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Edgar Morin

O Método
6. Ética

TRADUÇÃO DE JUREMIR MACHADO DA SILVA


Título original: La Méthode 6. Éthique
© Editions du Seuil, 2004
© Editora Meridional/Sulina, 2005
Tradução
Juremir Machado da Silva

Capa
Eduardo Miotto

Projeto gráfico e editoração


Daniel Ferreira da Silva

Revisão
Gabriela Koza

Editor
Luis Gomes

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO ( CIP )


BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL: DENISE MARI DE ANDRADE SOUZA CRB 10/1204
M585m Morin, Edgar O método 6: ética / Edgar Morin ;
tradução Juremir Machado da Silva. 3a ed. — Porto Alegre
: Sulina, 2007.
222 p.
Título original: Le méthode 6 Éthique
ISBN: 978-85-205-0393-5

1. Sociologia do conhecimento. 2. Ética. I. Título

CDD: 306.4
CDU: 316. 17

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA MERIDIONAL LTDA.

Av. Osvaldo Aranha, 440 cj. 101


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{Outubro/2007}

IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL


“Cet ouvrage, publié dans le cadre du
programme d’aide à la publication,
beneficie du soutien du Ministère
français des Affaires Etrangères,
de l’Ambassade de France au Brésil et
de la Maison de France de Rio de Janeiro.”

“Este livro, publicado no âmbito


do Programa de Apoio à Publicação,
contou com a ajuda do Ministério
francês das Relações Exteriores,
da Embaixada da França no Brasil
e da Maison de France
no Rio de Janeiro.”
Para minha Edwige
Agradecimentos

Depois de uma primeira versão, elaborada em 2001, a reda-


ção final deste livro foi feita em Hodenc-l’Évêque, de janeiro a
maio de 2004.
Contei sempre com a ajuda da minha assistente Catherine
Loridant, que se ocupou de todas as tarefas práticas e ainda con-
tribuiu com correções e sugestões ao longo da redação.
O manuscrito ou, antes, o “macuscrito” (pois feito em meu
Macintosh) recebeu críticas e sugestões de Jean-Louis Le Moigne,
sempre presente e fiel na sua amizade. Enfim, assim como tinha
feito com a Humanidade da humanidade, Jean Tellez me ajudou,
até as últimas provas, com sua leitura e suas releituras, sua com-
petência, sua cultura, sua atenção, tanto nas idéias quanto nos
detalhes.
Agradeço, por fim, a Jean-Claude Guillebaud, meu leitor
na Seuil, pelo seu apoio, a sua assistente Flora pela ajuda
polivalente, a Valérie Gautier por ter encontrado a imagem da
capa em conformidade com o meu desejo e a Jean-Claude Baillieul
pela última revisão do meu “macuscrito”.
Essa ajuda toda foi ainda mais necessária na medida em
que terminei este trabalho em condições difíceis. Deixo-lhes o
meu mais forte reconhecimento pelo que fizeram.

7
Sumário

Agradecimentos, 7
Introdução, 15
PRIMEIRA PARTE
O pensamento da ética
e a ética do pensamento

I. O pensamento da ética, 19
A exigência subjetiva, 19
A religação ética, 21
A autonomia moral, 23
A modernidade ética: os grandes deslocamentos, 24
O individualismo ético, 26
A crise dos fundamentos, 27
Nutrir a ética nas suas fontes, 29

II. Retorno às fontes cósmicas, 31


As fontes de religação, 31
A humana religação, 35
No coração do mistério, 37
Ética da religação, 38

III. A incerteza ética, 40


Princípio de incerteza na relação intenção-ação, 40
Ecologia da ação, 41
Limite da previsibilidade, 42
Dupla e antagônica necessidade do risco e da precaução, 43
Inconsciência ou negligência dos efeitos colaterais
perversos de uma ação considerada salutar, 43
Incerteza na relação entre o fim e os meios, 44
Permutação de finalidades conforme as circunstâncias, 44
Derivações e inversões, 44
As contradições éticas, 47
Os imperativos éticos contrários, 47
A dialógica ético-política, 51
Incerteza e contradição éticas nas ciências, 51
A ilusão ética, 54
A ilusão interior, 55
Réplicas à incerteza e à contradição, 56
Conclusão: a complexidade ética, 57

IV. A ética do pensamento, 60


A ética do conhecimento e o conhecimento da ética, 60
O vínculo, 60
”Pensar mal”, 61
“Trabalhar pelo pensar bem”, 62
Do pensamento complexo à ética, 64
A ética esclarecida/esclarecedora, 65

SEGUNDA PARTE
Ética, ciência, política

I. Ciência, ética, sociedade, 69


Ciência/técnica/sociedade/política, 69
A mancha cega, 71
Os compromissos éticos, 74
Rumo à reforma, 74
Rumo à transformação da natureza humana?, 75
Conclusões, 78

II. Ética e política, 80


As grandes incertezas, 81
Realismo e ética, 82
Crise, 85
Há esperança?, 86
TERCEIRA PARTE
Auto-ética

I. O individualismo ético, 91

II. A cultura psíquica, 93


Quadro da auto-ética, 93
A auto-análise (pensar-se bem), 94
Autocrítica, 95
A cultura psíquica, 96
A recursão ética, 97
Resistência à moralina (purificação ética), 98
Ética da honra, 99
Ética de responsabilidade, 100
Das virtudes, 101
Conclusão: a resistência à barbárie interior, 101

III. Ética de religação, 103


O imperativo da religação, 104
A exclusão da exclusão: o “reconhecimento”, 104
O respeito ao outro: a cortesia, 105
Ética de tolerância, 106
Ética de liberdade, 107
Ética de fidelidade à amizade, 107
Ética do amor, 107

IV. Ética da compreensão, 109


Reconhecer a incompreensão, 109
Reconhecer a compreensão, 112
A compreensão da complexidade humana, 114
A compreensão dos contextos, 115
Compreender a incompreensão, 116
O metaponto de vista, 117
O erro, 117
A indiferença, 118
A incompreensão de cultura a cultura, 118
A possessão pelos deuses, mitos, idéias, 119
O egocentrismo e o autocentrismo, 119
A abstração, 120
A cegueira, 120
O medo de compreender, 120
O trabalho terrível de compreensão. Paradoxos e contradições, 121
Os mandamentos da compreensão, 123

V. Magnanimidade e perdão, 125


Da lei de talião ao perdão, 125
O perdão, 126
A aposta do perdão, 127
O perdão político, 129
Memória e perdão, 130
Impossibilidade do perdão e da punição, 131
A auto-análise, 132

VI. A arte de viver: poesia ou/e sabedoria?, 134


Dialógica razão-paixão, 135
A arte de viver, 136
O saber amar, 139
A incorporação do saber: o saber viver, 139
A sabedoria do espírito, 140
Conclusão, 141

VII. Conclusão auto-ética Re- e Com-, 142

QUARTA PARTE
Sócio-ética

I. A ética da comunidade, 147


O circuito democrático, 149
As duas universalidades, 150
Anexo, 151
O problema de uma democracia cognitiva, 151
QUINTA PARTE
Antropoética

I. Assumir a condição humana, 159


Rumo ao humanismo planetário, 160

II. Ética planetária, 162


O humanismo planetário, 162
Os nove mandamentos, 163
A ética planetária, 166
Sociedade-mundo?, 166

III. As vias regeneradoras, 168


Reforma/transformação de sociedade, 169
Reforma do espírito/reforma da educação, 170
Reforma de vida, 171
A regeneração moral, 174
O aporte de uma ciência reformada, 175
Complementaridade em circuito das reformas, 176

IV. A esperança ética: a metamorfose, 179

Conclusões éticas

Conclusão 1 - Do mal, 185


O mal de vida, 187
A humanidade do mal, 188

Conclusão 2 - Do bem, 194


Pensamento complexo e ética: religação, 194
A complexidade ética, 195
A fragilidade ética, 196
A modéstia ética, 196
Regenerar, 197
Esperança/desesperança, 198
“Muss es sein? Es muss sein!”, 199
Ética de resistência, 200
A finalidade ética, 202
A fé ética, 202

Vocabulário, 203

Notas, 215
Introdução

Os volumes anteriores de O Método desenvolvem os prin-


cípios de um conhecimento complexo e tentam mostrar que este
se tornou vital para todos.
Este trabalho implica uma cadeia que nos leva a repensar e
a revisitar o bem, o possível e o necessário, ou seja, a própria
ética. A ética não pode escapar dos problemas da complexidade.
Isso nos obriga a pensar a relação entre conhecimento e ética,
ciência e ética, política e ética, economia e ética.
A nossa cultura não está preparada para tratar nem enfren-
tar esses problemas na dimensão, radicalidade e complexidade
que os caracterizam. A sua crise, contudo, suscita uma gestação e
esta gestação produz os fermentos e os esboços de um pensamen-
to regenerador.
Busca-se, com freqüência, distinguir ética e moral. Use-
mos “ética” para designar um ponto de vista supra ou meta-indi-
vidual; “moral” para situar-nos no nível da decisão e da ação dos
indivíduos. Mas a moral individual depende implícita ou explici-
tamente de uma ética. Esta se resseca e esvazia sem as morais
individuais. Os dois termos são inseparáveis e, às vezes, reco-
brem-se; em tais casos, usaremos indiferentemente um ou outro.
Nesse espírito, conceberemos a ética complexa como um
metaponto de vista comportando uma reflexão sobre os funda-
mentos e os princípios da moral.

15
PRIMEIRA PARTE

O pensamento da ética
e a ética do pensamento
I. O pensamento da ética

É impossível falar de ética.


Wittgenstein

A ética (...) continua problemática,


ou seja, cria problema,
o que nos obriga a pensar.
Kostas Axelos

A exigência subjetiva

A ética manifesta-se para nós, de maneira imperativa, como


exigência moral.
O seu imperativo origina-se numa fonte interior ao indiví-
duo, que o sente no espírito como a injunção de um dever. Mas
ele provém também de uma fonte externa: a cultura, as crenças,
as normas de uma comunidade. Há, certamente, também uma fonte
anterior, originária da organização viva, transmitida geneticamente.
Essas três fontes são interligadas como se tivessem um lençol sub-
terrâneo em comum.
Como vimos (O Método 5), as três instâncias indivíduo-
sociedade-espécie formam uma tríade inseparável. O indivíduo
humano, mesmo na sua autonomia, é 100% biológico e 100%
cultural. Apresenta-se como o ponto de um holograma que con-
tém o todo (da espécie, da sociedade) mesmo sendo
irredutivelmente singular. Carrega a herança genética e, ao mes-
mo tempo, o imprinting1 e a norma de uma cultura2.
Podemos distinguir, mas não isolar umas das outras as fon-
tes biológica, individual e social.
Essas três fontes estão no coração do indivíduo, na sua pró-
pria qualidade de sujeito3. Aqui, eu me refiro à concepção de su-
jeito, elaborada por mim, que vale para todo ser vivo. Ser sujeito
é se auto-afirmar situando-se no centro do seu mundo, o que é
literalmente expresso pela noção de egocentrismo.
Essa auto-afirmação comporta um princípio de exclusão e

19
EDGAR MORIN

um princípio de inclusão. O princípio de exclusão significa que


ninguém pode ocupar o espaço egocêntrico onde nos exprimimos
pelo nosso Eu. Dois gêmeos univitelinos podem ter tudo em co-
mum, mas não o mesmo Eu. O princípio de exclusão é a fonte do
egoísmo, capaz de exigir o sacrifício de tudo, da honra, da pátria
e da família. Mas o sujeito comporta também, de maneira antagô-
nica e complementar, um princípio de inclusão que lhe permite
incluir o seu Eu num Nós (casal, família, pátria, partido) e, conse-
qüentemente, incluir em si esse Nós, incluindo o Nós no centro
do seu mundo. O princípio de inclusão manifesta-se quase desde
o nascimento pela pulsão de apego à pessoa próxima. Ele pode
conduzir ao sacrifício de si pelos seus, pela sua comunidade, pelo
ser amado. O princípio da exclusão garante a identidade singular
do indivíduo; o princípio de inclusão inscreve o Eu na relação
com o outro, na sua linhagem biológica (pais, filhos, família), na
sua comunidade sociológica. O princípio de inclusão é instintivo,
como no passarinho que sai do ovo e segue a mãe. O outro é uma
necessidade vital interna.
Assim, tudo acontece como se cada indivíduo-sujeito com-
portasse um duplo software, um comandando o “para si” e o outro
comandando o “para nós” ou “para outro”; um comandando o
egoísmo, o outro comandando o altruísmo. O fechamento
egocêntrico faz com que o outro nos seja estranho; a abertura al-
truísta o torna fraterno. O princípio egocêntrico potencialmente
inclui a concorrência e o antagonismo em relação ao semelhante,
até mesmo ao irmão, o que levou Caim ao assassinato. Nesse sen-
tido, o sujeito carrega em si a morte do outro, mas, num sentido
inverso, carrega o amor pelo outro. Alguns indivíduos são mais
egoístas, outros mais altruístas e, geralmente, cada um oscila, em
graus diferentes, entre o egoísmo e o altruísmo. O programa altruís-
ta pode nos reduzir ao Nós, seja no sentido biológico do termo
(filhos – pais) quanto no sentido sociológico do termo (pátria,
partido, religião); enfim, pode nos consagrar a um Tu amado.
Conforme o momento, segundo as circunstâncias, o indivíduo-
sujeito muda de programa de referência, o egoísmo podendo
recalcar o altruísmo e o altruísmo superar o egocentrismo. Pode-
mos nos devotar estritamente a nós mesmos, aos outros, aos nos-
sos. Cada um vive para si e para outro de maneira dialógica, ou

20
O MÉTODO 6

seja, ao mesmo tempo, complementar e antagônica. Ser sujeito é


associar egoísmo e altruísmo.
Todo olhar sobre a ética deve reconhecer o aspecto vital do
egocentrismo assim como a potencialidade fundamental do de-
senvolvimento do altruísmo.
Todo olhar sobre a ética deve levar em consideração que a
sua exigência é vivida subjetivamente. Embora não haja ritual, culto,
religião no sentimento do dever experimentado pelo indivíduo leigo,
a especificidade subjetiva do dever dá-lhe um aspecto semelhante ao
do místico; o dever emana de uma ordem de realidade superior à
realidade objetiva e parece derivar de uma injunção sagrada.
Impõe-se com a força desse tipo de possessão que nos leva
a ser possuídos por um deus ou por uma idéia. Esses dois aspec-
tos, místico e possessivo, parecem emanar de uma fé invisível.
Talvez o aspecto místico, sagrado, fideísta, intrínseco ao
dever seja uma herança da ascendência religiosa da ética. Talvez
o aspecto de quase possessão venha do mais antigo, mais profun-
do, a tripla fonte bio-antropo-sociológica.
A fé inerente ao dever experimentado interiormente, no caso
em que a ética não tem mais fundamento exterior, é a fé na pró-
pria ética. Uma fé que, se utilizamos a palavra “valores”, é uma fé
nos valores aos quais ela nos entrega. Uma fé que, como toda fé
moderna, pode comportar a dúvida.
Steven Ozment sustenta que o humanismo de Liberdade-
Igualdade-Fraternidade tinha uma fonte mística e não racional4 ;
acredito que se deve complexificar essa tese considerando que esse
humanismo comporta uma simbiose de racionalidade (universali-
dade) e de fé quase mística. Não se pode eliminar nem o compo-
nente racional nem o componente místico do universalismo ético;
e só se pode destacar o componente fé que aí está contido. Assim,
efetivamente, eu tenho fé na minha liberdade, fé na fraternidade.

A religação ética

Todo olhar sobre a ética deve perceber que o ato moral é


um ato individual de religação; religação com um outro, religação
com uma comunidade, religação 5 com uma sociedade e, no limi-
te, religação com a espécie humana.

21
EDGAR MORIN

Assim, existe uma fonte individual da ética, no princípio de


inclusão, que inscreve o indivíduo na comunidade (Nós), impul-
sionando-o à amizade e ao amor, levando-o ao altruísmo e tendo
valor de religação (Anschlusswert). Há, ao mesmo tempo, uma
fonte social nas normas e regras que impõe aos indivíduos um
comportamento solidário.
É como se existisse uma harmonia preestabelecida que es-
timula os indivíduos a aderir a uma ética de solidariedade dentro
de uma comunidade e leva a sociedade a impor aos indivíduos
uma ética de solidariedade.
Também se poderia dizer que a moral é “natural” ao homem,
pois corresponde à natureza do indivíduo e à da sociedade. Mas é
preciso corrigir essa afirmação, visto que indivíduo e sociedade pos-
suem uma dupla natureza. O indivíduo tem o princípio poderoso do
egocentrismo, que o estimula ao egoísmo, enquanto a sociedade com-
porta rivalidade, competição, lutas entre egoísmos, podendo até mes-
mo o seu governo ser ocupado por interesses egoístas. As sociedades
não conseguem impor as suas normas éticas a todos os indivíduos.
Estes não podem ter comportamento ético que sempre superem o
egoísmo. Esse problema se torna mais grave nas sociedades muito
complexas nas quais a integração dos vínculos tradicionais de solida-
riedade é inseparável do desenvolvimento do individualismo.
As fontes da ética também são naturais no fato de serem an-
teriores à humanidade; o princípio de inclusão está inscrito na auto-
sócio-organização biológica do indivíduo e se transmite por via ge-
nética6 . As sociedades mamíferas são, ao mesmo tempo, comu-
nitárias e rivais; contêm, ao mesmo tempo, o enfrentamento
conflitual dos egocentrismos e a solidariedade em relação aos ini-
migos exteriores. Comunitárias na luta contra a presa ou o preda-
dor; rivais, sobretudo entre os machos, nos conflitos pela primazia,
pela dominação, pela posse das fêmeas. Os indivíduos dedicam-se
à prole, mas também podem, às vezes, comer os próprios filhos.
As sociedades humanas desenvolveram e complexificaram
esse duplo caráter sociológico: o de Gesellschaft (relações de in-
teresse e de rivalidade) e de Gemeinschaft (comunidade). O sen-
timento de comunidade é e será fonte de responsabilidade e de
solidariedade, sendo estas, por seu turno, fontes de ética.
Graças à linguagem, a ética de comunidade torna-se explí-

22
O MÉTODO 6

cita nas sociedades arcaicas, com suas prescrições, seus tabus e


seu mito de ancestral comum.
Como veremos na quarta parte deste livro, a ética da comu-
nidade, nas sociedades históricas, foi, ao mesmo tempo, inocula-
da nas mentes pela força física e introjetada pela submissão psí-
quica. A primeira (polícia, exército) faz valer o medo à coerção; a
segunda entra nos espíritos pela interiorização dos mandamentos
conjuntos de uma religião dotada de potência sagrada e de um
poder de Estado divinizado. As prescrições desse Superego
bicéfalo inculcam nas mentes as normas do bem, do mal, do jus-
to, do injusto, produzindo o imperativo do dever. Tentar resistir
ao dever suscita culpa e angústia.
Assim, nas sociedades fechadas da Antigüidade, a relação
desequilibra-se em detrimento do indivíduo, que não dispõe de
autonomia moral.

A autonomia moral

O surgimento de uma consciência moral individual relativa-


mente autônoma exigiu o progresso da individualidade, algo que se
manifestou claramente na Atenas do século V, antes da nossa era.
Posso aqui usar a metáfora de Jaynes sobre o espírito bicameral7 .
Jaynes supõe que nos impérios teocráticos da Antigüidade uma câ-
mara da mente era dominada pelo poder e obedecia cegamente às
suas ordens; a outra câmara estava voltada para a vida privada. As
duas câmaras não se comunicavam. A consciência individual (cons-
ciência intelectual e, ao mesmo tempo, moral) aparece quando uma
brecha se opera entre as duas câmaras; daí vem a democracia
ateniense, na qual a deusa Atena não governa, mas protege; o go-
verno da cidade depende dos cidadãos, cujo espírito pode então
atuar criticamente em relação ao mundo social.
A consciência moral individual emerge também historica-
mente do desenvolvimento complexificador da relação trinitária
indivíduo/espécie/sociedade.
Contribui para unir indivíduo/sociedade/espécie a despeito
das oposições e antagonismos desses três termos, superando-os
até certo ponto. Repõe o espírito individual, num nível superior,
no circuito trinitário.

23
EDGAR MORIN

Há complexidade, ou seja, concorrência e antagonismo, na


relação indivíduo/sociedade/espécie. Essa complexidade se de-
senvolve nas sociedades comportando muita diversidade e auto-
nomia individuais. As sociedades históricas experimentam deslo-
camentos, falhas, fading, entre essas três instâncias da ética. An-
tagonismos manifestam-se entre as éticas dos grupos englobados
e a ética do conjunto social englobante. Manifestam-se também
entre o imperativo do amor pelo irmão e o da obediência à cidade
(Antígona e Creonte). Manifestam-se entre a ética da comunida-
de fechada e a ética universalista da comunidade humana. A
autonomização do espírito permite ao filósofo, embora a respei-
tando, superar a ética comunitária; essa superação é potencial nas
sabedorias antigas orientais e ocidentais. A universalização da ética
para todo ser humano, seja qual for a sua identidade, só começará
com as grandes religiões transculturais como budismo, cristianis-
mo, islamismo e, enfim, com o humanismo europeu; mas esse
universalismo permanecerá limitado, com lacunas, frágil e será
incessantemente acuado pelos fanatismos religiosos e pelos
etnocentrismos nacionais.
Os progressos da consciência moral individual e do
universalismo ético estão ligados.

A modernidade ética: os grandes deslocamentos

Os tempos modernos produziram deslocamentos e rupturas


éticas na relação trinitária indivíduo/sociedade/espécie.
A laicização retira da ética de sociedade a força do impera-
tivo religioso. Certo, a nação moderna impõe o seu próprio culto
e os seus imperativos sagrados nas guerras em que a pátria corre
perigo; mas em períodos de paz as competições, a concorrência e
as tendências egoístas ganham terreno. Certo, e era planetária
aberta com os tempos modernos suscita, a partir do humanismo
laico, uma ética metacomunitária em favor de todo ser humano,
seja qual for a sua identidade étnica, nacional, religiosa, política.
A ética de Kant realiza a promoção de uma ética universalizada
que se pretende superior às éticas sociocêntricas particulares. Li-
berdade, equidade, solidariedade, verdade e bondade tornam-se
valores que merecem por si mesmos a intervenção, até mesmo a

24
O MÉTODO 6

ingerência, na vida social e, por extensão, na vida internacional.


Mas esses desenvolvimentos continuam minoritários e marginais.
Os tempos modernos estimularam o desenvolvimento de uma
política autônoma, de uma economia autônoma, de uma ciência
autônoma, de uma arte autônoma, levando a um deslocamento da
ética global imposta pela teologia medieval. Certo, a política nem
sempre obedecia à ética. Mas, desde Maquiavel, a ética e a política
acham-se oficialmente separadas, visto que o príncipe (o governante)
deve obedecer à lógica da utilidade e da eficácia, não à moral. A
economia comporta, claro, uma ética dos negócios, exigência de
respeito aos contratos, mas obedece aos imperativos do lucro, o
que leva à instrumentalização e à exploração de outros seres huma-
nos. A ciência moderna alicerçou-se sobre a separação entre juízo
de fato e juízo de valor, ou seja, entre, de um lado, o conhecimento
e, de outro, a ética. A ética do conhecimento pelo conhecimento à
qual a ciência obedece não enxerga as graves conseqüências gera-
das pelas extraordinárias potências de morte e de manipulação sus-
citadas pelo progresso científico. O desenvolvimento técnico,
inseparável do desenvolvimento científico e econômico, permitiu
o hiperdesenvolvimento da racionalidade instrumental, que pode
ser posta a serviço dos fins mais imorais. Também as artes se eman-
ciparam progressivamente de toda finalidade edificante e rejeitam
qualquer controle ético. Certo, todas essas atividades necessitam
de um mínimo de ética profissional, mas elas só excepcionalmente
carregam uma perspectiva moral.
Em todos os campos, o desenvolvimento das especializa-
ções e dos compartimentos burocráticos tendem a encerrar os in-
divíduos num domínio de competência parcial e fechado, de onde
deriva a fragmentação e a diluição da responsabilidade e da soli-
dariedade, o que vimos, por exemplo, na França, nos casos dos
bancos de sangue contaminado, de 1982, e das mortes por causa
do calor excessivo durante o verão de 2003.
Como bem viu A.M. Battista8, “toda conexão profunda en-
tre o indivíduo e a coletividade, com objetivo de aperfeiçoamento
moral, individual ou coletivo, está definitivamente rompida”.
Tugendhat diz o mesmo de outra maneira: “A consciência moral
fracassa diante da realidade fragmentada do capitalismo, da buro-
cracia e dos Estados” 9.

25
EDGAR MORIN

O individualismo ético

Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da autonomia indivi-


dual acarretou a autonomia e a privatização da ética.
A ética tornou-se, portanto, laica e individualizada; com o
enfraquecimento da responsabilidade e da solidariedade, impõe-
se uma distância entre a ética individual e a ética da cidade.
A vulgata de moralidade dos “bons costumes” quase que se
dissipou, o que pode ser atestado pela evolução do direito10. Os
bons costumes constrangiam o indivíduo a obedecer às normas
conformistas (condenação moral do adultério, do comportamento
dissoluto, da homossexualidade, etc.) e a sua decadência está li-
gada ao reconhecimento de comportamentos individuais antes
condenados como desviantes ou perversos.
Como veremos, o progresso do individualismo produziu a
emancipação dos indivíduos em relação às limitações biológicas
da reprodução (coito interrompido, aborto, barriga de aluguel); no
fim do século XX, na França, uma ética do direito da mulher supe-
rou, por um lado, o direito da sociedade de proteger a sua demografia
e, por outro lado, a ética do respeito incondicional à vida.
O desenvolvimento do individualismo apresenta dois as-
pectos antagônicos: o enfraquecimento da tutela comunitária con-
duz, ao mesmo tempo, ao universalismo ético e ao desenvolvi-
mento do egocentrismo.
O individualismo, fonte de responsabilidade pessoal pela
sua conduta de vida, é também fonte de fortalecimento do
egocentrismo. Este se desenvolve em todos os campos e tende a
inibir as potencialidades altruístas e solidárias, o que contribui
para a desintegração das comunidades tradicionais.
Essa situação favorece não apenas o primado do prazer ou
do interesse em relação ao dever, mas também o crescimento de
uma necessidade individual de amor em que a busca da felicidade
pessoal a qualquer preço transgride a ética familiar ou conjugal11.
Enfim, há erosão do sentido sagrado da palavra dada, do
sentido sagrado da hospitalidade, ou seja, de uma das raízes mais
antigas da ética. A profanação do que foi sagrado acarreta a sua
profanação.

26
O MÉTODO 6

A crise dos fundamentos

Os fundamentos da ética estão em crise no mundo ociden-


tal. Deus está ausente. A Lei foi dessacralizada. O Superego soci-
al já não se impõe incondicionalmente e, em alguns casos, tam-
bém está ausente. O sentido da responsabilidade encolheu; o sen-
tido da solidariedade, enfraqueceu-se.
A crise dos fundamentos da ética situa-se numa crise geral dos
fundamentos da certeza: crise dos fundamentos do conhecimento fi-
losófico, crise dos fundamentos do conhecimento científico12.
A razão não pode ser considerada como o fundamento do
imperativo categórico. Segundo Tugendhat, “a tentativa de Kant
com vistas a definir o imperativo categórico como um imperativo
da razão e a dar-lhe um fundamento absoluto racional deve ser
considerada como um fracasso”13.
A referência aos “valores” revela e mascara, ao mesmo tem-
po, a crise dos fundamentos. Como pensa Claude Lefort, ela reve-
la que a palavra “valor é o indicativo de uma impossibilidade de
designar uma garantia válida para todos: a natureza, a razão, Deus,
a História. É o indicativo de uma situação na qual todas as figuras
de transcendência apagaram-se”14. Estamos, doravante, fadados
ao que Pierre Legendre chama de “self-service normativo”, em
que podemos escolher os nossos valores. Os “valores” ocupam o
lugar deixado vazio pelos fundamentos para fornecer uma refe-
rência transcendente intrínseca que tornaria a ética auto-suficien-
te. Os valores dão à ética a fé na ética sem justificação exterior ou
superior a ela mesma. Na realidade, os valores tentam fundar uma
ética sem fundamento.
A crise dos fundamentos éticos é produzida por e produtora de:
– aumento da deterioração do tecido social em inúmeros
campos;
– enfraquecimento, no espírito de cada um, do imperativo
comunitário e da Lei coletiva;
– fragmentação é, às vezes, dissolução da responsabilidade
na compartimentação e na burocratização das organizações e em-
presas;
– um aspecto cada vez mais exterior e anônimo da realida-
de social em relação ao indivíduo;

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EDGAR MORIN

– hiperdesenvolvimento do princípio egocêntrico em detri-


mento do princípio altruísta;
– desarticulação do vínculo entre indivíduo, espécie e sociedade;
– des-moralização que “culmina no anonimato da sociedade de
massa, na avalancha midiática e na supervalorização do dinheiro”15 ;
As fontes da ética quase não irrigam mais; a fonte individual
é asfixiada pelo egocentrismo; a fonte comunitária é desidratada
pela degradação da solidariedade; a fonte social é alterada pela
compartimentação, burocratização, atomização da realidade so-
cial e, além disso, é atingida por diversos tipos de corrupção; a
fonte bioantropológica é enfraquecida pelo primado do indivíduo
sobre a espécie.
O desenvolvimento do individualismo conduz ao niilismo,
que produz sofrimento. A nostalgia da comunidade desaparecida,
a perda dos fundamentos, o desaparecimento do sentido da vida e
a angústia que disso resultam podem acarretar a volta aos antigos
fundamentos comunitários nacionais, étnicos e/ou religiosos que
trazem segurança psíquica e religação ética. O comunismo foi,
para muitos intelectuais naufragando na angústia niilista, uma re-
ligião da salvação (terrestre), comportando uma integração da ética
na finalidade suprema: “Tudo o que serve à revolução é moral”16.
O século XX, século do individualismo, viu muitas adesões dos
indivíduos mais críticos à fé nacional e à fé totalitária, que inte-
gram totalmente a pessoa e fornecem-lhe uma certeza ética.
Num outro sentido, uma parte da adolescência contempo-
rânea, na deterioração do tecido social, na perda da consciência
de uma solidariedade global, no desaparecimento de um Superego
cívico, recria uma microcomunidade de tipo arcaico num bando
ou numa gangue comportando uma ética envolvente (a defesa do
território, a honra, a lei de talião). Assim, uma ética comunitária
reconstitui-se na ausência de uma ética cívica.
O abismo niilista resultante da individualização extrema e
a decomposição do tecido social surgida às margens da civiliza-
ção determinam, portanto, pela reintegração no seio de uma co-
munidade, restaurações éticas de caráter regressivo.
As gangues juvenis e os retornos à religião revelam, cada
um à sua maneira, a crise ética geral em nossa civilização. Essa
crise tornou-se visível, há alguns anos, com o surgimento de uma

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O MÉTODO 6

necessidade de ética. A desintegração social, o crescimento de


todos os tipos de corrupção, a onipresença dos atentados à civili-
dade e o desencadeamento da violência suscitam a demanda in-
gênua de uma “nova ética” para ocupar o vazio que já não pode
ser preenchido pelo costume, pela cultura, pela cidade. Não me-
nos ingênuo é o desejo de adaptar a ética ao século em lugar de
pensar uma dupla adaptação em círculo: adaptar o século à ética,
adaptar a ética ao século.
A ética, isolada, não tem mais um fundamento anterior ou
exterior que a justifique, embora possa continuar presente no indi-
víduo como aspiração ao bem ou repugnância ao mal. Só tem a si
mesma como fundamento, ou seja, seu rigor, seu sentido do dever.
É uma emergência17 que não sabe do que emerge. Certo, a ética,
como toda emergência, depende das condições sociais e históricas
que a fazem emergir. Mas é no indivíduo que se situa a decisão
ética; cabe a ele escolher os seus valores18 e as suas finalidades.

Nutrir a ética nas suas fontes

A ética tem fontes, raízes, está presente como sentimento


do dever, obrigação moral; permanece virtual dentro do princípio
de inclusão, fonte subjetiva individual da ética.
Doravante a ética só tem a si mesma como fundamento,
mas depende da vitalidade do circuito indivíduo/espécie/socieda-
de, cuja vitalidade depende da vitalidade da ética.
Vale repetir: o ato moral é um ato de religação: com o ou-
tro, com uma comunidade, com uma sociedade e, no limite,
religação com a espécie humana.
A crise ética da nossa época é, ao mesmo tempo, crise da
religação indivíduo/sociedade/espécie. Importa refundar a ética;
regenerar as suas fontes de responsabilidade-solidariedade signi-
fica, ao mesmo tempo, regenerar o circuito de religação indiví-
duo-espécie-sociedade na e pela regeneração de cada uma dessas
instâncias. Essa regeneração pode partir do despertar interior da
consciência moral19 , do surgimento de uma fé ou de uma espe-
rança, de uma crise, de um sofrimento, de um amor e, hoje, do
chamado vindo do vazio ético, da necessidade que vem da deteri-
oração ética.

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EDGAR MORIN

Não se trata, portanto, para nós de encontrar um novo fun-


damento para a ética, mas, ao mesmo tempo, de dar-lhe novas
fontes, novas energias e de regenerá-la no circuito de religação

indivíduo espécie sociedade

Haveria, fora dessa retomada de forças pelo retorno às fon-


tes e dessa religação antropológica, um retorno às origens e uma
religação quase primordiais, vindas da origem do mundo através
de 15 bilhões de anos-luz? É o tema do nosso próximo capítulo.

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