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Associação

 Nacional  dos  Programas  de  Pós-­‐Graduação  em  Comunicação  


XXVI  Encontro  Anual  da  Compós,  Faculdade  Cásper  Líbero,  São  Paulo  -­‐  SP,  06  a  09  de  junho  de  2017  

A ESTÉTICA QUE VEM1


The coming aesthetic
César Guimarães 2

Resumo: Este artigo aborda a experiência estética em dois contextos distintos: uma
oficina de fotografia junto às mulheres do povo Tikmũ’ũn (índios Maxakali da
Aldeia Verde, Minas Gerais) e o processo de criação do escultor José
Bezerra, do Vale do Catimbau, Pernambuco. Numa e noutro, a dimensão
sensível da experiência é atravessada e constituída pelas forças sociais e
cosmológicas.

Palavras-Chave: Experiência estética. Sensível. Regime estético da arte.

Abstract: This article approaches the aesthetic experience in two distinct contexts:
a photography workshop with the women of Tikmũ'ũn people (Maxakali Indians of
Aldeia Verde, Minas Gerais) and the process of creation of the sculptor José
Bezerra, from Catimbau Valley, Pernambuco. In one and the other, the sensible
dimension of experience is crossed and constituted by social and cosmological
forces.

Keywords: Aesthetic experience. Sensible. Aesthetic regime of art.

1. Apresentação

À sombra de qual animal nós existimos? Qual é o bicho ou qual é a árvore que, em nós, faz falar o nosso
silêncio?

Marie-José Mondzain

Esta intervenção foi extraída de uma experiência vivida em abril de 2015,


quando Isael Maxakali e Suely Maxakali ofereceram aos alunos de graduação da
UFMG o curso “Cosmociências: Cinema e pensamento Maxakali”, no qual
apresentaram e comentaram seus filmes e fotografias. Inserido no âmbito do
Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais, o curso teve o professor André
Brasil e eu como parceiros dos cineastas indígenas. Os apontamentos aqui esboçados provêm
da escuta de diferentes vozes: os comentários de Isael e Suely nas aulas que presenciamos, as
descobertas da etnomusicóloga Rosângela Pereira de Tugny, em seu admirável trabalho com

1
Trabalho apresentado ao GT “Comunicação e experiência estética” do XXVI Encontro Anual da Compós,
Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017.
2
Professor Titular do Departamento de Comunicação Social da UFMG. E-mail: cesargg6@gmail.com

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os cantos e narrativas dos Tikmũ’ũn (conforme os Maxakali se auto-denominam) e as


instigantes proposições de André Brasil acerca do cinema indígena (em especial, sobre as
modalidades de incidência do fora-de-campo cosmológico no campo cinematográfico).
Ao observar como os filmes e as fotografias feitos pelos Maxakali causavam
um vívido estranhamento nos alunos – para além do exotismo ou da idealização que,
em situações como essa, costumam atenuar ou limar os traços da alteridade que se
expõem diante de nós – pensamos em sugerir como as imagens Tikmũ’ũn oferecem
um tipo de experiência sensível aos seus espectadores (não-indígenas) que desafia os
padrões de que dispomos para caracterizar o fenômeno estético. Para tanto, valemo-
nos, de saída, das proposições de Martin Seel, para quem a experiência estética pode
ocorrer plenamente fora do circuito institucional das artes e dos seus objetos, que
são guiados por uma modalidade específica de percepção (2014, 29). Tal
perspectiva, entretanto, não deve nos levar a universalizar a experiência estética,
concedendo-lhe uma pretensa presença em todas as sociedades, nem valer-se dela
como um enganoso tradutor que viria recobrir com os nossos termos os eventos e as
experiências que ocorrem em outras sociedades e com outros povos, orientadas por
princípios e valores – não raro – inconciliáveis com os nossos.
Assim, quando acontece de certas criações de outras povos e de outras
culturas se apresentarem diante de nós para serem experimentados esteticamente,
podemos começar por indagar como e porquê elas desestabilizam as atitudes e os
repertórios que habitualmente acionamos para apreendê-las. Com o intuito de
descrever as dificuldades que tal situação nos traz, propomos uma breve visita à
pequena e longínqua Aldeia Verde, no município de Ladainha, Minas Gerais. Ali, a
espessura de outro espaço-tempo desafia – sem alarde e sem ressentimento – as
bases eurocêntricas do nosso modo de pensar e a mono-episteme que impera nas
universidades brasileiras (para lembrar as palavras de José Jorge de Carvalho, com
seu empenho em promover o encontro entre os mestres dos saberes tradicionais e o
pensamento científico desenvolvido pela academia). 3

3
A primeira elaboração dessas ideias se deu por ocasião de uma apresentação no Seminário Internacional “Por
uma estética do século XXI”, realizado no Museu de Arte do Rio de Janeiro, de 25 a 27 de agosto de 2015. José
Jorge de Carvalho, antropólogo da UnB, coordenador do Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa
(INCTI) foi quem criou o Encontro de Saberes, projeto no qual a universidade acolhe os saberes das mestras e
mestres das culturas populares, indígenas e afro-descendentes. Confira a instigante perspectiva do projeto em

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2. Vir em sonho, agir no real

Poderia uma imagem vir como um sonho vem? Poderia uma imagem vir em
sonho e agir no real, sem permanecer apenas como um resíduo do imaginário,
mantido e cultivado à parte, ou uma fantasia encerrada na interioridade de alguém,
como o seu pequeno segredo? Poderia um canto chegar, como um animal que
aparece à porta de nossa casa, errante – escorraçado de outro lugar ou fugido de
uma floresta devastada (seja ontem ou há centena de anos), e nos trazer um sinal que
tememos ou que nos salvará?
Alguém sonha com um parente que o convida para caminhar pela mata (que
sobrevive tão mais tenazmente como universo cantado quanto mais diminuem as
espécies animais e vegetais que um dia a povoaram). Ao aceitar a comida oferecida
pelo parente desaparecido, o sonhador torna-se o comensal de uma aparição. Coisa
terrível, relembrada com temor logo ao acordar, ao se esfregar os olhos; mas isso
não traz o alívio costumeiro quando se desperta de um pesadelo. O sonhador acorda
doente. Ao entardecer, o pajé vem visitá-lo e pede a ele que se recorde do canto do
povo-espírito com o qual sonhou. Seria com o canto nostálgico e saudoso de
Mõgmõka, o gavião-espírito? Ou com o de Xunin, o morcego-espírito? Os mais
velhos conversam longamente sobre a construção do repertório de cantos que pode
retirar do corpo do doente os espíritos ruins que dele se apossaram. Escolhidos os
cantos, as pessoas da casa e da vizinhança passam a noite em claro, cantando. Dentre
os cantos, inumeráveis, eles entoam o de Xamoka, a andorinha-espírito. De manhã
cedinho, as crianças aspergem água pelos cômodos da casa do convalescente,
molhando a terra batida.
Ao escutar esse relato de Suely Maxakali sobre o canto benfazejo de Xamoka,
a andorinha-espírito, começamos a indagar, quase sob a forma de um devaneio, se
uma imagem também não poderia chegar dessa maneira, como uma cura ou o fim de
um tormento. E se isso fosse possível, qual seria a marca da experiência que ela
inauguraria para aquele que a recebe, que a toma como um evento a ser sentido?

http://www.inctinclusao.com.br/encontro-de-saberes/encontro-de-saberes. Nossa iniciativa foi inspirada nas


proposições de José Jorge de Carvalho.

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Lembremos do final de Os mestres loucos (1955), de Jean Rouch, quando o cineasta


reencontra na frente do hospital psiquiátrico de Accra os homens que, no final de
semana, haviam passado pelo ritual de possessão entre os Houkas. Diante dos rostos
sorridentes dos “melhores operários da Water Works”, que em nada lembravam os
esgares e as convulsões do ritual da véspera, Rouch se pergunta se os africanos não
conheciam certos remédios que lhes permitiam viver perfeitamente integrados ao seu
meio, longe de toda “anormalidade”.
Uma oficina de fotografia ministrada por Ana Alvarenga às mulheres da
Aldeia Verde permitiu que Suely Maxakali registrasse uma das visitas dos diversos
povos-espírito que chegam frequentemente ao território dos Tikmũ’ũn (não por
acaso, a casa de religião, construída de costas para a aldeia, volta-se para fora,
pronta a receber os visitantes). 4 Primeiro, no fim da tarde, chegou um homem-
espírito, em atendimento ao pedido de uma doente. Em seguida as tartarugas-espírito
tomaram o pátio e iniciou-se uma brincadeira entre elas, as moças e as mulheres.
Antes do amanhecer, na madrugada, as mulheres encheram as vasilhas d’água para
molhar as andorinha-espírito, que acabavam de chegar.

4
O relato de Ana Alvarenga encontra-se no livro Koxuk Xop/Imagem. Fotógrafas Tikmũ’ũn da Aldeia Verde.

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FIG.1 Andorinha-espírito (Foto: Suely Maxakali)


FONTE: ALVARENGA, 2009.

É essa passagem por um acontecimento que chega e transforma aqueles a


quem alcança, que gostaríamos de tomar como parâmetro ao perguntar pelo tipo de
experiência que a aparição da imagem poderia proporcionar. Este exemplo tem algo
de desconcertante, mas cremos que ele é útil para comparamos aquilo que nós e
outros povos (como os ameríndios, por exemplo) obtêm de experiências sensíveis
que tem valor de evento. Trata-se menos de discutir se objetos de culturas distintas
são capazes de despertar uma “reação estética” sob o crivo de uma “semântica da
linguagem da apreciação artística”, como quer Arthur Danto (2011, p. 159), do que
compreender as conexões outras (para além do âmbito institucional da arte),
acionadas por fenômenos cujas formas expressivas se impõem de tal modo que
extravasam a atitude de apreciação dos elementos sensíveis por parte de um sujeito.
Aliás, o que está em questão, como criticou Els Lagrou, são justamente os
critérios utilizados para se estabelecer a distinção entre os objetos artísticos das
culturas ocidentais (tomados como autônomos e oferecidos à contemplação) e os
artefatos da cultura indígena, circunscritos ao uso e à sua função na vida social dos
povos que os produzem (2010, p. 20). Se podemos visar esse problema sob uma nova
angulação concedida à maneira como experimentamos sensivelmente certos
fenômenos – para além dos horizontes da estética filosófica – devemos nos livrar dos
enganos produzidos pelas tentativas de identificação a avaliação dos atributos ditos
“artísticos” das invenções dos povos indígenas: a cestaria, a arte plumária, as
máscaras, a arte das miçangas, os adereços, a pintura corporal, a tecelagem e tantas
outras mais.
Como reivindica Lagrou, ao adotar uma abordagem praxiológica, podemos
atribuir uma “eficácia estética” a objetos, ações, eventos e processos que
prescindam da sua caracterização como extraordinários e destinados à unicamente à
contemplação de suas formas, livres, autonomizadas, destituídas de funções e
separadas do cotidiano (2010, p. 20). Numa palavra, podemos reivindicar que não
somente a arte pode transfigurar o lugar comum, assim como essa operação de

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transfiguração pode muito bem prescindir de um sujeito, tal como escreve Emanuele
Coccia: “Se há sensível no universo é porque não há nenhum olho observando todas
as coisas. Não é um olho que abre o mundo, mas é o sensível mesmo que abre esse
mundo diante dos corpos e dos sujeitos que pensam os corpos” (2010, p. 35).
Como identificou Rosângela Pereira de Tugny, as intervenções do povo
Maxakali “diante de qualquer forma de alteridade são essencialmente estéticas”
(2011, p. 24). E se hoje eles se vêm às voltas com a imagem técnica – ao produziram
seus filmes e fotografias – a relação deles com os elementos sensíveis que ela aciona
escapa da noção de representação para se tornar um “evento de extrema intensidade,
que é a aparição, a abertura da visão, a possibilidade de ver e de se dar a ver entre
corpos que estão próximos, mas nem sempre acessíveis ao olhar” (TUGNY, 2011, p.
89).
Contudo, se os ameríndios se abrem à experiência da alteridade sob um modo
estético, nós, ocidentados (neologismo inventado por Lacan), esperamos, na direção
inversa, que a experiência estética nos ofereça algum grau de alteridade, em um
mundo que ou a expulsa (por não suportar a diferença) ou a devora, para dela se
apropriar e retirar sua potência perturbadora (reconhecemos aqui as palavras de
Lévi-Strauss). A essa outra experiência, experiência do outro, Maria Inês de
Almeida, em alusão ao trocadilho lacaniano, denominou Desocidentada, em seu belo
livro dedicado aos textos literários indígenas (2009).
Rosângela de Tugny explica que os Tikmũ’ũn utilizam o termo koxuk
(imagem) para designar os povos-espírito, os yãmĩyxop-cantores que chegam à sua
aldeia. Embora o termo também tenha sido traduzido por linguistas como sombra ou
alma, a etnomusicóloga ressalta:

Koxuk, imagem, não é em definitivo algo que se encontra para nós no


domínio da aparência, da imaterialidade, do invólucro visível ou da
representação, supondo que algo mais verdadeiro repouse na
invisibilidade. Koxuk seria o corpo verdadeiro que se dá a ver em toda sua
plenitude. Estamos aqui novamente em um terreno de confronto entre as
bases profundas de nossas ontologias. Os Tikmũ’ũn mostram-me sempre
os yãmĩyxop, os povos-espíritos, com seus corpos pintados chegando à
aldeia, dizendo-me que “são koxuk”, ou koxukxop” (TUGNY, 2011, p. 88).

Koxukxop foi o título escolhido para o livro de fotografias realizado pelas


mulheres da Aldeia Verde. Considerando que o termo Xop possui a função de

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coletivizar, Tugny traduziu Koxukxop por “povos-imagens”. Para melhor discernir a


diferença entre essas duas ontologias da imagem, a dos Tikmũ’ũn e a nossa,
mencionemos, de passagem, duas observações de Jean-Jacques Wunenburger. Entre
nós, o registro semântico da imagem oscila entre a ideia de forma visível (imago,
forma, bild, gestalt, picture, figure, pattern, frame, shape) e a ideia de conteúdo
irreal, fictício, produção daquilo que não é (eidolon, phantom). Neste caso, a
imagem é menos uma “emanação do real objetivo do que o produto da atividade de
eidolonpoietiké, de fictio (para os latinos), ligada à imaginação, phantastikon, que
engendra os phantasmata (que só se ligam ao real pela aparência).”
(WUNENBUGER, 1997, p. 6). A despeito da variação entre os diferente usos que a
noção recebe, podemos definir a imagem do seguinte modo:
uma representação mediata, mista, que permite, simultaneamente, ligar e
opor dois planos ou duas entidades opostas, sempre pressupostas nas
concepções filosóficas do conhecimento: de um lado, a realidade objetiva
das coisas, que nos é apresentada em uma intuição sensível; de outro lado,
um núcleo de informação abstrata, conceito ou ideia, que nos oferece os
objetos de pensamento independente de sua configuração empírica
(WUNENBURGER, 1997, p. 8).

Embora empregada correntemente, tal definição da função mediadora da


imagem não deixa de ser limitadora. Para Marie-José Mondzain, a imagem não é um
objeto particular alcançado pela visão, mas a condição mesma do visível. Seria mais
apropriado chamá-la de um “não-objeto” que escapa à apreensão exclusiva por meio
da visão. Ao exceder sua visibilidade, a imagem torna visível o que ainda não está
aqui e nos põe a esperar o que virá, aquilo que nosso olhar – partilhado com os que
vêm juntos conosco – qualificará como uma imagem (2011, p. 23). Ela nos põe a
ver, juntos, o que ainda não é visível, e cria assim um espaço intersticial, o lugar do
encontro comum, no qual o espectador é deslocado de uma posição subjetivista,
monádica, assentada em sua experiência interna, para uma situação intersubjetiva,
reconhecido pelo olhar do outro. Mais do que isso: ver com os outros, partilhando o
invisível, é ver a si mesmo como outro: “A imagem é a intimidade do nosso fora, é o
longínquo de nossa intimidade” (2011, p. 61). Operador da extradição e do exílio de
si, a imagem é um ser de fuga que não pode ser possuído nem domado, reforça a
filósofa. Pertencente a um “entre-mundo”, promovedora de trocas entre os vivos e os
mortos, as aparições e as desaparições, a imagem faz entrar no mundo “uma política

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sensível e vibratória das distâncias, a vibração perceptível da ausência”


(MONDZAIN, 2011, p. 10).
Ao estudar dois mitos Maxakali (o da criação dos animais, caídos do céu, e o
da mulher que, inconformada com a morte do marido, vai visitá-lo na aldeia dos
mortos), Tugny nota uma vizinhança semântica entre Koxuk (imagem, sombra,
alma), xokop (os animais, ou povo de mortos) e Xok (morrer, guardar dentro, mas
também semear ou plantar): “O corpo animal é então ao mesmo tempo o corpo dos
ancestrais dos Tikmũ’ũn, a forma dos seus mortos, enquanto seus koxuk são o evento
em que eles se dão a ver aos Tikmũ’ũn” (2014, p. 172). Quando os yãmĩyxop vem
visitar a aldeia, não se trata nunca de uma representação desse povo de mortos, pois,
como observa Tugny, não há “uma distinção entre dimensões separadas e
excludentes para as coisas materiais e as imateriais, as verdadeiras e as falsas, as
essências e as aparências” (2011, p. 89). E se as máscaras, os aerofones, os adereços
rústicos e a pintura corporal guardam um traço de semelhança que permite
identificar os povos-espírito, o seu registro é bem diverso do nosso. Enquanto entre
nós a semelhança na aparência é o traço mínimo definidor da imagem, “a expressão
que eles [Tikmũ’ũn] utilizam para “parecer com”, “assemelhar-se a” é sempre a
mesma que utilizam para “transformar-se em”, yãy hã (TUGNY, 2011, p.89). É
desse modo que a aparição das imagens se torna um evento, conclui a
etnomusicóloga.
Para Tugny, foi a contiguidade entre as mulheres Tikmũ’ũn e os yãmĩyxop (os
povos-espíritos), que permitiram a elas fotografar os rituais de uma maneira tal que
prescindiram de uma mirada externa e de um controle do enquadramento diante dos
eventos: “o alvo da objetiva que elas carregavam residia já dentro dos olhos das
fotografas” (2011, p. 95).

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FIG. 2 Tartaruga-espírito (Foto: Suely Maxakali)


FONTE: ALVARENGA, 2009.

Em razão disso, as bordas do quadro fotográfico perdem seu caráter cortante e


se tornam elásticas, flexíveis, permeáveis ao fora de campo lateral que atrai a ação
para o exterior: no jogo entre as mulheres e os povos-espíritos as perseguições entre
uns e outros concedem ao quadro uma energia centrífuga, e as figuras femininas,
arrastadas pela intensidade do encontro, contagiadas pela presença dos visitantes,
perdem o contorno de suas formas e tornam-se manchas esvoaçantes de cores com
seus vestidos (verde-limão, rosa, vermelho), enquanto o solo, ora amarronzado, ora
ocre esmaecido, perde o seu limite com o verde da vegetação que envolve o espaço e
os tetos cobertos de palha amarelada. Tomado pelos afetos que animam o jogo das
mulheres com os visitantes-espírito, pela excitação da corrida e dos contatos entre os
corpos, ágeis, brincantes, soltos no espaço, o olho se liberta da moldura imposta pela
máquina fotográfica e entra numa deriva, como se rodopiasse, em transe, movendo-
se em um espaço descentrado que não cessa de alterar suas coordenadas.
Podemos lembrar a maneira com que Maurício Lissovsky, ao conceber a

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fotografia como uma máquina de esperar, caracterizou o gesto criativo de alguns


fotógrafos modernos – William Klein, Arthur Omar e Cláudia Andujar, dentre
outros – que “entram em fase” com o universo fotografado (2008, p. 142).
Lissovsky ressalta que nesses autores o borrão e o tremido da imagem não podem ser
reduzidos ao vestígio do movimento, tomados como indicadores da inscrição
material da duração no espaço visível: o que há é um “pôr-se-dentro do instante” que
nos impede de identificar com precisão quando ele começa e quando termina (2008,
p. 142).
E se um desses fotógrafos, Arthur Omar (mencionado por Lissovsky),
concebe o centro da imagem como um “aparelho de sucção violenta, ao qual, um dia,
enviaremos o olho em missão tripulada” (2008, p. 141), para as fotógrafas
Tikmũ’ũn, tão distantes das práticas e dos discursos sobre a arte, trata-se justamente
do oposto: de jamais desprender o olho do corpo, contagiado pela presença dos
povos-espírito. Tugny sublinha que o interdito que pesa sobre o olhar das mulheres,
instruídas a não olhar diretamente nem os espíritos nem os estrangeiros, é
compensado pela proximidade que elas mantêm com os corpos e pelo exercício de
uma visão do imperceptível, concedida pelo canto. (2011, p. 94). Afinal, como
escrevem Deleuze e Guattari, “os movimentos e os devires (...) estão abaixo ou
acima do limiar da percepção” (1997, p. 74).
A princípio, tais afirmações podem soar muito distantes do vocabulário
usualmente empregado para dar conta das preocupações em torno do fenômeno
estético, e em particular, do tipo de experiência peculiar que as imagens nos
proporcionam. Ora, os embaraços trazidos pela aproximação que promovemos, longe
de ser algo de que deveríamos nos livrar, são na verdade, constitutivos da Estética,
como tem indicado Jacques Rancière em sua formulação em torno da partilha do
sensível. Sem a pretensão de sistematizar os variados ângulos com que ele já visou o
tema, resumiremos alguns aspectos que nos permitem arriscar uma aproximação
entre as ideias do autor e a questão que apresentamos nesse artigo.

3. A alteração da cena sensível

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Ao circunscrever o termo "estética" a um regime de identificação da arte –


social e historicamente construído – Rancière mostra que, a cada vez que surge um
discurso que procura identificar o que é próprio da arte, trata-se de uma operação
que promove um recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do
comum e do singular, e que configura, a cada vez, uma partilha do sensível. Para o
autor, o mal-estar atual provocado pela estética se deve à inter-relação entre dois
escândalos dos quais ela é acusada de ser cúmplice: o surgimento de uma arte que
"acolhe em suas formas e em seus lugares os objetos de uso e as imagens da vida
profana"; e de outro as "promessas exorbitantes e enganosas de uma revolução
estética que queria transformar as formas da arte em formas de uma vida nova"
(2004, p. 25). O presente pós-utópico da arte – tempo no qual vivemos – comporta
dois modos de reagir a esses dois escândalos: uma, adotada pelos filósofos e
historiadores da arte, procura "isolar a radicalidade da pesquisa e da criação
artísticas das utopias estéticas da vida nova", comprometidas com os projetos
totalitários ou com a estetização mercantil da vida (2004, p. 31). Surge aí uma
defesa da radicalidade da arte concebida como "potência singular de presença, de
aparição e de inscrição", que rompe com a experiência ordinária.
A outra atitude, adotada pelos artistas e pelos profissionais das instituições
artísticas, se distancia tanto daquelas utopias estéticas que desejaram transformar as
formas da arte em formas de vida quanto desta radicalidade da forma artística
radicalmene separada da vida: marcada agora pela modéstia, a arte abre mão tanto da
sua capacidade de transformar o mundo quanto da singularidade de seus objetos. Ao
invés de buscar a instauração do mundo comum através da singularidade absoluta de
sua forma, tal modalidade de arte procura dispor de uma nova maneira "os objetos e
as imagens que formam nosso mundo comum já dado", ou então, cria "situações
apropriadas para modificar nossos olhares e nossas atitudes a respeito desse meio-
ambiente coletivo" (2004, p. 33-34). Embora distintas, ambas atitudes "reafirmam
uma mesma função comunitária da arte: a de construir um espaço específico, uma
forma inédita de partilha do mundo comum" (2004, p. 35).
Resta saber como essa cena sensível da estética que nos é contemporânea
poderia ser modificada pela presença das imagens criadas pelos Tikmũ’ũn…
Atualmente, diversas criações indígenas tem adentrado os espaços dos museus e

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galerias de arte, e não apenas aqueles que carregam o selo das pesquisas
etnográficas. Porém, como se não bastasse o fato da epistemologia indígena ter sido
confinada ao domínio domesticado da arte – como critica Viveiros de Castro (2008,
p. 142) – volta e meia a chamada arte indígena ainda se vê desprovida dos atributos
e propriedades característicos dos objetos artísticos estudados e consagrados pelas
instituições não-indígenas. Para não incorrer na ardilosa divisão entre os povos que
designam como arte um tipo de experiência sensível fornecida por eventos,
processos e objetos selecionados, e aqueles outros povos que não circunscrevem a
vida sensível aos objetos artísticos, mencionaremos um outro exemplo, oferecido por
André Brasil, e que também guarda uma misteriosa relação com o mundo indígena.

4. O animal que vem

No Vale do Catimbau, sertão de Pernambuco, um homem, outrora predador de


animais e lenhador, acorda um dia do sonho que o mandara esculpir em madeira os
animais que matara e comera. Ele sai pelo mato farejando as formas futuras que
surgirão dos galhos tortuosos da umburana. Assombrado que pelo desapareceu, pelo
que ele próprio destruiu com faca e machado, ele agora vive cercado por aquilo que
dura na forma: em volta de sua casa, centenas de esculturas de madeira povoam o
terreiro. As aparições tomam o lugar dos bichos desaparecidos.
Os animais nos espreitam, escondidos na matéria mutante do mundo. E se eles
se revelam a nós, trata-se menos de uma contemplação (de nossa parte) do que de
nossa capacidade – por força de qual atração ou espanto? – de farejar a sua
presença no nosso entorno, assim como eles fazem conosco.

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FIG. 3 – O terreiro dos animais


FONTE: Catálogo da Exposição José Bezerra – 2009 (curadoria de Rodrigo
Naves).

É o próprio escultor, José Bezerra, descendente do povo indígena Fulni-ô,


quem diz que fareja a forma por vir na matéria da madeira, ainda informe ou com o
formato e função que a natureza lhe dera. Por um viés surpreendente e astucioso,
reencontramos aqui a fórmula que Rancière cunhou para definir o regime estético da
arte, quando já não é mais possível se apoderar de uma matéria para conceder-lhe
uma forma. Ao comentar o conflito interno que rege a obra de José Bezerra, Rodrigo

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Naves se vale de termos que, para nós, encontram uma equivalência com a
concepção do “regime estético” em Rancière:
José trabalha em geral com toras retorcidas, típicas da vegetação do lugar, como é o
caso da umburana. Esse aspecto irregular, unido aos poucos talhos que as
conformam, produz um resultado notável. A definição oscilante das figuras se une à
tortuosidade da madeira, e essa relação faz com que percebamos formas que
parecem lutar para emergir, em meio ao embate entre a matéria vegetal e a
intervenção escultórica rude e parcimoniosa. Vem daí a expressividade singular de
suas obras, que parece não derivar do conflito entre as paixões individuais e a
avareza do mundo, como é corrente, e sim de uma realidade que, cindida e
conturbada, revela um conflito interno que retarda sua definição e aparecimento.

Seus bichos, corpos e rostos não têm a doçura de grande parte da chamada arte
popular, feita de afeto e familiaridade com os materiais, que advém de sua
proximidade com o artesanato e da necessidade de tirar o melhor proveito da
madeira, da argila ou da pedra por meio de técnicas rudimentares. Ao contrário,
fazer e figuração parecem estranhar-se reciprocamente, ainda que ao fim cheguem a
uma unidade (NAVES, 2009, p. 8)

No mundo de José Bezerra, se a matéria ao mesmo tempo resiste à forma e


permite obter uma configuração expressiva que lhe será concedida, é porque a
madeira é atravessada por outras forças que a cercam, situada numa região da
experiência que lhe impede de ser simplesmente uma coisa à disposição do homem.
Se algo é ditado em sonho ao escultor é porque no seu umbigo (o do sonho, para
falar com Freud) age um inconsciente duplamente atravessado: pelos componentes
do socius e do cosmos. O mundo social também assombra, e o trauma é como uma
cicatriz que o formão do escultor percorre, encarregando-se de dar seguimento à
semelhança que desponta, incerta, imprecisa, mas sem nunca alisá-la. Ela permanece
áspera, mal-aparada, não-domesticada. No documentário José Bezerra: aulazinha
com a madeira (de Malu Viana Batista), o escultor aponta para um pedaço de
madeira no qual antevê a forma futura. Ele diz que trata-se de um bicho baleado,
com a pata quebrada, cujos olhos procuram pelo caçador que o atingiu. O animal por
vir, esculpido em madeira, assombrado pela sua desaparição violenta, procura pelo
seu predador e nos interpela, exibindo uma queixa, ou melhor, um dano – para
deslocar o conhecido termo empregado por Rancière – que não pode ser julgado
unicamente pelo tribunal dos humanos. A forma que dura (como o escultor diz) não
pode esquecer a violência que se abateu sobre os bichos um dia. O terreiro do
escultor está povoado por uma matilha de animais que nos assombram, pois que
reaparecem depois de mortos.

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FIG. 4 – O bicho baleado


FONTE: José Bezerra: aulazinha com a madeira (Malu Viana Batista)

Ocorrem-nos aqui as palavras de Marie-José Mondzain, ao perguntar se as


imagens não nos dariam energias xamânicas:
O animal “imageant” está no centro do homem pensante e, ao mesmo
tempo, o priva de toda centralidade. Arrancar a imagem à animalidade, eis
o que quiseram os pensadores cristãos ao apostarem no “homme imagé”
contra o animal. O que eles ganharam em termos de reino e poder,
perderam em força de indeterminação e liberdade. O cristianismo é a
fundação antropológica da imagem em ruptura com a natureza inteira.
Fazer do homem um caso de exceção, uma finalidade da criação divina. O
que o poder ganhou com isso ele perdeu em convivência com os bichos e
os deuses. Os xamãs sabem muito bem disso. (2011, p. 66-67). 5

Em contraposição ao elogio da sensação (tantas vezes reduzida a uma


dimensão subjetivista) ou das propriedades irredutíveis do objeto artístico, para
outros povos e em outros contextos (não-eurocêntricos), o que nós chamamos de
experiência estética para eles ocorre em uma região da experiência que se avizinha
das intensidades variáveis do cosmos. Aqui, como escreveram Deleuze e Guattari, o
“ser de sensação” torna-se o “composto das forças não humanas do cosmos”, dos

5
Para resguardar a especificidade das noções criadas por Mondzain, optamos por não traduzir os dois termos, já
que tanto “animal imaginante” quanto “homem imaginado” desvirtuam as ideias da autora. Seria possível adotar
um neologismo e falar de “homem imageante” e de “homem imajado” (neste caso, a figura do Cristo, tal como
surge na Encarnação), mas isso nos pareceu algo forçado.

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“devires não-humanos do homem” (1992, p. 236). Tais devires são bem reais, e não
se confundem nem com os sonhos nem com os fantasmas, os autores destacam
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 18). E se se trata de vizinhança (entre os homens,
os animais, os espíritos), ela não é apenas topológica, mas principalmente molecular,
regida por intensidades e vibrações.
Não podemos aproximar, abruptamente, as formulações de Rancière e as de
Deleuze acerca do sensível, sabemos bem. Apesar de reconhecer a dificuldade de
desenrolar (em outra língua) o “novelo deleuzeano”, Rancière puxa para si um fio
que lhe permitirá afirmar que Deleuze se interessa pela estética não como
disciplina, mas pela potência de pensamento que habita o sensível e que o excede
em seu regime normal. Para Deleuze, o “ser de sensação” de que é feita a obra de
arte (sobretudo moderna) vem rasgar o tecido da doxa (o princípio mimético que
submete as obras ao regime representativo, definindo sua produção segundo certas
regras), da figuração e da opinião para instaurar a imanência do pathos ao logos
(2009, p. 509). Rancière ressalta que, ainda que o pensamento-árvore ou o
pensamento-seixo, ao desfazer a ordem da doxa, seja resgatado em um logos ou
em organismo de novo tipo, Deleuze insistirá sempre no combate que a obra trava
para fazer valer esse sensível puro ou incondicionado, capaz de por em crise –
desfigurando ou desfazendo – sua forma orgânica. Gesto paradoxal, que sela o
destino da estética, afirma Rancière, quando o pensamento acerca das regras de
produção da obra dá lugar a “um produto que se iguala a um não-produto, um
consciente que se iguala ao inconsciente” (2009, p. 512).
Se Rancière se interessa pelo sensível, isso não se manifesta na atenção à
gênese da sensação (em seus qualia) e na sua na passagem para as formas
organizadas da percepção, tal como se dá quando a obra ou evento são
experimentados pelos sujeitos. E Deleuze e Guattari, muito menos, também não
militam por uma estética das qualidades puras, mas pelo devir que delas se
apodera (1997, p. 108). Rancière, por sua vez, se interessa pelo deslocamento que
um arranjo peculiar de uma forma sensível (que não se restringe às práticas da
arte) introduz no regime que organiza as relações entre o visível e o dizível, e que,
assim fazendo, prescreve os lugares, as identidades e as ações dos sujeitos. Essa
dimensão do sensível, submetido a alguma forma de composição e organização no

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âmbito das obras e dos eventos conta muitíssimo, pois é dessa maneira que o
sensorium da dominação pode ser confrontado (JDEY, 2013, p. 14).
Certamente, esse fio que Rancière puxou do pensamento deleuzeano foi
entremeado às suas próprias formulações. Ao caracterizar a racionalidade do “regime
estético das artes”, Rancière afirma que ele possui uma complexidade que não pode
ser simplesmente decretada pelo discurso filosófico, pois concerne tanto aos
critérios imanentes da criação artística quanto às forças que inscrevem nas obras a
marca do Outro: “respiração de uma sociedade, sedimentação da matéria, trabalho do
pensamento inconsciente” (2002, p. 19). O regime estético das artes é guiado por
uma tensão entre dois pares de contrários: ao mesmo tempo em que identifica a
potência da arte ao imediato de uma presença sensível, ele faz entrar na vida das
obras o trabalho da crítica que as altera e lhes concede reescrituras e metamorfoses
diversas; ele afirma a autonomia da arte e também multiplica a descoberta de belezas
inéditas nos objetos da vida ordinária, ou apaga a distinção entre as formas de arte e
aquelas outras do comércio ou da vida coletiva.
Rancière afirma que os conceitos que designam o que é próprio da arte
dependem de uma “mutação das formas da experiência sensível, das maneiras de
perceber e ser afetado (2011, p. 10-11). Tais conceitos – que designam as condições
de emergência da arte – formulam um modo de inteligibilidade das diferentes
reconfigurações da experiência, denominadas “cenas do regime estético da arte”.
Uma cena – o filósofo define– “é uma pequena máquina ótica que nos mostra o
pensamento ocupado em tecer os liames que unem as percepções, os afetos, os
nomes e as ideias, e a constituir a comunidade sensível que esses liames tecem e a
comunidade intelectual que torna o tecido pensável”, já que, a princípio, o
pensamento é sempre “um pensamento do pensável, um pensamento que modifica o
pensável ao acolher o que era impensável” (2011, p. 12).
A singularidade das cenas estéticas constituídas pelas fotografias de Suely
Maxakali e de José Bezerra, tão fortemente marcadas pelos processos de
expropriação e de violência que vem moldando perversamente a sociedade brasileira
desde a sua fundação, consiste em afirmar a presença de um Outro – para retomar o
termo de Rancière, mas nele destacando sua feição de múltiplo – que exige que o
comum criado pelas imagens seja capaz de acolher não somente os sujeitos que

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habitam o espaço da pólis, mas as entidades não-humanas dotadas de agência – a


natureza, os espíritos e os animais – tal como tem enfatizado as abordagens do
perspectivismo ameríndio. Como tem destacado André Brasil, em diferentes filmes
realizados por cineastas indígenas a cena fílmica se vê coabitada não apenas pela
pluralidade dos homens (para lembrar os conhecidos termos de Hannah Arendt para
definir a política), mas é alterada ou alienada – ora sutil, ora radicalmente – pela
abertura que concede à multiplicidade das formas de vida que vem habitá-la,
transfigurando-a em uma cena cosmopolítica. Nesses filmes, o ser sensível das
imagens ganha não apenas outras qualidades visíveis, mas se metamorfoseiam
justamente porque são afetadas pelo invisível, num entrelaçamento entre duas
máquinas, uma fenomenológica e outra cosmológica:
Em termos fílmicos, a forma como essas duas máquinas, fenomenológica e
cosmológica, se relacionam traduz-se de forma indireta, não mimética, pela relação
entre o campo e o fora-de-campo – aqui definido simplesmente como aquilo que
não está visível em cena, mas que nela incide. Em sua dimensão cosmológica, o
fora-de-campo será um lugar contíguo à aldeia, abrigando contudo mundos outros,
arriscados, habitados por animais-espíritos, por agências e potências não humanas
da floresta (BRASIL; BELISÁRIO, 2016, p. 606).

A essa outra experiência sensível oferecida pelas imagens – capaz de abrigar


humanos, animais e povos-espíritos no quadro fotográfico ou na cena fílmica –
poderíamos chamar, quem sabe, de uma estética da hospitalidade.

Referências
ALMEIDA, Maria Inês de. Desocidentada. Experiência literária em terra indígena. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2009.
ALVARENGA, Ana (Org). Koxuk Xop/Imagem. Fotógrafas Tikmũ’ũn da Aldeia Verde.
Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
BRASIL, André. Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo. Devires, vol 9, n.1, 2012.
___. O olho do mito: perspectivismo em Histórias de Mawari. Eco-Pós, 2013, 15/3.
BRASIL, André; BELISÁRIO, Bernard. Desmanchar o cinema: variações do fora-
de-campo em filmes indígenas. Sociologia & Antropologia, vol. 6, n. 3.
COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.
DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar-comum. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
____. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997.
JDEY, Adnen. En guise d’introduction: l’image aux aguets. Le regard indiscipliné de Jacques
Rancière. In: JDEY, Adnen (Org). Politiques de l’image. Questions pour Jacques
Rancière. Bruxelles: La lettre volée, 2013.
MONDZAIN, Marie-José. Images (à suivre). Paris: Bayard, 2011.

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NAVES, Rodrigo. Natureza e expressão. Catálogo da exposicão José Bezerra. Galeria


Estacão, São Paulo, 2009.
RANCIÈRE, Jacques. Existe uma estética deleuzeana? In: ALLIEZ, Eric (Org.) Gilles
Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2009.
___.Le ressentiment anti-esthétique. Magazine Littéraire, n. 414, nov. 2002.
___. Malaise dans l'esthétique. Paris: Galilée, 2004.
___. Aisthesis. Scènes du régime esthétique de l’art. Paris: Galilée, 2011.
SEEL, Martin. No escopo da experiência estética. In: PICADO, Benjamin; MENDONÇA,
Carlos Magno Camargos; FILHO, Jorge Cardoso (Org). Experiência estética e
performance. Salvador: EDUFBA, 2014.
SZTUTMAN, Renato (Org). Encontros: Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro:
Azougue, 2008.
TUGNY, Rosângela Pereira. Escuta e poder na estética Tikmũ’ũn. Rio de Janeiro: Museu do
Índio, 2011.
____. Filhos-imagens: cinema e ritual entre os Tikmũ’ũn. Devires, vol 11, n.2, jul./dez. 2014.
WUNENBURGER, Jean-Jacques. Philosophie des images. Paris: PUF, 1997.

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