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Terra dos Sonhos

Elementos da Narrativa: Tempo, Espaço, Personagens & Foco narrativo

TEMPO:

Tempo cronológico ou tempo da história - determinado pela sucessão cronológica


dos acontecimentos narrados.

Entre 10590 da terceira era após a escuridão a 10634 da terceira era após a
escuridão

Tempo histórico - refere-se à época ou momento histórico em que a ação se

desenrola.
Entre a sucessão de Tantalus Dágoras do Sol e fim da guerra dos povos.

Tempo psicológico - é um tempo subjectivo, vivido ou sentido pela personagem, que

flui em consonância com o seu estado de espírito.

Tempo do discurso - resulta do tratamento ou elaboração do tempo da história pelo


narrador. Este pode escolher narrar os acontecimentos

por :
-com alteração da ordem temporal, recorrendo à analepse ou à prolepse

(antecipação de acontecimentos futuros), e


-ao ritmo dos acontecimentos como, por exemplo, na cena dialogada

ESPAÇO:

- Espaço ou Ambiente físico: é o espaço real, que serve de cenário à ação, onde as
personagens se movem.

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Plataformar continetal Oriental e arquipelagos costeiros.

- Espaço ou Ambiente social: é constituído pelo ambiente social, representando, por

excelência, pelas personagens figurantes.

- Espaço ou Ambiente psicológico: espaço interior da personagem, abarcando as


suas vivências, os seus pensamentos e sentimentos.

-O espaço ou ambiente: pode ser desde uma praia a um lago congelado. De acordo
com espaço ou ambiente é que os fatos da narração se desenrolam.

PERSONAGENS:

-Protagonista, personagem principal ou herói: desempenha um papel central, a sua


atuação é fundamental para o desenvolvimento da acção.

Bet. Aron Sat Geb. Lis. Mascate. Mestre Agenor. Tantalus Ágoras do Sol.

-Personagem secundária: assume um papel de menor relevo que o protagonista,


sendo ainda importante para o desenrolar da acção.

Edir Gramateus de Shadai. Lokar. Velha do Córrego. Irmãos flores. Amazonas. Íco.
Mago Verde. Conselho clerical . Gema.

-Figurante: tem um papel irrelevante no desenrolar da acção, cabendo-lhe, no

entanto, o papel de ilustrar um ambiente ou um espaço social de que é


representante.

-Tudo o que ocupa um espaço e pratica uma ação,mesmo que involuntaria, pode ser

considerado um personagem.

FOCO NARRATIVO:

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-Foco narrativo, ou ponto de vista: É o elemento estrutural da narrativa que

compreende a perspectiva através da qual se conta uma história. É, basicamente, a


posição a qual o narrador, enquanto instância narrante ou voz que articula a

narração, conta a história. Os pontos de vista mais conhecidos são dois: narrador-
observador & narrador-personagem.

-Narrador-Observador: é aquele que conta a história através de uma perspectiva de

fora da história, isto é, ele não se confunde com nenhum dos personagens. Este
foco narrativo se dá, predominantemente, em terceira pessoa.

Narrador observador onisciente. Pode ler os pensamentos da personagem em


certas ocasiões. Nunca consegue ler pensamentos de magos e de Tantalus Ágoras

do Sol.

-Narrador-Personagem :é aquele que conta a história através de uma perspectiva de


dentro da história, isto é, ele, de alguma forma participa do enredo, sendo um dos

personagens da história, usando a Primeira Pessoa (eu ou nós) para se contar


historia.

Primeiro ato

Da Luz

O Sacerdote levantou-se perante os presentes, e subiu no púlpito elevado,

seu lugar no Parlatório da Escolas de Mistérios da Ordem da Lua. Ben Adam fez
uma mesura ao Patrono de Letras Átticus de Penhascoforte, que acabara de deixar

o púlputo, fazendo uma brilhante explanação sobre etimologia do “Existir”, presente

nas Passagem Poética da Liturgia “O Terceiro Filho de D’us”. O público era grande

dia, naquela que era uma das mais prestigiadas Escolas de Mistérios do continente.

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Be, tomou o Livro dos Mistérios, na liturgia da criação, e incíciou a leitura

àqueles ouvidos atentos, que estavam no Templo, no Primeiro dia de Havdalá, do


Primeiro ano do reinado de Ben Adam de Quran e Susana de Niceia. E patronou:

“Havia uma pedra, Ptah, no topo do existência. Ele leu, e continuou, Criada

por D’us, ao despertar de seu sono. Acima da pirâmide do mundo. O olho onisciente
da prórpia criação, se abriu. E ela passou a brilhar como uma estrela, todo o tempo.

E não havia noite.


Então, h, moveu-se para a direita e deixou que um filho saísse de dentro da

Primeira Consciência. E soprou nele uma dávida.


E moveu-se assim mais seis vezes, criando sete filhos, cada qual com seu

dom.
Sete foram as palavras de h e também foram as notas musicais. As cores

foram sete e sete foram forças do mundo.”


O Sacerdote interrompeu a leitura. Vejam filhos de Ptah, que o homem é uma

criação espontânea. Tal qual a natureza. Ele é parte do todo, porque veio do Nosso
Senhor da Primeira Consicência. Cada homem com seu ímpeto, é amado pela

Primeira Consciência, e quando tudo se extinguir, é a ela que retornaremos.


Vejamos, e prosseguiu a leitura.

“Os irmãos não possuiam bom relacionamento, e, para tornarem-se mais

poderosos, por diversas vezes, tentaram roubar a Pedra de seu lugar na criação. h
zangou-se com o comportamento dos filhos, e para castigá-los, ordenou que a

Pedra fosse enterrada no sopé da montanha mais profunda.


E então, com a pedra oculta, veio a escuridão.

Os filhos procuraram muito por ela, indo fundo na terra.


O Sétimo Filho, caminhando pela terra, caiu num desses buracos, cavados

pelos irmãos. O buraco era muito pronfundo, e não conseguia sair dali. Tão
entranhado era, que atingia as fundações da terra. E ficou sozinho ali, por longas

eras. Estendeu seus braços para o topo, tocando quem ali passasse, mas todos

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tinham medo, daquela escuridão profunda. E Seth ficou lá, amargurado e só, e

jamais foi retirado, por ninguém. No início ficou triste e muito infeliz. Ressentido de
que ninguém fora resgatá-lo. Depois ficou com raiva. E ódio. E seu coração ficou

intoxicado com aqueles sentimentos. Então ele quis vingança, e com passar das
eras ele se tornou vicioso.”

Essa passagem sobre as primeiras eras da existência nos mostra como é


possível que o homem, através da sua autodeterminação, venha a escolher os

sentimentos que deseja nutrir, levando os acontecimentos de sua vida para um


destino, ainda que de difícil retorno, mas pode ser ser alterado, pois somos todos

seres conscientes e de vontade própria. O Sétimo escolheu ser dominado por seus
sentimentos mais viciosos, assim, o colapso dos bons sentimentos dentro de si, o

levaram à sua ruína. Ninguém quis se aproximar dele, pois ele queria ferir aqueles
que o faziam. Mas continuemos:

“Compadecido dos filhos em meio à escuridão, h, piscando seu olho de fogo,

criou um sol, que chamou de Havdalá, quente e avermelhado para iluminar os dias.
E três luas. Uma delas, muito lenta e fria, para clarear a noite, afastando o breu da

escuridão completa. E uma terceira, que cruzava tão rápido o céu que surgia uma
vez no horizonte, junto com o sol, indicando o início do dia e seu fim, depois junto

com a lua fria marcando, o início da noite. Porém, havia uma lua negra. Que cruzava
o céu uma vez ao mês, marcando o início de tudo, lembrando a todos da escuridão

profunda, essa lua, a lua negra, era capaz de encerrar até o dia. E levava uma
manhã , uma tarde e uma noite para cruzar o céu.”

Algum de vocês consegue nos dizer sobre o que se trata essa passagem?
Uma mulher levantou a mão, e falou, em Copta: Sobre o amor dos pais.

Também, concordou o Sacerdote. Essa passagem fala de um sentimento que


é comum aos pais também. É comum os pais o expressarem, porque seu amor é

genuíno. Essa passagem fala sobre a compaixão, e como ela, sendo um sentimento
tão honesto, pode modificar completamente a realidade. A sua e a de todos. Um

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gesto de bondade e compaixão, nos arranca da dureza, aquece o nosso interior, de

fora para dentro. A bondade pode tocar alguém e modificá-la de tal maneira, que ela
mesma passará a ser um agente de mudança, para si e para os outros. Ela vê que

isso é bom, e as circunstâncias de seu pensamento são transportadas para o plano


da realização.

O Sacerdote tomou um gole de vinho, enquanto Habet passava com um cesto


de pão entre os peregrinos que ouviam palavras no Parlatório do templo.

Ele prosseguiu a leitura “Uma vez que tornou a ver a face da terra, h não conseguiu

encontrar dois de seus filhos. O primeiro e o sétimo. Todos então foram procurá-los,
porém sem sucesso.

D’us, muito triste e compadecido da perda de seus entes queridos, deitou-se


e dormiu, eternamente.”

A dor da perda. Disse o Alto Sacerdote, fechando o livro, e marcando as


páginas com o dedo indicador. Ele fez uma pausa dramática.

Para alguns a dor da perda é insuperável. Ela é assim porque não


conseguimos compreender a morte, no auge de nossa ingnorância. Foi-nos dito que

o fim da existência é o retorno à Primeira Consciência, à unidade singular onde a


carne, o volume e o tempo não mais exitem da forma como conhecemos. Passamos

a fazer parte de tudo aquilo que não existe, ao menos nas circunstâncias e da forma
como estamos acostumados a ver. As aparências das condições dessa vida, elas se

manifestam através das Leis Universais estabelecidas por h. Lá no momento incial


da criação. Ele fez as cores, os sons, as dimensões matemáticas da flor da vida.

Essas são as suas regras, e os prisma pelo qual enxergamos a realidade que nos
cerca. Essa é a dádiva, que tenhamos a nossa independência de consciência.

Vejam, isso é lindo e bom. É o que um Pai e uma Mãe fazem a um filho, el++es tem
o poder de criar a vida, uma nova consciência. São Deuses em seu mundo, daquele

ser que vem ali, e que é totalmente independente, e ao mesmo tempo não o é. E
então, essa é a sua criação. E um dia ele morre. E O pai, a mãe, eles não

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compreendem naquele momento a perda. E vejam, os sentimentos dolorosos, eles

são criados pela ignorância. Então, os pais, eles choram a perda do filho, e não
entendem que aquilo que chamam de morte, é o retorno á Primeira Consciência, o

estado puro da criação. O retorno a essência elemental da onisciência, a elevação,


D’us

Assim, meus tão pacientes ouvintes, eis o Mistério da Vida, escrito nas
pétalas da flor da criação. Tu a tu. E bebeu mais do vinho, inclinando a taça na

direção de Sunamon. A colocou sobre o chão de mármore, no primieiro degrau do


altar. Sentou-se ao lado da Taça, puxando as vestes sobre os joelhos, e abrindo o

livro do Mistérios, retornou para a leitura.


“O primeiro filho havia cavado ao sopé da montanha. Onde, nas profundezas

do mundo, encontrou a Pedra maravilhosa que o Pai havia escondido. E

permaneceu quieto, nas entranhas da Terra, para que ninguém viesse a roubar o
seu tesouro.

Tomou as profundezas do mundo como sua morada e chamou a Gema de Chesteb,


e a quis como único dono daquela maravilha. Estava disposto a defendê-la de

qualquer um que tentasse tomá-la de si. “


O que nós vemos nessa passagem? Sobre o que ela fala? Indagou o

Sacerdote, para sua atenta audiência.


Ganancia? Questionou um fiel, esticando a cabeça para ver o rosto do Rei

Sacerdote da Cidade da Lua.


Coçando a barba grisalha, ele respondeu, Também, também.

A ganância o que seria, senão um desdobramento da propriedade? A


propriedade, a maior origem de vícios e desentendimentos. Ela que é a expressão

maior do errôneo entendimento de que a natureza deve servir ao homem. Errado,


Errado! A propriedade é una. É um legado natural da criação, para todos os homens

usufruírem. Esse pão, que comemos agora. Ele vem da aveia plantada pelas mãos
de um homem, doado ao Templo para que nosso moinho a tornasse farinha, e as

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mãos dessas mulheres, junto com a água do Rio Mãe, fizesse o pão, no calor do

fogo, que nos foi dado por h. A natureza não pode sofrer apropriação. O que vem do
homem sim, cada um é dono daquilo que consegue fazer e erigir com suas próprias

mãos. O suor do trabalho do homem deve ser recompensado. Mas, ao passo que o
trabalho do homem e da mullher contrói e é infinito, na razão da existência dos

homem e da mulher , a apropriação da natureza consome a criação. Os recurso


naturais são finitos e portanto, não podem estar estar disponíveis para todos de

maneira igual. Quando algém se apropria da natureza, um outro alguém não terá
acesso a ela. E essa desigualdade se intensifica, na medida que a propriedade é

maior.
E se um tem muito e muitos não tem nada, qual a justiça nisso? Se a

natureza não é fruto do trabalho do homem, então não há razão para receber
remuneração pela propriedade que possui. Ao homem só pertence o seu trabalho, e

a ele que deve ser devida a correspondente remuneração.


E é por isso, meus caros peregrinos, que acontecem as guerras . É sobre

isso que se trata essa passagem, um alerta sobre a origem da explrorção dos
homens, pelas maãos dos seus prórpios irmãos. Sobre a aleinação da propriedade,

e a usura pelo estado natural, sem a remuneração do trabalho do homem. Isso em


detrimento da exploração dos desapropriados. O que é veementemente censurado

por h na interpretação dos Mistérios da Escola da Lua. É isso que colocamos aqui
todo Havdalá, e que as outras escolas de mistérios distorcem. Eles querem

continuar perpetuando as suas posses. Justificando nos escritos sagrados as


estruturas de poder e controle das riquezas.

Pensem nisso, meus filhos. Essa foi a palavra de hoje.


Oremos para a chama que nos lembra que existe um fim para o dia escuro.

Mas que também há o dia escuro e que ele não pode ser o nosso fim.
Na fé sem reflexão, não há Luz, somente escuridão.

E todos repetiram em coro, tu a tu.

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O Parlatório foi esvaziando, e Aticcus, que permaneceu ouvindo a
Patronagem de Ben, foi ao seu encontro. O saudou e abraçou com muito

entusiasmo e sorrisos.
Meu amigo, é sempre tão bom ouví-lo! É muito bom retornar à esse Parlotório,

sempre muito bem Patronado. Grandes nomes passaram aqui nessa temporada, eu
soube. Joyce de Mataguda, Baruc de Shadai, Parmínedes de Niceia, Nossa

Sumidade Fineias de Penhascoforte e Mestre Agenor. Grandes nomes de nossos


Patrícios Jusnaturalistas. Confesso que soubesse de antemão que tais

eminênencias Patronariam aqui, teriam vindo passar a temporada. Acabei visitando


Parlatórios das Escolas de Mistérios em Porto da Gaivota e na Ilha de Bar, lugares

que consideram necessitar de uma atenção especial, nesse momento delicado de


pósguerra. A situação dos jusnaturalistas não boa por lá. Não há sequer um Patrício

Jusnaturalista Patronando diariamente. Só Racionalistas! Aposto que indicados por


Edir Gramateus de Shadai. A influencia dele cresceu muito na Convenção

Racionalista. Muito em breve será nomeado para tornar-se o Alto Sacerdote da


Escola de MIstérios da Ordem do Sol da Fortaleza de Copset, e eu digo que muito

rapidamente será a Sumindade Oriental, e riu, apertando o braço de Ben Adam, que
ocupava o cargo atualmente. E Ainda bem que, bem aqui, na frente, há uma Escola

famosa pela tradição Jusnaturalista. Mas vou indicar alguns nomes de Patronos
Patrícios para que, Vossa Sumindade Clerical, querendo, nomeie-os para essas

comarcas tão desprestigiadas de Luz.


É verdade, emendou Ben. Mas entre nós, chame-me de Ben. Esse

cerimonial, essa formalidade, sempre me deixa envergonhado e confuso. Mas


vamos caminhando. Quero tomar uma boa cerveja de aveia, me acompanha?

E Atticus lhe respondeu enrugando o rosto inteiro, Não, agradeço. Cerveja em


viajem me deixa com uma sensação de que pareço um grande balão, pronto para

galgar os céus.

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Ambos riram do gracejo. Ben continuou: Fiquei encarregado de Organizar a

Convenção Jusnaturalista daqui uma Quaresma. Podemos fazer uma moção para
indicar indicar Patronos dispostos, para lugares onde não ocupamos nenhuma

cadeira fixa. Eu sei das das difculdades que os Patronos vêm passando, afinal estão
tendo que reconstruir alguns templo e Parlatórios, muitos do zero. E não podemos

obrigar ninguém, nesses condições, a ficar em uma comunidade que não deseja.
Essa guerra foi devastadora, e os animos em determinadas regiões ainda não são

de paz. Ainda há rebeldes em Represagorda?

A bem da verdade, passei muito rapidamente por lá. Fui recebido pelo
comissário, naquelas condições achei que foi muito gentil da parte dele me receber

por duas noites numa zona safa de Represagorda. Veio a mando de Endro, que
estava combatendo imperialistas perto de Everskaya. Sempre há conflitos para

restauração do Imepério Khazan naquela região. Mas acredito que não tenhamos
mais problemas com esses homens por lá. Uma praga horrível se alastrou na

região. Matou o Rei Jassen. A região foi isolada e uma zona safa foi construída para
abrigar os povos de Evreskaya. Eu vi com meus proprios olhos, Ben, muita pobreza.

Me comprometi com o comissário. Estou indo à Tocasnegras e á Baia de Ouro para


aprovar uma moção de repatriação temporária. Muito triste. A peste chegou à

Represagorda, após a minha saída. Os boatos correram rápido, falam que Vossa
Sumidade Ocidental, Fineas de Penhascoforte, esteve em Evreskaya para auxiliar

no tratamento dos doentes. Inclusive, acabaram transportando Sara de Khazan, que


estava exilada em Evreskaya. Mas parece que não a tempo de livrá-la da

contaminação. Foi a única vítima de Represagorda. Eu soube disso por lá. Foi o
próprio Finéias que a encontrou morta.

Sim, eu soube. Disse Ben, na Varanda a servir-se uma caneca de cerveja de


aveia, que estava numa tina tapada. Os Patronos sentaram e tiraram as sandália.

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Ben Adam pediu a aprendiz que trouxesse água quente para os pés dos dois. E

prosseguiu, deixando um bigode branco de espuma acima da boca.


Fineas ao retornar para Penhascoforte esteve visitando o Rei Tantalus

Dágoras. E me juntei a eles, homens de quem tenho muito apreço e elevada estima.
Soube de tudo porque ambos estiveram no Sepultamento do Rei Jassem, em

Represagorda. Mas há novidades.


E completou, com um largo sorriso no rosto: O nosso querido Rei vai se

casar, finalmente!
E Atticus abriu um sorriso tão largo quanto. E os dois se aproximaram, riram e

e se abraçaram. Ben Adam passou o dedo na linha d’água e afastou algumas


lágrimas de alegria. E os dois trocaram olhares de sincera e real felicidade pelo Rei.

Ai, ai... Então é isso. Disse a si mesmo inebriado, o Patrono Átticus, lembrando de
quando fora o Preletor daquele homem na infância. Acho até, (e levantou-se

gemendo e estalando as velhas espaldas), que vou aceitar aquela cerveja.


E caminhou, rindo sozinho, na direção da tina.

O Enigma de Shadai

Desde Evreskaya, sentia-se responsável por tudo que tinha acontecendo. E


aquela responsabilidade o levara por tantos lugares, até a proa daquela fragata

bater no solo pedregoso das praias de Shadai.


Esteve em tantos lugares procurando por respostas. Não as obteve.

Mas uma pista dada por Jena Represagorda, o levara, depois de tantos anos,
a desembarcar em Shadai. E somente subornando um escriba, conseguiu a

confirmação de que lá estava o homem que procurava. Mas ficou com pena dele.
Tinha um aspecto muito senil, com as costas encurvadas, poucos dentes na boca. E

muitas, muitas cicatrizes espalhadas pelo corpo. Os olhos verdes vibrantes


dançavam soltos nas órbitas escuras. E ele ficava lambendo os lábios moles

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repetidamente. Olhou para Fineas, mas estava alheio ao mundo. Fez um voto de

silêncio, desde que chegou aqui. Disse o escriba.


Apesar do silêncio, e justamente por causa dele, ficou ali olhando para as

fitas homem, e refletindo sobre todos os acontecimentos.


Ele teve pena, muita pena daquele homem.

Há uma jovem mulher que vem por ele, umas duas ou três vezes. E fez
exatamente o que o Senhor está fazendo agora. Fica aqui, olhando e acariciando o

homem. Mas nada diz. E assim como veio, vai.


E aqui em Shadai, nós não falamos sobre os visitantes. E estendeu a mão na

direção de Fineas, esperando ser pago.


O Sumo Sacerdote, deu a moeda. E ficou balançando a cabeça, tentando

entender os fatos.
O homem colocou a sua mão entre as do Sacerdote. E ficou lá, parado, o

encarando com aquele olhar alienado, e profundamente solitário. Depois fixou os


olhos para a Lua entalhada entre os olhos do Sumo Sacerdote da Escola de

Mistérios da Ordem da Lua.


E Fineas, no meio do silêncio de Shadai, soube que era culpado de tudo. E

acariciou aquelas mãos tortas, de pele fina, e ossos salientes, espiando seus
pecados.

Os homens duros dos salões de Jade

Ben Adam entrou nos aposentos de Tantalus Dágoras ignorando os guardas.


As portas voaram para trás e estouraram na parede. Mas o Rei permaneceu quieto,

olhando para as chamas, do fundo de sua cadeira de madeira de ébano.


O Bardo o interpela, como quem quer satisfações: Os Salões de Jade?

Francamente!
O Rei permanece em silêncio, com um rosto severo, ignorando

completamento o amigo e Rei da Cidade Gêmea de Harpis.

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De onde veio tal idéia, de tamanha insanidade? Cobrava o interlocutor,

realmente muito exaltado.


Penhascoforte, Solar das Laranjeiras, Vaudeferro, até Passo da Balsa! Mas

Salões de Jade… Increditável... Você poderia tê-lo mandado para qualquer Escola
de Mistérios, Dágoras. Qualquer uma o acolheria, como acolheriam a você. Miriam

de Tocasnegras implorou para recebê-lo! Parminedes, em diversas ocasiões deixou


claro que gostaria de levá-lo para o centro de estudos das estrelas. Mestre Agenor,

o queria para que o auxiliasse nos assuntos do Decanato. Até Vaudebaixo


manifestou , mais de uma vez, o prazer que seria ter Ágoras na corte, e patroná-lo

nas Ciencias da Administração Geral e da Política. Fineas, ele o queria muito e


como o ama! Fineas já sabe desse desatino? Ah! Meu coração está quebrado.

Então, Dágoras emergiu do silêncio e falou, com um severo distanciamento.


Mandei com ele Trinta Preletores, escolhidos a dedo pelo Alto Sacerdote da

Fortaleza do Sol, Sumidade Oriental. Foram seis pajéns, duas serviçais, dois
Prestantes e dois meninos de sua idade foram com ele, Goim de Solar das

Laranjeiras e MIguel Tocaspretas, para que não se sentisse sozinho. E não será por
muito tempo. Dez, doze anos talvez. Ele não podia mais ficar aqui. Não sei mais se

Fineas e os Patronos da Lua seriam uma boa influência, afinal. No final do verão de
cada triênio, um barco sairá de lá, para que ele possa passar alguns aniversários

comigo. Então ele retornará.


O quê? Onde está o teu juízo? Nós não apenas somos teus amigos, como lhe

amamos, exatamente como amamos a um filho. Sentimos o mesmo amor fraternal


por Ágoras. Ele é o herdeiro do pacificador!

Veja Dágoras. Seu filho está do outro lado do continente, sozinho, depois de
tudo o que aconteceu. Ele deveria ficar ao lado do pai! De amigos, pessoas que o

amam!
Mas o Rei se fechou, e retornou a um silêncio inquebrável. Passando o

atiçador sobre as chamas, de lado para o outro.

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Um Amigo Preocupado
O barulho das pessoas na rua era motivo de alegria. Risos, gracejos, e

conversas tolas. Muitos estrangeiros lá fora nas vielas apinhadas. Mas assim que
Fineas entrou, logo após a mulher fechar a porta às suas costas, sentiu que aquele

lar não partilhava do mesmo sentimento.


A mulher tinha o semblante cansado, como alguém que não faz asseio há

dias. Estava com um lenço na mão, e uma fita preta amarrada no pescoço.
Fineas desceu o capuz imediatamente. Meus sentimentos. Ele disse.

Ela meneou com a cabeça, e apertou a boca, como quem vai chorar.
Está difícil, muito difícil. Fineas aproximou-se dela, e a puxou em um abraço

de consolo, esfregando as suas costas. Enquanto o choro vertia inconsolavelmente.


Seu velho amigo havia partido, também era duro difícil para ele.

Ainda que o pesar fosse grande, e ainda quisesse chorar a sua morte, deveria
afastar esse sentimento, pois sabia que agora, aquele bom e justo homem, estava

junto de h. E ele necessitaria, nessa hora crucial, fazer perguntas a essa mulher,
chamada Elaia. Perguntas que iriam remexer as feridas recém abertas em seu

coração.
Elaia, eu preciso saber de algumas coisas…

Ele disse, afastando a mulher e a conduzindo até uma cadeira. Ele mesmo
não sentou, ficou ajoelhado, segurando a mão, a confortando.

Era uma casa humilde, dentro dos muros da Fortaleza, como a maioria das
casas de lá. Precisando de pequenos reparos por fora. Mas não era pobre. Lá

dentro, havia coisas finas. Bacias de louça, Essência de cacharréis queimando nas
lamparinas. Os pés da mulher, vestiam sapatos com bordados finos de Saigão. E ela

era robusta, e forte, uma mulher tão alta quanto Fineas. De longos cabelos melados,
e apesar do estado em que se encontrava, ainda se via que era muito bonita.

Elaia, eu preciso. Ele insistiu.

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Não, Fineias. Não faça isso comigo… a mulher meneava a cabeça.

Eu sinto muito, mas preciso saber dessas coisas, Elaia. Eu acredito que
tenham conspirado contra ele… Escute, não há ninguém na Fortaleza do Sol em

quem eu possa confiar nesse momento. E ele sempre me viu como um amigo, um
confidente. Tu bem sabes. Mas isso aconteceu, eu estava longe. Não nos víamos há

cerca de seis anos quando ele.. Bem, ele me pediu que procurasse respostas para
dúvidas que tínhamos. Então, depois de muito tempo, e depois de andar por muitos

lugares, eu as encontrei, embora ainda não tenha uma confirmação. E andei muito,
Elaia. Eu as encontrei em Shadai. E quando eu finalmente estava retornando, ainda

em Mataguda, recebi a notícia. E larguei tudo, vim direto para cá. Escute, Elaia, eu
preciso saber se você deitou algum filho dele. Elaia.. Alguma vez, eu vou

compreender se me disser, eu prometo.


Então ela chorou lamentando, mas negou com a cabeça.

Ele estava muito nervoso, e suas mãos tremiam sobre as dela.


Elaia, alguma vez ele lhe contou sobre algum ilegítimo? Seja honesta.

Nesses anos todos, você soube de outra mulher?


Não, não, não… Ele não me falaria se eu não descobrisse sozinha. Não me

importaria também se tivesse, afinal era só isso entre nós. Fineas, eu fiquei aqui,
eternamente esperando por ele. Então ele vinha com frequência, e depois começou

a vir cada vez menos. E quando o seu filho voltou, ele não veio mais. Está ali, para
que veja. E apontou na direção de um aposento tapado com uma cortina. Desde

então eu tenho dormido pela sala. Nunca mais me deitei naquela cama. Só olho
para lá atrás dessa cortina. Mas ele nunca deixou de mandar nada. Embora isso me

doesse mais que tudo. Me fazia saber que ele ainda lembrava de mim, e no entanto,
nunca mais… nem o porquê…

Fineas ficou pensativo. E a mulher deitou a cabeça sobre o seu ombro,


enquanto ele afagava o cabelo macio dela.

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A Aposta do Alto Sacerdote

É bem sabido pelos aprendizes das Escolas de Mistérios, que não existem
profecias inexoráveis, pois aos vivos é dada a liberdade da autoderminação. Eles

farão as suas escolhas próprias, o que possui reflexos diretos no futuro.


No entanto aquele homem, que tão cedo deixara a ilha de Shadai, com o

objetivo de se tornar um cantor dos Mistérios, um pastor ou até um Sacerdote, tinha


uma forte intuição de que aquela profecia iria se cumprir. No silêncio do barco

Mercante da marinha de Saigão, que o transportaria até Coptset, conheceu uma


misteriosa mulher. Ela se dizia Sacerdotisa, mas veste era negra, como a das

mulheres proibidas. E ela o levou até o interior da sua cabine, diversas vezes.
Quer ver sua sorte? Perguntou, atrás de um biombo de seda que havia

improvisado no estetor da fragata, enquanto desvestia sua burca fina e transparente.


Edir Gramateus de Shadai não lhe dissera sim ou não. Ela ajoelhou-se aos pés do

leito onde ele estava, e pós o seu dedo na boca.


Os olhos amendoados, num verde vibrante como as água do mar aberto,

vidrados nas fitas do jovem.


Nunca antes estivera com uma mulher.

Por um momento pensou ter visto presas enormes entre seus dentes, como
uma cobra. E seu olho ficar branco como leite. Mas fora só uma ilusão. A mordida

sim fora real. Um pouco de sangue escorria entre seus lábios. Mas ela sorriu,
acariciando o dedo do jovem com a língua.

Ela então o soltou, e com ar de satisfação voltou ao biombo. Eu sei o seu


futuro, ela disse.

É uma profecia? Perguntou o jovem, gaguejando e enrolando o dedo furado


no camisão.

Uma profecia, você pergunta. Talvez, eu respondo. Eu aposto que sim, falou
com a voz melosa, cheia de um sotoque desconhecido, enquanto o olhava por trás

do tecido.

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Ainda na luz pouca da cabine, ele via a jovem de pele negra, brilhando

através das falhas da seda, com seu corpo cheio de sal.


Você quer sabê-lo?, ela perguntou, puxando a seda que os separava, que desceu

sinuosa no ar.
O jovem sentou na beira do jirau, admirando a mulher. Quero, e engoloiu a

saliva, esperando uma resposta.


A Sacerdotisa caminhava na sua direção. Você tem o sangue doce do

Sacerdócio. Eu vi na magia que somente com sangue se paga, que tu, terás muito
poder. Transformarás um jovem em Rei. Obterás vitória perantes muitos poderosos.

Sujarás tuas mãos com Sangue de um ente querido. E quando teus cabelos
estiverem brancos, e teus lábios azuis, um gume negro atravessará o teu pescoço,

de um lado a outro. Disse a mulher sentando no colo de Ilgdah, e fazendo, com a


aponta do dedo, o movimento da arma no seu pescoço. Então ela sorriu e ele lhe

abraçou forte, e lhe deu um beijo no cabelo.


Quando a verei novamente? Ele perguntou. Nunca, mais. Falou sorrindo, e o

empurrando sobre as cobertas. Isso tambem vi na profecia.


Essa lembrança, tão distante, o visitava muito frequentemente nos últimos

tempos. Parecia, afinal, que a profecia estava prestes a se realizar. Um jovem Rei.
Hermínedes de Saigon o sacudiu, estava na hora de se manifestar em favor do

jovem Príncipe.
Seus cabelos ainda estavam bem escuros. Não havia com o que se

preocupar, por enquanto.

O Festival da Roda e o Conselho Clerical

O Decano meneava a cabeça, inconformado com o que o Príncipe Tantalus


Ágoras do Sol reportava, enquanto as falas descontroladas e desorganizadas, de

todos os Anciões, ecoavam pelo salão. Ele balançava a mão, pulando em cima da

17
cadeira, tentando chamar a atenção dos presentes, para requerer o silêncio

necessário ao seu proncunciamento.


Estava incrédulo de que um ladrão, um rélis larápio, tenha entrado, sem que

niguém o visse, e tenha não apenas tentado roubar a coroa que estava na cabeça
do Rei, mas também entrado numa luta corporal que custou a vida de Tantalus

Dágoras. O que tornava a situação mais difícil de ser creditada, era o fato de que o
suposto ladino estaria vestido como um homem da guarda. Fazendo supor que

premeditara o assassinato do guarda pessoal do Rei, trocara de vestes com ele. E


adentrando os aposentos de Nosso Senhor da Fortaleza do Sol, um hábil esgrimista,

não tenha sido por ele reconhecido e colocado morto. Tampouco tenha despertado a
prontidão do Rei, posto que foi pego em desvantagem, momento em que foi

assassinado. Isso sem falar nos diversos guardas e toda a segurança de que
gozava o governante, no seio do seu Reino. E, para tornar a situação ainda mais

obtusa, o príncipe fora ferido, quando, ao ouvir os sons da luta, adentrou nos
aposentos reais, e teve o rosto atingido pelo atiçador em brasa.

O larápio estava enforcado e decaptado no pátio do público da Fortaleza. E o


guarda assassinado, jazia no sepulcro, velado com as honrarias militares das quais

era digno.
Mas Tantalus Ágoras insistiu nessa versão.

Edir Gramateus de Shadai a confirmou, pedindo pela palavra em defesa do


jovem. E o salão se encheu de murmúrios. Porém restou muito espanto na audiência

quando o Sacerdote demandou pelo elixir dos honestos. E todo o conselho, que
estava inclinado pela hipótese de Parricídio e Conspiração do Herdeiro, demonstrou

satisfação na escolha do Alto Sacerdote.


O que foi feito.

Ainda que suando levemente, o Príncipe contou a versão, detalhadamente, tal


qual expusera perante todo o conselho. O Mestre das Verdades, da Torre Laranja de

Magia da Última Vila ao Norte, em pessoa, aplicara o elixir. Acompanhou o

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desenrolar do procedimento, auscutando o coração do Príncipe e contanto as

batidas calmas em seu peito. Passou o Mel de Esteno em seus lábios, de forma que
qualquer palavra mentirosa que lhe saísse da boca, transformaria imediata e

temporariamente a rigidez de seus músculos, paralisando-o. Ao final do testemunho


ele levantou dizendo Juro. O Mestre das Verdades inclinou a cabeça, entortando a

boca, com uma expressão de aprovação. Não havia nenhum sinal da mentira.
O que foi seguido de uma agitação entre todos os Anciões, todos os líderes e

Sacerdotes. Reis e Rainhas presentes.


Mais uma vez o Decano pediu silêncio, e foi sentenciado que o rei Tantalus

Dágoras do Sol fora morto por um ladrão, ao ter sua coroa substraída dentro do
domínio Real; que seu filho sofrera injúria durante o evento; que os responsáveis já

haviam sido sentencidados e punidos; que era inocente diante às acusações que a
ele era imputadas. Que estava livre para Governar no lugar de seu pai.

E todos foram obrigados a votar pelo reconhecimento da sentença e pela


legitimação do governo do sucessor de Tantalus Dágoras do Sol, pois não havia

provas que incriminassem o Príncipe. Fora submetido ao probatório máximo e


inquestionável do Mestre das Verdades.

Esse que era o único filho de Dágoras, trazido ao mundo por Rejane, no dia
de Havdalá. Ela, que morreu queimada, sob circunstâncias incertas. Tinha fama de

louca.
Então Tantalus Ágoras foi Sagrado o novo Rei e governante da Cidade do Sol.

E mesmo não felizes ou crentes dos acontecimentos, todos os Senhores que ali
estavam, comemoraram a festa tradicional da banda oriental das cidades gêmeas, o

Festival da Roda.
O Conselho Clerical fora reunido, nessa oportunidade, em razão de que todos

os membros estariam presentes, incluindo o Decano, cuja idade já avançada o


impede de efetuar longas viagens atualmente. E isso seria necessário à investigação

19
das circunstâncias da morte do Rei, e à possível elevação de seu filho único ao

trono.
O evento se repetiria dentro de vinte anos, quando todos retornariam à Coptset, a

Fortaleza da Cidade do Sol. Então a roda voltaria a girar, nas mãos do Decano do
Conselho, e a cidade que receberia o fragmento da Gema pelos próximos vinte

anos, fosse conhecida.


Agora não era a hora de Coptset. Mas seria, muito em breve. Era a vez

Tantalus Ágoras do Sol diminuir, já tinha feito a sua jogada.


Ele sabia como obter poder. Aquele fragmento não seria nada, perto do que estava

arquitetando. Um visionário, chamava a si mesmo. Apresentando seu rosto


escarificado para o Conselho com uma certa dose de prazer.

O Parlatório da Propriedade
Os conselheiros haviam sentado em seus lugares. Com todas as cadeiras e mesas

dispostas em cículo. No meio da arena de homens e mulheres, dos sábios e de


todos titulados para estarem ali, repousava o púlpito levadiço.

Muito bem organizado estava o evento, que era parte tradicional do Festival da
Roda. O tema do Parlatório do ano era a Propriedade. Um tema muito polêmico para

os conselheiros, cada um no seu entendimento.


Naquele ano o Parlatório iria apontar a corrente majoritária de entendimento sobre a

propriedade. Até que fosse votada a necessidade de um novo parlatório para rever o
tema.

Depois que todos estavam acomodados, diante de seus documentos, papéis,


tinteiros e gizes, O Decano entrou no salão, e foi recebido de pé por todos, que em

sinal de reverência, batiam seus punhos nas mesas.


O Decano vestia a Toga Trabea, uma toga densa de lã de Caxemira lilás,

ornamentada com riscas horizontais de cor púrpura. Era usada pelos áugures e
sacerdotes Decanos, durante os atos rituais.

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Ele estava atrapalhado com todas aquelas vestes, pois o peso da

indumentária já não servia para alguém tão velho como ele. Novecentos anos.
Trezentos como Decanato. Mestre Egídio da Guilda dos Artífices. Sua estatura

correspondia à meio corpo de um homem e seus pés balaçavam quando tomava o


acento. Sua cabeça ficara abaixo da linha da mesa e por essa razão costumava

permanecer de pé, numa banqueta, durante as audiências. Ele ajeitou o monóculos


no rosto, abaixo das sobrancelhas felpudas e brancas. Coçou os fartos pelos das

orelhas, e em seguida fez uma mesura para a platéia, e se juntou ao Parlatório,


dizendo:

No ano de dez mil quinhentos e quarenta, da terceira era após a escuridão,


inciamos o quarto Parlatório desse século. Inicialmente peço licença ao presentes

para referir que na data de hoje comemoramos vinte anos da assinatura do Tratado
da Aliança Libertadora, tema do último Parlatório, incluindo a moção do Sumo

Sacerdote Fineas de Penhascoforte, para aditá-lo, três anos depois, na reunião


Extraordinária do Conselho Clerical de Anciões na Última Vila ou Menos ao Norte,

incluindo o texto da bula de ações para paz. Tal aditamento instituiu a necessidade,
de que seja decretado por esse Conselho, o estado de Guerra Geral, para a prática

legítima de qualquer ato guera. Foi engendrado, o inédito e louvável requisito


indispensável para legitimação de qualquer ato de guerra, barbárie e expropriação

arbitrária, de qualquer povo. A Aliança Libertadora foi bem sucedida, e pôs fim à
implacável guerra que devastou, tanto Ocidente, quanto Oriente. Estirpando a

ameça dos Khazares do continente inteiro, trazendo paz e possibilitando a retomada


do crescimento e da prosperidade de todos os povos. Tal instrumento de lei é um

marco para toda a civilização dos vivos, jamais na história tinham os povos se
reunido para defender e discutir o bem comum. Naquela oportunidade, se bem em

lembro, ficou estipulada uma agenda, para os proximos três séculos, que eu espero
poder cumprir juntamente com os Senhores, se a idade permitir. E deu uma

risadinha, retribuída pela audiência. Hoje, vinte anos depois, inauguramos a pauta,

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que irá tratar da propriedade. Mas, digo a todos aqui presentes, que não podemos

esquecer, diante do gozo das boas condições que se estabeleceram nesses vinte
anos, dessa ferida tão recente, e que ainda nos dói tanto, que deve ser relembrada.

Não podemos nos esquecer dessa dor, e do tanto que ela dói. Para, Senhores e
Senhoras, que não retornemos, nunca mais, àquele estado de miséria espiritual.

Não foi à toa que na ultima reunião do Conselho tenhamos deliberado por uma
moção de honra, àquele homem que nos liderou tão brilhantemente para a paz dos

povos, e que no entanto por uma brutalidade do destino, não pode recebê-la hoje,
pois já não está mais entre os vivos, tendo retornado para o lugar de onde tudo vem.

Meus mais sinceros pesares pelo passamento do rei Tantalus Dágoras do Sol, O
Justo, um homem de muito valor.

Respeitaveis Senhores e Senhoras, Eminências Clericais, Nossos Senhores


de todos os Povos, Conselheiros e Conselheiras que representam os seus

consectários, Autoridades Seculares das Guildas, Mestres das Torres de Magia e


Representantes das Ligas de Mercadores, Senhores e Senhoras das Tribos,

Autoridades Militares e Acadêmicas, o tema do Parlatório, que aqui tem início, é a


Propriedade. Um assunto de tão relevante importância para o desenvolvimento de

todas as esferas do conhecimento, que hoje, nos reunimos aqui, ouvindo as falas
dos Conhecedores mais renomados sobre o assunto. Para, ao final, deliberar um

entendimento comum sobre o que venha a ser propriedade, e como devemos


inclinar nosso comportamento, e de todos aqueles que nos são subordinados, para

conciliarmos nossas ações de forma harmoniosa, visando o bem e o interesse


comum, num alinhamento. O legado de nossa exitência pressupõe que tenhamos

nascido. Após vivido e então morrido. E ao viver, erigimos aquilo que será deixado
para os demais, aos que aqui permanecerão. Nosso entendimento, nossas

façanhas, nossas projojeções na construção de um mundo melhor. Tudo isso


encerra a esperança de o mundo continuará possível, para todos aqueles que virão

depois de nós. Nessa constante, a propriedade assume um papel tão indissociável

22
da construção do legado, que nem ao menos podemos cogitar deixar de de discutí-

la. É, no entendimento de alguns, razão e origem da Riqueza dos Povos, para


outros a semente da guerra e das desigualdades. Para alguns ainda é possível

admitir que ela possa coexistir hamoniosamente com a igualdade entre os vivos, se
lhe forem atribuídos limites. Há aqueles que acreditam que ela não deva existir em

nenhuma circunstância, de modo que a natureza não pode ser apropriada pelos
vivos, o que lhes cabe é tão somente a remuneração a ser atribuída ao esforço do

seu trabalho. Conselheiros e Conselheiras aqui presentes, duas teses, de dois


Eminentes sábios, sumidades em suas áreas do entendimento, foram escolhidas

para defender as duas correntes que serão debatidas nesse Parlatório. Cada
Sapiência terá uma queda de ampulheta para defender as suas correntes. Em

seguida, os Senhores terão um tempo para discutir internamente e deliberar. Mas


somente ouviremos o voto dos Conselheiros, precedido de uma justificativa de no

máximo duzentas palavras. Somente os Conselheiros terão palavra e voto. Caso


todos os membros de sua casa tenham votado com o conselheiro, o voto será com

unânimidade. Caso queiram acolher uma tese na sua maioria, porém com
divergência interna, apreciem o voto da Sapiência, apontando o membro, ou

membros, divergentes. Declaro iniciado o Parlatório, passo a palavra para o primeiro


Adido: nosso anfitrião, Vossa Autoridade Clerical o Alto Sacerdote da Fortaleza da

Sol Edir Gramateus de Shadai de Shadai.


O Sacerdote fez uma mesura, inclinando-se para o Decano, e novamente

para a audiência. Vestido com a toga Candida, subiu ao púlpito e iniciou a defesa de
sua tese, entitulada A Propriedade como Direito Intrinseco da Existência, Concedido

aos Vivos Pelo Próprio D’us.


A areia ainda não havia terminado de cair quando fez suas considerações

finais. E encerrou concluindo que a propriedade era um direito natural previsto no


livro dos Mistérios, que h fez os vivos para gozarem de sua livre consciência, e que

nisso não havia bem ou mal, e portanto a propriedade não é boa nem má, por ser

23
criação dos vivos. Ela é o relfexo daquele vivo que faz com ela o que quer, e que faz

dela um desdobramento das suas ações. Se o homem é ganacioso, logo fará mau
uso da propriedade. Se for bom, fará uso digno da propriedade. E por ela não

possuir existência senão pelas ações dos vivos, ela não pode ser classificada como
boa ou má. Mas sim os vivos que fazem com que ela exista, esses sim são bons ou

maus, dentro das aspcepções epistemológicas desses termos, na cultura de cada


povo. Encerrou com uma citação do próprio Decano, e logo foi ovacionado de Pé por

todo o conselho. Foram poucos os que puseram a venda preta sobre seus olhos e
permaneceram sentados. Ben Adam e Susana, entre eles.

As Eminências Clericais e os Nossos Senhores de todos os Povos,


bradavam, Bravo! Bravíssimo! Os Conselheiros e Conselheiras que representavam

seus povos entenderam que essa era a tese que explicava porque continuariam
mantendo seus bens e suas posses. Autoridades Seculares das Guildas, ficaram

divididas. As Guildas Científicas e Dos Artistas Unidos optaram por vendar os olhos.
Já as Guildas dos Artítífices, em sua maioria, aplaudiu, sem muito entender o teor

dos fundamentos, mas concordaram que o problema residia no homem, e não na


propriedade. Os Mestres das Torres e Representantes das Ligas de Mercadores,

Autoridades Militares e Acadêmicas enalteceram os aplausos com acenos e


arremessos de pétalas. Os Senhores e Senhoras das Tribos vendaram os olhos e

permaneceram em silêncio.
Edir Gramateus de Shadai, ao descer do púlpito, foi recebido pelo seu novo

Rei, com um aperto de mãos, e um beijo reverencial sobre o seu anel de Alto de
Sacerdote. E muitos levantaram-se para parabeniza-lo pela belíssima defesa.

Após os ânimos se acalmarem, foi chamado ao púlpito pelo Decano, Finéas,


Sumidade Sacerdotal das Escolas de Mistérios do Ocidente, autoridade Sacerdotal à

qual respondia a Escola de Mistérios da Cidade da Lua, em Harpis.


Finéas vestia igualmente a Toga Candida, e antes de iniciar sua defesa, prestou uma

homenagem, requerendo instantes de silêncio em memória do Rei Tantalus Dágoras

24
do Sol, O Justo. Olhando para todos os presentes, com o rosto severo que era sua

marca, Fineas começou sua defesa. Os cabelos brancos, os olhos escuros e


profundos. A barba farta e a voz grave, eram características àquele homem. O

religioso mais importante da banda ocidental.


Sua tese entitulada O Vivo como agente provocador da corrupção da propriedade,

uma releitura do Livro dos Mistérios sob o enfoque da Teoria do Mundo Natural.
Fineas iniciou uma pausa dramática. Eu venho com uma tarefa que nasceu morta. É

árdua. Pois vejo em seus rostos uma querela de insatisfação. As pessoas querem
ter. São egoístas.

E então um burburinho tomou conta do salão. Insulto, alguém gritou. Fineas


fez uma pausa, olhando para todos e continuou em voz alta. Mas a minha fala aqui,

ainda que eu saiba que as vendas decerão sobre os olhos dessa audiência, é uma
fala para a reflexão. E tenho certeza que, ainda que não os faça mudar de opinião

nesse momento, sairão com uma semente plantada no peito. E amanhã ou depois,
quando a guerra bater à porta dos Senhores, essa minha fala será recordada. E

muitos hão de querer voltar atrás, compreendendo plenamente o reflexo futuro dos
votos de seus conselheiros hoje. E nesse momento já estarão mudados, e meu

objetivo terá sido alcançado. Quero aqui, à partir de agora, tentar convertê-los ao
entendimento de que a propriedade é um fato social que causará o colapso da

civlização. Partindo do pressuposto de que os vivos passaram à existência, tal qual


tudo que possui volume, materia e age no tempo, e por isso estão em igualdade no

Mundo Natural com as demais coisas, é que o ato de apropriar-se fica vinculado à
sentimentos hedonistas, de autosatisfação. E apropriar-se de algo, é arrebatar-lhe a

vontade e a autonomia. Assim sendo, vêm os vivos e se apropriam do que querem.


E se os prórpios vivos estão em patamar de igualdade pela Teroria do Mundo

Natural com as demais coisas, logo o ser humano como obra do mundo natural,
também pode ser apropriado pela lógica dos vivos. Pensamento esse que legitima a

existência da própria escravidão, que foi abolida recentemente, numa votação

25
apertada, no Primeiro Parlatório desse Século. A teoria da Propriedade, defendida

pelo Alto Sacerdote que falou anteriormente, diz que o vivo pode apropriar-se
daquilo que lhe aprouver, porque a propriedade não possui valor senão aquele que

lhe é atribuído pelo próprio vivo. E eu concordo com meu convivas nesse sentido.
Tanto é verdade, que a prova maior disso é a própria escravidão. E porque quando

uma coisa que não tendo valor em si, somente aquele que lhe é atribuído pelo vivo,
ela deva ser considerada inofensiva, mesmo existindo a possibilidade de dar

margem a uma coisa tão execrável quanto o confinamento humano e de todos os


outros povos? Senhores, referendar a livre propriedade é deliberar sobre o fim da

autonomia dos povos, é legitimar a desigualdade entre os homens, a fome, a guerra,


a própria escravidão. Porque se a propriedade não é boa nem má, porque o homem

não é bom nem mau, não pe que se deva refendá-la porque dela não se extrai coisa
ruim em seu estado natural. Mas esse parlatório é porque deve-se proibí-la, em

razão de que na gênese de sua concepção ela nasce com a possibilidade de em


seu nome sejam feitas as maiores atrocidades que so vivos são capazes. Senhores

todos nós, que dividimos a existência nessas circunstâncias que nos colocam em
par de igualdade ideológica, temos o mesmo direito de gozar a existência. E se

quisermos todos, exercer nosso direito de propriedade, iremos extinguir nossos


recursos vitais, levando ao colapso da vida e da prórpia civilização. Devemos

substituir a propriedade pelo bem comum. Remunerando o vivo pelo seu trabalho,
que o fruto natural daquilo que dele vem. Não podemos mais consumir esse mundo,

devemos dar a ele o nosso labor. Trabalhar a terra e extender a existência, como
nos foi dito por inúmeros sábios, desde o tempo da escuridão. Agradeço a atenção

de todos os que pacientemente me ouviram.


Poucas palmas surgiram de seus interlocutores, que se ergueram para

manifestar apoio ao Sumo Sacerdote. Uma maré de rostos vendados se espalhou


pelo salão, quebrando o coração de Fineas, muito embora o resultado já fosse

sabido.

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No máximo vinte rostos, dentre as duas centenas que ali estavam, olharam nos

olhos do adido, concordando no seu íntimo com as palavras ditas no púlpito.


Tantalus Ágoras prestou atenção em todos aqueles rostos, pedindo ao

Preletor que os anotasse na folha à sua frente.

Os conspiradores contra o conspirador


Eu disse a ele, meu Rei. Afirmou Susana, como se já houvesse repetido isso

inúmeras vezes. Baixando o tom, após, olhar rapidamente para os lados, tomando
certeza de que ninguém os ouvia.

Se quiséssemos ter certeza de que o serviço seria bem feito, deveríamos tê-
lo feito nós mesmos. Possuímos meios muito eficazes. Uma vez que ele esteja

morto, que é o que todos querem, nem mesmo o testemunho de conspiração


levantado contra nós faria o conselho ir contra nossa palavra. Mas depois da de Edir

Gramateus de Shadai no Parlatório hoje… Ele receberá o apoio de todos. Afinal O


Sacerdote é quem legitima o governo da Fortaleza.

Veja bem, minha Senhora, disse Ben Adam, num tom beligerante, se persistirmos
nos aliando a esses homens, que, muito embora tenham boa noção de justiça, creio

que sua falta de diligência poderá nos colocar numa posição frágil. Aquele rapaz, se
foi capaz de fazer aquilo que acreditamos que fez, seja lá como o tenha feito, foi

muito bem arquitetado. E pela dimensão dos acontecimentos ele não está sozinho.
Não quero levantar falsas suspeitas contra nossos irmãos da Escolas oriental, mas

já o fazendo, acredito que não tenha sido possível que tudo tenha acontecido sem a
intervenção do Alto Clero da Fortaleza. A maneira como testemunhou no conselho…

Seus lábios diziam uma coisa, mas a Deusa me fazia crer que era uma mentira. Se
esse homem permanecer no poder, nós cairemos. Cairemos, minha consorte, pois

estamos perto demais para que nosso poder não o ameace, seja agora ou adiante.
Eu penso o mesmo. Assentiu a Rainha. Nisso estamos de acordo. Mas por essa

razão, não devemos, e não podemos, ficar inertes. Mantenhamos nossas

27
aparências. Prestemos reverência ao governo de Tantalus Ágoras na luz do sol,

porém nas sombras, trabalharemos para obter informações. A confirmação de sua


conspiração.

Ben, mesmo contrariado embarcou na maquinação de Susana. Seus olhos estavam


cerrados, e por mais que pensasse em dizer não, era um sim que saia pela sua

boca. E mesmo um sim sem convicção foi suficiente para a Sacerdotiza.


Sunamon foi chamada com muita urgência. Foi pedido que selecionasse cinco

aprendizes da comitiva. As mais fiéis, mais devotas.


Está decidido, elas ficarão em Coptset. Falou a Rainha para si mesma no

quarto, tentando convencer a si de que aquela era a melhor coisa a ser feita.

O Circo das Facas


O comportamento de Tantalus Ágoras era notóriamente anormal. Apesar das

ocorrências recentes em relação ao seu pai. Ele tivera tempo e disposição para
organizar um grande Festival da Roda: feiras de comércio nas ruas, tendas de

liturgias, dançarinas, mágicos e pantomineiros, e o espetáculo principal, uma


exibição do Circo da Facas, montado na arena aberta, para todos os nobres e

visitantes apreciarem.
Estava sentado numa mesa, em posição privilegiada. Muitas tochas iluminavam a

arena, naquela noite que antecedia ao Havdalá. Havia festa, risadas, bebidas e uma
grande fogueira, em meio à noite mais escura.

E de fato o novo Rei divertia-se. Bebia, conversava com seus convidados,


como nunca fizera. Depois da noite do Conselho Clerical, passou a usar uma

máscara no rosto, muito simples, feita em couro, para ocultar e proteger os


ferimentos.

Ele era um homem muito educado, apesar de sua inclinação para evitar os toques e
gracejos das pessoas.

28
Jamais apertava a mão de alguém, sem que a sua estivesse enluvada. E em

nenhuma ocasião oferecia companha a uma dama. Preferindo manter distância das
moças que lhe cercavam.

Seus interesses giravam em torno da História da Guerra, estratégias militares.


Negócios, como o comércio e ou alianças políticas.

Nunca fora visto galanteando qualquer cortesã.


E o mais estranho no comportamento do Jovem Governante, era o que se

dizia dele sobre ficar, durante longos períodos, encarando as chamas, nas centenas
de lareiras espalhadas pela Fortaleza.

Não foi à toa que mandou que fosse construída, uma fogueira do tamanho de
doze corpos, encimado por um sol finamente esculpido em madeira e alabastrino,

untado em óleo.
No início das festividades vespertinas, acendeu a chama ele mesmo. E a luz

de todo aquele fogo, iluminou os espaços, afugentando as escuras vagas que


precediam o Havdalá.

À estrela maior da manhã, pelo meu pai, Tantalus Dágoras do Sol. Que essa
fogueria queime, tanto quanto a chama da glória que rurgirá em meu reinado.

Pronunciou ao acender a pira.


Mas naquela noite ele estava especialmente alterado. Ria muito e alto.

Visivelmente alcolizado.
A filha do Nobre Mercador de Saigão se aproximara, ele que estava cercado

por seu Mentor, Edir Gramateus de Shadai, e por alguns Nobres, que vinham lhe
desejar êxito na governança. Ela sussurou algo, sorrindo com malícia, muito

atrevidamente, em seu ouvido. Algo que o deixou sério e sem reação. Tirou-lhe o
riso do rosto, e fez com que fosse ignorada de forma severa.

Os fogos, em meio à ecuridão do céu, anunciaram a chegada do espetáculo.


E todos se acomodaram para apreciar a atração circense, assim que o

cerimonial a anunciou.

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Um homem com uma longa capa e capuz negros, carregando uma tocha

numa mão e um cetro na outra, caminhou lentamente até o centro da arena. Muitos
cochichos e interjeições de ansiedade foram ouvidas na platéia atenta. Lá no meio

ele cravou o cetro.


E se um homem fosse capaz de evitar a morte? Disse o ator, numa pergunta

retórica. E se esse mesmo homem não pudesse ser atingido por qualquer faca ou
arma feita pelos vivos?

Naquele momento um homem e uma mulher saíram debaixo do manto que


protegia o interlocutor. Seus corpos estavam completamente pintados de branco. Na

noite de hoje todos os presentes testemunharão em vivo, as habilidades dos


maiores especialista em armas brancas de todo o oriente. Ele colocou a tocha em

um suporte próximo.
Três músicos acompanharam a apresentação, um no tambor, um na flauta e

outro no na rabeca.
Os artistas trouxeram para dentro do palco um aro de aço de meia

envergadura. Enquanto exibiam-se fazendo contorcionismos, o homem encapuzado,


retirando facas de suas mangas, as cravava ao redor do aro, de forma que as

lâminas ficassem viradas para o centro. Os contorcinistas, arremessaram-se através


do cículo, sem sofrer qualquer injúria. E foram muito aplaudidos. Antes de retiras as

facas do aro, O apresentador desenrolou uma longa fazenda de seda de seu punho,
e desencaixando as facas, as deslizava suavemente pelo tecido, que ao menor

toque rompia. Estavam todas, muito afiadas.


As palmas intensificaram. O cículo foi retirando e uma caldeira de ferro, com rodas,

foi levada a arena. Debaixo da escuridão do capuz, surgiu uma luz, então uma
pequena esfera de fogo atingiu o tonel. Um baque surdo, seguido de uma explosão.

A caldeira estava em chamas. Então, uma das contorcionistas puxaram lanças com
pontas finas debaixo do manto do ator. Cada qual mergulhou a sua dentro do tonel,

e elas rapidamente pegaram fogo. O apresentador abriu a boca e pegando uma

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lança por vez, as colocou goela adentro. Engoliu o equivalente ao tamanho de um

braço, extinguindo as chamas.


Foi ovacionado.

Tantalus levantou-se da cadeira, maravilhado com as chamas.


Após, o artista fez o mesmo com as facas que pusera dentro das mangas.

Muitos aplausos, principalmente do Rei.


E a apresentação se desenrolou, até que o seu ponto máximo. Uma roda de

madeira fora trazida para o centro da arena. Uma das atrizes estava presa ali, pelos
pés e pelos punhos, de ponta cabeça. Várias facas já haviam sido atiradas, e todas

evitaram o corpo da mulher.


O atirador pegou a tocha e se dirgiu à grande roda, colocando fogo nas suas bordas.

O anteparo foi impulsionado e começou a girar. O artista se afastou, e incediando as


facas, as arremessou, uma a uma, enquanto a mulher girava muito rapidamente.

A platéia levantou-se para aplaudir o atirador. E ele devoleu com uma reverência,
enquanto rumava à grande roda, parando a estrutura. Demonstrou que ela estava

ilesa. Foi supreendido quando Tantalus pulou a mesa e correu em direção à Arena,
tropego. Segurou a mão do Homem e a levantou, pedindo mais aplausos do público.

E foi conduzindo o artista na direção do tonel.


Depois de algum tempo, o Rei acenava para baixo, e pediu a atenção de todos.

E mergulhou uma faca no óleo, que tirara muito rápido da manga do artista,
arremessando-a com muita força na direção da mulher. Um grito estridente. A lâmina

lhe entrou com força na perna, mas ainda estava em chamas, e ela se contorceu,
tentando livrar-se das amarras. O rei ria tanto que se curvou, com a mão na barriga.

Seus companheiros a tiraram do anteparo, e a moveram na direção de um


Sacerdote que vinha ampará-la.

Milhares de olhos atônitos brilhavam sob a luz das chamas, acompanhados de


expressões de horror e incredulidade. A plateia, como se aquilo fosse um novo

espetáculo, vaiou.

31
O rei continuou rindo, ignorando total e complemente as reações da assistência.

O apresentador que estava ao lado de Nosso Senhor, fora esquecido. E ninguém


reparou que ele puxava da parte superior do cetro que cravara no chão, uma adaga

fina e de metal brilhante.


E pelas costas do Rei, o estocou.

Gritos por todos os lados, e uma convulsão entre o público. Pessoas imediatamente
começaram a se deslocar.

A lâmina atravessou a armadura, como se cortasse uma manteiga. Seus


dedos ainda tocaram a ponta afiada que saia do seu ombro esquerdo. Sem

entender, afinal, o que havia acontecido. Antes de cair, ainda virou-se para mirar o
algoz, porém ele desapareceu no ar, deixando as vestes vazias no chão da arena.

O Banquete da Roda

O Banquete da Roda estava iniciando, ainda que ausente o Rei; recuperava-se do


ferimento da noite passada.

Ele mesmo deixara instruções claras de que as festividades não fossem


canceladas.

Mandara reforçar a segurança, e fizera uma aparição breve, estimulando que

todos se divertissem e aproveitassem o banquete. Estava terrivelmente pálido, e


pronunciara apenas algumas palavras antes de voltar para seus aposentos.

Não fosse o socorro prestado pelo Sumo Sacerdote Fineas, estaria morto. O homem
certo, no lugar e na hora certos.

Foi interpelado mais tarde por Varr Bar , do porquê curara o homem, que se
mostrava claramente uma ameaça à paz. Fineas , pensara em responder que essa

era sua missão Divina, mas ficou em silêncio, refletindo. Talvez, Varr, tivesse razão.
Se aquele homem viesse a se tornar um Senhor da Guerra, talvez o seu ato tenha

provocado a morte de muitos no futuro.


Fineas pensou muito nas respostas que encontrou na sua viagem.

32
Susana se desviara dos que vinham ter com ela, deixando com muita descrição, o

salão e seus convivas. Pedira ao guarda pessoal do Rei que lhe facilitasse uma
visita, com vistas a utilizar suas habilidades de cura em benefício do Monarca.

O guarda foi duro. Porém, o Preletor se aproximou, conduzindo-a à antesala privada


do Rei.

Ele entrou, e, rapidamente, a porta se abriu.


Tantalus Ágoras estava na cama, com uma mordaça na boca, enquanto dois

sacerdotes aplicavam emplastados no ferimento.


Ela se aproximou. Pensava em algo, uma oportunidade de ficar sozinha com

ele. Pingar misericórdia dentro no ferimento.


Senhores, o que há nesse emplasto? Ela remexeu entre as vasilhas que

estavam sobre a mesa vestal. Um é tançadeira, o outro é bella dona, para acalmar
Nosso Senhor, disse Hermínedes. Mas já lhe ministramos outros elixeres, para

previnir que enfraqueça.


Não, disse ela, é necessário interromper o escurecimento. Fazer a selagem

com fogo, para evitar morbidez.


Tantalus Ágoras se voltou com desespero, ao ouvir a Sacerdotisa, grunhiu,

sacudiu a cabeça.
Me dê a espada dele. O Sacerdote acenou para o Preletor, que foi até a

parede e lhe trouxe a arma, conforme ordenado.


Sunana segurou com dificuldade a espada pesada, forcejando os músculos

do antebraço, para erguê-la. Colocou a ponta no fogo da lareira. E dando as costas


para os demais, escorregou o minusculo frasco de misericórdia da faixa em sua

cintura. Umideceu a ponta dos dedos e muito rapidamente o pôs de volta no lugar.
Ficou ali, observando a imagem da espada se distorcer no calor das chamas.

Quando a extremidade ficou enegrecida, presumiu que a espada estava quente o


suficiente.

33
Remexeu o ferimento com a mão, pedindo que todos o segurassem com

força, e colocou a espada sobre a injúria. Seus músculos estremeceram, o rapaz


gritou muito alto antes desmaiar.

Susana repousou o cabo da espada na sebe da lareira, e foi até o Rei. Onde
rezou. Com muita sinceridade, pedindo perdão à D'us pelo crime que cometera. Ela

levantou com os olhos cheios de lágrimas. E passou as mãos sobre as vistas,


acidentalmente.

Hermínedes ficou compadecido de Susana. E insistiu em acompanhá-la até o


salão.

Já no meio do caminho suas mãos ficaram trêmulas. E seu estômago


começou a embrulhar.

Suas pernas perderam a firmeza e tudo escureceu e seu corpo rodopiou na


direção das escadas.

A cerimônia do Havdalá

O banquete seria servido, mas não antes da cerimônia da chegada da luz, recitando
o Havdalá.

Todas as luzes foram apagadas. E somente três velas permanceram acesas. Então
todos os convidados elevaram suas taças às alturas, e recitaram em Bo:

“D'us é minha salvação; a escuridão não temerei, pois o Eterno é minha força e

canção, e se de lá eu vim, para lá retornarei. Portanto, beberemos à salvação da luz


dessas estrelas, e no dia da escuridão, lembrarei sempre que ela não é o fim, mas

um eterno recomeço. A escuridão é nossa fortaleza, para toda eternidade. Louvado


é o homem que confia em Ti. o Eterno. Responde-nos, ó Rei, neste dia em que

chamamos, se para os vivos há luz, alegria, júbilo e glória?”


Mas o Rei não estava ali para responder. Então o Sacerdote Fineas emendou:

“Sim, enquanto estiverem sob minha proteção e bebendo em memória de D”hus.”

E todos ergueram seus cálices e beberam juntos.

34
E quando as lamparinas foram acesas, o banquete foi posto nas mesas.

Hermínedes se aproximou de Ben Adam de Quran e falou algo em seu ouvidos.


Gesticulando com muita ênfase, em meio ao alvoroço. O que pôs o bardo a deixar o

salão com pressa, em direção às escadas na ala oeste.


No quarto do próprio Herminedes, deitaram Susana na cama. Ela tremia

muito. Ben, viu que seus lábios e o interior da boca estavam azulados. Um cheiro
caracterísco exalava da garganta. Estava gélida e incosnciente. Misericórdia.

Pensou o Bardo. Talvez não haja mais tempo. Acônito. Ele pediu à Herminedes. Dê-
me acônito.

O Sacerdote arregalou os olhos. E moveu-se, indecivo e desajeitado, de um


lado para outro, lembrando-se onde colocara sua caixa de antídotos.

Acônito, acônito, acônito, reptia. Aqui está. Aconitum.


Ben verteu o frasco na boca de Susana. E alcançando-o vazio para o bardo

de Saigon, perguntou, com uma sombra no rosto. O que aconteceu?


A Rainha, ela caiu, assim, de repente, no corrredor. Estive com ela o tempo

todo, ajudou a tratar Vossa Majestade da Fortaleza do Sol. E depois saímos dos
aposentos reais e ela passou mal…

Então os dois fizeram silêncio. Ben Adam fechou os olhos, compreendendo a


situação.

Hermínedes recuou. Indo em direção à porta.


Não. Disse Ben.

Mas o Rei… gaguejou o Sacerdote.


Dê-nos uma vantagem, ele pediu.

O Sacerdote acentiu com a cabeça. Esperarei que ela recobre os sentidos. E

então vocês deverão partir. Vou me reportar à Edir Gramateus de Shadai, tão logo
saiam. Isso se não descobrirem o Rei antes, nesse caso não poderei fazer nada.

Não sou um conspirador.


Obrigada, disse o bardo.

35
Ele deitou Susana na cama, e tomou um jarro com água que estava na

cabeceira. Orou alguns instantes com as mãos imersas.


A água começou a fluir para fora do jarro, envolvendo lentamente Susana. Ele

regeu seus movimentos como um maestro, conduzindo ambos pela janela.


Hermínedes acompanhou os dois, sumindo na noite. Com muito pesar.

Ele pegou o frasco vazio e escondeu dentro do seu baú, bem longe dos seus
antídotos.

Então se recompôs e foi na direção da porta, avançando para os aposentos


do Rei. Tudo estava calmo, só foi conferir. Tinha ele mesmo ministrado o acônito

para Tantalus Ágoras, minutos antes da Sacerdotisa entrar. Afinal pensara que ela
não seria tão pouco prudente, colocando as mãos nos olhos. Sentia o cheiro de

misericórida à milhas de distância: já entra queimando, sem nem mesmo ter entrado
ainda.

Nosso Senhor da Fortaleza do Sol

Os Senhores já conheciam os Jardins de Pedra da Fortaleza do Sol? Tantalus


Ágoras chega interpelando os seus convidados, que encontravam-se sentados à

sombra de um pergolado de pedra, coberto com um linho branco. O vento batia


gentilmente nas sobras do tecido, fazendo-o vagar de um lado para outro. A mesa de

desjejum, de três corpos de comprimento, era farta. Uma variedade imensa de frutas
Ocidentais e Orientais. Leite de amêndoas. Carne de carneiro. Tâmargueiras os

cincundavam. Havia dois criados servindo os seis convidados. E mais os guardas


pessoais do Rei. dois Prestantes abanavam os convivas, para afastar insetos,

comuns na região. Os jardins ficavam no terraço do castelo.


O Jovem Rei, com uma simpatia incomum, começou um diálogo com os

convidados. Senhores, estamos a uma altura de cerca de sessenta corpos da linha


do rio. À frente, antigamente, ficava a ponte da aliança, que ligava a cidade gêmeas

de Harpis à Coptset, através da Fortaleza do Sol.

36
Ele levantou-se um pouco da cadeira para apontar na direção do Templo da

Lua. A ponte já não existe desde tempos imemoriais, exceto pelos seus restos, que
jazem no leito do rio. Então essa Área, foi todas readaptada pelo Rei Tantalus

Mágoras do Sol, meu conssanguíneo. No sexto reinado da Dinastia, foram trazidas


pedras das cadeias montanhosas que os Senhores veem ali, do corredor dos

Chacais. E também do deserto ao sul, através do rio, foram trazidos esses


megalitos; as mesmas fundações que ergueram os decadentes aquedutos de

Harpis, para compor os elevados desse Jardim. Neles foram esculpidos doze lagos,
apresentando o maior oito corpos de largura. Cuja água é trazida até aqui através de

um complexo sistema de engenharia de êmbolos, e com o emprego de bombas


movidas a tração animal. Dois lagos com exemplares de raros de Kolbis não

bípedes, pássaros de diversas regiões e uma extensa composição de flora, disposta


de forma muito interessante e com grande valor de beleza. Depois de todos essas

gerações, minha família tem aperfeiçoando essa construção. E hoje os senhores


aqui estão, desfrutando essa vista privilegiada. Tantalus pega uma maçã e dá uma

mordida, se coloca á frente da mesa , de costas para tudo aquilo..


Assim como minha família aperfeiçoou esse paraíso, eu estou aqui, como o

legado da força militar e estrategia política fornecido pelo refinamento do sangue da


minha linhagem, de gerações e gerações. Fui treinado por Mestres de excelência

nas artes da guerra e da política.


Eu os trouxe aqui hoje para que possamos falar, justamente, sobre as

relações entre nosso territórios. Como os senhores bem sabem, protrocinei a


promoulgação do entendimento majoritário da Lei de Propriedades. E vou

possibilitar em breve que seja revogada a lei da paz, instituída pelo Tratado da
Última Vila Mais ou Menos ao Norte para Ações de Paz, que imepede atos de guerra

dos povos, quando o conselho Clerical não deliberar pelo estado Geral de Guerra.
Vejam que somos dominados pelas entidades religiosas, pelos Conselhos,

Guildas, Magirus, entre outros. Nós Senhores Governantes, temos nosso poder

37
limitado a todo instante pela atuação das forças clericais. Eles nos dizem no que

acreditar. Como ordenar que nosso povo se comporte, como, quando e quanto
custarão as taxas, serviços e impostos. A remuneração pelo trabalho do vivo.

Ficamos completamente paralisados por todas as regulamentações que essas


entidades nos impõe. Nós possuímos trigo, possuímos água, ouro, minérios,

riquezas científicas e nosso povo não pode usufruir de tudo isso, não podemos
querer mais. Não podemos querer ser medíocres. Porque as escolas de mistérios

acreditam a guerra não é uma manifestação legítima? É a manifestação de poder da


natureza! Vocês veêm aquela piscina ali na frente, se for jogada uma corsa ali

dentro… Ali há um crocodilo de três metros, ele vai comê-la. Essa é a lei da
natureza. Não podemos deixar que nos imponham a ideologia dos fracos, do

prostrados, dos perdedores. Nós não somos iguais a eles. Somos melhores. Por
isso estamos aqui, vendo o mundo de cima. Senhores, eu proponho que deixem-me

guiá-los para uma nova era. Onde seremos reis de verdade, governaremos sobre o
futuro. Assinem a moção de revogação.

Tantalus deu a volta por trás da mesa.


O Senhor da Ilha de Bar, Varr Bar, bateu na mesa.

Filho, isso é um absurdo. Se eu faço guerra perco homens, meus negócios não
prosperam. Preciso de baleeiros, não soldados. A guerra é como cavar uma grande

catacumba, e depois querer viver nela, filho. Não nos traz nada de bom. Vejam que
o que ele….Então Tantalus Ágoras o pegou por trás com um garrote, enquanto o

homem se debatia na cadeira. Ele o subjugou com facilidade, puxando suas mãos
em direções contrárias. O Senhor ainda tentou agarrá-lo, colocou o dedo no

ferimento do Rei e apertou com força. Mas Ágoras não soltou. Seu cabelo de
desprendeu da mascara e ficou esvoaçando, enquanto esganava o homem, entre as

fazendas de linho, que delizam ao sabor do vento, alheias àquela brutalidade.


Ninguém interferiu naquela cena, que demourou um tempo considerável para

acabar. Tantalus tinha a camisa manchada por uma grande quantidade de sangue.

38
Mas sentou na cadeira, e ficou admirando a vista com seus convidados. Então ele

irrompeu o momento de contemplação, e colocando os cotovelos em cima da mesa


fez um sinal para o Prestante. Foi colocada uma cópia da moção, tinteiro e pena na

frente de cada um dos cinco senhores. Edmundo de Ferro, Senhor do Vaudeferro e


de Passo da Balsa. Endro Represagorda, Senhor de Terraalta, Represagorda e de

Porto das Gaivotas. Xing Woo, Senhor da Baía de Ouro e de Tocaspretas. Doutor
João do Vãodebaixo, Prefeito Geral da Ùltima Vila Mais ou Menos ao Norte. E por

fim, Alan Costarreal, Senhor das Terras Ocidentais desde Solar das Laranjeiras,
Passando por Mataguda, até Penhascoforte, onde fica a Escolas de Mistérios da

Lua arregimentada por Fineas, Sumo Sacerdote Ocidental.


O Rei deu uma fungada por debaixo da máscara, um cacoete seu, e disse

aos demais Vejo que concordam comigo. Serviu-se com carneiro frio. Não sei dos
Senhores, mas eu estou faminto.

As sete atalaias

O velho coçava a cabeça sem saber onde largara a ferramenta. No meio


daquela oficina, naquele dia, não poderia encontrá-la com facilidade. Todas as

encomendas, todos os projetos em que vinha trabalhando estavam ali. Alguns


espalhados, outros por começar. Outros mais adiantados. E outros longe do fim.

O seu mira-luas. O maquinador de tarefas. O ousado morcego-barco. Estava


tudo ali, mas não havia nada, ao mesmo tempo. Isso porque parecia uma grande e

única bagunça, na qual somente o velho Mestre Agenor conseguia se guiar. Uma
bagunça organizada, dizia ele.

Mas ele estava nervoso, com a tarefa que recebera. Bons amigos, pensava.
Mas quais bons amigos planejariam metê-lo numa confusão tamanha?

Sete atalaias, murmava ele sem parar. Sete atalaias. Uma para as
profundezas do mundo. Outra para as ilhas distantes. Uma atalaia para o deserto

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instransponível e uma atalaia para os ares. Uma atalaia para o fogo e uma última

atalaia, para a vigilia final, quando todas as outras falharem no seu dever.
Um louco pediria isso. Seus inimigos. Sua velha esposa ranzinza como a

minha. Seus amigos não. Era um trabalho de uma vida, e a sua, vinha sentindo,
estava mais para perto do fim. Setecentos anos bem vividos, afinal. Quatrocentos e

vinte filho (na útlima contagem), nove esposas e milhares, e centenas de incontáveis
invenções maravilhosas. Mas era sempre a mesma conversa, a guerra, o rei mau, a

pobre rainha, e rei honesto. E ele já estava comprometido com uma idéia
mirabolante, sem nem mesmo ter dito sim. Nesse mundo de hoje abusa-se dos

velhos, pensava.
Estava magro, muito magro. As pernas tortas, mais tortas, e a cada ano mais baixo.

Ou seria sua bancada trabalhando a madeira?


Então um estalo. E batidas ritimadas vieram aos seus ouvidos. Os pelos saltavam

das orelhas, fartos e grisalhos. O barulho! Certamente vinha do acelerador de


pensamentos. Estava baqueando novamente. Encostou a cabeça ao lado do

aparelho, mas definitivamente o som não vinha dali. Não, não, pensou. Seria o
ferreiro autômato? Onde ele estaria… Ah, só pode ser o coça-pansas! E as batidas

continuavam. Girou a manivela do aparelho e deu uma bela coçada nas costas. Era
muito relaxante! Mas não era ali o barulho, definitivamente.

Foi quando a Senhora Arlinda gritou lá do fundo da oficina: Atenda a porta, Agenor!
Eram visitas, afinal. Sim, meus velhos amigos.

Ele saltou de um banco e foi balançando, de um lado para outro, para atender a

porta. E o fez ele mesmo, a despeito das cinquenta invenções que havia construído,
somente para atender a porta. Fê-lo pessoalmente, afinal aos amigos, recebemos

nós mesmos, com o prazer do reencontro.


Ele abriu a porta e abraçou com muita alegria o seu mentor, o velho Decano, Mestre

Egídio.

40
Medo em casa

Estavam à mesa, em silêncio, há um bom tempo.


Ben Adam comia um figo fresco, e sorria e procurava tocar Susana a todo

instante.
A Sacerdotisa tinha os olhos molhados, e observava, ali da varanda, a

pequena Betrisut engatinhando no jardim.


Minha Rainha, precisa comer.

Seus olhos se moveram para a mesa e depois retornaram para a cena na


grama. E lágrimas começaram a rolar pelo rosto de Susana, sem que ela movesse

um músculo. O bardo a tocou no braço, encerrando um carinho e preocupação. Ela


ficou indiferente, e continuou ali parada, sem comer nada.

Aquilo o deixava desesperado. Aquela letargia, uma tenaz morbidez que não
a abandonava desde o incidente na Fortaleza do Sol. Sua saúde estava ótima, mas

seu espírito fora quebrado.


O fato de não saber se Hermínedes os havia dedurado estava consumindo a

força da esposa. Não havia paz naquela mente, ficava sob a sensação constante de
que, a qualquer momento, Hapis seria invadida. Seriam todos mortos ou

aprisionados.
Mas os soldados não vinham. Ninguém chegava dizendo ordens do Rei da Cidade

Gêmea Oriental. Sequer um perdigueiro. Tampouco um mensageiro. Só um silêncio.


Hermínedes teria os entregado à Edir Gramateus de Shadai? Teria realmente os

entregado ao Rei? Ou teria voltado para casa, guardando como um trunfo, a


informação de que Rainha conspirou, junto com o Sacerdote, para envenenar

Tantalus Ágoras enquanto este convalecia?


Ou o Rei da Fortaleza do Sol já era sabedouro de tal fato, e resolvera ignorar

momentaneamente seus confrontantes reais?


Toda essa dúvida era como um veneno.

41
Veja, Susana. Vamos seguir nosso caminho. Deixe que tudo seja. A despeito

do que quer que tenha ocorrido, não podemos fulminar nossas almas com tamanho
sofrimento. Estamos esgotados. Eja, você esta bem, viva. Nossa filha brinca sobre a

grama e ignora toda essa realidade. Vê como é feliz descobrindo a natureza.

Ouvindo aquelas palavras, inspirou tão profundamente que seu peito tremeu.
Ela segurou o fetiche do colar entre as mãos, e soltou o ar todo de uma vez pelas

narinas e pela boca, Ai, ai…


Ergueu a cabeça minimamente, e falou, muito baixo. Ela irá morrer, todos

iremos morrer.
Os músculos de Ben congelaram, e ele ficou sem reação. Em seguida

segurou Susana pelos braços, de frente para si, e a sacudiu: O que foi que
disseste? Perdeste o juízo? Resolva isso em seu íntimo, siga a vida!

Então ela chorou copiosamente. Eu tentei matar um homem em seu leito de


morte. E pedi perdão para D’us, ali, a seus pés. E o que foi que ele fez? Me me pôs

à beira da morte, e depois me deu uma chance. Uma oportunidade para que eu me
redima da heresia que cometi.

Ben Adam, parou de sacudí-la.E ficou perplexo e ao mesmo tempo revoltado


com o que ouviu.

Isso não faz sentido. Vamos todos para o mesmo lugar, bons e maus. Você o
envenenou, e o resto foi um acidente. Um acidente, Susana! Não há culpados.

Me prometa que vai melhorar. Eu lhe prometo que vou resolver tudo isso. Farei
algumas viagens, procurarei aliados contra essa insanidade que está crescendo.

Ela voltou ao encosto, como se não houvesse escutado seu marido.


Prostrada, na mesma posição em que estava. As lágrimas corriam pelas suas

bochechas. Ela olhava para o jardim, na direção daquela cena bucólica, mas seus
olhos estavam olhando para dentro.

Um presente para o rei

42
Estava calor. O Rei nú sobre a bancada de mármore, aguardava que o Alto

Sacedote tratasse o seu ferimento. Sentiu uma pressão fria, e depois um fogo
consumir a ferida, mas não era quente. Suportar aquela dor o fazia sentir poderoso.

Sentir os nervos retesando e depois, com o coração batendo forte, subia uma agonia
em forma de frêmito, que ele abafava. E depois de novo. E de novo. Abrindo e

fechando a boca, enquanto revirava os olhos. Abrindo e fechando o punho. Ele se


sentia capaz de aguentar qualquer coisa.

O que há com a Rainha de Harpis que não envelhece? Essa dúvida era tanto
pertinente, quanto interessante.

Bom, disse, o Alto Sacerdote, enquanto limpava as bordas do ferimento.


Podem ser muitas coisas. E talvez eu desconheça a razão. E riu de soslaio.

É um truque? Continuou Tantalus.

Ela não é uma ilusionista de taverna, Nosso Senhor! É uma Sacerdotiza, tal
como eu. Os Sacerdotes são canalizadores do poder de D'us, através da fé e das

forças da natureza. Somente a Primeira Consciência, ou D'us, como preferir, pode


prover a cura, o controle das circunstâncias e das forças naturais.

Você pode fazê-lo? Perguntou, sentindo um espasmo revigorante. Talvez,


disse o Sacerdote sorrindo.

Então faça! Disse Tantalus, levantando numa explosão de ódio,


arremessando a vasilha do Sacerdote com um soco.

O sorriso de Edir secou de imediato, e pulou para trás, evitando ser atingido
pelo acesso de raiva do Rei.

Se és um Sacerdote então faça. Nós somente somos algo, quando fazemos o


que de nós é esperado! Se não o fazemos, somos nada. Sacerdote de nada,

curador de nada. Ou Vossa Santidade é um ilusionista, afinal?


Disse e ficou em silêncio em seguida. Depois bateu na bancada, e soltou um

bramido, meio preso, contínuo e grave. Ficando debruçado sobre a mesa, com o

43
rosto entre os braços, coberto pelos finos e leves cabelos loiros. Em seguida soltou

outro urro idêntico, e ficou esmurrando a pedra.


O Sacerdote conhecia os acessos de raiva de Vossa Majestade, que os tinha desde

muito pequeno. Era comum que o pai o trancasse por longos períodos em um
quarto, cujos objetos ele destruía. Ficava lá por dias. Batia nas coisas, esmurrava

paredes, chutava mesas e cadeiras, mordia e feria a si mesmo. Os ataques


tornaram-se mais intensos depois da morte da mãe.

Agora vinham piorando. E sua pele clara ficava muito vermelha, rapidamente.
E seus olhos verdes vibrantes pareciam afundar dentro das órbitas escurecidas.

Uma sombra de preocupação vinha o atormentando. Uma suspeita


passageira, de que talvez, mas somente talvez, delírios do auge da loucura de sua

mãe, pudessem ter um fundo de verdade.

Amigos destemidos sussurram.


Ben Adam de Quran sai perigrinando. Patronando pelo caminho, porém seu

verdadeiro intuito é arranjar aliados para sua causa.


Vai à Vila Mais ou Menos ao Norte, onde fica a Torre Laranja. O Mago da Torre lhe

revela que ele não tem muito tempo, pois o Rei Tantalus está se aliando às Torres
Verde, Cinza e Vermelha, para lançar uma grande guerra. Diz que vem organizando

seus regimentos e que a Torre Laranja optou no conselho, permanecer neutra.Fala


que talvez os chacais os apoiem.

O conselho dos Anciões chacais.


Consegue uma audiência com os Anciões chacais e o apoio do povo.

Audiência na Casa dos Espíritos

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Ben chega em Tocasnegras procurando pela Patronesa MIriam dos Salões de

Jade. Miriam lhe revela durante uma conversa que os salões de jade são lugares
horriveis, onde a escuridão do homem é maior que aquela que precede o Havdalá.

Que lá, crianças inocentes tem suas almas derretidas, e é vertido para dentro do seu
corpo, a racha líquida, da guerra, da frieza, da capacidade de suportar qualquer

injúria. Uma poesia triste sobre crianças que são demanchadas, endurecidas, para
tornarem-se invergastáveis homens, para virar jade. Quando abandonam a

montanha se tornaram homens alheios à indulgência, incapazes demonstrar


misericórdia. São homens terríveis e destruídos. Ela refere que não é possivel a

existência de mulheres lá. Que muito embora tenha nascido naquele local, as
mulheres não vão para o coração da montanha, para onde são levados os meninos.

Mas que para as mulheres é reservado um destino tão ou mais perverso, verem
seus filhos serem arrastados para a ruína. É como uma morte que se repete para

sempre. Ela chora.


Por fim consegue uma audiência na Casa dos Espíritos para Ben, que com o

Voto de Miriam, decide apoiar uma rebelião contra Ágoras. Ela tem consciência das
conseuências trágicas que esse ato implicará, pois o Senhor de Tocasnegras é

aliado de Ágoras.
O que mais a preocupa é o fato de que a Torre Negra ainda não escolheu seu

lado.

Os Espiões em seus lugares.


Estava suado, e tirou a máscara para secar o rosto. O sol forte batia na arena

e seu oponentes estavam no chão, recuperando o fôlego. General Moises, caminhou


até a sebe, alcançando um jarro d’água para Tantalus Ágoras. Reportou notícias de

seus espiões, discretamente.


Nosso Senhor, o ‘abutre do deserto’ em Inkaar, informa que seguiu o

Sacerdote da Cidade da Lua por várias comunidades no Ocidente e Oriente. Ele

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vem Patronando nas praças e lugares públicos para os ouvinte, Meu Senhor. Inscita

os vileirinhos contra a Lei de Propriedades, aprovada no ultimo Parlatório.


O “pássaro no norte” também informa que o Sacerdote foi visto na Torre

Laranja de Alta Magia, Nosso Senhor. O Mestre das Verdades falou com ele, Nosso
Senhor. Mas muito embora não possa mentir, quando perguntado pelo informante,

não houve uma resposta. O mago relatou que quando é pago pelo interlocutor, não
pode revelar quaisquer conversas ou informações que tenha adquirido, Vossa

Majestade. Assim, “o pássaro no norte”, não conseguiu maiores informações.


Muito bem, pague-lhes pelo seu trabalho. Quero o Decano bem vigiado. O

povos das tribos também. Um no pâtano, um no deserto do sul. Quero-os em


Vaudeferro, Terra Alta, nos Portos da Morte e, principalmente, na Ilha de Bar e em

Porto da Gaivota . Mantenha-me informado.


Tantalus foi para o centro da arena, e sorrindo estendeu a mão aos dois

generais que descansavam esticados no chão. Os levantou com um puxão. Depois


colocou uma maça e uma martelo na mão de cada. Ele apertou o ombro, na altura

da cicatriz e remexeu os omoplatas, para frente e para trás. Bateu no peito com
força, soltando urros e partiu para cima dos oponentes com as mãos nuas.

Voltando para casa

Fineas digeria, no caminho de volta para casa, aquela derrota amarga. A segunda
perante o conselho. Primeiro foi a deliberação pela corrente majoritária em matéria

de propriedade, que deu Origem à Lei de Propriedades. Sim, sua primeira grande
derrota. Agora a revogação do Tratado da Última Cidade Mais ou Menos ao Norte

para Ações de Paz. Uma moção com a assinatura de seis Senhores dos Povos, dois
Reis, da Liga de Mercadores de Saigão, Três Torres de Alta Magia (Malditos Magos!,

pensou), cujo único fundamento era uma crescente ameaça aos povos de que
diversos reinos estavam sendo atacados, e precisavam de autorização do conselhos

para contratacar. Mas a única coisa de concreta que tinham, eram as pilhagens em

46
Evreskaya. Por essa razão, colocaram o velho Edron para falar, em meio ao pânico

semeado entre os presentes.


Logo Edron, cuja esposa teve a família de origem destroçada pelas mãos da

guerra.
Então Edron falou confiante, que vivia em constante guerra, sofrendo com

ataques habituais de rebeldes vindos de Evreskaya. Que a peste os afugentava do


seu território. E que lá ainda era forte o ressentimento pelo fim do Império Khazan,

terra de origem da Rainha de khazan, antiga princesa de Evreskaya. Sempre fora.


Mas Evreskaya caíra em desgraça, para nossa sorte (Sim, Edron falou assim,

pensou Fineas), de alguma forma. E disse que Khazan lhe batia às portas sempre
que chegavam caravanas de mendigos, ladrões, quadrilhas e quadrilhas de Egirões.

E que há muito ele pedia ajuda para a antiga Aliança, e socorro, porém ninguém lhes
mandava soldados ou suporte de qualquer natureza. Mas que Ágoras vinha

alcançando reforço militar, para ajudar-lhe, mas que não poderiam eliminar os focos
de rebeldes, tendo em vista o Tratado de Paz.

Pior foi quando Varr Reykjavik Bar, se pronunciou. Ele mesmo, que teve o pai
Varr Jötun Bar, friamente assassinado por Tantalus Ágoras nos Jardins de Pedra.

Disse que a Ilha vinha sendo atacada, e seus negócios iam de mal à pior. Que os
ataques eram desconhecidos.

Então muitos dos Senhores que não haviam assinado a moção, começaram a
relatar pequenos ataques isolados em seus territórios, com razão aparentemente

desconhecida, mas que apresentavam uma coisa em comum “Bandeiras negras de


Ankset”.

Uma bandeira que não era vista há muito. Ankset fora destruída pelo próprio,
Khazam, que passou a reinar sobre os escombros. Sua bandeira, totalmente negra,

representado a noite que precede o Havdalá.


Tal afirmação provocou uma convulsão geral. Guerra está chegando, novamente.

Muitos afirmavam, desconsolados.

47
Não havia provas, apenas evidencias que precisariam de investigação. Mas

muitos pediram pela revogaçao imediata do Tratado de Paz, querendo com isso
iniciarem medidas urgentes de proteção.

Fineas observava incrédulo tudo o que estava acontecendo. A maior vitória


para os povos jamais vista, que era a lei de paz, ser vergastada por “ rumores”,

“homens possivelmente pertencentes a um império morto”, “sussurros de ataques


isolados”, todos argumentos muito frágeis. Fineas levantou-se, ao que todos

pararam de imediato para escutá-lo. E fez essas observações. Afirmou que com a
medida, iniciariam-se uma série de atos de guerra, e que tais atos fomentariam o

uso das mesmas (e antigas) estratégias militares para defender interesses escusos
de cada povo e seu governante. Usariam seus recursos militares para prática de

comércio, saques deixariam de ser alvo de controle (e de sofreram as devidas


punições a que eram submetidos atualmente), as regras atuais de punição às

intolerâncias aos povos dos continentes sofreriam relativização, o tão eficaz, e ainda
jovem, sistema de repatrição de espólios ilegítimos de guerra (que vinham

devolvendo aos seus povos de origem, objetos de valor inestimável às culturas)


cairia por terra, e a destruição, principalmente da ação, recém iniciada, para redução

das desigualdes e realocação dos usos das riquezas naturais comuns encontraria
seu fim.

Fineas falou brilhantemente contra a aprovação da moção. Mas havia um veneno


disseminado, que ardia no corção dos presentes, o próprio medo da guerra e a

necessidade de defender-se dela.


Lembram-se,- falou exaltado, salivando, com o dedo em riste- todos os sentimentos

elevados que estão sob a tutela dessa Lei serão aniquilados, por um fantasma da
guerra que vocês mesmos não conseguem exorcizar de seus corações. E cuja

sombra, que os Senhores mesmos alimentam o crescimento, arrastará suas asas de


forma devastadora sobre todas as conquistas até aqui alcançadas. E então todos os

48
seus temores terão se tornado uma realidade, construída unicamente por si

mesmos.
Mas a longa e tortuosa votação teve início e quebrou o coração de Fineas. Uma

maioria esmagadora seguiu a moção. “Sim, pelo povo de Vaudeferro e pelos sonhos
de aço”, falou Edmundo. “Pelos tão sofridos Kolbis em suas tocas nos pântanos,

Sim.’, falou a Matriarca Kolbi. “Pela glória intocada das Montanhas de Gelo, Sim.”,
disse o Senhor de Picoalvo do Leste. “Pela opulência dos antigos pincípios. Sim.”,

disse Zor, Senhor dos Abismos de Zarmund, um dos maiores escravagistas do


continente, e constantemente censurado pelo conselho, por não combater com

eficácia as ainda presentes práticas de escravidão e comércio de vivos em seu


domínio.

E cada “sim”, enterrava mais aquela faca afiada na paz dos povos. Até que ao final
da reunião, rastejando pelo salão, ela teve a cabeça esmagada por Tantalus Ágoras,

que se dispôs a enviar tropas para os territórios que necessitassem de ajuda.


Aquilo foi o fato que mais partiu o coração de Fineas, e foi irremediável. O filho do

seu amigo e pacificador, Tantalus Dágoras do Sol, estava conspirando para a guerra,
com os mesmos homens que se submeteram à vontade de seu pai, unificando o

continente sob uma bandeira: a de defender a Liberdade dos Povos e instituir um


sistema de proteção à paz como jamais ninguém fizera.

E Àgoras acabara, ardilosamente e irreverssívelmente, com tudo.

Irmãs das Areias


O homem, coberto de areia e maltrapilho, esticava as mãos para a audiência,

não muito extensa para que falava, ali na praça pública de Inkaar. Uma cidade livre,
um refúgio intocado em meio às areias do deserto. Também chamada de entreposto

de Inkaar, muitos que vinham do deserto ou fugiam dele, passavam por ali, para
descansar. A cidade amarela, como era conhecida. Não eram incomuns

tempestades de areia invadirem passarem pela cidade, secando os poços,

49
depositando-se sobre as casas de pedra, cobrindo a comida e temperando as águas

com seu sal.


A vida nas areias não era fácil, e nos dias atuais ainda mais preocupante. Soldados

eram vistos cruzandos as terras. E não era sempre que As Irmãs das Areias
estavam por lá para defender os locais. Elas andavam pelo deserto, expulsando os

saqueadores, protegendo os monumentos da sua Deusa, e combatendo os Kolbis


no nordeste.

Mas um destacamento fora enviado para Inkaar, pegar provisões, reparar,


coletas informações e voltar para junto das companheiras. E lá estavam elas

escutando o Patrono falar sobre uma nova Lei de Propriedades, sobre como o Rei
Tantalus Ágoras estava trabalhando para a revogação do Tratado da Da Última Vila

Mais ou Menos ao Norte para ações de Paz. Kandrini cuspiu, balela, ela disse. E
replicou o Patrono, Porque o Conselho votaria pela revogação? Os Mercadores não

ganham dinheiro em tempos de guerra! As rotas são interrompidas, há saques e


pilhagem. Os caminhos não são seguros. As Escolas de Mistérios estão em

hamonia há muitos anos, por causa do 3º parlatório do século, por causa do Aliança
Libertadora. Não há como falar sobre essas coisas sem cogitar a explosão de uma

uma guerra.
O Patrono diz que é examente isso que acontecerá. As ostes de Tantalus

Ágoras crescem a cada dia, do caos da guerra ele se erguerá como o grande
Imperador do Oriente. Kandrini cospe novamente e puxa Inladris pelo braço. Velho

louco. Ela diz colocando o lenço sobre o rosto. O horizonte estava escuro, uma
tempestade estava chegando. Froam até o ferreiro e quando cruzaram rua, as areias

já estavam no céi, e foram obrigadas a entrar no alojamento.


Conforme iam atravessando a multidão que ali estava, se abrigando da

tempestade, recebiam cumprimentos dos vileirinhos.


O Patrono estava no bar, tapado de areia, sentado, bebendo uma alguma

coisa. Fala velhote. Ela cumprimentou o homem. Quer dizer então que vai ter uma

50
guerra, das grandes e das boas. É isso que cê tá dizendo? - então Inladris se

colocou no meio dos dois e interferiu no assunto, puxando seu lenço do rosto.
Desculpe, Senhor, ela não é muito polida. Meu nome é Inladris e o dela é Kandrini.

Somos Irmãs das Areias, protetoras e amigas do entreposto de Inkaar. E fez uma
mesura, batendo com dedo na aba do chapéu, fazendo saltar bastante areia para

todos os lados.
É uma honra conhecê-las. Meu nome é Ben Adam de Quran, Sacerdote da

Escolas de Mistérios da Lua, Rei de Hárpis. E baixou seu lenço, desvelando a lua
crescente tatuada no lado esquerdo do rosto.

As senhoras poderiam me ceder um pouco do seu tempo para uma


conversa?

As areias haviam parado de descer dos céus quando a conversa acabou. Já


estavam em poucas pessoas dentro do alojamento. Apertaram as mãos e sorriram

ente eles. As amazonas lhe entegaram um documento importante, desenhado num


pedaço do gibão do sacerdote. Uma rota de fuga até os ermos, usada por elas e

conhecida por alguns em Harpis. Elas tinham contato com as Amazonas da banda
Ocidental, que estavam trabalhando no recente desaparecimento do Sumo

Sacerdote Fineas. Porém não tinham idéia que o “fedelho da fortaleza do sol’, como
disse Kandrini, era tão perigoso assim. Eles prometeram se encontrar com

regularidade para tracar informações, nesse mesmo entreposto. E se caso


necessitassem de abrigo e proteção, elas colocaram-se à disposição dos Senhores

de Hárpis.

Os bons companheiros
Goim amava Tantalus. E sabia que esse amor era recíproco.

E tão profundo e fraterna era a sua admiração por aquele que ele escolheu
chamar de irmão, que ficava cada vez mais orgulhoso do Rei em que seu amigo se

tornara. Esse mesmo Rei, que também escolhera, prometeu servir e seguir.

51
Estava ali, agora, ao lado de Tantalus, içando a flâmula gigante sobre os Jardins de

Pedra. O sol que fende a escuridão. Era o lema na bandeira. Agora ela flamulava no
céu, maior, o pano dourado e o sol alvo sobre o olho negro, O espaço da cidade é o

mesmo que o mundo.


Prometeram à Miguel de Tocaspretas, quando este foi ferido por Azimov,

durante um treinamento, lá nos Salões de Jade, que “os Bons Companheiros”, como
chamavam-se os três, iriam governar o mundo. Miguel se recuperou, virara grande

amigo de Azimov. Hoje estavam ali, hasteando a flâmula dos Bons Companheiros.
Tomaram como regras as quatro leis de Jade: fortaleza, lealdade, respeito,

misericórdia nunca. Tal como aprenderam com seus mestres nos salões.
Seu coração apertava quando lembrava de Jade. Mas depois endurecia,

virava pedra. Virava Jade. Teve a alma triturada, e esmagada mil vezes, quebrada, e
derretida no calor do pedra líquida. Assim é que se faz um Homem de Pedra.

No fundo da montanha é onde os homens viram pedra, Jade; mais duro que o
aço. Lembrou do lema da academia militar que frequentaram.

Três homens de Jade, em seus Jardins de Pedra.

A conquista de Vaudeferro
Ágoras decide tomar Vaudeferro, cujo Senhor, Edmundo, recusou-se a enviar

ho exército de Ágoras.

Um chá entre amigos


O chá estava tão quente, que a boca da xícara fumegava como uma cratera

de vulcão. Mestre Agenor tentou pegar-la, mas queimou a ponta dos dedos. Ficou
soprando com um bico pronunciado. Tentou beber, um tantinho, pela beirola.

Queimou os lábios. Au! E esfregou a mão na boca, tentando fazer passar a dor.
Puxou um braço articulado da parede, com um leque de plumas esvoaçantes

na ponta. O direcionou para dentro da xícara e ficou girando uma manivela. A

52
manivela impulsionava uma engrenagem na ponta do braço articulado, essa, através

de um cabo, movia o leque para trás e para frente. Em breve estará na temperatura
ideal, dizia Agenor, sem perceber que as plumas chapinhavam na superfície do chá.

Como eu dizia, -retomou o Decano, Mestre Egídio-, ele era um homem de seu

tempo, esse Seth. Um tanto esnobe desde de o início. Mas certamente que tinha as
qualidades necessárias para ser reconhecido por aqueles que lhe eram

contemporâneos, como um líder. E fora de fato. Mas o que me intriga, sempre me


intrigou, é que mesmo lhe sendo o tempo vivo tão curto, se dedicou à batalhas

intermináveis. E morreu de forma trágica, como se fosse ontem. A humanidade faz


isso o tempo todo. Começam a guerra, e então a terminam. Ficam todos com a alma

quebrada. Mas se esquecem tão facilmente de tudo, que em seguida, recomeçam a


batalhar.

Sempre falei para o Senhor, e todos os demais artífices, que deveríamos nos
unir no ímpeto de construir um dispositivo. Um que fosse capaz de lembrar aos

homens exatamente tudo o que ocorreu no passado. Para que não fiquem insistindo
nos mesmos erros. Eu me sento aqui, como em minha oficina, e fico refletindo sobre

quantas vezes eu já vi esse ciclo se repetir. E sei que até o final de meus dias, ainda
verei muitas guerras, enquanto nos tornamos meros espectadores de toda essa

perda de tempo.
Mestre Egídio voltou-se para Agenor, mas ele parecia não ter ouvido o que

dissera, estava rindo com as cócegas que as plumas faziam no seu rosto, com o vai
e vem do abanador.

Então ele ficou desconcertado. Quer experimentar?, - indagou, fugindo das


pelúcias.

O Decano sorriu, e lembrou de achar esse comportamento de Agenor sempre


tão elevado, mesmo quando as ocasiões traziam o interesse dos assuntos sérios e

sombrios.

53
Mestre Agenor, finalmente tomou o chá. Mas ficou cuspindo os muitos fiapos

que sorveu. E viu eram muitos, dançando na xícara.


Ele ficou insatisfeito com a eficiência do aparelho.- Não importa…- abandonou

aquilo resignado.
Nunca tive dúvidas de que ele seria o vivo perfeito para a tarefa, pensou o

Decano observando a adequada ignorância do antigo aprendiz.


Bom, vejamos. Disse Agenor, descendo o óculos e abrindo o esboço

gigantesco de uma invenção. Desenhado à tinta em papel fino e semifosco. Veja:


“Atalaia do Pescoço Longo”.

O desenho era rico em detalhes, e a concepção verossímil e arrebatadora.


Uma longa estrutura vertical, elevando-se acima das nuvens. Encravada nas

montanhas dos Ermos do Norte, uma maravilha da engenharia de alta precisão. Não
empena, não quebra e não é facilmente abatida pela intemperie. Garantia de dois

mil anos na magia de preservação. Paredes, piso e teto, portas, caibros e dutos,
tudo do mais puro cristal da Fundição Caldeiraquente F/P (filhos e primos). Veja, é

para ser Cristalina. Portanto, tão invisível quanto os ventos. Portas de travamento
magico, toda automatizada com cabos e arranjos. Possui autonomia energética de

seis mil anos, alimentada pelo grão de Uranina 30ton. Uma cortesia, é claro, da
Guilda de Cientistas de Vaudesílica.

Mestre Egídio ficou maravilhado, com aquilo. Todos os detalhes e tanta


excelência.

Está em fase final de acabamento, Meu caro amigo. As outras seis estão a
caminho. Umas mais adiantadas que outras. E se for do seu interesse conferir tudo,

nós podemos visitar os canteiros de obras.


Então, ainda mergulhado em toda aquela expressão máxima da engenharia

de artifícios, Mestre Egídio, se viu sem palavras. Logo ele. E só conseguiu dizer:
Sim, meu amigo, com certeza eu gostaria. E sorveu o seu chá, que já estava na

temperatura perfeita.

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O velho comedor de larvas
Na conquista de Vaudefero é dado um banquete onde um misterioso vidente está. E

diz ue opde ver o futuro. Então o Rei quer saber o seu futuro. Uma larva que come
sangue é posta na mao do rei e o vidente a come. Um tesouro procurado, sob mil

folhas de lotus. Um Ritual para matar um inimigo. Um menino á beira da morte. A


Princesa sem reino. Um sangue mentiroso. A Gema que brilha na escuridão, para

construir o maior império de todos.

Os caminhos do profeta
Agoras insiste na ideia de encontrar a pedra, edir tenta dissuadí-lo daa ideia, falando

que a pedra é uma lenda, que foi feita uma visão de um velho bruxo e tola, sem
validade. Então ele pede a edir que procure nas tais lendas onde se encontra a

pedra.

Oliveiras perfumadas
Lis conhece Geb

Invenire Res Ignota

O Sacerdote encontra uma magia de sangue capaz de dizer onde está a a pedra
procurada. E uma gota de sangue indica no mapa o vilrejo do córrego.

Meu poder

O rei estava sentado, observando as chamas na lareira do salão central. Sua


grande cadeira de madeira estava muito próxima, de fato ignorando qualquer ofensa

que o calor intenso pudesse vir a causar. Parecia que o movimento das sinuosas
labaredas fascinava de forma hipnótica o Nosso Senhor da Fortaleza do Sol. Estava

absorto pela dança, parecia ignorar os acontecimentos naquele lugar.

55
Adiante, segurando uma mulher em farrapos, estava seu fiel General, Goim. Um

jovem militar, que prosperara muito rápido, ajudando o Rei a executar uma sucessão
de eventos que o levaram ao poder, tonando-o o governante mais novo que a

Fortaleza do Sol já teve.


Ele deu uma pancada com o cabo da espada na cabeça da mulher. Ao lado

um menino, de no máximo três anos, procurava o abrigo das vestes daquela mãe,
subjugada.

Edir Gramateus, o Alto Sacerdote, mostrava uma figura de um livro. Diga


onde está!, ordenava com altivez.

Eu não sei, meu Senhor, eu não sei.


A mulher chorava desesperada, e abraçava o menino tentando protegê-lo. O

General segurou seu cabelo com firmeza, e chacoalhando a cabeça da jovem,


esfregou seu rosto nas páginas do volume. Tornou a balançar de forma severa,

dando socos na nuca dela.


Por favor, piedade. Piedade, piedade. Eu não sei de nada. Soluçava a mulher.

E aquela cena persistiu por algum tempo.


O Rei, saindo do seu torpor, falou com calma, num tom baixo e loquaz: parem de

bater na mulher. Ela disse que não sabe de nada. Esses gritos… Já chega! O
General a libertou com um empurrão. E ela ficou no chão, chorando copiosamente

abraçada ao garoto. Então Tantalus Ágoras levantou, estudando aquela composição


enquanto se aproximava. E abaixando-se próximo à mulher, perguntou qual era o

nome do menino. Extremecendo, ela disse baixinho, entre um suspiro e outro: Lokar,
Senhor.

Me diga, mulher, se eu perguntasse a esse menino, a quem foi dado o nome de


Lokar, se ele pode me contar alguma história, que sua mãe, tão carinhosamente,

tenha lhe contado antes de dormir, ele me diria que sim?


Então ela apertou o menino, e chorou com mais intensidade. E respondeu, muito

baixo, com um Sim, em Copta.

56
E o Rei prosseguiu. E se eu , seu Senhor, perguntasse igualmente a esse menino,

Lokar, se essa história, que sua mãe lhe conta à beira do leito, e que ele tanto tem
apreço em ouvir (e ela em contar); se eu lhe mostrasse a figura de uma pedra,

brilhante, azul, ele a reconheceria?


Ela ficou em silêncio, soluçando.

O Rei perguntou, interferiu Goim, responda!


Eu não sei, ela levantou a cabeça e seu olhos estavam inchados. E as

lágrimas haviam deixados caminhos de lama pela suas bochechas. Ela babava e
abraçava desesperadamente o filho. Eu não sei, prosseguiu. Seu choro repetia um

gã, puxado junto com ar, e depois um xiado, grave e salteado por fungadas curtas.
Reverbernando intensamente pelo salão.

Acho que nós deveríamos perguntar diretamente para o menino. O que a


Senhora acha?

Não, não, não, não... Suplicava a mulher, meio que segurando os pés de
Tantalus Ágoras.

Lokar, é esse o seu nome, não é? Você gosta de histórias, sua mãe já nos
disse isso. Aquele homem ali, e apontou na direção de Edir Gramateus, ele tem

muitos livros, com inúmeras figuras. Lá no alto de um palácio enorme. Você já


esteve em um? Vá com ele, enquanto eu terei uma conversa com sua mãe. Lá tem

uma porção de uvas, e tâmaras. E leite de amêndoas. Vá com ele.


E o Alto Sacerdote foi puxando o menino, enquanto a mãe resistia em deixá-

lo ir. As mãos ainda tentavam se tocar, mas Edir Gramateus não precisou fazer
muita força para separar o miúdo, que mal falava, dos braços da mulher.

O menino deu uma olhadela entre as vestes drapejantes do homem, porém


as histórias lhe pareciam muito, muito interessantes, tanto quanto a comida.

Mal a porta havia fechado, e um silêncio repentino se fez no salão. Cessaram


todos os lamentos daquela mulher, cujos ecos pertenceriam agora, ao abraço

inexorável do esquecimento.

57
Os homens foram até a Vila. Os soldados vasculharam as casas.

Prenderam e ameaçaram os moradores. Mas nada encontraram.


E afinal, aquela parecia ter sido, realmente, apenas uma lenda boba. Uma

história para criança dormir.

Quem espera sempre alcança


O Alto Sacerdote bateu o livro e o fechou, formando uma nuvem de poeira em

frente ao rosto. Abanou aquilo, enquanto espremia o rosto e coçava o nariz.


Sim, eu tive a confirmação. Falou veementemente ao Rei. A visão não falha.

E o Garoto, ele mesmo, ironicamente, foi escalado para os interrogatórios na Vila.


Veio aqui, neste mesmo salão e disse que minhas visões estavam corretas. Depois

de tantos anos tentando rastreá-la, finalmente encontrei o ritual adequado. Nesse


mesmo livro. Mas não me custou barato. Um ano no mar até Shadai. Mais quatro

luas inteiras esperando que o copista entregasse a encomenda. O passamento do


meu assistente, caído no Mar Estreito. Escorbuto e prostração por duas vezes.

Depois, a dificuldade de reunir os elementos para o ritual. Mas, eis a recompensa. A


gema está lá, no Vilarejo do Córrego, como sempre pensamos que estivesse. Seus

homens é que não foram capazes de encontrá-la, naquela ocasião. Mande homens
competentes, e resolva de uma vez esse problema. Tão logo traga a gema para cá,

eu farei o que estiver ao meu alcance para extrair o que for necessário dela. Seis
grandes volumes estão à caminho. Os encomendei na visita à Shadai. E serão muito

úteis quando estivermos com a pedra em mãos.


Tantalus Ágoras escutava as palavras de Edir Gramateus em silêncio. Assim

que o Sacerdote concluiu, o Rei acenou com a cabeça.


Goim, compreendeu a ordem e assentiu. Retirou-se do salão, com passos largos.

Tantalus descansava as mãos sobre as costas, andando de um lado para outro.


Pensou em ir com os soldados. Mas afastou o intento. Quem espera sempre

alcança, dizia seu pai. O que era bem verdade.

58
Então ele foi acompanhar pela janela, o movimento dos homens no pátio, até a

Companhia das Lanças Douradas cruzar o portão Leste, rumo ao Vilarejo do


Córrego.

Visitas inconvenientes

Há mais ou menos cinquenta luas antes do parto, o amor inesperado e


intenso entre dois jovens do córrego, foi consumado às escondidas, entre arbustos

não muito afastados do dali.


Passaram a se encontrar todos os dias e aquele sentimento recíproco

cresceu.
Soler era o único filho homem do patriarca Geb, e Liz, a jovem Oliveira de cabelos

cacheados, pele e olhos negros como a noite.


O jovem queria dar-lhe o mundo, e pensou que sua amada era merecedora

de um presente que lhe estivesse à altura.


E veio à sua cabeça pedí-la em casamento, oferecer-lhe a relíquia de família,

coroá-la sua mulher.


Sua irmã, nunca o conheceu. Muitos anos mais velha, partiu envergonhada

com a acusação de desonra por uma gravidez recusada pelo pai, indo embora para
os burgos da Fortaleza do Sol.

A mãe, não suportara o peso da tristeza na ida da filha. E após alguns anos,
ao parir um menino atemporão, que chamaram de Soler, foi arrebatada por uma

letargia, que a consumiu até secar seu leite, até nada mais importar. E quando a
criança tinha meses, morreu de uma infelicidade aguda.

Restara ele, e somente ele, depois da morte do pai, já velho, levado pela
consumação. Soler recebera a gema no leito de morte de seu pai. Lembrava-se do

pedido do velho, que após fazê-lo jurar que jamais a venderia, disse que deveria
guardá-la e mantê-la na família, devendo preservá-la de todo perigo.

59
O velho dizia que a honra dos Geb não deveria ser manchada pela ocasião

da perda de um bem tão precioso, do qual eram guardiões, embora vivessem sob o
estigma de ladrões. Mas Soler, ainda que por demais justo, não compreendia tão

bem a missão que o avô lhe delegou, antes de morrer. Ele entendeu, no íntimo de
seu coração, que aquele era o bem mais precioso que possuía, e assim seria sua

maior prova de amor.


De sobressalto, com uma única coisa em mente, Soler, o artesão, rumou ao

pequeno esconderijo cavado no chão da cabana, e ao tomar a pedra da singela


caixa, deixou-se embevecer pela imagem maravilhosa da jóia que fabricaria. A pedra

que talvez valesse muito mais que um templo, ou um reino, lançava sua luz
fantasmagórica nas tábuas do humilde casebre, deixando escapar por entre reflexos

misteriosos, uma vertiginosa incógnita, fria e azul.


Primeiro pensou em ofertá-la nua, como dote à pequena amada, então

desistiu. Teve a idéia de encrustá-la numa jóia.


Liz amava o artesão, e não poderia suportar viver longe dele, e ali, no vilarejo do

Córrego, ninguém casava senão por amor.


O Jovem ficou durante uma lua fabricando a tão maravilhosa jóia. De cobre,

estanho e bronze. O adorno ainda que moldado em metais não nobres, resultou
numa peça bela, cuja atenção central era a gema. A pedra, herança carregada à

gerações pela família, reluzia sua beleza mágica por entre o fino metal moldado por
Soler: acreditava ser uma Lápis-lazúli, com um fulgor vivo em seu interior, uma

massa que parecia ter vida própria se convulcionava. Incrustada entre folhas de
lótus, ornadas pelo artesão, parecia ser ainda mais altiva. Uma pedra tão vultosa

não poderia ficar em outro colo, que não o de sua amada.


Após admirar a obra que concluíra, Soler a embrulhou, preparou uma refeição

com carinho, e foi correndo buscar Lis, querendo logo por a peça em torno do
pescoço da amada.

60
Ele correu entre as pastagens, através das oliveiras, dos cedros e das

corticeiras. Atravessou o córrego como um relâmpago e viu ao longe a chaminé da


casa de Lis. Ele a arrancou de sua casa, e a levou correndo pelo caminho, enquanto

ela conjecturava o porquê da pressa e do desgaste. Mas podia ler nas feições do
jovem que era algo bom, e ela estava feliz com isso.

No caminho a jovem pensou que esta seria uma boa hora para dizer ao
artesão, para falar-lhe que suas regras estavam atrasadas há duas cinco Luas e que

não seria mal irem morar juntos, arrumar as coisas para três. Ela mal podia esperar
para dar a noticia à Soler, pois sabia que seria bem-vinda. Suas almas diziam sim,

uma à outra. Se queriam juntos e se completavam.


Lis aguardou por momento melhor.

Na cabana, o Geb não deixou que ela falasse, tapou seus lábios com as
mãos e caminhou na direção da mesa. Uma refeição estava servida, com água pura

da gruta e muitas frutas e flores guarnecendo a ceia. O artesão caminhou na direção


da moça, carregando um pequeno embrulho de veludo e linho. Ela tentou falar, mais

uma vez, e contar-lhe o que a Velha do Córrego havia lhe dito, porém Soler pediu
silêncio.

Ambos não perceberam o barulho de cascos fora do casebre, não


perceberam que ao longe havia gritos. Que o fogo consumia as choupanas, que

muitos de seus amigos estavam feridos ou mortos.


Eles não ouviram as crianças chorando e se escondendo debaixo da cama.

Não ouviram os gritos das mulheres sendo violentadas. Não ouviram as portas
sendo estraçalhadas com o vigor das maças e tampouco as espadas sendo

desembainhadas.
Não ouviram os homens e mulheres tentando evitar o ferro. Seus amores, seus

irmãos e seus parentes sendo fendidos na noite sangrenta. Suas famílias sendo
deixadas para morrer dentro das casas em chamas. Se houvessem escutado,

poderiam ter corrido, saído noite à dentro, fugido daquele destino horrível.

61
Soler entregou o embrulho à Liz. Ao abrí-lo, uma luz cegante saiu da pedra, e

antes mesmo que ela pudesse olhar o colar, levou suas mãos às vistas,
mergulhando, imediatamente, em uma cortina de escuridão e ardência. Soler a

abraçou preocupado. Depois daquela luz, a pedra enegreceu.


Foi neste instante que Liz escutou o estrondo da porta sendo despedaçada.

Entre passos e tilintar de ferros não pôde distinguir nada a não ser o gemido de seu
amado logo após um forte salavanco. Ela o puxou com toda força para si. No

entanto, não conseguiu segurar o corpo tombando.


A moça esfregou os olhos desesperadamente na tentativa de arrancar a venda

negra que ali se depositou. As mãos quentes espalhavam a massa rubra pela face
da jovem. Algo aproximava-se.

Lis, se debateu, tentando livrar o braço da mão forte que a apertava, com o toque
frio de metal. Segurou-lhe do punho, torcendo seu ante-braço para fora. Enforcou o

pulso para tomar-lhe o objeto que estava cerrava na palma das mãos. A jovem
resistia, porém a fraqueza infringida pelo medo, fê-la ceder.

Foi arremessada contra o assoalho.


Apalpando todas as coisas espalhadas, encontrou um objeto pontudo, e segurou-o

com sua vida. Sentiu aquilo lhe cortando a carne, mas investiu contra aquela pessoa
que estava à sua frente. Um grito subiu pela garganta, e saiu pela boca, empurrando

seu corpo na direção daquele alguém. Mesmo sem poder ver, ela sentiu a cerâmica
cravando a carne macia, rasgando a resistência da pele. Ela foi arremessada longe.

Mas em seguida foi pega e erguida pelo braço, enquanto gritos de dor ecoavam pelo
casebre.

-Veja o que fez com o General! Vais pagar caro pelo olho dele, rameira!
-Ela não pode ver! Mira seus olhos, é cega!- uma voz rouca dispontou.

-Então tiraremos outra coisa dela!- disse outra voz.


-Não, não, não!- soluçou, Lis.

Ela se debatia e socava o ar, tentando esganar qualquer coisa à sua frente.

62
Então a voz que gritava parou, e rugindo se dirigiu a ela, como que aproximando-se:

-Não é de mim certamente que deverás te vingar! – a voz ordenou aos outros que
estavam no casebre- Quebrem todas as coisas, procurem a pedra. Tenho um serviço

para terminar.
Liz sentiu o movimento das mãos do homem ante seu rosto. Muito provavelmente

testando seu olhar e tirando a conclusão inevitável de que Liz estava cega.
Um momento de hesitação pairou por segundos entre o homem e a jovem. E então

ele a agarrou violentamente pelos cabelos, esmurrou-lhe o rosto e a arremessou no


chão.

-Façam o que entenderem melhor, não há nada aqui para mim..


O corpo vulnerável rodopiou antes de cair no assoalho tomado de objetos

irreconhecíveis, e ela teve a sensação de algo perfurar-lhe a mão. Encolheu-se em


torno do antebraço, procurando ajoelhar-se. Foi quando sentiu uma forte pancada

nas costelas, em seguida na cabeça. A dor atroz pressionava seus ouvidos e a


jovem caiu de lado com as mãos em torno do tronco.

Logo um novo puxão pelo cabelo a arrastou desastrosamente entre todas


aquelas coisas, e depois de alguns metros a ergueu, enfiando seu rosto com

velocidade sobre a mesa molhada. Um cheiro forte de álcool invadiu o as narinas e


algumas gargalhadas soavam pela casa. Ela tentou lutar.

E reunindo forças de algum lugar no seu íntimo, empurrou a mesa,


inutilmente. Ela não tinha forças, suas costelas doíam. Se ela pudesse ter ignorado

a dor, talvez se livrasse do pulso firme que a continha, porém ela não pode e estava
cega. Não saberia para onde fugir.

Antes que ela tentasse uma nova investida, sentiu uma pancada na cabeça, e
o mundo se tornou lento. E novamente outro baque com sua cabeça sobre a

madeira. Até ser arremessada no chão. Uma mão tensa e apurada segurou sua
saia, puxando-a de qualquer maneira, porém sem sucesso em retirá-la. Em seguida

63
muitas mãos a apertavam com força, nos seios, no rosto, nas partes íntimas. E

aquela mão insistia em tirar-lhe a roupa, e a socava ao mesmo tempo.


Liz não pôde debater-se, estava perdendo os sentidos. Estava quase lá, onde

quer que fosse o lugar seguro onde desejava estar. Porém sentiu erguerem-na pela
nuca e em seguida bater seu rosto contra a mesa novamente, diversas vezes,

enquanto escutava seu agressor gargalhar.


Desorientada Liz tomou-se de arrepio quando um metal frio foi colocado entre seu

vestido e as costas, e com um solavanco ser rasgado. As vestes baixeiras foram


arriadas.

Os homens permaneceram toda noite no casebre, a mais longa e terrível noite de


Liz. Sua alma foi destruída.

Entre repetidos desmaios ouvia vozes, algumas conversas sobre a morte do Rei.
Falas sobre o novo governante e sua promessa de opulência.

Por fim ela escutou o homem no comando ordenar uma retirada.


Aproximando-se do seu ouvido, com uma voz sarcástica, alguém sussurrou: “Nós

vamos e deixamos com a Senhorita os cumprimentos da Casa Real.”.


Após o barulho dos cascos irem-se ao longe a jovem tomou forças e arrastou-se

entre os objetos à procura de seu amado. Extenuada, enrolou-se em torno de si e


chorou a morte, não apenas de Soler, mas a sua própria morte.

O Vilarejo do Córrego amanhecera morto naquele dia. Uma linda história de


amor acabava em tragédia. Um destino, frente aos olhos cegos de Liz, tomava

forma, um destino que tinha como guia a vingança.


Ela sentiu uma vertigem tão forte e pungente, que antes de desmaiar, deitou

tudo o que tinha no estômago. Em seguida pensou em morrer e seu coração foi aos
poucos abraçando a idéia.

A velha feiticeira, colocando as roupas no varal, sentiu um rumor sob seus


pés.

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Então, despontaram abaixo do morro, um bando de homens à cavalo,

deixando o vilarejo. Vestes ensangüentadas. Espadas embainhadas. Armaduras


reluzindo ao sol tímido da manhã, o símbolo da Guarda Real. A velha baixou os

olhos e dirigiu-se para o chalé, com a bacia de roupas apoiada na cintura bateu com
os calcanhares à porta. Boa coisa não era.

A jovem acordou de súbito, com os nervos tremendo sob a pele. O coração


palpitante parecia sair boca à fora,estava mole e não tinha forças para respirar. O

corpo violado e dolorido, que desfalecera sobre o chão, agora, tentava agarrar-se.
Porém, aos poucos se prostrou, para que tateando os espaços, encontrasse o

cadáver de Soler. As mãos machucadas e temerosas apalpavam objetos


indistinguíveis em meio à escuridão desesperadora na qual estava imersa.

Um estalo na madeira despontou sobre a cabeça da jovem. E mais outro.


E então, mais uma vez indefesa, seus instintos tomaram à frente. Ergueu-se do chão

em busca da parede, estendendo os braços procurando uma saída.

Ao redor, a casa crepitava em chamas. Fumaça carregada por uma nuvem


quente, deixava o madeiramento em direção ao centro do chalé. Em pouco tempo

línguas de calor surgiram na periferia, minando a tentativa da jovem chegar à porta.


Sobre a sua cabeça o telhado rangia sem conseguir mais se sustentar.

A velha deu de ombros, como se não quisesse se importar com o avistamento


da cavalaria. De costas para a porta, parou de súbito, com a idéia de que algo

terrível pudesse ter acontecido. Virou em direção à saída e correu para a porteira.
No fim da estrada da vila viu vários focos de fumaça negra subir aos céus.

Largou a bacia ali e correu, passando o campo de oliveiras.


Gritando por socorro, ela viu a destruição provocada. Crianças chorando, sozinhas e

feridas, ao lado dos corpos de suas mães. Jovens mortos e casas em chamas. O
mundo havia ruido na sua casa. Caído sobre seus estertores, e uma lembrança

antiga lhe voltou à mente.

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Ela correu. Correu para o lugar onde encontrara a pedra no passado, aquela

gema que havia curado suas feridas, o seixo de vida brilhante que pulpitou nas suas
mãos, muito tempo atrás. Queria curar a todos, desfazer o estrago dos homens no

mundo. Ela correu na direção do casebre dos Geb.


Ao se aproximar da casa o bafo quente das chamas chicoteou-lhe a carne, a

velha levou a mão aos olhos para proteger-se. A Porta da casa inexistia, e com
dificuldade, enxergou lá dentro dois corpos:

A Velha foi à margem do rio e apanhou um pouco d’gua com as mãos, sorveu
um gole dizendo algumas palavras. Seu corpo destilou uma secreção viscosa, como

se fosse untada. Chegou até a porta, onde o fogo parecia não surtir efeito sobre ela.
Caminhou entre os destroços e encontrou o corpo do ourives já em chamas e

adiante a jovem que ainda lutava, sufocada, mas ainda viva.


A velha olhou para os lados como se procurasse alguma coisa. Revirou

alguns objetos, mas desistiu. Arrastou Liz pelos braços até uma parede ao lado do
forno de barro. Empurrou algumas madeiras e chutou outras para fora. Puxou a

jovem através da senda e parou somente quando considerou estar à uma distância
segura da casa. A Velha afagou-lhe o cabelo, e viu a mesma dor que sentira há

muito tempo atrás. Ela então chorou pela jovem. Pela vila. E presenciou mais uma
vez o rigor da vida, quando estranha ao amor e alheia à alteridade entre os homens.

A velha meneou a cabeça desapontada, num dizer silencioso de pesar. O


jovem estava morto. Nada mais se faria a respeito.

Ela ainda voltou à cabana mais tarde, onde a única coisa que encontrou,
entre os restos quentes de madeiras, metais retorcidos, ossos e cinzas, foi um lindo

colar de folhas de lótus, encrustando uma pedra negra brilhante. Julgou que tinha
valor e levou consigo.

Nem Mais Uma Lágrima

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A Velha disse a Liz que os soldados da Fortaleza destruíram a Vila. Não fora

uma pilhagem comum, não carregavam objetos de valor, nem grande volumes
consigo. Eles procuravam por algo. Porém não teve coragem de revelar à jovem o

segredo que carregava, aquele sobre a gema dos Geb e a desconfiança de que
estavam atrás dela.

A pequena chorou por muitas noites, enquanto se recuperava. Primeiro sem


poder sair da cama, devido aos ferimentos causados.

Depois, quando sua situação física mostrava condições para pequenos


esforços, ela não quis sair. Não poderia ver as flores. Os campos de oliveiras. Não

poderia ver a realidade da aldeia. Sabia da destruição e das mortes. Dos corpos que
a Velha e os outros moradores queimaram. Sabia de tudo. Mas não tinha coragem.

Simplesmente ficou ali, deixando-se ser aturdida pela letargia, pelas profundas
marcas infringidas em sua alma. O corpo doía, pesava e ainda estava ferido, mas

recuperava-se. Porém uma mácula irrecuperável caiu sobre a alma, sobre a mente e
as vistas. Isso não seria modificado, não agora, não tão cedo.

A cada semana que passava, ela tinha certeza de que aquele sofrimento era
irreversível.

Na quinta semana após o saque, Lis estava determinada a sair.


Colocou as pernas para baixo, sentindo o peso leve do corpo. Levantou o

tronco sobre o catre. Estava frio, cada vez mais frio. Esfregou os pés, procurando
aquecê-los, estavam magros, com ossos protuberantes. Lutando contra a

dormência, pôs-se de pé. Uma vertigem repentina caiu sobre ela, a empurrando em
direção à cama.

Caiu sentada e chorou. Chorou muito, tanto que seus olhos estavam inchados. Ela
podia sentir a pele apertada entre as pálpebras. Mas combateu aquele sentimento

com bravura. Aquele sentimento de medo, que a prendia no leito, a arrastava de


volta à enxerga. Combateu a vontade imensa de deixar tudo, de ficar ali deitada

esperando a vida se acabar.

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Mas ela persistiu. E foi tateando a escuridão, tropeçando em objetos, tocando

as paredes até a abertura. Lá um leve calor encostou sobre a pele translucida. Ela
quase podia ver novamente. Mas quis imaginar o vilarejo, como o vira da última vez.

Seus pensamento não ousavam voltar às memórias do amado artesão. Por


enquanto, ficariam em um lugar seguro, longe de qualquer coisa que pudesse fazê-

la desmoronar. Mas um cavalo relinchou no pátio, e Lis tentou voltar para dentro.
Desesperada deu alguns passos para trás, até bater em alguma coisa, e caiu sobre

as tábuas duras do assoalho.


Se fossem os homens, com machados, com fogo, com morte... Mas não

eram, ao menos fora de seu coração, não eram. Porém Lis ficou desesperada e tudo
que soube fazer foi chorar. O choro logo se transformou numa raiva. E ela viu que

isso afastava o medo. E ainda que sua espinha estivesse congelando, ela se
agarrou àquela sensação que a empoderava, a sustentando. O ódio por aquele

medo a movia, como o titereiro à marionete.


Ela cerrou o punho com força, não sentiu as unhas cravando na pele, nem o

lábio sendo fendido pelos dentes. Então, das dores se ergueu. E ficou ali, de pé e
resistindo.

Assim prosseguiu, por algumas semanas, usando uma raiva crescente como
bengala.

De início pensou em seguir ali na aldeia. Ma a escuridão era muito grande,


seu coração estava quebrado, sua alma intoxicada.

Esquecera da vida que carregava, e como um veneno, seus pensamentos se


voltaram para a Fortaleza do Sol. Estavam sim, guiados pela força oculta que o

desprezo lhe concebiam.


Ela nunca conversara com a Velha, era só uma estranha compadecida. Ouvia

seus passos e monólogos sem fim. Sobre como estavam reconstruindo a vila. Sobre
como os soldados perambulavam por aquelas bandas. Exigiam coisas, favores e

pertences, plantios e impostos, pessoas e terras. Dizia sobre rumores, sobre que o

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filho do Rei lhe assassinara, usurpando-lhe o trono. Que faziam companhas pela

plataforma, anexando vilas e comunidades, estações e entrepostos. Eram falas de


outros para Lis, vindos pela boca da Velha. Talvez aquela Senhora jamais tenha

saído dos arredores do córrego. Talvez ela não ousasse, e ficasse lá como os
outros, como escrava de seus limites. Ela nunca falara com a Velha, resumia-se a

murmurar e soluçar sobre o catre, de início. E, conforme as semanas avançaram, os


rompantes amainaram.

Nos últimos dias, as notícias intensas de combates e guerra, já não mais a


preocupavam, não mais lhe afligiam os pensamentos. Crescia dentro dela, uma

idéia. Um sentimento germinava na escuridão de suas vistas, enquanto ela apertava


secretamente as peles que a cobriam, enquanto ela raspava a madeira do assoalho

com as unhas ouvindo tais histórias. Um plano íntimo se formava e tornava-se claro
conforme iam os dias.

Guiando-se no escuro, cada vez com mais cuidado, Lis, saíra fora do casebre
pela primeira vez. E embora aterrorizada, escutando os ruídos da natureza à sua

volta (talvez nunca notados, como agora os percebia), decidiu que faria algo,
abandonando a letargia.

Liz, resumiu suas intenções. Lançou mão de qualquer autosentimento que a


mantinha ali. Num rompante de certeza, tomou a decisão que a arrastaria através

dos anos, uma busca egóica, que incluiria não verter nenhuma lágrima a mais
sequer.

De Costas para o Mundo

Suas vestes batiam contra os galhos, chapavam nos passos desconfortáveis


dos pés nus sobre a lama fria. Ela seguia o caminho, guiada por sua inesperada

preletora.
A velha a aconselhava: ande com cuidado, sinta os cheiros, toque as coisas e

memorize os lugares. Tome cuidado com o que escuta, e por certo deve estar

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escutando muito mais. Contes os passos, guarde as passagens. O gosto do ferro, o

cheiro do veneno. Veja o mundo com seus ouvidos, sinta tudo com o seu corpo. Os
movimentos, o ar se deslocando, os suores e corações batendo. Veja a verdade e a

mentira na voz de quem fala. Toque quando puder, evite quando convier.
Ela escutava calada todas as falas da condutora.

Isso porque sabia que a Velha havia nutrido por ela um sentimento de
proteção.

Mas Liz não pôde ficar, e sem dizer nada decidiu partir para a Fortaleza. Isso
porque foi consumida pela idéia crescente de abandonar a Vila, buscar vingança,

numa nota de tom baixo, agonizando repetidamente.


Cega, rumava para a cidade sozinha, quando ouviu os passos largos e a voz

pouco discreta da Velha. Espere, espere! Dizia repetidamente, e ao alcançá-la, foi


fazendo recomendações.

Um sentimento de proteção e uma sensação de medo se traduziam na fala


trêmula e atropelada da Velha do Còrego. Mas ela foi com Lis, e a entregou nos

portões da Fortaleza da Cidade.


A Velha, ao se despedir, pegou nas mãos da moça e apertando firme entre as

suas, frias e suadas, a acariciou. Eram mãos de pele flácida e ossos protuberantes,
duras e calejadas. Ela sussurrou para Lis: “Vá, siga teu destino, e que a Deusa te

acompanhe. E quando precisares de ajuda, lembra-te da Velha do Vilarejo. Pegue –

e entregou um vidro pequeno contendo um líquido escuro- estes serão teus olhos

quando vieres à mim. Que assim seja.”.


A pequena mulher quase desistiu de seus planos frente ao sentimentos

acolhedor que percebeu na Velha. Quis dizer algo, mas a voz lhe faltou. Depois de
todo esse tempo, nunca trocara uma frase sequer com a sua cuidora. A Velha a

segurava firme. Porém, suas mãos se retorceram, ela afogou todo o sentimento, e
as puxou para si, fugindo do toque daquela Senhora, que a cuidara por muitas

semanas. Os dedos se fecharam em torno do punho. E ela cravou as unhas longas

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nas palmas da mão. Sentiu a dor que lhe fazia viva. Deu as costas para o mundo e

erguendo o braço, cuja sensação afastava a fraqueza, rastejou para fora de si e


bateu na porta.

Ali ela partiu, pois quando virou as costas para o vilarejo, ela já não sentia
mais vontade de chorar.

Só respirou fundo e engoliu a seco uma promessa. Que ela cumpriu durante
muito tempo e a duras penas, a de que jamais voltaria a verter uma lágrima sequer

em sua vida.

Os espinhos no caminho
“Quem bate?” Disse uma voz abafada do outro lado do portão.

Lis tentou falar, mas não sabia se ainda podia fazê-lo. Um tempo de silêncio
veio até a próxima pergunta. “Quem é e o que quer?”, perguntou a voz novamente,

de forma rude, exigindo uma resposta. E mais silêncio se seguiu.


Então um pequeno postigo foi movido e dois olhos semicerrados e

apreensivos caíram sobre uma pequena e incomum jovem. Esfarrapada, descalça e


com profundos olhos brancos que miravam o nada.

Então o rosto na porta se apertou e fechando o postigo com força não mais
mirou a rua.

De fato era mais um pedinte faminto. Como aqueles que batem à porta da
Fortaleza todos os dias. Como aqueles que dormem ao abrigo dos burgos. Que

matam por uma migalha. Mas aquela parecia delicada. E tinha feições adequadas e
boas de se ver.

O postigo abriu novamente.


“O que você quer, escória?”, disse a voz. Meio que engasgando a moça

disse, com a voz que há muito não lhe subia pela boca: “Sou quem bate.”. “Logo

vejo!”, disse o alguém. “A que vens?”, lhe devolveu. “Eu venho ao que quiseres,

Senhor.”.

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Então o postigo se fechou.

E Liz permaneceu ali.


Na terceira noite, sem que o portão abrisse novamente, a madeira finalmente

tremeu e bateu com força para trás. O homem se pôs de frente, e aquela moça era
pequena e frágil. Então uma voz forte e cheia de pensamentos lhe dirigiu: “É você

que dorme nesses muros já há dias? Veja, eu tenho pão. - e lhe estendeu um
pedaço de pão duro e mofado.- Porém não será de graça.”

Ele a levou para trás da guarita, longe dos olhos de aldeões e nobres. Liz

cerrou o punho, protegeu a sua alma no local onde cultivava a vingança. Se cobriu
da raiva que a alimentava, enquanto o guarda a penetrava. Aquele ódio a

preservava da loucura. A levava para um lugar seguro onde bebia e se reconfortava


no sonho de retaliação a seus inimigos.

“Dê-lhe pão em troca de diversão”, disse o guarda para o colega do turno

seguinte, e apontou para o portão do muro: “É uma novinha muito bem comportada.
Fique certo que não come muito, só um pouco de pão velho lhe fará feliz.” E

gargalhou. Antes de sair ainda puxou uma gamela, onde alimentavam os cães, deu
duas batidinhas e sem abaixar-se jogou água ali. “Dê-lhe de beber antes de usá-la.

Está tão seca como carne de sol.”.


Ela viveu assim até a próxima lua, quando conseguiu cruzar o portão, e

correu tropeçando nas pedras, sumindo por entre as ruas estreitas e entrecruzadas
da velha Cidade do Sol.

Pedro, Izar, Altanar, Baltazar, Apolineu, Eger, Izac, Rosart, Endrio. Nunca
esqueceria esses nomes.

Ela caminhou, gravando-os na mente, por entre as vielas da Cidade, até bater
numa nova porta, cheia de música e risadas feminas. Onde sentia um bafo quente,

carregado do perfume forte do fumo, do polkum e de narciso.


Ela bateu na porta. De súbito, uma voz feminina despontou: “Que quer?”.

Dava para sentir a porta abrindo, com todo o som de música e gargalhadas

72
aumentando, um vento morno batendo nas pernas. “O que eu posso conseguir?”, Lis

perguntou. Imediatamente sentiu algo se aproximando, e uma mão delicada


pegando na sua, a puxando para dentro, “Qualquer coisa, minha querida. Qualquer

coisa.”. E a porta se fechou às suas costas.

O Sangue desconhecido
“Tu não és sangue do meu sangue”, ressoava a fatídica última frase de

Dágoras, na cabeça do seu filho. Fora cuspida de seus lábios, num misto de

escármio e último suspiro, enquanto a adaga de ouro e aço, que jamais havia
fendido nenhuma carne, lhe deslizava com força no meio do bucho. Porém, por mais

supreendido que tenha ficado com a traição de Tantalus, o rei morto não fora sem
lutar. Forçou o tição incandecente no rosto do assassino, deixando-lhe o cenho

desfigurado.
Tantalus Ágoras ficava irritado com essa memória, e mais ainda com a

possibilidade de que tais palavras fossem verdade, ou ainda, sendo uma verdade,
alguém mais soubesse do fato.

A luz do fogo refletia sobre a máscara de trama fina de couro, pintada a ouro.
Escondia do mundo a pele retorcida, cortada e sulcada. Lembrança eterna do preço

que lhe custou o poder. Mandara moldar diversas máscaras, mas na solidão dos
seus aposentos, era essa a que prefiria. Gostava do cheiro do couro e do toque

áspero sobre a cicatriz.


Emergiu daqueles pensamentos, cerrando os olhos para livrá-los. Atrás de si,

a criada aguardava pelas ordens de seu Senhor, tremendo e suando num canto mal
iluminado. Seu rosto brilhava de suor, muito embora aquela fosse uma noite

atipicamente fria.
Traga-me vinho. Disse à copeira.

Ela se aproximou com o jarro, para servir a taça que estava na mesa, ao lado
de Rei.

73
Ele fitava o fogo, como vislumbrando algo que não estava ali. A jovem deitou

a bebida devagar, e antes que pudesse largar o jarro, Ágoras, num movimento
rápido, a segurou pelo pulso. A copeira estremeceu, e começou a tremer o fino jarro

de cobre entre as mãos, salpicando vinho sobre a mesa.


O Rei, ainda mirando o fogo, falou como se dirigisse palavras a si mesmo: “O

fogo não é bom, nem mau. Ele é o que é, e queima. Essa é a sua natureza. E pela
sua natureza, ele é o que é, faz o que faz. Ele fere porque é forte e avança sobre a

carne que é fraca. -e apertou ainda mais o pulso da criada- Por ser quente ele
espanta o frio, derrete o gelo, esquenta o corpo e cozinha o alimento. Mas ele

queima. Acima de tudo. Aquilo que pode lhe ferir deve ser respeitado. Mas somente
a ponto de você poder dominá-lo. Eu digo que o fogo é poder. E quem tem fogo

deve ser temido.” Então, com a outra mão ele removeu lentamente a máscara do

rosto, e girou o tronco, ainda sentado, na direção da copeira. “Eu controlo o fogo na

minha casa, na minha lareira.” E, segurando com mais força ainda o braço da moça

sobre a bancada, tomou o atiçador de ferro, repousando-o sobre as chamas.

“Olhe para mim. Olhe para o meu rosto.”, ordenou o Rei com tom severo. A

copeira olhou para Tantalus Ágoras, no fundo do seus olhos. Sua expressão mudou
completamente, de uma menina acoada no canto do quarto, para uma mulher com

tom sério e desafiador.


“Eu conheço passos de criadas, sempre miúdos e ligeiros. Conheço os

gestos vacilantes de criadas. E há muito que lhe observo. Seu pisar firme, sempre

observando no cantos. Planejando seus movimentos. Você não é quem diz ser. E
esse seu olhar… Você não teme, me desafia e não baixa os olhos. O que tem nas

mãos? Ora, ora…” E torceu-lhe o punho para revelar um pequeno frasco nas mãos

da copeira. “Veja se não é esperta! Quer saborear o brio de uma vingança. Botar

morte no meu cálice, não é? Vou lembrá-la que EU sou o fogo. EU sou aquele que
comanda. Vou provar-lhe, Senhorita, que EU sou o poder.” Ele apanhou o atiçador

incandescente.

74
Sussurros nos corredores
Ele disse que o Senhor seria o homem ideal para descobrir tais segredos. E disse

que ninguém permanece calado diante da sua, digamos, força de convencimento.


Essa foi a expressão que O Senhor Lokar utilizou, Ivan da Torre Verde, disse que

era conhecido como Mestre dos Segredos, com procedimentos diferenciados.-


explicou Edir, experimentando uma chave , dentre todo as demais, que estavam

penduradas na velha e grande argola de ferro que trazia na cintura. Sua boca
fumegava, por debaixo do capuz grosso de caxemira. Estava frio, muito frio. E ali,

nas masmorras da fortaleza, tudo era mais gelado e desconfortável.


O Senhor me foi muito bem recomendado, e tenho certeza de suas

qualificações, pois sua reputação o precede. A mim não me importam seus métodos,
desde que obtenha dela as informações necessárias. O que sabemos sobre o caso

até o momento é o que dizem os sussurros nos corredores. Que é uma assassina.
Mercenária, fanática, rebelde? Não sabemos. Mas chegou onde chegou, muito perto

do Rei.
O homem de capa verde entrou na sala da masmorra. Deixe-nos. Ele disse. A porta

foi chaveada novamente e ouviram-se os passos do Alto Sacerdote da Fortaleza do


Sol arrastando o velho corpo corredor à fora.

O rosto do homem permaneceu encoberto. Do estalar de seus dedos surgiu uma luz
verde, fraca e farfalhante, na palma da sua mão. Ele a transferiu para uma esfera de

vidro, retirada de dentro do manto.


No canto da cela, encolhida no chão, iluminada por aquela luz débil, estava a

copeira. O cheiro de escrementos era forte, porém parecia não incomodar o homem
encapuzado.

Ela não levantou o rosto. Só encolheu-se ainda mais, ao sentir a presença de outro
alguém no recinto.

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Eu estou aqui para lhe oferecer misericória. Disse o homem com uma voz

sussurrada, que ecoou pela cela. A misericórida dos homens, não a dos Deuses.
A mulher levantou o rosto, que estava marcado por multiplas feridas de

queimaduras. Ela estava há muito tempo na escuridão, para voltar a enxergar de


uma hora para outra. Sob aquela luz misteriosa revelou-se no cenho da mulher, a

imagem de uma meia lua pulsante. Cintilando azul, em meio às sombras que
dançavam na cela. Seu olhar para aquele homem era de espanto. De incredulidade.

E esse mesmo olhar foi capturado pelos olhos do encapuzado misterioso, que
desvelando o semblante, repousou suas fitas verdes, no fundo da alma da

prisioneira. E esses olhos brilharam sob a luz esmeralda, como duas velas
incandescendo no entardecer. Sua pele era pálida e esverdeada e possuía dentes

salientes como presas de cobra.


E então, a mulher não pôde desviar seus olhos dos dele, e um pânico congelou o

seu corpo.
Ele permaneceu bebendo do seu olhar por muito tempo. Quando sentiu-se satisfeito.

Cerrou as vistas e desceu o capuz. Deu algumas batidas na porta e aguardou o Alto
Sacerdote retornar.

Porém, antes, colocou no centro da sala um pequeno frasco.


Assim que a porta foi aberta, Ivan abandonou o recinto.

Edir ficou perplexo quando ao abrir a cela, deparou-se com a Jovem se debatendo
no chão, enquanto uma espuma grossa saía pela sua boca, e seus olhos, como

duas bolas de leite, saltavam das óbitas encoleiradas por sangue. NUX VOMICA,
pensou.

A caravana dos porcos

Lis sentiu o toque macio da linda peça de seda de Vauparaíso, que fora
estendida sobre a mesa central. Dedilhou as sandálias de plumas e saltos do

Saigão, finamente arrematadas, que se espalhavam dentro dos baús. Rolos de

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texturas diversas de lãs nobres, de carneiro-de-caxemira. Frascos de diversos

formatos, guardando os misteriosos cheiros austrais, preservados nas essências de


madrijos e caxarréis, que amontoavam-se nas malas do Mercador. Mas o que lhe

chamou a atenção, ao tatear todas aquelas coisas, foi um pequeno volume. Um


livro.

Veja, Edir Gramateus- disse Edmina entre sorrisos- como é promissora a


nossa pequena. No lugar de atiçar os olhos do nosso Senhor com todo o material

que trazes aqui, deixá-lo inebriado com esses odores orientais, ela quer ser sábia. E
tomou o livro das mãos de Lis. Edmina sentou-se na cama e colocou o livro no colo,

e todas as meninas que estavam na sala deram pequenas gargalhadas e sorrisos


envergonhados. Puxando Lis pela mão, a sentou ao seu lado e fez com que tocasse

a capa do livro, um relevo em couro. Com tom de deboche, disse: Aposto que você
sabe o que é isso. Afinal, sabe muito bem, só de tocar.

Chega, chega, disse Edir afastando as mãos de Edmina e Lis do livro. Não
estou aqui para perder um tempo precioso, que não possuo. Senhoritas, o que me

traz aqui, nesse estabelecimento que desaprovo, é um afazer relevante. Como


sabem receberão a visita de um preletor. Esse homem irá escolher dentre as

meninas que aqui se encontram, vinte companheiras com potencial para entreter a
corte e servir ao novo Rei, Tantalus Ágoras. Tornem-se apresentáveis e sairão

dessa espelunca para uma vida que jamais sonharam ter.


Edmina, dona do estabelecimento, queria ela mesma ter ído com as demais.

Gostaria de ter muitos anos a menos do que possuía, e muito menos do que aqueles
que sua aparência dizia que tinha. Anos a fio trabalhando naquela vida cruel lhe

ensinaram que tal ofício era difcil de se manter com idade. Hoje explorava meninas
mais novas, como Lis, que batera à sua porta há algumas luas atrás. Estava prenha,

bem se sabia, e desde que sua barriga crescera, não conseguia mais nenhum
cliente. Servia à casa como uma empregada, limpando e arrumando o

estabelecimento.

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Nem Lis, nem Edmina foram escolhidas pelo Preletor. Ele apontou seu dedo severo

na direção das meninas novas, belas e delicadas.


O preço ajustado foi entregue, e era uma quantia farta. Eis o pagamento pelas

mulheres. E arremessou um saco de moedas ao chão. O preço que pago por elas
vai lhe custar mais caro, a cada dia, quando teu bordel estiver vazio e tuas carnes

moles não te puderem sustentar. Edmina ficou atônita, porém retorquiu insegura de
sua afirmação: O preço que minhas carnes moles recebem e receberão pelo serviço

que eu fizer, será pago por homens que tem a carne mole como a tua, no meio das
pernas. Que mal usam aquilo que compram, porque não conseguem. Apa, desculpe!

Esqueci-me que os preletores não possuem carnes no meio das pernas. São os
rufiões de voz fina do Harãm de nosso Senhor.

O Preletor sorriu com desdém. E se agachou na direção do saco de moeda. Edmina


colocou o pé sobre o pagamento e puxou na sua direção. O catou e colocou dentro

da blusa.
Edir segurou o Preletor pelo braço, fazendo uma mesura de complacência. Dirigiu-se

à Edmina pedindo desculpas, porém dizendo que precisaria ainda de um favor. “Não
se esqueça também que das facas afiadas dos Preletores. Muito boas para linguas

igualmente afiadas. Tome. - jogou uma moeda para Edmina- Por uma moeda de
prata levo a criada grávida e cega, tendo em vista que necessito de uma nova

copeira. Em breve haverá mais uma boca para comer, e uma mulher a menos para
trabalhar, se acaso morrer no parto. Ela nos servirá até ganhar o filho. Se sobreviver

e for uma menina, eu trago a criança para a Senhora. Se for um homem, eu o


levarei para os estábulos. Que me diz?”

Edmina, concordou com relutância. E pensou se não seria melhor resistir, manter Lis
consigo. Mas uma outra moeda caiu aos seus pés, e ela então a agarrou, e em

silêncio deu as costas. Muito embora no seu íntimo temesse pela pequena e seu
porvir, aquilo não passou de um assombro, ao qual ela pode resisitir. Acompanhou a

pequena ser carregada pelo braço, com uma certa indiferença pela sua condição. A

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puseram numa carroça, separada das demais. Junto com os porcos que serviriam o

banquete da noite seguinte.

Um serviço eficiente
Eu pedi há um tempo que viessem a mim mulheres jovens e capazes de

agradar meus convidados, meus generais. Meus homens relatam que chegam que
choram. Disse Tantalus Ágoras ao Preletor, num tom de insatisfação.

A copeira estava aguardando ao lado da porta. No balançar do sineta ela veio


até a mesa, de forma lenta, porém precisa. Uma batida na taça de bronze era para

servir vinho ao pedido de sua Majestade. Aquela brincadeira agradava Tantalus. Ela
colocou o dedo na borda da taça, parando de servir ao toque do líquido.

Senhor, respondeu o rapaz, evidentemente nervoso e desorientado, eu diria


que as moças estão assustadas, Vossa Majestade. Estão muito apreensivas, de

forma negativa, desde que a primeira jovem, que retornou naquele estado… E então
aconteceu novamente. E a terceira moça... Bem, essa não retornou para o Harãm…

É difícil fazê-las se comportarem de maneira adequada. Algumas fugiram, Senhor.


Foram punidas, logicamente. Eu peço minhas sinceras desculpas pelas ocorrências.

Não posso compreender o que tenha sido para Vossa Alteza tamanha falta
diligência no cumprimento de minha tarefa. Mas prometo ao Senhor, diante de

minhas própria vida, que tentarei retratar meus atos falhos, de forma a proporcionar
a satisfação das vicissitudes pessoais de quem for do seu agrado.

Não será necessário, interpelou o Rei, enquanto observava um pergaminho


aberto sobre a mesa.

E ficou em silêncio por algum tempo enquanto analisava as informações


contidas no documento. Ele sorveu um pouco de vinho. O Preletor sentiu um nós na

garganta. Como se o ar não pudesse passar para seus pulmões.

79
O rei moveu uma pedra para uma das pontas do papel, que insistia em

enrolar-se. Ele então apoiou as mãos sobre a mesa, refletindo sobre as informações
que nele estavam contidas.

Então o Rei emergiu daquela leitura, e retornou sua atenção para a conversa
com o Preletor. Após uma pausa prolongada, continuou, Trate de prover meu

Harãm. Alcance o necessário para a satisfação das vontades dessas mulheres. E


não lhes poupe exigências. Prometo um banquete para meus homens, quando

voltarmos da longa viagem para qual me preparo. Que ela estejam preparadas.
Toda a musculatura do encarregado soltou-se naquele instante. E o aceno de

dispensa lhe caiu tão bem, como se o fio da espada houvesse sido retirado da sua
nuca. E o Preletor se retirou com uma mesura.

A sineta tocou novamente, e a taça tilintou.


Porém, ao colocar o dedo sobre a borda, a copeira sentiu uma mão vacilante

quase tocar a sua.

A comitiva de Saigão e os quebradores de contratos.


Tantalus Ágoras vestiu as luvas e deixou sua tenda, Herminedes de Saigão

ficara lá, desconsolado, depois que o Rei lhe contara seus planos para Saigão.
Ficou impedido de deixar a tenda, até que tudo estivesse resolvido.

Tantalus, cumprimentou os guardas do lado de fora. Fazia finalmente, depois de


vários dias de chuva, uma manhã de sol. O acampamento estava enlameado, e as

carroças deveriam começar a serem deslocadas, para evitar atolamento. Ele


ordenou isso ao General Boris, General da Companhia Varonil do Primeiro

Regimento do Comando Real de Treinamento Militar Básico, pediu que destacasse


uma unidade do terceiro regimento para o serviço. Dispensou a ceia posta e quis

somente uma xícara de Leite de Amêndoas fumegante.


O Rei foi cruzando o acampamento, vistoriando os regimentos que levara

consigo para Saigão. Chegaram em duas Fragatas, desembarcando tudo. Pedira a

80
um batedor, General Miguel, que com muita antecedência providenciasse anunciá-

lo, requerendo autorização do Senhor de Saigão para ficar em suas terras, antes de
seguirem rumo aos desertos mais ao sul, para treinamento militar preventivo.

Mas quando chegou, embora já houvesse começado a desembarcar, a

recepção não foi a esperada. O batedor estava lá, mas falou-lhe que o Senhor de
Saigão estava ofendido com o trânsito das tropas por suas terras. E ficou muito

insatisfeito, considerando repreensível e inadequada a conduta do Rei, de ter


chegado sem aguardar uma confirmação de Saigão.

Mas Tantalus pisou firme.


Já estava tudo meio amarrado, desde o momento em que MIguel vira quem

eram os Protetores em fino contrato, da Cidade de Saigão.


Saigão em sua origem fora um amontoado de dunas, e depois tornou-se um

entreposto no Delta no deserto do sul, este, chamado pelo Beduínos, de Terra de


Areia. Todos os povos do deserto sempre fabricaram maravilhas. Tecidos de linho de

palmeiras, linho fino de brodejão-do-mar-seco, lã de carneiros-de-caxemira,


bordados, tapeçaria e armas exóticas polidas nas areias do deserto. Mas foi Rajan

de Saigão, um rélis criados de camelos, nascido como visionário, que lançou-se nas
areias quentes e perigosas de Terra de Areia, levando as maravilhas do interior do

deserto até um local estratégico. Ali letantou um império do comércio. No Delta do


Ausar, caminho obrigatório de navegação para quem quer que esteja atravessando

o continente, ou indo em direção ao mar, ele construiu um entreposto. Fundou uma


liga e começou a comprar e vender coisas de todos os barcos que paravam por ali.

Em pouco tempo, aquele pequenho quinhão de duna, virara um Oasis do Luxo, e a


humilde tenda de Saigão tornara-se um suntuoso palácio, cheio de riquezas. Todos

que vieram depois dele, trabalharam para ampliar e vesificar os produtos ofertados.
E a opulência de Saigão ficou conhecida, muito rapidamente em todos os lugares do

continente. “A pérola do deserto” a chamavam.

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Saigão nunca tivera vocação militar. E isso era um problema, pois muitos

povos de dentro e fora do deserto começaram a saquear a cidade. Ali havia dinheiro.
E dinheiro compra coisas, inclusive a segurança.

Foi então que Raj Mohamed de Saigão passou a utilizar proteção militar
financiada pelo ouro. O primeiro contrato foi com a Companhia das Cimitarras. Um

bando dos próprios beduínos que os saqueavam, viram que poderiam obter mais
lucro com menos risco, evitando que outros larapios organizados das areias,

provocassem perdas para os negócios de Saigão.


Depois seus preços se elevaram e começaram a extorquir os condestáveis e

administradores, aos presidentes das Ligas. Intimidavam também às Coporações de


Ofícios.

Foi então que uma forte organização militar chegou, com poder de expulsar
os Beduínos Egirãos em seu próprio território. Chamavam-se de Lanceiros de Jade

do Poente. Homens de Pedra batendo contra areia fina do deserto.


E a companhia ali se instalou e trabalhou com Saigão através dos tempos,

numa relação mútua, calçada na linha fina da pena e do papel. Atualmente o


comandante era Azimov, um jovem nortenho muito impertigado e de sangue quente.

Muito famoso por sofrer de uma paixão arrebatadora por sua companhia.
Um Homem de Pedra é um homem de honra. Ele é o que ele faz. Ele faz o

que promete.
E foi isso que Azimov fez, há alguns aos atrás, quando ainda treinava nas

profundezas da montanha. E durante um exercício, ferira de morte um grande


amigo, seu nome era Miguel. Sofreu de um pesar arrebatador, ainda quando tinha

carne no coração, não era um Homem de Pedra, mas apenas um menino.

E no seu medo, enfrentando aquele mundo bruto a duras penas, se deparou


com a dor da perda, que marcou seu âmago, como outra coisa jamais fizera. E

quando seu peito endureceu como jade, aquele sentimento ficou cristalizado,
protegido num pequeno bolsão.

82
Ele prometeu à Miguel que daria sua vida pela dele.

Miguel suportou a chaga. E os dois, saindo das entranhas da montanha,


como Homens de Pedra que se tornaram, seguiram cada qual o seu caminho.

Mas as circunstâncias do destino são intrigantes. Ali no deserto, à frente dos


Lanceiros de Jade do Poente, Azimov viu aquele homem, cujo rosto conhecera bem,

se aproximar.
Coberto por uma túnica amarelo mostarda, trazendo o estandarte Da

Fortaleza do Sol
Era um batedor, anunciando a vinda do Rei Tantalus, que também fora

menino convertido no coração de pedra do mundo.


E eles se reencontraram, e secretamente, Azimov foi chamado a cumprir sua

promessa.
Então, quando Ágoras vestiu as luvas e entrou pelos portões do Palácio de

Saigão, embarrando a fina tapeçaria, o Administrador Geral repreendeu a invasão ao


seu domínio, dizendo que não havia autorizado o desembarque das tropas de

Tantalus. Pediu que se retirasse imediatamente.


Tantlus, avançou às escadarias. O Administrador protegeu-se atrás dos seus

homens de Pedra. Pensou que estava seguro, mas conforme o Rei avançou, os
guardas abriram passagem, e o Raj de Saigão ficou sem reação, sem entender o

que estava acontecendo Tirem-no, tirem-no! Quebradores de Contratos! O Mercador


cuspiu no chão, assustado, porém desafiador.

Então os Lanceiros de Jade do Poentes entram no Palácio e abriram caminho


para seu Comandante, Azimov. Que ajoelhou-se, depositando sua lança, na soleira

das escadas, perante o Homem de Pedra, duro, que reconhecia como Rei. E
cumpriu a promessa que fizera à Miguel, no seu valor de lealdade, e não o valor

pago em dinheiro.
E o Rei o recebeu, batendo com a mão no ombro, naquele antigo ferimento. E

desceu, pegou a lança do chão, a colocando nas mãos do seu amigo. Mais duro que

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o aço! Disse, olhando bem nos olhos daquele homem. Mais duro que o aço! - ele

respondeu.

O Preço
Raj Arik, o governo do Reino funciona tal qual uma corrente de elos. Se um elo está

fraco, você o remove. A corrente fica menor, porém sólida. Eu não pretendo perder
elos, nem removê-los, até que isso se faça necessário. Mas é natural, que quando

esse elo quando parte da corrente, ele deve forcejar com os demais, a fim de evitar
dar causa a um rompimento.

O Administrador ficou em silêncio após a fala de Tantalus, que estava sentando


numa cadeira junto à mesa, como os demais. Pediu vinho para o seu Prestante. E

ficou esperando por uma resposta.


Falar com ele era algo difícil de fazer. Pois sabia-se que era bom com as palavras. E

sabia posicioná-las e escolhê-las de forma ameaçadora, porém nunca direta. E não


costumava carrregar a fala de ironia. Ia sempre direito ao ponto e sem deixar

dúvidas. Mas o que tornava tudo difícil, é que Tantalus usava uma máscara, e
diferentemente de todas as outras pessoas, não se podia ler a sua expressão, para

conduzir um diálogo.
Ficava sempre uma dúvida quando dito algo à Tantalus, que nececitasse de

aprovação. E sabia que isso incomodava, porque costumava fazer longas pausas e
muito silêncio após ouvir o que lhe era dito.

E, Na grande maioria das vezes, sequer respondia.


O Raj estava perplexo. Roçava o dedo na borda da mesa, como uma criança de

castigo que ignora o apelo do pai.


Tantalus coçou a cabeça, e remexeu-se inquieto na cadeira.

Por fim, rompeu o silêncio, para estimular o Mercador.


Podemos discutir isso em outra ocasião, se o Senhor preferir. Vou lhe convidar para

o café da manhã nos Jardins de Pedra. Varr Jötunn Bar, foi, e por muito menos eu o

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matei. Ele não quis assinar a moção para revogação do Tratado de Paz, mas o filho

dele assinou. Ninguém é inssubstituível, Senhor Arik. Haverá um Raj após o Senhor.
Nossos termos não são discutíveis. Eu gostaria muito que o Senhor os aceitasse,

porque o Senhor é bem relacionado e influente. Isso é bom, mas não é precípuo.
O Administrador estava chorando. Saigão, pensava ele, estava quebrado. Mas

puxou o documento para si e começou a ler em voz alta:


“É devido pela administração de Saigão, na figura da Liga de Mercadores do

Oriente, à Coroa Real da Fortaleza do Sol, já observados os devidos descontos

legais dos impostos instituídos pela Bula Tantalus Regnus, os percentuais de: trinta
porcento do lucro presumido na venda das mercadorias em estoque na data

corrrente, a serem pagas todo o Havdalá...”


Raj Arik, sacudiu a cabeça inconformado. E mais uma vez argumentou: “Eu não

posso pagar imposto todo o Havdalá sobre uma mercadoria que não vendi, e que

posso nunca vir a vender. Se assinar isso, estarei decretando o fim de Saigão”
Tantalus levantou, empurrando a cadeira para trás.

O Raj deu um salto. Muito bem. Mesmo que eu tenha lhe ofertado proteção das
rotas de comércio, oferecido suporte irrestrito para transporte de mercadorias, tenha

dito que vou comprar os seus insumos para alimentar os meus exércitos. Que vou
construir um império consumindo os seus produtos para fazê-lo, o Senhor me diz

não. Eu só posso concluir que o Senhor não é um bom administrador. Em sendo um


mau administrador, o Senhor deverá ser substituído. Quem é o seu sucessor?

Arik ficou em silêncio. Tantalus Ágoras socou a mesa e o adminstrador piscando


assustado falou que o próximo é eleito pelo conselho. Pois então o Senhor vai

convocá-lo, e eu vou ficar aqui como seu hóspede. Até que o Novo Raj seja eleito. E
sentou, cruzando os pés sobre a mesa.

Porque não me mata de uma vez?, disse o mercador sendo segurado na cadeira
pelos guardas de Tantalus. Eu não o mato agora, Raj Arik, - e engoliu o vinho da

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taça, de uma só vez- porque EU POSSO matá-lo depois. Assim, desde o momento

em que eu entrei nesse Palácio, o Senhor já era um homem morto.


E apontou na direção do vinho. No entanto, disso, eu aceito pagamento em espécie.

E todos os soldados presentes, riram.


Tantalus deixou a mesa e voltou para o acampamento.

Mas foi direto, cruzou por entre as barracas como se traçasse uma linha reta,
evitando todos que vinham na sua direção, empurrando e gritando para que saíssem

da frente.
Puxou o pano grosso da entrada com força, colocando-o nas alturas.

Arrancou a pequena adaga que carregava na cintura e se pôs a esfaquear a mesa


descontroladamente.

E respirou fundo muitas vezes, mas ele sentia aquele tremor e fogo intenso
subindo e apertando o peito. E então sentiu uma movimentação atrás de si. Uma

pessoa havia entrado na barraca.


Uma mulher, com o corpo completamente encoberto por um longo traje preto.

O formato dos olhos amendoados denunciava que era uma mulher.


Ele pegou a adaga e foi na direção dela. Mas aquela fitas verdes vibrantes o fizeram

parar. Ele não podia ver o rosto dela, mas somente seus olhos através de um fino e
quase transparente véu preto. Ela estendeu o braço. Um documento.

Tantalus olhou para as mãos da mulher, enluvadas, e desconfiado, puxou a


folha enrolada. Omesmo contrato que o raj não quis assinar, assinado por ele.

Como? O Rei perguntou, colocando rapidamente a faca no pescoço dela. Foi um


olhar direto para os olhos de Tantalus, e e era forte, e desafiador. E entrava, ia

fundo, na direção do peito, rasgando. Tantalus apertou a boca, com raiva e devolveu
o olhar para a mulher. Como? Ele insistiu.

Eu tenho meus meios. Ela disse, projetando ainda a sua pungente fita verde
nos olhos igualmente verdes do Jovem Rei que a amaeaçava. Mas há um preço. Ela

disse, colocando as mãos no meio das pernas de Tantalus. Quero sua semente.

86
Ele segurou a mulher pelo pescoço, como que fosse enforcá-la. E então a

empurrou para longe de si.


Deu uns passos para trás socando o antigo ferimento, e ficou murmurando

uma coisa inaudível.


A mulher se aproximou muito devagar de Tantalus, enquanto os musculos

dele tremiam. Ela não tinha medo, como os outros, Aquele fogo e frêmito que ele
bem conhecia, como quando ele rangia o maxilar e aguentava tudo, tinha poder. E

bateu incessantemente no ferimento.


E quando a mulher se aproximou dele, seu rosto queimou. Veio aquela rocha

líquida incandecente de um homem de pedra ali dentro. Pusando sob pressão.


Então se virou na direção dela, e ela veio para beijá-lo. O que ele evitou, segurando-

a pelo pescoço, masntendo-a distante. E a levou na direção da mesa. A


desconhecida levantou a mão na direção do rosto de Tantalus, e escorreu seus

dedos sobre a máscara de couro, a empurrando para cima. Ágoras estava ofegante,
e seu olhos eram como duas chamas alaranjadas, flamejando na escuridão. Então a

máscara caiu, e seu rosto ficou á mostra, com aquela longa e profunda cicatriz, que
atravessava todo o lado esquerdo. Então seus olhos mudaram de expressão, como

se ela o reconhecesse.
Tantalus se deixou ser visto por ela, com o prazer iníquo que lhe era

característico.
Ela estava prestes a tocá-lo novamente, ao que foi segurada com muita força

no pulso. Ágoras forçou mais o corpo dela contra mesa, mantendo-se distante.
Sentia aquela agonia vindo, como se fosse arrrancar a goela dela, como se fosse

esmurrá-la tanto, que colocaria crânio exposto. Mas não, ele puxou a camisa com a
mão, rasgando a flanela, e baixou a calça de montaria, ficando nú. Então seus

dedos se fecharam com tanta força em torno do pescoço dela… Um força que ele
não sabia que tinha. Mas ela não morreu. Ficaram com seus olhares vidrados um no

outro.

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Tantalus Ágoras levantou, de qualquer jeito, as vestes dela, e de forma

violenta, pagou o preço que lhe foi pedido.


Antes de deixar a barraca, ela disse, sem olhar para trás Procure pela Gema.

E, a resposta que você precisa está em Shadai.


E foi embora.

Ágoras foi encontrado nú, no chão, ardendo em febre. Com ele estavam os
documentos que fizeram daquele momento, o marco do seu império.

Uma fratura

O Alto Sacerdote da Fortaleza do Sol estivera escutando o Rei por um longo


tempo. Tantalus o procurou lá na Escola, em seus aposentos, tamanho era sua

inquietação, ainda no meio da noite alta, na escuridão que precede o Havdalá.


Parecia fora de si, transtornado.

O Rei se apresentara a ele com uma fragilidade que só vira na infância.


Quando queixava-se que não podia ver a mãe. Ou então, que ela estava sofrendo

sozinha e ele nada podia fazer. Achava afinal, que era realmente feito de Jade.
Jamais colapsou, apesar dos horrores que viveu ainda menino. Às vezes o

Sacerdote se perguntava se Tantalus sabia que sua mãe havia lhe inflingido um
ferimento mortal. Se pergunta se sabendo teria ficado o menino em silêncio,

carregando aquele fardo sozinho. Aquela cicatriz enorme que carregava abaixo das
costelas. Se ele não sabia, seria uma benção. Afinal, que tipo de veneno pode

fermentar na alma de um homem, anos a fio, suportando o peso de reservar para si


que sua genitora o queria morto.

E ele estava ali, exposto assim, uma última vez.


E depois de ouvir aquele relato verossímil, de um homem que não costuma

estar enganado, tomou aquela como uma preocupação genuína.


Sentiu surpresa, mas de certa forma saboreou um sentimento de prazer, por

considerar que aquela forma como Ágoras se revelava, era uma fratura para o

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Homem de Pedra que ali estava. Sua impotência externada diante daquela fala

estranha, que o Sacerdote chamou de “um ato de confidência”, era como um fôlego
novo para o Alto Clerista. Vinha se sentido ameaçado e desprestigiado pelo Rei.

Ao fim, Edir de Gramateus sentiu a espinha gelar.


Aquela figura que lhe fora descrita, era familiar.

E então, tudo ficou claro para Edir, desde os acontecimentos em Saigão,


quando o Rei foi encontrado nú na barraca, ardendo em febre. Delirando com uma

bruxa de preto que levara embora sua semente.


Trouxeram-no às pressas de volta para casa. Tendo saído poucas vezes de

seus aposentos. Permitindo, tão somente, a presença da sua copeira e devolvendo


os alimentos que recebera, intactos.

Recusara-se a ver o Alto Sacerdote. E mandou que extinguissem o fogo da


lareira, que entopiu de roupas e outros objetos.

Ficava na escuridão, sem deixar que acendessem uma vela sequer.


Os soldados de Ágoras deixaram de ver o seu valoroso Rei passar entre as

fileiras campais, pelos estábulos, pelos barracões de treinamento. Havia rumores de


que fora destemperado, um homem de pedra quebrado.

Muitos se recusaram a acreditar, mas Tantalus não ia à Luz, falar aos seus,
dando provas do contrário. E há tanto tempo estava assim, que nem mesmo os

Generais conseguiam dar desculpas ou inventar mais histórias sobre o que se


passava.

E, de repente, estava ali, esperando uma resposta, no auge da loucura.


De imediato não lhe ocorreu nenhuma resposta capaz dar fim àquela angústia

do Jovem Rei. Mas ele escutou atentamente tudo, ficou intrigado e achou até
instigante a parte final onde foi dito a Tantalus “Procure pela Gema. E, a resposta

que você precisa está em Shadai.”, Edir, inclusive anotou.


Mas pegou um livro, que tinha lembrança, trazia a lenda de uma “Gema”,

dentra as muitas lendas de pedras maravilhosas, de safiras, esmeraldas, lapis-lázuli.

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Fez isso na intenção de aliviar a angústia daquele homem. Chamava-se O mito do

herói na litúrgica do Primeiro Filho, por Patrono Parminedes de Niceia. Talvez tenha
lido aquele livro um vez. Folheado mais algumas vezes. Acreditava tratar-se de um

trabalho raso, com linguagem pobre e pouca força retórica. Esses jusnaturalistas,
sempre tentando subverter as grandes reflexões litúrgicas, transformá-las nas suas

construções pessoais sem nenhum fundamento doutrinário. Pensou, enquanto


puxava as vestes para se acomodar em um banco ao lado do leito. Os joelhos

rangiam muito, ultimamente.


Então abriu o volume e procurou pela passagem que recordava: “após

econtrar a gema na profundeza da montanha o Primeiro Filho não quis compartilhar


a jóia com os demais. Quis a sua beleza, a sua luz, para si, e somente para si.

Tamanho era o seu desespero em perdê-la, que ao saber das ostes que se moviam
contra ele, para resgatar a pedra das profundezas das montanhas, ele a engoliu. E a

sombra daquela pedra o envenenou. E ele foi corrompido pela avareza, pela

mesquinhês e pelo ódio…” Blá, blá, blá, blá. E há essa outra passagem aqui “…

quando tomou a poção do vomitório, arrependeu-se dos seus crimes. E sumiu para
sempre, deixando a gema com as ‘parideiras de luz’. Veja-se bem, que o termo

empregado se refere às mulheres que o auxiliaram na remoção do seixo. E à partir


dessa expressão não pode-se concluir com certeza, o local a que pertenciam essas

nobres mulheres. O texto indica que o Primeiro teria caminhado “através das
montanhas”, sugerindo que ele tenha atravessado alguma cadeia montanhosa. Ora,

ou são as cadeias do corredor dos chacais, pois se fossem as cadeiras do ermos do


norte, o Primeiro, só teria as terras de Tocasnegras para ir. Então se diz que ele

“chegou a uma gruta’, e que ‘depois partiu pelos campos’. Pode-se identicar a região
geográfica situada entre o Rio Ausar e as Terras de Evreskaya, passando por

Represagorda, até Porto de Gaivotas.” Essa é a parca informação que possuímos


sobre uma pedra, dentre incontáveis lendas de “gemas”. Mas é uma das únicas,

senão a única, de que tenho conhecimento, que se refere à “Gema”. Essa gema que

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jamais foi encontrada. Essa gema que muitos procuram, cujo fragmento está na

Ilhadura, com o Senhor Elder de Portopequeno, sob os cuidados do Patrono Esíodo


de Portopequeno. Eu mesmo girei a Roda, no ultimo festival. Mas ela disse para

irmos à Shadai, encontrar uma resposta. Então irei. E trarei a localização da pedra,
custe o que custar.

E fechou o livro, puxando os cobertores para cima do Rei, que havia pegado
no sono, sobre o catre humilde do Alto Sacerdote.

Mãos que curam

Nos primeiros dias a sineta tocava incessantemente. Àgua, frio, alívio, abre
janela, fecha janela. Vinho, vinho, vinho.

Uma noite ele saiu porta à fora, na madrugada. Voltou no outro dia, direito
para a cama. Ali ficou deitado e pouco saía de lá, desde então.

Então a sineta começou a tocar poucas vezes. Água, pão, alívio.


Na ultima semana, parára de usar a sineta. Ficava murmurando coisas nos

cantos do quarto. Então a cama rangia, e rangia, porque estava dormindo e


sonhando coisas que o faziam tremer sob os lençóis. Escutava as queixadas dele

batendo.
Não comia há dias. Pelo cheiro a copeira presumia que andava se aliviando

por ali mesmo. Ela só fazia arrumar algumas coisas, cujo barulho não fosse
incomodá-lo. E depois se deitava na enxerga, esperando ser chamada. A barriga

estava grande e dura, e já era difícil levantar e deitar no chão.


Um dia escutou a voz rouca. Frio, frio. Ela ficou surpresa, era a primeira vez

que o rei falava diretamente com ela.


Então a copeira levantou desajeitada e passou a mão nas cobertas para tapá-

lo. Mas ele não estava lá.


E foi tateando até a cadeira, também não estava lá. Nem chegava perto da

lareira, desde que entrou para o quarto. Frio.- de novo. No canto, não se enganva.

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Ele estava encolhido e não vinha nenhum calor do seu corpo. Então com dificuldade

ela foi o ajudando a levantar, e deitar na cama.


O silêncio era tão grande, que por horas não sabia ao certo, se ele estava

vivo ou morto. Mas vinha um gemido ou uma respiração arfava. E a copeira


confirmava que ele ainda estava ali.

Tinha episódios, do que ela acreditava, ser um delírio de medo. Uma


assombração do passado. Não, não, não, mamãe, por favor. Dói, dói, mamãe, não!

Ele gritava. Chamava por pessoas, nomes de homens, de mulheres. O que a


copeira fazia, no mais, era tapá-lo e estar ali, pois quando ele sentia qualquer

proximidade, encolhia-se para evitar ser tocado.


Mas ela sentiu uma dor na barriga. E gemeu. E o bebê estava se contorcendo muito,

já sem espaço, o chão estava muito frio. E eram fisgadas muito fortes, que faziam-
na sentir uma quentura no meio das pernas, como se fosse explodir. E o bebê

remexeu muito, de um lado para o outro. E ela tentou sentar, mas as dores nas
costas estavam muito fortes. E ela aguentou aquela dor e empurrou muito as mãos

na direção do chão, até que sentou.


Então ela o sentiu, ele estava muito próximo dela, em cima de suas

enchergas. Mas não se movia, estava parado.


A copeira continuou fazendo força para levantar. E a barriga estava muito

dura, como se fosse rasgar ao meio. O bebê não parava e amontoava-se de um lado
para o outro. Mas ela ficou de pé.

Uma sensação nitida, do ar, dos corpos, O homem se movia, talvez se


aproximando.

Foi que o peso do chales sobre seus ombros foi diminuindo. A lã grossa foi
escorregando lentamente, como se estivesse viva, saindo sozinha. Uma vibração

fina entre os espaços anunciava a iminência de um toque gelado sobre a espalda,


que forçava sua blusa para baixo. E então o mesmo contato do outro lado. Uma mão

gelada e magra puxou os cordões da camisola que ela vestia, pressionando com

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delicadeza o pano para baixo, fazendo-o escorregar sobre os seios, sentido uma

lufada tênue, até chegar ao chão. Movimentos à sua frente traziam-no para mais
próximo dela.

O toque frio de uma mão vacilante, foi aos poucos se fazendo sobre a pele da
barriga. Então veio um espasmo, o bebê se contraíra num grande movimento. A mão

rapidamente se afastou. O ar tocou com rapidez na pela da copeira, anunciando


duas mãos muito frias que seguraram sua barriga. E eram tão geladas que pareciam

estar lhe sugando o calor do corpo todo por ali, de uma só vez. E aquelas mãos
trêmulas se espalharam desajeitadas, sobre a barriga, trazendo consigo a

confinidade de uma respiração cada vez mais exasperada, como de alguém tiritante
soltando ar pela boca. E veio um abalo, uma tensão estabelecida entre o sim e não,

entre tocar e recuar, entre o permitir e o privar. Arrebaratam-lhe da angústia da


mercê os lábios que a tocaram na barriga, lábios frios e imóveis, cobertos de longos

pelos hirsutos.
Então ela aproximou a sua mão daquele que ali estava. E a extremidade dos

dedos esquálidos da copeira encostaram no cabelo dele, Era ralo estava


bagunaçado. Fino e macio, como de um bebê. E seus dedos foram descendo,

estabelecendo timidamente o contorno das orelhas, da testa levemente


proncunciada, de pele seca. Sobrancelhas fartas porém não duras, macias como o

cabelo. E havia olhos fundos, molhados e pequenos. Deixou o pouco de carne dos
indicadores passarem lentamente sobre seus cílios, os levando de um lado para o

outro. Eram longos e não eram muitos. E descendo havia uma barba, farta, porém
aveludada, que ela apalpou com muita leveza. Depois, moveu as mãos de volta ao

rosto, notara algo ali. Algo muito diferente das faces que já conhecera na escuridão.
Com candidez deslizou o pomo do dedo onde havia um sulco profundo, cujo

interior ela experimentou muito lentamente. E aquele ferimento possuía as bordas


altas, levemente grumosas e esponjosas. E era longo, pois inciava pouco acima da

sobrancelha esquerda e descia, livrando o olho, mas continuava no seio da face, e

93
depois se perdia entre a barba. Seus dedos subiram delidacamente até a boca.

Lábios grossos, com as bordas firmes, no formato de um coração, mas estavam


ressequidos e com muitas rachaduras. E depois ficaram molhados, seus dedos

foram ficando umidos, assim como aquele rosto todo. Então as mãos dela estavam
se afastando, enquanto a copeira permanecia imóvel. O homem levantara. Era muito

mais alto que ela, porque quando estendeu os braços para tocá-lo, alcançou os seus
quadris.

Então duas mãos encontraram as suas, aquelas mãos frias, de dedos longos
e duros. E a conduziram para cima, através do tronco. Os músculos pelos quais ela

deslizava, se contraíam, como se não nunca tivessem experimentado o toque. E


uma plumagem rala cobria o peito eriçado, que aos poucos deu lugar a uma carne

de pele dura. E havia um declive, uma cavidade no ombro, onde a pele convergia
para o centro. Tinha textura de ranhuras, como uma lâmina dágua, que ao colapsar

congelou. E era grande e seus dedos se demoraram naquela pele lisa e dura. Até
serem conduzidos, lentamente para baixo, através das costelas, magras e salientes.

E abaixo delas, do lado esquerdo. Havia algo ali.


Era outra cicatriz, porém mais pronfunda, Fina, com bordas lisas e pouco

altas, e levemente protuberante. O homem estremeceu. Mas se deixou ser tocados,


e os pequenos dedos magros e finos, porém duros se demoraram ali, resguardadas

pelas mãos frias e trêmulas, que até então conduziam as suas.


Até que, subtamente, suas mãos foram abandonadas, a aquela pesença

gélida foi a deixando aos poucos. E sumiu, entre as paredes frias, entre os espaços
escuros. Entre as vagas de ar que cruzavam todas as frestas daquele quarto. Sumiu

nas profundezas de um silêncio tão punjente, que só as fitas brancas de Liz eram
capazes de compreender.

Ela escutou o estalido das madeiras da cama e um suspiro cansado.


Olhou para onde estariam posicionadas as suas mãos, voltadas para o rosto.

Mas continuava cega. Sua escuridão eterna e solitária.

94
Mas havia algo nas suas mãos, algo como uma poeira, feita de pequenos

grãos. E eles, ainda que finos e muitos pequenos, eram pontudos e ásperos, como
pequenos cristais. No entanto eram duros, muito duros. Duros como a própria pedra.

Uma missão para o Prestante

Irion, vai à biblioteca de Minas em busca de alguns volumes a pedido do seu


Sacerdote. Chegando lá tem um encontro com um bibliotecário misterioso, que

oferece uma troca de informações ele quer a cópia do mapa das novas rotas de
comécio, que estão em seu navio, em troc vai lhe a página de um livro onde é

revelada a existência de uma espada capaz de brilhar na presença da gema.

Fofocas na cozinha
Meus dedos doem e estão com calos. E ainda tenho todo aquele cerro de

batatas para cortar! Disse Ailin, ajudando na cozinha.


Ora, cale a boca, e continue cortanto essas batatas. Porque não é apenas um

cerro de batatas, há repolhos, maças, cenouras e muito alho para descascar. E


devemos preparar carneiro frio em lascas, que é o favorito do Rei. Seis porcos, para

tostar em fogo brando com mel de laranja, cortados ao meio. Setenta pojos
1 destrinchados que estão chegando pelo Rio, que queira D’us, não se atrazem. Uma

carroça de aveia para o pão. Nove quilos de amêndoas para esmagar na pedra e
depois cozer seu leite. E ainda decorar o bolo, que virá da Casa Doce, na Vila

Oeste. -Retrucou Marlene, chefe da cozinha, enquanto trazia para dentro, no muque,
duas caixas de madeira repletas de beterrabas.

Mal saiu daquela pocilga que virou o aposento real, já nos ordenou trabalho!,
retrucou, Ailin.

Já lhe mandei calar a boca!- ralhou Marlene, lhe jogando uma beterraba. Por
fim acabou-se a agonia de ver o pobre menino naquele sofrimento lá em cima. Já

veio ordens de que as meninas da limpeza entrem lá e esfreguem tudo. Deveriam

95
colocar um piso de madeira por cima daquelas pedras horríveis e escorregadias.

Aquele é ainda um dos únicos quartos que possuem cara de caverna nesse lugar!
É! -e continuou Ameli, destrinchando um quarto de carneiro,- E parece que já

foi enviado um homem à Shadai, para que avise o Alto Sacerdote que o Rei saiu do
claustro. E quando chegar aqui, vai nos forçar a cozinhar outro banquete

novamente. Vai precisar comer muito, nosso Reizinho, dizem que está tão magro
como um mendigo. E ficou pensando, parada, Mas depois continuou cortando a

carne. Se bem que os magros são mais bonitos e charmosos. Não tão magros
assim, é claro! Na Vila Oeste são todos muito magros, bem assim. E quando não,

são gordos e mal podem subir nas carroças sem ajuda. E lá na Vila Sul, Ailin, como
são?, interpelou, chupando a ponta do dedo que cortara com o cutelo.

Ah.. São meio que homens. Como.. - Gaguejou Ameli.- São iguais, todos
iguais. E não prefiro nenhum deles, falam de guerra, te deixam com todo o trabalho

de casa e depois ainda te chamam de louca quando se reclama da letargia deles.


Criamos os filhos, limpamos a casa e trabalhamos fora. E ainda assim não podemos

opinar quando pensamos, sobre o que pensamos e se discordamos ou não do que


pensam.

Ameli!- Disse horrorizada, Aillin, virando-se com o dedo na boca.


É verdade! A mais pura verdade!- Eu queria ser uma Patronesa... Como

Miriam de Tocasnegras. Ela é muito boa. Eu já a ouvi falar no Parlatório do Templo.


E sabe, ela diz isso. Que nós mulheres temos tanto direito quanto os homens, que

devemos erguer nossas vozes. E ela disse que há uma passagem no Livro dos
Mistérios que fala bem disso. O Quarto filho foi uma mulher. Uma Leoa Guerreira.

Que só era tocada quando permitia, que libertava mulheres escravas e as ensinava
a lutar contra a opressão masculina, lá no meio do deserto. Que elas destruíram

exércitos e só tinham filhos quando queriam, não sendo obrigadas a isso por
nenhum homem. Explicou Ameli, levanto-se para pegar mais batatas.

Que conversa estranha. - replicou Ailin e depois ficou em silêncio.

96
Estranho é ser espancada no meio da noite quando seu pai chega bêbado em casa,

e sua mãe está com tanto medo que não pode te defender. Ou quando riem na sua
cara por dizer que quer ser soldado, mas que mulher não é feita para a guerra. Ou

ainda quando te fazem descascar batatas na cozinha, e você queriam estar lá fora,
pondo arreios nos cavalos. Isso é estranho. E estranho também é achar que tudo

que falei é normal e certo. Ameli foi firme e não se importava em ser desabonada
pelas caretas de Ailin.

Marlene arrancava as ramas das beterrabas com um facão. E também fez a


sua fala na conversa: Ameli tem razão. E se um homem vier pra cima de mim, eu

arranco o pinto dele. E passou o facão com força na rama.


Todas riram muito.

Mas, no canto, ouvindo tudo, estava Massara. Quieta, escaldando os panos


da cozinha. Desde que trabalhava nas cozinhas de Harpis conhecia a lida de uma

casa real. E quando Susana a pediu que ela ficasse na Fortaleza, para que se
tornasse seus ouvidos ali, ela sempre soube que a cozinha seria o melhor lugar para

isso. E desde então ouvira tudo que se dizia no castelo. Desde a menina cega que
tornara-se copeira do Rei no lugar de sua amiga, Selena, que fora pega tentando o

envenenar, do comboio dos guardas que destruíram o vilarejo do córrego atrás de


uma coisa mágica que não foi encontrada, de como pretendiam atacar Vaudeferro e

e da estranha insistência do Rei em fazer ser atendido por uma copeira grávida e
cega.

Rash, rash.

Edir repousava os dedos naquela velha posição. Enconstando,


diametralmente, as extremidades. Porém havia aquele movimento persistente de

asfatá-los e aproximá-los, de forma alternada, que transparecia uma inquietação.


Suas sobrancelhas fartas moviam-se para cima e para baixo, enquanto procurava as

palavras adequadas.

97
Meu Senhor, disse, rompendo o silêncio que sucedia as ordens de Tantalus

Ágoras. E fez uma pausa dramática e longa. Ouvia-se somente o ir e vir do escovão
sobre o assoalho, nas mãos firmes da nova copeira, de olhos brancos leitosos,

mirando o chão. Temo que um sítio ou até mesmo o fechamento do Templo possam
ser medidas precipitadas e impopulares. Muitos vêm ao Porto, querendo aliviar as

dores da alma. Negar-lhes seus Deuses… Bem, isso seria uma postura tirana, que o
colocaria contra os peregrinos. Contra o Alto Conselho, e até mesmo contra a

Rainha e o Alto Sacedote da Cidade da Lua, Fineas seria uma grande preocupação
também. A relação entre as cidades gêmeas está fragilizada, meu Senhor. Como

poderemos viver por muito mais tempo sem guerras? Necessitamos da velha
harmonia entre os lideres religiosos e militares. Precisamos do apoio da Cidade da

Lua, de seus governantes. Eles representam do apoio dos populares, dos


Mercadores, dos Donos das Glebas Clericais. Foram eleitos pelo Alto Conselho.

Nâo podemos deslegitimá-los sem começar uma guerra. Uma grande e imprevisível
guerra bem nos nossos portões. E além do mais, Nosso Senhor acaba de sair de

um estado de morbidez. Deve recuperar suas forças.


O Alto Sacerdote da Fortaleza do Sol permaneceu apreensivo, aguardando

uma resposta do seu rei.


A máscara escondia a expressão no rosto de Tantalus.

As chamas crepitantes que ardiam na sua lareira ainda não haviam sido
acesas desde que saíra do claustro. Mas ele mirava a madeira apagada, e seu

extinto pensamento de fogo, em silêncio. Então foi arrebatado por uma série de
pensamentos que o arremessaram para fora de si.

A copeira esfregava o assoalho. Rash, rash. Rash, rash.


E por fim quebrou a quietude, virando-se para Edir.

Eu pouco ligo para o que o Alto conselho delibera. Pouco ligo para essa maré
de famintos e miseráveis que batem ao Portões da Cidade da Lua. Não há

importância para mim. Tampouco pretendo governar expressando

98
representatividade das figuras Clericais, suas vestes são drapejantes e seus

truques, baratos. O que vence a guerra é o ferro, o aço, o punho. Pouco me


interessam os assuntos das Escolas de Mistérios. Eu serei a mola mestra dos

acontecimentos, eu serei o Egirão 2 dos povos. Aqui, nessa mesma sala, eu quase fui
envenenado por uma assecla da Rainha da Cidade da Lua. São mais de meu

interesse os serviços da Torre Verde, de todos os estudiosos das demais Torres. E


Esses podem me servir. A organização secular das Escolas de Mistérios serve

somente aos seus próprios interesses. Aquilo que não me serve, irei eliminar.
Portanto, meu caro e fiel Edir Gramateus de Shadai, eu lhe digo, eu vou tomar o que

quiser. E farei como me aprouver. Eu ressurgi das minhas próprias cinzas.- e olhou
para a lareira escura- Eu vou voltar a ser uma chama que arde e se alastra. Vou

reduzir meus inimigos à cinzas.


Engoliu o vinho da taça de uma só vez, como se estivesse devorando tudo

que se opunha a ele.


Senhor, se me permite, então, eu gostaria de ajudá-lo, conheço um truque,

como bem colocado pelo Senhor, que poderei executar para colaborar de maneira
menos invaisva para a consecussão da sua vontade. Na Lua sangrenta de hoje,

elimanaremos seus inimigos na cidade gêmea. Que a sua vontade seja feita. Tu a
tu.

Tantalus Ágoras assentiu com a cabeça, e com um aceno de mão dispensou


o Alto Sacerdote.

Voltou a mirar as lenhas úmidas, sentando-se na sua poltrona, em frente à


lareira.

“Vou queimá-los todos.”, falou para si mesmo, enquanto a porta batia.

Rash, rash. Rash, rash.

Os Mestres em suas escolas misteriosas.

99
O Alt Alto Sacerdote cruzava de um lado a outro do seu cômodo modesto, no alto da

Escola de Mistérios da Ordem do Sol. Estava determinado a avisar o Alto Sacerdote


da Cidade da Lua sobre o ataque. Não sabia como fazê-lo sem ausentar-se da

Fortaleza.
Um perdigueiro. Pensou. Poderia enviar um perdigueiro com uma mensagem nas

entranhas. A mensagem deveria ser clara.

Mas um perdigueiro ofereceria riscos. Poderia ser morto, ter seu caminho e destino
evitados. Mensageiros são pontas soltas. Concluiu. Não se daria ao luxo de arriscar

demais.
Seu orgulho estava ferido; truques, disse o rei. Uma ordem milenar resumida, por

um traidor infantilóide, a homens de vestes drapejantes e truques baratos, pensava.


Logo eu, que sempre o apoiei. Fui EU quem o fez Rei. EU o encobri no conselho

Clerical, fazendo aquela maldita magia de sangue, que transferiu os efeitos do soro
dos honestos e do Mel de estenio para mim.

Se eu ousar demais, morrerei. Se eu não avisá-los, serei um traidor para o


Conselho. Um traidor para todos os Mestres e Sacerdotes, Sacerdotisas e

aprendizes, em suas escolas de Mistérios, em suas Ordens.


Teria pouco tempo. A lua vermelha ia surgindo no céu. Um ritual para eliminar os

inimigos do rei, para trair os seus, precisaria de muitos ingredientes. Um velo intacto
de lobo negro. Uma tina de banha morna. Um punhal de ouro e aço, banhado em

sangue de Rei. Uma liturgia em Copta. Um objeto de Susana. Sangue. Uma magia
de Sangue.

Aquela caixa. Aquela pequena, escondida e empoeirada caixa, que Edir Gramateus
visitava com frequência. Uma mecha dos cabelos da jovem Susana, com que fora

presenteado naquela despedida. Seis décadas se passaram desde aquele dia.


Jovens corações se quebraram, seguiram suas responsabilidades. Susana ainda

tinha os mesmos olhos, cabelos e pele. Recusava-se a parecer como a experiente

100
mulher que era. Seus pensamentos deveriam se voltar para a Rainha da Cidade da

Lua por uma última vez.


O sacerdote parou, uma epifania.

Talvez avisando Ben Adam de Quran, o Rei da Cidade da Lua, através de uma
profecia… Sim! Faria com que tudo parecesse uma profecia. Ninguém desconfiaria

de si. Ben teria tempo de evitar que Susana fosse ferida. Tudo fazia sentido.
O ritual estava escrito em um velho livro, copiado e glosado na Biblioteca de Shadai,

sua terra natal. Era uma obra grande, com meio corpo de comprimento. Grandes
desenhos e diagramas. Com liturgias desenhadas em três línguas: Copta, Bo e

Yadish. Carregá-lo era uma tarefa que envolvia no mínimo, duas pessoas. Suas
folhas eram de linho dupla, prensado à óleo quente. Lavadas com água régia diluída

e secadas nas estufas da costa de Shadai. A ilha seca e desértica que abrigava a
bliblioteca de mesmo nome. Copistas, estudiosos glosadores e Senhores de

Mistérios eram frequentadores assíduos da ilha, pobre de natureza, rica em


conhecimento. Edir Gramateus fora em retornou em algumas ocasiões até a ilha,

para encomendar cópias e fazer pesquisas na biblioteca.


Sempre na esperança de tonar a ver a Prefetiza de vestes negras. Não era um

Bardo naquela época, sequer sabia que ela se tratava de uma proscrita de alguma
ordem. Provavelmente mandada embora de sua terra, proscrita, e condenada a usar

a burca negra. Mas ela lhe dissera, e aquilo mudará sua vida, que a magia de
sangue era forte. E assim que sagrou-se Sacerdote, começou a adicinar pequenas

quantidades de sangue em suas magias, ainda que sabendo ser proibido. Uma
profanação.

Depois abandora o hábito. MAs como uma droga aquilo voltava à sua mente. E
quando precisava de uma magia poderosa, recorria aos livros de magia de sangue,

todos proibidos pelas escolas de mistérios. O sangue é do homem. Não é elemento


natural. A perda do sangue é a morte. A magia de sangue é a morte. Agora Sabia

disso.

101
Mas o livro, não era um livro difícil de encontrar entre seus pertences,

organizados no pequeno aposento. No entanto, removeu uma série de outras obras


que repousavam sobre o volume. Após identificar o procedimento o leu com atenção

e cuidado, embora seus olhos estivem enuveados, marejados, não por causa da
poeira.

Edir Gramateus orou por algum tempo. Tomou uma vela de sebo preto, a acendeu.
Quando chegasse no fim, e houvesse a chama já extinta, após ser consumida, então

Ben Adam seria chamado a receber suas mensagens, na forma de uma Divinação.
O Bardo do Sol mergulhou as mãos na tina de pedra, onde ainda estava a

água Sagrada pelos primeiros raio da Estrela do Dia. Começou entoando um Liturgia
em Copta. E assim continuou até perder os sentidos.

Quando acordou, sacudido pelo seu Fiel Prestante, O Rei já estava nos seus
aposentos e a vela começava a derramar suas primeiras gotas de suor.

Vejo que se prepara, meu caro Mestre. Disse Tantalus Ágoras, dispensando com um
aceno os três guardas que o acompanhavam. Ele foi retirando as luvas e as

entregou para o Prestante. Bateu o pé no assoalho, testando o madeiramento do


quarto. E observou o lugar, admirando os objetos e inúmeros livros.

Tomou um volume que estava sobre a escrivaninha do Sacerdote: Rituais Sacros de


Finéas, Uma Leitura dos Mistérios após as Invasões Boreais. E folheou o livro com

desdém. Que ironoia! Rituais de Fineas… Velho e antiquado. Vamos, faça seu
truque. Quero o Rei e a Rainha mortos.

Edir tentou pensar em algo rapidamente. Sem sucesso. Eu estou me preparando,


como o Senhor disse. Ainda faltam ingredientes. Precisarei de mais tempo para

conseguí-los...
Uma queda. Interrompeu o Rei, rispidamente, virando uma ampulheta de ponta

cabeça. O Senhor tem uma queda, precisamente. Uma queda da areia que está
nesse conta-tempo, para fazer o seu truque e provar que este local ainda é útil ao

reino. Seu madeiramento está bem seco, e todos esses livros… Demorarão muito

102
menos que o tempo que lhe dei para provar a real utilidade desse local, caso não

possa me auxiliar no tempo estimado. O aguardo no salão do templo, Alto


Sacerdote.

Tantalus deu às costas. Ia saindo pela porta, quando voltou para pegar suas luvas,
nas mãos do incrédulo Prestante.

Edir Gramateus lembrou da noite em que acolheu Tantalus, ali naquela cama, em
meio à uma desolação jamais vista. Sentiu raiva de si mesmo por tê-lo feito e

guardou isso com rancor.

Um chamado na noite
O Leito do Rei estava morno quando ele despertou de sobressalto, e vazio. A

Sacerdotisa não estava ao seu lado. E por entre os véus de linho fino, penetrava a
claridade acinzentada da noite. O óleo ainda queimava na lâmpada, e o aroma

fresco de olíbano ainda vagueava pelo aposento. Ben Adam de Quran calçou as
sandálias e apanhou suas vestes, que descansavam à cabeceira, em um pequeno

altar de granito. O manto branco, vestiu, por sobre a camisola de linho grosso, e,
unindo suas pontas ao meio do peito, atou um nó. Tomou o amuleto do abutre,

finamente lapidado em esmeralda e adornado em prata e ouro. O repousou sobre o


peito, pronunciando a oração da Mãe, em Copta, que dizia mais ou menos assim:

“Oh, Primeira! Senhora és da consciência una que alimenta o mundo. Pairastes

sobre as Cidades Anciãs ao abandonar sua morada ao lado Hor-ohus. Emerges dos
pântanos e curas meu ombro direito. Tornar-me-ás membro do Barco Divino quando

me juntar a vós e ao Soberano Sacerdote. Hoje vivemos no mundo decretado


outrora a ti. Minha Mãe, protege-me, e transfira Seu poder à mim, para que assim

governe com sabedoria durantes os dias e as noites, utilizando-me com parcimônia


dos segredos por ti revelados. Tu-A-Tu.”

O Sacerdote tinha o coração acelerado. E seu sono fora interrompido por uma
sensação de desconforto. Uma necessidade de ir à Pia Batismal, ao Templo, às

103
vestes Sacerdotais. Ele tomou, também, do descanso sobre o altar, o Cetro de Íbis e

dirigiu-se ao salão principal para fazer os ofertórios e orações finais da noite, que
seriam seguidas pelas matutinas, no outro lado do rio mãe, pelo Sacerdote Edir. No

entanto a paz não estava com ele naquele momento. Uma estranha motivação o
tirara com muita antecedência do sono.

Os salões do palácio pareciam maiores e mais silenciosos que normalmente.


Havia na quietude uma aura assombrosa e cinzenta. Todos dormiam, ainda, estava

sozinho.
O Sacerdote Cruzou a Casa Real e tomou a passadela que levava ao templo.

Naquela noite o ritual contumaz queria mostrar-lhe coisas: as paredes do corredor


nas quais estava entalhada a história da civilização chamavam-lhe a atenção.

O Bardo sentiu como se aquele momento já acontecera. E ele estava ali,


como um espectador. Seus pensamentos se voltaram para Susana, que não estava

na cama. Para sua filha, que estava como todos os outros, dormindo.
Na saleta das vestimentas paramentou-se. Um medo crescia dentro de si,

retumbava no peito e reverberava na alma.


Algo está errado. Pensou. Com as mãos trêmulas pôs sobre a cabeça a coroa

Real, sentindo como se estivesse o fazendo pela última vez.

As vestes, o disco, os objetos da Sacerdotisa, pela primeira vez desde sua


coroação, permaneciam guardados no baú. Repousando sobre o busto. O

Sacerdote estava sozinho.


Alguns passos ecoaram pelos corredores.

Era Habet, enrolada no seu chales, fumegando na noite fria, com pressa e
imolada por alguma perturbação que a trouxera até o Bardo.

Eles estão batendo. São muitos e disseram que deburrabarão os portões se


não abrirmos passagem.

Quem?, perguntou Ben, surpreendido.


Os Guardas da Fortaleza do Sol. Respondeu, Habet, baixando a cabeça.

104
O Rei abandonou a saleta com pressa e partiu em direção ao templo. No

salão Central, após o vestíbulo, a água sagrada repousava dentro da pia. O


Sacerdote colocou as mãos imersas, e suas vestes também encontraram na água

gelada.
Pediu a Habet que preparasse dois cavalos e acordasse Bet.

Ele então fechou os olhos e entoou uma liturgia em Copta. Até desabar no
chão. E numa visão, presenciou acontecimentos que jamais pensou que

sucederiam.
Viu a Rainha Susana, com a Crescente tatuada em seu cenho adquirindo a

cor de um vermelho intenso. Seus olhos acompanharam-na até se distanciar. Ela


saiu em um transe profundo. Um lobo negro a esperava nos portões. Sumiram na

Noite. Em torno da lua havia uma auréola vermelha. Sangue na lua. Então soldados
com bandeiras negras. Uma velha ressequida queimando numa pira fúnebre. Um

colar de folhas de lótus com uma jóía negra. Uma mulher numa armadura negra.
Uma onda de sangue varrendo a plataforma continental. Uma mulher cega montada

em um garanhão vermelho. Um jovem caolho em uma ilha desértica. Um punhal


negro atravessando as suas prórpias entranhas. Sua filha morta sobre um tapete de

neve amarela.
A dor era tão insuportável que Ben acordou de súbto ainda com a sensação

de estar com a lâmina enfiada na barriga. Levou a mão ao tronco. Mas não havia
nada, estava só, no chão do templo.

Levantou-se rapidamente, e rumou para o vestíbulo. Do baú tomou uma


sacola e pôs uma série de objetos nela. Com pressa e aturdido. Retornou e tomou o

Cetro. Deixando a coroa sobre o busto real.


A visão foi tão assustadora, que Ben não conseguia se livrar da sensação de

medo, enquanto percorria os corredores do palácio, em direção ao estábulo.


Um baque após o outro, ouvia-se vindo da direção dos portões. Que a D’us

nos Proteja. Desejou.

105
Traidores na escuridão
Era noite alta quando Susana acordou, e foi conduzida por um chamado

irresistível, até às margens do Grande Rio. Caminhando por entre a mata da


montanha, escutava um chamado. Sentia sua presença familiar, uma vontade e um

desejo percorrer suas veias, desesperadamente. A marca da Deusa pulsava em seu


cenho.

A Rainha deixou que aquela força desconhecida a me guiasse por entre a


mata. Havia um lobo ao seu lado. E havia uma sombra com rosto de lobo. E por

horas havia um homem mascarado. E então ela via novamente o lobo.


Com os pés sangrando, cansada, correra descalça no mato gelado, entre

urzes e pedras. Galhos e pedregulhos afiados. Vestia somente uma fina camisola de
linho, fumegava e tinha o rosto branco como uma louça. Foi quando avistou a

margem do Grande Rio.


Seu coração batia violentamente, haurindo o peito. Tomada, estava, pelas

lágrimas, que lhe inundavam os olhos, turvando a visão: “Mãe, Deusa, Primeira, o
que queres tu, de tão humilde e fiel serva?”, “Marcada pelos segredos de Harpis, Da

Lua, Primeira, Água Viva! Que queres de mim, deste oráculo cansado? Dize-me! ”. A

Rainha caiu de joelhos às margens frias de inverno. Unindo suas lágrimas às aguas

calmas das margens recuadas do rio mãe.


No reflexo da água começou adentrar a imagem da Lua de Sorda, redonda,

amarela. Quando por um instante, quando estava plena, por sobre o rio, viu o sinal:
uma auréola vermelha a circundava. Então aquele chamado de desvaneceu. E uma

surpresa e um desatino fizeram-na perceber que fora vítima de algum


encantamento.

Havia sangue na lua, e escuridão ao seu redor. O Pingente de Lápis-lazúli


pendurado no seu peito, sabia que não poderia usá-lo, teria que enfrentar um perigo

sozinha. Só depois de algum tempo, saída do transe, Susana percebeu que suas

106
pernas estavam quebradas. Uma dor imensa percorria seu corpo, deveras, era hora

de usar o fetiche. Seu peito estremecia, estava muito frio. Ela tentou morder o colar.
Quebrá-lo para ativar seu poder. Mas estava frio, sua madíbula batia sem parar.

Uma pedra do rio. Não havia nada ali. Suas mãos, estavam enegrecidas. Seus
braços tremiam tanto que mal podia controlá-los. Uma bruma prateada jazia sobre a

superfície do rio, e tudo estava azulado. Mas uma nuvem prateada brilhou por cima
das águas e veio em sua direção, saindo do Grande Rio, contrariando a correnteza.

Ela esfregou os olhos, já não conseguia distinguir com precisão. Abaixo daquela
nuvem, bem na lâmina dágua, uma sombra densa arrastava-se. O lobo caminhava

sobre as águas. E pisou sobre as pedras ribeirinhas. Com o pelo negro, levemente
tocado por pequenos cristais de gelo. Seu manto varria o chão como um nevoeiro de

fuligem, deslocava-se lentamente, aterrorizando-me. Vozes torpes vinham das


sombras azuis da madrugada, recitando cânticos na língua primeira do povo ancião.

Um cheiro senil e uma mácula habitavam aquela escuridão, velhos demônios,


compunham aquela tenebrosidade disforme que se aglomerou ao meu lado, aos

poucos. Ela sabia quem poderia mexer com tal poder.


A escuridão que assumia a forma de um lobo negro, com inexpressivos olhos

brancos; ficou ali, vigiando, com a respiração curta e gélida. Uma magia de sangue
chamada quimera. Uma magia proibida para os Sacerdotes das escolas de

Mistérios. Não era Divina, vinha do sangue do homem na chama. Ele a atraíu para
aquela armadilha, e talvez o sangue que eu via na lua pudesse ser o seu prórpio.0

Nas vagas do seu pensamento, a imagem do jovem bardo que um dia quis ter
como companheiro, do habilidoso homem de fé em que se tornou, comandando a

Escola de Mistérios da Fortaleza do Sol. só podia ser ele. Pensava.


O lobo permaneceu ao seu lado, esperando pela morte de Susana, enquanto

uma das luas, a cheia, encaminhava-se ao horizonte. Ela contava o tempo, que
pareciam instantes, e percebiam-se já, os raios do alvorecer. Seu coração disparou

e o terror se apoderou de sua alma, afastando a presença da Deusa, dissipando as

107
brumas no Rio. Viu sua vida esvair-se, quando a lua tocou seu seio no infinito leste e

o sol irrompia o tênue manto marinho da noite, a Quimera, o lobo, abocanhou o


amuleto. Seu último alvorecer... Secoui, envelhecendo todos os anos que viviu e o

amuleto guardava, em apenas um segundo.


Seus olhos se fecharam sem ver ao menos o rosto da Deusa, sua grande

mãe. Seu corpo já estava duro, antes mesmos da última imagem que permaneceria
em suas fitas, se cristalizar no fundo da retina.

Uma fuga para a nova Rainha

Era Noite ainda quando a Princesa fora acordada por iniciadas do Templo. A
luz bruxuleava na lamparina fazendo sua sombra dançar na parede de mármore,

brincando com o movimento do ar. Lançava sobre o rosto de Hebet e Sunamon uma
treva obliqua. Mas a jovem via além das feições cerimoniosas das servas, via mais

que músculos inertes sob a pele escura dos povos do rio: via tristeza e
cumplicidade. E via preocupação. Sunamon de Harpis, mas estava tatuado na sua

nuca, Mirnov de Sabo, sua cabeça havia sido raspada recentemente para o ritual de
iniciação, onde todas as aprendizes recebem um novo nome. Aquele fica ali, atrás,

para lembrá-las do passado e de suas vidas antes de renascerem como aprendizes


de Preletores, Patronos e Patronesas dos Mistérios. Assim como todas, tinha

tatuado na nuca o seu nomes antigo, Betsheba de Lakismi. Agora Bet de Harpis. Era
um costume daqui.

Vestiram-na em silêncio.
Conduziram-na até o salão principal do palácio, onde Ben Adam esperava. O

silêncio era ritualístico, como de costume, o que a preocupava era a angústia que
vinha do Sacerdote: de pé a esperar, andava de um lado para outro. Seus passos

inquietos reverberavam pelo salão. Contavam sobre angústia e apreensão. Foi só


então que Bet escutou os baques nos Portões Centrais. Concluindo que seu

repouso havia sido interrompindo em razão de uma ameaça. As moças os

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acompanharam até os cavalos que estavam na saída continental do palácio, nos

estábulos.
O sol não havia nascido quando montaram, o Sacerdote de Harpis e a

Princesa, em seus cavalos vermelhos.


Mas não via sinal de sua mãe. Onde estaria numa situação tão extrema?

Pensou.
As urzes, durante a noite, tornavam a paisagem estéril e triste, emprestando

uma sensação de vulnerabilidade intimidadora. O montaria inquieta parecia


compartilhar da mesma preocupação de Ben Adam de Quran: nos olhos escuros e

opacos do Sacerdote havia preocupação. Seu olhar distante era uma porta aberta
por onde a alma havia fugido, o abandonado. Ora agitado, ora trêfego, como se

sentisse antecipadamente derrotado pelas circunstâncias.


As únicas palavras do Bardo, carregadas de distanciamento, foram de que a

Princesa rumava à sagração.


A jornada pela sagração era um ritual reservado à elevação ao trono; às

Senhoras de Harpis, às Guardiãs de Chésteb 3, e às Sumidades e Superioras do


Conselho Clerical4. Para o povo uma glória, para a Princesa uma consagração

precipitada e imatura. Realizada às pressas pela iminência de acontecimentos


desconhecidos. Porém uma coisa significavam aquelas palavras de Ben, não havia

mais uma rainha na Cidade da Lua.


Assim, às presas, iniciou-se uma jornada rumo À Neferthot: a montanha da

Primeira Cidade Anciã.


Ben Adam deu a benção e abraçou as servas do templo, e logo entraram na

noite silenciosa, rumo ao norte.

Onde estão?
O rei fica puo quando invade harpis e não encontra o rei.

109
Mais ao norte de Harpis

A Lua brilhante os acompanhou até os rochedos Cerpa, onde aos poucos ela
foi dando lugar a um majestoso nascer do sol, que entre as montanhas parecia ser

ainda mais brilhante. Bet contemplava a beleza ao seu redor, que ao longo do
caminho era deixada para trás, e que até então vinha saltando os olhos. Dos

rochedos era possível mirar a cidade do alto, incrustada no vale, à beira do Rio Mãe,
largo e caudaloso. Algo acontecia no Templo, pessoas se moviam numa agitação

incomum. Guardas se moviam nas sombras azuis intensas da noite.


À frente da Cidade da Lua, do outro lado do rio, encontravam-se as muralhas

da Cidade do Sol, ocres e grossas, fortemente guarnecidas. Revelavam o medo do


Tirano em ser destronado. Dentro daqueles muros, uma nuvem cinza crescia entre

os planos dos homens e aquele que a Deusa havia guardado para a Cidade.
Ela não entendia ainda como Tantalus podia espalhar tanta morte em um

mundo tão gentil. Crescera dentro dos portões de Cidade da Lua, educada e
treinada assim como ele, para tornar-se uma rainha, tornar-me uma Sacerdotisa,

que deve levar ao mundo a energia dos deuses, e não a dor ou a guerra, como ele
trouxe à Fortaleza do Sol.

Lembrava-se da Fortaleza do Sol vagamente. A única vez que esteve lá foi


quando houve a elevação de Edir a Alto Sacerdote da Escola de Mistérios da Ordem

do Sol.
Era inevitável pensar em sua mãe... O que havia lhe acontecido?

Não havia mais sinais para ela, que não o olhar temeroso de Ben Adam e a lua
cheia encoleirada por uma auréola de sangue. Uma perturbação que indicava que

algo desastroso estava acontecendo.


Seguiram uma velha trilha sobre os íngremes rochedos Cerpa, a cadeia de

montanhas que cerca A Cidade da Lua, afim de alcançar dentro de dois dias as
planícies, para encontrar um lugar afim de atravessar o rio. Viajar pelas terras

orientais nas proximidades da Fortaleza do Sol seria arriscar a jornada: os homens

110
de Tantalus Ágoras poderiam interceptá-los e isto levaria a dar satisfações aos

exércitos de Orientais, consequentemente eles tomariam conhecimento do


desaparecimento do Rei.

Uma vez completo o ritual de elevação ao trono, não haveria quem o pudesse tomar
com legitimidade de Bet, somente com a força da espada.

O que o Rei queria, era acabar com os conspiradores que tentaram


envenená-lo. A prisioneira confessou ao Mestre das Verdades, lá naquela cela

escura, sob a Fortaleza do Sol.


A paisagem apesar de bela causava vertigens, pois o caminho era íngreme, e

dançava para cima e para baixo. Não havia estrada, apenas um chão desgasto que
se abria de forma estreita entre as rochas, galgando a encosta em forma de zig-zag,

até perder-se no topo. Depois descia e contorna-se a elevação árida, escondendo


atrás de si, as cidades e a paisagem. Dali em diante, somente rochas e pedras.

Difíceis de transpor.
Seguiram este caminho pedregoso um dia além do previsto, posto que era

ardil e estava em péssimas condições. À noite a encosta era fria por demais,
fazendo-os se abrigarem em grutas, quando as encontravam, e dormiram à volta de

uma fogueira improvisada.


Certas vezes a quietude do Rei era perturbadora, fazendo com que a

princesa perguntasse a si mesma, o que havia acontecido.


Pela manhã, levantaram-se e fizeram suas orações, banhados pela luz azul

da lua e pelos primeiros raios do alvorecer. Este era um dos únicos momentos em
que ambos se sentiam em paz, observando o nascer do sol. Durante o dia e a noite,

suas almas sussurravam medo e incerteza. Mas era o astro-rei, símbolo da Cidade
Oriental, que lhes trazia esperança ao coração: se um novo amanhecer é possível,

então será possível também um mundo livre. Bet assim pensava, tal qual seu pai.

O Grande Mão Direita

111
Lokar, O Grande Mão Direita, como ficara conhecido, sentia-se satisfeito

quando importantes ordens lhes eram dadas para cumprir.


Sentia-se comprometido a não decepcionar o comando real. Fora criado ali,

desde muito jovem, servindo como escudeiro aos grande Senhores Generais.
Sempre fora um soldado esforçado. Porém vinha se empenhando de forma

intensa na sua liça, pretendo destacar-se no cumprimento de suas tarefas. O afinco


no trabalho foi reconhecido, quando há cerca de dois anos fora escolhido para

integrar o primeiro regimento do Comando Real, designado para a Companhia das


Lanças Douradas, Comandadas pelo General Goim.

Já na sua terceira grande missão, na tomada da vila do corrego, sob às


ordens de seu comandante, também chamado de “O Gentio”, executou tudo aquilo

que lhe fora ordenado. O sucesso da missão rendera uma boa reputação, quando
confirmou mediante interrogatório, um homem chamado Soler tinha a gema. Ele

mesmo havia as obtido dos vilerinhos. Sua mãe vinha de lá, e lembrava-se
vagamente, das histórias que ela lhe contava, embora não tivesse nenhuma

lembrança do fato. Sua mãe o abandonara nos burgos da Fortaleza, e jamais voltara
para buscá-lo, o Preletor havia o criado, confirmando a história. Quando foi até a

Vila, nenhuma sombra de curiosidade pousou no seu coração. Ele ficou endurecido
por um ressentimento do abandono, alimentado anos a fio. Nada. Aquelas pessoas

não eram nada para ele.


Não fosse pela ribeirinha que furara o olho do general com um pedaço de

cerâmica quebrada, aquela missão teria ocorrido sem problemas.


Um bom soldado é bem recompensado. Foram as palavras que seu general lhe

dissera.
Desde então uma determinação havia instalado-se dentro de si. Não era apenas um

cumpridor de ordens, havia se envolvido com os objetivos de crescimento e


expansão do novo comando do Reino. Sua bandeira era a vitória.

112
Queria contribuir tanto quanto possível para as campanhas de anexação, e havia,

sob às ordens de seu General, obtido informações sob a localização das Irmãs de
Areia. Quando numa emboscada acabaram capturando duas delas, e conquistando

a cidade de Inkaar, que protegiam. Esse entreposto controlava o fluxo de


mercadorias que cruzavam o oriente para chegar às bandas ocidentais. Não havia

como estabelecer tal comércio senão seguindo as rotas continentais que passavam
pelas suas terras, pois de um lado há um deserto intransponível e do outro uma

cadeia de montanhas de difícil acesso.


Após essa grande empreitada, Lokar ganhou muito respeito de sua companhia,

passando a ser o braço direito de Gentil.


Mas, foi um pronunciamento brilhante, que, muito embora tenha vindo de um ato de

insubordinação, foi visto pelo próprio Rei como uma idéia visionária, que o fez
crescer na estima de Vossa Majestade. Fora levado para uma reunião interna, onde

participariam os Generais das Companhias do Primeiro Regimento do Comando


Real, que são somente sete, para elaborar uma estragtégia de alistamento militar.

Os soldados vinham desertando. O que é punível com a morte. No entanto, matar


soldados não é uma estratégia inteligente, quando se pretende tê-los em maior

número. Capturar homens como escravos e torná-los soldados não era uma
manobra eficaz. Era grande o números de relatórios sobre insubordinação, motim e

conspiração.
Então, quando não tinha voz, entre um pedido do Rei por outras idéias de expansão

de seus números, Lokar interrompeu o silêncio para propor o que seria conhecido
como “O grande torneio de exibição militar”. Seu General estava prestes a sensurá-

lo, porém o Rei ficou interessado em ouvir o que o jovem tinha a dizer.
Uma competição, Vossa Majestade, nosso Senhor da Fortaleza do Sol, onde os

homens de todos os lugares, que estiverem interessados em trabalhar para as


companhias virão. Virão em busca de oportunidades, da chance de exibir suas

qualidades militares de força, astúcia, destreza e estratégia. Esses jovens virão

113
competir, e os vitoriosos receberão prêmios. Muitos deles virão porque necessitam

de um trabalho. Outros virão em busca de prestígio. Porém virão os soldados natos,


os bons homens que serão aquisições inestimáveis para as Vossas companhias,

Vossa Santissíma Majestade Oriental. Apregoaremos bulas com o regulamento em


todas as cidades anexadas. Enviaremos os avisos aos folhetins dos centros de

comércio e à liga de Mercadores. E eles virão de todos os lugares, Senhor.


Soldados fortes. Dispostos a crescer dentro de seus regimentos. Lutarão muito pela

oportunidade de criarem suas próprias companhias, sendo remunerados por isso. E


ostentarão um brasão vitorioso, e terão orgulho disso. E em pouco tempo, Nosso

Senhor da Fortaleza do Sol será imperador do Oriente, com ostes tão fortes e
eficientes que nada restará para se opor ao poder militar.

O Rei fitou Lokar, por algum tempo. Um enígma se escondia atrás da máscara de
Tantalus. Em seguida soltou uma grande gargalhada e engoliu seu vinho de uma vez

só. Brilhante, disse ele por trás da sua moldura de couro favorita. Que seja feito.
Há poucas luas recebera uma ordem de promoção. Uma companhia sua, a título de

experiência, para comandar e fazer cumprir a vontade do Reino. Tão forte quanto o
sol, seria o lema da sua companhia. Ao final de três provas, uma a cada lua, ela

seria elevada á categoria definitiva, ganhando um nome escolhido pelo Nosso da


Senhor da Fortaleza do Sol. Uma insígnia de ouro seria posta no seu elmo, o

símbolo máximo dos regimentos da banda oriental. Respondia ao seu General,


Gentil, sempre de maneira eficaz e demonstrando o profundo respeito que nutria

pelo seu superior. Mas ele era astuto, e ousado. E isso era uma qualidade nova,
entre todas as companhias, que vinha destacando Lokar entre, até mesmo, os mais

antigos.
Fora a sua companhia que recentemente interceptara o mapa de uma rota de fuga

dos prisioneiros de Harpis. Um caminho seguro que os conduzia pelas areias do


deserto, até os ermos das montanhas de gelo. Escapavam da cidade, tal qual o Rei

Ben Adam fizera. Talvez tenha tomado essa mesma direção.

114
Assim, o rei mandou chamá-lo, e encontrava-se indo à saleta de conferências.

Estava orgulhoso e radiante, na sua armadura nova, uma lamelar dourada, que
cobria meio peito e o ombro até o cotovelo, do lado direito, seu lado forte. O lado da

espada.
Ele bateu à porta e aguardou que fosse aberta, fazendo continência.

Em seguida adentrou a aposento, apresentando e deixando suas armas com os


guardas pessoais do Rei. Ele estava adiante, Olhando um pergaminho sobre a mesa

central.
Era a primeira vez que tivera acesso à sala frequentada pelos homens do alto

comando. E de alguma forma aquilo significava que o Rei lhe prestava confiança.
Não era um General maior, mas sim subordinado a um General do Primeiro

Regimento do Comando Real. Comandava uma companhia em consolidação. E


isso, essa quebra de hierarquia, seria motivo de insatisfação para alguns. Não

haveria porquê estar ali. Mas estava, e essa era a sua oportunidade, não iria
desperdiça-la.

A copeira limpava vinho do chão, deibaixo da mesa. E ainda se aproximava quando


o Tantalus começou a falar-lhe:

Isso, esse documento, disse o Rei admirando o pergaminho sobre a mesa, é


fantástico! Eu quero homens aqui, aqui e aqui. E apontou para as posições no mapa.

Demando os seus soldados de confiança para esse serviço. Mas para o Senhor
delegarei uma tarefa de elite. Vá, siga a rota. Me traga o Rei em fuga. Me traga a

sucessora do trono Harpis. Eu os quero. Como se chama?, interpelou o jovem Major,


Me chamo Lokar, Lokar Geb, do Córrego, Nosso Senhor da Fortaleza do Sol.

A copeira deu um sobressalto, batendo com a cabeça no fundo da mesa.


Lokar, eu os quero. Vivos. Os quero vivos. Traga-os e consolidarei a sua companhia

imediatamente. Escolha os homens que quiser, arme a sua expição e traga-os para
mim.

115
Um fervor percorreu seu corpo, e as palavras saíram de sua boca,

involuntariamente, Será feito, Nosso Senhor. Prestou continência e deixou a sala


com pressa. Pressa tinha para ser reconhecido.

E fora. A copeira jamais esquecera aquela voz na sua cabeça Com os


cumprimentos da casa real, repetindo sem parar.

Irmãs de Areia sob a fortaleza

Fala como elas conhecerão massara

Chegada a Vaudeferro
O vale Cerpa, mais conhecido como Vaudoferro, era de uma beleza ímpar: sua terra

fértil permitia que muitos animais ali habitassem. Havia comida em abundância e
águas puras e límpidas para beber. Fêmeas procriavam no vale, e criavam seus

filhotes em meio à fartura. Algumas feras também vinham até Cerpa em busca de
caça fácil. No interior do vale corria um regato de águas claras que estendia-se

como um veio, entrecruzando a grama verde e corria dormente sobre cascalhos,


moldados à milênios pela correnteza leve e curta de Otar, um afluente ocidental do

Ausar, Rio Mãe. O vale ainda tinha sua beleza intocada e uma magia morna e antiga
corria o ar e descia ao chão, junto à névoa prata que dormia um sono de sonhos

etéreos.
Logo no fim da tarde alcançaram o fim de Cerpa e a passagem através de um

corredor formado pelas paredes de duas rochas gigantescas, com cerca de vinte
corpos de altura cada uma. Do outro lado, à espera, estava a mata aberta de Rapha,

chamado de Bosque da Cura.


Passaram a noite na boca do vale, gozando de sono tranquilo. Um tapete de

estrelas se estendia ao longe, velando o sono do Bardo e sua aprendiz, enquanto


cruzava o céu.

116
O sol ainda não havia despontado quando Ben acordou. A Princesa inquietou-

se durante o sono, levantando-se antes do sol nascer. Ficou observando as


constelações de despedirem em meio as nuvens rosadas, enquanto um velo de luz

cobria os espaços, anunciando o fim da noite. Ela permaneceu desperta,


admirando . Escutava os sons dos animais noturnos surrupiados de lugares

escondidos. Silenciosamente ela deu adeus ao vale.


A travessia de Rapha, seria curta, pois não mais que uma manhã os separava do fim

do bosque. O mesmo tempo teriam que caminhar até chegar ao afluente do Rio
Mãe, o qual vinham acompanhando, para cruzar a floresta de aberta. A medida que

o transpunham as árvores iam rareando, a vegetação ia diminuindo e o solo ficava


mais à vista.

No fim da manhã podia-se vislumbrar por entre os arbustos, uma vastidão de


vazio: o frio e sombrio deserto de Selqet, separado do bosque pelo rio Ausar.

A mata deu lugar a um prado pobre e triste, à terra dura e infértil, onde já se sentia o
gosto salobro do vento do deserto.

Acamparam no início da tarde às margens do Ausar, logo acima da desembocadura


de Otar, onde fariam a travessia do rio. Despedidas no desamparado fim de Rapha,

onde a cura e a renovação abandonaram as terras e os homens.


Quando a noite ia alta a Princesa permaneceu observando as estrelas, ali sob o

olhar de Nun-Nut, adormeceu. Imersa em sonhos e silêncio.

Betsheba de Lakismi
O Sacerdote estava acordado, mas ficou tão quieto e com os olhos fechados,

que parecia dormir. Afinal, seria ela, Betsheba de Lakismi, uma Rainha, como
prometera. Isso o enchia de orgulho.

A mulher passava frio e fome quando Ben a encontrou, ao abrir os portões do


templo naquela amanhã. Estava tão frio, que não havia peregrinos aguardando para

ganhar o pão de aveia. Ela estava lá, tremendo. E quando o Sacerdote se

117
aproximou, para acudí-la, seus olhos abriram muito lentamente. Escorregou os

braços, tapados pelo véu preto, e muito sujos de sangue, mostrando que carregava
uma criança. Dias, ela tinha.

Tentou levá-la para dentro do Templo, mas se debatia muito, e puxou pela
mão branca e lisa do Rei, dizendo com uma voz quase inaudível ao seu ouvido: Não

tenho leite. O bardo ficou compadecido. Cuide dela, eu imploro, sussurrou. A criança
tinha olhos verdes vibrantes. E era negra, como o ébano, também possuía uma

mancha branca no pescoço, que cobria todo o lado esquerdo. Estava gelada. O
bardo perguntou à mulher se a menina tinha um nome. Betsheba, disse ela, nascida

de uma promessa. E sorriu para Ben. Era apenas uma mãe desesperada. Qual o
seu nome?, perguntou, segurando a bebê nos braços. Ela negou com a cabeça, e

baixou os olhos. Depois, levantou o pano que escondia o seu rosto e mostrou uma
marca, idêntica à da menina. Lakismi5, me chamam. Ben aguardou que ela se

despedisse da menina. Cuidarei eu mesmo dela, garantiu à peregrina. Ela levará o


desenho do seu nome no braço. Será uma Rainha. E carregando a menina nos

braços, procurou aquecê-la como pôde, e lhe disse, encostando a boca no seu
rosto: Princesa Betsheba de Lakismi, seja bem vinda.

Quando voltou, com pão, leite de amêndoas e uma lão de caxemira, a mãe
não estava mais lá.

Ben levantou o tronco na direção de Bet, ela estava sentada, admirando as


estrelas. A marca estava lá, brilhante, como a lua. Minha pequena Bet. Pensou. E

voltou para o chão, dormindo em seguida.

O Torneiro dos homens livres


Os homens e mulheres vieram. Foi tudo feito conforme a idéia de Lokar.

Folhetins, homens de anúncio, cartas, bilhetes nos murais nas tavernas. Os campos
ao redor da fortaleza estavam cobertos de barracas. E as exibições e competições

iriam começar naquela tarde. Uma grande arena fora montada do lado de fora da

118
Fortaleza. Um círculo grande de arquibancadas, cujo centro era protegido por uma

sebe rústica circular de troncos encaixados. Uma mesa fora colada um nível acima,
onde quatro dos seus sete generais avaliariam as exibições dos candidatos e

julgariam as disputas. A primeira competição da tarde foi o combate sem armas.


Dezesseis homens na arena, em combate múltiplo, com punhos nus. A modalidade

preferida do Rei. O vencedor receberia uma corsa e dez moedas de ouro como
prêmio.

Todos foram apresentados, pelo Nosso senhor, Rei Tantalus Ágoras da


Fortaleza do Sol. Ele cumprimentou os competidores e com uma fala curta, deu

como aberto o Primeiro Torneio dos Homens Livres da Fortaleza do Sol.

Um tambor gigantesco de peles soou.


E os competidores iniciaram os ataques na arena embarrada. Um rosto no

chão significava que o competidor estava fora. O início foi tímido. Mas no primeiro
soco, dado por uma mulher, bem no rim de um grandalhão musculoso, arrancou os

primeiros gritos de incentivo do público.


Tantalus sentou ao lado dos generais, com os cotovelos sobre a mesa,

bebendo uma cerveja. Ele só observava.


Um soldado da baía de ouro, muito rápidamente colocou um rosto no chão.

Estava fora. Era um Lanças Douradas. Isso fez a plateia soltar uma vaia. A luta dele
parecia coreografada e era diferente de tudo que Tantalus já vira. Ele voava, batia

com os pés, Rolava e dava rasteiras em seus adversários. E continuou na arena.


A mulher, oponente do grandalhão foi abraçada por ele, e ele a esmagou,

enquanto se contorcia procurando livrar-se. Mas o grandalhão acabou levando uma


cabeçada nas costelas, de uma outra mulher. Elas começaram a enfrentá-lo juntas.

Do outro lado da arena, um Kolbi correu na direção de um homem do deserto, tinha


o rosto encoberto por um lenço, e estava encardido de areia.

O kolbi veio abrindo a bocarra. O homem ficou atônito, recebeu uma mordida
no tronco, foi arremessado. A patéia levantou acompanhando a queda. Mais um

119
rosto no chão. E surgiram silvos entre as mã e palavras de incentivo. Alguns já

haviam escolhido para quem torcer. Outros já estavam organizando apostas.


Tantalus também vibrou, batendo o caneco de cerveja na mesa.

As mulheres socaram o rosto do grandalhão, espirrando sangue na plateia.


Foram tantas pancadas que ele caiu para trás estirado e desacordado. Fora.

Elas correram na direção do soldado da baía de ouro, e foram enfrentá-lo.


O Kolbi recebeu um soco com as duas mãos, pelas costas, ele caiu de

joelhos e em seguida mais um na nuca, e caiu para frente. Boca no chão. Fora.
Na sequência o soldado bailarino foi derrubado pelas mulheres também.

À frente do Rei uma Amazona lutava com um saldado livre de Saigão. A luta
estava taco a taco. A Amazona agarrou o soldado por debaixo do braço, cruzando

suas costas e começou a cabeceá-lo, tantas vezes, que o sangue espirrou na


banca. Sua testa ficou lavada em sangue. Ela tonteou e soltou o homem. O rapaz

cambaloeou e sacudiu a cabeça, mas estava de pé. Tantalus começou a vibrar com
o pé em cima da cadeira e batendo na mesa. Os Generais viram o comportamento

do rei e sentiram-se motivados.


A Amazona correu na direção do homem, segurando a mão e colocando o

cotolovelo de forma ângula para frente, O homem desviou, e ela passou reto. Levou
um soco forte nas costas, deu a volta cuspindo sangue pela boca. Procurou um

brecha para atingí-lo, protegendo o rosto com os punhos. Ele aproximou-se dela da
mesma maneira. Então so dois dançaram e ela deu um soco no ar. O Saigão fez o

seu movimento, e a Amazona esquivou, mas aproveitou a chance para atingí-lo com
muito força do lado da orelha, o botando de joelhos. Ela continuou batendo direto na

cabeça, e o homem levou às mão para se proteger. Então ela iniciou uma
sequências de socos, um, dois, três, quatro, e as mãos dele baixaram e os olhos

reviraram. E a adrenalina dela era tão alta que foi possível parar. Cinco, seis, sete.
Ágoras balançava os braços no ar e gritava junto com a platéia. Oito nove, e o rosto

do homem deu um estalo e afundou, o levando ao chão. Fora.

120
Tantalus pulou para dentro da arena, excitado, gritando e esbravejando. Foi

tirando a armadura, arrancando a camisa e batendo no peito como um louco,


chamando seus adversários.

Ele urra, convidando a audiência a vir com ele. Soldados, homens e mulheres
das companhias livres e de seus regimentos, explodiram numa onda de vibração.

Todos levantaram e responderam ao chamado de Tantalus. Ele girou os braços, para


frente e para trás, aquecendo o corpo. Arrancou a máscara de couro, exibindo a

escarificação em seu rosto, e chamou mais uma vez a platéia, urrando e dando
socos com a mão direita na cicatriz do ombro. Seus músculos e a pele ficaram

vermelhos, ele fungava e gritava , e escolheu a Amazona como oponente.


A audiência foi ao delíro, todas as lutas pararam para ver o Rei. E em

instantes os prórpios competidores cercaram os dois e começaram a torcer junto


com os demais. Tantalus investiu de imediato contra a Amazona. Correu na direção

dela com um impacto forte a desestabilizou. Agarrou a sua mão esquerda e girou o
corpo dela no mesmo sentido, forçando para baixo. O braço da mulher estremeu e

Tantalus continuou forçando, até a tensão ceder e seus ossos colapsarem. Colocou
o pé nas costas da Amazona, fazendo força no sentido contrário, enquanto ela ficou

imobilizada, berrando, sem conseguir se desvencilhar. Ele continou fazendo


forcejando e esticando a perna, até encostar o rosto dela no chão. Então todos

levantaram os braços e bradaram. Tantalus girava o corpo para bramir junto com
demais. As pessoas desceram das arquibancadas e foram para o meio da arena

para acompanhar o espetáculo de perto. Aquele homem determinado caminhou com


passos largos na roda, batendo com muita força no ferimento do ombro. Então todos

começaram a dizer em coro: Tan-ta-lus, Tan-ta-lus, Tan-ta-lus.


A adrenalina corria por seu corpo exatamente do modo que o fazia sentir-se

rei. Tan-ta-lus, Tan-ta-lus, Tan-ta-lus.

Alguém removeu o corpo da mulher da Arena. E um próximo oponente sugiru


para enfrentá-lo. Mal o lutador havia entrado na roda, Ágoras partiu pra cima dela

121
bramindo, e defendeu-se com um soco, mas Tantalus segurou sua mão e deu uma

cabeçada bem no meio do rosto do homem.


Seu oponente se inclinou, e foi segurado pelo cabelo da nuca, e teve o rosto levado

na direção do joelho de Ágoras, e o joelho do homem ensandecido, com velocidade


e força, também foi na direção da face do rival. Um, dois, três, quatro joelhaços

seguidos. A calça de Tantalus ficou ensopada de sangue. O adversário estava tão


aturdido que caiu sobre as platéia, alguém lhe deu um soco e ele voltou para a

arena trocando os pés, e foi caminhando e caindo, só parou com os rosto na areia,
aos pés do vencedor.

Então veio o proximo, uma mulher. Ela tirou uma faca da bota. Os generais
ficaram atentos. Tantalus olhou para ela e sorriu. Meneou com a cabeça, e dançou,

estudando os movimentos da oponente, enquantos seus pés deslizavam no barro.


Ela cortou o ar algumas vezes. Vup, vup.

Fez um gesto, o chamando com a mão. Então todos na roda, assoviaram e


riram. Ela estava chamando o rei. E ele atendeu. Aproximou-se com rapidez,

jogando para a direita, desviando de uma investida da faca, e guinou para a


esquerda, mas ela advinhou antecipou seu movimento. Um grande corte no braço

esquerdo. De imediato, Tantalus, fingiu um recuo e avançou. A faca veio em sua


direção novamente, mas seu reflexo rápido a segurou. Segurou com firmeza e

imodéstia, torcendo os dedos da mulher e a puxando para si. Segurou-a pelo cabelo
e colou seu rosto no dela. Isso, enquanto virava a mão da faca para dentro,

empurrando a faca entre seus seios. Tantalus tinha os olhos tal qual duas bolas de
fogo, refletindo nas fitas vacilantes da mulher.

Então todos começaram a fazer barulho e bater no peito “ruh, ruh, ruh, ruh”. As

veias do pescoço de Tantalus saltaram, e sua força aumentava com o estímulo da


audiência. Seu braço foi tremendo, enquanto suas forças batalhavam. Por fim, faca

entrou dura e lentamente no externo da mulher. E os dois permaneceram se olhando

122
nos olhos, até que ela engasgou com o próprio sangue. Ele atirou o corpo para o

lado. Nove, nove, nove, nove! Todo empurravam sem parar.


Ágoras continuou batendo no prórpio ferimento e esfregou o sangue no rosto

enquanto urrava, convocando mais um rival.

Um chacal avançou para dentro do círculo e ele olhou com determinação para o seu
oponente. O chacal era meio corpo mais alto que o Rei. Ele nem estava inscrito na

competição, mas naquela altura, isso não faria a menor diferença.


O chacal grunhiu com muita intensidade, todos recuaram a cabeça. Ele investiu

contra Tantalus, e o acertou em cheio. O Rei voou sobre a roda, mas levantou.
Seguiu batendo do ferimento, e seus olhos ardiam como duas chamas. Então o

chacal bateu na lateral de Tantalus, o arremessando para o alto, e ele caiu por cima
da audiência. Os homens o empurram devolta para o centro do círculo. Ele

continuou a sua dança. O chacal investiu com uma mordida no rosto de Ágoras, mas
a destreza e rapidez do Rei foram maiores. Quando a boca do cachorro estava

aberta, ele já projetava o braço na goela do chacal. Sua mão atravessou a nucal,
banhando o público em sangue. Tantalus tirou o braço dali, estava ferido. O plateia

ovacionou o Rei, e invadiram o centro da arena, o levantando sobre as mãos de


todos.

Ágoras pediu que o colocassem no chão. Ele subiu na mesa, onde estavam os
generais, e virou para o público. Goim alcançou um saco de moedas para Tantalus.

O prêmio.
Após a alvoroçada multidão se acalmar, ele que estava exausto, fez um discurso,

com o fôlego escapando pelas ventas.


E apontou na direção da pilha de copos com uma das mãos, Escolham bem quem

vocês seguirão. Sigam um lider que se esconde atrás de justas, de banquetes e


saias de mulheres. Ou escolham me seguir. Escolham um lider forte, que possam

123
admirar, que lhes traga inspiração. Escolham seguir um homem ou serem pagos

para seguí-lo. Das duas maneiras eu os quero, para construir comigo, um império!
Ele foi mais ovacionado ainda. Os homens e mulheres presentes tremeram e

o admiraram. Tan-ta-lus, tan-ta-lus, tan-ta-lus!

Diziam, batendo no peito, em sua homenagem, exatamente como rei batia no


ferimento.

Ele abriu a gibera, espalhando todas as moedas de ouro sobre os copos dos
sobrepujados.

Naquele torneio, Tantalus Ágoras selou seu destino como grande líder. Ao
final, enquanto todos se aglomeravam à volta do Rei, ele ouviu na multidão “ Mais

duro que o aço!”, e mesmo se esticando, e procurando, não pode ver o rosto de
quem gritara aquilo.

O levante dos Lanceiros de Jade de Bar

Varr Bar fora morto friamento por tnatalus, o que fora jamais esquecido pelos
filhos do Senhorio. Desde então conflitos constantes eram comuns nas ilhas dos

baleeiros. Varr Bar Reykjavik contratara homens de pedra para controlar os


constantes ataques à ilha desprodegida.

E foi assim, que no Primeiro Torneio dos Homens Livres da Fortaleza do Sol,

Zorba, capitão dos Lanceiros de Jade do Poente, viu, surpresa, aquele homem com
quem treinara, com quem virou um Homem de Pedra, ir ao meio da arena e

estraçalhar vivos com as mãos. E aquele Homem de Pedra virara Rei na Fortaleza
do Sol. E uma paixão e respeito

Finalmente fogo

A copeira estava lá, encostada ao lado da porta, como de costume, quando a sineta
tocou. Vinha da mesa. E ela estava escutando o costumeiro barulho dos papéis.

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Os barulhos lá fora, risos, a agitação dos soldados, pessoas às portas do pátio da

fortaleza, com flores. Isso desde o dia em que foi anunciado um banquete em
comemoração. Tantalus já havia se superado o confinamento, sua tez retomava a

cor vivos. Seus olhos voltavam a preencher as órbitas, e retomaram o verde


vibrante. O cabelo estava banhado e preso em um coque. O corpo ainda magro,

começava a recuperar a antiga rigidez, porém não ainda estava barbado.


Então, enquanto a copeira se deslocava para atender o chamado da sineta escutou

o barulho de água abundante sendo vertida.


E ao alcançar a mesa, as mãos de Tantalus colocaram um metal frio nas suas. E

quando ela ia encostar na lâmina, ele disse Cuidado, é um navalha.


A cadeira rangeu, quando ele sentou. E puxou as mãos dela com suavidade, a

conduzindo até uma barra de sabão aveludado, que exalava um perfume que ela
nunca havia sentido na vida. Um cheiro pungente, agudo. Lhe remetia a uma corsa,

fugindo em campo aberto numa caçada, depois se revelou um cheiro de natureza


molhada, à beira de um lago após uma tempestade. E ele mergulhou as mãos dele

junto as dela na bacia. E fez com que esfregassem o sabão. E então, a conduziu até
o seu rosto, e fez com que a esfregasse, espalhando a espuma, em pequenos

círculos. Depois colocou a navalha novamente nas mãos da copeira, e


demonstrando como deveria pegá-la, fez com a lâmina descesse devagar, tirando o

excesso. E fez o mesmo movimento novamente. E depois desceu os braços, ao que


a prestante, continuou sozinha.

Então tocou o rosto, verificando se estava aparada. E emrgulhaou as mãos no


sabão. Ela sentiu seu peito ficar apertado e o estômago embrulhar. O bebê estava

mexendo. Com as mãos ensaboadas tocou o rosto de Tantalus, e agora conseguia


sentir a pele, ficando macia. E estava quente, cada vez mais quente. Tateou até a

mesa e pegou a navalha. Ele segurou as mãos dela novamente, e moveram a


navalha rente a pele, muito devagar e com cuidado. E subiram a navalha

novamente. E ela continuou fazendo o mesmo e limpando o fio na bacia.

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O rosto estava macio e perfumado. Àgoras engoliu, e seu pescoço se moveu, como

se abafasse uma sensação familiar. Uma vontade, o seu ímpeto de fogo.


Porquê não vê? - disse o Rei, irrompendo o silêncio.

A copeira não sabia se conseguiria responder a pergunta. Mas seus dedos se


fecharam involuntariamente ao redor da navalha, as unhas procurando a carne da

palma da mão. Tudo que ela quiria naquele momento era poder gritar. Mas não
podia. Podia passar a lâmina no pescoço de Ágoras, mas não podia. Então as unhas

aliviaram a carne, se afastando.


Então ela falou, co uma voz muito rouca, de quem talvez não falasse há muito

tempo. “Porque estou cega.”


E quando ela falou, foi como se eles não se conhecessem. E já não eram mais os

mesmos, porque havia um tremor em suas falas.


Tantalus prosseguiu:

“De quem foi a semente?” , ele insistiu.

“Fui estuprada.”, era uma mentira e uma verdade. A Velha do Córrego lhe dissera

para falar quando necessário, pensou que havia errado naquele momento.

Então houve um silêncio. E nada mais foi dito.


A barba estava feita, e os olhos de fogo de Tantalus Ágoras, estavam reacesos,

como nunca.

Livrando-se dos obstáculos


Liz estava grávida e logo todos descobririam isto. Edir Gramateus perguntara

se queria deitar o filho antes do tempo, para que não fosse gerado um incômodo. O
que ela não queria. Tampouco queria que fosse levada, se menina, para o

estabelecimento de Lis, ou sendo menino, fosse levado para os estábulos, que de


fato era mais brando, mas não era o que queria para ele.

Depois, Edir quis acolher o fruto da gestação e ser o Tutor da criança. Torná-
lo um Prestante. Mas Lis também não queria. Ela tinha um destino cruel, sabia

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disso, não queria seu amado filho envolvido nas amarras do mesmo destino. Mas

depois, quando a gravidez ia avançada, insistiu veementemente que ela lavasse o


colo com acônito, com ruta silvestre, que faria bem ao bebê, e se não fosse

conhecedora das coisas do campo, teria feito e isso teria lhe custado a vida da
criança. Por certo que seu entesamento era devido ao fato de o Rei lhe tinha

confiança, e era a única que permitia prestá-lo nos aposentos reais.


Lá nos seus panos, e enxergas, guardou a poção que a Velha lhe dera, e,

como toda mulher sabe, ela sentia que a hora estava próxima.
Tantalus terminava de se vestir quando ela sentiu um líquido quente escorrer

pelas pernas, e mexendo os pés viu que era muito, sentiu uma poça no chão, e seus
dedos chapinharam. Ela ficou imóvel, para que ninguém notasse nada, na meia luz

do seu canto.
Mas então vieram pequenos espasmos no lombo. Uma dor corria suas

espaldas. Ela contraiu o rosto porque não pode suportá-la. E pediu por tudo que era
mais sagrado, que ninguém a notasse ali, como costumavam não notar.

E ninguém notou. Saíram todos, e quando o fizeram, ela correu até o seu
catre e virou o conteúdo do frasco na boca, todo de uma vez.

O Banquete da prosperidade.

Caminho de casa

Ela tocava a barriga, cuja pele reluzia ao sol do entardecer, negra e hirta,
como uma cerâmica envernizada. Correu pelo bosque, entre árvores de retorcidos

troncos, refazendo os passos que a levaram onde estava, os caminhos por onde
passara.

Ainda segurava com força o frasco vazio da poção desconhecida, cujo efeito a
estava levando para casa, onde quer que fosse. Agarrava a minúscula urna, como

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se aquele fosse o elo que a mantinha com a realidade; mesmo que involuntário o

aperto, aliviava a dor e a angústia.


Definitivamente era o caminho de casa. O cheiro das oliveiras, o ar molhado

da água próxima do córrego. Definitivamente o aroma das folhas se tornando terra,


debaixo das árvores. Dos troncos virando poeira, ceio de insetos, orelhas de pau e

mofos. Era o cheiro do vilarejo, definitivamente.


“Oh, Escuridão, onde escondestes os raios alvos de minhas vistas? Infame injúria

que jaz entre minhas palavras: luz tão bela, porém que não faz-me esquecer que

pungistes meus olhos! Lembro ainda de tocar aquele rosto quente e úmido…
Implorando estava, desmedida escuridão! Até perceber que no seio da face alva de

meu amado eu não tocava lágrimas: um gosto cáustico e ocre tomou meus lábios no
um último beijo. Era a morte! Daria tudo pelo brilho do sol interludiando o breu de

minhas vistas! Mas a vigança grita em meio à minha cegueira. Agora soa o sino da
magia de retorno, amiga minha. Já não sou mais inocente e indefesa, tantas dores,

tanto ódio! Agora nem as cores, nem as luzes! Tomada fui, pelas brutais armas da
virilidade: amanheci flor e anoiteci espinho. Para onde foi levada a pequena menina?

Amanheci criança, entardeci mulher. Em meio ao meus restos eu vou me erguer.


Serei Rainha. Uma Rainha amarga. Uma Rainha que na escuridão, porque é de lá

que vim, e para lá retornarei. Agora correndo entre urzes e mata, sou uma mulher às
vezes do parto, defender um filho do mundo, apesar dos horrores diários a que me

submeto, nas mãos de um tirano! Tudo pela vingança. Tudo pela promessa ofertada
pelos Deuses, que na escuridão de minhas vistas aceitei. Que na escuridão do meu

coração eu quis manter, para alimentar a vontade de viver.”


A chama da vida apagara-se dentro de Liz, ela sempre sobe disso, desde o

momento em qu ficou na escuridão. Na escuridão também ficara aquela jovem feliz


de cachos intrépidos, dançando em meio às oliveiras. Apaixonada por Soler, o

ourives.

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E parindo, ela corria pelo Bosque Torto, em direção ao Vilarejo, à casa da Velha do

Córrego, carregando pela ultima vez em seu peito o colar que ganhara de seu
amado Soler. Sentia as dores do parto, estava desesperada. Por sorte seguiu os

conselhos da velha e tomou a poção que lhe ajudaria a encontrar o caminho de


casa, ainda que cega dos olhos do corpo, enxergaria com os olhos da alma.

Seus pais não estavam mais lá. Seus amigos estavam mortos. Seus sonhos
dilacerados.

Ela sentiu o córrego gelado banhando seus pés. Faltava pouco, pensou. A
água deslizava por entre um cerro de pedras gastas e desaparecia em uma gruta no

chão. Deixando somente um filete a brotar por sobre uma pedreira limosa. A cascata
parecia inerte aos horrores da guerra de Nosso Senhor.

Quando Liz, colocou os pés sobre a terra preta do vilarejo, sentiu o cheiro da
lenha do bosque queimando nas chaminé. Sabia que estava em casa. Respirou

fundo, e apesar de sentir uma forte contração, prosseguiu pelo caminho até o
casebre de uma velha amiga, no início do outro dia.

A velha do córrego

A velha amassava as ervas com vigor. O emplasto tinha que ficar pronto,
afinal, desde que Liz saíra, havia-se passado as quarenta e duas Luas.

Estava na hora, tinha que ser.


O fogo da lareira ela vinha alimentando há dias. Nunca deixava morrer. Liz

poderia irromper pela porta à qualquer momento, e seria preciso água quente, panos
e o catre pronto para o trabalho de parto.

A Velha estava ansiosa pelo reencontro.


Mais lenha, ela pensou.

Na soleira da lareira repousava o tição. Empunhou-o rapidamente, seu corpo


tomou a direção do fogo, porém sua mente desviara a ação. Pensou que seria

melhor cortar mais madeira. Devolveu o tição para seu lugar, limpando as mãos no

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avental pendurado na cintura. Dirigia-se até a porta quando resolveu voltar e

recobrar o fogo novamente. Com uma acha de lenha remexeu as brasas, jogou o
pau ali. Balançou o corpo indecisa na direção da mesa. Mas lembrou das lenhas.

Catou da parede o machado, e cobrindo-se com seu velho e batido xales, foi para o
quintal fender as toras e levá-las para dentro.

Suas costas doíam, porque ultimamente começaram a doer nos dias muito
úmidos, anunciando uma chuva forte ou tempestade. Já estava difícil fazer o

trabalho pesado. A idade se mostrava dura, e afinal, aquele pensamento triste a


imolava mais uma vez. Aquele sombrio pensamento que ela tentava afastar, mas

que se fazia presente desde que passou a sentir a idade pesando, como nunca
havia sentido enquanto a pedra ainda estava na aldeia.

Mas suas costas predicionavam tempestade, e de fato estava muito cinza


aquele céu. O ar pesado e frio, mergulhava tudo na atmosfera grisalha do outono.

Nem flores, nem sol. Estava opaco e nebuloso, sem sorrisos, sem pássaros ou
animais. A natureza se acalmava para receber chuva e frio. Todos nos seus abrigos.

Folhas se retraindo, a lenha molhada resistindo ao fogo, a umidade consumindo as


madeiras da casa. Mofos crescendo nas ânforas. Tudo estava conforme ela pensou

que estaria, naquele dia, no meio do outono, pelas suas contas.


E isso era tudo para a velha Senhora, a ervateira, curandeira e sábia. Cortava

lenha, a despeito de tudo que já ouvira sobre o mundo, de todos os viajantes que
passaram por ali, ou aquém, sobre tudo o que viveu dentro dos limites da vila.

E vira muito nos longos anos que permaneceu ali, vendo todos envelhecerem,
morrerem e tornarem a nascer. Todas as gerações de Gebs, Florentes, Amassa-

ferros, Castanheiros e a família de Lis, os Oliveiras.


A sua linhagem definhou aos poucos, posto que era filha única e não pôde ter filhos.

Nem lhe era do agrado passar por este mundo vendo os seus amados morrerem.
Preferia a solidão à dor de perder alguém próximo, novamente. Tornou-se triste e um

pouco ranzinza. Querendo, instintivamente, afastar o mundo de si. Era isso ou

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aquela amargura novamente, que afinal, hoje só vinha como uma sombra na sua

lembrança. Como uma imagem tão longínqua que mal podia visualizar com clareza.
Estava cada vez mais no passado, porque ela assim quis.

E por todos os séculos que passou, ainda sabia a história de como tudo começou.
Mas já não tinha certeza se tudo fora verdade ou se o que sabia era uma lenda da

fundação. Aquela parábola misteriosa sobre as mulheres do início dos dias daquelas
bandas. Sobre as rezadeiras da gruta.

E aquela história voltou à sua mente enquanto apunhalava as toras.


Atrás da cachoeira havia uma gruta que foi habitada por duas rezadeiras. Isso, num

tempo muito distante, porém posterior à chegada dos homens e mulheres que
fundaram a Fortaleza do Sol. Eles vinham do Norte, da Primeira Cidade Anciã. E

algumas pessoas avançaram nas terras, e se estabeleceram às margens do rio.


Porém, antes disso, a lenda do Vilarejo conta que as rezadeiras eram guardiãs de

uma pedra maravilhosa, dada a elas pelo próprio Rei da Primeira Cidade Anciã, o
Primeiro Filho. Ele, que estava na superfície, abandonou o reino dos subterrâneos

carregando uma pedra no bucho, desesperou-se à procura de socorro. Então o Rei,


que tornara-se um assassino tirano por influência dessa jóia, encontrou o vilarejo e a

gruta. As rezadeiras lhe deram uma poção para que vomitasse a pedra, libertando o
Rei de todo o sofrimento que carregava. O homem partiu, deixando-a para trás.

As rezadeiras, esconderam a jóia no fundo da gruta. Depois disto é que foram


desposadas pelos homens do Norte, que tiveram com elas muitos filhos. E elas

viveram por muito, muito tempo até que a pedra foi roubada da gruta.
A mesma lenda também conta que a família dos Geb passou a ser mau vista na vila.

Há muito anos o antepassado Geb aparecera com uma gema maravilhosa.


Afirmavam assim, os moradores do córrego, que aquela era a pedra desaparecida,

cujo roubo ocasionou a morte das matriarcas. No entanto, tal pedra nunca mais foi
vista por ninguém, o que restou do burburinho foi a idéia de que os Geb a haviam

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roubado. O patriarca Geb, defendeu-se das acusações, porém os únicos que

acreditaram foram seus próprios familiares.


Acreditava-se que ele detinha a pedra consigo, conservando-a sob posse de sua

linhagem. Isso proporcionava a todos os seus descendentes, vida longa e saudável.


De fato eram todos longevos. Porém nunca se pôde confirmar tal inferência, por não

haver provas da existência da gema.


Exceto pela Velha do córrego. Que num tempo muito distante, quando ainda era

criança, durante um saque na vila, viu as casas serem queimadas. E junto das
cinzas a luz brilhante de uma pedra maravilhosa destacava-se entre os detritos. Um

brilho pulsante a chamava a olhar para o interior da pedra, onde uma luz se revolvia
e rodopiava com velocidade. Mal enconstara na superfície quando o velho Geb, que

vasculhava desesperadamente os destroços, arrancou a jóia de suas mãos. A


obrigou a ficar em silêncio, e disse-lhe que a enforcaria se pronunciasse a existência

da pedra.
Ela permaneceu em silêncio e jamais voltou a ver aquele seixo divino.

Porém algo fantástico lhe aconteceu, ela viveu por um longo período, de forma
sobrenatural. Atribuía, silenciosamente, o fato a algum poder que absorvera da

pedra quando a tocou.


Para ela, a dádiva era um castigo do qual não conseguia se livrar, e se via

repetidamente vivendo um mesmo pesadelo que nunca acabava.


Muito embora não conseguisse lembrar do passado com clareza, memórias

desconexas irrompiam em seus sonhos. Ela suava, e se debatia durante as noites.


Vivia atormentada com os acontecimentos dos anos, sem conseguir conectá-los.

Sentia sua vida como uma grande colcha de retalhos enorme e esburacada.
Faltando tantos pedaços, que ela mal podia identificar que se tratava de uma colcha,

puída e sem utilidade. Muito do mundo não fazia sentido, exceto os acontecimentos
do dia a dia. O fogo, a lenha, o córrego e os animais dos arredores. Todo o resto do

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mundo era um desafio invencível, obscuro e inconciliável com a modesta vida que

levava.
Mas algo havia mudado desde que Lis deixara o córrego, desde que o último filho

dos Geb fora assassinado. Sentia-se cansada, com o peso dos anos a desabar, todo
de uma vez só, sobre suas costas, sobre as juntas, sobre o diafragma cansado. Que

se movia com dificuldade durante a tosse noturna, durante aquele outono úmido e
mofado que chegara.

Afinal sentia-se velha e tentava visitar todas as lembranças estranhas que ainda
conseguia acessar, como quem se despede de seus livros, suas músicas preferidas

e todas as coisas que guardou, antes de morrer.


Mas ainda estava ali, desafiando a lenha sobre o tronco, descendo vigorosamente o

machado. Fazendo cavacos voarem entre a neblina densa. Quase uma chuva,
descia leve, como uma pluma sobre os cabelos grisalhos e longos da Velha do

Córrego.
Estava assim quando viu ouviu a respiração ofegante e a voz de socorro às suas

costas. Ela havia chegado e, apesar de estar velha e cansada, ainda conseguia
calcular as luas de uma mulher até o seu parto.

Voltando para o destino

Após parir Lis volta ao castelo.


O Rei fica puto, quer a criança. Pergunta onde ela foi.

Ele convence ela que pode ficar com a criança e tal. Pede pro Edir dar um soro da
verdade pra ela e ela desembucha.

Uma semente vingou

O rei sai obcecado pra pegar a crinaça, vai no vilarejo pega o menino, mata a velha
e ainda acha o colar. Lembra da profecia “folhas de lotus e tal” e leva pra asa a joia.

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Liz pariu a um menino, que chamou de Aron-sat-geb. Seu filho foi a última

lembrança do amor de Soler, porém, devido à cegueira, não podia ao menos lhe
admirar o rosto.

Pediu ao pai e à feiticeira que tomassem guarda do filho, e que deveria sair assim,

às pressas, com a dor do parto ainda no corpo, antes que chegassem os guardas ou
o próprio Tantalus Ágoras atrás dela, e lhe tomassem a criança. Explicou ao pai que

o menino seria morto na mesma hora, posto que era filho de Soler, e seria
assassinado, em virtude de um ódio sem limites, pelas mãos do próprio Rei.

O velho então concordou, e dando um beijo na testa da filha despediram-se. Ela

entregou o colar que carregava ao pai, e pediu-lhe em nome do que havia de mais
sagrado que entregasse ao filho quando este pudesse entender o que havia

acontecido; aquela era a herança que seu progenitor havia deixado. E pediu ao
velho Aron, que assim que o neto crescesse na idade de dez anos, que o enviasse

ao Templo do Sol para tornar-se um aprendiz, porém sua identidade deveria ser
mantida em segredo. Então, depois dos pedidos, foi conduzida novamente à cidade

pela feiticeira.

Desta vez foram apanhadas a poucos metros da entrada continental de Coptset, e


os homens vendo a Rainha tomada pelo sangue, a cambalear, alvejaram a feiticeira

com flechas. Correrram até sua rainha morinbunda e a conduziram seus aposentos,
gritando por um enfermeiro.

A Rainha, surpreendida com inúmeras perguntas que queriam saber o que


acontecera, explicou secamente a Edir que fora à casa de uma velha feiticeira, nas

montanhas, deitar o próprio filho com poções. O que lhe foi doloroso em todos os
sentidos, deixando-a prostrada pela imensa perda de sangue.

134
Deixando os aposentos precocemente, uma vez que ainda expuragava o sangue do

parto, tomou o rumo cego da torre de guarda e esbravejando contra o general


ordenou que fossem encarceirados os homens que alvejaram a velha que a salvara.

Foram as primeiras mortes ordenadas pela Rainha.

Deixando o passado no passado


Anos mais tarde, Liz, sagrou-se na Escola de Mistérios da Ordem do Sol, e foi então

que tornou-se a Sacerdotisa da Fortaleza do Sol. Destituiu Ilgadas de seu cargo


criando, com esta atitude, o mais ferrenho inimigo que poderia ter.

A queda da Rainha oriunda do Vilarejo do Córrego

A pequena foi envenenando sua mente com ódio e loucura, até alcançar caminhos
perigosos, cuja trilha de retorno era então desconhecida. Caminhos que a levariam a

ocupar um trono há muito esquecido, dentro de um pântano ao norte a escuridão


sussurrava seu nome. E ela foi, atendendo ao chamado tímido e persistente.

Cinco anos haviam se passado desde o nascimento de Aron, quando Tantalus


Ágoras invadiu A Sétima Cidade Anciã, depois de dois anos de empreitadas com

vitórias pouco significativas, há três noites o cerco à cidade havia acabado, porém
com sucesso.

Liz tratou de estabelecer-se por lá, posto que alguém deveria tomar as rédeas da
cidade e comandá-la de perto.

E foi lá que, durante os cincos anos que se passaram até o ingresso de Aron na
Escola dos Mistérios, a Rainha Tornou-se também a Sacerdotisa do Porto da Morte,

o reino dos pântanos.


Após a mudança de Liz, Sacerdotisa e Rainha do Templo da Ordem do Sol, para o

Porto da Morte ela nomeou uma sucessora para ocupar o seu lugar: Hebet, uma
Oradora da Lua, vinda da Cidade Gêmea.

135
Hebet permaneceu no poder tempo suficiente para Ilgada acabar com sua trajetória

na Fortaleza do Sol e no Templo da Ordem do Sol, uma vez que o herege Sacerdote
cobiçava o cargo e faria de tudo para tê-lo novamente. Ilgada acompanhava de perto

o trabalho da Sacerdotisa, como as moscas cerceiam a carne podre. Ele tratou de


envenenar a mente de Tantalus Ágoras e conquistar a confiança do rei, colocando o

reino inteiro contra a pequena clériga.

Caça aos clérigos!


A caça aos clérigos se estende por todos os territórios onde quer que Tantalus

Ágoras domine. Ele deposita sua confiança no maior conselheiro de guerra que
possui: seu fiel clérigo Edir Gramateus de Shadai.

Nem sempre foi assim.


Quando a Rainha Liz rumou para a sétima cidade anciã e lá estabeleceu moradia e

colocou sua imediata como Sacerdotisa Mor do Templo da Ordem do Sol, aos
poucos foi se desligando da Cidade do Sol. Permanecia no seu trono, cada vez mais

obscuro, até chegar ao ponto de ignorar a existência das cidades gÊmeas, ignorar a
existÊncia de qualquer outra forma de vida, caindo-lhe na face uma mascara negra e

desforme de injúria e ódio. Era certo que seu poder crescia gigantescamente, suas
ações se espalhavam tanto quanto as de Tantalus Ágoras.

Este foi o momento em que a Sacerdotisa Liz anunciou-se como Rainha de sátima
cidade anciã. Exortando suas intenções de vingança e oposição ao rei e marido, lhe

declarou guerra.
Com o rompimento oficial entre os reinos a liderança da imediata de Liz na Cidade

do Sol foi logo posta em cheque.


Ilgada tinha planos, seu poder e ambição o levariam a realizá-los. Ele não era um

seguidor da magia divina, fornecida pela revelação dos mistérios dos Deuses, ele
seguia as tradições herméticas, cuja fonte de poder não era a fé, mas sim a

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dedicação ao estudo dos elementos mágicos. Através de pactos com seres antigos,

Edir Gramateus de Shadai assegurou seu crescente poder: o profano, a imitação


das magias sagradas

Foi então que convocando a última reunião do Conselho Matra, com a intenção de
atacar sua esposa e oponente, Tantalus Ágoras declarou o desvinculamento da

Escola dos Mistérios da Ordem do Sol dos ensinamentos sagrados. Tornou-a


Fortaleza do Sol, uma escola de aprendizes de magia profana, simulacro da magia

divina. No entanto, nesta altura dos acontecementos, a Sacerdotiza não mais ligava
para a escola do Lua ou do Sol, tampouco para a magia divina. Ela tinha outros

aliados mais fortes e neste tempo em que esteve ocupando o trono da sétima
cidade, ganhou forças e aliados inesperados, enquanto arquitetava planos contra,

seu até então, Senhor.


Edir Gramateus de Shadai aproveitou-se da fraquesa de Tantalus Ágoras, tomando o

poder estratégico de defesa da cidade para si e através do posto de conselheito


militar, destituiu Hebet de seu Cargo, e nomeou-se Conselheiro Supremo e Feiticeiro

da Fortaleza do Sol. Edir Gramateus de Shadai era novamente o representante do


poder mágico de na cidade Gêmea do oriente.

Alguns aprendizes do sacerdócio da Cidade da Lua, inconformados com o abandono

da antiga religião do outro lado do rio, rumaram à Fortaleza para Patronar. edir
percebeu que o povo aos poucos começava a questionar sua Intolerância com os

Deuses. Para evitar a sublevação da população, Edir Gramateus de Shadai ordenou


a morte de todos os “Asseclas da Magia Divina”, como ele chamava: só poderiam

trafegar nos domínios de Coptset aqueles que usassem o símbolo da Fortaleza do


Sol em seu semblante.

De imediato ordenou a prisão da clériga Hebet, que foi humilhada em praça pública.

Onde foi publicamente torturada e obrigada a quebrar seu amuleto da lua, teve o

137
senho desfigurado por ferro em brasa, pois carregava na altura dos olhos a

tatuagem do símbolo sagrado da lua.

A Sacerdotisa Liz, que estabeleceu seu reino ao norte, perdeu-se nas escuridão por
longos anos. E sentada em seu trono, fomentou a vingança e o ódio em seu

coração. Esqueceu-se de suas razões, sua alma foi consumida pelo mal. Assim, a
escuridão da Sétima Cidade Anciã encontrou um novo governante: uma nova rainha.

Surgia então, a Sacerdotisa Negra.

E ela tramou uma vingança secreta contra Tantalus Ágoras e contra os Deuses, que
julgava ela, terem abandonado seu coração.

Senhores da escuridão

Nas profundezas da Sétima Cidade Anciã a Sacerdotisa encontrou um mal antigo

morando na escuridão, e ele tinha um nome: Sete, o sétimo.

Foi então, que despertado das entranhas da morte o ancestral aliou-se à Liz. Ambos
firmaram um acordo: ele a ensinava a antiga palavra de poder que tinha

conhecimento, e isto a tornaria invencível, e ela deveria lhe trazer aquela que
revelar-se-ia para assumir o trono da Rainha Negra profetizada.

O Sétimo Ancestral cultivava a vida da Sacerdotisa, como o meio físico de alcançar

seu objetivo sem esforços.

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Corromper Liz foi o primeiro passo. Destruir a magia divina sua maior conquista até
agora, pois se algum poder poderia rivalizar com o da Sacerdotiza, esse poder era

aquele que vem dos deuses. Para aniquilar de vez com este poder ele precisaria de
algo maior. Ele precisaria daquela que representa o poder dos deuses no mundo.

Porém trazer a Rainha do Templo da Lua para o lado mais sombrio seria uma obra
inatingível. Ele deveria fazer com que uma nova Rainha e Sacerdotiza do Templo da

Lua assumisse o trono, alguém mais inofensivo, tolo e moldável.


E foi o que ele tratou de sussurrar aos ouvidos da Rainha Liz. E ela assim o fez.

Depois da união de Liz e o Sétimo Ancestral as sombras começaram a tomar forma


sobre Cromm: uma escuridão cairia sobre o mundo de uma forma jamais vista.

que ele mais almejava Rainha da Estrela Fria. Para isto seria necessário mais que a

profetizada. Seria necessário encontrar as duas metades da Gema: Água Viva.

139
Livro II

A Guerreira Sem Nome

Capítulo I

O destino está traçado tu a tu!

1. O lamento da Sacerdotisa
2.

A jornada da sagração. Uma nova Rainha para a Cidade da Lua.

140
Uma Jornada Tranquila

Uma Noite Perturbadora

Os sonhos bons não os visitaram aquela noite. Bet acordou atordoada por
pesadelos que nem ao menos ousava lembrar. Em um salto se pôs sentada e ao

olhar para o lado assustou-se com Ben que lhe observava com olhos atentos e
inquiridores. Parecia não ter dormido, nem ao menos descansado. Ficara ali velando

seu sono.
O bardo movimentou os olhos em direção à margem do rio, onde uma pequena

luminosidade rompia a noite. Calmamente levantou-se e foi até lá. Ela o segui.
Um calafrio percorreu-lhe a carne ao ver que entre algumas urzes jazia um

esqueleto. Ben Adam abaixou e do chão, ao lado dos restos mortais, tomou uma
peça brilhante: um amuleto.

Hesitou por alguns instantes e ali ficou prostrado por muito tempo, até que por fim
virou-se em direção à Princesa e nelo o vestiu. Com os olhos tomados por lágrimas

voltou à enxerga e nada mais fez senão orar.


Ela reconhecia o amuleto, era o pingente de sua mãe!

Às margens do rio Mãe jaziam os restos mortais da Rainha da Cidade da Lua. Ali, no
silêncio, no anonimato, entre as urzes seu corpo se decompôs.

Juntaram vegetação seca e construíram uma pequena pira. Ben Adam ateou óleo
sobre ela e colocaram os restos da Rainha. Ele incendiou o monte funerário e

ambos rezaram ante o fogo que ardia em suas faces.


As dúvidas quanto ao destino da Sacerdotisa não mais existiam para Bet, era como

o fim de uma tempestade, cujas nuvens se dissipavam, fendida por raios de sol
tímidos.

Na manhã seguinte atravessaram o rio em um ponto mais abaixo, onde a correnteza


era domada por uma parede de pedras altas, e o rio bravio se enfurecia para tentar

141
transpô-la, jogava-se e esmerava-se, porém apenas uma parte das águas avançava.

A outra acumulava-se em uma represa rebelde e perigosa.


Finalmente pisaram nas areias hostis de Selqet e seguiram sem maiores

dificuldades por dois dias onde apenas dunas infinitas cruzavam a paisagem.
Deixavam para trás as margens do Rio Mãe.

A Travessia de Selqet

Nem o sol podia esquentar as areias de Selqet, pois o vento que ali soprava vinha
das montanhas de gelo, que ficavam ao norte, para onde rumavam. O lado Oriental

do Ausar recepcionava-os seca e cruelmente.


O ar do deserto era áspero e açoitavam o rosto pedrículas que viajavam nas

imensas nuvens de areia governadas pelos ventos circulares soprados naquela


imensidão inabitável. Eles traziam e levavam as dunas, recebendo por isto o nome

de Mastabachés, bancos que andam, na língua geral.


O deserto outrora fora um grande mar de água salobra que após a criação das

Cadeias Geladas , foi empurrado para fora do continente deixando apenas o Grande
Rio, Ausar, como legado de suas águas salgadas.

O vento que soprava por entre os combros sinuosos do deserto ressecava a boca.
Os lábios calados de Ben Adam adquiram uma coloração azulada e estavam

tomados pelas feridas e rachaduras.


Os cavalos sedentos não se contentavam com a pouca água que podia lhes ser

fornecer, permaneceram sedentos. Por isso não foram os montados, viajaram ao


lado do Sacerdote e da Princesa.

Trilharam assim, o deserto de Selqet com pernas e passos débeis, que eram
consumidos pela fome das areias e dunas.

Porém, Ben Adam mostrava-se seguro: ele era o guardião do caminho de Água Viva,
sabia exatamente como chegar à Neferthot. Ele parecia saber a direção da

142
montanha como se ela estivesse ali, logo à frente, diante de seus olhos. O

Sacerdote entrecruzava as areias caudalosas e emaranhantes com precisão.


Por pouco tempo descansavam: revesavam quatro horas de sono mal dormidas, nas

quais sabia que Ben Adam não dormia, entrava em uma espécie de estado de
vigília, um estado meditativo.

Em Selqet não há dia, pois os ventos carregam as dunas, soprando seus braços
arenosos até as alturas, tapando o sol e enegrecendo o céu. Ao olhar para cima, o

Astro Rei parecia uma lua perene a pairar sobre um pano de linho cru.
Quatro dias de cansaço, mantendo às vistas dunas e mais dunas, areias

intermináveis, até atingirem a Segunda Cidade Anciã.


Os ventos distorciam a vista, porém envolta em uma tempestade de areia estava a

suntuosa cidade abandonada, onde o segundo Net, Tef-Annafat A Leoa, ergueu seu
reino.

Ben Adam ao ver a bela e colossal cidade parou e a admirou por um tempo, e
quebrando o tão derradeiro silêncio, por fim disse:

-Desviaremos, evitaremos a cidade, pois os que habitam ali são demônios do


deserto: Djins, as quimeras que tanto atormentam os confins destas terras. O Djins

são tão antigos quanto os Nets. Surgiram da dor dos filhos das consciências, como
Belphegor, que surgiu da inveja de Utul, o espírito dos mares. Aqui habita

Mastemah, a ira de Amani. Segundo a lenda, Arameth, filho da Quarta Conciência,


ajudou Amani a evitar Utul, espalhando suas areias e secando o mar. Mastemah

surge então carregado da ira de Amani e tocado pela força de Arameth, e não pôde
ser contido desde então, tomando a Segunda Cidade Anciã como morada. Abalou o

povo de Tef-Annafat para terras mais ao oeste, transformando toda a cidade e


longas extensões de suas terras, em um deserto onde surrupiam as almas entre

ventos famigerados. Uma ira sem fim encontra-se ali, Bet, adormecida na maldade
dos braços de Mastemah.

143
Um calafrio percorreu a alma da clériga. “Evitei então olhar para dentro dos ventos

que giravam em torno da cidade.” disse, ainda que curiosa, o medo e o repeito pelas
ordens do Sacerdote a motivavam a não fazê-lo. As vestes drapejavam, açoitando-

lhe as pernas, ao comando do vento, como se o prórpio Mastemah os chicoteasse.


Depois do rápido olhar que ela dirigiu à cidade, sentiu o mal que espreitava à volta.

O vento sussurrava um ódio antigo, consumido nas entranhas do deserto durante


incontáveis luas.

Seguiram dando as costas para a cidade, que parecia os observar.


Conforme se distanciaram um gorjear estridente chamou a atenção: abutres

carniceiros desenhavam círculos sinistros de morte sobre suas cabeças, no céu de


areia de Selqet.

Ao sexto dia a ração animal estava quase acabando e um dos cavalos não resistiria.
O animal gambeteava, desidratado, magro e fraquejante, até que finalmente caiu

haurido de forças. Tentaram reanimá-lo, e levantando-se por duas vezes tombou


novamente. Não tinham um meio de sacrificá-lo e tiveram de abandoná-lo

simplesmente. Ficando à mercê dos abutres.

Mal se afastaram e os abutres pousaram sobre o cavalo bicando-lhe a carne


secamente. O animal ainda relutou por algum tempo levantando-se e sacudindo a

crina ensanguentada, no entanto tornou a cair. As aves afastavam-se por instantes,


bicavam umas ás outras, crocitando, e voltaram a atacá-lo, para antecipar sua

morte. O cavalo relinchava desesperadamente, mas por fim cedeu aos abutres. Com
tristeza afastaram-se escutando gritos disformes perdidos entre o vento do deserto.

Seguiram abalados pelo acontecimento e seus pensamentos vagavam por rumos


aleatórios, mas acabavam retornando àquelas imagens atrozes. Após horas de

caminhada a princesa percebeu que, novamente, alguns abutres rondavam o céu


sobre suas cabeças.

144
Continuaram a caminhada durante a noite, prosseguindo além das forças que

dispunham, para poder deixar para trás o medonho deserto que os castigava de
sede, de fome e de frio. E esta última noite parecia mais gelada que as demais. A

pele ressecada e sulcada pelas intempéries do deserto ardia por debaixo das
vestes, fazia-os sentir como se houvessem cotados seus corpos com lâminas e

depois os banhado em sal. De fato, a areia salobra entrava nas ranhuras da pele
queimando.

Pararam para descansar pela manhã e puderam ao longe vislumbrar um lago que
mostrei ao Bardo, ele, no entanto, sacudiu a cabeça em um não.

-Aquilo não é água Bet! É uma miragem, um feitiço do deserto. Algo que pensas
estar vendo e não existe.

-Quando vamos sair do deserto, Ben Adam?


-Talvez ao final do próximo dia, por enquanto poupe esforços guardando sua fala,

estamos cansados fisicamente e mentalmente.


A princesa calou-se afim de não contrariar Ben Adam, no entanto o que ela mais

queria naquele momento era um pouco de calor humano. Seguiram caminhando, e


os pensamentos dela se foram por rumos desconhecidos, onde inquietantes

lembranças lhe tomavam por vezes.


Absorta, percebeu que Ben Adam havia parado, apenas muito tempo depois,

quando já estava bem à frente. Parou e virou-se na direção Bardo esperando que
ele a alcançasse. No entanto ele não se movia, olhava ao seu redor procurando algo

nas areias. A princesa nada via ao olhar em volta, mas persistia uma sensação de
que algo estava se mexendo sob as areias. Neste instante sentiu uma pequena e

veloz ondulação sob meus pés, porém não conseguiu ver o que havia a causado.
Então novamente o mesmo deslocamento na superfície. Só aí tudo tornou-se visível:

pequenas ondulações emergiram e tornaram-se visíveis na areia, formando circulos


ao seu redor, como fossem centenas de seres correndo debaixo do lençol de sílica

do deserto.

145
Ben Adam gritou:

-Bet, corra! Escorpiões!


Neste instante milhares de escorpiões brotaram da areia, tornando o chão um manto

negro vivo em movimento, cercando a aprendiz e ao Sacerdote. Adiante, um ciclone


de areia se formou levantando-se do chão num turbilhão de grãos e vento. Ele

tomou uma certa distância, mas tornava-se maior a cada instante, agregando mais e
mais areia à sua forma. Cresceu até a altura de uns seis corpos mais ou menos e

permaneceu dançando entre o sacerdote e Bet. Do olho do ciclone uma treva


incomum esvaía, era arremessada para fora do tufo pela força circular através das

fendas do turbilhão. A tenebrosidade caía ao chão na forma de poças, um caldo


denso e negro, que parecia vivo. Uma escuridão pulsante se alastrava nas areias e

inúmeros fossos negros como estes se formaram. Os escorpiões cada vez mais se
aproximavam, também os ameaçando.

O Sacerdote cerrou os olhos e uma grande altivez lhe moldou o cenho, onde a
marca da meia pedra cintilou. Ben Adam pegou seu odre e derramou o que restava

de água sobre o chão e orando invocou:


-Eu sou o Senhor, o guardião dos segredos da Primeira nessa face do mundo, o

detentor das palavras da vida! Ordeno que venhas à mim, que sou teu Deus, ó
glorioso elemental! Venha à mim!

A lama aos pés do sacerdote começou a borbulhar lentamente. A onda viva de


escorpiões se desviou na direção do Sacerdote. O chicote de areia vagueou sobre o

pedículo do turbilhão até alcançá-lo. A princesa não poderia ficar parada e se pôs a
esmagar os escorpiões inutilmente, que se esfacelavam, como se fossem apenas

uma fina casca, como insetos mortos cuja armadura foi a única coisa que restou.
Da poça mãos começaram a tomar forma, mãos de lama. Elas esgarçavam o circulo

de barro, e em poucos segundos a areia começou a escorregar para dentro dela


mesma, como um funil, em direção ao buraco que o elemental fez, e o Sacerdote foi

sugado.

146
Bet deseseprou-se mais ainda: estava sozinha e diante de uma força atroz a qual

não tinha capacidade de enfrentar.


No entanto sentiu a areia sob meus pés começar a ceder e rapidamente foi sugada

para dentro do chão. Ela escorregou pelo funil de barro e caiu sentada em lugar que
não podia ver, pois tudo o mais era escuridão e o ar irrespirável.

Logo escutou a voz confortante do Sacerdote:


-Bet! Fique calma, onde quer que estejas, Estamos à salvo.

-Ben Adam, me ajude, não posso ver nada!


À frente uma luminosidade tímida farfalhava. E aos poucos, a visibilidade que

estivera encoberta por uma nuvem de poeira, deu lugar a uma frágil transarência.
Ela identificou a silhueta do Clérigo.

-Escute minha querida, logo sairemos daqui. Vamos esperar a poeira ceder um
pouco para que possamos enxergar o caminho.

-Ben Adam, onde estamos? O que são aquelas coisas que nos atacaram?
-Estamos dentro da terra, Bet. Aquelas “coisas”? Não sei! Mas com certeza foram

enviadas por alguém para nos atacar. Não existe nada no deserto. Nenhuma criatura
viva.

-Esmaguei alguns escorpiões, mas eles pareciam apenas uma muda, uma carapaça
abandonada. Ao serem pisados se esfacelavam.

-Estranho... Como se estivessem mortos?


-Sim, isso mesmo!

-Hum… - Uma dúvida cruzou a expressão do Sacerdote, apertando-lhe as


sobrancelhas. Ele coçou a barba.

-Que foi Ben Adam, sabes do que se tratam aqueles seres?


-Não... Apenas uma leve desconfiança. Uma torta desconfiança impossível.

-De quê?
-Que estejamos lidando com uma coisa muito maior do que apenas escorpiões

mortos.

147
-O quê, então?

-Velhas magias, velhas palavras, há muito esquecidas. Velhos inimigos de um


passado que se quer se assemelha ao pior dos pesadelos…

A poeira por fim se dissipou e a princesa pôde ver onde se encontrava: estavam sob
o abrigo de uma gruta de areia desértica sustentada por uma viga de lodo em forma

humana: o elemental de areia sustentava um teto movediço, onde escapavam-se


fios ininterruptos de areia fina, como em uma ampulheta. O Sacerdote segurava uma

pequena esfera de cor azul, de onde emanava a luz perene e fria que iluminava a
bizarra gruta. Tapados de poeira, por todos os lugares, enxergava nos cílios

pequenos cristais adornando e encobrindo a visão. A expressão de Ben Adam era de


alguém preocupado que estava perdido em pensamentos nada agradáveis, e dentro

de sua mente cogitava a hipótese pior.


-Ben Adam, que faremos agora?

E ele respondeu como que fosse arrancado de dentro dos pensamentos:


-Nós? Seguiremos pelo subterrâneo até a segunda cidade Anciã. Lá há um túnel

construído pelo povo da Leoa para estratégias de batalha- e o Sacerdote desenhou


um mapa na areia- que vai direto para um dos braços da leoa. Chamam-se assim os

dois grandes rios que encerram as terras daquela que foi a Guerreira Leoa, Rainha
do Povo da Segunda Cidade Anciã. Este túnel foi construído durante as guerras

entre o povo das Amazonas Leoas contra Ankset, para levar as tropas em segurança
até o porto. Iremos por aqui.

-Mas teremos que ir até a Segunda Cidade Anciã…- retorquiu Bet.


-Você tem razão, é arriscado. Se rumarmos diretamente ao túnel… O caminho será

longo para que o Elemental continue sustentando esse túnel. Talvez sejamos
soterrados, e não há mais água para um encantamento. Se passarmos pela

segunda cidade Anciã… Há razão em seus temores, pequena. A cidade poderá nos
expor a toda sorte de perigos. Vamo direto para os túneis, ao chegar lá pensaremos

em algo.

148
O elemental se fundia à areia do teto e do chão, e quanto mais caminhavam mais

sufocante o ar se tornava. Cobriram a boca e as narinas com a gola, evitando o pó


fino do subsolo. E caminharam até perder a noção do tempo. Sabiam que estavam

cansados, pois o vigor se esvaíra. As pernas doíam tanto que vergalhões


apareceram nas canelas da jovem. Estavam inchadas e não podia suportar nem

mais um passo. As roupas tomadas de areia deixavam tudo o mais pesado e


cansativo. Uma sensação de desgaste caía no corpo, tornando as passadas lentas e

trôpegas.
Até, que por fim, Bet tombou.

A Passagem Movediça
A aprendiz acordou friccionando os olhos, ardidos, ressecados, inchados e

vermelhos. Sentia como se houvessem limalhas de ferro roçando nas vistas.


Estava à frente de uma parede gigantesca de pedra argilosa. Diante haviam dois

elementais: um segurando o teto e o outro golpeando a parede.


-Ben Adam, eu adormeci! O que houve com o seu braço? Estás sangrando!

-Quando caíste tive que invocar um novo elemental para carrega-la. Como não
tínhamos água, cortei o braço com os dentes para poder fazer um pouco de barro.

-Pela Deusa, Ben Adam!


-Mas em breve estarei curado... O Amuleto não me abandona jamais.

-Aquela é a entrada para o túnel? –apontei a parede.


-Em breve será!

O elemental surrou o muro por muito tempo até conseguir abrir um buraco de mais
ou menos um quarto de corpo.

A areia do teto começava a se esvair cada vez mais rápido; alguma coisa não estava
certa.

-Ben Adam, a areia esta caindo cada vez mais depressa. O que está havendo?
Estou assustada!

149
-A magia não dura para sempre Bet! O elemental está morrendo. Se o outro não

abrir o buraco rapidamente seremos soterrados aqui.


-Pela Deusa! Não podes fazer nenhuma outra magia? Qualquer coisa!

-Estou exausto demais, não consigo me concentrar. Meus últimos esforços foram
para das vida ao outro elemental.

A areia cedia numa velocidade maior a cada instante, e então Bet pôs-se a socar a
parede junto com o elemental. Sentia-se inútil ao ver que nada ocorria, exceto o

desabar ininterrupto do teto.


O desespero aumentava cada vez mais: era como dormir e acordar em um

pesadelo. Que esperança havia naquele momento? O que pensar a não ser no
derradeiro?

Ela percebia que não estava pronta para ser Rainha da Cidade da Lua. Seu
treinamento não fora completo, a única coisa que sabia era rezar. Mas sem a força

da Deusa... Sem ela não poderia sequer rezar para uma morte sem sofrimentos.
Algo lhe dizia que deveria socar a parede: e esse “algo” era seu instinto, e não sua

fé.
-Bet! Deixe a parede, é inútil, reza! Usa tua fé, reza para a Deusa! És a princesa de

Harpis, futura guardiã dos segredos da Primeira! Não deves surrar uma parede, mas
sim rezar! Foi para isto que serviu tua instrução? Honra teu reino, reza!

Em meio ao desespero ainda pôde ouvir os pedidos de Ben Adam, e se pôs a rezar.
No entanto rezou achando aquilo tudo muito inútil, e não conseguia parar de olhar o

elemental surrando a parede, ansiosa que ela caísse em um só golpe.


A areia sobre eles estava no limite: o elemental estava quase que se desfazendo por

completo e apenas um corpo de altura separavam suas cabeças do peso de toda


areia do deserto.

A parede havia cedido um pouco mais, e num ímpeto a princesa deixou de rezar e
se espremeu pelo buraco. Ela passaria, mas pelos seus cálculos o buraco era

pequeno demais para o Sacerdote.

150
Atravessou com dificuldades a parede espessa, e do outro lado chamou por Ben

Adam.
O Sacerdote esticou as mãos pela passagem para que o puxasse. A princesa o

segurou e colocou os pés contra abertura e o trouxe para si; seu tronco estava
passando pela fenda quando toda a areia começou a desmoronar atrás dele.

-Não posso mais puxá-lo! Não tenho forças!


A areia já entrava pela fenda, de forma que estava quase por sufocar Ben Adam,

quando o outro elemental segurou o teto.


Novamente a clériga se posicionou e puxou o Sacerdote, escoriado, pela abertura.

Em seguida uma lufada escapou pelo buraco empurrando uma grande quantidade
de areia para dentro do túnel, obstruíndo a passagem.

Já no túnel recostaram-se e descansaram sem mais pensar.

O Túnel da Leoa
Quando Betsheba acordou, acreditava ter cochilado por segundos, no entanto o

Sacerdote estava acordado e com um ar contrariado lhe disse que ambos haviam
pegado no sono, por horas talvez.

Percebeu a frieza e aspereza na voz de Ben Adam que lhe eram dirigidas. Escolheu
não dizer mais nada, pois sabia o que estava errado: ela não era uma sacerdotisa!

No momento em que precisou demonstrar sua fé, só tinha desespero.


Qual sacerdote não se faz ouvir por seu Deus?

Com certeza não são aqueles que serão reis ou rainhas, com certeza não ela.
O silêncio entre os dois pulsava, gritava aquele acontecimento. Martelava. Toda vez

que ela olhava para Ben Adam via em sua face o reflexo da decepção.
Acima do túnel, no deserto, o frio era um inimigo, no túnel ele era um algoz. Uma

corrente gélida soprava no seu interior, porém foi isso que fez com que pudessem se
guiar, certamente estavam perto da saída.

151
A luz farfalhante da pedra era bastante para enxergar os desenhos maravilhosos

pintados nas paredes, agora empoeiradas: cenas e mais cenas de guerra, exércitos
de mulheres e hordas de criaturas terríveis.

Corpos espalhados por campos de batalhas, pilhas de armas e grande tesouros,


glórias e derrotas narradas por um povo que teve de abandonar sua terra não pela

guerra, mas pelo ódio de um vento sem fim.


As areias cobriam a parede, e, no entanto não eram capazes de apagar a

grandiosidade do povo da Leoa.


O túnel seguia, e, em uma determinada altura, o teto começou a ficar mais distante

até desembocarem numa sala oval, com não mais que quatro corpos de tamanho.
Era pequena e não muito alta, no entanto era sombria. Pairava ali uma aura de

sobriedade. Havia alguns buracos na parede, que eram semelhantes às ruínas na


Cidade da Lua: lá usavam aqueles espaços como tinas, que cheias de sal

conservavam alimentos. Havia escombros de areia para todos os lados, e


provavelmente algo por debaixo da terra.

Adiante na sala havia uma duna do tamanho de um corpo, e no topo dela ,duas
saliências de pedra triangulares.

Ben Adam removeu a terra com as mãos, revelando o rosto de um ídolo, a Deusa do
deserto, a Guerreira Leoa.

A boca do ídolo tinha uma cavidade: por onde entrava a seiva da vida que lhe era
ofertada. Segundo as cenas dos murais o povo da Leoa praticava sacrifícios

numerosos em oferenda à sua Deusa. Todos os guerreiros inimigos capturados nas


batalhas eram mortos e devorados por ela.

-Ben Adam, eu vi nos painéis que as belas rainhas guerreiras praticavam sacrifícios
à sua Deusa. Esta é uma sala de sacrifícios?

-Também. Aqui na verdade era um posto estratégico que guardava mantimentos,


armamentos e era um templo onde as guerreiras podiam reforçar os votos de sua fé

durantes as batalhas.

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-Que sombrio!

-Sombrio? Não sei onde quer chegar Bet! Não se pode contestar a fé! Estamos
falando da crença de alguém e nisso não existe certo nem errado, existem apenas

visões de mundo diferentes. Veja que estes guerreiros rezavam, assim como há
clérigos que esmurram paredes. Você nunca vai chegar a lugar algum, Bet, se não

for através da sua fé.


A aprendiz voltou ao silêncio depois do comentário do Sacerdote. Aquelas palavras

arranhavam o seu coração. Esgarçavam a sua dignidade, como nenhuma outra


coisa fizera. A Princesa estava quebrada, sem orgulho, sem porquê. Não ser uma

oradora era algo inadmissível para alguém destinado ao trono da Cidade da Lua. E
ela não era uma oradora. Urgia no meu peito uma chama que se revelava aos

poucos, porém com força. E não a serenidade, a calma e perseverança necessários


ao sacerdócio. Depois de viver uma vida de dedicação aos ensinamentos, revelou-

se o fracasso.
Estudara sua vida toda para ser uma Sacerdotisa e não conseguia fazer mais

truques além daqueles tolos, como bolinhas de areia. Nunca havia se deparado com
uma situação real de perigo e urgência, até então. E quando tudo aconteceu, se viu

falhar. Como uma animal amedrontado, desesperou-se e correu desatinada.


Como enfrentar a própria derrota sem sentir-se envergonhada. Uma chama fenecia

no seu âmago. Seus esforços para ser o que dela esperavam, se opunham a um
grito desconhecido no seu íntimo. Deveria prosseguir. Por si, pelos outros.

Embora cansados, a vontade cega de abandonar o túnel, os empurrava.


Há uma certa altura o túnel ficou estreito e desembocava em três caminhos. As

passagens laterais tinham o teto bem mais alto, cerca de dois corpos, mais ou
menos. O acesso do meio era tão baixo e estreito que um humano só passaria por

ali se bem curvado, sem nenhuma arma ou escudo.


-Ben Adam, por onde seguiremos?

153
-Tomaremos o caminho do meio. Essas veredas- e apontou para as passagens

laterais- são túneis de minagem. O inimigo só poderia vir pelo trilho central; os túneis
das pontas, em toda sua extensão, possuem fendas por onde as guerreiras

apunhalavam quem passasse por ali. Ele possui essas dimensões para que fossem
obrigados a deixar seu equipamento na rua, ou o abandonassem pelo caminho.

Certamente o túnel central nos levará para a saída.


-Como as amazonas passavam com equipamentos e feridos pelo túnel?

-Alguma passagem secreta em algum lugar. Mas não perderemos tempo


procurando-as. Tomaremos este caminho que é certeiro.

A passadela possibilitava um caminhar curvado, de passos curtos e topadas


frequentes. Um tapete de ossos forrava o chão, juntamente com restos de roupas,

armaduras e pequenos objetos. O caminho que fora cavado na argila vermelha, era
oval, como se uma minhoca gigante houvesse fendido a plataforma, em direção ao

deserto. Desembocaram numa sala ampla e escura, que se projetava das


profundezas da areia para a superfície. De lá via-se o exterior.

O salão tinha portões gigantescos de madeira, na verdade, o que restava deles


estava espalhado pelo salão. Um vento frio surrupiava até o teto, cantando nas

orelhas notas agudas.


Ao colocar os pés naquele lugar notaram que não estavam a sós. Entre as sombras,

nos cantos do cômodo, formas se arrastavam.


Atravessaram apressadamente o passadiço deixando para trás os misteriosos vultos

na escuridão.

A travessia corrediça e o fim de uma esperança


Os dormentes deteriorados não sustentavam mais os portões do túnel, jaziam

esfarelados aos pés de uma grande abertura com de seis corpos de altura e três de
largura. Pelo chão se espalhavam pedaços de espadas, escudos, ossos de criaturas

154
e carroças. No entanto o cheiro do vento havia mudado: era um cheiro molhado, um

cheiro de pasto e barro.


À frente dos grandes dormentes uma ponte oscilante se projetava sobre o Braço

Direito da Leoa, desembocando na outra margem numa vastidão de juncos.


O vento soprava fortemente, empurrando com ferocidade a correnteza. As águas

corriam desatinadas pelas margens, embatendo-se com fúria contra a parede


rochosa. Na margem oposta vislumbravam um mar de juncos, imersos e deitados no

sentido da correnteza, como uma cabeleira debaixo d'água: uma longa faixa ciliar
que adornava a lâmina bravia. Àquela altura o rio era tão escuro quanto a pelagem

da Leoa e nada se via além da incipiente superfície. Por debaixo daquela fúria
castanha, nada havia de constante na revolução das areias e das águas. Segredos

de guerras passadas, de viagens e seus viajantes, de exércitos e suas armas, de


pessoas e suas vidas, Todos soterrados pelas areias molhadas do leito feroz.

À nossa esquerda erguia-se no horizonte uma cordilheira, em um ponto distante,


onde as margens do rio se encontravam. Na extremidade oposta a imagem das

vagas curtas se perdia, misturando-se ao tom laranja das areias do deserto e a


margem verde musgo dos juncos ribeirinhos.

A ponte era feita de corda. Inúmeras cordas finas trançadas, que por sua vez
tramadas entre si formavam um cordame da largura do um punho cerrado. È claro,

estava corroída pela intempérie, porém suficientemente inteira para garantir a


travessia, suportariam a leveza dos corpos de dois famintos.

Ben Adam retirou o cinto e o amarrou ao odre, mergulhando o recipiente no rio. O


odre emergiu cheio de uma água castanha, repleta de areia e outros pequenos

materiais. O Sacerdote olhou com seriedade nos olhos da aprendiz e colocando o


odre em suas mãos ordenou que purificasse a água.

Estava receosa após o episódio desesperador no túnel da Leoa. No entanto


colocou-se de joelhos na ponte e mergulhou a extremidade dos dedos na água

coletada. Deu início ao ritual de purificação pedindo em silêncio que a Deusa não a

155
deixasse à mercê da vergonha ante ao Sacerdote lhe ajudando a tornar a água

própria para beber. Fez o agradecimento e em seguida pronunciou a invocação das


águas.

Sentia os olhos de Ben Adam sobre si esperando que ao menos pudesse realizar a
purificação, um ritual básico de iniciação. No entanto não foi capaz.

Tudo o que mais queria naquele instante era que nada daquilo houvesse existido,
que tudo, todo o poder dos deuses no mundo, toda a confiança que lhe foi

depositada para assumir o mais importante lugar político e religioso do ocidente


fosse apenas um pesadelo que se esquece ao acordar. Queria que sua mãe

estivesse viva e pudesse livrá-la deste fardo para o qual foi criada, e que descobriu
não poder suportar.

O que mais queria era salvar seu povo, seu mundo, porém não sabia como usar a
fé.

No seu íntimo, talvez não brilhasse a centelha do amor ao Deuses, o talento Divino
de erguer a vida. Era algo como uma força própria, um grito desesperado que

forcejava seu punho.


O poder divino não lhe cabia. Era distante demais, alheio demais. Ela sabia que não

poderia. Era fraca e desistia facilmente, desesperava-se facilmente.


Naquele momento sentiu cair sobre si o peso de mil corpos, todos carregados no

olhar de Ben Adam. Sua expressão, não viu, pois não teve coragem de erguer o
rosto.

Mil olhos de crocodilos.

Ben Adam retirou da bolsa um apito. E soprou em direção à subida do rio. Não havia
som algum, ao menos nenhum audível para a princesa.

Silenciosamente o Bardo sentou-se sobre a ponte e deixou seu olhar vagar perdido
por sobre as águas do rio.

156
A vida segue seu curso como aquelas águas descem o rio. Sem perguntar para

onde têm que ir, elas simplesmente vão. Talvez seguindo o destino do rio, que já
estaria traçado. O destino não estava traçado para Betsheba. Ela acreditava que

poderia mudá-lo. Pensam que não é possível mudar o curso de rio aqueles que
acreditam que isso só poderia acontecer pela força de algo Divino, e não pelo pode

de suas próprias mãos. Pensam assim aqueles que acreditam que não há um rumo
independente do querer celestial, que ignoram a inclinação do relevo, o movimento

do ventos, e influencia da força dos astros a determinar o curso de um rio. Não é


nenhum destino místico. Os que compreenderem isso conseguirão manipular uma

magia sem fim, que é o conhecimento. Assim poderão moldar a vida e, alterando
quaisquer destes fatores, modificarão o curso do rio de acordo com a sua vontade.

Mas só o farão aqueles que possuírem força de vontade e perspicácia para tal para
saber que nós é que os homens vão aos deuses, não como eles vem à terra.

Bet não poderia mudar o curso de um rio, pelo menos por enquanto. Ela não poderia
mudar o curso da sua vida, não nesse momento. Não poderia mudar o destino tão

desesperador que se revelava, porque não enxergava os elementos, porque não


tinha forças para controlar os acontecimentos, era fraca, infantiloide e desmotivada.

Ben Adam estava cabisbaixo e prostrado há muito tempo na mesma posição. A


aprendiz jogava pedras no rio quando ouviu algo se movimentar entre os juncos. O

Sacerdote não notou o barulho. A movimentação cessou e ela deu de ombros.


Alguns instantes depois tornou a escutar os mesmos sons e viu que os juncos no

sopé da ponte se movimentavam. Vislumbrou uma criatura entre a vegetação.


A jovem chamou pelo Sacerdote, que lhe olhou de soslaio e com o dedo em riste

sobre os lábios pediu silêncio, como se já houvesse percebido a inquietação e


estivesse preparado para qualquer surpresa. Na outra margem inúmeros outras

movimentações surgiram, como se criaturas estivessem entrando no rio.


Caminhando em direção à entrada do túnel, agarrou um escudo que estava pelo

chão e uma pequena lança de ponteira enferrujada, com o cabo quebrado.

157
Ben Adam vendo aquilo meneou a cabeça, como quem diz “minha decepção não

tem fim”.

Repentinamente saltou de dentro do charco um monstro gigantesco de bocarra


aberta com milhões de dentes afiadíssimos. Um crocodilo com cerca de um corpo de

tamanho se lançou sobre o sacerdote, porém o Bardo já estava preparado: no


mesmo instante a água do rio subiu pelas fendas entre as madeiras da ponte, com

apenas um comando seu, entrepondo Ben Adam e o crocodilo. A lâmina d'água era
um escudo impenetrável. O animal bateu a face na lâmina e caiu sobre o cordame,

porém se recompôs e logo investiu contra o escudo novamente.


Começaram a surgir na água dezenas de cabeças, que rumavam a margem oposta

do rio.
Eram muitos crocodilos e eles subiram facilmente a margem inclinada, escalando

com as garras longas, as rochas macias da pequena elevação. No entanto, se


puseram erguidos sobre as patas traseiras quando chegaram à terra firme.

A princesa subiu na ponte rapidamente, colocando-se de costas para o Sacerdote.


Os crocodilos assumiram postura humanoide, Kolbis, o povo crocodilo dos pântanos

do norte.
Eles correram em sua direção, ela tapou a cabeça com o escudo. Sentiu uma

pressão enorme sobre o braço, em seguida surgiu no bronze, sulcado, uma fileira de
muitos dentes afiados. Deslocando o escudo um pouco para o lado, viu uma boca

enorme lançar-se novamente, a clériga enfiou o escudo para dentro dela e empurrou
o monstro que caiu sobre os outros soldados que vinham atrás. Alguns se

desequilibraram e seguraram o cordame, outros caíram na água e houveram


aqueles que apenas recuaram para não serem atingidos.

Bet sentu-se admirada de suas ações.


Escutou por detrás do ombro o Bardo conjurando um elemental. Logo se levantou da

encosta arenosa do rio uma mão de barro enorme, agarrando os soldados que

158
estavam mais atrás. Ela os ergueu há dez corpos, aproximadamente e os

arremessou ao longe, na direção do deserto.


Os crocodilos que haviam caído na água saltavam e tentavam mordiscar o cordame

para destruir a ponte enquanto o aquele que estava em frente ao Bardo guinchava e
recuava. Debaixo das águas caudalosas do rio emergiu uma criatura, um crocodilo

negro, com cerca de seis corpos de tamanho, pelo seu dorso subia uma faixa de
espinhos encouraçados que terminavam no alto da cabeça, se projetando ao alto

como uma coroa. Seus olhos eram duros e negros. A criatura guinchou e submergiu
no rio novamente. Após subiu a margem do pântano, desaparecendo entre os

juncos. Antes tornou a guinchar, projetando a cabeça para trás. Todos, ao ouvirem o
chamado, pararam e entraram no rio, para sumir entre as margens do charco, junto

com o crocodilo rei.


Ben Adam caiu de joelhos, e desmaiou nos braços da princesa. Ela o puxou até a

margem seca e deitou sua cabeça no colo. Ficou atenta a cada movimento, com o
coração batendo na garganta e os olhos vidrados em todos os lugares. Algumas

lágrimas caíam. Talvez pelo susto ou por não conseguir acreditar que tenham saído
vivos da empreitada inimiga.

O sol começava a deixar o mundo, todo o horizonte tingiu-se de rosa e laranja


enquanto o charco absorvia o primeiro negrume da noite.

A noite ia alta e o Sacerdote não havia acordado ainda.


Uma noite clara, pois brilhava no céu o círculo lunar dos deuses. A Grande Deusa

Lua, branca e gigantesca, assomava no firmamento, próxima e fria. Atrás da Grande


Deusa Lua estava Sorda, a lua dos Chacais. Laranja, pequena e rápida, a lua que os

guiava nos céus, surgia duas vezes ao dia dos pés das montanhas do desfiladeiro
dos Chacais. E por fim, o grande olho azul. Sempre observado a todos durante os

dias e as noites, imóvel. E sim, todas as estrelas, constelações, clarões e poeiras


das luas que as circulavam, todos muito brilhantes na vastidão negra e incalculável.

159
Porém, no charco, outros pontos brilhavam à luz da lua, refletiam uma constante

vigília, não os atacaram mais. Permaneceram irrequietos, esperando algo. Talvez


não atacassem durante à noite, ou não atacassem quem não oferecia ameaça. “Mas

porque ameaça?” pensava a princesa , “É claro, invadimos seu território!


Cruzávamos a ponte, como não pensei nisso!”, concluiu.

Mas o que o Sacerdote convocara com seu apito?


A jovem tomou o apito da bolsa de Ben Adam e o soprou novamente. Nada

aconteceu. Nada que ela pudesse ver.

Velhos inimigos, novos amigos.


Ela Repousou a cabeça do Sacerdote sobre uma veste dobrada e procurou alguma

coisa que prestasse para queimar. Algumas armas com cabos de madeira e outros
objetos que estavam enterrados nas areias. Pedaços de carroça também serviriam.

Escudos quebrados dariam um bom fogo. Entre as areias encontrou uma medalha.
Parecia um encruste ou emblema, um broche de armadura talvez. Era um olho de

extremidades alongadas coberto por uma farta sobrancelha. Um olho castanho e em


sua íris estava desenhado o Deus Chacal.

Colocou o encruste na bolsa do Sacerdote, pegou a pedra e o isqueiro, começou a


fazer o fogo.

O fogo reluzia e acendia a centelha nos milhares de olhos espalhados no charco do


outro lado do rio. A princesa encontrava-se sob constante vigilância.

As labaredas cresceram, estalaram as madeiras secas que usou de substrato. A


lenha era consumida com rapidez, deixando apenas as ponteiras, os brasões,

punhos e rebites. Talvez o encruste que achara tenha alimentado uma fogueira como
esta.

O sono do Bardo era permeado de inquietude. Pequenos saltos e sustos, palavras


sussurradas em outras línguas, enquanto era acometido por um estado febril. Vertia

muita água das têmporas e seu cabelo estava completamente molhado, bem como

160
suas vestes. Cobriu o sacerdote com o manto e retirou-lhe a bata, deixando à beira

do fogo afim de que evaporasse a umidade. Seu corpo tremia e estava quente.
Se os crocodilos tomassem a decisão de atacar, certamente poderiam estraçalha-los

com facilidade, pois o estado do Sacerdote não possibilitava sequer uma remoção
do local com rapidez, a tempo de evitar um desastre. Não havia esconderijo senão

os portões do Túnel da Leoa, que em seus salões guardavam sombras misteriosas


com sentimentos perturbadores e maus.

Poderiam escapar pelo deserto, porém a morte os esperaria por lá tão logo o sol
viesse a nascer ou tão logo mais armadilhas as areias os impusessem. Bet decidiu

permanecer ali, enquanto o Bardo não recuperasse os sentidos, e tão logo ele
pudesse abrir seus olhos e apontar a direção certa, ela o tomaria nos braços e

seguiriam o caminho.
Uma lança jazia à frente, com sua ponteira longilínea enferrujada, atada por um

cordame corroído a um galho mal lixado e mal acabado. A princesa apanhou a lança
e rasgando uma tira da barra do manto improvisou uma tocha. Apanhou da sacola

do Brado um odre de óleo perfumado, embeveceu a extremidade e incendiou o


candeeiro. Uma chama azul levantou-se da tocha deixando escapar uma fumaça

negra com forte cheiro de sândalo.


Balançou a tocha por alguns instantes no ar afim de espantar a fumaça sufocante,

porém ela resvalou e acabou caindo bem próxima à entrada do túnel, iluminando a
escuridão que havia ali. Porém a tocha foi misteriosamente tragada para dentro da

escuridão, não restando nenhum vestígio de luminosidade, como se uma boca negra
a houvesse engolido, com lábios tenebrosos e densos. Havia algo assustador e vivo

naquela escuridão!
A princesa recuou e colocou-se ao lado do Bardo. Agora seus sentidos deveriam

estar atentos não somente a uma das margens do rio, deveria neste momento ter
um olho na face e outro nas costas.

161
Não tardou o sol começar a ruir no horizonte trazendo consigo o mínimo de

esperanças à jornada. Porém quando o grande olho luminoso surgiu no céu, os


olhos cansados de Bet não resistiram e fecharam-se na escuridão.

Sua pele estava incandescente quando acordou. O Sacerdote estava dormindo, na


mesma posição em que ela o havia deixado. O sol também lhe ofendia o rosto e no

estado de saúde em que se encontrava não iria lhe fazer nada bem.
Ela apanhou dois galhos e os cravou no chão, de forma que um ficasse junto à

cabeça do Bardo e outro aos seus pés. Por cima colocou o manto que lhe apoiava a
cabeça. Pegou o odre, afim de enchê-lo com mais água. Com o cinto do Sacerdote

amarrou o vasilhame e mergulhou na correnteza. Utilizou a camisa para coar a água


e a derramou sobre os lábios de Ben Adam. Umedeceu sua bandana e colocou

sobre a testa do Sacerdote. Lavou-lhe os ferimentos e o peito, os pulsos e o


pescoço. Ela mesma refrescou-se um pouco com aquela água.

Escutou o barulho de passos sobre a areia dura. E um guincho baixinho machucou


seu ouvido. Uma mão empurrou uma cabaça de madeira para debaixo do manto.

Havia ali um espécie de emplasto com cheiro de maresia.


Bet levantou o pano e viu um menino empunhando uma lança em guarda. Ele

estava pintado de lama e seu corpo era coberto de cicatrizes que lembravam o
dorso daquele crocodilo.

Ela colocou as mãos para cima, para que ele visse que não carregava nada que
pudesse machucá-lo.

Ele então olhou com curiosidade e disse:


-Você curar Senhor da Lua com planta que eu deu. Passa assim. - e ele fazia um

gesto com a mão na testa.


-Obrigada! Quem é você?- perguntou.

• Eu filho grande crocodilo. Olhador da ponte.

• Foram vocês que nos atacaram ontem? Vocês e os crocodilos?

162
• Povo crocodilo mata amigo grande sombra preta.- e o jovem apontou na

direção da entrada do túnel.- Gente cruzá túnel saí viva é amigo sombra
preta. Amigo sombra preta guerreiro crocodilo matá. Sombra preta ataca

povo. Rei Crocodilo manda lutá pra sombra preta não passá campo molhado.

• Mas não somos amigos da escuridão! Eu sou a princesa da Cidade da Lua e

este é o Rei. Viajamos porque devo assumir o trono e não somos ameaça à

nenhum povo. Você compreende? Pode dizer isto ao seu Rei?

• Rei já ver Sacerdote. Manda não atacá. Rei manda planta que cura pra botá

corpo Sacerdote. Rei manda guarda vigiá princesa e Rei quando Lua da

Deusa nasceu pra sombra preta não chupá.

• Vocês estavam vigiando a escuridão ontem à noite, e não a nós? Oh, muito

obrigada!

• Guarda ir. Você chamar povo Grande Cão pra proteger. Guarda ter que sair

agora.

• Espere!- ela puxou o garoto pela mão e a beijou.- Muito obrigada. Diga a seu

Rei que lhe retribuirei o favor quando puder.

E o garoto entrou na água e desapareceu na outra margem, entre os juncos.


Ela ficou surpresa em saber que aqueles que pareciam uma ameaça, acabaram os

ajudando.
Sobre o chamado do “povo grande cão”, de sobresalto, remexeu a bolsa de Ben

Adam e pegou o encruste nas mãos. Dentro da íris o Chacal. É claro! O povo do
“Grande Cão”, pensou, era o Povo Chacal. Enquanto procurava o encruste, entre

inúmeros objetos, encontrou o apito.


Ela não poderia ouvir ao chamado, mas talvez um os cannis pudesse! Agora ela

sabia o que o Sacerdote convocara na cabeceira da ponte! E se pôs a soprar o


apito, diversas e diversas vezes.

Uma grande ajuda e uma grande decepção

163
Ao longe, na direção do deserto, uma grande nuvem de poeira se aproximava.

Porém sentiu-se segura sabendo que os amigos no charco estavam olhando por
ambos.

A nuvem se aproximava com rapidez.


Quando estava perto o suficiente para ver o que a provocava, coisa que apenas a

perspicácia de um olhar aguçado conseguiria distinguir, dentre a nuvem de poeira,


sobresaía a pelagem de tom areia da povo do Chacal.

Seu coração parecia bater no alto da boca, pulsando com a expectativa do encontro.
Quatro Chacais da altura de dois corpos surgiram entre as nuvens e colocaram-se

de pé sobre as patas traseiras. Três permaneceram mais atrás e fizeram


reverências, enquanto que o primeiro, que carregava sobre o peito muitos colares e

um placa de bronze, ostentando o símbolo de uma trompa (o que parecia torná-lo


uma figura de maior importância política), tomou a frente, e fazendo uma mesura

com o tronco curvado, despontou:


• Sou o arauto Canção do Vento, viemos pelo chamado do fetiche dado ao

Sacerdote da Cidade da Lua. Saúdo Sua Majestade, Rei da Cidade Gêmea


da Lua.

• Estou imensamente grata por atenderem o chamado do meu Rei! Sou a

princesa da Cidade da Lua, Bet. Estamos em uma jornada rumo ao Pico de


Neve, no Ermos. Do sucesso de nossa empreitada é que depende o destino

do meu povo. Meu Senhor utilizou o fetiche na tarde de ontem, porém está
exausto e um mal lhe acometeu a saúde, estando muito debilitado.

Agradeceria se o Senhor e seu povo pudessem nos ajudar.

• Nosso Alfa nos enviou por esse motivo, e nos aguarda. Devemos deixar este

lugar imediatamente, o tempo é curto, e uma tempestade se aproxima.

Realmente uma tempestade aproximava-se. O horizonte no sentido da correnteza


do rio estava enegrecido e as nuvens no céu moviam-se com rapidez.

Canção do Vento colocou o Sacerdote sobre suas costas e disse:

164
-Permita-me ajudá-la Senhorita.

Então, segurando a princesa por debaixo dos braços, a colocou sobre as costas de
um dos Chacais. Sobre seu dorso estava uma espécie de encilho. Duas tiras de

couro, uma de cada lado das costas do Chacal, unidas por um assento, do mesmo
material, possibilitava encaixar as pernas por dentro da tira. Na altura dos ombros

uma outra faixa de couro perpendicular unia as amarras paralelas e servia como
espécie de cinta para segurar-se à montaria.

-Este é Pata Veloz.-disse o arauto, e fez uma menção ao chacal que a jovem
montara.- Seu nome diz tudo princesa, segure-se firme e cubra o rosto.

Ela pensou que o chacal cairia de quatro e correria como uma cavalo. No entanto
ele seguiu de pé, enquanto seus companheiros, vinham logo atrás, parecendo

competir para ver quem ficava à frente.


Pata Veloz tinha a musculatura firme e desenvolvida. Sentia junto ao seu corpo os

músculos se contraírem. Seu pelo era baixo e ligeiramente mais escuro que o do
arauto. Usava sobre a cabeça uma espécie de proteção de couro com uma série de

inscrições. Seu peito forte era guarnecido por uma armadura de couro com um
encruste semelhante ao que encontrara na entrada do Túnel. Seu pelo tinha um

cheiro forte de lobo e seu espírito era dono de uma sensação de liberdade quase
tangível.

Os demais chacais carregavam armaduras semelhantes, com entalhes idênticos.


Um deles tinha no pescoço uma espécie de amuleto, cujo centro era uma rede

tramada, que lembrava a Flor da Vida, e pendurado logo abaixo, uma porção de
dentes de diferentes animais.

O outro, que também carregava uma armadura de couro, tinha um semblante mais
sombrio e sobre o olho direito uma enorme cicatriz que lhe desfigurava o cenho.

Montar um chacal era diferente, ao invés de sentir-se como um cavaleiro que doma
sua montaria, sentia-se como uma carga, arremessada de um lado para outro.

165
Como uma criança que se equilibra na garupa do pai em busca de um frio na

barriga.
Viajaram pela margem desértica do rio, pulando por sobre rochas e saltando entre

as dunas. Os chacais lançavam-se acima das areias, cerca de duas vezes o seu
tamanho.

A certa distância o ar sufocante do deserto foi dando lugar ao cheiro de areia


molhada. A umidade no ar aumentava.

O sol se punha quando os chacais diminuíram o ritmo. Haviam chegado à Grande


Queda do Deus Chacal.

Pequenas gotículas de água pairavam sobre a gigantesca cachoeira, formando uma


nuvem densa, constante e enfumaçada no topo. As águas despencavam com força,

por cerca de cem corpos de altura, e batiam nas pedras desgastadas que se
projetavam da encosta, e em seguida corriam ao fundo, formando um redemoinho

violento. Aos poucos as águas escapavam à força circular e deixavam o seio, ainda
enfurecidas, rumando em direção às margens pedregosas.

Esculpido em tamanho colossal por detrás da queda, banhava-se o Deus Chacal.


Utilizava uma armadura de guerra, e em uma das mãos segurava um apito, a outra

mão repousava sobre o peito. Seus olhos dirigiam-se aos visitantes, fitando com
olhar duro, quem quer que entrasse no domínio dos chacais.

A luz do sol era retida pelo vapor da cascata, que transparecia um fraco circulo
amarelado no céu. Os chacais beberam um pouco e conversaram por algum tempo,

deixando que a Princesa tomasse conta do sacerdote, enquanto deliberavam sobre


algo afastados.

Seu estado de saúde não havia melhorado. Parecia viver, ainda que inconsciente,
uma batalha mental. Deitava muita água pelas extremidades, murmurava e revirava

os olhos. Uma febre lhe consumia as entranhas fazendo com que o Bardo tremesse
incontrolavelmente.

166
A princesa estava preocupada com seu estado de saúde, e pensando em apressar

os chacais, aproximou-se.
Ela não compreendia a fala dos enviados, mas entendia a severidade dos olhares

que lhe dirigiram quando aproximou-se demais. Ela pôde ver no chão um pequeno
objeto de madeira, semelhante a um peão, girando e desenhando um mapa na

areia, sem que ninguém o tocasse. O fetiche brilhava e emitia uma luz azul pálida,
semelhante à do colar de sua mãe.

Canção do Vento levantou-se e caminhou em sua direção. Ela desviou o olhar e


sentiu-se envergonhada e imediatamente lhe dirigiu a palavra, desculpando-se. O

chacal a observou por alguns instantes e então lhe disse com voz hirta, porém
desprovida de rudeza:

-Deliberamos que a tempestade se aproxima por demais, e em virtude disto, devem


seguir com pressa rumo ao refúgio. O Grande Chacal ordena que três batedores

devem ser enviados na direção da tempestade. Por isso prosseguiremos apenas


nós três. Carregarei o Rei e Vossa Alteza me acompanhará penhasco acima com

seus próprios atributos.


O arauto foi na direção dos companheiros e deixou a princesa novamente com o

bardo. Eles ainda conversaram por alguns instantes enquanto organizavam o local,
apagaram o mapa desenhado no chão. Os batedores alinharam suas vestes e

abraçaram uns aos outros. Em seguida partiram trocando olhares de despedida.


Pata veloz ainda dirigiu um olhar inquietante para Bet, que lhe retribuiu acenando a

cabeça, sem sorrir, mas despedindo-se com olhos de admiração e agradecimento.

Canção dos Ventos virou-se para a Princesa e aproximando-se colocou o rei sobre
suas costas. Dirigindo-se à lateral esquerda da queda não mais falou, viu que ela

ainda observava os chacais desaparecerem ao longe, correndo para dentro da


escuridão que jazia no horizonte.

167
A princesa estudou atentamente os movimentos ágeis desferidos pelos braços e

pernas fortes do seu guia. Galgava as pedras úmidas com facilidade, uma vez que
as garras fortes de suas patas engalfinhavam-se nos cascotes. Seus músculos

tesos, salientes, erguiam-lhe o corpo como um cordame tenso ergue a pedra em


uma construção. Assim prosseguia o chacal, ascendendo sobre a superfície.

Ela colocou a mão sobre a parede e procurou um lugar onde pudesse segurar. Fez o
mesmo com os pés. Porém seus músculos fracos não eram capazes de erguê-la ,

muito embora fosse mulher de constituição forte, muito mais forte que sua aparência
frágil representava. Faltava-lhe o exercício, a desenvoltura do músculo, a qualidade

para torná-lo hirto, torná-lo capaz de sustentar o corpo além do limite do peso. Suas
pernas tremiam enquanto ela depreendia de si mais esforço do que conseguia

produzir naquele momento. Estava faminta, fraca, sem energias. Estava por cair e
não havia subido nem um corpo de altura, no entanto não sentia medo da queda,

nem vergonha de seus atributos físicos pouco desenvolvidos.


Ela despencou batendo no sopé da encosta. Seus olhos encheram-se de lágrimas,

porém não pensava em desistir. Pôs-se de pé e tentou escalar novamente. Não


atingia distância maior que na primeira tentativa, quando caiu mais uma vez.

O arauto, que chegara ao topo da encosta, ficou observando a princesa em sua


inúmeras tentativas. Pensou em ajudá-la, porém um sentimento de desdém lhe

ocorreu e talvez a escalada lhe cairia bem, compensando sua falta de diplomacia
instantes atrás.

O Bardo foi carregado nos braços até a entrada da aldeia. Fora anunciado aos
homens guarnecedores dos marcos, que uma viajante ficara para trás e chegaria

muito em breve.
O Rei foi entregue aos cuidados do curandeiro enquanto Canção dos ventos se foi

rumo à cascata, mas não para acompanhar Bet, e sim para dirigir seu olhar
preocupado e inquieto à tempestade que se movia no horizonte. Naquele momento

era para lá que seus medos e seus pensamentos se viravam.

168
Ele permaneceu ali, estudando as nuvens negras enquanto avançavam. Nuvens que

lhe despertavam desconfiança e não pareciam carregar uma simples chuva consigo.
Eram estranhas e de um negrume profundo. Inspiravam um medo e enchiam a

espinha do jovem Chacal de um arrepio gelado.


Ao olhar dele, que por muitas guerras já passara, o tempo de paz assomava breve,

uma vez que aquelas nuvens vinham da direção das terras ao norte, dos Portos da
Morte, e lhes precediam um vento cheirando a morte, sangue e maldade. Este olhar

era igual aquele desferido pelo próprio Deus Chacal, que banhava-se logo abaixo na
cascata, ele com certeza mirava as mesmas nuvens naquelas condições, e

espreitavam-lhe os mesmos sentimentos, certamente, com relação ao rumor que se


concentrava no céu. No entanto algum tempo depois percebeu que a tempestade

deixava de aproximar-se e tomou a direção do ocidente, para o deserto, nos


domínios do Rei Tantalus Ágoras.

Seu olhar aguçado fora desviado pela nuvem de poeira que levantava-se a uma
certa distância, denunciando o retorno dos batedores, pela margem arenosa do

deserto.
Era certa a notícia de que a tempestade mudara seu rumo, e vinham os guerreiros

cheios de vida com alguma informação sobre as tais nuvens misteriosas.

A Missão de Ventania
O Chacal corria tão velozmente, como jamais correra antes. Suas patas ardiam,

como se estivessem em chamas, pois a ele fora dada uma grande tarefa, da qual
dependia a vida do Rei da Cidade da Lua, que se encontrava em estado febril

mortal. Uma doença comum àqueles que perambulam pelo deserto tomando sol no
olho da alma (assim diziam os chacais do ponto mais externo do crânio), sem

alimentar-se ou beber satisfatórias quantidades de líquido. Portanto aquele chacal


estava encarregado não apenas de salvar a vida do Rei, mas salvar seu povo e a

magia divina da Grande Deusa Lua nesta terra de sonhos.

169
Ventania fora chamado pelo círculo dos sete anciões Chacais, decidiram enviá-lo por

ser o mais veloz da aldeia, ainda mais veloz que Pata Veloz! Sua missão consistia
em encontrar um ervateiro Chamado Floresbaldo, na Última Vila Mais ou Menos ao

Norte (era chamada pejorativamente assim porque seu nome era Última Vila ao
Norte, porém ela ficava na região meridiana do continente, no entanto era

certamente, a última vila antes dos desabitados ermos do Pico da Neblina), e pedir-
lhe a erva do Santo Rubor, que crescia na Ilha do Farol, extremo leste do continente.

Porém naquele momento o lugar mais próximo a se encontrar a tal medicina era a
velha loja de ervas do Sr. Floresbaldo, e somente ele poderia ter a preciosa planta

em mãos, única saída para o estado febril do Rei e Sacerdote da Cidade da Lua.
Uma manhã de corrida era preciso para que Ventania alcançasse a vila. Ele não

pensou em mais nada, quando foi acordado ao alvorecer por Arauto dos Ventos,
conduzindo-o à reunião que começara durante a noite e estendera-se até aquele

momento, simplesmente preparou-se e sem mais palavras correu, saltou e pulou


manhã adentro, através das montanhas, além das rochas e corredeiras, avante às

nuvens que enfumaçavam o topo dos morros de seu lar, o Corredor do Chacais.

Tão rapidamente o Chacal cruzara seu território que no meio da manhã chegou ao
morro que dá acesso à vila, o Morro da Caminho Peludo. O caminho consistia em

um túnel de galhos de carvalhos, tomados de trepadeiras peludas, que


dependuravam-se nas alturas, o chão era íngreme e cheio de raízes salientes. O

passadiço descia a encosta do morro, em direção à estrada dos camponeses do


vilarejo. Esta era a explicação que os vileirinhos davam quando indagados sobre o

nome com o qual batizaram o caminho, mas na verdade e secretamente eles


apelidaram o acesso de “peludo” fazendo alusão aos utilizadores da passagem, o

povo do Chacal que vivia no corredor de montanhas que lhe eram adjacentes.

170
O caminho desembocava à beira de uma estrada bem sulcada na terra,

evidenciando possivelmente um trânsito acentuado até a vila. Adiante se via um


cruzamento e lá, à beira da estrada, um homem sentado diante de uma barraca.

O Chacal, sem saber que caminho tomar, decidiu aproximar-se do homem para
pedir informações.

O homem, de aparência senil, vendo o chacal correr em sua direção, ganhou


arquejado o interior da barraca, descendo o pano, como quem fecha uma porta.

No entanto Ventania, percebendo que ele estava com medo, diminuiu a velocidade,
aproximando-se pode escutá-lo gaguejar lá de dentro:

-Está fechado, vá embora! Não tenho dinheiro, nem mercadorias!


-Desculpe Senhor, estou em paz. Gostaria mesmo é de um informação.

O Chacal assustou-se quando viu o pano que cobria a entrada voar pelos ares e um
olhar vivaz despontar na cara feia e suja do velho que o atendia com ar impetuoso:

-Neste caso são cinco peças de metal!


-Mas eu gostaria apenas de uma resposta Senhor. Que caminho devo tomar até a

vila?
-Cinco peças de metal valem a resposta.

-Desculpe... tenho apenas um broche de bronze.


O velho puxou uma lupa do bolso do alforje e analisando bem o broche que

arrancara das mãos do chacal, disse:


-Isto vale apenas duas peças. Mas está bem, lhe darei a informação porque sou um

bom homem e meu coração não suportará lhe ver perdido. A reposta é qualquer
caminho.

-Como assim “qualquer caminho”? -retorquiu o Chacal com olhos grandes e


insatisfeitos.

-Eu lhe dei a informação que as suas duas peças de metal mereciam! Se quiser uma
explicação detalhada sobre a resposta me pague as três peças de metal que me

deve por ela! -respondeu o velho, em tom arrogante e deu as costas ao chacal.

171
Ventania estava irado por achar que o velhote havia lhe roubado.

Então aproximou-se da barraca e agarrou o homem pela gola e o suspendeu acima


da cabeça. Os pés ficaram balançando no ar por conta do desequilibrado do

mascateiro.
-Escute aqui seu velho matreiro, - e o chacal falava com as presas à mostra- não

tens noção do perigo? Roubas-te a mim! Cobraste por uma informação desonesta,
porque qualquer caminho que eu tomasse me levaria até a cidade. Portanto, ao

invés cobrar-me pelo esclarecimento da informação, deverias implorar para que eu o


poupe daquilo que tua ganância me levou a querer fazer contigo. Vede bem aqui

meus caninos quanto valem! Consegues ver?


O chacal sentiu algo respingar em suas patas e viu uma enorme mancha nas calças

do velho. Após urinar-se por completo ele revirou os olhos e caiu amolecido nas
mãos de Ventania. Parecia que o guerreiro segurava um boneco de pano nas

alturas.
Atordoado o chacal tomou o velho junto de si e o deitou cuidadosamente na grama,

perto da tenda. E seguiu o caminho reto.

Logo adiante parou para beber um pouco d'água. Ao recolocar o odre na cintura deu
falta da sacola que carregava consigo, contendo as informações sobre aquilo que

procurava. Num instante percebeu que havia sido roubado, e retornou pelo caminho
por onde viera, querendo chegar a tenda do velho mascateiro, porém no caminho

começou a sentir-se cansado, como se suas forças estivessem sendo drenadas, até
que caiu pelo caminho, exausto, como jamais havia se sentido.

A Ampulheta dos chacais

Os Anciões Chacais tomaram a Ampulheta da tenda dos tesouros. Um dos mais


ricos fetiches que o Povo Chacal possuía.

172
Dois cilindros de cristal unidos por um encaixe cuja estrutura de sustentação

consista em hastes de madeira rudimentar, grosseiramente lixadas e atadas por uma


corda vegetal desgastada. Dentro de um dos cilindros havia uma poeira fina, azul e

brilhante.
Separando os cilindros eles acionaram a Ampulheta, que marcava o passar do

tempo com um mecanismo mágico: os grãos desapareciam de uma extremidade e


apareciam na outra, contando os segundos. Ela continha a marcação do tempo de

um dia inteiro. Ao final do prazo o portador da metade que esteve se enchendo seria
transportado para junto da metade que esvaziara-se.

Assim a parte inferior do fetiche fora entregue à Ventania, e a outra metade


permanecera na aldeia dos Chacais, no meio do círculo formado pelos Aniões.

Ventania haurido de forças colocou a mão no lugar onde deveria estar guardada a
Ampulheta, dentro da sacola, que infelizmente havia sido roubada.

O velhote vasculhou o saco de couro que havia adquirido de maneira ardil, que era a
maneira que adquiria a maioria dos pertences que acabava vendendo por aí. A

primeira coisa que viu foi a luz pálida da Ampulheta brilhando no fundo do saco.
Havia uma adaga de cabo rusticamente trabalhado, que parecia poderia lhe valer

algumas boas peças de metal. Encontrou também uma carta que continha as
seguintes informações:

“Encontre o ervateiro Florisbaldo, na Última Aldeia Mais ou Menos ao Norte (ao ler

esta parte meneou a cabeça e chaçou da Ironia ao nome da Vila dizendo: 'quem
pensam que são este cachorros avantajados!'), peça a ele que lhe dê a erva do

Santo Rubor, pois depende dela a cura para uma grave enfermidade que sofre o Rei
da Cidade da Lua. Explique-lhe a situação, é um grande favor que ficaremos lhe

devendo e também a Cidade da Lua. Diga que em breve enviaremos ao ervateiro


uma farta quantia, como sinônimo de gratidão. A maior e mais valiosa orientação é a

que deve estar em posse da erva assim que a parte da Ampulheta que carregas

173
estiver completamente cheia, pois ela te transportará para o centro de nossa aldeia.

Sêde breve, bravo guerreiro.


Os olhos do mascate pararam para tentar entender a grandiosidade da situação a

qual havia interrompido. Na verdade parou e pensou imediatamente nas


consequências que lhe traria. Pensou em eliminar o Chacal. Pensou em tentar lhe

curar. E ficou ali, parado, pensando no seu ato incauto e na maneira como seria
caçado pelos “cães farejadores” do povo Chacal. Ele calculou o preço que valeria a

relíquia dos Chacais e comparou com o preço que pagaria para fugir eternamente do
faro aguçado da raça. Fez o que chamava de matemática da compensação e

chegou ao resultado de que seria um pouco insensato a prática de um negócio com


um risco tão alto. Ele sentou e tentou pensar em uma solução que lhe preservasse a

saúde.
Ventania abriu os olhos porém não conseguia distinguir nada, nem na visão, nem na

audição. Uma confusão lhe atordoou os sentidos e uma dor, semelhante à da fadiga,
lhe percorria o corpo inteiro. Mas, como qualquer outro chacal, seu faro mais que

aguçado conseguia detectar a posição exata do inimigo.


-Velho miserável, vil! Sei que está atrás da árvore, tremendo de medo! Posso sentir

o cheiro de tua roupa urinada à milhares de corpos de distância. Assim que


recuperar minhas forças irei devorá-lo, chuparei teus ossos como a um caramelo e

cuspirei tuas entanhas como escarninho!


O velho arregalou os olhos e pensou em correr, porém tentando ignorar o frio duro

na espinha, aninhou-se atrás da árvore, desaparecendo do campo de visão do


chacal (mesmo que ele não o pudesse ver).

Respirou fundo e caminhou na direção de Ventania ajeitando as vestes. Antes de


chegar suficientemente perto o velho despontou:

-Veja, serei sincero e prometo lhe ajudar, se poupar minha vida. Posso lhe ajudar em
sua missão pois o velho ervateiro, Florisbaldo, é meu tio. Escute (gritava o mascate),

eu lhe pus um encantamento de exaustão, que se encerrará muito tempo depois de

174
eu retirá-lo. No entanto você só sobreviverá (blefava o velho) se eu puder me

aproximar e extingui-lo. Ele está em um papel que apregoei em suas costas. Você
consegue se mexer? Posso me aproximar? Quero que entenda que se me matar

jamais sobreviverá e sua missão acabará aqui!


-Velho, ouço apenas um murmúrio, no entanto não compreendo o que fala. Estou

surdo! Portanto cale a boca e venha me acudir, se possui algum juízo na cabeça!
O velho paralisou-se com a voz de Ventania, mas seguiu em frente, ainda que

tremendo. O estado do chacal era terrível, seus músculos tremiam, com um frio que
o corroía por dentro. Com muita dificuldade levantou a criatura peluda o suficiente

para enfiar a mão embaixo do corpo e retirar a fita encantada que mantinha o feitiço.
Em seguida, com muita dificuldade o arrastou, da maneira que pode e até onde

aguentu, o corpo do chacal, para fora da estrada, deixando-o atrás de algumas


urzes. Depois franzindo o senho, bateu nas vestes, como quem retira a sujeira, para

abater o cheiro, que dizia “a catinga das montanhas”, que na verdade era o odor do
corpo do guerreiro.

Esperou algum tempo ali.


Debaixo de seu alforge retirou o saco de couro que havia roubado e olhando dentro

dele a ampulheta, viu que adiantava-se o tempo, uma vez que um terço dela estava
cheia.

-Já pode me ouvir?- perguntou o velho ao chacal.


A pata cheia de garras moveu-se com rapidez e agilidade em direção à garganta do

velho, porém não pôde esgana-lhe com força suficiente para matá-lo, pois uma dor
atroz acometeu-lhe o corpo, uma vez que ainda se recuperava do encantamento.

O mascate caiu para trás esfregando a marca funda das unhas na esganadura que o
chacal lhe fez.

-Seu velho desgraçado, posso ouví-lo, por sua sorte não posso matá-lo!- retrucou o
guerreiro, contraindo-se de dor.

175
• A sua sorte, seu cachorro fedorento, é que não me matou, pois só se

recuperará no final da tarde, tempo que não é suficiente para que complete

sua missão. Faremos assim, sob a condição de me deixar seguir livre e vivo,
para sempre, viu: irei pegar as ervas para você e as trarei até aqui, com todos

os seus pertences. E você, além de não precisar mover uma palha para fazer
a missão, passará a tarde deitado curtindo a sombra de lindos carvalhos, com

a brisa fresca das montanhas de gelo na sua face felpudinha. Que acha?

• Far-me-ia feliz estrangulá-lo neste momento, velho fedido! Mas não posso,

não tenho outra opção! Vá! Se trair-me, juro, sairei à tua caça, e comerei tuas

entranhas antes mesmo que possas perder os sentidos!


O velho mascate respirou fundo e rumou em direção à aldeia, levando consigo um

grande fardo. Mas, que julgava fácil, muito fácil. Teria apenas um pequeno
contratempo, visto que a brisa que pensara vir das montanhas ao norte da vila, era

na verdade o vento de uma grande tempestade negra, que se anunciava no


horizonte.

Parou na estrada pensando em remover o corpo do chacal para algum lugar


coberto, abrigado da chuva. Mas foi só um lampejo. Apurou o passo para escapar da

tempestade, não queria molhar suas vestes novas.

Os Batedores Chacais
As lágrimas vertiam dos olhos de Bet e misturavam-se à areia que lhe cobria a face,

deixando uma trilha por onde rolaram. A princesa, sentada no chão, amassava e
puxava a grama, quando percebeu que os chacais batedores estavam parados atras

dela havia algum tempo. O barulho constante da queda tornava impossível auscultar
movimentações que não quisessem ser percebidas. Apenas ouvidos chacais, bem

aguçados, perceberiam aqueles três, furtivamente aproximando-se, para não


envergonharem a princesa naquela situação.

176
Fingiram ridiculamente não terem sequer a visto e punham-se a escalar a encosta

quando ouviram-na gritando socorro. Queria que a ajudassem a subir a parede.


Pata Veloz, desceu, e a colocou sobre suas costas.

O arauto saiu da tenda no final da manhã. Presumindo que a medicina já estivesse


em poder de Ventania, e que este, ainda que exausto, tomava o rumo de volta à

aldeia. O que não era verdade, pois Ventania encontrava-se em uma situação bem
delicada.

Pata Veloz e o companheiro batedor encontraram Canção dos Ventos na entrada da


tenda dos anciões, ainda carregavam a princesa, que desmaiara de exaustão sobre

o dorso do chacal. Anunciaram notícias esclarecedoras sobre a tempestade, porém


gostariam primeiro de providenciar o descanso da mulher e beber um pouco de

água.
Os anciões deixaram de falar quando o arauto entrou na tenda e anunciou a

chegada dos batedores. Logo Pata Veloz, entrou, curvando-se para o concelho,
olhando para o chão, então, iniciou a litania intitulada Canção do Guerreiro Chacal,

cumprindo o protocolo de apresentação do relatório de investigação.


A Canção, cantada na língua dos chacais era acompanhada pelas batidas marcadas

de um tambor de pele frouxa, de som profundo e nota grave. Ela falava sobre a
bravura do guerreiro chacal e como cada um deles carregava um pouco daquele que

foi o maior dentre todos os Chacais, O Deus Chacal, o guerreiro de nome


desconhecido, que chamavam de Lua Vermelha. Em seguida Pata Veloz calou-se e

emitiu uma série de uivos, ainda sob as batidas ritmadas do tambor, e cantou a
notícia que viera trazer sobre a tempestade. Ela dizia que uma bocarra negra

desceu das nuvens no céu e abrira-se sobre a cabeceira da ponte dos kolbis e de lá
foi vomitada uma treva negra e lamacenta, que espalhou-se pelo charco, tingindo a

água de uma fumaça preta. Em seguida alguns guerreiros crocodilos se levantaram


contra a escuridão que avançava sobre eles, e então ela tomou a forma de um

homem de armadura e espada, pondo-se sobre a lâmina d'água na altura de dois

177
corpos, e após ceifar a vida daqueles que investiam contra ela, se juntou ao

negrume que boiava na superfície. Detinha vida própria, pois não se movia nem com
a forte turbulência do Braço da Leoa, ficou lá e foi-se também contra os demais,

sugando-os para dentro de si, e então subiu aos céus e foi em direção ao oeste, em
questão de um piscar de olhos.

Todos ouviram a canção triste e puseram-se a olhar uns para os outros, sem
compreender a natureza daquilo que lhes fora relatado.

O Contratempo do Mascate

Os passos rápidos e apertados eram uma corrida meio caminhada e deixaram o


velho mascate cansado. Como era um caso de vida ou morte (da sua vida ou da sua

morte), decidiu utilizar um de seus preciosos manuscritos. Ele sabia que tratava-se
de um rolo de papel velho, de extremidades amareladas e atado por uma fita verde.

O alforje estava molhado, não por causa da chuva, mas por causa do incidente de
mais cedo, e agora, todo o material que carregava por debaixo do casaco estava

úmido.
Havia três pergaminhos de fita verde, e todas, quando molhadas, apresentavam a

mesma tonalidade. Um ele adquirira no festival das idolatrias, no Porto da Morte. Um


pergaminho perigoso, conhecido como “Baforada do Dragão Negro”, uma rajada

pequena, porém letal, do hálito de um dragão negro. Um outro pergaminho deveria


ser aquele conhecido pelo nome de “o sono dos que nunca dormem”, que na

verdade nunca havia usado e adquirira porque estava ali, na borda de uma sacola,
relativamente abandonada, cujo dono não parecia dar muita importância. Enfim, a

guardou com maior cuidado que o antigo proprietário, julgava. E o terceiro


pergaminho deveria ser aquele que ele necessitava no momento, um documento

comum, muito utilizado por aqueles que resgatam os objetos mal cuidados daqueles
que os possuem sem muita vigilância. Era chamado oficialmente de “magia intensa

178
para escapada”. As palavras eram capazes de aumentar cerca de cinquenta vezes a

velocidade de um indivíduo, se bem pronunciadas, é claro!


Lembrou-se de mais tarde organizar e etiquetar os pergaminhos, com o nome e a

espécie.
Na sorte pegou um deles e abrindo-o pronunciou:

- A cabeça ergo,
Para que saia das entranhas,

Ascenda para os ares,


O hálito do Dragão Negro

Uma rajada de ar verde saiu da boca do mascate, consumindo o documento. O


coice o arremessou no chão, onde ficou sentado e soluçando uma fumaça verde,

enquanto uma espuma da mesma cor se acumulava no canto da boca. Muito


daquela espuma pingava nas suas calças, gravando buracos negros e pequenas

feridas nas suas pernas.


Sacudiu-se tocando as pernas, pulando e choramingando as queimaduras.

Concluiu que aquele era o pergaminho errado.


A tempestade passava sobre ele quando apanhava um dos outros dois

pergaminhos. Naquele momento tudo se enegreceu e uma noite desceu sobre as


árvores e os arbustos. O vento cessou e um silencio abundante consumiu todos os

ruídos. O velho bateu nos ouvidos acreditando ter ensurdecido. Enquanto o rumor se
movia nos céus, em direção ao vilarejo, o velho o observou cruzar sobre sua

cabeça, sem derramar nenhuma gota de água. Na verdade, vendo melhor, não havia
sinais de lampejos na terra, apenas um clarão intermitente que percorria o interior

daquele aglomerado denso de escuridão.


O mascate ficou assustado e não compreendeu o que era aquilo que atravessava o

caminho, mas estava certo que não era uma tempestade e ficou aliviado porque
evitaria a ira e o cheiro de um chacal molhado na relva.

179
Assim que as nuvens estacionaram sobre a aldeia e passaram completamente sobre

o lugar onde o mascate se encontrava, ele tomou um dos pergaminhos e abrindo-o


recitou:

-O segredo do vento e das corredeiras


Nesta magia picante intensa

Para que fiquem as patas ligeiras


E ocasionem uma escapada ilesa!

Ainda babando aquela gosma verde sentiu os pés formigarem e um vigor vermelho
lhe enrijecer as pernas, assim se pôs de pé na estrada e correu como uma lebre em

direção ao povoado.

A Escuridão de Perto
O olho da escuridão estava estacionado sobre a praça central da vila. O mesmo

silêncio que o velho testemunhara antes se fez habitar sobre a Última Vila ao Norte,
que ele viu, escondido dentro do poço da casa do Prefeito Geral, as nuvens

reviravam-se no céu abrindo um buraco em si mesmas, de lá despencou uma


substância negra, de aparência viscosa, porém sem brilho. Caindo das alturas

atingiu o chão e começou a levantar-se. Na vila as pessoas encerravam-se nas


casas, cerrando janelas, e batendo as portas. O dia virara noite e alguns moradores

assutados deixavam suas casas na posse de poucos objetos.


Em meio a correria o mascate ainda ocupou-se em recolher e guardar alguns

objetos abandonados pelo chão, para que nenhum ladrão solo por aí, levasse as
coisas valiosas consigo.

Antes de partir em direção à estufa do velho Floresbaldo, ele ainda presenciou a tal
escuridão tomar a forma de um grande cavalheiro feito unicamente de sombras. A

criatura empunhava uma espada e arremeteu-a contra os moradores que corriam,


ceifando-lhes a vida. Seus braços se estendiam e alcançavam a todos, sugando-os

para dentro do negrume. A bocarra nas nuvens abriu-se novamente e cuspiu outras

180
poças daquela lama. O mascate, logicamente, não quis ficar para observar os

acontecimentos.
Correu em direção à loja de ervas, que ficava um pouco afastada da vila. O tio, Papa

Floresbaldo, já não morava mais na loja e havia deixado os negócios para os filhos e
fora viver com mama Floribisco na Floresta Oculta das Minas Azuis. Longe da

agitada Última Vila Mais ou Menos ao Norte. Sem saber de nada, foi para lá que o
mascate correu.

Uma visita inconveniente

O velho ervateiro assoviava a mesma canção há anos. Aquela melodia caía como
uma luva nos beiços moles e finos, que guardavam meia dúzia de dentes, alvo de

pouca ou nenhuma higiene. A barba cinza, hirta e longa, caia-lhe na barriga e


formava três gomos abaloados, atados por um cipó do mato.

Vinha desajeitado cumprindo os movimentos imediatos que sua mente agitada e


perspicaz lhe inferia a todo instante. Ora aqui, ora ali, remexia os sacos de ervas

que espalhavam-se pelo velho chalé de madeira, a loja herdada de Papa


Floresbaldo, agora pertencia aos irmãos Flordovau e Flordovale.

Uma escada simpática, coberta por trepadeiras levava ao andar superior onde uma
abafada e pequena estufa dava abrigo a uma selva inteira. Ao fundo uma mesa e

cadeiras para o chá. Andando pela estufa o irmão Flordovale catalogava suas
plantas com o lápis atrás da orelha e uma lupa acoplada numa bandana de couro.

Flordovale era mais velho que Flordovau, no entanto já não aparentava mais os
cinco anos que o distanciavam do irmão: a barba, o cabelo e as sobrancelhas eram

grandes, duras e cinza, iguais em ambos. Mas bastava abrir a boca que uma
rabugice lhe enchia a goela e fazia os olhos saltarem. Como um bom irmão mais

velho, Flordovale, esbrabejava e bufava pela estufa quando as coisas não lhe
agradavam. Bastava uma patetice do irmão mais novo, que Flordovale despontava

181
um olhar sisudo, debaixo da hirta sobrancelha arquejada, e bufava seus “hãs” e

“huns”, entortando e estalando a boca.


Assim passaram a manhã, arrumando a loja e organizando e catalogando os

exemplares raros, cultivados na estufa. Era chegada a hora da ceia da tarde, e foi aí
que tudo aconteceu.

Aos fundos do Chalé havia uma choupana, que havia sido transformada em uma
cozinha, dirigida pelos punhos de ferro da Mama Alda Bonachona.

Mama Alda Bonachona era chamada assim, no entanto não era parente, nem mãe
de nenhum dos onze irmãos Flores, nem ao menos membro da família ela era. E

também não era bonachona, posto que falava da mesma maneira que cortava
troncos de madeira como fossem um torrão de manteiga. Nem a cozinha, que era

sua casa, não era uma cozinha, e tão pouco era sua.

Papa Floresbaldo construíra uma cabana para Mama Floribisca moldar, cozinhar e
guardar suas cerâmicas. Quando nasceu o primogênito, Mama Alda Bonachona já

havia tomado a cozinha para si e feito dela sua cozinha. Como e quando chegara ali
ninguém sabia, nem Papa Floresbaldo, nem Mama Floribisca. Ambos

embasbacavam e fim.
Sabem dizer apenas que quando ela chegou se fez Mama Bonachona e assim

dizendo ser chamada ninguém quis contestá-la. Estabeleceu-se e colocou todos a


correr com seu pau de macarrão ou segurando e balançando seu machado no ar.

Ninguém entrava na cozinha da Mama para Bonachá-la.


Uma coisa ninguém dava contra, Mama Alda Bonachona tirava do tacho os

melhores doces e da velha fornalha de cerâmica os pães mais fofos e perfumados


de toda Última Vila Mais ou Menos ao Norte. Ao longe se via a eterna fumaça de sua

fornalha fender o céu cinzento, carregando o perfume de lenha seca. Mama Alda
vivia lá e pronto, desde antes e para sempre.

182
Ela pôs a mesa e os irmãos preparavam-se para a ceia da tarde quando a sineta da

porta balançou.
Entreolharam-se com estranheza, pois faziam muitos anos que ninguém os visitava

na hora da ceia, muito menos sem avisar. Isto não era de costume, pois a hora da
ceia é a hora em que todos ceiam, e se todos estão ceando não estão à porta da

casa dos outros, a bater.

Flordovau coçou a barba e pensou que deveria atender a porta. Mas se ele a
atendesse alguém que não está em sua própria casa ceando entraria e isto leva a

crer que este alguém cearia com eles. Coisa que não deveria acontecer pois na
mesa havia apenas duas xícaras. A sua, que era de costume, e a de Flordovale, que

era cativa. E havia apenas dez pães, que eram divididos entre os dois, migalha a
migalha. E também a quantidade exata da exuberante geleia de laranja da Mama e

também uma porção de mel. Sem falar nos biscoitos de ervas, em número exato de
doze.

Flordovau, vendo o irmão, percebeu que pensavam igualmente, uma vez que
olhavam a comida, a xícara e a porta da mesma maneira.

Diz-se das pessoas que convivem juntas por muito tempo que acabam tendo as
mesmas ideias, ocorre que naquele momento os irmão presumindo que teriam que

atender o insistente vistante (que não parava de tocar a sineta) começaram a


esconder toda a comida. Flordovale agarrou o chapéu pontudo e o encheu de

biscoitos, os paẽzinhos colocou na manga e entupiu a boca de geléia. Flordovau pôs


os biscotos que lhe cabiam dentro da barba e escondeu o pote de mel debaixo do

camisão. Os pães enfiou dentro a manga e atou o punho com um pedaço de cipó.
Encheram suas canecas com areia da estufa e gritaram para que Mama atendesse

a porta.
A barriga saliente pendia de um lao para o outro, na batuta do andar desajustado da

Mama Alda Bonachona, o que fazia com que parecesse uma pata velha. Descia um

183
ombro após o outro afim de impulsionar o corpo e jpgar os pés roliços para frente, o

que fazia sem dobrar os joelhos, coisa impossível para ela, na verdade.
Mama assoou o nariz e jogou o velho pano de cozinha surrado sobre o ombro e

abriu a porta. Antes mesmo que uma pequena fenda fosse aberta, o velho jogou-se
loja adentro.

Se houvesse alguém mais feio, fedido, sujo e mal educado que aquele velho, na
Última Vila ao Norte, este alguém seria Alda Bonachona, mas ela não era. Ninguém

poderia vencer o velho Carniça, o mascate.


Carniça era primo distante dos Flores e sua família de mascates era conhecida mais

pela pecha do que pelo nome, “os Biscates”. Até trabalhara com o velho Floresbaldo,
quando este, do alto da sua indulgência, decidira dar uma chance ao pobre

primogênito de seu primo irmão, convidando-o a ganhar uns trocos por ajudá-lo na
loja. Foi um período ruim para os negócios, muitos adiantamentos e baixas

inexplicáveis nos produtos. A glosa constante nos apontamentos do menino era


“perdeu-se em estoque”. Depois Floresbaldo cansou-se e começou a mandá-lo

limpar as latrinas. O rapaz passava as tardes fora até o dia que uma uma grande
bomba de cocô explodiu parte da loja, tamanho era o acúmulo dos gases no

entupimento da latrina.
O velhote tinha mais de vinte irmãos e todos eram mascateiros e estavam

espalhados pelas vilas do Norte vendendo seus entulhos. Na verdade eram


mascateiros de interesses escusos pois sabe-se que gostavam muito de aplicar

golpes e vender qualquer tipo de mercadoria de origem desconhecida.


Caíra sentado no chão da loja, ainda espumando a coisa vede pelos cantos da boca

e com os pés vermelhos como pimenta. Cheio de tralhas e entulhos, espatifara-se e


não via jeito de levantar. Mama Alda com os olhos cerrados e o dedo em riste

disparou:
-Carniça, cada vez mais velho, fedido e feio! - e gritou por cima do ombro, em

direção às escadas- É o primo docês!- e voltou-se para o velho no chão- Ainda tá

184
vivo! A morte deve tá muito ocupada pra ainda não ter te carregado! Mas pelo jeito já

tá morrendo, botando essa baba verde pela boca, hein! Que que esse menino anda
comendo? Não me diga que tá fazendo dieta de estrume de novo! Pelo cheiro eu

acho que é! Porco, imundo! Vai lavá essa boca, pega um esfregão menino!
Carniça iria falar algo quando Mama lhe atropelou enfiando-lhe o dedo no meio do

rosto e a outra mão na cintura:


-Cala a boca! Fecha essa latrina ou vai me sufocar com esse bafo horroroso, seu

comedor de estrume! Tá namorando um lagarto carniceiro! Ande, vá cear lá com os


meninos. Estão lá em cima!

Carniça mantinha-se imóvel enquanto era alvejado pela saliva afoita e despudorada
da Mama Alda. Estava pregado no chão e todas as suas quinquilharias espalhadas

pelo assoalho, e tão logo ela ordenou que ele subisse, se pôs a juntar as coisas e
levantar do chão, como soldado quando escuta alvorada. Tão rápido reuniu os

pertences encontrou-se subindo os lances de escada aos múltiplos de três.


Ao final do último lance alinhou a roupa e limpou o rosto, deu de ombros e chaçou

da velha imitando sua ladainha silenciosamente. Deu de cara com os primos,


estaticamente sentados bebendo de xícaras cheias de terra.

-Primos! Achei que chegaria na hora da ceia farta! Mas vejo que continuam
poupando e economizando, sorvem alimento da terra! Vejam suas xícaras!- os

irmãos que não podiam mover sequer um músculo, mexeram minimamente a face,
num esboço de sorriso-. Bom, já que não estou aqui para cear, vou esclarecer o

motivo da visita,- o velho carniça encheu-se de altivez e estufando o peito


prosseguiu- vim aqui para salvar-lhes a vida! Sei que um perigo negro se aproxima.

O velho sacou da bolsa uma caixa de madeira com uma bola de vidro em cima e
uma manivela do lado. Após girar a manivela algumas faíscas começaram a se

mover dentro do globo, pequenos raios se formaram correndo de parede a parede,


juntamente com uma fumaça levemente acinzentada. Ele olhava fixamente para a

185
bola, como se vislumbrasse coisas dentro da máquina mirabolante, coisas que

ninguém (além dele) podia ver. Carniça então disparou:

• Eu vejo... Hum... eu vejo...

Os primos olharam apavorados para o mascate e para o engenho, imaginaram que

o velho via o fim do mundo ali. E ele continuou:


-Eu vejo uma tempestade sinistra se aproximando e ceifadores negros caindo dos

céus, os levarão à morte na ponta de espadas cegas e enferrujadas. Eu vejo...


E Flordovau cuspiu a geleia no chão:

-Vê o quê? Vamos, diga velho infame!


-Eu vejo...- e matraqueou a caixa mais uma vez- eu não consigo ver muito bem. A

máquina precisa de algumas moedas para funcionar. Deixe-me ver se possuo


algumas moedas comigo. O que é isto no chão? O que cuspiste?Geleia de laranja?

É?
Carniça revirou os bolsos, aparentemente esforçando-se para encontrar alguma,

mas virou-se para os primos e tristemente pronunciou:

• Vocês não teriam nenhuma consigo? Não a geléia, digo, mas uma moeda?

Teriam?

O velho Carniça revirava os bolsos em uma aparente expectativa de encontrar algo,


mas voltou-se aos primos e suplicou por uma moeda.

Flordovale tateou os bolsos, enquanto biscoitos lhe caíam das mangas, e de súbto
lembrou-se que aa guardara no esconderijo. Retirou a bota e entregou uma peça de

metal para carniça.


-Agora gire essa manivela, homem! Nos diga qual o infortúnio que no aguarda!

O mascate colocou a peça em uma fenda na caixa de madeira e uma sirene aguda
soou e girando a manivela algumas vezes rumores elétricos começaram a se

depreender das paredes da bola.

• Eu vejo... -disse o velho apertando as vistas- Sim, eu vejo uma tempestade.

186
Neste momento uma luz dentro da estufa começou a diminuir e um relâmpago

assustador cruzou o céu da Última Vila Mais ou Menos ao Norte, fazendo o chalé de
madeira dos Flores estremecer.

Os irmãos se abraçaram enquanto comiam vorazmente os biscoitos que estavam no

meio da barba de dos irmãos. Flordovau balbuciou com a boca cheia:


-A tempestade! É nosso fim que se anuncia!

-Calma! Disse que vim aqui para lhes salvar!


-Ah é? E o que farás contra mágicos ceifadores negros, vindos de uma tempestade?

Vemos que a morte se anuncia para ti também, cospes bile pela boca e tens as
pernas arrematadas por uma doença vermelha e desconhecida!

Carniça se ofendera profundamente com a ofensa do primo, uma vez que lhes
apresentava boas intenções e até mesmo heróicas, ele acreditava.

No entanto estas intenções deveriam ser evidentes aos primos, e não o eram. Para
Carniça o que importava era salvar-se, não importa de que maneira, da encrenca

que arranjara com o chacal que estava na relva.


-Estão chaçando de mim, não é mesmo? Pela barganha de mil peças de metal, eu

vos livrarei do fim. E digo mais, terão de me pagar no ato! Está dito! A intenção paga
o bolso reconhece, a de graça se pega na praça, assim é o ditado.

Os irmãos entreolharam-se admirados, não esperavam uma reação imediata desse

tipo, ainda mais vinda de Carniça. Estando em jogo o bem maior da vida.
Carniça então prosseguiu:

-Não há quantia que paga não seja pechincha diante do derradeiro, que ameaça
lhes cessar a vida. Sendo assim lhes considerarei a satisfação de poderem usufruir

do produto mais magnificente, o maior, o único, o invisibilizador.

-Mas Carniça, não possuímos este valor. Piedade! Piedade aos deuses! Suplicamos!
Faça com que fiquemos salvos, pegue o chalé, com tudo que esta dentro, não

possuímos mais nada! Por favor, nos salve do fim! -Flordovau estava desesperado e

187
implorava aos prantos. Um pão caía-lhe da manga, ele o apanhou e entregou a

carniça. Pegue, pegue é tudo que temos.

Flordovale indignou-se ajeitou o óculos, arrancou o pão da mão de Carniça e disse:


-Deixe este imbecil! Tenha um pouco de orgulho e morra com dignidade, me este

pão e farei minha última refeição.


-Parem vocês!- interpelou Carniça- Em troca justa quantia que lhes pedi poderão, e

digo isto porque sou um homem bom e tenho piedade de todos que estão diante da
morte iminente, poderão fazer um pequeno serviço para mim. Neste momento os

raios cruzavam o céu do vilarejo e uma escuridão desceu sobre ele fazendo a luz da
tarde se consumir no breu. A única claridade que iluminava a estufa era a dos

relâmpagos intermitentes e agudos.


-Serviço? Mas que serviço? O que queres que façamos?- indagava contrariado, o

irmão mais velho.


-Coisa pequena. - Desdenhou Carniça, estreitando os ombros e estalando os lábios,

como se fosse mandá-los colher verduras no jardim. - Para que permaneçam vivos
devem fazer exatamente o que eu mandar: sairão da cidade, assim que os tornar

invisíveis, portando um saco cheio de Erva do Santo Rubor. Tomarão o caminho do


bosque, em direção ao corredor dos chacais. Não durmam. Não parem. Não

descansem. Ou então a magia se acabará e vocês se tornarão visíveis aos olhos do


inimigo, então estará tudo acabado. A dois golpes de vista do cruzamento, do lado

direito da estrada, escondido entre arbustos, estará um chacal. Fiquem por lá e


esperem por mim. Peguem toda comida que puderem, peguem este mapa para se

guiarem acaso precisem. Deverão levar consigo esta bolsa e enchê-la de erva do
Santo Rubor.

Os irmãos tremiam como uma pilha de graxa fresca em cima de uma carroça.
Um raio desceu sobre o vilarejo iluminando-o bruscamente, luz e escuridão

intermitentes invadiram a estufa e fazendo os irmãos amedrontados agarrem-se um


ao outro.

188
-Rápido seus ratos gordos e medrosos! Gritou Alda Bonachona, do final das

escadas. Soldados se aproximam.


Carniça ergueu as mãos e concentrou-se, fechou os olhos e emitiu um som contínuo

do fundo da garganta. Repetiu o movimento várias vezes e por fim disse aos irmãos:
-Não consigo me concentrar de estômago vazio!

Os irmãos despontaram no mesmo instante:


-Ande logo, traste!

Carniça contrariado prosseguiu com o mantra, porém o interrompeu novamente


insistindo:

• Não adianta! Meu bucho ronca mais que cantil vazio, mais que soprador de

forja, mais que bomba d'água bombeando ar! Preciso comer algo algo!
Flordovau pegou um pão do saco, o examinou e ao seu contento, achando que um

pão inteiro seria demais, partiu um terço e enfiou nas mão de Carniça:
- Isso é suficiente para tua concentração! Prossiga, por favor, pois os pães da Mama

Aldar são muito nutritivos, se ingeridos em excesso podem romper o bucho! E


apresse-se, pois já sinto a navalha nos retalhando a carne!

-Muito bem seu sovina! -retorquiu Carniça. Naquele momento ele pensou que uma
vingança cairia bem. Aquela migalha de pão lhes custaria bem caro. E prosseguiu

com as instruções- Muito bem, ao avistarem o chacal devem obedecer a um ritual


até que sejam transportados no espaço. Devem dançar o ritual da tribo primitiva “uli-

uli”, dançando em um pé só e batendo na cabeça com a mão direita, enquanto que,


com a língua pra fora, dirão a palavra de poder: “uli-uli”. Se interromperem o ritual,

imediatamente voltarão para o meio da tempestade, e os ceifadores...


-Sim nós entendemos! Faça a mágica vamos!

Carniça recomeçou o mantra, porém logo o interrompeu:


-Preciso que um de vocês troque de roupa comigo, pois só funcionará a mágica se

portarem meus fluidos corporais.

189
O velho tirou as roupas imundas, urinadas e vestiu o traje de Flordovau. O ervateiro

sentiu que estava sendo enganado, mas prosseguiu com a enrolação para não
contrariar seu salvador. Saltavam, é claro, pães, bolachas e o resto da ceia que o

primogênito guardara nas mangas!


Carniça entoou o mantra, porém interrompendo-o tomou um pergaminho de dentro

do alforje e recitou:
“Carniça seu velho desgraçado...”

-Desculpem, pergaminho errado! Deixe-me ver onde pus o invisibilizador... - e o


mascate revirava o casaco sem encontrar nada.

Flordovau colocou a cabeça próximo a janela e mirou uma agitação incomum no


céu, adiante, na aldeia. Diversas espirais de fogo levantavam-se em direção às

nuvens, bem no meio da tempestade um grande olho havia se aberto e um turbilhão


negro percorriam as estruturas vileirinhas, como um furacão.

As janelas do chalé batiam e o olho da tempestade aproximava-se.


Carniça por fim encontrou o documento que procurava e pediu que os primos se

aproximassem, naquele instante o vento cessou, todo e qualquer barulho foi


devorado pelo silêncio. Quando o mascate abriu o documento a porta da loja

explodiu, como se algo a acertasse com uma pressão demasiada. Assim recitou:
“Para passar imperceptível

Ao olho inimigo
Que faça ao meu redor

o círculo do invisível”
Naquele momento uma redoma brilhante cobriu tudo o que encontrava-se na estufa,

tornando Carniça e os demais invisíveis.


-Não pegamos as ervas! -cochichou Flordovale- Agora elas estão invisíveis!

O velho mascote olhou para cima e como teto invisível pode olhar para o centro
horrível da tempestade, lá uma boca enorme estava aberta, cheia de dentes afiados,

uma garganta profunda se projetava acima das nuvens, e era escura e densa, como

190
lodo. Clarões e escuridão, cingiam aquele fenômeno, que parecia, para ele, uma

terrível criatura. Não pode olhar por muito tempo aquilo pois um pavor indescritível
lhe paralisou, enregelando seus ossos. Seus olhos mergulharam numa escuridão, tal

qual a da tempestade e esqueceu-se de si.


Flordovau e Flordovale deram as mãos e saíram correndo da loja, mas não sem

antes carregar uma porção de sacolas, dentre as quais acreditavam estar as ervas
que deveriam levar consigo.

Correram como nunca haviam corrido em toda a sua vida, e se não estivessem
invisíveis, ninguém se assustaria de ver milhares de migalhas saltando do nada para

o chão.
Correram até o local onde lhes havia indicado o primo e encontraram o chacal, que

estava sentando, encostado em uma árvore, remexendo uma pedra para passar o
tempo.

Retiraram da sacola que o primo lhes dera a ampulheta e trataram de iniciar o ritual.
Ambos segurando o fetiche faziam exatamente o que o lhes foi instruído.

Se alguém pudesse os ver teria dado boas gargalhadas. No entanto o Chacal viu a
ampulheta bailar no ar, sozinha. Porém farejou um cheiro familiar, a urina do velho

ladrão ardil e mesmo curado ainda não conseguia vê-lo!


O chacal começou a esbravejar a procura do velhote.

Os irmãos começaram a ficar temerosos pelo chacal, no entanto não podiam


interromper o ritual.

Ventania viu que a areia da ampulheta estava se no fim e resolveu reavê-la. Porém
ao tentar apanhá-la sentiu que algo resistia. Tentou puxá-la novamente com um

pouco mais de força. Mas a ampulheta não lhe veio. Neste instante o último grão
azul surgia sobre os demais, acionando o fetiche.

Num piscar de olhos todos desapareceram: os dois irmãos e o chacal.

O antigo ritual do povo “uli-uli”

191
O círculo dos anciões permaneceu imóvel entoando os cânticos de sorte dos

Chacais, desde que Ventania partira da aldeia, levando consigo o fetiche.


Quando o último grão desapareceu da ampulheta os corações dos Chacais se

encheram de apreensão e o que viram foi um dos maiores e mais inesperados


acontecimentos da história do povo Chacal: Ventania segurava a ampulheta,

juntamente com dois velhos cobertos de ervas engrenhadas no cabelo e nas barbas,
migalhas de comida voavam para todos os lados e um cheiro repugnante de urina

invadiu o delicado e apurado olfato do decano de Anciões. No entanto não foi


apenas isto, os velhos pulavam em um pé só, como se estivem em um tipo de dança

arrojada e ridícula, enquanto batiam na cabeça com a mão livre e balbuciavam


algum idioma antigo e desconhecido, cuja forma de pronúncia se dava com a língua

totalmente para fora da boca.


Os irmãos, depois de um bom tempo, perceberam que estavam visíveis novamente.

Não sabiam ao certo por quanto tempo estiveram ali, com todos aqueles cães os
olhando com ar confuso. Como se mirassem um acontecimento ininteligível. No

silêncio de suas mentes compreenderam a intrépida vingança do primo, desejando


para ele a morte da qual ele os fizera escapar. Envergonhados pararam e sorriram,

oferecendo ao decano as folhas que tinham espalhadas pelo corpo.


Flordovau abriu os braços e em uma mesura, inclinando o tronco, disse:

-Este é o antigo ritual do povo “uli-uli”, eis que, através dele trazemos até Vós, a
Erva do Santo Rubor.

O Chacal Sacerdote admirou o eloquente anúncio e olhando para os demais


Anciões, para todos os outros chacais presentes, gargalharam todos,

incontrolavelmente.
Ele diz vem teme que as sombras, a escuridão do Porto da Morte e a única maneira

de impedir que ela destrua o mundo é sagração da nova rainha, pois só o poder da
pedra e a fé na Deusa serão capazes de inibir a escuridão.

O chacal entende.

192
Os guerreiros chacais detectam as sombras que perseguiam a princesa e o Bardo,

há uma luta na aldeia e ambos fogem nas costas dos chacais.


Eles são deixados nos limites das terras ermas.

Chão gelado, coração desesperado.


A princesa escutou a conversa entre os sacerdotes e acredita cada vez mais não ser

capaz de cumprir seu destino como a salvadora de seu povo. Ela começa a
demonstrar sinais de derrota e Ben Adam dá início a um comportamento

desesperador.
Ambos dão sinais de cansaço e desesperança.

O espírito da Montanha

Neste capítulo Ben Adam conversa com o espírito da montanha que os conduz à
passagem ao reino subterrâneo.

Milhares de túneis. Uma escolha. Uma chance.

Neste capítulo a princesa carrega o sacerdote através dos túneis com as sombras
no encalço ela chega a um grande salão com inúmeros túneis e ela tem que

escolher um. Ela não sabe qual direção seguir, ela vê que seu colar cintila mais
quando se aproxima de uma das entradas e resolve segui-la. Desemboca em um

túnel muito estreito, ela então entra de ré no túnel e puxa o sacerdote pelas mãos. O
túnel desemboca em um salão extremamente iluminado.

O Salão de Luz

193
Neste capítulo a princesa e o sacerdote encontram o salão de luz onde está a

metade da pedra e as sombras de lama se revelam. Elas tentam atacar a princesa


porém o sacerdote a defende e é ferido mortalmente. Ele ordena que ela toque a

pedra e invoque a deusa. Porém ela se sente apavorada e só chora. Tenta rezar e
nada acontece. O sacerdote está esmorecendo.

Em desespero, vendo os saldados negros se aproximar ela engole a pedra. Eles a


golpeiam fatalmente, porém o Sacerdote consegue fazer uma magia de esconjuro e

destrói os soldados.
O sacerdote morre dizendo a princesa que ela deve lutar contra o mal e que a única

forma de acabar com a magia da escuridão é fé na deusa e a luz da pedra que ela
engoliu. A princesa consegue sair do salão, que começa a desabar, porém é

golpeada na cabeça, fato que origina a sua perda de memória. Ela está muito ferida
e cai após uma hora de caminhada entre as montanhas.

Da escuridão

Se Liz pudesse olhar o fosso sentiria-se aterrorizada.


A tenebrosidade o habitava tão densamente, que a vida da profundeza negra, nem o

som era capaz de atravessar. Ela não podia ver, mas aquela escuridão
assemelhava-se à que carregava dentro de si e sobre suas vistas. A sacerdotisa

aproximou-se cuidadosamente da borda, enquanto, sob seus pés rolavam pequenas


pedras em direção ao negrume pulsante. A sala vasta e vazia transmitia uma

sensação desconfortável, de vulnerabilidade. Não possuía paredes ao alcance dos


olhos, nem teto à proximidade das vistas. Uma penumbra quase tangível habitava o

local. Qualquer um que pudesse ver o salão jamais estaria ali. Mas , privada da
visão, Liz ousou adentrar os decadentes portões do aposento, valendo-se da

194
coragem e ambição como guias. Sua ousadia sempre a levara ao extremo, sem

temer nem mesmo a morte. Fora assim, que afinal, tornara-se tão poderosa, uma
Rainha, como igual, há muito não ascendia.

Lá fora do palácio as hordas pilhavam o povo roto que habitava os escombros da

Sétima Cidade Anciã. Todos viviam a decadência mórbida da antiga metrópole.


Erguida em meio ao pântano mais ao Norte do continente, na antiguidade fora uma

das mais ricas e exóticas de todo o mundo, hoje a cidade borbulhava todos os tipos
de seres sem perspectivas, todos pertencentes a povos vítimas da guerra.

Escravizados, deixados para trás por seus algozes.


Detritos, lixo, cadáveres e lama se espalhavam pelos pavimentos de “porto da

morte”, como era mais conhecida. A brisa bochorna era quase um estertor das vielas
intrincadas. A arquitetura bizarra da cidade fora legado de sua religiosidade: ídolos

sinistros encontravam-se estendidos nas ruas. Estátuas, ícones, e relevos de


prédios, que na sua maioria, ainda que hediondos por natureza, tinham a qualidade

potencializada por estarem desmoronados ou parcialmente demolidos. Todos


memória de um passado longínquo que chegara àquele momento, rastejando

através dos séculos, assombrando o presente com sua aura de deterioração.

As construções tinham seus tijolos feitos do lodo negro que repousava no seio do
pântano e eram calafetados com algum tipo de pasta betuminosa que dava à tudo

um tom negro e profundo. No entanto, devido à localização da cidade, a umidade


consumia as edificações que ainda restavam em pé, transformando-as em

verdadeiras fortalezas vivas de limo, musgo e fungos. Uma viscosidade brilhosa


adornava a cidade, tonando a luz que caía sobre tudo, numa da luminosidade morta

e fantasmagórica. Sob a claridade do crepúsculo, a Sétima Cidade Anciã, revivia


uma tenaz glória de opulência passada, um truque da luz do luar e da umidade

juntos.

195
Após o massacre, Liz sabia onde deveria chegar. Pediu que Lokar, seu fiel general,
a levasse ao palácio real de Coptset. Os vassalos e servos mais próximos da Rainha

não ousaram cruzar os dormentes do velho castelo central. Todos abandonaram sua
líder quando depararam-se com uma barreira invisível de horror que repousava nos

portões.
Havia algo ali. E não havia nada.

Muito entulho jazia pela pela praça. Indicando a entrada estavam duas colunas
pretas, com cerca de quatro corpos de altura. Uma deitava-se gentilmente sobre a

outra. Repousando ali por muitos e muitos anos. No topo de cada coluna, cavidades
denunciavam o lugar onde outrora, alguma gema repousara.

Ainda assim, mesmo sem ver absolutamente nenhuma ameaça, os guardas da


Sacerdotiza não conseguiam passar. O medo os congelara e permaneceram imóveis

aos pés da construção.


Liz passou por entre os dormentes. Rumou às pilhas centrais, onde as paredes do

primeiro salão um dia estiveram de pé. Mesmo sem poder ver o lugar, ela andava
sem vacilar. E examente por não ver nada, pôde adentrar sem que o medo a

impedisse. Ao contrário, uma presença firma, magnética e silenciosa a arrastava


com êxito na direção de algo ainda desconhecido. Lokar queria acompanhá-la. Mas

seu cavalo espinoteou, relinchou e recusou-se a permanecer perto do Plácio. Ele


desceu da montaria, ainda que resignado acompanhou sua Rainha, caminhando

imediatamente após.
Liz não entrou sozinha.

No primeiro pátio sentia os dedos escorregarem entre tijolos de lodo esfarelando-se.


Topava com insetos cruzando sobre sua mão.

Conforme avançava, deixava para trás os sons da guerra na praça central, todos os
gritos daqueles que lá estavam sendo trespassados pelo aço amargo, pela adaga

afiada, pelo fio cortante da derrota.

196
Ali, parecia que imergiam numa mortalha que nem o som podia penetrar.

O ar tornava-se pesado conforme abandonavam o pátio. O chão os conduzia para


baixo, num declive acentuado entre os escombros. Até que Liz capturou uma brisa.

Não era gelada, mas sim morna. Carregava um gosto intenso e trufado. Uma
pungente nota de terra, ocre, levemente molhada.

A caminhada se dirigia para baixo. Os escombros mais úmidos, e paredes haviam


surgido ao seu redor. Uma passagem de no máximo um corpo cercava a

Sacerdotiza e o General Lokar. Do teto pendiam plantas tocando seu rosto. Suave,
como plumas. Mais cheiros e sabores invadiram as memórias de Liz. Bolores e uma

atmosfera sufocante de mofo. Uma ar quase irrespirável sustentada o caminho.


E parecia vivo.

Foi então, que, apesar de todo o ambiente estar estranhamente quente, o corpo de
Liz começou a ficar gélido. Primeiro seus pés, e então as pernas. E pouco a pouco,

estremecendo cada parte daquela pequena mulher, repentinamente foi invadida por
uma sensação desconfortável de ansiedade. E logo aquilo deu lugar ao medo. Ela

hesitou por alguns momentos. Um hálito moveu-se contra ela, no meio daquela
escuridão que não podia ver. Veio forte e rebatendo-se contra as paredes, chegou e

tocou-lhe feito um açoite.


Liz, ainda que sentindo a espinha congelar a cada passo, tomada pelo horror,

agarraou-se à razão. Uma vertigem repentina abonou a sua mente. Mas era tarde.
ela estava ali, onde quer que fosse. Aquilo a estava chamando a caminhar por um

misterioso silêncio vivo. Nunca saberia como era o lugar, não fosse a sua
obstinação. Não saberia o que havia ali, exceto que, no seu íntimo, algo dizia que

era ali que deveria chegar. Ali era o centro de toda a sua caminhada. O detino de
sua vida.

Uma vantagem significativa lhe era proporcionada pela cegueira: lhe poupava a
visão do interior das masmorras do castelo. Objetos de tortura e as reminiscências

humanas, atadas aos seus grilhões. Corpos atravessados por lanças, achatados por

197
garrotes, encoleirados ao teto. Caveiras, ossos e restos mortais esperavam em

silêncio para contar a história de seu fim. Se alguma luz caísse ali, revelaria os
segredos que a escuridão guardava por muito tempo, sob os dormentes de Coptset.

Mas não havia luz. Só as almas caladas, e suas trajetórias fadadas ao


esquecimento. Paredes semi-erguidas, imagens de rostos retorcidos. Almas ferozes

e sedentas de vigança, lembranças de dor e angústia. Caindo no inevitável oblívio


que consumia a tudo ali.

Uma esccuridão leitosa que dormia nos olhos de Lis, desde a fatídica noite na
cabana, misturava-se à escuridão ao seu redor. Um véu negro cobria tudo. Duro,

quente e imepnetrável.
Somente ela poderia ver ali. Ver com os olhos que há muito aprendera a usar. Os

olhos da alma brotavam dentro da sua cabeça, fazendo-a contornar, driblar,


sobessaltar. Poderia sem maiores dificuldades guiar-se naquele labirinto de restos.

Porém, passos decididos e firmes deram lugar à dúvida. Liz, titubeavam à medida
que avançava dentre os corredores apinhados de escombros. Tropeçava

repetidamente, e sua vontade veemente por vezes se enfraquecia. Sentia uma


opressão desconhecida, emagando o peito. Uma onipresença ameaçadora que não

lhe tocava. Foi quando, paralisou. Uma sensação de medo lhe segurou das pernas,
tremeu seus musculos e a fez pensar em desistir. A Sacerdotisa sentiu novamente

uma brisa morna e densa soprar às suas costas, uma mão imaterial tomar a sua. A
mão escorregou de dentro da escuridão e a conduziu até o salão central. A

carregando como se flutuasse por sobre os cascotes, por entre as ramas crescidas,
por sobre um leito morno de pixe, tão denso que não não podia afundar. E foi

deslizando pelo pavimento, até parar bruscamente nun declive acentuado. Onde
uma sensação de não-mais-chão fez um frêmito imediato percorrer seus pés. Então

Lis parou de súbto. Na beira do fosso.


Lá, na borda circular, mais daquela rajada soprou sobre seu rosto, no entanto bem

mais quente que outrora.

198
O fosso era uma garganta escura, densa, viscosa e profunda. Só a própria escuridão

conhecia suas profundezas. Suas paredes guardavam um segredo abissal, diante


do qual o maior dos horrores não tinha nome. Ali o pavor era vivo, morno e indizível.

Uma vida estática jazia entre os vazios escuros da construção: cada centímetro do
poço outrora banhou-se em sangue. Torrentes rubras eram derramadas pela

garganta gigantesca que ligava-se ao Divino, aquele era um mundo esquecido.


Deveria assim ter permanecido.

Lá eram arremessados corpos, vivos e mortos, os restos. Todos os sacrifícios


tiveram um lar um dia, este lar foi o fosso. Amontoados de carne em putrefação.

Pilhas de ossos e chorume. Moscas, larvas e todos os insetos da podridão, um dia,


habitaram o coração da Sétima Cidade Anciã, o fosso de sacrifícios era o órgão

pulsante dos séculos que alimentava a cidade.


A rainha desequilibrou-se e resvalou na direção da garganta. Por instinto agarrou-se

aos destroços. E uma mão segurou a sua, Lokar. Ela bateu com a face em uma
rocha aguda. Uma dor resistível e depois uma gota morna. Escorreu-lhe sobre a

pele, abrindo caminho entre a tisna escura da guerra. Uma lembrança antiga
invadira momentaneamente seu pensamento, fazendo-a arquejar. Ergueu os braço,

e forcejou na direção da bordadura. Afastou essa memória dolorida, tremendo a


musculatura dos braços, recobrou à margem com força, erguendo-se sobre

lentamente, sendo ajudada pelo seu General. Colocou uma perna acima, depois a
outra, empurrando o anteparo para baixo, e colocando o tronco sobre a borda rolou

para a plataforma.
A sacerdotisa ergueu-se.

Inclinando o rosto para dentro da boca escura do fosso a Rainha mais uma vez
sentiu a brisa morna vacilar nos pêlos da face.

Silenciosamente a gota rubra que rolava em seu rosto precipitou-se em direção à


escuridão. Ela sentiu, algo falar-lhe em sua mente, ler seus pensamentos. Uma voz

confusa e distorcida. Falou-lhe sobre a fome. Sobre a dor que a fome traz. Sobre o

199
poder. Lis de imediato sentiu-se ameaçada, mas como seu velho habito a ensinara,

cravando as unhas na palma da mãe, ignorou qualquer voz interior que resistia
aquele chamado. Chegara até ali, tudo o mais seria fraqueza.

Uma ventania inesperada e quente subiu rodopiando pelo fosso. As vestes da


Sacerdotiza drapejaram nas alturas porém logo cairam em direção ao chão

novamente. Uma presença encheu todos os espaços do salão juntamente com um


som, uma baque surdo e intenso. Depois, veio a brisa arquejante, rastejando por

aquela atmosfera e sussurrou ao seu ouvido. Então um grito, como quem se acorda
de sobressalto, de algum pesadelo. A Rainha tomou-se por algo, um sentimento

arrebatador contra o qual não conseguia lutar. Um raio de dor cruzou-lhe a espinha.
Um fim. Uma morte apunhalou sua alma fazendo-na cair de joelhos. Suas pernas

enfraqueceram e sua vontade foi sorvida até o esgotamento. Seus braços


chacoalhavam e sua face contorceu-se em sofrimento. Uma presença veio a ela. Se

fez por todos os lugares, todos os cantos. Sugou a vida de Lis para si. Apossou-se
de todos os sentidos que poderiam ser despertos na Rainha, mostrando-se a ela na

plenitude dos poderes que detinha naquele momento.


A Sacerdotiza teve o segredo de sua alma entregue àquela terrivel onipresença. Em

instantes algo havia acordado e dito à Liz quem era, e qual o destino de tudo. A
Sacerdotiza arquejou. Incrédula das revelações que lhe foram trazidas. Existou por

um breve momento, até afundar as unhas nas palmas das mãos, aceitando o
encargo oferecido. Então aquela voz surgiu do fundo do fosso, “mais”, ela sussurou,

“mais”.
A Rainha chamou por Lokar. E o abraçou por trás, com muita suavidade. Como o

fizera tantas outras vezes. Ele não pode ver na escuridão a lâmina fria do punhal
atravessar sua garganta, de um lado a outro, mas escutou uma frase antiga, que há

muito estava entalada na sua boca: “Eu sigo e deixo com a Senhora os

cumprimentos da Casa Real”. Então a Sacerdotisa empurrou o corpo de Lokar, que

caiu em direção ao que quer que fosse aquela escuridão.

200
E no silêncio que antes havia, pode-se ouvir cada vez mais alto, a voz dizendo

novamente “mais, mais”.

O Porto da Morte
nos deparamos com uma estrada. Aquela era a principal estrada de Ankset, por

onde escoavam todas as cargas que chegavam ao porto da sombria cidade.

Depois que a esposa de Tantalus Ágoras assumira o trono de Ankset, uma estranha
agitação tomou conta do lado oriental. Inicialmente as hordas estavam

desorganizadas, mas agora pareciam mais coordenadas, com uma hierarquia


controlada à rédeas curtas.

Antes das guerras de anexação todos naquela região viviam em regime tribal. As

aldeias estavam consolidadas quando Tantalus Ágoras e sua ambição subjugaram


os povos do velho oriente escravizando-os e aniquilando sua organização. A cidade

principal foi tomada pelas tropas ocidentais da Fortaleza do Sol, guiadas pela
Rainha e Sacerdotisa do Templo do Sol, esposa de Tantalus Ágoras.

Porém não muito tempo transcorreu até que um inimigo inesperado se apresentasse

ao Rei da Fortaleza. Um inimigo que aos poucos cresceria até que sua oposição ao
Rei, Seus Senhores e Condestáveis deixando de ser uma mera afronta e se

tornando um perigo iminente.

O tempo que transcorrera era suficiente para que a Sacerdotisa Lis, que houvera
tomado para si as terras as conquistadas por Tantalus Ágoras, se opusesse com

força e astúcia àquele que pretendia ser o imperador do mundo.

201
Sua esposa e inimiga, em pouco tempo ergueu um exército nos arredores da Sétima

Cidade Anciã. Pequeno exército este, formado de mercenários e habitantes locais,


que aos poucos empreendia empreitadas caóticas pelas terras orientais, com o

propósito inicial ininteligível. Ações que promoviam o saque, o horror e a destruição.


Torturavam, assassinavam vilas inteiras, ateavam fogo em comboios de cargas, de

passeios e diplomáticos.

Os exércitos em pouco tempo foram ganhando fama e mais adeptos.

Quando a Sacerdotisa declarou guerra ao Rei Tantalus Ágoras, o fez sob a bandeira
da injustiça pregada naquelas terras antigas pelo povo imaturo do oriente. O fez

prometendo conduzir o povo da Sétima Cidade Anciã à um novo tempo. Prometeu


levar os habitantes da face oriental novamente ao poder, resgatando o tempo de

glória e respeito de que outrora se investiam aqueles povos.


Todos acreditaram nas promessas de sua conquistadora e tomaram-na por Rainha.

Acreditaram no seu espírito intempestivo e que realmente seria possível reaver a


liberdade dos tempos passados. Por isto tomaram armas e agruparam-se sob as

bandeiras de suas comunidades para lutar.


A estratégia da Sacerdotisa era crescer, então ela decidiu que antes de mais nada

deveria fazer com que todos conhecessem o poder de seus asseclas. Utilizou-se do
medo para controlar os insurgentes. As táticas utilizadas pelas hordas como matar,

chacinar, pilhar e torturar em suas empreitadas logo fugiram ao controle, e de uma


estratégia para alcançar o objetivo de torná-los conhecidos e temidos, logo suas

ofensivas tinham como objetivo aquelas ações.

Com isto os exércitos cresciam sob a bandeira do medo e uma onda de violência
sem limites tomou conta do lado oriental.

202
Notícias dos acontecimentos chegavam às cidades gêmeas que logo temeram o

poder crescente da Sacerdotisa Lis e seus exércitos assassinos.

A Rainha porém utilizou-se com astúcia do descontrole das guerrilhas e do clima de


pavor. Enquanto exércitos cresciam sob a sua bandeira com ações aparentemente

caóticas, sem nenhum propósito compreensível, ela construiu uma milícia


organizada para concretizar seus ideais, dentre eles destruir Tantalus Ágoras.

Todos temiam as hordas orientais pois cometiam o mal pelo mal, nada lhes

escapava ileso e nenhum porquê lhes conduzia na infâmia.

O medo e incerteza desceram dias sombrios naquelas bandas sem deixar nem ao
menos a esperança de um alvorecer futuro menos cinzento. ESTA PARTE EU não

sei onde vai. Mas com certeza não vai aqui.

Amigos e Inimigos na Escuridão

Neferhiri acordou-se com sonhos perturbadores. Levantou, como quem perde o


sono, e apagou a fogueira, por um ímpeto de preocupação. Um sentimento de

vigília. Uma sensação que é inerente ao espírito do fogo e da lâmina Leoa. Fora
obrigada a acendê-la, pois a noite havia sido bem mais fria que costumava ser nesta

época do ano. Saiu da barraca ainda antes do sol nascer e foi tratar e selar seu
cavalo. Nas demais barracas a fumaça tímida, de fogo não recobrado, escapava

pelo topo, a aldeia cheirava a lenha, e este era o cheiro de casa. As guerreiras
estavam descansando depois de tanto tempo fora do lar.

O espírito vigilante de Neferhiri não poderia descansar, não depois dos sonhos

medonhos que a visitaram durante a noite. Foi então amolar a espada e olhando

203
para oeste percebeu que o sol não nasceria naquela manhã, mas uma grande

tempestade sim se aproximava. No limiar das planícies, onde encontravam o céu,


róseas nuvens banhadas pelos primeiros raios dourados do alvorecer, cujas matizes

deixavam lentamente o céu, outrora branco do frio da noite, uma indeterminável


nuance resplandescente. Cena de altivez tamanha que fora entalhada no peitoral

dos Reis e Rainhas da Cidade do Sol. No entanto toda aquela profusão de cores era
maculada por uma quantidade crescente de nuvens negras. Uma terrível

tempestade se formava abruptamente e com rapidez no horizonte. E de repente as


folhagens se agitaram, e pasto titubeou, os pássaros revoaram perto ao chão. Toda

a agitação veio tocada pelo viração, o vento trazia um cheiro familiar, o cheiro dos
pântanos que ela bem conhecia e não desejava sentir nunca mais.

Neferhiri e as guerreiras vinham de empreitadas ao norte em Ankset, onde tentaram

impedir os exércitos de Tantalus Ágoras de tomar a região. Tiveram de recuar ante o


fracasso. Agora estavam em casa, porém estar em casa não é sinônimo de

segurança.

No meio da escuridão cintilou iluminada pelos clarões da tempestade a peitoral da


guerreira, delicadamente trabalhada, cujo centro, em baixo relevo, resplandecia o

Totem da tribo: a leoa.

No cenho belo e austero de Neferhiri apenas a coragem transparecia, e olhando as


nuvens sabia que algo tenebroso nelas se aproximava.

Ela então tomou da cintura uma corda amarrada a um par de pedras e girando
acima da cabeça produziu um som contínuo e vibrante, que soou por todo o

acampamento. Ela estava chamando as demais guerreiras para o levante: as


amazonas haviam voltado para casa, mas a guerra havia vindo com elas.

204
Habet levantou-se do leito e correu para fechar a janela de seu aposento, foi

arrancada do sono por uma rajada de vento que escancarou a janela, trazendo
consigo o ar úmido e frio de uma tempestade. Logo os trovões tomaram conta do

oeste e ela soube que seria uma tormenta como há muito não se via (nem em
sonhos). Tratou de dirigir-se ao templo e cerrá-lo para evitar alagações, antes de sair

correndo pelas passadiços do palácio agarrou um xale que estava à mão.


Habet, depois do que lhe acontecera na Fortaleza do Sol, conseguiu salvo conduto

até a cidade da Lua com o obséquio piedoso de Ilgada. Lá procurou tornar sua vida
algo próximo ao que fora. Foi nomeada responsável por Harpis na ausência dos

sacerdotes superiores, e desde a partida de Ben Adam e Bet, estava cuidando do


templo com rigor e dedicação extremos.

Ao cruzar o pátio segurou-se ao manto e aninhou-se dentro dele, e ao ver que tudo
o mais rodopiava ao tocar da ventania, olhou para cima; as nuvens corriam no céu

como uma treva sem fim. Habet viu então que algo estranho habitava o temporal,
quando um arrepio percorreu-lhe a espinha. A tormenta alinhou-se sobre Harpis,

acima da cabeça da serva abriu-se um buraco como um turbilhão, de onde desceu


sobre a cidade uma treva de mácula e morte. A última coisa que Habet pôde ver foi

uma boca de sombras engolindo a cidade da lua.


Tantalus Ágoras estava inquieto, andando de um lado para outro no aposento. A

roupa coberta de um líquido negro cheirava mal e quase não se podia enxergar o
amuleto no peito, a peitoral do sol também estava matizada e os ventos daquela

manhã não estavam nada agradáveis. Tantalus Ágoras parou diante da janela onde
estupefato fixou os olhos na tempestade que pairava sobre Harpis. Imediatamente

gritou o nome de Ilgada. Três ou quatro homens que montavam guarda na porta
correram desorientados em busca do sacerdote.

O rei de Coptset temeu a tempestade assim que a viu. Porém não mais que à

ameaça que batia aos seus portões: soldados indestrutíveis de sombra e lama.

205
Tomou uma garrafa que jazia sobre uma cômoda no quarto e bebeu, o polkum dos
deuses, fabricado nas terras ao sul. Retorceu o cenho e tentou pensar no que

poderia acabar com aquelas malditas criaturas que chegaram aos portões da cidade
no início da manhã, vindas ninguém sabe de onde, querendo sabe-se lá o quê.

-Pronto, Senhor!- Disse Irion esbaforido.


-Mandei chamar Ilgada! Írion, seu fracassado, se não quer ser enforcado, suma

daqui, agora!
-É que, Senhor...

-Mais um passo e o próximo que dará será sobre o cadafalso! Suma, sua escória
imprestável da torre! Suma daqui seu ilusionista barato!

-Como desejar, Senhor!

Tantalus Ágoras mal podia imaginar, mas Edir Gramateus de Shadai, naquele
momento cruzava o rio para chegar à Harpis, onde pairava a grande tempestade.

As amazonas levantaram vestindo as armaduras e correram para o chamado de sua

líder enquanto a tempestade se formava sobre suas cabeças. A manhã que ia


surgindo deu lugar à escuridão densa e entre as nuvens raios rasgavam a

tempestade cruzando o céu assustadoramente.

Não havia mais tempo para o medo e a dúvida, as nuvens estavam se abrindo e um
turbilhão se formando: Neferhiri já havia visto esta cena na última batalha no

pântano de Ankset e sabia que não era um bom sinal. Foram aqueles malditos

206
soldados lamacentos que forçaram-nas a recuar e agora o inimigo estava em sua

casa.

Dêmora cruzou o acampamento velozmente e reuniu as guerreiras ordenando


formação de muralha. Todas se agrupavam açoitadas pelo vento que varria as

barracas para os ares.


-Dêmora, algo me diz que não descansaremos. São aquelas malditas criaturas!-

Disse Neferhiri equilibrando-se no lombo do cavalo.


-Capitã, não podemos ter mais baixas! Nosso contingente sofreu um desfalque muito

grande e as guerreiras que não estão machucadas estão cansadas e fracas. Não
devemos nos arriscar. È melhor bater em retirada antes que o pior aconteça.

-Você tem razão, Dêmora. Pouparemos a tribo. Diga para todas tomarem suas
montarias, vamos cavalgar!

Dêmora deu a ordem da Capitã e em duplas tomaram as montarias. Atrás do rastro

das amazonas ficou a tempestade despejando uma cachoeira de tenebrosidade no


meio da clareira.

Logo que tomaram uma distância segura Neferhiri parou olhando para trás e vendo

o turbilhão disse:
-Dêmora, a floresta não é mais segura, nem seus arredores. Devemos levar as

guerreiras para outro lugar, o mais distante daqui, e o mais depressa possível, ou
seremos aniquiladas!

-Sim, minha Capitã! Um lugar distante e seguro. Um lugar onde possamos nos
esconder e eu já tenho em mente onde: Neferthot! – e se dirigiu às demais - Vamos

amazonas, cavalguem na velocidade dos ventos, façam estes fantasmas comer


poeira! Rumo a Neferthot!

207
1.4 Bet e a jornada ao Porto da Morte

Capítulo II

Nasce a Guerreira
1. As amazonas

2. Um novo lar
3. A guerreira sem nome
4.

208
Cromm II

209
Cromm II

Livro I
Começa a Guerra das Sombras

Capítulo I

A Primeira Guerra das sombras


1. As amazonas deixam Ankamon

2. A aliança
3. As hordas de Ankset

4. Aron é prisioneiro nos pântanos de Ankset


5. A jornada de Aron à Harpis

6. O comboio dos Kolbis


7. A batalha da Segunda Cidade Anciã

8. Os campos sangrentos
9.

Capítulo II

A Esperança
1. O Cativeiro de Bet

2. Aron descobre a verdade sobre as gemas


3.

1. A jornada de Aron à Harpis


2.

210
Capítulo I
A Primeira Guerra das sombras

1. As amazonas deixam Ankamon


2. A aliança

3. As hordas de Ankset
4. Aron é prisioneiro nos pântanos de Ankset

5. A jornada de Aron à Harpis


6.
1.6 O comboio dos Kolbis
A emboscada estava armada, e meu punho cerrava a espada preparada para cair

sobre o inimigo, talvez mais rápido que uma flecha. Kandrini escondia-se por detrás
dos arbustos juntamente comigo. Dêmora estava nas valas, do outro lado da

estrada.

211
O comboio vindo de Ankset passaria por ali a qualquer momento. Inladris, nossa

melhor batedora, estava a postos escondida entre os galhos de uma árvore, e daria
o sinal: uma flechada certeira no condutor do primeiro carro.

Eu suava, o sol estava a pino, e meu odre vazio. Foi quando escutamos ao longe um
sino. O barulho ficava cada vez mais próximo, misturava-se ao som de latas e outros

objetos batendo-se. Podíamos ouvir alguém cantarolar, com uma voz balbuciante,
uma destas canções de taverna:

“Hic! Um bom prato, polcum e canção,

Beber, beber, beber...

Quando o ladino roubar o anão,


Correr, correr, correr...

Hic! Quando o taverneiro pedir seu tostão,

Dever, dever, dever...

- Hic! Mais um gole de polcum para mim! Mais um! E mais outro... Para mim! Não
podemos esquecer de você velhote! – e o homem encenava uma outra voz- Claro,

não podemos esquecer de mim, pobre velho!

“...O anão roubado não pode pagar,

O taverneiro pede ao algoz para cobrar,

A anão o mata e quebra o bar,


E depois que acaba a confusão, hic!

Beber, beber, beber...”

-Cuidado velho mascate, não caia! Cuidado, não podemos deixar nosso polcum cair

do odre. Nenhuma gota, não mesmo! Nenhuma, nenhuma, nenhuma! Hic! Podemos
balançar e tropeçar, seu velho, mas não devemos deixar nossa poção mágica ser

212
desperdiçada! Portanto, seu velho bêbado, tome cuidado!- dizia, fazendo um jogral

consigo.

Kandrini riu. Logo Édolas coloca o dedo sobre os lábios pedindo silêncio à amazona,
que sussurra:

-O homem está ébrio!


-Pode ser um batedor disfarçado, Kandrini!- Interpela.

Neste momento Inladris desfere uma flechada certeira no odre do bêbado. E, logo,
escutamos:

- Seu velho! -Pragueja consigo mesmo.- Veja o que fez! Quebrou nosso vasilhame!
Seu tolo, falei para tomar cuidado! Agora está ai: nosso ouro derramado no chão!

Porém uma segunda flecha é lançada e acerta o chapéu do homem:


-Kolbis arqueiros! Oh! Santa Mama Bonachona! Estamos sendo atacados!

Pulamos rapidamente na estrada, com as armas empunhadas e o que vimos foi um


velhote cheio de bugigangas penduradas, acuado:

-Oh! Eles são um exército! –e tombou desmaiado.


Todas se entreolharam e riram, porém arrastaram o homem e suas quinquilharias,

todas amarradas umas nas outras, para fora da estrada e voltaram aos seus postos,
preparadas para a emboscada.

Kandrini colocou-o aos seus pés, para que ao acordar, podessem interrogá-lo. Muito
embora ele não parecesse mais que um bêbado carregando entulhos e artigos sem

muito valor.
Ela apanhou um jarro, dentre os muitos que ele tinha, a fim de matar sua sede. Ao

destampar o vasilhame um cheiro terrível tomou conta dos ares. Como se estivesse
respirando na boca de um morto.

- Por Selqet! Que cheiro medonho! O que será isto?! Fios e punhos, isto fede muito!
Arremessou o pequeno jarro ao longe. Ao atingir o chão, quebrou-se, fazendo com

que seu conteúdo se espalhasse. Uma fumaça se evaporava do líquido, tornando o

213
ar quase irrespirável. O tal líquido roeu a relva que estava ao redor, deixando à

mostra apenas uma terra ressequida e e então, fumegando, dissipou-se.


-Ele é um bruxo! -Exclamou Kandrini.

-Segure-o, e não o deixe escapar! -Gritou Dêmora do outro lado da estrada-.


A guerreira o sacudiu com o pé, e o velho parecia mesmo desmaiado. Puxou um por

um de seus vidros, porém não quis abri-los. Vislumbrou o conteúdo contra a luz até
encontrar algo que parecesse água. De dentro do alforje do bêbado retirou um odre,

depois de muito procurar. Destampou-o, o cheiro doce e forte de polcum invadiu o


ar. E ao colocar o jarro na boca, quase que imediatamente escutou:

-Não! Esta é minha última dose de polcum, por favor! Sou um pobre e velho
mascate, Oh grande guerreira, eu lhe imploro: leve todas as poções que quiser, mais

deixe o polcum para mim.


- Seu fraudulento, então estava se fingindo! -e colocou a espada na garganta do

homem.- Sabe o que fazemos com mentirosos na nossa tribo? Os deixamos


amarrados com a língua esticada sobre o cupinzeiro, até que seja devorado pelos

insetos!
-Minha intenção não era fazer mal, grande guerreira, sou um velho fatigado e

castigado pelo tempo. Apenas não poderia lutar contra nenhuma de vocês, então me
fingi. Pegue o que quiser de mim, mas deixe o polcum!

-Velho miserável, quero apenas água!


-Posso fazer um poço d’água para matar a sede de um exército inteiro, tenho

apenas que encontrá-lo .- e vasculhou os bolsos do alforje, de onde saiam entulhos


e mais entulhos, procurava algo-.

-Vá com calma velhote! O que está procurando?! Pela lâmina de Selqet! Se tirar
mais um maldito truque de dentro dos bolsos eu arranco sua cabeça!

-Achei! Esta aqui!- e retirou de um dos bolsos vários canudos, e dentre eles,
escolheu um azul, e o abriu-. Deixe-me lembrar como devem ser ditas as palavras...

Deixe-me ver... Deixe-me ver... Hum, sim!

214
E esticando o tecido que estava enrolado, preparou-se para pronunciar as palavras

que estavam escritas quando Kandrini despontou:


- Não o deixe recitar suas feitiçarias, Tutteb! Irá lançar uma magia sobre nós! Ele é

um maldito bruxo trapaceiro, arranque a cabeça dele!


-Não, por favor!- e o velho começou a chorar - Não me matem! Eu só queria acabar

com a sede de todas vocês! Assim como posso fazer água, posso fazer ouro e
torná-las ricas!

-Cale-se seu mentiroso! – irrompeu Kandrini também apontando a espada, bem no


olho do velhote.- Ele é um sujo trapaceiro, não deixe que ele fale, Tutteb, logo

lançará uma magia com sua voz! Conheço os feiticeiros, são todos ardilosos, é isto
que fazem!

-Eu não sou um feiticeiro! Sou um mascate, e serei um mascate velho e cego se
afundar mais um pouco a espada no meu olho!- disse, ainda vertendo copiosas

lágrimas.
Tutteb sentia pena do velho, mas Kandrini estava decidida a acabar com ele ali

mesmo quando escutaram o barulho de cascos ao longe.


Dêmora arremessou uma pedra, do outro lado da estrada, que por uma infelicidade

acertou a cabeça do velho e o fez cair desmaiado. Todas se prepararam, a hora


havia chegado.

Podia sentir ao longe o cheiro dos Kolbis, que não fediam mais que seus ninhos
imundos e cheios de armadilhas; suas tocas podres cavadas na lama dos pântanos

de Ankset.
Eles se aproximavam, e já podíam ouví-los grunhindo.

Inladris dispara sua primeira flecha. Era o sinal.


Saltaram na estrada e nos depararam-se com um comboio formado por duas

carroças e dez Kolbis montados e bem armados.


Kandrini, Édolas e Tutteb atacaram pelo flanco esquerdo, Dêmora, Neferhiri e Aralti

pelo flanco direito, enquanto Inladris dava cobertura do alto da árvore.

215
Brandiram suas espadas contra as claves espinhosas dos kolbis, dois deles fugiram,

porém no meio da batalha um nevoeiro tomou conta da estrada e tombaram todas


em um sono profundo e imediato.

Acordaram ainda no mesmo lugar e meio confusas podiam escutar a voz ríspida de
Dêmora dizendo:

- Trovões e raios! Poderíamos ter morrido! Fui a única a permanecer de pé! E você
não daria conta dos dois kolbis que também não tombaram em sono!

-Oh grande guerreira, minha intenção era unicamente ajudar... Sou apenas um
mascate velho, oh grande...

-Cale-se homem de pouca inteligência e grandes surpresas! Raios e trovões! Não


me chame mais de grande guerreira, meu nome é Dêmora. E isto basta!

-O que está acontecendo?-perguntei ainda abalada-.


-O nosso amigo feiticeiro colocou todos em um sono profundo, na intenção de matar

os inimigos enquanto dormiam. No entanto apenas eu e mais dois kolbis resistimos


à magia do velho. E se eu também houvesse caído, a astúcia do bruxo teria nos

matado!- ironizou Dêmora-.


-Mas eles estão todos mortos, veja!- e o trapaceiro sacudia os corpos imundos dos

soldados de Ankset-.
As outras guerreiras estavam acordando também, e logo tudo foi explicado a elas.

Dos corpos montaram uma pira e a incendiaram, enquanto o velho revistava as


carroças.

-Não há nada de importante nos carros.- disse o feiticeiro batendo uma mão na outra
livrando-se de alguma espécie de pó verde-.

Kandrini dispara:
- Ora trovões! Nós não vamos confiar neste mascate traiçoeiro, vamos?

-Embora ele seja um bruxo e de pouca inteligência, nos ajudou em batalha, e


mostrou-se digno de pelo menos permanecer vivo. Por enquanto o levaremos como

prisioneiro, até que ele nos diga quem é e o que faz nestas bandas. Depois disto,

216
podemos deixá-lo ir. Muito embora estas bandas estejam cheias de perigos e as

estradas ocupadas por inúmeros kolbis, bem mais fortes que estes!-respondeu
Nefehiri, com ar de ameaça.

E o mascate diz mais que rápido:


-Eu gostaria muito de lhes ser digno de confiança, demonstrando minha serventia,

afinal como um velho como eu poderia sobreviver em meio a tantos perigos...


-Chega de palavras, velho trapaceiro!- disse Kandrini zombando do velhote- Você

virá conosco e nós o protegeremos!


-Sim, muito obrigado!- e seguiu o velho catando suas quinquilharias para seguirem

viagem-.
-Porém,-interrompeu Neferhiri-, seguirá conosco com a boca amordaçada, para

evitar que pronuncie seus feitiços, e com as mãos amarradas, para que não tire mais
nenhuma surpresa dos bolsos!

Antes que ele pronunciasse qualquer coisa, Kandrini tapou-lhe a boca:


-Além de ser feio, você fede velhote! Deveria tomar banho mais seguidamente! Tem

certeza que não é um kolbi?! -e todas gargalharam-. Se tivéssemos que lhe dar um
nome, este seria Carniça.

Depois de vigiar os kolbis em seu acampamento por duas noites e atocaiá-los,

seguiram sem maiores investigações, embora achássem estranho que o comboio


não carregasse nada de valioso. Ainda assim concluíram que deveriam estar

rumando para a Segunda Cidade Anciã, ou seus arredores. Algum ataque deveria
estar sendo tramado em meio à escuridão da mente da Sacerdotisa de Ankset.

Continuaram então, sua caminhada rumo à Segunda Cidade Anciã.


Com o velho Carniça, o qual apelidaram, coincidentemente, pelo mesmo nome.

A batalha da Segunda Cidade Anciã

217
O sol despontava no horizonte ferindo a retina dos arqueiros, que concentrados,

esperavam pelo sinal de Neferhiri. Os minutos de ansiedade, mal podiam suportá-


los. Talvez a luz do dia acabasse tornando-se uma vantagem para as guerreiras, que

se encontravam em número inferior ao das hordas de Ankset.


No fronte inimigo kolbis, chacais puros, híbridos, selvagens, homens-lobo e growls,

inúmeros growls monstruosamente grandes balançavam correntes acima da cabeça,


outros com massas arremessavam soldados da própria infantaria, que mal podiam

controla-los –para isto balançavam tochas de fogo na frente dos ogros -. Todos
urravam ferozmente, e a batida dos tambores retumbava no peito das guerreiras,

como se falassem sobre morte, ódio e desesperança. Tochas e mais tochas


iluminavam o mar de seres prontos para massacrar o Forte da Segunda Cidade

Anciã.
O olhar temeroso de Aralti titubeava ao mirar as hordas quase a avançarem sobre a

muralha. Seu cavalo inquieto espinoteava e o negro dos olhos parecia mais
brilhante, tal como o pêlo ainda úmido pela neblina da noite. Porém percebia, a

chefe da infantaria montada, que suas guerreiras pareciam temer algo. Por certo o
olhar enfurecido das hordas, por certo abaladas pelo descaso do Povo do Sol

perante a Aliança. Sentiam-se talvez inseguras, fracas, temendo a morte.

• Neferhiri, as guerreiras temem. Veja em seus olhos...

• Talvez possam temer, mas não às hordas de Ankset, talvez a este ar

bochorno que paira. Pressinto algo...

• Talvez, Capitão, Tutteb possa nos dizer.

Dirigiu-se então Neferhiri a Tutteb, que permanecia firme sobre o lombo do cavalo
inquieto, que resfolegava e renegava, a guerreira apenas deixava-se balançar pelo

movimento do animal, porém quieta , com o rosto coberto pelo negro manto que
recebeu de Aron em sua partida, não se permitia deixar ver o rosto.

• Tutteb, que vês?

218
• Logo presenciaremos algo que ainda não posso saber o que é. Porém há

magia no ar, e vozes ecoam entre um espaço e outro. Escuto um nome em


minha mente, porém não posso distingüí-lo, mas algo me é familiar e ainda

não consigo reconhecê-lo.

O sol tratava de despontar com toda força e logo irromperia fuzilando a visão dos
growls. Tutteb permanecia inquieta sobre o cavalo, e pelo rosto sentia correr-lhe um

suor frio, porém em seu interior uma chama lhe fervia o peito e se espalhava pelo
corpo, como se algo mágico estivesse para acontecer.

E logo não tardou para que do horizonte tentáculos negros surgissem, gigantescos.
Espalharam-se e esgueiraram-se, a princípio surgiram dois, depois destes brotaram

outros, pelo campo de batalha. E como estes, surgiram outros em torno do exercito
de Ankset, e subindo todos como para encontrarem-se no centro e formar uma

gigantesca redoma, logo cortando a claridade e descendo sobre o campo de batalha


uma tenebrosidade profunda.

O exército inimigo batia seus tambores e enfurecidos, e agora mais, inflamados pela
magia, urravam contra o exército no forte. E os arqueiros mais novos sentiam o

coração bater na garganta, apertando a língua. Alguns olhares vacilantes eram


percebidos por Neferhiri, que se posicionou à frente, erguendo o braço, deu o sinal

aos arqueiros, todas se preparam, e Neferhiri desce a espada:


-INAAAAT CHARAMMM (inaat charam).

E logo aquela saraivada desce sobre a linha de frente de Ankset, e atingem

inúmeros dos que ali se encontravam. Nesse instante o exército inimigo cai em
silêncio ao olhar os corpos tombarem. Ao perceber que as guerreiras temiam um

massacre, Dêmora que a princípio sentia uma força para blefar contra si mesma,
logo deixou uma esperança desafiadora tomar conta de seu coração e lançou as

palavras como se preenchessem o vazio que o medo havia lhes suplantado:

219
-Guerreiras, suas espadas estão empunhadas, seus arcos preparados, e seus

corações não devem temer desafio algum, pois poderá não ser um dia de vitória,
mas será um dia, que digo, com a certeza dos deuses; o dia de hoje será o dia em

que a coragem nos abençoou, e para eles hoje é um dia de morte! Tomem suas
espadas, brandem-nas como se a fúria em seu fio estivesse, e lá estará, preparem

seus arcos e disparem, como se o veneno da ira estivesse na ponta da flecha, e lá


estará! E se temerem ou vacilarem, olhem para mim e lembrem de minhas palavras

e então, a vontade de vencer estará dentro de vocês, atiçada pelo fogo da guerra. E
lembrem-se: eu jamais desistirei, por nenhuma de vocês, pois aqui divido a fúria da

guerra que queima no meu punho! Por isso matem, ainda que estejam feridas,
matem, pela liberdade que nossos antepassados conquistaram. Matem, para

defender a glória de um futuro livre! Hoje é um dia de fúria e de liberdade!h


Mas, em seguida, enfurecidos, os kolbis , jogaram-se sobre a linha de frente de

exército do forte. O capitão da guarda inimiga tentou detê-los, porém alguns ainda
avançaram contra as guerreiras nos portões do forte, mas foram derrubados pelos

arqueiros. No entanto a multidão enfurecida não pôde ser contida e investiram


contra as guerreiras, em número de cem, elas esperaram, agora com olhares firmes.

As lanceiros empunharam suas armas , até que os inimigos atingissem a distância


certa para serem atingidos.

1. Os campos sangrentos
2.
Bet olhou ao redor, e observando os corpos espalhados pelo chão pensou realmente

se valia a pena lutar. Dêmora, Alexia, Kandrini, inúmeras guerreiras que neste
momento poderiam estar ao seu lado; faziam parte de um mundo habitado pela alma

de pessoas corajosas que morreram para defender um mundo melhor. Porém de


que adiantaria elevar a prosperidade de uma terra deserta? Veria, a guerreira sem

220
nome, eternamente a imagem de suas companheiras de batalha no reflexo do

tempo.

........................................................................................................

Juntar seus corpos em silêncio era o que restava. Acolher a culpa de não poder tê-

las ajudado seria minha perpétua punição por ter sobrevivido.


Algo de glorioso pairava no ar momentos antes da batalha, no vento que trazia a

esperança, na coragem dos olhares outrora temerosos, erguidos pelas palavras de


Demora; que instantes depois caía aos pés do inimigo. Por estas palavras morrerei

até minha última batalha; porém não na ponta da flecha, não no arremesso da
azagaia, não no brandir da espada, não no avanço da lança inimiga, mas morrerei

cada vez mais após o fim de cada luta que me permitir ver toda esta morte, este fim.
Muitas vezes em uma batalha, não há perdedores nem vencedores, há apenas a

morte. Quantos sonhos ali morreram? quantas esperanças ali deixaram de se


perpetuar, quantos sorrisos deixaram de iluminar o coração do mundo? Impossível

dizer. Porém as lágrimas que caminham pela minha face falam as caladas palavras
de todos que se foram. E o lamento do meu coração é certamente o lamento de

inúmeros outros guerreiros que perderam amigos, família, sua própria vontade de
viver; ao mesmo tempo tornando-se este o motivo pelo qual continuam a batalhar.

Haverá talvez, no clangor da guerra, frutíferas esperanças. Surgirá talvez, da morte


a vida, porém o chão matizado de rubro, que tanto me fere os olhos, deverá ser o

preço, alto, de um futuro próspero. Se lutamos, se matamos, se morremos, algo


maior deve haver, que não simplesmente o vazio dos campos, onde repousam

armas, dores e corpos.


Capítulo II

A Esperança

221
1. O Cativeiro de Bet

2. Aron descobre a verdade sobre as gemas


3.

Cromm III

222
Cromm III
Livro I
Aron, o Guerreiro.

Capítulo I

Jornada em Alto Mar


1. Aron chega ao porto de Copset

2. As viagens no rio Ausar


3. A Quinta Cidade Anciã

4. A Quarta Cidade Anciã


5. A morte de Baradum

6. A foz de Ausar
7.

Capítulo II

O Eremita
1. Os fantasmas do Arquipélago de Geb

2. As cavernas de Chamur
3. O despertar do Guerreiro

223
4. Chegada à Ankset
5.

Livro II
A Rainha Negra

Capítulo I

Os Exércitos da Luz
1. O levante das Amazonas
2. O Conselho de Matra
3.

Capítulo II

A Segunda Guerra das Sombras


1. Bet, a profetizada

2. A Sacerdotisa Negra
3. O mal assume uma forma

4. A batalha de Ankset
5. A libertação

224
6.

Capítulo III

O Reino dos Homens


1. O primeiro reinado

2. Tua-a-tu
3.

Livro I
Aron, o Guerreiro.

Capítulo I

Jornada em Alto Mar

225
Aron chega ao porto de Copset

O sol se punha no horizonte, beijando os pés do porto de Coptset, e uma cinza

perene emanava de uma embarcação ali aportada. Seus olhos mergulhados no


entardecer mal podiam conter aquela visão nas retinas, porém nuvens negras e

revulsivas distorciam o céu às suas costas, há algumas milhas, pelas bandas da


aldeia. O mar o aguardava, chamava por Aron através de um marulhar calmo e

tépido jogando-se lentamente nas paredes do porto. Ao lado dele uma grande placa
estampava em língua geral mal escrita: “Proibido o desembarque de conjuradores

de magia. Todos serão mortos. A Guarda. Errei: os conjuradores de magia serão


mortos. Errei de novo: Só não serão mortos os conjuradores de magia que

carregarem o alto medalhão da Torre de Coptset.”, claramente, serviço de um Kolbi.

-Lhe dou vinte peças de ouro por essa espada - interpelou uma voz grave, atrás de
mim.

-O Senhor vai precisar de mais que vinte peças...


-Por uma quinquilharia dessas?

-Seus olhos jamais irão captar-lhe o verdadeiro valor! Esta é Amonroth, a espada
entre as espadas!

-E aquela é água viva!-apontando para um pedaço de cascalho no chão.


-Esta espada me foi confiada pelo rei morto de Kimsalon, e tenho uma missão

importante a cumprir, preciso embaraçar e me dirigir à Ibisthot. A maneira mais


rápida e segura de chegar lá é pelo mar. Tenho um encontro marcado com um

mensageiro lá.
-Não seja tolo Bijin, se queres viajar, terás de negociar algo! Ou achas que abarco

qualquer insano que chega ao porto e se diz um herói, ainda por cima sai ditando
regras! Pelas barbas de Utul! Poderás viajar comigo se pagá-la como tributo. E

acredite, é uma troca favorável para ti. Estás a ver aquele grande navio ancorado?

226
Pertence-me! Porém muitos de meus marujos foram mortos nesta última viajem:

foram degolados misteriosamente durante a noite. Ainda não sei o que causou
tamanho estrago, pois nossa carga não era um carregamento de morcegos e sim

uma tripulação de escravos a serem negociados neste porto.


-Então estás precisando de um marujo?

-Que saiba navegar, permanecendo vivo, e que goste do mar!


-Bom, eu gostei do mar...

-Pegamos o ladrão Senhor! – grita um maltrapilho marujo de cima do navio, que


mais parecia um pirata-.

-Traga-o para mim! –diz Baradum, coçando a longa e negra barba-.


- Quê? Hum! Ah! É! Sim Senhor!- responde o embarcado. O tal pirata não tinha uma

aparência muito agradável: sujo, com as roupas comidas pela maresia, um tapa-
olho, na cabeça algo que parecia ter sido um chapéu um dia, hoje estava escondido

pela sujeira. Ao aproximar-se sorri, deixando à mostra os dois dentes e meio que
ainda lhe restavam e diz:

-Está aqui o ladrão!- suspendendo pelo congote um velho, igualmente sujo, que se
encontrava aos prantos. - Ele estava em meio aos escravos, Senhor, e quando

dissemos que revistaríamos todos até encontrar seu dente de ouro, ele o jogou no
chão, porém um dos escravos viu e entregou o ladrão á nós.

-Mate-o!- diz o capitão-.


Porém intrometi-me:

-Mas é apenas um velho! O que ele poderia fazer?! É notável que não pode nem
com as próprias calças!- e o velho chorou ainda mais e disse:

-O rapaz tem razão! Sou um pobre velho, venda-me como escravo, mas não me
mate, por favor!-E jogou-se aos pés do capitão beijando-lhe as botas.

-É o que veremos!- Baradum ergueu o suposto ladrão pelo cangote e pôs a mão em
seu alforje, vasculhando os bolsos; de onde saíram quinquilharias sem fim; pedaços

227
de pão, ferramentas, botões, charutos queimados, panos rasgados e dois anéis de

ouro.
-Seu velho fraudulento! Um destes anéis me pertence!- disse o capitão furioso-. O

outro não era meu, mas agora me pertencerá também! Mate-o Carcaça!
-Capitão, Senhor de todo o mar, deixe-me pelo menos dizer minhas últimas palavras

antes de encontrar meu derradeiro e triste fim!


-Diga ladrão, e depois já poderás morrer!

Neste momento o pirata já tinha em mãos uma cimitarra afiada apontada no pescoço
do velho.

Depois de engolir ar seco, disse o ladrão:


-Confesso, sou um ladrão! Porém um ladrão arrependido de seus crimes!-intentava

o velho.
-Pronto! Morrerás absolvido e remissado de seus pecados!-resumiu o capitão -

Mate-o agora pirata!


-Ma... Ma... Mas, Senhor... - gagueja o ladrão, tentando nitidamente postergar sua

morte-. Além de ladrão sou um feiticeiro! Poderia lhe ser útil no navio, já que está
precisando de marujos...

-Sim! Mas não de marujos que roubem seu capitão! O pior pirata é aquele que rouba
dos seus!- ironizava o capitão - Já disse para matar o infeliz, Carcaça!

E o empregado de Baradum apertou a cimitarra no pescoço do velho novamente.


-Calma!- interpelou mais uma vez o homem - Posso, com minha magia poderosa

curar homens, fazer água, e posso também fabricar ouro... Sim! Muito ouro! E Torná-
lo rico!- Neste instante os olhos do pirata que o ameaça com a espada brilharam-.

-Então não precisarei mais pilhar! E não serei mais Baradum! Cale-se seu medroso!
Carcaça leve-o daqui e mate-o de uma vez!

-Sim, Senhor!
O pirata saiu carregando o velhote aos trancos, ainda ao longe podíamos escutar o

choro dele.

228
-São as leis: roube antes de ser roubado, mate antes de ser morto!-gargalhou -

Como se chama rapaz?


-Aron, Senhor. Aron, o bardo.

-Pois seja bem-vindo à tripulação de Ulgar, Aron, o bardo!

E foi assim que conheci Baradum, o capitão de Ulgar. Esse foi o início de uma longa
jornada.

..................................

O pirata levou o velho até uma viela vazia, distante do navio. Iria cumprir as ordens

de seu capitão por ali.


-Vamos, vamos velhote! Não tenho o dia todo!- disse Carcaça ao ladrão.

-Sou apenas um pobre velho, que mal pode caminhar!- disse Carniça, sendo posto
de joelhos e com a espada em sua nuca.

Pôde sentir a lâmina gelada e fina encostar-se à pele, logo acima da gola da camisa.
-Deixe-me viver!-implorou ao pirata, que levantou a espada-. Deixe-me viver! Tenho

fome e sede, e não poderei morrer assim!


Carcaça pensou por alguns minutos, tempo em que seu rosto contraía-se

ininteligivelmente, porém demonstrando pesar para com o velho, tomou da cintura o


odre e um pedaço de pernil salgado e ofertou a ele:

-Tome! Coma e beba! Logo em seguida o matarei!- e colocou novamente a espada


no cangote do velho.

-Não posso comer e beber com uma espada apontada para mim! Por favor, abaixe
as armas, sou um indefeso, não vê?! E quero um pingo de dignidade ao fazer minha

ultima refeição!

229
O Pirata franziu o cenho e retirou a espada do pescoço do velho, aguardando que

ele comesse. Porém estava impaciente: esperava que logo acabasse aquela
enrolação toda.

-Deu?- perguntou o algoz.


-Não! Não vê que ainda estou a comer!-diz o velho, mastigando lentamente o

pedaço de pernil, procrastinando seu fim.


Alguns instantes depois, novamente o marujo:

-E agora, deu?!
-Não! Pelas barbas do salgueiro pirata infame! Acredito que ainda enxerga com o

outro olho que resta! Ainda estou a comer!


-Pois irás morrer agora velho! Já comeu mais do que seu bucho minúsculo pode

agüentar!
Irado o pirata arremessa a garrafa e chuta o pedaço de pernil. Ergue a espada e

quando a desce com fúria, o velho intervém mais uma vez:


-Piedade, piedade! Não quis ofendê-lo! Abusei de sua bondade e peço que me deixe

fazer um último pedido antes de morrer!


-Diga velho! Estou perdendo a paciência e tenho muito que fazer! Fale logo o que

quer! Há uma embarcação a ser descarregada e não tenho o dia todo!


-Peço que me deixe fazer uma última oração!

-Me poupe velhote! Você lá tem cara de ser um homem de fé! És um ladrão
mentiroso!- e desceu a espada, porém antes de golpear o ladrão, este dispara:

-Ouro, ouro! Poço fazer ouro com uma magia que tenho guardada!
-Ouro?- e brilharam novamente os olhos do pirata- Faça então! E logo estarei rico!

Depois pensarei se lhe deixarei viver!


O velho catou um dos pergaminhos do bolso, desenrolou-o e o leu.

Uma fumaça espalhou-se pela viela, e caiu o pirata em um sono profundo. Nunca
correu, Carniça, com tanta rapidez assim!

230
.............................................................................................................

A galera iria partir no fim da lua negra, e Aron teria três dias, ainda, no porto de

Coptset. Uma peça de ouro era o que guardava no bolso. O odre vazio. A roupa
rasgada. Estava à procura de uma estalagem, um bom pára-barros, para se trocar,

comer e consertar as roupas rasgadas. Perto de uma taverna pediu informações a


dois homens que pareciam estar feridos:

-Onde há uma estalagem por aqui, bons homens? Hum... Eu os conheço... Você é o
pirata- apontando para Carcaça- e você o velho ladrão - apontando para Carniça.

Os dois entreolharam-se, estavam ofegantes, e gaguejando o pirata disse:


-Sim... Sim... Não conte ao Capitão que o ladrão ainda está vivo! É que... - e Carniça

o interrompeu - É que sou muito velho, e depois de me redimir ao pirata, fui


perdoado pelos maus atos cometidos. Sinto-me profundamente arrependido... Sim,

Sim... Esta é a verdade... - disse quase choramingando novamente.


-Mas que ótimo! Quanta bondade e generosidade há no coração deste homem!- e

bateu nas costas de Carcaça, que inventou um sorriso muito amarelo e artificial.
-Mas... Onde há uma estalagem?!

-Carcaça mostre um bom lugar ao forasteiro!- o pirata desferiu um olhar fuzilante


para o velho.

-Quanto o Senhor está disposto a pagar?- perguntou-lhe Carcaça.


-Tenho apenas uma peça de ouro. -colocando a mão no cinto e balançando o saco.

Porém naquele momento Amonroth, reluzindo suas safiras, deixou-se entrever pelo
alforje.

Os olhos da dupla brilharam mais que as pedras da espada, e logo o mascate diz à
Aron:

- É uma pena... O Senhor precisaria de bem mais uma peça para comer e
descansar. Mas como sou um bom homem –e sorriu cinicamente- vou lhe ajudar.

Faça o seguinte: lá adiante há uma taverna, Caneca Salgada ela se chama, há um

231
velho mau, muito mau lá. Ele está em alguma das mesas, é um velho anão, muito

barbudo, tome dele as moedas que carrega em seu saco, ele me deve há algum
tempo já. Não o quis cobrar, por que sou um bom homem e não estou necessitando

do dinheiro no momento. Mas será útil para você. Ah, não o acorde, ele está
dormindo um sono profundo. Ele se importará mais se acordá-lo do que se pegar

suas moedas enquanto dorme.


Aron interpela:

-Obrigada pela generosidade. Assim que pegar o saco tomarei aquilo que for
necessário para um descanso e lhe devolverei a outra parte, que é sua por direito.

E o pirata completa:

-Acredito que isto servirá para um homem desprevenido, digo, desprovido. - e riu -
um homem desprevenido não carrega uma espada destas...

Aron sorriu e agradeceu.


-Apresse-se - diz o velho-, antes que a estalagem feche. - com ar de quem

dispensava uma preocupação grandiosa.


O bardo deu às costas e seguiu em direção à taverna, ao olhar para trás viu que os

dois estavam um a esganar o outro com as mãos, no que parecia uma briga.
Mas ele seguiu.

Confiando nas boas intenções dos homens ele foi até a taverna. Ao longe se

escutava a música e gargalhadas sem fim ressonando dentro daquela casa pequena
e pouco iluminada. Na entrada farfalhavam duas tochas, uma de cada lado da porta,

um homem bêbado conversava com um amigo inexistente, sentado no chão,


oferecia-lhe um gole de polcum: “Beba, vamos beba. Hic! Lembra-te que na galera

não haverá polcum nem mulheres!”. Á entrada, dois Kolbis conversavam bêbados,
tentando se equilibrar com as mãos no marco.

232
Nunca havia colocado seus pés em uma taverna da cidade, era um proscrito dos

ermos. Preferia lidar com as amazonas ou ainda com as tribos primitivas de Tef-
Annafat.

Pois bem, quando entrou ninguém percebeu sua presença, e logo Aron-Sat-Geb
pôde avistar o tal velho que procurava, estava dormindo sobre à mesa em meio

aquele alvoroço todo: ele era muito baixo, e seus pés ficavam dependurados na
cadeira, porém a largura de seu peitoral era metade da envergadura do bardo, e o

braço repousado sobre o machado, fazia quatro do dele.


O forasteiro caminhou até o anão e agarrou o alforje pendurado no cinturão, neste

instante um silêncio tomou conta da taverna e todos os olhos estavam fitos no


bardo. Um velhote engoliu o polcum que estava em sua boca com dificuldade,

olhando apreensivo o que acontecia. Feições assustadas e amedrontadas,


esperando que algo catastrófico acontecesse. Um clima de tensão pairava entre o

saco de moedas, as pessoas e o bardo.


Resolveu largá-lo. Todos então soltaram o ar em um suspiro e relaxaram seus

músculos tensos e contraídos.


Mas o bardo realmente precisava do dinheiro e era justo que o anão pagasse o que

devia ao homem. Tomou o saco nas mãos novamente. Todos tornaram a olhá-lo com
as mesmas expressões de terror. Aron deu um puxão na algibeira, e alguns se

encolheram em seus assentos, outros taparam os ouvidos, outros não conseguiam


se mover, e houve também os que fugiram. O saco porém não abandonou o cinturão

do anão, mas as moedas espalharam-se pelo chão. Aron catava as moedas


calmamente quando sentiu uma mão pesada segurar-lhe pelo cangote:

- Seu ladrãozinho tolo! Ninguém rouba Groud, o maior!


O anão poderia ter erguido Aron com facilidade se sua altura permitisse, mas o pôs

em cima da mesa, espremendo o peito do bardo com as mãos. O forasteiro mal


podia respirar e compreendeu algumas das blasfêmias que o anão proferia em

233
diversas línguas, enquanto sua barba enorme roçava o rosto do bardo, cravejada de

pedaços de pernil.
-É a segunda vez que tentam me roubar esta noite, e eu estou furioso! Preste

atenção, sua ratazana, eu já bebi demais esta noite, mas fio pequeno ainda está
com sede! – e apontou no pescoço do bardo a lâmina afiada do machado que

refletia sua imagem.


Não ocorria nada na mente de Aron que pudesse safá-lo daquela enrascada, que

provavelmente teria sido armada pelos dois homens do navio. Então o anão
encontrou Amonroth debaixo do capeirão:

- E vejo que este é um ladrão ardiloso, pois conseguiu roubar esta bela espada de
seu dono. Com uma das mãos empunhou a espada e todos que estavam na taverna

interjeitaram admirados, pois as pedras da espada brilhavam, porém não mais que
sua lâmina, parecia ao bardo que a arma despertava de seu profundo sono.

- Quem é o dono desta espada? –perguntou o anão.


-Eu! –o bardo pôde vislumbrar a imagem de Baradum no reflexo do machado. - Eu

sou o dono da espada, Baradum, o mercador.


-Baradum, aquele que domina a maré, o capitão do mar, Baradum, o mercador ele

é... -cantarolou o anão.


-Sim, sou eu mesmo. E esta que empunhas é minha espada. Amonroth, ela se

chama!
O anão leu o nome da espada em sua lâmina e a entregou ao capitão.

-E quanto a você, pequeno verme... -dirigiu-se ao bardo o anão.


-Deixe-o! O levarei comigo quando partir, ele me servirá. Vai pagar por ter me

roubado a espada, suas moedas, e por todos os crimes que cometeu no passado!
-Eu irei junto para me certificar que o ladrão caolho pagará pelo que me fez, de outra

maneira furarei o olho são que lhe resta.


-Estou precisando mesmo de marujos, mestre anão. –interpelou astutamente

Baradum.

234
-Marujos! Humpf.- desdenhou o anão- desde quando os anões são marujos? Sou

um guerreiro se é que não consegue ver...


O capitão ergueu a espada, apertando o olhar intimidador para com o anão.

-Quer dizer, os anãos não foram feitos para o mar...


E o capitão aproximou a lâmina de Groud.

-Até que aprendam a se equilibrar... – finalizou o anão, com olhos assustados


debaixo das grossas sobrancelhas que escondiam as retinas fitas na lâmina.

-Muito bem. Então irá conosco Groud. Sei que é um ótimo guerreiro, por isto o quero
em minha tripulação. Seja bem vindo à Ulgar!

O anão recompôs-se ajeitando as vestes e estufando o peito com orgulho, não sem
antes fulminar Aron com seu olhar feroz encorajado pelas palavras de Baradum.

................................................................................................

Enquanto isto, na viela próxima à taverna, Carcaça e Carniça esgoelava-se:

-Foi tudo culpa sua, seu velhote maldito! Que os monstros dos mares o devorem! –
dizia o pirata, quase matando o pobre velho.

- Minha culpa? cof, cof-Tossia o velho já sem ar.

-Sim seu desgraçado, eu podia ter matado o anão e pego suas moedas para mim
enquanto ele dormia!

- Solte-me... Estou morrendo.cof, cof. Salvei sua vida, seu pirata imbecil!
O pirata franziu o cenho, tentando assimilar o que o velhote dizia, mas as coisas

para Carcaça sempre demoravam a clarear. Ele lembrou do conselho de seu


capitão: “Quando estiver em duvida, Carcaça, respire fundo. Se não adiantar, mate,

antes que seja morto.”. Mas felizmente as palavras do velho começavam a fazer
sentido para Carcaça e ele assentiu que o velho havia lhe salvado a vida: estava

roubando o anão Groud quando foi descoberto com as mãos na algibeira. Mais que
rápido a lâmina do machado do anão estava em seu pescoço, e graças a astúcia do

235
velho que estava escondido entre a multidão na taverna, foi salvo. O mascate pôs o

anão para dormir. Mas eles tiveram que abandonar a taverna sem que o pirata
pudesse pegar as moedas do anão, pois todos apontavam na direção do mascate,

um conjurador de magia.
Então o pirata soltou aos poucos o pescoço do velho.

-Você quase me matou, seu pirata desgraçado, da próxima vez deixo você virar
guisado de anão. –resmungou o velho apalpando o pescoço quase dilacerado.

-Desculpe. –disse o pirata cabisbaixo, envergonhado.


-Quase impossível não desculpar você... Afinal ninguém tem culpa de ter miolos de

garnisé no lugar do cérebro!


O pirata não conseguiu entender aquilo como uma ofensa e sentiu-se agradecido

por ter sido perdoado, afinal o velho tinha salvado sua vida.

Mas o mascate sabia que conjuradores de magia não eram bem-vindos em Coptset,
e depois do incidente na taverna, rapidamente os Kolbis estariam procurando-o.

Carniça era astuto, e graças a sua inteligência ainda estava vivo. Ele sabia que

agora Coptset tornara-se perigosa para ele e teria que sair o mais rápido possível de
lá. Então, mais que instantaneamente seu cérebro tramou um plano perfeito de fuga

e o pirata era uma peça importantíssima.


-Muito bem, -disse o mascate com um ar de completa sanidade- você me deve sua

vida, mas eu não serei injusto, não pedirei nada de grandioso: quero que me
esconda no navio para que eu possa deixar Coptset são e salvo.

O pirata não imaginava como o faria, mas o mascate sabia exatamente como, e
explicou ao pirata seu plano.

.....................................................................................

236
Orco era o marujo mais antigo de Baradum, seu fiel companheiro há quinze anos,

praticamente criado pelo Capitão, por quem tinha um apreço quase paterno. Seu
irmão, Irion, também amigo do Capitão, depois de cinco anos de viagens pelo mar

decidiu estabelecer-se em Coptset, para aperfeiçoar a sua vocação nas artes


mágicas. Orco achava aquilo uma grande balela, fazia questão de deixar claro ao

irmão que acreditava que ele seria um grande ilusionista destas caravanas circenses
que passavam por Coptset: negócio mesmo era aventurar-se ao lado de Baradum,

ser um guerreiro dos mares temido e respeitado. Ambos se odiavam: irmão e irmão.
Seu passado era triste demais, mas Orco escondia atrás da muralha de músculos

um homem sofrido e triste, mas não frio; Irion era a sombra de sua amargura, depois
destes cinco anos na Torre de Coptset, o único lugar habilitado a formar

conjuradores naquelas bandas, parecia que algo mal havia instalado-se na aura do
irmão mais velho.

Mas Orço Lâmina Cega, não era um grande guerreiro, tinha conquistado o respeito
de Baradum por sua lealdade e dedicação: grande no tamanho e pequeno na

agilidade. Possuía uma força fora do comum, ótimo para carregar e descarregar os
fardos do navio.

O marujo encontrava-se no término da tarefa que Baradum havia lhe confiado:


carregar o navio de provisões para a tripulação e fardos de farinha que seriam

entregues em Ankset, uma encomenda feita para abastecer os exércitos da


Sacerdotisa Negra. Em troca Baradum receberia escravos para vender nos portos

abertos à negociação. Orço terminava de colocar o último fardo no navio quando


ouviu a voz do irmão atrás dele:

-Soube que possuem um marujo novo, Orco. Quem é ele?


-Um ladrão. Quem mais poderia integrar a tripulação de Ulgar?- e riu um riso sincero

e cheio de parcimônia.
-Acho que sei mais coisas que você, meu caro irmão.- a malícia de Irion tomava

espaço.

237
-Suma da minha frente Irion, estou ocupado, não tenho tempo para balelas.

-Se eu fosse você Orco, tomaria cuidado. Escutei a conversa deles quando se
conheceram no aqui no porto, parece que ele é um proscrito, e mais, parece que

tem uma missão e é um grande guerreiro. Disse à Baradum que possuía a espada
de Kimsalon, dada a ele pelo próprio rei morto.

-Balela. –disse o marujo irritado, cortando as conjecturas do mago.


-Você deveria tomar cuidado, ele pode querer ocupar seu lugar de confiança junto à

Baradum.-o veneno de Irion foi profundo desta vez.


-Balela. –retrucou Orco puxando um grande saco de farinha e tentando afastar dos

ouvidos as palavras do irmão, que no entanto haviam lhe cativado uma dúvida
profunda.

-Sou seu irmão Orco, se falo isto é por que me preocupo com você. –apelou Irion.
Orco largou o saco de farinha e agarrou o irmão pela gola da roupa, erguendo-o até

a altura de seu rosto e então disse, furioso:


-BA-LE-LA! Eu não sou um bom guerreiro meu irmão, mas sou um ótimo

entendedor. Algo de sinistro você deve estar tramando e não farei parte de seus
planos . Sei que você não tem bondade em seu coração, eu tento ser um guerreiro,

mas você é um assassino destes que não prestam. Que existem aos turros aqui em
Coptset, portanto não diga que se preocupa comigo. Dispenso sua preocupação.

Volte para a torre de seu mestre na cidade, não deveria ter saído de lá esta noite.
-Você não deveria ter me tratado desta forma.

Orco largou o irmão e pegou novamente o saco de farinha.


-Você deveria respeitar seu irmão mais velho e mais sábio. Afinal, se não fosse por

mim, ainda seríamos escravos daqueles que você chamou de “pais”...


O mago mal havia terminado a frase quando Orco o acertou com o saco, ele estava

furioso, e aquilo havia sido a gota d’agua: Irion havia relembrado coisas do passado
duras demais para o irmão mais novo.

238
Orco estava tentando acordar o irmão quando escutou a voz do capitão que

despontava de uma das vielas em direção ao navio:


-Preparar para zarpar! Kolbis raivosos, Orço! Hoje teremos aventura!

Orco viu um velho com vestes femininas e longas patas de aranha. Logo atrás dele
vinha o Capitão, Carcaça, Aron e bem mais atrás Groud, e no encalço deles

inúmeros homens da Guarda de Coptset.


- Salinsbert, Isenlart, içar velas, estamos partindo!- gritou Orco do convés do navio.

....................................................................................................................

Baradum, Aron e Groud deixavam a taverna Caneca Salgada topando com alguns

guardas que foram chamados para dar conta da confusão que havia se formado na
taverna. No bloco seguinte encontraram com Carcaça e uma bela dama

encapuzada.
-Carcaça, mas que bela dama nos fará companhia esta noite! – disse o Capitão

tentando levantar o véu que cobria o rosto da moça.


-Oh, não faça isto meu bom senhor, acabei de me casar com este cavalheiro,- e

apontou para Carcaça-, e só poderei me entregar a ele.- respondeu a moça,


segurando o véu firmemente sobre o rosto.

Aron estava rindo, mas logo recebeu um cutucão do anão, que achava que aquele
ladrão não estava em condições de esbanjar alegria. Aron calou-se, mas ficou

segurando o riso com a mão.


- Carcaça casado? Moça corajosa... Mas um bom marujo deixará seu fiel Capitão

desfrutar a primeira noite de sua dama, visto que seria uma honra para qualquer
um... Não é mesmo Carcaça?

-Sim, quer dizer, não. - e a dama lhe deu alguns cutucões - Sim. É uma honra,
mas... Senhor Capitão.. Ela...

-Eu fiz um voto de castidade, e me entregarei somente a meu esposo.

239
-Deixe-me ver seu rostinho então bela princesinha - e Baradum foi removendo o véu,

mas a dama insistia em não deixar. - Um beijinho apenas... Hum... – e baradum foi
aproximando-se da moça - Nossa, a senhorita deveria tomar um banho antes das

núpcias! Mas casou-se com Carcaça... Dizem que é pelo cheiro que os animais se
reconhecem, isto deve estar certo. - o Capitão afastou-se, franzindo o cenho, com

nojo.
Baradum não possuía um ângulo de visão privilegiado, mas Groud certamente tinha,

e podia avistar a ponta da barba da dama despontando abaixo do véu.


-Achei que apenas as mulheres anãs tinham barba!- disse o anão desconfiado - Veja

Capitão, ela tem barba.


O Capitão sacou Amonroth e a apontou na direção da dama, arrancando-lhe o véu e

parte da barba:
-Mas veja, é aquele velho ladrão!

Os guardas saíam da taverna juntamente com um cidadão que logo identificou os

desordeiros na rua. Puseram-se a correr na direção deles.


Quem viu os guardas aproximarem-se foi Carniça que logo deu a idéia de correr.

Eles correram o máximo que podiam até o navio. Mas arrastaram pelo caminho mais
guardas e alguns Kolbis que vigiavam o porto.

Cerca de vinte homens e Kolbis os seguiam, mas o velho anão fora deixado para
trás e teria que lutar, Aron parou ao perceber que Groud não estava entre eles e

retornou. Puxou a flauta da cintura e correu ao encontro do anão, mas ele notou que
mais alguém havia voltado: Carniça e pôde ver o velho vestido de mulher

vasculhando sua mochila, o anão corria o mais rápido que suas pernas curtas
podiam agüentar. O velho estava quase sendo apanhado quando retirou da bolsa

uma varinha e erguendo-a ele gritou:


-Sono!

240
Inúmeros guardas caíram em um sono profundo, e Carniça correu revistando os

bolsos, atrapalhado com as vestes femininas, suas pernas enrolavam-se no vestido.


Ele catou um canudo verde e retirou um pergaminho de dentro, e correndo ele o leu:

-Para saltar e nas paredes caminhar


Que saiam de minhas entranhas

Patas de aranhas!
Aron assistiu aterrorizado brotarem debaixo do vestido do velho, no lugar das

pernas, longas patas de aranha de tonalidade marrom acinzentadas, e em pouco


tempo Carniça corria mais que qualquer um deles.

................................................................................................................

O navio afastava-se do porto, alvejado pelas flechas dos guardas e dos kolbis. O
velho estava na proa da embarcação apontando a varinha para os botes que os

seguiam. O mascate dizia “sono” e os condutores das barcas caiam dormindo. Se


não fosse por ele a fuga não teria sido tão fácil. Mas Aron ainda fitava, espantado, as

pernas de aranha do velho.


Quando ganharam o alto do rio descansaram. Baradum caminhou na direção de

Carniça com Amonroth nas mãos:


-Como se chama mesmo, velho?

O velho estava descansando recostado no mastro:


-Filishart, Capitão. Estou cansado, será que pode virar sua espada para o outro lado,

sim?
O rosto do Capitão encheu-se de uma expressão medonha de ódio, achando um

verdadeiro escárnio a observação do velhote. Ele pensou: “afinal sou eu quem


manda no navio!”. Mas deu uma gargalhada gigantesca e retirou a espada do rosto

do mascate, estendeu-lhe a mão, para que pudesse levantar. Carniça a agarrou,


mas caiu sentado segurando a mão de madeira do capitão. Baradum deu-lhe as

costas e ainda rindo lhe disse:

241
-Bem vindo à tripulação de Ulgar, Filishart, o feiticeiro!

-Hei, Capitão, temos um problema à bordo.- disse Orça eriçando as velas.


-Se refere-se ao velhote, fique tranqüilo, ele nos ajudou durante a fuga. Não é um

problema.
-Mas eu não falo dele, Capitão. Meu irmão Irion encontrava-se acidentalmente à

bordo quando tivemos que zarpar. Não sei o que podemos fazer...
-Diga a ele que apenas deixe sua língua feroz bem longe dos ouvidos de minha

tripulação. E diga também para ele carregar alguns sacos de farinha para a cozinha,
já temos um cozinheiro.- e apontou para o velho.

Orco riu com tanta vontade como jamais faria em muito tempo: seu irmão
carregando sacos de farinha seria a coisa mais engraçada que poderia ver na vida:

ele era um alto sacerdote de Coptset, ambicioso e prepotente, não carregava nem a
própria sombra quanto mais fardos.

Um silêncio mortal tomava conta da gabine do mapa, apenas o balanço do navio e

as vozes dos marujos acima podiam ser ouvidas. Verde, Groud olhava para o
suposto ladrão Aron, com o machado nas mãos. Baradum adentrou a gabine:

-Anão, o que há com você? Acho que deve ter comido algo estragado na taverna.
Não estás com uma cor normal...

As viagens no rio Ausar

1. A Quinta Cidade Anciã


2. A Quarta Cidade Anciã

3. A morte de Baradum
4. A foz de Ausar
5.
Capítulo II

O Eremita

242
1. Os fantasmas do Arquipélago de Geb
2. As cavernas de Chamur

3. O despertar do Guerreiro
4. Chegada à Ankset
5.

Livro II

A Rainha Negra

243
Capítulo I
Os Exércitos da Luz

1. O levante das Amazonas

2. O Conselho de Matra
3.

Capítulo II
A Segunda Guerra das Sombras

1. Bet, a profetizada

2. A Sacerdotisa Negra
3.

244
O mal assume uma forma

Do fosso de sacrifícios as sombras correram.

Uma tenebrosidade indizível corria para a borda do fosso, galgando seus espaços,
seus tijolos e pedras, engolindo cada espaço. O fosso e Bet estavam frente a frente.

Ela podia sentir o pavor inominável que habitava a escuridão, o próprio medo se
conjugava impronunciável ali.

Sob os pés da princesa de Harpis o chão se movia; o negrume devorava o som,


pressionando sua mente,tamponando seus ouvidos, ensurdecendo-lhe.

A escuridão movia-se na direção da profetizada, avançando disforme e no entanto

por horas parecia tomar formas, como se dentro dela pessoas estivem aprisionadas,
contorcendo-se, e estendendo suas mãos em busca de socorro. Formas gritavam

em silêncio. Urravam agruras de dor e sofrimento na alavanche de medo.

Aquela lama permanecia à caminho de Tutteb, que a temia cada vez mais. E neste
momento a princiesa se arrependeu de tudo; tentou escapar. Fugir. Sua mente

acelerada estava viva. Seu corpo imóvel, de gelo, de medo e de transe estava
rígido.

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A tenebrosidade tocou-lhe os pés, e foi subindo. Ao devorar-lhe a carne, hirta que

estava pelo horror, sentia os ossos enregelarem, como que cada indivisível parte de
si transformasse-se em mínimos cristais pontiagudos e apinhados. O corpo

congelado expandia, trincando por debaixo da pele e revelando mínimas fissuras,


como finas varizes de cor negra. A agrura combatia seu espírito e o arrependimento

lhe comia o peito. Todas as memórias da princesa foram sentidas novamente, em


fração de segundos, os últimos segundos de Bet.

A escuridão a devorava inteira, arrastando-a para o fosso na forma de centenas de

mãos e garras. Seu corpo estava coberto com uma armadura viva de lama: a
densidade do nada na forma do medo.

A princesa ainda tentou respirar e livrar a boca e o nariz do piche negro sufocante,
enquanto se debatia inútililmente: seu último grito foi abafado pela mão pesada e

gélida do mal. Penetrou pela garganta e desceu horripilante até o peito, em um tirão
explodiu-lhe o coração.

E tudo foi escuridão e dor.

As trevas nasceram novamente no coração morto da princesa de Harpis: a Rainha

Negra fora forjada na mácula da vida.

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1. A batalha de Ankset
2.
O céu era cortado por rajadas de fogo e raios. As nuvens negras, revulsivas,

cruzavam-se, atravessavam-se, um azul enegrecido no firmamento testemunhava a


aura de dor e maldade que pelo qual era encoberto. O campo de batalha estava em

chamas: queimavam corpos, máquinas de guerra, soldados e inimigos. Alguns


guerreiros ainda batalhavam, e do meio das hordas eu vi despontar, montada em um

cavalo negro, protegido com armadura de igual escuridão, a imagem terrível da


Rainha Negra. Nela pressentia-se todo o mal. Não precisava de exércitos, apenas

uma redoma de medo defendia-na. Seu manto tenebroso flamulava ao tocar daquele
vento gélido, e nele retorciam-se faces mortas, aprisionadas, uma couraça de

sofrimento encobria a armadura macabra de ossos negros, que desvelavam-se por


debaixo do capote. Na bainha trazia, Ashtar-Set-Habull, a lâmina maldita forjada filho

do net Set-Habull. Cravejada de Lápis-Lázuli; em seu fio a imagem de antigo Djin,


tomava vida dentro do metal. É NECESSÁRIO CONTAR A HISTÓRIA DA ESPADA-

a lâmina foi forja da pelo filhodo Net Set-Habull, Set-Apher-alguma-coisa, este


presentiou o pai com a espada, porém quando do retorno da filha mais velha, Set

matou toda sua prole para temendo traição. A lâmina construída por Set-Apher-
Alguma-Coisa tornou-se maldita: a obra destrói o criador.-E, no punho, espledorosa

e mais poderosa que nunca, encrustada de magia, estava Água Viva.


Aproximou-se de mim empinando o animal. O capuz resvalou, revelando o elmo:

uma caveira negra reluzia suas pedras mágicas. E, pronunciando o antigo idioma da
primeira cidade anciã, reuniu inúmeras nuvens acima de nós. Minhas mãos tremiam,

e um medo sem forma apoderou-se de mim. A espada caiu, e prostrei-me diante da

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terrível Rainha. Ela desembainhou a espada e desceu do animal, caminhando em

minha direção. E retirando o elmo pediu que a olhasse nos olhos. Era Tutteb. Minha
amada.

1. A libertação
2.

Capítulo III

O Reino dos Homens

1. O primeiro reinado
2. Tua-a-tu
3.

1 Galinhas de cativeiro.
2Conquistador, adaptado do Bo. Chamavam-se a si mesmo de egirões os homens que
subjugavam outros povos.
3 A Lenda de Chésteb conta, que a gema foi gerada do amor entre Nahmail e Amani, e entregue à
Primeira Consciência, que a admirou por longas era, e quando foi habitar em Cromm a tomou como
morada. ( Cromm- A Gênese).
4 Conselho formado pelos Sacerdotes e pelas Sacerdotisas de Harpis e Copset.
5 Aquela que carrega a marca, em Bo.

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