, conhecidas das outras religiões, estão completa­
mente fora de cogitação. O mundo com os seres humanos é criação de Deus,
que veio a existir através de sua palavra todo-poderosa, de acordo com sua
vontade. Portanto, ele próprio criou para si um parceiro, um tu, e com isso um
campo de atuação. Este já era o caso antes da queda, pois a palavra acerca da
imagem de Deus só pode significar que Deus criou para si um ser que pudesse
ler comunhão com ele e que encontrava nela o cumprimento de sua vida. Nessa comu­
nhão não havia necessidade de um envio especial nem da acentuação do se­
nhorio de Deus. Este existia simplesmente. A comunhão que Deus concedia
aos seres humanos era a basileia de Deus. Com isso o ser humano se encontra­
va sob o governo de Deus. Essa parceria de Deus na comunhão é restabelecida
pela redenção, sem que com isso o ser humano fosse absorvido na divindade,
como o imaginam outras religiões. Redenção não é retorno à divindade, mas
à atitude correta em relação a Deus.
O ser humano caiu fora dessa parceria na qual se encontrava pela cria­
ção. A queda somente foi possível porque o ser humano era uma criatura de
Deus. Se tivesse sido uma emanação de Deus, não poderia ter ofendido a Deus
ou perder seu caráter divino. Por isso, sem dúvida, encontramos delitos do ser
humano nas outras religiões, mas não pecados que tornassem a pessoa culpada
perante Deus. Nelas, se entende pecado sempre como atitude errada em rela­
ção ao divino, através da qual o ser humano se prejudica a si mesmo. Pecado
como delito contra Deus é reconhecido somente quando a pessoa conhece a
Deus como Criador e Senhor através da revelação. Então também necessita de
um redentor.
Por meio da queda foi perturbada a relação entre Deus e o ser humano, a
inter-relação se tornou uma relação hostil por culpa do ser humano. Com isso
o ser humano saiu da comunhão com Deus. Ele fugiu de Deus e passou a
desenvolver-se ao lado dele - é o que pensa - para chegar a ser uma grandeza
autônoma que teria a liberdade de aceitar a Deus ou de não o aceitar. Todo seu
esforço vai no sentido de impor-se ao lado de Deus ou contra Deus. Nessa
tentativa chega ao cúmulo de crer estar fazendo um favor a Deus se retornasse
a ele, de maneira que agora Deus se tornaria dependente da mercê do ser
humano. Portanto, o ser humano pecador questiona o senhorio de Deus.
Por meio de sua natureza determinada pela queda, porém, o ser humano
também envolve toda a criação restante na inimizade com Deus. Visto, porém,
que possui na relacionalidade com Deus sua verdadeira razão de ser, sem o
que não pode existir, tenta encontrar para si um substituto, procurando numa
outra religião uma relação com a divindade que lhe seja conveniente. As religi­
ões, por mais profundas que sejam as idéias que defendem, são uma prova
evidente desse desenvolvimento. Elas revelam a todo instante que também o
ser humano após a queda não pode negar sua destinação para a comunhão com
Deus. Portanto, surgiu no âmbito da criação uma área que quer subtrair-se
constantemente ao senhorio de Deus e que o combate. Superar essa área que
lhe é hostil, recolocar o ser humano na correta posição de parceria, restabele­
cer a comunhão da pessoa com Deus e libertá-la do pecado - este é o objetivo
e o conteúdo da missio Dei e do senhorio de Deus.

22
Ao mesmo tempo, também depois da queda, Deus considera seu parcei­
ro uma criatura. Por isso não destruiu simplesmente o ser humano pecador,
como teria merecido seu desejo rebelde de ser ele mesmo o senhor. Antes,
permaneceu fiel a si mesmo em sua relação com suas criaturas, e desde a
queda procura reconquistar os seres humanos, com longanimidade e paciên­
cia, através de juízo e misericórdia, e proporcionar-lhes a participação na basileia.
Se não for por outra razão, deveríamos, a partir dessa atitude de Deus, guar­
dar-nos de descrever o senhorio de Deus em analogia ao domínio humano.

3. O outro reino

Com essa exposição, porém, ainda não descrevemos em sua enormidade e


profundidade o abismo criado entre Deus e as pessoas por causa da queda. Por
isso mesmo ainda não pudemos desdobrar a extensão do agir salvífico de Deus.
A teologia evangélica hesita bastante em colocar ao lado da esfera do senhorio
de Deus o outro, que lhe é oposto. Não obstante, é preciso saber que não se
pode falar da basileia de Deus sem falar de seu contrário, da dominação à qual o
ser humano está subordinado. O embate entre as duas esferas de domínio per­
faz propriamente o tema da Sagrada Escritura. Não devemos atribuir esse fato à
limitação dos autores bíblicos e ao condicionamento deles à época. Também a
outra esfera de domínio é um fato e nos está preestabelecido da mesma forma
como Deus em sua criação. Em todo caso, a Bíblia tem a mais imponente visão
e a mais profunda compreensão de História que se pode conceber.
Não é nosso propósito desdobrar aqui uma satanologia, nem explicar a
origem do mal. Falamos tão-somente do fato. Sem dúvida, encontramo-nos di­
ante de um mistério. A Bíblia fala do diabo sem dar explicações sobre sua proce­
dência. Fala dele como de uma realidade: ele é inimigo de Deus e dos seres
humanos. Por isso é preciso vencer o reino dos diabos (Mt 4.3; cf. Lc 4.5). Ele
está subordinado ao príncipe do mundo (Jo 12.31; 14.30; 16.11). Seu reino é um
todo coeso (Mt 12.26; cf. Lc 11.18), porque concentra em si todas as forças
opostas a Deus. E ele que seduz as pessoas e as leva à desobediência, procuran­
do, portanto, subtraí-las à esfera divina (Ef 6.11; 1 Pe 5.8). Ele c o inimigo do
reino de Deus e logo também de sua missão, a qual combate constantemente (Mt
13.39; Lc 8.12). Assim como Deus, através de seu Espírito, concede aos seus
força para uma vida que lhe agrada, assim o diabo transmite aos seus a força
para o mal (Jo 8.44; Ap 13.2s.). É ele, portanto, que, em última análise, seduz as
pessoas ao pecado, transformando-as constantemente em rebeldes contra Deus.
Ele realmente exerce domínio como o entendem os seres humanos em virtude
do pecado. Com seu reino ele é o adversário de Deus. Por isso Jesus entendeu
que o objetivo do senhorio de Deus e o sentido de seu envio era o de destruir as
obras do diabo e julgar o príncipe do mundo (1 Jo 3.8; Jo 16.11).
Isso tem que estar claro, inclusive sob o risco de sermos tachados de
fundamentalistas. Quem não conta com essas realidades é incapaz de executar
a tarefa de Deus. Também não poderá compreender a derradeira dependên­

23
cia do ser humano, nem tomar a sério o pecado em sua força real. Jamais
conseguirá desvencilhar-se do sonho de que o reino de Deus seja um reino a
ser realizado no mundo, que poderia ser configurado com recursos humanos.
Em última análise, as outras religiões devem ser entendidas a partir das liga­
ções com esse outro reino. Sem dúvida, elas contêm muitas coisas boas, mas
estas estão inseridas no mal e por ele ocultas. Nelas atuam os satânicos pode­
res antidivinos. Somente reconhecendo isso, chega-se ao verdadeiro juízo mi­
sericordioso sobre a pessoa gentia, que é escrava desses poderes.
O reino do mundo ou o reino do diabo como oposto do reino de Deus e
da missio Dei é mais perigoso ainda porque jamais se manifesta com sua verda­
deira face. Sempre tenta disfarçar-se sob a máscara do bem, do que con%'ém ao
ser humano, com objetivos muitas vezes ideais. Por isso o limite entre ele e o
reino de Deus pode ser traçado com nitidez e de modo visível somente em
casos raros. Nele os bons propósitos dos seres humanos se manifestam para o
mal e a ruína. Por isso K. Heim afirma, na controvérsia sobre o livro de H.
Kraemer intitulado Die christliche Bolschaft in einer nichtchristlichen Welt:
Nada do que Deus criou está a salvo dessa dcmonização. Tudo pode ser atingido
por ela. Por isso existe uma auto-adoração demoníaca do eu, que é imagem de
Deus, uma sexualidade demoníaca, que o ser humano não domina mais, o
demonismo da técnica, o demonismo do poder, a depravação demoníaca do
nacionalismo. Existe o demonismo da piedade, inclusive a oração pode degene­
rar em convulsão demoníaca. Até mesmo o dom do Espírito Santo pode ser
demonizado, como o presenciamos no movimento pentecostal. O aspecto satâ­
nico cm questão reside no seguinte: o poder demoníaco vive apenas de Deus e
do que ele criou. Ele nada tem que não viesse de Deus. Sempre é um reflexo da
glória de Deus o que é demonizado e usado contra Deus. 19
Em seu recente livro sobre as religiões, Kraemer avançou repetidas vezes
até essa profundeza da compreensão das religiões. Ele chama a atenção para o
fato de que nem o ser humano em sua profunda miséria, nem as religiões
podem ser entendidas sem o poder do mal, do diabo, que transforma todo o
mal em luz e perverte todo o bem.
O mundo da religião e das religiões (da cultura como um todo) pertence à esfe­
ra do “velho homem”, do homem não-redimido, ainda não recriado à imagem
de Deus, a cuja semelhança íbi criado originalmente, e por isso se encontra, com
seus maravilhosos feitos e desvios satânicos, sob o o juízo de Deus, aguardando
de modo obscuro ou inconsciente sua redenção .20
No entanto, não nos cabe desenvolver aqui a compreensão bíblica das
religiões; isso seria um estudo em separado. Aqui basta esboçar o outro reino
que expressa com maior nitidez a realidade da perdição dos seres humanos.
Somente está livre do reino deste mundo quem se deixa salvar dele para o
reino de Deus pelo envio de Jesus Cristo. Esse é o único caminho. Nem o
nascimento o leva para o reino de Deus (Caim e Abel), nem o fato de perten­

19 K. HEIM, Die Struktur des Heidentums, Evangelisches Missionsmagazin, 1939, p. 17.


20 Hendrik KRAEMER, op. cit., p. 257; cf. também pp. 321, 337, 378ss.

24
cer ao povo (Rm 2), nem a ocupação (Mt 24.40), nem a mais íntima comunhão
das pessoas entre si (Lc 17.34), c podemos acrescentar, também não o fato de
pertencerem à mesma Igreja. Somente a fé traça o limite, somente o fato de se
pertencer ao reino de Deus. É a ele que as pessoas devem ser chamadas pela
missio Dei.

4. O reino de Deus

O reino do mundo ou do diabo é a expressão mais abrangente para a


perdição dos seres humanos, que não podem mais escapar dele por forças
próprias nem voltar à comunhão com Deus. Por isso Deus decidiu ajudar a
essas pessoas, arrebatá-las do reino das trevas e transportá-las a seu reino por
meio de sua missio. Dessa maneira o reino de Deus não se torna apenas o
oposto do reino dos diabos, mas, simultaneamente, o ponto de concentração
dos que foram libertados de seu poder. Infêlizmente o pietismo estreitou o
conceito de reino de Deus a tal ponto que o reino de Deus e o senhorio de
Deus consistiam apenas na soma dos convertidos21. Para Warneck, porém, o
reino de Deus é a manifestação antimundo que, conforme a vontade de Deus,
deve abranger todos os seres humanos, o que, todavia, não significa que todos
se deixem chamar para dentro dele22.
Com esta última definição, porém, ainda não está dito tudo, pois não é
somente o mundo do gênero humano que está sujeito ao domínio de Deus. Ele
também não se restringe àqueles que retornam à comunhão com Deus. Pois
Deus não dispensou absolutamente nada de sua criação de sua esfera de domí­
nio. Não existe um mundo que pudesse subsistir ao lado dele. Inclusive o reino
dos diabos tem que servir, em última análise, a seus objetivos. Deus é rei (SI
93.1; 99.1) e reina no mundo inteiro e sobre o mundo inteiro (SI 103.19). Ele
tem o poder, a glória da dignidade real, a eterna constância para isso (Mt 6.13).
Todavia, tanto por sua natureza quanto por sua forma de expressão, seu reino
é um reino oposto ao reino do mundo. Por isso, em contraste ao reino do
mundo, ele pode ser descrito simplesmente como reino dos céus. Portanto, ele
acontece de uma forma contrária ao reino do mundo. Isso se evidenciará so­
bretudo quando tratarmos do conteúdo de seu reino e de seus dons. Ele reina
em justiça, e o direito procede dele (SI 45.6; 49.3). Em seu reino não há mais
separação entre as pessoas, não existem diferenças raciais, os contrastes sociais
estão superados (Mt 8.11; Lc 13.29). Por isso esse reino contém tudo o que a
comunhão com Deus oferece e pelo que as pessoas anseiam desde a queda.
Esse reino, que Deus cria para si agindo com as pessoas, significa, simultanea­
mente, a redenção delas. Por isso sua proclamação pela missio é evangelho, e

21 W. FREYTAG, op. cit., p. 2.


22 Gustav WARNECK, Evangelische Missionslehre, 1897, vol. I I I /1, p. 170.

25
justamente como tal o reino de Deus é, ao mesmo tempo, um chamado, um
apelo às pessoas. Por meio de sua proclamação, elas são chamadas a Deus e
assim à decisão, à conversão (Mt 6.33; Rm 14.17). O reino é o alvo de Deus
com os seres humanos.

5. Jesus, o conteúdo do Reino

Esse reino de Deus não pode se restringir a formas terrenas, mas sempre
tem, enquanto o reino do mundo existir, caráter escatológico. Visto que a comu­
nidade de Deus tem que viver sempre no mundo, ela pode pertencer ao reino de
Deus somente na medida em que, em oposição ao mundo, se deixar determinar
por ele em sua atitude de vida pela fé. Ela vive sempre no anseio e na esperança
de ver o reino de Deus realizado. Primeiramente Deus satisfez esse anseio, dan­
do a sua comunidade as promessas messiânicas e ensinando-a a esperar pelo
Redentor. O reino realizou-se pela aparição do Messias, todavia, de acordo com
sua oposição ao reino do mundo, de modo diferente do que os seres humanos o
haviam imaginado. Continua sendo tropeço para as pessoas e tentação para sua
comunidade o fato de o Messias não ter estabelecido na terra um reino terreno
com as características do reino de Deus, mas ter apenas revelado aos seres huma­
nos o modo de ser do reino. Somente se tivermos isso em mente seremos preser­
vados de muitos caminhos errados na Igreja e na missão.
O reino de Deus não pode ser realizado em formas humanas. Deus, po­
rém, o realiza para os seres humanos, permitindo que seu Filho se torne ser
humano, enviando o Messias, tornando-o portador do reino de Deus, porque
o Messias se encontra e vive na comunhão com Deus e, conseqüentemente, na
basileia. Ele é o enviado em nome do Senhor (Mt 21.8), ao qual competem
todas as honras reais pela glorificação nas maiores alturas (Lc 18.38). Ele é o
rei, que cuida dos seus regiamente e lhes retribui centuplicado o que tiverem
sacrificado por ele (Lc 18.29). Não existe poder que não lhe estivesse submisso
e que ele não destruirá ao estabelecer seu reino (Mt 28.18). Por isso o senhorio
de Deus e Jesus Cristo são a mesma coisa. Portanto, quem proclamar o nome
de Jesus também proclama o senhorio de Deus (At 8.12; 28.31). Jesus é a res­
posta de Deus às perguntas das pessoas e por isso, o conteúdo da mensagem
do reino (2 Tm 4.1). Tudo isso se encontra resumido na Epístola aos Colossenses,
onde se afirma de Cristo tudo que no Antigo Testamento é atribuído' a Deus23.
Todavia, é preciso lembrar que o reino de Deus é mais abrangente do que as
obras salvíficas dejesus; ele abrange todo o agir do Deus triúno com o mundo.
O reino consiste sobretudo no agir do Pai, e por conseguinte tem por conteú­
do aquilo que se poderia chamar de divindade. A Epístola aos Colossenses
mostra isso.

23 Com referenda a todo o asunto: K. L. SCHMIDT, art. basiUia, in: Theologisches Wörterbuch zum
Neuen Testament, vol. I.

26
6. A alteridade do reino de Deus

Justamente em Jesus Cristo se revela que o senhorio de Deus é algo


totalmente diferente do que o senhorio de seu oposto, do reino do mundo.
Ele não traz aos seres humanos um reino de felicidade exterior. Sequer cum­
pre seus desejos, que eles acreditam terem o direito de expressar como seres
humanos. Nem mesmo lhes deixa a ilusão de que junto a ele tudo sairá bem.
Diz-lhes com clareza que terão que sofrer por sua causa. Ele não ajuda a
ninguém a realizar seus objetivos terrenos, mas é o ajudador onde tudo está
encerrado na vontade do Pai. Também não tira sua comunidade da condição
de estrangeiros neste mundo, concedendo-lhes um Estado próprio e unindo-
os nacionalmente. Afinal, ele não governa como um rei terreno. Seu reino é
divino, e por isso subtraído da esfera de influência humana e demoníaca.
Não obstante, atua neste mundo. Ele é contrário às tendências dos seres
humanos (Mt 11.29). Jesus se revela como rei pelo fato de trazer às pessoas a
redenção por meio de sua morte. “A cruz, a redenção real, acontecida, não é
apenas a solução da questão da culpa, mas também da questão do poder, e
isso não somente então e lá, mas aqui e agora.”24 Seu reino deve ser entendi­
do em termos soteriológicos e tem por isso regras bem diferentes do que os
reinos do mundo. Por essa razão ninguém pode entrar nesse reino, se não
abandonar todas as idéias acerca dos reinos do mundo. Por isso a participa­
ção no reino de Jesus sempre está associada com a metanoia, com a conver­
são. Quem não observar isso sempre colocará alvos errados para a Igreja e a
missão e acabará no reino do mundo inclusive pelo trabalho mais piedoso.
Com isso o reino de Deus está fora do alcance humano e se encontra fora
de toda ética e legitimidade natural. Também está fora de qualquer ideal huma­
no. Por um lado, ele é estabelecido somente por Deus. Isso acontece por meio da
pregação e dos sacramentos. Ela é o meio adequado de difusão do reino. Eles
são o meio adequado de comunicação do reino. Deus vincula sua missio a esses
dois meios, quando envia sua comunidade e a torna sua mediadora. Mas tam­
bém são descartados todos os recursos humanos com os quais gostamos de atrair
as pessoas, tentando tornar-lhes o reino de Deus atraente; pois também elas
estão sujeitas à metanoia, à conversão. Por outro lado, o reino também se encon­
tra fora de todo legalismo humano, no qual a pessoa crê poder ser alguma coisa
e conquistar sua mercê. No reino de Deus valem somente as regras que ele
determinou para isso e que deu aos seus por meio de Jesus Cristo. A escala de
valores enfatizada no reino do mundo e em grande parte também na Igreja não
tem nenhum valor normativo. Quem não se tornar humilde como uma criança,
que obedece totalmente ao Pai, não entrará nesse reino (Mt 18.4). No reino de
Deus terá uma posição somente aquele que receber sua autoridade desse reino.
O reino de Deus também está a salvo de toda tentativa humana de moldá-lo pelo
fato de seu governo, em contraposição ao governo do mundo, se desenrolar na
abscondidade. O que para este seria uma derrota, para o senhorio de Deus é
onipotência e vitória. Ele acontece sob a máscara, como diz Lutero.

24 K. 11ARTENSTEIN, op. cit., p. 60.

27
Não por último, o reino de Deus é diferente por causa de seu caráter
escatológico. Associa-se a ele um alvo distante que anima a presença do reino
em Jesus Cristo com a grande esperança da realização do reino pela volta de
Cristo. Não se pode falar do reino sem efifatizar essa realização. O reino é
vindouro em sentido duplo: a) Por ocasião de sua volta, Cristo estabelecerá o
reino de Deus de tal maneira que Deus será tudo em tudo. Isso quer dizer que
não apenas derrotará o reino do mundo e do diabo com todas as suas varia­
ções de poderes, mas o destruirá, de modo que o conflito na criação de Deus
acarretado pelo pecado estará resolvido para sempre. Nele só haverá uma nova
criação, b) Até sua volta, Cristo fará proclamar seu reino (Mt 24.14), por meio
de sua missio congregará os cidadãos do reino, chamará as pessoas à decisão e
estará presente em sua comunidade com os dons do Espírito, até que ele ve­
nha. Portanto, com seu reino e, conseqüentemente, com sua missão, Deus tem
em vista um alvo bem definido na História que ele, por sua vez, levará à consu­
mação por meio da missão. Desse modo a missão se torna uma decisiva força
formadora da História no senhorio de Deus.

7. O reino de Deus como dádiva

A alteridade do reino de Deus também vale para o tipo de sua relação


com os seres humanos. Nessa relação, o reino não é sentido como domínio,
coerção ou usurpação, mas como dádiva que somente o Senhor do reino trans­
mite. Esse é mais um fator que o põe fora do alcance do capricho humano.
Quem dispõe dessa dádiva será sempre o doador. O ser humano não pode
apropriar-se dela. Com isso Deus subtrai constantemente seu reino à ambição
de poder do pecado. “O reino vos será tirado e dado a um povo que produz
seus frutos” (Mt 21.43). Deus elege, mas volta atrás em caso de abuso de sua
dádiva. Ele presenteia, mas exige a devolução da dádiva, caso ela se voltar
contra ele, para dá-la àqueles que a empregarão em benefício do reino. Em seu
amor, ele sempre dá seu reino àqueles que se deixam inserir nele (Lc 12.32).
São esses os que ele chama para seu senhorio e glória (1 Ts 2.12). O reino é
essencialmente dádiva. Como o Pai o deu, também o Filho o dá (Lc 22.29), a
fim de livrar as pessoas do reino das trevas e transportá-las para seu reino (Cl
1.13). Dessa maneira também o serviço nesse reino se torna um presente, um
privilégio do qual o doador tem o direito de dispor.
A dádiva e o presente são de natureza tal que não podem ser impostos a
ninguém. Também neste ponto fica preservada a contraposição de Deus e ser
humano. Este tem plena liberdade de decisão para aceitar a dádiva ou rejeitá-
la. Mas também não pode roubar esse reino, apropriar-se dele, dispor dele,
como tentam fazer os muitos cristãos secretos nos países gentílicos e como
crêem os nacionalistas das nações jovens, quando julgam poderem reclamar
direitos nacionais sobre Jesus, visto que ele pertenceria a toda a humanidade.
O reino de Deus pode ser recebido somente de acordo com as regras do reino.
O ser humano só pode deixar-se chamar e entrar nele em resposta a esse cha­

28
mado, que sempre é um chamado à obediência. Portanto, o reino pressupõe
na pessoa a atitude receptiva, pedinte, expectadora (Mt 10.15; Lc 18.17; Mc
15.43). Somente quem toma essa atitude receberá e herdará o reino inabalável
(Hb 12.28; Mt. 25.34). A recepção, portanto, está igualmente associada kmetanoia,
à conversão. A pessoa tem que permitir que Deus atue nela e sobre ela, tem
que deixar-se renovar pelo Espírito de Deus; só então poderá tornar-se cidadã
do reino (Jo 3.5).
Esses princípios do senhorio de Deus deveriam, na verdade, ser eviden­
tes para todo pregador do reino. Não obstante, são esquecidos muitas vezes.
Essa é a razão por que é tão difícil hoje alcançar uma compreensão correta do
envio e do serviço na Igreja e na missão. A oposicionalidade ao mundo deixou
de existir em grande parte. Muitas vezes se procura o caminho para o ser
humano na assimilação, quando somente uma confrontação lhe prestaria o
único serviço [de que necessita].

8. O Reino como salvação

Visto que o reino de Deus é antagônico ao reino do mundo, Deus salva


nele simultaneamente os seres humanos e julga o outro reino e todos que
pertencem a ele. E o juízo sobre os seres humanos que vivem de acordo com as
leis das trevas, apesar de terem conhecimento do modo de vida do reino de
Deus (Rm 1.18ss.). Esse juízo já está presente com Jesus. Ele consiste no fato de
agora as pessoas terem a possibilidade da salvação. Dessa maneira sua descren­
ça é o juízo sobre elas mesmas (Jo 3.17ss.). Não obstante, o juízo tem caráter
futuro e destinação eterna, pois Jesus é, ao mesmo tempo, aquele ao qual Deus
entregará o juízo por ocasião de sua volta. Ele se revelará como o Messias e Rei
pelo fato de ser também o Juiz dos seres humanos (At 17.31). Ele pronuncia a
sentença que as pessoas pronunciaram sobre si mesmas com base em sua atitu­
de em relação ao evangelho, e a executa (Jo 5.22-29). Por meio desse juízo a
mensagem do reino se torna existencial. Ela se torna a mensagem da salvação
para aqueles que se deixam chamar ao reino, e a mensagem da condenação
para os que o rejeitam. Através desse juízo o reino, como realidade presente,
entra no mais agudo contraste com o reino do mundo. Aqui não há concilia­
ção, mas somente separação que tem que ocorrer entre as pessoass em virtude
da mensagem do reino. O que no reino de Deus presente (Lc 17.20ss.) é indi­
cado pela linha limítrofe entre fé e descrença se evidenciará pelo fato de Jesus
ser tanto o conteúdo do reino quanto o juiz, porque por meio dele o reino de
Deus é, aqui e agora, juízo sobre o outro mundo, o que ficará patente com toda
a clareza no reino vindouro.
Se quisermos resguardar o sentido do reino de Deus e da missio Dei como
a salvação por Deus, é preciso obter essa visão escatológica em toda a sua
nitidez insistente. Deus revela seu reino da glória e da bem-aventurança no
juízo não para estabelecer condições paradisíacas no mundo, mas a fim de

29
destruir o mundo do pecado e estabelecer, por meio de uma nova criação, a
plena comunhão com os seus, que se deixaram salvar pela mensagem do reino,
por meio de Jesus Cristo. Ele não o faz por desejo de poder, mas a partir da
atitude íntima de seu ser, por amor (Jo 3.16), através do que está sendo descri­
ta sua relação com o mundo. Ele não quer que as pessoas permaneçam no
reino das trevas (Cl 1.13) e se percam. Por isso envia seu Filho, que busca e
salva o perdido (Mt 18.11; Lc 19.10).
O Filho é o portador do reino e lhe dá o conteúdo. Portanto, aplicado aos
seres humanos, isso não pode consistir em outra coisa do que na redenção
realizada por Jesus Cristo e na nova vida dada por ele, que é concedida por ele
com a justificação e o renascimento, na vida eterna que ele conquistou para os
seus pela morte e pela ressurreição. Esses feitos salvíficos ocorridos são o cum­
primento de toda pregação da salvação, na qual se baseia o reino vindouro.
Porque Deus reconciliou o mundo consigo mesmo por meio de Cristo, estabe­
leceu a comunhão envolvida pelo reino de Deus. Dessa maneira se cumpriram
todas as promessas em Jesus Cristo. Nele o reino de Deus se aproximou dos
seres humanos (Mt 3.2; 4.17; 10.7; Mc 1.15) e se tornou presente de tal maneira
(Lc 17.20) que Deus já fez anunciar na mensagem da salvação o que aconteceu
por meio da cruz e ressurreição.
Apesar de ser servo de Deus e por scr servo de Deus, Deus faz do Filho o
Messias, isso é, o portador da pregação do reino e da vontade do reino. Se,
todavia, o reino é vida eterna, então também o portador desse reino tem que ter
conhecimento dessa vida. O sim ao reino de Deus é o sim à vida a partir de
Deus, e por isso o Messias é aquele que vai ao encontro da ressurreição. O Messias é o
reino de Deus que se tornou realidade presente no oculto e na irrupção .25
É preciso acrescentar que com isso ainda não está dita a última palavra
sobre o reino de Deus. Ele entregou o reino ao Filho, o Filho o realizou por
meio de sua paixão e morte e na ressurreição deu aos seres humanos a espe­
rança da vida eterna. Com isso criou as condições para assumir o reino por
meio de sua ascensão. “O fim e a virada escatológica não é essa ressurreição,
mas a exaltação, que concede ao Ressurreto todo o poder do céu e da terra.”26
Agora ele é o Senhor que desde a direita de Deus chama as pessoas a seu reino
e os livra do outro reino.

9. Presente e futuro do Reino

Pela consumação dos atos salvíficos, pela exaltação de Jesus cumpriu-se o


reino de Deus. Isso deve ser reconhecido para que nossa proclamação na missio

25 W. KÜNNETH, Theologie der Auferstehung, 1951, p. 109.


26 E. LOHMEYER, Mir ist gegeben alle Gewalt, in: H. SCHMAUCH, In memoriam E m st Lohmeyer,
1951, p. 28.

30
Dei seja bíblica. Ela se encontrará sempre na expectativa da volta de Cristo e
apontará para o reino vindouro; no entanto, poderá fazer isso somente através
do discurso a respeito daquele que veio a fim de poder presentear aos seres
humanos a salvação por ocasião de sua volta. Se nosso discurso fosse outro,
estaríamos tirando o reino da História na qual foi revelado. Se, todavia, falásse­
mos tão-somente do reino já vindo, estaríamos despojando a História de seu alvo
e tornando a proclamação do reino sem efeito por não ter cumprimento. Por
importante que seja acentuar isso, não obstante é preciso observar que essa
esperança terá um fundamento sólido somente se soubermos que o Senhor que
voltará é o mesmo que veio e fez tudo que é necessário para a redenção. Somen­
te a partir desse pretérito perfeito o crente pode testemunhar o futuro do juízo
e da consumação do reino. O reino se baseia em fatos e tem um alvo. Por isso a
mensagem do reino não é atemporal e a-histórica como o mito das religiões
gentílicas. Por essa razão ele também não pode ser realizado através de represen­
tações dos eventos, o que é perfeitamente possível nos mitos gentílicos. O reino
é único em seu passado e em seu futuro. A revelação do reino baseia-se em fatos
históricos. Isso perfaz sua singularidade e com base nisso tem a pretensão de ser
verdade. Esta, por sua vez, dá o direito c a autoridade para a execução do envio.
Bem diferente é a situação do descrente, ao qual a mensagem do reino de
Deus primeiro tem que ser proclamada. Para ele o reino de Deus ainda não
veio. Ele se encontra cronologicamente antes do estabelecimento do reino.
Este vem a ele através do mensageiro de Jesus, por meio da proclamação da
mensagem do reino, e dessa maneira chega perto dele. Isso não é contradição,
pois o reino de Deus pode avizinhar-se de uma pessoa somente porque se
tornou um fato em Jesus Cristo. Também aos descrentes ele pode ser procla­
mado somente nestes termos: que ele já veio e que o futuro se realizará com
base no pretérito. Dessa forma a proclamação do reino adquire o aspecto
escatológico e a seriedade da responsabilidade, visto que a rejeição do reino é,
simultaneamente, uma negação do evento salvífico. Dessa maneira também
aqui ela se torna juízo e o provoca.

10. O caráter decisório do Reino

Não fosse assim, o Senhor e seus apóstolos não poderiam ter feito do
reino de Deus o conteúdo de sua proclamação. Ao retomar a mensagem de
João Batista, ordenando-a também a seus discípulos, Jesus o faz com vistas ao
alvo de seu envio e sua redenção. Por isso o Novo Testamento emprega as
mesmas expressões para descrever a proclamação do reino que usa para des­
crever a proclamação da mensagem salvífica. A proclamação do evangelho é a
mensagem do reino (Mt 4.23; 9.35). Quem anuncia ajesus, anuncia o reino (At
8.12). Por isso Paulo só pode chamar-se um proclamador do reino (At 20.25).
Por meio da proclamação, o reino se torna presente.

31
O pretérito perfeito da salvação, o evento salvífico como história sc torna presen­
te na proclamação, para a fé que responde à proclamação e reconhece seu teste­
munho, e se torna presente no sacramento: toma-se pretérito presente pelo Espí­
rito Santo que garante ambos os modos de tornar o reino presente e os cumpre.27
Como o reino de Deus é diferente do reino do mundo e este deve ser
superado por aquele, essa proclamação' leva à decisão. “Jesus não se satisfaz com
o rechaço dos ataques demoníacos. Ele ataca. Por isso o conceito de reino tem uma
conotação expressamente polêmica nos ditos do Senhor.”28Jesus declara guerra
aos demônios e aos poderes demoníacos e quer derrotá-los. Quer salvar o ser
humano de suas garras. Isso ele faz envolvendo os seus na luta através da procla­
mação, libertando do outro reino os que são atingidos pela proclamação e envol-
vendo-os igualmente na luta por meio do arrependimento. A pessoa tem que
reconhecer seu comprometimento com o outro reino e cortar as ligações no
poder de Cristo. É chamada ao reino a fim de abandonar o outro reino. Nenhu­
ma pessoa pode tornar-se obediente ao reino de Deus sem converter-se, sem
arrepender-se e permitir que o senhorio de Cristo atue nela.
Os dons do reino estão descritos nas bem-aventuranças. O arrependi­
mento se manifesta na procura do tesouro (Mt 13.44ss.), no rompimento com
o passado e com o ambiente (Lc 9.62). Portanto, a metanoia abrange a vida toda
e a configura de tal maneira que na vida da pessoa chamada ao reino já se
perceba algo da presença do reino de Deus, pois esse reino de Deus é a vida
dada por Deus.
A metanoia é o chamado ao reconhecimento da situação de morte da pessoa fora
do reino de Deus. É a renúncia radical a toda tentativa de alguém querer dispor
de sua vida autonomamente c o voltar-se para a qualidade diferente da vida que
vem de Deus. Se o pecado como separação do ser humano de Deus é a morte,
então a superação do pecado através do perdão é premissa para a vida. O reino
de Deus pode ter um começo somente onde há perdão dos pecados.29
Por meio do arrependimento provocado pela proclamação do reino de Deus,
este faz com que as pessoas comecem a buscar o perdão e o possam encontrar
por meio de Jesus Cristo.
Somente depois de dadas essas condições, podemos falar também de uma
realização do reino. Jesus jamais concede seus dons de maneira a complementar
elementos humanos ou potenciá-los. Através da nova vida presenteada no arre­
pendimento e na justificação ele proporciona à pessoa uma nova relação com o
mundo em que vive e um novo objetivo de vida. Dessa nova vida surge então o
serviço que Deus quer prestar ao mundo através dos seus e que tem por resulta­
do que todas as esferas da vida sejam invadidas e renovadas por Cristo. Transmi­
tir aos seres humanos os dons do reino à parte dessa nova vida significa entregá-
los às mãos de pessoas que ainda estão sujeitas ao outro reino. Onde isso não é

27 H. D. WENDI.ANV), Der Herr der Zeiten, 1936, p. 20.


28 Elhelbcrl STAUFFER, Die Theologie des Neuen Testaments, 1948, p. 104.
29 W. KÜNNETH, op. cit., p. 109.

32
observado, a atividade da Igreja e da missão apenas contribui para que o reino
de Deus sucum ba no desejo de poder do ser hum ano pecador.

11. A universalidade da salvação

Esse reino de Deus, com sua plenitude de dons divinos, não é proprieda­
de de determinado grupo de pessoas. Ele está destinado a todos os seres huma­
nos, também aos gentios. Se assim não fosse, não poderíamos falar de um
senhorio de Deus, o reino de Deus não poderia ser o oposto ao reino do
mundo que também se apresenta em sua universalidade, unidade e coesão. Na
disposição de Deus em transmitir sua salvação a todas as pessoas e salvá-las ele
se revela como o Deus e Senhor de todas as pessoas. Isso, porém, nem sempre
foi reconhecido na teologia. No Antigo Testamento o senhorio de Deus foi
relacionado teocraticamente com Israel. No Novo Testamento Jesus se apre­
senta como o Filho de Davi, portanto como o sucessor legítimo preconizado
pela profecia de Natã (2 Sm 7.12ss.) que tem direito ao senhorio. Em parte
alguma se põe em dúvida que Israel se encontra sob um governo muito especi­
al de Deus. Israel tem uma posição específica dentro do plano salvífico. Ele é a
comunidade de Deus entre os povos, que se tornou o centro do universo dos
povos, a fim de que os gentios pudessem aderir a ela e conhecer o Deus único
e o verdadeiro culto a Deus. Foi essa a vocação de Israel, o sentido de sua
eleição. Nele e através dele, portanto, o reino se tornou visível, a fim de que
pudesse ser concedido aos outros povos30. Por isso Jesus declara a esse povo
que ele não tem parte em Deus como povo, em virtude de um direito de povo
eleito, mas somente como comunidade de Deus31 e somente na medida em
que os membros individuais desse povo se submetem à vontade de Deus. O
nascimento não é garantia para ser membro da comunidade de Deus e, conse-
qüentemente, do senhorio de Deus; no reino pode entrar somente aquele que
faz jus à justiça desse reino (Mt 5.20; 7.13s.,21). O senhorio de Deus é concedi­
do a Israel porque é povo eleito, mas se este recebe parte no reino depende
inteiramente da maneira como recebe a oferta de Deus. Deus sempre rejeita a
reivindicação de um direito. Deus também não entrega seu reino às mãos de
Israel. Na pretensão nacional, Israel decidiu-se contra Jesus e, assim, contra o
reino. Em contrapartida, Jesus enaltece gentios individuais e lhes promete par­
te no reino (Mc 5.1ss.; 7.24ss.; Mt 8.5ss.; Lc 7.1 lss.). A salvação não é tirada de
Israel. Pelo contrário, sempre lhe é oferecida em primeiro lugar, mas dele ela
passa para os gentios. O trabalho missionário entre eles torna-se sinal dos
últimos tempos32.

30 J.JEREMIAS,Jesu Verheissungfiir die Völker, 1956, pp. 47ss.


31 W. HOLSTEN, op. eit., pp. 75s.
32 J. JEREMIAS, op. d t., pp. 40ss.

33
Israel rejeita a salvação, renuncia ao reino e tem que ser rejeitado por
Deus. Apesar disso, Jesus continua entendendo-se como o portador legítimo do
reino. O exemplo de Israel evidencia duas coisas: como representante do reino,
Jesus pertence a todas as pessoas; Deus mantém seu reino livre de todos os ideais
humanos, age contra o desejo de poder dos seres humanos, exclui qualquer
auto-salvação, relaciona a redenção com o fim. É um reino escatológico que,
todavia, teve seu início no tempo presente. Com ele o outro éon já começou,
embora o éon deste mundo ainda não tivesse chegado ao fim33. Por isso Jesus,
como representante do governo de Deus sobre o novo éon, exerce seu governo
neste mundo (Mt 13.41). Nesse reino seus cidadãos sentarão a sua mesa e expe­
rimentarão, desse modo, o maior privilégio que um rei pode conceder, enquan­
to que aqueles que acreditavam terem direito a esse reino serão expulsos.
A rejeição do reino por parte de Israel, o rechaço de Israel por Deus é a
razão por que o reino de Deus passa para os gentios, criando entre eles direta­
mente a comunidade de Deus. O Livro de Atos constitui uma ilustração singu­
lar desse fato. A salvação sempre é oferecida em primeiro lugar aos judeus.
Portanto, seu privilégio é reconhecido. Sua inimizade, porém, sempre se cons­
titui em motivo para ela ser pregada aos gentios. Por culpa de Israel a salvação
passa para os gentios (Rm 11.11). Estes, naturalmente, aceitam a salvação como
pessoas que recebem parte na salvação destinada em primeiro lugar a Israel
exclusivamente pela misericórdia de Deus. Portanto, não existe um reino espe­
cial para os gentios. Deus iniciou seu reino com seu povo. Por isso os gentios
só podem ser acrescentados, enxertados na oliveira como ramos bravos (Rm
11.17). Por esse motivo a comunidade neotestamentária não está suspensa no
vazio, ela não se encontra sem nenhuma relação na história salvífica, mas está
encerrada no agir salvífico de Deus na História. Tanto Lucas no Livro de Atos
quanto Paulo em suas epístolas têm grande interesse em provar que o povo de
Deus surgido dentre os gentios está intimamente relacionado com o antigo
povo de Deus e que essa ligação corresponde à vontade de Deus e, conseqüen-
temente, à revelação.
Também a eleição dos gentios nos últimos tempos tem um objetivo especi­
al: levar novamente aos judeus essa salvação em Jesus Cristo, de maneira que, no
final, toda a humanidade se encontre sob a proclamação do reino. A missão
entre os gentios tem por finalidade última a conquista de Israel para o reino. Sua
readmissão faz parte dos sinais dos últimos tempos (Rm 11.1 lss.). Por isso H.
Schlier tem razão ao constatar: “De acordo com essas afirmações, missão entre
os gentios existe, portanto, no período entre a queda e a restauração de Israel.”34
Antes de definirmos melhor a posição histórico-salvífica da missão entre
os gentios, temos que falar mais uma vez de sua pressuposição concreta dentro
da história da salvação. Na rejeição de Israel Deus se revela como o Senhor de
todos os seres humanos. O caráter divino de seu senhorio se evidencia justa­

33 O. CUI.LMANN, op. cit., 1945, pp. 70ss.


34 H. SCHI.IER, Die Entscheidung für die Heidenmission in d er Urchristenheil, Evangelische
Missionszeitsehriß, 1942.

34
mente no fato de ele não se restringir, mas querer abarcar todas as pessoas, a
fim de conduzir para a verdadeira relação com Deus aqueles que lhe perten­
cem pela criação e que também lhe estão subordinados compulsoriamente
pelo governo mundial de Deus sobre o mundo, e de agregá-los a sua comuni­
dade. Portanto, Deus não está mais amarrado a qualquer povo. Isso também
contradiria ao envio do Filho, cuja morte redentora e ressurreição se revelari­
am sem sentido para o mundo, de maneira que uma missão entre os gentios
não teria embasamento. Morte e ressurreição, porém, são as premissas para a
proclamação da mensagem salvífica para todos os povos, que principia com
sua exaltação. Isso se evidencia numa palavra como a d ejo 12.23s. Jesus inter­
preta a chegada dos gregos como uma glorificação, mas também sabe que essa
somente se poderá realizar se o grão de trigo cair na terra e morrer. Somente
depois de consumada sua obra redentora, seu evangelho é uma mensagem
para todos os povos. Pela morte e ressurreição de Cristo a mensagem do reino
adquire importância cósmica, agora ela é a mensagem para todas as pessoas
(Jo 3.16; 2 Co 5.18,21; Cl 1.10).
Não existisse esse evento salvífico, a mensagem a respeito de Jesus talvez
desse uma boa ética, mas não seria evangelho para todos os seres humanos e
não seria capaz de resolver suas necesssidades. Agora, porém, a mensagem
tem por conteúdo o evento salvífico, o perdão dos pecados e a vida eterna.
Nisso podem consolar e alegrar-se todos os que se deixam chamar ao reino. A
Igreja é a portadora dessa mensagem destinada a todos, mas não é sua senho­
ra. Ela somente pode pôr-se a serviço do reino, mas não deve restringi-lo.

12. Quis Jesus a missão entre os gentios?

Com o problema judeus-gentios surgem dois complexos de perguntas


que sempre desempenharam papel importante na fundamentação da missão e
que ainda hoje exercem sua influência. Essas questões levaram G. Warneck a
concluir, por um lado, que Jesus teria pensado em termos evolucionistas; a
princípio ele se teria restringido a Israel; mais tarde, porém, teria ordenado a
missão entre os gentios. Por outro lado, desde A. von Harnack a pergunta se
Jesus quis a missão entre os gentios jamais sossegou. Ainda hoje ela é respondi­
da negativamente por muitos exegetas, p. ex., por J. Jeremias. Ele acredita que
Jesus ainda viveu inteiramente dentro da tradição de Sião-Jerusalém do Antigo
Testamento: os gentios teriam que acorrer a Jerusalém e que, em conseqüên-
cia, a missão entre os gentios deveria preceder imediatamente à vinda de Jesus.
Dessa maneira a missão entre os gentios em seu sentido pleno seria possível
somente com a vinda do Senhor, quando, pela irrupção do reino, Jesus Cristo
em pessoa conduzirá a ele a plenitude dos gentios.
Essas idéias já foram defendidas por Zinzendorf e F. Fabri e levaram a
que ambos considerassem a missão entre os gentios de hoje somente um traba­
lho preliminar que teria por objetivo conquistar pessoas individuais prepara-

35
das pelo Espírito Santo. Isso levou à ênfase na conversão individual, porque os
povos ainda não estariam maduros para a missão gentílica por meio da eleição
de Deus. O trabalho de ambos, porém, demonstra que, assim como os autores
acima mencionados, também eles não duvidavam que a tendência interior do
evangelho urgia a missão entre os gentios e que a Igreja primitiva foi levada a
ela por meio do dom do Espírito Santo. Portanto, também existiria difusão do
evangelho entre as nações, missão legítima, se Jesus não tivesse dado a ordem
missionária. O horizonte do evangelho seria a humanidade toda. Com isso,
porém, não estaria sendo dito que Jesus teve em mente a missão entre os
gentios já em seu tempo de vida terrena.
Podem-se aduzir passagens neotestamentárias de muito peso para uma
resposta negativa à pergunta em questão35, p. ex., Mt 15.24; 15.26; 10.5ss.;
10.23. De acordo com H. Schlier, Jesus viveu na expectativa imediata do juízo
final e acreditava não conseguir percorrer todo o povo de Israel antes desse
acontecimento. De acordo com ele, a missão entre os gentios teria surgido
somente quando, através da ressurreição de Jesus e da dispensação do Espírito
Santo, em virtude da demora do fim do mundo, se abriu espaço e se haviam
criado as condições para ela. Resta perguntar se as citações em questão têm
que ser interpretadas nesse sentido ou se não expressam uma preocupação
bem prática. A restrição de Jesus a Israel pode ter sido perfeitamente uma
auto-restrição de sua atuação salvífica em benefício da recepção de sua mensa­
gem por todos os seres humanos. Para ser efetiva, ela tem que concretizar-se
em uma comunidade. Tem que haver uma comunidade que acredita na mensa­
gem, que cuida dela e a preserva, de maneira que as pessoas não possam abu­
sar dela. O evangelho tem que lançar raízes antes de poder crescer como árvo­
re. Ele não é uma parasita que se agarra em toda parte e suga a fartar. Por isso
ele tem que tornar-se primeiro independente, exclusivo, para então poder tor­
nar-se universal. Se Jesus ainda estava preso no particularismo, como pressu­
punha Warneck, então não se deveria dizer essa palavra num só fôlego com a
afirmação de que ele é o Redentor do mundo. Se Jesus visava uma preocupa­
ção prática, então o particularismo era o pressuposto para o universalismo.
Em todo caso, Jesus não foi um evangelista mundial, que tivesse posto à
disposição dos gentios o evangelho por meio de sua proclamação, sem insistir
numa decisão. O movimento mundial do sincretismo revela como o evange­
lho, entregue às mãos dos gentios por meio de um método de trabalho equivo­
cado, pode sofrer abuso, se não tiver o apoio de uma comunidade preservadora,
na qual se evidencia o evangelho de modo exemplar na vida e mentalidade. Já
os apóstolos tiveram que enfrentar apavorados a interpretação errada da men­
sagem por parte dos gentios. O Livro de Atos nos relata a respeito três exem­
plos: Simão, o mágico (cap. 8), a deificação de seres humanos em Listra (cap.
14), os exorcistas em nome de Jesus (cap. 19). Já Paulo debateu-se com corren­
tes sincretistas em suas epístolas. Portanto, Jesus teve que criar primeiro uma
comunidade na qual o evangelho era realizado de maneira adequada ao reino.

35 J. JEREMIAS, op. cit., pp. 9ss.

36
Não poderia ter sido esse o motivo por que restringiu sua atividade a Israel?
Que nessa.auto-restrição Jesus teve uma posição muito especial em relação aos
gentios, isso o demonstra J. Jeremias96. Também Lohmeyer a evidencia. “O
problema dos povos gentílicos tem um lugar seguro na proclamação de Jesus
(Mt 8.11; 21.43; 26.28). O alvo de os povos terem que tornar-se ‘filhos do reino’
está expresso claramente.”97
Não obstante terá que se dizer, com base nessa concepção, que Jesus
admitiu a missão entre os gentios somente depois de sua ressurreição, quando
Israel o havia rejeitado. A transição para a missão entre os gentios não foi um
ato de desespero, e, sim, do ponto de vista escatológico, o rechaço de Israel
teve que servir ao propósito de tornar Jesus o Redentor das pessoas. Somente
com os feitos salvíficos estavam dadas as condições para o universalismo da
salvação. Isso é elaborado em muitas passagens do Novo Testamento. Pela res­
surreição e pela exaltação Jesus se torna o kyrios (At 2.36). “Por meio de sua
ressurreição dentre os mortos, Jesus, outrora o Messias dos judeus, foi
entronizado como Senhor e Salvador do mundo inteiro (Rm 1.1 ls).”36378 Portan­
to, Jesus se torna Senhor de toda a criação e, ao mesmo tempo, daquele outro
reino que ele já derrotou prolepticamente (Cl 1.13). Agora o kyrios de Israel e
o kyrios do mundo é o mesmo, e com isso está resolvida a contradição entre Mt
15.24 e Mt 28.18ss. A respeito disso afirma também Liechtenhan: “O envio é
um ato único (Lc 10.17-20). Por isso não se pode tirar da restrição às ovelhas
perdidas de Israel uma conseqüência adicional. O objetivo é ampliar o peque­
no rebanho.”39 Schlier o expressa de modo ainda mais incisivo: “Pelo fato da
ressurreição, a ordem missionária do Ressurreto é a superação legítima da
proibição de se dirigir aos gentios, e essa proibição é o estágio preliminar
legítimo daquela ordem missionária.”40

13. O lugar escatológico da missão


entre os gentios

A morte e ressurreição de Jesus são a premissa para a missão entre os


gentios. Por meio desta irrompeu a virada escatológica, com a qual o reino vai
ao encontro da consumação. Esse reino é inaugurado pela exaltação de Jesus.
Ele assume o governo. Por isso hoje se entende a ordem missionária de Mt
28.18ss. menos como ordem do que como proclamação do reino vindouro, o

36 ID., ibid., pp. 34ss.


37 E. LOHMEYER, op. eil., p. 33.
38 A. FRIDRICHSEN, The Apostle and His Message, 1947.
39 R. LIECHTENIIAN, DieurchristlicheMission, 1946, p. 23.
40 H. SCHLIER, op. cit., p. 182.

37
anúncio da subida de Jesus ao trono, sua entronização41. Jesus tornou-se o rei
do reino, e nessa qualidade manda agora que a mensagem do reino seja procla­
mada às pessoas, para que sejam preparadas para sua volta e salvas por meio da
pregação. A missão sempre se encontra sob o signo do Senhor vindouro. Isso
proporciona a seu serviço seu sentido mais profundo e seu alvo derradeiro.
Se a vinda do Filho do homem abrange um juízo sobre todos os povos, então
também exige a pressuposição de que foi dada a todos a oportunidade de apro-
priar-se da salvação e que, dessa maneira, são imputáveis. Portanto, a proclama­
ção do evangelho a todos os povos é um postulado da escatologia; por isso
também se encontra aqui o dei (= é preciso que) do determinismo escatológico.42
A Igreja tem por obrigação preparar essa vinda de Jesus através da mis­
são. O fim somente virá quando a mensagem do reino tiver sido pregada a
todos os povos para testemunho sobre eles (Mt 24.14). Por isso o Espírito San­
to, como o fato do tempo final, leva a Igreja passo a passo à missão entre os
gentios e desse modo prepara a vinda de Jesus. Missio é agora a atividade do
Senhor exaltado entre sua ascensão e volta. Assim a Igreja tem somente uma
tarefa: dar continuidade à história salvífica por meio da proclamação do even­
to salvífico já acontecido e por meio da anunciação de seu reino na congrega­
ção da comunidade, “até que ele venha”4®. Boa parte dos teólogos holandeses
tiram conseqüências importantes dessas observações, para, a partir daí, elabo­
rarem uma nova compreensão de Igreja e missão. Primeiramente quero ofere­
cer um resumo de nossas observações de acordo com o trabalho básico de
Hoekendijk, que, ao mesmo tempo, faz a ponte para o próximo capítulo44.
Em seu capítulo básico sobre o contexto da missão, Hoekendijk nos mos­
tra que ela não somente aponta para o fim vindouro, para a irrupção do reino
de Deus, mas que ela própria já é um prenúncio dessa vinda. Sua tarefa está
relacionada com os prenúncios e ais apocalípticos. Com isso ela faz parte dos
derradeiros sinais que Deus dá aos seres humanos antes do fim (Mc 13.10; Mt
24.14). Ela própria é um evento apocalíptico. Hoekendijk adota a tese defendi­
da por Cullmann45: 2 Ts 2.6-7 refere-se à missão, de maneira que o fato de a
humanidade ainda não se ter arrependido e o anúncio do evangelho ainda
estar incompleto entre os povos são os elementos retardantes antes da vinda do
Senhor. Por isso esse período intermediário é a expressão da grande paciência
de Deus com os seres humanos.
Por meio dessa visão a missão adquire sua importância histórico-salvífica.
Todo o poder no céu e na terra está entregue às mãos do Filho do homem (Dn

41 O. MICHEL, Menschensohn und Völkerwelt, Evangelische Missionszeitschrift 1941, n 2 6; E.


LOI1MEYER, op. eit., pp. 34ss.;J. JEREMIAS, op. cit., pp. 32ss.; S. KNAK, Neutestamentliche
Missionstexte nach neuerer Exegese, Theologia Viatorum, 1953/54, p. 27.
42 R. UECHTENHAN, op. cit., p. 32.
43 O. CULLMANN, op. cit., pp. 145ss.
44 J. C. HOEKENDIJK, Kerk en Volk in de duitse Zendingstvetenschap, 1949, pp. 223ss.
45 O. CULLMANN, op. cit., pp. 145ss.

38
7.13-14; Mt 28.18). O serviço dos povos faz parte de seu triunfo. Sua glória
começou (Mt 16.27; 26.62). A promessa messiânica de ls 2.2 se cumpriu. Pela
proclamação da mensagem do reino, a fé em Javé abrange toda a humanidade,
conforme o previu Dêutero-Isaías. Por meio da proclamação não existem mais
limites entre os povos. Todos são chamados ao reino. Esse período começou
com a rejeição de Israel. No entanto, a missão entre os gentios depende expres­
samente do dom do Espírito Santo (Lc 24.49; At 1.8). Este é o grande evento
do tempo final.
O Espírito Santo leva ao apostolado pneumático, que é expressamente
apostolado dos gentios. Mais adiante analisaremos esse conceito com mais de­
talhes.
Com base nessa exposição deverá ter ficado claro que a Igreja somente
pode ser entendida como grandeza escatológica e que, conseqüentemente, a
missão outra coisa não pode ser senão continuação da história salvífica através
da atuação do Senhor glorificado com sua comunidade entre os povos. Ela é a
característica do novo éojv.do qual todos os crentes recebem parte e que deve
ser proclamado a todolTôs descrentes, até que ele se cumpra. Com isso a Igreja
recebe uma tarefa voltada para o fim. Toda a ação da Igreja encontra-se agora
sob esses sinais escatológicos. Ela somente pode ser correta se objetiva, em
todas as suas ramificações, a conquista dos descrentes. No serviço da Igreja
realiza-se a missio Dei. Cumpre-nos agora descrever sua execução.

39
Capítulo 3:

O envio

1. O sentido do envio

A missio Dei é a obra de Deus através da qual manda oferecer, por meio
de seus enviados, aos seres humanos tudo que tem em mente para sua salva­
ção, toda a plenitude de seu reino da redenção, para que, libertos do pecado,
arrebatados do outro reino, possam entrar de novo inteiramente em sua comu­
nhão. Dessa maneira o envio se torna um ato do amor de Deus para com os
seres humanos perdidos. Ele é expressão de sua misericórdia4647.Esta tem pouco
a ver com o motivo pietista da compaixão com os gentios. Esta não estava
determinada somente pela preocupação com a pessoa perdida, mas fortemen­
te marcada pela consciência dos beati possidentes no sentido de não trazer às
pessoas apenas a salvação por meio da mensagem, mas de poder redimi-las
também de sua depravação terrena e moral e proporcionar-lhes uma vida dig­
na. Para levar a salvação às pessoas, Deus empenha-se por elas através da reve­
lação, por meio de sua palavra. Por isso a missio Dei está estritamente asssociada
à revelação. Deus se revela efetuando ele mesmo o envio. Se não houvesse
missio Dei, também não teríamos revelação. Ele envia sua palavra aos seres
humanos e se revela de maneira a vir em pessoa a eles em Jesus Cristo por
meio do Espírito Santo (Jo 3.16; Rm 1.16).

2. Enviador e enviado

Por meio do amor de Deus que assume forma na revelação e que é transmi­
tido aos seres humanos no envio, o Deus que se revela e envia se une, através de
sua palavra, seu Espírito e sua missão, com o enviado e, através deste, por sua
vez, com os ouvintes da mensagem. Foi o mérito da Conferência de Whitby,
ainda hoje pouco reconhecida em seus resultados teológicos, ter elaborado isso4'.
Por meio do envio Deus lança a ponte, faz a conexão com as pessoas que ele

46 G. F. VICEDOM, Die Rechtfertigung ab gestaltende Kraft der Mission, 1952, pp. 9ss. (Neste volume,
pp. 99ss.)
47 W. FREYTAG,... Der grosse Auftrag, 1948, pp. 32ss.

40
quer salvar. Por isso, do ponto de vista de Deus só existe envio com uma missão
determinada e um objetivo concreto que deve ser alcançado. Por meio da in­
cumbência a Igreja com sua missão é somente um elo de ligação, não uma enti­
dade própria, uma obra independente; ela não tem tarefa auto-escolhida. Com
sua missão ela jamais é uma instituição necessária em vista da religiosidade inata
do ser humano; menos ainda ela é uma entidade cultural, e por isso mesmo, em
princípio, não tem tarefa cultural. Ela também não é objeto de política eclesiás­
tica. Muito menos ainda tem a ver algo com qualquer expansionismo nacional.
A Igreja pode cumprir uma variedade de tarefas. Mas não deve procurá-las ela
mesma, à parte de sua única e verdadeira missão. Separadas desta, todas as
coisas secundárias pertencem ao outro reino.
A Igreja e a missão jamais são concebíveis separadas de Deus e por isso
somente podem ser compreendidas a partir da existência de Deus e de sua
missio. Elas nada mais são do que uma forma de conduta, um método de traba­
lho de Deus em sua relação com suas criaturas e uma congregação dos que se
deixaram chamar a ele através do envio determinado por Deus. Por isso, em
assuntos de Igreja e missão, a ênfase sempre recai no enviador que, através
delas, quer realizar seus objetivos entre as pessoas. Por isso todo envio é, pri­
meiramente, um enunciado sobre o enviador, sobre o Deus que se empenha
pelos seres humanos (Is 6.8; Gn 12.lss). Os termos que a Escritura usa para
referir-se ao envio expressam simultaneamente o caráter absoluto da vontade
de quem dá a incumbência. O enviado sempre é necessariamente aquele que
se encontra sob a vontade do enviador (1 Co 9.16ss.). Este chama o enviado ao
serviço. Para isso lhe dá autoridade e poder, pois o enviado sempre tem que
agir em lugar daquele que envia. Com isso a missão está livre de todo arbítrio
e capricho humano, mas também dos desejos humanos e eclesiásticos, por
mais que estes estejam arraigados em determinada piedade ou determinada
teologia. “No começo da missão sempre se encontra o eu de Deus, o único eu
que tem consistência na Escritura.”48 Por isso os enviados somente podem
anunciar a mensagem falando com os profetas: Assim diz o Senhor.

3. Eleição e envio

A atitude da Igreja em relação ao mundo é determinada pelo envio. Como


portadora da mensagem, ela tem que confrontar-se com o mundo. Os holande­
ses desenvolveram essa questão perguntando pela posição do povo de Israel no
mundo, por sua relação com os gentios. No que se segue atenho-me às exposi­
ções de J. Blauw49. Primeiramente Deus efetua o envio no mundo escolhendo
dentre os povos um povo de sua propriedade, chamando e enviando-o. Israel já

48 Friso MELZER, IkrsnlU meine Zeugen sein, 1955, p. 7.


49 Johannes BLAUW, Goden en Mensen, 1950.

41
tinha uma vocação missionária. Seria um engano sério ver na eleição de Israel
apenas um ato arbitrário do Deus autônomo que, em sua soberania, deixa
todos os demais povos entregues a seu próprio destino, para escolher para si
um povo e privilegiá-lo. Precisamente a eleição de Israel foi um serviço de
Deus aos povos encerrado em sua missio. Por meio dela também os demais
povos foram, a princípio, colocados sob sua promessa (Gn 12.1ss.). Israel tor­
nou-se para eles o portador da promessa e o mediador da bênção, um sinal
visível de que também eles podem ser salvos e que têm parte na salvação. “O
Deus ao qual pertence o mundo é o Deus que escolheu seu povo (...) A Bíblia
não começa com o Deus que escolhe, mas com o Deus que é o Criador e,
portanto, o Senhor que pode escolher.”50 É o Deus que pode escolher e que
por isso também escolhe os gentios. Por isso escolheu primeiramente, para
serviço aos gentios no Antigo Testamento, seu povo como um todo. Pois na
posição do povo no concerto dos povos, na fé e obediência do povo, na forma
como Deus o conduzia, também em sua desobediência e apostasia, os outros
povos deveriam perceber como Deus, em seu amor e sua santidade, age com
seu povo, com seres humanos que ele quer salvar. Ao mesmo tempo os povos
podiam reconhecer de que modo a vida de um povo pode estar determinada
por sua fé em Deus. Dessa maneira Israel se tornou tanto ponto de atração
quanto advertência para os gentios.
A rigorosa lei de Deus, que separava Israel dos gentios, estava em vigor até a
vinda de Jesus Cristo, com a intenção de manter os gentios afastados, de mos­
trar-lhes a santidade de Deus, testemunhar-lhes que ninguém pode tornar-se
membro do povo de Deus por escolha própria ou comportamento decente.51
Deus executa o envio agindo ele próprio com o povo, enviando-lhe ho­
mens que deveriam governar e dirigi-lo em seu lugar. Já a essa altura surge a
idéia de que, desde a queda, a humanidade está sem liderança e à deriva (1 Rs
22.17; Is 13.14; Zc 10.2). A comunhão do mundo dos povos com Deus está
rompida, mas a seu povo Deus conduz por pura graça. Por isso envia a seu
povo homens para governar e dirigi-lo. Isso não mudou quando Israel pediu
um rei. É significativo que, na verdade, Deus admite o reinado, mas primeiro
lhe confere o verdadeiro sentido: o rei deverá ser o pastor que conduz o povo
em lugar de Deus. Portanto, o rei tinha uma missão salvífica. Deus é o Pastor
(SI 23 e 80) e envia pastores que pastoreiam o povo em seu lugar (Is 40.11; Jr
3.15; Ez 34.23). Portanto, Israel se encontra sob os cuidados especiais de Deus,
e com isso estão criadas todas as possibilidades para permanecer povo de Deus
entre os demais povos e para poder dar testemunho de Deus por meio de sua
vida e existência. Ele se encontra sob a direção de Deus. Esse desejo salvífico
de Deus de dirigir seu povo ainda penetra profundamente no Novo Testamen­
to (Mt 9.36; Jo 10; 1 Pe 2.25; Hb 13.20). De início, portanto, Deus executa o
envio servindo ao povo através de sua condução.

50 <). WEBER, Bibelkunde des Alten Testaments, 1947, p. 42.


51 A. De QUERVAIN, Der ewige König, Theologische Existenz, 58, p. 23.

42
Israel vivia entre os demais povos. Estava sempre tentado a acomodar-se
a estes. Sobretudo após a tomada da terra, conheceu os deuses da terra cultiva­
da, sem cuja mercê era inimaginável gozar dos frutos da terra. A transição da
vida no deserto para o scdentarismo, do nomadismo para o cultivo do solo e
por fim o progresso civilizatório e cultural do reinado - tudo isso afinal não
eram questões técnicas, mas eminentemente religiosas. A recepção de novos
cultos e formas de vida tornou-se uma questão vital para Israel. Ele sempre
estava cercado por apostasia. Por isso Deus não enviou reis a seu povo, mas
sobretudo profetas, aos quais manifestava sua vontade. São eles que, perma­
nentemente, traçam os limites em relação à apostasia. Os profetas inculcavam
nos pastores do povo de Deus a vontade divina e destacavam a exigência e a
promessa de condução genuinamente divina. A separação dos demais povos
estava definida pela lei. Os profetas proclamavam tanto a compreensão correta
da lei quanto sua aplicação correta. Dessa maneira Israel pôde, apesar de mui­
ta infidelidade, atuar de modo exemplar em seu meio. Através dessa separação
dos demais povos, o particularismo da salvação em Israel se tornou a condição
para que a salvação se tornasse evidente também a outros povos.
Em tudo isso se tornam evidentes duas coisas que são importantes para o
surgimento da idéia de missão no Antigo Testamento e prenunciam prolepti-
camente o que aconteceu mais tarde no tempo de Jesus: a idéia de missão
cresce sob o chamado ao arrependimento e os profetas desenvolvem a visão
universal na medida em que Israel não podia mais ser chamado o povo de
Deus por causa de sua apostasia. Quando se sentiu seguro, quando passou a
identificar-se com o governo de Deus, Israel estava fadado ao fracasso. Somen­
te agora nasce nele a compreensão para a salvação escatológica e para a dimen­
são da comunidade de Deus constituída de todos os povos. A transmissão da
salvação passa a ser compreendida pelo resto de Israel, portanto pela verdadei­
ra comunidade de Deus dentre o povo, como a verdadeira vocação. A partir
daí Jerusalém se torna o centro da genuína adoração de Deus e todos os povos
deverão receber parte nela82.
Com isso, porém, ainda não está alcançado o verdadeiro objetivo de Deus
com Israel e ainda não está cumprida sua missão específica. Quanto mais um
“resto” se entende como o verdadeiro Israel, tanto mais sua existência aponta
para aquele um que deverá vir como Messias e Salvador prometido, o Servo de
Deus, que trará a salvação a todas as pessoas. Portanto, mesmo como comuni­
dade dos restantes, Israel permanece povo de Deus e portador da revelação, e
Deus confirma as promessas por amor daquele um vindouro que Deus quer
presentear a toda a humanidade e que a conduzirá a sua comunhão. A vocação
missionária de Israel se cumpriu somente quando Deus enviou seu Filho como
Filho de Davi, o Filho do homem, para, em seu amor, revelar-se a todas as
pessoas e executar sua obra da graça em todas elas63.523

52 J. HEMPEL, Die Wurzel des Missionswillens im Glauben des Alten Testaments, Zeitschriftfü r die
alltesUmentliche Wissenschaft, ano 66, pp. 244ss.;J. JEREMIAS, op. eil., pp. 47ss.
53 O. CULLMANN, op. cit., pp. 99ss.

43
4. A missio Dei specialis

Portanto, o próprio Deus faz missão. A partir de sua misericórdia, ele se


faz o pastor e mensageiro de seu povo que se exaure no engano (Mt 9.36; Mc
6.34). Deus envia o Servo de Deus, em cujas promessas a comunidade de Deus
do Antigo Testamento aprendeu que seu Deus é um Deus dos povos. Ele faz
sua missio por meio de seu Filho, que agora se torna apostolos, isto é, enviado
(Hb 3.1). Nele realiza a salvação destinada aos seres humanos e os chama nova­
mente a sua comunhão.
Com Jesus Cristo inicia-se a missio Dei especial, pois nele Deus é simulta­
neamente o enviador e o enviado, o que se revela e a revelação, o santo que
castiga e que redime. Por meio de seu Filho o próprio Deus se torna o conteú­
do do envio na encarnação e na glorificação. Nele se revela uma vez por todas
quem Deus é, o que ele é, como age, como pensa a respeito dos seres humanos,
como os redime, qual a salvação que tem à disposição deles, como as pessoas
podem aproximar-se dele, como são recebidas em sua comunhão. Isso agora se
destina a todos os seres humanos. De agora em diante ninguém pode procurar
seu próprio caminho de redenção. Esse Jesus ninguém pode ignorar. Todo ser
humano tem que decidir-se nele e por meio dele, pois nele age com as pessoas
o Deus que é seu Senhor a partir da criação.
Por isso Jesus, sem dúvida, tem uma tarefa especial nesse envio, mas
sempre será a tarefa e a vontade que o próprio Deus triúno propôs a si mesmo
para a salvação das pessoas. Jesus sempre age em concordância com o Pai, e
atua como se o próprio Pai estivesse atuando. Ele completa a obra de seu Pai
(Jo 4.34), e isso é uma prova de que Deus o enviou e que ele está atuando 0o
9.3ss.). O envio tem o propósito de revelar aos seres humanos que o Pai está no
Filho e o Filho, no Pai. Por isso o envio é um assunto muito sério. Por meio
dele os seres humanos são levados à presença do Deus vivo, seus deuses antigos
são declarados nulos e seus caminhos de redenção são declarados falsos. Pois
somente ele é a salvação e somente ele traz a salvação.
Isso somente é possível porque Jesus não apenas proclama uma mensa­
gem, mas porque ele próprio é o conteúdo da mensagem e traz a redenção.
Com isso a redenção está fora do alcance de qualquer especulação humana e
também de toda meditação. O enviado de Deus realiza a redenção na cruz e
por meio da mensagem da cruz dá o conteúdo a todo envio. Por meio da
ressurreição ele vence todas as necessidades das pessoas, que sempre giram
em torno da morte, e dessa maneira dá a certeza da vida eterna. Por meio da
reconciliação e concessão da vida eterna a comunhão com Deus está completa
e a pregação a respeito dela adquire sua urgência pela destinação escatológica.
Por meio do envio Jesus se torna o Senhor sobre todos os poderes antidivinos,
que querem destruir a obra salvífica de Deus, e também Senhor sobre aquele
outro mundo resumido no reino das trevas. Jesus se torna a cabeça de sua
comunidade. Dessa maneira estão resolvidas todas as perguntas que desde
sempre moveram a religião, que se tornaram suas questões centrais. Todavia,
não estão resolvidas do modo como o ser humano o havia imaginado, mas à

44
maneira de Deus e por isso de maneira absolutamente válida. O ser humano
foi tirado de sua autodivinização e transformado novamente em criatura e vis-
à-vis de Deus. Com Jesus Cristo está encerrado o tempo das trevas e da igno­
rância. Por isso, quem se encontra com Cristo está chamado à decisão e, conse-
qüentemente, ao arrependimento.
Com Jesus está encerrado o processo de dar conteúdo ao envio e estão
estabelecidos o sentido e alvo de todo envio. Além de Jesus não existe mais
revelação de Deus. Também o Espírito Santo tomará do que é dele e justamen­
te dessa maneira conduzirá todos os seres humanos à verdade. Desde que Jesus
morreu e ressuscitou por causa da salvação das pessoas, tornou-se impossível
qualquer redenção fora dele, por mais que as pessoas tentem enquadrar a
Cristo entre as muitas figuras que quiseram mostrar um caminho de reden­
ção. Quem põe em dúvida a unicidade de Cristo também põe em dúvida o
único Deus que o enviou. Somente através do Filho as pessoas aprendem a
conhecer a esse Deus e somente através dele encontram o caminho ao Pai. Por
isso Jesus não é apenas uma figura única na História, ele também é único em
seu agir e seu objetivo (Rm 6.10; Hb 6; 1 Pe 3.18). Por causa desse fato fracas­
sarão todas as tentativas das religiões e das filosofias de substituí-lo, e nele se
frustra toda tentativa do sincretismo que quer complementá-lo, apropriar-se
dele e pô-lo a seu serviço. Por meio dele toda auto-redenção, por mais piedosa
que seja, se torna rebeldia contra a vontade redentora de Deus e por isso deve­
rá revelar sempre a conseqüência da queda. As pessoas somente podem aceitar
a Jesus como ele é, ou então não recebem parte nele. Podem somente confron-
tar-se com sua mensagem, sujeitar-se a ela, crê-la e deixar-se salvar por ele. Sua
mensagem é exclusiva, pois está totalmente presa ao Deus uno. Ao mesmo
tempo, porém, ela é universal, porque é a correspondência do reino e do
senhorio de Deus que abrange o mundo inteiro (At 4.12; Jo 6.68). Ela pertence
a todas as pessoas.
Fora dessa missio Dei em Jesus Cristo não pode mais existir envios hoje.
Tudo que acontece em termos de envio desde sua missio partiu dele, está deter­
minado por ele, encerrado em seu envio, é continuação de seu envio por ele
mesmo. Tudo que para nós abrange o conteúdo e objetivo do envio é ele.
Assim como nós todos nos tornamos semelhantes de Jesus por meio de sua
encarnação, e assim como nos tornamos irmãos por meio de sua redenção
(Rm 8.29; Hb 2.11), isto é, cidadãos de seu reino, do mesmo modo somos,
também como pessoas que ele chamou a seu serviço, apenas co-enviados, va­
sos de seu envio. Dessa forma, nele o serviço da Igreja e da missão continua
sendo a obra do próprio Deus.
A misssão entre os gentios como está sendo praticada hoje é possível
somente porque Deus deu continuidade a seu envio e porque, por meio do
dom do Espírito Santo, fez da unicidade do envio do Filho uma »iAmocontinuala.
Agora fica evidente para todas as pessoas que Deus condicionou toda a salva­
ção a seu Filho e que, em seu amor, continua empenhando-se para atrair os
seres humanos. Não existiria Igreja, não existira comunidade de Deus na terra
entre todos os povos, e por isso também não existiria missão, se o próprio
Deus não agisse desse modo entre todos os povos pelo dom do Espírito Santo,

45
como Lutero o descreveu na explicação do terceiro artigo do Credo. O Espíri­
to Santo é a força motora da missão. Os apóstolos têm ordem expressa de
iniciar seu trabalho e cumprir sua vocação somente depois do derramamento
do Espírito Santo (Lc 24.49; At 1.8). Pelo derramamento do Espírito Santo eles
são conduzidos à pregação pentecostal, à fundação da primeira comunidade e,
a partir daí, paulatinamente, à missão. Para onde vão, são movidos pelo Espíri­
to, e onde quer que preguem a mensagem, o Espírito está colaborando com
eles. Sem o dom do Espírito Santo jamais teriam encontrado o caminho aos
gentios, e a redenção acontecida em Jesus Cristo teria permanecido sem im­
portância para a humanidade. Talvez se tivesse formado uma seita judaica, mas
não uma Igreja que abrange os povos.
Também o Espírito Santo é enviado (Jo 14.26; 15.26; 16.7). Ele procede
do Pai e do Filho; por isso temos em seu envio a plenitude da graça do Deus
triúno. Onde ele atua, está atuando o Deus triúno. Nele Deus, em sua relação
com o mundo, dá continuidade a sua presença entre os seres humanos e lhes
transmite o que foi feito por eles. “Entre sua (sc. de Jesus) ascensão e volta ele
está entre os povos na pessoa do Espírito Santo. O Espírito Santo é o poder por
meio do qual e no qual Cristo Jesus, sentado à direita de Deus, está presente na
terra.”MDeus jamais é impiedoso. Onde incumbe os seus de alguma tarefa ele
também colabora, e não fica à parte como o Senhor, à maneira humana. O
Espírito Santo traz a presença de Deus e a certeza dessa sua presença. O Deus
triúno está presente em seu Espírito.
Também o Espírito Santo é Senhor (2 Co 3.17). Com ele está dado o
reino, pois ele próprio é o reino na ação de Deus (Mt 3. 11; Jo 1.20; 1.27,33; At
1.5). Por meio dele Jesus realiza sua presença prometida (Mt 28.20). Portanto,
quem é movido e guiado por ele tem a prova de que através dele Deus quer
realizar alguma coisa especial na comunidade ou, através da comunidade, no
mundo. O Espírito sempre é a co-testemunha na proclamação e na doutrina
(At 5.32; 15.28). Em sua dádiva e presença se mede o sucesso da proclamação,
pois ele é a expressão para a eficácia da Palavra (At 10.26; 19.2ss.). Nessas
qualidades o Espírito Santo dá continuidade à missão que Deus começou por
meio de seu Filho Jesus Cristo, até o dia em que o próprio Jesus voltará e
encerrará a missão. O Espírito Santo faz isso chamando as pessoas à fé, levan­
do-as a testemunhar e pondo-as a serviço.

5. Os apóstolos

Até aqui descrevemos a missio Dei principalmente como atividade imedi­


ata de Deus, por meio da qual Deus se revela como aquele que age com os
seres humanos e os salva. Desde a exaltação de Cristo, o Espírito Santo executa

54 II. SCHLIF.R, op. r.it., pp. 177s.

46
essa missão imediata transformando pessoas em seus mensageiros e instru­
mentos, comissionando-as em nome de Jesus e enviando-as. Essas pessoas cha­
madas especialmente pelo Senhor e enviadas com determinada missão são
denominadas apóstolos no Novo Testamento. Elas são escolhidas pelo próprio
Senhor e equipadas com sua autoridade. Elas mesmas não puderam escolher
sua profissão. Muitas vezes consentiram somente sob relutância interior e tive­
ram que primeiro ser convencidas por ele. Sempre foram incumbidas da tarefa
específica de proclamar a mensagem salvífica, a fim de levarem os seres huma­
nos à fé naquele que comissionava os apóstolos e congregá-los na comunidade
do Senhor. Portanto, seu serviço sempre é um serviço derivado da missio Dei.
No Novo Testamento encontramos uma vocação e um envio duplos para
os apóstolos. O Senhor Jesus os escolhe, durante sua vida terrena, dentre o
grande número de seus seguidores. Portanto, eles se tornam apóstolos em virtu­
de de uma tomada de decisão especial e de uma missão especial. Para isso Jesus
buscou a certeza na oração (Mc 6; Mt 10; Lc 9). Essa primeira escolha leva,
conforme supõe hoje a maioria dos exegetas, a um envio único, bem delimitado,
com uma missão igual à que seu Senhor tinha que cumprir’5. Portanto, recebem
a autoridade por parte de seu Senhor de fazerem a mesma coisa que também ele
próprio faz: apoiar e ampliar sua atividade messiânica (Lc 9.2; 10.7-9). Parece
que seu envio foi um ato único, pois, após a volta, encontramo-los trabalhando
apenas na companhia de seu Senhor. Enquanto seu Senhor estava com eles aqui
na terra, os apóstolos não tiveram uma tarefa independente.
É sabido que na hora da provação do sofrimento, os apóstolos abandona­
ram seu Senhor. Por isso, depois da Páscoa ele tem que reuni-los novamente,
reequipá-los, explicar-lhes o sentido dos eventos, e chamar e enviá-los uma
segunda vez. O segundo envio, agora pelo Ressurreto, é um envio definitivo
(Mt 28.19; Lc 24.47ss.; Jo 20.21; Mc 16.15). Jesus perdoou aos apóstolos, resta­
beleceu a comunhão com eles e removeu todos os empecilhos. Conforme suas
instruções, a proclamação dos apóstolos de agora em diante nada mais é do
que a interpretação dos acontecimentos históricos de sua vida terrena, especi­
almente desde a prisão até a ascensão. “Deus precisa de seus apóstolos, de seu
empenho e fidelidade, a fim de abrir os olhos das pessoas para esse evento
divino, para que permitam que ele aconteça também nelas e se ponham a
serviço dele.”5®Por isso esse segundo envio não está mais delimitado por espa­
ço e tempo, mas conduz a todo o ecúmeno ou ao cosmo, o que significa que
ele é universal sob o duplo aspecto: até o fim do tempo e até o fim do mundo.
Por meio desse envio o Senhor reivindica para si a humanidade toda e inter­
preta suas obras salvíficas de maneira que vêm a ser para cada pessoa o ele­
mento decisivo para a sua redenção.
Em ambos os envios chama a atenção o fato de Jesus enviar somente
homens, embora tivesse muitas mulheres como seguidoras e embora também 56

55 G. STÄHLIN, Die Endschaujesu und die Mission, Evangelische Missionszeitsckrifi, 1950, pp. 99ss.
56 R. LIECIITENIIAN, op. cit., p. 74.

47
houvessse mulheres entre as testemunhas de sua ressurreição. Além disso, é
preciso constatar que esse segundo envio não coincide com o derramamento
do Espírito Santo, mas lhe antecede. Portanto, poder-se-ia dizer que a vocação
parte do próprio Senhor, enquanto a execucão é derivada do Espírito Santo.
“Isso, porém, significa que o apostolado não se deriva do fato de a Igreja
possuir o Espírito, por mais que se necessite do Espírito para a execução da
missão, mas do mandato do Senhor ressurreto. Isso está evidente em todas as
fontes.”57 De acordo com isso, a ressurreição é a premissa para o envio a partir
do qual os apóstolos recebem sua incumbência. No entanto, esta é realizada
somente pela concessão do Espírito.
Somente a partir daí (a partir de Páscoa e Pentecostes) eles são aquilo para o
qual são destinados e ordenados aqui: portadores do querigma. Somente neste
ponto a comunidade se desenvolve, a partir de sua forma originária do círculo
de amigos crentes no Jesus Cristo vivo, transformando-se na Igreja que se espa­
lha pelo mundo afora e cresce.5859
A instalação no apostolado e o envio têm sua base nas aparições pós-pascoais, no
faio de, por um lado, o Ressurreto renovar- e confirmar a condição de apóstolos
de seus discípulos e, por outro, lhe dar uma fundamentação totalmente nova.39
Esse fato tem repercussão tão grande que na pregação apóstolica não é a cruz
que está no centro, mas sempre a ressurreição. Ela é o fato decisivo. Somente
se existirem ressurreição, juízo e vida eterna com Deus, a cruz adquire sua
importância. Por isso a missão está fundamentada sobretudo a partir da ressur­
reição. Sem ela, Jesus não seria o Redentor do mundo.
Ainda outro fato está relacionado com a difusão da mensagem da ressur­
reição. Na questão de quem poderia chamar-se apóstolo, não se coloca a ênfase
primordialmente na vocação e envio, ou na capacidade para a profissão, mas no
fato de alguém ser testemunha do evento da ressurreição. Ele tinha que poder
testemunhar as aparições do Ressurreto, portanto, o fato decisivo na redenção
(Lc 24.49; At 1.22; 1 Co 15.8ss.). Também Paulo pode comprovar seu apostolado
como legítimo somente pelo fato de também ele ter visto o Ressurreto (1 Co
9.1). Além disso, os apóstolos também devem ter sido acompanhantes do Se­
nhor (At 1.21). Eles são, portanto, testemunhas oculares de eventos históricos, da
vida, morte e ressurreição do Senhor. Com isso a proclamação dos apóstolos
está acima de qualquer espiritualização. Por isso a pregação cristã é proclamação
da história de Jesus e não exposição popularizada de um sistema doutrinário.
Isso também pode ter sido necessário, mas sempre é secundário.
Eles (os apóstolos) são conclamados por Deus perante todos os demais seres hu­
manos como testemunhas de sua própria obra. Eles podem e devem confirmar
perante o mundo inteiro, e para que todo o mundo o ouça, que e como ele falou
e agiu cm Jesus Cristo e em seu povo.60

57 H. SCHLIER, op. eit., p. 179.


58 K. BARTH, Kirchliche Dogmatik, 1953, vol. IV, 1, p. 373.
59 W. KÜNNETH, op. eit., p. 79.
60 K. BARTH, op. eil., 1945, vol. I, 2, p. 913.

48
Eles são, portanto, testemunhas da obra de Jesus. Nesse contexto, porém, é
decisivo constatar que nem todas essas testemunhas se tornam apóstolos, mas
somente aquelas que são chamadas especialmente para isso e que recebem
uma tarefa específica. Sabemos que existiram muitas testemunhas do Ressurreto,
porém somente doze são escolhidos.
Por mais que se tenha que enfatizar a vocação e envio dos doze pelo
Ressurreto, não obstante é preciso constatar, por outro lado, que esse envio
partiu simultaneamente do Deus triúno. Também os apóstolos são enviados
pelo Pai, pois no ato do envio, Jesus, como o Ressurreto, representa o Pai e
agrega o envio dos apóstolos a sua própria missio. Em última análise, portanto,
não estamos diante de diversos envios. Trata-se sempre da mesma missio Dei
que acontece aqui (Mt 28.18s.; Jo 20.21)61.

6. O nome “apóstolo”

Portanto, os apóstolos acupam um lugar único e, conseqüentemente, bá­


sico na comunidade. Como testemunhas da vida e da ressurreição de Jesus,
eles são o elo de ligação entre o Senhor e sua comunidade que não o conhece
mais em sua presença corporal. Ainda havia outras testemunhas da vida terrena
de Jesus, pois Jesus teve muitos seguidores. Por isso também outras testemu­
nhas de Jesus podiam ser chamadas de apóstolos na comunidade originária,
por exemplo, discípulos que acompanhavam os apóstolos (At 14.4, 14). Igual­
mente, Tiago, o irmão do Senhor, é chamado apóstolo (G1 1.14). Em geral,
porém, os autores do Novo Testamento são muito cautelosos em denominar
alguém de “apóstolo”. Lucas inclusive mostra certa hesitação com vistas a Pau­
lo. Os fatos nos levam à conclusão de que a comunidade não se sentiu no
direito de chamar seus enviados de apóstolos e que igualmente ninguém po­
dia autoconceder-se esse título. Ninguém tinha direito ao título. Quando os
discípulos discutem entre si o direito de poder governar com Jesus, são repre­
endidos pelo próprio Jesus em suas pretensões (Mc 9.38ss.). Alguém pode
realizar feitos em nome de Jesus, portanto fazer o que Jesus ordenou aos após­
tolos, sem, no entanto, ter o direito ao título de apóstolo (Lc 9.49ss.).
Para ser apóstolo é preciso ser chamado e comissionado pessoalmente pelo
Senhor Jesus. Isso se evidencia sobretudo na defesa do apóstolo Paulo de seu
apostolado. Ele faz questão absoluta de ser equiparado aos demais apóstolos.
Não está em discussão o reconhecimento de sua pessoa, mas de seu trabalho.
Por isso Paulo fornece as provas de ter recebido uma ordem especial para o
apostolado entre os gentios. Esse é o serviço para o qual foi chamado e separado
desde o ventre materno (Rm 1.1; G1 1.15). Ele está convicto de ter recebido seu
ministério do Ressurreto, pois ele próprio o viu. Por isso ele é testemunha da

61 G. STÀHLIN, op. cit., pp. 97ss.

49
ressurreição, e tem consciência de que isso é um fato incrível e incompreensível
(1 Co 15.8ss.). Portanto, recorre à mesma fundamentação e aos mesmos creden­
ciais para seu ministério que os demais apóstolos, e estes o reconheceram, ainda
que hesitantes. No entanto, rejeita a fundamentação com a qual argumentariam
todos os sucessores - a fundamentação entusiasta (1 Co 14.1ss.). Ele justamente
não apela a visões e experiências (2 Co 12.1ss.). Por mais importantes que estas
sejam para ele, elas não lhe dão a garantia do comissionamento. Decisivo para
ele é o fato de o Ressurreto lhe ter aparecido e de ter agido nele através de
Ananias e da comunidade (At 9.1ss.; 22.3-16; 26.9-18). Também ele viu o
Ressurreto (1 Co 9.1). Aos colaboradores de Paulo, a um Timóteo ou a um
Apoio, por exemplo, não é concedido o título de apóstolo.
O problema com que nos deparamos aqui é analisado sobretudo por
Fridrichsen62. Com base nessas constatações e em G1 2.7, Fridrichsen crê po­
der afirmar que, em última análise, somente teriam existido dois apóstolos:
Pedro para os circuncisos, Paulo para os incircuncisos. Cada um deles teria
estado cercado de um grupo de colaboradores, sobre os quais exercia autorida­
de em virtude de sua vocação especial. Tiago, por sua vez, teria sido o líder da
Igreja judaica. Pedro teria proclamado a ressurreição como cumprimento da
esperança messiânica dos judeus, enquanto que Paulo teria anunciado a Jesus
como Senhor do mundo com base na ressurreição. O serviço dos doze se teria
encerrado com o primeiro envio. Depois da ressurreição eles não eram mais
apóstolos. Dessa maneira o apostolado da Igreja se teria desenvolvido sob Pedro
e Paulo. Em conseqüência disso, Pedro se teria sentido responsável pela propa­
gação do evangelho entre os judeus, embora não se tivessse limitado a eles,
enquanto que Paulo, por sua vez, pela missão entre os gentios, embora sempre
tomasse os judeus por ponto de partida. Ao lado deles, teriam existido nume­
rosos outros trabalhos missionários. Portanto, somente duas pessoas puderam
aspirar ao ministério apostólico, enquanto que o serviço desse ministério, o
apostolado, teria sido executado por muitos. No entanto, somente os dois após­
tolos teriam tido autoridade final. Podemos deixar em aberto a questão se
Fridrichsen compreendeu corretamente o apostolado. O que nos interessa,
porém, é a última afirmação: que o serviço do ministério pôde ser exercido
também por outros.

7. M inistério apostólico e com unidade

Embora Paulo tenha recebido a autoridade para o ministério do Ressurre­


to, de forma alguma questiona o direito dos profetas e mestres de Antioquia de
enviá-lo. Portanto, ele se submete aos líderes da comunidade local, que agem em
nome e por instrução do Espírito Santo. Esse fato não se evidencia desse modo
nos outros apóstolos. Também entre os outros não encontramos o grande nú­
mero de colaboradores que Paulo reúne em torno de si e que trabalham nas co-

62 A. FRIDRICHSEN, op. cit.

50
munidades ou entre os gentios sob sua autoridade. Parece que os demais apósto­
los eram, em geral, trabalhadores individuais, que escolhiam sua tarefa, se é que
se punham à disposição do serviço missionário. O Livro de Atos apenas revela
que sua grande preocupação era a de estabelecer, por um lado, a conexão com o
povo de Deus do Antigo Testamento e, por outro lado, com o novo povo de
Deus, cor por ifiçado na comunidade primitiva em Jerusalém. Paulo, porém, não
se sente responsável apenas perante os demais apóstolos e perante a comunida­
de primitiva. No mínimo à comunidade de Antioquia concede o direito de ser
informada sobre sua atividade. Com isso já se evidencia com clareza a posição
que o missionário passou a ocupar mais tarde na Igreja. Ele atua em nome da co­
munidade e essa é co-responsável por seu trabalho. No caso de Paulo, portanto,
existem os dois elementos: a autoridade apostólica e a co-responsabilidade da co­
munidade. Isso mostra também o fato de ele, como único dentre os apóstolos
que é comissionado pela comunidade, ter o direito de intitular-se apóstolo (2 Co
8.23; Fp 2.25; At 13.1-3). Portanto, a comunidade tinha o direito de transmitir o
serviço dos apóstolos a outros, mas não tinha a autoridade de conceder a al­
guém o título de apóstolo. Por isso o ministério apóstolico não era um ministé­
rio da comunidade, mas único e básico. Por isso os apóstolos responsáveis pela
ordem da comunidade não nomearam sucesssores, mas criaram um novo minis­
tério para a administração da comunidade (At 14.23; 20.17ss.). Entregaram a
liderança da comunidade, mas não nomearam apóstolos, e, sim, bispos. Por isso
a autoridade dos bispos jamais pode ser comparada à autoridade dos apóstolos.
Assim, o ministério dos apóstolos é considerado único na Igreja. Eles
têm o serviço e a tarefa de fundar a Igreja e eles mesmos se tornam o funda­
mento da construção, no qual todo trabalho posterior deve fundamentar-se (1
Co 3.9ss.; 12.38s.ss.). O começo sempre é decisivo. Os pósteros somente podem
construir de acordo com o fundamento colocado, ou então têm que derrubar
e destruir. Os apóstolos colocam o alicerce porque são testemunhas diretas de
Jesus e porque podem agir de acordo com as instruções do próprio Jesus. Isso
confere a seu trabalho e a sua proclamação o caráter de revelação. Os bispos
não podem ter essa pretensão. “Anciãos e bispos são somente vigilantes, cuja
tarefa é vigiar para que de fato se construa somente sobre o fundamento dos
apóstolos; eles próprios não são fundamentos.”63
Com isso surge a pergunta se existe um ministério missionário na Igreja.
Na resposta a esta pergunta, poderíamos reportar-nos aos evangelistas, que já
existiam na época dos apóstolos; ao mesmo tempo, porém, deveríamos per­
guntar imediatamente como esse ministério está ancorado. O fato é que a
Igreja fez missão em todos os tempos e se propagou. Com isso se constata, em
todo caso, que a missão não depende da transmissão do ministério apostólico,
mas da atitude missionária que o serviço apóstolico suscitou, o qual foi trans­
mitido à Igreja pelos apóstolos. Através dele, através do apostolé, do apostolado,
a Igreja está conclamada a levar, nesse ínterim, a salvação em Jesus Cristo a
todas as pessoas. Nessa tarefa estão resumidos todos os serviços da Igreja e

63 O. CUI.I.MANN, Petrus, 1952, p. 247.

51
nela recebem seu sentido último. Isso também seria verdade, ainda que não
conhecêssemos uma ordem missionária expressa.

8. Com unidade e envio, o apostolado

Tanto a existência do reino de Deus quanto a missio Dei comprovam que


Deus quer ser o Deus dos seres humanos e que quer agir com eles em sua
misericórdia. Por isso todas as obras salvíficas de Deus foram realizadas por
causa dos seres humanos e destinadas a eles. O relato sobre elas é o evangelho,
que deve ser pregado a todas as pessoas. Visto que no juízo a vida e bem-
aventurança das pessoas dependem da fé nas obras salvíficas de Deus, a Igreja
tem a incumbência de chamar as pessoas ao arrependimento, no período en­
tre a consumação da salvação e o juízo, onde a salvação se revelará como a
redenção, e transmitir a fé salvífica. Ela deve fazer isso até o fim do tempo e
até o fim do mundo. Isso faz da Igreja uma Igreja migrante, que sempre está a
caminho das pessoas que ainda não conhecem a salvação. Seu serviço é uma
peregrinação de povo a povo, de continente a continente, e através desse servi­
ço ela inicia o tempo da salvação para os povos. “Por isso o evento que começa
com a peregrinação e a proclamação já não é mais um evento histórico, mas
leva diretamente à consumação, e isso a partir da autoridade escatológica da­
quele que agora se tornou o Juiz e Soberano.”6,1
Pela ordem missionária o Senhor exaltado transmite o envio à Igreja e
faz dela a mensageira para o mundo dos povos. No contexto da missio divina,
ela é o instrumento da misericórdia de Deus. Ele lhe transmite a função apos­
tólica. Portanto, ele transmite o serviço do ministério apostólico, que cm seu
conteúdo está vinculado ao que os apóstolos realizaram e proclamaram. Para
descrever essa atividade da Igreja no testemunhar do que Deus fez pelas pes­
soas em seu reino e o que está por fazer, sobretudo os teólogos holandeses
cunharam o termo “apostolado”®. Primeiramente tentaremos constatar o que
ele significa, e depois iremos esclarecer sua importância para o serviço da
Igreja e trabalhar o termo com base nesses conhecimentos.
Iremos ater-nos a Hoekendijk em seu livro Kerk en Volk. Ele resume os
dois indicativos do cumprimento messiânico (apocalíptico e histórico-salvífico)
de modo a encontrar no envio do Espírito o indicativo do apostolado. De
acordo com ele, o dom do Espírito é a premissa para a execução da missão
entre os gentios. Essa é a expressão da intenção divina, a possibilidade dada
por ele de transformar em realidade a promessa da conversão dos povos. Ela se
realiza no último tempo, portanto no tempo entre a ascensão e a volta de
Cristo, sendo, por isso, agir escatológico de Deus, com o qual ele executa seu645

64 E. LOHMEYER, op. cit., p. 41.


65 Uma bibliografia detalhada enconlra-se em A. A. van RULER, Theologie des Apostolats,
Evangeltícke Missionszeitschrift, 1954, pp. lss.

52
plano de salvação. Esses pontos de vista já elaborados estão implícitos também
no apostolado. De acordo com 2 Ts 2.6s., a missão seria a grande força retarda­
tária. Através dela, portanto, o mundo tem que ser preparado para a vinda de
Cristo e, conseqüentemente, para o juízo. A missão está inserida nesse alvo da
História. Ela tem uma tarefa de conformação da História implícita no apostolado.
Por isso se pode falar do apostolado somente durante o tempo intermediário.
Por ocasião dos envios anteriores, a salvação ainda não estava providenciada.
Agora, porém, ela existe, e por isso o envio tem caráter e incumbência univer­
sal, que desemboca no alvo de toda História e, simultaneamente, na consuma­
ção do reino. Por isso os apóstolos são mensageiros do tempo final (Is 49.8s.;
cf. 2 Co 6.1s.). O apostolado gentílico do apóstolo Paulo, quanto ao conteúdo
igual ao apostolado para os judeus, está inteiramente determinado de modo
escatológico. Por meio do dom do Espírito, o apostolado gentílico recebe sua
independência em relação aos envios anteriores (Mt 28.18ss.; Lc 24.47ss.; At
1.6ss.; Jo 20.21s.). Apostolado e Espírito sempre estão inter-relacionados, de
maneira que o primeiro não pode ser concebido sem o último. Isso é verdadei­
ro a ponto de Paulo falar do ministério do Espírito (Jo 20.21; 2 Co 3.6). O
Espírito introduz os apóstolos no plano de salvação de Deus, ele os incita ao
trabalho e lhe dá forma (At 16.6;1 Co 9.16). A condução do Espírito é tão forte
que toda a missão nada mais é do que uma marcha triunfal de Deus, na qual
Paulo marcha como um adversário vencido. Dessa maneira o apóstolo se torna
inteiramente um órgão de Deus em seu plano salvífico. Através dos apóstolos
e, portanto, através da missão, Cristo conduz o mundo ao encontro de sua
consumação. Num trabalho posterior, Hoekendijk resumiu e precisou mais
detalhadamente essa doutrina do apostolado:
No apostolado cumpre-se o evangelho (Rm 15.19; cf. Cl 1.2); ele é levado ao alvo,
trava-se o combate de Deus com o mundo para o mundo. Sujeito do apostolado
continua sendo “o apóstolo” Jesus (Hb 3.1); as “obras de Cristo” (Mt 11.2) têm
continuação nas “obras” apostólicas “do Senhor” (1 Co 15.58; 16.10). O espaço
do apostolado é o mundo; seu conteúdo é o estabelecimento dos sinais da salva­
ção do reino, do shalom; o apostolado se realiza no querigma (praesentatio
proclamadora do shalom), na koinonia (participado corporativa no shalom) e na
diakonia (demonstrado servidora do shalom).66

9. Teologia do apostolado

A partir desses princípios, a teologia missiológica da Holanda procura


desenvolver uma teologia do apostolado, na qual se mantém essencialmente o
lugar escatológico da missão e se designa a pregação do reino como a tarefa da
Igreja. No entanto, para não fazer da Igreja a única mediadora dessa mensa­
gem, preserva-se a predestinação, vendo-se nela a relação direta de Deus com o

66 J. C. HOEKENDIJK, Die Kirche im Missionsdenken, Evangelische Missionszeitschrift, 1952, p. 10.

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mundo e o agir de Deus sobre o mundo. O próprio Deus está em atividade
ainda hoje. O apostolado se torna a forma de expressão da Igreja, de maneira
que a missão se torna o limiar no qual o agir imediato de Deus passa a ser
mediato. Através de seus mensageiros Deus chama os que preparou para a
salvação por meio da predestinação. Nesse processo, apostolado e Espírito for­
mam uma unidade, sendo que o Espírito é considerado o poder que sempre
age entre os seres humanos.
As conseqüências que essa teologia tira desses enunciados para a com­
preensão do serviço da Igreja iremos retomar no lugar oportuno. No entanto,
quero intercalar já agora que se trata aqui de uma revolução na teologia. Os
próprios holandeses têm consciência disso. “Se, por exemplo, no lugar que
vinha sendo ocupado na sistemática pela Igreja agora se põe o reino, o aposto­
lado ou o Espírito, isso tem por conseqüência um terremoto cujas erupções
serão perceptíveis até na cristologia.”fi7Portanto, eles têm consciência dos peri­
gos que residem nessa compreensão dinâmica. Sabem que podem tornar-se
escatológicos, predestinacionistas de modo demasiadamente unilateral; eles
nos dizem que é preciso observar que o ser humano é capaz de agir, por exem­
plo, na confissão. Portanto, se deveria manter o elemento pneumatológico
tanto quanto o antropológico. Onde isso acontece, seria inclusive possível fun­
damentar a partir do apostolado o elemento étnico e o elemento confessional
na Igreja.
A missão, porém, enxerga mais do que a natureza, ela enxerga a História. Ela
enxerga mais do que a Igreja, também enxerga os povos. Ela enxerga mais do
que a cristologia, no mínimo também enxerga a pneumatologia. Ela conhece o
evangelho do reino, que não é de todo idêntico com o evangelho de Jesus Cris­
to. (Ele é o reino apenas cm determinada modalidade, na modalidade da
encarnação e da velação do reino.) Ela entende que o apóstolo tem um ministé­
rio, não na Igreja, mas no reino. Ela não enxerga somente a Jesus Cristo e sua
comunidade, mas vê para além e através dela: o próprio Deus e seu mundo.6768
Nessas frases podemos perceber que a teologia do apostolado ainda está em
fase de construção e que ainda se está em busca de clareza sobre as relações
com o oposto de cada um dos conceitos.
Diante do que foi dito, façamos, antes de mais nada, um resumo do que
elaboramos até agora. O envio não é um fato apenas relacionado com o tempo
final, mas está fundamentado no agir do triúno Deus em sua relacionalidade
com o mundo; no entanto, ele recebe seu lugar escatológico e, simultaneamen­
te, sua urgência pela vinda do reino em Jesus Cristo. Ele também não está
relacionado apenas com o dom do Espírito Santo. Podemos constatar da mes­
ma forma que ele se baseia na consumação dos fatos salvíficos na ressurreição.
Pelo envio do Espírito, porém, ele recebe sua força especial, sua autoridade, e
por meio dele é inserido na missio Dei. A ordem do envio está objetivamente
estabelecida na revelação e não depende da experiência do Espírito. Por meio

67 A. A. van RULER, op. cit., p. 3.


68 ID., ibid., p. 5.

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dela a Igreja recebe sua direção, que, aliás, ela não pode manter sem o Espíri­
to. Apostolado e Espírito Santo, portanto, só podem estar inter-relacionados
com vistas à execução do envio, de maneira que a Igreja é preservada da estag­
nação do status quo eclesiástico. E o Espírito que constantemente mantém viva
a comisssão da Igreja. Ele chama as pessoas ao serviço do apostolado e é para
elas o equipamento para esse serviço. O dom se manifesta onde a pessoa obe­
dece à ordem missionária. Como equipamento para o serviço, como participa­
ção na intenção de Deus, o Espírito Santo dá a capacitação para o apostolado e
congrega na terra, através dos mensageiros, a comunidade que testemunha
seu Senhor até que ele venha. Pela ordem do Senhor glorificado e pela colabo­
ração do Espírito Santo a Igreja adquire seu caráter apostólico, tornando-se
uma grandeza que atua tanto por sua existência quanto por seu envio especial.

10. O que é “apostólico”?

Karl Barth o explica assim: “‘Apostólico’ significa, por um lado: (a Igreja)


existe através da obra e da palavra continuadas dos apóstolos, e, por outro: ela
existe ao fazer ela própria o que os apóstolos fizeram e ainda fazem em virtude
da natureza de sua obra.”69 Neste ponto começa nossa pergunta. Se os irmãos
holandeses entendem o apostolado como a obra continuada dos apóstolos,
que somente pode ser obra do Espírito Santo, então seu ensinamento não tem
nada de novo. Neste caso ele nada mais expressa do que aquilo que Lutero
ensinou a respeito do sacerdócio geral de todos os crentes.
Desde o início do mundo foi crença dos pais, dos profetas e dc todos os santos
que somente podemos ter remissão dos pecados por causa dc Cristo por meio
da fé. Mais tarde, essa também foi a doutrina c pregação de Cristo e dos apósto­
los, que eles receberam a ordem de levar a todo o mundo e de divulgá-la no
mundo inteiro. Ainda hoje e até o fim esta é c será a compreensão e atitude
unânime de toda a Igreja Cristã.70
Aqui a apostolicidade da Igreja consiste em sua fé nas obras salvíficas e em sua
atitude testemunhadora, não importando onde isso acontece, em casa ou fora.
Isso então também não difere muito do que G. Warneck expressa à sua maneira:
Na vida cristã havia um impulso misssionário natural, ou um impulso do Espíri­
to, que impulsionou discípulos simples do tempo cristão primitivo à divulgação
da fé cristã. Esse impulso não procedia da obediência legalista à ordem missionária
determinada, mas da nova vida espiritual que fez deles testemunhas de Cristo
com uma necessidade imanente.71

69 K. BARTII, op. cit., 1942, vol. 11,2, p. 477.


70 WA 21,219.
71 G. WARNECK, Evangelische MissionsUhre, 1892, vol. I, p. 126.

55
Se, todavia, entendemos o apostolado como se os mensageiros ainda hoje
tivesssem todos os dons e todas as funções dos apóstolos, isso é inaceitável em
virtude do que foi dito acima. Visto que no que se segue nos depararemos
reiteradas vezes com a doutrina do apostolado, haveremos de perguntar se
realmente podemos aplicar o termo “apostólico” à Igreja. O Credo Niceno usa
o termo “apostólico” para expressar que a Igreja se baseia no fundamento dos
apóstolos e dos profetas e que por isso ela é uma Igreja apostólica, e que ela o
pode ser somente na medida em que em sua tradição ela se fundamenta nos
apóstolos. Se, no entanto, empregarmos o conceito de outra maneira, é preci­
so analisar primeiro se isso pode ser feito de modo legítimo. Até agora os
teólogos holandeses nos ficaram devendo essa prova.

11. A prem issa do apostolado

Visto que o ministério apostólico é único, queremos perguntar primeiro


que condições devem estar preenchidas para a execução da ordem missionária,
para que o Espírito Santo possa testemunhar aos não-cristãos a mensagem do
evangelho através de testemunhas e mensageiros, e assim surgir o apostolado
na Igreja. Em geral, a resposta surge um tanto precipitada: a Igreja teria a
missão de exercer esse serviço de testemunho. Quanto a isso, não há dúvida.
No entanto, surge imediatamente a próxima pergunta: qual a razão por que a
Igreja tem tanta dificuldade de entender essa missão, e por que sente tão pou­
ca autoridade para executá-la? Na realidade, porém, no decurso da História as
coisas sempre correram de tal maneira que Deus teve que arrancar o serviço
missionário da Igreja à força. Como se explica que também em nossa teologia
transparece tão pouco do testemunho, da autoridade e instrução? Não seria
porque a Igreja e sua teologia reconhecem muito pouco o alvo do evangelho,
razão pela qual a Igreja também não possui uma orientação uniforme em seu
trabalho e sabe muito pouco a respeito das pressuposições que levam ao servi­
ço do testemunho e, conseqüentementc, ao apostolado, portanto ao serviço
dos apóstolos? Acaso não estamos exaurindo nossas forças na tentativa de
pesquisar os fundamentos do evangelho, ordenar sistematicamente nossos co­
nhecimentos, dando-nos por satisfeitos com saber, em vez de elaborarmos a
relação pessoal do Senhor com os seus e destacarmos o serviço destes?
Somente pode tornar-se testemunha aquele que preenche as condições
que estavam preenchidas no caso dos apóstolos. Eles foram tirados do círculo
de discípulos, portanto de um grupo de pessoas que viviam na comunhão com
o Senhor e que tinham parte no reino. Todos esses discípulos tinham a capaci­
dade e a possibilidade para o serviço apostólico, embora o Senhor tivesse
escolhido somente poucos dentre eles para o ministério apostólico. No entan­
to, o discipulado, o seguimento de Jesus era o pré-requisito para a vocação e o
comissionamento deles. Esse pressuposto para o serviço apostólico permane­
ceu. Somente pode ser testemunha quem tem uma relação de discípulo com
Jesus. Posto isso, o impulso para o testemunho e, conseqüentemente, o serviço

56
apóstolico surgem por si. Portanto, é condição para o apostolado, para o servi­
ço missionário o fato de o Senhor criar para si uma comunidade de crentes.
Esta sempre existe antes da missão da Igreja, é ela que assume a atitude apostó­
lica. A missão, porém, não é um evento que procede exclusivamente do Espíri­
to. Ela tem uma base terrena no grupo de discípulos que o Senhor congrega
ainda hoje e que se torna portador da missão. Por isso uma Igreja só pode
fazer missão na medida em que existe nela esse discipulado. É preciso ser
discípulo antes de poder tornar-se testemunha de Jesus.

12. O discipulado

Com o discipulado de Jesus apareceu algo essencialmente novo na terra.


Ele também é algo novo na história salvífica, pois discipulado só existe desde e
por meio de Jesus. O que se denominava discipulado no ambiente helénico não
corresponde ao que Jesus trouxe. Lá, o discípulo tinha a livre escolha do mestre,
de honrá-lo, imitá-lo e, se possível, superá-lo. Algo semelhante acontecia no
rabinismo. O que se poderia designar de discípulo no mundo das religiões não
merece esse nome, porque inclusive o santo mais piedoso sempre procura alcan­
çar um ideal de redenção próprio. No Antigo Testamento não existe discipulado.
Isso porque este sempre está associado ao seguimento. Na Antiga Aliança, po­
rém, Deus não podia colocar-se como exemplo. Também lá ele não chamou
indivíduos, mas um povo, e os indivíduos somente na medida em que pertenci­
am a esse povo. Esse povo deveria ser simultaneamente sua comunidade, o santo
povo de Deus. O povo inteiro deveria cumprir a lei e revelar-se perante o mundo
como pertencente a Deus. Por meio desse modo de vida vinculado à vontade de
Deus e seus feitos, ele deveria transmitir aos membros individuais do povo o que
tinha recebido de Deus, e dessa maneira também ao mundo a seu redor. No
Novo Testamento está rompido o princípio de que comunhão por nascimento
significa, simultaneamente, comunhão salvífica. Jesus chama as pessoas a seu
seguimento, e desse modo surge a comunidade dos eleitos. Foi ele que primeiro
deu o conteúdo ao discipulado; de agora cm diante não existia mais discipulado
sem seguimento pessoal. Pelo fato de ter chamado os discípulos a seu seguimen­
to, o Senhor fez deles o centro vital desse discipulado e os transformou em uma
comunhão permeada por ele.
O elemento novo nesse discipulado consiste no fato de se ser chamado
para ele somente pelo próprio Jesus. A princípio, esse chamado era feito por
ele mesmo, posteriormente por seus apóstolos. A pregação do reino sempre é,
ao mesmo tempo, chamado ao seguimento e ao discipulado. A missio Dei outro
objetivo não tem que fazer discípulos. Essa afirmação vale também, em princí­
pio, para o serviço da Igreja, inclusive da Igreja nacional, pois toda Igreja se
torna, de alguma forma, Igreja nacional, a não ser que tivessse que renunciar
à participação de seus filhos na comunidade. Em qualquer Igreja é inevitável
que os que nasceram para dentro dela também sejam considerados membros
da mesma. No entanto, ninguém pode tornar-se discípulo pelo fato de os pais

57
se terem decidido por ele pelo Batismo de infantes. Este foi somente um pri­
meiro passo. Cada indivíduo é colocado diante da decisão pessoal, porque a
Igreja não deixa de enunciar o chamado e tenta levar a pessoa a um relaciona­
mento pessoal com o Senhor. No chamado a iniciativa sempre parte dos que
chamam. Não posso me tornar discípulo porque tenho vontade, mas porque
Deus me dirige a palavra. Onde nasce o desejo, ele sempre provém do fato de
a pessoa ter sido atingida pela palavra de Deus, ao que deve seguir-se a respos­
ta. No Novo Testamento os discípulos são chamados ao seguimento (Mc 1.17;
Mt 4.19; Mc 2.,14; 10.21; Jo 1.35s.). Em última análise isso também se aplica ao
grande grupo de seguidores de Jesus, que foram atingidos por sua pregação e
atraídos por seus feitos. Também eles não puderam integrar-se no discipulado
por iniciativa própria (Jo 15.16). Isso se evidencia de modo especial no caso da
cura do endemoninhado geraseno (Mc 5.18ss.) que Jesus manda para casa, ou
no caso dos três seguidores (Lc 9.57ss.) aos quais Jesus impõe condições tão
severas que acabam desistindo de segui-lo.
Quem se decide pelo discipulado deve antes ter rompido com seu pró­
prio ideal de vida, pois nele só vale a vida do Mestre, portanto, entrega irrestrita.
Por isso Jesus exige na admissão ao discipulado o rompimento de todas as
ligações anteriores. Os seguidores devem estar inteiramente a sua disposição e
não dar ouvidos a nenhuma outra voz. Isso se nos evidencia com clareza ainda
maior do que no caso dos três seguidores nas palavras que literalmente anu­
lam o quarto mandamento (Mt 10.37; Lc 14.26). Aqui todas as relações têm
que ceder, inclusive as mais veneráveis e que comprometem a piedade. O discí­
pulo deve pertencer irrestritam ente ao Senhor. Por isso o chamado ao
discipulado desfaz as relações anteriores das pessoas e elas passam a ser propri­
edade do Senhor. Jesus quer ser seu kyrios (Mt 24.45ss.; 25.14ss.; Lc 12.35ss.,
42ss.). Os discípulos são aceitos como servos e devem sujeitar-se a seu Senhor,
pois a essência do discipulado consiste no ouvir, cumprir e guardar sua palavra
(Jo 8.31). Como discípulos, são tão dependentes de seu Senhor que fora dele
sequer têm condições de existir. São determinados por ele em tudo e permeados
por seu ser. Sem ele, nada são; com ele e por meio dele, são tudo (Jo 15). Por
isso têm que cuidar para que nada os afaste do Senhor, que nada os coloque
em concorrência com Jesus, ainda que tenham que sofrer em conseqüência
dessa atitude e serem mal-entendidos e odiados pelas pessoas (Mt 10.17ss.).
Sua vida está tão intimamente ligada à do Mestre que pessoalmente não po­
dem trilhar outro caminho a não ser aquele no qual o Senhor lhes precedeu
(Jo 15.18ss.; 16.1 ss.). Isso não seria possível se também essa vida, que aos olhos
da pessoa comum parece injustificada e difícil, não fosse um dom de seu mes­
tre. Jesus lhes dá tudo que os capacita para o discipulado. Em sua comunhão,
transmite-lhes sua vida (Jo 14.4s.) e, conseqüentemente, seu poder. Ele lhes
restitui centuplicado tudo que abandonaram por sua causa, de maneira que
não sentem perda e se sentem ricamente compensados por ele. Assim podem
servir-lhe sem restrições (Mt 19.29).
Em virtude da morte de seu Senhor, esses discípulos passaram pela mes­
ma transformação que nos foi relatada a respeito dos apóstolos. A princípio,
também eles tiveram em mente como alvo terreno a reconstrução de Israel.

58
Somente pela ressurreição compreenderam o significado do apostolado (Jo
2.2 ls.; Lc 22.38). Também eles têm que novamente ser congregados pelo
Ressurreto, e assim, em virtude da ressurreição, surge a primeira comunidade
(Lc 24.36ss.;Jo 20.24ss.; Mt 28.17). Isso nos mostra que o ingresso no discipulado
não se resume a um rompimento com o meio ambiente, mas que se trata de
uma conversão do coração (Mt 19.28; Jo 3.5), de um renascimento para a nova
vida presenteada por Cristo, de maneira que a pessoa também se apossa interi­
ormente dos objetivos de Jesus com seu grupo de discípulos. Portanto, o
discipulado sempre exige o ser humano todo, e tem por alvo a nova pessoa.
Dentre esses discípulos o Senhor escolheu seus apóstolos e os enviou ao mun­
do para o serviço. Condição para o chamamento ao discipulado era, portanto,
o fato de alguém ser e permanecer discípulo. Nem todo discípulo é chamado
para ser apóstolo. Todo apóstolo, porém, era discípulo, e todo discípulo é tes­
temunha de seu Senhor, com o qual está comprometido inteiramente.

13. Discipulado e apostolado

Aqui surge a pergunta se o nome “discípulo” e o que acabamos de dizer


sobre o discipulado pode ser aplicado diretamente aos cristãos em geral e se
com isso estão dadas as condições para o apostolado. Na cristandade primitiva,
os cristãos eram denominados por diversas designações. Na maioria das vezes
fala-se de pessoas que abraçam a fé, que possuem o caminho, o que significa, de
pessoas que sabem da redenção e do andamento do reino de Deus. Com ambas
as designações se expressa que eles se encontram em contato pessoal com o
Senhor e receberam pessoalmente o que Jesus fez por eles. Em muitas passa­
gens, todavia, também os crentes são chamados de discípulos, enquanto que os
apóstolos também são chamados de “os onze”. Portanto, a designação “discípu­
los” também é aplicada, sem mais nem menos, aos cristãos que foram levados à
fé pela palavra dos apóstolos. Eles não se consideram discípulos dos apóstolos,
mas seguidores do Senhor anunciado pelos apóstolos (At 1.15; 6.1,7; 9.19; 11.26;
11.29; 13.52; 15.10; 16.1, etc.). Posteriormente essa designação também é aplica­
da aos cristãos, especialmente aos mártires72. Isso é muito significativo. Portan­
to, são chamados de discípulos também cristãos que não conheceram a Jesus
pessoalmente, que não possuem as características que são próprias dos apósto­
los. Portanto, também os apóstolos, as testemunhas, podem chamar pessoas ao
discipulado, e com isso vale igualmente para os cristãos o que foi exposto acima
sobre os discípulos. Os servos de Jesus estão em lugar do Senhor e agem em seu
nome, sendo, portanto, os mediadores do discipulado, pessoas que chamam ao
seguimento (1 Ts 1.6; 2.14; Fp 3.17).
Com efeito, esses discípulos não são apóstolos, mas devem e podem exer­
cer funções apostólicas. Por causa disso são chamados à colaboração e ao servi-

72 K. H. RENGSTORFF, art. mathetes, in: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, vol. IV.

59
ço de testemunha. De fato encontramos, já no tempo dos apóstolos, um gran­
de número de tais colaboradores, independentemente do fato de a comunida­
de testemunhar a morte e a ressurreição de Jesus por meio de sua própria
existência (1 Co 11.26; 15.3ss.). Cada um desses discípulos está equipado por
seu Senhor com os dons de que necessita para seu discipulado. Paulo fala dos
cristãos em termos indicativos tais que nos deixam pasmos. Portanto, eles pos­
suem os dons de que necessitam para seu serviço no mundo. Podem viver no
mundo somente de forma a se encontrarem no seguimento (Jo 14.13ss.). Tam­
bém eles receberam a ordem missionária e devem, por isso, ser colaboradores
do reino (Cl 4.11). E. Lohmeyer737475 analisa o conceito “discipulado” detalhada­
mente; ele transfere a reunião dos discípulos para a Galiléia, onde também
teria sido dada a ordem missionária; não em conexão com uma aparição pós-
pascoal, mas por um Senhor que revela aos discípulos a continuidade de seu
reino. Ele entende os discípulos como a continuação do povo de Deus do An­
tigo Testamento e compreende a existência deste em termos puramente esca-
lológicos.
Eles se compreendem como o povo de Deus dos dias derradeiros, como o verda­
deiro Israel, e por isso se abrem para a missão entre os povos, vivendo do santo
passado do povo de Israel e, por isso, entregues ao próximo e santo porvir com
o Senhor.74
Portanto, receberam a ordem missionária como discípulos, não como apósto­
los, e por isso todos os discípulos são conclamados à divulgação do reino.
“Portanto, ser discípulo significa tornar-se mensageiro para todos os povos;
eles não chegam a sê-lo por autoridade própria, e, sim, em seu nome e pelo
poder de seu reino.”75 Com isso Lohmeyer forneceu, sem querer, a fundamen­
tação do apostolado da Igreja e por isso constatamos, com razão, que cabe aos
discípulos cumprir funções apostólicas. Assim, o apostolado também faz parte
das características do verdadeiro discipulado. Quem se deixa engajar no servi­
ço da divulgação do evangelho, este é discípulo. Ele produz o fruto que seu
Senhor espera dele.
Para poderem prestar o serviço, o Senhor também equipa os discípulos
com o dom do Espírito Santo. Este dá testemunho de Jesus Cristo e, assim,
conduz à missão (At 9.17). Na perseguição, o Espírito enche os discípulos de
alegria (At 13.52) e também nessa situação lhes concede a coragem para fala­
rem com ânimo (At 4.31). O Espírito quer falar e atuar em lugar de Jesus. Em
virtude desse dom, um discípulo não pode fazer outra coisa do que também
divulgar a Palavra.

73 E. LOHMEYER, op. cit., pp. 22ss.


74 ID., ibid., p. 49.
75 Ibid., p. 38.

60
14. O serviço do discipulado

Por meio do Espírito, portanto, os discípulos se tornam testemunhas e


colaboradores do Senhor. Sua tarefa é fazer das pessoas às quais levam o evan­
gelho aquilo que eles próprios vieram a ser.
A princípio, isso é um enunciado bastante discutível. Sabemos que no
reino de Deus não existem cópias. Até agora tivemos o cuidado de não permi­
tir que a missão se transformasse em propaganda, pois é da natureza da propa­
ganda transformar as pessoas em nossa própria imagem. Isso, porém, se refere
somente à transmissão da tradição eclesiástica ou às características culturais da
cristandade, e não à verdadeira condição de discípulo. Toda pessoa tem o di­
reito de aproximar-se de Jesus de modo que não precise tornar-se primeiro
ocidental antes de poder compreendê-lo. Uma coisa, porém, é imprescindível:
tem que ser discípulo de Jesus; do contrário não poderá ser sua testemunha.
Portanto, nosso serviço visa proporcionar-lhe uma relação imediata com o
Senhor. “O objetivo último da mensagem de Cristo não consiste em transmitir
a doutrina de Jesus ou seus princípios morais, mas conduzir as pessoas a uma
relação com ele mesmo, portanto, levá-las à Fonte inesgotável.”76 Elas devem
ser discípulos do reino dos céus (Mt 13.52). Por isso não devemos cristianizar,
o que sempre significa integrar o público-alvo, em primeiro lugar, numa soci­
edade cultural, determinada pela tradição, mas devemos missionar, o que sig­
nifica levar as pessoas ao Senhor de maneira que sua vida seja determinada
por ele (At 14.21; Mt 28.19). Não queremos fazer cristãos, e, sim, discípulos. Se
isso acontecer, os discípulos se tornarão, por sua vez, testemunhas. Eles então
receberam a plenitude do que Cristo dá, e se vêem compelidos a levarem as
pessoas à salvação e a colocá-las sob as ordens de seu Senhor. Onde essa rela­
ção direta é substituída pela dependência do missionário, onde a missão é
determinada pelo modelo ocidental, aí não surgem discípulos que, com a dinâ­
mica da palavra, também se tornam testemunhas.
Nesse discipulado se fundamenta o apostolado da Igreja, nele o apostola­
do tem seu solo nativo. O discipulado é a comunhão mais íntima com o Se­
nhor, que se põe a serviço dele, atento a seu chamado, ele é a condição para o
serviço apostólico da Igreja. O discipulado não pode ser equiparado sem mais
nem menos à Igreja, porque em toda Igreja o número de meros simpatizantes
ainda é maior do que o dos infiéis no discipulado. Mas o discipulado está
presente na Igreja, e esta sempre será, ainda que muitas vezes de modo velado,
expressão do que elaboramos como características do discipulado. Mas a Igre­
ja também acolhe muitos hipócritas, e hoje ela está determinada, em sua antro­
pologia, muito mais pelo conceito racionalista do ser humano do que pela
Palavra. Por isso se pergunta se ela pode, sem mais nem menos, ser também
portadora do apostolado. Muitas coisas que o apostolado exige da pessoa são
rejeitadas hoje, não porque não se quisesse servir a Deus, mas porque se crê

76 K. HEIM, Leben aus Glauben, p. 69.

61
ter, como pessoa, direitos e pretensões especiais, pelos quais se deveria orien­
tar inclusive o apostolado. A rebeldia do ser humano se evidencia, desse modo,
na essência íntima da Igreja. Não obstante, continua tarefa da Igreja cumprir o
serviço apostólico, se ela quiser permanecer fiel a sua natureza e não abando­
nar seu lugar escatológico. E ela terá que cumprir essa tarefa com as pessoas
que se deixam chamar ao discipulado autêntico e que, por isso, também se
deixam engajar na divulgação do evangelho. E a preocupação da Igreja como
instituição terá que ser representar justamente aqueles que assumem esse ser­
viço. Portanto, a Igreja deve estabelecer constantemente certos limites dentro
de seus próprios domínios e orientar-se pela Igreja estabelecida pelo discipulado.
Por meio dessa tomada de consciência da natureza da Igreja, a ordem missionária
já não será mais uma tarefa especial para determinados círculos, e já não será
mais uma obrigação legalista para os indecisos, mas sua execução será expres­
são de vida que emana da fé e é determinada pelo agir de Deus na missio Dei.

15. Missão e Igreja

Surge agora a pergunta pela relação entre missão e Igreja. Nossa resposta
terá que ser dupla. Primeiramente, a própria Igreja é um produto do apostolado.
O envio que Deus efetuou por meio de Jesus Cristo e que continua atuante até
hoje através dos apóstolos, levou à formação da Igreja. Se Deus não tivesse envi­
ado seu Filho, não existiriam Igreja, nem apostolado, nem missão. A Igreja sur­
giu porque Jesus ordenou a proclamação de sua palavra através de seres huma­
nos e porque pessoas se deixaram chamar para fora do mundo pela mensagem
da redenção. Assim justamente a Igreja é a prova mais evidente de que o evange­
lho pertence também aos gentios. Portanto, não é nosso dever missionar porque
possuímos o evangelho, e, sim, possuímos o evangelho somente porque ele é
destinado aos gentios. Do contrário, nos arvoraríamos em senhores do evange­
lho e abusaríamos do ministério da reconciliação. Somos Igreja porque Deus
quis a missão gentílica. Visto, porém, que somos Igreja de gentios, também não
podemos ser outra coisa senão um membro da missio Dei, um instrumento no
agir de Deus, um sinal de que Deus está levando o mundo a sua consumação.
^Assim como Deus deu continuidade à obra de seu Filho por meio dos
apóstolos, assim levou avante a atividade destes por meio do fruto de sua obra,
e ainda continua até alcançar seu objetivo (Mt 24.14). Dessa maneira a missão
da Igreja é, simultaneamente, a missio Dei nos tempos de hoje, por esta encer­
rada e promovida (Mt 10.16; Lc 10.1; 9.2; Jo 17.18). Ela não é uma obra autô­
noma, de iniciativa própria, arbitrária da Igreja; ela também não se justifica
pelo contexto; missão é, antes, a obra fundamental de Deus, obra do próprio
Deus segundo seu início, sua natureza, sua tarefa. Também na missão da Igreja
ele continua sendo aquele que envia, orienta, determina. \
Também existiria missão se não tivéssemos a ordem missionária, pois
pela atuação do Espírito Santo Deus não concede a seus discípulos uma fé

62
quiescente, muda, contemplativa e usufruidora, mas será sempre uma fé que
inquieta o cristão por causa da salvação do outro, uma fé viva e atuante, que
arranca o cristão de sua edificação pessoal, transformando-o em pedra de cons­
trução e pedreiro. Por isso os apóstolos não podem deixar de falar (At 4.20).
Esse falar, porém, sempre é expressão da certeza de redenção e salvação (Rm
10.8ss.). Eles também falam por meio de suas vidas (2 Co 4.11; 5.15). Pela fé, os
discípulos sempre se encontram a serviço da reconciliação, de oferecer a salva­
ção aos seres humanos. A comunidade somente pode prestar esse serviço por­
que o Espírito Santo a capacita (2 Co 3.5s.). Ele lhe concede o impulso para o
testemunho e com isso a arranca constantemente do sossego. Por meio do
Espírito, a Igreja pode agir em lugar de Deus do modo como Deus agiu com
seu Filho. O primeiro exemplo disso é At 13.1-3. A Igreja agora executa a
missão e, através dela, a missio Dei se torna visível ao mundo. Nesse processo
Deus determina quem deverá enviar e quem deverá ser enviado. Esse envio é
descrito em At 14.26: "... de onde haviam sido recomendados à graça de Deus
para a obra que já haviam cumprido”. O sentido último do envio consiste no
fato de os mensageiros estarem sendo colocados à disposição de Deus para o
serviço entre os gentios. Com isso não está sendo dito apenas que os missioná­
rios encontravam sua ajuda, alegria e consolo em Deus, mas que Deus podia
dispor inteiramente deles. A vida dos missionários estava colocada inteiramen­
te nas mãos de Deus, de onde não havia mais retorno. Do mesmo modo como
os discípulos se põem a serviço do Senhor com tudo que são, assim podem
agora ser recomendados a ele. Tudo isso se evidencia na vida do apóstolo
Paulo. Para ele não existia evasiva; ele tinha que engrandecer a Jesus Cristo em
seu corpo, “quer pela vida, quer pela morte” (Fp 1.20). Nem a comunidade
podia chamar esses mensageiros de volta. Tinha que deixá-los entregues à gra­
ça de Deus. O quanto era séria essa concepção percebe-se no fato de nãe co­
nhecermos as circunstâncias exatas da morte de quase nenhum dos apóstolos
e de a vida da maioria se perder na obscuridade. Eles se encontravam na graça
de Deus, e isso bastava.
Hoje o próprio ser humano se sente responsável por sua vida, e por isso
não admite mais que o Senhor da vida e do serviço a use até a morte. Já não é
mais decisiva a vontade de Deus, nem o objetivo do envio, nem o andamento
do reino de Deus, mas o bem-estar dos mensageiros, a segurança da vida, a
cobertura financeira. Se esses fatores deixam de existir, a missão é interrompi­
da, como se o indivíduo ou a comunidade pudesse dispor da missio Dei. Hoje,
numa situação que exige empenho máximo, é preciso perguntar se, sob esses
princípios ditados pela imagem do ser humano, Deus ainda pode executar sua
missio.

16. Igreja e apostolado

Aqui é preciso perguntar mais uma vez qual o lugar que a Igreja ocupa
nessa concepção de apostolado. A resposta de Hoekendijk é radical:

63
Onde se encontra a Igreja nesse contexto? Certamente não no ponto de partida,
nem no ponto dc chegada. Exagerando, se deve dizer: ela não se encontra em
parte alguma; ela se processa, acontece, vem a ser enquanto o evangelho do
reino é anunciado ao mundo. Igreja só existe in actu Christi, isto é, in actu apostoli.
Por isso ela não tem um lugar fixo, mas é uma paroikia, um assentamento que
jamais se torna pátria; a caminho rumo aos confins do mundo, em direção ao
fim dos tempos. “Assentada” sobre o fundamento dos apóstolos e profetas a
Igreja permanece somente se ela vai com os apóstolos a anunciar o reino (...)
Testemunhar o reino ao mundo, eis seu opus proprium, que, todavia, não é mais
sua obra, mas ergon kyriou. Na medida em que a Igreja tem parte nessa obra - no
apostolado - ela é “Igreja”.'7
Por mais que possamos subscrever a última frase, sentimos, não obstante, que
aqui não está sendo questionado apenas, a partir de um conceito, todo o pen­
samento eclesiástico desenvolvido até hoje, mas que também a Igreja se dissol­
ve num evento, numa grandeza incompreensível, que se dilui constantemente
no apostolado. Aqui se rompe com a visibilidade da Igreja, pela qual, por exem­
plo, Bonhoeffer778 se empenha tão apaixonadamente. Aqui também se abando­
nou o que acima descrevemos como discipulado, o que se manifesta não so­
mente nessa comunhão mas também no envio. Pode-se descrever a natureza
da Igreja dessa maneira?
Sem dúvida, também conforme a Confissão de Augsburgo, art. VII, a Igre­
ja não é instituição; mas para que se possa pregar corretamente a Palavra e
administrar os sacramentos de acordo com sua instituição, tem que se apresen­
tar uma comunidade, tem que existir um ministério. Acaso a Igreja não é muito
mais que apostolado? Inclusive se a reduzirmos aos verdadeiros crentes, se apli­
carmos a ela rigorosamente o conceito de discipulado, ela não é apenas envio e
querigma. É certo que aqui o Senhor pode ser tudo em seu agir. Onde, porém,
está o Senhor, também surge uma comunidade visível, e essa vive79 não somente
no anunciar, mas sobretudo no ouvir, que é premissa para o testemunhar. Ela
também vive no amor, que se torna efetivo nela por meio de Jesus Cristo justa­
mente pelo ouvir, e ela vive na adoração e no louvor. Vive no sacramento e,
assim, na comunhão com seu Senhor glorificado. Também nessas realidades se
realiza igualmente a Igreja, porque com elas está associado o testemunho.
Dois homens se opuseram a essa superficialização do conceito de Igreja e
devem ser mencionados neste contexto: Johannes Blauw demonstra que a essên­
cia da Igreja consiste na comunhão com Cristo e que kerygma, diakonia e leiturgia
devem ser vistos sempre em inter-relação e condicionar-se mutuamente.
Com que facilidade a missão perde o elo com as demais manifestações de vida
da Igreja! Naturalmente é possível dizer que a Igreja tem somente uma função: a
missão ou o apostolado, mas, ao se dizer isso, sempre se tem consciência de que
não é isso e não pode ser isso. Que todas as manifestações da Igreja devem estar

77 J. C. IIOEKENDIJK, Die Kirche im Missionsdenken, pp. 10s.


78 D. BONHOEFFER, Discipulado, São Leopoldo, Sinodal, 3. ed., 1989, p. 152.
79 W. EI.ERT, Der christliche Glaube, 1955, p. 419.

64
voltadas para o martyrion, isso é outro assunto (...) Com a mesma razão, porem,
se pode dizer que tudo na Igreja deve visar ao louvor de Deus, ao culto, inclusive
a missão.80
Ao lado disso, é sobretudo van Ruler que reconhece as fraquezas da dou­
trina do apostolado, que sente sua discrepância da compreensão correta de
Igreja e que tenta repensar todo esse tema. “A essência do apostolado da Igreja
não consiste no fato de ela ir mundo afora, dando nele seu testemunho, e de
ocupar um espaço no mundo, e, sim, no fato de ser usada. Ela é instrumento.”
Aqui, portanto, a Igreja é contraposta ao apostolado como grandeza determi­
nada por Deus. Por sua vez, o apostolado é definido mais precisamente a partir
da predestinação: ele não é uma qualidade, isso seria uma redução eclesiológica.
Ele é mais que uma incumbência, pois do contrário a Igreja correria o risco do
ativismo. Também é mais que testem unho, senão a Igreja sucumbe à
humanização. “O apostolado é a essência da Igreja”, ela é instrumento de Deus8182.
Por mais alvissareiras que sejam essas delimitações, elas ainda não acer­
tam o cerne da questão. Se a essência da Igreja realmente consiste em sua
destinação ou em seu ser, portanto no fato de Jesus Cristo, como cabeça da
Igreja, ter feito dela seu corpo, lhe conceder sua comunhão, unir os membros
a si, permeando-a com Palavra e sacramento para fazer dela uma Igreja, dan­
do-lhe uma destinação como grandeza formada e determinada por ele e que
tem todas as características do discipulado, então se desenvolve a partir dos
dons que ele lhe concedeu e a partir dessa vida em Cristo o apostolado, que,
sem dúvida, não tem outro objetivo do que levar a Igreja ao serviço para a
salvação da humanidade.
Para isso ela foi eleita para fora do mundo, a fim de prestar ao mundo o serviço
de que ele inais necessita e que consiste justamente em lhe dar testemunho de
Jesus Cristo e de chamá-lo à fé nele. Ela teria esquecido c posto a perder sua
eleição se quisesse viver para si mesma e fosse abandonar esse serviço, se não
fosse mediadora de fato.
Além disso, nossas objeções são confirmadas também a partir de outro
raciocínio, que é muito importante tanto para os irmãos holandeses quanto
para K. Barth, mas que também ali é concebido inteiramente a partir da elei­
ção. Trata-se da idéia de povo de Deus. Também neste caso queremos primei­
ramente perguntar o que a Bíblia diz a respeito.

80 J. BLAUW, Mission lebt von der Kirche, in: Die Botschaft vonJesus Christus in einer nichtchristlichen
Welt, Studentenbund für Mission, 1952, p. 16.
81 A. A. van RULER, op. cit., p. 7.
82 K. BARTH, op. cit., 1942, vol. 11,2, p. 217.

65
17. O novo povo de Deus

Não existe missão sem envio bem concreto. Ela não acontece numa atua­
ção dinâmica da comunidade, mas na transmissão concreta do serviço e em
instrução. Por um lado, esse envio já está estabelecido no sacerdócio de todos os
crentes juntamente com o Batismo, mas se torna um envio real ao mundo onde
mensageiros são chamados e enviados. A comunidade não teria o direito para
isso se não fosse ela própria, conforme constatado acima, um membro da missio
Dei. Ora, através dela acontece à Igreja a mesma coisa que já constatamos na
introdução com vistas ao próprio Deus. Assim como Deus se confronta com o
mundo pecador em sua missio e, não obstante, estabelece seu relacionamento
com o mundo através do envio, ele agora concede a sua comunidade a mesma
posição. A Igreja sempre estaria no perigo de conformar-se com o mundo, de
ser absorvida pelo mundo ou de estabelecer a unidade com o povo. O perigo é
tão grande porque as religiões entendem a comunhão religiosa como comu­
nhão cultural e nacional, e porque todos os estados querem garantir a unidade
do povo pela unidade da religião. Esse perigo sempre existe na Igreja porque
ela, necessariamente, também se torna comunhão por nascimento.
Ela pode defender-se contra esse perigo se, por um lado, pelo envio se
souber colocada inteiramente ao lado de Deus e, por outro, entender-se como
inteiramente enviada ao mundo. Ela está colocada ao lado de Deus porque
seus membros foram tirados do mundo por Jesus Cristo pelo amor e unidos na
comunidade para serem o povo de Deus. A esse novo povo de Deus se aplicam
todas as qualidades que o povo de Deus do Antigo Testamento possuía (1 Pe
2.9). Através delas a comunidade se distingue do mundo. Em sua vida e atitude
interior ela é diferente do mundo; não pertence a si mesma, nem ao mundo, e,
sim, a Deus. Nela se revela a vida a partir de Cristo. Por isso ela é uma carta de
Cristo ao mundo (2 Co 3.3), visível e legível para o mundo. Em meio ao mundo
das trevas, ela é a luz, na corrupção ela é o sal. Mas também isso ela não é a
partir de si mesma, mas de Deus. Não o é para si mesma, mas para o mundo.
Por isso só se pode falar da essência do mundo partindo de Deus e definindo
a partir do vis-à-vis o que é comunidade. Assim, somente a partir da missão
pode revelar-se a verdadeira essência da comunidade.
Com isso estamos afirmando que a comunidade tem que atuar no mun­
do sobretudo através de sua presença. Ou ela é uma comunidade do testemu­
nho, do serviço, do louvor, ou ela não é comunidade de Jesus Cristo.
É ela que, com seu conhecimento e experiência da graça de Deus, responde
vicariamente pelo resto do mundo que ainda não tem parte nos testemunhos do
Espírito Santo, e que, então, nessa sua singularidade, está investida, por sua vez,
no serviço da reconciliação, para testemunho da graça de Deus diante desse
resto do mundo.83

83 ID., ibid., 1953, vol. IV,1, p. 166.

66
A co n g re g a ç ã o c ren o v ação d a Ig re ja n ã o são fin s e m si, m as serv em ao serv iço
d a Ig reja n o m u n d o , d a Ig re ja q u e é a luz d o m u n d o e o sal d a te rra , n ã o p ela
fo rça d o s seres h u m a n o s, m as p e lo p o d e r d e C risto, p e la d in â m ic a d o re in o d e
D eus q u e m ove o m u n d o , o re in o d e D eu s q u e veio, vem c v irá ao m u n d o .84

Visto que toda a comunidade deve transmitir a Palavra e ser um ponto de


atração para todos através de sua palavra, de pessoa para pessoa, por meio dos
relacionamentos que cada membro tem individualmente com seus semelhan­
tes, Cristo também não lhe ordenou um ministério missionário especial. No
entanto, legou-lhe um ministério que deve conduzi-la ao serviço missionário, o
ministerium verbi divini em sua plenitude. Neste está inserido também o teste­
munho missionário. Por isso, o que está dito à Igreja sobre seu ministério
pastoral pode ser aplicado, em primeiro lugar, ao serviço missionário da Igreja
(2 Co 3-5). Portanto, o ministério pastoral, em todas as suas ramificações, não
pode ter outro objetivo na comunidade do que levá-la a influenciar o mundo e
capacitá-la para o serviço missionário. Tudo que é oferecido à comunidade
para edificação deve servir a esse fim. Os ministérios encerrados nesse único
ministério encontram sua orientação comum, sua subordinação mútua e seu
auge no fato de deverem servir ao envio. Onde se entende isso, a missão deixa
de ser problema, mas é o cumprimento de todo serviço que é realizado na
comunidade e, portanto, a favor da comunidade.
Onde, porém, esse ministério, num estreitamento dogmático, serve ape­
nas à manutenção, administração e autoprovisão da comunidade, ele está deter­
minado de modo egocentricamente humano. Onde ele apenas se propõe a edificar
a comunidade e alcançar a bem-aventurança individual dos membros, é de se
perguntar se esse alvo pode ser atingido, porque não proporciona aos membros
a oportunidade de se alegrarem com sua fé no serviço e sacrifício. Onde falta a
possibilidade da obediência e do serviço, a corrente de vida da Palavra não pode
fluir, e isso muitas vezes leva os membros individualmente a por sua vez perde­
rem o interesse pela Palavra. Aí então o ministério, muitas vezes não-intencional-
mente, em vez de ser um impulso missionário, se torna um empecilho para a
missão entre os gentios. Então as próprias pessoas investidas no ministério são
as que fecham o acesso ao reino dos céus (Mt 23.13).
A verdadeira forma de existência da comunidade se torna evidente onde
se entendeu que a Palavra e a comunidade formam uma unidade indissolúvel.
Elas estão relacionadas tão intimamente que o que é dito sobre a Palavra tam­
bém pode ser aplicado diretamente à comunidade. O relatório sobre a Confe­
rência de Whitby elaborou isso em clareza insofismável85. Às vezes a palavra de
Deus e a comunidade são tratadas como unidade tal na Escritura que aquilo
que deveria ser dito a respeito da comunidade é dito a respeito da Palavra. Isso
já se mostra nas parábolas de Mt 1.3 e Mc 4, mas é expresso de modo muito
especial no livro de Atos dos Apóstolos. Nele se fala do crescimento da Palavra
justamente quando se deveria falar do aumento da comunidade (At 6.7; 12.24;

84 H. D. WENDLAND, Die Kirche in der modernen Gesellschaft, 1956, p. 103.


85 W. FRF.YTAG, Der grosse Auftrag, 1948, pp. 32ss.

67
19.20). Por um lado, isso só pode significar que, juntamente com a comunida­
de, crescem também a força e a área de atuação da Palavra, porque crescem as
possibilidades do Espírito Santo através de um grande número de testemu­
nhas. Por outro lado, porém, isso também significa que o ministério que tem
a tarefa de proclamar a Palavra, precisa ter em vista a expansão da comunida­
de. Portanto, a Palavra assume forma na própria comunidade e se torna na
comunidade uma Palavra que cria vida e se espalha.

18. Igreja e m undo

Onde a missio Dei é compreendida dessa forma, a atuação da comunidade


deve ser entendida como divulgação dessa Palavra em seu relacionamento com
o mundo. Para poder divulgar a Palavra, ela sempre precisa ver no mundo, nos
semelhantes incrédulos um parceiro com o qual tem que se confrontar em sua
vida e fé. Onde a comunidade reconhece e preserva sua alteridade, essa atitude
surge por si. A maior fraqueza da cristandade hoje consiste no fato de os cristãos
não mais saberem que são cristãos. Perderam sua capacidade de salgar.
Enquanto o mundo durar, porém, não pode ser eliminada a contraposição con­
creta de Igreja e não-igreja como tal, tão pouco como pode ser anulada, apesar
de toda animosidade no relacionamento, a relação de Israel com os demais po­
vos. Nessa contraposição de dois povos Deus falou com o mundo. E fala com ele
de maneira que sua palavra primeiramente cria Igreja, para então, por meio do
serviço da Igreja, tornar-se Palavra dirigida ao mundo.85
Encontramo-nos, portanto, diante da tensa pergunta pela relação correta
de Igreja e povo, ou Igreja e mundo, pergunta com a qual a teologia sempre se
viu confrontada na Alemanha, frente à qual, todavia, também sucumbiu em
parte. Isso deu início a uma nova reflexão sobre a missão já antes da guerra.
Como G. Warneck via conscientemente o alvo da missão na cristianização dos
povos, entendendo por povo cristão a Igreja nacional, uma nova reflexão se
tornara urgente. Hartenstein e W. Freytag** procuraram trilhar novos cami­
nhos já antes da guerra. Em seus trabalhos teológicos, o primeiro preserva
rigorosamente a diferença entre Igreja e povo, e o segundo designa a comuni­
dade como ponto de irrupção do Espírito no mundo. A Igreja e a comunidade
têm a tarefa de levar as pessoas à obediência da fé. Para ambos o serviço da
comunidade está determinado pelo reino vindouro.

86 K. BARTH, op. cit., 1945, vol. 1,2, p. 769.


* N. do E.: Walter Freytag (1899-1959): missionário em vários países da Ásia, teólogo alemão, lute­
rano de tradição moraviana, teve um papel destacado no envolvimento missionário da Igreja
Evangélica da Alemanha. Foi diretor da Ajuda Missionária Evangélica Alemã e desempenhou
im portante papel no movimento ecumênico. Seu principal conceito missiológico é o reino de
Deus. Daí sua conclusão de que missão é fundamentalmente uma atividade de Deus (missio Dei).
A missão dos cristãos significa participar dessa ação anunciando que Deus quer reunir todas as
gentes no seu reino. Essas idéias praticamente se tornaram patrim ônio comum da teologia cristã.

68
A crítica de Hoekendijk partiu sobretudo do conceito alemão de povo e
nacionalidade determinado pelo romantismo e defendido por diversos teólo­
gos e missiólogos. Para definir a posição correta da comunidade no mundo e
perante o povo, os missiólogos holandeses perguntaram pela importância
propedêutica do povo de Israel, o povo de Deus no Antigo Testamento, para a
essência da Igreja e sua posição frente ao mundo. Uma contribuição infeliz­
mente muito pouco considerada veio de A. Oepkc87, que, embora tivessse tira­
do de suas conclusões poucos ensinamentos para a missão, disse coisas decisi­
vas para a Igreja. Oepke mostrou o quanto a idéia de povo de Deus é
determinante para a compreensão da comunidade neotestamentária, de ma­
neira que, baseada nela, a cristandade primitiva adquiriu sua autocompreensão.
A pesquisa mais profunda foi fornecida por J. Blauw88. Ele examina o que a
Sagrada Escritura entende por gentios. Como os gentios são o oposto do povo
de Deus, necessariamente teve que ser analisado também o que a Sagrada
Escritura entende por povo de Deus.
O surpreendente é que os diversos pesquisadores chegam aos mesmos
resultados. A eleição de Israel foi chamado ao serviço. Israel deveria confron-
tar-se com o mundo de maneira que no exemplo do povo de Israel se revelasse
aos povos o senhorio de Deus. Por isso a eleição de Israel já tinha importância
cósmica e perspectiva escatológica. Daí resulta, através da autocompreensão
da Igreja como novo povo de Deus, sua posição perante o povo e o mundo. A
Igreja se encontra em contraposição ao mundo, e por isso é enviada ao mun­
do. Por essa razão seu serviço é quantitativamente ilimitado, ela tem que al­
cançar todas as pessoas. No entanto, surge uma limitação qualitativa pelo fato
de a Igreja, como portadora da revelação, ter que defender a verdade e con­
frontar o mundo com a pergunta pela verdade. Somente se quiser ser povo de
Deus em tudo e, assim, Igreja de Jesus Cristo, ela poderá ter a mais forte influ­
ência sobre o mundo. Desse modo sua posição especial se torna premissa para
o universalismo de seu serviço salvífico. Disso também resulta que a Igreja
somente poderia ser comunidade de Deus entre os povos89. Essas idéias foram
trabalhadas mais intensamente na Conferência Missionária Mundial de
Willingen, na qual se chegou à compreensão de missão aqui exposta e se defi­
niu a Igreja como povo peregrino de Deus, que vive em tendas e realiza seu
serviço até que o Senhor venha90.
Por meio dessas percepções foi, por um lado, fundamentado mais deta­
lhadamente o pensamento já exposto acima de que a predestinação e o aposto­
lado estão inter-relacionados. Por outro lado, também se mostrou o perigo que
resulta de uma compreensão puramente dinâmica de Igreja. Se a Igreja se
entende como povo de Deus, não se está defendendo certamente a instituição,

87 A. OEPKK, Das neue Gottesvolk, 1950.


88 J. 11LAUW, Goden en Mensen, 1950.
89 ID., ibitl., pp. 63ss.
90 K. HARTENSTEIN, in: W. FREYTAG, Mission zwischen Gestern und Morgen, 1952, pp. 53ss.

69
a sedentariedade ou lerdeza, a restrição a limites territoriais; não obstante, está
sendo dito que, de algum modo, a comunidade tem que assumir forma para
poder arrostar o mundo. Justamente se quiser exercer o apostolado, ela tem
que ser uma grandeza sui generis. No entanto, esses pensamentos são reprimi­
dos pelo temor de que, em virtude do conceito de Igreja como organização,
ela teria que ocupar-se tão intensamente consigo mesma que não lhe sobrari­
am forças para um testemunho perante o mundo. Esse perigo naturalmente
também existe em qualquer outra forma de Igreja. Nenhuma a protege de
vestir a couraça da organização e de tornar-se estéril. Antes, ela sempre deveria
deixar-se empurrar para o gueto por meio de seu serviço no mundo. Pois se
isso acontecer por iniciativa do mundo, o gueto se torna o lugar de sua atuação
pública. Se agora, em virtude desses perigos, fôssemos eliminar a idéia de
Igreja, também se perderia a idéia do apostolado. Apostolado autêntico só é
possível onde a Igreja é uma grandeza visível bem definida, que se expressa na
confissão. Com isso a catolicidade da Igreja não sofre restrição, antes adquire
sua multiplicidade universal, que, por outro lado, também está implícita no
fato de estar determinada etnicamente. Portanto, o apostolado não leva ao
ilimitado, nem apaga os limites; onde se pensa a partir da essência da Igreja, o
próprio apostolado leva às singularidades das diferentes igrejas.
E significativo que, no contexto da situação especial da Igreja, não haja
referência à importância dos sacramentos. A verdadeira Igreja, porém, sempre
recebe seu lugar no mundo pelo fato de se reunir em seus cultos, de se deixar
incluir na comunhão com seu Senhor no sacramento e influenciar o mundo
pela força recebida por Palavra e sacramento. Ela só pode transmitir a vida
com a qual ela mesma se deixa presentear. Todavia, tem que passá-la adiante se
quiser ficar com ela, do contrário ela fenece. A posição da Igreja perante o
mundo, portanto, não resulta apenas do fato de Deus lhe ter confiado o tesou­
ro da Palavra e do sacramento, para, através deles, pregar a reconciliação ao
mundo. Esse serviço, que faz dela um membro da missio Dei, confere então à
Igreja a posição de que necesssita para alcançar seu alvo missionário.

70
Capítulo 4:

O alvo da missão

Muitas das coisas que deveriam ser ditas sob este título já foram expostas
e mencionadas, pois não se pode expor o embasamento da missão sem ter em
vista seu alvo, que confere ao embasamento a expressão derradeira. Por isso
queremos restringir-nos ao que ainda não foi dito, sobretudo sobre a confor­
mação da comunidade.

1. A conversão dos povos

A Igreja foi colocada no mundo por seu Senhor e enviada ao mundo.


Este é seu ambiente, nele encontra sua tarefa. E seu dever anunciar ao mundo
perdido, aos não-cristãos, a mensagem da redenção e, pela aceitação da mensa­
gem por parte dos ouvintes, congregar uma comunidade dos redimidos, o
povo de Deus na terra. Quem são os não-cristãos, os gentios? A ordem
missionária remete a Igreja com sua mensagem a panta ta ethne, a todos os
povos. Este conceito sempre criou grandes questionamentos para a missão.
Sobretudo na missiologia alemã ele se tornou um term o central. Em
contraposição ao pietismo, no sentido de congregar somente os que se deixam
converter, G. Warneck viu nesse conceito o objetivo da missão. Não importa
conquistar os indivíduos, mas os povos. A ele aderiram seus discípulos J. Richter,
H. Frick, S. Knak e ainda os missionários B. Gutmann e C. Keysser.
Todos eles entendiam sob “povos” não um aglomerado fortuito de pes­
soas de determinado grupo, da mesma língua ou de determinado país, e, sim,
viam nos povos as grandezas e comunidades orgânicas determinadas pela na­
cionalidade e pela religião, em sua inter-relação de membros, portanto, orga­
nismos com uma estrutura sociológica definida e identidade étnica. Com isso
os indivíduos do pietismo foram substituídos pelos individualismos nacionais.
Por isso cada povo deveria ser cristianizado em suas qualidades específicas e
estas deveriam ser postas a serviço do evangelho, de maneira que o povo intei­
ro pudesse ser integrado à Igreja. Portanto, não se tinha em mente o processo
contínuo da conversão do indivíduo, que, se bem empregado, também deverá
levar paulatinamente à conquista de todos os membros do povo, e, sim, tinha-
se em mente a conversão e cristianização das comunidades como tais. Os ho­
mens mencionados eram suficientemente sóbrios para saberem que o alvo

71
somente poderia ser alcançado em etapas e apenas até certo grau. Cada um
deles, sobretudo os missionários, buscaram caminhos próprios que se reco­
mendavam a partir da nacionalidade que se tinha em vista. Nenhum deles
acreditava que com isso estaria excluindo o trabalho missionário básico, que
consiste na proclamação; a nenhum deles ocorreu a idéia de contornar a deci­
são individual. Que fique constatado isso, porque esse fator é facilmente es­
quecido na crítica. Ainda se deve acrescentar o fator positivo de que justamen­
te o objetivo missionário nessa formulação obrigou os missionários a tomarem
o lado oposto bem a sério, e a ensejar-lhe uma decisão própria a favor do
evangelho. Eles também sabiam que nunca se pode tomar o ser humano como
ser individual. Pois ele sempre é influenciado em suas decisões de alguma
forma por seus semelhantes, quer pertença a uma massa anônima, quer a uma
comunidade orgânica. Conseqüentemente, a comunidade deve ser permeada
pela mensagem, quando se quer conquistar o indivíduo.
Na conversão dos povos se havia colocado um amplo e compensador
objetivo missionário, que tirou o trabalho missionário do confinamento e lhe
propôs uma grande tarefa pedagógica. Esta deveria levar os povos a objetivos
cristãos, sob o maior respeito possível à nacionalidade, de maneira que da
síntese de evangelho e nacionalidade pudesse nascer uma cultura sustentadora
própria. As experiências pareciam dar razão aos defensores desse objetivo,
pois onde ele foi perseguido, surgiram igrejas fortes, profundamente enraizadas
no povo. Assim, cristianização nacional ou dos povos se tornou o objetivo do
trabalho missionário e como tal foi adotado em grande escala pela missão
continental, embora executado em diferentes variações. Sobretudo a missiologia
alemã se encontrava sob esse “etnopatos” (Hoekendijk). A crescente expansão
da civilização ocidental com suas influências desagregadoras entre os povos, a
acentuação de um cristianismo normativo pelas missões anglo-saxônias tive­
ram por conseqüência que a missiologia alemã se tornasse mais e mais defen­
sora do cristianismo condicionado à nacionalidade, sendo que os perigos de
se colocar a nacionalidade acima do evangelho ou de se extrair do evangelho
mais do que estava dito sobre o povo nem sempre foram vistos e considerados.
Somente com Hartenstein e Freytag começou o reexame acima mencio­
nado, que distinguia a comunidade rigorosamente de seu ambiente natural.
Durante a última guerra, os perigos dessa missiologia foram ilustrados de modo
avassalador pelos excessos do nacionalismo. Por isso mesmo tornou-se objeto
de rigorosa crítica, que teve em Hoekendijk seu porta-voz91. A missão alemã
deve deixar-se chamar à razão por sua publicação, e Hoekendijk merece que a
teologia alemã se ocupe com ele. Para tanto certamente forneceu suficientes
desafios histórico-eclesiásticos, exegéticos, sistemáticos e missiológicos. Infe-
lizmente, porém, até hoje o livro com suas exposições profundas e básicas não
mereceu atenção. Ou a teologia é tão introvertida a ponto de não dar atenção
a tais publicações, ou ela se sente muito superior ao que um homem da missão
tem a dizer.

91 J. C. HOEKENDIJK, Kerk en Volk in de duitse Zendingswetenschap.

72
2. O conceito ta ethne

Boa parte da crítica de Hoekendijk é justificada, especialmente a acusação


que faz à missiologia alemã (p. 229s.) de ter traduzido o termo ta ethne de modo
demasiadamente ingênuo como “povos” e de ter, além disso, aplicado a essa
tradução a compreensão romântica do termo “povo”, sendo que, por influência
pietista, ainda se enfatizou a peculiaridade de cada povo. Por outro lado, porém,
parece-nos um tanto precipitado responsabilizar a Lutero e o luteranismo por
essa compreensão do termo, embora Hoekendijk pudesse invocar como abona-
dores dois pesquisadores importantes. Neste ponto J. Dürr9293fez maior justiça a
Warneck e à missiologia alemã, ao tentar mostrar que G. Warneck - embora
sendo ele próprio biblicista e amigo dos pietistas -, tentou destacar, em
contraposição ao objetivo missionário pietista de conquistar as almas individu­
ais e de congregá-las em comunhões cristãs, a conquista dos povos, portanto de
todas as pessoas, e o estabelecimento de uma Igreja nacional. Ele fundamentou
esse objetivo não apenas com abonações bíblicas, mas com a experiência histó­
rica e missionária. Além disso, deve igualmente ser considerado injusto que
Hoekendijk acredite ter que constatar que, em conseqüência disso, Warneck e
seus discípulos não teriam entendido a Igreja como grandeza histórico-salvífica,
mas que teriam deixado que fosse determinada a partir do povo, de maneira que
ela é compreendida mais ou menos como fator cultural. Sem dúvida, a linha
escatológica não foi elaborada em Warneck e seus discípulos com a mesma niti­
dez e fixada com a mesma clareza como o podemos fazer agora desde K. Barth
e dos estudos de O. Cullmann. Mas o simples fato de G. Warneck, apesar de sua
concepção universal de missão, ter entendido sempre a verdadeira comunidade
no sentido pietista, como o grupo dos crentes, poderia ter mostrado a Hoekendijk
que também ele teve consciência da confrontação entre Igreja e povo. Portanto,
neste ponto Hoekendijk se excede.
Por mais que reconheçamos os pontos justificados em sua crítica, temos
que, agora, por outro lado, examinar até que ponto Hoekendijk tem razão
com vistas a nosso tema. Para começar, temos que fazer-lhe uma objeção seme­
lhante à que expressamos no caso dos missiólogos alemães. Enquanto que es­
tes traduzem de modo demasiadamente ingênuo ethne por “povos”, Hoekendijk
toma o termo de maneira demasiadamente natural e apodítica na acepção de
“humanidade”, ou panta ta ethne como “todos os seres humanos”, sem sua
conotação nacional, entendendo este conceito como referente aos seres huma­
nos fora do povo de Israel, portanto no sentido histórico-salvífico.
Sem podermos proceder aqui uma análise detalhada do termo - remete­
mos à obra Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testamentí9S -, temos que per­
guntar, antes de mais nada: mesmo que ethne tivessse que ser entendido no

92 J. DÜRR, Sendende und werdende Kirche in der Missionstheologie G. Warnecks, 1947,pp. 146ss.
93 K. BERTRAM, & K. L. SCHMIDT, art. ethne, in: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament,
vol. 11.

73
sentido histórico-salvífico, poderiam então os seres humanos ser concebidos
sem seu referencial nacional? Também a partir da história da salvação, o ser
humano é visto em sua ambientação natural. Na Escritura, o termo ethne sem­
pre é usado no sentido de “liga nacional” e pode ser aplicado também a Israel.
Associado a panta, o vocábulo ethne significa os povos em conjunto e também
em sua diferenciação (Mt 24.9; 24.14; 25.32; 28.19; Mc 11.17; 13.10; Lc 21.24;
24.47; Rm 11.25; G1 3.8). Em outras passagens, o termo é usado inteiramente
no sentido histórico-salvífico como oposto ao povo de Israel (Mt 6.7; Lc 12.30;
Mt 10.5; 20.19; At 14.16). Aqui não está incluído Mt 28.19, versículo com o
qual Warneck fundamenta seu objetivo missionário. Com a diferenciação dos
povos também se tem em mente a religião gentílica. Não obstante, é impossível
demonstrar que ethne pode ser traduzido simplesmente por “gentios” ou “seres
humanos”, tampouco que panta ta ethne, como pressupõe Hoekendijk, seria
um equivalente de pasa ktisis ou hapas kosmos.
Todavia, é de se perguntar se a missiologia alemã tinha razão, porque
ethne é um termo muito ambíguo já no Antigo Testamento. Ele não transmite
mais a consciência de que o plural designa uma pluralidade de povos em sua
singularidade. O termo significa “os seres humanos fora de Israel” sem consi­
derar seu caráter sociológico. Nesta acepção o termo também foi entendido
no mundo grego, na época do Novo Testamento. Os romanos designavam
com ele os não-romanos, portanto, os estrangeiros e bárbaros. Desse modo o
conceito também expressaria o contraste cultural. Assim, podemos dizer: com
o termo ethne se designam pessoas e povos fora da comunidade de Deus, ou
fora da cultura dominante. No entanto, temos que deixar em aberto se devem
ser vistos em seu contexto sociológico e condicionamento nacional. Portanto,
não é possível demonstrar o objetivo missionário de Warneck a partir da or­
dem missionária. Também a idéia dos costumes étnicos, que devem ser preser­
vados, não pode ser fundamentada com o mero conceito ethne.

3. O objetivo da missão

Inicialmente temos que descrevê-lo como conquista de todos os seres


humanos e sua congregação na comunidade de Jesus Cristo. Ninguém se en­
contra fora do reino de Deus. O evangelho se destina a todas as pessoas. Em
oposição à comunidade de Deus, os povos formam, como ta ethne, uma unida­
de por estarem perdidos sob o pecado. Essa perdição é o elemento comum que
os une e, com isso, naturalmente também a promessa de que devem ser salvos.
Todos devem chegar ao conhecimento da verdade (2 Tm 2.4). A verdade está
presente em Israel, pois foi Israel que recebeu a revelação. Por isso Israel não é
contado entre os ethne em termos histórico-salvíficos, o que, porém, pode acon­
tecer no mais, quando só se fala de Israel como povo. Esse contraste histórico-
salvífico está, pois, determinado a partir da revelação. Ela é decisiva (1 Ts 4.5;
cf. Jr 10.25). O “todos” da ordem missionária ainda é sublinhado nitidamente
por Mt 24.14. Portanto, ninguém dos gentios está excluído. A mensagem deve

74
ser anunciada em todo o ecúmeno, que é o habitat das nações e, por conse­
guinte, o espaço da proclamação da Igreja. Dessa maneira ecúmeno e cosmo se
tornam correlatos da basileia e, assim, o oposto da missio Dei e do apostolado.
Portanto, o alvo da missão é a proclamação da mensagem a toda a humanidade
e sua congregação na Igreja. Em nenhuma parte da Escritura, porém, está dito
que esse objetivo será atingido. E inerente à natureza da revelação e, conse-
qüentemente, da natureza de Deus, que a palavra seja dirigida a toda pessoa. É-
lhe oferecida a oportunidade da fc c da redenção. A Escritura, todavia, tam­
bém é suficientemente sóbria para nos deixar claro que apenas parte das pes­
soas aceitará a mensagem. Como não é possível constatar quem é essa parte, a
Igreja é responsável por toda a humanidade.

4. As peculiaridades dos povos

Esclarecido isso, podemos perguntar novamente pelo significado do ter­


mo “povo” como liga orgânica no contexto do objetivo da missão. Não se pode
rejeitá-lo radicalmente por uma razão muito simples: do ponto de vista históri-
co-salvífico, a pessoa que não pertence à comunidade de Deus permanece sen­
do criatura de Deus e objeto de seu amor. Primeiramente surge uma pergunta
grave em relação a Mt 28.19: se entendermos elhne puramente no sentido his-
tórico-salvífico, a ordem missionária ainda se destina a Israel? Ainda se justifi­
ca a missão entre os judeus? Sabemos que a revelação de Deus em Jesus Cristo
se destina justamente em primeiro lugar a Israel. Que acontecerá então com o
Israel renegado, se elhne se refere somente aos gentios?
Sc entendermos elhne como a humanidade em suas diferenciações nacio­
nais, de forma alguma se põe em dúvida que, em sua perdição no pecado, a
humanidade constitui uma unidade perante Deus. Ela tem que ser salva justa­
mente nessa sua condição. Podemos equiparar sem mais nem menos as diferen­
ças existentes na linguagem, nas realidades sociológicas e sociais, à religião gen­
tílica e assim designá-las como expressão da apostasia e rebelião? Não podem
muitos desses fatores ser concebidos também independentemente das respecti­
vas religiões? Não são, eventualmente, uma imagem da dependência do ser hu­
mano em relação a Deus? Acaso os condicionamentos lingüísticos, por exemplo,
não foram levados muito a sério por ocasião do derramamento do Espírito San­
to? Porventura não é o caso que, segundo a Escritura, o ser humano peca justa­
mente nessas realidades nas quais foi lançado sem participação própria, e que
nisso peca contra Deus? Em todo caso, chama a atenção o fato de que, conforme
Rm 1 e 2, os gentios têm a mesma responsabilidade perante Deus que os judeus,
e isso como gentios! Eles têm consciência do estabelecimento de homem e mu­
lher, do matrimônio, da relação pais-filhos, da proteção da vida humana. Anali­
sando os chamados catálogos de vícios, constatamos que as contravenções dos
gentios contra Deus são, ao mesmo tempo, pecados contra suas próprias deter­
minações. Portanto, o ser humano peca nas ordenações que lhe foram dadas por
Deus. Trata-se, entretanto, de mandamentos também firmados na revelação.

75
J. Blauw constata que a Bíblia sempre fala dos gentios do mesmo modo
como fala do ser humano natural. Este peca sem revelação, transgredindo suas
próprias leis. Mas, assim como a revelação não é anulada porque as pessoas
não a conhecem, tampouco são anuladas as ordenações porque a consciência
do ser humano está turbada. Evidentemente, não é possível escrever uma teo­
logia das ordenações, como aconteceu repetidas vezes; para isso a base é insu­
ficiente. Nesse sentido Hoekendijk tem razão com sua crítica severa a essa
teologia. Em sua revelação, Deus estabeleceu outras ordenações que devem
entrar em vigor através da comunidade. Mas também santificou ordenações
existentes e as colocou sob seu mandamento. Por isso, é somente a partir da
Escritura que se pode determinar e a partir da comunidade definir o que em
cada caso pode permanecer na confrontação entre evangelho e cultura nacio­
nal. Deus deu o mandamento do amor também à comunidade e com isso todas
as ordenações da esfera humana receberam um sentido totalmente novo. Com
o conceito ethne está associada também a determinação étnica, que não é anu­
lada pelo mandamento do amor. Onde o amor deveria revelar-se como tal,
senão justamente nos compromissos que determinam o convívio das pessoas?
Em tudo isso é preciso que saibamos que um bom número de ordenações que
aceitamos naturalmente como cristãs, não estão ancoradas na Escritura, mas
têm sua origem na moderna imagem do ser humano e, por isso, muitas vezes
se contrapõem ao pensamento bíblico, sem que nos sintamos autorizados a
nos opormos a elas. Agora, a partir da Escritura é a mesma coisa adotar orde­
nações antigas ou introduzir as que surgirem em outro ambiente humano.
Também estas últimas não oferecem à comunidade a garantia de uma confron­
tação autêntica. Na melhor das hipóteses, destacam a estranheza da Igreja. Em
última análise, toda ordenação é um perigo para a comunidade, se não for
sustentada por pessoas que sabem pelo renascimento que Jesus faz novas todas
as coisas.

5. Os cristãos procedentes dos gentios

Duas passagens do Novo Testamento os denominam de gentios, ethne


(Rm 11.3 e Ef 3.1). Isso de forma alguma significa que esses cristãos se encon­
trem fora da revelação de Deus, a exemplo dos demais ethne, e que não tenham
direito a ela. Isso pode significar somente que eles, ao contrário dos judeus,
têm outras formas de vida, sendo que também pode estar subentendido que,
na verdade, é graça de Deus o fato de serem contados entre o povo de Deus.
Paulo luta apaixonadamente contra a judaização das comunidades gentílico-
cristãs. Com a adoção das formas de vida judaicas, eles teriam tomado sobre si
um jugo pesado. Paulo não teria sido tão veemente, se tivesse tido a convicção
de que uma pessoa se pode tornar cristã somente via judaísmo. E precisamente
isso que ele negava. Esta é a grandiosidade do evangelho: sob a palavra de
Deus, a pessoa pode ser inteiramente aquilo que ela é por nascimento. Paulo
também preservou nas comunidades as condições sociais como adequadas às
pessoas. Portanto, não viu a característica da cristianização na transmissão de
novas formas sociais. Tinha, porem, a certeza de que a nova vida criada pelo
evangelho conquistaria para si um lugar nessas ordenações e que iria rompê-
las. Hoekendijk tem razão ao destacar que, no caso do ethnopathos, ninguém se
pode reportar ao Antigo Testamento, onde comunhão nacional e religiosa
coincidem. Quem faz isso, esquece que Israel é uma grandeza sui generis, na
qual, de modo singular, aquilo que se entende por “nação” foi conformado a
partir de Deus. Não é a cultura nacional que determina a religião, mas a reli­
gião determina a cultura nacional. Ela é formada a partir da revelação. Além
disso, se deveria discernir entre a aliança de Deus com as tribos e a organiza­
ção política de Israel, que é algo diferente. Ademais, a atuação dos profetas
demonstraria que a comunidade nacional não coincidia com a comunidade de
Deus. Podemos admitir tudo isso, mas, não obstante, é preciso perguntar: aca­
so as ordenações dos povos gentílicos não têm igualmente o direito de serem
colocadas sob o juízo de Deus, e não podem elas, sob o juízo de Deus, ser
determinadas inteiramente a partir de Deus? Certamente não temos a missão
política de ordenar o povo, mas temos a tarefa de chamar os povos ao arrepen­
dimento, a fim de que permitam que sua relação com Deus seja ordenada.
Pode o efeito ser outro do que uma renovação das formas de vida dos povos
sob o evangelho?
Hoekendijk concordaria conosco em todas essas questões, mas objetaria
que o critério para essa mudança de forma alguma poderia ser tomado dos
povos (o que, aliás, não queremos), mas que a comunidade somente poderia
preservar sua posição singular, se ela se estruturasse puramente a partir do
evangelho. Fazendo isso, ela sempre estará marcada por traços de seu ambien­
te, porque o evangelho sempre toma forma no ambiente; mas as ordenações
não lhe seriam preestabelecidas pelo povo. Para descrever esse processo, ele
usa o termo “ecologia”. Com ele oferece a solução do problema. Afirma com
isso que cada povo representa um ambiente específico para o evangelho e a
comunidade. Por isso a comunidade se adaptará ao ambiente do mesmo modo
como o faz um animal ou uma planta. O ambiente exerce certa influência,
mas, não obstante, ele não transforma. Algo semelhante ocorreria na comuni­
dade cristã; ela sempre vestirá um traje local, mas, não obstante, permanecerá
fiel a si mesma e não se comprometerá com o povo.

6. A linha pedagógica

Warneck recomendava a pedagogia dos povos através da missão, preconi­


zando uma cristianização paulatina das ordenações. Ao fazer isso, certamente
quis colocá-las sob o juízo de Deus, mas a premissa era que, a princípio, as
ordenações permanecessem. Ele tinha consciência dos perigos; é singular que,
em virtude da experiência, não acreditava em uma ruptura repentina, restrin­
gindo, desse modo, suas noções bíblicas. Assim se constata nele certa
duplicidade que, do ponto de vista teológico, constitui o lado fraco de sua
missiologia. Homens como S. Knak - através de seus conhecimentos teóricos -

77
e B. Gutmann bem como C. Keysser, em sua prática de comunidade, procura­
vam, seja de modo consciente, seja inconsciente, em última análise a síntese de
história salvífica e história profana. Ao fazerem isso, certamente havia o perigo
de despir a história salvífica de seu caráter ontológico e de erigir na história
profana certa teocracia. Isso, porém, não é somente o caso deles. Existem mui­
tas igrejas jovens no mundo em relação às quais é de se perguntar se se trata de
uma nação cristianizada ou de um cristianismo nacionalizado.
Por outro lado, esses métodos oferecem grandes possibilidades para co­
locar todas as esferas da vida sob a palavra de Deus e, desse modo, permear a
vida toda. Hoekendijk reconhece essas fraquezas; no entanto, quer garantir
esse último fator sobretudo pela “ecologia”. Em geral, impõe-se a pergunta se
Hoekendijk, no afã de preservar a posição singular da comunidade, não acaba
num afunilamento piclista, que também não é superado pela recomendação
do comprekensive approach (“abordagem inclusiva”). Hoje as perguntas por povo
e nacionalidade, pelo caráter autóctone da Igreja são de importância eminente
para as igrejas jovens que sofrem sob o nacionalismo e, conseqüentemente,
sob a acusação de serem alienígenas. Sua busca por autonomia certamente não
é apenas reação contra o expansionismo e colonialismo eclesiástico, e, sim, a
luta por uma configuração própria, em seu ambiente de vida. Em todo caso, a
reflexão e o diálogo devem continuar.
O assunto recebeu novo estímulo pelos trabalhos de MacGavran e S.
Trimmingham, que mostram94 que a Igreja e a missão só podem ter sucesso se
oferecerem sua mensagem através dos canais naturais como parentesco e ami­
zade, onde é repassada de pessoa para pessoa. Desse modo não ocorre nenhu­
ma ruptura social; o convertido continuaria em contato com sua família e pa­
rentela; a comunidade se tornaria, desde sua criação, uma grandeza social que
oferece segurança, e, dessa maneira, uma comunidade também poderia ser
elemento transformador. Uma das perguntas vitais mais candentes para as igrejas
jovens hoje é se elas têm uma contribuição a dar para a cultura de seus povos,
de modo que princípios cristãos venham a ser fatores determinantes para a
construção da nação. Se isso é possível, depende, em grande parte, de até que
ponto a comunidade analisou os problemas de sua própria cultura inata e se
confrontou com eles.

7. Missão e civilização

Será que Hoekendijk não se excedeu em sua crítica? Acaso não escreveu
unilateralmente a partir da imagem moderna do ser humano? Em todo caso,
ele nos mostra que hoje, em vista da imensa influência da civilização, as parti­
cularidades étnicas não têm mais futuro. As pessoas não querem mais arrastar

94 D. A. MacGAVRAN, The ßridges of God, 1955; S. TRIMMINGHAM, Die christliche Kirche und
der Islam, Evangelische Missionszeitschrift, 1955.
consigo suas próprias formas, mas buscam o contato com a greal society, com a
família da humanidade criada pela civilização. - Neste sentido ele tinha razão,
em grande parte, por ocasião da publicação de seu livro. Parece que o ponto
crítico está ultrapassado e que as características próprias estão sendo enfatizadas
novamente. Com isso as perguntas acima tornam a ser muito candentes para
toda Igreja jovem e para toda missão. Nessa situação, Hoekendijk recomenda o
comprehensive approach. De acordo com ele, todas as esferas da vida do ser
humano devem ser permeadas com pensamentos cristãos, de maneira que as
pessoas aprendam como se pode ser cristão e agir de modo cristão em tudo.
No fundo ele tem o mesmo objetivo que o trabalho relacionado à nacionalida­
de: não excluir nada da esfera de Deus95. A pergunta principal aqui é: que se
entende por “cristão”? A Bíblia dá instruções concretas somente em poucos
casos. A conseqüência é que por meio do comprehensive approach é transmitido
como cristão aquilo que percebemos como tal, nossa civilização. E temos nós
o direito de transmiti-la? Seria ela cristã pelo simples fato de se ter formado
através de uma história secular com o cristianismo? Não acontece, neste caso,
a mesma coisa que o outro método quer atingir com base na cultura nacional?
Temo que os problemas que surgem neste ponto sejam piores do que na teoria
da nacionalidade.
O problema nesse approach não consiste nos fatores locais existentes, mas
na incapacidade do missionário de reconhecer seu valor e de confrontar-se
com eles através da comunidade. Enquanto o missionário se coloca acima do
povo com seu pretenso modo de vida cristão, dificilmente reconhecerá como
aproveitável e em condições de ser desenvolvido o que encontrou. Conseqüen-
temente o rejeitará. Deste modo, porém, justamente não acontecerá uma con­
frontação autêntica! Pois esta não se dará entre evangelho e cultura nacional,
mas entre civilização e cultura nacional. Até hoje somente muito poucos missi­
onários compreenderam o que é um contato e confrontação autênticos. O
contato nunca pode ocorrer de modo diferente do que o contato que o pró­
prio Deus estabeleceu por meio de Jesus Cristo. Este veio como ser humano a
determinado povo e viveu sob as mesmas condições sob as quais esse povo
tinha que viver. Dessa maneira suportou com o povo suas mazelas e, sob as
mesmas condições em que o povo teve que comprovar sua fé, mostrou a seus
semelhantes como o ser humano pode tornar-se e permanecer filho de Deus
em todas as circunstâncias da vida. Ele criticou muitas interpretações das orde­
nações de seu povo, discutiu com as lideranças do povo. Reiteradas vezes con­
trapôs a comunidade de Deus, o reino, ao que os judeus imaginavam que fosse
esse reino. Em tudo, porém, permaneceu um igual. Onde um missionário
consegue tornar-se isso, resolvem-se por si muitas perguntas que, por via teóri­
ca, recebem um peso imenso.
Não devemos acentuar as ordenações comunitárias de um povo a ponto
de se oporem às ordenações do amor na comunidade. Também não as deve­
mos apresentar como forma inicial da comunidade. Mas também não as deve­

95 E. Jansen SCIIOONHOVEN, Wort und Tat im Zeugnisdienst, in: Mission - Heute, 1954.

79

k.
mos desprezar ou desmerecer. Somente podemos perguntar o que a palavra de
Deus diz a respeito e como podem ser estruturadas essas ordenações a partir
dela. Também é preciso saber que toda particularidade da Igreja determinada
pela nacionalidade não passa de uma roupagem terrena. A relação com a cultu­
ra nacional somente se tornará correta, quando se sabe que essa roupagem é
efêmera e que a comunidade se livra dela na medida em que se deixa moldar
pela vida nova, determinada pelo Espírito Santo. Em todo caso, precisa saber
que não deve enfatizar essas particularidades, pois a comunidade de Jesus Cris­
to se constitui de membros de todos os povos, seu fator comum, sua comunida­
de, é a lei de Cristo, sob o qual ela vive.
A n a c io n a lid a d e n ã o se a p re s e n ta c o m o p ré-estág io p a ra a re c e p ç ã o d o evange­
lho, e ta m p o u c o o efeito d o ev an g elh o co n siste n o d e sd o b ra m e n to d a in d iv id u ­
alid a d e d e u m povo (...) O carac te rístic o é ju s ta m e n te a in te n ç ã o univ ersal, su-
pra-ética, su p ra-racial d a m en sag em d e C risto .96

8. O desenvolvimento gradativo

O evangelho do reino deve ser anunciado a todas as pessoas. Todas as


pessoas devem ouvir a mensagem salvífica de Jesus Cristo. Com isso está
estabelecida a atividade imediata do mensageiro e esboçado o objetivo imedi­
ato da missão. G. Warneck fundamenta essa proclamação com a ordem
missionária, e no mathetenein panta ta ethne colocou a ênfase no matheteuein\ ele
entendeu isso como uma grande instrução pedagógica: o ouvinte deve ser
educado como um aluno para se tornar discípulo. Aí naturalmente caberia ao
instrutor decidir quando iria dar ao aprendiz o certificado de madureza.
Warneck, portanto, não compreende a relação de discípulo como relação dire­
ta, conforme nós a descrevemos. Sabe que raras vezes a missão produzirá dis­
cípulos autênticos, porque muitas pessoas se tornam cristãs por motivos secun­
dários, ficando, muitas vezes, estagnadas no começo de sua relação de discípu­
lo e abandonando-a por vezes. Por isso bastaria o desejo de se tornar cristão.
Esse desejo deveria ser reconhecido. Então toda pessoa atingida poderia cres­
cer para dentro da relação de discípulo ou ser educada para ela. A princípio é
indiferente se isso deve ser feito pela comunidade ou se é motivado pelo fato
de a pessoa atingida ser sustentada pelas ordenações cristãs de seu povo.
Warneck está pensando aqui inteiramente a partir da prática e em termos
bem católicos. Não pensa tanto em missionar e, com isso, em conversão, e,
sim, em cristianização, na Igreja nacional. Ele pretende criar imediatamente
um espaço de vida determinado por uma atmosfera cristã para os que foram
conquistados. Na verdade, usa termos como salvar, converter, tornar-se crente,
também juntar-se ao Senhor. Entretanto, estranhamente duvida que cristãos

96 W. KÜNNETII, Politik zwischen Dämon und Gott, 1954, p. 194.


gentílicos possam fazer imecliatamente a plena experiência de fé. A reticência
de Warneck é tão incompreensível porque afinal os gentios, como pessoas
ainda não atingidas pela Palavra, agora são confrontados com o evangelho, o
que desencadeia uma experiência imediata, enquanto ela já é bem mais difícil
na segunda geração. Atrás disso se encontra o conceito de Igreja nacional, de
acordo com o qual a pessoa tem que ser atraída para dentro do cristianismo -
portanto, a idéia de que o cristão gentílico ainda não teria tradição e, por isso,
não poderia ser cristão no sentido pleno da palavra. Warneck pensa inteira­
mente em termos pedagógicos. Ele imagina a cristianização de um povo da
seguinte forma: de início, convertem-sc alguns individualmente; estes transmi­
tem a Palavra e suas experiências a outros. Dessa maneira, paulatinamente
todo o povo é atingido. Surge a formação de tradição. Esse processo natural­
mente exige tempo, sob certas circunstâncias, gerações. Também neste ponto
Warneck permaneceu pietista, embora defendesse a Igreja nacional. Ele ainda
nada sabe do caso em que uma tribo ou um povo é atingido como um todo
pelo evangelho, de maneira que a comunidade dos batizados assume a lideran­
ça nele, determinando, desse modo, a vida do povo.

9. O m étodo evangelístico

De acordo com Hoekendijk, a missão tem a tarefa de testemunhar o rei­


no, erigir os sinais do reino, pregar o evangelho. Naturalmente ele tem consci­
ência do objetivo imediato de constituir comunidade, no entanto, não menci­
ona esse fato. Deixa em aberto se e como a pregação se torna efetiva. Isso pode
estar relacionado à predestinação, segundo a qual Deus determina, com base
na eleição, quem chegará à fé através da pregação do reino. No entanto, é
possível que Hoekendijk esteja defendendo o método evangelístico de missão,
segundo o qual basta, com base em Mt 24.14, que os povos sejam expostos ao
testemunho. Que a mensagem assuma forma não constitui objetivo a ser perse­
guido; fica relegado à atuação da Palavra o que acontece em virtude da prega­
ção. Naturalmente fica-se grato por cada pessoa convertida.
Através desse método de anunciar o evangelho aos gentios o mais rápido
possível, bem como através da divulgação da Bíblia, transmitiu-se aos gentios a
Palavra, sem que estes compreendessem, a princípio, que se lhes está exigindo
uma decisão. Colocou-se em suas mãos a Palavra, sem que alguém se preocu­
passe com sua correta interpretação e aplicação e a preservasse de abusos.
Dessa maneira o método evangelístico preparou o caminho para o sincretismo.
Encontra-se aí o equívoco de que a palavra de Deus atuaria por si só e que o
Espírito Santo falaria aos gentios através da Palavra. Quanto a isso, não há
dúvida. No entanto, resta a questão: há consciência de que aqui se está defen­
dendo uma concepção mágica da Palavra, que de forma alguma pode ser
justificada a partir da Escritura? Os parcos resultados do método evangelístico
provam, contudo, que a palavra de Deus não desenvolve forças mágicas. Se
pessoas chegam à fé por esse caminho, isso sempre acontece pelo fato de tam-

81
bém ter havido contato com testemunhas. É uma experiência tanto da Escritu­
ra quanto da missão que o Espírito Santo atua sempre através da testemunha.
A palavra anunciada que se torna evidente em sua vida, que pode ser sentida
em sua personalidade, impressiona o ouvinte. Ao ouvir sempre tem que associ­
ar-se o exemplo. Por isso o cristianismo sempre se espalha mais onde o efeito
do evangelho se torna visível numa comunidade ou na vida de uma pessoa.
Disso se evidencia o quanto é importante que a mensagem se torne reali­
dade através do envio. Por isso ela também é uma porção da atividade e capa­
cidade humana, sem que com isso se pusesse em dúvida a atuação do Espírito
no mensageiro. Mas o próprio mensageiro tem que ser obediente à mensagem
e deixar-se moldar por ela. Sem dúvida, ninguém pode, como ser humano,
tornar alguém crente. Não obstante, isso depende em grau incrivelmente ele­
vado da atitude do mensageiro. Paulo diz em 1 Co 9.19ss. que se tornou escra­
vo de todos a fim de ganhar alguns; e em Rm 1.5 afirma que recebeu seu
ministério para produzir obediência da fé entre os povos. Com isso está dizen­
do também que o missionário tem que ter um objetivo bem concreto, e que
terá que tentar permanecer fiel a esse objetivo por meio de seu próprio com­
portamento. Portanto, há que ser muito cauteloso com o discurso, justificado
em princípio, de que Deus tem que fazer tudo. Sobre isso não se discute. Deus,
porém, realiza sua obra sempre na medida em que seu mensageiro se tornou
instrumento. Sempre é decisivo se este se subordina ao agir de Deus. No en­
tanto, fica em aberto até que ponto os ouvintes acolhem a mensagem e como
ela se manifesta em suas vidas. Em todo caso, podemos deduzir das descrições
da vida comunitária nas epístolas do apóstolo, de suas admoestações, das com­
parações da comunidade com os gentios, que também as comunidades do
Novo Testamento estavam longe de qualquer perfeição. Não obstante, Paulo se
refere a elas com elogios.

10. Tornar-se crente

Se surgir uma contradição neste ponto, haveremos de perguntar se com­


preendemos corretamente o processo de alguém tornar-se crente. Acaso não
nos baseamos demasiadamente em teorias, ou tomamos por ponto de partida
a imagem da própria perfeição, nossa própria compreensão da fé e do cristia­
nismo, tornando-nos a nós mesmos a norma para os cristãos gentílicos? Pri­
meiramente, a conversão e fé entre todos os cristãos gentílicos consistem em se
absterem de certas práticas, porque se subordinaram a Deus. Essas coisas, po­
rém, nunca abrangem toda a vida e pensamento da pessoa. Mas sempre perma­
nece o fato de que Cristo se tornou seu Senhor e eles também o querem por
Redentor. Por isso se tornaram obedientes e crentes em pontos bem definidos,
nos quais lhes foi concedida iluminação. Aí a Palavra os compeliu a tomarem
uma decisão. Portanto, ocorreu uma conversão que, todavia, ainda precisa evi­
denciar-se em outros pontos, que pode ter continuidade, dependendo de como
o ouvinte é conduzido pela Palavra.

82
No caso da fé, a história é outra. Como confiança em Deus, ela precede a
conversão. Confiança nele, dependência dele, alegria por causa do perdão dos
pecados e da certeza de redenção também podem existir sem que a pessoa tenha
conhecimento de tudo que contradiz a Deus em sua vida. Com essa progressão
da nova vida, que sempre se fundamenta na fé e que é dada pela ação do Espírito
Santo, o ser humano aos poucos é tranfigurado na imagem de Cristo. Evidente­
mente, essa fé pode sofrer abalos, pode ser levada a dúvidas. Ela passa por trans­
formações. Nem por isso, porém, a nova vida tem que se tornar flutuante. A
pessoa humana pode permanecer firme em seus conhecimentos, sua vida pode
ter um cunho determinado. Segundo a Escritura, existe uma fé pequena e uma
fé grande. Existe a fé fraca e a fé forte. Em nenhuma parte, porém, é dito que a
fé fraca não seja fé e que ela possa ser aprofundada, ponto sobre o qual se
concentra grande parte de nossa prática eclesiástica. Deus é realidade em todas
essas formas de fé, sempre de acordo com a medida da fé. Isso, porém, nada
muda no fato de que também a pessoa com uma fé pequena ou fraca se tornou
crente. Por isso deveríamos ser bastante cautelosos em nossos juízos sobre con­
versão e fé. Elas não são um processso tão simples que se possa formar um juízo
a respeito. Aliás, não está no arbítrio do ser humano o que ele crê. Em todas
essas formas de fé existe uma relação com Cristo e, conseqücntcmente, com
Deus. A pessoa distante de Deus não tem fé. O crente pode deixar-se conduzir
por Deus progressivamente de obediência em obediência. Com ela também
cresce sua fé. O crente pode deixar-se permear por Jesus e tornar-se ativo no
amor. Na fé, pode deixar-se presentear com a medida do Espírito e, na confiança
em Deus, levar uma vida nova. Onde, porém, não existe a fé, falta tudo. Ela
sempre é o sim ao agir misericordioso de Deus e com isso tudo está encerrado
em Deus. Quão maior seria nosso regozijo com a vida dos cristãos gentílicos se
tivéssemos a compreensão correta para a fé!

11. Os meios da missão

Para levar as pessoas à fé os mensageiros têm que cumprir sua missão e,


assim, assumir a luta contra o outro reino. A ordem missionária menciona a
palavra como único meio da missão (Mt 10.7; Lc 9.1s.; Rm 10,17). Em 2 Co
5.19, a proclamação é definida mais especificamente como o anúncio da re­
conciliação, ou como “testemunhar a graça de Deus” (At 20.24). Os apóstolos
proclamaram essa pregação não como sistema doutrinário, como cosmovisão,
acomodada à sabedoria humana, mas sempre anunciaram a ação salvífica de
Deus ern relação às pessoas. Entre os judeus, sempre tomam por ponto de
partida o agir de Deus em relação a Israel; entre os gentios, a criação e os
benefícios que Deus lhes fez. No centro da pregação encontra-se a ressurrei­
ção. Por maior que seja o anseio por redenção, a pessoa para a qual Deus não
se tornou uma realidade jamais compreenderá que o ser humano não pode
redimir a si mesmo. Quem nada sabe do Criador rejeitará a Palavra que Deus
lhe dirige. Quem não tem noção de que existem ressurreição e juízo nunca

83
entenderá seus pecados como ato contra Deus, não se sentirá responsável,
rejeitando, por isso, a Jesus Cristo como Redentor.
Também em Corinto estava no centro da pregação o anúncio da ressur­
reição. Se, não obstante, Paulo nada sabe senão a cruz, isso acontece porque as
pessoas determinadas pela filosofia grega acreditavam que podiam ser redimidas
segundo a sabedoria humana. Paulo não lhes pôde pregar outra redenção exceto
aquela uma que procede da ressurreição.
Portanto, a fé na ressurreição de Cristo c um elemento necessário não somente
na fé em Cristo, mas também na fé em Deus. Por si só, a morte de Cristo é a
crise da fé, porque ela faz duvidar ou de Cristo, ou de Deus. Sua ressurreição é
a superação da crise, porque nela o Pai - conforme costumamos dizer em analo­
gias humanas - se identifica com o Filho.97
Somente por meio da proclamação de todo o agir de Deus em Jesus Cris­
to as pessoas se tornam semelhantes de Jesus Cristo e recebem parte em sua
história. Por issso a fé não é uma opinião, uma convicção adquirida por meio
de conclusões lógicas, mas é a certeza da história da salvação. A esta os apósto­
los tinham o dever de proclamar. Podemos fazer isso somente na medida em
que essa história se tornou nossa história por meio de Cristo, a história do agir
de Deus conosco.
Com isso, porém, se descreve apenas um aspecto da tarefa missionária e
dos meios da missão. O querigma sempre deve visar a ser ouvido pelas pessoas.
Elas não podem entrar no reino de Deus por si mesmas, têm que ser chamadas
a ele. Não podem se tornar discípulos se não dão ouvidos ao chamado ao segui­
mento. Por isso a mensagem deve ser apresentada de maneira que seja ouvida e
entendida. A proclamação dos fatos salvíficos sempre remete os ouvintes a Deus
e os obriga a permitirem que seu relacionamento com Deus seja determinado a
partir dele. Deus o faz concedendo aos crentes perdão dos pecados, justificação,
renascimento e, conseqüentemente, uma vida nova, e preservando-os nela por
meio da santificação. Onde a revelação de Deus atinge o ouvinte sempre surge
algo novo: participação na vida eterna, que consiste na fé em Cristo (Jo 17.3).
Com isso está alcançado o objetivo imediato da missão. O ser humano está salvo,
foi arrebatado do outro reino e recebeu uma nova existência. Embora creiamos
que esse ouvir seja obra do Espírito Santo, vale, também neste caso, o que disse­
mos acima sobre a auto-atividade de Deus. Também o ouvir passa pela testemu­
nha. Ele é simultaneamente compreender. Se o pregador anuncia a Palavra de
tal maneira que as pessoas não a podem entender, ela permanece um eco vazio.
Se não for oferecida às pessoas em sua linguagem, não a podeião compreender.
Por causa da linguagem estranha ela não chega a ser a palavra do próprio Deus
para as pessoas. O ouvinte precisa fazer um grande esforço para entendê-la. Mas
Deus quer falar às pessoas. Por isso é imprescindível que o mensageiro fale a
linguagem do ouvinte. Um exemplo claro do que acontece quando se dá aos
ouvintes oportunidade para uma interpretação errônea por causa da linguagem
estranha é a história de Listra. Através da proclamação, Deus quer chegar tão

97 W. ELERT, Der christlkhe Glaube, 1955, p. 302.

84
p erto das pessoas que toda a sua hum anidade seja envolvida p o r ela. Por isso o
m ensageiro deve dar-se o trabalho de traduzir sua pregação p ara form as de
pensar estranhas, deve confrontar-se interiorm ente com o m undo gentílico, a
fim de p o d er anunciar o evangelho.

12. A missão e o milagre

A tarefa missionária dos apóstolos tem ainda outro aspecto: “Os enfer­
mos curai, os mortos ressuscitai, os leprosos purificai, espíritos imundos expe­
li!” (Mt 10.7; cf. Lc 9.1s; 10.9; além disso, o final secundário de Marcos). Aí
encontramo-nos diante de uma questão muito difícil, mas que justamente hoje
é sentida de novo com grande intensidade. Como sabemos, os apóstolos toma­
ram essa incumbência a sério, pois ela de fato faz parte da pregação do reino.
Ela é incompleta quando a ordem do milagre não é cumprida.
Eles (os milagres) devem ser entendidos como manifestações do reino de Deus,
efetivamente presente em Jesus, e como tais, prenúncios da vindoura ação de
Deus na ressurreição. Ao estabelecimento do reino se opõem potestades deste
mundo, o poder satânico-demoníaco, o pecado, a enfermidade, a morte.98
Essas potestades do outro reino devem ser superadas porque Jesus as venceu.
Por isso o serviço da proclamação é incompleto quando não pode ser
comprovado por meio do ato salvífico. Os milagres, como os apóstolos os rea­
lizaram, certamente não eram condicionados ao tempo em virtude de uma fé
mais forte dos apóstolos, ou porque naqueles tempos não se conhecessem ou­
tros recursos contra as potestades além da magia. Também não é verdade que
estaríamos muito acima daquela época e que, por isso, esses atos salvíficos não
seriam mais necessários. Sabemos da existência de inúmeros sofrimentos pro­
fundamente sentidos e que ainda hoje as pessoas necessitam de um Salvador,
do mesmo modo como naqueles tempos. A medicina moderna não tornou o
milagre supérfluo nem o substituiu. Ela não apenas possibilitou a cura das
doenças, mas também provocou outras. O progresso não apenas esclareceu o
ser humano; ele também o enredou em um demonismo ainda pior. O ser
humano continua sujeito a doença e morte. Por isso não se pode simplesmente
substituir a superação sobrenatural dos sofrimentos humanos pelas ciências
como dádiva de Deus. Elas jamais serão capazes de livrar as pessoas de doença
e morte e de eliminar os demônios. Procuramos na cristandade, nas obras de
misericórdia e também na missão externa a ligação com o progresso científi­
co; cremos que com isso podemos substituir o mandato de curar, e muitas
vezes sequer suspeitamos o quanto nos submetemos a suas leis.
Tam bém a missão achou que podia cum prir a segunda parte da ordem
m issionária através de missões m édicas, escola, educação e serviço social. Com

98 W. KÜNNETH, Theologie der Auferslehung, 1951, p. 110.

85
esses empreendimentos propôs-se a preparar o serviço missionário propria­
mente dito, conquistar as pessoas para darem ouvidos à mensagem; no entan­
to, não considerou que essa segunda parte da ordem missionária já pressupõe
a fé. Do lado anglo-saxão acreditava-se inclusive poder realizar o reino de Deus
na terra. Deram-se falsas esperanças às pessoas. Em muitos campos missionári­
os a proclamação era, na melhor das hipóteses, uma complementação do servi­
ço social. () resultado não podia ser outro: essas instituições da missão contri­
buíram para que se proporcionasse tudo à pessoa sem que ela fosse compro­
metida com Deus. A própria missão colaborou na disseminação do secularismo.
A segunda parte da ordem missionária também não pode ser substituída
pela edificação de centros de peregrinação. Ainda que a fé nos santos expresse
a continuidade da Igreja, não se trata (abstraindo do contexto histórico-religi­
oso) de testemunhas vivas que aí atuam, mas de mortos. Não seria justamente
a maior mazela da Igreja o fato de ela crer no Espírito Santo, mas de este, na
verdade, não constituir mais uma realidade para ela? Não está a teologia refre­
ando-o constantemente porque, naturalmente, só pode proceder dele o que
seja conciliável com nossa maneira de pensar, com nossas ordens eclesiásticas
encardidas e com a ciência?
Entretanto, a Igreja também entendeu hoje que há uma carência, uma
deficiência em seu serviço; por isso surgiu o debate sobre o ministério da
cura. No entanto, essa segunda parte de sua tarefa missionária não deve ser
entendida de maneira errada. Falta nela o “todos” que encontramos na primei­
ra parte da ordem missionária. Isso é significativo. Jesus não curou todos os
doentes, nem ressuscitou todos os mortos, nem deu ordem para isso. Também
não expeliu os demônios de todos os possessos. Se pretendêssemos a aplicação
geral, estaríamos levando a ordem para a esfera humana. No caso de Jesus, a
vida desempenhava um papel bem menos importante do que entre nós, onde
chegamos ao ponto de o bem-estar físico estar acima dos mandamentos de
Deus. Em contrapartida, tomou bem mais a sério e considerou mais importan­
te o sofrimento em seu significado para a pessoa. Para ele, o sofrimento era
uma passagem para a salvação da pessoa. Jesus também sabia que com o afas­
tamento do sofrimento ainda não está eliminado o outro reino. Ele pode
irromper novamente a qualquer momento, se não existem as condições para o
milagre. O que, porém, ele quis e o que seus apóstolos deveriam fazer foi o
seguinte: erigir sinais do reino e, desse modo, revelar ao mundo que, a princí­
pio, o outro reino está vencido. Com isso ficava confirmada a pregação de que
ele é o Senhor de todos os senhores e, simultaneamente, o Senhor da vida
humana. Ele não usou o milagre para proporcionar ao ser humano uma huma­
nidade em sentido autônomo, e, sim, justamente para romper a autonomia de
um mundo separado de Deus e vincular a pessoa a Deus. A segunda parte da
ordem missionária deve ser vista sob essas restrições.

86
13. A comunidade como alvo

Com isso está traçada a linha clara da fé. Onde ela não existe, ergue-se
uma frente contra a execução da ordem missionária. Nem todas as pessoas se
deixam levar à fé e, desse modo, salvar. Enquanto for pregado o evangelho,
acontecerá que pessoas deverão ser tiradas de seu ambiente, de sua comunhão
pela palavra de Deus. Com isso o cristianismo entra em oposição a todas as
demais religiões. Onde comunhão religiosa e comunhão por nascimento coin­
cidem, a religião não necesssita de uma comunidade própria. Isso também
vale para o caso em que a comunhão religiosa é maior que a comunhão nacio­
nal. A pregação do evangelho, porém, cria uma barreira entre os seres huma­
nos, porque todos os que chegaram à fé são congregados em um modo de vida
próprio, a comunidade.
A comunidade cristã é um fenômeno único no mundo das religiões. Atra­
vés dela surge igualmente um sinal do reino de Deus na terra. A comunidade é
a comunhão dos que, na fé, se entregaram ao Senhor e que vão ao encontro
dele. Seus membros também pertencem ao povo. A comunidade participa da
vida do povo, influencia-o através da proclamação e de sua vida diferente, e
representa o povo vicariamente perante Deus. Não obstante, ela é uma grandeza
sui generis, com leis de crescimento próprias. Ela pertence ao Senhor e, não
obstante, ele a ordenou de tal maneira que sua integração no povo seja impor­
tante para ela. Pois se fosse e pudesse separar-se dele, ela seria, simultaneamente,
uma instituição político-social e não mais se distinguiria das formas de religião
gentílicas. Se, porém, constituísse uma comunhão de fé com o povo, deixaria de
ser comunidade de Jesus Cristo. Sua dupla pertença lhe confere o caráter especí­
fico. Pela palavra de Deus e a comunhão dos discípulos entre si, ela está subordi­
nada somente a seu Senhor e a partir dele tem que agora caminhar com o povo,
ou também contra ele, sob o juízo da palavra de Deus. No entanto, ela não pode
se isolar do povo. Ela tem participação na vida nacional e, não obstante, não
pode aceitar para si os limites do povo, pois pertence à única Igreja de Jesus
Cristo e tem seus irmãos e suas irmãs entre todos os povos.
Sem dúvida, ela tem que sofrer sob o desenrolar da história, mas não está
sujeita a ele como os povos, pois sempre se encontra na continuidade que vem
de Jesus Cristo e vai ao encontro de sua vinda. Nela estão congregados os filhos
de Deus de todos os povos e unidos na fé no único Senhor (Jo 11.52). Sem
dúvida existem nela pessoas de diferentes raças, mas essas diferenças não se
expressam nela. Embora possa reunir-se somente em comunidades locais, apre­
sentando, portanto, todas as características humanas, ela vive, não obstante, de
acordo com as leis da Igreja que é uma só. O decisivo não são as peculiaridades
de sua roupagem humana, e, sim, a fé comum e o único Senhor, que tem riqueza
para todos (Rm 10.12; Cl 3.11). Ela se encontra em meio a esta vida e trabalha
em sua conformação, seguindo suas próprias leis, mas não se entrega à vida
como a querem moldar os seres humanos de acordo com seus próprios ideais.

87
E q u a n d o a c o m u n id a d e se to rn o u u m só c o rp o , n o q u a i estão e lim in ad as as
an tig as d iferen ças n acio n a is e sociais, cia a n te c ip a o novo povo d c D eus, q u e se
e n c o n tra sob a basikia d e seu kyrios celestial, a g u a rd a n d o sua parousia, su a e n tra ­
d a triu n fa l com o r e i ."

14. A im portância do Batismo para a missão

A apropriação da salvação sempre transcorre do seguinte modo: o crente


é integrado na comunidade, recebendo, através dela, um grupo de irmãos na
fé que, juntamente com o crente, servem ao mesmo Senhor. Essa unidade da
comunidade está garantida tanto pela mesma fé quanto pelo mesmo Batismo.
Através disso a comunidade assume forma visível na terra. Não é somente a fé,
não é somente a Palavra, não apenas a veneração de Cristo que evidenciam a
posição peculiar da comunidade no mundo. Se assim fosse, os milhões de se­
cretos veneradores de Cristo na índia, ou no Japão, ou entre os maometanos
deveriam pertencer à Igreja. A posição peculiar da comunidade no mundo se
manifesta no Batismo. Aqueles “cristãos” secretos renunciam ao Batismo justa­
mente porque não querem renunciar à unidade com seu povo e sua religião. O
Batismo os separaria de ambos. Ele é o sinal do reino entre os povos e isso o
transforma em ato de confissão de Cristo perante o mundo. Por meio dele fica
manifesto a todos que os crentes se deixaram integrar em Cristo e que através
dele se desligaram da antiga comunhão religiosa.
É significativo o fato de os gentios entenderem o Batismo exatamente
nesse sentido, enquanto nós cristãos sempre somos reticentes em reconhecer
o aspecto exterior do Batismo. Em geral, os gentios nada têm a opor a que seus
compatriotas ouçam a palavra de Deus, a que venerem a Cristo. Sua religião
oferece espaço para isso. Se, todavia, alguém se deixa batizar, eles se tornam
intolerantes. Aí começa a resistência. Dessa maneira o Batismo se torna para
os gentios o sinal de que os batizados romperam com o paganismo e com o
povo. Através do Batismo o Senhor transforma sua comunidade numa grande­
za especial no mundo. “Desde o princípio ele [o Batismo] aparece como ato
decisivo de integração na comunidade e como algo natural, fora de discussão.
Nisso reside também uma característica constante da tradição que atribui o
Batismo à vontade do Ressurreto.”99100
G. Warneck põe ênfase no Batismo como meio missionário, ainda que de
forma pouco clara, porque, como o mostra Dürr, por um lado, está interessado
em reconhecer o efeito objetivo do Batismo e, por outro, não obstante, dá mais
valor à conversão. Em contrapartida, Hoekendijk faz pouca referência aos sacra­
mentos e não lhes atribui caráter constitutivo. Isso admira tanto mais por ser

99 I.IECHTF.NI IAN, op. cit., p. 88.


100 1D., ibid., p. 46.
justamente através do Batismo, que junto com o ensino cria o discipulado, que a
comunidade se manifesta como grandeza escatológica. Por meio dele se consti­
tui a comunidade dos últimos tempos dentre todos os povos. O apóstolo põe
grande ênfase nisso (1 Co 12.13; G1 3.28). Através do Batismo os crentes fazem
parte do corpo de Cristo. Os não-crentes e os não-batizados não têm parte nele.
Por meio do Batismo surge comunidade de Jesus Cristo cm todos os povos, e
dessa maneira a comunidade constitui a prova de que, pelo fato de pertencer a
Deus, a humanidade é uma unidade em seu pecado e em sua redenção. Por meio
dele, a comunidade se torna, simultaneamente, o sinal da promessa de que Deus
estabelecerá essa unidade, mesmo que seja através do juízo.
Com isso já fizemos afirmações essenciais sobre o próprio Batismo, pois
esse aspecto exterior e humano é apenas uma efluência daquilo que Cristo
concede aos crentes pelo Batismo. Objeta-se que esse dom de Cristo no Batis­
mo outra coisa não poderia ser do que aquilo que é transmitido pela Palavra.
Tudo que a Escritura atribui aos sacramentos também seria transmitido na
Palavra. Neste caso, porém, se esquece a outra maneira da mediação. Pode-se
ouvir ou ignorar a Palavra, pode-se levá-la a sério ou deixá-la de lado. No caso
dos sacramentos, porém, cada qual está colocado pessoalmente diante da deci­
são e tem que expor-se ao agir de Deus. A pessoa pode fingir, pode fazê-lo por
tradição, mas nem por isso pode subtrair-se à ação de Deus. Por meio do agir
de Deus os sacramentos sempre se tornam palavra real, que tem as caracterís­
ticas da graça e do juízo.
O Batismo é, primeiramente, o sinal da nova aliança e integra os batizados
no novo povo de Deus. Portanto, ele não é somente um ato exterior de recep­
ção na comunidade, no que foi transformado em muitos empreendimentos
missionários. Ele tomou o lugar da circuncisão (Cl 2.11). São justamente os
cristãos gentílicos que acentuam o caráter de aliança do Batismo. Para eles o
Batismo é um sinal da fidelidade de Deus, que aceitou os crentes de modo
visível em sua comunhão. Sabem que na imputação bem pessoal da reconcili­
ação por Cristo se tornaram propriedade de Deus (Ef 1.14; Tt 2.14). Visto que
no Batismo tudo isso é realizado por Deus, ninguém pode arrebatar os batizados
da mão dele. Ninguém pode anular o Batismo ou substituí-lo. O batizado so­
mente pode decidir se o ato de Deus realizado nele deve ser um ato de miseri­
córdia ou de juízo.
O batizado, porém, é propriedade de Deus pelo sangue da aliança. No
Batismo é imputado ao crente tudo que Cristo fez por ele através da cruz e
ressurreição. Os batizados se revestiram de Cristo, isto é, agora em tudo têm
parte em Cristo. A história de sua nova vida é como que a co-história de Jesus
Cristo (Rm 6.3-5). E porque na fé permitem que esse evento crístico se realize
neles, também podem, como redimidos, alegrar-se inteiramente com a pers­
pectiva da consumação (Tt 3.5-7; 1 Pe 1.3s.).
Para que essa fé permaneça e preserve os crentes na nova vida, o Batismo
institui a comunhão dos batizados, a comunidade. Pelo Batismo eles tornaram-
se corpo de Cristo ou um templo, no qual estão tão intimamente unidos a Cristo
pelo seu ato salvífico, que também podem ter comunhão entre si, na qual a nova

89
vida cria para si um espaço. Nela devem estar sob o amor, de maneira que um
membro ajude a carregar o outro e se lhe torne um auxiliador para a vida. Como
comunidade, são constantémente ouvintes da Palavra e reúnem-se para oração e
louvor. A nova vida não é uma vida desarraigada. Ela sempre precisa nutrir-se
das dádivas que Deus oferece a sua comunidade. Por seus cultos, a comunidade
torna e retorna a colocar-se do lado de Deus num mundo hostil a Deus. Na
comunidade dos batizados se tornam visíveis justamente o senhorio de Deus e a
vida nova a ele associada (Hb 9.4; Ef 4.13; Fp 3.12; GI 3.27).
Tornar-se crente, portanto, é apenas um alvo preliminar. O próximo passo
é viver como crente na comunidade, e nela e com ela servir ao Senhor. Com isso
está decidido que o reino de Deus não pode consistir apenas in actu. Palavra da
aliança, sinal da aliança são algo constitutivo. Com isso, naturalmente, não estamos
dizendo que o reino coincida com a comunidade. Abstraindo do fato de que
também entre os batizados há hipócritas, o reino de Deus é bem maior do que a
Igreja empírica. Esta nunca pode ser mais do que uma forma preliminar ou um
estágio intermediário. Se ela considerasse isso, certamente se orientaria mais
pelo reino vindouro e não se exauriria no stalus quo eclesiástico.

15. Santa Ceia e missão

Para nutrir a nova vida criada no Batismo, preservar os crentes nos dons
salvíficos, fortalecer sua comunhão e estreitar sua união com o Senhor, Cristo
instituiu sua Ceia como Ceia da Aliança. No entanto, seria insuficiente entendê-
la apenas como meio de edificação. Também a Ceia tem caráter missionário.
P o r m e io d o a to d a C eia, J e s u s n ã o q u e r e x p lic a r so m e n te o s e n tid o d e su a
m o rte e revelar a d e stin a ç ã o u n iv ersal d a a lia n ça q u e se fu n d a m e n ta n ele, m as
q u e r ta m b é m c o m p ro m e te r os p a rtic ip a n te s, ao c o m e re m o p ã o c to m a re m o
v in h o , com a fid e lid a d e e p o s te rio r e x ten são aos m uitos. N este se n tid o pode-se
c o n sid e ra r a C eia c o m o a h o r a d o n a sc im e n to d a m issão e n tre o s g e n tio s.101

Mais importante do que essa muito arriscada ênfase na Santa Ceia nos
parece ser o fato de ela separar nitidamente a comunidade da Ceia do mundo
e do povo com sua religião. Ela não é apenas a expressão da comunhão mais
íntima do Senhor glorificado e vindouro com os membros de seu corpo, ela
não efetua apenas comunhão entre os membros baseada no perdão, de manei­
ra que seja formadora de comunidade no mais alto grau, mas separa os crentes
das demais pessoas. Entre todos os povos a refeição conjunta expressa a comu­
nhão daqueles que têm a mesma fé e que, em virtude do perdão, vivem em paz
uns com os outros. Na Ceia se torna evidente que a comunhão com Cristo
exclui qualquer outra comunhão. Por isso Paulo pôde, de acordo com 1 Co 10
e 11, usar a Ceia para combater do modo mais rigoroso o gentilismo, a comu­
nhão com os demônios e, assim, o outro reino.

101 Ibid., p. 40.

90
Ao mesmo tempo, através da Santa Ceia a comunidade se torna constan­
temente uma comunidade confessante. Por meio dessa celebração ela procla­
ma ao mundo a revelação que aconteceu uma vez por todas (1 Co 11.26). Por­
tanto, também os dons de Deus nos sacramentos têm o seguinte aspecto du­
plo: servem à salvação do ser humano e, ao mesmo tempo, são o conteúdo do
testemunho dos salvos. Por isso os sacramentos são de grande importância
para a missão entre os povos 102 .
• ~

16. A Igreja - um a grandeza sui gen eris

Todos esses meios da missão, esses dons de Deus, separam a comunidade


de seu ambiente. É um mistério o fato de, através deles, a Igreja influenciar de
modo mais incisivo seu ambiente justamente quando ela mesma nada mais
quer ser do que uma comunidade do Senhor surgida através dos meios da
missão. Quanto mais deseja ser isso e somente isso, tanto maior sua influência
sobre o mundo. Através de seu testemunho, os povos vão sendo cristianizados
aos poucos. Por isso surge aqui a pergunta: qual a relação da Igreja com o povo
depois de este ter sido cristianizado?
Também quando todos os membros de um povo são batizados, inclusive
na Igreja nacional, não está eliminado o limite entre Igreja e povo, pois a
divisória não separa apenas cristãos e não-cristãos, mas fé e descrença, portan­
to atravessa a comunidade. Por causa do pecado, que tem sua influência tam­
bém na comunidade, sempre haverá joio no meio do trigo. Por isso, também
num povo cristianizado, a comunidade sempre deverá traçar os limites quando
estes não se expressarem por si através de sua vida. Ela se confronta com seu
povo, tentando sempre conquistar os mornos e indiferentes, procurando atraí-
los para dentro da nova vida.
O limite mais marcante, porém, se estabelece pela disciplina, que, aliás,
nunca deve ser entendida como castigo, mas como um meio do amor. Ela não
consiste numa atividade legalista, mas é poimênica em sua forma concreta.
Por sua disciplina, a comunidade não se confronta apenas com a descrença,
mas ela própria sempre se congrega em torno de seu Senhor. Por isso a disci­
plina é, ao mesmo tempo, expressão do testemunho. Não surpreende, pois,
que disciplina e missão estejam intimamente inter-relacionadas. Onde, por meio
da disciplina, se conserva viva a consciência de que os seres humanos têm que
ser salvos, a comunidade também não terá dificuldade em confrontar-se com o
mundo no apostolado. Por outro lado, também a missão preserva na comuni­
dade o desejo de preocupar-se com os que andam no engano e na indiferença.

102 W. FREYTAG, Die Sakramente auf dem Missionsfeld, Evangelische Missionszeitschrifi, 1940.

91
Capítulo 5:

A comunidade da salvação

1. Com unidade e reino de Deus

Portanto, o Senhor congrega seus crentes em sua comunidade e nela os


preserva em seu serviço por meio de Palavra e Sacramento. Assim a comunida­
de se torna portadora da revelação no mundo. Ela possui algo que outros não
têm. Conhece a vontade de Deus, o poder da oração e tem o dom da vida
eterna. Através do Batismo, essa comunidade agora também recebe a autori­
dade para um testemunho de Deus aos semelhantes. Para isso Deus também
lhe dá os dons.
Deus não força a ninguém em sua nova criação. Ele começa com algo
que ele próprio colocou no ser humano através de sua criação, e agora usa esse
dom por meio da atuação do Espírito em favor da comunidade e para o bem
das pessoas. Por isso existe uma diversidade de dons e capacidades na comuni­
dade. Nenhum desses dons, porém, deve servir para erguer a um e escravizar
a outro. No reino de Deus essa lei do mundo está abolida. Quanto mais dons
alguém recebeu de Deus, tanto mais está chamado para servir e testemunhar.
Tudo que podemos fazer no reino de Deus é expressar a gratidão a Deus
devolvendo-lhe, no serviço, os dons que ele nos deu.
Pelo Batismo também nos tornamos cidadãos do reino. Não devemos,
porém, incorrer no erro de querermos identificar a comunidade com o reino.
Temos que estar cientes de que, por enquanto, o reino ainda está oculto entre
nós. A comunidade faz parte do reino, mas ela jamais o representa em sua
amplitude, plenitude e glória. O reino excede em muito a comunidade, por­
que dele fazem parte as igrejas de todos os tempos, os anjos e todo o mundo de
Deus. Não obstante, a comunidade tem o privilégio de estar incluída (Ap 1.6).
Não se deve esperar que o reino de Deus possa ser tornado visível pela comu­
nidade e que tudo que a comunidade faz e representa fosse expressão do reino
de Deus. Na medida em que Satanás tem permissão de penetrar na comunida­
de, ela também ainda pertence ao outro reino; mesmo assim, também o reino
de Deus está presente nela, se ela vive na fé na morte reconciliadora e na
ressurreição. Na fé e no testemunho se revela a vitória de Jesus Cristo, e, não
obstante, ela está oculta na comunidade, porque só os olhos da fé podem vê-la.
Por mais que o reino ainda esteja oculto pela fraqueza da comunidade e pela
alteridade do agir de Deus na comunidade, ela pode, mesmo assim, sentir que
ele é um reino de poder, porque cria nova vida nos que chegaram à fé (1 Co

92
4.20). Portanto, o reino está presente na comunidade e, por conseguinte, entre
as pessoas na medida em que Deus atua diretamente e as pessoas se deixam
chamar a ele. Estará presente, porém, em plenitude somente quando Jesus
Cristo voltar com poder (Mc 9.1). A comunidade vive sempre num estágio
preliminar do reino. Por isso seu testemunho e serviço devem encontrar-se sob
o signo do reino vindouro e ser prestados na esperança.

2. A com unidade do apostolado

Tendo recebido o dom do Espírito, a comunidade está chamada a teste­


munhar a favor do reino vindouro. Toda pessoa batizada tem o dever de dar
esse testemunho e está autorizada para isso. A tensão entre missão e Igreja
jovem só se pôde instalar porque a missão não tomou a sério os dons do Batis­
mo, negando assim também aos batizados direitos iguais para o serviço. A
missão não havia compreendido que o Batismo confere aos cristãos gentílicos
os mesmos dons que possuem os outros membros no reino de Cristo e que,
conseqüentemente, também têm os mesmos direitos e deveres. Por isso o fato
de as igrejas jovens não terem sido educadas e admitidas para o trabalho da
divulgação do reino por parte das missões constituiu-se numa verdadeira
usurpação dos direitos e numa subordinação das comunidades jovens. Foram
excluídas do trabalho missionário, como se o reino de Deus dependesse da
comprovação de certo nível de cultura! Dessa maneira necessariamente a mis­
são se apresentava como privilégio da cristandade antiga e, conseqüentemen­
te, como a expansão eclesiástica do Ocidente. Muitas das acusações contra a
missão não teriam surgido, se esta tivesse compreendido que no serviço missi­
onário e, concomitantemente, no apostolado se expressa a vida da comunida­
de como membro do corpo de Cristo.
Se a comunidade não estiver permeada do apostolado, se lhe for negada
a autoridade para o testemunho e se não lhe for concedida a liberdade para o
serviço, ela não pode devolver os dons que Deus lhe conferiu. Por isso está
fadada a definhar em sua vida e a lutar permanentemente pela manutenção
desses dons. Porque o segredo desses dons consiste no fato de se manifestarem
somente onde podem cumprir uma tarefa. A conseqüência é que a comunida­
de ouvinte e celebrante pede constantemente por esses dons e não se dá conta
de que Deus atende as orações superabundantemente quando sua fé pode
transformar-se em obediência. Por isso ser assim, temos um cristianismo ver­
dadeiramente ávido de gozo, que se exaure em edificação, mas jamais vem a
ser um edifício vivo. Enquanto o serviço do ministério só acontece sob o ponto
de vista do atendimento da comunidade, ele não pode ter influência para fora.
Por essa razão também se percebe tão pouco do poder do reino. Por mais que
o ouvir da Palavra e o louvor da liturgia façam parte do verdadeiro culto e,
conseqüentemente, da fé, eles só alcançam sua plenitude e seu alvo caso se
deixarem usar para o envio. Onde se impede a possibilidade do serviço e,
portanto, da obediência, a vida definha.

93
O serviço da comunidade corresponde a sua salvação e a sua posição no
mundo. Ambas as coisas se impõem a partir da escatologia, são determinadas a
partir da volta de Cristo e do juízo. A salvação existe porque há juízo e condena­
ção. Por isso a comunidade sempre tem que chamar a atenção para os meios
através dos quais a salvação é conseguida. Em Jesus Cristo, ela é o fato decisivo
na história da humanidade. Por isso somente podemos cumprir o testemunho
do reino através da proclamação da promessa do reino afirmando que ele já
veio. Com isso, pelo conhecimento da salvação, a comunidade está colocada no
serviço da revelação e da salvação. Por meio de Jesus Cristo, ela se tornou uma
comunidade da salvação, e por isso também pode levar a salvação aos povos.

3. A testem unha

Por meio do Batismo, os cristãos recebem o mesmo caráter das testemu­


nhas que já existia na cristandade primitiva. Evidentemente, hoje não pode­
mos mais ser testemunhas de fatos como se fôssemos testemunhas oculares.
Podemos testemunhar somente o que nos é dado na fé. A fé, porém, é a certeza
do que se espera. Por isso os cristãos são autênticas testemunhas da verdade,
para as quais aquilo que, segundo a Escritura, aconteceu por meio de Cristo se
tornou uma certeza incontestável, portanto uma convicção própria. Dessa ma­
neira podem transmitir essa convicção, viva por sua fé, como verdade acontecida
em Cristo e testemunhá-la perante o mundo. Quando, porém, a comunidade
testemunha a verdade, ela tem que ter consciência de que, ao confrontar o
mundo com a verdade, ela própria está sendo colocada perante a pergunta
existencial.
Justamente no testemunho da verdade se evidencia que, em última análi­
se, é Deus que promove sua missio e usa a comunidade para o serviço da salva­
ção, pois é ele que, através de sua revelação, entra em juízo com os seres huma­
nos. Toda proclamação séria leva o mensageiro a uma situação de julgamento.
E nela que ele tem que atuar como testemunha de Deus. Isso resulta em juízo
sobre as pessoas. Deus contende com as pessoas (Is 43.9-13; 44.7-11). Ele leva
os povos ao tribunal, onde se deverá decidir se ele é Deus. Nesse julgamento os
membros da comunidade de Deus devem ser suas testemunhas (Is 43.10; 44.8).
O testemunho da comunidade transforma o ouvinte da mensagem em culpa­
do, ele passa a ser réu.
Isso se torna evidente sobretudo na paixão de Jesus e nos processos judi­
ciais a que os apóstolos foram submetidos (At 4.5; 7.12). Primeiramente os
mensageiros sempre aparecem como réus. Visto, porém, que não têm nada a
declarar senão apelar ao Senhor e sua revelação, eles acabam sendo os acusa­
dores, de maneira que os juízes passam a ser os julgados. Portanto, em última
análise é Deus que entra em juízo com os seres humanos através de sua comu­
nidade e que pronuncia a sentença. Desse modo a mensagem do evangelho se
torna já aqui, no juízo que executa, a mensagem da salvação.

94
4. A comunidade do sofrim ento

A contenda de Deus com os seres humanos é, como todo o seu agir, um


sinal de seu governo régio com eles. Como Rei e Senhor, ele poderia destruir
os seres humanos. Antes, porém, exige deles uma prestação de contas. Tam­
bém aqui ele escolhe primeiramente o caminho da loucura e da fraqueza, que,
também neste caso, se revela mais sábia e salutar que qualquer sabedoria hu­
mana. Deus entra em juízo com os humanos que ele quer salvar, levando sua
comunidade ao sofrimento. No sofrimento da comunidade, porém, transparece
constantemente a depravação do ser humano, sua mentira, egoísmo, violência,
o poder do pecado e o poder demoníaco reinante. O Senhor da comunidade
revela-se ao sofrer ele mesmo com os seus e ao fazer com que nesse sofrimento
as pessoas sejam reduzidas a nada em sua maldade e antidivindade. Por isso,
pelo sofrimento dos cristãos, sua mensagem e o próprio sofrimento se tornam
um martyrion, uma prova da verdade. Assim a morte redentora de Cristo se
torna um testemunho para Deus (1 Tm 2.6).
Visto assim, o sofrimento não é uma derrota, c, sim, a mais agressiva
acusação que Deus faz contra o mundo e, portanto, o mais violento ataque ao
mundo. Os sofrimentos da comunidade são uma prova de que, com sua missio,
Deus está obrando de um modo especial para conquistar as pessoas. Nos tem­
pos de sofrimento, Deus quer usar a Igreja de modo especial como instrumen­
to do apostolado. Quer avançar um passo em sua história salvífica com os seres
humanos. Por isso os tempos de sofrimento são períodos nos quais as promes­
sas feitas à Igreja se cumprem de maneira especial. Elas capacitam a Igreja a se
expor ao sofrimento e a se deixar usar. Faz parte da sobriedade da revelação o
fato de que Deus não deixou sua comunidade na ilusão, não tendo prometido
que a redenção aconteceria no sentido eudemonístico, de sorte que os cristãos
pudessem esperar uma vida boa em virtude de sua conversão. Pelo contrário,
deixou bem claro que a comunidade tem que sofrer por amor a ele e ele se
revela como o Deus verdadeiro justamente no fato de lhe ter dito isso (Mt
10.17ss.; Mc 13.9-13; Jo 16.1ss.).
Também nesse ponto ele entra em choque com outras religiões que pro­
metem bem-estar a seus adeptos e vêem no sofrimento uma prova de que a
pessoa não tem o favor de Deus. Em todas as religiões gentüicas, a vida é uma
efluência da religião, e em quase todas, felicidade é a mesma coisa que salva­
ção. Deus, porém, não redime do sofrimento. Desse modo confere ao sofri­
mento um sentido especial em seu plano salvífico, também das pessoas indivi­
dualmente. Assim transforma o sofrimento em privilégio especial para a co­
munidade, um sofrer com Cristo (1 Pe 4.12ss.; At 5.41). Sabemos que o sofri­
mento de muitos também pode ter outro sentido; pode ser causado pelo peca­
do; pode ser decorrente do envolvimento dos cristãos com seu povo. Não pre­
cisamos analisar isso agora. Basta saber que o sofrimento da comunidade sem­
pre tem um sentido especial, porque ela é propriedade e instrumento de Deus.
Em última análise, ela não tem outro caminho a seguir do que aquele que seu
Senhor trilhou (Rm 8.17). Através desse sofrimento, a comunidade participa
do senhorio de Cristo e, assim, se torna uma grandeza escatológica, na qual os

95
sinais dos últimos tempos se revelam com especial nitidez. Kla não está livre
deles, mas recebe neles a incumbência de sofrer vicariamente pelo mundo. Ela
está reconciliada com Deus, e por isso sempre está a serviço da reconciliação.
É precisamente no sofrimento que comprova sua posição especial no mundo e
demonstra assim estar disposta a submeter-se a seu Senhor com toda a sua
existência.
O sofrimento da comunidade tem maior poder de testemunho do que a
Palavra isoladamente. Ele se torna um testemunho de atos, uma confirmação
da Palavra. Por essa razão os mártires sempre ocuparam o lugar de maior
destaque entre as testemunhas. Por isso a fuga do sofrimento sempre foi consi­
derada, com razão, como apostasia, como negação do Senhor. Negar-se a so­
frer é a mesma coisa que rejeitar a missão da comunidade. Com isso ela pró­
pria se separa do corpo de Cristo (Lc 24.14ss.). Por isso a tarefa primordial do
ministério eclesiástico é preparar a comunidade para os tempos de sofrimento
(At 14.22), como também o Senhor advertiu seus discípulos acerca desse teste­
munho derradeiro.
Nesse sofrimento, a comunidade pode ter a certeza de que o Senhor, que
nos precedeu no caminho do sofrimento, lhe concede sua presença de modo
especial, para, com ela, levar a missão da comunidade, dentro do contexto da
missio Dei, a um resultado especial (Mt 10.20-21; Jo 14.26; Lc 12.1 ls.). Ele o faz
estando próximo dela com seu Espírito, expondo-se, assim, repetidamente ao
juízo e indo ao sofrimento com a comunidade.
É estranho o fato de que a missiologia mais recente, com efeito, fala do
sofrimento, tenta esclarecer a situação da Igreja, mas dificilmente chega a falar
do significado histórico-salvífico e escatológico do sofrimento. A cristandade
de nossos dias teme o sofrimento, continua sonhando com um mundo
cristianizado, apela a direitos humanos e liberdade de consciência e procura
fazê-los vigorar: para escapar do sofrimento, torná-lo impossível, ao invés de
reconhecer sua vocação para o sofrimento. Não há espaço para o sofrimento
na necessidade eclesial de segurança, nem no conceito moderno de ser huma­
no. Também não se coaduna com as idéias que a maioria das pessoas tem do
reino de Deus.
A idéia do sofrimento se manifesta na teologia contemporânea somente
quando se chega a falar do pequeno rebanho, do resto que a Igreja representa­
rá no tempo derradeiro. Inclusive nesse contexto, fala-se apenas do apostolado,
mas não do sofrimento. Com isso surge a pergunta se a referência ao resto,
que, sem dúvida, encara a realidade, não acaba sendo igualmente uma fuga
para a derradeira possibilidade de existência da Igreja.
O Senhor não nos deixou na incerteza sobre o fato de que o mundo
questionará constantemente o direito de ser da comunidade. O Livro do
Apocalipse mostra de modo assustador o caminho da comunidade pelo mun­
do. Ela será sempre uma comunidade perseguida, atribulada, sofredora. Sem­
pre será estranha e peregrinadora no mundo (1 Pe 2.11). Seu protótipo sem­
pre será o povo de Deus migrante. Justamenle através dessa migração Deus
chega ao alvo da missio Dei com sua comunidade, e precisamente nela se evi-

96
dencia que Deus concede a sua comunidade sua presença todos os dias, até o
fim do mundo. Há sobretudo três características da mensagem que tornam a
comunidade sem pátria e a fazem parecer perigosa para o governo do mundo:
1) Por causa da posição especial que lhe foi conferida pelo Batismo, a
comunidade é uma prova de que ainda existe outro senhor, o Senhor do céu e
da terra, ao qual devem servir todos os seres humanos e por cuja vontade
devem orientar seu próprio governo. Desse modo a comunidade se torna um
testemunho contra uma autoridade que se comporta como se fosse absoluta.
Por meio de sua presença e da orientação de sua vida, a comunidade remete
constantemente ao único Senhor perante o qual também a autoridade é res­
ponsável. Com isso ela destrói o sonho de que, em última análise, o bem-estar
da comunhão nacional deveria ser determinante e que a comunhão nacional
somente pode ser estabelecida dentro dos parâmetros que os governantes esta­
belecem com base em sua posição.
2) A comunidade é corpo de Cristo e, em virtude disso, tem a comunhão
com todos os membros de seu corpo. Quem não se confessa membro da comu­
nidade do Senhor no mundo inteiro e age contra ela, esse também não pode
pertencer ao corpo de Cristo. A comunidade não pode tomar em considera­
ção juízos nacionais, étnicos e raciais, pelo contrário, tem que destruí-los, se
não quiser tornar-se infiel à fraternidade criada pela morte de Jesus.
3) Existe uma responsabilidade eterna e, pelo senhorio de Jesus e sua
volta, existe um juízo. O ser humano somente pode considerar-se um senhor
soberano enquanto a parúsia ainda não é um fato consumado. Quando tenta
impedir a pregação de juízo e condenação, somente pode, com isso, rejeitar a
Jesus Cristo e sua redenção. Diante da pregação do juízo caem por terra toda
auto-redenção, todo niilismo, também toda imbecilização do ser humano. Ela
abre os olhos para as verdadeiras inter-relações das coisas.
Por essas razões o mundo não tem outra opção do que posicionar-se
contra a comunidade e, por meio de rejeição, restrição e combate, levá-la cons­
tantemente ao sofrimento. Com esses recursos acredita poder impedir a men­
sagem da comunidade, a proclamação da verdade, que para ele é loucura. Deus
é tão grande que coloca inclusive essa atitude do mundo a serviço de sua
missio. Porque seu go%'erno difere do do mundo, o testemunho da comunidade
tem que brilhar mais ainda justamente através do sofrimento. Em última análi­
se, é neste ponto que irrompe a luta decisiva entre o senhorio de Deus e o
senhorio do diabo, que atinge seu auge no anticristo. Nesse embate, que, ape­
sar de toda a alegria com os sucessos da missão, nos confere a necessária sobri­
edade, a missão se torna literalmente o oponente do anticristo (2 Ts 2.6). Por
isso o sofrimento da comunidade tem que evidenciar-se permanentemente, de
modo especial, na missão.
A comunidade só é capaz de suportar esse sofrimento e, através dele,
exercer corajosamente seu testemunho, porque pode ter a certeza de que Deus
a leva ao alvo derradeiro por meio de sua missio. Por meio dessa esperança, a
comunidade está interiormente livre do mundo, no qual tem que viver para
nele exercer seu testemunho. Ela sabe que, nesses assuntos, não será o mundo

97
que terá a última palavra, mas o Senhor, que sofre com sua comunidade e que
põe termo à luta por meio de sua intervenção. Por isso a comunidade não luta
pelo mundo, mas pelo reino, ao qual já pertence pela morte e ressurreição de
Jesus. Ela já está transportada para o reino celestial (Ef 2.5). Por isso busca as
coisas do alto (Cl 3.1) e busca a Jerusalém celestial como sua pátria (Hb 12.22).
Com isso está incluída na Igreja de todos os tempos que com ela trilhou esse
caminho. Essa fascinante esperança é a razão básica para a atitude da comuni­
dade.
O sofrimento da comunidade desemboca na redenção que está encerra­
da no estabelecimento do reino por meio de Jesus Cristo. Com ele Deus encer­
ra sua missio. Então a comunidade cumpriu sua missão. Ele pode, então, cantar
o hino de vitória dos redimidos, não como comunidade governante, não como
comunidade que tem a registrar grandes sucessos missionários, não como co­
munidade triunfante, mas como comunidade vencida, que tem parte na vitória
de Jesus por meio da redenção (Rm 8.3 lss.). Então, porém, também poderá ter
parte juntamente com seu Senhor, que em sua missio trilhou o caminho da
cruz, em sua glória. A comunhão plena com Deus estará restabelecida. Deus
terá chegado ao alvo com sua missio. Na nova criação não haverá mais necessi­
dade de missio. No entanto, agora, no tempo entre ascensão e parúsia, ela é
tanto mais urgente, porque somente ela pode anunciar às muitas pessoas que
se encontram fora da comunidade de Jesus o caminho para a comunhão com
Deus e salvá-las do juízo.
Apêndice

A justificação como força


conform adora da missão*

Quando perguntamos pelo sentido, natureza, tarefa e conformação da


missão, precisamos investigar sua origem e o mistério último. Somente se fi­
zermos isto poderemos superar a crise na qual hoje se encontram a Igreja e a
missão, e encontraremos o rumo e o objetivo de nosso trabalho. O trabalho
que se segue será uma tentativa com esta finalidade.

1. A situação

Nenhum setor vital da Igreja se encontra hoje numa crise interna e externa tão
grave como a missão entre os gentios. Porém só se pode passar por esta crise sem
lhe dar atenção, caso não se tenha percebido que através dela a própria igreja
é levada à reflexão. Pois a missão é o sismógrafo da vida eclesial, onde se
esboçam com a maior intensidade as catástrofes que ameaçam a Igreja. Em
vista da atual auto-segurança geral da Igreja, é preciso dar boa atenção a ela.
Na missão a Igreja pode reconhecer quão frágeis são todos os amparos humanos dentro
do “mundo rebelde”, no “atual éon perverso" (G1 1.4). Os estados nacionalistas e
totalitários do leste, com sua cosmovisão anticristã e seu messianismo político,
não se importam com garantias jurídicas ou financeiras para a Igreja. Eles
negam à missão e às igrejas novas o direito à divulgação do evangelho, rejei­
tam Deus como Senhor e Juiz e estigmatizam seus servidores como agentes da
política expansionista do capitalismo ocidental. A partir daí, a Igreja e a mis­
são precisam deixar-se perguntar constantemente se trilharam o caminho cor­
reto, em conformidade com a vontade de Deus, e como, nesta situação, podem
conformar sua tarefa*1.

* Fonte: Die Rechtfertigung ah gestaltende Kraft der Mission, 1952.


1 M. C. A. WARREN, The Missionary Obligation o f the Church, 1RM, 1950, p. 393s.; W. FREYTAG,
Der grosse Auftrag, Stuttgart, 1943.

99
Soma-se a isto, em segundo lugar, algo muito mais grave: as igrejas ou
ainda não estavam totalmente conscientes de sua tarefa missionária ou se tor­
naram inseguras quanto a ela. Ela é contestada hoje em suas próprias fileiras
num duplo sentido. Isto se torna especialmente claro para nós a partir do
segundo dos escritos abaixo indicados. Para falar primeiro a partir da frente
de batalha, isto acontece por parte das igrejas novas, que, em sua aspiração por
autonomia, se deixam determinar em suas ações também por idéias nacionais
e fazem depender de seu consentimento um trabalho independente das igre­
jas antigas, a colaboração ou cooperação da missão no campo missionário, ou
que, para assegurar sua existência, como na China, têm de renunciar a toda
cooperação com igrejas estrangeiras. Neste processo elas dificilmente estão
conscientes de que assim se tornam, em meio a uma esmagadora maioria pagã,
senhor da ordem missionária e questionam a irmandade cristã. Em relação a
algumas delas precisa-se perguntar se elas conhecem o dei divino (= “é necessá­
rio”) (Mc 13.10) e se sabem que “autonomia” não é um conceito bíblko-teoló-
gico, mas que a koinania (= comunhão) ê a definição da natureza da Igreja em
vista do mundo não-cristão e frente a ele.
O relatório de Whifby*, porém, prova também de modo inequívoco que a
causa primordial para a atual situação crítica da missão deve ser procurada nas
igrejas antigas e em sua teologia. Foram elas que, no marco da ideologia do
Corpus Christianum (= cristandade), limitaram a tarefa missionária da Igreja, se­
pararam o ministério eclesiástico e o missionário e relativizaram a pretensão do
evangelho. Compreendeu-se em medida demasiado diminut a que somente se pode
ser Igreja deJesus na medida em que se deixa que se seja usado por seu Espírito para
anunciar o evangelho como a revelação da verdade divina universal em todo o mundo
da descrença e para levar a salvação única de Deus a todas as pessoas. Contentamo-
nos demais com uma teologia como ciência, sem considerar “que toda teologia
cristã, conforme sua natureza mais íntima, é história bíblica”, i. é, proclamação
dos fatos salvíficos e, assim, continuação da história da salvação entre os povos2.
Por isso, a missão só pôde ser uma expressão da vida da Igreja contrarian­
do os fatos fatídicos há pouco mencionados. A comunidade missionária, como
a parte mais ativa de tais igrejas, precisou constantemente procurar meios e
motivos para justificar sua atividade e, como “tropa de elite” da Igreja, levar os
cristãos negligentes quanto à missão a conscientizar-se de süa tarefa. É signifi­
cativo como, nestes motivos, também sempre se refletem a teologia dominante
em cada época, a situação edesial em seu todo e uma parte da história mundi­
al5. Isto indica até que ponto a comunidade missionária precisou se adaptar às

* N. do E.: Conferência Internacional de Missão realizada em Whifby, Canadá, em 1947, e promovi­


da pelo Conselho Internacional de Missão. Al surgiu um a nova relação entre igrejas-mãe e igrejas
novas, no sentido da parceria na prodam ação do evangelho no mundo em pé de igualdade como
sinal do Reino,
t O. CTJLLMANN, Christus und die Zeit, Zollikon, 1946, p. 19.
3 H . SCHÀRER, Die Begründung der Mission in der katholischen und evangelischen Missionswissenschaft,
Zollikon, 1944, p. 36.

100
correntes dominantes e estava sujeita a elas. Aqui posso me contentar em des­
tacar apenas alguns desses motivos a fim de esboçar a situação, bles podem ser
encontrados em qualquer obra maior de missiologia45. O motivo colonial, que
impulsionava principal mente missões no exterior, mas também influenciava
as missões alemãs, foi empregado já pelos carolíngeos e remonta, no final das
contas, à concepção do cuius-regio-eius-religio (= a religião é aqnela da pessoa
que exerce o governo). Ele perdeu sua força em virtude da dissolução dos
impérios coloniais que já ocorreu e que continua em grau crescente. O motivo
pielisla da compaixão pelos “pobres pagãos” e sua redução individualista e sub­
jetiva do conceito de reino de Deus por um lado não têm mais influência por
causa de sua ligação com a psicose cultural dos “superiores” e, por outro, por­
que hoje os próprios círculos piedstas são portadores de fenômenos próprios
da Igreja nacional, de modo que ele não mais é determinante. O motivo cultural
do racionalismo e idealismo, com seu compromisso de os povos “superiores”
levarem aos “inferiores” a cultura cristã e, com isto, o próprio cristianismo foi
um grande fiasco, porque essa cultura “cristã” se revelou no mundo corno uma
cultura bárbara e a pessoa “cristã” ocidental revelou-se como a mais brutal das
pessoas. Além disso, hoje todos os povos podem participar da cultura e civili­
zação sem ter que adotar o cristianismo. Com isto, toda a prática missionária
foi fundamenta]mente modificada, pois, enquanto que até agora se podia fazer
missão “de cima para baixo”, hoje lida-se com povos que estão zelosamente
atentos à sua igualdade de direitos e que reconheceram que a “cultura cristã”
está sob o juízo exatamente da mesma maneira como todo o mundo ociden­
tal'”. O motivo confessional com seu objetivo da plantatio ecdesiae (= implantação
da Igreja) não pode mais se impor numa época na qual se pensa que o testemu­
nho da Igreja contra a frente comum da descrença somente pode ser um único
e numa época na qual em círculos missionários ocasionalmentc se fala com
tanto entusiasmo do ecumenismo, que todo aquele que ousa enfatizar a confis­
são a partir do Novo Testamento é considerado “inútil” para o ecumenismo.
Como único fundamento sustentável resta a “ordem missionária” junto com o
motivo da obediência. Onde, porém, a missão somente ainda é obediência a uma
ordem, ela não é mais o que deve ser a partir do Novo Testamento, ou seja,
fruto da fé6.
É como se Deus tivesse destroçado tudo para a missão de sua Igreja.
Trata-se de uma situação muito crítica, mas também muito fecunda. Está aí o kairós
para que o juízo comece pela casa de Deus (1 Pc 4.17). Onde, porém, há kairós
e juízo, há também graça de Deus, senão no Novo Testamento tempos de

4 J. RICHTER, Evangelische Missionskunde, vol. II, Leipzig, 192*7; M. SCI ILUNK, Die Welt-mission iter
Kirche Christi, Stuttgart, 1951. Em vista da situação atua) tratado em: W. FREYTAG, Vom Sinn
der Weltimssion, EMZ, 1950, p. Iss.; A. G, HERBERT, The Missionary Obligation o f the Church, p.
385ss.; K. Tracey JONES, The Missionary Vocation, IRM, 1951, p. 403s.
5 K. HARTENSTEIN, Zur Neubesinm mg über das Wesen der Mission, Deutsche, evangelische
Heidenmission, 1951, Hamburg, p, 7ss.; A. G. HERBERT, The Mission of die Church, IRM, 1951,
p. 383.
ö A. G. HERBERT, op. <it., p. 358. - r - r .

101
ç
sofrimento não poderiam ser designados com o termo kairos7. É o tempo no
qual Deus, para a salvação das pessoas, quer exortar as igrejas de modo especi­
al e chamá-las à reflexão. Sua voz já foi ouvida muitas vezes na missão. Já em
1938 a delegação alemã em Tambaram não assinou a declaração conjunta da
conferência, mas redigiu uma palavra a partir da escatologia, o que naquela
ocasião dificilmente foi entendido8. O KirchenkampJ* provocou a reação princi­
palmente de teólogos suíços910.A terrível catástrofe da Segunda Guerra Mundi­
al e suas consequências na Alemanha e no exterior chamaram o mundo da
missão a uma nova reflexão e trouxeram a convicção de que, no fundo, nessa
crise estaria em pauta o problema “ecológico” Igreja-povo™, que somente pode
ser entendido e resolvido a partir da escatologia e em vista do senhorio de
Cristo. A Igreja viveria como povo de Deus entre os povos na paroikia (= “es­
trangeiro”), que é o âmbito de seu testemunho, e entre os tempos, a saber,
entre ascensão e regresso, e como tal teria somente uma tarefa, ou seja, a de
testemunhar ao mundo e comunicar-lhe por meio de sua vivência que Jesus
Cristo é o Senhor, ao encontro de quem se deveria ir.
Em torno dessas idéias centrais gravitam, em vista da atual situação da
missão, as exposições que querem chamar a Igreja à reflexão11. No fundo, elas
não são nada mais do que uma nova teologia da história. Elas têm seu valor no
fato de fazer valer novamente importantes pontos de vista neotestamentários
sobre a posição correta da Igreja dentro do mundo e conscientizar insistente­
mente a Igreja de sua tarefa salvífica. Porém elas só poderão levar à atividade
missionária se a cristandade souber e anunciar ao mundo que o Senhor não
vem somente a fim de consumar sua comunidade e assumir seu senhorio sobre
toda a criação, mas também para julgar o mundo - não apenas nos julgamen­
tos do mundo, mas no juízo sobre o mundo, onde a todos será revelada a ira de
Deus (1 Ts 1.9ss.)12. Somente sob este saber a cristandade poderá reconhecer

7 O. CULLMANN, op. cit., p. 33s.


8 M. SCHLUNK, Das Wunder der Kirche, Stuttgart, 1939, p. 206s.
* N. do T: Termo técnico usado para designar o conflito intra-eclesial entre a Igreja confessante e
a ariana durante a ditadura nazista.
9 H. SCI IÁRER, op. cit.; J. DÜRR, Sendende und werdende Kirche in der Missionstheologie Gustav
Warnecks, Basel, 1947.
10 J. C. HOEKENDIJK, Kerk en Volk in de Duitse Zendingswetenshap, s. d. e s. ed., p. 212ss.
11 W. FREYTAG, Mission im Blick auf das Ende, EMZ, 1942, p. 321ss.; Vom Sinn der Weltmission, EMZ,
1950, p. Iss; K. IIARTENSTEIN, Mission und Eschatologie, EMZ, 1950, p. 33ss.; Zur Neubesinnung
über das Wesen der Mission; G. STÄHI.IN, Die Endschau Jesu und die Mission, EMZ, 1950, p. 97ss.;
G. ROSENKRANZ, Weltmission und Weitende, Gütersloh, 1951; G. STÄHLIN, Kirche, Mission,
Eschatologie in der Sicht des Neuen Testaments, Lutherisches Missionsjakrtmeh, 1951/52, p. 21ss.
12 O juízo sobre o mundo é mencionado nos escritos citados: em FREYTAG, Vom Sinn der Weltmission,
p. 5s.; STÄHLIN, op. cit., p. 135; ROSENKRANZ, op. cit., p. 17s.; em contrap artid a,
HARTENSTEIN, Zur Besinnung über das Wesen der Mission, p. 13, só toca de passagem neste
assunto. Visto que o senhorio de Gristo é um senhorio na e p or meio de sua comunidade, teme-se
que, ao enfatizar o juízo, se acentue excessivamente a alma individual. Contudo, de que outra forma
se realizaria o senhorio de Cristo, senão quando a pessoa individual sc converte em vista do juízo?
O problema surge somente quando se esquece de que a justificação de fato exige a fé pessoal, mas
a santificação sc realiza na comunidade.

102
sua própria culpa, chamar as pessoas ao arrependimento, procurar perdão e
despertar o anseio por perdão. Somente a partir do juízo do mundo a escatologia
torna-se existencial, como pretende Rosenkranz1*.
Este saber é dado pela mensagem plena da lei e do evangelho e será sempre uma-
pedra de toque para verificar até que ponto nós mesmos ainda lemos a compreensão
reformatória do evangelho. Se, pelo contrário, a escatologia se tornar autônoma
através da acentuação do senhorio de Cristo que se realiza já agora, então não
somente faltará, com o ensinamento sobre o juízo, o pressuposto para isto, mas
acontecerá o que Althaus expressa: a comunidade de Jesus teria que desesperar,
pois ela não pode reconhecer o senhorio de Cristo e precisa assistir ao reino de
Deus diminuindo nos povos cristianizados1314. A missão e a escatologia têm suas
raízes nos fatos salvíficos já acontecidos e seu alvo na salvação das pessoas diante
da condenação15. A perdição das pessoas é o pressuposto de ambas, porque
Deus, em sua compaixão, quer salvar as pessoas. Este ponto de partida decerto é
mencionado nos escritos citados e está por trás deles, porém não leva à confor­
mação do tema; aliás, é em vão que se procura na literatura de missão por uma
fundamentação minuciosa da missão a partir dajustificação16. A alegria missionária,
porém, somente pode crescer lá onde, em vista do juízo, os fatos salvíficos se tornam
eficazes. Isto nos mostra claramente uma palavra como Rm 14.9. Portanto, preci­
samos tentar fundamentar a missão a partir dajustificação.

2. A missão como obra de Deus

Todos os motivos de missão citados descrevem a missão, em maior ou


menor medida, como uma obra executada por seres humanos para seres hu­
manos, mesmo que a descrevam como uma obra cristã17. Todavia, na crise
atual Deus quer nos lembrar seriamente que a missão, embora seja também
tudo isto18, primordialmente é e continuará sendo de modo intrínseco Sua
obra. Ela é obra de Deus que tem apenas um objetivo, qual seja, salvar as pes­
soas diante da perdição eterna. A condenação eterna, para a Sagrada Escritu­
ra, é a mesma realidade que a própria redenção, pois sem a primeira a última
seria incompreensível. Os seres humanos estão perdidos em seus pecados. Dis­
to nós tomamos conhecimento não somente a partir de Rm 1.18-3.20; a idéia

13 G. ROSENKRANZ, op. cit., p. 6. Essas idéias, no entanto, não são detalhadas.


14 P. ALTHAUS, Die letzten Dinge, Gütersloh, 1926, p. 121-123.
15 O. CULLMANN, op. cit., p. 70ss.
16 P. ex., G. WARNECK, Evangelische Missionslehre, Gotha, 1892, p. 111.
17 A. KÖBERLE, Die Neubesinnung auf den Missionsgedanken in der Theologie der Gegenwart, Leipzig,
p. 8s.
18 K. HARTENSTEIN, Zur Neubesinnung über das Wesen der Mission, p. 18s.
de que Deus realizará seu dia do juízo e cumprirá sua sentença perpassa tão
intensamente a Sagrada Escritura que Paulo torna o juízo conteúdo de sua
pregação missionária, mesmo lá onde nós seríamos mais cautelosos (At 17.31;
24-25). A doutrina dojuízo era uma parte da instrução batismal (Hb 6.2). Assim, a
condenação e a redenção foram estreitamente relacionadas uma com a outra.
Por isto o Senhor também viu sua missão associada ao juízo (Jo 3.22-29) e os
apóstolos levaram a efeito a pregação do juízo ordenada a eles (At 10.42). O
saber acerca da perdição dos seres humanos era a força motriz de sua ação, que
os estimulava a apressar-se (2 Tm 4.1s.).
Por conseguinte, se há um motivo de missão fundamentado no ser huma­
no, então ele só pode estar fundamentado em sua perdição e não em sua capaci­
dade de crer em Deus, como seguidas vezes foi exposto. Ora, obra de Deus a
missão se torna pelo fato de ele, como Criador e Mantenedor, não se dar por
satisfeito com essa situação dos seres humanos, mas querer deixar a graça ter a
primazia sobre o direito e, por isto, buscar a redenção das pessoas. Assim a mis­
são se torna obra do próprio Deus, resolvida em sua economia salvífica antes
que o fundamento do mundo estivesse posto. “Deus a todos encerrou na deso­
bediência, a fim de usar de misericórdia para com todos” (Rm 11.32). Essa
misericórdia substitui sua ira pela proclamação do evangelho entre todos os
povos conforme o kairos determinado por ele para cada povo, como se depreende
de forma especialmente clara de Rm 9-1119.
Por isso, a missão é misericórdia divina e condução divina. Ele faz com que
sua salvação seja oferecida a todas as pessoas, para que todas as que nele crêem
não se percam (Jo 3.16; Rm 1.16). Neste “todas” está incluída toda a humanida­
de e, com isto, na proclamação da salvação veda-se toda limitação humana20.
Assim, a missão é obra do amor paterno do Criador, ancorada no universalismo
salvífico da Bíblia, vinculado ajesus Cristo, n apromissio universalis (= promessa
universal) como a causa salutis (= causa da salvação) também dos pagãos21. Nes­
te ponto é colocada a maior ênfase em todas as fundamentações da missão,
contudo em geral sob um aspecto apologético, particularmente em Warneck22.
Hoje isto não deveria mais ser necessário, pois, se o evangelho vem de Deus,
então ele também pertence a todo o mundo de Deus23. Precisamente na propaga­
ção de sua palavra Deus se mostra como o Senhor do mundo e sua Igreja como “católi­
ca", da qual também nós queremos fazer parte.
A fim de salvar as pessoas da perdição e fazer com que o evangelho lhes
seja anunciado, ele mesmo faz missão, torna a oferta de salvação missio dei (=

19 Por isso eu também não rejeitaria o período colonial com o mesmo rigor com que isto é feito
hoje: H. DÜRR, Die Stellung de Mission zum “kolonialen Nationalismus”, EMM, 1947, p. 170ss.
20 A. SCHLA1TER, Die Verkündigung der Rechtfertigung unter den Völkern, Essen, 1935, p. 4.
21 A. KÖBF.RLE, Rechtfertigung und Heiligung, Leipzig, 1929, p. 94.
22 G. WARNECK, Evangelische Missionslehre, vol. 1, Gotha, 1892.
23 A. G. HERBERT, The Missionary Obligation o f the Church, p. 386.

104
missão de Deus) e com isto torna seu amor realidade entre os povos. Ele mes­
mo assume o envio. Torna seu Filho apostolos (= missionário) (Hb 3.1) e, na
plenitude do tempo (G1 4.4), o envia ao mundo como revelador de seu amor (1
Jo 4.9). Com isto, sua compaixão excede todos os limites humanos. É como
disse um africano: “Deus tinha apenas um único filho e a este fez com que se
tornasse missionário”24. Através desse envio Deus se mostra como verdadeiro
e misericordioso, pois seu Filho é dado a Israel por causa da veracidade, como
cumprimento de todas as promessas, porém aos gentios por causa da miseri­
córdia por bondade imerecida (Rm 15.8s.). Nele a promissio universalis encon­
tra sua confirmação e os gentios são incluídos na comunidade de Deus (Ap
7.9). Portanto, Deus não faz mais nenhuma distinção entre os povos. Assim
como, na história de Israel, do Servo de Deus, toda a história da salvação se
concentra em direção àquele Um, que se torna Redentor e Representante dos
seres humanos, da mesma maneira ela caminha, desde então, “de modo inver­
so a partir do Um, progressivamente, para os muitos”2526,para que os crentes, o
mundo, sejam bem-aventurados através deste Um (Jo 3.17)2t>. Deus mesmo tes­
temunha ao mundo o sentido e o início dessa missio, bem como seu fim. Assim
como, por ocasião da entrada do enviado no mundo, anjos se tornam seus
arautos e anunciam o início da missio dei “a todo o povo” (Lc 2.10), também a
missio que ele faz levar a efeito por meio de sua comunidade será concluída
através dos arautos da última missio dei, quando o anjo correrá apressadamente
pelos povos com um evangelho eterno, a fim de lhes dar a última possibilidade
de conversão, de redenção da perdição (Ap 14.6).
Assim, vivemos no grande tempo da graça, que iniciou com a vinda do
Apóstolo de Deus e que terá fim através de seu regresso. É o tempo da
longanimidade e paciência de Deus. Ninguém poderá acusá-lo de condenar
pessoas que não tiveram oportunidade de encontrá-lo. Pacientemente ele car­
regou os vasos da ira, “a fim de manifestar a riqueza de sua glória em vasos de
misericórdia, que para glória preparou de antemão. Como tais ele nos chamou
não apenas dentre os judeus, mas também dentre os gentios” (Rm 9.23s.).
Assim ele torna os gentios co-herdeiros e membros do mesmo corpo (Ef 3.6).
Compaixão, gratia increata (= graça incriada), é, portanto, a causa primordial
de sua missio. Provavelmente ninguém entendeu isso melhor e o descreveu de
forma mais clássica do que Lutero em seu hino: “Agora alegrai-vos, queridos
cristãos juntos”.
Com isso o trabalho missionário está acima de qualquer dúvida humana,
qualquer limitação, suspeição e superficialização. Ele não é paixão de determi­
nados círculos, mas obra do próprio Deus, pela qual hoje ele leva sua comuni­
dade ao trabalho, a fim de exercer sua misericórdia para com os perdidos. Não

24 W. FREYTAG, Mission als Tai der Liebe, EMZ, 1941, p. 195; M. JÄGER, Die Vollmacht Jesu,
München, 1938, p. 1Iss.; G. STÄHLIN, Engclwelt und Weltmission, EMZ, 1949, p. 22s.
25 O. CUI.LMANN, op. cit., p. 100s.
26 K. S. LATOURE ITE, W hat Can Wc Expect in the World Mission?, 1RM, 1951, p. 142.

105
é por nosso intermédio, mas pelo próprio Deus que sua graça vem aos povos, e nós
temos apenas uma escolha: sermos instrumentos dessa compaixão ou perdermos a gra­
ça de Deus (Mt 25.24-30).
Através de seu enviado, seu Filho, Deus põe em ordem seu relaciona­
mento com as pessoas, a fim de livrá-las do juízo (Jo 3.17s.). O amor de Deus
converte o enviado em Salvador, em resposta a todas as perguntas das pessoas,
naquele que traz a vida (Jo 6.6s.). A. G. Herbert procura colocar, a partir desta
palavra, o trabalho missionário sobre sua base correta27.Jesus se entende como
o enviado28. Ele é a resposta de Deus (At 4.12). Visto que a compaixão o en­
viou, ele próprio não pode fazer nada diferente daquilo que vê o Pai fazer (Jo
5.19) e é, por isto, mediador dessa compaixão. Para compreender isto deve-se
examinar o sentido da palavrinha dei (= “é necessário”) na vida de Jesus; toda a
sua vida é determinada por ela2930.Para que a compaixão de Deus, após a morte
de seu Filho, alcance as pessoas, Jesus declara que a humanidade é uma lavou­
ra a ser colhida (Jo 4.35-38) e encomenda o pedido missionário ao coração e à
consciência dos discípulos (Mt 9.36s.; Mc 6.34). Com este fím ele dá a ordem
missionária. O povo lhe provocava compaixão! Assim a compaixão torna-se
motivo missionário legítimo, autêntico, não como sentimentalismo para com
os pobres pagãos, mas como dynamis (= força) divina, como ato gracioso do amor
salvador de Deus. Por isso, ai de nós se a carência exterior das pessoas nos
comove mais do que a perda da salvação de sua alma e se acreditamos poder
salvar as pessoas através da ajuda exterior. Neste caso, entendemos erronea­
mente a incumbência de Deus50. Lõhe destacou energicamente a missão como
obra da misericórdia de Deus:
A missão entre os gentios é a grande obra da misericórdia no Novo Testamento.
Porém a missão entre os judeus não é meramente associada a ela, mas constitui,
antes, o círculo mais íntimo, e mais: seu centro (...) Não pode haver misericórdia
maior no mundo do que estender a palavra e os sacramentos do Altíssimo, com
sua plenitude de graça, para os pobres e perdidos seres humanos de todos os
séculos e de todas as terras.31

27 A. G. HERBERT, The Mission of the Church, p. 386.


28 Mt 10.40; 15.24; 21.37s.; Lc 4.17ss.; 19.10; Jo 3.17; 4.34; 5.30,36,38; 6.29; 7.14; 14.31; 17.3,18.
29 W. FREYTAG, Vom Geheimnis der Mission, EMZ, 1940, p. 97s.
30 W. LÖHE, Innere Mission, in: Vier Leichenreden, Gütersloh, 1903, p. 41s.
31 ID., Von der Barmherzigkeit, Ncucndettelsau, 1927, p. 47.

106
3. Deus realiza sua obra através
de sua comunidade

A missão como obra da misericórdia divina, que Deus iniciou através do


envio de seu Filho, é continuada por ele agora ao incumbir sua comunidade,
por meio de seu enviado, da propagação de sua palavra e da proclamação de
sua vontade salvadora. Assim o Senhor dá a ordem missionária (Mt 28.18-20; Mc
16.15-16; Jo 21.21). A comunidade deve efetuar esta tarefa até o regresso do
Senhor (Mt 24.14), portanto até o juízo. Por isso, o sentido propriamente dito do
tempo intermediário entre a ascensão e o regresso de Cristo é que a misericórdia de
Deus seja anunciada ao mundo através do serviço de sua comunidade. Através da
ordem missionária, o Senhor fez da proclamação de sua palavra a forma de
existência de sua Igreja, para que ela exerça misericórdia por meio dele e em
seu lugar32. Com isto torna-se evidente que a Igreja não pode se dar por satis­
feita com o número de membros que tem. A compaixão de Deus quer abran­
ger a todos, ela é universal. Sua revelação fala com bondade dos fiéis e dos que
devem ser ganhos, com severidade dos apóstatas, que novamente pode se trans­
formar em bondade com a mudança da pessoa (Rm 11.22ss.). Para Deus o
mundo da descrença é uma unidade; por isto ele o deveria ser também para
sua Igreja. Sua compaixão ilimitada compreende as pessoas errantes nas igre­
jas antigas e os gentios lá fora com o mesmo amor salvador. Seu Filho veio
“para buscar e salvar o perdido” (Lc 19.10). Ele morreu pelos pecados do mun­
do, por todas as pessoas, e criou com isto a premissa, a possibilidade de procla­
mar a salvação entre todas as pessoas. Por isso, a missão como serviço da comu­
nidade por incumbência do Senhor exaltado só é possível através da morte de
Jesus, ela é um fruto de sua morte (Jo 12.24). Agora a compaixão de Deus foi
revelada ao mundo33.
Por isso, a Igreja só pode ser Igreja de Jesus na medida em que vive nesse
ato redentor e se torna portadora da compaixão de Deus. Ela precisa ver o
mundo perdido em sua unidade e executar a tarefa de Deus. Por isso, uma
divisão da vontade salvífica de Deus em três partes, a saber, em assistência às
comunidades, missão interna e missão externa pode ser boa na prática, mas
nunca deveria ser reconhecida em princípio pela Igreja. Estes três “setores” da
unidade indissolúvel precisam ser sempre vistos em seu conjunto, pois eles são
unidos por aquela uma vontade salvadora de Deus que deve atuar neles. Eis
por que o serviço da Igreja só pode ser um, como Lòhe reconheceu e enfatizou34.
Por causa disto, não se deve falar de “obras” da Igreja, e sim das funções vitais
da Igreja. Elas se transformarão em “obras” se forem separadas do testemunho
da redenção.

32 Isso é detalhado nos escritos indicados na nota 11, onde, entretanto, a ênfase é colocada no
senhorio de Jesus. Em relação a esta questão, veja CULLMANN, op. cit., p. 138ss.
33 O. MICHEL, Berufung zur Mission, EMZ, 1940, p. 195.
34 V. nota 30.

107
Esse serviço da Igreja somente é possível porque ela mesma experimentou com­
paixão através da ação redentora do Filho de Deus e agora representa a comunidade
dos crentes e justificados. Deus compadeceu-se dela e a agraciou para ser crente
(1 Co 7.25). Por isso sua fé, que então será ativa no serviço, é sempre uma fé na
misericórdia divina, como já o reconheceram os pais da Reforma85. A partir
dessa fé, que vive da compaixão e por isso pode ser uma confiança ousada e
ativa, flui o serviço que atua pelo amor, portanto pela compaixão (Cl 5.6).
Senão ele nem poderia ser obra agradável a Deus, e até obra do próprio Deus,
mas seria pecado, conforme Rm 14.23. Pois, de fato, o que não é fruto da fé
provém de algum modo do egoísmo religioso.
Deus quer ser misericordioso por meio daqueles que experimentaram,
eles próprios, misericórdia (Lc 6.36; 10.25-37). Esse serviço continua, assim,
sendo obra do próprio Deus, mesmo que ele aconteça na comunidade e atra­
vés da comunidade. Não somos nós que temos Deus na fé, mas ele é que nos
tem8*’, para, por nosso intermédio, manifestar ao mundo seu amor e estabele­
cer seu senhorio. Quem crê na ação redentora de Jesus vive no reino da graça
e se submeteu com isto ao senhorio de Deus. Por isso, nossa fé na justificação
está profundamente vinculada com esse senhorio87. “Para que tal tesouro não
ficasse enterrado, mas fosse investido e usufruído, Deus fez com que se difun­
disse e proclamasse sua palavra”35367383940. Através da justificação Deus introduz as
pessoas em seu serviço aos descrentes, e a recusa desta incumbência não seria
apenas desobediência, mas resistência à atuação divina (Fp 4.12s.) e desprezo
da força que ele torna ativa na pessoa através da redenção apreendida35. Por
conseguinte, esse serviço é engajamento na atuação de Deus, obediência da fé,
não estar desligado de Deus, mas ser tomado por ele, não é algo que é acrescen­
tado à ação de Deus, mas é submeter-se ao agir de Deusm.
Por isso, se realmente há uma justificativa para a fundação de sociedades
missionárias, então ela reside neste ponto. Visto que a Igreja estabelecida como
tal não se deixou utilizar por Deus para proclamar a compaixão de Deus aos
gentios, homens movidos pelo Espírito Santo precisaram reunir em torno de si
aquelas pessoas que haviam experimentado a compaixão de Deus e enviar
homens que se tornaram testemunhas do acontecimento salvífico entre os po­
vos. A pergunta, porém, é sc com isso Deus indicou o caminho à missão da
Igreja para todos os tempos e se hoje, quando a maioria das sociedades
missionárias sucumbiu à lei da estagnação da vida, elas ainda podem ser tidas

35 Ansbacher Ratschlag, citado conforme W. ELERT, Morphologie des Luthertums, vol. 2, München,
1931, p. 81.
36 1,. FENDT, Luthers Schule der Heiligung, Leipzig, 1929, p. 10.
37 O. MICHEL, Gottes Herrschaft und die Völkerwelt, F.MZ, 1941, p. 226s.
38 F.. SC1ILINK, Theologie der Bekenntnisschriften, München, 1946, p. 152.
39 H. I IOFER, Die Rechtfertigungsverkündigung des Paulus nach neuerer Forschung, Gütersloh, 1940, p.
13, 44 e 94.
40 E. GAUGI.ER, Die Heiligung im Zeugnis der Schrift, Bern. 1948, p. 55.

108
como visualização da Igreja de Jesus nas igrejas estabelecidas. Não é verdade
que hoje a missão é sustentada, em considerável medida, pelos grupos reavivados
da Igreja estabelecida que não são membros daquelas sociedades, e que se
modificou amplamente a autocompreensão da Igreja estabelecida? Com refe­
rência a esta mudança basta ler o ensaio redigido por um jurista eclesiástico
sobre a Igreja territorial bávara4142.Hoje as sociedades missionárias podem se enten­
der, no máximo, como órgãos da vontade missionária da Igreja.
Porém a pergunta acima colocada também precisa ser feita a essas socie­
dades ainda sob outro ponto de vista. Certamente será sempre mérito delas o
fato de terem dado expressão à vontade salvadora de Deus na Igreja. Por outro
lado, contudo, devido ao conceito pietista de Igreja, elas contribuíram de modo
considerável para fazer com que a missão apareça como obra especial da Igre­
ja, como algo que não faz parte de uma Igreja organizada. Elas também são co-
responsáveis pelo fato de a tarefa missionária não ter sido percebida em sua
unidade, pois fizeram unilateralmente propaganda pela missão entre os genti­
os. É significativo, p. ex., quão poucas sociedades, no período sem missão dos
anos da guerra e do pós-guerra, reconheceram uma tarefa missionária voltada
aos pagãos da própria Alemanha e objetivaram não apenas a reunião dos cren­
tes (“amigos da missão”), mas a conquista desses descrentes. Elas não pensavam a
partir da unidade da vontade missionária da Igreja e para a Igreja, mas conti­
nuavam vendo apenas a missão entre os gentios, que naquela ocasião lhes era
impossível. Dessa maneira intensificou-se a impressão fatídica de que a missão
entre os gentios seria algo assim como uma paixão de certos círculos e não
uma parte do envio amplo da Igreja a todos os perdidos.
No trabalho missionário Deus não atua como um comandante, que so­
mente pode dar as armas a suas tropas, mas não a preparação interior. Com o
envio através do qual ele continua sua missio e a associa à do Filho (Mt 10.16;
Lc 9.2; Jo 17.18; 20.21), ele transmite à comunidade, através da misericórdia
que nela opera, também a força e preparação interior para o serviço. Assim
como nossa fé sempre é um receber, uma entrega da pessoa toda à ação graciosa de
Deus12, também a capacitação para o trabalho missionário é uma dádiva através da
qual Deus equipa para o serviço e o ministério. Assim como todo dom de Deus só
pode ser recebido na fé (sola fide) e imediatamente se associa à tarefa (Mt
25.14ss.), também a missão somente pode ser feita através de uma fé alegre,
certa da vitória, que torna todo cristão testemunha do sofrimento e da glória,
portanto do acontecimento salvífico, e emprega o dom de Deus (1 Pe 5.1). E a
fides viva (= fé viva) que dá testemunho. Esta “não é cogitação ociosa, mas (...)
liberta da morte e produz vida nova nos corações (...) produz bons frutos tanto

41 P. SCHATTENMANN, Die Evangelisch-Lutherische Kirche in Bayern rechts des Rheins,Lutherische


Rundschau, 1951, p. 139ss. N. do E.: Landeskirche (“Igreja territorial”) e Volkskirche (“Igreja nacio­
nal”) são lermos técnicos na teologia alemã que indicam uma Igreja restrita a um determinado
território c povo, à qual pertence a quase totalidade da população. Esta é a visão tradicional de
Igreja na Alemanha, que atualmente sofre profundas mudanças.
42 E. SCHLINK, op. cit., p. 143s.

109
tempo quanto está presente (..,).”43 É a fides da qual se diz: “Eu creio, por isto é
que falo” (2 Co 4.13), a força propulsora da qual os apóstolos dizem: “Não
podemos deixar [de falar das coisas que vimos e ouvimos]” (At 4.20), uma
conseqüência da nova criação44 que nos torna iguais a seu Filho, o enviado de
Deus, “para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal”
(2 Co 4.11), a fim de que sejamos semelhantes a ele e tomados por Deus, “que
nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo, e nos deu o ministério da
reconciliação” (5.18), para que vivamos para aquele “que por nós morreu e
ressuscitou” (5.15). É a fé pela qual Deus exerce seu senhorio. Assim a missão
torna-se uma obra do amor do Senhor, amor que busca e impele, o efeito da
compaixão de Deus que nos é transmitida na justificação. O envio da comuni­
dade resulta do ser enviado do Filho, que continua atuando nela. “O amor de
Cristo nos impele, portanto45, para que os que vivem não vivam mais para si
mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (5.14s.).
Assim sendo, Deus conduz sua comunidade ao serviço missionário e com
ele dá também a preparação para a diaconia da nova aliança, cuja realização é
graça. E ele que capacita (2 Co 3.5), que dá aos seus o Espírito Santo e com isto
a autoconfiança cristã (Rin 8.16) e que, através deste Espírito, atua, ele pró­
prio, entre os povos e em sua comunidade; pois “poder do Espírito Santo” não
quer dizer outra coisa do que o efeito produzido pelo próprio Deus. Através
dele Deus levou sua comunidade ao serviço missionário. Por meio dele os apósto­
los se tornaram testemunhas dos atos salvíficos (At 1.8; cap. 2). Ele lhes presen­
teou a ousadia de falar sua palavra (4.13,29,31). Ele levou os homens relutantes
à missão entre os gentios (caps. 10 e 11, especialmente vv. 15-17; também cap.
8) e deu às comunidades a autoridade de enviar (13.1-4). Ele revelou aos após­
tolos e profetas “que os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo e
co-participantes da promessa em Cristo por meio da pregação da salvação” (Ef
3.5s.). Portanto, ele é a força motriz.
Com isso, Deus retira dos cristãos toda dúvida a respeito da missão entre
os gentios e tira as comunidades de uma existência de isolamento piedoso,
contemplativo e egoísta. Portanto, nós não podemos nos vangloriar por fazer
missão; Deus nos impele, porque podemos participar de sua vontade amorosa,
da gratia efficax (= graça eficaz) entre os gentios. Por isso, a missão não pode ser
outra coisa do que a atitude agradecida do cristão pela misericórdia recebida de Deus,
um sinal da vida presenteada. “Pelo que, tendo este ministério segundo a miseri­
córdia que nos foi feita, não desfalecemos” (2 Co 4.1). Assim é Deus, como
causa efficiens (= causa produtora), que constantemente arranca de sua cristan­
dade cansada o serviço aos descrentes e através dela, como causa instrumentalis
(= causa instrumental), opera grandes coisas apesar de suas fraquezas. Para

43 Apologia da Confissão de Augsburgo IV, 64, in: I.ivro de Concórdia, 3. ed., São I.eopoldo, Sinodal;
Porto Alegre, Concórdia, 1983, p. 119.
44 M. JÄGER, op. eit., p. 97ss.
45 Assim conforme Preuschen, Wörterbuch zum Neuen Testament; v. T. KITI'EL, ThWNT, vol. 2, p.
816, nota 1, contra Wendland em Neues Testament Deutsch, vol. 7, p. 132.

110
1 '

tanto, cie emprega todos os meios, até a perseguição (At 11.19-21)4®. Vê-se
quão pouco apropriadas são aqui as categorias da obediência, do desempenho
humano.
Porém o que significa então ainda a assim chamada “ordem” missionária
na qual se fundamenta a missão e com base na qual Schlunk diz que a obediên­
cia continua sendo o mais forte e decisivo motivo da missão4647? Parece-me que
aqui quase sempre é muito pouco considerada a ligação de Mt 28.18s. com o
que se segue, a qual é dada na palavrinha oun (= “por isso”). Será que ela não
significa: porque ao Redentor exaltado é dada toda exousia (= poder) no céu e na
terra, por isso sua comunidade na terra pode entrar em sua obra graciosa?
Também a execução da ordem não é obra dela, mas fruto, resultado, realização e
efetivação da autoridade presenteada a ela pelo Pai. Por isso o Batismo acontece
“em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!” Com isto a ordem não seria
outra coisa do que a nova expressão da missio dei através da comunidade, o
resumo reiterado da vontade salvífica universal de Deus. A ordem missionária
tem certa afinidade com os demais mandamentos de Deus. Ela é dada aos
mornos, a fim de chamá-los ao arrependimento por causa de sua resistência à
atuação salvífica de Deus; porém é dada aos crentes para lhes servir de instru­
ção e consolo, para que façam a obra dele de modo correto; ela é dada à Igreja
como advertência, para que ela se dê conta de que a missão não depende de
seu bel-prazer48.
A partir do que foi dito fica claro para nós o quanto falta em nossa vida
missionária e, por conseguinte, na vida da Igreja. A rigor, trata-se de coisas
óbvias, que, porém, não são consideradas, justamente porque se pensa que
Deus opera por si mesmo, sem sua comunidade, e se esquiva assim da exigên­
cia existencial. Como teria que ser diferente se a atuação de Deus pudesse se
manifestar na comunidade “como correntes de água viva”! A penosa e
dispendiosa propaganda da missão se tornaria supérflua. Por outro lado, en­
tretanto, os fatos nus e crus nos dizem que a missão não pode ser uma obra da
empolgação e do entusiasmo, mas somente uma obra do Espírito de Deus, que
constantemente torna a Igreja disposta para a pregação de sua compaixão en­
tre os povos. Ele faz isto por meio das pessoas para as quais o profundo nexo
entre justificação e missão se tornou obrigação de consciência, “uma necessi­
dade que pesa sobre mim” (1 Co 9.16), e por isso sabem do “ai” que as atingi­
ria, do juízo que recairá também sobre elas se não se deixarem usar como
instrumento.
Todo o viver e pensar recebem um novo conteúdo através dessa percep­
ção; isto se pode constatar num homem como L. Harms, para o qual toda a
palavra de Deus era uma indicação do Seu amor salvador. Ele podia comparar
a missão com o nascimento de João Batista, visto que ela nasceu na época mais

46 O. DIBELIUS, Die Pfingslgeschichte als Missionsgeschichte, EMZ, 1941, p. 162.


47 M. SCIILUNK, Paulus als Missionar, Gütersloh, 1937, p. 39.
48 Jerusalem Meeting Report, vol. 3, p. 135.

111
estéril da Igreja, ou fundamentá-la, p. ex., a partir do Natal ou da Santa Ceia495012.
Neste sentido, de repente todo texto fala a favor da missão. A partir dajustificação
aprende-se a entender que a Igreja que adora e que agradece não pode ter nenhum outro
serviço do que o de constantemente levar a salvação às pessoas perdidas’°. Portanto, se
queremosfazer missão, então nossa propaganda não deve se esgotar em relatos informa­
tivos, mas precisa querer despertar tal fé e dar a certeza do amor misericordioso.
Quanta coisa deveria ser posta em ordem justamente nesta área, porque
fora da Igreja estabelecida e em oposição a ela há missões que consideram
como sua prerrogativa divina reunir em torno de si os membros da Igreja que
foram despertados pela pregação da justificação e assim se apropriar da dispo­
sição ao sacrifício que a Igreja precisaria para a realização da missão de que é
incumbida! Quão poucas sociedades missionárias têm a consciência de que é a
Igreja que faz missão através delas! Será que muitas missões, ao se apropriarem
da disposição ao sacrifício em ambiente estranho, não acabaram obstruindo
para si mesmas o caminho para tal reflexão? Ai de nós se não mais soubermos
que a missão é uma ação do Espírito de Deus e, por conseguinte, fruto da fé.
Ora, podem-se separar fé e Igreja?
Deus realiza sua obra missionária por meio de sua Igreja. Esta percepção não
é dada à sua comunidade sem mais nem menos, mas precisa ser-lhe transmiti­
da pela pregação dos grandes indicativos da Bíblia que falam a seu respeito.
Deus toma a comunidade sal e luz do mundo, cidade sobre o monte (Mt 5.13ss.).
Através de sua palavra ela se transforma em fermento entre os povos (13.33),
numa árvore cada vez maior (13.31 s.). Seus fiéis são reis e sacerdotes, lavados
dos pecados por meio do sangue de Cristo (Ap 1.5), “a fim de proclamarem as
virtudes daquele que os chamou das trevas para sua maravilhosa luz” (1 Pe
2.9). São eles os que executam o trabalho missionário, a carta de Cristo ao
mundo (2 Co 3.3).
Nesse sacerdócio geral, a teologia encontra fundamentado o ministério
missionário - e o entendemos como um sinal de que também ela vê a justifica­
ção e a missão em estreita relação -, ao passo que utiliza todas as passagens
sobre o ministério apostólico para o ministério pastoral na comunidade. Tam­
bém Lõhe ainda pensava que, como o apostolado terminou, não haveria mais
nenhum ministério missionário da Igreja. Ele fundamentou a missão com o
sacerdócio geral dos crentes, pois entre os descrentes todo cristão teria a obri­
gação de pregar o evangelho®1. Ele seguiu assim a Lutero, que também atri­
buiu a responsabilidade pelo dever da missão aos cristãos que vivem entre os
gentios02. Ambos observaram corretamente que nos primeiros séculos a cris­
tandade se disseminou mais por meio do testemunho das comunidades do que

49 W. L. WENDEBOURG, Harms ab Missionsmann, Hermannsburg, 1910, p. 43 e 82.


50 A. L. BERTHOUD, Church and Mission, IRM, 1950, p. 226.
51 Kirchliche Nachrichten aus Nordamerika, 1852, p. 20.
52 W. ELERT, op. d t., p. 339; K. HOI.L, Luther und die Mission, NAMZ, 1924, p. 42s.

112
através de um envio organizado. Também nós queremos insistir com toda a
ênfase que Deus habilita todo cristão para o testemunho e o orienta para profes­
sar sua fé. Se o sacerdócio geral tivesse sido praticado, o evangelho teria se
difundido mais rapidamente entre os povos e às missões teriam sido poupados
muitos problemas que surgiram com a penetração da descrença ocidental. A
realização do sacerdócio geral traria consigo outra compreensão de missão e
leria por conseqüência uma transformação da prática missionária, algo que se
pretende alcançar hoje na missão através do serviço cristão dos leigos. Algo
semelhante se aplicaria também à Alemanha’3.
Por outro lado, é realmente de se perguntar se o ministério missionário
não é um ministério da Igreja e se o Senhor deixou desaparecer junto com os
apóstolos também o envio organizado e o ministério decretado para a conquista
dos gentios. Trabalhos mais recentes, como o de 0. Micheloi, indicam que o
Senhor exaltado criou, através da vocação do apóstolo Paulo, um novo ministé­
rio, um novo apostolado, um novo início da missão entre os povos. Eis a razão do
conflito entre o apóstolo Paulo e os outros apóstolos, bem como - por causa da
unidade da Igreja - de sua inserção na tradição. Apesar- disto, porém, atualmen­
te nenhum missionário poderia se reportar diretamente a esse ministério:
Mas o missionário, assim como o pastor, não é diretamente enviado, represen­
tante de Jesus igual ao apóstolo. Sua vocação realiza-se de outra forma do que a
do apóstolo, sua autoridade é diferente da autoridade do apóstolo e sua relação
com a comunidade é diferente da relação de um apóstolo com a comunidade. O
apóstolo fundava as comunidades; nós, porém, somos membros nessas comuni­
dades, os quais não receberam seu ministério sem comunidade. A palavra apos­
tólica transmitiu o ministério e fundou comunidades, mas colocou ambas as
coisas em estreita relação mútua; nós somos apenas membros no ministério e na
comunidade c assim transmitimos tal ministério c tarefa na comunidade a nos­
sos sucessores. Entre nós e o Senhor Cristo está o modelo apostólico.535455
Contudo, parece-me que Michel, ao formular este texto, tinha em vista
por demais o pastor e o missionário de comunidade. Ainda que o tempo da
missão pioneira esteja chegando ao fim, hoje ainda há missionários e, no exte­
rior, também pastores que podem fundar comunidades. Também o apóstolo
era suficientemente humilde para se deixar enviar por uma comunidade ape­
sar de sua vocação direta, e, com isso, receber seu ministério da comunidade à
qual era remetido. Neste aspecto, portanto, o ministério do missionário não é
tão fundamentalmente diferente do ministério do apóstolo. Também o apósto­
lo tinha sempre consciência de ser responsável pela comunidade e obrigado a
lhe prestar contas; portanto, ele não estava sobre a Igreja, mas na Igreja.
Em todo caso, uma coisa o missionário pode fazer: aplicar a si as palavras
sobre o ministério expressas em 2 Co 3-5 com a mesma certeza com a qual o

53 H. DÜRR, Allgemeines Priestertum..., EMM, 1909, p. 2ss.


54 O. MICHEL, Berufung zur Mission, p. 196ss.
55 ID., ibid., p. 197.

113
apóstolo o fez e como o fazem com naturalidade os dignitários eclesiásticos.
Precisa estar claro para nós que estes capítulos singulares fazem primordial­
mente afirmações sobre o ministério missionário e não, como se supõe eo ipso
(= por si mesmo) na teologia, sobre o ministério do pastor assim como ele é
hoje. O ministério é primeiro ministerium verbi divini (= ministério da palavra
de Deus) e somente a partir desta função básica pode se dividir em ministérios
segundo a finalidade. Devem-se observar os muitos “nós” nestes capítulos, com
os quais Paulo se refere em primeiro lugar a seus colaboradores, se não está até
mesmo falando na forma inclusiva. Algo semelhante se poderia dizer de mui­
tas outras passagens que fazem afirmações sobre o ministério. Porém o que a
teologia, desde Lutero, tem feito dessas passagens? Ela as aplicou primordial­
mente ao ministério do pastor de comunidade e inverteu a relação, de modo
que se relegou o missionário ao sacerdócio geral, sem, ao fazê-lo, ter transmitido
a responsabilidade e a obrigação missionárias ao ministério eclesial, como é indica­
do por estes capítulos. Com isto, fez-se do missionário um ser híbrido, que não
cabe na vida eclesial. Decerto ele é ordenado para a pregação pública e para a
administração dos santos sacramentos - e, ainda assim, não seria um dignitá­
rio em sentido pleno? Como isto combina teologicamente? Que conscqüênci-
as tem isso para o conceito de ministério? Isto precisa ser ouvido principal­
mente pelas igrejas alemãs, pois elas como tais - em contraposição a igrejas de
outros países - até hoje não praticam, elas próprias, o envio.
Ora, com base na fé na justificação não há duasformas de autoridade minis­
terial na Igreja, mas somente um único ministério, aquele que prega a reconci­
liação e assim leva a efeito o acontecimento salvífico entre as pessoas a serem
reconciliadas (2 Co 5.18). Sob esta autoridade ministerial também o missioná­
rio faz seu serviço.
O ministério da reconciliação pode ser exercido pela Igreja de dois modos
entre os gentios; primeiro, por meio do sacerdócio geral dos cristãos que mo­
ram entre os gentios, uma tarefa que somente é reconhecida por muito pou­
cos, embora Paulo, em Rm 10.8ss., faça dela, por assim dizer, a causa salutis:
“Porque com o coração se crê para ser justo, e com a boca se confessa a fim de
ser salvo.” Segundo, através do envio de missionários56, o qual tem seu modelo
nos Atos dos Apóstolos e foi praticado pela cristandade toda vez que os gentios
moravam a uma distância muito grande das comunidades cristãs. Ambas as
coisas são uma exigência da fé na justificação, pois o ato redentor de Cristo
somente pode ser tornado perceptível para as pessoas quando ele for crido,
proclamado e ensinado pela Igreja. Os dons da justificação, a preparação para
o serviço somente podem se tornar eficazes quando conduzem ao testemu­
nho. “Como, porém, crerão se nada ouviram? Como ouvirão, se não há cjuem
pregue? Como, porém, pregarão se não forem enviados?” (Rm 10.14ss.)
Por isso, servir ao evangelho significa “zelar pela manutenção da prega­
ção do evangelho e pela vocação e envio de pregadores do evangelho”57. Não se

56 G. WARNEGK, Evangelische Misstonslehre, vol. 2, Gotha, 1892.


5 / E. SGHL1NK, op. cit., p. 312.

114
pode serjustificado e deixar outras pessoas na condenação. A vontade salvadora de
Deus precisa ser revelada a todas as pessoas, para que também elas tenham
parte em sua compaixão e, por conseguinte, em seu senhorio. Assim, em Paulo
justificação e missão se tornam conceitos correlatos08. Sem fé na justificação a
missão está sem pressuposto, sem a misericórdia de Deus está sem conteúdo,
sem reconciliação, sem objetivo. Ora, uma fé na justificação que não atua no
testemunho, portanto no serviço missionário, é um saber morto ou uma fé egoísta - e
sobre ela é proferida a sentença na Escritura.
Ora, a missão como missio dei não pode ser realizada pela comunidade se
esta não se entende sempre como instrumento e tem a consciência de estar a
serviço do Senhor. A melhor expressão disto é a oração da comunidade
missionária. Por isto, a missão e a oração estão relacionadas tão estreitamente
quanto a missão e a justificação. Seria necessário um trabalho específico para
descrever tais nexos. Handmann fez um trabalho preliminar referente a esta
questão, mesmo que sob outro ponto de vista1’9. Como a justificação leva à
adoração, ao agradecimento e ao louvor mostra-nos a vida de oração da pri­
meira comunidade e do apóstolo Paulo. Deles podemos também aprender
como os dons da justificação e a preparação para o serviço se tornam eficazes
através da oração, como a oração abre as portas, como os mensageiros são
enviados sob oração, como a intercessão mútua sustenta todo o trabalho e
como, assim, a ação toda é posta nas mãos de Deus. Aqui, na oração, tudo é
desligado das pessoas para que somente Cristo atue através do serviço dos crentes.
“Para que eu seja ministro de Cristo Jesus entre os gentios, no sagrado encargo
de anunciar o evangelho de Deus, de modo que a oferta deles seja aceitável,
uma vez santificada pelo Espírito Santo. Tenho, pois, motivo de gloriar-me em
Cristo Jesus pelo meu serviço a Deus. Pois não ousarei discorrer sobre coisa
alguma senão daquelas que Cristo fez por meu intermédio” (Rm 15.16ss.)
De uma fé assim se originou, através da atuação do Espírito Santo, a
Reforma. Nela pode-se reconhecer a dynamis divina dajustificação', pois o ideário
reformatório foi transmitido de boca em boca por inúmeros leigos anônimos.
Mas mesmo a Reforma não levou à missão entre os gentios? As vozes que
expressam a censura de que para os reformadores a ordem missionária nada
significava ainda não desapareceram. Sem levar em conta que essa censura
não está totalmente correta585960, podemos afirmar que a Reforma foi um dos maio­
res movimentos missionários da história da Igreja, pois os reformadores ainda se
atinham à unidade da tarefa missionária. Visto que o trabalho missionário
estava proibido a eles nos reinos coloniais católicos, eles fizeram missão junto
aos descrentes de seu próprio meio61.

58 A. KÕBERLE, op. cit., p. 97.


59 R. HANDMANN, Das Gebet eine Missionsmackt, Leipzig, 1912.
60 K. HOLL, op. eil.; VV. ELERT, op. cit., p. 336ss.
61 A. KÖBERLE, op. cit., p. 98ss.

115
Em todo caso, na época da Reforma estava viva uma convicção que só
pode resultar da fé na justificação e que repetidamente levou aos maiores fei­
tos missionários: a convicção de que sem a fé no evangelho ninguém pode ser
salvo. Os reformadores ainda não sofriam do “enfraquecimento dos ossos” de
nossa época, que relativiza a pretensão de salvação do evangelho, mas estavam
convencidos da necessidade salvífica absoluta do evangelho. Com isto eles ti­
nham um autêntico motivo bíblico para a missão, que produziu efeitos até os dias
de hoje e que permanecerá enquanto alguém esperar ser salvo pela fé na mise­
ricórdia de Deus. Por isso é um tanto unilateral a afirmação de Hartenstein de
que “a identificação da voz viva do evangelho com a doctrina sobre Cristo para­
lisou, a partir da Reforma, a vontade missionária”62. Deve-se admitir que os
epígonos de Lutero e Calvino quiseram fazer da inexistência de missão uma
doutrina. Mas o que reiteradamente se manifestou em August Hermann Franke,
Zinzendorf e nos fundadores da missão até Hudson Taylor63foi precisamente a
tese da necessidade salvífica da justificação, de modo que um John G. Paton pôde
reagir a um jovem missionário com seu motivo cultural dizendo-lhe: “Jovem,
você acredita que eu teria arriscado minha vida entre os selvagens e canibais
das Novas Hébridas se eu não acreditasse que cada homem, cada mulher, cada
criança que encontrei estariam sujeitos ao inferno?”64
A miséria de nosso tempo é que nós não mais possuímos essa convicção
reformatória, de modo que ela atuasse deforma determinante em nosso serviço65. Nes­
te sentido ainda sofremos as conseqüências da época liberal de nossa teologia
e da escola da história das religiões, que aplicaram sua reflexão relativizante
também à revelação de Deus e com isto tiraram da Igreja o âmago de sua fé.
Certamente Deus também pode salvar pessoas que não tiveram nenhuma opor­
tunidade de ouvir o evangelho. Só que a pergunta é se ele não exigirá suas
almas de nós. Neste sentido Spurgcon (cuja palavra, entretanto, não posso do­
cumentar) decerto tem razão ao dizer: “Se os gentios podem ser salvos sem o
evangelho, isto eu não sei, mas uma coisa eu sei: que nós não poderemos ser
salvos sem levar-lhes o evangelho.” Portanto, o erro decerto não foi ter identi­
ficado a voz do evangelho com a doctrina, mas não ter mais descrito e entendi­
do a doctrina como “palavras da vida eterna”. Em todo caso, poderíamos nos
considerar felizes se essa dinâmica da justificação irrompesse novamente em
nossa Igreja.

K. HARTENSTEIN, Zur Neubesinnung über das Wesen der Mission, p. 20.


03 W. EREYTAG, Mission im Blick auf das Ende, EMZ, 1942, p. 322.
^ ^ ' BURION, Modern Mission in the South Pacific, London, 1949, p. 12.
05 A. G. HERBERT, The Missionary Obligation of the Church, p. .385.

116
4. A conformação da pregação m issionária

Nesta parte não se trata de oferecer uma doutrina da missão, mas de tirar
as conseqüências resultantes do que até aqui foi dito. Se até agora tratamos do
sujeito da missão, então agora temos que perguntar por seu objeto. Com base
em Rm 1.18-3.20, este não pode ser senão todas as pessoas. Todas pecaram e,
por conseguinte, estão em dívida com Deus (3.19). Por isto, todas também
serão julgadas por Deus. No juízo não há distinção de pessoas e, em conse-
qüôncia, nenhum povo privilegiado. Todas as pessoas estão sob o pecado (3.9)
e perdidas. Porém, visto que Deus quer salvar a todas através do ato amoroso
de seu Filho, por meio da justificação, na missão elas são confrontadas com a
mensagem desse amor. Elas são, assim, o “tu” da salvação e, por conseguinte,
da missão66. Uma vez que a humanidade é vista corno unidade, ela se defronta
como unidade com aquele Um que é seu Redentor e Reconciliador. Assim
como há somente uma humanidade caída, da mesma maneira há somente um
evangelho, uma salvação. Esta Deus realiza. “Ele deseja que todas as pessoas
sejam salvas e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1 Tm 2.4.) Por­
tanto, a missão é dirigida a toda a humanidade. Assim como todas elas peca­
ram naquela uma pessoa, da mesma maneira também poderão ser salvas so­
mente por meio daquele Um (Rm 5.12,18). Por isso, a pregação missionária
não pode levar em consideração limites de povo e raça.
Em meio a esta humanidade pecadora vive a comunidade de Jesus Cristo.
Também ela é pecadora, portanto se encontra numa solidariedade de pecado e
culpa com o meio que a cerca. Por outro lado, contudo, ela é “tirada para fora”
do mundo pecador pelo amor de Deus67, ela faz parte, através do perdão recebi­
do e do novo nascimento, da nova criação que inicia com aquele Um, e, na
condição de comunidade dos justificados e reconciliados, é a portadora da pro­
messa divina e da vontade amorosa de Deus entre os povos. O amor de Deus é
vertido em seu coração (Rm 5.5b). Com isto Deus não a tira do mundo, mas faz
deste o espaço do testemunho da comunidade. Seu agraciamento é, portanto, com­
promisso. A comunidade possui algo que as outras pessoas não têm, mas que
precisam em vista de sua salvação. Por isto, a comunidade ingressa numa relação
de culpa com a parte restante da humanidade, à qual ela tem que servir com o
evangelho (Rm 1.14). Como pretende louvar e agradecer a Deus por seu
agraciamento, se ela como nova criação não continua a obra daquele que foi a
primícia, mas subtrai a seus próximos o que Jesus conquistou também para eles?
Como ela pode ser uma comunidade crente em desobediência e egoísmo? Neste
sentido as igrejas antigas correm constantemente o risco de restringir ao pró­
prio povo a dinâmica da justificação que rompe todos os limites. O fato de pen­
sarmos e agirmos no âmbito da Igreja territorial e nacional é uma expressão da
limitação de nosso cristianismo. Ambos os conceitos e sua fundamentação na
teologia c no direito eclesiástico prejudicaram repetidamente a vida eclesial pelo

66 K. HARTENSTEIN, Die Mission als theologisches Problem, Berlin, 1933, p. 32ss.


67 W. EREYTAG, cf. abaixo nota 80.
fato cie que as igrejas podiam cruzar os braços com base na idéia de um Estado
e povo cristãos e não reconheciam sua tarefa para além das fronteiras do povo.
Resultou daí a alternativa “povos cristãos e não-cristãos” no lugar de “Igreja e
não-cristãos”. Isto, porém , teve com o conseqüência que se ficou cego em relação
à descrença existente nas próprias fileiras e não se entendeu que a frente de
batalha sem pre perpassa ao m esm o tem po as próprias com unidades68. Assim as
igrejas perderam , ju n tam ente com a vontade de fazer missão ju n to aos não-
cristãos, tam bém o senso da necessidade de salvação dos próprios batizados.
Este problema ocorre em toda parte onde se trabalha visando uma Igreja
nacional9, só que a situação no campo da missão é outra. Ou a mensagem foi
aceita em bloco pelas ligas nacionais, de modo que teoricamente a comunida­
de determina o povo e, por conseguinte, a pertença plena ao povo é tornada
dependente do fato de se ser membro da comunidade - o que somente é
possível através de uma assimilação mútua. Foi o que aconteceu com muitos
povos primitivos, sobre cujo cristianismo hoje é difícil afirmar se se trata de
um povo cristianizado ou de uma Igreja nacionalizada. Ou então comunidades
foram fundadas num meio gentio sem que se lhes transmitisse a dinâmica da
justificação, de modo que hoje elas dificilmente desenvolvem uma atuação
missionária. No primeiro caso os limites foram apagados, no último a tarefa
missionária não foi sentida. Apenas poucas igrejas novas encontraram a posi­
ção correta em relação a seu povo. A maioria delas está hoje, de modo inquie-
tante, exposta à influência do nacionalismo, de sorte que freqüentemente é
preciso perguntar quais são os motivos que determinam suas ações. Esta per­
gunta precisa ser feita até mesmo em relação às uniões eclesiais. Na índia, por
exemplo, quando se procura unificar numa única Igreja toda a cristandade
evangélica indiana, neste processo não é decisivo somente o motivo
neolestamentário; neste caso não se iria parar nas fronteiras da índia. Isto
tudo são indícios do fato de que também lá onde se quis evitar o sistema de
Igreja nacional, o pensamento baseado nesse sistema determinou a ação.
O conceito “Igreja nacional” é uma contradição em si mesmo e insustentável
com base no Novo Testamento. A partir deste, só pode haver Igreja no povo ou
entre os povos, a qual se compõe de todos os crentes. Deus quer reunir seu povo
através de seu evangelho, do serviço da comunidade, que consiste na procla­
mação da justificação; e isto não se identifica com limites nacionais. Esse povo
se compõe de todos os batizados e crentes. Por isto, dentro da comunidade não
pode haver antagonismos nacionais. Ela sobrepuja todos os limites nacionais,
consiste de irmãos e irmãs e isto é a pedra de toque para verificar “se a doutri­
na da justificação compreendeu a fé e a vida da comunidade em profundida­
de”70 (Rm 10.12; G1 3.23; 1 Co 12.13; Cl 3.11).

68 E. SCHI.INK, op. eil., p. 286.


69 J. C. HOEKENDIJK, op. cit., p. 125ss., onde este problema ö tratado a fundo; ID., The Call to
Evangelism, IRM, 1930, p. 162ss.
70 O. MICHEL, Gemeinde und Völkerwelt, EMZ, 1941, p. 293.

118
A fim de reunir tal comunidade dentro do mundo, Deus usa, através do
Espírito Santo, sua Igreja e faz proclamar sua salvação entre as pessoas perdidas.
O que está em jogo aí é unicamente a redenção do pecador. Receio que hoje, no
trabalho missionário, esse objetivo seja sobreposto, em grande parte, pelas mui­
tas preocupações e necessidades, bem como pela definição do relacionamento
com as igrejas novas, de modo que ele não mais ocupa a posição dominante e
que a tudo perpassa. Também o trabalho missionário pode se tornar rotina
eclesial, e este talvez seja seu maior perigo. Se tivesse permanecido determinante
no trabalho, as discussões com as igrejas novas teriam que ter tomado outro
rumo, pois a missão como salvação do pecador transmite ambas as coisas: simul­
taneamente autoconfiança cristã e subordinação. Onde a perdição das pessoas arde
na alma, passam para o segundo plano as questões relativas à necessidade de ter
seu valor reconhecido. Assim as igrejas novas teriam aprendido que a verdadeira
autonomia somente é obtida na oferta do evangelho, na confrontação com o
mundo da descrença, e as igrejas antigas teriam experimentado que no trabalho
missionário uma Igreja nova chega à força da idade adulta e que seu relaciona­
mento mútuo nunca pode ser uma questão de subordinação ou superioridade,
mas somente de um enquadramento comum na mesma e única atividade. Então
também as igrejas antigas teriam evitado que o objetivo se deslocasse durante as
discussões e se teriam dado por satisfeitas com um serviço de assistência, que só
pode servir ao objetivo de forma indireta. Acaso hoje o trabalho missionário
não é determinado preponderantemente a partir da situação, isto é, a partir do
ser humano? Ora, no trabalho do reino de Deus decisiva nunca é a situação, mas
sim a Igreja que se defronta com ela a partir da palavra de Deus.
Com uma definição correta do objetivo, em todo caso não se teria podi­
do dizer, em meio a um mundo de descrença, que o tempo da missão pioneira,
portanto da conversão e da fundação de comunidades, tenha chegado ao fim.
A situação que se modifica é sempre um bloqueio do caminho; justamente por
causa disto deve-se constantemente abrir novos caminhos. De modo algum tenho a
impressão de que com a existência das igrejas novas o trabalho tenha se torna­
do mais fácil e menor. Por isso precisa-se também dos “escoteiros” da Igreja
antiga e nova, “a fim de ganhar muitos” e “salvar alguns” (1 Co 9.16-23). Leia-
se mais uma vez estes versículos para que se tenha uma noção do que significa
estabelecimento do objetivo missionário. Neste curto trecho Paulo usa seis
vezes o hina (= para que) divino e com isto dá cada vez a mesma fundamenta­
ção. Ele também teve uma Igreja nova e suas dificuldades realmente não eram
menores do que as nossas, mas ele perseverou no objetivo.
O objetivo é alcançado através da proclamação dos fatos salvíficos, da
oferta da reconciliação. Neste sentido é óbvio que as pessoas que se tornaram
ignorantes precisam saber primeiro contra quem e como elas pecaram, por
que estão perdidas e com quem devem se deixar reconciliar a fim de serem
salvas. Neste ponto a pregação do primeiro artigo do credo adquire sua impor­
tância. Assim, a tarefa da Igreja somente pode consistir em chamar, através da
pregação da lei e do evangelho, do juízo e da graça, as pessoas para se coloca­
rem sob o senhorio de Deus, levá-las à fé, para que abracem a sola gratia.
Assim, através da ação do Espírito Santo é alcançado o objetivo da revelação de
Deus: a salvação e renovação das pessoas.

119
Este serviço a Igreja só pode prestar aos descrentes se ela emprega os
meios de missão que Deus lhe deu na revelação. Ele acontece através da viva vox
evangelii em palavra e sacramento, que são o conteúdo da revelação. Esta não
é uma cosmovisão ou um programa social, “não é especulação ou gnose, mas
justificação, santificação, renascimento, vida eterna (Jo 17.3). Deus nunca se
revela de outra forma do que fazendo algo novo da pessoa.”'1 Somente a revelação,
através da ação do Espírito Santo, leva ao reconhecimento da situação de peca­
do e ao arrependimento, porque ela mostra à pessoa como ela realmente é.
Somente ela tem a força de libertar a pessoa dos vínculos com os demônios,
com os pecados e com o mundo alheado de Deus - incluindo o povo. Por outro
lado, ela lhe mostra Deus na imagem do Deus invisível (Cl 1.15) e coloca-a
assim bem pessoalmente diante da decisão. Ela dá ao ser humano a força de
romper com sua vida, de agarrar a salvação na fé e de se deixar presentear com
o perdão dos pecados'2. Assim, através da apresentação dos fatos salvíficos é
desencadeado o processo fundamental que leva à conversão e ao renascimento
e, por conseguinte, à renovação da pessoa.
Todo método missionário precisa considerar essas linhas básicas da apro­
priação da salvação, se pretende levar à fundação da comunidade de Jesus e
proclamar seu senhorio entre os povos. Infelizmente justo neste ponto pecou-
se muito no campo da missão através da impaciência humana, insuficiência,
descrença e sabedoria mundana, porque se cria ter que apoiar a ação do Espí­
rito Santo através de meios humanos, seja através da atividade filantrópica, da
proclamação do social gospel**, da disseminação da civilização ou adaptação à
índole nacional. Queria-se tornar a decisão do gosto das pessoas ou facilitá-la,
e precisamente com isto impediu-se que as pessoas interpeladas chegassem à
alegria da filiação divina. O resultado disso foi que os atingidos associaram
expectativas errôneas com a aceitação do cristianismo e acreditaram que o
essencial da vida em comunidade consistisse no cumprimento de determina­
das prescrições sociais, a fim de obter um nível de vida mais elevado. Os cris­
tãos foram levados a um novo legalismo, sem terem experimentado a liberda­
de dos filhos de Deus. - Sem dúvida, junto com o trabalho missionário aconte­
cerá a promoção do povo, mas ela não deve ser antecipada; precisa, isto sim,
ser uma conseqüência da pessoa renovada e, por conseguinte, do evangelho.
Portanto, ela precisa partir da comunidade, para não resultar numa superficia-
lização da mensagem.
Deus salva a pessoa interpelando-a de forma bem pessoal e conduzindo-a à
fé através de sua palavra. Com a aceitação da salvação, porém, ele a coloca simul­
taneamente na comunhão dos salvos, para que ela permaneça no estado de pessoa
justificada e encontre a força e ajuda de que precisa para sua nova vida. Isto
acontece através da inserção na Igreja visível, da participação no corpo de Cristo,

VI ID., Die Fürbitte des Erlösers, EMZ, 1941, p. 356.


72 K. HARTENSTEIN, op. cit., p. 37 e 41ss.; A. KÖBERLE, op. cit., p. 153s.
* N. do E.: Este termo se refere à teologia de Walter Rauschenbusch e Reinhold Niebuhr. A crítica
se refere à redução do evangelho à ação social.

120
que é comunicada pelo Batismo13. Através dele a velha pessoa é entregue à mor­
te, morre para o pecado, torna-se uma nova pessoa através do Espírito Santo e
recebe participação na ressurreição do Senhor (Rm 6; Cl 2.11). Com isto, o
batizando experimenta o perdão único dos pecados, como a Igreja ensinou
reiteradamente e como testemunham os batizados em todas as áreas de missão
em que o Batismo é praticado de acordo com a Sagrada Escritura737475.Simultane­
amente, porém, eles recebem participação na salvação e na vida eterna (Tt 3.3-7;
1 Pe 1.3s.). Assim, ao batizando é transmitido tudo o que Cristo fez por ele; por
conseguinte, o Batismo não está fundamentado somente na compaixão de Deus,
mas comunica à pessoa no renascimento ajustificação, pois transmite-lhe o mérito
de Cristo. Aqui coincidem o renascimento e ajustificação, e a pessoa não pode fazer
outra coisa do que se deixar presentear tudo na fé1''.
No Batismo, portanto, a nova vida torna-se existente. Porém ela não teria
nenhuma duração posterior se Deus não desse ao renascido, através da comu­
nicação do Espírito Santo, a força para levar uma vida agradável a Ele. Por isso,
através do Batismo a pessoa é renovada em sua consciência (1 Pe 3.21), purificada
das obras mortas, portanto dotada de uma nova norma de consciência, para
servir ao Deus vivo (Hb 9.14). Ela, de agora em diante, está sob o senhorio de
Deus. Com isto a santificação, que o Espírito Santo iniciou prolepticamente
através do ouvir da palavra e realizou no Batismo, torna-se repetidamente atu­
ante no Batismo, por meio da confiança da pessoa crente na ação de Deus no
Batismo767, para que ela possa produzir frutos (Cl 1.10-14).
Portanto, na nova vida todo dever baseia-se num ser11, trata-se sempre de ser
santificado78. Por isso não se podem separar ajustificação e a santificação;
ambas coincidem no Batismo. Somente com base nisto Paulo pode fazer as
muitas afirmações indicativas e positivas sobre as qualidades da nova pessoa
ou falar sobre os frutos do Espírito. Quando, porém, contempla sua própria
vida, ele sabe que não alcançou o objetivo da santificação por meio de esforços
próprios (Ef 4.13; Fp 3.12). Só se pode tomar com base no ser tomado por Cristo. O
Batismo, assim, nos coloca na comunhão com Cristo, no âmbito de sua ação. O
ser eleito, o ser plasmado por ele são a base e o conteúdo de nossa vida de
cristãos (Jo 15.1-17). “Porque todos quantos fostes batizados em Cristo, de Cristo
vos revestistes.” (G1 3.27.)
Essa comunhão, esse estar-em-Cristo são a base da vida da Igreja, da co­
munidade dos batizados. Nela a cabeça, através de sua comunhão com cada

73 A. G. HERBERT, The Mission of the Church, p. 390.


74 H. W. GENSICHEN, Das Taufproblem in der Mission, Gütersloh, 1951, p. 15ss.
75 E. SCHLINK, op. cit., p. 142ss. e 158ss.
76 H. W. GENSICHEN, op. cit., p. 30ss. e 44ss.; J. von WALTER, Die Theologie Luthers, Gütersloh,
1940, p. 272s.
77 O. CUI.LMANN, op. cit., p. 199.
78 K. GAUGLF.R, op. cit., p. 37-52.

121
um dos membros, junta todos os batizados em seu corpo e torna a comunida­
de dos reconciliados uma comunhão de vida. Por isto, ser justificado significa
sempre estar na comunidade deJesus. Não há Batismo sem comunhão batismal79.
Esta frase, entretanto, pressupõe a ação de Cristo no sacramento. Neste senti­
do, seria de se perguntar até que ponto as missões para as quais o Batismo é
somente uma cerimônia, um símbolo, um ato de aceitação na comunidade
(que é determinado ou sobrepujado pela experiência da conversão ou do batis­
mo do Espírito!) agem corretamente e estão aptas a transmitir a graça do
Batismo aos crentes. Cristo vinculou sua ação à palavra e ao sacramento. Uma
prática superficial do Batismo junto com uma compreensão imprópria do sacramento
não pode levar à vivência da justificação e, por conseguinte, também não a uma
comunidade cristã autêntica. Um missionário que duvide da ação do sacramento
não pode fundar sua comunidade somente em Cristo, que oferece tudo aos
seus de graça no sacramento e transforma os batizados em propriedade sua.
Se encontramos tão poucas comunidades verdadeiras no campo da missão, a
razão disto decerto está na prática batismal. Isto pode ser percebido claramen­
te na comparação com as comunidades nas quais a graça do Batismo e a nova
aliança tornaram-se realidade.
Onde não se tem essa compreensão de Batismo também não se sabe o
que é confissão e que importância ela tem para a comunhão dos cristãos com
seu Senhor e na vida da comunidade, que se baseia no perdão. Além disso,
dever-se-ia perguntar neste ponto qual é o alcance da comunhão batismal e se
o movimento ecumênico age corretamente em seus esforços de tornar visível a
unidade da Igreja quando acolhe em suas fileiras também os que desprezam o
Batismo. O Batismo é o elemento comum que une toda a cristandade. Justa­
mente por causa disso dever-se-ia encará-lo com muita seriedade no trabalho
missionário. Como através dele é fundada a comunidade, assim ele também
seria capaz, se entendido biblicamente, de plasmar a unidade da Igreja. Por
meio dele é eliminado entre os batizados tudo o que divide, a cerca é derruba­
da, eles são transformados em cidadãos e companheiros de Deus aqui nesta
terra (Ef 2.2s.). O laço mais íntimo dessa comunhão é, por isso, o perdão, que é
praticado nela e por meio dela e que ela só pode presentear porque ela mesma
recebeu perdão. E sempre o Senhor que continua a agir na comunidade através de
seu ato sacrifical. “Se procuras a Igreja, não a encontrarás antes de veres a ele e
a seu amor. A Igreja é o milagre de que neste mundo no qual vivemos haja um
grupo de pessoas que, em Cristo, Deus livra, por amor, do medo, sofrimento,
pecado e morte. A Igreja vive do amor. O amor é seu fundamento de vida”80.
Em parte alguma esse amor se expressa e se consuma de forma tão acen­
tuada na comunidade quanto lá onde a comunidade pratica o perdão e vive,
ela própria, da fonte do perdão: na Santa Ceia, onde ela celebra a morte
reconciliadora de Jesus, torna-o atuante em seu meio e o proclama através de
seu comer e beber, até que ele venha (Rm 5.6-11; 1 Co 11.26). Na Ceia a vida

79 O. MICHEL, Gemeinde und Völkerwelt, p. 294.


80 W. FREYTAG, Mission als Tat der Liebe, p. 194.

122
da comunidade é constantemente renovada. Aqui cada membro individual­
mente recebe a força do amor, o fortalecimento da fé e torna-se consciente de
sua condição de membro do corpo de Cristo, da comunhão que o próprio
Cristo estabelece reiteradamente através da partilha de sua carne e seu sangue.
Por isso a Santa Ceia é a ligação mais forte e íntima do Senhor com sua
comunidade e a antecipação da comunhão eterna que ela pode ter com ele. Cada
celebração da Ceia é um acontecimento escatológico, que torna a própria comuni­
dade uma grandeza dofinal dos tempos-, ela ainda está neste mundo para executar
sua tarefa salvífica no mundo em vista da vinda do Senhor81, porém não perten­
ce mais a este mundo perdido, mas é tirada dele por amor e destinada à alegria
e glória eternas. Na Santa Ceia o Senhor dá à sua comunidade tudo o que ela
precisa para sua vida no estrangeiro. Por isso, sobre cada celebração da Ceia está
a seriedade do fim dos tempos, a expectativa dos que estão de partida. Por isso,
uma autêntica comunidade de Ceia não pode se prender mais a este mundo,
mas, através da Ceia, separa-se de tudo que não é de seu Senhor. Assim a Santa
Ceia adquire a maior importância para o trabalho missionário, para a condução
da comunidade, para a vida da Igreja. Freytag a salientou em dois trabalhos82
que nunca mais deveriam deixar de ser levados em conta ao se abordar a Ceia na
teologia e na condução da comunidade. Ele expõe ali como o Senhor, através da
dádiva de sua carne e sangue, estabelece comunhão, se corporifica na comuni­
dade e a capacita a se separar de tudo o que atrapalharia essa comunhão. Assim
como a Igreja antiga usou a Ceia como a arma mais forte contra o paganismo, da
mesma maneira a Ceia também desfaz, nos campos missionários, todos os víncu­
los com poderes extracristãos e leva as comunidades a romperem sua casca. Ou
uma comunidade vive no sacramento ou ela morre.
Esses são os meios de missão que a comunidade tem para levar a reden­
ção à humanidade perdida. “São três os que dão testemunho”, diz João, “o
Espírito, a água e o sangue” (1 Jo 5.6). Estes três dão a fé que vence o mundo.
Se a missão se recordar destes três, então a crise na qual ela agora se encontra será uma
crise fecunda. Então as muitas conferências não se ocuparão com programas,
relatórios, propostas de melhoramento e questões da impregnação dos povos
com o espírito cristão e democrático, aos quais Deus tantas vezes ignora e
passa para a ordem do dia, mas levarão a um apreço alegre desses meios da
graça e da missão e assim também a um exame consciencioso de seu emprego e a
uma confrontação autorizada da Igreja com os descrentes. Então a missão tam­
bém poderá experimentar que seu êxito não reside em sua atividade social,
filantrópica ou civilizatória, mas na oikodome (= edificação), na construção es­
piritual da Igreja de Jesus Cristo através dos três meios da missão. Mas então
ela também saberá que sua tarefa não termina com a conversão de pessoas, a
fundação de comunidades e a formação de novas igrejas autônomas, mas so­
mente quando as igrejas novas, através da administração própria e correta

81 H. SASSE, Vom Sakrament des Altars, Leipzig, 1941, p. 72-73.


82 W. FREY TAG, W. Die Verleiblichung des Lebens aus Cristus, Mission und Pfarramt, Berlin, 1946,
caderno 3; Die Sakramente auf dem Missionsfeld, EMZ, 1940, p. 22 e 49ss.

123
desses três meios de missão, realmente se tornarem “autônomas”, isto é, livres
de todos os vínculos falsos, e orientarem sua vida somente pelos três meios. O
serviço da missão somente estará concluído quando Deus levar a cabo a reden­
ção das pessoas através do retorno de seu Filho.

5. O cam inho da com unidade


até a justificação final

O objetivo da missio dei é a redenção das pessoas da condenação eterna.


Por isso também a missão da Igreja não pode ter outro objetivo. Ela continua
a missio dei por incumbência dele, sob sua promissão e colaboração, e com isso
torna-se, ela mesma, um acontecimento histórico-salvífico e histórico-eclesiás­
tico que se realiza entre a ascensão e o retorno do Senhor. Com isso a comuni­
dade se torna comunidade da salvação entre os povos. Ela é o símbolo do fato de
que Cristo redimiu este mundo e simultaneamente o corpo de Cristo, por
meio do qual ele continua sua atuação e constantemente manifesta ao mundo
que ele é o Senhor, a quem também os demônios estão subordinados83. Isto se
expressa em cada conversão e fundação de comunidade. Isto acontecerá nesse
meio tempo através da Igreja até ele surgir visivelmente em sua glória, para
revelar seu senhorio agora oculto.
Portanto, a tarefa da comunidade somente pode ser a de servir ao senho­
rio de Cristo. Para isso ela é habilitada com seus dons. Logo, sua existência não
é um fim em si mesma, mas tanto sua forma de existência quanto sua essência
são determinadas sempre a partir do testemunho que ela deve à humanidade perdida.
Por meio do testemunho ela dá continuidade ao apostolado e torna-se, assim,
Igreja apostólica - um pensamento que teve um efeito arrebatador principalmen­
te na teologia holandesa84. Portanto, ela não é uma Igreja apostólica apenas
porque se encontra sobre a base dos apóstolos e profetas, mas porque desempe­
nha as funções apostólicas da Igreja. Se não for assim, então ela pode se reportar
tão pouco aos apóstolos como os judeus a Abraão. Ela somente é Igreja apostó­
lica quando envia os “mensageiros em lugar de Cristo” e se engaja pela salvação
das pessoas através da doutrina dos apóstolos. Somente por meio da proclama­
ção dos fatos salvíficos testemunhados pelos apóstolos o senhorio de Cristo é
levado aos povos e, por meio disso, as pessoas são colocadas diante da decisão.
Portanto, elas também podem rejeitar ao Senhor; pois Jesus, o Senhor, agora
vinculou seu senhorio somente à sua palavra e seu sacramento.
Jesus Cristo, em quem Deus estava presente (2 Co 5.19), através do qual
ele criou a nós e todas as coisas (Jo 1.3; Cl 1.16; 1 Co 8.6) e para o qual é

83 G. ST.4HI.IN, Kirche, Mission, Eschatologie in d er Sicht des Neuen Testaments, p. 25s.


84 J. C. HOEKENDIJK, T he Call to Evangelism, p. 170ss.

124
direcionada toda a nossa existência (Cl 1.16; 1 Co 15.49), tem direito sobre
todas as pessoas. Por isso todas estão sujeitas ao juízo. Porém ele não exerce
seu senhorio como um tirano antes, o âmbito de seu senhorio é o reino da
graça. Sua basileia (= reino), por conseguinte, se torna menos visível no êxito
da pregação do que no fato da pregação8586.Esta irá passar pelos povos no tem­
po intermediário. A ela o Senhor vinculou sua vinda (Mt 24.14). Assim, a pre­
gação da justificação sempre tem como objetivo a consumação81’.
Aqui não considero como minha tarefa reproduzir in extenso (= detalha­
damente) o conteúdo dos trabalhos muito ricos que fundamentam a missão a
partir da escatologia87. Eles têm o grande valor de aguçar a consciência da
Igreja com vistas à responsabilidade última, mostrar-lhe as autênticas tarefas
eclesiais e indicar-lhe a postura correta dentro do mundo. Meu objetivo era o
de salientar como a missão e o senhorio de Cristo têm sua fundamentação e
possibilidade na ação salvífica de Cristo. Esta ação salvífica, porém, somente
pode ser entendida a partir da escatologia. Isto se aplica especialmente aos
feitos centrais de sua atividade terrena, à sua morte e ressurreição (Rm 4.23ss.;
8.33ss.). Somente através de sua morte e através de sua ressurreição Jesus se
tornou o Senhor e se tornará por toda parte onde for anunciada esta mensa­
gem (Fp 2.5-11). Neste sentido sempre se apontou para os nexos escatológicos.
O testemunho da comunidade acerca da ação salvífica de Jesus sempre a
levará ao caminho que foi trilhado por seu próprio Senhor, pois pelo fato de
pregar a reconciliação e assim proclamar o senhorio de Jesus ela desafia o mal,
que se apresenta para o combate8889.Assim como o Senhor somente chegou ao
objetivo por meio de seu sofrimento, também sua comunidade é exposta a
sofrimentos e tribulações8<J. Quanto mais progride a proclamação do evangelho,
tanto mais o reino do mal irá se preparar para a batalha final. Também a
realidade intensificada do mal é um sinal do fim dos tempos. A vida da comu­
nidade se realizará sempre na ecdesia militans (= Igreja militante). Está de acor­
do com o evangelho o fato de se perceber algo dessa batalha. A comunidade
não pode esperar uma vida diferente da que tinha seu Senhor (Jo 15.18ss.).
Este é um fato dado simplesmente porque a comunidade precisa se confrontar
com o mundo. Ao fazê-lo, ela é levada ao sofrimento e ao estrangeiro (1 Fe
2.11), em que aprende a se alegrar com a polüeuma (= pátria) no céu, onde ela vai
chegar à perfeição quando o Senhor submeter a si todas as coisas (Fp 3.15-21).
Também o sofrimento faz parte do serviço de testemunho da Igreja de Cristo90.
Este é um fato que, nos trabalhos sobre a relação entre escatologia e missão

85 O. CULLMANN, op. d t., p. 141.


86 W. FREYTAG, Die Weltmission im Blick auf das Ende, p. 321.
87 V. nota 11.
88 K. S. LATOURETTE, W hat Clan We Expcct etc., op. eil., p. 146.
89 M. JÄGER, op. cit., p. 70s.; G. STÄHLIN, Die Endschaujesu und die Mission, p. 134ss.
90 M. JÄGER, op. cit., p. 106.

125
que conheço, parece-me, com exceção daquele de Stáhlin, não ter sido consi­
derado com a mesma ênfase como ocorre no Novo Testamento. Com isto, é
evidente que eles correm o risco de se tornarem, sob o ponto de vista do
senhorio de Cristo, uma theologia gloriae (= teologia da glória), que é inoportu-
najustamente hoje, quando se reconheceu a comunidade em sua posição como
povo de Deus.
O caminho da Igreja e da missão passa, até atingir seu alvo, por sofrimen­
tos cada vez mais intensos. Hoje dificilmente se reconhece o significado deles
para a educação da Igreja por Deus e na representação pelos pecados dos
povos. Isto se deve, por um lado, ao fato de que, nesta época em que a Igreja
nacional está no fim, as igrejas ainda não conseguem imaginar como o teste­
munho e a proclamação seriam possíveis sem a atitude fundamental benévola
dos povos, com base na qual se pode proteger juridicamente os “direitos” da
Igreja. A conseqüência sempre é ainda que se confia mais em garantias jurídi­
cas do que nas manifestações vitais da comunidade oriundas da fé. Por outro
lado, nas missões, principalmente nas anglicano-americanas, ainda perduram
os efeitos das idéias liberais do século 19, das doutrinas do social gospel e do
reino de Deus erroneamente entendido, de modo que praticamente não se
tornou familiar o pensamento de que os sofrimentos fazem parte da profissão da
Igreja. Porém elas são uma advertência para repararmos aonde pode levar um
trabalho missionário fundado no senhorio de Deus ou de Cristo quando se o
afasta da fundamentação na soteriologia. Quando se segue Schaeder* e se
fundamenta a missão com uma “imperiologia”, então a redenção se torna con­
seqüência do senhorio de Jesus e não como no Novo Testamento (cf. Fp 2.5-11
e todas as passagens que remontam a Is 53.11s.), onde, justamente ao contrá­
rio, o ser Senhor de Cristo é conseqüência do sofrimento e da morte. Neste
caso Jesus não é mais o dominus (= pai de família) em seu dominium (= âmbito
de proteção) conquistado por meio de sofrimento e morte, mas um despotes (=
imperador)91. Então, porém, também se precisa necessariamente ignorar o fio
condutor que, a partir de Is 53, também no que diz respeito à Igreja, se estende
por todo o Novo Testamento. A melhor referência a ele é a palavra de At 14.22:
“Fortalecendo as almas dos discípulos, exortando-os a permanecer firmes na
fé; e mostrando que, através de muitas tribulações, nos importa entrar no
reino de Deus.” Aqui não se deixou os cristãos com nenhuma ilusão, não se
lhes prometeu um paraíso e também não se quis fundar nada parecido. Antes,
de forma bem sóbria, mas também numa atitude poimênica correta, chamou-
se-lhes a atenção para as conseqüências do ser cristão e instituiu-se-lhes anciãos,
portanto pastores que, nos acontecimentos escatológicos, os conduzissem no
caminho indicado por Deus.

* N. doE.: Erich Schaeder (1861-1936), teólogo alemão que exigia uma teologia bíblica teocêntrica
em contraposição à visão antropocêntrica da época liberal. De certo modo, foi um precursor da
teologia dialética, cujo maior expoente foi Karl Barth.
91 W. ELERT, Zwischen Gnade und Ungnade, München, 1948, p. 74s. e 78ss.

126
Com isto é dado ao ministério, à direção da missão e da Igreja nova, uma
tarefa especial: preparar as comunidades para os sofrimentos e as tribulações.
Aqui reside decerto o maior pecado de omissão do trabalho de missão, mas também
uma deficiência na direção das comunidades em nosso país. Provavelmente teria-se
agido mais de acordo com o modelo do Senhor e seus discípulos preparando
os cristãos chineses para o sofrimento do que construindo universidades para
eles. Com este pecado de omissão relaciona-se decerto também o fato de que
hoje as igrejas novas enfatizam mais seus direitos do que suas obrigações; que
elas aspiram a direitos iguais e buscam identificação com as igrejas antigas
justo ali onde, segundo a palavra de Deus, poderiam plasmar sua vida de for­
ma própria; que elas pensam encontrar no modelo ou sistema ocidental de
educação a chave para a vida independente e com igualdade de direitos, ao
passo que deveriam se deixar determinar totalmente a partir do Novo Testa­
mento.
A pregação do sofrimento, da capacidade para o sofrimento, do sentido
dos sofrimentos, do sacrifício, do consolo, da força no sofrimento era uma
parte essencial da proclamação neotestamentária. Por isto, a primeira comuni­
dade não recorre aos tribunais, nem pede a Deus que a livre do sofrimento,
mas suplica: “Concede a teus servos que anunciem com toda a intrepidez tua
palavra!” (At 4.29), a palavra da reconciliação, em cuja persistência e compro­
vação a comunidade experimenta sua justificação final (Mt 24.13; Ap 2.10).
Assim também o sofrimento e a missão estão estreitamente relacionados. Isto, porém,
só é possível porque a comunidade pode ser fiel na grande certeza da salvação
que flui da justificação, como se expressa em seu canto de vitória de Rm 8.3 lss.
Palavras como estas a comunidade somente pode aplicar a si mesma por­
que sabe que Cristo abarcou tudo em sua morte e ressurreição e ofereceu-lhe
na palavra e no sacramento o que lhe quer presentear na eternidade. Ele a
transformou já agora no ser celeste (Ef 2.5s.), para que ela procure o que é do
alto (Cl 3.1), ajerusalém celeste (Hb 12.22); para que ela espere o novo céu e
a nova terra (2 Pe 3.13), onde Deus irá enxugar todas as lágrimas e sua condi­
ção de estrangeira terá fim (Ap 21.1-7), porque ele, em seu juízo, por causa de
Cristo lhe dará a recompensa de sua fidelidade. Assim, sobre cada trabalho de
missão estão a seriedade da partida e a pressa, mas também uma certeza confiante: a
certeza de que na justificação final será revelado tudo o que Deus já agora nos
ofereceu na justificação por meio da palavra e do sacramento.
Por isso, a justificação não é nenhuma “almofada de descanso”, como foi
entendida erroneamente com muita freqüência, mas o fundamento e motor para
o esplêndido serviço de levar a salvação às pessoas perdidas e edificar a comu­
nidade do Senhor, na qual ele consumará tudo o que ela pôde, na fé, aceitar de
sua mão.

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