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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
8
Abril/ Junho — 1971
R E V I S T A BRASILEIRA D E C U L T U R A
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO
Octavio de Faria
Manuel Diégues Júnior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Mello Franco
Sumário
ARTES
CIÊNCIAS HUMANAS
LETRAS
HISTÓRIA E LENDA
O PRESTIGIO DA AURA
A CABEÇA DE CRISTO
O ETERNO DOENTE
A HISTÓRIA DA PORTA
BONAPARTE E O MURAL
O BOMBARDEIO DE 1943
COMPARAÇÕES
CLASSICO E BARROCO
O ESPAÇO SOLENE
PODER DE COMUNICAÇÃO
A DOSAGEM FELIZ
CULTURA E INCULTURA
O nosso papa da História da Arte, Arnold Hauser, dogmatizou:
«As camadas incultas do público se manifestam, porém, sob forma
igualmente inequívoca pela arte ruim do que pela boa. O êxito das
obras de arte neste público se rege por pontos de vista extra-artísticos.
O grande público não reage ao valioso ou não valioso artisticamente,
senão por motivo pelos quais se sinta tranquilizado ou intranquilizado
em sua esfera vital. Por isso, aceita também o valioso artisticamente,
quando para êle significa um valor vital, isto é, quando responde a seus
desejos, fantasias e ilusões, quando aplaca sua angùstia vitai e inten-
sifica seu sentimento de segurança».
Vejam como isso parece se aplicar bem à nossa Ceia, que faia
indiferentemente às elites intelectuais e ao «popolo grosso», como diziam
os estetas na Florença leonardesca. Será ela, como quer o inglês, obra
mesmo da natureza, igual à respeitável configuração topográfica das
Ilhas Britânicas?
De minha moradia, em Laranjeiras, vejo do outro lado da rua a
sala de um apartamento centimetrado. um jovem casal ali come, numa
pequena mesa redonda. Na parede, vistosa Ceia de Leonardo, em alto-
relevo colorido. Num encontro casual com o rapaz, aura de bancário
bem sucedido:
— Gosto muito daquela sua Ceia!
um sorriso de satisfação foi a resposta.
— O senhor deve ser muito católico?
— Até que não. Sou agnóstico!
— E por que a Santa Ceia?
— Porque ela é bonita. Faz bem à gente.
FUNCAO INTEGRADORA DA MÚSICA
BRUNO KIEFER
Ainda não apareceu o estudo reclamado por este tipo que, sendo
histórico, é ainda atual, de brasileiro particularmente benéfico ao Brasil,
embora tido às vêzes por menos brasileiro que os demais: o que tendo
feito estudos no estrangeiro, reintegrou-se, assim enriquecido, no Brasil
para melhor servi-lo, muitas vêzes, que os apenas castiços. Pois acres-
centando a constantes inovações, enfrentando arcaísmos com renova-
ções, desviando-se aventurosamente de rotinas, sem desobedecerem a
essenciais de tradição nacional ou regional, antes, em alguns casos, va-
lorizando-os ao extremo, anglicizados, afrancesados, germanizados,
ianquizados, vêm se constituindo, em nosso país em inovadores, reno-
vadores, revolucionários mais exigidos que apenas reclamados por su-
cessivas situações brasileiras de inércia ou de rotina. Francisco do Rego
Barros foi um afrancesado desse tipo como, antes dele, desse tipo fora,
com maior amplitude e até maior grandeza — como um norte-europei-
sado — o mais lúcido, mais harmonioso ao mesmo tempo que mais con-
traditório dos estadistas brasileiros, o mais conservador ao mesmo tempo
que o mais revolucionário dos nossos homens públicos, José Bonifácio
de Andrada e Silva, ao trazer para o serviço do Brasil sua vivência,
sua experiência e não apenas sua ciência de pan-europeu, tanto aportu-
guesado ao modo coimbrão como norte-europeizado germanizado e afran-
cesado naquilo que num homem pode enriquecer sua personalidade sem
separá-la das duas raises nacionais ou pré-nacionais.
A esse tipo de brasileiro enriquecido por estudos no estrangeiro
que, no jovem de personalidade forte, parece, sempre, antes aumentar
que diminuir o vigor de consciência nacional e o senso de responsa-
bilidade de dever para com a terra natal, pertencem os dois Rego
Barros de Pernambuco, um, Francisco, afrancesado, outro, Sebastião,
germanizado, por estudos superiores na Europa. Os dois voltaram a
Pernambuco cheios de ânimo brasileiro. Decididos, por isto mesmo, a
romperem com inercias, com arcaímos, com rotinas; e a acrescentarem
à pura lusitanidade que, no Brasil de então, constituía quase inteira-
mente, a parte européia da sua cultura, outros estímulos, valores e
motivos de vida e de desenvolvimento nacionais: os norte-europeus.
Na realização de tais objetivos, Francisco do Rego Barros foi
magnífico. Revolucionou sem deixar de ser à sua maneira, conservador.
Explica-se que pelos conservadores do tipo convencional fosse acusado
de estrangeirice que fosse caricaturado como excessivo nas suas fran-
cesices; que se duvidasse do seu bom senso de homem de governo tal o
arrojo como que quixotesco, de algumas de suas inovações: suas ou
do Vauthier que foi por vêzes uma projeção do seu ser político. uma
projeção do seu ser em termos de ciência aplicada à administração
pública.
Foram reações, essas, ao que nele havia de exótico, de diferente,
de esquisito, aos olhos de conservadores de um feitio diferente do seu
— o de conservador renovador — que enfrentou com uma tranqüila
firmeza de aristocrata de casa-grande dos nascidos — o caso de alguns
e não de todos — sob o signo de ser uma nobreza, a sua, que obrigava.
Que obrigava o fidalgo a comandar, servindo.
Foi o que fêz durante tôda uma vida de exemplar homem público:
comandou, servindo. Inovou, conservando. Afrancesou o Recife sem
que, sob seu governo, o Recife deixasse, no essencial, de ser recifense,
pernambucano, brasileiro. Tanto que do mais ilustre dos franceses —
Louis Léger Vauthier — que, a seu convite, veio ser um dos assesso-
res técnicos — como hoje se diria — do seu governo, é um dos mais
lúcidos elogios que já foram feitos à arquitetura já brasileira, daqueles
dias, de casas de residência: a de casas-grandes de engenhos e a de
residências senhoris de cidades. Arquitetura desenvolvida, em grande
parte, em Pernambuco, à base de combinações, desde o século X V I ,
realizadas pelo bom senso do colonizador português entre seus próprios
tipos de habitação rural e formas orientais de telhado, varandas in-
dianas (que aqui se alargariam em alpendres ou copiares), janelas
de feitio sabiamente árabe, evitando-se excessos de luz ou de sol dentro
das casas.
De que foi encarregado Vauthier pelo Presidente Francisco do
Rego Barros desejoso de modernizar o Recife? De várias obras para
o Brasil e para a época revolucionárias. De levantar — um exemplo
— edifício de teatro num estilo de que não havia modelos portugueses
ou tradições brasileiras de arquitetura idônea — a arquitetura de teatro
diferente da de casa-grande, da de convento, da de igreja, da de forte,
Arquiteturas, essas outras, de que o luso se revelou mestre no setor
lusotropical — enquanto os franceses eram mestres dessa arte especia-
líssíma: o edifício para teatro. Levantou-se no Recife, com Rego Barros,
o mais belo edifício de teatro, de que até hoje, pode orgulhar-se ó
Brasil: o Teatro Santa Isabel. Mais: quis êle que se modernizasse no
Recife o sistema de ruas e de calçadas, o de suprimento dágua, o de
defesa contra enchentes. Quis e todos esses serviços urbanos foram
senão realizados, iniciados no seu governo, de modo admirável: sob
a direção de Vauthier e da sua equipe de técnicos franceses. Iniciados
com Rego Barros prestigiando-os contra a gritaria demagógica e a
histeria nativista que se levantaram contra os inovadores e as inovações.
Outro acomodaticio, ou mais politicóide do que político — teria re-
cuado: os franceses que voltassem à França. O Recife que continuas-
se arcaico. A rotina que retomasse seu domínio sobre a cidade e sobre
a província.
Francisco do Rego Barros, com aquela sua tranqüila firmeza de
bom homem público que lhe valeria expressiva consagração popular ou
folclórica — a de «Chico Macho» — não fraquejou: a modernização do
Recife se fêz dentro do plano para ela traçado por técnicos de um
saber, de uma visão, de uma perspectiva do futuro, como na época
não havia no Brasil nem em Portugal. Buscou-os o futuro Conde da
Boa Vista na Paris onde estudara; que conhecia de perto; que lhe
abrira os olhos a valores de que dificilmente teria se apercebido se
seus estudos superiores tivessem sido em Olinda ou em Coimbra. A
Paris da Escola Politécnica.
Quem diz a Escola Politécnica de Paris na primeira metade do
século XIX diz o maior centro, em tôda a Europa, de ciência aplicada
ao que hoje chamaríamos desenvolvimento. Foi desse centro de estudos
mais que superiores que Francisco do Rego Barros trouxe para Per-
nambuco não um aluno qualquer, mas um laureado: Louis Léger Vau-
thier. Foi com esse centro de estudos mais que superiores que o então
Presidente da Província de Pernambuco pôs em contato sua terra
numa como repetição dos métodos de governo do Conde Maurício de
Nassau no século XVII, isto é, dando excepcional relevo à cooperação
com os responsáveis políticos pela administração pública, de homens
de ciência, de intelectuais, de sábios.
O resultado foi a extraordinária época, na história da administra-
ção pública no Brasil já nacional, que pode ser designada como a época
Rego Barros — Vauthier. Época de modernização não só do Recife
como de Pernambuco, em geral, cujo sistema de comunicações Vauthier
e os seus técnicos, prestigiados sempre por Francisco do Rego Barros,
revolucionaram. Pois o sistema de estradas que desde então alterou as
relações entre o interior da Província e a sua capital importou em ver-
dadeira revolução que de tecnológica passou a econômica, em particular,
e, de modo lato, a social. A social e a cultural.
Realização, de quem? De um homem de radical vocação e do feitio
demagógico de um Borges da Fonseca? De um político de tendências
bolivarianas como Abreu e Lima? De algum discípulo ardorosamente
republicano de Frei Caneca? De modo algum: realização de um per-
nambucano de casa-grande de engenho do Sul de Pernambuco. De
um antes conservador que revolucionário nos seus modos. De um fris-
tocrata pela família, pela origem, pela situação social. De um político
acusado pelo seu mais terrível adversário na imprensa livre e até des-
mandada daqueles dias, o Padre Lopes Gama, de, como membro da
chamada oligarquia, então dominante, proteger ladrões, assassinos, con-
trabandistas, alguns dos quais, segundo o panfletário, seus parentes.
O paradoxo vai além: esse suposto conservador inveterado trouxe,
para Pernambuco, Vauthier, sabendo-o não só adiantadíssimo na sua
ciência e arrojado na sua técnica de laureado pela Escola de Paris como
socialista. Socialista pré-marxista. Socialista já com alguma coisa de
cientifico mas de orientação diferente da que seria seguida judaico-ger-
mânicamente por Marx. Socialista discípulo de Fourier. Socialista de
uma tendência que os mais modernos desenvolvimentos da filosofia de
organização social estão antes reabilitando que desprestigiando, em face
dos fracassos de um marxismo, senão mal desenvolvido, mal aplicado
que, com tôdas as suas pretensões científicas, várias delas contrárias às
próprias idéias do grande humanista e até poeta que foi Marx, vem se
revelando, além de inumano, anti-científico, anti-sociológico e mesmo
antieconômico. O socialismo que Vauthier trouxe para o Brasil, nos
dias de Francisco do Rego Barros presidente da Província de Pernam-
buco, era do tipo humanista, socialmente democrático, adaptável a si-
tuações diversas e não uniforme. Socialismo que permitiu a um
pernambucano de notável inteligência, A. P. de Figueiredo — discí-
pulo, como Vauthier, de Fourier — traçar uma das críticas mais pro-
fundas do sistema de monocultura latifundiária então, e um pouco até
nos nossos dias, em vigor em Pernambuco.
— I —
HISTÓRIA E CRÔNICA
— II —
— III —
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO JARDIM BOTÂNICO,
QUE SE CHAMOU JARDIM DA LAGOA
11) Detalhe do pórtico da Academia Imperial de Belas Artes. Relevo em terracota do escultor Zeferino Ferrez.
Foto: C.P. Valladares (dezembro, 1970)
12) Detalhe do pórtico da Academia Impeciai de Arte — Relevo em terracota do escultor Zeferino Ferrez.
escultura desta portada monumental é em cantaria de granito fluminense.
Foto: C. P. Valladares (dezembro, 1790)
Lagoa Rodrigo de Freitas, vista do Caminho do Corcovado
Foto: CP. Valladares — 1971
Vista da Lagoa Rodrigo de Freitas do Alto do Sumaré.
Foto: C.P. Valladares — 1971
dos mais ricos e belos jardins botânicos do mundo, legado por Barbosa
Rodrigues, estivesse à frente, precisamente, um sanitarista da escola
de Osvaldo Cruz, professor de parasitología.
Naquela luta desigual haveria de vencer o prestígio do turfe que
concluiu em 1926 suas elegantes construções sobre os aterros na área
subtraída do Jardim. O govèrno e o meio social aprovaram com
entusiasmo aquelas arquibancadas e instalações, de fato um dos exem-
plos pioneiros como estrutura livre de concreto e ricamente decoradas
com ornatos e estudo do arr noveau. Analisado sob critério de con-
sideração estilística, isto é, de estilo da época, as construções do
Jockey Club se integram ao mesmo capítulo da Confeitaria Colombo,
da Rua Gonçalves Dias (1912), do Magazin Tórre Eiffel (demolido),
da Rua do Ouvidor, da sede do Jockey Club, na Avenida Central, do
Edifício do Elixir de Nogueira, da Praia do Russell (demolido), e
do notável mausoléu (ossuàrio coletivo) do Cemitério da V. O. Ill
de São Francisco da Penitência, no Caju, datado de 1907. ( 29 )
As pretensões do Prof. Antônio Pacheco Leão, fundador dos
«Arquivos do Jardim Botànico», careciam de consistência para merecer
apoio daquela sociedade festiva de 1922, o ano do ' centenário da
Independência, radioso de edificações fantasiadas.
Pacheco Leão lutou pela integridade do patrimônio de características
mesológicas particulares a um cultivo experimental e científico. Era seu
propósito fazer do Jardim Botânico não só um belíssimo parque mas no-
vamente um centro de pesquisas científicas, um centro educacional, um
mostruário de plantas nativas e exóticas, devidamente estudadas e cata-
logadas.
«Em 1945 a área do parque compreendia mais de 54 hectares, ou
sejam 546.343m 2 , sendo 135.182m 2 de matas naturais e o restante cul-
tivado.» Nesses últimos anos o paisagista Roberto Burle Marx tem se
dedicado à defesa do que resta do Jardim Botânico, delimitado em 1945.
Visivelmente inspirado nos anseios de Pacheco Leão e, doutro modo,
impossibilitado de corrigir as amputações praticadas de 1922 em diante,
Roberto Burle Marx projetou em 1963 uma ilha a ser construída no
centro da Lagoa, constituída de ripado e cultivo para as espécies de
plantas marginais lacustres e aquáticas da flora brasileira, juntamente
com instalações laboratoriais para estudo e controle da ictiología. ( 80 )
Do mesmo modo que como ocorreu a Pacheco Leão, todo e qualquer
idealista da preservação da natureza e de seu tratamento lógico e cientí-
fico assumirá idêntico risco.
A destruição da paisagem nativa, a diminuição da amplitude original,
a mutilação, as deformidades ancilares, o vandalismo estatal contra o seu
próprio patrimônio genuíno são contingências e características da pato-
logia social, mais exacerbadas nas cidades de maior densidade demográ-
fica e de escassa rentabilidade industrial e agrícola. O Estado da Gua-
nabara enquanto permanecer como remanescência topográfica de um ex-
tinto Distrito Federal, agora entregue à pròpria sorte e sob risco de
resvalar para autofagia, não terá opção de tratamento de sua natureza
fisica primitiva senão a de saturá-la de construções.
Onde não se semeia milho ou trigo, cana ou café, onde não se
pastoreia e quando não se tem os ponteiros da civilização bem ajustados
com a seiva da cultura humanística e o pulso da tecnologia, então tem
que se plantar mesmo edifícios de apartamentos. (31, 32, 33, 34 )
* * * *
Nunca faltarão as justificações melifluas para os aterros, mutilações.
uso impróprio e sobretudo para o sacrifício dos atributos culturais em
favor de um progresso mal digerido.
Em todo o mundo ocorre a mesma coisa. Poucos percebem que a
civilização industrial agoniza e, em seu lugar, vem vindo a civilização
tecnológica capaz de salvar o homem, ou de simplesmente exterminá-lo.
Chega de embolias, de esclerose, de congestão, de oclusões, de ne-
crose e de amputações, que se sucedem e se admitem, em face da lògica
do absurdo de que uma desgraça traz outra.
Progresso mal digerido e cultura mal assimilada têm trazido para a
Lagoa exemplos de edificações que são mais «modernosas» que moder-
nas, ou mais «caluniais» que coloniais.
A mortandade periódica de peixes e, correlatamente, a destruição do
equilíbrio ecológico, não deve ser equacionado como um mistério da na-
tureza, mas simplesmente como um desproduto da civilização urbana cujo
nome é poluição. (3S)
Para tal ocorrência, não se requer fábricas de tóxicos, indústrias
químicas nos arredores. Basta que a cirvunvizinhança seja área consu-
midora de tôda a prodigiosa escala dos produtos químicos propostos para
o bem-estar cotidiano da vida doméstica: detergentes, removedores, aro-
matizantes, inseticidas, lubrificantes, desinfetantes, resíduos de combus-
tíveis, enfim, a quase infinita lista dos «sprays», plásticos e enlatados.
Quem dá atenção para este terrível e hodierno capítulo da ecologia
há-de perceber que a poluição se processa com mais franquia nas áreas
consumidoras que nas de fabrico.
Isto é fácil de se compreender, pois nas últimas as medidas de pre-
caução e contenção são mais conscientizadas.
Por este motivo, de veracidade científica, tornam-se suspeitas e te-
merárias as propostas de se instalar em novas subtrações da área original,
isto é, nos aterros em prosseguimento, unidades de grande consumo dos
produtos industriais propostos para o bem-estar de todos e felicidade geral
da nação, entretanto identificados à linha dos desprodutos.
Supermercados, centros comerciais, áreas de parqueamento e abas-
tecimento, postos de lubrificação, mafuás modernizados com maquinaria
de «Coney Island», «drive-in», saturação de arranha-céus onde se erra-
dicou a favela e até a ameaça de um heli-pôrto — (helipôrto quer dizer
estação para pouso e decolagem de helicópteros provida de meios de
abastecimento, lubrificação, reparos e mais algumas outras implicações
da poluição) — são tôdas ameaças e propostas de risco para a nossa
desavisada e inocente Lagoa.
Em trabalho anterior, ao qual intitulei «Preservação da Natureza e
Integração Social», criticamos a escolha das margens da Lagoa Rodrigo
de Freitas para implanto desse poderoso equipamento da nova sociedade
de consumo. Indicamos as extensas margens das novas e belas estradas
que saem do Rio como áreas mais compatíveis aos empreendimentos gi-
qantescos do complexo industrial-comercial. (3Ú)
A sociedade de consumo se caracteriza pela particularidade de em-
pregar o tempo do lazer, condição do homo ludus, — que antes era de-
dicado à reza, à leitura, às prendas, aos jogos e ao devaneio — nas idas
aos mostruários (vitrines, mercados, magazines, etc.) para exercicio de
sua capacidade aquisitiva, ou na atitude passiva, sedentária de submissão
à televisão que é o instrumento motivador do interesse de consumo.
Recuso-me a tratar desses assuntos em termos de protesto romântico,
de apelo lírico para preservação do que é belo, certo e puro porque foi
feito pela mão do Criador e em tempos idos foi usado com respeito pela
mão do homem.
Continuo sendo o patologista que fui em minha carreira médica, agora
capaz de entender a erradicação de uma favela como meio de se curar
uma úlcera, mas também habilitado a reconhecer nas propostas de cons-
truções saturadas e fontes de desprodutos, não uma cura, e sim o desen-
volvimento de uma neoplasia.
O desenvolvimento histórico do progresso urbano atinente à Lagoa
e sua adjacência, considerado na faixa de um século evidencia que a carga
de erros se condensa mais nos nossos dias que no passado.
Tentarei agora um resumo cronológico e sinóptico dos eventos mar-
cantes:
1868 — ¡Inauguração da linha de bonde de tração animal entre a
Rua do Ouvidor e o Jardim Botânico da Lagoa.
1884 — Inauguração da linha férrea para o Corcovado, deslum-
brando a vista aérea da Lagoa.
1892 — (regime republicano) — eletrificação da linha de bondes
do Largo do Machado ao Jardim Botânico, de investimento
inglês, denominada originalmente — «Botanical Garden».
1903 — Presidência de Rodrigues Alves de grande caráter progres-
sista. Prefeito Pereira Passos, sanitarismo de Osvaldo
Cruz e direção de obras do Engenheiro Paulo Frontín.
1906 — Instalação dos carris urbanos da Light and Power e che-
gada dos primeiros automóveis.
1909 — 1910 •— Serzedelo Correia — Saneamento de Copaca-
bana.
1910 — Conde Paulo Frontín — Alargamento da Avenida Atlân-
tica e prosseguimento da Avenida Meridional (Ipanema-
Leblon) .
1922 — Prefeito Carlos Sampaio — Conclusão da Avenida Nie-
meyer. Remodelação da Lagoa Rodrigo de Freitas. Início
do desmonte do Morro do Castelo.
1922 — 1926 — Prefeito Alaor Prata. Construção do canal de
drenagem e contrôle do nível da Lagoa Rodrigo de Freitas.
Idem, do canal Leblon-Gávea.
1926 — 1930 — Plano Agache — Capítulo Elementos funcionais
do Plano Diretor — Fig. 29, texto p. 199.
1926 — 1930 — Obras do Engenheiro Francisco Saturnino Rodri-
gues de Brito na Lagoa. Correção das margens. Injeção
de água do mar, por comportas, e exclusão das águas
doces.
Desvio do esgoto de águas pluviais na direção N - O , aber-
tura do canal da Avenida Visconde de Albuquerque entre
os rochedos da Ponta do Vidigal e da Avenida Nie-
meyer. ( 37 )
Propostas do Plano Agache:
a) conclusão do sistema viário do contorno da Lagoa.
b) sistema de esgoto Ipanema-Leblon.
c) desobstrução e limpeza final do fundo da Lagoa.
d) aterro da parte denominada Praia Funda mediante desmonte,
em trincheira, (fenda) entre o morro Canta Galo e dos Cabritos.
e) saneamento, maior profundidade, eliminação dos bancos de
areia, retificação das margens, maior circulação de água salgada, e vias
de abertura a outros bairros.
f) construção de Centro Comercial, Cidade Jardim, parque e pòrto
para esportes náuticos. (38)
Ainda não tive tempo suficiente de meditar sobre a história da Lagoa,
de 1930 aos dias atuais.
Tenho em preparo um pequeno estudo sobre a Favela da Catacumba
visando o aspecto de exemplo de comunidade consistente com profunda
diversificação religiosa e, mais destacadamente, com uma das construções
mais curiosas do que considero, na temática de meus estudos, o compor-
tamento arcaico brasileiro.
Refiro-me àquela já demolida Assembléia de Deus, de caracteres
estilísticos ausentes dos figurinos estrangeiros e por isso dificil de se
diagnosticar. Talvez menos difícil para os que dela se lembrem, agora
quando não mais existe, como se fora uma pintura de Alfredo Volpi.
Surpreendo-me no risco de parecer romântico. Receio o exem-
plo de Monsenhor Pizarro, cronista amoroso da Lagoa, assim como se
vê em sua descrição, de 1815: «Farta de belíssimas e puras águas, de
que se formam o grande rio da Cabeça e outros menores, cujos despejos
recolhe a notável e piscosa lagoa, é seu território repartido em chácaras,
sítios e fazendas cultivadas de café, ananazes, diferentes árvores de es-
pinho e produtivas de outras frutas, tôdas saborosíssimas, além de legumes
vários. Junto à Casa, ou Fábrica de Pólvora, se fundou um jardim, onde
felizmente nutrem as árvores e sementes exóticas». ( 39 )
Mas aquele cronista lírico da Lagoa, fluminense nascido em 1753,
conselheiro de Dom João VI, arcipreste da Real Capela, deputado da
mesa de consciência e ordens, procurador geral de três ordens militares,
de tanto amar as belezas de sua terra, teve um merecido fim. «Em 14
de maio de 1830, quando dava um passeio no jardim da Lagoa Rodrigo
de Freitas, faleceu de apoplexia, com 77 anos de idade».
Esta é a informação de Rubens Borba de Moraes, prefaciador e
anotador de suas Memórias Históricas do Rio de Janeiro.
Dr. José Vieira Fazenda, outro cronista apaixonado desta cidade,
e que também era médico, completa a informação: «Monsenhor Pizarro
tendo ido passear no Jardim Botânico, depois de ter jantado, comeu a
fruta carambola; isso perturbou-lhe a digestão. Morreu fulminado por
um ataque de apoplexia cerebral, em uma das ruas do Jardim da Lagoa».
N O T A S E R E F E R Ê N C I A S BIBLIOGRÁFICAS
Sob critério geológico não se pode incluir a Lagoa de Rodrigo de Freitas entre
as do primeiro grupo de dentro da barra da Guanabara. Ela faz parte do conjunto
de lagoas do litoral oceânico Sul, da formação das restingas entre os maciços da Tijuca,
Gávea e Guaratiba.
No capítulo Copacabana (p. 432) o citado autor comenta:
«Nos primórdios da cidade, a designação Sacopenapã, depois mais restrita
à atual Lagoa Rodrigo de Freitas e arredores, abrangia a Praia de Fora, hoje
Ipanema, com que se comunicava a mesma lagoa».
11) José Vieira Fazenda — op. cit., p. 344.
12) Moreira Azevedo — op. cit, p. 566, nota X X I .
13) Hélio Viana — «Manuscritos da Biblioteca do Imperador», Folhetim do
Jornal do Comércio, Rio, 12-12-1969:
Nº 16 — Carta, em italiano, datada de Turim, 9 de setembro de 1792, de Serra-
valle, dirigida ao Cavaleiro Napione, remetendo-lhe, conforme lista anexa, em pacote
ã parte, seis amostras de diversos minerais.
O destinatário, Carlos Antônio Napion, em 1807 era Brigadeiro do Exército por-
tuguês, vindo para o Brasil com o Principe-Regente D, João. Aqui chegou a Ma-
rechal-de-Campo e Tenente-General, tendo sido Inspetor-Geral de Artilharia, membro
do Conselho Supremo Militar, Conselheiro de Guerra. Foi incumbido da criação e
inspeção da Fábrica Real de Pólvora, no Rio de Janeiro instalado próximo à Lagoa
Rodrigo de Freitas. Aqui faleceu em 1814. (Cf. Laurênio Lago — Brigadeiros e
Generais de D. João VI e D. Pedro I no Brasil — Dados Biográficos — 1808-1831,
Rio, 1938, pag. 2 1 ) .
14) General Francisco de Paula e Azevedo Ponde — «Tenente-General Carlos
Antonio Napkm — Patrono do Quadro de Material Bélico», Rev. Militar Brasileira —
A n o L1V — nº> 1 — 1968.
Monografia dedicada ao estudo da personalidade e dos feitos militares do fundador
e primeiro diretor da Fábrica de Pólvora do Engenho de Nossa Senhora da Conceição
da Lagoa de Rodrigo de Freitas. Deste estudo ressaltam-se as informações do nome
original, procedência, formação, atividades pregressas e realizações no Brasil. Cario
Antonio Gerolano Maria GaVcanni Napione Di Coconato (Turim, Itália, 1957 Rio
de Janeiro, 1814), irmão de Giovanni Francesco Napione, conde e ministro de finanças
de Turim. Serviu no Exército Sardo especializando-se em- mineralogia e química,
professor e autor de compêndio dessas matérias para o curso dos Oficiais do Labora-
tório Metalúrgico do Arsenal de Turim (1786). Foi diretor do Laboratório Químico
Metalúrgico e do Museu Mineralògico e membro do Real Conselho de Minas. Con-
tratado pelo Ministro Plenipotenciario em Turim, Dom Rodrigo de Souza Coutinho,
«para reorganizar o Exército e os Arsenais do Reino de Portugal», no posto de T e -
nente-Coronel em 1800; nomeado em 1802 para a direção das Fábricas de Refino do
Salitre e da Pólvora e no ano seguinte Vogai na Inspetoria de Artilharia. Integrou
a comitiva de 10.000 pessoas da transladação da Córte de D. João para o Rio de
Janeiro onde foi logo promovido ão pósto de Marechal de Campo, galgando em 1810
o mais elevado pósto no Brasil, de Tenente-General. Fundador e diretor da «Real
Fábrica de Pólvora da Lagoa de Rodrigo de Freitas», em 13 de maio de 1808. Presi-
dente da Junta Militar encarregada de dirigir o ensino da recém-criada Academia Real
Militar, em 1811. Por sua excepcional capacidade administrativa, como engenheiro,
químico, professor e militar, e ainda considerando-se sua numerosa obra escrita de
mineralogista desde 1784, Napion pode ser reconhecido um dos mais ilustres fatores
de civilização trazidos por D. João ao Brasil. Faleceu em 27-VI-1814 e foi sepultado
no Convento de Santo Antônio do Rio de J a n e i r o . O Decreto n° 59.363, de
12-8-1966 o instituiu como Patrono do Quadro de Material Bélico, em decorrência
do estudo biográfico que lhe dedicou Francisco de Paula e Azevedo Ponde.
15) José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — op. cit, vol. VII, p. 108.
16) id. ib., vol. VII, p. 9 2 .
17) Balthazar da Silva Lisboa — o p . cit., vol., I, p. 166.
18) id. ib., vol. I, p. 197.
19) José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — op. cit, cap. VIII, vol. VII,
pp. 101-102.
20) id. ib., vol. VII, p. 267.
21) José Vieira Fazenda — op. cit, vol. I, pp. 42-43.
22) v. Gastão Cruls — o p . cit., p. 606: «Por esse tempo (1809-1821), no Horto
Real, além da cultura do chá se fazia bons chapéus do Chile, com as folhas da bom-
bonaça, Cadudovica palmata, também aclimada entre nós e reproduzida abundante-
mente.»
23) Balthazar da Silva Lisboa — op. cit., Tomo VII, p. 189.
24) Sacramento B!a|ke — «Dicionário Bibliográfico Brasileiro», 5' vol., ed. Cons.
Fed. Cultura, 1970, p. 203.
25) id. ib., 2 ' vol., p. 143.
26) id. ib., 3 ' vol., p. 359.
27) Antonio Pacheco Leão — nasceu no Rio de Janeiro em 11 de abril de 1872.
Formou-se em Medicina em 1896. Em 1900 foi nomeado Delegado de Saúde e
depois foi designado pelo Dr. Oswaldo Cruz diretor da Policia Sanitària para fazer
parte do Serviço dos focos de febre amarela, como Inspetor do Serviço de Profilaxia
da Febre Amarela. Em 1911 foi nomeado pelo Presidente Hermes da Fonseca para
exercer, em comissão, o lugar de Diretor Geral da Saúde Pública. Em 1922 foi
feito Membro do Conselho Superior da Sociedade Nacional de Agricultura. (Nessa
ocasião esteve no Amazonas com Carlos Chagas e lá se interessou muito pela
flora brasileira) . Em 1914 o Presidente da República nomeia Pacheco Leão para
exercer o cargo de Diretor e Chefe da Seção Botânica do Jardim Botânico. Em 1916
êle foi feito sócio efetivo da Sociedade Brasileira de Ciências. Em 1925 o então
Presidente, Afonso Pena, nomeou-o Catedrático de Biologia Geral e Parasitologia da
Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro (cargo que êle exercia há
muitos anos como professor substituto) — e também nomeou-o Vice-Diretor da referida
Faculdade (14-4-1925). Em 1930 (25-10), Pacheco Leão pede exoneração do cargo
de vice-diretor, Pacheco Leão foi diretor do Jardim Botânico desde 12 de novembro
de 1914 até a sua morte em 21 de julho de 1931.
1. O DESENVOLVIMENTO
2. A TECNOLOGIA
4. A GUISA DE CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
3 — O MAMELUCO E O MULATO
O PROCESSO TRANSCULTURATIVO
F O N T E S UTILIZADAS
HISTÓRIA DE PORTUGAL
LITERATURA PORTUGUESA
LITERATURA BRASILEIRA
(23) Esta, Laura, casou-se depois com João Antônio de Oliveira. Filha de Joa-
quim Caetano e da francesa Susana Clotilde de Moinac, que êle conhecera quando
estudante em Montpellier.
Em bela caligrafia, não traz data, mas alguém assinalou, a lápis:
«1851»; 26 9 aniversário do Imperador. (24) Não se incluiu nas Obras
de Magalhães.
Mais importante é a cópia integral de seu poema A Confederação
dos Tamoios ( n º 57). Pelo próprio autor enviada ao monarca, con-
forme carta de Paris, 12 de julho de 1855, no mesmo Arquivo. (25)
São 306 páginas, em papel de Breton Frères & Cie. com «Argumento»
e texto, «Notas», estas às págs. 307-326.
Obras anônimas, versando temas brasileiros .permitem a suposição
de ter sido nosso patrício, ou estrangeiro aqui radicado, seu autor. Será
o caso dos versos de trinta Noites Brasileiras, em 1813 oferecidas ao
então Príncipe da Beira, nosso futuro D. Pedro I (Nº 3 5 - C ) .
Clemente Ferreira França, no Primeiro Reinado Visconde e Mar-
quês de Nazaré, era poeta, em 1815, conforme versos desse ano. na
Biblioteca Imperial. Datado às «margens de Aguiar e Margura» (Nú-
mero 34-P). Não mencionou versos seus o bibliògrafo Sacramento
Blake.
Do também baiano Paulo José de Melo de Azevedo e Brito (1779-
1848), é um Elogio em aniversário de D. João VI (Nº 1 ) .
Igualmente d» Bahia, Frei Francisco de Paula de Santa Gertrudes
Magna, >eneditino nascido em 1770 ou 1780, autor de Canto Poético
ao então Príncipe Real D. Pedro ( n º 4 ) .
Do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816/1878),
Barão e Visconde de Porto Seguro, já registramos, na parte de / 7 Í S -
tória do Brasil, várias cópias de documentos da especialidade, que enviou
ao Imperador e ficaram em sua Biblioteca Particular.
Vinte e duas cartas suas, de 1852 a 1871, inclusive duas sem data,
dirigidas a D. Pedro II, publicaram-se no Anuário do Museu Imperial,
vol. IX. de 1948, págs. 157/236. Guardadas no Arquivo da Família
Imperial, com vários Anexos. Outras, aí omitidas, embora em grande
número existentes na mesma fonte, incluiu Ciado Ribeiro de Lessa, na
Correspondência Ativa, de Varnhagen, em 1961 publicada pelo Instituto
Nacional do Livro, do Ministério da Educação. A tôdas acrescentamos
mais duas dezenas, pelo diplomata e escritor dirigidas aos Mordomos
da Casa Imperial. Conselheiro Paulo Barbosa da Silva e Barão (depois
Visconde) de Nogueira da Gama, à nossa disposição colocadas pelo
Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança. Procedentes do Ar-
quivo da Mordomia, publicaram-se na Revista de História, de São
Paulo, em 1970.
(24) Maço 23, documento n° 849, dos Manuscritos sem Data, no "Inventário" de
Alberto Rangel.
(25) Maço 115, documento nº 5.738 do "Inventário" de Rangel. Transcrita em
nosso artigo "D. Pedro II, a distribuição e a revisão da Confederação dos Tamoios",
publicado na Revista do Livro, do Instituto Nacional do Livro.
De Varnhagen também é o drama histórico americano, em quatro
atos e três mutações. Amador Bueno, de manuscrito com introdução em
letra diferente do texto. Fundamentado na História de São Paulo (aliás
Memórias para a História da Capitania de São Vicente ), de Frei Gaspar
da Madre de Deus. N ã o teve numeração no Catálogo «C», de Alberto
Rangel, situando-se entre os de números 3 5 ' E e 3 5 - F . Publicou-se em
Lisboa. ]#47: com segunda edição em Madrid, 1858.
De Antônio Gonçalves Dias (1823/1864), possuía o Imperador
preciosos autógrafos. com o respectivo carimbo, numerado «2», datado
do Porto, 1844. um «Prólogo», os poemas «1 — O Satélite», «II —
Passamento». E fragmento de Meditação. (Conjunto nº 112). O
último, datado de 8 de maio de 1846. Dessa Meditação, em estilo bíblico,
escrita quando Gonçalves Dias voltou de Coimbra para o Maranhão,
publicaram-se os três únicos capítulos existentes, com exceção das últimas
partes, de VII a XIII, do Capítulo III, na revista Guanabara, do Rio de
Janeiro, de págs. 102, 125 e 171. Segundo o bibliógrafo Nogueira da
Silva, «é esta uma das produções mais originais que em prosa deixou
Gonçalves Dias. Filha de dupla inspiração, reflete superiormente o seu
acendrado amor pátrio e patenteia finalmente os altos e raros recursos
de sua potente e fecunda imaginação» ( 2 6 ) . Seria útil que se fizesse
o confronto entre os originais dos «Fragmentos» da Biblioteca Imperial
e o texto publicado.
«O Satélite», poesia datada de Pitões, 1844. faz parte do conjunto
de «Visões» dos Primeiros e dos Segundos Cantos. O autor, julgando-a,
talvez, inferior àquelas, deixou-a inédita, só se publicando nas Obras
Póstumas, organizadas por Antônio Henriques Leal, no Maranhão,
1868 ( 2 ? ) . «Passamento» é a terceira parte das citadas «Visões».
Maior conjunto de manuscritos gonçalvinos é o de nº 273 da Bi-
blioteca do Imperador. Contém cartas e poesias, com uma nota final:
«5 9 volume de Dias».
Sua peça mais antiga é o drama Beatriz Cenci, de 1845. Outro, o
Boabdil, em 5 atos, traz a declaração de autoria substituída por estre-
linhas .
uma das missivas, dirigida a um «mano», que realmente o não
era, seu amigo de Coimbra, o também maranhense Alexandre Teófilo
de Carvalho Leal, de 10 de abril de 1848, contém notas à margem, do
punho do próprio Imperador, nela mencionado. Opiniões políticas e o
nacionalismo do poeta, aí aparecem. Comentou a pouco anterior inau-
guração, no Instituto Histórico, dos bustos de dois de seus fundadores,
o Cónego Januário da Cunha Barbosa e o Brigadeiro Raimundo José
LETRAS ESTRANGEIRAS
«Desventra a rua-universo».
«Enfanterrible totalizador».
«Debruça-se à janela da pintura».
«Poesia e coração, áreas opostas».
«Heautontimoroumenos».
«Inventa a simetria dissonante».
«Negro luminoso: a côr do seu estema».
«Telefona = lhe a Medusa».
«Sofre de modernidade ou de ser B?».
«Fundo um reinoilhasalão».
«Assume o espaço da música».
III
Em «Poetry and Mathematics» Scott Buchanan aponta o paren-
tesco da composição técnica com a poética. Acentua mesmo que uma
figura em geometria projetiva, interessada na transformação do objeto,
é algo que retém um caráter de poema, que é também uma figura em
ação, transformando-se; um campo de projeções, apesar da estrutura
que condiciona o «rigor» da imaginação especulativa.
Essa transformação constante não se desliga, porém, do ponto de
nuclearidade que por seu turno permanece constante apesar de suas
infinitas variações; a ponto de Leibniz e Bruno, filósofos matemáticos
cuja imaginação, segundo Buchanan toca o poético, ( 1 ) afirmarem que
aí está a causa de todo o sistema cósmico.
Compreende-se um Einstein ao declarar que para a sua nova
concepção do universo se havia baseado mais na sensualidade da ima-
ginação do que no conhecimento científico (ou matemático) .
Assim, geometria e poesia se entendem — ainda de acordo com
Buchanan. Muitos fatos da ciência de hoje, como certas invenções de
Murilo, parecerão inexplicáveis ao homem comum e à mentalidade ca-
duca. Serão uma espécie de «secção cònica».
O observador desprevenido, ou empedernido, fica diante do acon-
tecimento que lhe escapa à compreensão prática como o Caterpilar dian-
te da Alice de Lewis Carrol.
As linhas angulagudas da fome, as curvas que se aproximam de
Deus (nesta esfera se estudou Deus, p. 51), aturdem igualmente,
(1) SCOTT BUCHANAN, «Poetry and Mathematics», p. 36 — Philadelphia.
pela convergencia; as próprias linhas gráficas que compõem a capa
do livro, onduladas ou retas, pretendem (suponho) indicar que con-
vergimos para um só destino. Cortadas nas extremidades mostram
que elas mesmas caminham até nós, até esbarrar em nosso corpo, ou
chegam até ao infinito. Ou não se sabe para onde vão .. .
O grafito para Malevitch e alusivo ao «quadrado negro em campo
branco» cabe muito bem nesta pequena relação de amostras geométri-
cas ( p . 51) Estema do tempo moderno, diz o poema, e muito ade-
quadamente. Houve, nós o sabemos, várias homenagens ao quadrado
como as de Albers (o quadrado é humano porque não existe na natu-
reza) e não lhe deixou o japonês de prestar a sua, em poesia: «quadra-
do branco/ dentro do / quadrado amarelo/ dentro d o / quadrado
preto/», etc.
Também não faltou quem associasse o neoplasticismo de Mon-
drian ao cúbico-analítico, mas, incontestavelmente, o parentesco com
a tetrada (número poético grego) é o ponto mais atraente dos seus
tetrângulos.
Posso estar me aventurando no sentido de atribuir a «grafitos» e
«murilogramas» intenções que talvez não tenham ocorrido. Não obstan-
te seria «Convergência» um caso de «opera aperta» originalíssimo, e
nisto já haveria uma qualidade a mais, no computo dos valores que
elevam o autor de «Metamorfose» em minha já incondicional admi-
ração .
com olhar retilíneo, Murilo descobre, a todo momento, a origem
das coisas no esconderijo de que elas se nutrem, e daí as arranca,
em forma de poema, não raro ostensivamente.
como já se disse algures «poetry is the imitation of action, the
generation of a form».
IV
Refiro-me à geometria, (esclareço) como sendo, mais do que uma
ciência matemática, aquela que figura em certos rituais. Não será sem
razão que a letra G (G maiúsculo) tanto vale ainda pra significar
Deus («Got») como se vê em «A Revolução da Arte Moderna»,
p. 97, (2) de Hans Sedlmeyer.
Deus faia, como ensinam os adeptos do G, à linha curva, ao
esférico, como o demônio falaria à reta cintilante de uma espada, de
uma flexa ou de uma lâmina.
O «Convergência» de Murilo se me afigurava, enfim, tocado pelo
«sprit de geometrie» a que muita gente chegou a emprestar, como é
sabido, algo de divino.
(2) HANS SELDMEYER, «A Revolução da Arte Moderna» (p. 37) trad. portu-
guesa.
E que dizer de suas invenções no domínio da palavra?
Trata-se de uma incursão que produz, a meu ver, experimentos e
frutos notáveis. São inúmeras as provas, «Isabel» e «Ademanes», por
se não realizam, por deliberação sua, a «enumeração caòtica»
de Spitzer (a que alude uma pergunta à página 208) realizam alguma
coisa de mais espicaçante e com inegável mestria; instituem, pela
reduplicação (uma palavra pluri-repetindo outra) pequenos poliedros,
ainda no plano geométrico, além das coisas imprevistas que acidental-
mente se atraem mostrando como a disparidade delas resulta em alta
poesia, pelo provocante acaso vocabular que as reúne num só todo
múltiplo e uno. Se não me engano, já Lautréamont se enlevava jus-
tamente com a beleza do encontro casual de uma máquina de costura,
com um guarda-chuva, numa mesa de operações . . .
«Desdêmona» é outro poliedro enumerativo bastante convincente
como o é também «Arcanos» na página que se lhe segue. Os objetos
mais díspares se agrupam num denominador comum. O encontro incoe-
rente lhes dá nova dimensão semântica, ou sintático-lírica, e eles pró-
prios, palavras ou objetos, dirão, cada qual de per si, e reciprocamente,
aquele «enchanté» dos que se conhecem pela primeira vez. A «Rota-
tiva» me deu uma grave lição de «semântica fònica», além do que
possui de poder comunicativo pelo som natural das palavras e pelo
ritmo surdo do «vai-e-vem». um caso de gesticulação poética, aue se
faz táctil pelo repentino do desfecho. É uma rotativa que vai-e-vem,
vai-e-vem, até que
«puxa o revólver do livro
e a faca do jornal».
V
As várias «Metamorfoses», notadamente na parte que tem esse títu-
lo (p. 70 e s e g s . ) ; as diabruras do «V» que voa ( p . 53) obedecem
a processo idêntico — palavras que se agrupam, se agridem ou se amam
— ora pela gramática fònica, ora pela contigüidade irrecorrível, ora
pela fusão dos contrários (chove na vidraça do vidromem) formariam
um léxico inventado por Murilo, com a estranha propriedade das im-
propriedades. As palavras criadas (em forma de Tanden) realizam,
estou certo, nova descoberta de um estranho jogo do raciocínio com
a criação vocabular.
Seriam muitas as surpresas que seu livro me causou e causará a
quem o 1er, mas bastam as aqui já apontadas um tanto caòticamente
(este caòticamente por minha conta e risco) .
A criação de palavras em «Convergência», se se admite a com-
paração, assemelha-se ao episódio biblico da multiplicação dos peixes.
«Pedra Pomes», «Formidando», «Metafora» e palavras inventadas
em forma de Tandem ( p . 190) poderiam resvalar por uma «idolatria
da palavra» na opinião dos críticos ranzinzas, nao fòsse a riqueza de
criação que predomina poèticamente em todo o Iivro, a começar pelo
concreto-lírico do grafito para Li-Po ( p . 31) e que o coloca a salvo
de qualquer increpação de tal natureza.
A resposta está em:
«A palavra nasce-me
fere-me
mata-se
réssuscita-me» ( p . 207)
Do caótico se passa para o paralelismo das «láminas» de modo que
não lhe escapa um só ângulo da multifoice (multilâmina) ou das lâminas
( p . 116) ou da multiface que através de um poema possa suscitar em
nós uma inteligência afiada como a de Murilo que parece ter, sob tal
aspecto, a luminosidade mesma da lâmina.
E assim como os triângulos e os ângulos agudos que se deparam
na sua composição de hoje não se limitam ao pormenor geométrico mas
obedecem a um plano geométrico-lirico no contexto geral amplo e
significativo, o mesmo ocorre com as palavras consideradas em si mesmas
ou nos textos a que pertencem, ou a que deram causa.
Elas são pormenores de uma linguagem poética mais ampla, que
em mim aumentou a convicção de que «poetry is a kind of language»,
como diria Jakobson. Linguagem que comunica, que transmite pensa-
mentos altos como os que assinalam o conteúdo de «Convergência».
A palavra brilha e é «lâmina», ou rescende, e é «magnòlia»;
atravessa o osso duro da matéria como um «roentgen»; desperta coisas
esquecidas que só os grafitos fazem ressurgir, na pedra, em alto relevo.
Ou desperta raciocínios atordoantes, como no murilograma a Leopardi
e no grafito sobre Kafka, a que já me referí.
VI
Por mais que o mecanicismo oponha o antiverbal ão verbal, não
acredito que Roger Caillois tenha razão quando profetiza a morte do
livro e das bibliotecas, passando o homem da «biosfera» de hoje para
a exclusiva «iconosfera» do amanhã.
A poesia recriará a palavra, apesar da civilização icônica, e até
se afirma — e quem o afirma é Cassirer — que a criação lírica, que
vem da origem do mundo, constitui a linguagem materna do gênero
humano.
As palavras, mesmo as de invenção mais recente, todos o sabemos,
nunca são gratuitas. Ao contrário, mesmo quando as bacantes laçaram
Orfeu, visíveis, tácteis, audíveis, Orfeu se recriará em outras palavras
nascidas do seu próprio corpo como Orfelo, Orfnós, Orfvós, Orfêles.
Do seu «Exergo» Orfeu se amplia e se multiplica em novas soluções
vocabulares, dirigidas a todos os homens, ressurretas.
Também não lhe escapa a poesia coletiva, sem abandono sequer
daquele coração que, para Archibald MacLeich, não é apenas individual;
é também social, deve também tratar das questões públicas.
O grafito para Sousandrade se reveste, a meu juízo, de uma beleza
única com aquele
«onde fulge o esqueleto do Cruzeiro
que o homem faminto não pode contemplar-».
O gavião da usura, o tubarão adornado de lustres, o analfabeto
que apenas desulula, simbolizam bem a atmosfera criada pelo autor de
«Wall Street», no famoso «Guesa Errante».
«Qual a solução, «o solução?»
Nem tudo, pois, no inteligentíssimo brinquedo com as palavras é
apenas «léxico», já por si espantoso. Ninguém desconhecerá o «hu-
mano», o «cordial» que mora em Murilo e nas suas invenções pes-
soais insuspeitadas.
VII
Certos críticos pensam que nós, os poetas, nos imitamos uns aos
outros, nesta fase de pesquisa e vanguarda. Não é exato. O que há,
quer-se crer, é antes a «convergência» de motivos e formas decorrentes
ou impostas pelo clima cultural que a todos contagia.
«A work in progress», «opera aperta», «enumeração caótica», Cas-
sirer, Mallarmé, Eliot (que estão citados no texto de consulta); Klee,
colagem, Cummings, «Noigandres», «praxis», «minimo telegráfico» —
oe nomes e teorias, tôda a terminologia do nosso convívio diário, se
encontram realmente em voga; marcam a poética do último minuto, tão
sedutor quanto complexo. No mundo da convergência dos processos,
ousaria eu acrescentar, de minha parte, aos seus murilogramas os meus
modestos «linossignos»( 3 ) dentro da nova técnica; Murilo no «Exergo»,
o «Jeremias Sem-Chorar» à procura de um pormenor compositivo, o
linossigno, a que Eduardo Portela, a propósito, chamou o «substitutivo
planetário do verso».
VIH
IX
Só discordo de Murilo quando chega a dizer:
« Wébernizei^me. João-cabralizei-me.
Francispongei-me. Mondtianizei-me.
Isso não.
XI
Mas quero parar aqui. Tôdas as tentativas jovens de vanguarda
ficaram sendo devedoras de Murilo Mendes, depois de «Convergência».
O que pretendi foi simplesmente demonstrar, a meu modo, o cuidado
e o encanto com que li murilogramas, grafitos e demais poemas do seu
maravilhoso livro — que se me afigura «outra janela aberta para o céu».
uma VíSÃO DE PROUST NA SEGUNDA METADE
DO SÉCULO
AFONSO ARINOS DE M E L O FRANCO
9
Julho/Setembro — 1971
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO
Octavio de Faria
Manuel Diégues Junior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Melo Franco
Sumário
ARTES
CIÊNCIAS HUMANAS
LETRAS
II
12. Sim. Temos vivido, neste meio de século, uma larga fase
de deslumbramento. Nunca os ateliers de pintura e escultura estive-
ram tão revoltos, desinibidos de preconceitos, em busca de soluções
novas. E tais soluções brotam pródigamente, em número e em varia-
ções, como se o mundo — pelo menos nesse setor — estivesse a rein-
ventar-se. A fertilidade é tal que ninguém se fixa num achado, e
tem logo a atenção solicitada por outra aventura, já sofre a concor-
rência de terceiras e quartas soluções. Dentro dessa oficina, sem a
regência de espíritos superiores que lhe tentassem alguma unidade,
tudo é permitido: tem-se a impressão de que cada qual saca do seu
buril ou do seu pincel, do seu pedaço de madeira ou ferro, ou de sua
substância corante, e dá curso à imaginação: transpõe-se ao estado
criativo e, pósto nessa condição mágica, realiza o que lhe vem à ca-
beça, espontâneo ou premeditado, no extremo da originalidade, como
se respondesse ao dever de dar uma nova escritura ao mundo.. • como
espetáculo, o quadro é de euforia e entusiasmo, e não há como negar
validade a tantas expressões que se competem, substituindo uma fórmula
envelhecida por numerosas proposições no campo da estética. E o
entusiasmo aumenta quando a tarefa se vai personalizando, cada um
dentro de suas fronteiras, como dono de uma área que explorará ao
sabor de suas preferências.
13. Eis porque não há uma arte moderna, em oposição à es-
cultura grega, ou à arquitetura gótica, ou à pintura impressionista —
capítulos admiráveis de precisão e de síntese, cada um dêles corres-
pondente a uma maneira integral de sentir e de conceber. Hoje
existem várias modalidades que somam o desconcertante e inquieto
acervo da arte moderna, e as múltiplas variações chegam às oposições
frontais: primitivismo e neo-cubismo, figurações e abstrações, escultura
ovòide e mobiles, expressionismo e surrealismo, pop e op, «minimal»
e objeto. Mais de dez caminhos paralelos são seguidos ao mesmo
tempo, sem prejuízo dos que ainda continuam serena e impertubàvel-
mente a tendência conservadora que abraçaram. Em qualquer dos
rumos, a renovação não se cinge à maneira ou ao assunto: compreende
a matéria. Assim o objeto resultará tanto dos velhos materiais nobres,
como de material vulgar; tanto de tintas, como de collage; tanto de
mármores e pedras, como de cascalho de lixo. Em meio a isso, surgem
metais de fino trato e, por vêzes, uma peça suíça flexível é um meio
termo entre um relógio e um instrumento musical. Na tendência oposta,
de motivos populares, a intenção reside na pretensa identidade com as
camadas incultas da população. Tomado esse panorama em sua im-
pressionante totalidade, é de energia criadora por excelência o espe-
táculo a que se assiste. Mas, transferindo do esforço da criação para
o da assimilação ou consumo, as distâncias entre artista e público se
agigantam.
14. Em verdade, caducaram as velhas formas acadêmicas.
Aquela arte serena e refletida, que tinha, em cada obra, uma definição
ou uma mensagem, esborôa-se numa sociedade sacudida por tôda a
sorte de problemas morais, religiosos, econômicos e políticos. Per-
dida a unidade, multiplicados os rumos que se delineiam aos grupos,
instalada a controvérsia, a mesma dúvida que devora os espíritos em
geral castiga igualmente o artista. Êle se sente vítima do comum
estado de coisas, onde mal se vê o horizonte, e as coordenadas lógicas
que presidiam a pensamentos e atos são sùbitamente afastadas pela
presença de acontecimentos inesperados, atrevidos, arrogantes, — por
vêzes baseados em razões da ciência, sem que o sejam em pressupos-
tos morais. A arte reflete as dúvidas e angústias contemporâneas, não
podendo oferecer a esse quadro de sofrimento e desafio a tranqüilidade
de obras para a doce contemplação dos homens. E, ante o impacto
sucessivo de negações do mundo real, à dúvida sucede a evasão, e a
arte se perde no indefinido e no abstrato, com o que tenta conquistar
para o atormetado espírito humano alguma solução, mesmo que tran-
sitória. É preciso falar às estrelas, já que não se pode falar aos
homens.. .
15. A ausência de definições, a fuga para o subjetivo, os lances
mais audaciosos de imaginação coincidem na vida como na arte. Ape-
nas há quem pense, chegado o momento artístico, que o homem se
exonera das circunstâncias que o cercam para voltar ao estado de
idealidade e coloquiar com as obras clássicas... O contraste é severo:
debruçados em seus laboratórios, cientistas pesquizam o infinitamente
pequeno, no qual vêm virtudes surpreendentes, enquanto outros alon-
gam os seus olhos, por processos artificiosos, para alcançar o infinita-
mente distante e desvendar novos mundos. A visão do homem comum
é contaminada pelos resultados dessas incursões pioneiras. Privile-
giada, a visão dos artistas tem antecipações que perturbam a marcha
normal da percepção e só justificam as suas fórmulas proféticas nas
liberdades permissivas do gênio. Já a aviação havia dado à visão
humana, — com a anulação do horizonte convencional — uma paisa-
gem inédita. Vivendo em termos de altitudes, o homem moderno ex-
perimenta um novo arranjo da natureza. Fato inconteste reside no
enriquecimento de sua visão e na derrocada definitiva de alguns pre-
conceitos que, tentando clareá-la, a viciavam de base.
16. O paralelismo continuará entre a vida e a arte. Agora não
apenas na pesquisa, tornando legítima nas artes como nas ciências a
deliciosa aventura do descobrimento. Agora, também, em outro campo
de buscas, mais afim pelo domínio das formas, que é a indústria;
nesta, as ambições não se contém, e os processos de produção atingem
proporções ameaçadoras, já a caminho da automação. Assim também
os artistas se interessam — voltando à sua condição de artesãos —
por fazer de qualquer nada alguma coisa diferente, e daí as variações
mais excêntricas, até o momento em que se encontram com a forma
pura, que os excita e aguça segundo requintes de sensibilidade ou ca-
prichos de imaginação. Quantas dessas experiências legítimas ao
serem tentadas — não lograrão sobreviver, por absoluta falta de inte-
resse, reduzida a um exercício, mesmo que admirável! Mas a faina de
inventar continua: na arte como na indústria, a caracterizar uma fase
do mundo moderno em que certas criaturas — sejam compreendidas,
ou não, pelos outros — representam o papel pioneiro de intérpretes da
inquietação e do desvario contemporâneo. Nisso, no caótico das va-
riantes, a arte moderna se enquadra na cultura do tempo: não é uma
extravagância marginal, porém a integração numa cultura dominada
pela renovação e pela pesquisa, pela aventura do novo e do inédito,
pela psicose da originalidade. O objeto, seja o que a indústria produz
com fins utilitários, seja o que o artista inventa no devaneio da forma,
representa, numa hipótese e noutra, uma solução plástica, para a qual
houve um tratamento intencional. E nessa intencionalidade reside o
caráter artístico que se lhe não pode negar.
17. Embora se explique a arte moderna de conformidade com
tendências da cultura contemporânea, fato é que nenhum aconteci-
mento marcante do século motivou qualquer pintura ou escultura. A
perda da condição representativa retirou às artes o selo da contem-
poraneidade, com que, em outros períodos, a pintura histórica marcava
a sua função como nas cortes napoleônicas. Certo, há acentos de pro-
testo e de angústia em pintores que dizem do desajustamento geral,
até mesmo em composições não-figurativas. O grupo socialista mexi-
cano, permanecendo dentro do representativo, buscou à época e ao
meio temas de inspiração política, que encontraram, em Diogo Rivera,
uma tribuna de protesto. A arte soviética não agasalhou, nem esti-
mulou a arte moderna, por considerá-la experimental demais, fugindo
à essência dominante de uma mensagem: para sua destinação social,
integrando a cultura preconizada pelo regime, a linguagem acadêmica
oferece condições positivas insuperáveis. O mesmo país, empenhado
nas mais audaciosas pesquisas espaciais, levando a ciência a progres-
sos incríveis, fechou as portas às pesquisas artísticas e literárias. E
a arte moderna não medrou em seus imensos domínios.
III
19. A posição do artista no mundo contemporâneo e sua proje-
ção no futuro oferecem também algumas considerações importantes.
Insiste-se na política desenvolvimentista como tônica dos governos para
felicidade do povo. Pelo menos, para a grandeza econômica do país.
À idéia de desenvolvimento ligam-se, de pronto, duas outras: o pro-
gresso da ciência e o apuro da tecnologia. Todos os apelos são feitos
à tecnologia e à ciência. Duas figuras emergem do meio por sua im-
portância — a do cientista e a do técnico. Nessa mira pela prospe-
ridade, há quem não veja lugar próprio para o artista, considerando-O
um sonhador, um fabricante de imagens e ilusões, uma vocação para
o devaneio, um ser sem papel definido na era da competição produ-
tiva. Aí reside o grande equívoco, a desfazer-se com urgência, antes
que cresçam os adeptos de concepção tão estreita. A técnica não é
fruto exclusivo da ciência; não é apenas ciência aplicada, embora lhe
deva o principal de suas conquistas. O fazer não dispensa, ao lado
dos processos que lhe aumentam a capacidade de multiplicar e aper-
feiçoar o produto, a contribuição da arte. É da arte — e não da
ciência — que se parte para a técnica. A arte está presente na in-
dústria, desde o momento fundamental do projeto até o termo delicado
do acabamento. um projeto industrial, embora encare os aspectos eco-
nômico e técnico-específico, tem a sua coordenação natural no senti-
mento estético: este lhe dá harmonia, interesse, condições de recepti-
vidade. Em certos ramos, o gosto vale tudo. uma das maneiras de
captar o público reside justamente na multiplicidade de aparências, ou
maneiras de oferecer o objeto à sua escolha. Automóvel, indumentá-
ria, máquinas e aparelhos de uso caseiro ganham, sobremodo, pela
apresentação agradável. Arte e ciência se aplicam fundidas, na
tecnologia,
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
BIBLIOGRAFIA
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14. «SOCIAL EVOLUTION» — V. G. Childc — (Cit. por Glyn Daniel) —
1951.
A CONFERÊNCIA DE VENEZA E OS PROBLEMAS
DA CULTURA
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
INTRODUÇÃO
* * *
* * *
(7) — Não entendemos porque o historiador Hélio Viana ainda apresenta estas
datas para nascimento e morte de Gregorio de Mattos e Guerra.
AUGUSTO MEYER
CARLOS D A N T E DE MORAES
Ó terra terra
beijos-polens respirações m a r é s . . .
Cada jeito meu reproduz o milagre,
no pulso ouço bater a força obscura,
sou carregado na infinita adoração.
(«Bilu»)
Definição:
Concha, mas de orelha:
Água, mas de lágrima;
Ar com sentimento.
— Brisa, viração
Da asa de uma abelha.
«Diáfana, diáfana: «Brisa, viração / Da asa de uma abelha»: aí
nos parece que Manuel Bandeira captou o essencial da poesia de Cecília
Meireles, pelo menos algumas das suas notas mais definidoras.
Mas vamos ao «2? Improviso»:
N a pág. 553:
N a pag. 578:
Será louca ?
Herdeira de poesia
de um alto sonho frustrado,
arrastará um passado
tão grave tão dolorido
que nem mais haverá dia
e ver o mundo é ter visto
e partir é já ter ido.
Será louca ?
Vamos vê-la, vamos vê-la
na Ladeira do Pilar !
Conduz o facho da estrela
e a maresia lunar.
Pois assim como do Oreb
{sombriamente elucida)
Moisés, com o seu bastão,
diante da multidão,
fêz água pura fluir,
e à multidão que pedia:
«Água / Água !», respondia:
«Há de vir !»
também ela
tocando com o seu bastão
a laje a cruz a vidraça
o chafariz as igrejas
as cornijas o balcão,
as clarabóias das almas
minaretes do perdão,
tocando com o seu bastão
a tarde o silêncio a fluida
triste cidade suspensa
na cerração do luar,
também ela
ao irmão vento ao céu revela
o seu mais forte segredo:
«Há de vir !»