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Diário de campo.

Primeira imersão.

Dia 17/10/2017

Cheguei ao inicio de uma aula de matemática. A professora ensinava divisão,


todos acompanhavam com bastante atenção. Espantei-me com a disciplina em sala.
Conforme pude perceber, eles tratavam de corrigir tarefas de divisão passadas na
aula anterior. Aos poucos os alunos eram chamados ao quadro ao qual se dirigiam
com seus caderninhos em baixo do braço.

PROF. - Vou precisar das cédulas distribuídas a semana passada.

ÂMBAR – Se a senhora quiser posso emprestar meu caderno pra quem errou
acertar

JACINTO – João precisa distribuir um pouco dessa inteligência dele

PROF. – Gerânio acertou, olha ai.- disse apontando para o caderno e para a
correção que acabara de fazer no quadro.

Os alunos bateram palmas. As correções seguem sem muitas interrupções ou


eventos dignos de destaque para nosso estudo.

PROF. – Os meninos desta sala fofocam mais que as meninas, não é


interessante?

Disse isto porque dois alunos, meninos, cochichavam já pela terceira vez
desde a minha chegada.

PROF. – MARGARIDA tá certa gente? –Perguntou sobre a conta no quadro.

TODOS. – Tá Tia.

PROF. – Tá por quê? Vocês vão ter que dizer.

Todos se pronunciaram de uma só vez explicando a questão.

Um menino errou a questão e outros alunos zombaram dele.

PROF. – Quem sabe andar de bicicleta?

Neste momento todos começaram a relatar ao mesmo tempo vários


acontecimentos relacionados a andar de bicicleta e a professora conduziu a
compreensão o fato de que ninguém nasce sabendo.
PROF. – Por que eu fiz esta pergunta? Matemática é igual a andar de
bicicleta. A gente não nasce sabendo, a gente cai. Machuca. Rala. Mas quando a
gente aprende, vai embora e nunca mais esquece.

Seguindo ela corrige uma divisão que estava errada e todos colaboram
respondendo as perguntas.

PROF. – Se eu falar em libras com você será que você me atende ÍRIS? Já
falei milhões de vezes, mas acho que você não escuta. – Disse ao aluno ÍRIS que
estava conversando alto.

ÂMBAR – Ele fumou maconha hoje Tia. – Disse apontando pra o colega que
tagarelava.

Enquanto seguiam as correções um grupo de meninas conversava perto de


mim. O fato que me chamou a atenção foi que uma delas gesticulava muito,
arregalava os olhos e se fazia entender de forma muito clara.

MARGARIDA – A cobra peçonhenta tem o olho fininho – Gesticulou com o


dedo, fazendo sinal de fininho – já a que não tem veneno tem o olho redondo.

O curioso é que ela falava com suas colegas e apontava com a cabeça
indicando uma menina que sentava na carteira à sua frente.

A professora pergunta se um aluno terminou. Ele diz que sim.

PROF. – Terminou mesmo ou copiou de alguém?

ÂMBAR – Não terminei.

PROF. – Não terminei ou Não, terminei? – Falando esta ultima ela acentuou a
voz para dar ênfase a vírgula da frase.

ÂMBAR – Não, terminei.

PROF. – É, a língua portuguesa é essa. Vamos tomar cuidado.

Enquanto isso, uma menina da fila da frente começa a falar sobre chás e
narra a utilidade de cada tipo de chá como se fosse uma professora explicando para
seus alunos.

Depois destes eventos, a professora passa de caderno em caderno corrigindo


as atividades individualmente e dando dicas de como chegar ao resultado das
divisões de forma mais rápida. Perto de terminar as correções ela anuncia que em
seguida irão passar para as atividades do IQE.

Perguntei pra um aluno o que era este IQE e na mesma hora vários deles se
viraram e começaram a me explicar, todos ao mesmo tempo, cada um dizia uma
coisa diferente, mas somando as informações pude ter uma ideia geral do que era.
A professora, que assistira a cena, esperou os alunos e alunas terminarem de
me responder e me explicou, ela mesma, que o IQE era o instituto de qualidade no
ensino, que era um instituto que, através de avaliações especificas ao longo do ano,
media o nível de desempenho escolar do ensino publico no país inteiro.

Ao iniciarem as leituras da prova do IQE a professora entra no critério de


diferenciar os conceitos de aprender e decorar. Ela entrou nesta questão porque o
aluno ÍRIS não soubera responder a uma pergunta que, pelo que pude perceber,
eles já tratavam disso há algum tempo.

PROF. – Isso é porque você decorou, é muito diferente de aprender

PROF. – Lilás você lembra de alguma coisa que aprendeu no trabalho que
fizemos sobre o estado do Amazonas?

Nesta ocasião, a aluna em questão mal deixou a professora terminar a


pergunta, já se levantou e, ofegante, começou a dizer tudo que sabia sobre a
população, a fauna, a flora, os rios, o clima o valor histórico, econômico e cultural
além varias outras informações.

No momento seguinte a professora conduz a turma de volta à correção das


provas do IQE. A primeira atividade do programa consiste em analisar de destacar
todos os elementos de uma carta. Terminada a leitura da primeira linha a professora
pede que alguém explique do que trata a carta e nenhum dos alunos/as levantou a
mão.

PROF. Ninguém minha gente? Vamos ler de novo em voz alta.

PROF. /ALUNOS/AS – “Venho com esta carta solicitar o calçamento da rua


dos Sabiás”

A professora percebeu que eles ficaram encabulados, e rapidamente


escreveu no quadro a palavra solicitar.

PROF. – Esta palavra quer dizer o quê?

Os alunos começaram a dizer, um a um, o que significava a palavra.

Os chutes foram os seguintes: perguntar, mandar, pedir, ordenar, avisar,


limpar, calçar e fechar.

Um fato que se destaca neste episodio é que somente uma menina, que por
sorte sentava bem no meu campo de visão, caso contrário eu não perceberia,
cutucou a coleguinha da frente e sussurrou no ouvido dela. Neste momento a
coleguinha levantou a mão e disse:

CEDRO – Pedir.

PROF. – Isto mesmo, pedir.


Percebi que a menina era bastante tímida. Apesar de saber a resposta certa
ela não quis falar com a própria voz, também notei que até então eu não havia me
dado conta da presença dela. A partir de agora, já que trata-se de um caso digno de
mais atenção nos referiremos a esta aluna como T.A.

Depois disso refizeram a leitura e desta vez todos compreenderam. A leitura


segue e a professora caminha analisando minunciosamente todos os elementos
textuais com bastante atenção.

Depois de lida a carta a professora começa a estimular a imaginação das


crianças em volta dos elementos pragmáticos do texto, fazendo-os refletirem
criticamente entre a rua citada na carta e a rua em que eles próprios moravam.

PROF. – Parece a nossa cidade né? É só trocar o nome e fica igualzinho.


Cheia de buracos, de problemas e ninguém liga.

Na retomada dos elementos textuais os alunos ficaram confusos sobre o que


é emissário e destinatário.

PROF. – Destinatário é quem destina, quem envia, esta palavra vem de


destino. É pra quem vai à carta. Remetente é quem remete. O que é remeter?

JACINTO – Jogar.

A professora brinca que vai jogar os papéis em sua mão na aluna e diz em
tom de brincadeira:

PROF. – Remetente é quem remete, quem envia – Dizendo isto ela fez gesto
de enviar os papeis em suas mão ao aluno que sentava a frente

A aula segue neste direcionamento até que a merendeira anuncia o lanche.


Eles param pra lanchar e brincam o recreio dentro da sala mesmo. Na volta ao
conteúdo eles seguem estudando os elementos da carta.

PROF. – A data da carta tem a função de estabelecer um prazo.

Percebendo que eles não captaram a mensagem ela pergunta – O que é


estabelecer?

CEDRO – É dizer como tem que ser

PROF. – Isto mesmo, é estabelecer.

Ainda falando sobre os buracos da cidade referida na carta eles refletiram


juntos sobre politica e se aprofundaram em vários aspectos do que diz respeito às
responsabilidades dos prefeitos, vereadores, governadores e presidentes.
A leitura da carta termina e a professora passa como tarefa pra casa escrever
uma carta livre nos moldes da carta apresentada pela prova do IQE em todos os
seus elementos. Neste ponto a professora disse:

PROF. – Quando a gente escreve, ou ate mesmo fala para alguém, a gente
tem que se certificar que a gente foi claro, pra a pessoa poder entender. Na outra
carta que eu pedi uma pessoa escreveu: “ Só jogar o lixo na rua amarrada” Como é
que a gente vai amarrar uma rua?

PETÚNIA – A bolsa né Tia? – Provavelmente a autora da carta

PROF. – Mas a pessoa não falou de bolsa na carta. Como é que o


destinatário vai saber? Teria que ter escrito assim: “Só jogar o lixo na RUA se a
BOLSA estiver amarrada”

Em seguida os alunos se ocuparam de um exercício proposto na prova do


IQE. Tratava-se de reescrever ajustando uma carta apresentada que estava escrita
fora do padrão apontado como ideal no enunciado do exercício.

Durante a realização do exercício percebi a aluna MARGARIDA ajudando


os/as colegas que sentavam perto dela. Ela gesticulava e falava com bastante
clareza, ao que pude perceber imitava os gestos da professora. Esta mesma aluna
se pronunciava em vários momentos da aula e suas respostas eram sempre certas.
Para distinguir esta aluna dos demais sujeitos denominaremos ela a partir de agora
de D.A.

D.A. – Estou copiando tudo numa folha pra só depois colocar na folha.

ANGÉLICA – Demora muito.

D.A. – Mas fica perfeito, não corre o risco de errar.

Os alunos, neste momento começaram a se dirigir ao birô pra tirarem dúvidas


particulares.

PROF. – Não vou dizer não! Se fosse qualquer coisa sobre futebol você faria
sozinho, seria o primeiro da sala, volte, sente e faça. – Disse ela ao aluno ÍRIS que
constantemente atrapalhava a aula com conversas paralelas com outros meninos.

Despois de alguns instantes o mesmo aluno anunciou em voz alta que achara
o elemento e então a professora ordenou que ele lesse em voz alta, depois da
leitura todos aplaudiram. Percebi que este aluno deveria ser tido até o momento
como um mau leitor porque em vários momentos outros alunos leram e ninguém
aplaudiu.

Em seguida, este mesmo menino me abordou.

ÌRIS – Ser professor é ruim, trabalha muito. Tu vai ser professor de quê?
EU. – De várias matérias, e eu gosto de ser professor.

ÍRIS – Como tu sabe se tu gosta se tu ainda não é professor? A Tia disse que
tu tava estudando ainda.

EU – Mas eu já sou professor de música.

ÍRIS – Ah, e agora tá estudando pra ensinar matérias.

EU – Isso!

ÍRIS – E que instrumento tu toca? Meu pai me colocou na aula de bateria,


mas eu sou muito burro e não aprendo nada, ai eu sai.

EU – Quem disse que tu é burro? Só porque não aprendeu bateria? Eu


também não consegui aprender bateria, mas ai estudei violão, violino, piano e canto
e hoje eu ensino violão, já minha irmã aprendeu bateria sozinha, porque ela tem
mais jeito pra bateria que eu. Cada um tem mais jeito pra uma coisa. Tu gosta de
bateria?

ÍRIS – Não, gosto mais de violão, mas eu gosto mais de bola.

EU – Então!

Percebi que este menino era muito comunicativo, apesar de dar respostas
erradas e de ser as vezes corrigido com certa severidade, ele não parecia se abalar
e continuava participando e atrapalhando a aula. Ele também foi o primeiro a falar
diretamente comigo e mesmo antes de me abordar, percebi que ele falava com
outros colegas e apontava pra mim. Já que é um sujeito que merece mais atenção
pelo fato ser muito cominativo o chamaremos a partir de agora de aluno D.O.

Apreciação do primeiro dia

Foi de fato uma experiência enriquecedora esta primeira imersão na escola


com o olhar analítico voltado para meus objetivos específicos. A escola é um
ambiente mais multifacetado do que eu me lembrava. É possível ver melhorias a
serem feitas para onde quer que se olhe, apesar das maravilhas que lá se realizam.
Também pude assumir que, tal como diz SACRISTAN, a prática pedagógica não
pertence por inteiro ao professor. Existem elementos que estão longe do seu
alcance por diversos fatores. A discrição e o silêncio de T.A me fazem pensar sobre
quanta atenção e sensibilidade são necessárias para perceber um aluno com
excelente potencial que não se destaca por timidez, e, na existência de outros
fatores, descobrir quais e como trabalha-los a fim de promover um desenvolvimento
mais pleno não só da linguajem, mas da experiência humana de forma geral.

D.A. e D.O também me chamaram atenção por motivos distintos. D.A. é a


aluna mais desenvolta da sala no quesito linguajem e comunicação. Além de polido,
o seu português é reforçado com expressões faciais e gestos que lhe conferem
maior clareza em suas emissões, ela aparentemente imita a professora quando
explica alguma coisa para os/as colegas que sentam à sua volta, já D.O., me chama
atenção por ser, a partir do que percebi, o aluno mais comunicativo da sala. Ele fala
rápido, o que sugere um pensar rápido, e faz perguntas e colocações que a maioria
dos demais alunos/as não fariam, como a intervenção que fez ao fato de eu ser
chamado de professor sem ser ainda formado. Além disto, ele também me chama
atenção por ser, ao contrario de D.A., indisciplinado. Irei afunilar minhas
observações sobre os dois no sentido de perceber se a professora nota estes
destaques e se trabalha estas qualidades a fim de um melhor desenvolvimento da
linguagem.
Segunda imersão.

Dia 18/10/2017

Quando cheguei na sala os alunos estavam fazendo, a frente do quadro, um a


um, a leitura das cartas que produziram no dia anterior. A cada leitura bem sucedida
a turma aplaudia com entusiasmo e a professora chamava atenção para os
elementos mais significativos de cada carta

A terceira aluna que leu depois da minha chegada foi a aluna T.A.. Ela leu
num tom de voz inaudível, mesmo com muito esforço não consegui escutar uma só
palavra do que ela dissera.

PROF. – A carta de T.A. falava de quê? – Ela também fez isso nas leituras
anteriores para estimular a resposta e a interação dos alunos e corrigir alguma
possível falha.

ALUNOS/AS – Ninguém escutou. – disseram em coro.

A professora com um tapinha carinhoso tocou as costas de T.A. e ela foi


sentar.

PROF. – Tá vendo este daqui? – Disse falando com a turma apontando o


aluno que estava terminando sua leitura bem sucedida na frente de todos – É o meu
orgulho. Até o ano passado não lia nada. Quantas vezes fiquei aqui com ele,
sozinha, até depois da aula, Tinha uma dificuldade enooorrme e hoje ele faz tudo.
Se eu tivesse apenas ele, minha vida toda, já teria valido a pena. – O aluno sorria
orgulhoso de si e voltava pra sua carteira abraçado ao caderno.

Seguindo, uma aluna esqueceu o destinatário.

PROF. – Pra quem você vai mandar? Tem que saber. Coloque.

Chegou a vez de D.A ler. A aluna leu compassadamente sua carta


respeitando e acentuando toas as vírgulas pra se fazer o mais clara possível. Ao
termino da leitura foi aplaudida como os demais

PROF. – Só faltou aqui ó – apontou na folha – você não vai MANDAR você
vai SO-LI-CI...

ALUNOS/AS – TAR.

PROF. – Solicitar, lembram de ontem? Já imaginou a prefeita pegando a carta


e vendo vocês MANDANDO nela? Será que ela ia gostar?

Numa outra leitura a professora fez o seguinte destaque:


PROF. – Vocês precisam prestar atenção, tanto na fala como na escrita, em
coisas assim ó – e escreveu no quadro: ALAGADOS / ALARGADOS – Qual é a
diferença?

ALUNOS/AS – O “R”

PROF. – É, mas além disto, elas tem significados diferentes. Alagados


significa o quê?

D.O. – Cheio de água.

PROF. – E alargados?

D.O. – É uma coisa que tá bem aberta.

PROF. – Tá vendo? A palavra é parecida de falar, mas não tem nada a ver.
Quando a carta diz que as ruas estão alargadas a prefeita vai conseguir entender
que estão cheias de água ou vai entender que são largas?

Seguindo com outro exemplo da mesma carta ela diz:

PROF. – Aqui também ó, DESTA e DESSA, se a carta está perto de você


então vamos escrever?

ALUNOS/AS – DESSA/ DESTA – responderam ao mesmo tempo

PROF. – DESTA! Se ela pra o que está perto usamos desta, dessa – disse
apontando pra uma carta sobre a sua mesa – dizemos quando está longe.

Seguiram algumas dicas desta natureza até que uma aluna do fim da fila teve
que se dirigir à frente para ler sua carta. Ela se levantou dizendo que não queria ler
e que a carta dela estava uma merda, a professora brincou e disse que todos iriam
ler. Em alguns momentos, durante a leitura, a menina parava e fazia de conta que ia
embora, a professora brincando puxava ela de volta pra junto de si. Toda a turma ria
e a menina ficou bastante satisfeita quando ao final de sua leitura não houve
nenhuma correção e todos aplaudiram.
Depois da leitura das cartas outra atividade da prova do IQE foi proposta e os
alunos foram apontados para fazerem partes da leitura de um texto que serviria de
base para os exercícios sequentes. Eles liam até o final dos parágrafos onde outro
aluno seguiria a leitura. Uma aluna começou a leitura e a fez corretamente,
seguindo, D.A. deu continuidade lendo muito bem até que deixou de acentuar uma
palavra, neste momento a professora pediu que ela repetisse a palavra, e ela
automaticamente corrigiu a palavra que havia errado. No próximo parágrafo outro
aluno também leu corretamente e depois dele foi a vez de D.O. seguir a leitura. Na
primeira linha ele deixou de pronunciar um acento e seguiu a frase sem respeitar a
vírgula, neste momento a professora automaticamente deu, ela mesma,
continuidade a leitura que só foi entregue a outro aluno no próximo parágrafo.
Na sequência eles se debruçaram sobre o exercício proposto e se põe a
responder. Ocasionalmente a professora é chamada às carteiras a pedido dos
alunos que querem se esclarecer sobre detalhes da tarefa. É digna de atenção a
postura da professora que, diante de tantos pedidos ao mesmo tempo, consegue
atender a todos os alunos que se pronunciam. É perceptível também que ela se
dirige a alguns com uma fala mais rebuscada e técnica, provavelmente àqueles que
têm uma compreensão maior da língua e dos elementos gramaticais utilizados no
texto, com outros, pelo contrário, ela fala da maneira mais simples possível e repete
pacientemente quando percebe que não foi compreendida buscando sempre uma
maneira mais acessível de falar. Além da seriedade necessária para o cumprimento
de sua função pude perceber que a professora não deixa de incorporar uma
afetividade espontânea em sua prática pedagógica. Em vários momentos, junto as
carteiras, ela corrige os alunos com um tom descontraído e carinhoso, encorajando-
os sempre e se podo a disposição.
Terminado o exercício os alunos vão merendar e recrear. Ao contrário do dia
anterior, este recreio foi bem mais turbulento. Parece que os alunos já se
acostumaram à minha presença e não fazem mais nenhuma cerimônia. A professora
saiu por alguns instantes da sala e o caos reinou com alegria e bastante barulho. Ao
retornar para a sala a professora faz sinal de comando e diz: - Ordem no tribunal.

A professora começa a coordenar uma atividade para alguns alunos que


estão atrasados e o restante da turma se divide em grupos para um exercício de
matemática.

JACINTO – Hô tia eu já contei um mói de vez e só dá 37 e 39.

PROF. – Pois não pode, se você já contou várias vezes e não bate deve estar
copiando algum dado errado. Ou dá 37 0u dá 39. Tem que bater.

O Aluno D.O. pede para ir no sair enquanto outro está fora.

PROF. – Você não vai sair agora de jeito nenhum. Você infringiu a lei o ano
todinho, falei o ano todinho e você nem ligou.

D.O. – A senhora não disse nada e eu já quero ir faz tempo

D.A. – Ela falou isso o ano todo, todo mundo sabe.

PROF. – Tá vendo ai ? Ainda bem que tem testemunha

ANGELICA – Ela sempre disse que não podia sair de dois.

PROF. – Mais um, tá vendo, causa ganha

Depois que o aluno que estava fora voltou a professora ordenou que D.O.
fosse. Não demorou muito para a aula acabar.
Apreciação do segundo dia

Uma reflexão que se fez pertinente neste segundo dia de imersão é que por
mais que a prática pedagógica aplicada em sala de aula seja no sentido de forjar
nas crianças uma autonomia critica e um perfil humano e criativo as vezes, forças
exteriores que atuam na escola são no sentido de podar a imaginação e direcionar a
formação das crianças num sentido único de ser.

No mesmo caderno de exercícios do IQE em que estavam o modelo de carta


e o espaço para escrever cada um a sua carta pessoal existiam mais dois exercícios
ainda neste mesmo direcionamento de análise sobre o gênero textual carta. Um
deles apresentava todos os elementos descritos no texto como necessários para a
construção da carta só que sem o posicionamento considerado ideal, isto é, com
remetente, data e mensagem escritos na mesma linha sem os espaçamentos
devidamente delimitados que a carta-modelo apresentava na primeira folha. O outro
exercício apresentava uma só carta escrita por duas crianças diferentes, em que
cada uma delas se apresentava e emitia a mensagem separadamente, como se
escrevessem cartas distintas só que num mesmo corpo. O fato é que as duas cartas
consideradas erradas eram capazes de transmitir a mensagem plenamente sem
nenhum empecilho, apenas estavam fora do padrão apontado como ideal. Se
levarmos em consideração que estamos falando de crianças em formação, talvez
fosse pertinente que o exercício apontasse a liberdade que a escrita e a fala podem
ter mesmo frente à necessidade de se aprender o padrão normativo, mas ao
contrario disto, elas eram consideradas erradas e as crianças eram direcionadas a
ajustá-las ao padrão.

A professora conversando comigo sobre estas atividades do IQE disse que as


vezes estes exercícios e até os livros didáticos de certa forma engessavam o
conteúdo ministrado em sala de aula pois eles eram base de uma avaliação geral
que media o nível do ensino em todo o país, desta forma, por mais que houvessem
exercícios mais significativos a se realizar eles não podiam se distanciar destes
primeiros pois caso contrário o nível cairia nas pesquisa de qualidade de ensino, o
que traria uma série de inconvenientes a respeito da educação no estado.
Terceira imersão.

Dia 19/10/2017

Na minha terceira imersão cheguei em uma aula de fração. A professora fazia


a leitura de frações escritas no quadro e a turma aparentemente não demostrava
nenhuma dificuldade. A atividade que seguiu a leitura consistia em recortar as
figuras geométricas de uma das folhas da prova do IQE e colar em outra de modo a
ficar cada grupo de imagens dentro do círculo que representava os grupos a serem
divididos por igual, devendo ficar sempre em números pares, 16 imagens que seriam
divididas e coladas em quatro grupos com quatro imagens cada. A professora
constantemente usava expressões de apoio e encorajamento para com os alunos/as

Um garoto fala que esqueceu a tesoura em casa e a professora, num tom que
mesclava seriedade e brincadeira responde:

PROF. – Sabe o que é isso? Vocês se concentram demais em tecnologia e


acabam esquecendo das outras coisas. Daqui a pouco vocês esquecem a cabeça
em casa, vai vir só o corpo.

PROF. – Quem já terminou empresta a tesoura pra quem esqueceu em casa.

D.O. – Hô Tia pode drobá assim?

PROF. – Pode o quê?

D.O. – Drobá

PROF. – Pode o quê?

D.O. – Drobá

PROF. – Pode o quê? – falou mais alto, para a turma responder.

ALUNOS/AS – Dobrar.

PROF. – Muito bem, dobrar pode. Vejam, vocês tinham uma folha inteira,
agora dividiram...

ALUNOS/AS – No meio

PROF. – AO MEIO. Agora que vocês dividiram...

ALUNOS/AS – AO MEIO

PROF. – ...Vocês tem duas metades. Duas metades pode ser meio quilo de
açúcar pode ser meio litro de leite, não importa, vai ser sempre um inteiro dividido
por dois.
As explicações seguem nesta direção e os alunos continuam recortando e
colando as figuras. Pelo que pude perceber, todos os alunos fizeram corretamente a
atividade menos a dupla em que estavam T.A. e um menino que até então eu não
havia percebido.

PROF. – Se eu dou a metade de um quilo de açúcar pra minha vizinha eu vou


ficar com...?

ALUNOS/AS – Quinhentas gramas

PROF. – QUINHENTOS gramas. Quando a gente trata de números assim a


gente vai tratar sempre no masculino. Se a gente falar de quintas gramas a gente vai
estar falando de grama de capim.

PROF. – Coloquem ai os dois terços que vocês já colaram sobre os dois


terços que acabaram de colar.

Os alunos começaram a tentar todas as possibilidades menos a que foi


indicada. A professora por alguns instantes procurou com os olhos algo que não era
visível na sala e logo mais, numa expressão facial de quem compreendera, retomou
a fala.

PROF. – Sobre os três pedaços. SOBRE – repetindo a palavra ela posicionou


uma mão por cima da outra – Sobre quer dizer em cima – Agora se eu tivesse dito
SOB – ai voltou a mão para baixo da outra – ai seria em baixo.

ALUNOS/AS – Ah ...

Todos os alunos se envolvem e interagem para realizar as atividades de


fração, minhas recordações das aulas de fração não eram tão coloridas, talvez eu
não tenha tido uma professora tão espontânea como esta que eu agora observava.

Quando todos acertavam juntos o barulho era ensurdecedor. Durante a leitura


das provas do IQE a professora aproveita para estimular e avaliar a leitura dos
alunos. A maioria deles lê sem muita timidez, alguns ainda demonstram bastante
prazer na leitura. A cada palavra mais difícil, palavras que não são tão comuns ainda
para esta idade das crianças, a professora pausa e explica o que quer dizer. Neste
momento pude destacar que as crianças tiveram dificuldades com as seguintes
palavras: Painéis, dividendo, quartos (numeral) e confeccionar, para cada uma das
explicações das palavras uma tática diferente foi usada. Para explicar painéis ela
falou exatamente o que era um painel, já para explicar o que era um quarto ela
simplesmente desenhou o um sobre o quatro e disse “um SOBRE quatro” ao falar a
palavra sobre ela repetiu o gesto de mão que fizera há poucos instantes atrás.

Terminada a prova do IQE eles partem para a aula de ciências. Logo no início
da aula uma menina saiu do seu canto, que era bem na minha frente, e rindo foi até
o canto oposto da sala, se agachou junto a uma aluna bem calada e sussurrou
alguma coisa no ouvido dela com um sorriso zombeteiro. Neste momento a menina
ficou rubra, se levantou visivelmente chateada e gritou:

MAGNÓLIA – Pergunta se ele quer a do meu pai também. – e voltou a sentar


com a cara feia.

PROF. – O que é isso? O que é isso? Pode me dizer...Vamos, eu quero ouvir


– disse a professora firme.

A menina que se levantara disse que tinha escutado D.O. e outro menino
falando alguma gracinha sobre MAGNÓLIA, foi até ela e contou. A professora se
apressou em responder.

PROF. – Em primeiro lugar você já está errada em sair levando e trazendo


conversa. Você ouviu isso?

PETÚNIA. – Ouvi sim.

PROF. – Tem certeza?

PETÚNIA – Ouvi sim. – Disse sorrindo. A professora se virou para os dois


meninos e disse:

PROF. – Já falamos sobre isto. E você sempre com estas brincadeiras


chatas. Todo mundo sabe que ela não gosta destas brincadeiras, de brincadeira
nenhuma, nem eu brinco com ela, ela nunca gostou e todo mundo sabe. Não tem
nada demais em brincar com estas brincadeiras, mas brinquem com quem gosta e
brinquem fora daqui da sala, fora do portão não tem problema, mas aqui é lugar de
estudar. Eu sei que vocês, principalmente os meninos estão com os hormônios à flor
da pele, mas aqui não é o lugar e nos temos que respeitar o coleguinha.

Voltando à atividade a professora passou uma atividade que consistia em


fazer uma entrevista com os familiares sobre instrumentos que não existiam quando
eles eram mais jovens e agora existem, instrumentos como o celular, e que facilitam
a vida das pessoas, mas também tem aspectos negativos. Depois disso ela pediu
que tirassem os livros de ciências, muitos dos alunos esqueceram e a professora
saiu anotando o nome de todos que haviam esquecido, pois já havia reclamado disto
muitas vezes.

PROF. – Você esqueceu o livro?

AMBAR – Não.

PROF. – Cadê ele?

ÂMBAR – Tá em casa.

PROF. – Então você deixou em casa, esqueceu!


ÂMBAR – Não. – Disse rindo.

PROF. – Então tá me fazendo de besta.

ÂMBAR – Não.

PROF. – Qual foi a pergunta que eu fiz?

ÂMBAR – Se eu esqueci, mas eu não esqueci, quem esqueceu foi minha mãe
que é ela quem faz a minha bolsa.

A professora riu, fez uma cara séria e pulou de banca depois de anotar o
nome do menino. Depois disso a professora retoma a aula explicando que todas as
invenções humanas acabam tendo lados positivos e negativos. Este diálogo foi
cheio de reflexões e abstrações que cativaram as crianças, foi o momento de mais
atenção nestes dias em que estive entre eles até agora. As crianças ficavam
surpresas ao descobrirem que mesmo invenções maravilhosas como a eletricidade
traziam escondidos em si aspectos negativos bem como impactos sobre o meio-
ambiente.

Depois deste momento eles partem para a leitura do livro, neste momento
dizia o nome de quem deveria ler. Alguns alunos que não eram chamados a ler se
pronunciavam e ela permitia que lessem. D.O. não foi convidado à leitura mas pediu
pra ler. Ele começa a ler sem muita habilidade, no primeiro erro mais grave a
professora segue a leitura sem que o aluno a acompanhe. O que me chamou a
atenção neste episódio foi que depois de D.O. a aluna D.A foi apontada pra ler e
também errou, neste ponto uma coleguinha a corrigiu em voz alta, mas a professora
interveio e disse:

PROF. – Deixe ela se corrigir, ela vai se achar. – A aluna segue a leitura.

A professora, ao longo do final da aula, demonstrou exercer um enorme


fascínio sobre os alunos. Ainda no tema de invenções humanas eles começaram a
refletir sobre a vida do ser humano antes de invenções e descobertas como o fogo,
que cozinha os alimentos, os medicamentos, e os meios de transporte. Sua
imaginação em voz alta ia longe, por vezes beirando a digressão, os alunos
viajavam junto com ela e falavam em voz alta suas deduções sobre como era a vida
naquela época distante. Outro aspecto significativo é que ela apenas iniciava o seu
pensamento, mas não concluía, deixava com eles a missão de concluírem o pensar.

PROF. – Aí o que aconteceria se eles se perdessem no mar, sem saber se


conseguiriam chegar no outro lado? Sem nem saber o que tinha do outro lado, Sem
motor no barco, só remando...
Apreciação do terceiro dia

Neste dia de imersão, o fascínio ao qual Freire se refere ficou claro, não só
como instrumento para o desenvolvimento da linguajem, mas também da
imaginação. Por vezes este final da aula mais parecia uma narrativa de fantasia do
que uma aula de ciência, digo isto no sentido positivo da fantasia, da capacidade de
estimular a imaginação. Por vezes algum aluno extrapolava na imaginação saindo
completamente do tema proposto e a professora ao invés de cortar a “viajem” do
aluno o conduzia de volta ao centro da questão sem desprezar sua contribuição
demonstrando respeito e interesse.

Outro aspecto que ficou claro foi que, ao contrário do que pode parecer a
partir da leitura deste diário de campo, a professora não demonstra antipatia para
com o aluno D.O., ela é carinhosa com ele na mesma medida que o é com os
demais. As reflexões que fizeram sobre as invenções humanas deixou isto muito
claro, ele foi um dos que mais participou e ela o encorajou e pensou junto com ele.
Porém, as correções que faz quando ele fala ou lê são sempre no sentido de, ela
mesma corrigir e encerrar a participação dele, já em outros casos, ela conduz o
aluno/a a encontrar sozinho/a seu erro e corrigir-se. Não estou inclinado a pensar
que se trate de birra. Talvez as leituras mal feitas do aluno, somem-se as conversas
paralelas protagonizadas constantemente por ele causem um cansaço da parte dela
para com ele. Notável também é que o aluno não percebe, ou não demonstra
perceber esta diferença no sentido das correções a ele destinadas nem tampouco
deixa de demonstrar interesse em participar da aula. Penso que por ter se
aproximado de mim ele talvez não queira fazer feio na frente da visita, de toda
forma, o que interessa neste caso é continuar na tentativa de descobrir quais
elementos agem no desenvolvimento da linguajem deste aluno e qual é a influência
da pratica pedagógica sobre ele exercida, uma vez que ele é o aluno mais
comunicativo da sala.
Quarta imersão.

Dia 20/10/2017

No meu quarto dia de imersão o início da aula foi de educação física. Foi uma
maravilhosa experiência a céu aberto. A escola não tem quadra, mas conta com um
enorme terreno de areia ao lado da escola e anexo à ela e é lá que se realizam as
aulas de educação física. Como estavam todos envolvidos em suas atividades
físicas não pude captar quase nada das falas ditas durante a aula, mas a simples
observação da cena diante de mim me comoveu profundamente e me trouxe uma
bonita compreensão do que é ser educador, principalmente de crianças.
Neste ponto, já muitas coisas mudaram em mim a partir desta experiência de
olhar a escola pelo lado de dentro com os olhos de um pedagogo em formação.
Tudo que eu imaginava sobre a educação infantil mudou. Não passava antes pela
minha imaginação que trabalhar com crianças pudesse ser tão maravilhoso e
recompensador. Ainda não sou eu quem ensina, mas já vibro à cada palavra que
eles passam a pronunciar corretamente, a cada abstração que desenvolvem usando
expressões que eles assimilaram a tão pouco tempo atrás. Já começo a pensar no
caminho que eles irão trilhar daqui pra frente, nos desafios, nos aprendizados, nas
conquistas. Penso que deve haver certa tristeza entre tantas alegrias ao ver que
cada um dos alunos aprovados irá seguir seu caminho um pouco, ou talvez muito,
distante dos olhos que durante um ano inteiro se preocuparam em oferecer o seu
melhor para sua formação. Ser educador é como ser pai um pouquinho, embora a
prática pedagógica não seja infalível, é preciso oferecer o melhor que temos e
conviver com a incerteza de sucesso e com a triste possibilidade de ser esquecido
no ano que vem.
Outra reflexão que me veio foi até que ponto o educador tem consciência
permanente da utilização da afetividade como instrumento em auxilio da formação
de seus alunos? Uma das atividades na aula de educação física consistia em três
fileiras de alunos deitados no chão, virados pra baixo, enquanto três alunos, um em
cada fileira, pulavam os que estavam deitados até chegar ao final da fileira, depois
eles corriam até uma bola posicionada mais a frente, pegavam a bola e voltavam,
outra vez pulando os alunos deitados pra, quando chegassem até o inicio da fileira,
entregar ao ultimo aluno deitado que pegaria a bola e pularia os outros todos e
devolveria a bola tá o lugar e assim recomeçar o ciclo. Em vários momentos, o que
parecia, ao observar a professora, é que ela não era uma líder, mas uma menina
crescida brincando em igualdade com os demais. Todas as ordens que partiam dela
eram obedecidas sem questionamentos. Ela não se impunha pelas vias da força,
mas pela via do carinho. O que notei foi que a professora não utilizava a afetividade
como um instrumento qualquer que depois de utilizado, como uma caneta, volta a
ser guardado à espera do próximo uso. A afetividade passa muito mais pelo
caminho do que tem sentido ao invés do caminho do que é útil. Nos momentos de
exigir ordem em meio ao alegre caos das crianças, um rigor afetuoso se desenhava
em suas sobrancelhas e nas linhas de sua testa. As crianças obedeciam às suas
ordens afetuosas com um sorriso zombeteiro. As ordens eram transmitidas numa
linguagem silenciosa e afetiva que não precisa de fonemas pra se fazer ouvir. A
afetividade se amalgamava à autoridade sem a necessidade de força. Não era medo
nas crianças. Era carinho.

Voltando para a sala de aula, depois de um curto período no banheiro, os


alunos retomam o exercício de fração. Este exercício ocupou os minutos seguintes
até o término da aula.
Durante toda a explicação sobre a leitura de números fracionados somente
D.O. assumiu não ter compreendido quando utilizar a nomenclatura “avos”, mas
apesar dos demais não se manifestarem nenhum deles/as repetia, no tempo certo, a
leitura da professora. Somente a aluna T.A. balbuciava silenciosamente a leitura
errada dos números. A professora repetiu a explicação com paciência e de maneira
clara. D.O. teve dificuldade de entender por que se utilizava avos para 103, por
exemplo, e não se utilizava avos para 100 ou para 200. Mesmo sendo o mais clara
possível, D.O. precisou que a professora repetisse a mesma explicação três vezes,
aparentemente ele tem dificuldade com leituras. Depois das explicações ele seguiu
lendo os números corretamente, mas notei que T.A. ainda não havia entendido e
seguia com a dificuldade calada. Num erro seguinte cometido por D.O. a professora
disse:

PROF. – Você não está prestando atenção em nada, assim fica difícil de
explicar.

Eu estava sentado exatamente atrás de D.O. e ele estava prestando atenção


sim, dava pra ouvir ele falando os números baixinho antes de arriscar falar em voz
alta, o caso é que ele realmente estava com dificuldade. Depois de notada esta
dificuldade a professora escreveu vários exemplos no quadro e perguntou
especificamente a ele, e com paciência e a ajuda da professora, ele conseguiu
responder todos sem cometer erros.

Antes de encerrar a aula a professora passou como lição para casa um


exercício que seria substituir algumas colocações de um conto das avaliações do
IQE sem contudo alterar o seu sentido.

PROF. – Se eu falar em “A raposa e as uvas”, se eu falar assim vocês já


sabem que é uma fábula né? O que é fábula?

ALUNOS/AS – Uma estória.

PROF. – Muito bem, uma estória. Qual a diferença entre uma HISTORIA –
disse escrevendo no quadro com letras maiúsculas – e ESTÓRIA?

D.A. respondeu corretamente e foi aplaudida.

PROF. – Aqui ó, era uma vez, era uma vez pode ser substituído por quê?
ALUNOS – Em uma cidade/ antigamente/ há muito tempo atrás...

PROF. – Em uma cidade não pode. “Em uma cidade” é muito diferente. Por
quê?

Os alunos fizeram um tremendo barulho tentando responder todos ao mesmo


tempo.

D.A. – Era uma vez tá falando que faz tempo. Não tem nada a ver com lugar.

PROF. – Exatamente. Era uma vez se refere a tempo, não tem nada a ver
com lugar, muito bem.

D.O. estava perguntando pra o colega do lado algo sobre os termos utilizados
e a professora pensou que ele estivesse conversando qualquer coisa.

PROF. – Amanhã você vai sentar aqui na frente, você não presta atenção em
nada.

D.O. – Mas eu tava pergun...

PROF. – Vai sentar aqui sim, não quero saber.

LILÁS – Não Tia, ele é muito alto.

PROF. – Mas vai ser o jeito pra ver se ele vai aprender alguma coisa daqui
pro final do ano. Você tá brincando de “vamo ver” né? Empurrando com a barriga. –
disse olhando pra ele.

Os alunos começaram a se arrumar pra ir embora assim que eu terminei de


arrumar o meu material D.O se virou e perguntou se eu voltaria semana que vem, eu
respondi que sim. Ele sorriu e se despediu de mim.

D.O. – Pois té semana que vem.

EU – Té.
Quinta imersão.

Dia 23/10/2017

No meu quinto dia na escola a primeira aula foi uma aula de artes. No quadro
estava escrita uma breve biografia do artista pernambucano Romero Brito. Depois
da leitura, feita pela professora, a sugestão de atividade era fazer um desenho da
palavra paz no estilo do artista. Falando sobre arte e pintura uma aluna da fileira da
frente acrescenta que diferente de Romero, algumas pessoas desenvolvem a pintura
e outras artes depois de sofrerem acidentes graves e traumas. A professora
embarca na abstração da aluna e aponta que diversos neurologistas apontam a arte
como uma ótima terapia.
Enquanto os alunos desenvolvem a atividade a professora anuncia que a
recuperação de historia será oral e será agora. Ela senta e chama, um a um, os
alunos que estão em recuperação pra junto de si. Os alunos se olham desconfiados.
Uns aparentemente achando graça, outros, notavelmente amedrontados. Com
algum esforço, consegui ouvir um pouco do que era dito.

PROF. – Quem se destacou na inconfidência mineira e por que ele foi morto?
PROF. – Por que as capitanias hereditárias eram chamadas de hereditárias?

Depois de alguns alunos que se dirigiram ao birô e rapidamente voltaram sem


responder nada a professora levanta e diz:

PROF. – Nenhuma das pessoas em recuperação até agora respondeu nada.


Tiraram zero.

O aluno D.O. não estava se saindo bem na aula de artes, ele não queria
cobrir as letras com lápis de tinta preta conforme a indicação da professora e diz
isso em voz alta.

PROF. – Eu já falei, quer fazer de grafite faça, mas na hora da avaliação vai
perder ponto.

Os alunos seguem suas atividades trocando informações e dicas entre si, uns
atentos outros nem tanto e pouco a pouco o barulho vai aumentando na sala de
aula.

PROF. – Qui é q tu isxtás a fzer? – Perguntou para D.O. imitando o sotaque


de Portugal – É, vou ver se falando em outro idioma você me atende.

A aluna T.A. voltou da recuperação pro seu canto mais para o fundo, com um
rosto um pouco abatido e uma colega do canto perguntou quanto ela tinha tirado.

PROF. – Tirou NADA, que eu nunca vi fazer prova sem estudar. – Disse do
birô, de onde esta.
Pouco depois disto o aluno D.O. vai até o birô mostrar sua atividade

D.O. – Tá bom agora Tia?

PROF. – Pronnnto, agora tá perf...Cadê a tela? Já disse um milhão de vezes


– falou num tom bem mais agudo – volte e faça a tela. – O aluno volta de cabeça
baixa.

Pouco depois uma aluna sai do birô, da recuperação, comemorando que tirou
dez.

LÓTUS – Também, na cagada.

PROF. – Como é LÓTUS? Eu ouvi direito? Que palavra ridícula é essa? Isso
é palavra pra usar com o colega? Melhor você ficar ai na sua se não eu coloco você
aqui pra responder as oito perguntas que..Melhor...ORQUIDIA, venha aqui. – A este
comando a menina que havia tirado dez voltou para a frente do quadro e a
professora repetiu todas as perguntas que ela já havia respondido, a aluna
respondeu todas as oito questões corretamente e todos os alunos aplaudiram.

PROF. – Tá vendo que não foi na “cagada”e pare de usar esta palavra com
os outros que é muito feio. Qual é o lema da gente aqui?

ALUNOS/AS – Não faça com os outros aquilo que não quer pra si mesmo. –
repetiram em coro.

A aula seguiu ainda um pouco neste sentido de fazer avaliações orais e


auxiliar os trabalhos artísticos. Depois a merendeira passou na sala servindo a
merenda. Os alunos pararam para merendar e brincar com seus colegas.

ARTEMÍSIA – Hô Tia eu não aguento mais não. – disse segurando o prato de


merenda.

PROF. – Aguenta. Ave Maria. Um bucho de lombriga desses. – disse num


tom brincalhão.

Depois da merenda a professora começa a entregar avaliações respondidas


da unidade anterior.

PROF. – Da próxima vez melhor vocês irem fazer as atividades no banheiro,


porque nunca vi tanta cagada, aproveita e já limpa com a prova mesmo. Já digo logo
que o papel não é nada confortável.

O aluno CARVALHO se aproximou de mim, um dos mais desatentos e dos


que mais precisa que a professora chame a atenção, me mostrou a sua prova, ele
me entregou a prova de matemática e havia tirado dez. na prova não tinha nenhuma
rasura e todos os cálculos haviam sido feitos, aparentemente, uma só vez, pois não
havia marcas de borracha.
EU – Eita, tirasse dez! parabéns!

CARVALHO – Foi na cagada – disse ele sorrindo encabulado.

EU – O que é “na cagada”?

Ele riu e não quis responder, estava encabulado. Eu repeti a pergunta


sorrindo e digo que não sei o que é, pois na minha cidade a gente fala diferente.

CARVALHO – É tirar só por tirar, assim sem saber de nada.

EU – Ah..., mas tu colocou todos os cálculos, e nem errou, olha aqui, nem
apagasse nada.

CARVALHO – É que eu sou muito bom em matemática, acertei tudo, não


errei nada, sempre acerto tudo em matemática.

EU – Então você sabe. Já eu sou um desastre, sempre passei na cagada.

Ele sorri e volta a se sentar na sua banca na primeira fila.

PROF. – A partir de agora, na quarta unidade, vai depender de vocês se vão


querer passar ou ficar aqui. É você com você mesmo...

CARVALHO – Depende de nós... – Começou a cantar e todos riram.

Neste momento eu pedi as provas da aluna T.A. para analisar suas notas e o
conteúdo das avaliações. Ela me deu um sorriso meio tímido e me entregou as
provas sem muita confiança. As provas dela tinham as seguintes notas:

Português 7.00
Geografia 6,00
Ciências 7,00
História 5,00
Matemática 9,00

Aproveitando que os alunos estavam distraídos com suas provas e com as


provas dos colegas a professora se aproximou de mim. Neste momento ela
perguntou se eu também estava analisando o conteúdo das avaliações e eu
expliquei que por estar observando a linguajem, destaquei alguns sujeitos que
haviam me chamado atenção em particular uns por serem muito extrovertidos e
comunicativos e outros, ao contrario, por serem muito retraídos como a aluna T.A.. A
professora me explicou que havia uma possível explicação por trás da timidez de
T.A., ela havia perdido os pais ainda muito pequena e era criada por seus tios.
Segundo a professora, a aluna, de certa forma, havia se fechado dentro de si, tinha
dificuldades de interagir com os outros. A professora me apontou ainda outro aluno,
aluno este que até então eu não havia nem sequer percebido a presença em sala de
aula tamanho era seu silêncio e retração. A professora me disse que já havia
entrado em contato com a família dele para propor que o levassem a um psicólogo
pois suspeitava que ele pudesse ter déficit de atenção.

Depois desta conversa a professora começa a ler, em voz alta, as oito


questões da prova oral de historia. Notei que grande parte dos alunos que foram
reprovados na prova oral respondiam coletivamente sem errar. A professora ainda
nesta oportunidade disse:

PROF. – Tá vendo aí? Vocês sabem das coisas, é só a preguiça de pegar no


livro uma vez que seja. Vocês tem que para com isso de não estudar. Como é que
vocês querem ir pra frente deste jeito? Daqui pra frente vocês terão um professor
pra cada matéria, professor entra, professor sai e ninguém tá nem aí, se vocês não
fizerem por vocês mesmos ninguém vai fazer não, é bom começar a pensar nisso.
Tem aluno aqui que não tá nem aí pra nada, tem gente que a mãe nem pisa na
escola nas reuniões. Neste momento os alunos começaram a dizer que os pais
podiam e as vezes não podiam ir.

PROF. – Sua mãe mesmo nunca pisou aqui num foi? – Perguntou para o
aluno da primeira fila, o que me mostrara a prova de matemática.

CARVALHO – Minha mãe não pode não professora.

PROF. – Nunca? Sua mãe nunca pode?

CARVALHO – Não.

PROF. – De jeito nenhum? Porque se acontecer alguma coisa com você ela
vem..

CARVALHO – Vem não.

PROF. – Se você ficar aqui preso na escola ela não vem? Se você não
chegar em casa?

CARVALHO – Vem não, ela não pode. – Sorriu meio encabulado.

PROF – Pois tá difícil viu...

Depois deste momento a professora sugeriu a leitura do livro de português da


pagina 230 até a 234, era um conto de Júlio Verne, depois de feita a leitura a
professora pediu que fossem respondidas as questões das paginas 235 a 237. A
leitura é feita coletivamente e em alguns momentos a professora interrompe a leitura
e faz pequenas observações sobre o texto, observações que se convertem em
encantadores discursos sobre a imaginação criativa de Júlio Verne.

PROF. – No tempo dele nada disso que ele escreveu existia. E como é que
ele escreveu se não existia? – Tocou a cabeça com o indicador direito algumas
vezes, a turma em completo silêncio. – Imaginação. Criatividade. Muitas das coisas
que Julio imaginou, não existiam, mas depois, com o passar do tempo, outras
pessoas pensaram: “Acho que é possível fazer isso” aí foram tentando, tentando até
conseguir. Não é incrível?

A professora dá continuidade à leitura feita pelos alunos. Depois de terminada


ela dá um suspiro como de cansaço, a leitura tratava de uma luta entre o capitão e
um polvo gigante.

PROF. – Que luta hein? E esse polvo? Teriam coragem?

Pedi um livro emprestado pois percebi que algumas palavras usadas no texto
dificilmente pertenceriam ao universo vocabular de crianças desta idade. O livro
continha um glossário e as palavras difíceis estavam em destaque. As palavras
eram as seguintes:

Almíscar

Moribundos

Hidra

Viscosos

Mutilados

Flancos

Segregado

Alçapão

Nenhum dos alunos interrompeu a leitura para perguntar o que significavam


aquelas palavras. A professora também não o fez.

Depois de terminadas as reflexões sobre o texto lido os alunos se debruçaram


sobre a atividade, mas logo o relógio apontou a hora de ir para casa e a aula
acabou.

Apreciação do quinto dia

Duas reflexões se fazem pertinentes neste quinto dia de imersão. Uma é a


maneira com que a professora abre janelas no conteúdo para estabelecer o diálogo
reflexivo. Ela poderia muito bem ter feito a leitura de Júlio Verne sem as brechas que
abriu para as reflexões que não eram necessárias para a leitura, mas preferiu
fomentar a imaginação das crianças a cerca de temas que flutuam ao redor do texto
sem estarem, contudo explicitamente escritos. Ao lado disto, ela também permitia
que os alunos embarcassem em sua reflexão e contribuíssem com a aula
enriquecendo-a com reflexões que extrapolam a simples compreensão do texto sem
se desligarem completamente dele.
Depois disto, o que parece curioso é que os alunos que não souberam
responder às questões orais da prova de recuperação de história responderam as
mesmas questões coletivamente. Elas não consultaram cadernos nem livros quando
voltaram para suas carteiras, nem tampouco perguntaram aos colegas aprovados a
respostas das perguntas. Uma das meninas respondeu a todas as questões em voz
alta na frente de todos, mas ela foi uma das primeiras alunas a responder. Se a
simples oralização das respostas fosse suficiente para que os demais alunos em
recuperação memorizassem, as crianças que responderam depois não teriam tido
dificuldades para responderem, o que não aconteceu.
Sexta imersão.

Dia 24/10/2017

No meu sexto dia de imersão os alunos realizaram o simulado da prova do


Prova-Brasil, que é uma avaliação que mede o IDPE do município. Durante as duas
horas que fiquei em sala de aula pude perceber que havia certa tensão sobre os
alunos. Um atípico silencio pairava sobre a sala de aula e ninguém que passasse
pelos corredores diria que ali estavam 25 crianças entre 10 e 14 anos.
Peguei uma das provas para analisar e pude perceber que ela se
assemelhava bastante ao modelo que é apresentado pelo ENEM, com a diferença
obvia do nível das questões, mas igual em sua forma, isto é: Questões que
contemplavam mais de uma matéria por vez e eram sempre antecedidas de um
texto que serviria de base para a questão, Gráficos que deveriam ser interpretados,
perguntas que poderiam confundir os leitores/as menos atentos e um gabarito ao
final da folha.
Neste sexto dia não pude recolher um material que me falasse muito sobre o
desenvolvimento da linguagem, mas a reflexão que me veio, ao ver aquelas crianças
tão pequenas, já com uma expressão tão séria diante de provas complexas, foi a
seguinte: Até que ponto nossas escolas estão preocupadas em formar cidadãos
para exercer sua humanidade ou para passar nas provas? Para responderem
positivamente aos exames avaliativos instituídos nas nossas comunidades?
Sétima imersão.

Dia 25/10/2017

Na minha sétima e penúltima visita à escola cheguei em meio às ultimas


diretrizes para o trabalho de ciências que seria apresentado no dia seguinte. Os
alunos prestavam atenção e perguntavam coisas que já haviam sido respondidas
inúmeras vezes, um traço que segue os estudantes até muito mais tarde pelo que
posso perceber. Este tema de trabalho, as invenções humanas, parece que agrada
muito às crianças, pois sempre que o assunto é trazido elas começam a pensar e
falar em voz alta. Os mais diversos tipos de invenções são citadas, e até mesmo
coisas que não são invenções.

ALUNOS/AS – A casa. O fogo. O navio. A água.

PROF. – A água não foi inventada. Tá lá em Gênesis um “disse Deus, haja


água, e houve água”.

Eles seguem ainda por um longo tempo neste tipo de reflexão sobre o que é
invenção e o que não é. Depois, voltam para a correção de uma atividade de
matemática que deve ser respondida em casa.

PETÚNIA – Tia hoje eu pesei minha bolsa e dava quatro quilos e quinhentas.

PROF. – QuinhentOs. Já disse pra vocês dividirem este peso entre as mãos,
coloca umas coisas na bolsa e outras nas mãos.

Depois disso, a professora senta e começa a chamar alguns alunos


individualmente ao birô, não ouvi ela dizendo, mas pareceu ser uma prova oral de
geografia.

PROF. – Qual é região de maior extensão territorial do Brasil?

A aluna fica calada, balançando o pé, aparentemente nervosa. Começa a


olhar para os lados.

PROF. – Extensão territorial – ela faz um gesto com as mãos dando a


entender tamanho – lembra do mapa?

PETÚNIA – Ah. Amazonas.

PROF. – Região.

PETÚNIA – Região Norte.


As perguntas orais seguem e num determinado momento a professora diz:

PROF – Amanha vocês vão responder no quadro. É bom estudar antes pra
poder responder.

ÂMBAR – Quem não estudar vai chutar né Tia?

PROF – É, mas aqui não tem nenhum jogador de futebol.

A simples menção das palavras jogador e futebol os meninos ficaram em


polvorosa e começaram cada um, a dizer que eles eram jogadores e em que times
iriam jogar quando crescessem.

PROF. – Estes dias eu vi na televisão um jogador dizendo que “Nois vai fazer
o melhor jogo da temporada”. A gente pode dizer “nois vai”

CARVALHO – Pode que eles são tudo rico.

PROF. – Pois é melhor voltarmos aqui pra aula né? Que falando assim a
gente, que não é rico, não vai pra lugar nenhum.

ARTEMÍSIA – Hô Tia essa reforma que vão fazer é por que a escola tá caindo
né?

PROF. – A escola não tá caindo não. É porque o governo mandou a verba e


essa verba tem que ser usada até Dezembro, mas não tem nada caindo.

CARVALHO – Tá caindo sim que João tava lá e disse que...

PROF – Eu estava lá ontem e não tem nada caindo. – disse em tom agudo.

A discussão se a escola está ou não está caindo ainda demora um pouco,


neste tempo um aluno agradece uma borracha emprestada dizendo “obrigada”

PROF – ObrigadO. Obrigado quer dizer agradecido. Você diz que está
agradecida?

Toda a sala riu.

CARVALHO – Sim Tia, mas ela é mulher.

PROF. – Sim Tia, mas quem está agradecido é você.

Retomando as frações que estavam no quadro os alunos começam a fazer a


leitura. Ela vai apontando e os alunos leem

O aluno D.O. leu “dois cem avos” ao invés de dois centésimos.

PROF. – Avos? De novo esta conversa de avos fora do lugar?

E explica de novo onde se utiliza e onde não se utiliza o avos.


Durante o recreio a professora me disse que mesmo ficando caladinho, só
escrevendo no meu canto, os alunos já tinham desenvolvido um afeto por mim, disse
que assim que eles chegam já perguntam se eu irei hoje. Senti-me bastante
acariciado por aquelas crianças que nem mesmo me conhecem mas decidiram,
espontaneamente, me acolher.
Nossa conversa se prolongou um pouco, e eu toquei no nome do aluno
CARVALHO, disse que ele me chamava atenção porque era inteligente, mas pouco
interessado além de ser um dos alunos mais comunicativos da sala. A professora
me disse que ele era sim muito inteligente e que pelo histórico familiar que tinha ele
apresentava um comportamento muito melhor do que se poderia exigir. Vendo
minha expressão de curiosidade ela me contou que o aluno vinha de uma família
sem nenhuma estrutura. Sua mãe havia sido presa alguns dias atrás por tráfico e
quem comparecia às reuniões pedagógicas era o tio do garoto, um homossexual,
segundo ela. Além disso, o aluno já havia chegado à escola com marcas de
violência e num outro episódio, com drogas na bolsa. A professora me disse que ele,
apesar disto tudo, tinha um excelente temperamento e era comportado na medida
do possível.
Quando voltava para o birô varias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Não
sei dizer precisamente o que veio primeiro, mas um dos alunos disse o seguinte: “A
mãe de fulano é véia mas é gostosa” e outro grupo de alunos falava de uma
exposição em um museu em que crianças tocaram o corpo de um homem nu, e
outro grupo ainda zombava de D.O. que estava com uma marca de batom no rosto,
então a professora, que estava a meio caminho do birô parou e disse o seguinte:

PROF. – Pessoal vocês tem que começar a respeitar os colegas de vocês.


Qual é o lema aqui da sala?

ALUNOS/AS – Não faça aos outros aquilo que não quer pra si.

PROF. – Este lema da sala não é importante só porquê é o lema da sala não.
Ele é um lema pra a vida. Vocês estão com um palavreado muito feio. Você queria
que alguém dissesse isto da sua mãe? Não né? Então não pode dizer isto com a
mãe dos outros. Já pensou se na vida fora daqui a gente começar a fazer só aquilo
que é bom? Aquilo que a gente quer que os outros nos façam?
Outra coisa, vocês estão com uns gestos muito feios. As mãos da gente
também falam. Este gesto que você fez é o mesmo que xingar a pessoa.
Qual é o problema de D.O. estar com uma marca de beijo? Se é de batom é
porque foi uma menina que deu. Pior seria se fosse um beijo de outro menino né? –
Todos riram – Não riam não que é isso mesmo. Vocês estão todos com os
hormônios à flor da pele e isso é normal, mas tem que entender que aqui é lugar de
estudar, não é lugar destas coisas. A gente tem que começar a respeitar os outros, a
fazer só aquilo que quer que os outros nos façam. Vocês viram o que aconteceu no
museu? Que uma criança foi levada pela própria mãe a tocar o corpo de um homem
nu, e ainda chamando aquilo de arte. Muita gente acusou, muita gente defendeu, eu,
na minha opinião, acho aquilo errado, porque se a criança toca um homem nu num
museu depois ela não vai saber distinguir se um pedófilo vem até ela na rua. Eu
acho errado. Só que o mais importante é saber respeitar a opinião dos outros.

Depois deste discurso a professora voltou para o quadro e os alunos


permaneceram em silencio, provavelmente um pouco constrangidos pelas palavras
da professora

PROF. – Vamos voltar aqui. – Apontou as frações no quadro. – Dois quartos e


um meio são equivalentes?

ALUNOS/AS – Não.

PROF. – Não? Tem certeza? Dois quartos e um meio não são equivalentes?

A professora mostrava no quadro que tanto na figura que representava dois


quartos quanto na figura que representava um meio a mesma quantidade de espaço
estava preenchida. Os alunos pensaram, pensaram e permaneceram calados.

PROF. – Equivalente quer dizer que é igual minha gente, olhe ai no livro a
palavra “ou” tá vendo? Equivalente quer dizer que é a mesma coisa. E ai? É
equivalente ou não?

ALUNOS/AS – É.

PROF. – Ah sim!

Este exercício tomou todo o tempo que restou da aula que terminou tranquila.

Apreciação do sétimo dia

Nesta sétima imersão no universo escola o que mais me chamou atenção foi
o quanto os professores tem que conhecer seus alunos para conseguirem manter
com eles uma relação e diálogo no sentido de não ignorarem suas historias
pessoais. O relato sobre a vida de CARVALHO me impactou muito, quem vê o
menino alegre e comunicativo que ele é não imagina, nem por um instante que ele
passe pelas coisas que a professore disse.
Outra coisa que me levantou questionamentos é como a fala dos professores
pode influenciar, para o bem ou para o mal, não só o desenvolvimento da linguajem,
mas a própria vida dos alunos. Conversando comigo a professora disse que a
família de CARVALHO era desajustada, sua mãe havia sido presa por tráfico e seu
tio era homossexual. Claro que ela não disse isto ao aluno, mas não posso deixar de
notar que ela coloca homossexualidade e tráfico como equivalentes na esfera de
desajuste familiar. Poucos instantes, para minha surpresa, ela diz, agora falando à
turma inteira, “Pior seria se fosse o beijo de outro menino”. Longe de exigir que se
debata gênero na escola, apesar de compreender a importância deste debate, uma
fala como esta pode endossar na cabeça das crianças a ideia de que a
homossexualidade é errada, proibida e pecaminosa, além do mal que pode causar
se houver na sala de aula uma criança que já esteja se percebendo homossexual,
neste caso, a criança, que provavelmente toma os professores como referências, irá
sofrer ainda mais do que a própria natureza homossexual impõe aos sujeitos em
nossa sociedade. É preciso tomar cuidado com as nossas palavras. Nunca sabemos
o que elas podem ocasionar e nem sempre sabemos com quem estamos falando.
Oitava imersão.

Dia 26/10/2017

No inicio da minha última imersão na sala de aula a professora dizia que os


alunos que não fizeram o trabalho iriam ficar sem nota pois ela já havia dado um
prazo muito longo para que não houvessem desculpas.

PROF. – É incrível, vocês não acham não? Tem aluno aqui que fala o dia
todinho, ai na hora de apresentar o trabalho, gagueja, fica mudo, fica com vergonha,
Vão apresentar sim. Ou então vão ficar sem nota. Vamos lá primeiro grupo.

As duas alunas se dirigiram ao quadro segurando a cartolina que continha


imagens de uma televisão antiga.

MARGARIDA – Nosso trabalho é sobre a invenção da televisão. Ela foi


inventada em 1925, em Londres por um homem chamado Jon Bartier. A televisão é
muito importante porque as pessoas começaram a ver coisas que antes elas só
ouviam.

TULIPA – Na minha entrevista eu entrevistei a minha mãe sobre a internet. A


coisa boa é que tem muita informação e a ruim é que tem muita coisa ruim também.

PROF. – Tem mesmo.

Os alunos aplaudiram.

PROF. – Vamos lá, segunda dupla.

Esta dupla era composta por dois meninos, eles iriam falar sobre o carro,
estavam muito nervosos e jogavam a culpa de não terem decorado as falas um para
o outro, neste momento a professora explicou que numa dupla o trabalho é dos dois,
que eles tinham que aprender a trabalhar em equipe e parar de atribuir culpas. A
dupla apresentou, mas eu não consegui ouvir uma só palavra do que eles diziam
pois falavam muito baixo.

PROF. – Tá bem. Parabéns. Vão sentar. Agora o mais bonito é que durante
as aulas vocês parecem que tem um megafone na boca ai chega aqui e não fala
quase nada.

A terceira dupla apresentou o trabalho que falava sobre a invenção do


guardanapo.
ORIZA – O guardanapo foi inventado no século 18 por Leonardo da Vinci.
Antes disso as pessoas limpavam a boca, nas festas, com uma pele de coelho ou de
gato e cachorro.

MEL – A minha entrevista foi com o meu tio e foi sobre o celular. O lado bom
é que as pessoas podem se comunicar e o ruim é que ficam viciadas e distraídas,
acabam esquecendo de tudo.

A professora aproveitou que alguns alunos falavam sobre o guardanapo


medieval ser nojento e diz;

PROF. – Mas estas peles eram tratadas, não era só arrancar e pronto.
Passavam vários produtos químicos pra elas ficarem limpas. Vocês podem até ver
isto nos filmes de época, filmes antigos, tem um filme de Charlie Chaplin mesmo que
ele usa a pele de coelho como guardanapo.

A quarta dupla apresentou sobre a invenção da geladeira. Os dois meninos


falaram muito baixo, tão baixo que não pude ouvir nada.

A quinta dupla apresentou sobre a invenção da maquina de escrever. Os dois


meninos apresentaram lendo, porém leram muito bem e a professora não fez
nenhuma objeção. A sexta dupla apresentou sobre a geladeira também só que
apresentou dados diferentes do da primeira dupla que falou sobre a geladeira então
a professora falou:

PROF. – É normal isso acontecer. Cada pesquisador tem seu método de


pesquisar e as vezes a gente se encontra com dados divergentes, divergentes quer
dizer diferentes, ai o pesquisador usa os dados que ele confiar mais.

Neste ponto a aluna disse que pesquisou em várias fontes e quase todas elas
apontavam para os dados que ela usou só uma em dez fontes de pesquisa apontava
dados diferentes.

A sétima dupla falou sobre a caneta. A oitava falou sobre o rádio. A nona
dupla era composta pela aluna D.A. e por outra menina.

D.A. – A Câmera de segurança foi desenvolvida em 1954 por Estevan Sazom,


ao cria-la ele intencionava oferecer mais segurança às residências e casas
comerciais. E como todos sabem é uma invenção que ainda hoje, depois de todo
este tempo ainda é muito utilizada além de gerar muito emprego e renda. É uma
invenção muito importante. Imaginem se hoje em dia não existissem câmeras de
segurança.

D.A. além de falar com enorme desenvoltura gesticulava muito bem e usava
um volume capas de ser escutado em todos os cantos da sala.
A próxima dupla foi constituída por dois meninos que falaram
sobre o carro e na hora da leitura da entrevista, que foi melhor estruturada que as
demais, eles fizeram uma dinâmica onde um lia a pergunta e outro lia a resposta,
dando ao ouvinte uma perspectiva bem melhor do conteúdo da entrevista.
A décima primeira dupla
falou sobre a invenção da roda sendo seguida pela dupla de D.O. que falou sobre os
instrumentos pré-históricos. D.O. começa lendo mal. Voz trêmula, dicção
comprometida e num volume muito baixo. A professora o interrompeu:

PROF. – Sabe falar sem ler?

D.O. – Não. – disse baixinho, só pra ela ouvir. Ele estava muito nervoso.

PROF. – Sabe sim, eu sei que você sabe. Vamos lá.

D.O. – Os instrumentos pré-históricos não tem data definida porque não


surgiram ao mesmo tempo, mas surgiram na pré-história e eles serviram pra o
homem de antigamente caçar e se proteger de outros animais que caçavam ele.
Neste ponto um aluno começou a fazer perguntas, e foi seguido por outros
que também começaram a perguntar. Notei que nenhuma das outras duplas foi
perguntada, somente esta.

PROF. – Deixe ele terminar de falar que depois ele responde, ele assiste
estes negócios.

Terminada a fala de D.O. a professora perguntou:

PROF. – E este instrumento ai – apontou uma figura na cartolina – é feito de


quê ?

D.O. – De marfim.

EUCALIPTO – Que danado é marfim.

D.O. – Marfim e aquele osso que sai da cara do elefante. Ele é bem caro. Até
por isso esse animal sofreu risco de extinção, mas agora eles são protegidos.

PROF. – E como é que os homens pré-históricos conseguiam arrancar esses


dentes do elefante? Porque o elefante é bem maior que os seres humanos.

D.O. – É que o homem pré-histórico já tinha vários outros instrumentos feitos


de outros materiais. De pedra, que eles afiavam e faziam lanças, de madeira
pontuda, além disso, os homens pré-históricos não iam pra cima do elefante
sozinho, eles trabalhavam em equipe.

EUCALIPTO – E pra quê estes negócios servem hoje?

D.O. – Hoje pra nada, mas se não fossem estes negócios os homens pré-
históricos não teriam sobrevivido e a gente veio deles né?

A sala inteira aplaudiu inclusive a professora.


As duplas que tinham os trabalhos prontos encerraram e a professora disse
que iria permitir as demais trazerem na próxima aula.

Depois disso a professora começou a dizer as notas dos trabalhos que foram
apresentados. As notas iriam de um a quatro.

PROF. – D.O. vai ficar com três e meio porque não trouxe o trabalho pronto.
Apresentou muito bem, mas deixou pra fazer tudo aqui. Mas eu ainda vou pensar
mais sobre esta nota, dependendo, posso aumentar.

O aluno CARVALHO estava conversando com o colega e rindo muito alto, a


professora já havia reclamado inúmeras vezes com ele neste dia.

PROF. – Você tá começando a me irritar. Tá começando a exigir de mim um


perfil de professora que eu não tenho. A professora que grita. Tá começando a me
expor já. Pare por favor que eu não quero colocar você pra fora da sala não e você
está esgotando a minha paciência.

Enquanto ela falava, o aluno D.O. que estava sentado na minha frente
cochichou:

D.O. – Oxe, e é uma pintura é? Pra expor?

A hora da saída se aproximava e eu fui me despedir da professora que me


acolheu de forma tão carinhosa. Ao ver que as crianças pararam de conversar pra
ouvir o que eu dizia senti que deveria me despedir delas e justificar minha
intromissão na sala delas.

EU. – Minha pesquisa termina hoje e acho que é justo que vocês saibam o
que é que tanto eu escrevia ali no canto. Eu estou fazendo um trabalho que consiste
em investigar como vocês aprendem e desenvolver a fala de vocês. Ali no meu
cantinho, eu anotava tudo que a professora dizia e tudo que vocês diziam neste
sentido. Então quero agradecer a todos vocês por me ajudarem tanto a entender
como este fenômeno da fala se desenvolve. Eu sou apaixonado pelas palavras.
Palavras são, em minha opinião, nossa inesgotável, fonte de magia. Então muito
obrigado e foi um prazer imensurável – escrevi no quadro a palavra com letras
maiúsculas – passar estes oito dias com vocês. Imensurável – apontei a palavra
escrita no quadro – quer dizer que é tão grande que não se pode medir.
As meninas todas me abraçaram e os meninos aplaudiram. Despedi-me com
um abraço da professora que tanto me ensinou sobre a arte de ensinar e de oferecer
o melhor que se tem. Saí da sala já com uma saudade imensurável.
Apreciação do oitavo dia

Neste ultimo dia de imersão fiquei bastante impressionado com o


desenvolvimento do aluno D.O. Por um lado não esperava que ele tivesse um
conhecimento tão aprofundado sobre o homem pré-histórico, por outro fiquei
impressionado ao perceber como um modelo pré-estabelecido que não se enquadre
com o perfil de cada um é capaz de limitar uma ação. O aluno D.O. talvez não fosse
capaz de ler adequadamente. Além do limite da própria leitura inclui-se neste
movimento o medo de ler para toda a classe.
A professora, demonstrando conhecimento sobre o aluno num movimento
assertivo ofereceu outra opção. Provavelmente o resultado não seria tão satisfatório
caso tivessem insistido em seguir com o modelo adotado pelos outros. Parece que o
verdadeiro ensinar exige conhecer àquele a quem se ensina.

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