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INTRODUÇÃO
A crítica da alienação vem sendo discutida há um bom tempo e por uma vasta gama de
autores, no entanto, atualmente este interesse de estudo não diminuiu, muito pelo contrário,
intensificou-se, se mostrando como urgência sócio-histórica.
Muito tem se discutido em torno dos Manuscritos econômicos-filosóficos de Marx, no
qual se encontra, dentre muitas reflexões, o conceito de alienação. Sem dúvida, esta foi à obra
filosófica mais trabalhada do século XX, todavia, foi deixado de lado o fato de esta ser uma
das obras filosóficas mais complexas da história da humanidade.
Paradoxalmente, a maestria de Marx em produzir “aforismos citáveis” – porém, inter-
relacionados e multifacetados – criou uma falsa impressão de simplicidade na leitura dos
Manuscritos. Por isso, ler esta obra sem a preocupação de remontar suas conexões complexas
com as demais obras de Marx acarreta, necessariamente, numa interpretação simplificadora,
isolada e errônea dos seus conceitos. De fato, é muito mais fácil abstrair tais conexões – como
fazem muitos comentadores – se focando em algum aspecto isolado da obra de Mar.
Os escritos da juventude de Marx foram classificados por Althusser como
“enigmaticamente claros”, logo, qualquer leitor que procure transcender sua “aparência de
simplicidade” precisa encarar algumas dificuldades:
Em primeiro lugar, precisamos destacar o caráter fragmentário dos Manuscritos de
1844. Tratam-se de comentários e reflexões sobre economia política e sobre a filosofia
hegeliana, os quais, embora possam parecer de simples apreensão, ainda assim, jamais podem
ser compreendidos em sua profundidade, caso não sejam analisadas num sentido mais amplo.
Em segundo lugar, há as complexidades da linguagem, das quais destacamos três
principais (é claro que a primeira não se aplica ao texto original):
A primeira delas expressa-se nas dificuldades da tradução, tendo em vista que
palavras como Aufhebung, por exemplo, têm muitos significados distintos tais como:
transcendência, superação, substituição por algo de maior nível, entre outros.
A segunda delas refere-se à inadequação da estrutura conceitual, ou seja, por causa da
invasão da tradição inglesa de pensamento na filosofia – isto é, a hegemonia do formalismo
empirista e positivista –, os termos e conceitos utilizados por Marx parecem, num primeiro
momento, estranhos e contraditórios em si mesmos. Isso acontece, porque esta filosofia está
habituada com o caráter simplista e linear do positivismo, por isso, não é capaz de
compreender a essência dialética da filosofia marxiana. Por exemplo, o homem em Marx não
é somente um “humano” ou apenas “animal”, mas as duas coisas. “Ou seja, o homem é o ‘ser
universal da natureza’ somente porque ele é o ‘ser especifico da natureza’, cuja especificidade
singular consiste precisamente em sua universalidade singular, em oposição à parcialidade
limitada de todos os outros seres da natureza 1” (MÉSZÁROS, 2006. p. 19). Sem uma
apreensão dialética destes postulados não é possível apreender o significado total e a
consistência das ideias cruciais da filosofia de Marx.
A terceira delas, diz respeito à ambiguidade terminológica, ou seja, como Marx se
dedicou em dialogar com seus contemporâneos, usando os próprios conceitos destes autores
para criticá-los. Isso gerou um certo contraste entre as terminologias dos filósofos criticados
por Marx e o significado que ele mesmo dava para elas – o qual chegava ao ponto de esvaziar
por completo o significado tradicional que estes termos tinham. Por exemplo, a noção de
“auto-estranhamento” de Feuerbach, a noção de “essência humana”, entre outras. Contudo,
uma atenta contextualização histórica destes termos, bem como a explanação da forma como
são utilizados por Marx, facilitam muito o seu entendimento.
Em terceiro lugar, é necessário destacar a complexidade do conceito-chave de
alienação. A noção de alienação em Marx se expressa de quatro maneiras:
1) Alienação do homem em relação à natureza;
2) Alienação do homem em relação a si mesmo;
3) Alienação do homem em relação a seu “ser genérico2”;
4) Alienação do homem em relação aos outros homens.
A primeira dessas quatro situações representa a alienação do trabalhador em
correspondência com o produto do seu próprio trabalho3.
Na segunda circunstância, a alienação manifesta-se dentro do processo de trabalho –
no ato de produção –, ou seja, quando a relação do trabalhador com sua própria atividade
aparece para ele de forma alheia, como se pertencesse a outra pessoa e não lhe oferece mais
1
Para entender tais colocações é preciso de um curso inteiro da Maria Orlanda, mas, a essência do alerta de
Mészáros é muito pertinente, pois, sem um contato próximo com a dialética, torna-se impossível compreender os
principais eixos norteadores do pensamento de Marx, inclusive da sua noção de alienação.
2
O gênero humano não é só mais uma classificação positivista do ser humano enquanto homo sapiens, para além
disso, destaca a capacidade da nossa espécie de produzir suas próprias propriedades, bem como transformar a
natureza e a si mesmo através do seu trabalho. Tudo isso, soma a noção de gênero uma propriedade ontológica,
ou seja, de construção do ser humano enquanto um sujeito histórico em processo de enriquecimento histórico.
3
“Tá vendo aquele edifício moço/Ajudei a levantar…/Hoje depois dele pronto/Olho pra cima e fico tonto/Mas
me vem um cidadão/E me diz desconfiado/ ‘Tu tá aí admirado ou tá querendo roubar’…”.
satisfação – a realização humana então só acontece a partir do momento que o trabalhador se
livra do trabalho por meio da venda. Marx denomina a alienação em relação a natureza de
“estranhamento ante a coisa” e a alienação em relação a si mesmo de “auto-estranhamento”.
O terceiro caso leva em consideração o fato do trabalho objetivar a vida da espécie
humana, isto é, leva em conta a tendência do ser humano enxergar a si mesmo – objetiva e
subjetivamente – num mundo criado por ele mesmo. Entretanto: “O trabalho alienado, porém,
faz ‘do ser genérico do homem, tanto da natureza quanto da faculdade genérica espiritual
dele, um ser estranho a ele, um meio da sua existência individual” (MARX, 2004 apud
MÈSZÀROS, 2006.p. 20).
A quarta característica da alienação desenvolve-se na relação do homem com outros
homens, ou seja:
4
É o que Mészáros chama de síntese in status nascendi.
O segundo destes, preocupa-se com as possibilidades de “superação” do sistema
vigente de alienação e estranhamento da vida cotidiana, tanto no aspecto filosófico da
questão, quanto em sua forma concreta e positiva5, ou seja, como é possível fundir os
opostos6, em oposição às tendências antagônicas promovidas pela alienação. O objetivo desta
ciência humana marxiana é muito diferente do da filosofia abstrata, por isso, visa materializar
a união entre teoria e prática na sua manifestação mais abrangente.
Evidentemente, o primeiro e o segundo conjunto de ideias dos Manuscritos estão
interconectados dialeticamente.
Faz-se necessário ressaltar que Marx não foi o primeiro pensador a trabalhar com o
conceito de Aufhebung7 – dentre todos os filósofos que discutiram sobre alienação, Hegel é o
que levou a questão mais adiante, inclusive refletiu sobre a “unidade dos opostos” –, no
entanto, a maioria dos filósofos que antecederam Marx abandonam a discussão sobre a
alienação em seu ponto mais essencial, incidindo sobre uma reflexão abstrata e limitada ao
ponto de vista restrito do capital.
Para Marx, a questão da transcendência da alienação do trabalho é um processo
indissociável do intuito de conquistar a “unidade entre teoria e prática”. Antes dos
Manuscritos de 1844, ou seja, antes da noção de alienação, o intuito de unir homo faber e
homo sapiens, apresentava-se de forma muito abstrata em Marx.
Assim sendo, os Manuscritos econômico-filosóficos representam “uma síntese in
status nascendi”, porque são a primeira tentativa marxiana de trabalhar o conceito
sintetizadora da “alienação do trabalho”. Portanto, tal noção constitui um verdadeiro divisor
de águas no pensamento marxiano. Aliás, esse “elo perdido” na teoria de Marx elucida todos
os aspectos particulares da sua crítica, bem como a comunicação destas com as demais ideias
presentes na totalidade do seu sistema filosófico.
Nesse sentido, é importante destacarmos que a crítica de Marx a Hegel antes da
descoberta do conceito sintetizador da alienação do trabalho, por mais contundente e concisa
que fosse ainda permanecia parcial. Entretanto, a partir da descoberta do conceito de “auto-
5
Graças ao mestrado do Professor Caio Antunes pudemos entender que quando Mészáros menciona o termo
positivo, isto significa na verdade uma “negação da negação”. Sendo mais claros, a realidade alienada na qual
vivemos nos afasta (lê-se nega) da nossa própria condição humana. Nesse sentido, uma atitude verdadeiramente
crítica precisa negar essa “negação alienante”, por isso se torna uma atitude positiva – não confundir com
filosofia positiva conservadora, por favor.
6
Vencer o antagonismo entre fazer e pensar, teoria e prática, ser e ter, público e privado, entre outras.
7
Mészáros vai trabalhar com essa questão mais aprofundadamente, passando pela economia política (tachado de
positivismo acrítico) por Diderot, Rousseau e Hegel.
alienação do trabalho” o sistema hegeliano pode ser apreendido tanto em sua significativa
importância histórica, bem como em suas limitações mistificadoras.
Em suma, a essência estrutural dos Manuscritos é o conceito de “transcendência da
auto-alienação do trabalho”. Além disso, este sistema em nascimento inaugura uma
monumental programa de reflexão promoção de soluções aos mais diversos problemas da
existência social – compreendendo, é claro, as dificuldades e perigos de tal empreitada.
Assim, os Manuscritos permaneceram inacabados e assim devem permanecer, ou seja, não
precisa de revisões, pois, estavam em status nascendi. Entretanto, isso não é motivo para
classificá-lo como uma simples obra juvenil, muito pelo contrário, como já bem vimos,
consiste num programa magistral de síntese crítica, filosófica, histórica e empírica.
***
***
Nesse livro não procuramos apresentar a teoria de Karl Marx a partir das sínteses
realizadas nos Manuscritos, pois, como já mencionamos, isso não passaria de uma caricatura
da filosofia marxiana, bem como seria uma injustiça com as obras posteriores e com a
compreensão do sistema de Marx como um todo.
Toda análise e interpretação de uma obra filosófica precisa ter em mente que existe
uma diferença temporal significativa entre os períodos históricos do autor e dos seus leitores.
Ignorar isso termina e problemas de interpretação insolúveis. Dito de outra forma, o objeto da
análise não poderá ser compreendido sem que sejam levados a cabo um estudo objetivo dos
conceitos e valores significativos para contemporaneidade histórica. Nesse sentido, a maioria
dos interpretes opositores burgueses de Marx não chegam minimamente a compreendê-lo,
pois a forma como eles se armam para realizar a interpretação da filosofia marxiana afasta-se
de todo e qualquer princípio de “neutralidade e imparcialidade” – garantido, por exemplo, por
meio do estudo dos valores atualmente significativos asseguram.
Sem dúvidas, sem os supostos “aspectos ideológicos” a teoria de Marx pareceria mais
científica, no entanto, ela também se tornaria eminentemente mais pobre, bem como não
estaria nem um pouco de acordo com nossas necessidades atuais.
ORIGENS E ESTRUTURA DA TEORIA MARXIANA
I. ORIGENS DO CONCEITO DE ALIENAÇÃO
1. A ABORDAGEM JUDAICO-CRISTÃ
Antes de mais nada precisamos analisar o fato de “sofrermos” por causa da nossa
“alienação com respeito ao deus judaico-cristão”. Dizem que o homem “alienou-se com
relação a Deus”, desvencilhou-se do seu “caminho sagrado”, portanto, o destino messiânico é
a salvação do homem do seu estado imposto por ele mesmo de auto-alienação.
Entretanto a semelhanças dessa problemática com relação a questão da alienação do
trabalho param por aqui, abrindo margem as inúmeras diferenças que surgem. O apóstolo
Paulo ilustra isso quando afirma: “que estáveis sem Cristo, sendo alheios à comunidade de
Israel, e estranhos aos testamentos, não tendo esperança, e sem Deus no mundo. Mas agora
em Cristo Jesus vós, que outrora estáveis longe, fostes aproximados pelo Sangue de Cristo”
(Epístola aos Efésios, capítulo II apud MÉSZÁROS, 2006. p. 32).
Nesse sentido, o cristianismo procura levar a cabo uma solução mística e puramente
fictícia por meio do “sangue ou do mistério de Cristo”, o qual por si só seria capaz de
reconciliar toda a contradição entre os povos “estranhos e inimigos”. A esse respeito Marx
escreve: “O judaísmo é a aplicação prática vulgar do cristianismo. Mas essa aplicação prática
só se poderia tornar universal quando o cristianismo, como religião aperfeiçoada, tivesse
realizado, de maneira teórica, a alienação do homem de si mesmo e da natureza” (MARX,
19639 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 32 – 3).
O “realismo sem flores” do judaísmo reflete a realidade de forma mais imediata, por
isso defendem a continuação, por tempo indeterminado, deste estado de coisas – isto é, não
pressa alguma da chegada do seu Messias. Constatemos isso em dois aspectos: 1) procuram
abrandar os conflitos internos de classe. É conhecido o mandamento do livro de
Deuteronômio, “os pobres são abundantes na terra, portanto, abra sua mão ao seu irmão”. 2)
A forma de retomar a “graça de Deus” acontecerá por meio dominação dos “estranhos” a
Judá. Não é difícil encontrar no livro de Isaías sobre o futuro de subserviências “dos povos
estranhos aos judeus”.
O fermento para a materialização dessa dominação prescrita religiosamente era a
“usura” (lê-se juros) – uma arma que ainda precisava de um impulso para alcançar sua
eficiência máxima, isto é, precisava da transformação do judaísmo em cristianismo.
9
Karl Marx. On the question [A questão judaica]. Londres: C.A Watts & Co, 1963. p. 39.
[O] judaísmo atinge seu apogeu com a perfeição da sociedade civil;
mas esta só alcança a perfeição no mundo cristão. Só sob a influência
do cristianismo… poderia a sociedade civil separar-se completamente
da vida do Estado, separar todos os vínculos genéricos do homem,
colocar em seu lugar o egoísmo e a necessidade egoísta, e dissolver o
mundo humano num mundo de indivíduos atomizados, antagônicos.
Tal tendência foi menos influenciada pelo ethos judaico que imaginava ser “o povo
escolhido por Deus”, mas foi muito mais influenciada pelo tabu da aplicação da usura “aos
filhos do Estado de Judá10”. O cristianismo, em contraponto, defendendo a “fraternidade
universal”, condenou a prática da arma usura – e a consequente acumulação de capital dela
proveniente – entre “os escolhidos” e os “estranhos”, logo, tornou-se presa fácil do avança do
“espírito do judaísmo”. No fim das contas, segundo Marx, “o princípio prático judaico”
sobrepujou, sem dificuldades, o “caráter abstratamente teórico do cristianismo”.
É preciso que fique muito claro que a questão em reflexão aqui não é simplesmente a
realidade empírica das comunidades judaicas europeias, mas, para além disso, debruçamo-nos
sobre o “espírito do judaísmo”, um princípio interno do desenrolar histórico europeu,
responsável pela emersão do sistema capitalista. Portanto, se deixarmos isso passar
poderemos incidir no erro terrível do antissemitismo e na busca cega de bodes expiatórios.
Feitos tais ressalvas, podemos analisar objetivamente o desenvolvimento europeu, desde sua
realidade pré-feudal até a ascensão do capitalismo, nas quais cada aspecto particular – tais
como judaísmo e o cristianismo – deve sempre ser considerado uma parte significativa de um
todo complexo e inter-relacionado.
10
Nos escritos sagrados judaicos, as restrições com relação a alimentação dizem respeito aos judeus, mas podem
ser vendidos aos “povos estranhos”, a usura, ou seja, a cobrança de juros também não pode ser exercida entre os
judeus, porém quando se trata do empréstimo de dinheiro ao “estranho” a usura é livre.
Em tais condições, o sucesso da parcialidade só acontece com a abolição da
universalidade e vice-versa. O mesmo fenômeno acontece entre a concorrência e o
monopólio. A parcialidade judaica se reflete em seu desejo de conquistar a “nacionalidade
quimérica do judeu” que é a nacionalidade do comerciante e, acima de tudo, do financista.
Por isso Marx afirmou que “a emancipação social é a emancipação da sociedade com
relação ao judaísmo” (MARX, 196311 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 34 – 5). “A ‘estreiteza
judaica’ poderia triunfar na ‘sociedade civil’ porque esta última exigia o dinamismo do
‘espírito supremamente prático do judeu’, para o seu desenvolvimento completo”
(MÉSZÁROS, 2006. p. 35). O judeu emancipou-se a sua própria maneira, ou seja, não apenas
por meio do poder do dinheiro, bem como a medida que o próprio dinheiro se tornou uma
força mundial independente dele. “Os judeus emanciparam-se na medida em que os cristãos
se tornaram judeus” (MARX, 196312 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 35). O fenômeno da eclosão
do protestantismo em algumas nações cristãs representou uma transição precoce do
“cristianismo teórico-abstrato” ao “cristianismo-judaísmo prático”. Ao mesmo tempo,
crescente incisão do espírito do capitalismo na esfera prática levou a cabo a secularização de
todas as formas ideológicas – inclusive as formas ideológicas de alienação – até chegarem a
máxima da “morte de Deus”.
No final das contas, dentro da sociedade de classes se desenvolve a contradição entre a
aspecto particular e o aspecto universal, entre a “parte” e “todo” entre a parcialidade e
totalidade. Tal antagonismo manifesta-se por meio da tendência dos primeiros sobressaírem-
se sobre os segundos. Dentro destas circunstâncias, as relações de poder existentes garantem a
parcialidade sua expressão como universalidade fictícia, do mesmo modo que, a negação
idealista desse processo tem de se manter igualmente mística, tal como aconteceu com o
cristianismo abstrato antes de se transformar em judaísmo prático.
11
Karl Marx. op. cit., p. 40.
12
Ibidem, p. 35.
Nesse sentido, a “nacionalidade quimérica do judeu” é ainda mais fictícia porque
representa a “nacionalidade do comerciante e do financista”, ou seja, um processo de
transformação abstrata de uma parcialidade em universalidade. Desse modo, o antissemitismo
se mostra claramente místico, pois; a partir do momento que ataca a parcialidade do judaísmo
em toda a sua imediaticidade limitada, deixa de lado o aspecto abrangente e real da
parcialidade das aspirações capitalistas se expressarem como universalidade. Por causa disso,
afirma justamente a tendência que deseja atacar, porque se prendeu em ataques místicos.
As reflexões de Marx sobre a questão judaico-cristã pretendiam desenvolver uma
solução para esse impasse aparentemente insolúvel entre parcialidade e universalidade.
Assim, vale ressaltar que sua solução não se expressa por meio de uma simples negação da
manifestação de alguma parcialidade enquanto universalidade – isso é apenas outra
mistificação. A novidade histórica de Marx13 repousava justamente em apresentar o problema
de acordo com uma análise dialética e material da “tendência da parcialidade em se
manifestar como universalidade”, processo que se desenvolve visando ocultar a
universalidade autêntica, a única que pode abarcar os interesses sociais humanos em sua
totalidade e multiplicidade. É por meio dessa perspectiva analítica que Marx é capaz de expor
todas as contradições que fundamenta a sociedade capitalista, bem como elaborar um
programa prático de superação da alienação, através da fusão material de teoria e prática.
13
A treta central é que Marx não procura meramente negar as contradições, mas pretende superá-las.
14
Liberdade e todo o seu sentido liberal e burguês, é claro.
permissão do rei. Além do mais, a terra – fenômeno crucial ao domínio sócio-histórico do
feudalismo – deveria ser alienada para que a sociedade mercantil desenvolvesse sem
obstáculos.
A tendência da alienação como vendabilidade englobar também o fenômeno da
reificação já é perceptível antes mesmo do capitalismo ser criticado em sua totalidade. A
apologia mistificadora da “liberdade enquanto contratualmente legitimada” atuou
substancialmente para o atraso da percepção das contradições sociais. Contudo, isso não
impede que a reificação, a alienação e o caráter contraditório da nossa realidade não possa ser
apreendido por pensadores dedicados não em criticá-las, mas, em vez disso, preocupavam-se
em legitimá-las. Kant é o exemplo mais claro que nos vem a mente. A chamada propriedade
morta pode facilmente alienada do seu dono primeiro e passado para um outro dono, no
entanto, quando se trata de uma “propriedade viva” (lê-se um ser humano) é preciso que ela
primeiro seja reificada para depois ser transmitida para a posse de alguém. Na Odiséia de
Homero podemos notar isso: “Estranho, queres tornar-te minha coisa, meu servo?”.
Portanto, alienação dos homens realiza-se pela transformação do homem numa coisa.
Contudo, a qualidade histórica dos fenômenos sociais não significa que eles serão
sempre expostos pelos intelectuais de uma maneira histórica, ou seja, muitas vezes as
mistificações impregnam este processo de explicação da realidade. A própria questão da
alienação – quando abstraídas do seu próprio contexto sócio-histórico – frequentemente
adquire uma mera “aparência de historicidade”. A mitologia, por exemplo, tem o principal
papel de deslocar o fundamento histórico dos problemas sociais para um campo abstrato e
atemporal.
É sabido que o desenvolvimento histórico não é linear, por isso, em certos pontos
críticos da história, quando as possibilidades ainda se encontram relativamente abertas –
momento de afloramento de ideologias e utopias novas –, as propriedades concretas do
sistema social em eclosão são mais evidentes do que num período posterior onde suas
necessidades (lê-se a ideologia do “positivismo acrítico”) produzem uma estrutura de
padronização e autoproteção. Da mesma forma, mas muito antigamente, o próprio Aristóteles
já nos apresenta reflexões materiais a respeito do elo entre as crenças religiosas e as relações
políticas e sociais da época que as fundou:
Muitos séculos tiveram de decorrer para termos contato com reflexões de igual
materialidade e historicidade. Entretanto, as reflexões de Aristóteles não conseguem
fundamentar uma filosofia material da histórica, pois seu pensamento esbarrava, em sua
totalidade, numa perspectiva a-histórica. Isso aconteceu porque as necessidades ideológicas
da época exigiam a justificação da questão da escravidão no âmbito da natureza.
A noção de “escravidão por natureza” é um ponto central de toda a filosofia de
Aristóteles. “O conceito de ‘escravidão por natureza’ carrega consigo a sua contrapartida: a
‘liberdade por natureza’, e assim a ficção da escravidão determinada pela natureza destrói a
historicidade também da esfera da ‘liberdade’ ((MÉSZÁROS, 2006 p. 41). Isso aconteceu,
porque o caráter parcial das classes dominantes hegemoniza-se, apresentando suas
necessidades como se fossem algo superior, estrutural e garantido pela natureza. A
especificidade da mitologia judaica (lê-se a ideia de imaginarem-se como “povo eleito”), por
exemplo, se enquadra nessa tendência, isto é, num processo de negação da própria história.
Em outras palavras, a historicidade metamorfoseai-se em falsa historicidade. Nos deparamos
então, como um princípio de repetição cíclica, ou seja, a sociedade em sua totalidade, mostra
as relações sociais – supostamente “determinadas naturalmente” – como se representassem
necessidades a priori. Portanto, os antagonismos de um período histórico inclinaram até
mesmo um grande filósofo como Aristóteles a incidir em postulados autocontraditórios (lê-se
as noções de “liberdade e escravidão naturais”). Aliás, em seguida, quando o filósofo grego
afirma que o escravo é apenas uma coisa (um instrumento falante) ele recai sobre outra
contradição, pois os instrumentos têm sempre qualidades históricas e não naturais. Desse
modo, a totalidade social escapa da percepção de Aristóteles, na verdade, sua filosofia
transformou ideologicamente a parcialidade em universalidade.
A questão da “natureza humana” é trabalhada ontologicamente quando
necessariamente relaciona a consciência da alienação com o caráter histórico das concepções
filosóficas. Podemos nos perguntar: o que consiste a “natureza humana”? Ou quando ela
acaba e começa o processo de sua alienação? A questão da “natureza humana” pode ser
16
Aristóteles, Política, livro I, capítulo 2.
respondida de forma a-histórica, por meio de explicações abstratas e irracionais, as quais,
sempre lançam mão da solução mistica do argumento da “natureza”.
Toda “concepção antropológica” ausente de historicidade verdadeira representa uma
abstração, independentemente das condições históricas que vieram a constituí-la. Aquela
visão de uma “sociedade orgânica”, na qual cada “órgão” possui sua função pré-determinada
pela “natureza” ou pela providência dos “deuses”, não passa de uma interpretação a-histórica
e invertida da realidade sócio-histórica na qual elas se desenvolveram. (O “funcionalismo”
moderno, mutatis mutandis17, consiste numa tentativa de obliteração da história, mas esta é
uma discussão para outra hora). Nesse sentido, o conceito de alienação se mostra duplamente
significativo; primeiramente orque apresenta uma crítica radical falsa antropologia da Idade
Média; em seguida, garante positivamente uma interpretação mais dinâmica da vida social.
Antes mesmo de Feuerbach constatar a diferença entre “a essência verdadeira (lê-se
antropológica) e a falsa (lê-se teológica) da religião18, a religião já era entendida na qualidade
de evento histórico. Nesta perspectiva, a religião é entendida como um momento específico e
necessário do processo universal de desenvolvimento histórico. Vico chegou a pensar na
existência de três fases distintas dessa marcha: 1) era dos deuses; 2) era dos heróis) e a era dos
homens livres e iguais.
No entanto, foi Diderot que chegou mais longe no radicalismo político quando
afirmou que a crítica “dos céus” logo chegaria aos outros opressores: “o soberano terreno”.
Diderot transcendeu a noção abstrata de Vico da “condição de igualdade entre os homens”,
afirmando que enquanto o trabalhador for miserável, também será a sociedade. Por isso, não é
de se explantar o fato de o iluminista francês ter chegado mais longe na compreensão do
fenômeno da alienação do que seus contemporâneos, quando refletiu sobre as contradições
contidas na oposição: “meu e seu” e “utilidade pessoal e bem comum”. Além disso, constatou
que tais antagonismo produziam “necessidades artificiais” e “desejos imaginários”, porém,
há uma diferença substancial entre Diderot e Marx: enquanto o primeiro teve se contentar
com as soluções utópicas, o segundo encontrou na sociedade e na histórica, “forças materiais”
fundamentadoras do seu programa filosófico. Diderot enxergou que o trabalho realizado em
sua época era tedioso, desumano, empobrecedor e desrealizador, no entanto, suas respostas
17
Mutatis mutandis é uma expressão latina que significa mudando o que tem de ser mudado. Pode ser, grosso
modo, entendida como: “tendo substituído ou levado em conta certos termos” ou “guardadas proporções”.
18
A descoberta de que o homem cria os próprios deuses e não o contrário, mas para além disso, a compreensão
do fato de os primeiros alienarem-se quando criam os deuses e esvaziam toda a sua essência para torná-los
onipotentes.
essas questões eram utópicas, justamente porque ele entendia a razão como uma panaceia, ou
seja, uma força iluminadora capaz de se solucionar todas as contradições sociais.
Nesse ponto, torna-se claro a qualidade radical de Marx perante os demais filósofos
que o antecederam – os quais tiveram, mais cedo ou mais tarde, que abandonar o campo da
história e mergulhar em soluções mistificas dos antagonismos que constatavam. Marx nos
mostra o quão importante é a relação da antropologia com a ontologia. Entretanto, no
desenrolar da história a ontologia vem sendo obscurecida pela antropologia, por isso, os
princípios antropológicos vem sendo expostos parcialmente, como se fossem axiomas
autolegitimados, a tal ponto de obliterarem a própria influência da história. Dessa forma,
Feuerbach dá um passo atrás se for comparado com Hegel que escapa desta tendência de
negligenciar a ontologia – ainda que a sua filosofia tenha um grande teor de abstração.
O que é preciso frisarmos agora é que o caráter antropológico específico do ser
humano não pode ser entendido historicamente, caso não seja levando em conta seu
fundamento na totalidade ontológica histórica na qual ele se desenvolveu. Portanto: “Uma
incapacidade para identificar a relação entre dialética adequada entre a totalidade ontológica e
a especificidade antropológica encera em sei contradições insolúveis” (MÉSZÁROS, 2006. p.
46).
No final das contas, tudo orbita sobre o caráter eminentemente histórico específico da
humanidade. “O ‘princípio antropológico’ deve, portanto, ser colocado em seu lugar
adequado, no interior do quadro geral de uma ontologia histórica ampla. (…) qualquer
princípio semelhante dever ser transcendido na direção de uma ontologia social dialética
complexa (MÉSZÁROS, 2006. p. 47).
Caso não fiçamos isso, também não haverá possibilidade alguma de compreendermos
um processo determinado por suas próprias leis e capaz de impor seus próprios padrões de
funcionamento aos homens – ignorando, é claro, que o homem criou é capaz de destruí-lo.
Assim, ninguém poderá enxergar a alienante “natureza do capital”, expressa na propagação da
imaginária “natureza humana egoísta”, tão cara ao economista político. A função social do
capital é nítida em si mesma, no entanto, só a perspectiva da ontologia pode desmistificar sua
fundamentação, bem como expor suas contradições – desenvolvidas “sem nenhuma
consideração pelo homem”. De fato, o capital apresenta uma dimensão histórica, porém isso é
muito diferente do que ter uma fundamentação ontológica.
O crucial é não confundir a continuidade ontológica com a parcialidade de uma falsa
antropologia. Da sua formulação judaico-cristã até os dias de hoje, o capital sofreu diversas
transformações, agora, se for adotado uma suposta “natureza humana” para interpretar este
processo, seria o mesmo que entendê-lo a priori e, portanto, perder de vista todos os
desdobramentos históricos do capital.
Durante o século XVIII muitas reflexões sobre a alienação foram levadas a cabo.
Nesse momento se destaca o viés de interpretação do “positivismo acrítico”, no entanto a
partir do momento que as contradições sociais emergem de modo evidente, tal explicação
esbara em dificuldades intransponíveis. Anteriormente, a noção de alienação se manifestava
de forma positiva – por exemplo, o quão economicamente viável pode ser a alienação da terra,
do poder político, ou ainda, como positivo pode ser o “lucro sobre a alienação” por meio da
“justa” cobrança do juro por meio do trabalho alheio e da reificação da própria pessoa, etc.
Contudo, essa parcialidade do positivismo não conseguiu se manter intacta por muito tempo,
principalmente porque seus efeitos empobrecedores e degradantes geraram descontentamento
social, organizado com intuito de destruição das máquinas manufatureiras.
Esta crise emergente durante o século XIX, talvez nem precisemos ressaltar, não foi
uma crise de dentro do próprio capitalismo, em vez disso, consistiu mais numa convulsão
social proveniente da transição do feudalismo caduco para o capitalismo em ascensão. Por
isso, as categorias essenciais da sociedade capitalista foram encaradas de forma acrítica, aliás,
conforme a alienação se torna um fenômeno cada vez mais nítido, a tendência da crítica é
recuar. “A burguesia, que nos escritos dos seus melhores representantes submetia alguns
aspectos vitais da sua própria sociedade a uma crítica devastadora, não podia, é claro, ir até o
ponto de estender essa crítica à totalidade da sociedade capitalista” (MÉSZÁROS, 2006. p.
51). A crítica, em contrapartida, necessitava ser radical, porém um século transcorreria até que
ela pudesse novamente realizar-se dessa forma.
Infelizmente não podemos levar acabo aqui uma história detalhada da origem da
crítica social, porém é interessante destacarmos alguns dos principais pensadores que
19
Perspectiva histórico-analítica que não surgiu, de forma alguma, antes da elaboração dos “Manuscritos
econômico-filosóficos” de Mar.
trabalharam o conceito de alienação antes de Marx. Como já mencionamos Diderot, podemos
trabalhar agora com outro importante iluminista francês: Jean-Jacques Rousseau, cujo sistema
filosófico crítico está repleto de contradições. “(Desnecessário dizer que não estamos falando
de contradições lógicas. […] trata-se de contradições necessárias, inerentes à natureza mesma
do ponto de vista social e historicamente limitado de um grande filósofo)” (MÉSZÁROS,
2006. p. 51).
Anteriormente a Marx, não é possível encontrar outros filósofos que foram tão radicais
em sua crítica quanto Rousseau:
20
Jean-Jacques Rousseau. Discurso sobre a economia política e Do contrato social. Petrópolis: Vozes, 1995.
21
Jean-Jacques Rousseau. O contrato social ou princípios do direito político. s.l.: s.n.,1--- (na verdade eu que
não localizei no livro essas informações).
percebemos que não existe “educação aos os pobres”, há apenas uma idealização da condição
miserável deles. No final das contas, a ordem estabelecida não é questionada, só aparece de
forma “mais esclarecida”.
Mas essa contração não é meramente fruto da ambiguidade do pensamento
rousseauniano, na realidade, representa uma necessidade contraditória do momento histórico
no qual Rousseau estava inserido. Em outras palavras, o horizonte do filósofo francês estava
preso em soluções imaginárias e estática para os problemas sociais, realizadas por meio do
“dever” moral. “A contradição fundamental do pensamento de Rousseau reside entre sua
percepção incomensuravelmente aguda dos fenômenos da alienação, e a glorificação de sua
causa última. É isso que transforma sua filosofia, no final, em um sermão moral”
(MÉSZÁROS, 2006. p. 53). Na verdade, Rousseau estava antecipando aquilo que viria a
aparecer na filosofia de Immanuel Kant como “primado da razão prática”.
Rousseau critica a alienação em seus inúmeros aspectos:
1) Ele deixa claro que o “homem não pode alienar sua liberdade”, pois alienar
significa vender; porém, o que se ganha vendendo a si mesmo? Além disso, o iluminista
ressalta que, caso uma pessoa aliene sua liberdade ela jamais poderá alienar também a dos
seus filhos, os quais nascem por direito livres e, portanto, não pertencentes a ninguém.
Contudo, Rousseau admite um tipo específico de alienação: “quando se cede a sua liberdade
para todos, na verdade, não entregamos ela a ninguém”, além do mais, “não se perde a
liberdade natural, muito pelo contrário, se recebe a garantia da mesma na forma de liberdade
civil”. Nesse sentido a escravidão do apetite natural (vigente no estado de natureza) e o
egoísmo cego da vontade particular (vigente na sociedade burguesa) são substituídos por um
corpo social, moral e coletivo (“a assembleia”, onde cada um obedece somente as leis criadas
por eles mesmos).
Rousseau, como grande filósofo que era, mesmo lhe fugindo as questões fundamentais
ao problema, ainda assim, se questionava – mesmo sem saber a resposta – “como é possível
educar corretamente o educador?”. O iluminista insiste nas soluções morais, pois, para ele, o
educador deve trabalhar as questões mais adequadas a natureza que a sua prática deva
desenvolver.
Os limites do conceito abstrato de igualdade rousseauniano não permitem que ele
desenvolva uma negação social radical da totalidade do sistema desigual, alienante e
desumano no qual ele vive e, ao mesmo tempo, o condena a realização de um radicalismo
moral abstrato.
É preciso deixar claro que o ponto de vista filosófico de Rousseau, tal como os demais
pontos de vista do seu período histórico, enxergavam a propriedade privada como um
elemento divino-fundamentador da sociedade civil, e a “condição média” como a maneira
ideal de distribuição da propriedade. “É certo que o direito de propriedade é o mais sagrado
de todos os direitos da cidadania, e mesmo mais importante, em certos aspectos, do que a
23
Jean-Jacques Rousseau. op. cit., p. 19.
própria liberdade […] a propriedade é a verdadeira base da sociedade civil…” (ROUSSEAU,
199524 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 58 – 9).
A defesa de Rousseau a propriedade privada nada mais é do que a velha moralidade
republicana, a qual compreende a realocação de fortuna dos cidadãos como causa de
desordem e confusão, haja vista que “aqueles que nasceram para uma coisa são obrigados a
fazer outra coisa25”.
Rousseau entende que a lei é construída para salvaguardar a propriedade privada, bem
como a “sociedade civil”, no entanto, o limite do seu horizonte histórico o obriga não só a
pensar dessa forma, mas também a sustentar que a propriedade é criada em prol da lei 26.
Dentro de um período histórico delimitado, este pensamento é aceitável, tendo em vista que o
capitalismo jamais admitiria outro tipo de direito senão direito contratual (lê-se poder
metamorfoseado em direito). “Uma vez que a propriedade privada é considerada como a
condição absoluta da vida civilizada… a problemática complexa da alienação não pode ser
apreenda em suas raízes, mas apenas em algumas de suas manifestações” (MÉSZÁROS,
2006. p. 60). Essas manifestações podem ser analisadas, na visão de Rousseau, sob a forma
específica da propriedade provada idealizada por ele.
Dessa forma, ele nos alerta sobre a degeneração, desumanização e alienação
implicados no culto ao dinheiro, porém só enxerga o aspecto subjetivo da questão. O
iluminista não consegue perceber o poder objetivo do dinheiro sob o capitalismo em ascensão,
por isso sua oposição às manifestações alienadas desse poder limitam-se ao âmbito subjetivo,
neutralizados, segundo Rousseau, através da educação moral. A tendência das relações sociais
numa sociedade baseada na “troca” não se expressarem de forma “livre” e “justa” para todos,
mantém-se obscura para o filósofo francês. O que ele considera justo é a garantia de uma
ordem social hierárquica e naturalizada (lê-se “todas as pessoas ocupam as posições que estão
à altura das suas capacidades27”).
24
Jean-Jacques Rousseau. Discurso sobre a economia… op. cit., p. 254.
25
Ibidem, p. 255.
26
O círculo vicioso da economia política também acontece, de certa forma, no positivismo acrítico.
27
Jean-Jacques Rousseau. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. s.l.:
s.n.,1--- (na verdade eu que não localizei no livro essas informações).
e concentração. Ele rejeito os efeitos, mas dá todo o apoio, mesmo que
inconscientemente, às suas causas (MÉSZÁROS, 2006. p. 60).
29
Parcial princialmente porque o ponto de vista crítico apega-se demasiado ao dever e deixa de lado a
compreensão correta das estruturas do capitalismo.
30
Aqui objetivação significa um aspecto importante d trabalho humano, ou seja, representa o “pôr a mão na
massa”, materializando na natureza sua imaginação durante o ato autocriativo do trabalho.
31
Uma apropriação acrítica, neste sentido, significaria uma espécie de subjetivismo e particularismo insolúvel.
A qualidade universal do ponto de vista marxiano só existe, porque ele conseguiu
refletir sobre a questão da alienação a partir de uma análise crítica da perspectiva do trabalho,
ou seja, não entendeu o proletariado apenas como uma força sociológica opositora ao ponto
de vista o capital, mas, para além disso, soube reconhecer nele uma força histórica, a qual,
quando leva a cabo a realização dos seus interesses materiais, simultaneamente, supera a si
mesma, bem como transcende a alienação (em sua formatação historicamente capitalista).
Em resumo, a distinção histórica da teoria da alienação de Marx – em relação as
demais tentativas feitas por seus antecessores – pode ser resumida em três princípios:
1) abandonar as categorias do “dever” moral (Sallen), procurando nortear-se pela noção de
necessidade (lê-se “é”), referente aos fundamentos ontológicos materiais da vida social.
2) deixa de lado o ponto de vista parcial e utópico, a fim de aderir ao ponto de vista universal
do trabalho, compartilhado de modo crítico, é claro.
Os Manuscritos são obras de um gênico! Por incrível que pareça, tal exclamação não é
contraditória do ponto de vista marxista, pois a genialidade nada mais é do que uma
potencialidade a respeito de um conteúdo específico, desenvolvida em função da satisfação de
necessidades históricas.
O gênio de Marx, expresso no ponto de Arquimedes (lê-se ponto central) de sua
filosofia, isto é, a sua noção de “auto-alienação do trabalho”, não se realizaria sem a chegada
de um determinando momento histórico no qual as contradições sociais estivessem
relativamente amadurecidas. Além disso, sua descoberta também precisaria do aprimoramento
de alguns instrumentos intelectuais, tais como: o método dialético desvelador dos fenômenos
mistificados pela alienação e uma convicção apaixonada pela luta contra os processos de
escravização e empobrecimento do ser humano.
A partir de 1843 Marx iniciou seus estudos referentes a Economia Política, os quais
serviram de base para a elaboração da “Questão judaica” e da “Crítica da filosofia do direito
de Hegel – Introdução”. Ambas as obras pretendiam metamorfosear a crítica da religião na
crítica do direito e da política.
Faz-se necessários ressaltar que o texto “Esboço de uma crítica da economia política”,
publicado nos Anais-Franco Prussianos, publicado em 1844 pelo jovem Fredrich Engels,
influenciaria de uma vez por todas o pensamento de Marx. Neste trabalho Engels afirmou que
o modo de produção capitalista “coloca as relações humanas naturais de cabeça para baixo”,
destacando que a solução para este problema, para “estas condições inconscientes da
humanidade” seria a abolição da propriedade privada.
“Se produzíssemos com consciência, como seres humanos – não como átomos
dispersos sem consciência da nossa espécie – superaremos todas essas antíteses artificiais e
insustentáveis…” (MARX, 200432 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 77).
Inspirado por Engels, Marx intensificou seus estudos críticos da economia política e
disso resultou seus Manuscritos econômico-filosóficos. Nesta obra aparecem discussões sobre
a auto-alienação do trabalho, como também outras reflexões da liberdade ao significado da
vida; da origem da sociedade moderna até o “ser comunitário” do homem; do engendro de
“desejos artificias” até a “alienação dos sentidos” e; por fim, trabalha com a questão central
da “transcendência positiva” da alienação do trabalho.
A noção de trabalho presente nos Manuscritos é a de “atividade produtiva”, ou seja,
um fator ontológico fundamental da humanidade.
32
Karl Marx. Manuscritos econõmico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 196.
propriedade privada – intercâmbio – divisão do trabalho que se
interpõem entre o homem e sua atividade e o impedem de se realizar
em seu trabalho, no exercício de suas capacidades produtivas
(criativas) e na apropriação humana dos produtos de sua atividade
(MÉSZÁROS, 2006. p. 78).
Assim, a crítica de Marx com respeito a alienação se mostra uma recusa de tais
mediações, porém não nos enganemos pensando que ele negava toda e qualquer tipo de
mediação humana. Fazer isso significaria incidir sobre um misticismo vulgar, idealizando um
“condição perfeita de identidade entre sujeito e objeto”. Em vez disso, Marx luta contra uma
espécie de mediação de segunda ordem (lê-se a propriedade privada, o comércio e a divisão
do trabalho), ou seja:
O trabalho então evidencia seu caráter absoluto, ou seja, o ser humano não pode existir
sem transformar a natureza (lê-se não a vida humana sem atividade produtiva). Entretanto, a
tentativa de superação da alienação não deve apenas levar em conta a expressão absoluta do
trabalho (universal), mas também precisa ter em mente sua forma alienada, isto é: o trabalho
assalariado (particular). Sem ter essa diferenciação nítida em nossas mentes, jamais será
possível a “transcendência positiva da autoalienação do trabalho”. Faz-se necessário ressaltar
que as “medições de segunda ordem” sempre procuram parecer “medições de primeira
ordem”, portanto, a propriedade privada, a divisão do trabalho e o trabalho assalariado
geralmente se expressão como se fossem fatores naturais e inerentes a todo ser humano.
Ao estudar a economia política, Marx consegui compreender a consistência e a
essência da atividade capitalista. Sua crítica contra a alienação em seus escritos anteriores
estava demasiado centrada em relações jurídicas e políticas. Antes de escrever os
Manuscritos, a questão do fator econômico era vagamente descrita por meio de reflexões
sociopolíticas.
Tudo muda em 1844, pois, nesse momento, Marx já tem em mente que o homem faz
parte da natureza, bem como precisa produzir para se manter vivo (lê-se a fim de satisfazer
suas necessidades). Entretanto, ele só consegue contemplar as suas necessidades básicas,
criando, necessariamente, novas e mais complexas necessidades, agora não mais primordiais,
as quais se tornam uma mediação necessária para satisfazer as suas necessidades primárias.
“As atividades humanas de tipo ‘espiritual’ têm, assim, sua base ontológica última na esfera
da produção material como expressões específicas de intercâmbio entre homem e a natureza,
mediado de formar e maneiras complexas” (MÉSZÁROS, 2006. p. 79). “Que a vida físicae
mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a
natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza”
(MARX, 200433 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 79).
Marx fala muito nesta obra em “corpo inorgânico do homem”, uma expressão usada
para representar tudo aquilo que a natureza fornece ao homem como substrato para a sua
ação/transformação por meio da atividade produtiva. Todavia, por causa do fenômeno da
alienação, o corpo inorgânico do homem aparece como externo em relação a ele,
transformando-se em mera mercadoria. O homem se vê reificado em meio ao “mundo das
coisas”, não tem mais consciência do seu ser genérico ou, numa palavra, sua “essência” não
coincide mais com a sua individualidade.
A atividade humana produtiva dentro do cárcere capitalista – no qual os homens atuam
como átomos desconexos, cuja consciência de espécie desapareceu – não é mais capaz de
realizar sua mediação com a natureza, haja vista que o ser humano “reificou-se” a tal ponto da
sua condição se tornar análoga ao do animal. A consciência de espécie foi impregnada pelo
culto ao princípio privado e ao indivíduo abstrato. “O culto mistificador do indivíduo abstrato,
ao contrário, indica como natureza do homem um atributo – a mera individualidade – que é
uma categoria universal da natureza em geral, e nenhum modo algo especificamente humano”
(MÉSZÁROS, 2006. p. 80).
Em poucas palavras, podemos dizer que a atividade produtiva está alienada quando
deixa de propiciar a mediação do homem com a natureza.
Faz-se necessário ressaltar que Marx jamais propôs a volta a um suposto “estado
natural da humanidade” como a solução para os problemas decorrentes da alienação. Seu
programa foge do sentimentalismo reacionário dos românticos, não “prega o retorno ao
natural”, em vez disso, ressalta a importância de realizar, verdadeiramente, a “natureza do
homem”. Lembremos que “a natureza do homem” significa o ser genérico do homem, algo
muito distinto das noções de natureza em geral. Em síntese, o homem e a natureza se
relacionam em dois aspectos.
33
Karl Marx. op. cit., p. 84.
As mediações de segunda ordem… subordinam a própria atividade
produtiva, sob o domínio de uma “lei natural” cega, às exigências da
produção de mercadorias destinada a assegurar a reprodução do
indivíduo isolado e reificado que não é mais do que um apêndice
desse sistema de “determinações econômicas” (MÉSZÁROS, 2006. p.
81).
Nesse sentido, as mediações de segunda ordem usurpam o lugar que era por direito da
atividade produtiva humana, impregnando-se no meio da relação homem-natureza.
Consequentemente; por um lado, o ser humano defronta-se com a natureza de uma maneira
hostil, tendo em vista que está submetido ao domínio da “lei natural” do mercado, em toda a
sua unilateralidade. Por outro lado, o homem depara-se consigo mesmo de modo hostil, pois
está a mercê do antagonismo entre capital e trabalho. A relação genérica entre homem e
natureza metamorfoseou-se na relação entre trabalho assalariado e capital. “Assim, os
meios se tornam os fins últimos, enquanto os fins humanos são transformados em simples
meios subordinados aos fins reificados desse sistema institucionalizado de mediações de
segunda ordem” (MÉSZÁROS, 2006. p. 82).
Nesse sentido, a superação efetiva da alienação é indissociável da negação das
mediações de segunda ordem capitalistas. Agora, porém se elas forem entendidas como
fenômenos “imutáveis” e “naturais” – tal como a economia política, Hegel e até mesmo
Rousseau fizeram –, a crítica continuará realizando-se de forma parcial e fictícia. O
“positivismo acrítico” dos economistas políticos, no final das contas, foi muito importante
para fundamentar a filosofia marxiana. Rousseau, embora tenha agido como um crítico radical
da alienação, não foi capaz de escapar do círculo vicioso que o sufocava, haja vista que
inverteu a relação ontológica concreta, confundindo as mediações de segunda ordem com as
de primeira34. Em seguida, o filósofo francês desenvolveu uma solução ilusória, fundamentada
numa ideia de “troca justa” oposta às tendências alienantes que criticou. Hegel, por sua vez,
também não pode ir muito longe, principalmente porque reduziu a “objetivação” à
“alienação”, fugindo da solução romântica, porém também passando muito longe de qualquer
pretensão de superar a realidade sócio-histórica capitalista.
A grande contribuição trazida por Marx foi evitar a mistificação das mediações
humanas, destacando a importância das mediações de primeira ordem, em detrimento da
divisão social do trabalho, da propriedade privada e do comércio capitalista. Dessa forma,
ele impulsionou um processo de “desmistificação científica”, mas também abriu os horizontes
34
Em síntese, Rousseau levou a cabo um grande e esclarecedora exposição crítica das mediações de segunda
ordem (lê-se dos princípios da sociedade capitalista da sua época), porém defendeu erroneamente a noção de que
estes princípios fossem naturais aos seres humanos.
da humanidade pra a superação prática e concreta do modo de produção vigente no
capitalismo.
4. MATERIALISMO MONISTA
35
As limitações dualistas de Feuerbach se manifesta no fato de se opor à solução idealista de Hegel, ao mesmo
tempo que se apega a uma noção abstrata de “homem idealizado”.
36
Grosso modo, monismo/monista refere-se a um sistema filosófico que defende a compreensão da realidade
como uma unidade, como um todo inter-relacionado.
extremo dualismo entre teoria e prática, bem como a ausência de um mediador entre estes
dois princípios tornou o dualismo da sua filosófica insuperável.
Como, porém, ele não pode distinguir, como já vimos, entre a forma
“externalizada” da atividade e suas manifestações “alienadas”, e como
é inconcebível negar a “externalização” sem negar a condição
absoluta: a própria atividade, o seu conceito de Aufhebung não pode
ser senão uma negação abstrata, imaginária, da alienação como
objetivação (MÉSZÁROS, 2006. p. 88).
No final das contas, Hegel recai sobre o mesmo problema da economia política:
compreender de forma insolúvel e definitiva a alienação da objetivação, como também da
atividade humana e, consequentemente, esteriliza qualquer possibilidade de transcendência
real da alienação. (Vale ressaltar que o fenômeno da exteriorização da objetivação – lê-se
atividade humana – é tão necessário histórica e ontologicamente quanto a própria questão da
atividade, logo, é crucial que exista uma mediação qualquer contida na relação do homem
com a natureza. O importante é conseguirmos distinguir entre as mediações que estão de
acordo com o caráter autocriativo da atividade humana produtiva daquelas que são alheias a
ele – lê-se as mediações de segunda ordem do capital.
Marx diferencia o trabalho enquanto Lebensäusserung (lê-se manifestação de vida) e
enquanto Lebensentäusserung (lê-se alienação da vida). Nesta última definição “eu trabalho
a fim de viver, ou seja, para gerar um meio de vida, porém meu trabalho não é minha própria
vida”, pois minha atividade é imposta “por uma necessidade externa”, em vez de ser
orientada por uma “necessidade interior”.
O filósofo alemão também distingue a mediação do homem com relação ao homem,
da “mediação alienada” do homem intermediada pela coisa, pelo outro. Sob este segundo
aspecto, o homem se manifesta como um “homem desumanizado”, isto é, sua atividade
produtiva está a mercê de um “mediador estanho”, em lugar de ser o “homem seu próprio
mediador”. Dessa forma, o trabalho adquire, igualmente, a qualidade de uma “mediação
alienada” da atividade produtiva dos homens.
Marx não pretende associar vulgarmente a filosofia com as ciências naturais, em vez
disso, ele critica tanto uma como a outra. A primeira delas, porque é demasiado
38
Ibidem, p. 111 – 2.
“especulativa”; já a segunda, por causa do seu caráter “abstratamente material” ou “idealista”.
Ambas são reflexos do mesmo estranhamento, são “formas alienadas” da base da “vida
humana concreta”, pois as duas estão diretamente ligadas com uma forma alienada de
indústria, correspondendo a um modo de produção específico (lê-se capitalista). Nesse
sentido, Marx desenvolve, em detrimento da “filosofia abstrata”, bem como da “ciência
natural idealista”, sua noção de ciência humana”.
Por “ciência humana”, Marx entende ser uma síntese material em profunda sintonia
com a vida real, sua base analítica é o ideal de homem não-alienado, cujas necessidades
verdadeiramente humanas – em contraponto com as necessidades artificiais, alienadas e
desumanas – organizam o campo de pesquisa.
3. ALIENAÇÃO E TELEOLOGIA
Até agora descobrimos que a “alienação”, bem como a sua Aufhebung [superação] são
necessidades ontológicas dentro da filosofia marxiana.
Mesmo assim, Marx é injustamente acusado de “determinismo econômico”. Dentro do
ponto de vista marxiano, a “atividade humana produtiva” é um conceito crucial e jamais pode
ser entendido como meramente “produção econômica”. O pensamento marxiano enxerga a
economia ontologicamente, tendo em vista a diversidade de mediações históricas inerentes ao
ser humano. Em síntese, parte do pressuposto de que a diversidade dos campos da atividade
humanatem como substrato a base econômica, porém também a embasam de forma ativa por
meio de sua própria estrutura relativamente autônoma.
Por mais importante que tenha sido a concepção de história de Hegel, como ela se
sustentava mediante a suposições a-históricas, necessitou negar a própria história como um
todo, conferindo-lhe uma “finalidade”, concebida a partir de um “princípio” a priori. Todavia,
faz-se necessário ressaltar que Hegel não teve de abrir mão da história para criar o seu
sistema, na realidade, sua filosofia, antes de qualquer coisa, sempre foi a-histórica. Por causa
disso, precisou racionalizar a história, bem como teve de extrair a história do homem,
subligando-a a partir das categorias do pensamento.
Assim – por mais paradoxal que isso possa parecer – apesar de sua
crítica programática (abstrata) do “imediatismo”, Hegel, acabou
idealizando o imediatismo do fetichismo capitalista, manifestado na
identidade historicamente determinada da objetivação capitalista e da
alienação capitalista (MÉSZÁROS, 2006. p. 110 – 1).
Entretanto, não existe ação humano que possa ser compreendida sem um
embasamento sócio-histórico e, por sua vez, a história dificilmente pode ser entendida sem
uma teleologia. O sistema marxiano, porém, se afasta de todas aquelas “teleologias s
fechadas” (lê-se apriorismos), mostrando ter uma concepção inerentemente histórica e aberta.
Isso se torna evidente quando analisamos dois fatores:
1) Toda necessidade em Marx, é uma necessidade histórica, portanto, uma
“necessidade em desaparecimento” - deixando sempre o horizonte preparado para um
desenvolvimento futuro da humanidade.
2) A “finalidade” da história em Marx é concebida no sentido da imanência do
desenvolvimento humano – em detrimento dos apriorismos da teleologia teológica –, isto é,
enquanto vazão da “essência humana” através da “auto-atividade dos homens”
(primeiramente em seu caráter alienado; em seguida, em sua forma positiva). Dessa forma, a
filosofia marxiana se mostra continuamente aberta – sempre de acordo com as necessidades
ontológicas humanas –, haja vista que sua finalidade é eminentemente histórica e jamais pré-
39
Gerog Lucács: escritos sobre ideologia e política. Çunchterhand: Neuwied & Berlin, 1967. p. 286. Paperback
determinada. Em suma, dentro do ponto de vista de Marx, nunca é possível chegar num
momento no qual a humanidade se tornará plenamente desenvolvida, pois isso significaria a
esterilização do atributo humano mais essencial, a saber: sua potência à
“automediação/autodesenvolvimento”.
ASPECTOS DA ALIENAÇÃO
A consistência geral de uma obra é percebida por meio do seu ponto de vista. Sendo
assim, seria interessante nos perguntarmos qual é o ponto de vista de Marx. Além do mais, o
próprio Marx criticou Proudhon por criticar a economia política, a partir do ponto de vista da
própria economia política. O filósofo também afirmou que Hegel tinha a visão da economia
política.
Com relação a alienação, o ponto de vista de Marx visa a sua superação (Aufhenbung),
por isso destacava que o compartilhamento do ponto de vista da economia política
consolidava a impossibilidade de conceber sua superação.
Além disso, Marx foi extremamente cauteloso para não produzir uma crítica utópica
da economia política, tal como fizeram, segundo ele, Proudhon, Fourier, e Saint-Simon.
Segundo Marx, a economia política embasa-se numa “condição primordial fictícia”,
ou seja, os economistas políticos “pressupões enquanto um fato aquilo que deve ser extraído
da análise de uma relação necessária entre dois fenômenos. Desse modo, eles explicam, igual
aos sacerdotes, o mal por meio do pecado original, ou melhor, pressupõe na qualidade de
dado acabado, o que deve ser explicado historicamente.
“Nesse sentido, nenhuma relação ou fato social – que é, por definição, uma relação –
pode ser aceito como dado. Tudo o que é específico, tudo o que tem uma forma… dever ser
explicado em termos do vir-a-ser, e por isso nenhuma condição primordial pode ser suposta”
(MÉSZÁROS, 2006. p. 116). É justamente neste sentido que Marx entende a relação mais
antiga entre homem e natureza como sendo uma relação da natureza consigo mesma, tendo
em vista o fato de o homem ser uma parte específica da natureza.
Marx contrapõe a estrutura lógica de petitio principii40 da economia política a um
princípio econômico real, ou seja: “(…) o trabalho não produz somente mercadorias; ele
produz a si mesmo e ao taralhador como uma mercadoria, e isto na medida em que, produz,
de fato, mercadorias em geral” (MARX, 200441 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 117).
Essa compreensão a respeito do trabalho é crucial para entender o problema da
superação. De todos os poderes humanos, é a atividade produtiva orientada por um fim, a qual
possui uma importância relativa na conceitualização do homem. Contudo, se não
conseguirmos explicar historicamente o processo de metamorfização da atividade produtiva
propositada em trabalho assalariado (lê-se alienado), jamais seremos capazes de consolidar a
sua superação.
Marx estuda a economia política justamente porque o seu intuito é a superação dela.
Ele destaca o fato de o “movimento interno da propriedade privada” –expresso na
economia – contém um movimento revolucionário interno, tanto no âmbito empírico, quanto
no teórico.
40
É uma retórica falaciosa, por vezes proposital, por cansaço no debate com um interlocutor persistente como,
por exemplo, uma criança, por exemplo: “eu estou certo porque sou seu pai, e os pais estão sempre certos.
41
Karl Marx. Manuscritos… op. cit., p. 80.
1. Vejamos o que os Manuscritos nos tem a dizer sobre isso:
Dificilmente seria possível lutar contra a alienação da vida humana sem trabalhar
adequadamente com as questões socioeconômicas nelas refletidas. Por outro lado, a
investigação econômica desenvolvida por Marx perderia todo o seu sentido caso fosse
desprovida de toda e qualquer preocupação prática.
Além disso, toda a atitude dos “reformadores graduais” está fada ao fracasso, haja
vista que procuram melhorar a realidade existente, partindo da estrutura desta mesma
realidade, portanto, compartilham as contradições que pretendiam combater.
Os estudos de Marx com relação à economia política não embasavam uma ação
econômica, mas sim uma ação política. O filósofo estava interessado nos estudos econômicos
enquanto eles podiam lhe revelar a estrutura da realidade que ele pretendia transcender.
Assim, Marx não só procurava expor os pontos “fracos” do sistema capitalistas, mas também
seus pontos “fortes”, ou melhor, os fenômenos responsáveis pelo “triunfo civilizado” do
capitalismo sobre o feudalismo.
O problema da transcendência positiva só pode ser realizada em termos políticos, isso
quando se enxerga que a superação concreta da realidade existente está nascendo.
“É uma característica da política… antecipar… a evolução social e econômica futura. A
política poderia ser definida como a mediação… entre o estado presente e o estado futuro da
sociedade” (MÉSÁZOS, 2006. p. 119).
A ciência econômica não tem essa potencialidade mediadora, bem como não opera
com categorias de futuro.
Nesse sentido, quando discutimos sobre o fenômeno da “superação” não podemos nos
restringir apenas em aspectos econômicos, em vez disso, precisamos trabalhar com categorias
econômicas, morais, estéticas, entre outras. O foco de Marx nas questões econômicas se
manifesta quando ele está analisando a formação sócio-histórica da atividade produtiva
humana. Agora, a partir do momento que ele reflete sobre a transcendência da sociedade da
sua época, aí sua reflexão gira em torno da “emancipação de todas as potencialidades
humanas”.
Em resumo, Marx parte da análise econômica, a qual representa a base teórica de uma
ação política determinada. Isso não quer dizer que esta ação política e a “transcendência”
sejam a mesma coisa. Em vez disso, ele tem claro em sua mente que a alienação somente será
superada no campo da produção. Portanto, a ação política não pode materializar de fato a
superação efetiva da alienação, porém atua como uma espécie de fermento necessário para a
sua realização. O verdadeiro processo de superação da alienação localiza-se no futuro,
precisamente depois da ação política – a responsável pela criação das circunstancias
necessárias para o procedimento de transcendências positiva. Entretanto, não podemos dizer
exatamente quando se concretizará este processo, pois muitos elementos influenciam nessa
estimativa – inclusive o desenvolvimento das ciências. Ainda assim, podemos dizer que o
velho Marx pontuou-o ainda mais ao futuro do que havia feito o jovem Marx.
42
Ibidem, p. 106.
Nesse sentido e retomando Proudhon, percebemos que a solução dele carece do elo
intermediário (lê-se ação política) necessário para materialização futura da transcendência
positiva, por isso não passa de uma media utópica.
O filósofo francês defende uma ação econômica direta para combater os aspectos
prejudiciais da realidade existente, e isso, levado às últimas consequências, dilui a ação
política numa ação econômica utópica. Dessa forma, ele precisa pensar na questão da
superação no presente ou num futuro próximo, e tem de compartilhar do ponto de vista da
economia política.
Com respeito à atitude de Proudhon, Marx a taxa de “abolição do estranhamento
político-econômico no interior do estranhamento político-econômico”. Assim, a ideia de
Proudhon de elevação abrupta dos salários é ineficaz, tendo em vista que:
43
Ibidem, p. 88.
sistema monetário44. Em contraponto aos fisiocratas, Smith desenvolveu a teoria de que o
trabalho era a fonte de toda a riqueza.
Mas qual é a relação desta discussão com o problema da alienação? A resposta gira em
torno do campo do fetichismo, isto é, como a riqueza é entendida como sendo exterior e
independente do próprio homem, na qualidade de um fenômeno absoluto.
Assim se a fonte de toda a riqueza (lê-se a terra) é absoluta, evidentemente ela não
podia ser alienada, entretanto, “o triunfo do capitalismo” jamais seria possível sem a
dissolução dessa ideia. Contudo, a noção de propriedade móvel precisava de certa estabilidade
– longe da “inalienabilidade da terra” –, expressa na apologia da legitimidade do lucro
“ausente de alienação do capital”. Por causa disso, muito “hereges” foram queimados pela
prática do lucro sem a alienação do capital.
A riqueza durante o feudalismo expressava-se como algo exterior às relações humanas,
ou seja, a riqueza adquiria um caráter absoluto e metafísico.
44
Fetichista, porque os fisiocratas encontravam na terra e os mercantilistas nos metais preciosos, as únicas
formas de riqueza, como se elas fossem capazes, “magicamente”, de imprimir valor às demais mercadorias, sem
a necessidade da ação do homem.
45
Ibidem. p. 100.
ser monopólio de poucos senhores já é uma prova do estranhamento do solo em relação à
população em geral.
A partir da monopolização da terra, segundo a ótica da indústria emergente, a
alienabilidade da terra se tornou a principal preocupação. Todavia, isso representou a primeira
condição para a reflexão sobre a existência do homem, para o qual a terra é inalienável. Na
realidade, a ideologia feudal jamais admitiria a existência do “homem”, em vez disso,
afirmava apenas a sua própria parcialidade. Noutras palavras, seu monopólio sobre o solo
frente aos demais, era legitimado – ainda que ficticiamente – pelo argumento da sua origem
divina. Nesse sentido, tendo em vista que a justificativa da divindade garantia a hegemonia de
um domínio parcial, não era preciso desenvolver o conceito de “homem” durante o
feudalismo.
47
Ele faz oposição ao fenômeno do fetichismo da mercadoria, melhor trabalhado nos capítulos iniciais do
Capital.
humanas. “Na visão de Marx, o homem não é, por natureza, nem egoísta nem altruísta. Ele se torna,
por sua própria atividade, aquilo que é num determinado momento. E assim, se essa atividade for
transformada, a natureza hoje egoísta se modificará, de maneira correspondente” (MÉSZÁROS, 2006.
p. 137).
Torna-se nítido que não existe estiticidade na teoria marxiana, todas as miniestações
humanas são trabalhadas de forma dinâmicas por meio da sua noção de atividade humana. No
ponto de vista de Marx, a propriedade privada, bem como todos os fenômenos provenientes
da ação humanas precisam ser explicados historicamente, e nunca supostas como
consequências da “natureza humana”.
A oposição do “ter” e do “ser” foi levantada antes de Marx pelos socialistas utópicos,
porém o que há de novo na reflexão marxiana é o foco nas relações recíprocas humanas,
remontando uma abordagem inaugurada por Engels nos seus “Esboço de uma crítica da
economia política”.
Tal abordagem tem como referência a atividade produtiva ou práxis, isto é, uma
perspectiva analítica pautada na “essência humana” que não é naturalmente egoísta ou
altruísta, em vez disso, gira em torno do campo da socialidade. A socialidade pode ser
entendida como uma espécie de associação consciente, que, ao se livrar do egoismo
naturalizado transcenderá a “reificação”, o “trabalho abstrato”, e os “apetites imaginários”.
Nesse sentido, enquanto a concorrência dominar a produção e a “eficiências dos custos”
hegemonizar dentro da atividade produtiva, o homem jamais se expressará na qualidade de
homem.
V. ASPECTOS POLÍTICOS
1. RELAÇÕES DE PROPRIEDADE
Marx estabelece sua crítica dentro de uma sociedade está segregada, na qual os
sujeitos estão empobrecidos. Então como imaginar uma transcendência positiva nestas
condições?
48
A natureza humana no ponto de vista de Marx é eminentemente material e história, portanto, consiste numa
crítica radical à própria noção de natureza.
49
Ibidem. p. 108.
A destruição do Estado capitalista resolveria o problema? Evidentemente não, pois a
anulação do Estado não é o suficiente, haja vista que representa uma superação apenas no
âmbito da política, a qual corre o risco de apenas ressignificar a “abstração da sociedade
frente o individuo”. Em suma, isso significaria apenas dar uma nova roupagem à alienação.
“A grande dificuldade consiste nisso, que a transcendência positiva deve começar com
medidas políticas, porque nunca sociedade alienada não existem agentes sociais que possam
efetivamente restringir, e muito menos superar, a alienação” (MÉSZÁROS, 2006. p. 147).
Contudo, se este agente político propulsor da transcendência for autoconsciente dos
limites históricos dos seus atos, poderá novamente promover a manutenção a condição da
“sociedade sobre o individuo”.
Em resumo, a política precisa ter em mente que o seu papel é, em última instância, a
sua própria destruição, no sentido de cumprir sua missão encantoa momento transitório e
necessário para a transcendência positiva da alienação. É justamente dessa maneira que Marx
define o comunismo como um caráter político, isto é, uma espécie de negação da negação.
50
Ibidem. p. 132.
A liberdade humana não pode ser entendido como um princípio abstrato, também não
pode ser visto como uma espécie de transcendência de limites da própria natureza, em vez
disso, é uma convergência com eles. “Em outras palavras, a liberdade humana não é a
negação daquilo que é especificamente natural no ser humano – uma negação em favor do
que parece ser um ideal transcendental – mas, pelo contrário, sua afirmação” (MÉSZÁROS,
2006. p. 149).
As noções transcendentais que partem do pressuposto da necessidade de superação de
alguns elementos inerentemente humanos não têm espaço na filosofia marxiana.
Exemplificando: o economista político fundamenta suas teorias na “natureza humana”
supostamente egoísta, enquanto o filósofo moral supõe o “homem egoísta” como ideal
transcendental – não é por acaso a influência da Adam Smith nos escritos de Kant,
principalmente na “Paz perpétua”, quando o filósofo discute sobre a Handelsgeist [espírito
comercial].
Marx é contrário a esse tipo de abordagem transcendental, ou seja, essa tentativa de
pensar o homem como “naturalmente alguma coisa”. O filósofo tem em mente que só é
possível supor o ser humano como naturalmente egoísta, porque em nossa realidade alienada
ele de fato é. Contudo, entender o homem egoísta (lê-se alienada), específico da nossa
realidade histórica, com o homem em seu sentido geral é uma “falácia ideológica”, ou seja,
significa confundir a parte com o todo.
Em oposição ao transcendentalismo, Marx constrói a ideia de ser humano real, o qual
fundamenta-se tanto em sua efetividade (lê-se o que ele é agora, isto é, “homem mercadoria,
ser alienado”) quanto em sua potencialidade (lê-se o que ele pode ser, ou seja, um “ser
humano enriquecido”).
“O ponto de partida ontológico de Marx é o de que o homem é uma parte específica da
natureza e, portanto, não pode ser identificado com alguma coisa abstratamente espiritual”
(MÉSZÁROS, 2006. p. 150). O homem é, para o filósofo alemão, uma espécie de “ser-por-si-
mesmo da natureza”.
Pressupor que um ser totalmente espiritual criou o homem gera inúmeros
desdobramentos morais, nos quais os homens precisam se livrar da sua “natureza moral”.
Nesse sentido se torna digno negar a natureza humana, inspirando-se no dever e na gratidão
ao suposto ser que concebeu o homem. Dentro destas condições a liberdade não é entendida
como natural ao homem, como humana, ao contrário, apenas como generalidade abstrata.
Para Marx, se nós devemos nossa existência a outro ser então isso não é liberdade, mas
a negação dela. Só um ser independente pose ser considerado livre. Agora, se o homem
“deve” à natureza e a si mesmo (esta é a obscura noção marxiana de ser-por-si-mesmo) sua
existência isso significa que ele é livre, logo, não deve a ninguém. Dever à natureza significa
fazer parte dela.
2. OS LIMITES DA LIBERDADE
Devemos descartar os dois lados da moeda como abstrações vazias? É claro que não. Ora, se
o ser “automidiador” se transforma naquilo que é, sob determinadas circunstâncias, logo, o
importante é questionar quais foram os motivos que levaram o homem a se tornar um “ser
egoísta”.
O intuito objetivo dessa interrogação é a modificar o processo responsável pela
produção de seres egoístas. Contudo, opor ao “homem egoísta por natureza” uma concepção
de “homem benevolente por natureza” não representa nada mais do que atribuir novas
características místicas a noção de homem.
3. ATRIBUTOS HUMANOS
Se a tarefa é prática, as soluções provenientes dela precisa ser também prática. Kant
incidiu em armadilhas autoimpostas pela sua abstrata moralidade transcendental. “Desse
modo, se quisermos evitar uma contradição semelhante, devemos compreender que o único
poder capaz de superar praticamente (‘positivamente’) a alienação da atividade humana é a
própria atividade humana autoconsciente” (MÉSZÁROS, 2006. p. 165).
Parece que caímos num círculo vicioso, pois se a “alienação da consciência” surge do
trabalho alienado, como é possível superá-la através da “atividade humana autoconsciente” - a
qual representa um “fim em si mesmo” e não um “meio para um fim”? Embora tal percepção
desta contradição seja mítica, não passa de aparência e, ao mesmo tempo, surge de um ponto
de vista mecanicistas no que diz respeito a relação entre “meio e finalidade”.
Antes de mais nada, a questão da autoalienação da atividade humana precisa se afastar
das suposições que definem a alienação enquanto um fenômeno estático e homogêneo. Se isso
não for feito, todos os possíveis remédios se tornam vazios e todo movimento é extirpado da
reflexão. Em outras palavras, dentro de uma suposta “totalidade estaticamente alienada” não
há nada que possa ser feito para superá-la. Aliás, não seria possível nem ao menos se ter
consciência do problema da alienação, por isso, “a consciência de uma totalidade
absolutamente estática” é uma contradição em termos.
Portanto: “A alienação é um conceito inerentemente dinâmico: um conceito que
necessariamente implica mudança. A atividade alienada não produz só a ‘consciência
alienada’, mas também a ‘consciência de ser alienado’” (MÉSZÁROS, 2006. p. 166). Isso não
só opõe-se a noção de totalidade estática alienada, bem como deixa em evidencia a
necessidade de transcendência da alienação.
Faz-se necessário ressaltar que o “educador que precisa também ser educado”, está
sujeito a alienação como qualquer outro sujeito.
Max como educador é ao mesmo tempo produto de uma sociedade
alienada: seu ensino expressa uma relação específica com um objeto
alienado específico, historicamente concreto. A posição segundo a
qual “um reflexo alienado da auto-alienação não é autoconsciência,
mas autoconsciência alienada” implica o corolário: “um reflexo
verdadeiro da auto-alienação, por mais verdadeiro que seja, não é a
autoconsciência de um ser não-alienado, mas a autoconsciência de um
ser em estado de alienação” (MÉSZÁROS, 2006. p. 166 – 7).
É nesse sentido que Marx, atuando dentro da densa teia alienada da sociedade,
representa um ser prático que atua praticamente contra o fenômeno da alienação. Contudo,
seu programa não pode ser confundido com uma manifestação não-alienada. Agora, a partir
do momento que a sua proposta se torna realidade, durante o processo prático de superação da
alienação, deixa de ser um mero reflexo desenvolvido dentro da sociedade alienada, ou
utilizando a própria linguagem marxiana: não atua mas como uma negação da negação.
Vale ressaltar que tal superação não é um fenômeno estático dentro da histórica, em
vez disso, consiste num processo perene expresso em inúmeras fases qualitativamente
diferentes.
Ainda assim, a interpretação não dialética de Marx, criticada por Macmurray, não
perdeu forças, em vez disso, expandiu-se.
Alguns pensadores chegaram a defender que a teoria da alienação de Marx deixava de
existir em suas obras da maturidade. A fim de defender essa tese, tais filósofos se apoiaram
em trechos presentes na “Ideologia alemã” e no “Manifesto do partido comunista”. O
primeiro deles é o seguinte: “Esta ‘alienação’ (para usarmos um termo compreensível aos
filósofos) só pode ser superada, evidentemente, sob dois pressupostos práticos53”. E o
segundo completa: “O processo inteiro foi, então, apreendido como processo de auto-
alienação do ‘Homem’”54. O tradutor para o inglês desta obra afirma que na Ideologia alemã
há uma suposta “opinião final” sobre o conceito de auto-estranhamento, enquanto nos
Manuscritos havia uma espécie de “luta com esse conceito, atribuindo-lhe uma nova
significação”55.
Essa oposição é muito equivocada, pois representa uma interpretação demasiado
dramática dos textos de Marx. Na realidade, não há nenhuma “oposição final” na Ideologia
alemã, muito menos uma “luta conceitual” nos Manuscritos com relação a questão da
alienação, a tal ponto de invalidar a importâncias dos textos escritos por Marx em 1844.
52
John Macmurray, The early development of Karl Marx’s thought. IN: Christianity and the social revolution.
Londres: Victor Gollancz, 1935. p. 209 – 10.
53
Karl Marx & Fredrich Engels, The german ideology. Nova York: International Publishers, 1947. p. 24.
54
Ibidem. p. 68.
55
Ibidem. p. 202.
Nesse sentido, Marx não poderia deixa de lado o conceito de alienação, haja vista que
fazer isso seria o mesmo que abdicar um conquista histórica real – cerne da filosofia
hegeliana – ainda que ela estivesse impregnada de mistificação.
Sobre a segunda citação, uma leitura mais atenta do trecho completo nos mostra que
ela também não indica abando da noção de “auto-estranhamento”:
Na Ideologia alemã
(…) wird dies als ein ihnen “fremdes” und von ihnren
“unabhängiges”, als ein selbst wieder besonderes und eigentümliches
“Allgemein”-Interesse geltend gemacht, oder sie selbst müssen sich in
diesem Zwiespalt bewegen, wie in der Demokratie.
58
Karl Marx. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. IN: Crítica da filosofia do direito de Hegel.
Op. Cit., p. 145, 151 e 155 – 6.
(…) que o interesse coletivo é transformado num interesse “estranho”
aos indivíduos e deles “independentes”, um interesse “geral”
especial e particular, ou então os próprios indivíduos têm de mover-se
em meio a esta discórdia, como na democracia.
Duas observações podem ser extraídas destas citações: Em primeiro lugar, Marx deixa
claro que os interesses particulares e os interesses comuns dos indivíduos não são idênticos,
bem como os sujeitos não devem buscar unicamente a satisfação dos seus interesses privados,
pois isso os impossibilita de fruir seus verdadeiros interesses comuns, o que, por sua vez, os
limita a vivência alienada do “interesse geral” abstrato. Em segundo lugar, a exposição
abstrata dos verdadeiros interesses comuns do ser humano, enquanto expressão de algo
distinto do indivíduo real esconde a verdadeira alienação, a saber: a auto-alienação do
homem na qualidade de u espécie de separação do seu interesse privado do coletivo. E, é
justamente nesse sentido que encontramos os fundamentos da mistificação da alienação por
parte dos filósodos como uma “alienação do Homem”. Contudo:
No Manifesto Comunista
Je rascher die Arbeiterklasse die ihr feindliche Macht, den fremden, über sie gebietenden
Reichtum vermehrt und vergrössert, unter desto günstigeren bedingungen wird ihr erlaubt,
von neuem an der Vermehrung des bürgerlichen Reichtums…
Dizer que a condição mais favorável para o trabalho assalariado é o crescimento tão rápido
quanto possível do capital produtivo é o mesmo que dizer que quanto mais a classe operária
aumentar e fizer crescer o poder inimigo dela, a riqueza alheia que manda nela, tanto mais
favoráveis se tornarão as circunstâncias em que voltará a trabalhar para o crescimento da
fortuna burguesa…59
Der Zins na sich drückt also grade das Dasein der Arbeitsbedingungen
als Kapital in ihrem gesellschaftlichen Gegensatz und ihrer
Metamorphose als persönliche Mächte gegenüber der Arbeit und über
die Arbeit aus. Er resümiert den entfremdeten Charakter der
Arbeitsbedingungen im Verhältnis zur Tätigkeit des Subjekts. Er stellt
das Eigentum des Kapitals order das close Kapitaleigentum als Mittel
dar, dieProdukte fremder Arbeit sich anzueignen als Herrschaft über
fremde Arbeit.
No Capital
Da vor seinem Eintritt in den Prozess seine eigne Arbeit ihm selbst
entfremdet, dem Kapitalisten angeeignet und dem Kapital einverleibt
ist, vergegenständlicht sie sich während des Prozessses beständig in
fremden Produkt. (…) Der Arbeite selbst produziert daher beständig
den objektiven Reichtum als Kapital, ihn fremde, ihn beherrschende
und ausbeutende Macht…
60
Karl Marx. Rohentwurf. P. 716.
Como, antes de entrar no processo, seu próprio trabalho já lhe foi
alienado pela venda de sua força de trabalho, foi apropriado pelo
capitalista e incorporado ao capital, ele deve, durante o processo, ser
realizado num produto que não lhe pertence. (…) O trabalhador,
portanto, produz constantemente riqueza material, objetiva, mas na
forma de capital, de um poder alheio que o domina…
Das Kapital zeigt sich immer mehr als gesellschaftliche Macht, (…)
aber als enfremdete, verselbständigte gesellschaftliche Macht, die
als Sache, und als Macht des Kapitalisten durch diese Sache, der
Gesellschaft gegenübertritt.
O capital surge, cada vez mais, como uma força social… mas se trata
de uma força social alienada, independente, que se opõe à
sociedade como um objeto (Sache) e como um objeto que é a fonte
de poder do capitalista.
A esse ponto de nossa exposição, isto é, após a leitura destas citações, provavelmente
ficou claro que a noção de alienação presente nos Manuscritos jamais desapareceu do
pensamento e dos escritos de Marx. Na realidade, em vez disso, representa uma espécie de
pilar fundador dentro de toda a teoria marxiana, por isso, abandoná-lo significaria implodir
todo o edifício teórico de Marx, levantando em seu lugar apenas um muro. Muito fizeram esse
processo, tentando erguer suas supostas “teorias científicas” por meio da demolição do
sistema teórico marxiana. Não caiamos nessa armadilha.
A crítica segregação do “jovem Marx contra o Marx maduro” não representa uma
negação da evolução intelectual de Marx, antes disso, significa a recusa da existência de uma
ruptura radical entre o Marx dos Manuscritos de 1844 e o Marx depois desse tratado.
Evidentemente aqui não é o melhor lugar para discutirmos profundamente o
desenvolvimento intelectual de Marx, por isso nos ateremos em quatro dos principais aspectos
deste.
Em primeiro lugar, a questão da alienação só influenciou substancialmente o
pensamento marxiano a partir de 1843 – mais especificamente entre 1843 – 44, aliás, uma
influência que transcende a discussão vulgarizada do combate entre os “idealismos” contra os
“materialismos”.
Para temos uma ideia basta lermos a Crítica da filosofia do direito de Hegel –
Introdução onde ele diz: “a crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, a
crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política 61”.
Contudo, essa preocupação com a união da filosofia com a prática permanecia, neste
momento, ainda demasiadamente genérica. Além do mais, se a crítica marxiana permanecesse
neste nível abstrato de generalização dificilmente exerceria grande influência nos processos
sociais e na intelectualidade, tal como conseguiu exercer posteriormente.
Os Manuscritos de 1844 deram um grande passo na reflexão marxiana, pois
reconheceu o fenômeno do “trabalho alienado” (lê-se a forma alienada da atividade humana
prática) como o cerne de todas as demais alienações – religiosa, jurídica, moral, artística,
política, entre outras –, apoiando os fundamentos da sua teoria concretamente. O conceito de
“auto-alienação do trabalho” destacava a importância da crítica à economia como base para
criticar todas as outras formas alienações humanas. Desse modo, a crítica presente na
Introdução de 1843, a qual transitava da crítica da teologia para a da política; agora, nos
Manuscritos de 1844, migrava da crítica à política para a crítica à economia. Portando, a
inicial abstração presente nas ideias marxianas foi superada, haja vista que o filósofo não
precisava mais defender obscuramente a união entre teoria e prática, em vez disso, foi capaz
de evidenciar de modo prático, como realizar esse programa revolucionariamente.
No final das contas, esperamos ter deixado claro o quão central é o conceito de
alienação na teoria de Marx e, igualmente, o quão infundado é o argumento dos que afirmam
que ele abandonou as reflexões sobre a alienação quando passou a se preocupar com a crítica
da economia política. Na verdade, aconteceu justamente o contrário, ou seja, quando Marx
percebeu que a alienação econômica era o fundamento de todas as derivações da alienação,
não foi mais possível ignorar o potencial deste conceito na sua teoria, bem como sua crítica à
economia política foi enriquecida como nunca pela sua crítica filosófica.
Em segundo lugar, precisamos deixar claro a influência de Feuerbach no pensamento
marxiano, principalmente durante o intervalo de 1843 – 44. Posicionamentos muito
exagerados definem Marx, nessa época, como um simples discípulo de Feuerbach.
Entretanto, existem cartas de Marx à Feuerbach que mostram diferenças substanciais
entre estes autores, principalmente na questão da crítica à sociedade que, em Marx, se
manifesta enquanto crítica à política.
É possível que Marx sinceramente almejasse o apoio de Feuerbach em sua crítica da
ordem estabelecida, mas também é provável que procurasse apenas um poderoso aliado, o
qual, pouco a pouco, poderia mobilizar ao radicalismo revolucionário. Contudo, seja como
for, Feuerbach jamais ofereceria aquilo que Marx procurava.
Somente quando Marx criticou a filosofia hegeliana foi onde se abriu espaço para as
ideias de Feuerbach no pensamento marxiano.
61
Karl Marx. Op. cit., p. 146.
Todos os elementos críticos presentes nas Teses sobre Feuerbach (1845) já se
encontram, ainda que implicitamente, nos Manuscritos de 1844. Depois que Marx percebeu a
impossibilidade de incentivar Feuerbach a levar a cabo uma crítica radical e prática da
realidade, tornou explicita sua crítica a ele. Marx adotou essa mesma postura frente a outros
dos seus contemporâneos e, mesmo assim, jamais compartilhou de suas ilusões e opiniões.
Feuerbach não poderia apoiar a Marx, pois a noção de um ataque prático à sociedade
era muito parcial em sua filosofia – desconhecia inclusive a existência de relações sociais de
produção. Ainda assim, a fim de conhecer os limites reais da filosofia Feuerbach era
necessário o apoio ativo dele para realizar o ataque prático e radical da ordem social vigente e
de seus defensores como Schelling.
Nesse sentido, não é de se estranhar que nos escritos elaborados por Marx após os
Manuscritos econômico-filosóficos – até aproximadamente 1856 para sermos mais exatos –, a
palavra “alienação” tenha aparecido com menor frequência em relação a sua recorrência nas
obras anteriores.
Em último lugar, outra característica emblemática das obras de Marx é o seu caráter
inacabado, ainda que ele tenha mobilizado todas as suas forças para a elaboração delas. Isso
aconteceu com os Manuscritos, com as Teorias da mais-valia, com os Grundrisse e inclusive
o Capital. Com efeito, isso não pode ser explicado somente por conta da conturbada condição
da sua vida.
A motivação de Marx é mais profunda e está intimamente ligada com seu intuito de
superar a filosofia hegeliana e a economia política através de uma “ciência do homem” –
integrada em sua totalidade, fundamentada empiricamente e realizada praticamente. A fim de
realizar tal síntese abrangente, Marx se inspirou em Hegel, porém este último formulou uma
síntese filosófica demasiado especulativa, enquanto o objetivo marxiano era radicalmente
distinto, a saber: “elaborar o quadro geral de uma ciência humana unificada que integre todas
as aquisições reais do conhecimento humano com as exigências práticas da vida humana”,
além do mais, esta empreitava exigia “o mais alto grau de desenvolvimento em todos os
campos da ciência63”. Nesse sentido, todas as novas conquistas desenvolvidas em âmbitos
particulares impulsionam a total revisão do panorama em sua totalidade, ampliando os limites
alcançados pelas investigações anteriores.
63
István Mészáros. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 220.
“Alienação” e “transcendência” são dois conceitos indissociáveis, no entanto, o que
diabos eles significam?
Aqui é onde encontramos grandes probabilidades da inocorrência de más
interpretações sobre a teoria marxiana. A quimera da “idade de ouro” humana existe há muito
tempo na história da humanidade, no entanto, seria absurdo supor que Marx resolve
definitivamente o problema da Aufhebung por meio da defesa de uma suposta era de ouro
utópica.
2. INDIVÍDUO E COLETIVIDADE
64
COUTINHO, C. N. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1989.
p. 7.
Fora a reprodução das inúmeras habilidades sem as quais a produção dos sujeitos
sociais não podem se materializar, a educação também se encarrega de reproduzir os valores
internamente estruturadores dos fins e intuitos das ações individuais. Além do mais, as
relações sociais reificadas do capitalismo não se perpetuam automaticamente, na realidade, os
indivíduos interiorizam os pressupostos gerais da sociedade de mercadorias, entendendo-as
como indiscutíveis. Assim, os sujeitos sociais atuam para a contração de uma “visão de
mundo e um modo específico de troca social”, os quais estão em consonância com o ponto de
vista do capital.
1. UTOPIAS EDUCACIONAIS
Se for ilusão ou loucura solucionar os problemas “de fora” – sempre como base da
análise as relações sociais – qual seria então o significado da educação estética?
Provavelmente ela teria um sentido místico e, de fato, não poderia ser de outra maneira,
quando pensamos a sua expressão dentro da realidade alienada do capitalismo. “O homem
carente, cheio de preocupações, não tem nenhum sentido para o mais belo espetáculo; o
comerciante de minerais vê apenas o valor mercantil, mas não a beleza e a natureza peculiar
do mineral…” (MARX, 201065 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 266). Esse “embrutecimento” da
vida não é um fenômeno natural, muito pelo contrário, é artificialmente produzida por meio
do estranhamento de todos os sentidos humanos pelos sentidos do ter. Portanto, a solução
jamais poderia ser abstratamente engendrada no âmbito do “mundo interior”, negligenciando
o mundo concreto dos homens. “(…) a resolução das oposições teóricas só é possível de um
modo prático, só pela energia prática do homem… uma tarefa vital que a filosofia não pode
resolver precisamente porque tomou apenas como tarefa teórica” (MARX, 201066 apud
MÉSZÁROS, 2006. p. 266).
Nesse sentido, a educação estética só faria sentido numa sociedade verdadeiramente
socialista, onde os sujeitos sociais plenamente ricos possam efetivamente existir. Além disso,
tal educação não pode limitar-se ao “mundo interno” e abstrato do individuo.
65
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010. 110p.
66
Ibdem, p. 108.
nada aprender” (PARACELSO, 19--67 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 267). Entretanto, essa
perspectiva muda no século XVIII por meio dos escritos de Adam Smith – um grande
defensor do “espírito comercial” –, nos quais podemos enxergar duas terríveis consequências
do fenômeno da divisão do trabalho. A primeira delas consiste no empobrecimento demasiado
do trabalho humano, ao ponto de ser necessária a influência da educação para reverter essa
tendência. A segunda manifesta-se a partir da extrema simplificação e rotinização do trabalho,
perde-se a necessidade de uma boa e abrangente educação, em vez disso, impulsiona-se um
processo de sucateamento geral da educação. Em outras palavras, o “espírito comercial”, ou
melhor, capitalista:
72
Atualmente esse argumento retorna nas falácias da engenharia social contemporânea.
73
Ou como Florestan Fernandes diria apenas manifestações dentro da ordem, manifestas contra ela…
74
Ibdem, p. 124.
multilateral” desaparece, abrindo espaço pouco a pouco, aos “indivíduos especialistas” no
trabalho com a máquina burocrática capitalista. Tal processo espalhou-se, atualmente, como
um câncer.
“O ‘espírito comercial’, para sua plena realização exige a fragmentação, a
mecanização e a reificação de todas as relações humanas. (…) O que decidiu a sorte dessas
utopias… foi o fato de pretenderem produzir seus efeitos no lugar das transformações sociais
necessárias, e não por meio delas” (MÉSZÁROS, 2006. p. 272).
2. A CRISE DA EDUCAÇÃO
Ninguém seria louco o suficiente para negar o fato de a educação estar em crise, no
entanto, as opiniões divergem quanto a sua origem. Segundo Chomsky, os ideólogos da guerra
fria estão confusos, se perguntando: “(…) o que levou os estudantes e jovens professores a
‘irem à Esquerda’… sob a administração de um Estado liberal de bem-estar social. (…) Como
esses jovens estão em boa situação, têm bom futuro etc., seu protesto deve ser irracional.”
(CHOMSKY, 1969 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 272). Por outro lado, alguns admitem a
existência de conflitos, porém, os associam a um pequeno grupo de supostos “baderneiros”.
Todavia, a recorrência e o crescimento da intensidade dessas crises apontam para outra
conclusão muito diferente: vivenciamos hoje, não uma mera crise institucional, mas sim uma
crise estrutural e global da educação – entendida como sistema de “interiorização” capitalista.
O processo de “interiorização” se expressa juntamente a partir das inúmeras formas de
“falsa consciência”, provenientes das relações sociais de produção alienadas, as quais, por sua
vez, representam os intuitos e desejos dos indivíduos. Em situações “normais de pressão e
temperatura”, a “ideologia do consumidor” – reflexo material e estrutural da sociedade –
procura promover “consenso” em meio a um leque de falsas escolhas, nas quais os indivíduos
são ludibriados a enxergá-las como genuínas. Entretanto, em momentos de crise essa
operação sofre graves complicações. Por exemplo, nos próprios EUA, durante a recessão
econômica todos os meios de comunicação incentivavam a “obrigação patriótica” de comprar
até mesmo o mais supérfluo, independentemente das vontades espontâneas de cada indivíduo
– isso deixa em cheque a ideologia da naturalidade do capitalismo. Em outras palavras, os
estadunidenses eram instigados a comprar “as dívidas patrióticas de guerra” – irresgatáveis,
diga-se de passagem. Além do mais, a guerra do Vietnã impulsionou diretamente a economia
dos EUA, fomentando o apetite do sistema – já os indivíduos estavam saturados há um bom
tempo. A esse respeito Robert Heilbroner nos esclarece: “(…) nosso grande surto de
prosperidade não começou antes do início da Segunda Guerra Mundial; e sua continuação
desde então, esteve sempre ligada a uma procura econômica muito mais militar do que
puramente civil” (HEILBRONER75, 196076 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 273).
Nesse sentido, enquanto a indústria estadunidense de consumo não retomava sua
importância significativa, não foram levadas a cabo modificações no pensamento tradicional
consumista. Pois, por um lado, representava uma suposta “superioridade” dos EUA, frente às
demais economias; por outro lado, os argumentos da “defesa do interesse nacional” sempre
fizeram parte crucial da ideologia burguesa. Como se isso não bastasse, à medida que a crise
estrutural intensifica-se surge, de maneira cada vez mais gritante, a necessidade de
“desmaterialização” do sistema de incentivos individuais, bem como o ajuste dos meios de
“interiorização” social. Isso acontece por dois motivos, primeiramente, porque a diferença
tecnológica entre EUA e as demais potências econômicas estava diminuindo, enquanto a
concorrência, consequentemente, aumentava. Em seguida, por causa da impossibilidade da
crise estrutural ser solucionada por meio de uma terceira guerra mundial. Em resumo,
percebemos a importância desses entraves, quando olhamos para as “guerras do passado”, as
quais: 1) “desmaterializaram” o sistema de incentivos e reformularam os métodos de
“interiorização”; 2) impuseram ao povo um padrão de vida extremamente miserável; 3)
intensificaram subitamente o padrão de lucro; 4) racionalizaram e organizaram ao sistema de
mando e, por fim; 5) promoveram um boom tecnológico generalizado. Contudo, mesmo que
hoje o militarismo tenha se massificado indiscriminadamente, ele ainda não é nada perto dos
fatores econômicos e ideológicos, sem os quais o capitalismo mundial jamais poderia existir.
A necessidade de repensar os sistemas de “interiorização” é mais do que nunca
eminente, no entanto, não existe ideologia capaz de defendê-la, pois, a democracia burguesa
atual passa por uma crise estrutural muito mais intensa do que aquela que gerou o nazismo e o
fascismo como garantia de produção de mercadorias. Atualmente, os capitalistas não podem
mais simplesmente se apoiarem nas soluções fascistas, haja vista que, isso acarretaria na
terceira guerra mundial, bem como impossibilitaria a manutenção da lógica do superconsumo
de supérfluos – já que: “Simplesmente não é possível provocar o superconsumo sob a mira de
um revólver” (MÉSZÁROS, 2006. p. 275). Além disso, a burocratização cada vez mais
intensa que assola a nossa sociedade foi extremamente eficaz em esvaziar de sentido todas as
75
Foi um economista socialista estadunidense e historiador do pensamento econômico. Autor de mais de vinte
livros, Heilbroner era mais conhecido por “The worldly philosophers [Os filósofos mundanos]” (1953), uma
pesquisa sobre as vidas e contribuições de economistas famosos, notavelmente Adam Smith, Karl Marx, e John
Maynard Keynes.
76
HEILBRONER, R. O futuro como história. Nova Iorque: Harper&Row, 1960. p. 130.
“instituições democráticas”, tornado até mesmo o Parlamento – tradicional campo da
promoção do consenso – num mero espaço para articulação de conluios. E as hierarquias
sociais – anteriormente essencialmente articuladas para a orientação juvenil – agora não
passam de medidas moralizantes e ineficazes.
A crise da educação precisa ser analisada num contexto mais abrangente – Paracelso já
nos ressaltou que a educação é “toda a nossa vida” – e não apenas ser entendida em suas
particularidades fenomênicas. Pois, a educação está essencialmente ligada com a totalidade
dos processos sociais – a educação formal, então, revela como apenas a ponta do iceberg.
As questões em jogo não são somente o “tamanho das salas de aula”, ou a “qualidade
das pesquisas”. Na realidade, aquilo que devemos nos questionar é se as instituições
educacionais serão elaboradas para os homens ou se continuarão a atuando para a manutenção
da alienação. Dessa forma, a ampla “contestação” da educação do modo como ela está
atualmente estruturada é o maior desafio ao capitalismo, haja vista que, atinge incisivamente
os sistemas de “interiorização” – responsáveis pela hegemonização da alienação e da
reificação na consciência dos sujeitos.
Dentro do sistema capitalista a educação tem duas funções básicas, primeiramente
procura desenvolver elementos cruciais à economia, em seguida, pretende produzir os
métodos específicos de controle político. Portanto, torna-se nítido a manifestação da crise da
educação nos âmbitos político e econômico da sociedade. Owen tentou amenizar isso, por
meio da sua solução: “(...) quando não influenciados por sentimentos partidários ou estreitas
noções errôneas de interesse próprio imediato, mas consideradas apenas no interesse
nacional, mostrar-se-iam benéficas para os filhos, para os pais, para os empregadores, para o
país” (OWEN, 19--77 apud MÉSZÁROS, 2006. p. 276). Evidentemente, a questão do
“interesse nacional” de Owen tem um alcance muito reduzido, temporário e só manifestam-se
enquanto permanecerem de acordo com as aspirações parciais da burguesia. Tal contradição
torna-se complexa quando comparamos o interesse particular do capitalista – mais associado
às necessidades econômicas de produção – com os interesses particulares da burguesia como
77
Ibdem, p. 125.
classe – mais associado às necessidades políticas, ou ao suposto interesse nacional. Quando
Gramsci era vivo, a superprodução de intelectuais foi fomentada pelas necessidades políticas
da classe dominante, hoje a causa dessa superprodução é econômica.
As “aspirações nacionais” – leem-se os interesses globais da classe dominante – estão
sempre sintonizadas os desejos particulares da maioria dos capitalistas individuais – maioria
não numericamente, mas sim os interesses mais poderosos.
nível que todos os desejos individuais burgueses pudessem ser totalmente abarcados pelos
interesses globais da classe burguesa. No entanto, isso não passou de uma quimera.
Dessa forma, por mais significativas que possam ser certas tendências remediadoras
do capitalismo, nenhuma solução vinda propriamente dele pode agir de forma radical, ou seja,
“cortar o mal pela raiz”.
A superprodução de intelectuais não pode agir do mesmo modo que a superprodução
de automóveis, por exemplo, cujo limite é o céu, haja vista que, existe a grande limitação das
oportunidades de trabalho. A expansão do capital obriga também a ampliação da produção de
intelectuais – só para manter as engrenagens do capitalismo em movimento –, no entanto, os
pensadores quixotescos convictos na eficácia das reformas políticas ou econômicas, realmente
não conhecem o mundo no qual vivem.
A contradição torna-se ainda mais complexa quando analisamos a questão do “lazer”,
frente aos inimagináveis avanços tecnológicos atuais. Com efeito, o capitalismo é capaz de
abarcar o “tempo livre” e o desemprego, impulsionando-os a agir em benéfico da expansão
econômica. Isso pode ser visto no fenômeno da indústria cultural. Ainda assim, não podemos
esquecer que o avanço tecnológico é caótico, não apenas por causa do fato de os capitalistas
não conseguirem superar as mazelas estruturais da competição, mas também porque o
desenvolvimento saudável do lazer é incompatível com o capitalismo.
A única contagem do tempo que o sistema do capital conhece é a contabilidade
monetária, entretanto, o fenômeno do “tempo livre” necessita de outra noção de
temporalidade, uma contabilidade social, numa realidade que tenha superado a mutilação
promovida pelas mediações de segunda ordem do capital. Como vimos em Adam Smith, o
lazer é reduzido a uma forma de impedir o trabalhador de recair no “desperdício e na
libertinagem”. “A concepção de ‘tempo livre’ como veículo que transcende a oposição entre
trabalho mental e físico, entre teoria e prática, entre criatividade e rotina mecânica, e entre
fines e meios, sempre ficou muito longe do horizonte burguês” (MÉSZÁROS, 2006. p. 278).
Nesse sentido, a perspectiva marxiana, não concorda com uma noção mesquinha de lazer
impregnada pela pretensão de servir a lógica de produção de mercadorias, bem como procura
substituir a contabilidade monetária do tempo pela contabilidade social. Assim, os sujeitos
sociais se apropriam de forma prática da cultura, a partir das tomadas de decisão política,
única maneira de levar a cabo um sentido de finalidade em suas vidas – superando as
hierarquias existentes.
Atualmente, no que diz respeito à crise ideológica da burguesia percebemos o
enrijecimento de uma velha contradição entre especialização e abrangência. A especialização
subsiste na estrutura social capitalista por meio de mecanismos monetários keynesianos e pelo
seu pilar mais importante: a indústria armamentista. Além do mais, sustentam-se por meio de
estratégias de manipulação, tais como “engenharia social”, “indústria da informação”,
“pesquisa de mercado”, etc. Paralelamente, tal culto à especialização atuou como uma forma
de autopublicidade burguesa e, ao mesmo tempo, dirigiu-se incisivamente contra o marxismo.
Os ideólogos do “fim da ideologia” acusaram o marxismo de prometer um novo milênio,
ocultando hipocritamente a decadência e a crise do milênio capitalista.
A principal diferença dos ideólogos atuais da burguesia, com relação aos do passado, é
que hoje eles não podem negar a existência da luta de classes, tal como esses últimos faziam.
Entretanto, recentemente o engrandecimento da especialização por meio da ciência
representou uma tentativa de “engendrar cientificamente” a aparência de que a sociedade
capitalista duraria para sempre.
Entretanto, nos períodos de crise por mais científicas que as técnicas de domínio
pareçam, não são por si só suficientes. Nesse sentido, são desenvolvidos novos esforços, por
exemplo, a Comissão Presidencial sobre as Metas Nacionais e empresas de Estudos
Estratégicos como a Rand Corporation. Além disso; se falou muito no “fim da ideologia” sem
abrir mão do fenômeno da utopia. Isso pode ser muito bem observado na revista de Daniel
Bell:
Faz-se necessário ressaltar que a utopia que se deseja reavivar é uma espécie de
“utopia empírica do custo-benefício” do capitalismo norte-americano. Essa utopia distingue-
se das “ideológicas”: 1) nega necessidade da revolução; 2) condena as ideologias provenientes
dos Estados africanos; 3) desaprovação dos caminhos trilhados pela revolução cubana.
Todavia, quando se trata de elaborar “teorias gerais” sobre o futuro, os resultados são
demasiadamente limitados. Na realidade, não poderia acontecer de outra forma, haja vista
que, a teoria geral somente é possível quando acompanhada de uma força dedicada em
transformar a sociedade no âmbito prático. Todavia, o limitado ponto de vista burguês jamais
se interessou pela modificação da realidade, somente sendo capaz de promover oscilações
dentro de um campo parcial e estático.
No final das contas, a atual crise da ideologia não passa de um reflexo da crise
estrutural do capital – não é nossa pretensão desenvolver essa ideia agora, atemo-nos agora
em destacar somente alguns elementos cruciais. As instituições capitalistas são essencialmente
violentas, hostis e sempre articuladas pela estratégia de fazer guerra quando os “métodos
diplomáticos” falharem. Aliás, a cegueira das supostas “leis naturais” do mercado tratam
todos os problemas sociais, a fim de jamais solucioná-los, em vez disso, só os adia até certo
ponto de não poder mais suportá-los, transferindo-os para o âmbito militar. Tal tendência de
78
BEEL, Daniel. O fim da ideologia. s.l.: s.n., 19--. p. 405 – 6.
exportação violenta dos problemas estruturais do capitalismo para o âmbito internacional
intensifica e agrava cada vez mais o caráter contraditório da nossa realidade. A aparente
estabilidade das potências capitalistas (Grã-Bretanha, França e Estados Unidos) explica-se por
causa da sua propensão a escoarem suas intempéries violentas pra os polos mais fracos do
sistema internacional – leem-se as periféricas do capital. A partir da Primeira Guerra, países
como Alemanha e Itália entraram numa penosa crise da qual eclodiram inúmeras promessas
fascistas, ou seja, soluções plausíveis à burguesia, ao mesmo tempo que diluíam a opressão e
a violência interna, tendo em vista a promoção de uma nova Guerra. Nessa circunstância, as
nações periféricas do capital geralmente adequavam-se aos interesses das potências mundiais.
Mesmo parecendo demasiadamente “irracional”, essa lógica de funcionamento foi,
naquela época, muito “racional”, caso comparado com nossas condições atuais. Racional
principalmente em dois aspectos; primeiramente, porque estipulava objetivos determinados a
serem atingidos – por mais nefastos que eles fossem –; em seguida, estruturava as instituições
capitalistas dentro de um sistema hierárquico funcional, visando sua expansão. Levando em
conta o de a solução final ter sido extirpada do sistema do capital, percebemos que, por causa
disso, até mesmo o mínimo de racionalidade evanesceu-se, pois, não era mais possível escoar
a violência interna globalmente. Na realidade, tal tendência começou a ser realizada num
âmbito mais restrito – a Guerra do Vietnã, por exemplo –, agravando, portanto, as
contradições sistêmicas internas.