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RESUMO

Este trabalho tem por propósito o estudo de um problema


específico: o das demarcações culturais que têm lugar, em finais do século
XIX e inícios do século XX, entre Brasil e Portugal. Percorrem-se duas
linhas de análise: a primeira procura explicar os contornos da escala
cultural luso-brasileira no período em análise; a segunda busca equacionar
a construção das matrizes identitárias nacionais emergentes na referida
escala.
Para este efeito, desenvolve-se uma pesquisa em três etapas: a) a
detecção dos mecanismos de funcionamento articuladores da mencionada
escala cultural luso-brasileira; b) a identificação dos fundamentos teóricos
mobilizados naquele mesmo âmbito; c) o estudo das matrizes identitárias
produzidas no contexto do movimento relacional pluriescalar das culturas
“portuguesa” e “brasileira”. Esta incursão trabalha sobre as noções de
historicidade, fundação e origem e evidencia a nuclearidade das
mobilizações da história nos processos de construção identitária em
Portugal e no Brasil.
APRESENTAÇÃO

Este livro é o resultado de uma pesquisa desenvolvida durante os


anos 2002 e 2006 e que culminou em minha Tese de Doutorado em
História, defendida em 2007, na Universidade de Coimbra, Portugal.
Sua publicação após tanto tempo, naturalmente, conterá algumas
ausências bibliográficas ou lacunas relativamente às produções mais
contemporâneas. Mesmo assim, acreditamos que isso não prejudicará o
cerne das análises, nem tampouco justificaria uma reescrita completa.
Preferimos respeitar o caráter da produção acadêmica tal qual ela foi
recebida pelos arguentes. Fizemos apenas algumas alterações muito
superficiais nalgumas partes do texto, tentando deixá-lo mais direto.
Intocável permanece a estima pelos anos vividos em Portugal e pelo
muito aprendido em Coimbra, dentro e fora da Universidade. Igualmente
incólume resta meu agradecimento aos amigos daqueles tempos, bem como
à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), pelo apoio financeiro e
pela confiança nesta investigação. Ao Doutor Rui Cunha Martins, professor
e amigo inestimável, quero deixar um agradecimento especial: este trabalho
seria impossível sem orientação e sua ajuda, seja as de aprendizado
acadêmico, seja as valor humano.

2
PREFÁCIO

Rui Cunha Martins


Universidade de Coimbra

1. O trabalho que tenho o grato prazer de apresentar contém


méritos de vária ordem. É oportuno, é arguto, é rigoroso e é, a partir de
hoje, de consulta indispensável. Um dos aspetos mais notáveis será o modo
como o autor parece escutar, em cada dobra da exposição, as solicitações
da problemática. Uma problemática que ele mesmo construiu (assim
escapando ao terreno armadilhado do senso comum historiográfico sobre a
matéria em estudo) e que tão depressa lhe parece solicitar matéria
argumentativa quanto empírica. Tudo se joga então na capacidade para
optar, em cada momento, pela matéria pertinente. Invariavelmente, Marçal
Paredes opta de forma consistente. O trabalho fica ganho em cada um
desses momentos.

2. A segunda metade do século XIX e os inícios do século XX


correspondem, à escala luso-brasileira – também à escala ibero-americana
– a um momento de particular esforço de clarificação identitária por parte
das nações envolvidas. Como é usual em casos que tais, esse esforço tem
expressão em fenómenos de demarcação cultural e política, no
estabelecimento de diferentes escalas de referência identitária, na
reavaliação de memórias nacionais e na sobreposição concorrencial entre
os vários critérios avançados para os fins demarcatórios em vista.
Compreende-se, neste contexto, que ao levantar-se a questão do
relacionamento entre as entidades político-culturais brasileira e portuguesa,
tópicos como a dívida, a herança, a fraternidade, a diferença e a
originalidade impusessem um estado de permanente mobilização das
3
historicidades, ele mesmo desafiador do lugar da história nos processos de
definição dos contornos nacionais. E compreende-se, de igual modo, que
todo este complexo cruzamento de razões desembocasse em verdadeiras
fricções demarcatórias e naquilo a que convém chamar “turbulências do
limite”. É de uma descodificação desta zona de turbulência que se ocupa o
autor.

3. Da sua análise exaustiva torna-se possível isolar cinco


propostas de resolver o problema da fronteira à escala transatlântica: (i) o
entendimento do Brasil como prolongamento de Portugal e, portanto, o
entendimento de uma “longa” e eterna fronteira portuguesa, prolongando-
se na fronteira brasileira tanto quanto na africana; (ii) a recusa da leitura
anterior por via de uma demarcação de sentido oposto, qual seja, a de um
afastamento brasileiro da herança portuguesa; (iii) o alargamento da
primeira proposta – a da continuidade, portanto –, a uma escala ibérica de
referência, no âmbito da qual os povos sul-americanos são entendidos
como neo-ibéricos (pressupondo, assim sendo, uma “longa” e eterna
fronteira ibérica, prolongando-se na América); (iv) a recusa desta última
proposta por via da contraposição de uma escala americanista de referência,
ela sim passível de demarcar as culturas sul-americanas; (v) a proposição
de uma demarcação brasileira pela originalidade, isto é, basicamente, pela
celebração do carácter singular do mestiço. A deteção de semelhante painel
é mérito que cabe por inteiro ao autor do trabalho, que teve por bem não
limitar o inquérito a uma única área disciplinar de informação, preferindo
inclinar a pesquisa sobre tabuleiros simultâneos – políticos, historiográficos
e literários –, procedendo ao respetivo cotejo. As vantagens da sua opção
estão à vista.

4. Se me é permitido, neste local, chamar a atenção, em


particular, para alguma daquelas matrizes interpretativas, faço-o
4
relativamente à última, a da celebração da mestiçagem. Pelo seguinte
motivo: tal como sucede com a noção de “fronteira interior”, de matriz
fichteana, na qual o limite como que se desdobra em direção a si mesmo,
também aqui, nessa proposta de sabor romeriano, o limite é mobilizado não
a partir da sua clássica função delimitadora mas a partir dessa sua
paradoxal propriedade que é a produção de dada centralidade. No caso do
debate brasileiro da segunda metade do século XIX é como se ao elemento
híbrido, feito referenciação identitária central, passem a reconhecer-se
insuperáveis funções demarcatórias. Marçal Paredes percebe bem a
nuclearidade deste aspeto, conferindo-lhe o devido enquadramento.

5. O autor percebe, como resulta inequívoco da sua análise, que a


ambição de diferenciação face às raízes portuguesa, ibérica e europeia
(diferenciação também almejada, a breve trecho, frente ao negro e ao índio)
redunda numa aspiração de originalidade. Uma demarcação pela
singularidade e pela essência, pela clara delimitação dos caracteres
específicos, eis do que se trata. Uma fronteira definida a partir de dentro,
dir-se-á também. A ideia pode resumir-se num objetivo: estabelecer as
fronteiras da nação ali mesmo naquele ponto exato em que deixar de se
sentir o eco daquilo que se entenda ser a genuinidade nacional. O híbrido,
pois, é expressão de uma fronteira interior, à maneira fichteana. Ora, como
sabemos, esta ou é tida por ponto de partida (o “genuíno nacional”) ou é
apeadeiro (a “gradual autonomização” da forma mestiça) de uma longa
marcha para o futuro. Um trajeto futuro tão ilimitado quanto se acreditava
ser então o destino dos povos que, no seguimento da sua própria marcha
evolutiva, se haviam voltado para si próprios na demanda do respetivo
traço distintivo. Uma demanda ilimitada. E não forçosamente saudável.
Que a historiografia contemporânea tenda a ser complacente com as
demandas identitárias em nada altera este diagnóstico. Uma advertência
que mais se justifica após a leitura do brilhante trabalho de Marçal Paredes.
5
Configurações Luso-Brasileiras: Fronteiras Culturais,
Demarcações da História e Escalas Identitárias (1870-1910).

INTRODUÇÃO 08

PARTE I – CONFIGURAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS 16


1. Redes discursivas 17
1.1. Circuitos políticos: referencialidade
transnacional e “comunidade de sangue” 19
1.2. Divulgação científica: critérios de
recepção e alegoria do “povo irmão” 40
2. Interpretações concorrenciais 58
2.1. O ponto de vista da derivação 59
2.2. O ponto de vista da convergência 73
2.3. Os cultores do distanciamento 83
3. Modalidades de relacionamento 97
3.1. A linha da dissensão, ou a instrução das polêmicas 98
3.2. A linha do consenso, ou o ambição do comemoracionismo 119

PARTE II. – FUNDAMENTOS TEÓRICOS: HISTORICIDADE E


DEMARCAÇÃO 138
1. O “arco de outra nova ponte” e o “bando de ideias novas” 140
2. A frente cientificista e seus níveis de relacionamento 156
2.1. Difusão do Positivismo: perspectiva comparada 157
2.2. Ortodoxias e Heterodoxias: primeirasdemarcações 163
2.3. Os eixos ultra-ortodoxo e demoliberal 175
2.4. Derivas da heterodoxia: os “evolucionismos” 180
2.5. O eixo materialista-monista 199
3. Demarcação e Historicidade: mobilizações republicanas 203

6
PARTE III – ESCALAS IDENTITÁRIAS: A PROBLEMÁTICA DA
ORIGINALIDADE 214
1. A obsessão temporal da alteridade luso-brasileira 217
2. A Herança e o Mal de origem: a lição da História (e sua inversão) 224
3. Moçárabes e Mestiços: a concorrência da forma híbridal 260
4. Riograndeses e Sertanejos: a intersecção portuguesa do
regionalismo brasileiro 292

CONCLUSÃO: As Fronteiras Culturais Luso-brasileiras 302


FONTES 307
BIBLIOGRAFIA 318

7
INTRODUÇÃO

O trabalho que aqui se inicia tem por propósito o estudo de um


problema específico: o das demarcações culturais que têm lugar, em finais
do século XIX e inícios do século seguinte, entre Brasil e Portugal.
Semelhante problema exige um inquérito em duas frentes. Uma, que dê
conta do quadro relacional em que haverão de ter lugar aquelas
demarcações, ou seja, dos respectivos níveis de articulação, das
intersecções informativas, dos nós críticos e argumentativos, ou dos
pressupostos doutrinários, em suma, que saiba explicar as características da
configuração cultural luso-brasileira. Uma segunda linha de análise
deverá, por seu lado, ser capaz de descodificar o debate de ideias produzido
naquele contexto, identificando os alinhamentos e as faturas de índole
teórica, o caráter científico ou filosófico dessas cisões, os suportes
ideológicos mobilizados, o intuito político das distintas demarcações e as
correspondentes escalas de incidência, isto é, que seja capaz de equacionar
a construção das matrizes identitárias emergentes na configuração cultural
luso-brasileira.
A decisão de investir em semelhante projeto de pesquisa está
condicionada por uma constatação: embora separados politicamente desde
a independência do Brasil em 1822, a atmosfera de troca e divulgação
cultural que se mantém para além dessa data admite a percepção de uma
referenciação comum às culturas portuguesa e brasileira. Na verdade, a
existência de uma mesma comunidade cultural envolvendo brasileiros e
portugueses, no final do século XIX, foi já intuída por alguns estudos, com
destaque para a obra de Beatriz Berrini, que sustenta ter havido, também no
Brasil, tal como em Portugal, uma Geração de 70. Fundamentada em
ampla pesquisa epistolar, a autora refere “a recíproca amizade de
portugueses e brasileiros, convivendo em especial no estrangeiro, que se
entendiam muito bem, que estenderam os laços criados pelo mútuo
conhecimento aos familiares, que dialogavam quer acerca dos negócios
particulares como dos públicos, envolvendo as respectivas pátrias,
partilhando inquietações, frustrações, problemas, sempre em busca de
soluções dignas e honrosas. Não compunham dois grupos distintos porém
formavam uma mesma plêiade em que brasileiros e portugueses se
confundiam” (1).
Uma mesma plêiade. Por certo que sim. Aliás, provas de um
intenso relacionamento entre os intelectuais brasileiros e portugueses do
período não faltam. Fornece-as a própria Beatriz Berrini: “dois endereços
eram familiares a uns e outros: os brasileiros conheciam a residência
parisiense de Eça, seja a da rue Charles Laffitte, 32, como a da avenue du
Roule, 38, sem mencionar o consulado. Eram os portugueses inversamente
assíduos às residências de Eduardo Prado em Paris, quer à moradia da rua
Casimir Perier, 3, quer a da place de la Madeleine, sobretudo estavam
familiarizados com o número 194, Rue de Rivoli. Nesta última, Eça e
Ramalho foram por mais de uma vez hóspedes de Prado” (2). E fornece-as
também Elza Miné, em trabalho sobre Jaime Batalha Reis, onde traz
importantes elementos sobre esse convívio luso-brasileiro também em

1
BERRINI, Beatriz. Brasil e Portugal: a geração de 70. Breves indicações dos correspondentes
brasileiros e portugueses por Paulo Franchetti e Beatriz Berrini. Prefácio de Isabel Pires de
Lima. Porto: Campo das Letras, 2003, p.86. Grifos nossos.
2
Idem, ibidem, p.45
9
Londres. Conforme explica esta autora, entre Jaime Batalha Reis e o grupo
de brasileiros, houve “uma natural comunhão” que fora “propiciada e
facilitada pelas raízes comuns, pela língua comum” e reforçada pela
“presença de amigos comuns, como é o caso de Eça de Queirós
(particularmente com relação a Eduardo Prado e Domício da Gama), e
ligações, também comuns, com a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro” (3).
A constatação de uma dimensão de contato e de projetos em curso
envolvendo os intelectuais lusos e brasileiros – em contextos muito
precisos, é verdade – depreende-se sem dificuldade. As questões que diante
deste quadro se colocam são as seguintes: a da dimensão reflexiva dessa
mesma plêiade sobre o caráter e o significado desse próprio
relacionamento; a do grau de representatividade desse grupo no contexto
dos debates emergentes sobre o relacionamento entre Brasil e Portugal; a
da inevitável “separação de águas” teóricas que igualmente caracterizaria
aquela esfera intelectual, até pelo previsível alinhamento diferencial de
cada um dos seus componentes com linhas interpretativas mais englobantes
sobre a matéria luso-brasileira. Ora, é nosso entendimento que a única
forma de equacionar com a devida profundidade estas questões é a de,
libertando-nos da “plêiade”, alargarmos o âmbito da pesquisa, entregando-
nos, metodologicamente, à “escala”. Estudar a relação, mas também aquilo
que nela existe de demarcação. Colocar o problema do relacionamento
luso-brasileiro em termos de configuração equivale a aceitar a sua
intrínseca complexidade, bem como a privilegiar uma leitura que não se
limite a ser o somatório de cada uma das escalas das culturas nacionais,
mas assuma como seu desafio maior o esclarecimento da relação
estabelecida por cada uma dessas culturas com uma dimensão transnacional
sem a qual elas próprias resultariam incompreensíveis. Explicitar, portanto,
3
MINÉ, Elza. “Prefácio” REIS, Jaime Batalha. O Descobrimento do Brasil intelectual pelos
portugueses do século XX. Organização, prefácio e notas de Elza Miné. Lisboa, Dom Quixote,
1988.
10
o “funcionamento” dessa configuração luso-brasileira terá que ser o nosso
primeiro patamar analítico.
Dissensões, convergências, rupturas teóricas: demarcações, em
suma. Eis um nível de relacionamento inscrito num âmbito configuracional.
Descortinar o sentido explicativo destas modulações estéticas e as direções
teórico-doutrinárias e filosófico-políticas subjacentes deverá constituir, em
seguida, o objetivo de um segundo patamar de reflexão. Mas haverá, no
concreto, matéria “luso-brasileira” que permita o seu efetivo
enquadramento e, sobretudo, a detecção do respectivo significado?
Justificar-se-á o investimento a que nos propomos?
Ensaiemos, desde agora, um exercício exploratório. Situe-se o
problema no ano de 1880. Em Março desse ano, no prefácio às suas
Soluções Positivas da Política Brasileira, Luiz Pereira Barreto declarava
ter “a convicção que as nossas condições políticas e sociais não melhorarão
enquanto não tiverem por ponto de partida uma modificação
correspondente na situação de Portugal. O fio da história não se rompe.
Somos filhos de Portugal: a ele estamos presos por todos os laços
indissolúveis de uma lei natural. A fatalidade biológica, o determinismo
sociológico dominam toda a nossa história. É em vão que procuraremos
esquivar-nos à pressão do passado. Temos sido, somos e seremos
portugueses” (4). No mesmo ano de 1880, entretanto, Sílvio Romero
manifestava abertamente sua inconformidade com a proposta estética e
identitária brasileira que propunha “ou cantar o caboclo ou seguir o
português”. Frente a este quadro, disparava: “Punge refutar coisas tais. O
índio não é o brasileiro, mas o português também não; a alternativa entre o

4
BARRETO, Luiz Pereira. “Soluções Positivas da Política Brasileira” [1880]. In: Obras
Completas, Volume III. Organizado por Roque Spencer Maciel de Barros. São Paulo:
Humanitas, 2003, p.17
11
cauin e vinho verde é antigualha – carunchosa. É preciso descortinar, entre
os dois extremos, alguma coisa de melhor” (5).
Por essa altura, o debate manifestava assinalável amplitude. Ainda
nesse mesmo ano de 1880, Miguel Lemos, um dos líderes do positivismo
brasileiro, escrevia – em Paris e a pedido de Pierre Laffitte – uma obra para
celebrar o tricentenário da morte de Camões. Dizia, então, que “le
successeur d’Auguste Comte a lui-même exposé au public, à la fin de la
dernière leçon de son Cours de morale, les motifs exceptionnels de cette
délégation. Il est utile, a-t-il dit, que la glorificcation du meilleur type
portugais soit faite à Paris, et soit faite par un Brésilien : il y aura là une
démonstrations éclatante de l’universalité de la nouvelle religion, qui
glorifie les services des grands hommes de tous les pays, et qui parvient à
éteindre, chez les descendants coloniaux des populations européennes, les
haines sorties des luttes de l’independence nationale, en y substituant un
sentiment profond de la continuité historique. La glorification de Camões,
du type le plus caractéristique qu’ait produit Portugal, sera d’autant plus
décisive qu’elle émanera d’un Brésilien”(6).
Esta publicação, assim como os demais eventos celebrados no
Brasil em homenagem ao tricentenário camoniano, não tiveram
acolhimento uniforme. É verdade que foram recebidos em Portugal com
grande satisfação, por exemplo, por Teófilo Braga. Este autor, na revista O
Positivismo, em 1880, afirmava serem o Brasil e Portugal “filhos da mesma
tradição histórica, [pois] falamos a mesma língua, e exercemos uma ação
mútua que precisa ser conhecida e dirigida”. E dizia mais: “Foram os
Positivistas brasileiros que restabeleceram estas condições naturais da
reciprocidade dos dois povos, e a festa do Centenário de Camões tinha de
ser lucidamente aproveitada para dar às emoções da coletividade a
5
ROMERO, Sílvio. A literatura brasileira e a crítica moderna. Rio de Janeiro: Imprensa
Industrial, 1880, p.75-76
6
LEMOS, Miguel. Luiz de Camões. Paris: Siège Central du Positivisme, 1880, p.III
12
coerência de uma evidente noção racional. Ainda surgiram dissidências de
particularismo de bandeira, tentando isolar a colónia portuguesa em uma
manifestação exclusiva; [mas] as circulares dos positivistas brasileiros
foram ouvidas, e em Paris a festa do Centenário de Camões foi sustentada
no sentido profundo que continha por brasileiros que ali seguem cursos
científicos. Os poderes públicos do Império, o parlamento brasileiro, o
ministério e o próprio imperador compreenderam o alcance do Centenário
de Camões para a confraternidade dos dois povos. A festa dos Positivistas
do Rio de Janeiro, apesar do incalculável e extraordinário esplendor das
outras manifestações impôs-se à admiração pelo seu alcance filosófico” (7).
Entretanto, não podem as avaliações deste teor omitir as vozes discordantes
que se levantaram perante as comemorações, a exemplo da do crítico
literário cearense Araripe Júnior. Para ele, a festa camoniana no Brasil,
“erguendo o orgulho colonial, amesquinhou o espírito nacional” (8). Outras
opiniões num ou noutro sentido poderiam aqui transcrever-se. Não nos
parece, neste momento, que tal seja necessário.
Este brevíssimo panorama é, por si só, esclarecedor da imperiosa
necessidade de tratar em âmbito configuracional o relacionamento cultural
luso-brasileiro. Com atenção à propensa instabilidade dos alinhamentos e à
sua não obrigatória coincidência com as escalas nacionais de referência,
buscar-se-á dar importância ao cotejo dos fundamentos teóricos subjacentes
a cada uma das intervenções daquele tipo e do seu grau de interferência
sobre as diferentes concepções de escala transatlântica. Em igual medida,

7
BRAGA, Teófilo. “O Centenário de Camões no Brasil”. O Positivismo: revista de filosofia.
Segundo Ano, n.6, Agosto-Setembro, 1880, p.513-514.
88
ARARIPE JR., Tristão de Alencar. Lucros e Perdas, n.º2, julho 1883. In: ARARIPE
JUNIOR, Tristão de Alencar, Lucros e Perdas. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I
(1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura,
1958, p.323-360.

13
analisar-se-á a diversidade de critérios mobilizados na instrução dos
argumentos em disputa. A história – enquanto interpretação –, mais do que
qualquer outro critério, parece dotada de alguma centralidade a este nível.
Dito isto, importa adiantar que este trabalho parte de uma
convicção. Precisamente a que pressupõe o lugar nuclear da história no
quadro dos critérios de reordenamento cultural e identitário convocados em
escala luso-brasileira. Antevemos que a obsessão temporal que se percebe
na discursividade portuguesa e brasileira, ainda mais quando está em causa
o relacionamento entre ambos os países, é expressão do potencial da
história como mecanismo de demarcação identitária. E quando pensamos
nos indícios dispersos que autorizam a supor o caráter dramático com que é
debatido, no âmbito luso-brasileiro, o problema da originalidade, ou seja, a
disputa pela singularidade relativa a cada uma das culturas – também aí –
uma vez mais, é com a historicidade com que nos deparamos. A análise do
uso do critério da originalidade histórica condiciona uma série de questões:
i) quem interpreta o “passado” e com que intuito? ii) com quais
pressupostos doutrinários? e iii) produzindo quais consequências ao nível
do relacionamento entre as escalas “portuguesa” e “brasileira”
inerentemente implicadas? Numa palavra: como foi a história mobilizada?
A resposta a estas questões poderá considerar-se a matéria conclusiva deste
trabalho. A verificação de toda esta linha interpretativa constituirá,
naturalmente, o terceiro e último patamar da investigação.
Não vale a pena antecipar aqui reflexões constantes no
desenvolvimento do trabalho a seguir. Estas considerações introdutórias já
são suficientes para ilustrar os principais desafios que se colocam a esta
investigação. Resta, porém, espaço para algumas advertências. Uma delas é
o fato desta pesquisa, justamente por assumir carácter relacional e situar-se
na confluência não apenas de um objeto compósito (como que repartido
por, pelo menos, dois pólos de observação), estar também na confluência

14
de duas historiografias distintas. Tal fato implica, por vezes, um
desequilíbrio ao nível da informação disponível e da cobertura analítica de
determinados assuntos. Trata-se de um dos preços a pagar por uma
investigação efetuada com teu desiderato. Ao longo do texto, assinalamos
sempre que possível essa situação, procurando incorporar a dimensão
historiográfica no leque de fatores passíveis de interferir na problemática.
A anterior advertência é também uma chamada de atenção para o
problema do ponto de vista. Aspecto de transcendente importância para um
estudo com este, comprometido com as questões da escala de análise e com
a necessidade de bem definir o lugar de onde se fala. Devemos esclarecer
que este trabalho, embora sendo tributário de dados e de análises
reportados a Portugal e ao Brasil, não é um trabalho sobre qualquer um
destes países individualmente considerados. Em rigor, a sua linha de ação é
a luso-brasileira: essa é a escala que constitui o seu objeto e é a ela que
devem reportar-se os investimentos analíticos produzidos. É natural que, ao
perseguir esse objetivo, as considerações e os dados levantados sejam
transponíveis para os âmbitos de pesquisa de cada uma das culturas
portuguesa e brasileira. Isso é inevitável. Contudo, estaremos, assim, ao
nível de vantagens colaterais trazidas pelas nossas indagações. O nosso
ponto de vista responde por uma vinculação transatlântica em suas
diferentes escalas. Ou seja, seu caráter configuracional. O mesmo se diga
da lógica seguida quanto às fontes e ao material bibliográfico utilizado: a
mesma postura ditou uma criteriosa – mais do que exaustiva – consulta das
obras disponíveis para cada um dos lados, em relação aos diversos
assuntos. Optou-se por ambicionar uma cobertura tão extensa quanto
possível dos trabalhos situados no horizonte transcultural luso-brasileiro.

15
I. A CONFIGURAÇÃO CULTURA LUSO-BRASILEIRA.

De acordo com os pressupostos atrás enunciados, a primeira parte


deste trabalho destina-se a caracterizar as dimensões tópicas dessa
configuração de ideias, realizações e intercâmbios que designamos por
configuração luso-brasileira. Trata-se, de perscrutar no seio desta entidade
escalar os principais níveis de articulação vigentes, principalmente onde se
expressa o funcionamento de um eixo cultural compósito, a um só tempo
nacional, regional e transnacional e que, assim sendo, incorpora o problema
dos cruzamentos e sobreposições entre estes vários níveis (9).
Nesta perspectiva, são três as dimensões cuja análise se afigura
mais operativa: uma primeira, de caráter comunicacional, que trata da
constituição das redes discursivas em dimensão luso-brasileira; uma outra,
de caráter hermenêutico, que analisa as interpretações concorrenciais que
se debatem naquele mesmo âmbito; e uma última, de cunho estético, que
pretende caracterizar as modalidades de relacionamento produzidas em
resultado daquelas redes e daquelas interpretações. A exploração
complementar destes três aspectos permitirá o conhecimento seguro das
linhas de funcionamento da configuração luso-brasileira.
Uma advertência deve ser feita: as páginas que se seguem – e, em
termos genéricos, toda esta primeira parte do trabalho – assume uma feição

9
Embora com diferente foco e em contexto distinto, veja-se o tratamento que Arriscado Nunes
dá a este conceito em NUNES, João Arriscado. “Reportórios, configurações e fronteiras: sobre
cultura, identidade e globalização”. Cadernos do CES, Oficina n°43, Janeiro de 1995.
16
algo descritiva no tocante à compilação de dados. Esta circunstância deve
ser entendida como o preço a pagar pela aposta na expressividade dos
exemplos concretos e das citações textuais, assim como pela necessidade
de reunir, sistematicamente, uma série de materiais dispersos e a carecerem
de uma atribuição de significado. É nossa convicção que esse sentido
começa por ser a expressividade do dialogismo cultural luso-brasileiro –
tanto na vertente da convergência, quanto na da dissonância, ambas
tomadas, para além de sua especificidade, como expressões desta dinâmica.
Por isso, a nossa tarefa tem de ser a elucidação desse movimento dialógico
nas suas distintas modalidades. Disso trata toda a Parte I. Tornar-se-á
possível, em seguida, surpreender os problemas culturais e teórico-políticos
nodais forjados neste contexto, isolando-os para lhes conferir centralidade
no âmbito da análise. É o que acontecerá nas Partes II e III deste trabalho.

1. Redes Discursivas.

O último quartel do século XIX e os primeiros anos do século XX


denotam, no quadro do relacionamento luso-brasileiro, uma particular
disponibilidade e uma especial atenção a assuntos implicando qualquer
uma das margens do Atlântico, a começar pelos acontecimentos políticos
registrados em ambos os países. Seja qual for a ótica considerada, a
impressão que se tem é a do conhecimento mútuo que, pelo menos no
âmbito intelectual, a cultura portuguesa e a cultura brasileira parecem
cultivar um canal informativo eficaz e a possibilidade do estabelecimento
de pontes e linhas de contato.
Assim sendo, torna-se incontornável conferir alguma arrumação a
essa multiplicidade de circuitos, operar distinções dentro dessa dinâmica,
identificando aquilo que, décadas atrás, Michel Foucault apelidou redes

17
discursivas, isto é, núcleos de significado distintos entre si e agrupando
com alguma coerência, em torno de uma ideia nevrálgica ou de uma série
de princípios, distintos autores e distintas posições, conjuntural ou
tendencialmente alinhados numa mesma rede interpretativa (10).
No caso da presente investigação, merecem destaque dois grupos
temáticos, ou dois circuitos luso-brasileiros. Um deles capta-se na atividade
cronística: trata-se do conjunto de crônicas políticas e colunas de opinião
reportadas a assuntos tanto portugueses como brasileiros – mas, justamente,
logo tornados assuntos luso-brasileiros. Este conjunto patenteia um notável
intercâmbio informativo e uma circulação permanente de ideias entre os
distintos pólos de relacionamento, redundando no estabelecimento de
paralelos políticos e ideológicos e de exercícios históricos comparativos a
pretexto dos acontecimentos respectivos. Já o outro – ou, na terminologia
adotada, a outra “rede discursiva” – situa-se ao nível da divulgação da
ciência positiva no contexto luso-brasileiro, um arco teorico que, ao
promover a figura da “ciência” – ou melhor, de um determinado
entendimento da “ciência” – a esteio congregador dos padrões de
relacionamento cultural, promove a construção de uma discursividade
concatenada em torno dos positivismos. Neste ponto, deve-se chamar
atenção para o seguinte: as duas diferentes redes discursivas assumem e
dão significado distinto ao relacionamento luso-brasileiro. A primeira
trabalha a partir das intervenções de um Oliveira Martins, de um Eduardo
Prado, ou de um Eça de Queirós. A segunda convoca nomes como Júlio de
Mattos, Teixeira Bastos, Carlos Koseritz, Assis Brasil, Alberto Sales, Isidro
Martins Júnior, Sílvio Romero, Teófilo Braga. Vejamos cada uma delas
com mais detalhe.

10
FOUCAULT, Michel. O que é um autor?Lisboa: Veja, 1992.

18
1.1 Circuitos políticos: referencialidade transnacional e “comunidade
de sangue”.

A crônica dos acontecimentos brasileiros, no período que vai de


1870 até ao final do século XIX, foi um assunto que mobilizou o interesse
do público leitor português; mobilizou, e isso é seguro, o interesse de seus
intelectuais. Na impossibilidade de dar conta de todas as expressões dessa
atenção, tomaremos como posto de observação privilegiado, a atividade
cronística de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, vertida em diversos
periódicos. Desde suas contribuições para a Revista Ocidental, em 1875,
até às publicadas em 1890, no jornal O Tempo, ou mesmo as de 1891, no
jornal Nacional, percebe-se que os assuntos brasileiros têm um papel
importante no rol das suas preocupações.

1.1.1. Comecemos pelos textos publicados na Revista Ocidental, na seção


“Crónicas e Revistas”, mais exatamente na coluna intitulada “Portugal e
Brasil” (11). De modo sucinto, pode afirmar-se que o interesse do colunista
J. P. de Oliveira Martins, que assinava “P. de Oliveira” (12), estava
direcionado para cinco assuntos: a “questão religiosa”, bastante exacerbada
no Brasil; a imigração portuguesa naquele país; os problemas econômicos
portugueses (advindos das políticas do governo brasileiro para com o
imigrante português); a situação política portuguesa; a construção e a
ampliação dos caminhos de ferro em Portugal. Interessam-nos alguns
destes pontos.
11
Recentemente essas crônicas de Oliveira Martins foram publicadas no volume J.P. de Oliveira
Martins. Portugal e Brasil. Introdução e notas de Sérgio Campos Matos, fixação do texto de
Bruno Eiras e Sérgio Campos de Matos. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa,
2005.
12
De acordo com Sérgio Campos Matos, J.P. de Oliveira Martins teria assinado como P. de
Oliveira, possivelmente, em homenagem a seu avô. Consultar as notas introdutórias inseridas
em J.P. de Oliveira Martins. Portugal e Brasil. Introdução e notas de Sérgio Campos Matos,
fixação do texto de Bruno Eiras e Sérgio Campos de Matos. Lisboa: Centro de História da
Universidade de Lisboa, 2005.
19
O colunista “P. de Oliveira” (Oliveira Martins), em praticamente
todas as suas crónicas, menciona os acontecimentos decorrentes da
chamada “questão religiosa” do Brasil (13). Semelhante temática está
celeradamente fora do nosso escopo. O contexto português do respectivo
debate, porém, deve merecer alguma atenção, sendo nessa perspectiva – e
só nela – que nos deteremos sobre o assunto. Recorde-se, pois, que logo no
primeiro número da Revista Ocidental o cronista começara por afirmar que
“as questões de modus-vivendi entre o Estado e a Igreja são ainda hoje das
que se impõem, com uma gravidade superior” (14). Nesse quesito,
entretanto, considera que “sofre actualmente mais desse antagonismo o
Brasil que nós. São conhecidos os incidentes do conflito que parecia
terminado com a condenação e encarceramento dos bispos do Pará e
Olinda. Esses actos com que o governo brasileiro reproduz a política do
chanceler alemão, não encontram no império brasileiro, como encontram
no da Europa, o apoio firme das populações protestantes ou velho-
católicas. Católico na sua totalidade o Brasil, menos depurado o sentimento
religioso, menos elevado o grau de cultura intelectual, devemos temer pelo
resultado da luta que a condenação dos bispos acirrou amargamente?” (15).
Independentemente de razões de outra índole (que abordaremos a
seu tempo), o olhar vigilante do autor sobre o caso brasileiro e a respectiva
incorporação no seu núcleo argumentativo decorrem de matéria de
princípio. Na realidade, considera ele que os fatos relativos à questão
religiosa no Brasil não constituem meras questões de ordem conjuntural,
mas sim o produto de um antagonismo de princípios. Por isso, “pouco vê
quem apenas considera os acontecimentos desta ordem como filhos das
13
Recorde-se que a “Questão religiosa”, ao lado da “Questão Militar” e da “Questão da
Escravidão”, é geralmente tratada pela historiografia brasileira como uma das três questões que
tiveram importante papel no “ocaso do Império” de D. Pedro II, para usar uma expressão de
Oliveira Vianna. Cf. VIANA, Oliveira. O Ocaso do Império. São Paulo: Editora
Melhoramentos. 2ª edição, 1925.
14
Revista Ocidental, Ano I, Tomo I, fascículo de 15 de Fevereiro, 1875, p.115.
15
Idem, ibidem, p.116.
20
ambições, dos interesses, das pequenas paixões que, sem dúvida,
acompanham sempre as acções humanas. Questões religiosas, como a que
agita o Brasil, são inevitáveis no nosso tempo, em que as relações do
Estado e da Igreja não podem assentar em bases racionais, mas somente
num sistema de concessões recíprocas e de frágeis concordatas, que um
momento aconselha, que o momento seguinte repele”; isto porque,
sustenta, “falta-lhes a base firme da filosofia”. Trata-se, com efeito, de uma
questão estrutural, pois o “sistema de instituições que se deduz dos
princípios do catolicismo romano, não é compatível com o sistema de
instituições que se deduz da filosofia do direito nas nações europeias” (16).
Daí a necessidade de se fazerem reformas que cerceassem o poder político
temporal que os bispos mantinham, reformas essas entendidas como “as
melhores armas para combater as tentativas reaccionárias: não que a
política deva deixar de as atacar de face quando saem a campo, nem de as
minar por todos os modos à medida que se vão pronunciando em
tendências ainda indefinidas. O primeiro caso é o do Brasil, o segundo é o
de Portugal, onde, se não temos ainda bispos encarcerados, nem vivas e
fogueiras ao divino, temos já o pequenino conflito do cabido de Bragança,
tão pequenino que o deixei para o fim, com a tenção firme de apenas o
mencionar”. E, como conclusão, a apontar para o caso português, remata o
colunista: “Não vale a pena gastar cera com ruins defuntos” (17).
A frase com que encerrou a coluna de 15 de Fevereiro de 1875 não
o impediu, entretanto, de voltar ao assunto. Ter-se-á, de alguma forma,
sentido obrigado a fazê-lo. É que a intervenção pública de Oliveira Martins
sobre a questão religiosa motivava reações adversas. Assim, no fascículo
publicado em 15 de Abril do mesmo ano, P. de Oliveira confessa-se
“curioso” perante a manifestação agressiva vinda da parte do jornal Bem

16
Idem, ibidem, p.116-117.
17
Idem, ibidem, p.118-119.
21
Público: revista eclesiástica e literatura. Diz ele que “o rápido incidente do
cabido de Bragança, e a gravíssima questão do clero brasileiro, a que mais
de uma vez me tenho referido aqui, mereceram-me da parte do Bem
Público uma saraivada de grosserias, que não sei se são ultramontanas, mas
que nem são delicadas nem piedosas” (18). Na verdade, a avaliar pelas
transcrições do referido jornal que o próprio Oliveira Martins se encarrega
de fornecer aos seus leitores, incorporando-as nas suas crônicas, os
argumentos martinianos eram ali refutados palmo a palmo (19). Não apenas
os relativos à questão religiosa em Portugal, mas também – o que toma
particular sentido para a presente investigação – aqueles relativos à questão
religiosa brasileira, a qual, ao que se percebe, era matéria conhecida
também por esta outra fonte da polêmica. Tanto assim é que, em uma das
suas colunas, dirá o Bem Público, em resposta a P. de Oliveira: «Escusado
é dizer que, falando da questão religiosa do Brasil, a Revista se mostra boa
irmãzinha nos três pontos; e que até aos jesuítas e aos bispos presos atribui
a revolução matuta dos quebra quilos, – coisa que nem as folhas semi-
oficiais do Brasil se atrevem já a sustentar, por ser demasiadamente calva»”
(20).
Está claro que os acontecimentos de além-mar eram seguidos de
perto por ambas as partes em confronto (21). E o comentário dos assuntos

18
Revista Ocidental, Ano I, Tomo I, fascículo 5º, de 15 de Abril, 1875, p.624.
19
Oliveira Martins aproveita para dar uma amostra ao seu leitor, transcrevendo um trecho, das
páginas do Bem Público de 1875, de onde respingam ácidas críticas em eco à recente Questão
Coimbrã, como se vê: “«Coimbra que está sendo o foco pestilento de Portugal, o verdadeiro
poço do abismo de onde saem os vapores deletérios que o vão matando, não podia deixar de ser
um dos centros mais activos da maçonaria, que ali tem o caracter pechincheiro e cobarde dos
lords da batota»”. Idem, ibidem, p.624-625.
20
Idem, ibidem. Grifos no original.
21
Recorde-se, a este propósito e a título exemplar, a alusão de P. de
Oliveira “ao que o imperador afirma no discurso de abertura do
parlamento, que o correio nos trouxe há dias, [a saber]: «A ordem pública
foi perturbada em vários pontos do interior de quatro províncias do norte.

22
brasileiros propiciado por esse intercâmbio informativo constitui um palco
mais da exacerbação dos debates da época, servindo de pretexto para um
enfrentamento mais entre criticismo e ultramontanismo (22). Dito por outras
palavras: a uma efetiva circularidade informativa entre ambos os lados do
Atlântico, exemplarmente sugerida por este caso, correspondia um
correlativo alinhamento de posições e princípios em escala não apenas
nacional mas, justamente, transnacional. Neste âmbito, os acontecimentos
de um ou de outro lado ganhavam súbita amplitude de significado a cada
vez que eram convocados a alargar o referente argumentativo e, com isso,
se estendia para um contexto luso-brasileiro as múltiplas linhas de fissura
que ecoavam, pelo menos, desde as Conferências do Casino. Com isso,
percebe-se que as partes em disputa buscavam arcos de legitimação de
amplitude atlântica, percorrendo as correntes de significado construídas ao
sabor dos enfrentamentos estruturais ou meramente conjunturais. Em
qualquer dos casos, se mobilizava o debate em uma referencialidade
transnacional. Nem obrigatória nem tendencialmente predominante, talvez.
Mas, sem dúvida, passível de ser efetivada em circunstâncias determinadas
e em função de razões justificadas. Estas, contudo, não se resumiam à

Bandos sediciosos, em geral movidos por fanatismo religioso, e


preconceitos contra a prática do sistema métrico, assaltaram as povoações,
destruindo os arquivos de algumas repartições públicas e os padrões dos
novos pesos e medidas»”. Idem ibidem, p.624-625. Grifos no original.
22
Vê-se que a pena de Oliveira Martins habilmente cria a imagem de um ultramontanismo
necessariamente vencido pela marcha histórica. O uso político no debate desta compreensão
filosófica da história é claro. Nesta toada, escreverá que “além do meu respeito, os
ultramontanos têm direito a exigir de mim a compaixão que se deve a todos os vencidos.
Ninguém bateu já mais no inimigo caído. Se a baba lhe escorre dos lábios nas vascas de uma
agonia longa, se a dor lhe arranca impiedades e blasfémias, nem a baba nem as imprecações nos
chegam a todos os que temos serena a consciência e piedoso o coração. Outro é o nosso Deus, e
no vosso, como bons filhos, respeitamos um momento sublime da revelação histórica. Podeis
insultar-nos, não podeis vencer-nos; e se por desgraça, no revoltear torvo dos incidentes
tempestuosos da vida das nações, um acaso vos desse uma hora de poder efémero, nem as
vossas forças, nem as vossas fogueiras alterariam nunca a serenidade do nosso ânimo…”. Idem,
ibidem.
23
fluidez da informação, nem a matéria de princípio filosófico. Estando em
causa as relações entre Portugal e Brasil, aquela referencialidade era – para
alguns – matéria de sangue.

1.1.2. É o que se deduz quando passamos à abordagem do problema da


imigração portuguesa no Brasil, perspectivado por Oliveira Martins nas
linhas da citada coluna “Portugal e Brasil”. A dramaticidade que se
reconhece à questão – “profunda, séria, a mais grave de todas as que se
prendem com a vida íntima ligada das duas nações que falam a língua
portuguesa”, conforme dirá – é bem evidente.
Na coluna de 15 de Fevereiro de 1875, P. de Oliveira informava os
leitores sobre “as questões do Pará [episódios de animosidade contra os
portugueses, verificados igualmente em Pernambuco e Sergipe, províncias
do nordeste brasileiro], questões, ao que parece, e felizmente, terminadas e
em que os dois governos do Brasil e de Portugal também felizmente
reconheceram que não vale a pena quizilar-se. Ao contrário, cumpre unir-se
para fazer calar as declamações torpes de um papel que se diz Tribuna,
quando devia chamar-se Taberna” (23). Aliás, para o colunista, “pouco vale
repetir os incidentes conhecidos do conflito que obrigou o governo
português a mandar às aguas do Brasil a corveta Sagres; além de
conhecidos, a sua importância é a de meros e transitórios acidentes de uma
questão permanente e viva: a translação dos portugueses para o Brasil, o
retorno dos brasileiros para Portugal” (24).
O discurso é prudente. O que está em causa – as relações luso-
brasileiras, assunto referente “ao bem comum” – é demasiado sério para
agir de outro modo. Considera, por isso, que inquirir sobre “até que ponto a
questão puramente brasileira da reacção ultramontana contra a maçonaria

23
Revista Ocidental, Ano I, Tomo I, fascículo 1º, de 15 de Abril, 1875, p.111.
24
Idem, ibidem.
24
influía na animosidade activa dos brasileiros do norte contra os
portugueses, seria tornar a levantar uma questão que todos devemos
esquecer para o bem comum”. Oliveira Martins estava ciente que, nas
questões que envolvem nacionalidades, os ânimos podem insuflar-se e, por
isso, alerta para que não se derrame o “sangue de alguns portugueses” que
“avermelhou tragicamente o episódio” (25).
Insiste na imagem do sangue derramado. Procura-lhe as causas:
afinal, a “troca de provocações hostis entre os jornais portugueses e
brasileiros apenas revela uma face puramente exterior do conflito”, pois se
é verdade que a causa imediata “foi o modo porque no norte do Brasil se
tem desde certo tempo entendido a liberdade do trabalho”, isso não abona o
“senso económico dos governos provinciais, ou abona então
demasiadamente o amor de um patriotismo irreflectido: o trabalho é
cosmopolita”. Ora, assim sendo – e dado que “há anos já, o governo da
província do Pará retirara o subsídio à companhia de navegação do
Amazonas, pelo facto dela empregar em seu serviço principalmente
portugueses” – Oliveira Martins acredita que a política da nacionalização é
um grande erro. Para ele, a “nacionalização quer dizer exclusão dos
portugueses do negócio de retalho, isto é daquele que mais fácil e
numeroso emprego oferece aos imigrantes”– sendo a responsável pelo
“drama já avermelhado de sangue” (26).
Expressões como esta vão tornando explícita a motivação profunda
das preocupações do autor. Frente à onda nacionalista no comércio de
retalho – cujos episódios o cronista conhecia bem, comprovando, uma vez
mais a circularidade informativa transatlântica (27) – declara, em tom de

25
Idem, ibidem, p.111-112.
26
Idem, ibidem, p.112.
27
Do seguinte modo rebate aos que pregam a nacionalização do comércio, citando uma portaria
do governo do Rio de Janeiro ao governador do Pará: “«Em virtude do artigo 16.º do acto
adicional devia v. ex.ª ter negado a sanção à referida lei, e, se porventura a assembleia
provincial a sustentasse tal qual por dois terços dos votos, suspendido a sua execução… Que,
25
queixa, que “abrir bem largo esses braços, eis o que o Brasil não faz”.
Trata-se de um grave erro que, em seu entender, vitimiza a “própria
sociedade brasileira, portuguesa de sangue, que encontraria nos novos
adeptos um rejuvenescimento de seiva, e o meio de encaminhar para a
fixação de uma nacionalidade e de uma raça, coisas que não conseguiu
ainda atingir” (28). A cultura brasileira, para Oliveira Martins, é
“portuguesa de sangue”. Eis por que motivo a incorporação portuguesa no
Brasil não poderia deixar de ser benéfica, favorecendo a fixação da nação e
da raça; eis por que motivo os incidentes do Pará relatados em 1875 “se
prendem a um problema reciprocamente grave para as duas nações
portuguesas”. Eis, enfim, o motivo pelo qual uma alteração de regime
político no Brasil não poderia deixar de perturbar o autor de O Brasil e as
colónias portuguesas.

1.1.3. Poucos anos depois, na sequência da Proclamação da República no


Brasil, em 1889, Oliveira Martins seguirá intervindo criticamente através
das suas crónicas nos periódicos portugueses.
Nesse ano de 1889, no jornal O Tempo, um artigo chamado “A
República no Brasil”, considera que “parece confirmar-se a notícia da
incomparável tolice que o Brasil fez, proclamando a República, destruindo
esse Império a cuja sombra e pela mão de um príncipe tão patriota como
sábio, conseguira ganhar foros de nação, avigorar-se, desenvolver-se,

aconselhando o interesse público que para todos os estrangeiros residentes no império se


mantenham os princípios de igualdade comercial e civil, cumpre aos presidentes provinciais, em
todos os casos em que os projectos de lei provinciais contrariem tais princípios, usar dos meios
que lhes faculta o acto adicional»”. Não deixa de ser interessante que, frente ao conflito entre
jornais brasileiros do norte do país e os trabalhadores imigrantes portugueses na região, o
cronista lembre um documento oficial da sede do Império, dizendo ainda: “oxalá que o espírito
público dos brasileiros se inspirasse sempre das mesmas doutrinas que inspiram as altas regiões
governativas: folgaria com isso o direito, faria bem ao nome do Brasil e melhor à sua
prosperidade”. Idem, ibidem, p.112-113.
28
Idem, ibidem, p.113.
26
vencer os seus inimigos e adquirir um lugar proeminente na América do
Sul” (29).
Para ele, a Proclamação da República no Brasil é “mais do que um
erro funesto”: trata-se de “uma ingratidão para com esse homem venerando
carregado de anos e serviços que consumiu a vida a dotar o seu Império
com os frutos de uma administração em que a energia se aliou sempre à
prudência, a força à arte, alternando segundo as necessidades”. O autor de
O Príncipe Perfeito entende que a unidade territorial brasileira foi obra do
Império e, por isso, o vemos temer pela desagregação “dessa grande
América portuguesa, tão grande como a Europa, tão diversa em interesses,
em tradições e em temperamento nas suas várias províncias, desde os
sertões do Amazonas, pelo centro agrícola de S. Paulo, até aos pampas do
Rio Grande”. Avalia que a unidade nacional brasileira só era possível pela
forma administrativa do Império de D. Pedro II. O federalismo republicano,
vaticina, “será inevitavelmente o desmembramento [do] grande Império
neo-português” (30).
A sua argumentação neste sentido não hesita em se ancorar na
experiência histórica. Sustenta que, ao contrário da colonização da América
do Norte, que “marchou em coluna cerrada” de Oriente a Ocidente, a
colonização “hispano-portuguesa” dimanou “criando núcleos dispersos,
gânglios de população que só o trabalho lento dos séculos virá a aproximar
e fundir”. Esses núcleos mantinham-se unificados enquanto “enfeixados
pelo vínculo da monarquia”. Por isso, acredita que, abolindo-a, a República
tenderá para a desagregação (31). Não pode, nestas circunstâncias, deixar de
exprimir as suas reservas mais vincadas à mutação política brasileira,
registrando que “ao apreciar a revolução do Brasil, aplauda-a quem quiser:
29
O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 –
1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.241.
30
O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 –
1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.242.
31
Idem, ibidem, p.243.
27
nós não, porque aplaudindo a proclamação ociosa de um fórmula de
governo, indiferente em si e nefasta actualmente para o próprio Brasil,
aplaudiremos a iminência de graves perigos para esta nossa terra que
adoramos, e que foi a mãe pátria da nossa gloriosa colónia” (32).
Cumpre chamar a atenção, neste ponto, para o fato de as
preocupações de Oliveira Martins resultarem da percepção do risco
econômico que presumia vir a abater-se sobre Portugal. Esta perspectiva
não lhe é estranha. Sabe-se da sua particular sensibilidade para com o
problema emigratório, questão à qual volta com insistência, na linha do que
fizera já em 1875, acentuando a forte dependência econômica portuguesa
da respectiva capacidade para estabilizar a comunidade migrante e o
correspondente caudal de retorno financeiro (33). Mas parece inegável que
suas alusões ao futuro brasileiro estão marcadas por um movimento de
auto-referencialidade que reflete a própria simbologia ligada às dimensões
positivas do período colonial português. Por isso dizia que “ao Brasil
queremos, pois, como se ainda fosse uma parte da pátria portuguesa, e é

32
Idem, ibidem,p.244-245. Grifos nossos.
33
Ele mesmo o manifesta: “já não é hoje segredo de ninguém que o rendimento mais importante
e mais líquido da nossa depauperada economia nacional é a emigração para o Brasil.
Exportamos para lá por ano trinta ou quarenta mil portugueses; recebemos de lá por ano dez ou
quinze mil contos de réis. Se esta corrente de gente que sai e de dinheiro que vem, se deslocar,
as consequências serão gravíssimas”. Para Oliveira Martins “o jacobinismo brasileiro escreve na
sua bandeira a nacionalização do comércio de retalho, eufemismo sob que se esconde a guerra
mortal de inveja ao emigrante português, que disputa aos indígenas, à força de economia e
trabalho, o mercado da venda a miúdo”. O autor da Circulação Fiduciária proclama que não
teme análogas modificações no regime político português, ao afirmar que “não receamos para
Portugal as consequências políticas da revolução”, pois “não é do Brasil que nos virá nenhuma
novidade constitucional, nem temos a aprender com as lições do seu governo, mormente quando
são da natureza destas”, embora manifestasse receio pelas “consequências económicas da
loucura política do Rio de Janeiro”. Oliveira Martins volta a este mesmo tema, no seu artigo “A
nacionalização no Brasil”, também escrito em 1889, para o jornal O Tempo. Neste texto, dá
maior ênfase ao problema, informando que o “sob o ponto de vista português, o decreto de
nacionalização promulgado pelo governo provisório é manifestamente prejudicial para nós. E
oxalá não seja esse o prólogo de outras medidas que porventura venham afectar as nossas
relações políticas, e principalmente as económicas, com a grande nação da América do Sul”.
Idem, ibidem, p.244-247.
28
por isso que estas palavras nos saem espontâneas e simples dos bicos da
pena” (34).
Daí o lamento: “o Brasil praticasse além de um acto de insensatez,
uma ingratidão”. Ingratidão para com a obra do Império brasileiro, para
com a união territorial, mas também – e sobretudo – para com o legado
português na América. Implicitamente, percebe-se que os acontecimentos
políticos brasileiros são suscetíveis de macular “a obra” lusitana na história,
afetando a “moral” da coletividade em causa, bem como o padrão de
relacionamento projetado para o futuro. E mesmo reconhecendo-se que
“um país, chame-se como se chamar, não passa de amigo a inimigo nosso
porque mudou a sua forma de governo”, e que “a nossa amizade é tão
grande como o nosso parentesco”, alguma ansiedade se deverá
compreender-lhe ao julgar “o passo errado que deu o Brasil, e a
enormidade dos perigos em que se lançou a si – e também a nós” (35).
Estava em causa, afinal, o futuro de um dado passado (36). O mesmo é dizer
o futuro de uma comunidade luso-brasileira idealizada. Ou não será
precisamente isso que dirá o próprio Oliveira Martins, ao dar voz a todos os
que, como ele, “esperançados no crescer fecundo e harmónico de uma
nação neo-portuguesa na América, em vez de se sentirem entusiasmados,
[lamentam] ver assim posto em perigo o futuro da melhor obra da história
portuguesa” (37)?

34
Idem, ibidem, p.245.
35
Idem, ibidem, p.245.
36
Está em causa, neste ponto, toda a complexa relação entre memória, presentificação da
memória e projecção do futuro, tal como a tem analisado Fernando Catroga e no sentido que ela
recebe a partir dos estudos de Miguel Baptista Pereira, ao afirmar que “se houve passado,
presente e futuro no passado, há passado, presente e futuro no presente, haverá passado presente
e futuro no futuro”. Veja-se o enquadramento teórico da questão em PEREIRA, Miguel
Baptista. “Filosofia e memória nos caminhos do milénio”, In: Revista Filosófica de Coimbra,
vol.8, n.º16, Outubro de 1999; e veja-se, de igual modo, o desenvolvimento dado ao assunto, a
partir daquela expressão, por CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia.
Coimbra: Quarteto, 2001, p.32.
37
O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 –
1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.249-250. Grifos nossos.
29
1.1.4. Sem surpresa verificamos a incomodidade do autor frente à
proposta do governo provisório republicano do Brasil, que apontava para a
naturalização dos imigrantes residentes em solo nacional. Obviamente, a
atenção martiniana voltava-se para os portugueses, pois “cumpre-nos olhar
pelos nossos”, chamando atenção “do nosso Governo para a protecção de
que carecem os duzentos mil (ou mais) portugueses convidados ou
coagidos a renegar a sua pátria” (38).
A diferença regimental que a proclamação da República introduziu
na “jovem” nação brasileira ía bastante além de um fato político e
administrativo. Compreende-se, assim, que o autor da História da
Civilização Ibérica tema pelo futuro do elemento “neo-português” no
Brasil. E, como é sabido, se mesmo depois da Independência, ainda havia
um laivo de sangue bragantino a unir as duas monarquias liberais de fala
portuguesa, a República fechará esta porta de contato. Abrirá outra,
alternativa: a da incorporação de imigrantes – não exclusivamente ibéricos
ou mediterrâneos – para a formação do futuro do Brasil. Neste quadro, o
que restaria da grande obra de Portugal na História, simbolizada muito
fortemente pela grandeza brasileira? Nesta perspectiva, Oliveira Martins
teme a intensa incorporação de imigrantes estrangeiros de procedências
distintas (como alemães e italianos, por exemplo), a qual poderia concorrer
para uma gradual perda da importância da lusitanidade na formação do
brasileiro.
Em contraposição à experiência norte-americana, ressalta que “a
nacionalização imediata de consideráveis massas de estrangeiros não tem
nos Estados Unidos gravidade, porque a grande maioria dos imigrantes
pertence ao próprio fundo da raça que constitui a nação americana, e os

38
Idem, ibidem, p.250.
30
laivos de sangue estranho são assimilados e absorvidos rapidamente” (39).
Diferente é o caso brasileiro, pois, “quando se observam os números da
imigração de estrangeiros, sente-se o perigo do futuro”. Afinal, “já lá vai o
tempo em que o elemento português preponderava de um modo quase
absoluto. Nos quinze anos de 1873 a 1887 entraram no Rio de Janeiro 336
mil imigrantes, e destes eram 129 mil italianos, 121 mil portugueses, 33 mil
alemães e austríacos, 17 mil espanhóis, e o resto de outras origens” (40). Diz
mais: “a imitação precipitada dos processos yankees pode dar rapidamente
um incremento febril ao Brasil, mas tornará essa região do mundo um
caravanseralho de povos e não uma nação, como os Estados Unidos são há
muito, e como o Brasil se encaminhava para ser à sombra do Império”(41).
Invariavelmente, a sua pena encontrava a questão da unidade
territorial brasileira. Assim sucedia mesmo depois de os acontecimentos
relativos à mudança de regime terem perdido alguma novidade. Prova disto
é o seu texto “A Unidade do Brasil”, de 1890, também publicado no jornal
O Tempo, texto esse em que a sua análise de uma situação concreta – os
problemas havidos na fronteira sul do Brasil – vinha comprovar, do seu
ponto de vista, o acerto dos seus anteriores vaticínios acerca da
desagregação brasileira. Para ele, “os traços [do] desmembramento da
nação neo-portuguesa da América” podiam já ser vistos “na separação do
Rio Grande do Sul, região de pampas, que pelos interesses, pelos costumes
e pela tradição, inclinaria para o lado do Uruguai”. Informado pelas
notícias trazidas pelo telégrafo, assim como pelas demais “informações
fidedignas que recebemos”, percebe nesse episódio o levantar da “primeira
ponta do véu escuro dos perigos que corre a integridade do Brasil” (42).

39
O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 –
1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.248.
40
Idem, ibidem, p.249.
41
Idem, ibidem, p.248.
42
Uma destas informações noticiava o temor do governo provisório de uma sublevação do
Estado do Rio Grande do Sul. Frente a este possível acontecimento, segundo as informações
31
Parece interessante notar que o autor toma o critério histórico como
barómetro interpretativo das questões políticas de seu tempo. Daí que
remeta à época colonial, cotejando as experiências dos modelos espanhol e
português de colonização com a política internacional que envolvia duas
Repúblicas latino-americanas, no final do século XIX. Daí que tivesse
falado na ambição argentina pela reconquista do “antigo vice-reinado” de
Buenos Aires, bem como remetesse ao “erro histórico da ocupação
portuguesa nos tempos coloniais”, por não ter levado “a fronteira do Brasil
até ao Rio da Prata”. Erro este “até certo ponto emendado pelo Império em
1851, quando deu a mão a Urquiza e tomou Montevideo a Oribe, criando a
república independente da Banda Oriental, ou do Uruguai” (43). Bem vistas
as coisas, estas questões fronteiriças surgem como prova da má opção que
constituía, para o Brasil, no contexto sulamericano, o regime republicano
(44). “O abandono de uma parte do solo do Brasil” – dirá – é fato
“gravíssimo para a apreciação do mérito do governo que se substituiu ao
Império; gravíssimo pelos sintomas que denuncia quanto à sua estabilidade
no ponto de vista da integridade do Brasil; gravíssimo, finalmente, por tudo
isto para quem, como nós, tem no Brasil tão sérios interesses a defender”
(45). Do ponto de vista português, não duvida que “se agora andamos acesos
em justa indignação contra a Inglaterra pelo ultraje que recebemos dela,

divulgadas pela crônica de Oliveira Martins, “para conseguir a pacificação do Rio Grande em
caso de revolta, o governo provisório lembrou-se de solicitar o auxílio e a intervenção armada
da República Argentina, ou contra o Rio Grande isoladamente, ou contra esse Estado unido à
República do Uruguai”. O que lhe causa frémito é o fato de que, em troca de auxílio armado, o
Brasil fosse obrigado a ceder parte de seu território à República Argentina, bem como
“consentir na anexação do Uruguai, desinteressando-se também o Brasil pelo Paraguai, que os
argentinos poderão igualmente anexar, realizando assim a sai ambição de unificarem numa
república toda a dependência do antigo vice-reinado de Buenos-Aires” Idem ibidem, p.274.
43
Idem, ibidem, p.273-274.
44
Para Oliveira Martins, durante o Império, “o Brasil, exercendo a hegemonia, libertava o
Paraguai, numa campanha em que tinha por aliados os argentinos; agora, vinte anos depois, é
ele o protegido que pede aos argentinos para lhe fazerem a polícia interna, abandonando as
pequenas repúblicas do Prata à ambição do povo que em breves anos será absoluto senhor da
América meridional”. Idem, ibidem, p.274.
45
O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 –
1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.275.
32
não devemos esquecer que, para lá do Atlântico, no Brasil, nos achamos a
braços com um problema materialmente mais sério. A questão inglesa não
é, por infelicidade nossa, a única, embora seja a mais dolorosa!”(46).

1.1.5. Acontece que a apreensão de Oliveira Martins relativa à


manutenção da integridade territorial brasileira não era opinião isolada. Nas
páginas da Revista de Portugal (47), observamos aproximadamente a
mesma avaliação a partir de outras autorias. Tomemos como exemplo o
texto do brasileiro Eduardo Prado, intitulado “Destinos Políticos do Brasil”
(48).
Escrevendo de Leipzig, na Alemanha, em Setembro de 1889 – e,
portanto, dois meses antes da Proclamação da República no Brasil –, vemos
Eduardo Prado preocupado em defender a existência do regime
monárquico. Não é casual que ele centre as discussões políticas nacionais
em duas questões-chave: i) a continuidade da monarquia e ii) a
continuidade da união territorial do Brasil. Diante destas questões, Prado
enumerava duas tendências opostas: uma de destruição e outra de
conservação. O movimento republicano congregaria, para ele, todas as
forças destrutivas. O autor de A ilusão americana considera que o sentido

46
Idem, ibidem, p.276.
47
Concordamos com Aparecida de Fátima Bueno quando considera a Revista de Portugal “um
espaço importante para pensarmos nas inter-relações luso-brasileiras do período”. Importa
ressaltar que acreditamos que o que a autora afirma em relação à Revista de Portugal, dirigida
por Eça de Queirós, sustentamos ser a tónica da época que vai de 1870 até o final do século,
englobando não apenas este periódico, mas vários outros, desde a Revista Ocidental, dirigida
por Antero de Quental e Batalha Reis, passando pela Revista de Estudos Livres, bem como pela
Revista Brasileira. No final das contas, trata-se de atentar que este foi o tom crítico das
Gerações de 1870, portuguesa e brasileira, conforme a expressão de Beatriz Berrini, já
mencionada neste trabalho. Para mais informações, consultar BUENO, Aparecida de Fátima
“Relações conflituosas: o Ultimatum inglês na Revista de Portugal”. Trabalho apresentado no
âmbito do VII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, em Coimbra, nos dias 16,17
e 18 de Setembro de 2004.
48
Eduardo Prado publicou um total de oito textos na Revista de Portugal. Destaca-se que,
apenas no primeiro, escrito ainda antes do 15 de novembro de 1889, ele assina com seu nome.
Nos restantes usará o pseudónimo “Frederico de S.”. Para uma interessante análise das
interfaces luso-brasileiras no pensamento de Eduardo Prado, sugerimos a primeira parte de
BERRIEL, José Carlos. Tietê, Tejo, Sena. A obra de Paulo Prado. Campinas: Papirus, 2000.
33
de uniformização política é o fator de agregação dos republicanos da
América, de norte a sul; porém, a ênfase neste elemento “esquece que os
Brasileiros, distinguindo-se dos outros americanos ingleses e espanhóis, na
origem e na língua, bem podem também distinguir-se deles no modo de
governo” (49). O Brasil, por conseguinte, é caso à parte: “o Brasil é na
realidade um país indisciplinado. Como Portugal, ele foi formado
socialmente debaixo da disciplina da Igreja e teve dois séculos do ensino
dos jesuítas. A ninguém os substituiu. Os países da Europa têm a força das
tradições; a Inglaterra a disciplina do puritanismo, regendo também pelo
seu prestígio a grande comunidade norte-americana; a Alemanha achou na
disciplina militar o correctivo da destruição de autoridades feita pelos
filósofos. No Brasil nada disso existe. A escravidão tornou a ideia e o
sentimento do dever social da obediência coisas humilhantes e repulsivas”
(50). Mais ainda, esta especificidade faz entroncar diretamente, por via da
tradição histórica, o destino brasileiro com o de Portugal, no sentido em
que, afirma Prado, “só pelas grandes qualidades colonizadoras dos
portugueses, pela fecundidade das suas alianças com a raça indígena que
eles tiveram de subjugar à força de coragem e valentia, é que o Brasil pôde
ser feito, apesar de todos os erros do governo de Portugal”. Para ele, “os
descendentes dos Portugueses têm progredido desde que lhes coube a
responsabilidade da direcção da nacionalidade, tal qual ela existia já em
1822, isto é, unificada pela origem, pela língua, pela religião, pela
invencível força das coisas, apesar das divisões políticas do território,
capitanias ou províncias, datando de três séculos” (51).
À semelhança da maioria dos cronistas da época, também Prado
não concebe a projeção no futuro à margem da reflexão sobre a tradição
49
PRADO, Eduardo, “Destinos Políticos do Brasil”, Revista de Portugal, volume I. Porto:
Editores Lugan & Genelux, 1889, p.470.
50
PRADO, Eduardo. “Destinos Políticos do Brasil”, Revista de Portugal, volume I. Porto:
Editores Lugan & Genelux, 1889, p.476-477.
51
Idem, ibidem, p.480-481.
34
histórica, e, com ela, sobre a identidade dos povos. Pelo que a intersecção
de portugueses e brasileiros – responsável que era, para este monarquista
convicto, pela unidade do Império, essa “unidade fundada na tradição
histórica, no facto de ontem e de hoje, na língua, na religião” (52) – só
poderia entender-se como a decorrência indeclinável desse aspecto. É bem
na esteira deste pressuposto que vemos Eduardo Prado em busca da sua
definição do brasileiro. Segundo ele, o “romance nacional e o teatro ainda
não criaram o tipo, mas ele, sob os seus aspectos tropicais, isto é, mais
exuberante, é um misto do Julião de Eça de Queirós e do Homais de
Flaubert” (53). Noutra passagem, aduz que “o brasileiro porém tal qual ele
começa a se desprender da sua formação etnográfica, tem a sensibilidade
da raça africana, a paciência do índio temperando a força do Português que
ele mesmo é um calmo ao lado do Espanhol” (54).
Bem se compreende, neste âmbito, a sua atitude compreensiva e
interessada no relativo à contribuição do imigrante. Ao reconhecer que “o
elemento estrangeiro é no Brasil a civilização”, por ser o “professor
nacional do trabalho”, prevê que “dos variados elementos estranhos e
indígenas com que se está formando a nacionalidade do futuro, saia um
povo que, em relação às instituições herdadas de seus antepassados, tenha
aquele nobre sentimento de confiança, de dedicação e de lealdade para o
qual, na língua política da Inglaterra, se inventou a bela palavra – loyalism”
(55).
Dois meses antes da proclamação da República, Eduardo Prado
roga para que se “renove a monarquia”. Os acontecimentos seguintes não
favorecem os seus desejos. Contudo, vemo-lo, logo a seguir o 15 de
novembro de 1889, escrever um interessante artigo, impresso também no

52
Idem, ibidem, p.489.
53
Idem, ibidem, p.474-475.
54
Idem, ibidem, p.488.
55
Idem, ibidem, p.491.
35
periódico de seu amigo Eça de Queirós: a Revista de Portugal. Assinando
sob o pseudónimo “Frederico de S.”, Prado dá à estampa ao texto intitulado
“Os Acontecimentos do Brasil”, escrito em Novembro de 1889. Informado
pelo que “o cabo submarino tem transmitido” da América do Sul, comenta,
para seus leitores, as novidades sobre a troca de regime no Brasil. Com fina
ironia, Prado transcreve trechos de telegramas, os quais, nas concisão de
suas linhas, considera “singularmente humorísticos”. Eis o excerto, tal
como surge publicado na Revista de Portugal:

«A tropa em estado de revolta. Reina tranquilidade. – O imperador em Petrópolis.


Completa paz. – Foi preso o ministério. População calma. – Foi proclamada a
república. Tudo inalterado. – O Imperador preso no seu palácio. Ordem perfeita. –
Fica constituído o seguinte governo provisório: Marechal Deodoro da Fonseca,
presidente sem pasta; Campos Sales, ministro da justiça; Quintino Bocaiuva,
ministro dos negócios estrangeiros; Aristides Lobo, ministro do interior; Rui
Barbosa, ministro da fazenda; chefe de divisão Wandelocock, ministro da marinha;
Demétrio Ribeiro, ministro da agricultura, comércio e obras públicas. As províncias
aderem. O Sena, o Conselho de Estado, foram abolidos. A Câmara dos Deputados
foi dissolvida. Reina sossego. – O Imperador e a família imperial embarcaram para
a Europa. – A Bahia não adere ao movimento. Absoluta unanimidade, etc. etc.»(56).

Face à propositada crueza da secura telegráfica, remata: “não


podemos perceber como todas estas coisas possam influir nos destino do
Brasil. Desejaríamos saber se o povo brasileiro só com estas mudanças se
vai tornar mais civilizado, mais enérgico, mais apto para realizar a sua
missão na história” (57).
Sua ironia desemboca na ideia de “missão histórica”. Uma missão
histórica brasileira. A pressuposição de um passado e de um futuro em
mútua interpelação. Precisamente a “missão [que] ficará desde logo
frustrada se a república federal importar no enfraquecimento da unidade.
Muitos pensadores estrangeiros afirmaram já que o Brasil se dividirá em
vários Estados independentes; e que as rivalidades regionais de hoje

56
PRADO, Eduardo (Fredeirico de S.), “Os Acontecimentos do Brasil”, Revista de Portugal,
volume I. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1889, p.771-772.
57
Idem, ibidem, p.774.
36
facilmente se transformarão em hostilidade inextinguível. A comunidade de
origem, a raça, a língua, a religião idênticas, não são suficientes garantias
da conservação da harmonia” (58). Os temores de Eduardo Prado pelo
rompimento da unidade, feito paralelo do rompimento da missão histórica,
remetem para os temores que detectamos já em Oliveira Martins. Não por
acaso, é a ele que Prado cita, de modo explícito, numa clara assunção de
similitude de pontos de vista quanto ao tema em causa, em passagens bem
demonstrativas da rede discursiva na qual o seu discurso se inseria: “como
muito bem observou há dias o Spectator, de Londres [Oliveira Martins
escrevia também utilizando o pseudónimo Spectator], tratando do Brasil,
não há no mundo dois povos que tenham ódio recíproco tão profundo como
os Chilenos e os Peruanos, e ambos descendem de espanhóis, falam a
mesma língua, têm a mesma religião”, exemplos suficientes para sustentar
a previsão de que, no Brasil, a “unidade certamente desaparecerá”. Eduardo
Prado chama ainda a atenção para “um artigo do Tempo atribuído ao Sr.
Oliveira Martins, artigo que (êxito para a imprensa portuguesa) tão citado
foi na imprensa europeia, e que tantos comentários aprovativos despertou
da parte do Journal des Débats, do Temps, do Times e da Neue Freie Press,
prevê a divisão do Brasil em três novos estados, a Amazónia, um estado
central, e o extremo sul destinado a ser absorvido pela República
Argentina, logo que esta, cessando a oposição do Brasil, possa realizar o
seu velho ideal de reconstituir republicanamente o antigo vice-reinado de
Buenos Aires, que compreendia o Uruguai e o Paraguai”(59).
Registre-se ainda que, à semelhança de Martins, Prado concede
centralidade à figura do Imperador. O cronista Frederico de S. –
pseudónimo de Eduardo Prado – diz que “esse velho deixa um país onde
começou a reinar aos cinco anos de idade; e tão brasileiro foi ele que a sua

58
Idem, ibidem, p.774-775.
59
Idem, ibidem, p.774-775.
37
Biografia não deve ter este nome, mas sim o de História do Brasil. Caiu
pelo excesso de algumas das virtudes que hão-de imortalizá-lo. O que era a
inteligência nacional do Brasil há cinquenta anos? Basta dizer que era
decerto inferior à de Portugal no começo do século…” (60).
As opiniões de Prado encontram eco no diretor da Revista de
Portugal, José Maria Eça de Queirós. À semelhança daquele seu amigo
brasileiro, Eça utiliza um pseudônimo – João Gomes – para dar suas
impressões sobre a deposição da monarquia brasileira. Seu texto intitula-se
“Notas do Mês” e é iniciado em tom jocoso, dizendo que a “revolução do
Brasil (tal como contam os telegramas passados através da censura
republicana) é menos uma revolução do que uma transformação – como
nas mágicas” (61). Trata-se, conforme João Gomes/Eça de Queirós, de uma
revolução “feita antes do almoço”, que foi “simultaneamente grandiosa – e
divertida”. E continua, ao analisar a relativa facilidade e rapidez com que a
República suplantou a Monarquia, considerando que “o Imperador tinha-se
a tal ponto desimperializado, que entre Monarquia e República não havia
realmente senão um fio – tão gasto e tão frouxo, que, para o cortar de um
golpe brusco, bastou a espada do Marechal Fonseca” (62).
Tal como Eduardo Prado, seu companheiro dos convívios luso-
brasileiros em Paris, Eça considera a “revolução republicana” um
movimento de bacharéis – Prado já havia apontado nesse sentido no seu
“Destinos Políticos do Brasil”. Estes a teriam proclamado com intuito de
poderem realizar “o velho ideal jacobino, já entre nós desacreditado e um
pouco obsoleto, e que no Brasil domina ainda as inteligências
tropicalmente entusiásticas e crédulas” (63). Tal como Prado – e tal como
Oliveira Martins – Eça estava ciente das possíveis consequências da
60
Idem, ibidem, p.775.
61
QUEIRÓS, Eça (João Gomes). “Notas do Mês”. Revista de Portugal, volume I. Porto:
Editores Lugan & Genelux, 1889, p.777.
62
Idem, ibidem, p.778.
63
Idem, ibidem, p.778.
38
progressiva republicanização da América. No seguimento daqueles autores,
considerará que um “modelo perigoso para o Brasil estava nos Estados
Unidos do Norte, cuja imensa civilização deslumbrava os brasileiros, que
não reflectiam que é o caracter das raças, e não a forma dos governos, que
faz ou impede as civilizações” (64). Por fim, também Eça não podia deixar
de mencionar tanto as modificações que o novo regime visava para um
comércio de retalho (envolvendo razoável quantidade de portugueses), bem
como não podia de dar seu contributo para o debate em torno da unidade
territorial brasileira.
Por isso, afirma que “com o Império, segundo todas as
possibilidades, acaba também o Brasil”. Numa análise semântica que
remete à história, Eça afirma que “este nome de Brasil, [que] começava a
ter grandeza, e para nós portugueses representava um tão glorioso esforço,
passa a ser um antigo nome da velha Geografia Política”. Para ele, trata-se
de uma questão de tempo, pois “o que foi o Império estará fraccionado em
Repúblicas independentes, de maior ou menor importância”, na medida em
que “as rivalidades que entre elas existem; a diversidade do clima, do
carácter e dos interesses; e a força das ambições locais” não conseguirão
manter unido o Brasil, indicador maior da obra histórica de Portugal, pois
“não está forçado a conservar-se unido, pelo receio dos ataques ou
represálias de uma metrópole forte, de quem acabasse de se emancipar”
(65). Daí que vaticine, utilizando os demais países latino-americanos como
exemplos históricos, que no que um dia foi o Brasil, “haverá Chiles ricos, e
haverá certamente Nicaráguas grotescos. A América do Sul ficará toda
coberta com os cacos de um grande Império” (66).

64
Idem, ibidem, p.778-779.
65
QUEIRÓS, Eça (João Gomes). “Notas do Mês”. Revista de Portugal, volume I. Porto:
Editores Lugan & Genelux, 1889, p.782.
66
Idem, ibidem, p.783.
39
Para além das suas manifestas diferenças contextuais, teóricas e
estilísticas, que, em qualquer dos casos, não podem omitir as afinidades de
princípio ou de ocasião, os textos de Oliveira Martins, Eduardo Prado e Eça
de Queirós entrecruzam-se em aspectos nodais da problemática relacional
envolvendo Portugal e Brasil. As correlações passíveis de serem
estabelecidas induzem à constatação de uma rede discursiva que, ao
encontrar expressão na complementaridade das respectivas intervenções, se
demonstra atuante e operativa no seio da escala cultural luso-brasileira. É
crível que, independentemente da singularidade das inspirações de cada um
desses autores, eles se mobilizassem, de acordo com a expressão
martiniana, “não apenas com aquela curiosidade que os fenómenos sociais
provocam, mas sim como quem se sente intimamente interessado, já pela
comunidade de sangue, já pelos nossos deploráveis erros” (67).

1.2. Divulgação Científica: critérios de recepção e alegoria do “povo


irmão”

Em franco desalinhamento com aquela linha interventiva,


desenvolvia-se outro entendimento dos sucessos políticos brasileiros
conotado com uma visão não já temerosa ou censória para com a influência
republicana, mas, bem ao contrário, estimulada pelas possibilidades
trazidas pela República ao intercâmbio luso-brasileiro. Deste ponto de
vista, Teófilo Braga, Teixeira Bastos ou ainda Júlio de Mattos, produzem,
se assim podemos dizer, uma rede discursiva alheia aos
fundamentosentretanto detectados em Eça, Prado ou Oliveira Martins: é
que para eles a República não afastaria simbolicamente o Brasil da tradição

67
MARTINS, J. P. de Oliveira. Política e História. Volume II (1884-1893). Lisboa: Guimarães
& Cia Editores, 1957, p.284. Grifos nossos.
40
portuguesa, tão pouco acarretaria a potencial desagregação territorial
brasileira. Os positivistas portugueses viam no movimento republicano
brasileiro um signo que propiciaria uma reaproximação luso-brasileira.
Nesse círculo de ideias, as novas bases de relacionamento político e
cultural seriam dadas pela filosofia positiva. Assim já se vislumbra outro
nível intercambial constituído pela divulgação científica. O funcionamento
desta rede – atestada pelo progressivo acolhimento dos textos publicados
no Brasil por parte das revistas de cunho científico portuguesas –, obriga-
nos a considerar o modo como determinado entendimento da ciência
participa na definição dos circuitos culturais luso-brasileiros.

2.1.1. Comecemos por explicitar a referida dinâmica


científica. Nada melhor, para esse intuito, que apreciar as condições de
divulgação e recepção da obra de Sílvio Romero A Filosofia do Brasil. Este
livro foi editado, em 1878, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, pelo
alemão Carlos von Koseritz, figura que teve um importante papel na
divulgação científica no sul do Brasil, bem como uma relativa importância
na configuração cultural luso-brasileira(68).
A ação de Carlos von Koseritz na divulgação das ideias científicas e
evolucionistas no Rio Grande do Sul foi marcante. Suas atividades de
crítica ao teologismo e à metafísica foram, entretanto, muito inspiradas no

68
De acordo com Lothar Hessel, Karl von Koseritz nasceu em Dessau, ducado de Anhaldt,
Alemanha, em 03/02/1834 e faleceu em Porto Alegre, em 30/05/1900. Koseritz fez parte do
Exército e da Armada de sua pátria. Fixou-se no Rio Grande do Sul em 1851. Foi soldado em
Rio Grande e aprendiz de pintor, cozinheiro, carregador, operário e guarda-livros em Pelotas.
Nesta última cidade, a partir de 1856, iniciou-se no magistério, dirigindo uma escola. Em 1862,
dirigia outro educandário, o Ateneu Rio Grandense, na cidade de Rio Grande. Jornalista no sul
da Província, foi diretor de A Sentinela do Sul, (1867) e do Jornal de Pelotas (1861), ambos de
Pelotas, e diretor do Ramilhete Rio-Grandense, em 1857, em Rio Grande. Como redator,
trabalhou em O Povo e O Eco do Sul, ambos de Rio Grande. A partir de 1864, foi redator, já em
Porto Alegre, de A Reforma (que dirigia em 1886) e do Jornal do Comércio. Em Porto Alegre
dirigiu mais, em 1886, o Combate, entre 1864 e 1881, o jornal na língua alemã Deutsche
Zeitung. Aqui fundou em 1882, também em alemão, o Koseritz Deutsche Zeitung. Foi deputado
à assembléia Provincial em 1882” HESSEL, Lothar Francisco. O Partenon Literário e sua obra.
Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1976, p.135.
41
exemplo vindo da escola do Recife, em Pernambuco, liderada por Tobias
Barreto e onde Silvio Romero teve papel fundamental. Desde 1876, ao
menos, por ocasião do manifesto de lançamento de seu jornal Echo do
Ultramar, editado em Porto Alegre, que Koseritz propagava o nome de
seus companheiros do nordeste brasileiro. Conforme vemos na nota de
abertura da publicação, afirmava que “muitas vezes fomos levados a
reflectir no facto de que a grande maioria dos nossos compatriotas” estão
completamente “isolados do movimento literário e científico das outras
nações”, mostrando-se “indiferentes pelo que neste sentido vai aparecendo
entre nós, ainda que em modesta escala”. Daí surge a tentativa de “fundar
um jornal semanal que a par da análise das novidades literárias se dedicasse
à reprodução, por meio de elaboradas e conscienciosas traduções originais,
daqueles trabalhos que modernamente têm avultado na Inglaterra,
Alemanha, França, Itália, etc.”, tendo como objetivo “vulgarizar entre nós
as ideias dominantes daqueles cultíssimos países”, no sentido de buscar
apresentar “aos espíritos de nossos patrícios os tesouros inexauríveis das
literaturas europeias”, contribuindo, assim, para a criação, no Rio Grande
do Sul, de “um genuíno gosto literário em lugar da exclusiva imitação de
autores franceses, que hoje impera entre nós”. Como inspiração “nesta
cruzada”, declara, enfaticamente, que “alistamo-nos de todo o coração sob
o pendão dos Tobias e Romeros que no Norte do Império já vão
encaminhados no que agora encetamos” (69).
Não surpreende, então, que Romero tenha encontrado junto a
Koseritz o apoio necessário à publicação do seu livro, em 1878 (70). Esse

69
Echo do Ultramar, literatura, ciências e artes. N.º1, Ano 1, 1876, Porto Alegre, p.1.
70
Sílvio Romero afirma que, no Rio Grande do Sul, a importante ação de Carlos von Koseritz
na divulgação do monismo haeckeliano deve ser entendida pela influência sua e de Tobias
Barreto, pois, segundo ele “durante vinte e dois longos anos, de 1852 a 1874, Carlos von
Koseritz fez jornalismo político em o Rio Grande do Sul, tomou parte em todos os debates mais
notáveis ali traados, jamais fez a propaganda por Tobias iniciada no Recife em 1870. Em 1874 é
que, havendo o autor sergipano enviado a Richard Mathes, redactor então da Deutsche Zietung
do Rio de Janeiro, a carta em língua alemã, cuja tradução vai neste livro, e logo após o
42
fato pode mesmo ser visto como a manifestação de importantes linhas de
aproximação entre os movimentos intelectuais brasileiros que estavam à
margem do centro irradiador, localizado no Rio de Janeiro. Afinal, Romero
produz sua obra ainda residindo no Nordeste brasileiro, mas vai publicá-la
no Sul, pelas mãos de um imigrante alemão. A suspeição de uma
assinalável abrangência quanto à divulgação das obras científicas, que já de
seguida examinamos em escala transatlântica, começa por ganhar
fundamento em escala regional – intrabrasileira, digamos assim. Entretanto,
em Portugal, a recepção da obra romeriana ficará a cargo da revista O
Positivismo, editada no Porto. Interessa-nos, agora, seguir os passos dessa
recepção.
O primeiro destaque vai para o fato de esta publicação ter sido
recebida, em Portugal, com todo o interesse e com apreciável concordância
de perspectivas, no âmbito de um trabalho conjunto de divulgação
científica e superação dos enclaves ideários do teologismo metafísico.
Marca de uma configuração cultural de mobilização das ideias num
movimento intelectual que entendia conjuntamente o processo de
renovação cultural empreendido nos dois países. Prova disso é a resenha
crítica escrita por Júlio de Mattos, em 1879, no fascículo de Junho/Julho da
citada revista O Positivismo. No texto, o autor começa por assinalar que
“um certo movimento filosófico se acentua actualmente no Brasil, como
em Portugal”. Na apreciação de Júlio de Mattos, entre Portugal e Brasil há
“uma elaboração mental, um princípio de renovamento literário, sintomas
um tanto raros ainda, é certo, mas que não deixam por isso de ter
importância para a previsão dos destinos espirituais destas nações”. E se é
possível traçar paralelos entre elas é porque “no Brasil, como cá, os

prospecto do seu jornal naquela língua, Deutscher Kämpfler, e sendo uma coisa e outra
publicadas na gazeta de Mathes, Carlos von Koseritz exultou no Rio grande , transcreveu esses
artigos e pôs-se ao lado de Tobias, que nessa faina nós acompanhávamos, em termos, desde
1870”. ROMERO, Sílvio. “Considerações indispensáveis” In: BARRETO, Tobias. Estudos
Alemães, Obras Completas. Volume XVIII. Sergipe: [s.ed.], 1926, p. XIX.
43
homens superiores que tentam colocar-se ao nível do pensamento moderno,
que procuram impulsar o espírito público no sentido da ciência e dos
métodos hodiernos, constituem na hora presente o menor número; formam
a pequena família dos que a ignorância geral chama revolucionários, a
despeito dos meios pacíficos da sua nobre propaganda e do intuito
construtivo que nunca os abandona no seu trabalho obscuro e
desprotegido” (71).
Certo é que, aliado à sabida influência francesa na propagação das
ideias positivas – tanto no Brasil como em Portugal – houve, também, em
simultâneo, um movimento de aproximação luso-brasileira. Como se diz
nas páginas de O Positivismo, os portugueses têm “visto com prazer na
revista de Filosofia Positiva de Littré e Wyroubouff e na Revista Ocidental
de Pierre Laffitte notícias favoráveis de trabalhos científicos empreendidos
no Brasil. Nós anunciamos também o aparecimento de mais um livro
brasileiro, que se inspira na direcção nova das consciências. A Filosofia no
Brasil de Sílvio Romero, é esse livro” (72).
Sendo o mencionado livro composto de uma série de apreciações
críticas sobre filósofos brasileiros (com destaque, entre outros, para
Mont’Alverne), Júlio de Mattos não hesita em citar trechos da obra
romeriana, aproveitando para, dessa forma, apresentar também a atmosfera
cultural brasileira da época conectada com a portuguesa (73). A
aproximação, portanto, efetivava-se. O que importa indagar são os
elementos filosóficos que a tornavam possível. A esse respeito, convirá
referir que, na obra mencionada, num excerto justamente impresso em O
Positivismo, Sílvio Romero de alguma maneira os assume: sendo um

71
MATTOS, Júlio de. Secção “Variedades”. O Positivismo: revista de filosofia. Ano I, n.º5,
junho-julho, 1879. In: O Positivismo: revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio
Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume I (números 1 a 6),
1879, p.402.
72
Idem, ibidem, p.402.
73
Idem, ibidem, p.402-403.
44
“«sectário convicto do positivismo de Comte, não na direcção que este lhe
deu nos últimos anos da sua vida, mas na ramificação capitaneada por
Émile Littré, depois que travei conhecimento com o transformismo de
Darwin, procuro harmonizar os dois sistemas num criticismo amplo e
fecundo»”. E, no seguimento da mistura de elementos do positivismo
comteano com o darwinismo, Júlio de Mattos expõe mais considerações de
Romero, designadamente aquelas em que ele realça sua demarcação
intelectual: “«sou sectário do positivismo e do transformismo? Sim;
entendendo-os, porém, de um modo largo e não sacrificando a minha
liberdade de pensar a certas imposições caprichosas que os sistemas
possam porventura apresentar»”(74).
Vislumbra-se, através destes pequenos excertos, um fator
importante a ter presente nos relacionamentos culturais luso-brasileiros: a
diversificada síntese pessoal que os intelectuais brasileiros e portugueses
faziam da miríade teórica presente nas décadas finais do século XIX. Logo,
é natural que Júlio de Mattos teça algumas considerações mais discordantes
face à autodefinição romeriana. Segundo ele, o brasileiro “não é tão
explícito como desejáramos sobre o que chama de criticismo nem sobre a
maneira por que consegue a conciliação do transformismo darwínico com o
Positivismo de Comte”. Contudo, acredita que “o ponto de vista do Sr.
Sílvio Romero é o mesmo que já exprimimos nesta Revista, no artigo
Ensaio sobre a Evolução em Biologia”, onde está manifesta a proximidade
entre as hipóteses evolucionistas e as positivistas” (75).
Nesta linha de comentários, Júlio de Mattos esclarece que, para ele,
“o transformismo baseado inteiramente sobre dados positivos e factos
averiguados” merece credibilidade positiva; pelo que, neste ponto, entre o
posicionamento de Romero e o dele próprio, segundo afirma, o “acordo é

74
Idem, ibidem, p.403.
75
Idem, ibidem
45
completo”. Contudo, o mesmo não acontece quanto ao termo “criticismo”,
tal como utilizado pelo brasileiro. Sobre este, Mattos relaciona-o com a
Filosofia Crítica, termo que “exprime um sistema muito diverso da
Filosofia Positiva”. E, recorrendo a Wyrouboff, em quem estriba o seu
próprio entendimento sobre a divergência teórica entre o criticismo e o
positivismo, Mattos avalia que “o termo Positivismo ou Filosofia Positiva
comporta em si maior extensão que aquela que lhe é dada pelo mentalidade
moderna desde que os seus sectários admitem, como o Sr. Silvio Romero, a
classificação hierárquica das ciências na ordem da generalidade
decrescente e complexidade crescente, a lei sociológica dos três estados, os
processos gerais de investigação, à posteriori e a impossibilidade radical de
resolver os problemas de origem e finalidade absolutas” (76).
Feitas estas considerações, termina a apresentação do livro de
Romero afiançando que, mesmo se “do novo livro A Filosofia no Brasil
não podemos dar aos nossos leitores uma apreciação completa, porque ele é
constituído, como já dissemos, de uma série de livros brasileiros, na maior
parte desconhecidos para nós”, cumpria-se, pelo menos, um dever, “e esse
cumprimo-lo gostosamente, é noticiar a aparição da obra, que nos vem
familiarizar com os escritores do Novo Mundo e faz-nos assistir ao
desenvolvimento da ciência e da Filosofia naquelas regiões”(77).
Anos mais tarde, porém, Sampaio Bruno nos dá uma imagem
diversa sobre a recepção que teve a obra de Romero em Portugal. No seu
Brasil Mental, Bruno revela que “quando Silvio Romero escrevera e
publicara uma espécie de história da Filosofia no Brasil, em Portugal, foi,
após o pasmo, um sucesso de gargalhadas. «Ora isto?!» dizia-se às mesas
dos cafés, nas palestras dos jovens curiosos de espírito. «Com que então: a
filosofia do Brasil? Hein? Esta nem o Diabo lembra! Se fosse a carne-seca

76
Idem, ibidem.
77
Idem, ibidem, p.403-404.
46
do Brasil, ou a feijoada do Brasil… Mas, agora, a filosofia do Brasil.
Valha-nos Deus!» E riam, jubilosos da sua suficiência”(78). Tanto quanto
parece, a dinâmica ao nível da divulgação não era bastante para
uniformizar os critérios da recepção. Seria impossível que o fosse. Mas, até
certo ponto, o elemento tensional subjacente ao sarcasmo acabava por
confirmar um intercâmbio de ideias que, tanto quando associava tanto
quando afastava os diversos autores em presença, manifestava a tendencial
abrangência da propagação das ideias positivas à escala luso-brasileira. Os
exemplos que a seguir elencamos dizem isso mesmo (79).

2.1.2. Nem precisamos sair das páginas de O Positivismo. Em secção


específica, informava seus leitores do intercâmbio de publicações realizado
pelos editores da revista – Teófilo Braga e Júlio de Mattos – mencionando,
da mesma forma, as revistas, livros e jornais recebidos. Assim, percebemos
que, desde o número 6, fascículo de Agosto/Setembro, de 1879, se
publicitava, na contracapa da revista, o recebimento da já mencionada obra
de Silvio Romero, A Filosofia no Brasil, bem como da obra de Clóvis
Beviláqua e José Isidro Martins Júnior, Vigílias literárias, ou da Oração
fúnebre, de António Cândido da Costa (80).

78
BRUNO, Sampaio. O Brasil Mental. Esboço Crítico. Porto: Lello Editores, [1898] 1997,
p.44.
79
Esta hipótese parece ser reforçada pelas considerações de Antônio da Rocha Almeida, que
menciona a divulgação de autores portugueses e brasileiros – como Oliveira Martins, Teófilo
Braga, Sílvio Romero, Tobias Barreto, por exemplo – no jornal O Combate, no sentido de
fortalecer a perspectiva crítica diante das ideias católicas. Antônio da Rocha Almeida informa
que em “10/04/1886 aparecia, de sua propriedade O Combate, de parceria com Argemiro
Galvão, a lutar contra a Igreja e a Companhia de Jesus. Na lista dos colaboradores vinham
Silvio Romero, Tobias Barreto, Graciano Azambuja, Rangel Pestana, Campos Sales, Teófilo
Braga, Alcides Lima, Teófilo Mesquita, Oliveira Martins”. ALMEIDA, Antônio da Rocha,
“Vultos da Pátria – 260 – Carlos von Koseritz”, Jornal Correio do Povo, 15/08/1965. Tentamos
pesquisar o mencionado periódico, porém, está, actualmente, fora de possibilidade de ser
consultado, devido a má conservação.
80
O Positivismo: revista de filosofia. Primeiro Ano, n.º 6, Agosto/Setembro, 1879, Contracapa.
In: O Positivismo: revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria
Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, 449p.
47
Por sua vez, no fascículo de Outubro/Novembro de 1880, está
explicitado o intercâmbio: “temos continuado a receber com regularidade
os periódicos brasileiros Tribuna Liberal e Gazeta de Porto Alegre.
Recebemos o Echo Académico e o Arquivo Literário. Dos livros que nos
ofereceram de Portugal e Brasil adiamos a nossa apreciação por falta de
espaço” (81). Comunicados como este são bastante recorrentes(82).
Em 1880, no fascículo de Fevereiro/Março, Júlio de Mattos retoma
o assunto sobre o acolhimento do positivismo no Brasil. No texto “A
Popularização das ideias positivas no Brasil”, afirma que “vão-se tornando
manifestos e cada vez mais acentuados os sintomas de renovação mental no
Brasil. Na filosofia, como na literatura e na ciência, são evidentes os
esforços com que naquele vasto país se tentam partir os moldes
consagrados, mudar a direcção tradicional dos espíritos, combater os
preconceitos teológicos e metafísicos, velhos ídolos perniciosos dia a dia
eliminados diante das aspirações da consciência moderna”. Havia boas
razões para acreditar no êxito da empresa. Porque, como gostava de realçar
o autor, “a agitação que actualmente se manifesta o Brasil e em Portugal é
indício seguro de que se há de entrar num caminho de progresso”.
Pressentia ele uma gradual disponibilidade para que os “obreiros do
pensamento novo se reunam na evangelização dos seus credos literários,
científicos e filosóficos, [assegurando que] as aspirações de hoje serão as

81
O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.1, Outubro-Novembro, 1880. O
Positivismo: revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria
Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, 449p.
82
Como por exemplo: “Temos continuado a receber com regularidade os periódicos brasileiros
Tribuna Liberal e Gazeta de Porto Alegre. Recebemos o Echo Académico e o Arquivo
Literário. Dos livros que nos ofereceram de Portugal e Brasil adiamos a nossa apreciação por
falta de espaço”. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.2, Dezembro-Janeiro,
1881. Assim como: “temos continuado a receber com toda regularidade as revistas estrangeiras
e nacionais que nos fascículos anteriores costumamos nomear nesta página. Recebemos mais o
Pantheon, revista literária, e a Sentinela da Fronteira. A todos, os nossos agradecimentos”. O
Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.3, Fevereiro-Março, 1881. E ainda: “além das
publicações costumadas recebemos mais, do Brasil: A Pátria Brasileira de Teixeira Mendes e
Visões de Hoje, de Martins Júnior, livros que não podemos examinar agora por falta de espaço”.
O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.6, Agosto-Setembro, 1881.
48
realidades de amanhã”. Afinal, acreditava no poder da associação das
forças positivas em âmbito luso-brasileiro: “associar forças é centuplicá-
las; associem-se pois os pensadores brasileiros que assim conseguirão de
um modo lento mas seguro o renovamento a que se propõem” (83).
Pela sua parte, contribuía com a atenta tarefa de divulgação.
Merece-lhe particular simpatia o projecto da Biblioteca Útil, editada em
São Paulo “com o intuito de propagar a Filosofia Positiva no Brasil”,
empreendimento que conta com a participação de intelectuais brasileiros já
“vantajosamente conhecidos na Europa, como França Leite e Sílvio
Romero” (84), e que desde o seu início encontra publicitação em O
Positivismo (85). O sentido deste acolhimento só podia ser óbvio: se é
verdade que “há no Brasil”, como diz Júlio de Mattos, “muita gente que
estuda e está a par de todos os progressos intelectuais do mundo
civilizado”, são todavia muito poucos os “que comunicam à sociedade o
resultados da sua actividade intelectual. Reina entre nós a apatia mental,
que é, como bem diz o Sr. Teófilo Braga, um das formas mais invencíveis
da inércia”. É necessário, pois, “despertar deste letargo” e “levar a
civilizadora luz da ciência aos que jazem imersos nas trevas da
ignorância»”. Para isto, não basta ter o conhecimento das ideias que

83
MATTOS, Júlio de. “Popularização da Filosofia Positiva no Brasil”. O Positivismo: revista
de filosofia. Segundo Ano, n.3, Fevereiro/Março, 1880, In: O Positivismo: Revista de Filosofia.
Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz
Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.250.
84
Idem, ibidem, p.251.
85
Transcreve-se, assim: “«A falta, no Brasil, de livros destinados ao povo em que se lhe
ministrem os conhecimentos científicos que pouco a pouco vão transformando o mundo,
animou-nos a empreender a publicação de uma séria de volumes, em que se trata das variadas
questões da actualidade»”. A Biblioteca Útil busca “«proporcionar ao povo a familiaridade com
as ciências e todas as grandes ideias do século, eis o fim que tivemos em vista ao encetar esta
colecção de livrinhos»” MATTOS, Júlio de. “Popularização da Filosofia Positiva no Brasil”. O
Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.3, Fevereiro/Março, 1880, In: O Positivismo:
Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de
Magalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.250-251.
49
vigoram nos países, “é necessário também que as adaptemos ao nosso meio
e as façamos circular em nossos espíritos»”(86).
Em Março de 1880, os positivistas portugueses declaravam-se
“desejosos que os simpáticos propagandistas da nova fé colham o máximo
resultado na tarefa a que se propõem, [enviando-lhes] do extremo Ocidente
da Europa os nossos votos de respeito”(87). Por esta altura, já a
reciprocidade no reconhecimento das dívidas intelectuais transatlânticas
parecia ocorrer com naturalidade. A avaliar, por exemplo, pela edição das
Soluções Positivas da Política Brasileira, de Luiz Pereira Barreto, obra
publicada em São Paulo com um título propositadamente idêntico ao das
Soluções Positivas da Política Portuguesa, em homenagem a Teófilo
Braga, deveria ser mesmo assim. Com efeito, nas palavras de Barreto, “o
título que tomamos […] não é uma pretensiosa imitação: é simplesmente
uma homenagem. Quisemos pagar a Teófilo Braga o imenso tributo de
gratidão que lhe deve a geração que hoje surge nas letras do nosso país”
(88). Uma geração grata pela recepção e divulgação dos respectivos ensaios,
com certeza, mas também, em grande parte, filiada num comum
entendimento da esfera relacional entre os dois países e dos argumentos
que a deveriam fundar. Uma geração associada ao homenageado pela
comum participação numa mesma rede discursiva.

2.1.3. De acordo com o prefácio das Soluções Positivas da Política


Brasileira, de Luiz Pereira Barreto, que passamos agora a citar, afirma o
positivista brasileiro ter a “convicção que as nossas condições políticas e

86
MATTOS, Júlio de. “Popularização da Filosofia Positiva no Brasil”. O Positivismo: revista
de filosofia. Segundo Ano, n.3, Fevereiro/Março, 1880, In: O Positivismo: Revista de Filosofia.
Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz
Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.251.
87
Idem, ibidem, p.251.
88
MATTOS, Júlio de. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881,
p.284-285. Júlio de Mattos assegura, de facto, nesse volume, uma interessante recepção crítica
da obra de Barreto.
50
sociais [brasileiras] não melhorarão em quanto não tiverem por ponto de
partida uma modificação correspondente na situação de Portugal”. Para ele,
“o fio da história não se rompe. Somos filhos de Portugal: a ele estamos
presos por todos os laços indissolúveis de uma lei natural. A fatalidade
biológica e o determinismo sociológico dominam toda a nossa história”.
Daí que considere que “é em vão que procuremos esquivar-nos à pressão
do passado. Temos sido, somos e seremos portugueses” (89). Mais ainda: “é
da renovação intelectual, moral e social de Portugal que depende o
progresso do Brasil”. É certo que “politicamente estamos separados. Mas,
em história, o ponto de vista da política é secundário. A separação não
suspendeu a lei secreta das afinidades; e a velha metrópole, hoje como
outrora, conserva a sanção suprema para todos os nossos passos” (90).
Pereira Barreto está completamente a par das modificações
ocorridas no campo das teorias e das ideias, em Portugal, por via Geração
de 1870. Para ele, “O Portugal de hoje não é o Portugal de há cinquenta
anos atrás”, motivo pelo qual, “assim como herdámos todos os vícios e
preconceitos dos nossos imediatos predecessores, devemos hoje, com
calma e sangue frio, imitar o exemplo dos nossos irmãos d’além mar,
seguindo firmemente a senda que traçam”(91). Considera, assim sendo, que
“é nosso dever de patriotas confessar francamente que, do outro lado do
Atlântico, nessa mesma terra que nos serviu de embriogênio berço, existe
hoje uma plêiade de homens cuja estatura não encontra entre nós paralelo”,
para logo citar o nome dos intelectuais portugueses que admira: Teófilo
Braga, Ramalho Ortigão, Felipe Simões, Guerra Junqueiro, G. de
Vasconcelos, Eça de Queirós, Antero de Quental, Gomes Leal, Consiglieri
Pedroso, Oliveira Martins, Luciano Cordeiro, Júlio de Mattos, Adolfo
89
Prefácio às Soluções Positivas da Política Brasileira, 1880. BARRETO, Luiz Pereira. Obras
Filosóficas. Vol. III. Organizado por Roque Spencer Maciel de Barros. São Paulo: Humanitas,
2003, p.17.
90
Idem, ibidem, p.18.
91
Idem, ibidem. Grifos nossos.
51
Coelho, Teixeira Bastos, Augusto Rocha, Bittencourt Raposo, Amaral
Cirne, Guilherme de Azevedo, entre outros.
Primordial lhe parece, pois, que “em nosso próprio interesse” – no
interesse dos brasileiros, portanto –, estes entrem em “plena comunhão com
esses espíritos elevados”. Pode entender-se o por que: embora “unidos no
passado”, o certo e o esperado é que “nos uniremos cada vez mais no futuro
pelos laços de uma filosofia comum”. O passado, sem dúvida, esse passado
com Portugal, elemento essencial na constituição do brasileiro e na sua
perspectivação. Mas, sobretudo, para Luís Pereira Barreto, é a filosofia o
esteio para a união no futuro.
Não estava só nessa intuição. Não é casual o agradecimento
tributado, no referido prefácio da sua obra, a Carlos von Koseritz: “é com
vivo estremecimento que aqui assinalo o nome de Carlos von Koseritz, o
batalhador infatigável que tem posto ao serviço da pátria adoptiva trinta
anos de sua vida, consagrando todas as forças do seu talento à defesa dos
nossos mais altos interesses intelectuais, morais e sociais”(92). Como não é
fortuito o apoio entusiástico concedido à sua obra em resenha crítica de
Júlio de Mattos, que do mesmo modo que reputa de “justíssimo” o tributo
ali prestado a Teófilo, precisamente um dos diretores da revista O
Positivismo, assim também declara estar “apoiando sem restrições o ponto
de vista elevado do Dr. Pereira Barreto”, fazendo “votos, como ele, para
que a união consciente dos dois povos se realize de um modo franco na
comunhão de um mesmo pensamento filosófico” (93).
Para que Portugal e Brasil se voltassem a unir, era importante,
vincava Mattos, “que todas as dissidências artificialmente levantadas e
92
Prefácio às Soluções Positivas da Política Brasileira, 1880. BARRETO, Luiz Pereira. Obras
Filosóficas. Vol. III. Organizado por Roque Spencer Maciel de Barros. São Paulo: Humanitas,
2003, p.19.
93
MATTOS, Júlio de. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881.
O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria
Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.284-285.
Grifos nossos.
52
violentamente opostas às leis históricas, terminem de uma vez; virá daí
para todos nós a segurança, a firmeza de planos, a felicidade social dos que
se sentem apoiados, dos que vêem secundados pela grande força da opinião
todos os esforços mentais ou seja puramente críticos para a destruição de
velhos erros, ou sejam orgânicos para a construção de ideais novos e de
uma nova fé”. Neste projeto histórico, político e cultural, cabia à Filosofia
Positiva o papel de elemento unificador. O positivismo representaria uma
“síntese disciplinadora” que educaria os espíritos portugueses e brasileiros
“no sentido de procurar na evolução humana o que o nosso colega tão
justamente denomina «a lei secreta das afinidades» entre os povos
historicamente irmãos” (94).
Merece atenção este ponto. Para nossos propósitos, o que está em
causa é o fato de que as relações luso-brasileiras não eram – para os
positivistas – definidas pela “comunidade de sangue” tal como eram para
Oliveira Martins. As relações não atrelavam-se aos papeis paternal/filial na
referencialidade atribuída por Oliveira Martins. Agora tratavam-se de
“povos irmãos”, fundamentalmente. Esta relação de fraternidade era
gerenciada pela síntese filosófica positiva. Conforme a apreciação de Júlio
de Mattos, à Filosofia Positiva cabia “a missão tão gloriosa e tão útil de
promover de um modo consciente a conformidade de pensamento a
unificação dos dois países que vivem das mesmas tradições e
instintivamente sentem as mesmas aspirações, as mesmas necessidades
sociais” (95).
O mesmo ideal valia, também, para as necessidades políticas. Pelo
menos em alguns aspectos no tocante ao debate entre unitarismo e
federalismo. Porque, contrariamente ao que poderia parecer à primeira
vista, se a questão federal atinge particular relevância para o Brasil, “não é

94
Idem, ibidem, p.284-285. Grifos nossos.
95
Idem, ibidem, p.284-285.
53
menos séria nem menos importante para Portugal”. Tendo em conta quer a
dimensão interna, quer o fator externo, estando naquele caso, a
“centralização asfixiante da monarquia”, e, neste último, a vizinhança com
a Espanha, “vasto país formado pela junção violenta de muitos estados”
(96). Não surpreende, deste modo, que, relativamente à obra estampada no
Rio de Janeiro, em 1881, intitulada A República Federal, de Assis Brasil,
concluirá Júlio de Mattos ser o autor gaúcho “um dos talentos mais
robustos e mais bem orientados da moderna geração brasileira”, o qual lhe
havia enviado o volume (97). Daí que concluísse que “assim como aos
brasileiros, a nós, portugueses, embora por motivos em parte diferentes, a
discussão madura dos sistemas federal e unitário importa-nos duplamente:
como questão interna e como questão internacional” (98). Esta evidência
apenas seria incompreendida por “aqueles que, ainda hoje, mau grado todos
os progressos das ciências sociais, persistem no erro lastimoso de confundir
federação e unionismo”(99). Para Mattos, como para Assis Brasil, a
necessária suplantação da Monarquia pela República urgia, não podendo
deixar de acontecer, na medida até em que a “evolução” fá-la-ia extinguir-
se, em terras brasileiras como em terras portuguesas, pelo seu “natural
desenvolvimento”. Tal raciocínio manifesta bem um amálgama entre as
teorias naturalistas do final do século XIX e o projeto republicano de cariz
positivista.
Também por esta via parecia legítimo supor que através de uma
conformidade de anseios e projetos positivistas – incluindo neste escopo a
República Federativa – seria formada uma nova base social e cultural de

96
MATTOS, Júlio de. “A República Federal, por Assis Brasil” O Positivismo: revista de
filosofia. Terceiro Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1881.. O Positivismo: revista de filosofia.
Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo
Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III
(números 1 a 6), 1880, p.443.
97
Idem, ibidem, p.438.
98
Idem, ibidem, p.440.
99
Idem, ibidem, p.443.
54
relacionamento associativo entre Portugal e Brasil. Claro está que isto seria
condicionado por um percurso ditado metodologicamente. Isto o próprio
Júlio de Mattos em 1882. No texto “O Movimento Republicano no Brasil”,
e à propósito do “oferecimento que o Sr. Alberto Sales, publicista
brasileiro, acaba de fazer-nos do seu belo livro Política Republicana”, o
autor frisa o “notável o movimento democrático” do Brasil , “notável não
tanto pela energia e actividade, que aliás são grandes, como pelo carácter
eminentemente positivo que o caracteriza, [ou seja:] não é uma agitação
indisciplinada, um aspirar inconsciente e anárquico a reformas políticas e
sociais, o que aí se observa; é, sim, uma forte opinião radicada,
metodicamente posta à luz com a coragem serena e paciente, a mais
poderosa de todas as coragens, emanada da ciência e alimentada por um
forte patriotismo” (100).

2.1.4. Embora seja relevante sua intervenção, Júlio de Mattos não foi o
único positivista português a fazer a recepção de texto brasileiros. Na
Revista de Estudos Livres, Teixeira Bastos e Teófilo Braga noticiaram o
surgimento de várias obras brasileira que buscavam a divulgação da ciência
positiva. No cômputo das recepções e críticas feitas por Teixeira Bastos
constam textos sobre a obra de Silvio Romero, Introdução à história da
literatura brasileira, publicado no Rio de Janeiro em 1882, bem como
sobre o livro A Terra e o Homem à luz da moderna ciência, publicada, em
Porto Alegre, em 1884, por Carlos von Koseritz. Teófilo Braga, por sua
vez, fez a recepção crítica da já aqui mencionada obra de Alberto Sales,
publicada em São Paulo em 1885. Além destas recepções críticas, observa-
se, também, nas páginas da Revista de Estudos Livres, a publicação integral

100
MATTOS, Júlio de, “O Movimento Republicano no Brasil”. O Positivismo: revista de
filosofia. Quarto Ano, n.3, Maio/Junho, 1882. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção
Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores,
Volume IV (números 1 a 6), 1882, p.246.
55
de dois artigos de autores brasileiros (101). Um deles, de Isidro Martins
Júnior, sobre A função histórica da economia política, e o outro, um
significativo texto de Sílvio Romero sobre As Teorias da História da
Literatura Brasileira.
Limitemo-nos, em tom de exemplaridade, à análise que Teixeira
Bastos faz da Introdução à História da Literatura Brasileira, publicada no
Rio de Janeiro, em 1882, por Sílvio Romero. Conforme veremos, o seu
comentário à obra romeriana remete para a mesma “província de
significado” que temos vindo a caracterizar em torno dos ideários de
conotação positivista.
Assim, ao apresentar Romero ao leitor, Bastos não o faz por menos:
“Comparam-no a Teófilo Braga e cremos que não é sem razão, porquanto o
ilustre escritor brasileiro tem adquirido na sua pátria tantas inimizades
quantas entre nós outrora adquiriu o distinto professor do Curso Superior
de Letras” (102). Por outro lado, uma vez que, em seu entender, “as gerações
novas [de Portugal e Brasil] chegaram já à compreensão de que era
apaixonado e injusto esse ódio que dividiu os seus maiores e hoje começam
a olhar-se como irmãos, a estimar-se pelo que realmente valem, e a
auxiliar-se nos seus esforços comuns em prol da civilização”, mais margem
de manobra passará a haver para, à semelhança do que faz Sílvio Romero,
mobilizar o talento no sentido de (segundo a própria expressão deste
último, que Bastos transcreve) “«encontrar as leis que presidiram e

101
Beatriz Berrini refere a pouca abertura que as publicações de Portugal davam aos escritores
brasileiros. Na Revista de Estudos Livres, entretanto, podemos perceber uma interessante e
profícua relação entre os escritores brasileiros e portugueses. Nesse caso, além das recepções
críticas do que era publicado no Brasil, também vemos artigos importantes de brasileiros
publicados na revista. BERRINI, Beatriz. Brasil e Portugal: a geração de 70. Breves indicações
dos correspondentes brasileiros e portugueses por Paulo Franchetti e Beatriz Berrini. Prefácio de
Isabel Pires de Lima. Porto: Campo das Letras, 2003.
102
BASTOS, Teixeira. Recepção crítica à Introdução à história da literatura brasileira, por
Silvio Romero. Primeiro volume. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1882, 254p. In: Revista
de Estudos Livres, Ano I, 1883-1884, p.234.
56
continuam a determinar a formação do génio, do espírito, do carácter do
povo brasileiro»” (103).
Dito isto, a apreciação do autor de Portugal não é ibérico oscila
entre uma concordância de fundo e um distanciamento cirúrgico: “como se
vê o Sr. Silvio Romero, adoptando os novos processos históricos, divide o
seu trabalho em duas partes, a que podemos chamar, servindo-nos da
tecnologia positivista, parte estática e parte dinâmica, estabelecendo
primeiro os elementos constitutivos da nacionalidade e as condições da
marcha da evolução intelectual. É este o verdadeiro método sociológico. O
Sr. Sílvio Romero não é, porém, positivista, embora se aproxime muito do
ponto de vista filosófico iniciado por Comte e seguido por Littré, por
Robin, por Wyrouboff, em França, e propagado em Portugal por Teófilo
Braga e no Brasil por Pereira Barreto. Com razão condena a ortodoxia
laffitista, que desconhece completamente os notáveis progressos efectuados
por todas as ciências depois da morte de Comte, e combate a influência
exagerada do francesismo na literatura brasileira, mas infelizmente deixa-se
impressionar em demasia pelo germanismo e confunde a concepção
positivista com o culto da Humanidade ou o Ente Supremo. O entusiasmo
pelo germanismo tanto pode ser causa de ideias erróneas, quanto o tem sido
o abuso do romantismo ou do francesismo” (104).
Divergência grave? Aparentemente não, desde que ficassem claros,
como o eram para Teixeira Bastos, os seguintes pontos: que “a verdade não
é propriedade de qualquer seita ou escola filosófica, não pertence aos
sábios de qualquer nacionalidade ou raça, [até porque] a ciência é
cosmopolita; aceitamo-la de onde ela nos venha”(105); e que “o positivismo,
como concepção geral do universo, [só erradamente] seria considerado uma
escola filosófica ou uma seita religiosa, e ainda menos um produto
103
Idem, ibidem. Grifos nossos.
104
Idem, ibidem, p.235.
105
Idem, ibidem, p.236.
57
exclusivo da mentalidade francesa, [sendo antes] formado sobre as leis
naturais achadas indistintamente pelos sábios de todos os países
[“conclusão aceite pelo Sr. Sílvio Romero, desde que aprecie a profunda
diferença que separa a filosofia positiva do positivismo cultural dos
laffitistas”]” (106). Não sendo assim, não ficando claros tais pressupostos,
ficaria seriamente comprometida a eficácia da rede discursiva como a que,
estruturada sobre a dinâmica de um intercâmbio científico transatlântico,
constituía, ela própria, a melhor comprovação de que, como rezava o credo
de Teixeira Bastos, “o critério do homem de ciência deve colocar-se acima
de todos os preconceitos partidários ou nacionais” (107).

2. Interpretações concorrenciais

O investimento até agora feito ao nível da escala cultural luso-


brasileira permitiu descortinar umas quantas redes discursivas, produtoras
de outros tantos alinhamentos políticos e científicos. As alegorias da
“comunidade de sangue” e da “fraternidade entre os dois povos” podem
simbolizar, cada uma a seu modo, esta percepção. O ponto anterior
elucidou já este aspecto. Interessará agora aprofundar o suporte teórico
mobilizado no contexto daqueles circuitos. De fato, a circulação de ideias
denunciava posicionamentos distintos em relação ao intercâmbio cultural
transatlântico. Isso resultava de uma dinâmica interpretativa sobre o sentido
desse intercâmbio – e, sobremaneira, as teorias sobre o lugar da história na
explicação das relações culturais e das construções identitárias – impunha
critérios concorrenciais de abordagem. São estes que agora nos interessam.
Adiante-se que, no quadro deste raciocínio, identificámos três
linhas interpretativas maiores no tocante às relações luso-brasileiras: a que
106
Idem, ibidem, p.236.
107
Idem, ibidem, p.236. Grifos nossos.
58
perspectiva esse relacionamento em termos de derivação; a que o faz em
termos de convergência; e a que o faz em termos de distanciamento. Tendo
por objetivo dar conta de cada uma delas, tomamos por emblemáticos os
textos dos “prefácios” e “prospectos” das revistas com as quais temos
vindo a trabalhar, bem como de outras tantas fontes oriundas do mesmo
universo discursivo. Importa ter presente que o texto que forma o prefácio
não possui a mesma valia dos demais artigos que, de fato, “preenchem” um
periódico. O prefácio é oriundo de um posicionamento político tomado
pelos diretores e principais redatores da publicação. Trata-se de um
momento de inauguração de uma “identidade textual”, de demarcação de
um território discursivo que será, posteriormente, ocupado pelo conjunto de
textos dos articulistas. Assim, o enunciado feito sobre dos objetivos
propostos, ou das relações estabelecidas, representa, para nós, indicador
precioso do ponto de vista que, em cada momento, buscamos esclarecer.

2.1 O ponto de vista da derivação

A linha interpretativa a que chamamos derivativa pode ser


perseguida tomando como ponto de partida o prospecto da Revista
Ocidental. Dirigida por Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, a Revista
Ocidental – cujo papel no tocante à circulação das ideias entre Portugal e
Brasil já atrás deixamos expresso – apresenta-se, desde o seu início, como
um espaço discursivo em continuação do espírito crítico que animara as
célebres Conferências Democráticas do Casino, ocorridas em Lisboa ainda
em 1868(108). Vejamos então as indicações relevantes, para a nossa

108
Pelo que indicam os estudos especificamente voltados à revista, percebe-se que a edição da
revista já estava sendo planejada desde inícios de 1872. Conforme informa Maria José Marinho,
seu lançamento, embora programado para Setembro de 1874, só veio a concretizar-se mesmo
em 15 de Fevereiro de 1875. Tudo leva a crer o seguinte: que, por motivos do agravamento da
doença de Antero, a organização da revista teria ficado mais a cargo de Batalha que de Antero.
59
problemática, fornecidas por esta revista cuja publicação se dava por meio
de fascículos quinzenais que, ao final de um trimestre, eram publicados em
conjunto num só tomo(109).

2.1.1. Primeiro aspecto a ter em conta: embora impressa em Lisboa, a


Revista Ocidental continha artigos tanto em idioma português quando em
idioma castelhano. Este fato deve-se, conforme afirma o estudo de Maria
José Marinho, a uma decisão tomada com intuito de “facilitar a difusão na
América Latina” (110). Trata-se, claramente, de uma preocupação em
integrar os países da América do Sul ao âmbito ibérico de circulação da
Revista Ocidental. Uma preocupação a reter.
É recorrente dar maior destaque à publicação, no quadro da revista,
de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós. Para nós, contudo, no
intuito de focalizar as relações culturais entre Brasil e Portugal, é a seção
“Crónicas-Revistas”, presente em todas os fascículos da revista, que
assume particular importância. Esta secção era composta, geralmente, por
quatro subgrupos: “América”, escrita por D.R. de Cala, que continha
geralmente informações sobre os acontecimentos das repúblicas de língua
espanhola da América Latina; “Espanha”, coluna não assinada, que
continha textos a respeito dos factos concernentes a Madrid; “Europa”,
assinada por J. Batalha Reis, que dava ênfase aos acontecimentos
geralmente ocorridos em França (111); e a coluna “Portugal e Brasil”,

Para mais informações, indicamos o estudo de MARINHO, Maria José. “A Revista Ocidental,
1875 – um projecto da Geração de 70”. In: Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, vol.7, n.º1,
1992.
109
O primeiro tomo corresponde a seis fascículos referentes, respectivamente às seguintes datas
de publicação: 15 de Fevereiro; 28 de Fevereiro; 15 de Março; 31 de Março; 15 de Abril e 30 de
Abril. O segundo tomo corresponde também a seis fascículos referentes a 15 de Maio; 31 de
Maio; 15 de Junho; 30 de Junho e 15 de Julho.
110
MARINHO, Maria José. “A Revista Ocidental, 1875 – um projecto da Geração de 70” In:
Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, vol.7, n.º1, 1992, p.57.
111
Eventualmente, nesta secção, havia também outras chamadas, tais como “Revista Agrícola”,
ou introduzia-se variações, como quando Batalha Reis, em sua crônica, pôs como título
“Estados Unidos-Europa” (na edição de 28 de Abril de 1875).
60
assinada por P. de Oliveira (pseudônimo de Oliveira Martins), que continha
informações sobre as duas nações de língua portuguesa. Uma arrumação
geográfica nada acidental e, por isso, também a reter.
Uma observação do “Prospecto” da revista permitirá aclarar estas
opções (112). A avaliar por esse documento, o propósito que animava a
publicação era o de “instruir povos, nivelar os espíritos, dar a todos os
homens a partilha da grande herança da civilização” (113), por forma a
aumentar o “nível de consciência” dos leitores, objetivo que era mais
importante ainda, no entendimento dos editores, no caso dos povos
ibéricos. Afinal, “se espanhóis e portugueses formam de há muito duas
nações distintas, tiveram todavia sempre, na organização filosófica e
sentimental dos seus espíritos, na fisionomia das suas literaturas, no
carácter dos seus actos, a afinidade que lhes deu a origem comum de raças
e a acção, também igual para ambos os povos, do clima da península
ibérica”. Embora organizados em dois Estados distintos, Portugal e
Espanha representam uma e mesma “origem comum”.
O problema da origem. Assim se pode resumir uma das linhas
analíticas que atravessa o “Prospecto”. De fato, numa época de forte adesão
ao poder dos conhecimentos científicos modernos e num contexto de
importantes transformações de ordem internacional, a definição acerca do
papel atribuído tanto a Portugal como a Espanha fazia-se depender de um
momento anterior de autodefinição. Definição da identidade nacional –
como do perfil da coletividade –, situada ao nível das origens e, portanto,
obrigando à discussão sobre o passado e ao estudo da história. Um estudo
que se fazia depender de uma constatação radical do atraso dos povos

112
“Prospecto da Revista Ocidental”. Anexo I ao texto de MARINHO, Maria José. “A Revista
Ocidental, 1875 – um projecto da Geração de 70” In: Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série,
vol.7, n.º1, 1992, p.65-67.
113
Nos excertos do prospecto optámos por gravar tal e qual a versão impressa (saliente-se que,
na transcrição do mesmo, Maria José Marinho procede zelosamente ao registo das alterações
entre a versão manuscrita e a que depois foi impressa). Idem, ibidem, p.65.
61
peninsulares. Este ideário é cifrado na seguinte constatação: “Espanha e
Portugal não têm, até hoje, entrado activamente na renovação filosófica,
científica e artística deste século. O grande movimento actual é ao mesmo
tempo alemão, francês, inglês italiano se quiserem, mas não é de modo
algum espanhol ou português”. Avaliação também estendida aos povos
latino-americanos, ex-colónias ibéricas, o que fazia com que, num efeito de
duplicação ou de ressonância, o desfasamento dos ibéricos em relação aos
saxões fosse igualmente vislumbrado à escala americana: “se olharmos
para a América também compreendemos de momento que o progresso
científico e industrial é aí mais representado pelas colonizações inglesas do
que pelas espanhola e portuguesa” (114).
Perante tão vincado entendimento de um mesmo conjunto de povos
– ibéricos e neoibéricos – unidos numa mesma situação de atraso e de
necessidade de modernização, compreende-se que a escala ibérica
comporte a marca de uma negatividade referencial, da qual é oriunda, de
igual modo, a escala neoibérica, dado que ambas se achavam comummente
envolvidas pelos mesmos problemas. Afinal, “quaisquer que sejam as
causas desta incontestável diferença são elas decerto comuns ao quatro
povos, quase que diria às quatro raças que acabamos de falar. Iguais em
caracteres essenciais da sua originalidade no meio das nações da Europa,
também ao mesmo tempo se separam da corrente geral” (115).
Daí que os intelectuais que subscreviam o projeto da Revista
Ocidental acreditassem na necessidade de “uma unidade superior de
carácter e uma atitude idêntica em face do movimento moderno” por parte
de “um grupo natural de nações do ocidente da Europa [e dos] povos que
foram prolongar na América, decerto modificando-o, o mesmo espírito e a

114
Idem, ibidem, p.65.
115
Idem, ibidem.
62
mesma situação” (116). Culturalmente agregar-se: eis a receita para que os
povos ibéricos europeus e americanos melhor consigam chegar a equiparar-
se ao nível de modernidade visto nos demais povos europeus.
Eis, então o objetivo da Revista: “provocar a reunião dos elementos
da nova renascença intelectual da península e a formação das novas escolas
espanhola e portuguesa”. Por isso, “deverá a REVISTA, por um lado expor
os trabalhos que todos os dias adiantam a renovação dos estudos no mundo
civilizado; por outro, definir, nos seus elementos precisos, os caracteres
gerais da nossa individualidade e os elementos que tornam natural a
autonomia intelectual da Espanha, de Portugal, da América espanhola e do
Brasil, e os dos grupos ainda diversos que estes quatro povos encerram
decerto” (117). Assim, ao mesmo tempo em que buscavam através da crítica
moderna – esse “instrumento delicadíssimo de análise” – mostrar “toda a
criação de que andamos alheados, e todos os elementos do que podemos ser
no meio dela” (118). Eis o apelo dos editores ao “auxílio dos povos latinos
dos dois continentes” (119).

2.1.2. Idêntica compreensão pode ser também vislumbrada no artigo que


abre as páginas da primeira edição da Revista, um texto publicado em
idioma espanhol e intitulado Los Pueblos Peninsulares Y La Civilización
Moderna. O seu autor é J.P. de Oliveira Martins(120). Assinalou já Sérgio
Campos Matos que este texto introdutório da Revista Ocidental, de autoria
de Oliveira Martins, “deve ser entendido como peça fundamental na linha
reflexiva que o levaria poucos anos depois a escrever a História da

116
Idem, ibidem, p.66.
117
Idem, ibidem.
118
Idem, ibidem, p.66-67.
119
Idem, ibidem, p.67.
120
Lembre-se que Oliveira Martins tinha passado o período 1871-1874 a viver em Espanha.
63
Civilização Ibérica (1879)” (121). De igual modo é possível vislumbrar o
tom das demais obras históricas do autor: a História de Portugal, o Brasil e
as colónias portuguesas e o Portugal Contemporâneo.
Oliveira Martins inicia o texto expondo a mensagem que estava
contida no prospecto da Revista. Ressalta ele que “solamente una Revista
Occidental, decimos, podrá representar ante Europa, el genio de los
pueblos que habitan la península ibérica y los que, hijos suyos, fueron á
acampar en la América meridional” (122). Como vimos, a instituição de um
espaço de troca e circulação de ideias no âmbito dos “Povos Peninsulares”
– a Revista Ocidental –, dá-se com o intuito de marcar diferença em relação
à restante Europa, num movimento de diferenciação e de balizamento do
estatuto ibérico por contraste com os demais povos europeus.
Naturalmente: para o projeto desta revista, como para os autores que o
subscrevem, Portugal compreende-se enquanto representante do gênio
peninsular. Mas há mais: é que também os povos da América do Sul – ex-
colônias – eram entendidos como “filhos” ibéricos, como representantes, na
América, do mesmo “génio peninsular”. Com isto se ensaiava uma linha
demarcatória do âmbito cultural luso-brasileiro, definido pela matriz
ibérica.
No texto de Oliveira Martins ecoa, em boa medida, a célebre
conferência Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos
três séculos, de Antero de Quental, proferida em 27 de maio de 1871, no
Casino Lisbonense (123). O que não surpreende, atendendo ao sentido
seminal que parece calhar à intervenção anteriana em relação ao “espírito”
121
Conforme MARTINS, J.P. de Oliveira. Portugal e Brasil. Introdução e notas de Sérgio
Campos Matos, fixação do texto de Bruno Eiras e Sérgio Campos de Matos. Lisboa: Centro de
História da Universidade de Lisboa, 2005, p.16.
122
MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In: Revista
Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15
de Fevereiro, 1975, p.5.
123
QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos:
discurso pronunciado na noite de 27 de Maio na sala do Casino Lisbonense / por Anthero de
Quental. Porto: Typ. Commercial, 1871.
64
que anima a maior parte dos textos presentes, anos depois, na Revista
Ocidental. Tal como no texto de Oliveira Martins, Antero, na sua
conferência de 1871, falava para um “nós, espanhóis”, referindo-se a uma
plateia de portugueses, em Lisboa. A contextualização precisa destas
referências transportar-nos-ia, evidentemente, para longe do nosso objetivo.
Mas, independentemente disso, o que aqui não pode deixar de merecer
destaque, sobre o texto de Oliveira Martins, é a inclusão dos povos sul-
americanos nesse mesmo rol ibérico, nessa mesma matriz. O
relacionamento luso-brasileiro, tão claramente expresso na troca de ideias
fomentada pela própria Revista Ocidental, não é senão o relacionamento
entre povos ibéricos e neoibéricos na América. O âmbito luso-brasileiro
seria, assim, um subconjunto. Uma derivação ibérica em solo americano.
Mas, afinal, em que consiste o propalado “génio peninsular”?
Responde o texto martiniano: “Él íbero desde lo alto de las peñas de
Asturias, dice á la invasión árabe: «¡Detente!» y la invasión se detuvo, para
no crecer mas. La marea cuyas oleadas llegaron á traspasar los Pirineos,
comenzó á descender y cinco siglos de tenaces guerras consiguieron barrer
de la península la asiática media luna. Qué sentimiento animada al español
en esa verdadera Ilíada, continuación de Troya y de Platea, de Maratón, de
Salamina y de las guerras punicas, en esa eterna pelea de Europa contra
Asia?” (124). E se acaso constituir, para o leitor, motivo de estranheza a
omissão, neste impressivo retrato, da influência árabe na formação dos
povos peninsulares (dando por adquirido que o português, inserido que
estava no conjunto, ali está contemplado) (125), encarrega-se o autor de

124
MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In Revista
Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15
de Fevereiro, 1875, p.6.
125
A influência ou não do moçárabe na formação étnica e/ou cultural do povo português
acendeu uma interessante polêmica entre duas facções, a saber: Alexandre Herculano, Antero de
Quental e Oliveira Martins, entre outros, que defendiam a inexistência de influência árabe na
cultura portuguesa, e Teófilo Braga e seus seguidores que defendiam a originalidade da cultura
portuguesa justamente pela importância da influência moçárabe na sua formação. Nas secções
65
esclarecer o seguinte: “cruzábanse las razas, tolerábanse los cultos,
trocábanse las costumbres y el lenguaje y las ideas; mas ¿desaparecía acaso
por eso el sentimiento fatal que tornaba incompatible al español y al árabe
sobre el suelo de la península? No, nunca”(126).
Por outro lado, semelhante leitura da realidade ibérica via-se
obrigada a colocar o problema da “decadência”. Neste ponto, o texto de
1875 insinua a influência de certo naturalismo organicista (127) ao
manifestar alguns aspectos nucleares que se reconhecem ao decadentismo
martiniano – tipificado pela expressão consagrada na sua História de
Portugal, “Os Lusíadas são um epitáfio”. Para ele, o momento cimeiro da
ascensão evolutiva de Portugal encerra já, paradoxalmente, o início da
decadência. Tal como na natureza, também a vida das nações é marcada
pelo ciclo nascimento, crescimento, maturidade, decadência e morte. Ora,
sendo certo que Oliveira Martins entende o Brasil como o prolongamento
de Portugal na América, não custa prever a sua eventual aceitação perante o
fato de que a mesma essência que na Europa fenece possa vir a florescer na
América. Como quer que seja, de vital importância se revelava para o autor
publicitar a sua reflexão acerca das características e da validade do
conhecimento histórico para efeitos de interpretações deste teor.
Assim, o vemos recordar que foi “la necesidad de acción” a causa
principal dos descobrimentos ibéricos, na medida em que “el duro y fuerte
brazo del soldado peninsular, el espíritu ardoroso del creyente, exigían
combates y propagandas: combatir con los moros ó con los mares ¿qué

seguintes, analisaremos mais detalhadamente a mencionada polêmica e suas influências na


formação das imagens identificatórias da cultura portuguesa (em sua relação com o Brasil,
especificamente).
126
MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”. In Revista
Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15
de Fevereiro, 1975, p.7.
127
A esse respeito consultar PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal: Filosofia. História.
Engenharia Social (1865-1914). Coimbra: Editora Almedina, 2001, sobretudo o capítulo 3 “A
lógica martiniana da história”, na parte 1, sobre “os traços naturalistas da filosofia da história
martiniana”, pp.231-235.
66
importa? Es combatir siempre, es vivir". Por isso lhe é possível sustentar,
em síntese, que “históricamente, la causa determinante de los
descubrimientos está en el desarrollo dada á la física y á la geografía por un
lado y por otro en las tradiciones que los viajes de los cruzados habían
esparcido por toda Europa” (128). O recurso às analogias com a antiguidade
vem à tona quando descreve os Descobrimentos como “una epopeya, mas
grande que la de Troya, mayor que la romana”. As analogias com o
passado cimentam a importância dos estudos históricos para o campo das
ideias oitocentistas. Afinal, “la historia es la base de la epopeya del siglo
XIX, que ninguna pluma puede, ni podrá acaso escribir”. Mediante a
evocação deste ou de outros aspectos da história portuguesa, resulta
inegável o peso que as “lições da história” têm para o argumento de
Oliveira Martins (129).
Inevitável se tornava, desse modo, articular o conhecimento da
História (para ele com H maiúsculo) com as demais Ciências Sociais, tão
em voga nos círculos cientistas do conhecimento: “la historia es para las
ciencias sociales lo que las ciencias elementales físico-químicas son para
las de la vida; instrumento de deducción”, pois, “la razón concluye, la
historia analiza”(130). Como bem se aceitará, não pode inferir-se deste
reconhecimento da importância do lugar da História um correlato desprezo
pela validade das então recentes Ciências Sociais. Na realidade, “el
procedimiento histórico deductivo que sirve para comprender los hechos y
descifrar los problemas de la vida europea no puede aplicarse á países
como las jóvenes naciones americanas, donde falta los anales y los

128
Idem, ibidem, p.13.
129
Ver a esse respeito CATROGA, Fernando. “O magistério da História e a Exemplaridade do
‘Grande Homem’. A biografia em Oliveira Martins. In: PÉREZ JIMÉNEZ, A. RIBEIRO
FERREIRA, J. & FIALHO, Maria do Céu (editores). O retrato literário e a biografia como
estratégia de teorização política. Coimbra-Málaga, 2004, pp.243-288.
130
MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In Revista
Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15
de Fevereiro, 1975, p.14.
67
precedentes, los puntos de contacto y de comparación con las viejas
naciones de Europa”. Entende-se a questão. Numa compreensão cara à
matriz hegeliana de entendimento da História, Oliveira Martins acredita
que, antes dos Descobrimentos, os povos “selvagens” da América estavam
ainda “fora da História”(131). Assim, por serem escassos os materiais
relativos ao passado das sociedades americanas, mais adequados ao seu
entendimento estavam os preceitos das Ciências Sociais.
Em rigor, a tarefa parecia ser a de compatibilizar, no âmbito de uma
teoria do conhecimento, aquelas áreas do saber: disso dependia tanto a
relação entre a História e as Ciências Sociais, como, em simbiose, a relação
entre o Velho e o Novo Mundo, ou ainda – em outro modo de o dizer –
entre a escala ibérica e a escala neoibérica. Porque, dado que “la suma de
observaciones científicas, etnológicas, climatológicas y sociales son por
ventura suficientes, si nó para trazar una historia futura, á lo menos para
determinar las líneas generales que la vida de un pueblo ha de seguir,
dadas las condiciones conocidas, á pesar de que el sistema de su reunión
sea nuevo enteramente, [então] tal es nuestra situación ante las naciones
sud-americanas, las naciones neo-peninsulares” (132).

2.1.3. Por consequência, o autor lê as diferenças verificadas, na


América, entre os povos sul-americanos de língua espanhola e o Brasil, em
termos de uma transferência dos mesmos elementos que, no contexto
peninsular, distinguem Portugal da restante Espanha.
Para Oliveira Martins, na história da América, a organização das
diferentes repúblicas de língua castelhana em contraposição à existência de
uma grande monarquia brasileira, é compreendida, de modo bastante
131
Conforme a obra de HEGEL, Georg Wilhelm. A Razão na História: introdução a uma
Filosofia da História Universal. Lisboa: Edições 70, 1995.
132
MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In Revista
Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15
de Fevereiro, 1975, p.14-15. Grifo nosso.
68
naturalístico, quase como o germinar das diferenças entre as distintas
heranças ibéricas, a castelhana e a portuguesa. A analogia é muito clara,
quando ele afirma que “esta diferencia en los caracteres originarios de la
colonización, llena de consecuencias importantes, produce un resultado que
en lo futuro se torna por si solo en causa de la profunda diversidad de
fisonomía entre los sistemas de colonias en la América del sur”. Enquanto a
colonização castelhana foi feita por uma “turba de aventureros, una
democracia de emigrantes, que cambia un suelo por otro, las llanuras de la
Mancha por las llanuras de las Pampas”, já, por seu turno, “ el hidalgo que
partía de Lisboa, llevando consigo familia, criados, trabajadores, decidido á
fijarse y á tomar posesión de la vasta región que le fuera dada, no contando
con volver mas á Europa, iba á asentar su ciudad en el punto mas céntrico
de la región que poseía”(133).
O Brasil foi povoado neste parâmetro, conforme seu relato, num
quadro de enormes distâncias internas. “La imposibilidad económica de
ligar entre si los centros dispersos de población y civilización, la dificultad
y muchas veces la imposibilidad, de los viajes”, criou o primeiro “vicio
orgánico del sistema de colonización portuguesa en el Brasil”, que é o facto
de que apenas se “conocen entre si las ciudades del litoral”. Mas ainda um
maior vício contaminou o sistema colonizador lusitano: o “espíritu
aristocrático de los portugueses, repugnando el cruzamiento, fue causa de
un hecho que hoy pesa todavía como plomo sobre el Brasil: la esclavitud”.
Considera, entretanto, uma perda o não aproveitamento do índio no sistema
colonizador. Isto porque “la sangre del indio aclimatado preservaría al
europeo: el europeo infiltraría en el indio la exuberancia de fuerza, de
arrojo, de audacia, de educación. No sucedió así y por ello fue preciso
recurrir al exterminio de otra raza. Los cafres inundaron el Brasil: vinieron
133
MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In Revista
Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15
de Fevereiro, 1975, p.15-16.
69
brazos, mas vino con ello el pecado de que se había lavado la Europa, vino
el amor á indolencia, vino la crueldad y la desmoralización, que
infaliblemente producen los crímenes contra lo justo”(134).
Assim, “de este concurso de elementos salió de una parte en el
Brasil un fac-símile hasta cierto punto artificial, de las naciones de
Europa”, pois “las instituciones y las ideas muévense y viven en las
ciudades que bordean la costa á imitación del mundo antiguo”. Para além
dessa aparência, “el vicio primitivo y casi orgánico de la colonización”
somado à “falta de raza y á la incomunicación”, fazem do Brasil “una
vasta colonia alimentada por la emigración”. Daí seu questionamento:
“¿como se ha de transformar en una nación, en el sentido histórico de la
palabra?” (135).
E se, frente a essa questão, que “los datos actuales no permiten
resolver suficientemente”, Oliveira Martins considera que o Brasil, apesar
de lhe faltar ainda um caráter nacional (e mesmo reconhecendo que não lhe
faltava carácter político), não fica diminuído frente aos demais países sul-
americanos. Isto porque o Brasil “tiene de nuestra sangre portuguesa la
facultad de asimilación, que, si desvanece los caracteres afirmativos de
nacionalidad, nos hace eminentemente aptos para recibir y comunicar todas
las impresiones de la corriente eléctrica de la civilización”. Assim sendo, o
papel do brasileiro é o de representar as ideias europeias em solo
americano, pois “su constitución, su código, sus instituciones y sus
costumbres, salvo le esclavitud en vías de abolirse, hacen del imperio
americano el representante de las ideas europeas en el nuevo mundo” (136).
Claro estava que os maiores méritos reconhecidos ao Brasil e à sua
simbologia íam mais além. Apontavam para o quadro de uma inevitável e
134
Idem, ibidem, p.16.
135
MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In Revista
Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15
de Fevereiro, 1975, p.16-17.
136
Idem, ibidem, p.17. Grifos nossos.
70
desejável aliança política que deveria unir os países de língua espanhola e
portuguesa, fossem os da Península Ibérica, fossem os da América, como
representantes que eram da mesma raça (137). Tratava-se, é certo, de uma
resposta à tendencial supremacia anglo-saxónica e liberal em escala
mundial. Efetivamente, segundo ele, os tempos de liberalismo político, de
utilitarismo econômico, de livre concorrência, “destruyeron ya las
distinciones de posición relativa entre las colonias y las madres patrias”.
Assim, é importante que “unas y otras, y cada cual dentro de las
condiciones especiales de su economía, se encuentren libremente unidas en
el desempleo de la misión que les atribuye el lugar que ocupan entre los
grandes sistemas de pueblos de origen aryano” (138).O que estava em jogo,
afinal, era simples: o fortalecimento político da escala ibérica de referência,
ideal sustentado no reconhecimento dos vínculos naturais que, sob a alçada
da História, se haviam plasmado no seio da família hispânica.
É essa a perspectiva em que, anos mais tarde, em 1892, se coloca
Oliveira Martins, em texto intitulado “A Liga Ibérica”, no qual insiste, uma
vez mais, no tema da relação entre os países ibéricos e seus “filhos”, os
países “neo-ibéricos”: “E desse império imenso, de há três séculos, que
resta? Retalhos dispersos, e um enxame de nações filhas das duas nações
peninsulares. Puderam os erros da política e a sorte fatal dos povos,
desconjurar o que fora unido, espalhando sobre o mapa do mundo os
membros dispersos da família hispânica. Mas não puderam apagar a
memória da máxima empresa da História Universal, porque foi dela que o
mundo ganhou o conhecimento da própria terra, na sua redondeza. Nem

137
Nesse sentido, vemo-lo contrapor a escala anglo-saxónica à ibero-americana, dizendo que “el
Brasil, las repúblicas y todos nosotros, hispano-portugueses, podemos oponer al frío
imperialismo sajón, la pura y positiva idea de la conveniencia que es para él la base única de las
leyes. La idea principal que mantenemos, del Derecho. La historia la apreciará en mucho mas
que todos los millares de millas de caminos de hierro, que todos los millones de caballos de
vapor”. Idem, ibidem, p.18.
138
Idem, ibidem, p.20.
71
podem também destruir os vínculos naturais da filiação, no sangue, na
língua, na fé…” (139).
Assim, no texto de 1892, Oliveira Martins revela ter “a ambição,
porventura quimérica” de estabelecer uma “liga de todos os povos que
falam castelhano e português: a liga ibérica, ou hispânica, de todos os
descendentes das nossas duas nações. Portugal com suas colónias, ainda
espalhadas pela África e pela Ásia até à China; Portugal, com o Brasil que
é seu filho, ocupa mais de quatro milhões de milhas quadradas de terra,
sobre que vivem trinta e dois milhões de homens, falando a língua de
Camões. A Espanha, com as suas colónias; a Espanha com o feixe de
nações americanas, o México, o Peru, o Chile, Nicarágua, Venezuela,
Honduras, a Bolívia e a Colômbia, a Argentina, a Guatemala e o Equador,
Salvador, Santo-Domingo, o Uruguai e o Paraguai, ocupam nove milhões
quase, de milhas quadradas sobre que vivem mais de sessenta milhões de
homens, falando a língua de Calderón”(140).
Vemo-lo, afirmar que seria um ato glorioso para todos estes povos,
agora autônomos politicamente, “reatar a tradição, buscar energias, pisando
como Anteu o solo firme da História, e inspirarem-se na política perspicaz
dos monarcas, quando era o pensamento dos reis quem determinava os
destinos dos povos” (141). A história é o “solo firme” a ser pisado tanto
pelos povos ibéricos como pelos “neo-ibéricos”, seus “filhos”. Esta seria,
para o autor da História da Civilização Ibérica, a estratégia adequada a
seguir num contexto internacional marcado pela expansão dos signos
culturais anglófonos e pelo perigo de que “em breve se tenha acabado de
atrofiar, saxanizado, o que resta do império hispânico”. Faltava, contudo,
139
“A Liga Ibérica”, La Ilustración Española e Americana, 1892. In: MARTINS, J. P. de
Oliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & Cia Editores, 1957,
p.301. Grifos nossos.
140
“A Liga Ibérica”, La Ilustración Española e Americana, 1892. In: MARTINS, J. P. de
Oliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & Cia Editores, 1957,
p.301-302. Grifos nossos.
141
Idem, ibidem, p.302. Grifos nossos.
72
“insuflar-lhe alento para que outra vez se erga à vida activa, a espantar de
novo a História com a grandeza das suas façanhas” (142). No âmbito deste
exercício analítico reativo à expansão saxónica do final do século XIX, o
culto dos laços transatlânticos permitiria prolongar no tempo, em outro
ambiente, uma grandeza que só seria efetiva se bafejasse tanto os seus
originários cultores, quanto os povos que, filialmente, deles haviam
derivado.

2.2. O ponto de vista da convergência

Esta interpretação derivativa do relacionamento luso-brasileiro,


contudo, não esgotava o sentido das diversas aproximações ao assunto.
Diferentemente se posicionou, por exemplo, todo um viés analítico
estruturado sobre a ideia de uma associação de interesses e projetos
comuns envolvendo Brasil e Portugal, países e culturas cujo
relacionamento se deveria interpretar, primacialmente, de acordo com este
viés crítico, sob a ótica da convergência. A fonte principal que nos servirá
agora de referência será o programa geral da Revista de Estudos Livres.
Publicada em doze fascículos mensais, todos depois agrupados num
volume anual de publicações que, em sua maioria, tinham estreita ligação à
divulgação dos princípios da ciência positiva, a revista tinha, inicialmente,
dupla direção literário-científica: uma em Portugal e outra no Brasil. A
direção portuguesa cabia a Teófilo Braga e Teixeira Bastos. A brasileira era
formada por Américo Brasiliense, Carlos von Koseritz e Silvio Romero.

142
Idem, ibidem, p.303.
73
2.2.1. Convirá atentar no que diz o Programa da Revista de Estudos
Livres, que abre a primeira edição anual (1883-1884) desta publicação e
que foi escrito por Teófilo Braga:

“Lançando à publicidade a REVISTA DE ESTUDOS LIVRES, não poderíamos


expor melhor o pensamento que a motiva, nem o intuito que nos estimula senão
apresentando em duas palavras o que Augusto Comte entendia por uma Revista
moderna. O eminente transformador da Filosofia do século XIX, projectava uma
Revista ocidental como um órgão de aplicação contínua da sua doutrina ao curso
dos acontecimentos humanos, realizados ou previstos, para a apreciação sistemática
do movimento intelectual e social nas cinco grandes populações avançadas,
francesa, italiana, espanhola, germânica e britânica. […] A REVISTA DE ESTUDOS
LIVRES visa à aplicação dos eternos princípios da liberdade intelectual, moral e
política aos acontecimentos actuais, para os julgar e poder deduzir deles as
condições do progresso. Todas as investigações nos interessam, com tanto que elas
conduzam para um ponto de vista social. Na crise de transformação mental e
política em que vão entrando as duas nacionalidades portuguesa e brasileira, filhas
da mesma tradição histórica, nas quais o regime católico-monárquico subsiste pela
inércia, mas sem apoio nas consciências, é imensamente necessário um órgão
crítico e especulativo que agremiasse os dois povos para a inteligência da sua
transição inevitável. A REVISTA DE ESTUDOS LIVRES tornar-se-á benemérita no dia
em que inicie esta convergência necessária, até hoje firmada apenas pelo nexo
económico e pela concorrência mercantil, formas espontâneas da síntese activa.
Entre Portugal e Brasil existem as bases profundas de uma síntese afectiva, como se
verificam esplendidamente nas festas do Centenário de Camões, porém as
publicações intituladas luso-brasileiras, não podendo elevar-se à compreensão da
síntese especulativa, ou acordo mental, caíram diante da chateza da exploração do
assinante, obstando pelo descrédito à influência de um pensamento tão fecundo. A
Revista de Estudos Livres procura reatar a aliança mental luso-brasileira; eis o
seu fim prático resultante do actual momento histórico”(143).

No programa da revista, acima transcrito parcialmente, há, na


perspectiva da nossa investigação, vários elementos importantes a reter: i) o
lugar ordenador e polarizador de uma base de pensamento positivista,
enquanto responsável pelas balizas doutrinárias da revista; ii) o apelo a um
movimento de “convergência” luso-brasileira, condição necessária num
contexto de crise e transição que enfrentam as duas nacionalidades (a
portuguesa e a brasileira); iii) o reconhecimento de uma “síntese afectiva”
entre essas nacionalidades, patenteada nas comemorações do Centenário de

143
Revista de Estudos Livres. Programa. Directores literário-científicos: em Portugal Doutor
Teófilo Braga e Teixeira Bastos; no Brasil Doutores Américo Brasiliense, Carlos Koseritz e
Sílvio Romero. 1883-1884, p.1-3. Acervo B.G.U.C. Grifos nossos.
74
Camões mas não dispensando uma “síntese especulativa”; e, por fim, iv) o
propósito de “reatar a aliança mental luso-brasileira”.
Como se percebe, a Revista de Estudos Livres institui uma escala
discursiva luso-brasileira para a divulgação dos conhecimentos modernos
da ciência positiva. Mas – pergunta-se – qual foi, no contexto brasileiro, a
repercussão desta proposta de Teófilo Braga que falava em “reatar a aliança
mental luso-brasileira”? É verdade que estão, ao lado de Teixeira Bastos,
três brasileiros a subscrever o primeiro volume da Revista: Américo
Brasiliense, Silvio Romero e Karl von Koseritz. Mas seria esse fato o
garantidor de um inquestionável apoio à iniciativa?

2.2.2. Não é o que indicam as fontes consultadas. Veja-se, por exemplo, o


tom da resposta que Araripe Júnior faz estampar em um texto publicado na
revista brasileira Lucros e Perdas, logo em Julho de 1883, por conseguinte
bem em cima do acontecimento. Nessa crônica, Tristão de Alencar Araripe
Júnior informa os leitores brasileiros da seguinte forma: “Aparece agora em
Portugal uma publicação com o título de Revista de Estudos Livres.” Em
seguida, transcreve parte do programa da Revista, ressaltando um trecho
que contém a proposta, escrita por Teófilo Braga, de «reatar a aliança
mental luso-brasileira». Logo após, manifesta-se: “Lido e relido este
período, eis-me perplexo. Nunca um filósofo arriscou um plano mais inane,
nem isso que se chama espírito de observação se prestou a mais
inconsistente e irrisória declinação”. Diz ainda o crítico cearense que “por
honra, entretanto, ao ilustre historiador, deixo de atribuir à má parte a
temerária proposta, para considerá-la somente o produto da mais completa
ignorância dos elementos que constituem a nação brasileira” (144).

144
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Lucros e Perdas, Direcção de Araripe Júnior e
Sílvio Romero. Rio de Janeiro, Ano I, n.º2, julho de 1883. In: Obra Crítica de Araripe Júnior.
Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação
e Cultura, 1958, p.351.
75
A drástica negativa de Araripe Júnior tem por pano de fundo, em
boa dose, as resistências teóricas em torno das noções de “processo
evolutivo” no âmbito das nações e de “transmissão” no caso das relações
entre ex-metrópoles e ex-colónias: “não basta saber que raças compõem um
povo para determinar-lhe a fórmula”, dirá Araripe Júnior. É preciso “ver
esses mesmos elementos – vivos, em ação, em movimento. Não basta
conhecer a anatomia do corpo humano para dizer-se que se sabe o homem;
é indispensável acompanhar experimentalmente o seu desenvolvimento
fisiológico” (145). Segundo ele, “não obstante a analogia tirada das colônias
inglesas e outras, – o exemplo histórico teria sido suficiente para afastá-lo
dessa ideia grotesca de uma impossível refusão” (146).
A proposta de “aliança mental” surge aos olhos de Araripe como
uma tentativa de “refusão”. Assim sendo, o viés nacionalista do autor só
podia encaminhá-lo para uma óbvia negação. Até porque, por outro lado, a
forte influência do naturalismo em sua compreensão da cultura brasileira e
da relação que esta deveria ter com a portuguesa solidificava a sua recusa:
“Acordo mental! Mas seria necessário que nós, semente desprendida
daquela árvore milenária, reproduzida e transformada, frutificando em
novo solo, em regiões completamente diversas, produzindo garfos
estranhíssimos, recebendo enxertos fortíssimos; que nós fôssemos agora
mentir a todas as leis sociológicas, aniquilar os impulsionamentos heróicos,
que tendem a afastar-nos, dia a dia, do tronco de onde saímos, reagindo
contra o hausto febricitante que nos impele à assimilação das qualidades
daquelas raças progressivas, possuidoras dos elementos de que mais
carecemos para sair dos in pace político. Não! Mil vezes não!”(147).
O afastamento entre Brasil e Portugal respeita, na compreensão do
autor, a ordem das leis sociológicas, do desenvolvimento natural dos novos
145
Idem, ibidem, p.351.
146
Idem, ibidem, p.352.
147
Idem, ibidem, p.352. Grifos nossos.
76
organismos, das novas sociedades. Qualquer proposta em contrário seria
antinatural, sendo de nenhum proveito para o Brasil. Face aos “tempos de
transformação” de que fala Teófilo Braga no programa da Revista de
Estudos Livres, Araripe Júnior, ao contrário, acredita que quanto mais
afastado o Brasil estiver de Portugal, tanto melhor será seu
desenvolvimento natural.
Para deixar bem clara a sua posição, Araripe, por ocasião da citada
resposta, expõe, em quatro tópicos, a estrutura de seu pensamento sobre as
relações entre as culturas portuguesa e brasileira, com “toda a seriedade
que merece” o assunto. A citação é um pouco longa, mas justifica-se que
lhe façamos um acompanhamento comentado, visto o modo esclarecedor
com que denuncia a compreensão do autor sobre o relacionamento cultural
entre Brasil e Portugal:
i) “É natural que o Sr. Teófilo Braga e os seus colegas da Revista
façam a proposta. O sentimento é profundamente cosmopolita; mas nem é
português, nem vem com o verdadeiro rótulo. Neste ponto, Camilo Castelo
Branco procede com mais lógica” Segundo o autor, a proposta de Braga é
oriunda de um sentimento de insuficiência da pátria, sentimento que, aliás,
perpassa, na compreensão de Araripe, toda sua geração. Diz ele que “quer
confessem, quer não, a pátria lhes é hoje insuficiente. Esse grupo de moços,
alentados por sentimentos que nada mais têm de comum com a contextura
moral de sua terra, em última análise, experimentam uma revolta contra o
próprio meio em que vivem; não acham uma base sólida que suporte
reorganização, nem matéria plástica que se preste aos novos moldes por
impor. Daí um inconvenientíssimo movimento através do Atlântico,
procurando um público a quem se afeiçoem, com que possam contar, em
quem influam”. Na verdade, o autor enxerga no projeto da Revista de

77
Estudos Livres uma tentativa de “recolonização psíquica”, que se trata de
“um notável erro, senão uma imperdoável pretensão” (148).
ii) Numa postura claramente nacionalista, afirma: “Como influência
mental, a lição portuguesa é perturbadora da nossa evolução natural”.
Segundo ele a cultura brasileira é “uma amálgama”. Por isso, “querer
guardar puros os caracteres desta civilização, tão puros como os imaginou
Comte, é ir de encontro à maior força reconhecida em sociologia, que é a
resultante do imprevisto da fusão das raças e da imersão desse precipitado
em regiões cujos recursos sejam pasmosos”. Crítico do positivismo, afirma
que “todos sabem que nenhuma doutrina calhou tanto em Portugal como o
comtismo, e há de ser aceita por todas as nações decrépitas, incapazes de se
renovarem por si mesmas, sem influência da força estranha”. Nesse
sentido, para o Brasil, seria negativa a influência da cultura portuguesa nos
finais do século XIX, pois estaria “injetando em nosso funcionamento
elementos já visivelmente contrários à sua marcha natural”. Para ele, “toda
a doutrina caduca é enormemente anárquica. E é essa anarquia que,
inconscientemente, o Sr. Teófilo Braga e seus colegas tentam inocular em
nosso organismo”. E continua:
iii) “a tradição portuguesa não nos deve interessar tanto como aos
que dela vivem unicamente. Se em Garrett (Camões) e Alexandre
Herculano (Eurico) tece ela um certo sainete pitoresco, isto já constitui um
fato passado” (149). Ora, segundo ele, “preocupa-se com o passado quem
não tem futuro. Só os velhos aprazem-se em avivar a memória dos tempos
idos. Os moços revolvem as cinzas de onde sairão enquanto os elementos
necessários à coordenação do presente, mas com os olhos sempre fitos no
horizonte luminoso que os atrai”. Daí que considere improdutiva a
148
Idem, ibidem, p.352.
149
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Lucros e Perdas, Direcção de Araripe Júnior e
Sílvio Romero. Rio de Janeiro, Ano I, n.º2, julho de 1883. In: Obra Crítica de Araripe Júnior.
Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação
e Cultura, 1958, p.353.
78
reaproximação das esferas culturais brasileiras com Portugal. Afinal,
pergunta: “o que nos adiantaria compartilharmos dessa preocupação
constante das antigas navegações? Mergulharmo-nos no subjectivismo
atroz, que faz padecer os moços a quem me refiro? Nada”. E, com efeito,
para o autor de Gregório de Matos, a comemoração do Centenário de
Camões, ao contrário do que afirmara Teófilo, acabara não por aproximar
as duas nações, mas, ao contrário, “erguendo o orgulho colonial,
amesquinhou o espírito nacional”.
iv) Acresce, por fim, que, para Araripe, “a questão econômica” é, de
todas a “mais grave”. Nesse quadro, considera que se a solidariedade do
português “cresce dia a dia”, o brasileiro, por sua vez, “se sente mais
distanciado, menos português”. Haveria, assim, uma atmosfera de
“hipócritas, brasileiros e portugueses, que vivem a abraçar-se numa fingida
sinceridade que tem sua base principal na praça do comércio”. E, em boa
inspiração naturalista, exara que “só há um meio de obviar o choque de
duas massas que se extremam: é abater uma e obrigá-la a absorver-se na
outra, subordinando-a a uma nova coordenação de moléculas”. Termina
rogando que “sejam estas frases recebidas como reagente posto por mão
cordata e sincera. O que convém, presentemente, é que não pensem mais
em educar canários no reino para vierem cantar no império” (150).
Após a exposição pormenorizada dos argumentos de Araripe
Júnior, contrários à proposta de “aliança mental” luso-brasileira, cabe
perguntar se houve alguma repercussão, em Portugal, desse virulento
discurso surgido nas páginas da revista Lucros e Perdas. É o que logo se
vê.

150
Lucros e Perdas, Direcção de Araripe Júnior e Sílvio Romero. Rio de Janeiro, Ano I, n.º2,
julho de 1883. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio
Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.354.
79
2.2.3. A Revista de Estudos Livres também continha uma seção, chamada
“Bibliografia”, de recepções críticas de obras relevantes na tarefa de
divulgação dos princípios da ciência positiva. É neste espaço que Teófilo
Braga responde a Araripe. Através de uma recepção crítica da publicação
da revista Lucros e Perdas, o autor dos Elementos da nacionalidade
portuguesa faz uma série de apreciações sobre o tom negativo das opiniões
do cearense a propósito da “aliança mental” tal como esta havia sido
avançada nas páginas da Revista de Estudos Livres.
Convém lembrar, entretanto, que o projeto da citada revista
brasileira Lucros e Perdas era assinado não apenas por Araripe Júnior, mas
também por Silvio Romero, o qual, aliás, também subscrevia – como
diretor “literário-científico” brasileiro – a Revista de Estudos Livres.
Romero estava, portanto, em ambos os projetos editoriais. Esta
circunstância explica, provavelmente, a abordagem inicial de Teófilo, na
altura de referir o texto de Araripe (151): “Conhecemos os redactores desta
revista literária e o tipo da sua publicação, um pouco moldada pelas Farpas
do nosso eminente crítico Ramalho Ortigão”. Em seguida, faz uma
apreciação bastante positiva de Silvio Romero, com quem, pouco depois,
entraria em intensa polémica (152), dele dizendo tratar-se de “um professor
distinto e um audacioso reorganizador da literatura brasileira, investigando
as tradições populares e procurando nelas o tema para a criação de uma
poesia e arte nacional” (153). Quanto a Araripe, dele diz Teófilo que
“aparece como um esmerado investigador das riquezas tradicionais da
província do Ceará, devendo-se-lhe curiosas indicações sobre o ciclo dos
Romances de Vaqueiros com que contribuiu para a colecção dos Contos
151
Merece destaque o fato de Silvio Romero não mais aparecer, no segundo ano da Revista de
Estudos Livres, como diretor “literário-científico”.
152
Na seção seguinte analisaremos os detalhes que envolveram Teófilo Braga e Silvio Romero
em conhecida polêmica.
153
BRAGA, Teófilo. Secção “Bibliografia” sobre a revista Lucros e Perdas – crônica mensal
dos acontecimentos, por Silvio Romero e Araripe Júnior. Rio de Janeiro, 1883, 1º fascículo, in
Revista de Estudos Livres, ano I, 1883-1884, p.333-336.
80
Populares do Brasil”. E afirma, depois, em tom de lamento: “Quando
pensávamos que os dois espíritos procediam de acordo mental na sua
crítica, logo no primeiro número dos Lucros e Perdas rebenta a dissidência
nas suas opiniões, separam-se não por incompatibilidade de humor, mas
por falta de unanimidade de princípios. Involuntariamente a nossa Revista
de Estudos Livres foi a causa da dissidência” (154).
E prossegue assinalando que Araripe Júnior teria feito “tremendas
acusações” que se podem refutar, posto que “são emoções de um
inconsciente chauvinismo parodiado de velhas coisas que tiveram já o seu
tempo”. De resto, a “aversão das colónias americanas contra a Inglaterra,
motivada por causas históricas, tem sido por vezes parodiada no Brasil sem
outro fundamento mais de que uma impressão individual que desabafa em
jornais como a Tribuna (155) ou qualquer outra folha anónima” (156). O
“facto positivo é que o Brasil, pela sua grandeza, precisa do concurso de
todas as actividades, e que todo aquele que perturba por qualquer forma a
convergência desse esforço civilizador, assoalhando antipatias de raça ,
quando a mestiçagem acabou com elas, e ódios históricos sem realidade
nos factos, pratica um acto estéril, impotente, mas que nem por isso deixa
de ser condenável” (157).
Dirá, ainda, forçando a nota quanto ao caráter cientificamente
estribado dos seus argumentos, que “aplicar ao Brasil esta aversão ao

154
A informação de que a Revista de Estudos Livres teria causado a “dissidência” entre Silvio
Romero e Araripe merece ser melhor averiguada. De qualquer forma, há indícios para crê-la
verdadeira. Conforme a nota dos organizadores da publicação das Obras críticas de Araripe
Júnior, “Araripe e Sílvio se desentenderam a meio caminho, deixando o primeiro de prosseguir
na parceria”. “Nota dos organizadores”. In: ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar, Lucros e
Perdas. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio
Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.529.
155
Provavelmente Teófilo se refere a Tribuna do Pará, jornal, aliás, também mencionado pelas
crônicas de Oliveira Martins na Revista Ocidental, em 1875, conforme vimos.
156
BRAGA, Teófilo. Secção “Bibliografia” sobre a revista Lucros e Perdas – crônica mensal
dos acontecimentos, por Silvio Romero e Araripe Júnior. Rio de Janeiro, 1883, 1º fascículo, in
Revista de Estudos Livres, ano I, 1883-1884, p.334.
157
Idem, ibidem.
81
elemento português é uma leviandade. Se por ventura na população
brasileira se eliminasse de um certo tempo em diante o elemento português,
a população com o decurso do tempo regressava ao elemento selvagem. É
isto o que se demonstra pela antropologia. De todos os povos da Europa só
o português, o italiano e o espanhol é que podem adaptar-se ao clima da
América meridional; o espanhol tem as suas próprias colónias que o
atraem, o italiano que emigra não é sedentário, só o português é que se
dirige para o Brasil como uma continuação da sua pátria” (158). Bom seria,
portanto, que se reconhecesse que o imigrante português, pela sua atividade
no Brasil “funda os grandes instrumentos de produção”, só trazendo para
Portugal “o dinheiro com que nos afasta de um sério regime económico”,
num cenário em que “no Brasil ficam montados os aparelhos que elaboram
a riqueza”, indo para Portugal o dinheiro “com que o nosso organismo
económico se sustenta depauperando-se”. Daí que fale da “mutualidade de
interesses” que é a base de uma “concórdia espontânea entre brasileiros e
colonos portugueses”, referindo, ainda, a existência de uma “harmonia de
sentimentos” derivada dos “nossos antecedentes históricos, da mesma
civilização de que ambos os povos são os actuais representantes, tão
sublimemente expressa no Centenário de Camões, mau grado os despeitos
isolados que envolveram a independência política com a unificação moral
de uma mesma tradição” (159).
É, assim, taxativo: “só falta realizar o acordo mental” através da
formação de “uma clara compreensão histórica e social dos dois povos, e
procurando as bases de unanimidade dos espíritos em uma doutrina
deduzida da realidade objectiva dos factos”. A doutrina positivista teria,
para Braga, a possibilidade de, sobre fatos da “realidade”, instituir uma
convergência da situação histórica dos dois países, posto que eles “nada

158
Idem, ibidem, p.334.
159
Idem, ibidem, p.334-335.
82
têm a esperar já da organização católica, que hoje só se impõe pela sua pela
sua perturbação da esfera civil e pela dissolução da vida doméstica”; ou
seja, a “filosofia positiva é a única doutrina que considera os factos da vida
geral das sociedades sob o ponto de vista objectivo da invariabilidade das
leis naturais, e que em vez de utopias subjectivas funda as suas observações
nos antecedentes históricos” (160).
A diferença de opiniões entre Teófilo e Araripe estava, em suma,
ancorada numa vincada desinteligência em matéria de “leis naturais” da
“evolução dos povos”. Para Araripe, lembre-se, a evolução natural do povo
brasileiro passava pelo seu afastamento de Portugal. Para Teófilo, ao
contrário, uma aliança luso-brasileira estaria inscrita na ordem das coisas e
fortaleceria ambos os países. E, como ambos os países estavam, segundo a
compreensão de Braga, em acentuado “período de transição”, importava,
portanto, “acelerar a circulação de ideias” entre eles (161). Esse intercâmbio
seria uma evidência a mais no sentido de uma associação de interesses e
trajetos entre Portugal e Brasil. Ao mesmo tempo daria condições para o
mútuo benefício que, sob um ponto de vista objetivo, deveria resultar da
sua tendencial convergência.

2.3 Os cultores do distanciamento

Acesa a reação de Araripe Júnior à ideia de uma “aliança mental”


fraternalmente esteada na filosofia positiva já é um bom indicador das
diversas nuances que se iam colocando à convergência entre as culturas
portuguesa e brasileira. Mesmo nem sempre assumindo foros de oposição
declarada ao espírito “associativo”, forjavam-se outras linhas
interpretativas na hora de “acertar contas” com o passado colonial. Uma
160
Idem, ibidem, p.335.
161
Idem, ibidem.
83
delas era a que designamos por ponto de vista do distanciamento. Seu
principal expoente será, em nosso entender, Sílvio Romero.
Há boas razões para isso. Primeiro, porque Romero tanto fez parte
do elenco da Revista de Estudos Livres – proponente de uma “aliança
mental” luso-brasileira – como integrava a redação da revista brasileira
Lucros e Perdas, em cujas páginas, como vimos, Araripe Júnior negava
fortemente qualquer tipo de aproximação a Portugal. Depois, porque o
cariz nacionalista de seu projeto intelectual, ao conduzi-lo à busca da
originalidade do tipo brasileiro, impunha – necessariamente – uma
permanente revisão das relações com Portugal. Um bom posto de
observação do seu pensamento é a Revista Brasileira, periódico que
acolheu os primeiros textos romerianos publicados no Rio de Janeiro, em
1879. Concentramos nossa análise, exclusivamente, na chamada “fase II”
dessa revista – fase em que a maior parte das matérias abordavam textos de
crítica cultural, literatura, análises e recepções críticas de autores
consagrados (162). É aí que se vislumbram as temáticas de âmbito luso-
brasileiro.

2.3.1. A produção de Romero na Revista Brasileira tem uma especial


importância, pois marca o período de sua chegada ao Rio de Janeiro.
Segundo Luís da Câmara Cascudo, esse momento é fundamental na
biografia intelectual do autor, pois é nele que Romero busca espaço na cena
cultural carioca, procurando distinguir-se do exagerado francesismo desta
(163). É nesse momento, também, que ele acentua sua atividade de

162
A Revista Brasileira foi editada em três fases distintas (1857-1861, 1879-1881, 1895-1898).
Sobre a Primeira fase (1857-1861) consultar MASSARANI, Luisa. A divulgação científica no
Rio de Janeiro. Algumas reflexões sobre a década de 20. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO
[Dissertação de Mestrado em Ciência da Informação], 1998, 127p.
163
Assim se expressa Luís da Câmara Cascudo: “Fixando-se no Rio de Janeiro em 1879, Silvio
Romero começa a publicar na Revista Brasileira os estudos A Poesia Popular no Brasil,
reunidos em 1888, num tomo, Estudos sobre a Poesia Popular no Brasil, Tip. Laemmert. Esses
estudos duraram um ano. Era o programa da análise do folclore brasileiro, sua literatura oral em
84
propagador das ideias da Escola de Recife. À parte dessas considerações de
ordem biográfica, é de assinalar ter sido, precisamente no Rio de Janeiro,
que Romero intensificou suas intervenções à escala luso-brasileira. Delas
nos deteremos agora (164).
O primeiro texto publicado por Sílvio na Revista Brasileira foi A
Poesia Popular do Brasil (165). Aí estabelece os critérios determinantes da
individualidade do brasileiro em relação aos demais povos, sendo que
“nesta inquirição devem ficar fora do quadro o português nato, o negro da
costa e o índio selvagem, que existem atualmente no país, porque não são
brasileiros, e sim estrangeiros” – porque, se “o genuíno nacional é o
descendente destas origens”, ele não se confunde com elas(166).
Para Romero, o “genuíno brasileiro de hoje, como geralmente se
apresenta, é em regra um resultado de cada um dos três factores principais
em separado, ou de dois, ou de todos os três”. Nesta mistura, entretanto, o
“factor português pesa-lhe com mais força por meio de sua civilização, sua
língua, sua religião e suas leis”(167). Isso porque, segundo ele, “o negro
crioulo, e o mulato ainda menos, não podia figurar como testemunho certo
de que sentiram e pensaram seus ascendentes africanos, os pretos ditos da
Costa”, porque, assim como o “caboclo e seus descendentes”, todos foram
“mais ou menos completamente educados à portuguesa”(168). Vê-se,
claramente, que o problema que começa por se lhe colocar é, forçosamente,
o de definir esse português cuja contribuição para o conhecimento do

plano sistemático, poesia, teatro tradicional, orações, jogos infantis, contos populares. Esses
motivos foram expostos, revolvidos, apresentados com aquela vivacidade típica, num ar de
desafio, porque era no tempo um pisar-de-pé na cultura oficial”. CÂMARA CASCUDO, Luís
da. “Epígrafe e Nota bibliográfica”. In: ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a Poesia Popular do
Brasil. Petrópolis: Vozes, Coleção Dimensões do Brasil, 1977, p.11.
164
Contudo, vale frisar que analisaremos, em seção à parte, a publicação de uma edição especial
em comemoração ao Tricentenário da morte de Camões, em 1880.
165
ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D.
de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879, p.94-102 – 1ª parte.
166
Idem, ibidem, p.97.
167
Idem, ibidem, p.98.
168
Idem, ibidem, p.100.
85
genuíno brasileiro se afigura, independentemente de avaliações,
absolutamente incontornável.
Recorrendo a uma confessa utilização cruzada de Alexandre
Herculano e Teófilo Braga (169), considera que “os portugueses povoaram
este país numa época para eles de profunda decadência política e social, o
tempo da Inquisição e do cativeiro espanhol em que findou o período
heróico de sua história e começou a grande crise do desmoronamento em
que ainda hoje se debate a estimável nação”. Por consequência, quando o
Brasil começou a ser colonizado, “já em Portugal definhava, desprezada,
senão esquecida, a grande poesia popular. De si já bastante emaranhadas as
tradições da península hispânica, ainda mais o ficaram em o novo mundo
para onde foram transplantadas no tempo de sua velhice. Os selvagens aqui
encontrados foram raramente civilizados e incorporados em a nova geração
que ia se perpetuar na América”(170).
E é fundado em semelhante pressuposto analítico que avança sobre
o seu âmbito argumentativo de eleição, a construção das especificidades
brasileiras. Em clara aplicação das ideias darwinistas ao estudo do folclore
nacional, exprime que “nas danças, músicas e poesias populares, dão-se
também as leis da seleção natural. Adaptadas ao novo meio, transformam-
se, produzindo novos rebentos ou novas vidas”. Como exemplo, toma o
tipo regional do baiano: “é mestiço de origem, predominando nele agora o
elemento africano, que, por mais que o queiramos esconder, prevalece
ainda em nossas populações”. Essa formação cultural brasileira, tomada à
luz do exemplo baiano, caracteriza, entretanto, uma forte distinção da
cultura brasileira em relação às demais culturas latino-americanas, ex-

169
Sílvio indica, em nota de rodapé, as seguinte fontes: “Alex. Herculano História da origem e
estabelecimento da Inquisição em Portugal, passim Th. Braga, Manual de História da
Literatura Portuguesa”. ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista
Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879, p.101.
170
ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D.
de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879, p.101.
86
colônias espanholas. Assim, afirma Romero que “se nas repúblicas
espanholas o cruzamento mais vasto foi do europeu com o índio, no Brasil
foi do branco com o negro, predominando até agora as formas escuras nas
classes baixas”. Afinal, no Brasil “se há de notar que o número de mestiços
excede o de brancos puros, índios puros e negros puros, e que naqueles a
impressão do preto é mais viva”. Por isso o “baiano é uma especialidade
brasileira: ele e o vatapá e o caruru, também implantações africanas
transformadas, são as três maiores originalidades do Brasil” (171).
O critério da originalidade – isto é, o estabelecimento das
especificidades produzidas em contexto unicamente nacional – é o
verdadeiro interesse do crítico. Assim, compreende-se o bom conhecimento
que este revela da obra de Teófilo Braga(172), crítico português também
preocupado com as originalidade da cultura lusitana em relação aos demais
povos ibéricos. Nesse sentido, vemos Romero citar Braga, ao reafirmar que
a “modinha é uma transformação da serranilha, como já foi demonstrado
por Teófilo Braga, e é para mim menos original. Adaptada a este solo,
quando foge do verso e música dos modelos convencionais, adquire
também um grau pronunciado de originalidade. Chega a este ponto quando
ao elemento português agregam-se outros, porque o genuíno brasileiro,
como já disse, o nacional por excelência não é, como alguns hão afirmado
erroneamente, este ou aquele dos concorrentes, mas o resultado de todos, a
forma nova produzida pelos três factores” (173). Para Romero, citando o

171
ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D.
de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879 – 3ª parte, p.270.
172
Essas relações entre Romero e Teófilo foram realçadas, por exemplo, por BORGES, Paulo.
Pensamento Atlântico: estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro. Lisboa: INCM, 2002,
principalmente no capítulo “Tradição, Literatura e Nacionalidade em Teófilo Braga e Sílvio
Romero”, pp.135-154, também publicado em Sílvio Romero e Teófilo Braga. Actas do III
Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 19996. Dedicar-nos-
emos a alguns detalhes desta aproximação teórica, estratégica e analítica dos dois intelectuais
nos capítulos seguintes deste trabalho.
173
ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D.
de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879 – 3ª parte, p.270.
87
Manual de História da Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, a
originalidade da modinha brasileira é um facto dado, na medida em que
“por meio delas este país, quando colónia, chegou a influir na literatura da
metrópole” (174).
Todas estas considerações ganham o devido alcance quando
enquadradas com outro texto de Sílvio Romero, também publicado na
Revista Brasileira, em 1879. Trata-se do opúsculo A Literatura Brasileira;
suas relações com a portuguesa; o Realismo (175). Já no início do texto, à
moda de um manifesto nacionalista modernista avant la lettre, declara
Romero que “o Brasil, depois de quatro séculos de contacto com a
civilização moderna, parece ter chegado ao momento de olhar para trás a
ver o que tem produzido de mais ou menos apreciável no terreno das
ideias” (176). Afinal, segundo a compreensão do autor, “uma nação se
define e individualiza quanto mais se afasta pela história, do carácter das
raças que a constituíram, e imprime um cunho peculiar à sua mentalidade”
(177).
Percebe-se aqui, em toda a sua amplitude, o projeto romeriano.
Suas declarações expressam um cunho nacionalista vincado, através de
uma compreensão que entende que uma gradual diferenciação de Portugal
faz parte da autodeterminação cultural brasileira. Para ele, como para
muitos intelectuais brasileiros de sua época – pense-se, em Machado de

174
É importante ter presente que já em alguns trechos da A Poesia Popular do Brasil, podemos
perceber as considerações que, anos depois, marcarão o bordão forte de sua História da
Literatura Brasileira, que teve primeira edição em 1888. Assim, vemo-lo, por exemplo, ainda
na Revista Brasileira, em 1879, analisar a “A Filosofia da História de Buckle e o atraso do povo
brasileiro”, secção que estará presente no livro de 1888. Relativamente ainda às fontes utilizadas
por Romero, merece ainda lembrança que na última parte de A poesia popular do Brasil,
Romero faça referência ao seu trabalho de 1873, bem como ao livro de Adolfo Coelho, Contos
populares portugueses. Percebem-se, aqui, mais uma vez, as interpelações múltiplas existentes
na escala cultural luso-brasileira. Idem, ibidem, p.274
175
ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In:
Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.273-
292.
176
Idem, ibidem, p.273.
177
Idem, ibidem, p.274. Grifo nosso.
88
Assis, que, neste particular, parece, tanto quanto com Romero, antecipar o
Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade (178) –, é preciso
completar a independência política com a realização da independência
cultural do Brasil. Eis aqui o elo político de um projeto intelectual e
cultural em torno dos processos de individualização das características que
determinam a nacionalidade brasileira.

2.3.2. Nesse processo de individualização, o brasileiro “se afasta pela


história”, diz Romero. Os conceitos do evolucionismo lamarckiano diziam-
no também. Assim, em seu trabalho de “diferenciação nacional, o
brasileiro será tanto mais progressivo e autonômico, quanto mais,
apropriados os germens úteis que legaram-lhe as raças que o constituíram,
delas afastar-se, formando um tipo à parte, uma individualidade distinta”.
Lógico parece, assim sendo, que a “nação brasileira, se tem um papel
histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais separar-se do negro
africano, do selvagem tupi e do aventureiro português” (179).
Romero acredita que o funcionamento das sociedades é o mesmo
que se verifica na natureza. O que lhe permite afirmar que, “como no
mundo físico corpos diversos e estranhos combinados produzem resultados
distintos inesperados, assim na história a combinação de raças diferentes
numa região vem a oferecer ao adiante o espectáculo das civilizações
originais”. Mesmo que o Brasil ainda esteja em formação, mesmo que sua
íntegra ainda seja um fato muito recente, acredita que “já é tempo de

178
Exemplo disso é o texto de Machado de Assis, Instinto de Nacionalidade e outros ensaios de
1878. Vale, entretanto, assinalar que podem haver critérios históricos concomitantes entre o
texto de Machado de Assis, o de Sílvio Romero e o Manifesto Antropofágico, de Oswald de
Andrade, publicado em 1928. Estas relações hermenêuticas, contudo, não são evidentes e, por
isso, merecem maior atenção e acuidade analítica. Não obstante isto, acreditamos haver, nesta
perspectiva, muitas questões ainda a serem melhor perscrutadas, seja do ponto de vista
exclusivamente brasileiro, seja do ponto de vista referente às aproximações luso-brasileiras
nestes movimentos finisseculares e modernistas.
179
ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In:
Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.274.
89
lançar-se um olhar retrospectivo sobre a sua história intelectual, para
marcar os primeiros traços da individualidade embrionária deste povo
recente”. À luz de uma interpretação naturalista do desenvolvimento dos
povos e da história, afirma que contribuíram para o desenvolvimento do
“embrião” brasileiro dois importantes agentes: “a natureza e a mescla de
povos diversos”(180). Onde observar o produto desse desenvolvimento?
O autor da História da Literatura Brasileira considera que a
literatura é uma das manifestações da “actividade mental” dos povos, e que,
por isso, “pode com proveito ser consultada como sintoma de seu progresso
ou decadência”. Nessa compressão, o estudo da história da literatura surge
como expediente intelectual capaz de diagnosticar a força dos
“organismos” nacionais. E que diagnóstico, em concreto, ela permite?
Embora nacionalista, Romero distingue-se, às vezes com virulência, da
maior parte dos românticos brasileiros, geralmente ufanistas, que acreditam
que “tudo vai bem” nas terras brasileiras. Romero pensa diversamente. Para
ele, “o povo brasileiro vai mal, muito mal, e entre as nações cristãs só um
similar encontra na desgraça: o desventurado e mesquinho Portugal” (181).
É no decurso deste posicionamento que Romero se preocupa em
traçar a estrutura de uma história da literatura brasileira, dando ênfase aos
períodos da evolução da intelectualidade através do critério nacional, um
desiderato que lhe permite acentuar os fundamentos teóricos do seu
entendimento acerca do carácter das nações: o “capítulo preliminar de uma
história da literatura brasileira, quando o escreverem com rigor científico,
deverá ser uma inquirição do como o clima do país vai actuando sobre as
populações nacionais; o segundo deverá ser uma análise escrupulosa das
origens do nosso povo, descrevendo, sem preconceitos, as raças principais

180
Idem, ibidem, p.274.
181
Idem, ibidem, p.275.
90
que o constituíram” (182). Atenção, portanto, à questão racial brasileira, para
ele de primordial relevo e sobre a qual importa corrigir erros de avaliação.
Erros como os de Teófilo Brag, alerta o sergipano: “sobre as raças dever-
se-á ter o cuidado de não esquecer nenhuma delas, como, ainda, não há
muito, o fez o Sr. Th. Braga, que nas poucas páginas que escreveu sobre a
poesia brasileira nem uma palavra disse das origens africanas, de nosso
povo”(183). Segundo ele, outros equívocos cometidos por Teófilo Braga se
devem evitar, como “a leviandade com que este escritor persiste em repetir,
como descoberta novíssima, a desacreditada teoria da existência de uma
raça turana, a que se filia, segundo o velho erro, os povos indígenas da
América”(184).
Isto exposto, entende-se melhor por que motivo, no âmbito da sua
“inquirição” pelo “genuíno nacional”, o autor remete, primeiramente, a
fatores estáticos do ponto de vista sociológico – como raça e clima – os
quais, ao mobilizarem o problema da origem, não podem deixar de
convergir num processo de releitura histórica. Operam sempre, assim,
numa releitura do relacionamento com Portugal, dando, frequentemente,
primazia da cultura brasileira sobre a cultura portuguesa.
No século XIX, defende Romero, os brasileiros precedem os
portugueses “na vida revolucionária e constitucional”. Segundo ele, “antes
de seu insignificante movimento de 1820, nós havíamos tido os sucessos de
1817; antes de terem eles uma constituição, mais ou menos liberal, nós a
tínhamos; antes de se verem livres de D. Miguel, tivemos a abdicação de D.
Pedro. Em uma palavra, eles nada possuem que se possa equiparar aos

182
Idem, ibidem.
183
Romero refere-se à obra de Teófilo Braga Parnaso Português Moderno, publicada em
Lisboa, em 1877, portanto, apenas 2 anos antes de Romero escrever esse texto.
184
ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In:
Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.276. É
importante lembrar que, no mínimo, desde 1871, Teófilo Braga defendia a existência da raça
turaniana. Como exemplo, remetemos a BRAGA, Teófilo. Epopeias da Raça Moçárabe. Porto:
Imprensa Portuguesa Editora, 1871.
91
nossos ímpetos revolucionários deste século” (185). A disputa sobre a
primordialidade, neste e noutros casos, é condição prévia da visada
afirmação do distanciamento. Repare-se, a título de exemplo, que, para o
nacionalista Silvio Romero, o “romantismo marca, intelectualmente, o
primeiro passo decisivo que fizemos para deixar de lado a cultura lusa”,
pois os escritores brasileiros, “os nossos moços, de 1822 em diante,
começaram a ler os escritores franceses e ingleses de preferência aos livros
de Portugal”, pois “o velho reino havia feito completa bancarrota de
ideias”, não passando, no século XIX, de “um ínfimo glosador dos
desperdícios franceses”. Silvio Romero acredita que “se continuássemos a
pensar somente pelo critério dos livros de Lisboa, teríamos chegado, como
eu já disse uma vez, à completa «paralisia intelectual»”(186). Nesse quadro
não espanta que Romero tenha por certo que “o velho reino perdeu
definitivamente o encanto a nossos olhos” (187).
E será na esteira destas afirmações que chegará a denunciar um
certo tom de “exasperação” presente na maneira dos intelectuais
portugueses se referirem aos brasileiros. Cita, como exemplo, os casos da
publicação de As Farpas, de Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, assim
como o Cancioneiro Alegre, publicado por Camilo Castelo Branco,
também em 1879. Para Sílvio, ambas as publicações, embora recentes,
representam “um sintoma patológico evidente da apatia intelectual do velho
reino”, pois não passavam de “objurgatórias estéreis, falhas de seriedade e
de sentimentos elevados”. Ao ponto de, frente às obras de Camilo, Eça e
Ramalho Ortigão, todas sarcásticas em relação à figura do brasileiro, lhe
185
O autor faz, a seguir, em nota de rodapé, referência aos “sucessos de 1817, 24, 31, 35, 42,
48”, querendo com isto mobilizar momentos históricos de reafirmação nacional brasileira
perante Portugal. A politização da memória, neste caso, é bem evidente. ROMERO, Silvio. “A
Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo”. In: Revista Brasileira, Rio
de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.280.
186
Romero remete ao seu trabalho de 1873, O romantismo no Brasil. ROMERO, Silvio. “A
Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In: Revista Brasileira, Rio
de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.280.
187
Idem, ibidem, p.281.
92
parecer que Teófilo Braga, “apesar de seus arrojamentos gratuitos, tem
mais senso crítico do que o geral de seus compatriotas”(188).
Significativo é o seu cotejo em relação à primazia na divulgação
das “ideias novas” da segunda metade do século XIX. Para ele, “em 1862,
no terreno do jornalismo, antes da Reacção de Coimbra, entre nós a escola
do Recife reagiu” contra os princípios do ecletismo, vigente na época. Os
brasileiros Tobias Barreto e seu discípulo Castro Alves ganhariam, assim,
proeminência, quando confrontados com o grupo português liderado por
Antero de Quental, na célebre “Questão Coimbrã”. De resto, essa primazia
do movimento de Pernambuco dar-se-ia também em relação aos análogos
movimentos de divulgação científica: “Este movimento, de carácter
revolucionário, propagou-se por todo o país, acordando decidido
entusiasmo na escola de São Paulo e no Rio Grande do Sul” (189).
Indubitável se mostrava, para Sílvio Romero, que, no século XIX, nas
artes, na música e na pintura, os brasileiros levam “incontestavelmente
vantagem aos portugueses”, na medida em que em Portugal não há “nem
um Carlos Gomes, nem um Pedro Américo ou Victor Meireles”. E mais, as
vantagens brasileiras se dão, inclusive por que “nossa geração actual
começou a estudar e a seguir as ideias de Comte e Darwin” (190).
Compreende-se, assim, que, em 1879, em sua classificação da
literatura brasileira, Romero filtre, quase cirurgicamante, aqueles autores
que aí deveriam ser incluídos: apenas Gregório de Matos, Tomás António
Gonzaga, Santa Rita Durão, Martins Pena, Alvares de Azevedo e Tobias
Barreto aí teriam cabimento. Porque, como explicava, o critério era o de
inserir os que representassem o princípio de “diferenciação nacional” (191).

188
Idem, ibidem, p.281.
189
Idem, ibidem.
190
Idem, ibidem, p.282-283.
191
Idem, ibidem, p. 284.
93
2.3.3. Em certo sentido, a vinculação originária a Portugal à
inevitabilidade de um reconhecimento de determinado nível de participação
portuguesa nas feições da brasilidade, não é recusada. Insiste-se nisso: o
ponto central, que esse momento de partilha não pode ser nem
sobrestimado, nem perene. Até porque, mesmo nos níveis de manifesta
dívida para com a herança, ou da paridade conjuntural dezenovista de
ambas as culturas – até por contraponto conjunto face ao restante mundo –,
o panorama não era de molde a grandes celebrações. É assim possível
surpreender Sílvio Romero a ensaiar uma comparação entre a cena cultural
luso-brasileira e a da restante Europa, afirmando, a esse propósito, que
“tanto o Brasil como Portugal fazem mesquinha figura quadro das nações
cultas, e o movimento espiritual em ambos os países é quase
insignificante”. Afinal, remata: “entre aquilo que é medíocre e quase nulo é
óbvio que se não deve muito distinguir” (192).
Na mesma linha, empreende uma série de comparações entre, por
um lado, o exercício das modernas ideias em Portugal e no Brasil, e, por
outro, a situação europeia. Atém-se, particularmente, à “evolução
romântica e à crítico-positiva”, sustentando que “naquela, em Portugal,
distinguiram-se muitos espíritos medianos, e os vultos de mais brilho
foram: Herculano, Garrett, Castilho, Mendes Leal, Rebelo da Silva e
Castelo Branco”. Em relação a tais escritores, diz que somente a “nossa
ignorância, a par da ignorância portuguesa” os tem “levantado a altura de
semi-deuses”, sendo que, na verdade, “não passam de figuras de terceira ou
quarta ordem cotejados pelo padrão dos representative men da romântica
europeia” (193). Quanto aos brasileiros, considera que “Magalhães,
Gonçalves Dias, Azevedo, Alencar, Macedo e Varnhagen, que bem se
podem pôr em paralelo, com os portugueses citados”, não sendo também

192
Idem, ibidem, p.284.
193
Idem, ibidem, p.274.
94
“mui grandes”(194). A inferioridade portuguesa frente “ao desenvolvimento
crítico” se dá também, para Romero, no contexto do final do século XIX.
Sobre a geração de 70 portuguesa, questiona: “O que são os seus Bragas,
Coelhos, Cordeiros, Oliveiras Martins… em face da brilhante plêiade de
jovens escritores alemães, ingleses e até italianos, que ilustram a época
actual?”(195).
Definitivamente, na compreensão de Sílvio Romero, o “velho reino
não vai bem”. Como defender então, na perspectiva brasileira, outra
postura que não a do distanciamento gradual frente a Portugal? Veja-se,
por exemplo, que “aos quatro corifeus portugueses por último citados,
temos a opor nossos escritores recentes: Couto de Magalhães como
etnólogo, Barbosa Rodrigues como naturalista, Batista Caetano como
filólogo, Ladislau Neto como botânico e Araújo Ribeiro (Visconde do Rio
Grande) como geólogo”. Afinal, dirá em tom de desabafo, “aqui também
há livros e aqui também se estuda”, pois também no Brasil há poetas,
críticos, filósofos e escritores em geral, “munidos das novas ideias, que o
positivismo e o darwinismo têm espalhado pelo mundo” (196). Daí que
concluir que “não há superioridade de Portugal para o Brasil [pois] “ambos
os países tem o privilégio de produzir epígonos; ambos vivem ajoujados à
mediocridade que os distingue” (197).
Sílvio Romero ainda dirá que, no Brasil, “também contamos anti-
românticos e anti-metafísicos, e sectários entusiastas do monismo
científico. São eles, para não falar de alguns outros: Tobias Barreto, de
Pernambuco, Guedes Cabral, da Bahia, e Pereira Barreto, de S. Paulo, a
quem podem adir os jovens escritores Miguel Lemos, Teixeira Mendes,
Lopes Trovão e J. do Patrocínio”. Vale chamar atenção para o fato de que o

194
Idem, ibidem,, p.285.
195
Idem, ibidem.
196
Idem, ibidem, p.286-287.
197
Idem, ibidem, p.287.
95
autor não opera uma demarcação dos escritores da nova geração brasileira
em relação aos portugueses. Ele também os destaca do âmbito carioca, sede
da corte brasileira. Aliás, bem vistas as coisas, percebemos que Silvio
coloca a corte carioca a par com a lisboeta, sendo em relação a ambas que
ele ressalta os feitos dos jovens brasileiros. Por isso, vemo-lo declarar que
“aqueles escritores, com todo o valor que os distingue, permanecem
obscuros, é que não vivem aos embates da claque fluminense, ou lisboeta, e
diferente é o viver desgarrado pelas vastas províncias deste império do que
estar ao aconchego amigável e animador que encontram os seus pares em
Lisboa, por exemplo” (198). Esta manifestação de Sílvio Romero nos
conduzirá, a seu tempo, a refletir sobre as questões relativas aos
regionalismos brasileiros, questões que abordaremos na terceira parte desta
investigação.
Emblemática desta perspectiva é a sua recepção à obra Novos
Ideais, do poeta gaúcho Múcio Teixeira. Se é visível a simpatia que lhe
merece aquela publicação, nomeadamente “porque é realista, mau grado a
moda, quero dizer, exprime a verdade da vida pampeana pelo seu lado
inocente e sério”, evidenciando que o autor “é homem de seu tempo, e
obedece às inclinações da época, [sendo] também homem de seu país e não
esquece o meio em que há vivido” (199), por outro lado, não resiste a exibir
uma discordância pontual, precisamente relativa ao lugar referencial da
cultura portuguesa. Está em causa a opinião de Múcio Teixeira, ao
considerar que “o português Guerra Junqueiro é um grande vulto que deve
ser imitado”; opinião que merece, da parte de Sílvio, o seguinte reparo: “se
o desejo é seguir o belo lirismo do Hugo dos bons tempos, não será então
preciso atravessar o Atlântico para ouvir Junqueiro”, bastaria que o poeta
prestasse atenção às “arrojadas produções de Tobias Barreto e Castro

198
Idem, ibidem, p.286-287.
199
Idem, ibidem, p.291.
96
Alves” (200). Aproveita, aliás, para apontar o caminho às gerações de novos
poetas e literatos brasileiros: “Deixemos Portugal em descanso e estudemos
o nosso país e a culta Europa, que não será pouco” (201).
Em resumo, o intuito de Sílvio Romero é reforçar a escala nacional
para o estudo da literatura e da cultura brasileira, processo que implica um
movimento de redefinição das relações com Portugal. Redefinição essa que
ocorrerá em duas vertentes: uma, que incorpora a influência portuguesa na
figura do mestiço; outra, que, pela gradual autonomização da forma mestiça
da cultura brasileira, se vai gradualmente distanciando da matriz
portuguesa em direção à total autonomia e originalidade nacionais.

3. Modalidades de relacionamento

Equacione-se, por fim, a última dimensão analítica prevista para esta


Parte I. A necessidade da sua abordagem decorre do fato de a vigência de
distintas redes discursivas e de distintos critérios interpretativos no seio de
uma mesma escala cultural fomentar a existência concomitante de também
distintas modalidades de relacionamento no âmbito dessa mesma escala.
Porque a questão é a seguinte: se, em primeira instância, as várias tomadas
de posição teóricas e hermenêuticas vão operando uma “separação das
águas” e produzindo constantes demarcações entre os autores e as ideias
em presença, não é menos verdade que esses alinhamentos, dotados de
maior ou menor grau de enquistamento ou de permeabilidade, colocam
doravante o problema estético do relacionamento entre si. O que se
percebe: neste ponto, “o problema da demarcação convoca,

200
Idem, ibidem, p.291.
201
Idem, ibidem, p.292. Grifos nossos.
97
automaticamente, o problema da relação” (202). Por isso, uma vez efetuada
a prospecção ao nível do primeiro, a pesquisa convoca o segundo. É esse,
com efeito, o objetivo deste capítulo.
Conscientes da dispersão de níveis e formas de relacionamento e da
impossibilidade de dar conta de todos, optamos por investir nossa atenção
naqueles que canonicamente são tidos por regimes extremos do
relacionamento entre os atores sociais – o consenso e a dissensão –,
procurando reconhecer a respectiva manifestação no contexto da escala
cultural luso-brasileira do último quartel do século XIX. Optamos, assim,
por averiguar a expressão tomada por duas das modalidades de
relacionamento caras àqueles dois regimes: a comemoração e a polêmica.
Como se verá, o peso de cada uma delas na relação cultural luso-brasileira
justifica esta opção.

3.1. A linha da dissensão, ou a instrução de polêmicas.

É conhecida a tendência dos meios intelectuais, tanto portugueses


como brasileiros, integrantes dos meios culturais de finais do século XIX,
para a produção de polêmicas. O mecanismo é recorrente. A ativação das
polêmicas procede de uma tentativa de instituição de sentido, seja em nome
de uma clarificação de frastura argumntativas, seja em nome de uma
radicalização de posições em torno de um núcleo de postulados. É assim
possível assinalar quer situações em que a polêmica expressa a recusa de
determinada pertença, quer em situações em que ela exprime a dissensão
dentro de determinada zona de pertencimento. Aqui radica o inegável
potencial heurístico do estudo das polêmicaas ao surpreender a arrumação
interna de dada configuração cultural luso-brasileira, entre uma ou várias
202
Veja-se, a este respeito, MARTINS, Rui Cunha. O método da fronteira .Coimbra:
Almedina, 2007.
98
de suas dimensões escalares. A agitação trazida pela polêmica – com os
inerentes círculos concêntricos que provoca, desarranjando e rearranjando
filiações e agrupamentos instalados –, fornece a possibilidade de apreciar a
configuração cultural em movimento.
No caso brasileiro, basta pensar em Sílvio Romero – um polemista
por excelência (203). Frente a Araripe Júnior, a propósito dos critérios de
definição do tipo brasileiro, frente a José Veríssimo, discordando quanto
aos critérios de arrumação da literatura brasileira, ou ainda frente a Manoel
Bonfim, criticando sua colagem a Oliveira Martins (204), o sergipano
protagonizou uma série de polêmicas consagradas. No caso português, os
nomes de Teófilo Braga, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Eça de
Queirós ou Pinheiro Chagas remetem para outras situações de idêntico
cariz (205). Trata-se, bem entendido, em todos estes exemplos, de polêmicas
emergentes à escala nacional, seja no âmbito da cultura portuguesa, seja no
da brasileira. Contudo, as polêmicas não se resumiram à escala nacional. A
existência de um âmbito de circulação e intercâmbio de informações na
configuração cultural luso-brasileira propiciava a possibilidade da
ocorrência de polêmicas luso-brasileiras propriamente ditas. E tal, de fato,
foi observado no período final do século XIX. É esta dimensão que nos
interessa de modo especial.

203
VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. História cultural e polêmicas literárias no Brasil
1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, e MOTA, Maria Aparecida Rezende.
Silvio Romero, dilemas e combates no Brasil da virada do século XX. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2000, são importantes referências nesse sentido.
204
Sílvio Romero escreveu 25 artigos no jornal Os Anais criticando a obra de Manoel Bomfim
A América Latina: males de origem, publicada em 1902. Em 1906 Romero publica uma
coletânea destes artigos dando à estampa A América Latina. Análise do livro de igual título do
Dr. Manoel Bomfim. Porto: Chardron, 1906.
205
Consultar, por exemplo, BRAGA, Teófilo. Os críticos da História da Literatura Portuguesa:
exame das afirmações dos Srs. Oliveira Martins, Antero de Quental e Pinheiro Chagas. Porto:
Imprensa Portuguesa Editora, 1872 e MARTINS, J.P. de Oliveira. “A Teoria do Mosarabismo,
de Teófilo Braga” (inédito). In: Biblos, n.º28, 1952, pp.139-177. Sobre as demais polêmicas
portuguesas consultar As grandes polêmicas portuguesas. Lisboa: Verbo, 2 vols. 1964-1967.
99
3.1.1. Um dos aspectos essenciais da instrução de polêmicas deste teor é o
fato de o cerne da questão argumentativa escamotear, muitas vezes,
elementos pré-compreensivos fortemente arraigados, da ordem do
preconceito e do estereótipo. Emblemática foi a verdadeira “disputa de
estereótipos” que tem lugar em torno de As Farpas, de Eça de Queirós e
Ramalho Ortigão (206). O humor ácido com que aí é retratada a viagem do
Imperador brasileiro D. Pedro II a Portugal e o consequente azedume da
recepção crítica a essa publicação do lado brasileiro merecem, para efeitos
da nossa pesquisa, algumas observações (207).
Em Fevereiro de 1872, As Farpas focaliza a figura do Imperador D.
Pedro II, realçando nele, com evidente ironia, a simplicidade e sobriedade
com que este, enquanto monarca, se apresenta à corte portuguesa. Aí se diz
que o real viajante “era alternadamente e contraditoriamente – Pedro de
Alcântara e D. Pedro II”. Aí se chama a atenção dos leitores para o fato de
o Imperador brasileiro carregar sempre à mão a bagagem: “a mala”,
ironiza-se, “significa que não só deixou a realeza no Brasil, mas tomou-a
sem cerimónia na Europa! A mala é a tabuleta do seu incógnito!”. Era o
indício, para os redatores, de que “Sua Majestade conseguiu atravessar a
Europa – disfarçado na sua mala. Por isso ela vinha vazia. Sua Majestade
não a usava como bagagem – punha-a como disfarce. Sua Majestade trazia
a mala – como outros trazem o nariz postiço”. E é ainda aí, nesse e noutros
fascículos, que, sempre em tom corrosivo, são referidos seja os hábitos

206
Amadeu Carvalho Homem chama justamente a atenção para a coincidência do primeiro
número de As Farpas com o funcionamento da Conferências Democráticas do Casino
Lisbonense. HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de Cultura
Portuguesa (século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.59.
207
Na apresentação à recolha de textos que compuseram esta polêmica entre Eça de Queirós e o
D. Pedro II, João Carlos Reis chama atenção para a “popularidade e larga divulgação e
indiscutível influência no Brasil, de uma publicação portuguesa, As Farpas”. Conforme
Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João Carlos
Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.168.
100
gastronômicos do Imperador (208), seja a sua curiosidade pelo idioma
hebraico (209), seja a vestimenta usada por D. Pedro II em sua ida à
Universidade de Coimbra (210).
Sendo certo que o acolhimento deste retrato não poderia ser – como
não foi – o mais caloroso do lado brasileiro, a verdade é que ele constituiu
bom pretexto para que, do lado do viés mais crítico para com os
alinhamentos luso-brasileiros, se insistisse na definitiva assunção de um
afastamento que, segundo era patente, a intelectualidade portuguesa afinal
havia já interiorizado. A polêmica ativava o jogo demarcatório. Ao ponto
de, no clima de incomodidade subsequente, qualquer iniciativa ficar sujeita
à manipulação argumentativa, fenômeno evidente nas desinteligências
perante a construção queirosiana de um retrato prototípico, o do brasileiro.
N’As Farpas se lê que “há longos anos o Brasileiro (não o
brasileiro brasílico, nascido no Brasil – mas o português que emigrou para
o Brasil e voltou rico do Brasil) é entre nós o tipo de caricatura mais
francamente popular. Cada nação possui assim um tipo criado para o riso
público”. Em Portugal, aduz-se, é essa a função do brasileiro: um ser
caricaturalmente “grosso, trigueiro com tons de chocolate, pança ricaça,
joanetes nos pés, colete de grilhão de outro, chapéu sobre a nuca, guarda-

208
“Sua Majestade imperial passa, com justiça, por um dos homens mais sóbrios do seu vasto
império. Sopa, carne cozida, legumes, água e um palito, tal é o chorume dos jantares da corte
nos paços da Tijuca”. Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e
introdução João Carlos Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.174.
209
“Sua Majestade é um guloso no hebraico. No hebraico – rapa os pratos e lambe os dedos”.
Idem, ibidem, p.174.
210
“A Universidade e seus doutores têm espalhado apreciações rancorosas, sobre a maneira
como Sua Majestade o Imperador se apresentou na sala dos capelos, num dia de doutoramento e
de cerimónia. Diziam que Sua Majestade, trajando jaquetão de viagem, com um chapéu
desabado e um saco a tiracolo, se veio sentar nos bancos severos da antiga sala adamascada –
com a mesma familiaridade com que se sentaria na almofada da diligência dos Arcos de
Valdevez”. Da toilette de D. Pedro II, diziam que “ele quis-se apresentar entre sábios, na rabona
de sábio! Ele não quis humilhar nenhum Sr. Doutor – pelo asseio da sua roupa branca! Antes de
sair para o capelo, em lugar de molhar os dedos num frasco de água de colónia (sabe-se isso!)
ensopou as mãos num tinteiro! Ele seguiu a velha tradição universitária – que o rasgão é uma
glória e a tomba na bota uma respeitabilidade! E, se a Universidade tivesse lógica, devia
escandalizar-se e corar – não por ele se ter abstido da gravata, mas por ousar entrar, naquele
recinto clássico da porcaria, com tão poucas nódoas no fato!” Idem, ibidem, p.176-178.
101
sol verde, a vozinha adocicada, olho desconfiado, e um vício secreto”.
Acresce-se ainda que “nenhuma qualidade forte ou fina se supõe no
Brasileiro: não se lhe imagina inteligência, como não se imaginam negros
com cabelos loiros; não se lhe concede coragem, e ele é, na tradição
popular, como aquelas abóboras de Agosto que sofreram todas as
soalheiras da eira: não se lhe admite distinção, e ele permanece, na
persuasão pública, o eterno tosco da Rua do Ouvidor” (211).
Não há grandes dúvidas de que a mordacidade do texto queirosiano
está voltada para o português imigrante no Brasil, que de lá retorna
trazendo consigo muito dinheiro e hábitos propícios à chalaça – pois “o
pobre brasileiro” é, para Eça, “o rico torna-viagem” (212). Contudo, o fato
de a caricatura se prestar a uma dupla leitura estigmatizante, pela
designação de “brasileiro”, referindo-se embora a este imigrante
“retornado”, poderia abranger também, maliciosamente, o natural do
Brasil. Este aspecto não deixou de conduzir a leituras instaladas nesta
segunda hipótese. E isto apesar de, como também ficava explícito, a
caricatura em causa funcionar, inclusive, como imagem reflexa da própria
cultura portuguesa e do próprio português. Para Eça de Queirós, “o
Brasileiro é o Português – dilatado pelo calor”, solto e sem peias. E mais
claro fica que o humor crítico do autor do Crime do Padre Amaro se volta,
reflexivamente, para o português, quando, por exemplo, afirma que o
lisboeta que não deixa a capital “não [vale] mais do que o minhoto que
volta de Pernambuco” (213), ou quando afirma que “o Chiado sob os
trópicos dá inteiramente a Rua do Ouvidor. Rirmo-nos do brasileiro é
rirmo-nos de nós sem piedade. Nós somos o germe, eles são o fruto: é

211
Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João Carlos
Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.182.
212
Idem, ibidem, p.182-183.
213
Idem, ibidem, p.185.
102
como se a espiga se risse da semente” (214). Bem vistas as coisas, o texto
queirosiano é acre para com o retrato do português como não o é tanto para
com o do brasileiro propriamente dito.
De qualquer forma, e traduzindo as tensões decorrentes dos recortes
culturais mutuos, levantam-se, a partir do Brasil, brados de setores
ofendidos com a ousadia d’As Farpas. É que a caricatura (e o estigma) têm
uma ponta afiada que roça as bordas da escala nacional. Logo, não
surpreende que, nesse mesmo ano de 1872, publica-se, no Rio de Janeiro, o
opúsculo As Farpas: protesto por um patriota. Nele se contra-argumenta à
postulada investida contra o orgulho brasileiro. Critica a linguagem “que às
vezes desce ao cinismo revoltante, gota a gota cheio de fel”, por onde
“corre desapiedada a pena em tão predilecto estilo, e em torpe e indecente
gargalhada”. Eça e Ramalho, conforme o opúsculo, não passam de “dois
palhaços [que] excitam com grosso sal o riso do estúpido burguês,
acérrimos diletanti do escândalo”, que ignoram que o Imperador D. Pedro
II cumprira os “deveres sagrados de cortesia, e amizade, e até de próximo
parentesco [ao fazer deter, em Portugal, o itinerário de sua viagem] na doce
ilusão de conviver com um povo irmão”. Justificam, com isso, que, frente a
As Farpas, só possa surgir “a mágoa, o desgosto e mais tarde a raiva, o
ódio que seguiu pelas costas ao Imperador do Brasil, ao deixar as margens
pitorescas do nunca assaz decantado Tejo” (215).
Por outro lado, o exacerbamento nacionalista reforçado pela própria
caricatura queirosiana do imigrante português, ao sustentar também “o
filho de Portugal, que chamam em Minas emboaba, no Rio Grande
marinheiro, aqui na capital e nas demais províncias, galego, pé de chumbo,
etc., etc., oferece no seu todo moral e físico, variado assunto para encher

214
Idem, ibidem, p.183-184. Grifos nossos.
215
“As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota”. Rio de Janeiro: Livraria da Casa Imperial
de E. Dupont, 1872, In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e
introdução João Carlos Reis. Lisboa : Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.186-189.
103
um volume de considerações a respeito” (216). O texto, na continuidade,
afirma que desde o momento da sua chegada aos trópicos, os imigrantes
mais parecem uns “maltrapilhos, descalços, ignorantes, analfabetos, todos
trajando calças de grosseira tela, cobertos com um chapéu de Braga, único
presente que lhe deram os pais enxotando-os do lar escasso”(217). Constrói-
se um quadro angustiante de um “Brasil aportuguesado” em que “à
importação dos vinhos, das batatas e cebolas, segue-se a dos artistas e a da
imprensa!”. Publicações como As Farpas, aduz-se, “não são jornais, não
são já livros de uma literatura gasta e viciada no plágio do estrangeiro, são
panfletos que mordem como o cão a mão que o alimenta, é a injúria, é a
calúnia, que embarca de sapatos ferrados e porrete e vem salpicar de lama
a púrpura do monarca e afrontar os brios de uma nação!” (218).
Ainda que convenha frisar que, não obstante a violência da resposta
às Farpas, surpreendemos trechos do opúsculo a ressalvar a necessidade de
diferenciar internamente o que se diz ao apontar ao “português”. Ao fim
d’As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota, o autor incógnito faz,
entretanto, uma emenda: “pedimos aos raros cavalheiros portugueses que
por seus título de brio e dignidade são aqui considerados e entrelaçados na
família brasileira, não julguem destas linhas outra ideia além do esforço
moral a que fomos provocados”. Destaca-se a proposta, então, de “joeirar o
trigo”, diferenciando o “português do galego” (219).

216
Idem, ibidem, p.193.
217
Ou, em outro trecho: “As Farpas d’além-mar dizem ter o brasileiro em si tanta porcaria que
as virgens desmaiam de nojo. Sem dúvida viram-nas por um espelho. Agarrai um português e
apesar da sua repugnância pela água, dai-lhe três banhos em água de colónia, enxugai-o,
perfumai-o de novo uma e muitas vezes; depois de tudo lavado, a boca, e tereis xulé, xulé,
sempre xulé”. Idem, ibidem, p.194;199.
218
“As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota”. Rio de Janeiro: Livraria da Casa Imperial
de E. Dupont, 1872, In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e
introdução João Carlos Reis. Lisboa : Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.200-201
219
“As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota”. Rio de Janeiro: Livraria da Casa Imperial
de E. Dupont, 1872, In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e
introdução João Carlos Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.202.
104
Não vale a pena prolongar aqui os argumentos do panfleto nem
sequer a tréplica queirosiana a este mesmo respeito (220). Quer a
mobilização estereotípica de efeito estigmatizante, quer a produção reativa
de idêntica estigmatização de inspiração nacionalista inscrevem-se, na
perspectiva do nosso inquérito, no complexo processo de reformulação e
clarificação cultural e identitária no seio de uma mesma configuração
cultural fortemente ancorada em critérios histórico-políticos como era a
luso-brasileira. Manifestamente, as margens brasileira e portuguesa
processavam, naquela conjuntura, um esforço de autonomização cultural
sem o qual qualquer tipo de clarificação identitária resulta impossível, mas
que comporta a ocorrência de fricções demarcatórias e de verdadeiras
“turbulências do limite” (221).
E se esta impressão se colhe ao nível mais imediato e mais pré-
compreensivo da caricatura e do estereótipo, outro tanto fará o despoletar
de problemáticas mais diretamente advindas de discordância teórico-

220
Em carta publicada no Jornal do Recife, em Outubro de 1875, e endereçada ao presidente da
província de Pernambuco, Nordeste brasileiro, Eça de Queirós manifestava-se nos seguintes
termos: “temos diante de nós um jornal de Lisboa – o Diário de Notícias que refere estranhos
acontecimentos passados nessa província: diz-se – que em Pernambuco, sobretudo na cidade
Goiana, as discussões travadas em torno do volume das Farpas, relativas ao império e ao
imperador, têm causado conflitos irritados, mortes, «e que os portugueses estão ameaçados na
sua segurança»”. Sobre este facto, responde na mesma moeda de mobilização política da
história, ao pedir que a autoridade local pernambucana desse um final às ameaças e agressões
sofridas pelos portugueses lá residentes, pois, de outro modo, “julgaremos que há verdade no
que se diz de Pernambuco e de seus costumes – e, então, vendo que nada fez a Pernambuco
civilização que há três séculos lhe mandamos, e que o Brasil recaiu na selvageria de então,
julgaremos dever recomeçar pacientemente a nossa obra, e tornar a mandar Pedro Álvares
Cabral, para tornar a redescobrir o Brasil”. Carta de Eça de Queiroz ao presidente da Província
de Pernambuco, publicada no Jornal do Recife e na Província, nas edições de 12 e 14 de
Outubro de 1875. In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e
introdução João Carlos Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.204-209.
221
Conforme o uso que lhe concede Rui Cunha Martins em vários de seus trabalhos, como, por
exemplo, MARTINS, Rui Cunha. “A arena da história ou o labirinto do Estado? Delimitações
intermunicipais e memórias concorrenciais nos inícios do século XX”. In Cadernos do
Noroeste, 15 (1-2), 2001, pp.37-56, MARTINS, Rui Cunha. “A pletórica da identidade, ou a
alucinação dos cânones”. Separata do livro Identidade, Identidades. Porto: ADECAP, 2002,
pp,149-156 e MARTINS, Rui Cunha. “Estado, tempo e limite”. Revista de História das Ideias.
Vol.26. Coimbra: Faculdade de Letras, 2005, pp.307-342.
105
políticas sobre o relacionamento luso-brasileiro. Foi este o caso da longa
polêmica entre Sílvio Romero e Teófilo Braga.

3.1.2. A polêmica que envolveu Romero e Teófilo, a qual só


aparentemente se resume às questões relativas aos direitos autorais
prolongou-se por mais de 20 anos, preenchidos de ataques, réplicas e
tréplicas sucessivas (222). Não obstante as altercações trocadas, é possível
verificar que, do ponto de vista teórico, conforme faz notar Manuel
Cândido Pimentel, “o pensamento de Teófilo Braga e o de Sílvio Romero
se desenvolveram a partir de uma matriz comum” (223). De fato, ambos
partem de uma postura radicalmente anti-metafísica, no âmbito da qual, é
bom ressaltar, nenhum dos dois adere radicalmente ao comtismo ortodoxo,
muito menos à vertente do apostolado positivista simbolizado pelos
seguidores de Pierre Laffitte (224). Preconizam conjuntamente um
conhecimento vincado pelo experimentalismo, elemento que os fez, cada
um a seu modo, aderir parcialmente às teses do darwinismo e do
evolucionismo de Herbert Spencer (225). Por outro lado, o estudo das
literaturas nacionais sob o critério nacionalista (226), com especial atenção
aos componentes etnológicos, representa outro elo teórico que os aproxima
significativamente (227), sendo que, ambos, acabam por exercitar o que se

222
PAREDES, Marçal de Menezes. “A querela dos originais: notas sobre a polêmica entre
Sílvio Romero e Teófilo Braga”. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, Edição Especial, n.º2,
2006.
223
PIMENTEL, Manuel Cândido. “A crítica do positivismo comteano em Teófilo Braga e
Sílvio Romero”. Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-
Brasileiro, 1996, pp.17-53.
224
HOMEM, Amadeu Carvalho. O Republicanismo em Portugal: o contributo de Teófilo
Braga. Coimbra: Minerva, 1989.
225
CALAFATE, Pedro. “A filosofia da história em Teófilo Braga. Um confronto com Sílvio
Romero”. In: Sílvio Romero e Teófilo Braga Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa:
Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.151-163.
226
REALE, Miguel. “O Historicismo de Sílvio Romero”. In: Sílvio Romero e Teófilo Braga
Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1996,
pp.14-150.
227
BORGES, Paulo A. Pensamento Atlântico, estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro.
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2002.
106
poderá chamar uma forma historiográfica à maneira de uma sociologia
descritiva (228). Sendo visível, portanto, sua comum inserção num mesmo
terreno discursivo – positividade do conhecimento, postura antimetafísica,
nacionalismo literário, crença no caráter probatório da etnologia – parece
lícito procurar os fundamentos da divergência ao nível de razões menos
óbvias, mas com certeza capazes de coexistir com este painel de
referenciação teórica, quando não produzidas precisamente em seu interior.
Em termos formais, o início da polêmica acontece por ocasião da
publicação, em Portugal, junto do livreiro Carrilho Videira, dos Cantos
Populares do Brasil, em 1883, e dos Contos Populares do Brasil, em 1885,
ambos os textos com assinatura de Silvio Romero (229). Na realidade, fazia
tempo que Romero dava conta quer da conclusão destas obras, quer da
dificuldade encontrada no Rio de Janeiro para dá-las à estampa (230). A
oportunidade de publicação surgiria, afinal, em Portugal. Teófilo Braga,
cuja obra Sílvio conhecia bem (231), é então convidado a fazer um estudo

228
PEREIRA, José Esteves. “Teófilo Braga e Sílvio Romero: duas perspectivas sociológicas”.
In: Sílvio Romero e Teófilo Braga Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de
Filosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.167-181.
229
Sílvio Romero teve muitas obras publicadas em Portugal ainda em vida. Merecem destaque:
ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brazil: com um estudo preliminar e notas comparativas
(colligidos pelo dr. Sylvio Roméro, com estudo preliminar e notas por Theophilo Braga).
Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1885. ROMERO, Sílvio. Martins Penna: ensaio crítico
com um estudo de Arthur Orlando sobre o auctor da "Hist. da litt. brazileira". Porto: Chardron,
1900. ROMERO, Sílvio. O elemento português no Brasil: conferência. Lisboa: Typographia da
Companhia Nacional Editora, 1902, ROMERO, Sílvio. Pinheiro Chagas: conferência realizada
no Theatro Recreio Dramático, do Rio de Janeiro, a 5 de Setembro de 1904. Lisboa:
Typographia d’“A Editora”, 1904, ROMERO, Sílvio. A Patria portugueza: o território e a
raça: apreciação do livro de igual título de Theophilo Braga. Lisboa: Livraria Clássica de A.M.
Teixeira, 1906. ROMERO, Sílvio. A América latina: análise do livro de igual título do dr. M.
Bomfim. Porto: Lello & Irmão, 1906. ROMERO, Sílvio. Provocações e debates: (contribuições
para o estudo do Brazil social). Porto: Lelo & Irmõo, 1910. ROMERO, Sílvio. Quadro
synthetico da evolução dos géneros na litteratura brasileira. Porto: Chardron, 1911. ROMERO,
Sílvio. Estudos sociaes: o Brasil na primeira decada do seculo XX: problemas brasileiros.
Lisboa: A Editora, 1911, além de ter prefaciado o livro de GUIMARÃES, Artur. Questões
económicas nacionae. pref. de Sylvio Romero. Lisboa : Typographia da "A Editora", 1904.
230
Em 1879, faz a seguinte consideração: “em nossa obra, – ainda inédita, – Cantos e Contos do
povo brasileiro – recolhidos da tradição, já pronta, e que é o trabalho mais completo que
possuímos no género, não tem podido ser publicado por falta de um editor”. ROMERO, Silvio.
“A poesia popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Ano I, Tomo I,1879, p.266.
231
Idem, ibidem, p.281.
107
introdutório à edição dos Contos do intelectual brasileiro (232), estudo esse
intitulado (Sobre a) Novelística brasileira e que Teófilo publicara também,
com o mesmo título, como parte integrante da sua obra Contos
Tradicionais do Povo Português (233). É nesse estudo introdutório que, de
acordo com a versão de Romero, Teófilo terá ”se apoderado” de seu
critério e modificado partes de sua obra. Por isso, em tom virulento,
Romero redige um protesto à atitude de Braga, publicando Uma Esperteza.
Os Cantos e Contos Populares do Brasil e o Sr. Teófilo Braga. Protesto
(234).
Para Sílvio, Teófilo cometera os seguintes “delitos” na elaboração
de referido estudo introdutório à sua obra: cortar um trecho da Advertência
preliminar do livro em que ele dava conta da classificação feita; apoderar-
se dessa divisão etnográfica dos contos brasileiros e dá-la como produção
original sua; fingir trabalho próprio, passando alguns contos tupis para a
secção de contos africanos; incluir no livro os Contos tupis de Couto de
Magalhães; e, por fim, escrever um prólogo “disparatado, inçado de erros
trapentos, em oposição absoluta aos meus próprios Estudos sobre a poesia
popular brasileira, que são o manancial onde o compilador açoriano foi
beber o poucochinho que sabe sobre a literatura popular desta parte da
América”. Tratar-se-ia, em suma, de um “flagrante delito de charlataneria
literária” (235).
Na verdade, o próprio Teófilo admitia a modificação de partes do
texto de Romero. Ainda na primeira edição de Lisboa, em 1885, em nota de
rodapé, esclarece: “Modificamos neste ponto o plano do colector,

232
ROMERO, Silvio. Contos populares do Brasil. Coligidos pelo Dr. Silvio Romero; com um
estudo preliminar e notas comparativas por Teófilo Braga. Lisboa: Nova Livraria Internacional,
1ª edição, 1885.
233
BRAGA, Teófilo. Contos Tradicionais do Povo Português. Vol. 1. Lisboa: Dom Quixote,
1883.
234
ROMERO, Sílvio. Uma Esperteza. Os Cantos e Contos Populares do Brasil e o Sr. Teófilo
Braga. Protesto. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola, de Serafim José Alves, 1887.
235
Idem, ibidem, p.11-13.
108
completando a representação dos elementos étnicos do Brasil com o que
actualmente se conhece de tradições dos indígenas” (236). O contraste entre
a virulência da acusação e o que parece ser a assunção pública dessas
interferências textuais, não pode deixar de sugerir que as discordâncias
podiam estar localizadas em ordem mais profunda. O fato é que a polêmica
estava instalada, ainda que a resposta formal de Teófilo Braga tenha
demorado alguns anos.
Treze anos depois da publicação, por Romero, de Uma Esperteza
(1887), Teófilo, em carta colocada em apêndice à obra O Sr. Sílvio Romero
e a Literatura Portuguesa, de seu discípulo Fran Paxeco (1900), faz a sua
declaração acerca do ocorrido (237). De posse de algumas cartas pessoais de
Carrilho Videira, Teófilo expõe as missivas que Romero tinha enviado ao
livreiro: uma carta datada de Novembro de 1882, onde agradece a Carrilho
Videira e Braga por “terem salvado das traças esta colecção” e outra, de 8
de Abril de 1884, onde Romero, segundo a transcrição de Teófilo, teria
pedido a Braga a redação do prefácio (o que Romero negava em Uma
Esperteza), bem como teria escrito que “a única colecção de mérito é a de
Teófilo”(238).
Para além da imputação mútua, um aspecto em aparência menor
deve ser sinalizado. Trata-se da presença, no campo da polêmica, da figura
do discípulo de um dos contendores. Vale a pena averiguar este ponto com
mais detalhe.

236
BRAGA, Teófilo. “Sobre a Novelística Brasileira”. In: ROMERO, Silvio. Contos populares
do Brasil. Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1ª edição, 1885, p.V.
237
BRAGA, Teófilo. “Carta de Teófilo Braga a Fran Paxeco”. In: PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio
Romero e a Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces.,
1900.
238
Informações retiradas da Carta de Teófilo Braga. In: PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero e
a Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900,
p.194-195.
109
3.1.3. Foi Fran Paxeco – e isto diz o próprio Teófilo – quem deu notícia
sobre a obra romeriana Uma Esperteza, sendo ele também quem teria lhe
enviado a mesma (239). E, de acordo com a mesma fonte, a carta-resposta a
Romero foi escrita especificamente a pedido e para constar no livro de Fran
Paxeco. Acresce que, nesse seu livro – o citado O Sr. Silvio Romero e a
Literatura Portuguesa – , Paxeco intensifica o tom de acusações e ofensas
pessoais direcionadas a Romero (240): na maioria das vezes, considerando
que o brasileiro não gosta de Teófilo simplesmente por este ser português.
Assevera, enfim, que o “crítico sergipano vota um ódio de morte a todos os
vultos literários da velha Lusitânia; e essa ojeriza, sem razão de ser, leva-o
às vezes a afirmar certas proposições absurdas e paradoxais” (241).
Definitivamente Fran Paxeco entrava polêmica. Para nós, o interesse
em sua figura é justo este: o de ser um indicador precioso da constituição
de grupos congregados em torno de Teófilo e Romero e de manifestar,
nesse alinhamento, círculos de influência que alargavam o alcance da
polêmica luso-brasileira. Não no sentido em que os grupos circundantes da
polêmica reproduzissem, cada um deles, a escala nacional do respectivo
mestre, o quem nem sequer fora mencionado, mas no sentido em que esses
alinhamentos eram alheios à lógica nacional, antes parecendo constituir-se
à escala transnacional luso-brasileira. Melhor se compreenderá esta ideia,
tendo por referência a dedicatória feita por Paxeco – que era cônsul
português – no seu citado livro: “à memória de Adolfo Caminha”, à
Teixeira Mendes, “o maior pensador que o Brasil produziu até hoje”, e à

239
A informação é confirmada, por exemplo, nas cartas de Teófilo para Paxeco de 01/07/1900 e
26/01/1901. Ver PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo Braga (com um definitivo trecho
autobiográfico do Mestre e duas «confissões» de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924.
240
“Uma cabaça – eis o que é a cabeça de Sílvio! E, como tal, cremos ser efectivamente a
primacial do Brasil, por ser precisamente a mais oca”, PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero e a
Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900, p.13.
241
PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero e a Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P.
Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900, p.89.
110
Júlio de Castilhos, “o primeiro entre os primeiros estadistas brasileiros, em
todos os tempos”… (242).
Logo após a publicação da carta-resposta (em apêndice à obra de
Fran Paxeco), Sílvio Romero não se demora em dar-lhe uma réplica. Leva
à estampa, em 1904, Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga) (243). Ao
contrário do modelo seguido na edição de Uma Esperteza, e como que em
colagem formal à carta de Teófilo, esta réplica de Sílvio Romero veio
precedida de um estudo introdutório, intitulado “Duas Palavras”, assinado
por Augusto Franco (244). Neste texto introdutório, Franco ataca
diretamente Fran Paxeco, censurando seu “vocabulário repelente e nojento”
e “próprio de lupanares”, usado para “agredir garotamente a vultos tão
brilhantes das letras brasileiras”. Por isso, diz ainda, “nem Silvio Romero,
nem qualquer outro tão canalhamente insultado por Fran Paxeco, lhe
respondeu as chalaças, nem as responderá jamais, porque, aqui, se não dá
pasto” (245).
Não responderia mesmo, pelo menos diretamente. Porque se tratava
de “questão particular, que debato com o Sr. Teófilo Braga”, diria Sílvio
Romero. Precisando a sua postura, declara: “o meu debate é com o Sr.
Teófilo Braga e só com ele” (246). Naturalmente. A disputa alinhavava
facções, mas também hierarquizava fidelidades: ao nível de Sílvio Romero

242
Idem, ibidem, folha de rosto.
243
ROMERO, Silvio. Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga). Publicação dirigida por Augusto
Franco. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1904.
244
Augusto Franco foi crítico literário em Minas Gerais. Sob o pseudónimo “Aufra”, assinava
crônicas nos jornais Correio de Minas e Jornal do Comércio, em Juiz de Fora. Ver NOBREGA,
Dormevilly. Prosadores. Colectânea. Vol. 1. Juiz de Fora: Fundação Cultural Alfredo Lage,
1982, p.99-100.
245
FRANCO, Augusto. “Duas Palavras”. In. ROMERO, Silvio. Passe Recibo (Réplica a Teófilo
Braga). Publicação dirigida por Augusto Franco. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado
de Minas Gerais, 1904, p.10-11.
246
ROMERO, Silvio. Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga). Publicação dirigida por Augusto
Franco. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1904, folha de rosto,
p.22.
111
está Teófilo Braga e, abaixo deles, na condição de discípulos e
divulgadores, estão Fran Paxeco e Augusto Franco.
Fran Paxeco é, junto com Teixeira Bastos, um dos principais
seguidores de Teófilo Braga. A análise de seus livros é importante no
sentido de melhor entender a divulgação e a recepção da obra de Teófilo no
Brasil (247) Como cônsul português, editou vários textos na defesa e
divulgação de seu mestre, além de informá-lo sobre a recepção e discussão
de seus livros no Brasil. De suas obras, merece destaque, além de O Sr.
Sílvio Romero e a Literatura Brasileira, editada no Maranhão, em 1900,
seu importante livro Teófilo no Brasil, editado em Lisboa, em 1917. Fran
Paxeco comportava-se praticamente como um defensor dos interesses
portugueses no Brasil, organizando, nesse foro, cerimônias em homenagem
a Teófilo Braga (248). Por isso, não surpreende que tenha tomado parte na
polêmica através de insultos e críticas demolidoras.
Em paralelo temos o referido Augusto Franco: crítico literário
mineiro e admirador de Romero. Em sua coluna no Jornal do Comércio, de
Juiz de Fora, entra em choque com Teófilo, em matéria publicada por
ocasião das cerimónias em homenagem ao 259º aniversário da restauração
da independência portuguesa (também 7º aniversário da Real Sociedade
Auxiliadora Portuguesa da cidade). Neste texto, Augusto Franco, assinando
pelo pseudónimo Aufra, relata que Zeferino Cândido, jornalista
homenageado na cerimônia, lhe havia contado o seguinte acontecimento:
“foi o caso que, tendo falecido o profundo investigador da História de
Portugal [Alexandre Herculano], Th. Braga se dirigiu ao Dr. Zeferino e

247
Conforme carta de 14/11/1901, onde Braga agradece a Paxeco por este se prontificar a
“cumprir a missão de Teixeira Bastos” na divulgação de sua obra. In: PAXECO, Fran. Cartas
de Teófilo Braga (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas «confissões» de
Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.48-51.
248
Como atesta carta de 12/10/1900 de Teófilo Braga, onde ele agradece Fran Paxeco pela
homenagem recebida do Centro Caixeral do Maranhão, em cerimónia realizada em 28/07/1900.
In: PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo Braga (com um definitivo trecho autobiográfico do
Mestre e duas «confissões» de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.24-28.
112
pronunciou mais ou menos estas palavras interrogativas e decisivas: – Sabe
quem morreu? O Herculano, aquele adulador (!)… A resposta foi um
tabefe tão bem puxado e certeiro que deitou Braga por terra»” (249). Pouco
mais de três meses depois, Augusto Franco publicava em sua coluna uma
carta-resposta de Teófilo Braga – carta enviada a Eugênio Silveira, diretor
da União Portuguesa – na qual o autor português faz referência à coluna de
Augusto Franco no Jornal do Comércio, que lera em Lisboa. Teófilo, além
de negar o relatado naquele jornal de Juiz de Fora, afirma que “bordar
sobre isso lendas de boémia literária a que nunca pertenci, é de uma
infelicidade que raiva pela imbecilidade” (250).
A polêmica, portanto, ganhava abrangência à medida em que
autores de segunda linha tomavam partido, engrossando os circuitos do
debate. Por outro lado, essa abrangência era ainda incrementada por outra
via: a dos próprios referenciais teóricos manejados por cada um dos
autores, os quais buscavam, tanto quanto possível, estribar os seus
raciocínios e as suas posições na palavra de intelectuais de reconhecida
compaginação com a sua parte ou de reconhecida incompatibilidade
analítica com a parte contrária. Assim se explica, por exemplo, que Silvio
Romero tenha dedicado a Herculano e a Antero de Quental a publicação de
sua obra A Pátria Portuguesa, o território e a raça, onde critica fortemente
a tese de Teófilo Braga sobre a formação da nacionalidade portuguesa (251),
quando era sabido que tanto Antero como Herculano haviam também
polemizado com Teófilo Braga. O alargamento da facção romeriana
estendia-se ao espaço cultural português, incorporando na polêmica, desse
modo, linhas de fratura já constituídas à escala lusitana.

249
Jornal do Comércio, Juiz de Fora/MG, 02/12/1899, p.1.
250
Jornal do Comércio, Juiz de Fora/MG, 15/02/1900, p.1.
251
ROMERO, Silvio. A Pátria Portuguesa, o território e a Raça. Apreciação do livro de igual
título de Teófilo Braga. Lisboa. Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1906. Teófilo
Braga defendia a pertinência do critério racial na compreensão da nacionalidade portuguesa.
Contra ele, polemizou Herculano e, principalmente, Oliveira Martins.
113
Por fim, vale evocar a facilidade com que as etapas da polêmica
deslizavam para as páginas de órgãos de divulgação extrínsecos quer a
Portugal quer ao Brasil. Há temos registro de ecos em revistas francesas,
italianas e espanholas, conhecidas pelos opositores (252). Assim, podemos
ter uma noção aproximada da extensão atingida pela querela. O que obriga
a equacionar a questão do debate mais profundo e da razão teórica
subjacente à polêmica. Ora, essa razão coincidia com a definição
cientificamente instruída de uma escala nacional de referência e dos
critérios para demarcá-la. Desembocamos, pois, no problema da
originalidade, verdadeiro epicentro da disputa.

3.1.4. A despeito da intensidade da polêmica, os pólos desavindos


pisavam terreno comum. Sua intersecção era ditada por uma mesma
perspectiva cientista do estudo das histórias e culturas nacionais, pela
comum importância concedida à elaboração de uma História da Literatura
nacional, a qual, no âmbito do cientismo historiográfico (253), era tida por
prova factual da sedimentação étnica e moral ao longo das épocas de
formação da nacionalidade, tornando-se a sua âncora epistêmica.
Afinidades elementares, portanto. O que não espanta. Afinal, só em função
de alguma comunhão de perspectivas se compreende o projcto conjunto
luso-brasileiro da Revista de Estudos Livres, que tinha como missão “reatar

252
Tanto Romero quanto Teófilo, em suas réplicas e tréplicas, mencionam informações tiradas,
estritamente acerca dos textos um do outro, de fontes outras que não as brasileiras nem
portuguesas. Considera Romero: “falo ao meu país e o faço provocado por uma revista
espanhola de Sevilha – Boletin Folklórico Español, que não sabendo dos factos, bateu palmas às
escamoteações do professor açoriano”. Menciona ainda a revista Polyblion, de Paris. Por sua
vez, Teófilo afirma que “por alguns compte-rendu, publicados em revistas francesas e italianas,
em 1887, é que soube da existência do livro do Sr. Sílvio Romero – Uma Esperteza”.
ROMERO, Silvio. Uma Esperteza. Os Cantos e Contos Populares do Brasil e o Sr. Teófilo
Braga. Protesto. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola, de Serafim José Alves, 1887, p.13 e
BRAGA, Teófilo. Carta de Teófilo Braga In: PAXECO, Fran. PAXECO, Fran. Cartas de
Teófilo Braga (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas «confissões» de
Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.191.
253
Sobre cientismo e história, consultar CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história.
Coimbra: Quarteto, 2003.
114
a aliança mental luso-brasileira” e que é precisamente apadrinhado por
Sílvio Romero e por Teófilo Braga (com Teixeira Bastos e Carlos von
Koseritz).
O reconhecimento da mútua pertença a um mesmo universo de
referências teórico-científicas explica a posição da obra de Carlos von
Koseritz polêmica entre Romero e Braga. Registre-se que Koseritz – um
dinâmico divulgador das ideias evolucionistas e cientistas no Rio Grande
do Sul –, surge com frequência junto de ambos os autores em conflito, quer
genericamente no âmbito da cruzada antimetafísica, quer especificamente
no quadro da direção da Revista de Estudos Livres. Não surpreende, pois,
que o encontremos ao lado de Romero (e de Tobias Barreto) em defesa da
institucionalização das peculiaridades filosóficas brasileiras – Koseritz foi
o primeiro editor de Romero no Brasil –, tal como não surpreende que o
encontremos em cúmplicidade com Teófilo, a quem agradece “um juízo
crítico de inestimável valor, a um pequeno e pouco importante trabalho,
como os modestos Bosquejos etnológicos”(254).
Com base nesta movimentação de Koseritz no seio de uma escala
teórica comum a ambos os polemizadores, compreende-se que sua obra
Bosquejos etnológicos (255) apareça como um estudo que interessava tanto
ao português açoriano como ao brasileiro sergipano. É que a coletânea de
dados arqueológicos e etnológicos realizada por ele (256) tinha papel
importante na definição da ação portuguesa no contato com os índios
brasileiros – e assim propiciava alguns elementos para a definição das
características da lusitanidade, que interessava Teófilo –, bem como tinha
254
Carta de Koseritz a Teófilo de 22/12/1884. In: Quarenta Anos de Vida Literária 1860-1900)
– Cartas a Teófilo Braga, com um prólogo “Autobiografia mental de um pensador isolado”.
Lisboa: Tipografia Lusitana – Editora Artur Brandão, 1902, p.210-211. Registe-se que Koseritz
teve também A Terra e o Homem à luz da Ciência Moderna resenhada, por Teixeira Bastos, nas
páginas da Revista de Estudos Livres.
255
Está acessível ao público parte dos Bosquejos etnológicos, no volume organizado por René
Gertz. Karl von Koseritz: seleção de textos. Porto Alegre: Edipucrs (Coleção Pensadores
Gaúchos), 1999.
256
A colecção foi praticamente destruída durante a exposição brasileiro-alemã, em 1881.
115
relevo para Silvio Romero, no sentido de determinar a genuinidade do tipo
nacional brasileiro, nomeadamente no que diz respeito às influências
indígenas.
Ou seja, a avaliar pela atitude tomada por cada um deles em relação à
obra de Koseritz, é possível sustentar que Romero e Teófilo se moviam de
acordo com preocupações comuns e visavam um comum objeto teórico.
Por mais paradoxal que pareça, será justamente esta comunhão de objetivos
o que vai ditar o surgimento das altercações. Exemplo disto foi a disputa
que levantada entre os dois a propósito do acesso ao material de pesquisa
de Koseritz, obviamente do interesse de ambos: para Teófilo, Romero ter-
se-ia apropriado desse acervo; para Romero, Koseritz, como seu amigo que
era, cedera-lhe o material. A comunhão entre os dois é detectável no plano
dos pressupostos – a necessidade de trabalhar de acordo com os postulados
da ciência positiva – e no plano dos objectivos – a definição das
características prototípicas das respectivas culturas nacionais. Ela cessa,
contudo, no plano do investimento interpretativo. Porque era aí que,
colocando-se a questão da demarcação entre as culturas brasileira e
portuguesa, colocava-se também o problema da primazia, da dívida, da
herança, da diferença. Numa palavra: despoletava-se questão da
originalidade. E, a este nível, deslocada a problemática para a escala do
relacionamento intercultural, resultava inquestionável que as opiniões de
um dos autores interferiam diretamente sobre o edifício teórico do outro.
Assim, a comunhão cedia lugar à concorrência.
A temática da originalidade, na verdade, já estava em evidência
desde o primeiro artigo de Romero na Revista Brasileira, em 1879. Neste
texto, recorde-se, é dito que “uma nação se define e individualiza quanto
mais se afasta pela história, do carácter das raças que a constituíram, e
imprime um cunho peculiar à sua mentalidade”, e que “a nação brasileira,
se tem um papel histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais

116
separar-se do negro africano, do selvagem tupi e do aventureiro português”
(257). Desde esse texto processa-se como que um amadurecimento
intelectual da perspectiva nacionalista romeriana, fundado, em grande
parte, nos estudos sobre a literatura nacional. É crível que o papel atribuído
ao mestiço na sua ideia da nacionalidade brasileira seja concebido neste
contexto. Afinal, Romero justifica que em sua busca pelo caráter do
genuíno nacional, nunca conseguiu entrar em contacto com um elemento
puro das etnias que formaram o povo brasileiro. Nem índios, nem negros,
nem portugueses restaram incólumes ao contato. Frente ao choque de
culturas que o experimento colonial português fomentou, não restou
nenhuma ontologia étnica intacta. Daí o recurso à mestiçagem como a nova
e original ontologia da nação brasileira. Entende-se, assim, que ele escreva,
em 1883, que o transformismo é “a lei que rege a história brasileira” (258),
ideia que lhe permite sustentar, de alguma maneira, a noção da mestiçagem
(259). Ententende-se, assim, que na sua principal obra – História da
Literatura Brasileira, editada depois do início da polémica, em 1888 –,
Silvio Romero profira a sentença que já citamos e que resume seu
pensamento: “todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas
ideias” (260).
O que se deve perguntar, agora, é em que medida seu projeto
poderia estar ameaçados pela ação de Teófilo Braga. No momento em que

257
ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In:
Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.273-
274.
258
ROMERO, Sílvio. “Modernas Escolas Literárias”. In: Estudos de Literatura
Contemporânea. Edição Comemorativa. Organização de Luiz António Barreto. Rio de Janeiro:
Imago, 2002, p.69.
259
Para Romero, entenda-se, a mestiçagem é o resultado da acção da história no Brasil, não
sendo, por isso, fruto exclusivo da determinação do território. É pelo contacto social, advindo da
história colonial, que o mestiço aparece como força nacional. É nesse ponto que Romero
discorda de Araripe Júnior e com ele também polemiza. A mestiçagem de Romero é resultado
histórico, o tropicalismo de Araripe Júnior é determinado pela natureza.
260
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora. Colecção Documentos brasileiros, dirigida por Octávio Tarquínio de Sousa. 3ª
Edição organizada e prefaciada por Nelson Romero, [1888] 1943, p.30-40.
117
a polêmica com Silvio se intensifica, desde há muito Teófilo andava às
voltas com a questão da originalidade portuguesa no âmbito das nações da
Península Ibérica. Por exemplo, em 1871, publica Epopeia da Raça
Moçárabe, aonde vai defender que a nacionalidade portuguesa justifica
racialmente a existência de Portugal como nação. Nesta sua diatribe, o
moçárabe é apresentado, praticamente, como um “mestiço” – oriundo do
contato entre raças góticas e árabes na faixa de território mais ocidental da
Península Ibérica (261). Por isso, em 1908, em conferência na Academia das
Ciências de Portugal, afirma ter Portugal “originalíssima personalidade”
(262). Veja-se, então, a presumível angústia de Silvio Romero: se o
português moçárabe também mestiço fosse, logo, o brasileiro mestiço seria
apenas um herdeiro das características mais peculiares do português. Não
se distanciaria de Portugal. Não fundamentaria a cultura brasileira. E,
retirando ao seu mestiço brasileiro a originalidade histórica, ele perderia
sua razão de ser. Comprometida ficaria a fundamentação da soberania
cultural brasileira.
O que nos leva à seguinte consideração: a posição na cultura
nacional ocupada pelo mestiço, na ideia de cultura brasileira de Silvio
Romero, é análoga à ocupada pelo moçárabe, na noção de cultura
portuguesa de Teófilo Braga. O problema está em que, ao admitir-se a
mistura racial como característica lusitana, tudo o que se disser sobre a
mestiçagem racial brasileira terá, necessariamente, relação íntima com

261
“Aqui dá-se um curioso fenómeno etnográfico: aparecem as designações geográficas, os
nomes de família, a nomeclatura tecnológica, os característicos das autoridades políticas e civis
árabes; mas os símbolos poéticos do direito, as tradições épicas, as lendas orais, as superstições
são puramente germânicas. Por esta ordem de criações da raça moçárabe se vê a sua
constituição fisiológica. Como indomável, o semita cede aquelas qualidades exteriores e visíveis
de uma civilização que deslumbra, mas não comunica os sentimentos privativos e orgânicos da
raça; por outro lado o godo, como ariano e atraente, não podendo homologar a alma árabe,
adopta dela aquilo que se não pode encobrir aos olhos. A designação do Moçárabe, encerra esta
noção perfeitamente definida”. BRAGA, Teófilo. Epopeia da Raça Moçárabe. Imprensa
Portuguesa Editora, 1871, p.25-26.
262
BRAGA, Teófilo. “Plano para a História de Portugal”. Antelóquio a PAXECO, Fran.
Portugal não é Ibérico. Lisboa: Livraria Rodrigues, 1932, p.6-7.
118
Portugal. A polêmica e a virulência das acusações trocadas são, assim,
filhas de uma luta pela originalidade num complexo processo de
redefinição de fronteiras memoriais, aonde a assunção da escala nacional,
como referência analítica, possui papel primordial. Trata-se de um processo
marcado por “um significativo potencial de turbulência, na medida em que
a historicidade inscrita em assuntos de limites e demarcações fomenta, por
si só, a coexistência de memórias não coincidentes sobre [as modalidades
de definição] desses limites” (263).
Afinal, a palavra original tem duplo sentido: um, relativo à origem,
que remete à ideia de início; outro, relativo à noção de inédito, que não foi
copiado de nenhum modelo. Por isso a guerra simbólica pelo critério de
originalidade se revela tão importante. Em última instância, a querela dos
originais punha em evidência a “nação” como critério histórico,
redefinindo, dessa maneira, as modalidades de relacionamento entre as
culturas de Portugal e do Brasil. Por vezes, essa redefinição ocorreu ao
sabor de estratégias de dissensão. Foi o que vimos. Outras vezes essa
mesma redefinição promoveu estratégias de consenso. É o que passamos a
abordar.

3.2 A linha do consenso, ou a ambição do comemoracionismo.

As comemorações camonianas de 1880 são exemplificativas do que


Fernando Catroga chamou uma “liturgia de fundo historicista”. Como ele
mesmo diz, o investimento comemorativo assenta em um “tempo
acumulativo característico das concepções evolutivas da história”, onde o
futuro representa o desenvolvimento “das potencialidades do passado, e o

263
MARTINS, Rui Cunha. “A Arena da história ou Labirinto do Estado? Delimitações
intermunicipais e memórias concorrenciais nos inícios do século XX”. Cadernos do Noroeste.
15 (1-29), 2001, p.38.
119
paradigma dos «grandes mortos» devia funcionar como farol a sinalizar a
marcha do devir”. As festas cívicas, assim, representam “autênticas lições
móveis de história. Com elas, procurava-se invocar o passado e suscitar a
emergência do invisível como arquétipo paradigmático, epifania que, em
analogia funcional com as religiões propriamente ditas, se manifestava num
espectáculo cheio de simbologia e de emotividade, criador de um clima
adequado ao reforço da ligação dos indivíduos a uma totalidade que os
integrasse e motivasse” (264). Pensadas, portanto, como modalidade de
incorporação dos indivíduos, as comemorações convocam um problema
correlato: da escala da incorporação, isto é, o da decisão sobre a totalidade
produtora de sentido à qual é suposto reportar-se cada participante da
festividade. E se nem sempre há acordo, é justamente em virtude do
potencial de consensso que se reconhece ao espírito comemorativo e que,
suscitando resistências a uns (através de polêmicas), se oferece a outros
como pretexto para a reinvenção de uma unidade de pertença à escala
comemorada. No nosso caso concreto, estão neste segundo caso todos
aqueles que fizeram da festa camoniana um pretexto para refundar as
culturas portuguesa e brasileira nos termos de uma escala cultural luso-
brasileira.

3.2.1. A escolha de Camões – ao ser determinada pela associação do poeta


a um período áureo da evolução histórica portuguesa e pelo
reconhecimento da sua figura como expoente lusitano para o progresso da
humanidade – confere à festa o caráter de “revivescência nacional”. Foi
isto mesmo o que disseram-no, de forma convicta, os intelectuais
contemporâneos do evento. Teófilo, por exemplo, ciente como estava de
que “toda a grandeza e sumptuosidade que se desenvolver adquire uma
264
CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história”. In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José
Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. Volume
II. Coimbra: Temas e Debates, 1998, p.223-224.
120
significação mais profunda, não só em relação ao lugar que nos compete na
história da civilização, como nos acidentes que envolverem o futuro da
nossa nacionalidade” (265). Júlio de Mattos, por sua vez, consciente da “alta
significação política” da homenagem a Camões, saudava-o para “lavrar um
protesto contra a atonia em que nos lançaram o elemento clerical e o
elemento monárquico”, e para “declarar que entramos na fase consciente da
política democrática” (266). No fundo, estas e outras intervenções
confirmam um dos aspectos da comemoração, a saber: a mobilização de
critérios políticos do presente na altura de depurar seletivamente o passado
e as suas figuras emblemáticas, disponibilizando-os para sua utilização para
fins celebratórios e para a construção de novas hagiografias nacionais.
Disto resultam duas noções fundamentais para uma adequada
compreensão das comemorações cívicas: a de “grande homem”, enquanto
encarnação simbólica da história nacional; e a de “humanidade”, entendida
como o grande sujeito de uma modernidade evoluente, sempre em direcção
à maior perfectibilidade. Bem vistas as coisas, estes dois elementos de
liturgia cívica são quase que duas faces simbólicas de uma mesma moeda
temporal. Afinal, “na obra do «grande homem», é a história que se revela,
pelo que a aferição da sua magnitude pertencerá à posteridade, quer dizer,
ao momento futuro de que ele mesmo terá sido o primeiro dos
precursores”, sendo que esta concepção da história está intimamente
vinculada à apreciação de um movimento teleológico que tem na
“humanidade” a sua escala referencial primeira. A tendência à perfeição da

265
BRAGA, Teófilo. “O Centenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia.
Segundo Ano, n.1, outubro/novembro , 1879, p.2-3.
266
MATTOS, Júlio de. “A significação filosófica e social das festas do Tricentenário de
Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.5, Junho/Junho, 1880, p.399.
121
humanidade é reflectida também como uma antropodiceia de dimensão
épica (267).
Interessa-nos especialmente este “salto” epistêmico entre
individualidade e humanidade. É certo que sua efetivação não brigava,
muito pelo contrário, com os pressupostos teóricos da comemoração. Isto
explica Júlio de Mattos, em discurso pronunciado no teatro de S. João, na
manhã do dia 10 de Junho de 1880, na abertura da sessão solene dos
académicos do Porto: “dizer que a humanidade inteira realiza a sua marcha
progressiva como se fora um homem só que subsistisse e aprendesse
sempre, vale o mesmo que afirmar que as sociedades têm, como os
indivíduos, uma evolução determinada, prevista em muitos casos, superior
no fundo a todas as acções individuais que possam opor-se-lhe” (268).
Indiscutível seria, nesse sentido, a escolha de Camões: escolha “lógica,
nomeadamente após a sua mitificação romântica e a sua «democratização»
feita nos inícios dos anos 70 pelos estudos de Teófilo Braga e Oliveira
Martins”. O poeta simbolizava “tanto a Nação como a humanidade, ou
melhor, permitia reivindicar para a Nação uma parcela na construção da
marcha ascendente da humanidade, ao mesmo tempo que o seu canto das
glórias e as suas denúncias das vilezas passadas não deixavam de gerar
confrontações críticas em relação ao mundo de «apagada e vil tristeza» em
que Portugal se tinha transformado” (269). O que toma particular destaque,
para o nosso escopo, é o fato de esta perspectiva, ao permitir a assimilação
entre nacionalismo e cosmopolitismo no quadro do movimento

267
CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história” In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José
Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. Volume
II. [sem local] Temas e Debates, 1998, p.221.
268
MATTOS, Júlio de. “A significação filosófica e social das festas do Tricentenário de
Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.5, Junho/Junho, 1880, p.395-
399.
269
CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história” In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José
Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. Volume
II. [sem local] Temas e Debates, 1998, p.226.
122
comemorativo, permitir também a simultaneidade de diferentes escalas de
referência atuantes no contexto da festa cívica (270).
Efetivamente, como frisa Teófilo, joga-se na homenagem a Camões
o “futuro da humanidade, levando as nações da Europa a conhecerem as
suas origens étnicas, e a saberem explicar o seu passado”. Por isso, defende
inequivocamente que “o Centenário de Camões é também uma
comemoração europeia” (271). E não apenas europeia: o significado da
festividade e da própria escala comemorativa se estendia também ao Brasil.
Neste país, onde uma nova geração de intelectuais brasileiros –
“fortalecida”, segundo Teófilo, pela educação positiva e pelo critério
sociológico – rompia com a velha “hostilidade que uma política dinástica
de egoísmo assentou entre Portugueses e Brasileiros”. Isto tornava possível
restabelecer as “condições naturais da reciprocidade dos dois povos”,
apesar da existência de críticas e dissidências em relação aos festejos
camonianos no Brasil (272). O que fazia da magnitude destes festejos –
porque realizados no Brasil – era a expressão da “sociolatria” comtiana,
bem como uma manifestação a mais da “religião demonstrada” pela
cientificidade moderna. Porque, de acordo com este tipo de pensamento,
“só a ciência com as conclusões verificáveis é que consegue estabelecer

270
Como manifesta esta declaração de Teófilo Braga: “cada povo escolhe o génio que é a
síntese do seu carácter nacional, aquele que melhor exprimiu essas tendências, ou o que mais
serviu essa individualidade étnica; o vulto de Cervantes simbolizará em todos os tempos a
Espanha, como Voltaire representa em todas as suas manifestações o génio francês; Dante,
Petrarca e Miguel Ângelo para a Itália, Shakespeare ou Newton para a Inglaterra, Luthero e
Goëthe para a Alemanha, Espinosa para a Holanda, são os laços por onde estes povos,
mantendo o seu individualismo nacional, se prendem ao grande conflito da história como
esforços colectivos que conduziram para a noção da humanidade que se afirma”. BRAGA,
Teófilo. “O Centenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.1,
outubro/novembro, 1879, p.2.
271
Idem, ibidem, p.7.
272
Como foi o caso de um Araripe Júnior, para quem as comemorações “aviltavam o orgulho
nacional”.
123
uma verdadeira unanimidade” (273). O que quer dizer, no contexto
comemorativo, um verdadeiro consenso.
No âmbito desta procurada abrangência, é verosímil que a festa
camoniana ambicionasse algo mais do que o estabelecimento de um “novo
calendário nacional” português, perspectivando instaurar, igualmente, um
novo calendário transatlântico e, com ele, um novo padrão de
relacionamento luso-brasileiro. Conforme passamos a expor, há indicadores
nesse sentido: desde o programa dos festejos camonianos no Brasil ao
dinamismo parisiense de Miguel Lemos ou à significância do discurso de
Joaquim Nabuco, era sempre de um comemoracionismo luso-brasileiro que
se tratava.

3.2.2. Vejamos o caso de Miguel Lemos, intelectual brasileiro a


estudar em Paris. Segundo Teófilo Braga, “em Paris a festa do Centenário
de Camões foi sustentada (...) por brasileiros que ali seguem cursos
científicos”, assim garantindo um momento de “confraternidade dos dois
povos”. Verdadeiramente, foi à ação de Miguel Lemos que se deve a
iniciativa de “celebrar o terceiro centenário do ilustre cantor das glórias
portuguesas”. É o próprio quem afirma ter ele mesmo lembrado “ao Sr.
Laffitte a necessidade de se fazer alguma coisa neste sentido na Igreja
Parisiense”, logo se autopropondo para dinamizar um “trabalho de
apreciação sobre Camões e a nacionalidade portuguesa ” (274). Diante da
autorização concedida por Pierre Laffitte, Miguel Lemos teria escrito “ao
Sr. Teixeira Mendes fazendo-lhe ver a necessidade de promover essa
[comemoração] entre os brasileiros, para significar assim a reconciliação

273
BRAGA, Teófilo. “O Centenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia.
Segundo Ano, n.1, outubro/novembro , 1879, p.1
274
Explica Lemos: “uma moléstia inopinada impediu-me de cumprir este encargo, mas o
trabalho estava feito: foi primeiro publicado na Revue Occidentale e depois em volume”,
intitulado Luiz de Camões, e do qual nos ocuparemos a seguir. LEMOS, Miguel. Resumo
histórico do movimento positivista no Brasil. Rio de Janeiro: Sociedade Positivista, 1882, p.24.
124
definitiva da antiga colônia com a metrópole, reconciliação cujo verdadeiro
carácter só podia ser fornecido pela nova doutrina, que sabe fazer suceder
aos velhos ódios o vivo sentimento de continuidade histórica”. Segundo
ainda Miguel Lemos, Teixeira Mendes teria de pronto aceitado a ideia,
levando a cabo a empreitada com ajuda de alguns membros do jornalismo
(275).
Atentemos para a ideia de que as comemorações camonianas
representam a mobilização de um “sentimento de continuidade histórica”
(276). A continuidade histórica que Portugal e Brasil deveriam corporizar.
Justifica-se, assim, o prefácio feito ao trabalho de Miguel Lemos, Luiz de
Camões, onde se defende ser de suma utilidade que “la glorificcation du
meilleur type portugais soit faite à Paris, et soit faite par un Brésilien : il y

275
LEMOS, Miguel. Resumo histórico do movimento positivista no Brasil. Rio de Janeiro:
Sociedade Positivista, 1882, p.25. Grifo nosso.
276
Nesse sentido, vale a pena destacar mais detalhadamente a obra que Miguel Lemos escreveu
em Paris, em 1880, em homenagem ao autor dos Lusíadas. Importa ressaltar que esta obra foi
dedicada a Pierre Laffitte, enquanto “directeur du Positivisme, sucesseur d’Auguste Comte”,
numa clara alusão à vertente mais ortodoxa do positivismo, que remete para uma adesão acrítica
aos conhecimento propagados por Comte, bem como ao apostolado positivista da “religião da
humanidade”. A interpretação do positivismo foi diferente se compararmos os casos de Portugal
e Brasil, como será aclarado posteriormente neste trabalho. Nomeadamente Teófilo Braga,
Teixeira Bastos e Júlio de Mattos, para dar alguns exemplos, aceitaram com maior ardor a
primeira fase da obra comtiana, na época liderada por Émille Littré, e simbolizada pelo Curso
de Filosofia Positiva, de Augusto Comte, obra marcadamente experimentalista e materialista.
No caso brasileiro, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, os principais líderes do
movimento positivista nacional, acabaram por aderir com força aos preceitos da vertente mais
ortodoxa do positivismo, conduzida por Pierre Laffitte e bem simbolizada pelas últimas obras
de Comte, como Síntese Subjectiva ou Sistema Universal das Concepções Próprias ao Estado
Normal da Humanidade, texto claramente vinculado ao testamento do criador do positivismo.
De qualquer forma, é bom que se diga, parece que, no que concerne às comemorações
camonianas, a mobilização tanto das noções de “grande homem” quanto da escala filosófica da
“humanidade” como sujeito do progresso não parece ter tido grandes diferenças entre
portugueses e brasileiros ou entre heterodoxos ou ortodoxos positivistas. A este respeito,
frisamos, com Fernando Catroga, que “a diferença entre a ortodoxia comtiana e os seus
heterodoxos discípulos portugueses residiu, sobretudo, em aspectos dogmático-formais, já que
em todas as versões se detecta esta característica comum: o empenho na edificação de uma
galeria hagiográfica de «grandes homens» posta ao serviço do reforço de um novo consenso
social”. CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história” In: TORGAL, Luís Reis; MENDES,
José Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX.
Volume II. Coimbra: Temas e Debates, 1998, p.223-224.
125
aura lá une démonstration éclatante de l’universalité de la nouvelle religion,
qui glorifie les services des grands hommes de tous les pays”(277).
Na conjuntura da divulgação da filosofia positivista e do
movimento republicano – que, em 1880, era concomitante em Portugal e no
Brasil – é necessário, do ponto de vista positivista brasileiro, “renoncer aux
vieux préjugés contre la mère patrie”. Parte-se do pressuposto que
“sociologiquement partant, les Brésiliens sont Portugais : des liens
d’amours et de reconnaissance doivent nous rattacher éternellement à la
souche historique d’où nous provenons”. Afinal, “une nation qui ne se
reconnait pas d’antécédents est exposée à se dissoudre, et les appendices
américains de l’Occident ont besoin, pour échapper à ce danger, de relier
leur nassainte histoire aux tradition de leurs ancêtres et d’instituer, sous
l’inspiration de la vrai philosophie, le digne culte du passé nacional”(278).
Ora, fica evidente que, no intuito de restabelecer a “ordem” e cimentar o
“progresso”, os positivistas brasileiros, alimentados pelo ideal da
fraternidade universal positiva, julgam fundamental restabelecer os
vínculos com o “passado nacional”, e, assim, restabelecer a relação com
Portugal. Este processo tanto melhor seria desenvolvido se houvesse um
“grande homem” comum às duas nações de fala portuguesa, recordado
como símbolo do desenvolvimento da marcha evolutiva da humanidade e
do progresso. Camões enquadrava-se idealmente nesse pressuposto.
No intuito de criação de uma memória comum luso-brasileira,
Miguel Lemos reconhece a indispensabilidade de recorrer aos
ensinamentos de alguns intelectuais portugueses. Nesse sentido, dirá:
“j’adopte entièrement la dénomination qu’Herculano – un historien
portugais dont le nom reviendra souvent dans ces pages – appliqua un jour
aux produtions de l’anarchie scientifique de notre temps, à toutes ces

277
LEMOS, Miguel. Luiz de Camões. Paris: Siège Central du Positivisme, 1880, p.III.
278
Idem, ibidem, p.III-IV.
126
sciences nouvelles qui s’intitulent anthropologie, ethnographie, pré-
histoire, science des religion, etc., etc. Il appela tout ce fatras incohérent et
verbeux, un gongorisme scientifique. Le mot est heureux et mérite d’être
retenu”. Ora, importa realçar que, neste caso, a referência à obra de
Alexandre Herculano, e, sobretudo, às críticas ao que ele chamava de
“gongorismo científico”, tinham alvo certo: a vertente encabeçada por
Émile Littré que realçava um materialismo tout court. Tanto é que Miguel
Lemos logo se afadiga em demonstrar possuir “la plus grande sympathie
pour les écrivains qui, en Portugal ou ailleurs, battent vaillament en brèche
la vielle rhétorique et les vieux préjugés”, considerando que “les
positivistes ont le droit d’exiger que leur doctrine, à eux, ne soit pas
confundue avec ces élucubrations, qu’elle ne saurait patronner. Ces
prétendues sciences, conçue dans un sprit tout à fait contraire à la saine
philosophie, ne renferment en somme que des fragments détachés de la
sociologie et de la morale, et quelques documents susceptibles d’êtres
joints aux acquisitions concrètes” (279). Entretanto, a dívida para com o
historiador romântico Herculano não implica, da parte de Miguel Lemos, a
renúncia aos ensinamentos da geração de 1870 portuguesa. Como ele
mesmo salienta, se “dans la partie relative aux origines et à la formation du
Portugal, j’ai suivi, en le résumant parfois, le récit d’Herculano”, não omite
“la justesse partielle de certaines critiques récentes” – referindo-se
à História do Romantismo em Portugal, de Teófilo Braga, editada em
Lisboa, em 1880, bem como ao “mérito literário” de obras como a História
de Portugal de J.P. de Oliveira Martins, editada em 1879 (280).

279
Idem, ibidem, p.VII.
280
“En ce que concerne directemente la biographie de Camões, je tiens à déclarer que je me
suivi servi surtout des derniers travaux de MM. Juromenha et Theophilo Braga, sans négliger
cependant de prendre connaissance de toute la série des travaux antérieurs ; ceci m’a été facile,
grâce aux richesse mises libéralement à la disposition du public par la Bibliothèque nationale”.
LEMOS, Miguel. Luiz de Camões. Paris: Siège Central du Positivisme, 1880, p.VIII.
127
Do nosso ponto de vista, estes breves excertos são suficientes para
fazer notar o seguinte: que, se no comemoracionismo português a escolha
do poeta surgia como absolutamente natural – sobretudo após sua
depuração, primeiro romântica e depois teofiliana e martiniana (281) –,
também no escopo do comemoracionismo brasileiro as obras destes autores
constituem referência incontornável na hora de sustentar o lugar tópico da
lusitanidade no seio da evolução histórica a ser celebrada. Visivelmente a
festa camoniana consolidava o entendimento relacional das culturas
portuguesa e brasileira, sugerindo uma característica de base comum e
cientificamente recuperada, representando uma fase pós-preconceituosa do
relacionamento luso-brasileiro. Como se verá, a programação do evento
reflete essa leitura.

3.2.3. Voltemos às festas propriamente ditas. Mais especificamente ao


programa brasileiro. Temos conhecimento de eventos comemorativos em
homenagem ao autor de Os Lusíadas em várias regiões do Brasil, dentre as
quais Pernambuco, Bahía, São Paulo e Rio Grande do Sul. Destaca-se,
porém, os festejos ocorridos no Rio de Janeiro (282). No dia 10 de Junho, no
Teatro Ginásio desta cidade, as comemorações iniciaram com a execução
do hino português. Em seguida, Raimundo Teixeira Mendes realiza um
discurso monumental sobre a compreensão histórica de Camões entre os
grandes tipos da humanidade. Para além do hino português, também foram
tocados, nessa ocasião, trechos da Semiramis, da Africana, e do Guarani,

281
Assim, vemos Miguel Lemos a ecoar a tese iberista de Oliveira Martins sobre a formação de
Portugal, reafirmando que “Tout en conservant des caractères communs avec la population
espagnole, les Portugais par une suite de modifications politiques et sociales, arrivèrent à un état
complet de différentiation nationale” e que “il faut l’accepter comme un des résultats
fondamentaux de l’évolution ibérique et comme un cas anticipé de l’avenir normal où les
grandes nationalités actuelles, pour obéir aux besoins d’un régime industriel et pacifique, se
résourdront en un certain nombre de petites patries qui se suffiront à elles-mèmes, comme le
Portugal, la Hollande, la Suisse et la Belgique”. Idem, ibidem, p.276-277.
282
JOÂO, Maria Isabel, “Percursos da Memória: centenários portugueses no século XIX”. In:
Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas. Nº 8, Janeiro/Março de 2000.
128
completando musicalmente a cena numa claramente menção sonora à
compreensão da “cultura” pelo critério da mestiçagem, bem como
referenciando que esta deu-se em consonância com o mito das três raças.
A agenda detalhada e os pormenores descritivos do programa
comemorativo não nos interessam de todo – apesar do entusiasmado regitro
de Teófilo Braga (283). Limitemo-nos a reter, a partir das suas informações,
terem sido igualmente significativas “as festas do Centenário de Camões
em São Paulo”, levados à cargo pela “iniciativa de um grupo de
positivistas”. Segundo ele, entretanto, uma das vertentes mais auspiciosas
das comemorações terá sido a realização de uma exposição camoniana, na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro que reuniu “quatrocentos e oitenta
produções diversas, edições, traduções, estudos críticos e trabalhos
artísticos de primeira raridade”. Uma esmagadora exibição cujo sentido não
era difícil de descortinar. Conforme o discurso de abertura da exposição, a
cargo do Dr. Ramiz Galvão, bibliotecário e organizador da mostra, é
salientado que “a duas mil léguas de Lisboa, nesta generosa terra
americana, uma geração se levanta para saudar o Centenário do Poeta, que

283
Segundo Teófilo, “o palco do teatro estava armado em templo com colunas greco-romanas,
que simbolizavam as duas civilizações iniciadoras da época da Renascença a que Camões
pertence. As civilizações orientais estavam representadas por duas Esfinges, bem como por mais
outras duas que representavam a civilização do Egipto. O escudo de Camões dominava todo o
templo, e nele sobressaíam as águias romanas, símbolo da civilização que se desdobrou nas
línguas, literaturas e nacionalidades do ocidente. A continuidade humana do passado estava
representada por bandeiras que ornavam o teatro; uma, alusiva aos povos pré-históricos, tinha
ao centro um lar, significando a descoberta do fogo; ao lado machados de pedra e de bronze,
figurando as épocas antropológicas; a outro lado, flechas, dardos, representando o nomadismo
da caça e da guerra; amimais domésticos, significando a vida pastoral, e a sua cooperação na
luta do homem pela existência; finalmente espigas de milho, como iniciação do período
agrícola. Em outra bandeira, estavam simbolizadas as teocracias antigas pelas pirâmides
egípcias; o politeísmo e a arte helénica pelo frontão de um templo grego; e a unidade política
pelas guerras civilizadoras por meio das águias romanas. Os povos modernos estavam
representados pelos seus pavilhões, sobressaindo os de Portugal e Brasil. A época dos
descobrimentos estava representada por colunas alusivas à África, Ásia e América, cooperando
para este sentimento da vida do passado as manifestações artísticas que inspiraram Mayerbeer
na Africana, e o brasileiro Carlos Gomes no Guarani. O povo ama o que compreende; foi essa
por isso uma das manifestações mais concorridas”. BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões
no Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880,
p.513-514.
129
não cantou só as glórias do pátrio ninho, – mas uma página brilhante da
história da humanidade, que não é tesouro de um século, de um povo, de
um vate, de uma língua, mas tesouro de todos os tempos e de todos os
lugares” (284). Para Teófilo “tudo quanto havia para avivar a tradição da
nacionalidade portuguesa ali estava disposto com grande alcance histórico
e filosófico. Ninguém entrou naquele santuário que não trouxesse uma mais
elevada compreensão da solidariedade humana, e novos impulsos
altruístas” (285).
Por seu turno, as festas organizadas pelo Gabinete Português de
Leitura do Rio de Janeiro são, para Teófilo, impossíveis de descrever “sem
uma enchente de lágrimas”. Primeiro, pela mera existência do Gabinete
Português de Leitura, fundado em 1837 (e dotado de novo e suntuoso
edifício) tece “o poder espiritual de congregar todas as forças do Brasil,

284
É minuciosa a descrição que Teófilo Braga faz das festas realizadas no Rio de Janeiro. Eis
um exemplo: “O átrio da Biblioteca e o primeiro lanço da escadaria estavam adornados por
palmeiras aparecendo em frente o busto de Camões, em terracóta bronzeada, do escultor francês
Augusto Taunay. A porta do centro, do segundo lanço da escada, dava entrada para a sala da
Exposição maravilhosamente adornada. Na parede esquerda, forrada de colchas de seda da
Índia, dentre um maciço de verdura, destacava-se o grande busto de Camões, em gesso, obra do
professor da Académia de Belas Artes, Chaves Pinheiro; ao lado dois gigantes vasos da Índia
cheios de flores; junto da janela estavam duas cadeiras de espaldar, tauxiadas, exemplares
perfeitos do estilo antigo. Nesta mesma parede estavam expostos, os quadros de Inês de Castro
implorando a clemência do rei, de Vieira Portuense, um Retracto de Camões por Moraux, uma
cópia de um antigo retrato de Inês de Castro, e outro quadro de Vieira Portuense, O
Desembarque dos Portugueses em Moçambique. Na parede da direita da sala, estabam expostos
os quadros da Ilha dos Amores, de C. Markó, Camões e o Jaú, na Igreja de Santa Anna, por
Léon Moreax, e o Naufrágio de Camões, por De Martino; a outra lado desta mesma parede
estava uma cópia fotográfica do quadro de Metrass, Camões e o Jau na gruta de Macau; um
Retracto de Camões, pintura de Julião Martins, e um esboço de Naufrágio. Na parede do fundo,
via-se o quadro de J. de Chevrel, Bacchio implorando socorro de Naptuno contra os
Portugueses, um litografia do quadro de Metrasse por Aug. Off.; reproduçã fotográfica de um
Naufrágio; os Últimos momentos de Camões, litografia de Dulong; Os Galeões do Gama
dobrando o Cabo da Boa Esperança, do pintor de marinhas Thomasini; e um quadro à pena, e
retracto em grande de Camões a crayon pelo prof. António Alves do Vale. Em frente do busto
de Camões, estavam sob uma redoma três exemplares da primeira edição dos Lusíadas de 1572;
um propriedade do imperador, notável pela nota manuscrita – Luiz Vaz de Camões seu dono 576
– outro propriedade da Biblioteca, notável pela conservação e grandes margens, o último jóia do
Gabinete português de Leitura. Junto destes tesouros estava também o exemplar dos Lusíadas
deturpado pelos Jesuítas, de 1584, conhecido pelo nome irrisório de Edição dos Piscos, da mais
extrema raridade”. BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo:
revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.513-516.
285
Idem, ibidem, p.514-516.
130
unificando em uma festa sem igual dois povos irmãos, filhos da mesma
tradição, afastados pelos efeitos históricos de uma política pessoal”.
Depois, porque as comemorações teriam arregimentado cerca de três mil
pessoas e, sobretudo, porque o evento central da noite inaugural, o discurso
do escritor e deputado brasileiro Joaquim Nabuco, foi o “meio eficaz para
dar ao Centenário um dos seus caracteres de universalidade, ligando por
uma mesma emoção tradicional dois povos irmãos” e expressando “a
calorosa simpatia com que é revivificada a tradição portuguesa de que o
Brasil tira o seu impulso histórico” (286). E o que dizia Nabuco no seu
discurso?
Em primeiro lugar e a título introdutório, que as festas relativas ao
Tricentenário da morte do poeta configuram uma manifestação de
renovação nacional(287). Em seguida, que “nesta festa uns são Brasileiros,
outros Portugueses, outros estrangeiros”, mas que “temos todos porém o
direito de abrigar-nos sob o manto do Poeta”, pois “se o dia de hoje é o dia
de Portugal, não é melhor para ele que a sua festa nacional seja considerada
entre nós uma festa de família? Se é o dia da Língua Portuguesa, não é esta
também a que falam 10 milhões de Brasileiros? Se é a festa do espírito
humano, não paira a glória do poeta acima das fronteiras dos Estados, ou
estará o espírito humano também dividido em feudos inimigos? Não, em
toda a parte a ciência prepara a unidade, enquanto a arte opera a união”(288).
Decididamente, o brasileiro não é um estrangeiro nas festas camonianas,
cabendo-lhe papel relevante. Nabuco investe, seguidamente, na dimensão

286
Idem, ibidem, p.516-518. Grifos nossos.
287
NABUCO, Joaquim. Camões. Discurso pronunciado a 10 de junho de 1880, no Gabinete
Português de Leitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Leuzinger & filhos, 1880. Merece
destaque ainda a folha de rosto, onde dedica o texto “Ao Sr. J.C. Ramalho Ortigão, 1.º secretário
do Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro»”. Lembre-se que apesar das críticas e da
celeuma provocada pelas Farpas, Ramalho Ortigão foi agraciado com zelo na ocasião das
comemorações. Notemos que o Imperador D. Pedro II, alvo das crônicas humorísticas das
Farpas, que deram origem à polêmica, estava presente na cerimónia.
288
NABUCO, Joaquim. Camões. Discurso pronunciado a 10 de junho de 1880, no Gabinete
Português de Leitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Leuzinger & filhos, 1880, p.8-9.
131
histórica da pretendida comunhão luso-brasileira. E questiona: “não foi o
Brasil descoberto, colonizado, povoado por Portugueses? Não foi uma
colónia portuguesa durante três séculos, que se manteve Portuguesa pela
força das suas armas, combatendo a Holanda, até que, pela lei da
desagregação dos Estados, e pela formação de uma consciência Brasileira e
Americana no seu seio, assumiu naturalmente a sua independência, e
coroou o seu Imperador ao próprio herdeiro da Monarquia? Depois deste
facto, apesar dos preconceitos hoje extintos, não tem sido o Brasil a
segunda pátria dos Portugueses? Não vivem eles connosco sempre na mais
completa comunhão de bens, num entrelaçamento em família, que tornaria
a separação dos interesses quase impossível?”(289). E, se é verdade que o
poema de Camões canta a descoberta do caminho das Índias, Nabuco não
resiste a constatar que, em 1880, “a Índia Portuguesa é uma pálida sombra
do Império que Afonso de Albuquerque fundou; ao passo que o Brasil e os
Lusíadas são duas maiores obras de Portugal”(290).
E isto não é tudo. Pela voz de Nabuco, na hora solene da
comemoração, escuta-se, inclusive, que “o emigrante português chega ao
Brasil sem fortuna, mas também sem vícios, e pelo seu trabalho cria
capitais; vem só, e funda uma família; seus filhos são Brasileiros; falando a
mesma língua, e da nossa raça, essa imigração nem parece de estrangeiros;
todos os anos, à força de privações corajosamente suportadas, ela põe de
lado uma soma considerável, que não acresce tanto à riqueza de Portugal
como à nossa”(291). Tudo somado, conclui o palestrante: “Não preciso
dizer, como aliás o podia fazer sem deixar de ser sincero, que nesta noite
sou Português; basta-me dizer que acho-me animado para com a pequena,
mas robusta Nação que fundou o Brasil, e que foi tanto tempo a Mãe Pátria,
de um sentimento que, se não se confunde com o patriotismo, não deixa de
289
Idem, ibidem, p.9-10.
290
Idem, ibidem, p.10.
291
Idem, ibidem, p.11.
132
confundir-se entretanto com o próprio orgulho nacional”(292). Por tudo isto,
a celebração camoniana então inaugurada só pode ser entendida, dirá, como
“a prova de que Portugal não morreu de todo em 1580, mas somente
atravessou a morte, e de que os Lusíadas não foram o túmulo nem da raça
nem da língua” (293). Os Lusíadas “não é um livro que torne ninguém
Português, é um livro que torna todos patriotas”, dizia (294). Após o
discurso de Nabuco, dá-se início à recitação de poesias a Camões,
declamando D. Amélia Vieira, Dr. Rezende Moniz, entre outros. Logo após
se representa uma peça dramática em um ato, Tu, só tu, puro amor, “escrita
pelo distinto poeta brasileiro Machado de Assis, expressamente para essa
noite” (295). Pelo exposto, parece seguro supor que o objetivo maior do
evento havia sido alcançado.
Em idêntico espírito celebratório, deve-se juntar textos de outros
personagens, como Reinaldo Carlos Montoro (296) Ou discursos como os de
Basílio Machado(297), ambos expressamente elaborados para a data, bem

292
Idem, ibidem, p.12.
293
Idem, ibidem, p.26.
294
Idem, ibidem, p.26-27.
295
BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia.
Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.516-518.
296
Curiosa é a publicação de Reinaldo Carlos Montoro, intitulada O Centenário de Camões no
Brasil. Portugal em 1580. O Brasil em 1880. Numa clara alusão ao Brasil como o herdeiro do
Portugal renascentista – simbolizado por Camões – Montoro afirma que “diante desta
perspectiva que o estudo do globo abre à nossa língua, e pelos vestígios de ideias e afectos que
se encontram nestas variadas ramificações da raça portuguesa, Camões cessa de ser apenas o
grande poeta épico de Portugal, e torna-se o vulto maior da civilização cosmopolita”,
afirmações às quais acrescenta a de que o “Brasil é o herdeiro directo de Portugal do XVI
século”, devido “ao quadro da decadência do império português”. Por isso, “não devemos
ocultar que teve os mesmos elementos de organização social e esteve muitos anos sob os
mesmos influxos intelectuais”. MONTORO, Reinaldo Carlos. O Centenário de Camões no
Brasil. Portugal em 1580. O Brasil em 1880. Estudos comparativos. Rio de Janeiro: António
José Gomes Brandão Editor, 1880, p.8; 107-108. Acervo da Camoniana dos Reservados da
Biblioteca Nacional de Lisboa
297
Particularmente nesta obra, observamos o eco das obras de Teófilo Braga e Oliveira Martins
que, desde a década de 1870, tinham iniciado o movimento de culto ao poeta. Assim, em clara
alusão implícita a Oliveira Martins – e nomeadamente à célebre frase martiniana que entendia
que “Os Lusíadas são um epitáfio” – observamos o discurso proferido por Basílio Machado:
depois de cantar loas às descobertas de portuguesas,, sobretudo ao caminho aberto ao Oriente,
assinala que “toda a glória, como o sol, tem seus ciclos de obscurecimento”. Para ele, como para
J.P. de Oliveira Martins, depois de 1580, “Portugal declinava”. MACHADO, Basílio. Discurso
133
como uma série de realizações e eventos, espalhados um pouco por todo o
Brasil, que garantiam a ressonância pretendida e compunham uma
significativa imagem de totalidade. Dentre estes, destacam-se a publicação
de uma edição de luxo de Os Lusíadas, patrocinada pelo Gabinete
Português de Leitura (298); a encomenda, por esta mesma instituição, de
uma medalha comemorativa com o vulto de Camões, “destinada a
perpetuar a data, que se contará como da era nova da nossa revivescência
portuguesa” (299); os festejos realizados pelo Retiro Literário Português,
onde “se achavam representadas vinte e três Associações, e as redacções
dos primeiros jornais do Rio de Janeiro” (300); o desfile dos estudantes das
Academias do Brasil (301); a regata efectuada na praia do Botafogo (302).

proferido no sarau literário que, em comemoração do tricentenário de Camões, promoveu o


Club Ginástico Português, de S. Paulo, a 10 de Janeiro de 1880. São Paulo: Tipografia da
Constituinte, 1880, p.8. Acervo da Camoniana dos Reservados da Biblioteca Nacional de
Lisboa.
298
Publicação editada em Lisboa, na tipografia de Castro e Irmãos. Com um prólogo assinado
por Ramalho Ortigão, tratava-se de uma edição “verdadeiramente monumental”, consoante a
apreciação teofiliana: “É adornada com um retracto fantasista de Camões, por Columbano
Pinheiro, imitando na gravura o estilo das águas fortes do século XVI; o tipo do poeta, à falta de
um retracto autêntico, é uma recomposição psicológica, tem um pouco a fisionomia de
Cervantes com a expressão de Victor Hugo. O prólogo que acompanha o poema, é
magistralmente escrito pelo nosso primeiro crítico Ramalho Ortigão; descreve com o seu grande
poder de estilo a época da Renascença como o fundo do quadro em que coloca a individualidade
de Camões, e restitui ao poeta todos os toques vivos da realidade tirados das suas cartas. As
relações do poeta com a nacionalidade portuguesa são expostas de um modo comovente. O
texto do poema foi aproximado quando possível da recensão de 1572. O volume termina com
um estudo de Reinaldo Montoro sobre a história da benemérita associação que restabeleceu a
dignidade do nome português no grande estado do Brasil. A maior parte desta opulenta edição
foi destinada a brindes para todas as corporações, e homens de letras notáveis, e ela atestará em
todos os tempos que houve portugueses que tiveram a consciência plena da solidariedade
nacional”, BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de
filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.516-518.
299
Idem, ibidem, p.516-518.
300
Idem, ibidem, p.519.
301
No dia 12 de Junho, informa-nos ainda Teófilo, as comemorações foram realizadas pelos
estudantes das Academias do Brasil que se reuniram na rua do Teatro para uma Marche aux
flambeuax. O cortejo dos estudantes brasileiros da Politécnica, deu-se da seguinte maneira:
“organizou-se o préstito em duas alas; os estudantes levavam balões chineses suspensos em
varas, com flâmulas e galhardetes. À frente ia a banda dos imperiais marinheiros, em seguida a
bandeira da Politécnica, depois as bandeiras da humanidade e da civilização que serviram na
véspera na festa dos Positivistas brasileiros; sobre um palanquim era levado o busto de Camões
aos ombros de estudantes, fechando a comitiva as bandas marciais do corpo de polícia e do 10º
batalhão de infantaria. Antes da partida falaram alguns académico das janelas da rua do Teatro;
no longo trajecto foram saudados pelo cônsul português no Rocio, na rua do Ouvidor pelo
134
Estas iniciativas sinalizavam o investimento comemorativo carioca. Um
investimento reproduzido em outras cidades brasileiras: em Recife, sob a
égide do Gabinete de Leitura de Pernambuco; em S. Paulo, sob organização
do Clube Ginástico Português; em Campinas, com particular mobilização
da colónia portuguesa local; em Porto Alegre(303) ou, inclusive, em
Uruguaiana, cidade sul-rio-grandense na fronteira com a Argentina. Se a
este panorama juntarmos a cobertura dada aos festejos pela imprensa
brasileira, consagrando números especiais ao centenário camoniano, bem
se percebe a euforia teofiliana e a sua convicção de que “se a vitalidade
portuguesa se mostrasse exausta no velho continente europeu, a ponto de
deixar passar desapercebida esta grande data de 10 de Junho, como o
governo queria quando disse que achava as festas ruidosas e imodestas, a
honra desta nacionalidade acharia no novo mundo os legítimos herdeiros da
sua tradição. Foi isto o que compreendeu o Brasil, excedendo-se em
entusiasmo e sumptuosidade” (304).

Gabinete português de Leitura, recebendo o estandarte desta associação para ser depositado na
Biblioteca nacional. Outras saudações receberam pelo caminho, sendo aclamados e cobertos de
flores, no meio de um entusiasmo indescritível. Todas as ruas por onde o préstito académico
seguia, estavam iluminadas a caprichos, formando abóbadas de luz; era de um efeito fantástico,
a alegria tornara-se contagiosa”. Idem, ibidem, p.519.
302
No dia 13 de Junho, ainda organizou-se uma regata na praia do Botafogo, Rio de Janeiro, que
contou com audiência de para mais de cem mil pessoas, conforme a descrição de Teófilo Braga.
Aos vencedores eram entregues, distribuídos pela mão do Imperador D. Pedro II, doze
exemplares da edição de luxo dos Lusíadas, organizada pelo Gabinete português de Leitura,
além de duas medalhas de bronze, mandadas cunhar pela mesma instituição para perpetuar a
festa do Centenário e a inauguração de sua nova sede. A magnitude das comemorações do
Tricentenário de Camões foi ressaltada como expressão da “concórdia dos espíritos perante um
mesmo ideal”, chamando atenção, nas páginas do Positivismo a “confraternidade” luso-
brasileira. Idem, ibidem, p.519-520.
303
Em Porto Alegre as festas do Centenário de Camões também foram realizadas, segundo a
descrição de Teófilo Braga, com “grande esplendor, durante três dias, terminando com baile no
teatro São Pedro, no fim do qual houve uma alocução e distribuição de diplomas
comemorativos. Idem, ibidem, p.520. A informação é confirmada pelo jornal A Reforma, de
Porto Alegre, em 10 de junho de 1880 que, à página 2 noticiava: “Centenário de Camões –
Devem começar hoje no Teatro S. Pedro as festas consagradas ao Centenário de Camões,
constando de um sarau literário, que começará às 9 horas da noite em ponto”. Os eventos,
entretanto, foram transferidos para o dia seguinte, “em consequência do mal tempo”, conforme
noticiou A Reforma, em 11 de junho de 1880, p.3.
304
BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia.
Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.520.
135
Neste contexto celebratório, a par das comemorações de ordem
solene e oficial, observa-se uma série de outros textos, publicações e
discursos elaborados por parte de figuras de menor visibilidade na cena
cultural brasileira. Contudo, também estes alinhavam pelo mesmo diapasão
comemorativo e com a mesma referencialidade discursiva. Tonham
também as mesmas fontes portuguesas para a leitura brasileira sobre Os
Lusíadas: Oliveira Martins e Teófilo Braga (305). Está neste caso, por
exemplo, o texto O Centenário de Camões, publicado no Rio de Janeiro,
nesse ano de 1880, assinado por F. de Figueiredo, autor para quem o 10 de
Junho de 1880 é um dia marcado pelo “entusiasmo [que] invade o coração
de toda a classe brasileira e portuguesa”, isto é, um dia em que “o brasileiro
num delírio de paixão preza-se de descender de Portugal! É hoje que o
Brasil orgulha-se de haver sido português” (306). E está também neste caso
o autor J. de Paula Souza, para quem Camões é objeto da veneração “que
lhe votamos, nós seus filhos do Brasil, que não o amamos menos que os de
Portugal”, pois “Camões não é um poeta somente, é uma nacionalidade, é o
representante da civilização portuguesa”. Segundo este último, foi no
continente americano que a significação do poeta teve mais coloração, na
medida em que “o amor refinou-se ainda no Brasil; tomou o brilho do
nosso céu, a beleza de nossa terra, a força do nosso sol, a pureza de nossa

305
Outro fato interessante a ser notado é a ampla referência às obras que Oliveira Martins e
Teófilo Braga produziram sobre a significação social de Camões. Sem receio de errar, podemos
afirmar que estes autores portugueses foram a fonte primacial da leitura brasileira sobre os
Lusíadas. O fato de terem sido estes representantes da Geração de 70 as fontes é significativo,
na medida em que esta mobilização do poeta não foi realizada, por exemplo, aos moldes do
romantismo português. Recorde-se que António Feliciano de Castilho também tinha produzido
obras sobre o significado de Camões. Não fazia parte, entretanto, a “arquitetura teórica do
romantismo, dos anseios da Geração de 70 brasileira”. Ver. CASTILHO, António Feliciano de.
Camões: estudo historico-poetico liberrimamente fundado sobre um drama francez dos
senhores Victor Perrot e Armand Du Mesnil. Lisboa: Typ. da Sociedade Typográphica Franco-
portugueza, 1863-1864.
306
FIGUEIREDO, F. de. O Centenário de Camões. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola,
Serafim José Alves Editor, 1880, p.4-7. Um dos elementos interessantes desta publicação é a
oferta que a Livraria de José Alves faz na contracapa da obra: «Na mesma livraria – descrição
da Gruta da Camões em Macau».
136
atmosfera”. Por isso, grifava que a Camões “devemos nós brasileiros o que
temos de melhor” (307).
Assim postas as coisas, não pode estranhar-se o balanço da
festividade feito por Teófilo: “o Brasil é o rudimento de uma fase nova e
futura da nação portuguesa; não é a Bizâncio de uma decaída Roma, mas
sim virá a formar os Estados Unidos do Sul, onde o amor da velha e
pequena metrópole há-de ser um vínculo moral”, posto que, pela sua acção,
“unificou dois povos separados por um obcecado empirismo político”. O
mesmo é dizer, em síntese, que a realização da comemoração camoniana
“durante quatro dias de emoções sublimes e nunca sentidas, fez mais na
obra de concórdia do que cinquenta anos de boa diplomacia” (308).

307
PAULA SOUZA, Dr. J. de. Luiz de Camões. (Homenagem de um brasileiro, ao grande
representante da nacionalidade portuguesa). São Paulo: Tipografia da Constituinte, 1880,
pp.11; 32-35.
308
BRAGA, Teófilo, “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de Filosofia,
segundo ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p. 514-516.
137
PARTE II

FUNDAMENTOS TEÓRICOS: HISTORICIDADE E


DEMARCAÇÃO

Nossa investigação ao nível da configuração cultural luso-brasileira


no final do século XIX permitiu identificar alguns aspectos importantes: a
vigência de redes discursivas materializadas por um dinâmico intercâmbio
informativo entre ambos os pólos; a constituição de esquemas
interpretativos sobre o sentido político desse intercâmbio e sobre o seu
potencial efeito de singularização das culturas nacionais implicadas; a
coexistência de modalidades de relacionamento diversas – tanto
associativas quanto disruptivas – expressivas do carácter problemático da
historicidade desse relacionamento transatlântico; uma tendencial
irradiação dos debates emergentes no contexto de uma das partes
envolvidas à totalidade da escala luso-brasileira; e, ainda, a propensão dos
autores implicados para definirem os seus alinhamentos políticos ou
científicos menos em razão de uma comum pertença nacional e mais em
função dos pressupostos teóricos mobilizados em cada momento.
Este último aspecto merece maior análise. Afinal, se a dialogia
luso-brasileira se constrói, nas suas diversas matizes, sobre a mobilização
dos debates teóricos mais marcantes à época – debates onde o
relacionamento entre Portugal e Brasil é mais pretexto mais para sua

138
reatualização –, bem se compreende a necessidade de encarar as seguintes
questões: qual o “repertório teórico” disponível para pensadores
portugueses e brasileiros em finais do século XIX?; como, por quem e em
qual momento esse quadro teórico foi mobilizado?; qual tipo de eixos
teóricos essa apropriação deu lugar?; que tipo de concomitância ou de
defazagem introduziram estes processos no âmbito da escala luso-
brasileira? É verdade que alguns destes pontos estão foram abordados.
Contudo, na primeira parte deste estudo, eles surgem como expressão dos
níveis de articulação da configuração cultural luso-brasileira. Agora, uma
vez constatada e demonstrada sua vigência, é altura de centrar a atenção
naquilo que teoricamente a fundamentava.
A equação deste nível problemático obriga a uma opção
metodológica clara: o desenvolvimento da análise em perspectiva
comparada. Idealmente, para cada um dos pontos a tratar procurar-se-á
fornecer elementos relativos quer à cultura portuguesa, quer à cultura
brasileira, por forma a instruir o mais possível a reflexão sobre essa outra
dimensão, a luso-brasileira. Aspectos como o do perfil compósito da
chamada “frente cientificista” brasileira e o da feição tomada pelo
congênere fenêmeno português, ou o das desinteligências levantadas pelas
diferentes modalidades de recepção positivista em ambos os espaços
culturais, constituem indicadores preciosos sobre as motivações dos
posicionamentos atinentes à relação entre Portugal e Brasil. A este respeito,
uma advertência deve ser feita: tendo em conta a desigual cobertura dada
pelos campos historiográficos português e brasileiro a esta temática, é
inevitável que, por vezes, aquilo que, no nosso discurso, se oferece com
caráter de novidade num lado, pode ser lido como revisitação de matéria
conhecida por outro. Trata-se, porém, de um risco inevitável em
consequência do nosso objeto. Pareceu-nos necessáris a inclusão de
algumas linhas explicativas destinadas a enquadrar os debates em causa e

139
as múltiplas referências teórico-doutrinárias por ele convocadas. Dentro
deste espírito, eis as tarefas a que nos propomos a seguir: avaliar a
correlação entre o movimento de renovação cultural e das ideias no Brasil e
em Portugal; analisar a recepção das diretrizes positivistas, quer num quer
noutro lado (e também ao nível dos contextos internos, nomeadamente o
brasileiro), para caracterizar as demarcações no âmbito cientista daí
decorrentes; e, por fim, equacionar os termos em que se processa, na
mesma escala luso-brasileira, a mobilização dos fundamentos teórico-
científicos em causa no quadro envolvente do republicanismo.

1. “O arco de outra nova ponte” e o “bando de ideias novas”.

Parece ser consensual a definição das últimas décadas do século


XIX como uma época de forte dinâmica no campo das ideias. Seja a
dimensão científica do fenômeno, sejam os aspectos mais propriamente
culturais, sejam as questões políticas – em qualquer dos casos –, constata-
se, na sobreposição de vários fatores, uma tendencial propensão para a
mobilização das noções de mudança e de transformação. Assim, no caso
português, não restam dúvidas sobre a importância que teve o movimento
de contestação que vai da célebre Questão Coimbrã, em 1866, até às
Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, em 1871 (309). Para o
caso brasileiro, também não haverá maiores restrições em atribuir à

309
A este respeito, são referências incontornáveis os trabalhos dos professores Amadeu
Carvalho Homem e Fernando Catroga. Ressaltamos, a título exemplificativo, HOMEM,
Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de cultura portuguesa (século XIX).
Porto: Fundação. Eng. António de Almeida, 2005 e HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma
leitura sociológica e política da «Questão Coimbra»”. Separata da Revista Máthesis, nº4, 1995,
pp.89-102, bem como CATROGA, Fernando. Sociedade e Cultura Portuguesa II, Lisboa:
universidade Aberta, 1996, especialmente pp.155-162, assim como os capítulos 3 e 4 da
História da História em Portugal, volume I, organizado por TORGAL, Luís Reis; MENDES,
José Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX.
Volume II. [sem local]: Temas e Debates, 1998.
140
chamada Escola do Recife um papel importante nesta renovação filosófico-
cultural (310). O que, entretanto, não está suficientemente estudado é
precisamente a correlação destes dois movimentos em escala luso-
brasileira, tão pouco seu efeito no padrão de relacionamento cultural entre
ambos os países. Em ordem a colmatar essa lacuna, começa por ser
fundamental reter aqui alguns dos aspectos caracterizadores de cada um
desses contextos de renovação teórica. Vejamos, inicialmente, o caso
português, ainda que apenas para recordar ideias-chave. Melhor
apetrechados ficaremos para o posterior confronto com os
desenvolvimentos brasileiros.
É pacífica a consideração da célebre Questão Coimbrã (1866) como
o marco inicial do movimento de contestação das ideias estabelecidas em
Portugal. Entretanto, se é verdade que a polêmica que envolveu Antero de
Quental e Teófilo Braga contra o grupo que circundava António Feliciano
de Castilho e Manuel Pinheiro Chagas teve seu início em função da censura
de Castilho à inscrição daqueles no concurso para a docência na cadeira de
Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras (preferia Pinheiro
Chagas), também correto será perceber, neste caso, a ativação de uma
querela entre a estética romântica e a moderna. Neste contexto, vêm à
estampa textos lapidares sobre a mudança do referente estético que podem
ser simbolizados pelo opúsculo de Antero de Quental, Bom senso e bom
gosto, e pelo texto de Teófilo Braga, Teocracias Literárias. Estava patente
que a divergência estética entre os dois grupos desembocava numa procura

310
A obra de Paulo Paim e João Cruz Costa são referências incontornáveis neste sentido.
Destacamos PAIM, Antônio. A Filosofia Brasileira. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, Série Biblioteca Breve, volume 123, 1ª edição, 1991 e PAIM, Antônio. História das
Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: editora da UEL, 1997, bem como
COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos
Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio,
1956.
141
por novas alternativas estéticas, filosóficas e sociais (311). É sabido,
contudo, que no quadro de renovação cultural já se antevia em algumas
obras anteriores ao início da polémica. Basta recordar, a este propósito, o
famoso trecho da poesia “A Ideia”, inserida no livro Odes Modernas
(1865), onde Antero de Quental dava o tom da nova geração:

Força é pois ir buscar outro caminho!


Lançar o arco de outra nova ponte
Por onde a alma passe – e um alto monte
Aonde se abra à luz o nosso ninho (312).

Estava evidente que a busca desse “outro caminho” ia de encontro a


algumas estruturas sedimentadas (313). Para os propósitos desta pesquisa,
não é necessário desenvolver em pormenores cada detalhe da polémica à
volta das questões do Bom Senso e Bom Gosto (314). O que importa reter é
que o tom de transformação das ideias, o almejado “arco de outra nova
311
A título probatório, não deixa de ser interessante notarmos a presença configuracional
brasileira nesta pugna. Conforme é mencionado por Carvalho Homem, José Feliciano de
Castilho Barreto e Noronha, irmão de Antônio Feliciano de Castilho, publicou em 1865 uma
carta dirigida ao Correio Mercantil do Rio de Janeiro na qual informa sobre o “labirinto de
inconveniências religiosas, sociais, literárias e poéticas” (citado por HOMEM, Amadeu
Carvalho. “Para uma leitura sociológica e política da «Questão Coimbra»”. Separata da Revista
Máthesis, nº4, 1995, p.95). Merece nota, ainda, que, à laia de menosprezo pelo seu opositor,
Antero de Quental tenha dito a Castilho que “os seus poemas líricos não são metafísico, não
precisam de uma excessiva atenção, de esforços de pensamento para se compreenderem – e têm
a vantagem de não deixarem ver nem um só ideal. Nas suas obras todas há um falta tão
completa dessas incompreensibilidades, que deve pôr muito à sua vontade os leitores que V.
Ex.ª tem no Brasil”. QUENTAL, Antero de. Bom senso e bom gosto. In: FERREIRA, Alberto.
Antologia de textos da questão Coimbrã. Selecção de textos e notas de Maria José Marinho. 2ª
ed. Lisboa/Porto: Litexa, 1999, p.155.
312
QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Veja, 1994, p.64.
313
Como fica patente no poema “Carmen Legis…” também inserido nas Odes Modernas, de
Antero: “Pois bem! Grandes, Altivos, Poderosos,/ E Cometas da Altura,/ E senhores da terra e
Semideuses…/ vós sois o pó e o nada!/ (…) O espanto, que espalhais, não vos pertence…/ Não
é a vossa força./ É o tremor do solo, é o presságio/ Do grande terramoto!/ (…) É a Revolução! a
mão que parte/ Coroas e tiaras!/ É a Luz! a Razão! é a Justiça!/ É o olho da Verdade!”.
QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Veja, 1994, pp.124-126.
314
Para maior detalhe sobre as série de polêmicas que envolveram a “Questão Coimbrã”,
consultar FERREIRA, Alberto. Antologia de textos da questão Coimbrã. Selecção de textos e
notas de Maria José Marinho. 2ª ed. Lisboa/Porto: Litexa, 1999.
142
ponte”, tem um alcance bem mais amplo que o de mera desavença de
ocasião, traduzindo uma ambiência de ebulição de ideias e de inspirações
doutrinárias de distinta índole. Afinal, como sustenta Amadeu Carvalho
Homem, “parece um erro e uma cegueira encarar a Questão Coimbrã como
um simples episódio literário” (315), posto que, como o próprio Antero de
Quental realçava, o “espírito” daqueles tempos era manifestado pelas ideias
de “Hegel, Stuart Mill, Augusto Comte, Herder, Wolff, Vico, Michelet,
Proudhon, Littré, Feuerbach, Creuzer, Strauss, Taine, Renan, Buchner e
Quinet, a filosofia alemã, a crítica francesa, o positivismo, o naturalismo, a
história, a metafísica, as imensas criações da alma moderna, espírito
mesmo da nossa civilização” (316).
Ora, se este painel se oferecia à intelectualidade para intuitos
diversos, não pode deixar de merecer particular destaque, do nosso ponto
de vista, o profundo investimento feito sobre a matéria da historicidade a
partir de apropriações cruzadas ou filtradas daquele quadro teórico. “O
tempo! O tempo!” – bem o anuncia Teófilo Braga (317), um ano antes do
início da polémica Questão Coimbrã, no poema Visão dos Tempos, editado
em 1864:

O Tempo! O Tempo! Em meio d’este oceano


Revolto, escuro, lamentoso, triste
Sem margem que se aviste,
E nos envolve insano,

315
HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de cultura portuguesa
(século XIX). Porto: Fundação. Eng. António de Almeida, 2005, p.48.
316
QUENTAL, Antero de. Bom Senso e Bom Gosto, Carta ao Ex.mo Sr. António Feliciano de
Castilho. In: FERREIRA, Alberto. Antologia de textos da questão Coimbrã. Selecção de textos
e notas de Maria José Marinho. 2ª ed. Lisboa/Porto: Litexa, 1999, p.153-154.
317
Sobre o pensamento de Teófilo Braga, consultar HOMEM, Amadeu Carvalho. A Ideia
Republicana em Portugal. O contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Livraria Minerva, 1989.
Sobre o pensamento de Antero de Quental, veja-se CATROGA, Fernando. Antero de Quental.
História, Socialismo, Política. Lisboa: Editorial de Notícias, 2001. Para uma análise
comparativa de Teófilo e Antero, ver HOMEM, Amadeu Carvalho. “Antero de Quental e
Teófilo Braga. Um exercício comparativo”. Separata da Revista Insulana. Ponta Delgada, 1991,
pp.127-144,
143
O movimento presente é a jangada
Onde a existência vai arrebatada.
[…]
Contemplando este imenso mar amargo
Onde rugem eternas tempestades
A Visão das Idades
Sobre o horizonte largo
Completa-se pela harmonia equórea
Fundo Rumor, conceito ideal – a História (318).

A nuclearidade do tempo e da história, por conseguinte, em um


contexto de transformações filosófico-sociais no qual o recurso frequente
às noções de mudança (e de processo), perturbava a fixidez das estruturas
sociais e estéticas estabelecidas. Confirmação, assim sendo, de que a
polêmica em torno da questão do Bom Senso e Bom Gosto assumiu “um
significado cumulativamente literário e político-social”, representando,
“sem sombra de dúvida, uma forte machadada no modelo romântico
verboso e repetitivo, artificial e conservador, apontando para a sua
substituição por um outro mais social e abstractivo, mais simbólico e
filosofante, com uma seiva fornecida pelo historicismo teórico do
idealismo alemão, pela historiografia romântica francesa e pelas
imprecações de autores socialistas ou socializantes contra os excessos
individualistas da revolução industrial em curso” (319).
Recordar-se-á, de igual modo, que o lugar da Questão Coimbrã
como “uma espécie de antecâmara anunciadora” de tensões e de
condicionamentos histórico-políticos e sócio-culturais, ganha a devida
amplitude assim que o sinete das transformações emanado de Coimbra

318
BRAGA, Teófilo. Visão dos Tempos. Porto: Livraria Chardron, [1864] 1894.p.9-10.
319
HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de cultura portuguesa
(século XIX). Porto: Fundação. Eng. António de Almeida, 2005, p.56.
144
desembocar no Cenáculo Lisbonense (320). Isto é, que “o processo de
contestação então iniciado será incompreensível se não for articulado com
os seus desenvolvimentos posteriores e particularmente com a realização,
em 1871, das célebres Conferências do Casino” (321), momento tópico, por
excelência, desta dinâmica. Tal como está manifesto no seu Programa, de
16 de Março de 1871, o intuito era “abrir uma tribuna, onde tenham voz as
idéias e os trabalhos que caracterizam este momento do século”, e desta
forma “ligar Portugal com o movimento moderno”, pois “não pode viver e
desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do
seu tempo” (322). Assinavam esta proposta de renovação cultural e
transformação política Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto
Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós, Germano Vieira Meireles,
Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de
Arriaga, Salomão Sáragga e Teófilo Braga. Respira aqui a célebre Geração
de 70.
Ora, este mesmo ideal de modernização do país e de forte influência
das “modernas ideias” – que vimos no arco de contestação que vai da
Questão Coimbrã às Conferências do Casino Lisbonense – pode ser
também observado no Brasil. Afinal, como ensina Antônio Paim, no Brasil,
“a mocidade acadêmica e os círculos intelectuais, por todo o país, adotam o
que se poderia denominar de espírito crítico. Por muitos anos não se
estruturam correntes de pensamento algo delineadas. Suscitam-se ideias

320
“Advirta-se ainda que esta memorável querela galgou as próprias fronteiras nacionais e que,
mesmo no Brasil, foi percepcionada como um diferendo de filosofias políticas. Assim, os prelos
da Tipografia Perseverança, do Rio de Janeiro, editam em 1866 um opúsculo assinado por um
tal de Arqui-Zero, presumível pseudónimo de Paulo José de Faria Brandão, no qual se exalta,
em estilo grandiloquente, o raiar do sol democrático e a alvorada do radicalismo liberal” (cnf.
HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma leitura sociológica e política da «Questão Coimbra»”.
Separata da Revista Máthesis, nº4, 1995, p.100).
321
CATROGA, Fernando. Sociedade e Cultura Portuguesa II, Lisboa: universidade Aberta,
1996, p.155.
322
Conforme o “Programa das Conferências Democráticas”. In: REIS, Carlos. As Conferências
do Casino. Lisboa: Alfa, 1990, p.91.
145
que se tornavam simpáticas sempre que pareciam poder nutrir o
inconformismo. Assim, tomam conhecimento, indiferentemente, de Comte,
Littré, Taine, Renan, Darwin, Antero de Quental” (323).
No relativo ao quadro brasileiro, ninguém melhor simbolizará este
momento que Sílvio Romero, escritor no qual se identifica o espírito de
inconformismo e a consciência da chegada de um “bando de ideias novas”
ao Brasil. Isto se percebe já por ocasião de seu doutoramento. Os
acontecimentos que marcam a defesa de tese de Sílvio Romero, realizada
no Recife em 12 de Março de 1875, são exemplificativos desta “nova”
postura. Siga-se a exposição dos fatos, tal como a relata, na respectiva ata
(escrita no dia subsequente à defesa), Francisco de Paula Baptista, então
incumbido de presidir às provas (324):

“Enquanto [o arguente] expunha a sua opinião e deduzia os seus argumentos,


era interrompido pelo defendente [Sílvio Romero] neste e em termos semelhantes: -
Ouça-me, Sr. Doutor, não vá adiante. Quero que cada argumento seu seja
imediatamente destruído –. Multiplicando-se essas interrupções, no correr do debate, e
à medida que o terreno deste ia sendo circunscrito pela argüição do argüente, foi o
mesmo obrigado a observar, ao doutorando, que, se continuasse daquele modo, ele Dr.
Belfort, se calaria. Então o primeiro dos abaixo assinados (Paula Batista), como
presidente do ato, chamou-o à ordem, e esta foi, felizmente, restabelecida na
discussão, durante os poucos minutos que lhes restavam para argumentar. Seguiu-se,
na argüição, o Sr. Dr. Coelho Rodrigues, que começou apontando uma objeção à 2ª
tese de direito constitucional, à qual procurou responder o defendente. O argüente
voltou à carga, dizendo que a sua objeção ficava intacta, e o doutorando procurou
provar-lhe o contrário. Dito isto, o Dr. Coelho Rodrigues acrescenta: - Desde que, em
uma discussão qualquer, perco a esperança de convencer ou ser convencido, mudo de
assunto. Passemos à tese seguinte. A respeito desta, passou-se tudo como na primeira,
mutatis mutandis. Mas, antes que passe a outra, observa o argüente, como para
moderar o azedume das respostas, que obtinha: - Não tenho a presunção de vir aqui
ensinar-lhe alguma coisa. Se insisto nisso, é somente porque tenho necessidade de
formar meu juízo. Em seguida, passou à segunda tese de direito romano, concebida
nestes termos: «O jus in re compreende também a posse». E, depois de uma discussão
mais moderada que as duas precedentes, pergunta aquele doutor: – qual a ação, que
garante esse direito real, no seu entender? – Isto não é argumento, responde o

323
PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina:
editora da UEL, 1997, p.478.
324
Compunham a banca examinadora os doutores Francisco de Paula Baptista, Vicente Pereira
do Rego, João Silveira de Souza, João Pinto Júnior, Joaquim Correia de Araújo, Antônio
Coelho Rodrigues e Tavares Belford. Conforme Ata de 13 de Março de 1875, escrita por Paula
Baptista, transcrita em BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife.
Volume I. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.212-214.
146
doutorando – Porque? Repergunta aquele – Porque, responde este, não se pode
conhecer a causa pelo efeito. – Pois admira-me, torna o primeiro, que, tendo-se
mostrado o senhor tão contrário ao método metafísico, na epígrafe das suas teses (a
qual repetiu, traduzindo o inglês, em que estava escrita), recuse agora um argumento a
posteriori. – Nisto não há metafísica, Sr. Doutor, diz o segundo, há lógica. – A lógica,
replica o argüente, não exclui a metafísica. – A metafísica, treplica o doutorando, não
existe mais, Sr. Doutor; se não sabia, saiba. – Não sabia, retruca este. –Pois vá estudar
e aprender para saber que a metafísica está morta. – Foi o senhor que a matou?
Pergunta-lhe então o Dr. Coelho Rodrigues. – Foi o progresso, foi a civilização,
responde-lhe o bacharel Sílvio Romero, que, ato contínuo, se ergue, toma os livros,
que estava sobre a mesa, e diz: - Não estou para aturar esta corja de ignorantes, que
não sabem nada. E retira-se, vociferando por esta sala afora, donde não pudemos mais
ouvi-lo” (325).

O virar de costas de Romero assume contornos metafóricos de duas


linhas de pensamento de costas voltadas e de um diálogo difícil. De um
lado, homens como aqueles que assinam a referida ata e que se
movimentam para levar o caso “ao conhecimento do Governo Imperial”,
bem como para que se desse parte do ocorrido ao Presidente da Província e
a um juiz de direito (326). Do outro, um conjunto de autores, como Romero,
arautos do que ele próprio chamará “um bando de ideias novas”. Com
efeito, a influência das novas ideias na cena política e cultural da época virá
a ser celebrizada por Romero em discurso pronunciado aos 18 de
Dezembro de 1906, na Academia Brasileira de Letras, por ocasião da
recepção de Euclides da Cunha.
Neste texto, Romero afirma que “o decênio que vai de 1868 a 1878
é o mais notável de quantos no século XIX constituíram a nossa labuta
espiritual. Quem não viveu nesse tempo não conhece por não ter sentido
325
BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume I. Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.212-213.
326
As reprimendas sofridas por Romero não cessaram aí, tal como relata Clóvis Beviláqua:
“Sílvio Romero tendo entrado em concurso para cadeira de filosofia de direito do Recife, obteve
o primeiro lugar, em 1875. Mas, anulado, parece que sem justa razão, esse concurso, entrou em
outro, em 1876, no qual apenas lhe deram o segundo posto”. Diz ainda Beviláqua que “o que é
certo é que o nosso vigoroso pensador não obteve a nomeação desejada, e teve de emigrar do
Recife para o Sul do país”. BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife.
Volume I. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.215. Percebemos aqui que é neste
contexto que Sílvio se muda para o Rio de Janeiro, local onde publicou seus primeiros artigos
na Revista Brasileira, mencionados no início desta pesquisa.
147
diretamente em si as mais fundas comoções da alma nacional. Até 1868 o
catolicismo reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a
filosofia espiritualista, católica e eclética a mais insignificante oposição; a
autoridade das instituições monárquicas o menor ataque sério por qualquer
classe do povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do
aristocratismo prático dos grandes proprietários a mais indireta opugnação;
o romantismo, com seus doces, enganosos e encantadores cismares, a mais
apagada desavença reatora. Tudo tinha adormecido à sombra do manto do
príncipe ilustre que havia acabado com o caudilhismo nas províncias e na
América do Sul e preparado a engrenagem da peça política de centralização
mais coesa que já uma vez houve na história em um grande país” (327).
“De repente” – continua Sílvio – “por um movimento subterrâneo,
que vinha de longe, a instabilidade de todas as coisas se mostrou e o
sofisma do império apareceu em toda a sua nudez”. De fato, após o término
da guerra do Paraguai (1864-1870), o contexto brasileiro entra em forte
clima de transformação social, acarretando um tempo onde “tudo se põe
em discussão”: a abolição da escravatura, a influência dos militares e do
clero no Estado, a radicalização da democracia, o movimento republicano,
etc. Em suma sintetizará ele: “Um bando de ideias novas esvoaçou sobre
nós de todos os pontos do horizonte: […] positivismo, evolucionismo,
darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no
romance, folk-lore, novos processos de crítica e de história literária,
transformação da intuição do direito e da política, tudo então se agitou e o
brado de alarma partiu da escola do Recife” (328).

327
ROMERO, Sílvio. “Academia Brasileira de Letras – Discurso pronunciado aos 18 de
Dezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha” In: Provocações e
Debates (Contribuições para o Estudo do Brasil Social). Porto: Livraria Chardron, 1910, p.359.
328
ROMERO, Sílvio. “Academia Brasileira de Letras – Discurso pronunciado aos 18 de
Dezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha” In: Provocações e
Debates (Contribuições para o Estudo do Brasil Social). Porto: Livraria Chardron, 1910, p.359-
360.
148
A Escola do Recife, inevitavelmente. De acordo com um dos seus
principais conhecedores, Clóvis Beviláqua, na Escola do Recife “lia-se
D’Orbigny, Notte, Gliddon, Pouchet, Quatrefages, Darwin, Huxley, Broca,
Topinard, Tylor, Lyell, Hovelacque, Latourneau, Darwin, Spencer, Ardigó,
Morselli, Buchner, Comte, Littré, Zaborowski, Haeckel, Teófilo Braga,
etc., e essas leituras alargavam os horizontes dos estudantes e juristas,
dando-lhes elementos para bem compreender o homem e a sociedade” (329).
Conforme se compreenderá, a estima de cada um destes autores e o grau de
conhecimento e de apreensão das suas obras não foi constante. Importa
vincar que o movimento de transformação das ideias teve uma primeira
fase, iniciada em 1862-1863, marcada pela influência da “poesia social” de
Victor Hugo (o abolicionismo de Castro Alves é o exemplo desta fase) e
pela filosofia panteísta de Quinet e prolongando-se num período “onde o
hugoismo se transforma em realismo”, marcado pelos estudos folcloristas
de Celso Magalhães (330). Entre 1868 a 1882, uma “segunda fase” é
identificada no desenvolvimento da Escola do Recife, sendo nesta altura
que se observa a inclinação de Tobias Barreto para o positivismo (331).
Trata-se de um período de “intermitências”, onde “as doutrinas positivistas
do ramo heterodoxo de Littré, seduzem os rapazes [e onde, por exemplo,]
Spencer é menos vulgarizado” embora não desconhecido, sendo Taine,
Buchner, Latourneau e Lefèvre muito citados. A partir de 1882, data do
ingresso de Tobias Barreto no quadro docente, começa uma “terceira fase”
nas ideias da Escola do Recife. Este é o momento de sua transição para o

329
BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.129.
330
BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.94. Registe-se que Teófilo Braga menciona em várias
passagens, nomeadamente durante sua polêmica com Sílvio Romero, como expusemos atrás, a
leitura destes trabalhos de Celso Magalhães.
331
Clóvis Beviláqua afirma, no entanto, que “pouco se deteve Tobias no positivismo”, pois “o
chefe do positivismo e o seu grande discípulo Emílio Littré não fizeram tão forte impressão no
espírito de Tobias quanto Cousin, Jouffroy, Vacherot, Guisot e Scherer”. Idem, ibidem, p.98.
149
monismo haeckeliano, de cuja influência no Brasil nos ocuparemos mais
adiante.
Neste momento, cabe a seguinte questão: qual o conhecimento que
a nova geração brasileira tinha dos seus análogos portugueses? Ao lermos
os intérpretes da época, vemos que o movimento de renovação das ideias
em Portugal não passou despercebido no Brasil. A tonalidade crítica das
referências ao quadro português não é homogênea, porém. Mas mesmo as
diferentes leituras da realidade portuguesa expressam a atenção com que
esta era seguida. De qualquer forma, o inevitável debate sobre a primazia
relativa de cada uma das margens do Atlântico no movimento
transformador tomava conta do assunto.
Luís Pereira Barreto, por exemplo, foi um arguto leitor das
mudanças ocorridas na antiga metrópole. Assim, em 1880, dizia ele que “o
Portugal de hoje não é o Portugal de há cinqüenta anos atrás”. Para o autor
das Soluções Positivas da Política Brasileira, “assim como herdamos todos
os vícios e preconceitos dos nossos imediatos predecessores, devemos hoje,
com calma e sangue frio, imitar o exemplo dos nossos irmãos d’além mar,
seguindo firmemente a senda que traçam”. E se era certo que “durante
muito tempo, Portugal atardou-se na trilha da evolução por não se
preocupar com o movimento filosófico do norte e centro da Europa”, no
Brasil, dizia ele, “temos cometido o mesmo erro, por não querermos ver o
movimento que nos deixa a perder de vista na marcha geral das nações.
Estamos vivendo na persuasão de que nada temos mais a aprender com
Portugal”. Daí que, para Pereira Barreto, é “nosso dever de patriotas
confessar francamente que, do outro lado do Atlântico, nessa mesma terra
que nos serviu de embriogênio berço, existe hoje uma plêiade de homens
cuja estatura não encontra entre nós paralelo. Teófilo Braga, Ramalho
Ortigão, Felipe Simões, Guerra Junqueiro, G. de Vasconcelos, Eça de
Queirós, Antero de Quental, Gomes Leal, Consiglieri Pedroso, Oliveira

150
Martins, Luciano Cordeiro, Júlio de Mattos, Adolfo Coelho, Horácio
Ferrari, Alexandre da Conceição, Teixeira Bastos, Cândido de Pinho,
Ernesto Cabrita, Augusto Rocha, Bittencourt Raposo, Amaral Cirne,
Guilherme de Azevedo e tantos outros, são todos nomes que afirmaram a
autonomia de uma nacionalidade em via de progresso” (332).
Sílvio Romero, por sua vez, discordava do lugar proeminente
concedido às ideias supostamente recolhidas a partir das transformações
simbolizadas pela Questão Coimbrã e pelas Conferências do Casino
Lisbonense. Para o autor da História da Literatura Brasileira, o papel de
destaque na revolução das ideias no Brasil devia-se à Escola do Recife. É o
que assevera ao declarar que, “em 1862, no terreno do jornalismo, antes da
Reação de Coimbra, entre nós a escola do Recife reagiu contra os nossos
pretensos chefes por meio de Tobias Barreto e seu discípulo Castro Alves”.
Para ele, terá sido este movimento “de caráter revolucionário” o
responsável pela propagação “por todo o país, acordando decidido
entusiasmo na escola de São Paulo e no Rio Grande do Sul” (333). Ou seja,
a incorporação das “novas ideias” – isto é, a recepção e incorporação das
diferentes vertentes do positivismo e do evolucionismo – teria partido do
Recife, espraiando-se, primeiramente, por São Paulo e pelo Rio Grande do
Sul, e, depois, pelo restante país.
Não obstante estas declarações de Romero, um autor como José
Veríssimo conferirá, tal como Luiz Pereira Barreto, significativa
importância às repercussões, no Brasil, das transformações ocorridas nos
acontecimentos de Coimbra e nas conferências de Lisboa. Referindo-se à
incorporação das “modernas ideias”, Veríssimo afirma que, antes da Escola
de Recife fora “nos próprios livros franceses de Littré, de Quinet, de Taine

332
BARRETO, Luiz Pereira. Obras Filosóficas. Vol. III. Organizado por Roque Spencer Maciel
de Barros. São Paulo: Humanitas, 2003, pp.18-19.
333
ROMERO, Sílvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo”, In:
Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.281.
151
ou Renan, influenciados pelo pensamento alemão e também inglês, que
começamos desde aquele momento a instruirmo-nos das novas ideias.
Influindo também em Portugal, criara ali a cultura alemã uma plêiade de
escritores pelo menos ruidosos, como Teófilo Braga, Adolfo Coelho,
Joaquim de Vasconcelos, Antero de Quental, Luciano Cordeiro,
amotinados contra a situação mental do reino. Além destes, Eça de Queiroz
e Ramalho Ortigão vulgarizavam nas Farpas, com mais petulância e
espírito que saber, as novas ideias. Todos estes, aqui muito mais lidos do
que nunca o foi Tobias Barreto, atuaram poderosamente na nossa
mentalidade. E o movimento coimbrão, como se chamou à briga literária
do «Bom senso e bom gosto», pelos anos de 65, teve certamente muito
maior repercussão na mentalidade literária brasileira do tempo, do que a
pseudo-escola do Recife” (334).
Não vale a pena entrarmos na discussão sobre qual foi o movimento
que teve a primazia na transformação das ideias no final do século XIX, se
a “brasileira” Escola do Recife ou as “portuguesas” Questão Coimbrã e
Conferências do Casino Lisbonense. Uma abordagem genealógica da
cultura em nada se aproxima de nosso viés analítico. Para já, interessa-nos
sublinhar o fato indesmentível de uma clara concomitância na conjuntura
da “lusa” e da “brasileira” geração de 1870, em que a atmosfera de
contestação e a estética de transformação cultural manifestam não
desprezíveis pontos de similitude. As motivações que concorriam para esta
ambiência eram várias. É fato, porém, que para além das diferenças
explícitas, a situação de ambos os países é, mutatis mutandis, parelha.
Esta atmosfera configuracional pode ser bem apreciada pelo retrato
que José Maria Belo fez da época: “As críticas dos monarquistas e dos
republicanos portugueses aos erros e vícios do regime não diferiam muito

334
VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado
de Assis (1908). Brasília: Editora da UnB, 5ª edição, [1912] 1998, p.236.
152
das que faziam os monarquistas e republicanos brasileiros. Na mesma
língua, com mais açúcar na prosódia brasileira, se discute, se declama, se
faz retórica, se faz poesia em S. Bento, em Lisboa, e na Cadeia Velha, no
Rio de Janeiro. Tendência semelhante ao sentimentalismo, gosto idêntico
da frase e das velhas fórmulas jurídicas, facilidade análoga em fugir do real
e do positivo, equilibrada, no entanto, pelas reações freqüentes do senso
prático, a mesma insinceridade nos compromissos e o mesmo afeto às
posições políticas, que permitem o emprego público e falam à vaidade. Se
as condições diversas da vida do campo imenso, semi-deserto e adstrito ao
escravo no Brasil, pequeno e subdividido em Portugal, separa as sociedades
rurais brasileira e portuguesa, é idêntico nos dois países o tipo de
civilização urbana. As grandes cidades do Brasil imperial, como Rio,
Bahia, Recife e Belém, reproduzem os hábitos e costumes, em suma, o
estilo de vida de Lisboa e do Porto. A rua do Ouvidor, por exemplo,
estreita, inestética e mal cuidada, espécie de galeria de exibições diárias,
feira das vaidades cariocas, perdurando, aliás, pela época republicana, é
como o prolongamento do Chiado de Lisboa” (335).
Afirma Fernando Catroga que as ciências, “com o seu carisma de
objectividade e de racionalidade, apareciam, de facto, aos olhos da «nova
geração», como a prova irrefutável da verdade das propostas filosóficas e
sociais que, em seu nome, eram apresentadas como a solução definitiva
para a crise moral e social decorrente das contradições capitalistas [e que],
em Portugal, isso significava a contestação do status quo nascido com a
Regeneração e implicava a anatematização das instituições (propriedade,
Igreja, Monarquia) e dos valores éticos (utilitarismo) e estéticos (ultra-

335
BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.29-
30.
153
romantismo) que o legitimavam” (336). Ora, uma semelhante conjuntura foi
também observada no Brasil.
Uma linguagem contestatória aproximava as duas margens do
Atlântico: modernização, laicização, republicanismo, eram propostas
discutidas com recorrência; ciência e teologia, positividade e metafísica,
revolução e reforma, eram dualidades de pronto recurso argumentativo; a
história e o seu lugar, as opções entre o peso relativo a conferir ao presente
e ao futuro e, por inerência, ao passado, eram patamares de alinhamento ou
de oposição, realinhando as teses em presença. A partir destes parâmetros
mais ou menos comuns, bifurcar-se-iam os caminhos. A partir deles, por
sua vez, outras novas demarcações seriam feitas. Nem poderia ser de outra
forma: uma das características dos intelectuais que encontramos na
configuração luso-brasileira é, na verdade, a trajetória cambiante e
heterodoxa de seu pensamento. A quase totalidade deles apresenta
significativos influxos teóricos, alterações doutrinárias e aprofundamentos
críticos, impondo, um permanente questionamento das convicções, dos
projectos e dos rumos a tomar.
Pense-se, em concreto, no exemplo fornecido, a este título, pela
própria trajetória intelectual de dois dos líderes da geração de 1870: Antero
de Quental e Tobias Barreto. Sobre Antero, limitemo-nos a recordar, de
acordo com o que se encontra explicado, que “basta aprofundar a análise da
[sua] obra (sobretudo os seus ensaios e a sua correspondência) para se
concluir que a sua filosofia, desde os anos de Coimbra, evoluiu num
diálogo permanente com o impacte das ciências e da ideologia a que deu
origem: o positivismo e o cientismo"(337). Entretanto, recordar-se-á, no

336
CATROGA, Fernando e CARVALHO, Paulo Archer. Sociedade e Cultura Portuguesa II.
Lisboa: Universidade Aberta, 1996, p.167.
337
A trajetória de Antero de Quental pode ser assim resumida: “o cientismo em geral, e a sua
tradução positivista e naturalista, em particular, constituíram o ponto de referência polémico em
função do qual Antero tentou elaborar a sua própria filosofia. Portanto, não se pode estudar a
evolução do seu pensamento sem se relevar a sua atitude no que concerne à problematização
154
tocante a Tobias Barreto(338), a já aqui citada transição entre as várias fases
por que passa a Escola do Recife. Mais especificamente, tenha-se em conta,
na linha de Beviláqua, que foi “sob a influência de Tobias e Sílvio Romero
e, depois, sob outros influxos, [que] os moços estudiosos adoptaram o
positivismo do Curso, com Littré e a Révue de philosophie positive. Dele
passaram ao monismo haeckeliano. Alguns inclinaram-se para Spencer,
Mill, Ardigó, outros abraçaram o materialismo. Mais tarde, por irradiação
da igreja positivista do Rio de Janeiro, apareceram ortodoxos, como Aníbal
Falcão” (339).
O panorama é esclarecedor. É como se, vencida a batalha contra o
espiritualismo e a teologia, uma divisão de águas se tornasse inevitável. Se
todos concordavam com o espírito do “bando de ideias novas” (de que fala
Sílvio Romero), no que dizia respeito à construção das “novas pontes” (de
que falava Antero), muitas alternativas estavam em aberto. Assim, se aceita
a leitura de Antônio Paim sobre o movimento de contestação das ideias no
Brasil quando ele diz que este movimento “corresponde a uma espécie de
frente cientificista, em que todos comungam dos mesmos propósitos
naturalistas, até que os positivistas se destacam do todo para constituir
organização autônoma” (340). Com efeito, a ideia de que a aglomeração de
inspirações doutrinárias de diversa proveniência vai a par com o potencial
de dispersão e de posterior absorção de credos mais abrangentes, adequa-se
bem ao que sabemos do caso brasileiro. Salvaguardadas as devidas

filosófica das ciências e das ilações mundividenciais das filosofias que as invocavam. E como
sabemos pela sua crítica de 1866, desde cedo procurou encontrar a raiz metafísica do
conhecimento científico, condição que considerava essencial para o colocar ao serviço da
verdadeira libertação humana”. CATROGA, Fernando e CARVALHO, Paulo Archer de.
Sociedade e Cultura Portuguesa II. Lisboa: universidade Aberta, 1996, p.167.
338
No mesmo sentido, Clóvis Beviláqua explica que “pouco se deteve Tobias no positivismo”.
BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves, 1927, p.105.
339
BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.105.
340
PAIM, Antônio. A Filosofia Brasileira. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa,
Série Biblioteca Breve, volume 123, 1ª edição, 1991, p.97.
155
nuances, o cenário português parece ser, quanto a este aspecto,
compaginável. Não porque a situação se apresente, num e noutro lado,
simetricamente delineada. Pelo contrário: para além da equiparação de
pontos de contestação e de renovação das ideias, será a diferente conjuntura
de recepção das correntes positivistas o que ditará mudanças de percurso
assinaláveis entre os movimentos português e brasileiro. Assim sendo, é
precisamente essa distinta apropriação e esses distintos trajetos do
positivismo em ambos os países, apesar de um quadro de debate teórico
razoavelmente comum, aquilo que importa perceber e confrontar. O nosso
intuito será, pois, identificar os contornos e as distinções internas destes
processos. Numa palavra, o seu carácter demarcatório.

2. A “frente cientificista” e seus níveis de relacionamento.

Em 1881, podia ler-se, na Revue philosophique, o seguinte: “Qu’on


en soit le partisan ou l’adversaire, il est, à chaque époque, des doctrines
dont la connaissance s’impose à tous les esprits cultivés. Tel fut au XVIIº
siècle le cartésianisme ; tel est au XIXº siècle le positivisme. A son égard la
lutte se comprende, les dissidences s’expliquent ; l’ignorance ne se conçoit
plus” (341). Pode entender-se o raciocínio subjacente: inegavelmente, a
segunda metade do século XIX é marcada por uma impressionante
polifonia de correntes filosóficas; dito isto, é igualmente verdade que a
difusão do positivismo, em seus diferentes quadrantes e versões, virá a
configurar um elemento preponderante desta ambiência cultural; tal como é
igualmente certo que, para lá do seu cunho agregador, este movimento é
obrigado a assistir à luta pela clarificação das alternativas, no âmbito da
qual diversas posições filosóficas, políticas, estéticas e sociais tomarão
341
Revue philosophique (1881), citado por GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’à
nos jours. Paris: Lethielleux, 1893, p.1.
156
corpo. “Les dissidences s’expliquent”. Por certo que sim. No horizonte
luso-brasileiro que nos ocupa, importará assim acompanhar as linhas de
difusão do positivismo, por forma a explicar as dissidências por ele
introduzidas na larga “frente cientificista”.

2.1. Difusão do positivismo: perspectiva comparada

As primeiras manifestações de divulgação da doutrina positivista no


Brasil podem ser divididas em duas fases: uma, direta, feita pelos
brasileiros que estudaram com Augusto Comte na Escola Técnica de Paris
(342); outra, indireta, marcada pelos trabalhos realizados no país, que
começam a ser produzidos a partir de 1850 (343). O positivismo é
introduzido no Brasil vinculado às ciências físicas e matemáticas,
designadamente na Escola Central e na Escola Militar do Rio de Janeiro. O
peso significativo que estes temas assumem no corpo geral da doutrina

342
Conforme Ivan Linz, “durante o período em que Augusto Comte lecionou na Escola
Politécnica de Pais vários estudantes brasileiros figuraram, a partir de 1832 entre os auditores
livres dos seus cursos. São os seguintes, em ordem cronológica: em 1832, Henri Rose Guillon;
de 1836 a 1837, José P. d’Almeida; de 1837 a 1839, Patrício d’Almeida e Silva, Agostinho Roiz
Cunha, Antônio de Campos Belos e Antônio Machado Dias; (de 1838 a 1839 ainda foi aluno de
Comte Agostinho Roiz da Cunha), e de 1839 a 1840, outro brasileiro – Pinho de Araújo”. LINZ,
Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educação
e Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, p.3.
343
João Cruz Costa menciona uma tese de doutoramento cujo tema concernia aos princípios de
Estática, defendida, em Fevereiro de 1850, pelo maranhense Manuel Joaquim Pereira de Sá,
apresentada na Escola Militar do Rio de Janeiro. Em abril de 1851, foi defendida outra tese em
física, relativa aos princípios de Hidrostática, por Joaquim Alexandre Manso Sayão. Em 1853,
Manuel Pinto Peixoto, inspirado na Geometria Analítica de Comte, apresenta um estudo sobre
os princípios do cálculo diferencial. Em outubro de 1854, Augusto Dias Carneiro, também
baseado em Comte, apresenta uma tese doutoral em Termologia. Em 1858, Antônio Ferrão
Muniz de Aragão publicava, na Bahia, os Elementos de Matemática. “Em 1865, Francisco
Brandão Júnior publicava, em Bruxelas, um opúsculo, A Escravatura no Brasil, com um apenso
relativo à agricultura e colonização no Maranhão, terra do autor”. Conforme COSTA, João
Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida
por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, pp.145-148 e
LINZ, Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da
Educação e Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, pp.3-8.
157
positivista e a sua articulação com a orientação cientificista justificam o
investimento nesse aspecto.
De acordo com Antônio Paim, no Brasil o cientificismo “adquire
forma acabada em mãos de Benjamim Constant (1836-1891), que se torna
professor da Escola [Central, depois Politécnica] em 1873” (344). No ano
seguinte, 1874, veio à estampa o primeiro volume das Três Filosofias, de
Luiz Pereira Barreto (1840-1923). Estas duas lideranças positivistas serão,
juntamente com Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, as principais
balizas da assimilação doutrinária do positivismo brasileiro.
Importa considerar que todos estes nomes assinaram o ato de
criação da primeira associação positivista no Brasil, em 1º de Abril de
1876. Merece destaque o fato de que esta instituição não possuía carácter
militante; propunha-se, tão-só, organizar uma biblioteca composta pelas
obras de Augusto Comte, além de abrir alguns cursos científicos no país.
Faziam parte desta associação, “Oliveira Guimarães, professor de
matemática no Colégio Pedro II; Benjamim Constant, (1836-1891),
professor da Academia Militar e que se tornaria um dos chefes do
movimento militar que derrubou a monarquia e proclamou a República;
Álvaro de Oliveira, genro de Benjamin Constant, professor catedrático da
Escola Politécnica; Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira
Mendes (1855-1927), que se tornariam os líderes do Apostolado, além de
outros. A entidade receberia o apoio de positivistas que viriam a adquirir

344
Importa destacar que, para Antônio Paim, “a difusão do cientificismo no Brasil seria obra do
Seminário de Olinda, organizado em 1800 por Azeredo Coutinho, e da Real Academia Militar”,
instituição que “logrou manter o espírito da Reforma [pombalina] de 1772, elaborada sob a
égide de suposição de que o núcleo do saber encontra-se nas ciências experimentais”. Destaca
ele ainda que já na década de 1850, a Real Academia, “formava não apenas militares mas
igualmente engenheiros e outros quadros técnicos”, sendo posteriormente desmembrada em dois
estabelecimentos, sendo “o ensino militar, transferido para a Praia Vermelha e o ensino de
matemática, ciências físicas e naturais, e engenharia, aberto tanto a militares como a civis, que
ficava o Largo de São Francisco, com a denominação de Escola Central. Essa última passaria a
chamar-se Escola Politécnica, em 1874”. PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no
Brasil. 5ª edição revista. Londrina: UEL,1997, p.542-545.
158
grande nomeada, como é o caso do citado Luiz Pereira Barreto” (345). Ou
seja, ainda nesta altura, tanto ortodoxos comteanos quanto littréistas
estavam unidos à volta do mesmo intuito: propagar os conhecimentos
científicos e divulgar os ensinamentos do positivismo.
Mudemos de margem atlântica e focalizemos a situação portuguesa
nesse mesmo momento. Como se deram as iniciais manifestações do
positivismo em Portugal?
Tal como se passou no Brasil, também em Portugal o positivismo
teve suas primeiras manifestações vinculado à difusão das ciências naturais
e da matemática (346), sendo a partir da década de 1870 que a doutrina
positivista ganha maior relevo (347).Teófilo Braga foi seu maior divulgador.
De maneira geral, o positivismo consolida-se, em Portugal, imbricado no
âmbito do republicanismo, surgindo na esteira da transformação social
iniciada pelos dois movimentos de contestação das ideias já mencionados
(a Questão Coimbrã e as Conferências do Casino) e impondo-se como o
credo mais apropriado à dinâmica política e doutrinária em causa. Assim,
“de todas as correntes filosóficas presentes no horizonte intelectual
português da época (neo-escolástica, kantismo, espiritualismo,

345
PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina:
UEL,1997, p.550.
346
De acordo com Fran Paxeco, “foi sob o aspecto matemático, na Politécnica do Porto, com a
Mecânica Racional de Freynet, discípulo de Comte, e na Politécnica de Lisboa, com a
Geometria Descritiva, adoptada por Mariano de Carvalho”. PAXECO, Fran, Cartas de Teófilo.
Lisboa, Tipografia da Imprensa do Diário de Notícias, 1924, pp.26-27.
347
Dois intelectuais se destacam no início da difusão do positivismo em Portugal: Manuel
Emídio Garcia e Teófilo Braga. Do primeiro, lembramos, com Fernando Catroga, que “já em
1865-1866, Manuel Emídio Garcia, professor de Coimbra, comentava e aplicava o pensamento
de Comte nas suas aulas de Direito Administrativo”. Conforme CATROGA, Fernando. “Os
inícios do positivismo em Portugal: seu significado político-social”. Separata da Revista de
História das Ideias, vol.1, 1977, pp.315-316. Do segundo, mencionamos, em acordo com
Amadeu Carvalho Homem, que “após ter triunfado sobre Manuel Pinheiro Chagas e Luciano
Cordeiro no concurso que lhe deu acesso à docência no Curso Superior de Letras, realizado em
1872, Teófilo Braga veio a reger interinamente a cadeira de Filosofia Transcendental. Corria o
ano de 1872-73. Fiel è orientação teórica que passara a perfilhar, Teófilo reformulou o programa
dessa disciplina, imprimindo-lhe um cunho inequivocamente positivista”. HOMEM, Amadeu
Carvalho. Do Romantismo ao Realismo: temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto:
Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.95.
159
proudhonismo), nenhuma poderia responder a essa necessidade de auto-
reconhecimento doutrinal como o positivismo” (348). Contudo, há que
ressaltar a peculiaridade do processo de difusão do positivismo em
Portugal, posto que se trata de um fenômeno onde se combinará uma
filosofia claramente antidemocrática e antiliberal – como era a proposta de
Augusto Comte – com um movimento social onde o republicanismo
expressava um cariz democrático e liberal, retomando para si a tradição do
liberalismo vintista (349).
Nestas circunstâncias, a alternativa tomada é clara: alicerçados pelo
“espírito de positividade” da época, propagado pelos ensinamentos do
Cours de Philosophie Positive, os positivistas portugueses não
acompanharão a deriva religiosa do positivismo, manifesta no Systhème de
Politique Positive. Daí que, em Portugal, não será levado adiante, como, ao
invés, sucederá no Brasil, o incremento de uma facção ortodoxa dos
ensinamentos de Comte que haviam sido cultuados por Pierre Laffitte, em
França, e por Miguel Lemos e Teixeira Mendes, no Brasil. As divisões e
subdivisões dar-se-ão, esmagadoramente, em Portugal, no âmbito de um
littreísmo comum, na medida de uma maior ou menor incorporação dos
conhecimentos propagados pela ciência da época e na medida da maior ou
menor convergência em torno das estratégias a tomar para alcançar os
objectivos pretendidos no seio do republicanismo.
Uma prova disto pode ser encontrada na revista O Positivismo,
dirigida por Teófilo Braga e Júlio de Mattos. Em 1879, no fascículo de
Junho-Julho, Júlio de Mattos saudava a publicação da segunda edição do

348
CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologia
republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, pp.289.
349
Conforme assinalam CATROGA, Fernando, “A importância do positivismo na consolidação
da ideologia republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, pp.290-291, e
HOMEM, Amadeu Carvalho. O positivismo em Portugal : o contributo de Teófilo Braga.
Coimbra : Minerva, 1989, p.236.
160
livro Consérvation, Révolution et Positivisme, de Émile Littré (350). Nessa
ocasião, salienta o fato de que esta segunda edição da obra em muito se
diferenciava da primeira edição, feita em 1852, quando ainda Littré aderia
sem reservas aos preceitos da obra de Augusto Comte (351). Ao longo desta
recepção crítica, Júlio de Mattos cita, em diversos momentos, o prefácio
desta nova edição, onde Littré expõe suas divergências e “actualiza” a obra
comteana. Afinal, diz Littré – e Mattos faz questão de registrar – que “o
tempo, quando se prolonga, é um juiz das teorias” (352). Bem se vê, que a
adesão ao positivismo de Augusto Comte não veio desprovida de certo
distanciamento crítico que buscava sua actualização consoante os
conhecimentos científicos mais recentes. Estribado numa apurada
compreensão das demarcações sofridas pelo positivismo, Júlio de Mattos
afirma que “Augusto Comte, o poderoso criador da sociologia abstracta,
sistematizando a Filosofia Positiva deu origem, como Hegel, no seio da
própria escola a uma divisão dos seus discípulos. Pretendem uns a cuja
frente se colocou Laffitte, que entre todas as obras de Comte existe a mais
perfeita e completa harmonia, que desde as primeiras páginas do Curso até
as últimas da Política Positiva tudo é conexo, tudo se liga pelos laços da
mais estreita unidade” (353). Contudo, continua o heterodoxo positivista

350
LITTRÉ, Émille, Conservation, Révolution et Positivisme. Paris : Librarie Philosophique de
Ladrange, 1852.
351
Lembre-se que, ainda em 1851, era o tom empírico a marca do pensamento de Comte,
representado pelo Cours, recentemente publicado. Émile Littré não acompanhará Comte na
viragem do Système e do Apostolado, postura acompanhada pelos positivistas portugueses. A
posição de Littré diante da obra comtiana está bem expressa em seu texto “Estudo sobre os
Progresso do Positivismo”, escrito em 1876, sob a forma de novo prefácio à quarta edição do
Curso de Filosofia Positiva. Neste texto, escreve ele que “a obra de Comte é um ponto de
partida”, deixando clara sua abertura aos “progressos da ciência natural”. LITTRÉ, Émile.
“Estudo sobre os Progresso do Positivismo”, posfácio à COMTE, Augusto. Princípios de
Filosofia Positiva. São Paulo : Editorial Paulista, [s.d], p.178. A edição paulista consultada
contém os dois textos de Littré.
352
LITTRÉ, Émile. Conservation, Révolution, Positivisme. Deuxième édition, augmenté de
remarques courantes, chez Germer Ballière, 1879, apud Júlio de Mattos, “Bibliografia”. In: O
Positivismo, n.º5, junho-julho, 1979, p.393-401.
353
É assinalável que Mattos cite o ortodoxo Jorge Lagarrigue, companheiro de Miguel Lemos
em Paris, a partir de um artigo publicado por aquele intelectual chileno na laffitista Révue
161
português, “pretendem outros, à frente dos quais se acha Littré, que há nas
obras de Comte uma construção genial, e uma parte fantasista, efémera, o
produto bastardo de uma inteligência transviada, decadente”. E, se às
subdivisões internas ao positivismo não eram alheios os seus difusores
portugueses, também o não eram em relação aos veículos e às revistas de
divulgação de suas ideias, cuja conotação demonstravam sobejamente
conhecer: afinal, como remata Mattos, “destes dois ramos, o primeiro
constitui a escola chamada ortodoxa que admite e defende todas as
afirmações do mestre; o segundo é a escola dissidente que, aceitando as
ideias fundamentais contidas no Curso de Filosofia Positiva, recusa todas
as outras. Cada um destes grupos tem actualmente os seus órgãos; o grupo
de Laffitte tem a Revista Occidental, o grupo de Littré a Revista de
Filosofia Positiva” (354).
Se no Brasil se observou uma análoga (foi-o até determinado
momento) divisão entre ortodoxos e heterodoxos, em Portugal não restam
dúvidas da opção littreísta. Isto parece ficar claro quando vemos, por
exemplo, a publicação, naquela mesma revista O Positivismo, em 1879, de
um artigo de Teófilo Braga, intitulado “Constituição da Estética Positiva”,
que havia já sido publicado na Revista de Filosofia Positiva, dirigida por
Émile Littré e Wyrouboff, em 1875 (355), no qual Teófilo afirma
categoricamente que “o positivismo não é uma escola individual, mas uma
sistematização do estado dos espíritos, que se vai fazendo à medida que as

Occidentale (LAGARRIGUE, Jorge. Révue Occidentale, 2º ano, n.º3, p.373), onde afirmava
que “não há senão um só Positivismo, o que A. Comte construiu e desenvolveu com uma
admirável continuidade nas suas diversas obras, Sistema de Filosofia Positiva, Sistema de
Política Positiva, Catecismo positivista e Síntese Subjetiva”. Conforme MATTOS, Júlio de.
“Bibliografia”. In: O Positivismo,n.5, junho-julho, 1879, p.395.
354
MATTOS, Júlio de. “Bibliografia”. In: O Positivismo,n.5, junho-julho, 1879, p.395.
355
No entanto, os positivistas portugueses não hesitavam em revelar a divulgação da revista O
Positivismo tanto nas páginas da Philosophie Positive (no tomo XXII, p.154), do grupo
littreísta, como na Révue Occidentale, (em março de 1879), através das palavras do laffitista
Jorge Lagarrigue. Conforme Júlio de Mattos, Secção “Variedades”, O Positivismo, Primeiro
Anno, 1879, N.º6, 1879, pp.473480.
162
ciências vão dando mais largas provas às nossas convicções” (356). Posição
sugestiva não só da opção littreísta, mas da abertura para demais interfaces
com os conhecimentos das demais esferas científicas. Outra prova de que o
positivismo, em Portugal, trilhou os caminhos de uma versão heterodoxa,
de inspiração littreísta, onde foram incorporadas variadas influências
filosóficas (357), pode ser coletada no depoimento de Teixeira Bastos, para
quem Teófilo Braga “faz sentir a necessidade de uma comprovação geral
da doutrina positiva em face das mais recentes descobertas científicas,
provando que não pode ficar inalterável, como querem os Laffittistas, nem
deve ser combatida pela dialéctica, como o faz Huxley” (358).
No contexto brasileiro, porém, a subdivisão do grupo positivista
parisiense, descrita acima por Júlio de Mattos, terá repercussões de monta
no processo de difusão das ideias positivistas. Como se verá a seguir, isto
ocasionará um reposicionamento de alguns importantes divulgadores da
doutrina no Brasil, bem como forçará a ruptura de outros com o
movimento, demarcando diferentes grupos de recepção ao positivismo.

2.2. Ortodoxias e Heterodoxias: primeiras demarcações

Se até 1876 a difusão do positivismo no Brasil não apresenta


maiores rupturas em seu processo, este quadro irá se alterar logo no ano

356
BRAGA, Teófilo. “Constituição da Estética Positiva”, In: O Positivismo, primeiro anno, n.6,
agosto-setembro, 1979, p.411.
357
Mencione-se, a este respeito, que, por exemplo, no texto anteriormente mencionado de
Teófilo Braga, “Constituição da Estética Positiva”, o autor faz referências a Comte e Cournot,
além de citações de Émile Littré, J.G. Herder, Max Müller e Stuart Mill, combinando, deste
modo, o positivismo (Comte) em sua vertente heterodoxa francesa (Littré) e inglesa (Stuart
Mill), agregando-lhes as interpretações germâncias anti-universalistas (Herder) que se voltam
para as análises das genealogias linguísticas e raciológicas (Max Müller). A seguir, neste
trabalho, dedicaremos mais atenção a esta mistura de referências teóricas.
358
Teixeira Bastos refere especificamente a obra Traços Gerais de Filosofia Positiva, publicada
por Teófilo Braga em 1877. BASTOS, Teixeira. Teófilo Braga e sua obra: estudo
complementar das “Modernas ideias na Literatura Portuguesa”. Porto: Livraria Internacional
de Ernesto Chardron, 1892, p.268-269.
163
seguinte, em 1877. A transferência de Miguel Lemos e Teixeira Mendes
para Paris, para completar seu curso politécnico, implicará uma divisão de
águas no cientificismo brasileiro. Chegado à capital francesa, Miguel
Lemos entra em contato com o grupo littreísta e logo se desilude. Na
Primeira Circular Anual do Apostolado do Positivista do Brasil, de 1881, a
descrição desse encontro, feita pelo próprio Miguel Lemos, não deixa
qualquer dúvida: “verifiquei por mim mesmo que aquele que nós
julgávamos um chefe de escola, ardente, incansável em promover a
regeneração universal ensinada pelo Mestre, não passava de um erudito
seco, sem nenhuma ação social, insulado no seu gabinete, ocupando os
ócios da velhice adiantada em renegar tudo quanto aprendera na
convivência do grande Construtor. O famigerado pretenso chefe da escola
positivista era apenas um paciente investigador de vocábulos, sem
entusiasmo, sem fé, absorvido pelas minúcias de uma erudição estéril”
(359). Esta decepção com a pretendida esterilidade e secura do saber
cientificista de Littré fez com que o futuro líder do Apostolado positivista
brasileiro entrasse em contacto com o grupo de positivistas ortodoxos
liderado por Pierre Laffitte, que se reunia aos domingos para ministrar
cursos de “filosofia primeira” no apartamento que fora habitado por
Augusto Comte, situado à rua Monsieur-le-Prince, na capital francesa.
Ainda na Primeira Circular, Lemos acrescenta, em linguagem
inspirada por fervor de positivista religioso: “suspeitei logo que o novo
redentor podia ter tido também o seu Judas e a sua Cruz, e dei começo ao
julgamento de E. Littré perante mim mesmo. Esta resolução foi tanto mais
difícil para as minhas condições pessoais, quanto eu recebera de Émile
Littré repetidas provas de benevolência literária. Não se tratava, porém, de

359
LEMOS, Miguel. Primeira Circular Anual do Apostolado do Positivista do Brasil (1881).
Citado por COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção
Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio, 1956, p.171.
164
poupar minha vaidade, mas de reparar os meus erros e as minhas
injustiças” (360). Será neste contexto que Miguel Lemos empreenderá a
leitura do Systhème de Politique Positive de Augusto Comte, obra que
marca a inflexão do chefe do positivismo para a vertente mais ortodoxa do
apostolado (361).
Ora, para compreendermos a conversão de Miguel Lemos, por
ocasião de sua estada em Paris, é fundamental termos presente que as duas
principais correntes do pensamento positivista francês – a ortodoxa,
liderada por Pierre Laffitte, e a dissidente, liderada por Émile Littré –, são
oriundas de compreensões distintas da própria evolução do pensamento de
Augusto Comte, representadas geralmente por duas de suas obras: o Cours
de Philosophie Positive (1830-1842) e o Système de Politique Positive
(1851-1854). Tal como explica Amadeu Carvalho Homem, o pensamento
de Augusto Comte no seu Curso de Filosofia Positiva “situa-se no
prolongamento do kantismo, pelo menos quanto à distinção entre
fenómenos e númenos. Comte aceita, na esteira de Kant, que só possa ser
objecto do conhecimento científico tudo o que for explicável, de forma
directa e inequívoca, no plano da cognição, através da mediação dos órgãos
dos sentidos” (362). Trata-se de uma perspectiva assaz empirista do ponto de
vista da construção do conhecimento, bem como de um viés agnóstico no
plano axiológico. Nem Deus, nem a Criação, nem nada que remeta à
transcendência diz respeito ao conhecimento científico. Este, apenas pelo

360
Idem, ibidem, p.171-172.
361
Foi também neste momento que Miguel Lemos conheceu o chileno Jorge Lagarrigue que, tal
como o brasileiro, também veio da América do Sul com ares littréistas e se convertera ortodoxo
e seguidor de Pierre Laffitte e da Religião da Humanidade em sua estada em Paris. Desenha-se
aqui um eixo analítico estruturado sobre as conexões entre os positivistas chilenos e brasileiros.
Não é causal que R.P. Gruber, em sua obra sobre a difusão do positivismo depois de Comte, se
refira ao “groupe brésilien-chilien”. GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’à nos
jours. Paris : Lethielleux, 1893, pp.193-218.
362
HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo: temas de cultura portuguesa
(século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.81.
165
método tradicional de observação e análise de dados, pode ser
fundamentado.
No entanto, a partir de 1851, ano em que publica os primeiros
volumes do Sistema de Política Positiva, Augusto Comte empreende uma
importante inflexão no seu pensamento (363). A partir de então, seu sistema
de pensamento não mais dará exclusividade à razão na construção do
conhecimento e na fundamentação da moral. A emoção, o amor e o
sentimento terão maior ou igual papel na organização de suas ideias. É
relevante ter presente que esta inflexão não significou um retorno ao padrão
metafísico teológico, tão atacado pelo positivismo em seu início.
Representou um peculiar processo de laicização da metafísica, onde se
percebe uma deificação da figura da Humanidade e a assunção da proposta
moral do altruísmo como ação social positivista (que se contraporia ao
egoísmo estéril do liberalismo). Este é o ponto onde surge a ideia de
construir a Religião da Humanidade, alvitre que Miguel Lemos tomará
como sua missão em seu regresso ao Brasil, após receber, das mãos do
chefe do Apostolado Positivista de Paris, o grau de aspirante ao sacerdócio
da humanidade, em 25 de Novembro de 1880 (364).
Antes desse seu regresso, porém, em 5 de Setembro de 1879, a
Sociedade Positivista do Rio de Janeiro declara filiação à direção de Pierre
Laffitte. Tratava-se do 21º aniversário da morte de Comte (365). A

363
Resumidamente, dizemos com Carvalho Homem que, “profundamente marcado por um
serôdio amor platónico desencadeado por uma mulher mais jovem, Clotilde de Vaux, que lhe
morrerá nos braços com as hemoptises da tísica, o filósofo irá reavaliar todo o sistema. Esta
reavaliação será de molde a considerar muito redutor o exclusivismo da racionalidade na
estruturação geral da sua proposta”. HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao
Realismo: temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fundação Eng. António de
Almeida, 2005, p.81. Para mais informações sobre a biografia de Comte, indicamos GRUBER,
R. P. Auguste Comte: fondateur du positivisme: sa vie – sa doctrine. Paris: Lethilleux, 1892.
364
Percebemos, com isto, que foi neste contexto que Miguel Lemos escreveu sua obra sobre
Luiz de Camões, dedicada à Laffitte, no âmbito das comemorações camonianas, que já
mencionámos, e que teve repercussão tanto no Brasil como em Portugal.
365
A este respeito, justifica-se citar um trecho significativo do discurso feito por Miguel Lemos,
em Paris, diante do túmulo de Augusto Comte. Tendo Jorge Lagarrigue ao lado, em dezembro
de 1879, Lemos declarava que “como filhos das duas nações que se acham reunidas, em tua
166
Sociedade era presidida por “Joaquim Ribeiro de Mendonça. Afastavam-se
os dissidentes, como Pereira Barreto, mas permaneciam algumas
personalidades que, ainda que sem aceitar as doutrinas de Littré, iriam
porém recusar a transformação do positivismo numa seita religiosa da mais
rígida ortodoxia, a exemplo de Benjamin Constant” (366). É tendo por fundo
este cenário que, logo que retorna ao Rio de Janeiro, em início de 1881,
Miguel Lemos assumirá a direção da Sociedade Positivista do Rio de
Janeiro. Nesse momento, cria a instituição que representará a baliza mais
ortodoxa do positivismo no Brasil, o Centro Positivista Brasileiro ou Igreja
Positivista Brasileira, que possui como propósitos fundamentais o
desenvolvimento do culto positivista, a organização do ensino doutrinário e
eventuais intervenções nos negócios públicos.
Detenhamo-nos agora nas duas primeiras figuras positivistas de
topo que, após a inflexão ortodoxa de Miguel Lemos e Teixeira Mendes,
não aderiram às propostas do Apostolado positivista: Luiz Pereira Barreto e
Benjamim Constant.

teoria histórica, sob a denominação geral de Espanha, ainda te devemos gratidão especial.
Quando todos, arrastados por falazes preconceitos científicos de nossa época, falavam com
desprezo dessas duas nacionalidades, das quais uma se resume no engenho incomparável de
Cervantes, e a outras nos feitos de seus ousados navegantes, cantados pelo imortal Camões, tu
somente lhes assinalavas com justiça o papel coletivo que lhes coube na evolução do Ocidente,
atribuindo-lhes sobretudo a cultura do sentimento da fraternidade e da dignidade humana. É
também como americanos, e pelo mesmo motivo, que nós te devemos o ter podido reconstituir
os sentimentos de continuidade histórica com as nossas mães pátrias, apesar dos ódios gerados
pelas lutas da independência nacional. Mas não bastam agradecimentos: é preciso continuar a
propagar a tua obras. (…) A todos nós, grandes e pequenos, que nestes tempos de ceticismo
tivemos a insigne ventura de conhecer e de aceitar a religião universal, impõe-se o dever de
espalhar a boa nova e de repetir, como S. Paulo aos corações dilacerados pelos conflitos
suscitados entre um dogma que acaba e outro que começa: Nosso Deus desconhecido, ei-lo, nós
vo-lo trazemos. Por isso, tomamos hoje à beira de teu túmulo, o compromisso solene de
consagrar todo o nosso devotamento, toda a energia do nosso ser, à propagação de tua doutrina
regeneradora”. LEMOS, Miguel Lemos. Primeira Circular Anual do Apostolado do Positivista
do Brasil, p.29, citado por COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil.
Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio, 1956, p.180.
366
PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina:
UEL,1997, p.552.
167
Luiz Pereira Barreto entrou em contato com o positivismo enquanto
cursava medicina na Universidade de Bruxelas (367). De volta ao país,
publica As três filosofias, em 1874, e estabelece-se em São Paulo, onde terá
um afamado consultório médico, bem como lecionará na Escola de Direito
de São Paulo, de 1875 a 1890, tomando a seu cargo a divulgação do
positivismo (368). De acordo com Ivan Linz, Luiz Pereira Barreto “estava
em dia com o movimento intelectual do seu tempo, dilatando os seus
conhecimentos além dos marcos atingidos no dia da morte de Comte” (369).
No mesmo sentido argumenta João Cruz Costa, para quem “Pereira Barreto
procurava na filosofia positiva mais um método do que propriamente uma
doutrina”, sendo, antes de tudo, “um espírito relativista para o qual as
fórmulas têm pouca importância e em que os fatos – sempre mutáveis –
tudo dominam” (370). Antônio Paim, por sua vez, chama-o de “positivista
ilustrado”, ressaltando sua vertente liberal, não-religiosa, pedagógica e anti-
autoritária (371). Não é casual, assim, que, enquanto positivista heterodoxo,
Luiz Pereira Barreto, apesar de ter assinado a ata de fundação da primeira
Sociedade Positivista brasileira, em 1876, não tenha seguido esta
instituição, quando de sua deriva ortodoxa para o Apostolado, sob a chefia
de Miguel Lemos.

367
Luiz Pereira Barreto fora iniciado no positivismo “pela filha de um positivista de primeira
hora – o prussiano von Ribbentrop”, tendo defendido, em 1865, na Faculdade de Medicina de
Bruxelas, a tese positivista Teoria das Gastralgias e das Nevroses em geral. LINZ, Ivan. “O
Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, pp.8-9.
368
Merece destaque que tenham sido seus alunos os positivistas ortodoxos e autoritários Júlio de
Castilhos, Borges de Medeiros, ambos presidentes da Província do Rio Grande do Sul entre
1891 a 1928, bem como Alcides Maia, importante folclorista gaúcho, também influenciado por
Karl von Koseritz neste âmbito.
369
LINZ, Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da
Educação e Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, p.9.
370
COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos
Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio,
1956, p.158.
371
PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina:
UEL,1997, p.556.
168
Outra personagem importante na difusão do positivismo no Brasil
foi Benjamim Constant Botelho de Magalhães (372). Professor da Escola
Militar e matemático, sua ação no movimento das ideias no século XIX foi
decisiva para os acontecimentos políticos que levaram à proclamação da
República em 1889 (373). Sobre ele afirma João Cruz Costa que, embora
aceitando a filosofia de Augusto Comte, “não era ortodoxo” (374). Na
realidade, a trajectória positivista de Benjamim Constant teve sentido
inverso à de Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Estes, como expusemos,
migraram de uma versão mais littreísta – da ciência positiva, de acento
empiricista e agnóstico – para o patamar ortodoxo da Religião da
Humanidade, aceitando a integralidade da doutrina comteana. Benjamim
Constant, ao contrário, se na juventude tinha sido ardoroso defensor do
comtismo, iria ver este fervor arrefecer com o passar do tempo (375). Em
nosso entendimento, esta mudança explica-se por duas ordens de razões:
uma estritamente doutrinária e outra mais conjuntural. Do ponto de vista
doutrinário, lembre-se, o próprio Comte era avesso ao militarismo (376),

372
Benjamim Constant entrou em contacto com as ideias de Augusto Comte justamente no ano
da morte deste (1857). Pelo intermédio de um dos discípulos do fundador do Positivismo, o
bibliotecário L. A. Segond, que se achava no Rio de Janeiro nesta altura, parecem ter sido
vendidos exemplares do Curso de Filosofia Positiva de Comte a alunos da Escola Militar, onde
estudava Benjamim Constant. Para mais informações, consultar LINZ, Ivan. “O Positivismo no
Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Biblioteca
Nacional, 1959, p.8.
373
Para Antônio Paim, a proclamação da República teve em Benjamim Constant “sua principal
figura”. Sua importância no republicanismo não escapou a R. P. Gruber, que considera que “il
fut aussi le principal investigateur et l’âme de la révolution qui éclata au Brésil en novembre de
1889. Il préparait depuis longtemps par son enseignement à l’École normale et à École
polytechnique de Rio de Janeiro”. PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª
edição revista. Londrina: UEL,1997, p.556; GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte
jusqu’à nos jours. Paris : Lethielleux, 1893, p.195.
374
COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos
Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio,
1956, p.241.
375
Segundo Cruz Costa, “o ardor religioso positivista de Benjamim Constant iria, porém,
arrefecer mais tarde”. COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção
Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio, 1956, p.148.
376
Não custa lembrar que, na sua Filosofia da História, a primeira época da história da
humanidade era justamente definida pela marca da Teologia e pelo Militarismo, devendo, deste
169
aspecto que terá pesado nas opções deste Professor da Escola Militar (377).
O motivo conjuntural, por assim dizer, deve-se à negativa de Benjamim
Constant à proposta do diretor do Centro Positivista do Rio de Janeiro,
Miguel Lemos, que propunha a obrigatoriedade da contribuição dos
membros da instituição positivista para o sustento dos sacerdotes (378).
Benjamim Constant desliga-se do Apostolado em Janeiro de 1882.
Em face do exposto, estamos agora em condições de perceber que
havia, no mínimo, três correntes do positivismo no Brasil: uma primeira, a
autoritária e ultra-ortodoxa do Apostolado Positivista, onde se destacam
Miguel Lemos e Teixeira Mendes; uma segunda corrente, que representa
uma versão heterodoxa voltada para as ciências naturais e profundamente
marcada pelos militares, tendo à sua frente Benjamim Constant; uma
terceira corrente, também heterodoxa, mas com consistente atitude política
democrática e liberal, sintetizada na figura de Luiz Pereira Barreto. Por ora,
basta registramos este quadro, que sintetiza os primeiros passos da difusão
do positivismo no Brasil. A ele voltaremos adiante. Falemos novamente do
caso português.
Oriundo de um curioso “eclectismo”, como afirma Catroga, ou de
um “sincretismo”, na acepção de Carvalho Homem, o fato é que o
positivismo português tem como referência direta Émile Littré e não
Augusto Comte, exprimindo-se em um republicanismo de variada
coloração que se manifestava numa atmosfera social de questionamento e

modo, e depois de uma fase de transição, ser superada pela época marcada pelo espírito
positivo. Comte, Auguste. Opuscules sur la philosophie sociale. Apêndice ao IV volume de
Système de Politique Positive, [1822], pp.112-113. Conforme COMTE, Augusto. Augusto
Comte: sociologia. Organizador Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática, 1978, p.134.
377
“Augusto Comte entendia que as forças armadas deveriam ser transformadas em simples
milícias cívicas, destinadas ao policiamento das cidades e do interior. Em vão os membros do
apostolado iriam lembrar a pretensa incompatibilidade entre o positivismo e qualquer forma de
militarismo. Na pregação de Benjamim Constant, a elite militar tornava-se mais que simples
porta-voz da Nação”. PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição
revista. Londrina: UEL,1997, p.560-561.
378
Idem, ibidem, p.553.
170
modernização, conformando um complexo ideário ancorado numa estética
marcadamente cientista. Compreende-se, nesta perspectiva, que o
republicanismo português não se constituísse em movimento
completamente homogêneo – pois nem mesmo a comum recusa da
ortodoxia positivista impediu diferenças internas ao republicanismo. Estas,
por sua vez, remetiam às diferentes compreensões sobre o modo como a
República seria proclamada no país: por via revolucionária, através de uma
abrupta tomada de poder, ou pela via do convencimento das massas, pela
evolução natural da sociedade portuguesa. Ora, estas duas estratégias
divergentes respondiam às nuances dentro do próprio pensamento
positivista heterodoxo e remetiam, por assim dizer, às distintas “leituras”
do processo histórico.
Como é sabido, de acordo com a teoria positivista de Augusto
Comte, a República representava a forma de governo correspondente à
última fase da evolução da humanidade, marcada pelo espírito positivo e
pela cientificidade. Semelhante leitura, entretanto, não resolvia ainda, de
modo cabal, a questão: restava por explicar “como” uma sociedade em
transição – como era a portuguesa, conforme a leitura dos positivistas –
daria o derradeiro passo rumo ao último estágio da célebre Lei dos Três
Estados comteana. Esta questão, por sua vez, implicava um posicionamento
quanto à ação humana frente ao “motor” da história. Viria a República
“naturalmente”, ou necessitaria de uma “ajuda”, sob forma da ação
revolucionária? Qual a influência da ação humana na história? As respostas
desembocavam amiúde em apreciações de princípio quanto à evolução da
humanidade e quanto ao papel do homem na história (379). Remetiam,

379
A importância destas questões, no âmbito do positivismo português, e não só, pode ser
vislumbrada em diversos textos publicados na revista O Positivismo. Merece destaque o de
Consiglieri Pedroso “O Fortuito na história”, onde o autor, adepto da posição moderada, que via
uma inexorável evolução histórica rumo à República, afirma que “estes accidentes que Littré
appellidou de – fortuito na história – por isso mesmo que em nada alteram a direcção definitiva
do movimento social, quando originados conscientemente são tanto mais insensatos, quanto é
171
também na defesa de estratégias políticas muito diferentes: revolução ou
evolução.. Não é à toa, por conseguinte, a importância concedida por Júlio
de Mattos à reedição do livro de Émile Littré, em 1879, Conservação,
Revolução, Positivismo. Por essa altura, com efeito, a repercussão destas
questões dentro do heterodoxo positivismo requeria uma ativa mobilização
teórica, paralela às movimentações desencadeadas no âmbito do
movimento republicano português (380).
“Axiologicamente híbrido”, como refere Catroga (381), o
republicanismo português dividia-se em dois conjuntos: os radicais,
adeptos da “via rápida” revolucionária, e os moderados, que acreditavam
que a República seria o cume de uma evolução da sociedade por intermédio
de uma crescente divulgação dos conhecimentos científicos. Aliás, matizes
divisórias deste teor eram à época bem evidentes. Manuel Emídio Garcia,
por exemplo, distinguia os “republicanos revolucionários” dos
382
“republicanos evolucionistas” ( ).
Por outro lado, cabe evocar a demarcação que resulta da interface
com Espanha, devido ao eco da revolução espanhola em 1868. De forma
resumida, pode-se considerar que, no reacender da “Questão Ibérica”, dois
grupos se distinguiam transversalmente aos países da Península: os
“unitaristas”, que sonhavam com a unificação dos tronos espanhol e
português numa mesma coroa, e os “federalistas”, que enxergavam na
revolução espanhola os indícios de um quadro em que os diversos povos da

certo que são de todo o ponto inúteis”. PEDROSO, Consiglieri. “O Fortuito na história”. In: O
Positivismo, Primeiro Anno, n.º1, outubro-novembro, 1879, p.18.
380
Como demonstra Teixeira Bastos, em “Conservação e Evolução”, onde afirma que “uma
reforma radical é impossível em absoluto”, por considerar que é “do equilíbrio variável entre o
espírito de conservação e o de revolução, que nasce esse movimento constante e progressivo,
reformador e reorganisador – a evolução”. BASTOS, Teixeira Bastos. “Conservação e
Evolução”, O Positivismo. Segundo Anno, n.º2, dezembro-janeiro, 1880, p.122-123.
381
CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologia
republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, p.292.
382
Conforme Manuel Emídio Garcia, O partido Republicano, In: O Partido do Povo, n.º58,
Março, I ano, pp.1. Citado por CATROGA, Fernando. “Os inícios do Positivismo em Portugal:
o seu significado político-social”. Revista de História das Ideias, volume I, 1977, pp.287-384.
172
Península adeririam ao modelo republicano e federalista (383). Como
exemplo desta subdivisão, basta mencionarmos o opúsculo Portugal
perante a Revolução Espanhola, de Antero de Quental (384), de 1868, bem
como as palavras divulgadas na revista O Positivismo, em 1879 (385),
através da qual Teófilo Braga acolherá a célebre obra Las nacionalidades,
de Pi y Margall, um dos ícones do republicanismo espanhol (386). Tudo isto,
portanto, no contexto de um quadro comprovadamente não uniforme, cuja
leitura autoriza dizer, com a chancela de Amadeu Carvalho Homem, que os
republicanos portugueses estavam “divididos entre a facção moderada e
unitária de José Elias Garcia, Bernardino Pinheiro e Gilberto Rola e a
sensibilidade radical e federalista de Carrilho Videira, Silva Pinto e Teófilo
Braga” (387).
É possível detectar, porém, já em 1880, na esteira das festas
comemorativas do Centenário de Camões, alguma aposta na unidade no
movimento republicano (388). Devido à grande adesão às comemorações
(389), a estratégia pacífica e moderada conseguiu razoável hegemonia

383
Para uma análise pormenorizada da questão ibérica no âmbito nacional português, entre
outros, sugerimos CATROGA, Fernando. “Nacionalismo e ecumenismo. A questão ibérica na
segunda metade do século XIX”. Cultura, História, Filosofia, vol.6, 1985, pp.419-63 e
HOMEM, Amadeu Carvalho. “O tema do iberismo no republicanismo federalista português”.
In: LEAL, Ernesto Castro (org.). O Federalismo Europeu. História, Política e Utopia. Lisboa:
Edições Colibri, 2001, pp.81-88.
384
“Portugal perante a revolução espanhola” (1868). In: QUENTAL, Antero de Prosas sócio-
políticas. Apres. de Joel Serrão. Lisboa: INCM, 1982.
385
BRAGA, Teófilo. Secção “Bibliographia: Las Nacionalidades, por Pi y Margall. O
Positivismo. Primeiro Anno, N.º4, Abril-Maio, 1879, pp.300-307.
386
É curioso que o volume divulgado em Portugal é uma tradução francesa, inserida no volume
1 da “Bibliothéque de Philosophie Contemporaine” e não a edição espanhola. PI Y MARGALL,
Francisco. Las nacionalidades. 2ª ed. Madrid, 1877, 380p.
387
HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para a história do republicanismo portuense, no período
anterior ao Ultimato”. In: Biblos. Vol. LXXI,1995, p.362.
388
Conforme CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da
ideologia republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, p.293. Importa,
contudo, a isto agregar a existência de divisões entre o republicanismo do Porto e o de Lisboa.
Sobre isto, consultar o estudo de HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma história do
republicanismo portuense”. In: Biblos, Vol.LXXI, 1995, p.363.
389
Com repercussões importantes no Brasil, tal como expusemos em capítulo anterior. Neste
caso, porém, importa dar relevo aos múltiplos efeitos das Comemorações Camonianas de 1880.
Se no âmbito interno ao republicanismo português, as festas em homenagem a Camões
173
enquanto estratégia política de convencimento no modelo natural da
chegada da República em Portugal. Tratar-se-á de uma tendencial
confluência das perspectivas republicanas, que pode ser resumida, com
Fernando Catroga, na ideia de que “o positivismo heterodoxo e republicano
culminava, assim, na defesa de uma república demo-liberal, evolutiva,
conservadora, descentralista e federalista, situada na linha do romantismo
liberal” (390).
Este patamar “conciliatório” do republicanismo positivista
português (391) não foi, contudo, alcançado pelos positivistas republicanos
no Brasil. E se no caso português havia um solo heterodoxo comum entre
os positivistas (onde as diferenças estavam situadas nas estratégias de
chegada ao poder em uma proposta democrática e liberal), no caso
brasileiro, ao invés, o cenário aparenta menor horizontalidade. Importa, por
isso, considerar a diversidade doutrinária do positivismo no Brasil, bem
como suas consequentes distinções na estratégia política do
republicanismo.

representaram a formação de um consenso em torno da estratégia política moderada, na escala


luso-brasileira, significou, por outro lado, uma tentativa de construção de uma “aliança mental”
luso-brasileira, conforme demonstrámos.
390
O autor realça ainda o acento étnico e histórico-cultural da doutinação teofiliana, aafirmando
residir neste ponto o interface do positivismo demo-liberal de Teófilo e, de resto, do
republicanismo federalista português, com a busca de uma “origem” moçárabe para Portugal, no
âmbito dos diversos “povos de Espanha”, em conformidade com a compreensão de Pi y
Margall. O federalismo português está relacionado com a fragmentação federalista de Espanha.
CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologia
republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol. LIII, Coimbra, 1977, p.306.
391
Esta conciliação do republicanismo português só viria a se completar com a criação do
Partido Republicano, proposta encabeçada por Manuel de Arriaga, e levada a cabo no período
de 1881-1883. Conforme HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma história do republicanismo
portuense”. In: Biblos, Vol. LXXI, 1995, p.367.
174
2.3. Os eixos ultra-ortodoxo e demoliberal

Seguindo alguns intérpretes, como, por exemplo, João Cruz Costa,


podemos recordar que apesar da influência de Comte apresentar variados
aspectos e matizes dentro de um mesmo fundo doutrinário comum, houve
sempre “acomodação a condições e necessidades especiais de cada um dos
grupos” fazendo “variar o sentido da doutrina, em função dos seus próprios
temperamentos”. É neste ponto que se torna possível observar quer as
repercussões “da dissidência que já se havia esboçado ainda em vida do
filósofo e de que seria chefe Émile Littré”, quer o aparecimento de “novas
formas de heterodoxia e, sobretudo, querelas entre os diferentes grupos”.
Nesse processo de luta entre todos aqueles que se consideravam ser os
“verdadeiros” representam da teoria comteana, o grupo representado por
Miguel Lemos e pelo Apostolado Positivista do Brasil, tomará posição que
um “significativo rigorismo ortodoxo (392).
Atente-se com a devida cautela neste ponto. Este cariz de extremo
rigorismo ortodoxo de Miguel Lemos, em nosso entender, é um elemento-
chave para a compreensão das diversas facetas de influência do positivismo
no Brasil. Na verdade, tomando em consideração os posicionamentos
assumidos pelo Apostolado Positivista do Rio de Janeiro, podemos intuir
algumas das linhas seguidas pela mobilização das ideias de Comte no país.
Um exemplo disto está na série de lideranças que romperam com a
ultraortodoxia de Miguel Lemos. Já mencionámos que Luiz Pereira Barreto
e Benjamim Constant romperam com o Apostolado. Vejamos agora o caso
– algo sui generis – da ruptura do grupo ortodoxo brasileiro com a própria
ortodoxia positivista de Pierre Laffitte.

392
COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos
Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio,
1956, pp.169-170.
175
Resumidamente, as causas desta ruptura são duas, ambas
relacionadas com a ânsia punitiva de Miguel Lemos diante das indiscrições
e indisciplinas de Ribeiro de Mendonça, antigo divulgador do positivismo
no país. A primeira dizia respeito à intenção deste em candidatar-se à
deputação, postura claramente censurada pela ortodoxia. A segunda
questão referia-se ao facto de Ribeiro de Mendonça ter oferecido, em
anúncio em jornal, uma recompensa financeira àquele que lhe recapturasse
um escravo fugido, postura completamente descabida na perspectiva da
ortodoxia positivista, pois, como se sabe, a doutrina era intransigentemente
contrária a qualquer tipo de escravidão ou servilismo. O facto é que, no
tocante a estes dois casos, Miguel Lemos teria enviado cartas ao chefe
francês do positivismo, demandando que lhe chancelasse suas
determinações. A resposta de Pierre Laffitte veio sob a forma de pedido
para que Miguel Lemos tivesse maior prudência e capacidade de
relativização (393). Ora, ao que tudo indica, estas duas qualidades não
estariam propriamente bem posicionadas no repertório de ideias do chefe
do Apostolado Positivista do Brasil. Tanto assim é que, depois de se ter
afastado da “estéril erudição” de Émile Littré, em 1881, na Primeira
Circular do Apostolado Positivista do Brasil, Miguel Lemos surge agora,
em 1883, na Terceira Circular, a denunciar “a disposição
fundamentalmente cética” de Laffitte, acusando-o de ser um “filho de
Voltaire” (394). De modo declarado, a ortodoxia de Lemos “ultrapassava” o
rigorismo laffittista.
Revelam-se esclarecedoras as observações de R. P. Gruber sobre o
que poderíamos designar por eixo ultraortodoxo que ligaria Brasil, Chile e
393
Conforme COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção
Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio, 1956, pp.214-224. A versão de Miguel Lemos sobre estes fatos está impressa na
Terceira Circular do Apostolado Positivista, de 1883, bem como no opúsculo Pour Notre
Maitre e Notre Foi – Le Positivisme et le sophiste Pierre Laffitte.
394
Terceira Circular do Apostolado Positivista (1883), citado por COSTA, João Cruz. Obra
citada, p.225.
176
Inglaterra e se teria construído em oposição ao “sofismo” doutrinário de
Laffitte em Paris. Conforme esclarece Gruber, em conformidade com a 37ª
circulaire, de 1885, as questões relativas à utopia da Virgem Maria
demonstram bem a separação entre a ortodoxia laffittista e a ultra-ortodoxia
de Lemos, Lagarrigue, Audiffrent e Congreve, na medida em que o chefe
do catecismo parisiense via na utopia da Virgem Maria “un limite idéale”,
o que muito se distanciava do entendimento que faziam Audiffrent,
Lagarrigue e Lemos que “s’en tiennent strictement à la conception d’Aug.
Comte, à savoir que cette utopie est simplement «le résumé syntéthique» de
la réligion positive”, posturas aclaradas na Lettre à Miguel Lemos et à tous
ceux que réunit autour de lui l’amour de l’Humanité, par le Dr. G.
Audiffrent, de 1887. O fato é que Miguel Lemos separou-se de Laffitte
chamando-o de “sofista”. Passo semelhante também deram Audiffrent,
Jorge Lagarrigue e Congreve. Ou seja, chegamos ao ponto de constatar
que, para além da tradicional ruptura entre ortodoxos e heterodoxos
ocorrida na França, a existência de um eixo de pensamento positivista que
liga os chefes do Apostolado positivista brasileiro ao chileno Jorge
Lagarrigue e aos britânicos Audiffrent e Congreve. Chamaremos este grupo
de ultra-ortodoxo, pois ele é oriundo, como se viu, da ruptura com a chefia
da ortodoxia parisiense de Pierre Laffitte (395).
Uma vez identificado este eixo ultraortodoxo – e sobretudo porque
a sua identificação parece processar-se ao nível de um intercâmbio e de
uma circularidade de ideias transnacionais – cabe fazer a seguinte pergunta:
teriam os demais eixos positivistas estabelecido, no quadro da heterodoxia,
intercâmbio de ideias e estreitamento de relações em escala supranacional,
e, desta feita, à escala luso-brasileira? Diante da intensa circulação de
ideias e da acurada divulgação de trabalhos científicos, cuja vitalidade e

395
GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’à nos jours. Paris: Lethielleux, 1893,
p.201-.207.
177
abrangência surpreendemos já na parte I deste trabalho, torna-se pertinente
a abertura desta linha de raciocínio, até porque os dados já coligidos do
lado português, ao denotarem a opção heterodoxa, levam a supor um
prolongamento de posições envolvendo os eixos heterodoxos das duas
margens do Atlântico.
A resposta à questão colocada terá de ser afirmativa. De fato, ao
longo da nossa investigação, foi possível estabelecer níveis de
relacionamento entre o positivismo heterodoxo português e o segmento
daqueles brasileiros que, ao romperem com a ultraortodoxia do Apostolado,
propagavam a importância da ciência positiva, da pesquisa empírica e das
novas conquistas da ciência. Engrossavam as fileiras da heterodoxia
positivista, a confirmar aquilo que Amadeu Carvalho Homem, ao referir-se
ao caso português, chamou de “sincretismo cientificista” (396). Na verdade,
este “sincretismo” foi também alimentado por vários intelectuais
brasileiros, incluindo-se neste grupo, naturalmente, os heterodoxos
positivistas de vária coloração.
Este eixo luso-brasileiro do positivismo heterodoxo e demoliberal,
que terá em Teófilo Braga seu principal expoente em Portugal, e em Luiz
Pereira Barreto a principal figura no Brasil (397), teve nas páginas da
Revista de Estudos Livres um amplo canal de divulgação científica luso-
brasileira (398). Não foi sem razão, portanto, que surpreendemos uma
intensa atividade de divulgação científica na esfera cultural luso-brasileira.

396
HOMEM, Amadeu Carvalho. Do romantismo ao realismo: temas de cultura portuguesa
(século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.98.
397
A ruptura de Miguel Lemos com Laffitte e com Luiz Pereira Barreto deu origem a alguns
equívocos de interpretação, como o de Mozart Pereira Soares, para quem Luiz Pereira Barreto
se manteve fiel a Laffitte. Pelos argumentos já expostos e até pela proximidade dele com
Teófilo Braga, é nítida sua orientação heterodoxa e, portanto, nada relacionada com a ortodoxia
de Pierre Laffitte. SOARES, Mozart Pereira. O Positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto
Comte. Porto Alegre: AGE, Editora da Universidade, 1998.
398
Lembre-se que a mencionada revista tinha, no biénio 1883-1884, dupla direção: na
portuguesa estavam Teófilo Braga e Teixeira Bastos; na brasileira, Américo Brasiliense, Karl
von Koseritz e Sílvio Romero.
178
Em rigor, essa dinâmica intercomunicacional de feição transatlântica
começa por traduzir o intercâmbio e a divulgação dos vários matizes da
heterodoxia positivista, unidos pela aliança em prol do combate à
metafísica clássica e às velhas instituições. Nesse âmbito, começa-se por se
observar a publicação, na Revista de Estudos Livres, de textos dos dois
líderes da renovação intelectual brasileira, Tobias Barreto (399) e Sílvio
Romero (400), ícones maiores da Escola do Recife. E, se no segundo volume
da Revista de Estudos Livres, correspondente ao biênio de 1885-1886, não
observamos a mesma duplicidade luso-brasileira no corpo diretivo da
revista (401), isso não significou uma diminuição do intercâmbio luso-
brasileiro. Bem ao contrário, após o desenvolvimento da polêmica entre
Sílvio Romero e Teófilo Braga – que foi, provavelmente, o motivo da
mudança do padrão de dupla direção – percebemos um refinamento do
intercâmbio no sentido da divulgação do pensamento positivista
estritamente mais littreísta. Para nos darmos conta do verdadeiro alcance
deste aspecto, bastará lembrar a divulgação dos trabalhos de Carlos von
Koseritz (402) e Alberto Sales (403), bem como a publicação de um artigo de
Isidro Martins Júnior (404), aos quais já fizemos referência.

399
BARRETO, Tobias. “Ensaio de prehistoria da litteratura classica allemã”. Revista de Estudos
Livres. Volume I (1883-1884). Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora, 1884, pp.552-561.
400
ROMERO, Sílvio. “Theorias históricas e Escolas litterarias no Brazil”. Revista de Estudos
Livres. Volume I (1883-1884). Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora, 1884, pp.201-212.
401
Como foi exposto, o segundo tomo da Revista de Estudos Livres, relativo aos anos de 1885-
1886, marcará apenas os nomes de Teófilo Braga e Teixeira Bastos.
402
BASTOS, Teixeira. Secção Bibliographia. “A Terra e o Homem à luz da moderna ciência.
Duas Conferências feitas em 1878 por Carlos von Koseritz. – Porto Alegre, 1884, 151p.”.
Revista de Estudos Livres. Directores Litterário-Scientificos Doutor Teófilo Braga e Teixeira
Bastos. Volume II (1885-1886), Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora 1887, pp.96-97.
403
BRAGA, Teófilo. Secção Bibliographia. « Ensaio sobre a moderna concepção do Direito,
por Alberto Salles. Sam Paulo, Typographia da Provincia, MDCCCLXXXV, 267p.”. Revista de
Estudos Livres. Directores Litterário-Scientificos Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos.
Volume II (1885-1886), Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora 1887, pp.419-423.
404
MARTINS JÚNIOR, Isidro. “A função histórica da Economia política”. Revista de Estudos
Livres. Directores Litterário-Scientificos Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos. Volume II
(1885-1886), Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora 1887, pp.462-470.
179
Ora, se esta rede discursiva vocacionada para a divulgação
científica e vinculada à heterodoxia positivista, ao corporizar um ativo
relacionamento entre os positivistas heterodoxos brasileiros e portugueses,
ela também protagoniza um processo de distanciamento em relação àqueles
com quem antes cerrara fileiras na “frente cientista”. Importará, assim,
investigar em pormenor as características da heterodoxia positivista no
sentido de compreender, a partir das tensões cientificamente instruídas em
seu interior, os fundamentos teóricos que podem ajudar a explicar as
dissensões e demarcações nela acontecidas. Ou seja, o debate acerca da
heterodoxia positivista obriga a convocar outra frente que lhe é subjacente
e com o qual se confunde: o debate sobre os “evolucionismos”.

2.4. Derivas da heterodoxia: os “evolucionismos”

Recuperemos o essencial sobre a dissidência littreísta. Como já se


disse, Émile Littré estimava uma cisão muito forte entre a primeira e a
segunda fase do pensamento de Augusto Comte, expressas pelo Cours e
pelo Système. Afirmamos também que Littré seguia a orientação empírica e
experimental da primeira fase comteana, negando o cariz apostólico da
religião da humanidade, visão esta adotada pelos positivistas ortodoxos.
Conforme ressalta Gruber, o elemento central da dissidência de Littré foi
sua recusa em aceder ao que já se chamou de “dogma capital do
positivismo” e que, em última instância, refere-se à compreensão
cosmológica do positivismo comteano, onde é conferida especial
importância à relação entre as “causas primeiras” e as “causas finais”. Para
Comte, a relação entre causas primeiras e causas finais – questão reportada
à criação do mundo, à essência das coisas, à constituição da substância –,
não só era acessível ao conhecimento humano como já tinha sido mesmo

180
apreendida, estando expressa na Filosofia Positiva e na Religião da
Humanidade (e na moral que lhe é inerente). Ao contrário de Comte, Émile
Littré prega uma funda indiferença frente a estas questões de ordem mais
“cosmológica”. Segundo ele, a origem e o fim da humanidade são questões
“insolúveis” (405). Assim, o conhecimento verdadeiro só será acessível pela
experimentação científica, sem a interferência de quaisquer tipos de a
priori, sejam os de ordem teológica, sejam os de cariz metafísico (como em
Kant, Hegel e no próprio Comte do Catecismo Positivista) (406). Com seu
ultra-empirismo, Littré se distancia dos seguidores fiéis à totalidade da obra
comteana (como Laffitte), assim como se aproxima dos demais
conhecimentos feitos à luz da experimentação científica (407). E, no
horizonte assim aberto, instala-se um espaço heterodoxo de amalgamento
teórico cientificista.

405
LITTRÉ, Émile. “Que penser de la désuétude qui gagne les spéculation concernant l’origine
et la finalité du monde et de ses êtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março,
1879, p.153.
406
Assim se pronuncia Littré, em texto publicado em Portugal em 1879: “Les écoles grecques
n’ont jamais pose, en face et en distinction de leur enseignement philosophique, une philosophie
dite religieuse et traitant de l’organisation de l’Olympe, du rapport des dieux avec les hommes
et du culte qu’on leur offrait dans les temples au nome des cités et des particulièrs. Plus tard,
sous un régime mentale tout différent, la scolastique, qui se disait servante de la théologie,
n’entendait pas se mettre sur le même pied que sa maîtresse, et la laissait en un terrain à part,
dont elle ne prétendait aucunement changer le caractère ni la dénomination. La situation
respective ne fut pas modifiée par la métaphysique moderne, Descartes, Spinoza, Leibiniz, Kant
et Hegel ; les notions révélées de l’une demeurèrent, dans leus sphère, les notions subjectives de
l’autre dans la leur, et personne ne les rangea sous une même catégorie. M. Comte, le premier,
eut le mérite d’apércevoir que la théologie et la métaphysique ont le caractère commun d’être
une conception du monde, et qu’être une conception du monde est ce qui constitue une
philosophie”. LITTRÉ, Émile. “Que penser de la désuétude qui gagne les spéculation
concernant l’origine et la finalité du monde et de ses êtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3,
Fevereiro-Março, 1879, p.156. O grifo é nosso.
407
Conforme Littré, “«ceux qui croiraient que la philosophie positive nie ou affirme quoi que ce
soit là-dessus, se tromperaient : elle ne nie rien, n’affirme rien ; car nier ou affirmer ce serait
déclarer que l’on a une connaissance quelconque de l’origine des êtres et de leur fin. Ce qu’il y
a d’établi présentement c’est que les deux bouts des choses nous sont inacessibles, et que le
milieu seul, ce que l’on appelle en style d’école le relatif, nous appartient»” LITTRÉ, Émile.
Paroles de philosophie positivie, p.33, citado por GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte
jusqu’à nos jours. Paris : Lethielleux, 1893, p.26-27.
181
Neste enfrentamento entre ciência e metafísica (408), as questões
relativas à origem da humanidade merecem especial destaque. Em caso
algum, porém, o debate em torno de tais questões se cingiu à sua
inquietação emblemática – criaturas à semelhança de Deus ou obra da
evolução das espécies? –, tanto porque a resposta a essa inquietação
convocava para o debate uma panóplia de conceitos e teorias mais ou
menos próximas ou derivadas, quanto porque os posicionamentos dos
diversos autores oscilavam ao sabor das diferentes correntes interpretativas
de fundo científico ou político. E mesmo dando por adquirida a
interpenetração entre a vertente heterodoxa do positivismo, versão Littré, e
o rol das várias teorias que giravam em torno da obra de Charles Darwin e
que, geralmente – e não sem alguma dose de equívoco – são chamadas de
“evolucionistas”, haverá de se convir que o fenômeno de amalgamento
interno ao grande grupo “positivista” é análogo a um processo que obnubila
as importantes distinções teóricas e políticas que existem nessa ampla
esfera “evolucionista”. É que o comum conhecimento dos pressupostos –
de Charles Darwin, Jean-Baptiste Lamarck, Ernest Haeckel ou Herbert
Spencer – não correspondeu um mesmo alinhamento teórico. Ao invés
disto, destravou uma série de diferenças.
Ora, a correta percepção dessas distinções e dos argumentos que as
sustentam é, para o nosso propósito, de vital importância. Tanto mais que
esta interface teórica da heterodoxia positivista com as diferentes teorias
habitualmente designadas por “evolucionismo” pode ser observado tanto
para o caso brasileiro quanto para o português. Neste último, torna-se

408
Émille Littré dizia que “la philosophie positive, née de ce qu’il y a de plus pacifique parmi
les hommes, c’est à dire la science, et en un temps où l’ardeur de la grande guerre contra les
anciennes doctrines s’alentissait par le succès même, n’a rien d’agressif ni de révolutionnaire.
C’est par le progrès de l’éducation qu’elle se créera ce sol positif populaire dont je parle. Là on
ne peut lui barrer le passage; quoi qu’on fasse, il faut enseigner les sciences ; et, directement ou
indirectement, les sciences enseignent la philosophie positive”. LITTRÉ, Émile. “Que penser de
la désuétude qui gagne les spéculations concernant l’origine et la finalité du monde et de ses
êtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março, 1879, p.158-159.
182
gradualmente explícito o recurso “não só à corrente inglesa que tinha em
Stuart Mill, Spencer, Bain, Huxley, Lewes, Darwin e Wallace os seus
representantes, mas também ao monismo evolucionista alemão de Büchner
e Haeckel, ao positivismo italiano de Lombroso, aos escritos de autores
como Letourneau e Ardigo que, sem serem fiéis aderentes de qualquer
escola positivista, vinham reforçar as teses filosóficas e sócio-políticas dos
heterodoxos discípulos de Comte em Portugal” (409). Entretanto, no Brasil,
fica também claro que “depois de uma rápida fascinação pela filosofia
comteana, o espírito dominante passou a ser o das grandes correntes
filosóficas, vindas da Inglaterra e da Alemanha – com Spencer e Haeckel,
principalmente. Muitos espíritos filiados, a princípio, à acepção comteana,
acabaram abjurando a sua ortodoxia e passaram, deixando o mare clausum
da Filosofia Positiva, a navegar no mar livre e largo do Evolucionismo, do
Transformismo e do Monismo” (410).
Este cenário de recomposição teórica de fundo heterodoxo não
deixou de interferir nos debates sobre o relacionamento luso-brasileiro. E
fê-lo ao nível das discussões em que estava em causa o lugar ocupado pelo
critério da historicidade nesse relacionamento – tenha-se em conta a
cumplicidade entre cientismo e historicismo naquela conjuntura –, as quais
encontravam no debate “evolucionista” terreno fértil para refundar
pressupostos. Dito isto, algumas indagações são levantadas acordo com
nossa análise: a questão do transformismo lamarckiano e seu grau de
compaginação com os credos doutrinários em presença; os contextos de
utilização, com Darwin e para além dele, das noções de “descendência com
modificações” e “seleção natural”; o alcance filosófico, político e social a
que estariam autorizadas estas noções a partir de leituras haeckelianas ou

409
CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologia
republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol. LIII, Coimbra, 1977, p.296.
410
VIANA, Oliveira. O Ocaso do Império. São Paulo: Editora Melhoramentos. 2ª edição, 1925,
p.123.
183
spencerianas. Se eram estes os principais eixos de fundamentação teórica
dos autores portugueses e brasileiros trabalhados – e tendo eles servido de
suporte para o entendimento do potencial relacionamento luso-brasileiro –,
temos motivos de sobra para registrar o que estava em causa em cada um
desses três patamares “evolucionistas”.

2.4.1. Comecemos pela questão do transformismo. Quais os


problemas que se levantavam na altura do seu acolhimento pelos
intelectuais de ambas as margens do Atlântico? Recuemos, para isso, à
“atmosfera” científico-cultural anterior à publicação de A Origem das
Espécies, em 1859, por Charles Darwin: a atmosfera de Lamarck e de
Cuvier (411). Recorde-se que Jean Baptiste Lamarck é o primeiro naturalista
a formular, em termos científicos, uma teoria completa e coerente sobre as
questões ligadas à evolução. Para o professor do Museu de História Natural
de Paris, as modificações do mundo orgânico não eram advindas da
vontade ou intervenção do plano divino. Quem quisesse entender estas
transformações, deveria voltar-se para o estudo da natureza e desenvolver a
compreensão de leis que orientam suas modificações e seu
desenvolvimento. Conforme explica Patrick Tort, Lamarck construiu sua
obra sobre dois principais pilares, o primeiro apontando para uma
orientação “científica”, através do trabalho de ordenação e classificação
dos invertebrados, atuais ou fossilizados (412), e o segundo, partindo de uma
reflexão “filosófica”, vocacionado para realçar a explicação da história da
vida pela teoria transformista. Estas questões foram mencionadas, pela
primeira vez, em seu Discours d’ouverture du Cours de l’an VII, em 1800,
opúsculo onde Lamarck expõe de maneira didática suas ideias sobre a
411
MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.37-38. TORT,
Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.2542.
412
É fundamental ter presente que a compreensão da natureza de Lamarck se aproxima da
divulgada por Buffon e se distancia da propagada pelos trabalhos de Linneu. Sobre esta
distinção consultar MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984.
184
“transformation des spèces”: a cção “du temps et des circonstances
favorables sont les deux principaux moyens que la nature emploie pour
donner l’existence à toutes ses productions [preenchendo] les circonstances
influentes qui ont, avec le temps, constitué la forme du corps et des parties
des animaux. Avec de nouvelles formes, de nouvelles facultés ont été
acquises, et peu à peu la nature est parvenue à l’état où nous la voyons
actuellement”(413). Anos mais tarde, na sua principal obra, Philosophie
Zoologique, de 1809, Lamarck confirmará perspectiva semelhante, dizendo
que “la nature, em produisant successivement toutes les spèces d’animaux,
et commençant par les plus imparfaits ou les plus simples, pour terminer
son ouvrage par les plus parfaits, a compliqué graduellement leur
organisation” (414).
Independentemente das avaliações retrospectivas feitas sobre o
transformismo lamarckiano e suas principais características – o estudo da
natureza consoante uma perspectiva dinâmica; a ação do meio ambiente e
do tempo como os principais fatores de explicação da evolução da
natureza; a hereditariedade das características adquiridas; e a tendência
para a perfeição expressa pela evolução da natureza – é conveniente
assinalar, com Giuseppe Montalenti, que a sua teoria “não se limita a ser
simples descrição e ordenamento dos factos”, estimulando, a partir deles, a
respectiva interpretação. Esta interpretação transformista terá sido,
justamente, um dos elementos que afetaram, a posteriori, a credibilidade da
teoria lamarckiana, justamente onde constituiu pretexto para determinismos
geográficos e raciais (415). No âmbito de um quadro explicativo que nega a

413
LAMARCK, Jean-Baptiste. Discours d’ouverture du Cours de l’an VII, 1880, p.465-466. In :
TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.2545.
414
LAMARCK, Jean-Baptiste. Philosophie Zoologique, p.206. In : TORT, Patrick. Dictionnaire
du Darwinismo et de l’Évolution. Paris: PUF, 1996, p.2554.
415
Sobre as repercussões políticas incluídas nas distinções entre Lamarck e Cuvier, Buffon e
Linneu e, principalmente, sobre a deriva racista do prolongamento destas correntes teóricas (e
de outras que lhe seguiram), consultar a incontornável obra de POLIAKOV, Leon. O Mito
185
compreensão da natureza como algo dado pelo desígnio divino e que
valoriza, em contrapartida, “a adaptação ao ambiente de um modo
científico, como uma aquisição dos organismos, como um processo activo
e contínuo, fruto de trocas e relações entre organismo e ambiente” (416),
seria natural que sua repercussão assumisse um tom explosivo no campo
das ideias de inícios do século XIX.
Acontece que as afirmações da teoria lamarckiana estavam em clara
oposição à concepção tradicional da natureza e do homem fornecida pelos
pressupostos criacionistas. Dentre os naturalistas antilamarckianos,
destaca-se Georges Cuvier (417), considerado o fundador da anatomia
comparada e detentor de grande influência no meio acadêmico francês
durante toda sua vida. Em seu famoso trabalho, Discours sur les
révolutions de la surface du globe et sur les changements qu’elles
produisent dans ce règne animal, publicado em 1812, defende uma visão
catastrofista sobre as mudanças ocorridas na terra. Segundo ele, os
diferentes tipos de animais que existiram na superfície terrestre, ao longo
dos anos, não tinham qualquer correlação entre si. Extintos por uma
catástrofe – sendo o Dilúvio, narrado na Bíblia, um exemplo disto –, outros
animais diferentes povoariam a superfície do globo. Para além de uma
noção de temporalidade marcada pelo signo de abruptas interrupções,
causadas pela ação do desígnio divino, a teoria de Cuvier pressupunha,
fundamentalmente, que “les spèces ne changent pas” (418). Uma convicção
vinculada à sua adesão exclusiva aos “fatos positivos” (em nome da qual,
aliás, considerava que a teoria lamarckiana tinha traços “metafísicos”),
expressa na ideia de que, não havendo provas claras e científicas de

Ariano: ensaio sobre as fontes do racismo e do nacionalismo. Tradução Luiz João Gaio. São
Paulo: Perspectiva, Edusp, 1974.
416
MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.39
417
Sobre a polêmica que envolveu Georges Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire, em 1830, em torno
dos princípios do transformismo e do fixismo, consultar TORT, Patrick. Dictionnaire du
Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.1867-1883.
418
TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.1690.
186
mudança, então, irrefutavelmente, as espécies “não mudavam”. Com isso,
reforçava, com argumentos naturalistas, o ideário criacionista, nas suas
diversas certezas: o organismo humano, como o animal, não possuía
qualquer característica dinâmica ou incoerência; exemplo da perfeição e
criado por Deus à sua imagem e semelhança, o homem vivia em plena
harmonia com a natureza; esta apresentava-se, acima de qualquer suspeita,
como obra divina; e outras de sentido idêntico, no contexto de uma
compreensão cosmológica onde não se pressente abertura para a
historicidade(419). Tudo somado, este “fixismo” de Cuvier representa uma
postura diante da origem da humanidade e da natureza radicalmente oposta
à teoria de Lamarck, que, como se viu, era anti-catastrofista e transformista
(420).
Até à publicação da obra A Origem das Espécies, de Charles
Darwin, em 1859, era o paradigma estático da história natural o modelo
acolhido pela comunidade científica. Naturalmente, Augusto Comte, que, à
altura da edição do trabalho de Darwin já havia publicado grande parte da
sua obra, inclusive o Système de Politique Positive, obra marcante do

419
“Cuvier tinha uma concepção geral de ciência substancialmente igual à de Lineu: natureza e
ciência são como dois quadros, a segunda tentando copiar a primeira. Na natureza tudo é claro,
interligado, coerente e por isso as ciências devem procurar atingir o mesmo fim, o de descobrir a
coerência e os laços que existem entre os fenómenos naturais”. MONTALENTI, Guiseppe.
Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.40.
420
Giuseppe Montalenti acerta quando aponta o carácter perturbador da teoria de Lamarck,
segundo a qual “os organismos não foram criados assim, já adaptados ao ambiente no qual cada
um vive, exemplo extraordinário de uma mente que tudo prevê e pré-ordena, sento antes o
resultado de uma acção do ambiente que os foi transformando e adaptando às suas exigências.
Não são, assim, filhos directos do Criador, nascidos para dominar a matéria bruta, mas sim
filhos desta matéria, que arduamente procuram adaptar-se às instáveis condições do ambiente.
De um golpe só vai o conceito do admirável desígnio pré-ordenado e da superioridade dos
viventes sobre a matéria inanimada. Três séculos antes, Copérnico (1473-1543) tinha
demonstrado que a Terra não é o centro do universo e a sua teoria fora depois hostilizada pelas
autoridades religiosas que consideraram, e com razão, que iria subverter a ordem instituída. As
teorias da evolução completam esta obra subversiva afirmando que o homem não é de facto a
imagem do seu Criador, predestinado a dominar o mundo. Assim cai por terra não só uma
determinada representação do mundo externo, como são abaladas as bases de uma certa
estrutura social, de uma moral e costumes bem radicados no pensamento e no coração dos
homens”. MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.42.
187
catecismo ortodoxo positivista (421), não é alheio ao maior prestígio e
adesão que, por comparação com Lamarck, merecia a teoria fixista de
Cuvier. Sem ser, obviamente, um naturalista, Comte assume uma
perspectiva bastante próxima ao fixismo de Georges Cuvier. Na verdade, o
criador do positivismo sempre foi um dualista, algo próximo das
diferenciações kantianas entre “coisas” e “númenos”. E, se é verdade que
ele concede importância à investigação científica – sobretudo no Cours –
mais correta estará a percepção da existência de uma compreensão
metafísica à moda kantiana inserida em seu sistema (422). Comte
compreendia a história da humanidade enquanto uma verdadeira “marcha
da civilização” rumo ao ideal de positividade, representado por sua
doutrina. Quanto à natureza, Comte assumia claramente uma posição
fixista, como bem aponta Pierre Arnaud, quando afirma que “Comte
tranche, avec Cuvier contre Lamarck, contre l’évolutionisme et pour la
fixité dês spèces” (423).
Explica-se. Por um lado, e como o próprio Comte afirmava no
volume IV do Cours, se o positivismo busca inspiração no “axioma do
grande Leibniz: o presente está prenhe do futuro”, com isso ele justifica
que a ciência tivesse por objetivo “descobrir as leis constantes que regem
esta continuidade, cujo conjunto determina a marcha fundamental do
desenvolvimento humano”. Por outro lado, contudo, sua “filosofia política
se inclinará espontaneamente, pelo menos, no que diz respeito a todas as
disposições sociais de alta importância, a representar sempre como
inevitável àquilo que se manifesta de início como indispensável”.
Residindo aqui a influência conservadora do “aforismo político do ilustre
421
Recorde-se, mais uma vez, que o Cours foi publicado entre 1830 e 1942 e o Système entre
1951 e 1954, sendo, portanto, anteriores, ambas as principais obras de Angusto Comte, a A
Origem das Espécies, de Charles Darwin, que é de 1859.
422
Sobre a relação do pensamento de Augusto Comte com o de Kant, consultar NEGRI,
Antimo. Augusto Comte e L’Umanesimo Positivistico. Roma: Armando Editor, 1971.
423
ARNAUD, Pierre. Politique d’Auguste Comte. Texte choisis et présentés par Pierre Arnaud.
Pairs: Armand Colin, 1965, p.89.
188
De Maistre: «Tudo o que é necessário, existe»” (424). Ora, ao aliar a crença
na razão prognóstica e na ciência, típica do iluminismo, com o
conservadorismo ultramontano avesso à mudança, o positivismo de
Augusto Comte – e dos ultra-ortodoxos que o seguiram piamente –
representará uma filosofia política indelevelmente oposta à compreensão da
mudança como elemento presente na natureza humana. Estará,
provavelmente, neste ponto, muito de sua indesmentível aversão a
quaisquer transformações de ordem social, na medida em que apostava na
eficácia da continuidade histórica e no poder de convencimento inerente ao
progresso continuado da Humanidade para alçar-se à condição de esteio
basilar do Ocidente – ou seja, na Ordem e no Progresso (425). Por fim, não
se entenderá a postura anti-lamarckiana de Augusto Comte sem evocar a
diferença entre “finalidade” e “finalismo”, que tanto influenciou o
pensamento oitocentista. Lamarck, como se aludiu, acreditava que a
natureza tinha por “finalidade” a perfeição e a coerência, embora não
indicasse o patamar onde se iria processar esse desiderato. Augusto Comte,
assim como as demais filosofias da história do século XIX, indicava
claramente o patamar, o lugar, feito horizonte “finalista”, onde estaria
consumada a “marcha da civilização”: a república positivista.

2.4.2. Vejamos, entretanto, a interferência da chamada “revolução


darwiniana” (426) sobre este estado de coisas, na certeza de que o seu
profundo impacto não deixou incólume a escala cultural luso-brasileira.

424
COMTE, Augusto. Cours de Philosophie Positive, vol.IV, p. 192 e 258-259, cf. COMTE,
Augusto. Augusto Comte: sociologia. Organizador Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática,
1978, p.158.
425
Dir-se-ia que, apostando na dualidade entre Ordem e Progresso, o Cours acentuará mais o
segundo factor e o Systéme privilegiará o primeiro.
426
Muitos trabalhos ressaltam a importância do “revolução darwiniana” na compreensão da
historicidade da natureza, bem como suas repercussões do ponto de vista epistemológico.
Indicamos, nesse sentido, o texto de John Greene “O paradigma kuhniano e a revolução
darwinista na história natural”. In: Manuel Maria Carrilho (org.). História e Prática das
Ciências. Lisboa: A Regra do Jogo, 1979, pp.119-150.
189
Conforme assinalam diversos analistas da obra de Charles Darwin (427), o
estatuto marcante desta revolução deve-se justamente a que as suas teorias
da “descendência com modificações” e da “selecção natural” – visando
uma explicação não-teleológica da filiação e da criação de novas espécies
(428) – demarcam-se não apenas do criacionismo bíblico, do fixismo de
Cuvier, o que seria de todo evidente, mas também se afastam do
transformismo de Jean-Baptiste Lamarck. Nesse sentido se pode dizer, com
Ana Leonor Pereira, que “Darwin inaugurou um novo código de leitura da
complexidade e da historicidade dos organismos vivos, irredutível ao
mecanicismo, ainda que a descendência com modificações se processe
através de um mecanismo chave: a selecção natural. Mas, a selecção
natural, que preserva as variações individuais favoráveis ao processo
adaptativo e elimina as variações nocivas, é um poder criador sem projecto
apriorístico” (429). Importa, com efeito, chamar a atenção para o fato de que
a ideia darwiniana da evolução possui características completamente a-
sistémicas. Se para Lamarck a evolução se dá sob o signo da harmonia, da
regularidade e da perfeição, para Darwin, ao contrário, a evolução da
natureza é consentânea com um processo contingente, aleatório e
imperfeito. Daí seu mecanismo central ser a “seleção natural”, através da
noção de “luta pela vida”. Ou seja, a compreensão que Darwin faz da
“evolução” das espécies não contempla o signo da “perfeição”, não revela
nenhuma “finalidade”, tanto como não aponta para um patamar de chegada
do trajeto evolutivo, fosse o “juízo final” dos criacionistas ou fosse o
“estágio positivo” da teoria comteana.

427
Veja-se a obra de Stephen Jay Gould, O Mundo depois de Darwin. Reflexões sobre história
natural. Lisboa: Editorial Presença, 1988.
428
TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, pp.716-
717.
429
PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal. Filosofia. História. Engenharia Social (1865-
1914). Coimbra: Almedina, 2001, p.22.
190
Esta especificação antecipa outra, igualmente fundamental, sobre o
correto entendimento do “darwinismo”, ou seja “a da sua extrema
heterogeneidade”. Conforme assinalam Jean Gayon (430) e Ernst Mayr (431)
é importante ter presente a impossibilidade de reduzir a um só condão suas
diversas manifestações doutrinárias. Deve-se, portanto, levar em conta as
múltiplas demarcações internas produzidas no contexto do “darwinismo”, o
qual melhor deverá definir-se, então, nos termos de Patrick Tort, como uma
“constelação de discursos onde ele constitui a referência significativa” (432).
Aliás, é à luz desta dimensão heterogénea que se explica, por exemplo, que
“desde os primeiros anos da década de sessenta do século XIX a teoria
darwiniana [tenha sido] difundida por Thomas H. Huxley e A. Russel
Wallace sob a denominação de darwinismo, [apesar de não haver,] de
facto, uma identidade teorética absoluta entre as versões daqueles cientistas
e, menos ainda, entre cada uma delas e a teoria darwiniana. Thomas Huxley
não aceitava o princípio da selecção natural, enquanto Wallace não o
aplicava à evolução da espécie humana. De qualquer modo, o princípio da
descendência das espécies a partir de um antepassado comum, segundo um
processo de divergência, ligava a teoria darwiniana às suas múltiplas e
heterogéneas versões, designadamente de Th. Huxley, Wallace, Lyell,
Hoocker, Asa Gray, Fritz Müller e E. Haeckel. Pode, então, afirmar-se que

430
GAYON, Jean. Darwin et l’après-Darwin, Paris : Éditions Kimé, 1992, p.4.
431
Ernst Mayr considera que “cuando alguien plantea esta cuestion, la respuesta que reciba
dependerá del tiempo que haya pasado desde 1859 y de la ideología de la persona a la que
pregunta”. O mesmo autor identifica nove significados diferentes do termo “darwinismo”, sendo
que a grande maioria deles “son o bien claramente erróneos o bien no representam el
pensamiento de Darwin. Observando la situación como un historiador, estoy convencido de que
no hay dos significados que han obtenido la aceptación más ampla. Después de 1859, es decir,
durante la primera revolución darwiniana, el darwinismo significó para casi todo el mundo una
explicación del mundo viviente mediante causas naturales”. Para Mayr, somente depois da
“segunda revolução darwiniana” é que o termo “darwinismo” assumiu significado do “cambio
evolutivo adaptativo bajo la influencia de la selección natural, designando la evolución
variacional frente la transformacional. Estos son los dos únicos conceptos verdaderamente
significativos del darwinismo, uno en vigor durante ele siglo XIX (y hasta aproximadamente
1930) y el otro en vigor durante el siglo XX”. MAYR, Ernst. Una larga controversia: Darwin y
el darwinismo. Barcelona: Crítica, 1992, p.118-119.
432
TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.900.
191
a ideia de evolução por meios naturais era uma constante no credo dos
darwinistas. Para além desde enunciado, entramos no terreno das
divergências” (433).
Para esta heterogênea referenciação darwiniana e para o caráter
vincadamente heterodoxo da sua recepção, contribuíam ainda outros
fatores. Dois, pelos menos, têm sido apontados com regularidade. Um deles
é o que decorre de determinados aspectos ligados ao próprio âmago
científico dos postulados de Darwin, a exemplo do problema da
hereditariedade no contexto do mecanismo da “seleção natural” (que é tida,
por norma, como uma das fragilidades da elaboração darwiniana). Um
problema resultante de um inescapável desconhecimento, à época, de dados
do âmbito da genética só disponibilizados após as publicações de Darwin.
Especificamente quanto à ideia de “evolução”, deve-se ter presente que a
ideia da aleatoriedade evolutiva, expressa na teoria da “descendência com
modificações” de Darwin, está implicitamente ligada à questão da
hereditariedade das espécies. Explica-se: a compreensão de que a natureza
“evolui” pressupõe o encadeamento temporal e orgânico das espécies.
Lamarck chegara a este ponto. Porém, para ele, esta evolução era
harmónica, coerente e tinha como finalidade a perfeição. Ora, o conceito de
“selecção natural” e de “luta pela vida”, de Darwin, implicam justamente
uma ruptura com estes pressupostos lamarckianos. Afinal, se há luta na
natureza, esta não é perfeita, assim como se essa luta ocasiona uma
“selecção”, há que saber como funciona esta “passagem” evolutiva. Chega-
se, assim, à questão da hereditariedade. Acontece que Darwin não tinha
provas contundentes para responder a este problema (434). Neste ponto é

433
PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal. Filosofia. História. Engenharia Social (1865-
1914). Coimbra: Almedina, 2001, p.43.
434
Segundo Erns Mayr, “la tesis principal de Darwin era que el cambio evolutivo se debe a la producción
de variación en una población y a la supervivencia y éxito reproductivo («selección») de algunas
variantes. Pero él origen de esta variación le sumió en la perplejidad durante toda su vida. Darwin
consideraba que la variación era un fenómeno intermitente, que ocurría fundamentalmente en

192
importante frisar que o problema da hereditariedade, implícito nas
diferentes teorias sobre a evolução das espécies, só foi resolvido pelas
experiências genéticas realizadas por Gregor Mendel em 1866 e que só em
1900 foram publicitadas pelos botânicos C. Correns e H. de Vries e E.
Taschermak. O fato é que Darwin não conheceu Mendel nem tampouco as
teorias genéticas. Assim, a explicação da hereditariedade permaneceu
sendo uma importante lacuna na compreensão da evolução das espécies.
Ora, frente a esta fragilidade da teoria darwiniana – o desconhecimento da
genética – parece lógico que a comunidade científica oferecesse resistência
à “seleção natural” e acabasse por recuperar a explicação lamarckiana da
hereditariedade dos caracteres adquiridos. Por isso, concordamos com Ana
Leonor Pereira, quando ela considera ser “perfeitamente compreensível que
até às décadas de trinta e de quarenta do século XX, o darwinismo não
apresente como característica fixa a selecção natural, embora esta
constituísse o núcleo duro (apesar da sua vulnerabilidade) da teoria
darwiniana”. De resto, continua a autora, “o próprio Darwin, sem jamais
abdicar da selecção natural das variações úteis, em termos de adaptação ao
meio, teve necessidade de construir uma teoria provisória da
hereditariedade”. Estas questões estariam presentes em suas obras
posteriores, nomeadamente em sua The descent of man, and selection in
relation to sex, publicada em 1871 (435). O segundo fator, em paralelo,
refere-se à extensão do debate referenciado nos postulados “darwinistas”
aos campos filosófico-social e filosófico-político, “salto” gradual para o
qual não são pequenas as contribuições de pensadores como Ernest
Haeckel e Herbert Spencer, a quem se reconhece particular interferência no
alcance histórico, político, filosófico e social que o termo “evolucionismo”

circunstancias especiales. Sin embargo, estaba bastante convencido de que en la naturaleza hay una
inmensa reserva de variación que está siempre disponible como material para selección”. MAYR, Ernst.
Una larga controversia: Darwin y el darwinismo. Barcelona: Crítica, 1992, p.121.
435
PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal. Filosofia. História. Engenharia Social (1865-
1914). Coimbra: Almedina, 2001, p.45;
193
tem no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Eis aqui
outro impulso demarcatório processado no interior do campo conceitual.
Um impulso extensível às diferentes “frentes cientistas” da configuração
cultural luso-brasileira.

2.4.3. Sabendo-se que os heterodoxos brasileiros e portugueses de finais


de Oitocentos foram, em grande parte, leitores atentos de Ernest Haeckel,
bem se compreenderá o manancial teórico que terão constituído, para esses
grupos, discursos como o de 1899, proferido em Cambridge, onde aquele
naturalista alemão procede a um arrazoado sobre os últimos “progressos da
ciência”. Trata-se de uma intervenção a todos os títulos elucidativa. Em
primeiro lugar, pela modulação suave operada no encadeamento das teorias
de Lamarck e Darwin, surindo uma filosofia social com alargado alcance
político: “Quarenta anos decorreram, desde que Charles Darwin publicou
os primeiros trabalhos da sua imperecedoura teoria. Quarenta anos de
darwinismo! Que fantásticos progressos no nosso conhecimento da
natureza! E que modificações sofreram os nossos conceitos mais
importantes, não só no domínio da biologia, mas também no da
antropologia e no desse conjunto admirável, a que se dá o nome de
«ciências do espírito»! Porque, com o verdadeiro conhecimento da origem
do homem, encontrou-se, ao mesmo tempo, uma base sólida onde estribar a
fisiologia e um apoio amovível da psicologia natural e da filosofia monista”
(436).
Esta, portanto, uma reflexão de primeira instância. Numa segunda,
porém, o registro vai bem mais além – além do próprio Darwin, em rigor.
Sob os auspícios de uma “proposição dedutiva”, a compreensão acerca da
evolução da natureza passará também a ser utilizada como lei científica

436
HAECKEL, Ernst. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.10.
194
para a explicação da sociedade. Haeckel chagara a essa posição a partir do
seu próprio trajeto:

“Tinha estudado, em 1866, na minha «Morfologia Geral», «a significação


antropológica do desenvolvimento dos organismos». Havia insistido sobre o facto de
que a lei biogenética fundamental conserva todo o seu valor para o homem. Neste,
como em todos os outros organismos, existe a relação causal mais íntima, baseada na
herança entre ontogenia e a filogenia, entre a história do gérmen do indivíduo e da sua
série ancestral. A seguir, eu distinguia dez fases principais, na série dos vertebrados.
Mas concedia especial importância à correlação lógica da antropogenia e do
transformismo; se este é verdadeiro, deve ser aplicado àquela, com todas as suas
consequências. «A afirmação de que o homem descende dos vertebrados inferiores é
uma proposição dedutiva especial, que resulta, com necessidade absoluta, da lei
indutiva geral, constituindo a teoria da descendência». Desenvolvi esta ideia, e as suas
consequências, nas várias edições da minha «História da Criação» e da minha
«Antropogenia». Gravei-a, de uma maneira estritamente científica, na terceira parte da
minha «Filogenia Sistemática»” (437).

O salto explicativo é claro: reside nesta correlação entre ontogenia e


filogenia a atitude haeckeliana, própria, até certo ponto, do “darwinismo”,
e, paradoxalmente, bem distante da prudência de Darwin em estabelecer
aquele tipo de correlação. Por isso, dizemos, com Becquemont, que “la
pensée évolutionniste est profondément finaliste: une fois les lois connues
grâce à une logique, la science sociale dicte une morale de submission à ces
lois. L’évolucionnisme est une pensée normative, qui dit à la fois comment
sont les choses et comment elles doivent être. Avec la fin du progrès,
logique et morale tendent à devenir une même discipline”(438).
De igual modo digno de nota, no discurso haeckeliano de 1899, é a
confissão de uma das “afinidades electivas” do zoólogo alemão: Herbert
Spencer. Segimdo o alemão, “entre os filósofos, ninguém impôs melhor a
influência da nossa concepção do mundo que o grande pensador inglês
Herbert Spencer, um dos raríssimos sábios contemporâneos que sabem

437
HAECKEL, Ernst. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.13.
438
BECQUEMONT, Daniel. Darwin, Darwinisme, Évolutionisme. Paris: Édition Kimé, 1992,
p.115.
195
igualar os mais vastos conhecimentos em história natural com a
especulação filosófica mais profunda”. Para ele, o famoso intelectual
vitoriano “pertence àquele antigo grupo de filósofos da natureza que, antes
de Darwin, havia encontrado na doutrina evolucionista a chave que deveria
permitir a resolução do enigma do universo; ele figura também entre esses
evolucionistas que concedem, com razão, a maior importância à herança
progressiva, a esta tão discutida transmissão das qualidades adquiridas”
(439). A este respeito, há duas observações a fazer.
Uma, é a de que a menção elogiosa a Spencer corresponde à adesão
e ao reconhecimento da pertinência da passagem de uma compreensão
transformista da evolução da natureza para uma formulação filosófica que
submete à lei natural toda uma compreensão do desenvolvimento homem e
da vida em sociedade. De fato, desde os seus primeiros escritos até aos
consagrados Progress, its law and cause, de 1857, ou First Principles, de
1862, Spencer não fará mais do que dar forma aproximadamente definitiva
a pressupostos seus que vêm de uma conjuntura anterior mesmo à
publicação de A Origem das Espécies. O inglês acreditava estar “fora de
qualquer discussão o facto de o progresso orgânico consistir na passagem
do homogéneo para o heterogéneo, mediante sucessivas diferenciações” e
isto, bem entendido, quer quer se trate “das transformações da terra, do
desenvolvimento da vida à sua superfície ou do desenvolvimento das
instituições políticas, da indústria, do comércio, da língua, da literatura, da
ciência, da arte” (440). Segundo Patrick Tort, foi a partir das reflexões sobre
as conclusões das pesquisas embriológicas de Karl Ernst von Baer (1827),
sobre o princípio de conservação da matéria de Lavoisier (1789) e sobre o
princípio físico da persistência da força posta em evidência por Julius
Robert Mayer (1842) que o inglês Herbert Spencer enuncia desde 1852

439
HAECKEL, Ernest. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.44.
440
SPENCER, Herbert. Do Progresso, sua lei e sua causa. Lisboa: Editorial Inquérito, 1939, p.13-14.

196
(data na qual ele publica no The Leader um ensaio sobre a hipótese do
desenvolvimento), sob uma forma ainda aproximativa, a proposição de base
do que será o sistema filosófico mas espontaneamente e mais regularmente
aprovado pelas classes dirigentes e empresários do Ocidente industrial e
liberal: o evolucionismo (441).
A outra observação diz respeito à questão da transmissão
hereditária e à centralidade que se lhe reconhece no contexto
“evolucionista”, ao ponto de o inevitável surgimento, no rasto das
propostas e das lacunas de Darwin, de diferentes entendimentos quanto à
forma e à finalidade com que se desenrolaria a “evolução natural”
provocarem uma crispação e uma tendência de dissenso bem evidentes.
Percebe-se, assim, o discurso de Ernest Haeckel, quando considera que
“Spencer, tal como eu, combateu, desde o primeiro momento, com a maior
energia, a teoria do plasma germinal de Weismann, que nega o
importantíssimo factor da evolução, procurando se explicar apenas pela
«força todo-poderosa da selecção». Na Inglaterra, a teoria de Weismann
teve grande êxito, tendo aparecido como «neodarwinismo», opondo-se à

441
Entretanto, a referida “passagem” analítica pode ser bem vista na obra Progress, its law and
cause, de 1857, onde Herbert Spencer afirma que “as investigações do Wolf, Goethe e Von Baer
comprovaram que as mudanças verificadas com a transformação da semente na árvore e do
óvulo no animal, consistem na passagem da estrutura homogénea para a estrutura heterogénea.
No seu estado primitivo, o germe é uniformemente homogéneo, tanto em contextura como em
composição química; mas não tarda a aparecer uma diferença entre as partes da substância que o
forma ou, como se diz em linguagem filosófica, uma diferenciação. Cada uma destas divisões
diferenciadas começa a manifestar algum contraste de partes, e estas diferenciações secundárias
chegam a ser tão bem definidas como a primeira. Este processo repete-se continuamente;
realiza-se, ao mesmo tempo, em todas as partes do embrião em crescimento, e, mediante
intermináveis diferenciações, produz-se, finalmente, a combinação completa de tecidos e órgãos
que constituem a planta ou o animal adulto”. Em 1862, vemos Spencer propor, no seu First
Principles, que “l’évolution est une intégration de matière accompagnée d’une dissipation de
mouvement, pendant laquelle la matière passe d’une homogénéité indéfinie, incohérente, à une
hétérogénéité definie, cohérente, et pendant laquelle aussi le mouvement retenue subit une
transformation analogue”. SPENCER, Herbert Première principles, 1862, p.365 da edição de
1890. In: TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996,
pp.1424-1425.
197
nossa concepção de fenómenos evolutivos, caracterizada como
442
«neolamarckismo»” ( ).
Abreviando uma plataforma de discussão que nos levaria longe,
convirá talvez assentar com Patrick Tort, que “la loi de évolution, et le
système «deductif» qu’elle organise (l’évolucionnisme) n’ont – il importe
de le souligner d’emblée – rien à voir, tant dans leur origine que dans leurs
derniers aboutissements, avec Darwin. Le bénéficie à tirer aujourd’hui
d’une relecture de Spencer et de l’histoire de la constituition réelle de
l’évolutionnisme philosophique, serait d’abord d’instruire cette distinction
nécessaire et trop longtemps ignorée ou tactiment recouverte : le
transformisme de Darwin, ou théorie de la descendence modifiée par le
moyen de la sélection naturelle, est un théorie bio-écologique du devenir
des espèces vivantes en tant qu’elle sont soumises à la variation.
L’évolutionnisme quant à lui est um système syntétique de philosophie dont
l’architecte se nomme Herbert Spencer, et qui se construit, sous l’influence
des théories économiques libérales de la fin du XVIII siècle (notamment
celle d’Adam Smith), et au coeur d’une référence permanente aux sciences
de la nature, parallèlement à l’essor de l’industrialisme victorien” (443).
Cabe, então, a partir destas não-coincidências entre darwinismo e
evolucionismo, retomar as linhas inconciliáveis ou as estratégias de
aproximação nelas geradas, ou os círculos tensionais de cariz teórico,
científico ou político nelas estribados, no âmbito heterodoxo da
configuração cultural luso-brasileira. É o que veremos agora, ao
indagarmos a expressão adquirida pelo eixo materialista-monista.

442
HAECKEL, Ernest. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.44.
443
TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, pp.1424-
1425.
198
2.5. O eixo materialista-monista.

Do profundo impacto destes debates no espaço cultural luso-


brasileiro não há, como se sabe, a menor dúvida. A avaliar pelo caso
brasileiro, a recepção destas teorias pelo campo heterodoxo viria a
constituir em pretexto para um realinhamento das várias sensibilidades, de
acordo com a respectiva apreciação dos contributos de Darwin e de acordo
com certo entusiasmo perante o monismo haeckeliano. O que não
surpreende que se observe, nesse contexto, alguma radicalização de fraturas
teóricas e políticas. Veja-se, a título exemplar, o depoimento de um Sílvio
Romero: “Não sou positivista; acho o contismo um sistema atrasado e
compressor, que faz uma figura apoucada ao lado do evolucionismo inglês
e do naturalismo alemão. Se de Comte saíram Littré e Laffitte, de Darwin
destacaram-se Spencer e Haeckel, e não vacilo na escolha” (444). Poucos
anos antes, mas traduzindo atmosfera idêntica, também Carlos von
Koseritz, em carta endereçada a Teófilo Braga, entende assumir-se
“darwinista convencido”, e, mais especificamente, “franco adepto da escola
de Jena, materialista científico”. Nesta ocasião, não se furta a presumíveis
desacordos de princípio decorrentes daquela opção: “Sei que v. [Teófilo] é
positivista e que como tal não partilha todas as minhas opiniões, não
obstante, porém, considerará o meu livrinho [apesar de que] nele nada há
de original, nada que não tenha sido dito por Moleschott, Haeckel, Huxley,
Buchner, Du Bois Raymond, Charles Vogt e outros” (445).
Teófilo conhecia bem estes autores e as propostas interpretativas
em causa. Por ocasião da morte de Charles Darwin, em 1882, em artigo
estampado nas páginas de O Ocidente, escrevera um texto inequívoco a
444
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio [1888],
1953, p.71.
445
Cartas de Carlos von Koseritz a Teófilo de Braga. Porto Alegre, 22 de Dezembro, 1884. In.
BRAGA, Teófilo. Quarenta Anos de Vida Literária 1860-1900). Lisboa: Tipografia Lusitana,
Editora Artur Brandão, 1902, p.210-211.
199
esse respeito. As teorias que giravam em torno da “evolução” ocupam,
naturalmente, o cerne das suas reflexões, das quais ressalta a incorporação
clara não apenas de uma linha interpretativa mas da “constelação de
discursos” disponíveis. Assim o vemos frisar que a ação da “exerceu-se do
modo mais geral e profundo na Europa por efeito das fecundas deduções
que veio a suscitar na compreensão do problema da vida subordinada à
forma da evolução orgânica, [sendo que a] Alemanha levou essas deduções
às eminentes concepções de Haeckel na Criação dos Seres Vivos, e na
Antropogenia, e de Shleiger sobre a aplicação da teoria transformista aos
fenómenos da linguagem” (446). Nesse mesmo texto, o vemos explicar
criteriosamente as pontes estabelecidas entre as hipóteses lamarckianas, as
teorias darwinianas e os deslocamentos spencerianos:

“Como nota Huxley, Lamarck não considerara a importância do fenómeno


da luta pela existência, facto positivo donde Darwin tira a maior soma de deduções.
[…] Portanto o transformismo não é uma consequência da espécie, mas sim a
modificação operada pelos movimentos materiais que procuram a sua direcção no
sentido da menor resistência; uma vez achada essa direcção, o movimento resiste às
variações acidentais do meio cósmico, e assim a força que fazia com que os
organismos se alterassem e se adaptassem, é a mesma que por seu turno mantém a
estabilidade morfológica conservada pelo impulso da hereditariedade. Darwin
revolucionou todas as ciências biológicas, tirando-as da estreiteza descritiva dos
coleccionadores, e dando-lhes um ponto de vista dedutivo. O seu método crítico fez
um novo progresso na lógica, e a palavra evolução exprime o mais alto grau de
positividade mental a ponto de para muitos espíritos se tornar a base de uma filosofia.
Herbert Spencer aplicou à Moral a teoria de Darwin” (447).

Eis-nos perante um quadro de tendencia ao amálgama teórico, no


qual, a partir do estatuto referencial da obra de Darwin, o positivismo
heterodoxo convive, em graus de adesão diferentes, com o haeckelianismo.
Razão mais do que suficiente para explicar a disputa levantada, no âmbito
do relacionamento cultural luso-brasileiro, pela primazia na utilização do
monismo materialista, ou, numa outra tonalidade, pela primazia revelada

446
BRAGA, Teófilo. “Carlos Darwin”. In: O Ocidente. Lisboa, 5 (123), de 21 de maio de 1882,
p.118.
447
Idem, ibidem..
200
quanto à disponibilidade para acolher as “ideias alemãs”. Este último ponto
dará azo a uma série de interferências Teófilo e Romero. A suposta
prioridade da Escola do Recife quanto à divulgação das interpretações
monistas – primazia levantada por um e recusada por outro – será, com
efeito, uma das contendas em causa.
Em carta endereçada a Fran Paxeco, que na altura residia em São
Luiz do Maranhã, escreverá o chefe do positivismo português, em Julho de
1900, sobre “às prioridades do germanismo, atribuídas a Tobias Barreto”
por Silvio Romero: “Se entendermos por tal o atrair as atenções para as
características do génio germânico, seja antes do Romantismo, seja em
consequência desse impulso literário, a nossa genealogia começa nos fins
do século XVIII; a marquesa de Alorna, precedendo Filinto Elísio,
tranduziu os cantos do Oberon, de Wieland; (…). Se, além dessa parte,
considerarmos os trabalhos da erudição germânica, em 1865 publiquei eu o
livro Poesia do Direito, em que estudo as manifestações das ideias
jurídicas sob a forma pitoresca e emocional dos símbolos, introduzindo no
método histórico os processos de Jacob Grimm; em 1867, com Os Forais,
mostrei as origens germânicas dos costumes ou direito consuetudinário dos
códigos foraleiros; quando sustentei esta tese, não sabia que a mesma
doutrina fora proclamada, em 1860, por D. Tomaz Muñoz y Romero, o
editor das Cartas Pueblas da Espanha; ainda em 1871, estampando as
Epopeias da Raça Moçárabe, ampliava a pesquisa das origens germânicas
às tradições poéticas do Romanceiro peninsular” (448).
Teremos oportunidade de nos deter sobre o alcance, para a nossa
investigação, dos trabalhos desenvolvidos por Teófilo nesta linha, muito
em particular os relativos ao moçarabismo. Para já, mais significativa se
revela outra linha de fratura: a que se levantava em torno da adoção das
448
BRAGA, Teófilo. Carta de 11/07/1900. Inserida em Fran Paxeco, Cartas de Teófilo (com um
definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo). Lisboa: Portugália,
1924, p.20-34. Acervo do Real Gabinete Português de Leitura, Rio de Janeiro.
201
teorias monistas no seio do próprio campo cultural brasileiro, isto é,
opondo grupos alinhados não à escala transatlântica mas à escala regional
intra-brasileira. Trata-se de uma expressão clara do potencial demarcatório
exercido pelos postulados materialistas sobre as redes da heterodoxia e
sobre as linhas divisórias entre esta e a ortodoxia.
Por sua vez, em um texto intitulado “Considerações
Indispensáveis”, de 1892, Sílvio Romero manfesta o mesmo fenômeno,
advogando a proeminência nacional na divulgação das “ideias alemãs” da
Escola do Recife (449). Trata-se da introdução à sétima edição das Obras
Completas de Tobias Barreto, opúsculo onde expõe as circunstâncias que
teriam rodeado a introdução do monismo materialista. Segundo seu relato,
foi pela ação de Tobias Barreto “que essa corrente havia sido aberta em
nossas letras”. Por isso, prossegue, a divulgação da filosofia monista pela
Escola do Recife logo foi alvo de “escritores fluminenses, homens de
jornalismo da corte imperial”, que com humor e “com vistas ao ridículo,
chamavam a nossa tentativa: a escola teuto-sergipana”. Nada, porém, que
o impedisse a devolução da ironia, pois de pronto a ortodoxia positivista e
o abusado “francesismo” da corte carioca foi, em contragolpe sarcástico,
designada pelos pernambucanos de escola “galo-fluminense” (450).
O fato é disputas similares vulgarizavam-se, dando espaço ao
estabelecimento de círculos de influência, de competitividade e polêmica
visíveis ao nível das várias escalas de relacionamento. Uma atmosfera bem
identificada por Gilberto Amado, quando afirmava que, na Escola do
Recife, “quase todo o rapaz do meu tempo em Pernambuco era agnóstico,
darwinista, spencerista, monista”, pelo que, da mesma forma “como se
449
Veja-se, por exemplo, ROMERO, Sílvio, “A prioridade de Pernambuco no Movimento
Espiritual Brasileiro”, Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II,
outubro de 1879, pp.486-496.
450
Silvio Romero revela ter sido o jornalista Carlos de Laet o autor da expressão “escola teuto-
sergipana”. ROMERO, Sílvio, “Considerações Indispensáveis”. In: BARRETO, Tobias.
Estudos Alemães. Volume VII das Obras Completas. [sem local]: Edição do Estado de Sergipe,
1926, p.XV.
202
ouve hoje, no Rio, perguntar: «Você é Flamengo ou Fluminense?» ouvia-se
na Faculdade, no velho convento, no Recife, perguntar «Você é monista ou
dualista?». Para simplificar, todo mundo era positivista, isto é, darwinista,
monista, fenomenista, evolucionista, mas ninguém propriamente prosélito
de Augusto Comte” (451). A descrição é expressiva. O fato é que todas essas
teorias – esse variado repertório teórico –, em suas diversas nuances e
distintas referências, acabaram por confluir, de um modo ou de outro, no
movimento de republicanização das sociedades portuguesa e brasileira,
fenômeno de máximo relevo na nossa escala de observação, onde o
republicanismo se situa entre os fundamentos teóricos inspiradores dos
debates sobre a relação histórica entre Portugal e Brasil.

3. Demarcação e historicidade: mobilizações republicanas

Que o republicanismo luso-brasileiro não tenha ficado alheio às


discussões, reorientações e demarcações teórico-doutrinárias de finais do
século XIX, para as quais, aliás, contribui, é realidade que não pode
surpreender e cujos contornos se encontram hoje devidamente estudados.
Afinal, aquela miríade de elementos teóricos que mobilizava diferentes
concepções sobre a “origem”, a “finalidade” e o “fim” da história (natural
e/ou social), mobilizava, em simultâneo, propostas eminentemente
políticas, sobretudo as que discorriam sobre os objetivos a serem
alcançados. Mas – sendo certo que a explicação do processo de mudança de
regime político envolve todo um variado complexo de fatores – o ponto
verdadeiramente fulcral, do ponto de vista da nossa pesquisa, encontra-se,
sobretudo, no modo como, no âmbito daquela atividade argumentativa e
daquele salto permanente entre ciência e política, os republicanos de um e
451
AMADO, Gilberto, Minha Formação no Recife. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1955,
p.60-61.
203
de outro lado do Atlântico incorporavam a situação vivida pela outra parte.
Eis, pois, o nosso próximo passo analítico: avaliar o traço dialógico
produzido pelos republicanismos luso e brasileiro, tendo especial atenção
às referência a Portugal no movimento que se consumará no 15 de
Novembro brasileiro, e, de maneira análoga, à menção ao Brasil no
processo que desembocará no 5 de Outubro português.
Comecemos por observar estas questões a partir do processo de
mudança para o regime republicano no Brasil. O primeiro aspecto a reter é
o de que, num quadro de manifesta dispersão de propostas políticas e
influências teóricas (452), será a abolição do trabalho escravo que
verdadeiramente constituirá a causa congregadora das transformações
sociais ocorridas no Brasil no último quartel dezenovista. De fato, a troca
de regime, consumada no 15 de Novembro, veio a reboque da campanha
abolicionista – esta sim, deflagradora de entusiasmada reverberação social.
452
Quanto às relações entre o positivismo e o republicanismo, importa considerar, com Antônio
Paim, que “a Igreja Positivista voltou as costas, deliberadamente, ao movimento republicano. A
proclamação da República apanhou-os de surpresa, conforme viria a proclamar o Apostolado,
surpresa tanto maior diante da emergência de Benjamim Constant como sua principal figura”.
Na verdade, como chama atenção Oliveira Viana, o positivismo ultra-ortodoxo do Apostolado,
sob a chefia de Miguel Lemos, “não era uma doutrina de que emanassem eflúvios de sedução;
dir-se-ia, ao contrário, era carregada de eletricidade negativa: não atraía, repelia. Nos seus
dogmas, nos seus preceitos, nas suas regras, duras como tomentos de linho bravo, havia
qualquer coisa que recordava os ásperos cílios monacais, e os seus discípulos pareciam antes
severos Batistas, vestidos de pele, de cajado profético, macerados pelas rudes abstinências do
deserto”. Ora, diante do extremo rigorismo dos ultra-ortodoxos positivistas do Apostolado, a
mocidade que buscava alternativas à situação do país, inspirada pelo “bando de ideias novas”
que lhes chegava da Europa, restava algo distante. Por isso, o que se observa é um acentuado
cariz heterodoxo, dimanado pelos ares da frente cientificista. , consideração também abonada
por José Maria Belo, para quem, “as influências filosóficas e literárias que lhes trabalham o
verde pensamento não as levam forçosamente à idéia republicana. Para os escritores com os
quais tinham iniciado o comércio do espírito pareciam secundárias as formas de governo. O
essencial era o liberalismo político, talvez de mais fácil desenvolvimento no ambiente das
monarquias parlamentares. Daí, o pequeno entusiasmo dos intelectuais do fim do Império,
iniciados na cultura universitária, pela República. Na mocidade militar, principalmente da
Escola do Rio, onde lecionava Benjamim Constant, foi a filosofia de Comte, com as suas bases
matemáticas, a sua concepção primária dos fatos morais, o seu anti-misticismo, a sua forte
inclinação dogmática e disciplinar, a grande influência doutrinária. Se para os racionalistas e
evolucionistas das Academias civis a liberdade e a igualdade eram os supremos ideais, para os
positivistas, a autoridade disciplinadora a tudo se sobrepunha”. Cf. PAIM, Antônio. História
das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: UEL, 1997, p.556; VIANA,
Oliveira. O Ocaso do Império. São Paulo: Editora Melhoramentos. 2ª edição, 1925, p.123;
BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.31.
204
Dito isto, reconhecer-se-á, todavia, a presença de outros fatores de não
desprezível influência nesta atmosfera de transformações. Está nesse caso,
a nosso ver, um tópico talvez nunca suficientemente realçado nas análises
do republicanismo brasileiro: a sua forte inspiração americanista. Vale a
pena equacionar esta questão com algum detalhe.
O Manifesto Republicano de 1870, logo nas suas formulações
iniciais, sustenta que “é legítima a aspiração que hoje se manifesta para
buscar em melhor origem o fundamento dos inauferíveis direitos da
Nação”. Ora, abre-se aqui uma linha de raciocínio do maior significado, na
medida em que a preocupação com a origem inaugura uma série de
mobilizações da história brasileira. É neste sentido que a “origem histórica
da fundação do Império” brasileiro é esgrimida, enquanto fonte de
resistências várias que, procurando “disfarçar a forma, mantendo [porém] a
realidade do sistema que se procurava abolir” (453), evocava afinal a
“persistência do despotismo colonial”, ou seja, dessa origem que urgia
ultrapassar. Compreensivelmente, postas as coisas nestes termos, a
propaganda para a proclamação da República tomava, também por esta via,
as cores de uma campanha pela verdadeira Independência do Brasil (454).
Não surpreende, assim, que o movimento republicano brasileiro
afirme que a democracia real não teria sido consumada no país, por mais
“liberal” que tivessem sido algumas quadras do reinado de D. Pedro II (455).

453
“Manifesto Republicano de 1870”. In: O Brasil no Pensamento Brasileiro. Introdução,
organização e notas de Djacir Menezes. Rio de Janeiro: INEP, 1957, p.498-501.
454
Com José Maria Belo afirmámos que “é evidente que a Abolição marcou um grande passo na
marcha final para a República; evidente também que foi decisivo o apoio dos militares.
Entretanto, já eram tão fracas as raízes do Império, que qualquer incidente mais grave as exporia
ao sol. No fundo, foram sempre republicanos os sentimentos brasileiros. A Monarquia era a
moldura da ordem constituída, a velha tradição legalista e burocrática herdada de Portugal e que
receávamos partir. No dia em que se vencesse semelhante temor, ela teria vivido…”. BELO,
José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.5.
455
Consultar História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II – O Brasil Monárquico. 1º
Volume: O processo de emancipação. Direção de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo/Rio de
Janeiro: DIFEL, 1976. Principalmente os capítulos “Herança Colonial – sua desagregação” e “A
fundação de um Império Liberal”.
205
O objetivo era propagar a ideia-força de que se a democracia
verdadeiramente triunfasse no Brasil “ficaria quebrada a perpetuidade da
herança que o Rei de Portugal queria garantir à sua dinastia” (456). Sob o
eco deste bordão demarcatório – voltado para um afastamento final relativo
à herança portuguesa no Brasil – vários eventos históricos são mencionados
justamente enquanto signos da sobrevivência do jugo colonial lusitano no
seio do Império brasileiro (Dissolução da Assembleia Constituinte de 1823,
Carta de 1824 outorgada, processo da “maioridade” de Pedro II, etc.).
A analogia entre República e Independência é nítida, mas não é a
única. Junto a ela sugere-se também a associação entre Centralismo e
Monarquia (leia-se colonialismo lusitano), à qual só se poderia opor de
forma conveniente, conforme defendia o Manifesto, a organização de uma
República Federativa no Brasil: “O regime da federação baseado, portanto,
na independência recíproca das Províncias, elevando-se à categorias de
Estados próprios, unicamente ligados pelo vínculo da mesma nacionalidade
e da solidariedade [será] o único capaz de manter a comunhão da família
brasileira” (457). Não é por acaso, assim. Que não se tenha feito qualquer
referência à idêntica proposta política de alguns positivistas portugueses.
Compreende-se o porquê. A federalização da República, para um Teófilo
Braga, por exemplo, vinha ao encontro da tradição do municipalismo
medieval lusitano. No Brasil, ao contrário, a mesma proposta política
chocava em linha direta com a tradição portuguesa, erigindo-se contra a
manutenção das práticas lusitanas na política nacional. O que também se
entende. Afinal, a evocação do nome de “Portugal” no âmbito das
“transformações” sociais brasileiras possuía, genericamente, uma
conotação precisa: o “passado” a ser superado. Este “detalhe”, que remete à
mobilização da história enquanto critério demarcatório da soberania
456
“Manifesto Republicano de 1870”. In: O Brasil no Pensamento Brasileiro. Introdução,
organização e notas de Djacir Menezes. Rio de Janeiro: INEP, 1957, p.501. Grifos nossos.
457
Idem ibidem, p.498-514.
206
cultural, reforçou o cunho americanista (leia-se antilusitano) no processo
de fundação de um Brasil “regenerado”, através do reforço dos contornos
exclusivos da “família brasileira”.
Deste modo se entende que, no contexto brasileiro, o Manifesto
Republicano de 1870 também comporte uma dimensão de tentativa de
(re)fundação da soberania nacional, bradando em prol do sentimento
americanista: “Somos da América e queremos ser americanos. A nossa
forma de governo é, em sua essência e em sua prática, antinômica e hostil
ao direito e aos interesses dos Estados americanos. A permanência desta
forma tem de ser forçosamente, além de origem da opressão do interior, a
fonte perpétua de hostilidade e de guerras com os povos que nos rodeiam”
(458). Razão terá, por conseguinte, José Maria Belo, quando afirma que “o
mais curioso a notar-se no Manifesto de 70 é o despertar do que hoje já
podemos chamar sem ênfase, da coincidência americana. Se a derrocada
de Napoleão III é um exemplo que os republicanos brasileiros não
esquecem na crítica ao Império, o que mais lhes fere o sentimento é o
exotismo da Monarquia na comunhão republicana da América” (459). Eis-
nos, em definitivo, perante um vincado sentimento de demarcação cultural
através da oposição da escala americana relativamente à escala europeia.
Um exercício de diferenciação que parece, na verdade, decorrer em boa
medida do fato de que a republicanização brasileira significou uma vontade
de extirpar do corpo nacional “o imenso revestimento do estuque europeu”,
representado pela Monarquia – pelos laços de sangue que uniam o trono
lusitano ao brasileiro (460).
Atente-se, mais ainda, em que este postulado de “comunhão
americana” traz consigo um movimento obrigatório de redefinição, quando

458
Idem, ibidem, p.517. Grifos nossos.
459
BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.25-
26. O grifo é meu.
460
Idem, ibidem, p.23.
207
não de abandono, de uma idealizada “comunhão luso-brasileira”: Uma
visão para a qual concorriam opiniões como as de Oliveira Martins (461),
Eduardo Prado (462) ou Eça de Queirós(463), cujos posicionamentos a este
respeito já atrás abordados e que, para além das diferenças, alinhavam pelo
diapasão da “comunhão de sangue” entre portugueses e brasileiros,
percepção esta sedimentada na compreensão do Brasil enquanto portador
da “seiva lusitana” nos trópicos. À luz do radicalismo que ressoava do
Manifesto e do lugar “pela negativa” atribuído a Portugal na
fundamentação republicana, bem se podem entender as reservas dos citados
intelectuais, os quais, na altura do 15 de Novembro brasileiro, receavam
pelo futuro das ligações luso-brasileiras. O certo é que o Brasil intentava,
no processo abolicionista e republicano, distanciar-se de Portugal,
assumindo autonomia cultural. Neste ponto – isto é, neste investimento de
demarcação histórica –, percebe-se a migração alegórica que transitou do
signo do “sangue” para a marca da “terra”, num processo por certo não
desconexo das influências do materialismo monista (que realçava o critério
do “meio”), através de uma autêntica “darwinização da crítica” (conforme a
expressão de Sílvio Romero). Buscava-se uma conformidade com os
demais povos americanos (republicanos) e, consequentemente, uma

461
Referimo-nos tanto às crônicas publicadas na Revista Occidental, em 1875, onde já aparece a
expressão “comunhão de sangue”, como aos artigos expressos nos jornais O Tempo, onde estão
presentes muitas críticas ao “erro” republicano cometido pela nação “neo-portuguesa” da
América.
462
Recorde-se que os artigos publicados por Eduardo Prado, na Revista de Portugal, em 1889 e
1890, sob o pseudónimo de “Fredeirico de S”, deram origem a duas publicações: A ilusão
americana, estampada em 1894 e Fastos da ditadura militar no Brasil, publicado em 1902, no
Brasil. Estas obras foram confiscadas e censuradas pelo governo republicano brasileiro. Em
1895, entretanto, veio à estampa uma segunda edição de A ilusão americana, publicada em
Paris, pela editora Armand Colin. Vale dizer ainda que A ilusão americana foi alvo de uma
positiva recepção crítica, escrita por Moniz Barreto, estampada nas páginas da Revista de
Portugal, de onde, aliás, saíram seus textos. Cf. BARRETO, Moniz. “Revista Literária: ‘Fastos
da Dictadura militar no Brazil, por Frederico de S.’”. In: Revista de Portugal. Vol. III. Porto:
Chardron, 1890.
463
Fazemos menção principalmente às opiniões manifestadas na Revista de Portugal, por
ocasião da Proclamação da República no Brasil, em 1889, já analisados anteriormente.
208
inescapável superação da tradição nacional (464). Deste modo, constata-se
que, em diversas frentes, o “passado a ser superado” era sinónimo da
relação com Portugal (fosse o braço escravo, que lembrava a exploração
lusitana, fosse a Monarquia, que significava a manutenção os “laços de
sangue”). Dir-se-ia que o Brasil, para demarcar-se de seu passado, fazia de
Portugal um ultra-passado.
Toda esta questão da demarcação histórica implícita no movimento
republicano brasileiro ganha maior clareza quando cotejada com o caso
português. É que, como se sabe, também os republicanos portugueses
buscavam demarcar-se do passado, ma medida exata em que buscavam
reinventar, na passagem para o regime republicano, um ideal a ser
alcançado. Só que, se este último, como não poderia deixar de ser em se
tratando do modelo republicano, coincidia com um ideal de positividade
cuja marcha da civilização tinha no caso francês seu referente, não é menos
verdade que ele autorizava que, em simultâneo, a construção da ideologia

464
Por isso, desde o findar da Guerra do Paraguai, o movimento de
ideias que renovou as mentes da juventude brasileira de 1870, tinha um
forte carácter nacionalista, que buscava retirar do país as peias que
lembravam o passado colonial e, assim, construir os fundamentos de uma
identidade nacional, política e cultural, que fosse única e original. Basta
lembrar o tom nacionalista agressivo dos textos de Sílvio Romero, na
Revista Brasileira, em 1879, como expusemos, ou os do crítico literário
Araripe Júnior que, na revista Lucros e Perdas, em 1883, desta forma
pregava aos seus: “desviemos os olhos das torpezas do Brasil, esqueçamos
o passado… vivamos um pouco iludidos no futuro”. ARARIPE JR., José.
Lucros e Perdas: crônica mensal dos acontecimentos. Por Sílvio Romero e
Araripe Júnior. Rio de Janeiro: Livraria Contemporânea de Faro & Lino, 2ª
edição, junho, 1883.

209
republicana, em Portugal, se autoproclamasse “herdeira” do liberalismo da
Revolução de 1820. O que, face ao que pudemos apreciar para o caso
brasileiro, se apresenta como peculiaridade lusitana: uma não renegada
inspiração no passado nacional português – entendido como o parâmetro de
um liberalismo corrompido pelo cartismo que lhe sucedeu –, no seio de um
movimento dito renovador e modernizador. Na relação com o passado no
âmbito da mudança social residirá uma diferença entre os trajetos luso e
brasileiro, na medida em que, no Brasil, o “passado” (europeu) a ser
superado era o oposto das ambições (americanas) de futuro, enquanto que
por sua vez, em Portugal, o futuro (demo-liberal republicano) busca
recuperar a “tradição” do passado (o liberalismo vintista).
Os exemplos deste aspeto, principalmente quanto à mobilização do
passado pelo republicanismo português, colhem-se sem dificuldade, tendo
sido justamente estudados como expressão do elevado peso do vintismo no
republicanismo luso. Vale a pena recuperar, para a nossa exposição, essas
alusões, no sentido, fundamentalmente, de ressaltar o contraste de
pressupostos com a atrás enunciada situação do republicanismo brasileiro.
Veja-se, a este respeito, a interpretação de José de Arriaga, em A política
conservadora e as modernas allianças dos partidos políticos portugueses,
obra que, publicada em 1879, representa um ícone da mobilização
republicano em torno da “herança” de 1820 e da importância da unificação
das propostas republicanas: “é chegado o momento de lançarmos uma vista
rápida pelo passado, a fim de o interrogar acerca das vantagens e
benefícios, deixados até hoje, pela monarquia constitucional, talhada
segundo os princípios da escola doutrinária, e metida nas estreitas formas
da política conservadora”. A referência à ideia de “regeneração” tendo
como inspiração o passado vintista fica ainda mais clara quando Arriaga
afirma que “Portugal, decadente e empobrecido pelo regimen absoluto,
inimigo do progresso e das reformas, fez um esforço heróico, para libertar-

210
se dos vícios e defeitos de uma sociedade decrépita. Proclamou em 1820, e
com enthusiasmo, os princípios liberaes, a fim de iniciar com elles uma
política popular e nacional, a qual soubesse tratar com disvelo e solicitude
dos interesses públicos, até então despresados e esquecidos; e a fim de
achar n’elles a sua completa regeneração futura” (465). Considerações
como estas foram ecoadas por Manuel Emídio Garcia, que dizia ser a
Revolução de 1820 um “movimento político de feição acentuadamente
democrática”, representando “a expansão do comprido espírito liberal e das
tradicionais aspirações republicanas do povo português, que em futuro mais
ou menos próximo conseguirá reatar à memorável revolução de 1820 a
corrente da sua evolução política democrática, há setenta anos cortada pela
monarquia e seus sequazes” (466). Teófilo Braga, por sua vez, também
reverberava este posicionamento, ao dizer, na introdução à sua História das
Ideias Republicanas em Portugal, que “a história, determinando com
clareza o advento evolutivo das ideias democráticas, levará os espíritos
dirigentes à previsão da marcha para uma transformação política não
remota; e dessa previsão resultará uma maior coordenação de trabalho e
desse trabalho uma revivescência da nacionalidade” (467). Resuma-se, pois,
com o abono de Amadeu Carvalho Homem, dizendo ser “indesmentível
que o republicanismo apologético dará por sua a tradição democrático-
revolucionária, conferindo à revolução vintista uma relevância toda
especial e saudando o diploma constitucional de 1822 como a consagração
legal de uma nova vivência cívica e política” (468).
Por outro lado, convirá não deixar passar em claro, em matéria de
relacionamento luso-brasileiro de fundo republicano, o potencial de
465
ARRIAGA. José. A política conservadora e as modernas allianças dos partidos políticos
portugueses. Lisboa: Imprensa de J.G. de Sousa Neves, 1879, p.459. Grifos nossos.
466
GARCIA, Manuel Emídio. “O que foi a revolução de 1820”, A Discussão, 1º ano, nº 218, 24
de Agosto de 1884, p.1, col.3. Os grifos são nossos.
467
BRAGA, Teófilo. História das Ideias Republicanas em Portugal. Lisboa: Veja, 1983, p.15.
468
HOMEM, Amadeu Carvalho. A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo
Braga. Coimbra: Minerva, 1989, p.236.
211
interferência que terá desempenhado, no espaço dos republicanos
portugueses, a proclamação da República no Brasil, em 1889. Não está em
causa, como é evidente, medir o grau dessa influência adentro do universo
de fatores normalmente associados ao caminho para a proclamação da
República em Portugal. Apenas se pretende chamar a atenção para alguns
focos de permeabilidade, se assim se pode dizer, a exemplo da importância
simbólica que parece poder reconhecer-se ao 15 de Novembro brasileiro na
Revolução do Porto de 31 de Janeiro de 1890 – evento tido
consensualmente como representante de uma maior radicalização do
republicanismo português (469) –, culminando com o regicídio de 1908 e a
troca de regime de 1910. Mesmo deixando de lado a proximidade
situacional transatlântica revelada pela entrada em cena dos militares no
movimento republicano, indicador de uma maior celeridade do movimento
e elemento passível de aproximação à experiência brasileira de
republicanização, o elo que estamos a sugerir pode ser observado nas
páginas da Revista de Portugal, principalmente em um texto de Luiz de
Magalhães intitulado “Revolta do Porto”, publicado em 1890. Nele, o autor
afirma que “dois factos importantes actuaram fortemente, de há um tempo
a esta parte, a favor da republicanização do paiz e do exército. Esses dois
factos, quasi simultâneos, foram a questão ingleza, com todos os seus
deploráveis episódios, e o exemplo da revolução brazileira” (470).

469
Esta inflexão radical do republicanismo português está presente, por exemplo, no programa
do Directório de 11 de Janeiro de 1891. A partir deste momento, pode-se dizer que a clivagem
entre federalista e unitaristas, bem como entre evolucionistas e radicais será superada no sentido
de um consenso nacionalista. Conforme Fernando Catroga, este Directório “pretendeu conciliar,
no essencial, os programas republicanos anteriores (unitarista e federalista), limitando-se a
sublinhar melhor a opção nacionalista e interclassista do ideal republicano e a acentuar a
finalidade que, em última instância, sobredeterminava a sua estratégica: a consumação da
revolução cultural que seria necessária para completar o processo histórico iniciado com o
liberalismo, mas que somente a República poderia elevar-se a um estádio maior de perfeição”.
CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal: da formação ao 5 de Outubro de 1910.
Coimbra: Faculdade de Letras, 1991, p.84.
470
MAGALHÃES, Luiz. “A revolta do Porto”. In: Revista de Portugal. Direcção Eça de
Queiroz. Vol. III. Porto: Chardron, 1890, p.483. Grifos nossos.
212
Considera ainda que “o exemplo da revolução brazileira, d’essa rápida e
fácil mutação theatral de personagens e instituições, levada a effeito d’uma
manhã para uma tarde, apenas com meia dúzia de tiros de rewolver
trocados entre o barão de Ladario e a escolta do general Deodoro – fez
penetrar nas massas jacobinas a convicção de que tudo seria possível fazer-
se aqui, mais dia, menos dia, pelo mesmo processo; e conformou até certo
ponto o prudente burguez com a hypothese d’uma republica implantada em
idênticas condições”. E acrescenta ainda que “nesta corrente de ideias, o
partido republicano foi-se aproximando do exercito, que não repeliu, de
forma alguma, o seu contacto. Activou-se a propaganda, e iniciou-se por
fim a conspiração” (471). Conspiração esta que, com se sabe, resultou em
fracasso, tratando-se, antes, nas palavras de Luiz de Magalhães, de “uma
espécie de sangrenta paródia ao 15 de novembro brazileiro” (472).
Para lá da maior ou menor interferência deste sucesso nos rumos
tomados pela radicalização do republicanismo português até ao 5 de
Outubro de 1910, é possível descortinar, do ponto de vista que temos vindo
a perseguir, que a Proclamação da República no Brasil, em 1889,
perturbava (sob os aplausos de uns e o receio de outros) a manutenção e o
significado da “obra portuguesa na História”, representando o perigo de
desagregação “da obra lusitana” na América. E nem será preciso somar a
este fato o célebre Ultimato Britânico e suas sequelas traumáticas para se
tornar evidente que, em uma tal conjuntura, se tenda a proceder a uma
reavaliação das memórias nacionais por parte de cada um dos lados do
Atlântico. Estamos diante, portanto, de num processo de mobilização das
historicidades. Uma conjuntura em que, a par das demarcações cientistas e
justamente com apoio nelas, se demarcavam de igual modo as matrizes
identitárias e o processo de construção histórica das culturas nacionais.

471
Idem, ibidem, p.484.
472
Idem, ibidem, p.490. Grifos do original.
213
III – ESCALAS IDENTITÁRIAS: A PROBLEMÁTICA DA
ORIGINALIDADE.

Convocadas tanto pela ampla frente cientista heterodoxa – onde se


amalgamavam o positivismo littreísta, preceitos do darwinismo, do
materialismo monista e do spencerianismo –, como pelas politizações da
memória processadas no âmbito do republicanismo, a história e, de modo
geral, a matéria da “temporalidade”, revelar-se-ão, mesmo quando
mobilizadas a partir de diferentes pressupostos teóricos, eixo incontornável
das estéticas de recomposição identitária desenvolvidas pelas culturas
portuguesa e brasileira em finais de Oitocentos e na entrada da centúria
seguinte. Sabendo-se que esses complexos processos de redefinição
memorial confluem, nessa altura, num tendencial reforço de leituras
nacionalistas por parte dos intelectuais envolvidos, percebe-se não só a
importância então conferida, no espaço de debate luso-brasileiro, ao
problema maior da “originalidade” – tornado, a nosso ver, a verdadeira
placa giratória da questão identitária – como se percebe também o motivo
da centralidade da história nesse debate. São justamente estes aspectos que
nos propomos equacionar nesta III Parte.
O nosso propósito encontra concretização em duas frentes de análise: através
de uma delas, dá-se conta da tensão entre as noções de “herança”, nomeadamente nas
derivações brasileiras oriundos do lastro lusitano na leitura de J. P. de Oliveira Martins
ou na leitura deste mesmo lastro como “mal de origem” conforme o entendimento de
Manoel Bonfim; noutra frente, analisa-se a questão da “originalidade” na decorrente
214
concorrência da forma híbrida como chave de leitura de estéticas vinculadas ao
moçarabismo português, em Teófilo Braga, e ao projeto da mestiçagem brasileira, em
Sílvio Romero. Esta segunda linha analítica comportará, ainda, uma indagação
exploratória sobre o acolhimento desta disputa à escala regional interna brasileira. Em
qualquer dos casos, tratam-se de indicadores das mobilizações da história e do sentido
do potencial relacionamento luso-brasileiro.
Independentemente do fato das obras de Oliveira Martins e Teófilo Braga,
sobretudo seu caráter matricial para o entendimento de padrões culturais nacionais,
terem sido já bastante explorado, pela historiografia portuguesa (473), assim como, no
caso brasileiro, o papel de Sílvio Romero ter sido mais enaltecido que o de Manoel
Bomfim (474) – cumpre lembrar, no entanto, que Maria Tétis Nunes,já tenha chamado
atenção para o fato de serem ambos os “pioneiros” da “ideologia nacional” brasileira
(475) –, é a disponibilidade destes autores para tipificarem determinados modelos de
reflexão sobre a escala luso-brasileira propriamente dita, juntamente com a
representatividade que se lhes reconhece enquanto expressão, cada um a seu modo, de
outros tantos alinhamentos teóricos e políticos relativos ao mesmo assunto, que
justifica, a nossos olhos, a sua eleição como indicadores da pesquisa (476).
Seja-nos permitido um ajuste teórico prévio. A nossa abordagem da
questão assenta-se em três vias de reflexão sobre a temática identitária. A
primeira é a que, estando atenta ao carácter negociado das identidades
473
Veja-se, a título de exemplo, CATROGA, Fernando e CARVALHO, Paulo Archer de.
Sociedade e Cultura Portuguesa II Lisboa: Universidade Aberta, 1996; CATROGA, Fernando,
TORGAL, Luis Reis e MENDES, José Amado. História da História em Portugal, volume 1 –
A História através da História. Lisboa: Temas e Debates, 1998; HOMEM, Amadeu Carvalho,
Do romantismo ao realismo: temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fund. Eng-º
António José de Almeida, 2005; SARAIVA, António José. A Tertúlia Ocidental: estudos sobre
Antero de Quental, Oliveira Martins e outros. Lisboa: Gradiva, 2ª edição, 1995; LOURENÇO,
Eduardo. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. Lisboa: Gradiva, 1999;
MAURÍCIO, Carlos. A invenção de Oliveira Martins: política, historiografia e identidade
nacional no ‘Portugal Contemporâneo’ (1867-1960). Lisboa: INCM, 2005; PONTE, Carmo
Salazar, Oliveira Martins. História como tragédia. Lisboa: INCM, 1998.
474
Assinale-se, a título informativo, que, recentemente, a Editora Topbooks, do Rio de Janeiro,
vem reeditando a obra de Manoel Bomfim.
475
NUNES, Maria Tétis. Silvio Romero e Manuel Bomfim: pioneiros de uma ideologia
nacional. Aracaju: Cadernos da UFS, n.º 4, [s.d.].
476
Lembre-se, entretanto, que a esfera relacional de alguns destes autores “luso-brasileiros” já
foi sugerida. Veja-se, por exemplo, os trabalhos de Paulo Franquetti e o extenso rol de estudos
apresentado no II Congresso Tobias Barreto, dedicado às aproximações e distanciamentos entre
as obras de Sílvio Romero e Teófilo Braga. Sobre estes dois autores, consultar também
BORGES, Paulo E. A. O Pensamento Atlântico: estudos e ensaios de pensamento luso-
brasileiro. Lisboa: INCM, 2002.
215
coletivas e à incómoda não coincidência entre as estratégias de
consolidação identitária e os respectivos esforços de legitimação, distingue
os conceitos de “fundação” e “fundamento”: “fundação e fundamento
pertencem ambos ao registo da evidência mas o fundamento é o lugar do
excesso enquanto que a fundação, ou as actividades fundadoras do espírito
[…] se acham associadas à procura dessa inteligibilidade primordial que
nos aparece como uma exigência indeclinável” (477). Trata-se, neste ponto,
de perceber o nível epistêmico da matéria de consolidação de leituras
identitárias. A segunda via é a que, remetendo à centralidade das leituras da
história nestes processos identitários, bem como ao potencial demarcatório
das delimitações culturais a ela vinculados , adverte que “a história,
convocada e manipulada com intuitos probatórios, surge, neste contexto,
menos como mapa cognitivo da memória do que como arena” (478). Eis-
nos, neste patamar, vinculados ao apelo concorrencial e competititivo
brotado quando são surpreendidas diferentes leituras da historicidade
fundando padrões de relacionamento divergentes. A terceira, por fim, é a
que está atenta ao lugar da história no contexto oitocentista e, assim sendo,
ao modo como deve entender-se a sua mobilização pelos diferentes credos
teóricos, o que recorda que “quer a razão científica, quer a razão filosófico-
histórica constituíam duas expressões da mesma razão prognóstica e
instrumental moderna” (479). Ora, visto que qualquer um destes patamares
teóricos subentende a presença de uma estética da temporalidade nos
processos identitários, justifica-se que, antes de desenvolvermos as linhas
de inquérito previstas, façamos algumas considerações a esse nível em
relação ao caso luso-brasileiro na conjuntura que nos ocupa.

477
GIL, Fernando. Modos de evidência. Lisboa: INCM, 1998, p.401.
478
MARTINS Rui Cunha. “A Arena da História ou o Labirinto do Estado? Delimitações
intermunicipais e memórias concorrenciais nos inícios do século XX”. Cadernos do Noroeste,
15 (1-2), 2001, pp.37-56.
479
CATROGA, Fernando. Caminhos do Fim da História. Coimbra: Quarteto, 2003, p.122.
216
1. A obsessão temporal da alteridade luso-brasileira.

No final do século XIX, o entendimento da história como “ciência


concreta” cohabita com o seu entendimento enquanto “força abstrata”, do
mesmo modo que o seu entendimento como consumação de leis universais
não anula a sua leitura enquanto manifestação do espírito do povo. Em
1891, J.P. de Oliveira Martins considerava que “a arte de escrever a história
está atravessando um período de transformações” (480). E estava mesmo.
Em 1871, Antero de Quental, no início de Causas da decadência dos povos
peninsulares nos últimos três séculos, propunha, frente a um irrefutável
quadro de decadência (481), que tal como “o pecador humilha-se diante do
seu deus, num sentido acto de contrição, e só assim é perdoado, [seja feito
por] nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos
nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e
regenerar” (482).
De toda a significância parece-nos o fato de a contrição não ser
mais perante um Deus todo-poderoso – a reverência devia ser feita perante
a História da Humanidade. O que se compreende. Das lições do passado
surgiriam respostas para a regeneração futura. Eis o bordão comum.
Vigente no interminável debate estruturado sobre os conceitos gêmeos de

480
MARTINS, J. P. de Oliveira. “Advertência”. In: Os Filhos de D. João I. Lisboa: Editora
Ulisseia [1891], 1998, p.33.
481
A noção de “decadência”, como se sabe, foi utilizada como categoria de análise histórico-
cultural pela Geração de 70 portuguesa. Sua utilização remete ao par “progresso-decadência”,
significando uma depreciação crítica fortíssima de alguns segmentos intelectuais portugueses ao
compararem-se com os ícones de desenvolvimento moderno dos países da Europa ocidental e
central (França, Alemanha, Inglaterra, principalmente). Este cotejar histórico-cultural filia-se
num entendimento caro às filosofias da história – entendidas como a consumação do progresso
e do crescente esclarecimento – aliada à tonalidade naturalista do contexto em questão – mais
especificamente no tocante ao paralelo organismo-sociedade. Para as várias manifestações desta
estética cultural em Portugal ver PIRES, António Machado. A ideia de decadência na Geração
de 70. Lisboa: Vega, 2ª edição, 1991. Para um entendimento de sua relação com as filosofias da
história do século XIX, consultar CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história.
Coimbra: Quarteto, 2003.
482
QUENTAL, Antero de. Causas da decadência dos povos peninsulares. In: Carlos Reis. As
Conferências do Casino. Lisboa: Alfa, 1990, p.95. Grifos nossos.
217
progresso e decadência (483), estava a convicção, partilhada tanto por
Antero quando Oliveira Martins, de que o inquérito ao passado – e o
“tribunal da história” – apontariam as respostas para o re-surgimento
nacional projetado. Este “tribunal” (484), organizado pela Razão através do
estudo do passado, será o locus privilegiado da “contrição” do autor das
Odes Modernas (485), bem como estará também vinculado à “lição moral”
ensinada pela história, como considerava o autor de Os Filhos de D. João I
(486). É verdade que a criticidade exacerbada pelo “decadentismo” anteriano
e Martiniano (487) nos remete às filosofias da história do século XIX (488),

483
Veja-se o verbete “decadência”, escrito por Joel Serrão, do Dicionário de História de
Portugal. Lisboa: Iniciativas editoriais, 1963. Indicamos, também, o Dicionário da Geração de
70, direcção de Guilherme de Oliveira Martins e Ana Maria Alves, a ser editado pela Editora
Presença.
484
Como diz também Koselleck : “l’histoire du monde est le tribunel du monde”.
KOSELLECK, Reinhard. Le Futur Passé: contribuition a la semantique des temps historique.
Paris : Éditions de EHESS, [1979] 1990, p.50.
485
Não surpreende que, por ocasião da reedição de O Crime do Padre Amaro, em 1880, Antero
de Quental tenha feito o seguinte comentário sobre a História de Portugal de Oliveira Martins,
lançada no ano anterior: “Já leu a História de Portugal de Oliveira Martins? É o que se chama
uma revelação. Eu cá, depois de a ler, conclui que até aquele momento não fazia ideia nenhuma
da história desta terra. Olhe que é gráfica e pitoresca. O homem, meu caro Queiroz, é a única
coisa realmente a valer que temos aqui”. Carta de Antero de Quental a Eça de Queiroz In:
QUEIRÓS, Eça de. O Crime do Padre Amaro. Cenas de uma vida devota. Edição de 1880,
revista pelo autor, precedida de uma carta inédita de Antero de Quental. Lisboa, Edição Livros
do Brasil, 1880.
486
A estética identitária do “Tribunal da História” condicionou, por certo, o “retrato” identitário
de Portugal, explícito em sua História de Portugal. Trata-se, como já explicou Fernando
Catroga, de um dos pontos de contacto entre o ideário martiniano e o anteriano, pois os autores,
“apesar das diferenças […] acabaram por tecer um destino geminado pelo pessimismo e pelo
fracasso”. CATROGA, Fernando, O Problema Político em Antero de Quental. Um confronto
com Oliveira Martins. Coimbra: Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade
de Coimbra, 1981, p.138.
487
Várias são as aproximações possíveis entre a perspectiva histórica de Antero de Quental e
Oliveira Martins. A este título, permitimo-nos tão-só evocar aqui, em termos emblemáticos
desse relacionamento, o fato de o título da palestra de abertura das Conferências do Casino
Lisbonense, conforme já foi aqui mencionado, As Causas da Decadência dos Povos
Peninsulares, de Antero de Quental, ser também guardado como título de um importante
capítulo da significativa História da Civilização Ibérica, obra que Oliveira Martins estampa em
1879, portanto, 8 anos depois da conferência anteriana (e recorde-se, ainda, que, na mesma obra,
em capítulo intitulado “As Ruínas”, Oliveira Martins fará uma longa citação justamente do
célebre opúsculo de Antero de Quental). Entretanto, para a cabal elucidação das relações entre
as ideias de Antero e Oliveira Martins, consultar CATROGA, Fernando. O Problema Político
em Antero de Quental. Um confronto com Oliveira Martins. Coimbra: Centro de História da
Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1981.
488
Conforme Karl Löwith, “o termo «filosofia da história» foi inventado por Voltaire, que o
aplicou pela primeira vez na sua acepção moderna, distinta da interpretação teológica da
218
representantes de sucessivas tentativas de “entificação da história da
humanidade” (489) e de uma remissão permanente das ideias para os
respectivos ícones abstractos, num contexto onde “les libertés deviennent la
Liberté, les droits deviennent le Droit, les progrès deviennent le Progrès, et
les révolutions plurielles deviennent «la Révolution»”(490). Uma batuta
universalizadora do sentido da história – feita trajecto de uma humanidade
ascensional e “sujeito” da modernidade –, que acabava por manifestar-se
num movimento de homogeneização iluminista, ou “à la Voltaire”, como
cedo se apercebeu um incomodado Herder (491). Mas, por outro lado, se nos
casos de Antero (492) e Oliveira Martins a leitura da transitoriedade coletiva
portuguesa foi entendida como degradação, isso ficava a dever-se à
convicção de um sentido manifesto na relação entre o conhecimento do
passado, seu uso no presente e sua referencialidade para efeito de um
projetado futuro, sentido esse que, entendido como “lição”, constaria
precisamente do magistério da história (493).

história. No Essai sur les moeurs et l’esprit des nations, de Voltaire, já não predomina o
princípio da vontade de Deus e da providência divina, mas da vontade do homem e da razão
humana”. LÖWITH, Karl. O Sentido da História. Lisboa: Edições 70, [1948] 1990, p.15.
489
CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003, p.64.
490
KOSELLECK, Reinhard. Le Futur Passé: contribuition a la semantique des temps
historique. Paris : Éditions de EHESS, [1979] 1990, p.47.
491
Herder, com fina ironia, criticava “o olhar de toupeira deste século iluminadíssimo”. Em
oposição à universalidade da Razão e de sua marcha histórica, Herder chamará atenção para as
originalidades nacionais, as idiossincrasias da natureza enquanto a manifestação da diversidade
da obra do Criador. HERDER, Johan Gottfried. Também uma filosofia da história para a
humanidade. Lisboa: Antigona, [1774], 1995, p.8-10.
492
Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho de um poema de Antero de Quental dedicado “À
História”, inserido nas Odes Modernas de 1865: “Fecha os olhos… que os passos da visão / Não
deixam mais vestígios do que o vento! / Tu, que vais, se te sofre o coração / Vira-te para trás…
pára um momento… / Dos desejos, das vidas, nesse chão / Que resta? Que espantoso
monumento? / Um punhado de cinzas – toda a glória / Do sonho humano que se chama
História” QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Vega, 1994, p.27.
493
A Historia magistra vitae, ao estilo ciceroniano, é relativa ao contexto da retórica antiga,
referindo-se aos modelos helênicos do tempo e da experiência. Conforme explica Koselleck, “la
tâche dominante, que Cicéron confère ici à la science historique, est avant tout axée sur le
domaine pratique, dans lequel l’orateur exerce son influence. Il se sert de la l’histoire, Historia,
comme d’un recueil d’exemples – plena exemplorum est historia, afin d’instruire grâce à eux, et
ce d’une manière certainement plus vigoreuse que Thucydide lorqu’il soulignait l’utilité de son
ouvrage en le confiant aux génération futures comme leur bien inextinguible, afin de qu’elles y
219
Dada “a índole retrospectiva e universalista das filosofias da
história”, sucedia, como explica Fernando Catroga, que “mesmo quando o
elo entre os antecedentes e consequentes se restringia ao causalismo
material e eficiente (como sucedia, em boa parte, no discurso
historiográfico), todos aqueles eram transformados em meios, tendo em
vista a realização de um fim. Dir-se-ia que eles punham o efeito como
causa de suas causas, ilação que permite concluir que os seus intuitos de
previsibiliade constituíam, em última análise, uma “espécie de previsão ao
contrário” (Schlegel)”. Em síntese, prossegue o mesmo autor: “o velho
preceito ciceroniano historia magistra vitae, mesmo quando se afirmava o
inverso, estava a ser objectivamente revisto, pois, se ele se adequava a
mentalidades imbuídas de uma visão cíclica do tempo, ou crentes no cariz
a-histórico da natureza humana, tal não ocorria com a aceitação da
irreversibilidade. Se nada se repete, que utilidade poderiam ter as lições do
passado? Ora, a resposta não foi negativa pelas razões apontadas: a
perspectiva diacrónica continuou a ser invocada, porque as estratégias de
convencimento das narrativas históricas, estruturadas segundo a lógica
antecedente ĺ consequente, não podiam explicar a sequência do eixo
temporal a partir do efeito, que elas mesmas procuravam demonstrar” (494).
Não surpreende, assim, que, podendo embora dizer-se que a memória,
"dans une dimension historique, s'est montré moins comme un acquis que
comme un fardeau" (495), terá sido igualmente certa, mesmo assim, a
percepção de que a aprendizagem dos “erros” cometidos no passado

prissent connaissance de cas semblables aux leurs”. KOSELLECK, Reinhard. Le Futur Passé:
contribuition a la semantique des temps historique. Paris : Éditions de EHESS, 1990, p.39.
494
CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003, p.78.
495
BARASH, Jeffrey Andrew. "Les sources de la mémoire". In: Revue de Métaphisique et de
Morale, janviers-mars, 1999, n.º 1, p. 147. Evoque-se, com idêntico sentido, Paul Ricoeur,
quando afirma que "a memória coletiva é o verdadeiro lugar da humilhação, da reivindicação,
da culpabilidade, das celebrações, portanto, tanto da veneração como da execração". RICOEUR,
Paul. "Dever de memória, dever de Justiça". In: RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção.
Conversas com François Azouvi e Marc De Launay. Lisboa: Edições 70, 1997, p170.
220
comportava em si mesma a esperança na regeneração da coletividade
nacional.
Estas considerações ajudam a melhor entender os planos de
intersecção e questionamento entre uma compreensão do tempo e da
História que busca nas “cinzas” do passado as causas da decadência
(portuguesa) num sentido prospectivo de sua regeneração como progresso e
os critérios de compreensão do cientismo historicista, muito difundidos
pelas ciências da natureza e pujantes nas nascentes Ciências Sociais. A
respeito destes últimos, basta evocar, por exemplo, o modo como a poesia
cientificista de um José Isidro Martins Júnior – intelectual brasileiro então
conhecido em Portugal (496) – trata de frisar as diferenças existentes entre a
concepção metafísica do tempo própria das filosofias da história e a
compreensão alternativa dada pela visão cientista da história(497), ou, na

496
Como já expusemos na primeira parte deste trabalho, estava impresso, na contracapa da
revista O Positivismo, o recebimento da obra de José Isidro Martins Júnior, Vigílias literárias
(bem como a Oração fúnebre de António Cândido da Costa), a qual beneficiaria de uma
recensão-crítica favorável nas páginas dessa revista e nas da Revista de Estudos Livres, onde
chega mesmo a publicar um artigo (A função histórica da economia política). O Positivismo:
revista de filosofia. Primeiro Ano, n.º6, Agosto/Setembro, 1879, Contracapa. In: O Positivismo:
revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de
Magalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, 449p. Assim se manifesta
Teixeira Bastos: “Este livro é um brado de defeza a favor da poesia scientifica e philosophica,
que tão impugnada tem sido pelos sectarios da arte pela arte e por todos aqueles que
desconhecem a evolução esthetica, chegando a affirmar alguns a incompatibilidade da poesia
com os progressos da nossa civilisação. Basta ser este o fim do auctor, um moço intelligente e o
iniciador da poesia scientifica no Brazil com as suas Visões de hoje, para que o seu trabalho
mereça toda a nossa sumpathia e applauso, embora discordemos d’elle n’um ou n’outro ponto
secundario. O snr. Martins Junior estuda o assumpto debaixo de um ponto de vista geral sem se
preoccupar com as pequeninas vaidades de nacionalidade, ao contrario do que infelizmente
succede com a maioria dos seus patrícios”. BASTOS, Teixeira, Secção Bibliographia – “A
poesia cientifica (Escorço de um livro futuro), por Izidoro Martins Junior. Recife, 1883, 73
pag.”, Revista de Estudos Livres. Volume I (1883-1884). 1884, pp.479-480.
497
Em 1881, Isidro Martins Júnior publica Estilhaços, As visões de hoje, obra onde propagou a
“poesia científica”. Neles, deixou-nos um excelente exemplo das, de onde se sustenta a Ciência
Social. Vejamos o trecho do seu poema Síntese Científica: “Mas só Comte / Pôde, estóico,
escalar o alevantado monte / No píncaro do qual via-se a neve branca / Da Nova concepção do
mundo reta e franca! / Deixando embaixo Kant, Simon, Burdin, Turgot, / Newton e Condorcet e
Leibiniz, – voou / Ele para as alturas mágicas da glória. / Após ter arrancado ao pélago da
História /A vasta concha azul da Ciência Social!”. MARTINS JÚNIOR, José Isidro. “Síntese
Científica”, citado por Veríssimo, José (1857-1916). História da Literatura Brasileira: de Bento
Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). Brasília: Editora da UnB, 5ª edição, [1912], 1998,
p.251.
221
mesma linha, as poesias de Teófilo Braga, Visão dos Tempos, de 1864, e de
Sílvio Romero, Cantos do fim do século, de 1878 (498). Em todos estes
autores, o projeto de uma sistematização da vida coletiva – manifesto no
conceito de sociedade – buscava tecer uma colcha de certezas legitimadas
por leis universais que tiravam de cena algo muito caro ao acento de
imprevisibilidade das filosofias da história – o acaso –, noção de difícil
utilidade para uma compreensão sistemática da existência humana (499).
Preferia-se-lhe, ao invés, uma segura máxima cientista – saber para prever
e prever para saber – feita solo-comum das tentativas de cientifização da
história (500). Em qualquer dos casos – e este aspecto é para nós da maior

498
Esta relação entre Isidro Martins, Teófilo e Romero, foi diagnosticada pelo seu
contemporâneo José Veríssimo, não sem uma estocada crítica, bem ao gosto da época:
“acompanharam-no, com efeito, outros moços tão pouco reflexivos e tão pouco poetas como
ele. Apenas menos declaradamente seguiu a corrente, a que afluíam também caudais da Lenda
dos Séculos, de Vítor Hugo, e da Visão dos Tempos, do Sr. Teófilo Braga, o Sr. Sílvio Romero
(Cantos do fim do século, Rio de Janeiro, 1878). Pelo nome que justamente adquiriu nas nossas
letras, e pela sua mesma obra poética desta errada tendência, foi talvez Sílvio Romero o mais
considerável destes poetas. Sem nenhuma superioridade, mas também sem tamanha
insuficiência quanto lhe assacaram, versificou noções científicas, pensamentos filosóficos,
conceitos históricos, opiniões sociais com mais ardor que sucesso. Esta poesia científica de que
Martins Júnior se fizera arauto (Poesia Científica, Recife, 1883), e que pouco mais cultores teve
além dele e do Sr. Sílvio Romero, e nenhum certamente credor de estimação, era ainda, por
muitos aspectos, um remanescente do condoreirismo”. VERÍSSIMO, José (1857-1916).
História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908).
Brasília: Editora da UnB, 5ª edição, [1912], 1998, p.251.
499
Lembre-se que na classificação e hierarquização das ciências feita por Augusto Comte, a
Sociologia ocuparia o lugar cimeiro, posto que representaria, na perspectiva positivista, um
movimento de cientifização da compreensão do homem (noção de que é tão tributário o
conceito de “sociedade”), substituindo, assim, as “filosofias da história” de cariz assumidamente
metafísico.
500
Veja-se, sobre este saber para prover, as considerações de Fernando Catroga, no trabalho
Caminhos do Fim da História, que temos vindo a citar (consultem-se, em especial, as pp.118-
123). Entretanto, recorde-se o que, a este respeito, diz Émile Littré: “l’histoire était un domaine
où la théologie et la méthaphysique pouvaient se croire trionphantes. Elle montrait les religions,
qui, révélées par une puissance surnaturelle, enseignaient aux hommes, sans contestation
tolerée, ce qu’ils devaient croire de leur origine et de leur fin. A côté des religions s’élévaient
les grandes écoles métaphysique, qui, elles aussi, avaient leur droit divin dans l’autonomie ou
l’impersonnalité de la raison. La sociologie a changé tout les points de vue. En démontrant que
l’histoire ou civilisation est une évolution qui commence par les états les plus élémentaires pour
parvenir aux plus compliqués, elle a placé les religions et les métaphysiques sous la conditions
commune des conception humaines, c’est à dire sous la condition commune d’être des fruits de
certaines saisons sociales, sans rien qui les distingue du reste comme origine et comme
destination. Les divers absolus sont venus se fondre, ainsi qu’une cire molle, en ce creuset ; et il
n’est plus resté qu’un immense relatif qui embrasse tout”. LITTRÉ, Émile. “Que penser de la
222
importância –, “tanto as filosofias da história como as ciências eram
suportadas pela crença comum na racionalidade do universo e na
capacidade que a razão humana teria para a decifrar. Simultaneamente,
ambas prometiam uma capacidade de previsão que iria aumentar o poder
do homem sobre a natureza e sobre o seu próprio futuro: quer a razão
científica, quer a razão filosófico-histórica constituíam duas expressões da
mesma razão prognóstica e instrumental moderna” (501).
Nesta acepção se explica que a centralidade do critério histórico no
processo de demarcação identitária (502), encontre expressão tanto nas
“filosofias da história” – que buscavam no passado as “lições da História”
no sentido de orientar a construção de um futuro projectado –, quanto na
aplicação das leis universais e invariáveis que emprestavam concretude e
“certeza” à vida em sociedade – através dos conceitos de “raça” e “meio”,
como no monismo materialista, por exemplo. É a partir de um recurso, com
frequência cruzado ou sobreposto, a estes dois critérios de mobilização da
história que vão sendo demarcadas as estéticas identitárias “brasileira” e
“portuguesa”.

désuétude qui gagne les spéculation concernant l’origine et la finalité du monde et de ses
êtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março, 1879, p.156. Grifos nossos.
501
CATROGA, Fernando. Caminhos do Fim da História. Coimbra: Quarteto, 2003, p.122.
502
Não deixa de ser curioso que a maioria das teorias sobre a formação das nacionalidades e dos
nacionalismos tenha dado pequena atenção à importância da mobilização da história enquanto
agente demarcador da escala cultural de referência – a nação. Parece que o motivo desta
desatenção está na consideração tácita de uma evidência – a existência das coletividades
enquanto nação – ao invés de surpreendê-la em seu momento de fundação simbólica, de
renegociação identitária, de fundamentação histórica. Veja-se, por exemplo, GELNER, Ernst.
Dos Nacionalismos. Lisboa: Teorema, 1998; HASTINGS, Adrian. SMITH, Anthony. La
construcción de las nacionalidades. Madrid: Cambridge University Press, 2000; HOBSBAWN,
Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1991; ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a
expansão do nacionalismo. Lisboa: Edições 70, 2005, entre outros.
223
2. A Herança e o Mal de origem: a lição da história (e sua inversão).

Coloquemos então um primeiro nível de reflexão. Justifica-o a


percepção da eficácia analítica que pode resultar de um estudo comparado
entre o trajeto do português Oliveira Martins e do brasileiro Manoel
Bonfim, autores para os quais um estudo descuidado pode limitar-se à
verificação do muito que neles há de comum, quando, ao que tudo nos
indica, é muito mais ao nível das interpretações diferenciais por eles feitas
a partir de matéria de certeza comum, aquilo que importa elucidar (503).
Começaremos por Oliveira Martins (504), Seguiremos com a observação da
obra de Bonfim e, depois, será altura de medir as direções tomadas por
cada um deles a propósito do relacionamento entre as culturas brasileira e
portuguesa. A “herança” (portuguesa) e “mal de origem” (brasileiro)
representam caminhos opostos de resolver um impasse hermenêutico ao
qual a “lição” da história a ambos conduzira.

2.1. A visão martiniana sobre o significado do Brasil e de um âmbito


luso-brasileiro de referência pode deduzir-se da sua visão de sua História
Universal, da História da Civilização Ibérica e da História de Portugal
enquanto parcela desta. Contudo, um ano após ter publicado sua História
de Portugal, editada em 1879, Oliveira Martins traz a público um livro
onde trata especificamente deste assunto: O Brasil e as Colónias
Portuguesas, de 1880. Nele, afirma o autor que, desde o início da

503
Uma primeira incursão sobre estas questões pode ser vista em PAREDES, Marçal de M.
“História e Escala ou o Brasil e a identidade portuguesa: um estudo sobre J.P. de Oliveira
Martins”. Ágora. Vol.11, n.1. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, p.281-293.
504
A importância da estética identitária portuguesa construída por J.P. de Oliveira Martins pode
ser facilmente observada pela constante releitura sofrida por sua obra pelas diversas gerações de
intelectuais portugueses que buscavam refundar a nação. Para uma análise das leituras da obra
martiniana, veja-se o interessante estudo de MAURÍCIO, Carlos. “O falso Portugal de Oliveira
Martins”. Ler história, 38 (2000), pp.57-86. Ver também RAMOS, Rui. A Segunda Fundação
(1890-1926). História de Portugal. Volume VI -. Direcção Geral de José Mattoso. Lisboa:
Editorial Estampa, 2001, principalmente o capítulo “A Invenção de Portugal”, p.495-518.
224
colonização portuguesa do Brasil, se notam delineamentos e limites
internos diferenciados na colônia brasileira: tanto que as diferenças entre
Norte e Sul seriam matriciais quer para o desenvolvimento do período
colonial – onde essas regiões desenvolviam, cada uma a seu modo, um
modelo não coincidente de distanciamento do centro metropolitano do
Império Português –, quer relativamente à Independência brasileira (505).
Veja-se, desde logo, o que diz o autor: “apresentam-se-nos, na América
portuguesa, como duas grandes províncias, cuja história é diversa, porque
os seus caracteres naturais e adquiridos foram diferentes até a unificação
selada com a independência. Já anteriormente notámos esta diversidade que
se evidenciava desde os primeiros tempos coloniais entre o Norte e o Sul
do Brasil”. Uma diversidade consequente, pois que essas “duas colónias
então extremas […], depois vieram a ser o coração dos dois Brasis do XVII
século, em Santos (S. Paulo) ao sul, e em Pernambuco, ao norte” (506).
Logo se vê que, desde logo, as diferenças observadas internamento
ao Brasil expunham “os sintomas da primeira época de vida da América”.
Numa interpretação já focada na quadra quinhentista, essas demarcações
traduziam, para Oliveira Martins, que “a região de S. Paulo apresentava os
rudimentos de uma nação, ao passo que a Baía e as dependências do Norte
eram uma fazenda de Portugal na América”. Ou seja, no decurso destas
explicitações, vai ficando clara a equivalência das duas partes brasileiras a
uma também diferente ligação a Portugal: uma, o Norte, encabeçada pela
Bahia, onde os “jesuítas governavam” e onde estes justamente
simbolizavam a ligação a um Portugal “decadente”; e outra, o Sul,
capitaneada por São Paulo, exibindo “rudimentos de nação” no quadro de
uma “colonização livre” (507). Por que motivo assim sucedia? Como explica

505
MARTINS, J. P. de Oliveira. O Brasil e as colónias portuguesas. Lisboa: Guimarães & C.ª
Editores, 7ª edição, [1880] 1978.
506
Idem, ibidem, p.25.
507
Idem, ibidem, p.74-75.
225
o autor, “esse Brasil [do Sul], porém, não era geograficamente o centro do
império; o seu clima parecia condená-lo à eterna condição de colónia
dependente de uma cultura exótica e da escravidão africana, ou à sorte
infeliz de um Paraguai jesuíta. Não havia ainda então intensidade de vida
colectiva bastante para propor com evidência o dualismo que o observador
descobre sempre latente; e foi um caso fortuito que, trazendo à vida
económica da colónia um elemento novo, fez surgir, não o dualismo, mas a
imediata e absoluta supremacia da metade sul do Brasil central,
supremacia consagrada nos meados do XVIII século pela transferência da
capital da Baía para o Rio de Janeiro” (508). O aludido acaso – responsável
por esta supremacia sulista – teria sido a descoberta das minas de ouro: “na
riqueza do ouro encontrou a população de S. Paulo uma força
predominante com que impôs a sua supremacia – como homogeneidade,
como coesão, como originalidade e autonomia nacional – às províncias do
Norte, cuja existência era artificial, na população toda estrangeira, quer nos
brancos portugueses, quer nos negros africanos; artificial no regime do
trabalho e natureza da cultura: cuja vida, enfim, era a de uma fazenda
ultramarina de Portugal, amanhada e cultivada pelo génio dos estadistas, e
não a de uma nação nova existindo independente e autónoma, por virtude
de uma população fixada e naturalizada no solo sobre que vivia” (509).
Distinção entre norte e sul e supremacia da metade sul. De alguma
maneira o panorama é conhecido. Na verdade, cabe aqui frisar que esse
movimento de transferência do centro político da nação brasileira do Norte
para o Sul é análogo ao que aconteceu em Portugal, país que para o
Oliveira Martins da História de Portugal, teve justamente na transferência
da capital para Lisboa o encontro com a vocação marítima da nação. Mais
importante do que representar o final das tensões geradas em torno de uma

508
Idem, ibidem, p.74-75. Grifos nossos.
509
Idem, ibidem, p.76. Grifos nossos.
226
unificação com a Galiza, obsessão recorrente desde a formação do reino no
século XII, como se sabe, a transferência da capital, do Norte para Lisboa,
teria levado Portugal ao encontro de seu papel na História. Entretanto,
conforme a compreensão martiniana, aconteceria um movimento análogo
no Brasil. Também aqui, na nação “neo-portuguesa” da América, teria
ocorrido a transferência da capital do Norte (ou Nordeste, ligado à
metrópole) para a região Sul (Sudeste), facto que propiciou o aumento do
sentimento de autonomia da nação, representando, portanto, o prenúncio da
independência política do Brasil, que neste movimento encontraria,
também, seu “destino” histórico.
No âmbito deste jogo de similitudes, o reconhecimento, na
realidade brasileira, de duas partes distintas, permitia associar cada uma
delas a também distintos “portugais”. A operação histórica martiniana não
era, por certo, inocente. O Portugal bragantino e o norte e nordeste
brasileiro são decadentes justamente pela influência deletéria da Dinastia
dos Bragança; e são, também, artificiais pelos negros e brancos portugueses
reinóis. Os bandeirantes, autônomos e aventureiros, são os filhos, os
“herdeiros” do espírito dos portugueses da dinastia de Avis, continuadores
dos grandes navegadores. Ambos desbravadores: uns, da imensidão dos
oceanos, outros, da vastidão da terra. Com alguma dose de ousadia, poder-
se-ia dizer que, para Oliveira Martins, o processo de independência do
Brasil começa na tragédia de Alcácer-Quibir – na morte de D. Sebastião, na
perda de independência e em todos os fatos posteriores que, para a geração
de 1870 em geral, constituem marcos da decadência portuguesa. Com a
morte da dinastia de Avis, ao iniciar-se a degeneração portuguesa, depois
acentuada com a dinastia bragantina, inicia-se também o processo de
separação do herdeiro da dinastia de Avis no Brasil – o Sul. Em última
instância, será enquanto expressão da vitalidade da herança de Avis,

227
manifesta no bandeirante paulista (510), que, no Brasil, o Sul supera o Norte,
atraindo para si – e tendo como capital o Rio de Janeiro – as rédeas do
destino da nação neoportuguesa dos trópicos, em movimento análogo ao
ocorrido nas terras lusitanas no momento da transferência da capital para
Lisboa.
Por onde quer que se olhe, impõe-se o critério da “herança”. O
Norte, entendido como uma “fazenda” de Portugal, remete ao contato e à
aproximação com a influência – maléfica – da dinastia dos Bragança e dos
jesuítas. O Sul, pela sua independência e distância dessa mesma influência,
pôde ver germinar a herança do Portugal grandioso, replicando
tropicalmente seu auge evolutivo: a semente de Avis florescera na América
do Sul, especificamente no sul do Brasil. Nesta leitura martiniana da(s)
identidade(s) brasileira(s), a mobilização do critério da “herança” – a
herança portuguesa, tal como o tempo a prolonga no Brasil – dá-se em
articulação com um processo de delimitação que, trabalhando sobre o
elemento histórico, se consuma na atribuição de significâncias diferenciais.
Este fenômeno de historicização do limite em articulação identitária,
remete-nos à constatação de duas lógicas distintas, presentes na
historiografia martiniana, no tangente à demarcação cultural: a
511
“espacialização do tempo” e a “temporalização do espaço” ( ), ambas
vislumbradas no exercício de uma mesma matriz hermenêutica da história,
mas tendo consubstanciação, na identidade brasileira, sob a forma
horizontal ou “espacializada”, enquanto que, na identidade portuguesa, na
maneira vertical ou “temporalizada”. Uma consideração da qual se retira
uma importante correspondência, do ponto de vista dos relacionamentos

510
Não está hoje ainda cabalmente escrutinada, ao nível da estratégia identitária do
regionalismo paulista, a questão da mitificação do bandeirante – um aprofundamento do assunto
haverá de passar por uma releitura de trabalhos como, por exemplo, os de Cassiano Ricardo
(Marcha para o Oeste) e Alfredo Ellis Júnior (Raça de Gigantes).
511
MARTINS, Rui Cunha. “Estado, tempo e limite”. Revista de Historia das Ideias. Vol.26,
2005, p.308.
228
escalares e das hermenêuticas que lhe subjazem: a de que a matriz cultural
que advoga pela existência de “dois Brasis”, nas margens peninsulares do
Atlântico, corresponderá ao duplo “auge-decadência”, mobilizado à escala
lusitana (512).
Ora, deste ponto de vista, se “os Lusíadas são um epitáfio” (513), só
até certo ponto o são. Afinal, o fim de ciclo é, simultaneamente, o início de
outro. De acordo com a lógica martiniana que expusemos, é provável que,
sendo “epitáfio” de um lado, seja um “prólogo” do outro. Do outro lado do
Atlântico. Mas, mesmo aqui, só numa parte. Nessa parte do Brasil que, para
o autor, representa as propriedades da “raça portuguesa” exponenciadas no
“ápice” do período dos descobrimentos e logo soçobradas, mas ainda
resilientes no sul brasileiro. Embora o conceito de “raça” possa não ter
força como critério de definição da cultura portuguesa, é ele que assegura a
relação de um determinado “tempo português” com um determinado
“espaço brasileiro”. Nesse sentido, os limites das culturas portuguesa e
brasileira formam uma narratividade cíclica na medida em que o epitáfio de
uma é o prólogo de outra, a qual, como em um reinício, garante a ligação
temporal entre as culturas portuguesa e brasileira, assegurando, na
perspectiva martiniana, a perpetuação da “herança”.
Todas estas considerações ganham o devido sentido quando
enquadradas à luz do que sabemos sobre a compreensão martiniana da
história. Só o conhecimento das matrizes teóricas subjacentes à escrita da
história em Oliveira Martins nos permitirá retirar as devidas ilações do seu
cotejamento com o seu duplo brasileiro, Manoel Bonfim, tarefa
comparativa, para nós, da maior relevância. Antes, portanto, recuperemos o
essencial sobre a construção historiográfica martiniana, privilegiando os
512
António Machado Pires considera que há uma relação de “bi-polaridade” nas noções de
progresso-decadência. PIRES, António Machado. A Ideia de Decadência na Geração de 70.
Lisboa: Veja, 2ª edição, 1991.
513
MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol.1. Lisboa: Europa-América, 2ª
edição, [1879], 1889, p.25.
229
pontos mais diretamente susceptíveis às suas interpretações “luso-
brasileiras”.
O primeiro aspecto a reter é o de que o fazer historiográfico de
Oliveira Martins se pode demarcar seja das “filosofias da história” tout
court, seja das teorias sistemicas de caráter mais naturalizante (como nos
evolucionismos de variada matiz) (514). Dito isto, importante mesmo dizer
que seu afastamento stricto sensu destas duas vertentes heurísticas não
apaga liminarmente a influência, paradoxalmente, de ambas as vertentes.
Na verdade, bem mais do que assinalar o aparente paradoxo, deve-se
registrar que J.P. de Oliveira Martins promove, heterodoxamente, a
combinação de distintos elementos teóricos. Lembre-se de sua convocação
do logicismo hegeliano e do raciologismo organicista, exemplo
significativo da peculiaridade do seu entendimento da história. Assim o
vemos, de modo recorrente, e de maneira expressa na sua Teoria da
História Universal, trabalhar sobre a noção de que a história – entendida
como “o dinamismo dos corpos sociais” (515) – tende a resistir às tentativas
da sua cientifização. Para ele, portanto, a História está mais próxima do
fortuito que do constante (e em contracorrente às diferentes formas de
combinação dos naturalismos com a crença na positividade do saber. A
História, para ele, não permite o estabelecimento de regras ou leis
invariáveis. Em bom aprendizado hegeliano, “a personalização simbólica
da sociedade traz para o foro nacional as paixões dos indivíduos, e deste
facto nasce o carácter dramático da história, os sentimento de um homem

514
Como acentua o próprio Oliveira Martins, “quer o princípio orgânico de um tal sistema da
história seja transcendente ou providencial, quer se funde apenas no determinismo de supostas
leis naturais, o que é equivalente para o nosso caso, o sistema será sempre quimérico se julgar
ser científico, pretendendo incluir todos os povos ou nações e proceder inductivamente”. Idem
ibidem, p.4. Os grifos são nossos.
515
Dinamismo este que seria expresso pela “soma indeterminável dos acidentes, origem das
regressões, das quedas, das paralisações de desenvolvimento, e também muitas vezes da fortuna
dos estados ou nações”. MARTINS, J.P. de Oliveira. “Teoria da História Universal”. In:
Política e História. Volume II (1884-1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.1.
230
tornam-se paixões de um povo, e vice-versa” (516). Tal como para o filósofo
alemão, também para Oliveira Martins só quando as sociedades alcançarem
certo grau de organização societária haverá história. Esta, poder-se-ia
dizer, seria mais o resultado de uma “evolução” social das coletividades do
que ela mesma portadora do gene evolutivo (como o seria para os adeptos
de sua cientifização). Porque, na linha do hegelianismo, a consciência de
uma dramaticidade na história dita que “no crepúsculo da inconsciência
selvagem, não existe drama, e, [onde] não há história [é] porque não há
drama” (517). Esta convicção marca a visão martiniana do Brasil (518). Uma
visão à qual a lição de Hegel empresta o entendimento do fluxo histórico
como o trajeto da manifestação da razão (519), do qual se inferia que os
povos extra-europeus – leia-se o Brasil – “entrariam” na História na medida
em que tivessem consciência de si como coletividade e caminhassem rumo
a um crescente esclarecimento da sociedade. Este fenômeno teria sido
“trazido” pelo “contacto” com os europeus. Ou seja, Portugal.
Recorde-se que a referida propensão simbiótica das influências de
Oliveira Martins obriga a considerar suas migrações desde os postulados de
cariz mais hegeliano para os de maior influência naturalista e organicista.
Para ele, Portugal “formava uma Nação e um povo, sem constituir,
verdadeiramente, uma nacionalidade e uma «raça»” (520). A este respeito,
foi já devidamente sustentado que o autor “estava convicto de que, no

516
Idem, ibidem, p.3.
517
Idem, ibidem.
518
Fernando Catroga chama atenção para o fato de que, para Oliveira Martins, “na linha de
Hegel, a história é dramática logo no seu próprio ser – o seu aparecimento deriva do ímpeto da
Força que, em busca de sua plena realização, exige a luta, a finitude e a morte”. CATROGA,
Fernando. “Historia e Ciências Sociais em Oliveira Martins”. In: TORGAL, Luís dos Reis;
MENDES, José Amado; CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX
e XX. Volume I - A História Através da História. Coimbra: Temas e Debates, 1998, p.143
519
Em 1830 afirmava Hegel que “devemos buscar na História um fim universal, o fim último do
mundo, não um fim particular do espírito subjectivo ou do ânimo; devemos apreendê-lo pela
razão, que não pode transformar em interesse seu nenhum fim particular e finito, mas apenas o
absoluto”. HEGEL, G.W. A Razão na História. Introdução à Filosofia da História Universal.
Lisboa: Edições 70, 1995, p.32.
520
Idem, ibidem, p.164.
231
fundo, o drama de Portugal repousava na falta de uma identidade racial
distinta da composição antropológica do resto da Península Ibérica”. É que
“a teoria martiniana da história defende uma inteligibilidade de tipo
político para o caso da nação portuguesa. Mas, se o factor político explica
Portugal, nunca teve poder para resolver o seu drama. Os acontecimentos
políticos que foram sustentando a existência histórica de Portugal têm um
carácter acidental, ao contrário dos alicerces naturais que, se fossem
distintos, imprimiriam o carácter de necessidade à nação portuguesa” (521).
Não nos deteremos na complexidade desta problemática específica, alheia
ao nosso objeto de pesquisa. Cumpre-nos, contudo, registrar a dimensão do
labor martiniano que dialoga com os pressupostos organicistas e, mais
especificamente, com o papel da “raça” e do “meio” na consolidação das
nações. É que, chegados a este ponto, melhor se compreende aquele que
será um segundo aspecto a reter, no relativo à concepção martiniana de
história: a questão da associação entre indivíduo e sociedade, tanto no que
isso remete para a análise “sociedade como um ser orgânico”, quanto na
legitimidade daí retirada para a constituição de quadros históricos baseados
nos retratos individuais. “O essencial – dirá – consiste no sistema das
instituições e no sistema das ideias colectivas, que são para a sociedade
como os órgãos e os sentimentos são para o indivíduo, consistindo, por
outro lado, no desenho real dos costumes e dos caracteres, na pintura
animada dos lugares e acessórios que formam o cenário do teatro
histórico”. É que, para o autor, “estes dois aspectos são igualmente
essenciais: porque a coexistência independente dos motivos colectivos e
naturais e dos actos individuais é um facto incontestável na vida das
sociedades” (522).

521
PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal: Filosofia. História. Engenharia Social (1865-
1914). Coimbra: Editora Almedina, 2001, p.233.
522
MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol.1. Publicações Europa-América, 2ª
edição, [1879] 1889, p.14.
232
De certa maneira, esta relação entre indivíduo e sociedade, assim
entendida, transparece na própria organização temática de sua “escrita da
história”. Veja-se o encadeamento de sua obra historiográfica: História da
Civilização Ibérica (1879), História de Portugal (1879), O Brasil e as
Colónias Portuguesas (1880), Portugal Contemporâneo (1881). De modo
explícito, sua construção historiográfica, ao percorrer um sentido
ascendente, temático e cronológico, traduz uma compreensão da história e
um entendimento da sociedade em que, como se de um trajeto individual se
tratasse: cada “fase” histórica tem correspondência numa dada “forma
identitária”. Ou, mais precisamente, numa dada “escala identitária”. “Na
História da Civilização Ibérica – esclarece o próprio – tratámos de estudar
o sistema de instituições e de ideias da sociedade peninsular, para expor a
sua vida colectiva orgânica e moral. Tomámos aí a sociedade como um
indivíduo, e procurámos retratá-lo física e moralmente. Agora o nosso
propósito é diverso. Tratando da história particular portuguesa, somos
levados a encarar principalmente o segundo dos aspectos essenciais da
história geral. A sociedade portuguesa, como molécula que é do organismo
social ibérico, peninsular, ou espanhol – estas três expressões têm aqui um
alcance equivalente –, obedeceu, nos seus movimentos colectivos, ao
sistema de causas e condições próprias da história geral da Península
Hispânica” (523). Para Oliveira Martins, “metade da história portuguesa
está, portanto, escrita na História da Civilização Ibérica: a metade que trata
da vida da sociedade como um ser orgânico”. Falta, pois, dar conta da
segunda metade: “caracterizar o que há de particular na história portuguesa;
resta fazer reviver os seus homens e representar de um modo real a cena em
que se agitam: tal é o programa deste livro [da sua História de Portugal]”
(524). Se é possível começar por entender a existência de Portugal de um

523
Idem, ibidem.
524
Idem, ibidem, p.14-15.
233
ponto de vista extra-nacional, chamando a atenção para as familiaridades
do lusitano enquanto ibérico – feito na História da Civilização Ibérica –
numa segunda instância – a da História de Portugal –, é forçoso caminhar
para além do sentido mais “orgânico”, quer dizer, completar o “retrato”,
preencher a moldura ibérica com os “caracteres dos homens”. Porque,
segundo Oliveira Martins, “na esfera dos movimentos de instituições e
ideias na categoria da vida social, as acções dos homens são sempre
absolutamente excelentes; porque a supremacia da sociedade sobre o
indivíduo consiste no facto da existência de uma consciência superior da
Ideia, no organismo que se diz sociedade” (525).
Encarada a ação dos reis e líderes políticos enquanto dramatização
deste trajeto coletivo, será através da biografia que o autor exercitará sua
compreensão de história como “lição moral”, questão nevrálgica da
arquitetura do pensamento martiniano. As evidências de pedagogização da
história e, sobretudo, a utilização da biografia como veículo pedagógico da
história, denunciam um ambiente pautado pelo critério da Historia
Magistra Vitae (526). Como o próprio Oliveira Martins revela, sua intenção
em estudar o passado era, assim de tudo, pedagógica: “apresentar crua e
realmente a verdade é o melhor modo de educar, se reconhecemos no
homem uma fibra íntima de aspirações ideais e justas, sempre viva, embora
mais ou menos obliterada. Conhecer-se a si próprio foi, desde a mais
remota antiguidade, a principal condição da virtude” (527). Nesta
perspectiva, o organicismo sociológico, que percebe a ação dos indivíduos
como naturalmente condicionada pelo social, mesclado com os postulados
energéticos de um tempoabstracto e não subsumível às leis científicas, leva
525
Idem, ibidem, p.16.
526
CATROGA, Fernando. “O Magistério da História e a exemplaridade do ‘grande homem’. A
biografia em Oliveira Martins”. In: PÉREZ JIMENES, A. RIBEIRO FERREIRA, J. FIALHO,
Maria do Céu (orgs.). O retrato literário e a biografia como estratégia de teorização política.
Coimbra-Málaga, 2004, p.254.
527
MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol.1. Publicações Europa-América, 2ª
edição, [1879] 1889, p.16.
234
Oliveira Martins a focar a ação de determinados indivíduos, entendida, ao
mesmo tempo, como vértice temporal entre passado e presente, e como
“resultado” das camadas naturais da sociedade. Da análise destes níveis em
presença, destas forças assim atuantes, advirá a construção interpretativa –
“lição” do passado a ser utilizada como “prevenção” para o futuro. Em
síntese e nas palavras do autor: “afirmámos que a história é uma lição
moral. Nos vícios e nas virtudes, nos erros e nos acertos, na perversidade e
na nobreza dos indivíduos que foram, há um exemplo excelente. Na
sabedoria ou na loucura dos actos políticos e administrativos passados há
um meio de prevenir e encaminhar a direcção dos actos futuros. A história
é, nesse sentido, a grande mestra da vida” (528).
Ora, a mobilização de uma história “mestra da vida” é também
recurso central na estratégia discursiva daquele que pode ser consideradoo
correspondente brasileiro de Oliveira Martins: Manoel Bonfim. Assim
postas as coisas, a questão a equacionar é a seguinte: após no determos
sobre a leitura martiniana do Brasil – explorando o essencial sobre a
compreensão martiniana da história –, legítimo se torna perguntar se esta
última teria, necessariamente, que produzir aquela. Em outras palavras, se
as características do edifício teórico martiniano poderiam conduzir à
atribuição de um lugar tópico à noção de herança portuguesa no
entendimento do Brasil. E, neste plano, a análise da obra, do trajeto e dos
suportes teóricos de Bomfim mostra-se profícua. É que, com ele,
verificamos ser possível – com base num comum entendimento do papel da
história em sua vertente pedagogizante de “mestra da vida” –, chegar a
conclusões bem diferentes quanto à leitura do relacionamento luso-
brasileiro, do sentido do Brasil para Portugal e de Portugal para o Brasil,
bem como do valor da “herança”. E sito porque, muito provavelmente, a
matriz teórica comum é apenas parte da dinâmica intelectual. O lugar de
528
Idem, ibidem, p.16. Grifos nossos.
235
fala de onde escreviam os intérpretes pode também ter alguma valia
relativamente às questões de matriz teórica. Vejamos a situação com a
demora que ela merece.

2.2. A obra de Manoel Bomfim, estranhamente pouco estudada,


representa um forte investimento reflexivo nas relações entre Portugal e
Brasil. Escrito em Paris, enquanto seu autor realizava estudos em
psicologia, em 1903 (529), o livro – América Latina: males de origem –,
apresenta um acento fortemente emocionado e nacionalista. Suas ideias,
conforme explica o próprio, estavam em gestação desde 1897, por ocasião
de um parecer que o autor escrevera, na qualidade de Director Geral de
Instrução Pública do estado do Rio de Janeiro, em função de um concurso
sobre o melhor trabalho acerca da História da América Latina (530).
Emprestaremos carácter de exemplaridade à sua obra, na medida em que
ela estabelece um matricial “gerenciamento” da história colonial brasileira
(e, forçosamente, da relação com Portugal), deixando exposto o cariz
referencial da dialogia cultural no âmbito fundacional de um padrão

529
Como o próprio Bomfim revela na “Advertência” a América Latina: males de origem: “Este
livro deriva diretamente do amor de um brasileiro pelo Brasil, da solicitude de um americano
pela América. Começou no momento indeterminado em que nasceram esses sentimentos;
exprime um pouco o desejo de ver esta pátria feliz, próspera, adiantada e livre”. BOMFIM,
Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, [1905], 1993, p.34.
530
Manifesta-se o autor da seguinte forma: “aqui, onde, forasteiro, escrevo, disponho apenas de
notas, reunidas durante nove anos – senão, talvez fosse outra a forma que tivera este trabalho;
não variariam, porém, as ideias. Essas mesmas, agora desenvolvidas, já as apresentei, em parte,
resumidamente num parecer, prefácio à excelente História da América, livro didático do Sr.
Rocha Pombo parecer que deriva justamente dessa preocupação, já antiga. Em 1897, quando o
diretor geral de Instrução Pública fez anunciar o concurso de um compêndio de História da
América, solicitei a honra de, na qualidade de membro do Conselho Superior, dar o parecer
sobre as obras que se apresentassem”. Vale ainda lembrar o que Bomfim, em nota de rodapé,
considera sobre o livro de Rocha Pombo, premiado no mencionado concurso. Diz ele que esta
obra também “chegara a essa conclusão: que os males atuais da América Latina não são mais
que o peso de um passado funesto, conclusão que ora demonstro e documento, quando estudo os
efeitos do parasitismo das metrópoles, a que já me referia no parecer”. BOMFIM, Manoel. A
América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, [1905],1993, p.35.
236
estético identitário brasileiro (531). Neste sentido, parece lícito dedicar
atenção à compreensão da história em Manoel Bomfim, questão, aliás,
realçada pelo autor, desde o início de sua obra, quando afirma que “os
povos sul-americanos se apresentam, hoje, num estado que mal lhes dá
direito a ser considerados povos civilizados. Em quase todos eles, em
muitos pontos do Brasil inclusive, a situação é verdadeiramente lastimável”
(532). Como facilmente se percebe, trata-se de um olhar bastante próximo do
sentimento crítico e enérgico dimanado pela brasileira Geração de 1870.
Mas, se assim o é, como pensamos, caberá mostrar como este “sotaque”
intelectual mobiliza criticamente o passado em seu anseio de modernização
e progresso, prestando atenção ao uso dado aos fundamentos teóricos de
inspiração cientificista atrás analisados.
A avaliação do autor aponta para a existência de um processo de
“retardamento” latino-americano diante da “marcha” civilizacional e do
progresso capitaneado pelos povos “mais adiantados” da Europa (533).
Além de uma diferença de “ritmo”, portanto, haveria também um equívoco
no “sentido” deste caminhar coletivo no Novo Mundo. Ao invés de
aproximarem-se dos “povos adiantados”, os latino-americanos estariam se
distanciando cada vez mais. Por que motivo? Segundo o autor, o caso dos

531
A opinião de Azevedo Amaral representa bem o tom de alguma mobilização da obra de
Bomfim que não deixa esconder o invólucro fundacional de seu conteúdo, inclusive articulando-
o ao nacionalismo varguista. Diz o autor que “entre os primeiros que contribuíram eficazmente
para despertar na consciência brasileira a ânsia de encontra a própria realidade, Manoel Bomfim
ocupa lugar de grande destaque. Não é portanto inoportuna a passagem do primeiro aniversário
do Estado Novo para fazer da reedição da América Latina uma expressão de reconhecimento
nacional a um dos mais esclarecidos precursores do movimento de realismo político, que nos
integrou afinal no curso normal da nossa evolução histórica”. AMARAL, Azevedo. “Prefácio à
2ª. edição” In: BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks,
1993, p.32. Esta perspectiva é também ecoada em OLIVEIRA, Franklin de. “Manoel Bomfim, o
nascimento de uma nação” In: BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2ª edição. 1993, pp.21-28.
532
BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.49-
50.
533
Daí que, para Bomfim, “nações novas deveriam progredir como cem, enquanto as antigas e
cultas progridem como cinquenta; só assim lograriam alcançá-las e gozar todos os benefícios
que se ligam às civilizações adiantadas. No entanto, marcham lentamente, como dez, isto é,
retardam-se, distanciam-se cada vez mais da civilização moderna”. Idem, ibidem, p.49.
237
“novos” países latino-americanos conformaria algumas especificidades
histórico-biológicas. Eis sua explicação:

“participando diretamente da civilização ocidental, pertencendo a ela,


relacionados diretamente, intimamente a todos os outros povos cultos, e sendo ao
mesmo tempo dos mais atrasados, e por conseguinte dos mais fracos, somos
forçosamente infelizes. Sofremos todos os males, desvantagens e ônus, fatais às
sociedades cultas, sem fruirmos quase nenhum dos benefícios com que o progresso
tem suavizado a vida humana. Da civilização, só possuímos os encargos: nem paz,
nem ordem, nem garantias políticas; nem justiça, nem ciência, nem conforto, nem
higiene; nem cultura, nem instrução, nem gozos estéticos, nem riqueza; nem trabalho
organizado, nem hábito de trabalho livre, muita vez, nem mesmo possibilidade de
trabalhar; nem atividade social, nem instituições de verdadeira solidariedade e
cooperação; nem ideais, nem glórias, nem beleza…”, [num quadro onde só existe]
“miséria, dores, ignorância, tirania, pobreza”, [resultadas da exploração] “pelo
mercantilismo cosmopolita e voraz, imoral e dissolvente, retardatário por cálculo,
egoísta e inumano por natureza”, [do qual] “estas pobres sociedades não sabem e não
podem se defender” (534).

Frente a esta consideração – e expondo uma compreensão histórico-


sociológica que combina uma visão abstrata do tempo, cara às filosofias da
História, com um entendimento organicista da existência das
nacionalidades –, Bomfim dirá que “um povo não faz revoluções senão
quando uma causa profunda, orgânica, o impele a isto; que as revoluções,
e cada uma das outras causas dotadas, ora por este, ora por aquele, são
efeitos e não causas, efeitos ligados a uma mesma origem, e que é mister
buscar cuidadosamente esta origem combatendo-a” (535). Por isso, o autor
assevera que “o progresso orgânico é o resultado do esforço contínuo e do
exercício combinado de todos os órgãos na luta pela vida” (536).
Semelhante raciocínio mais claro ficará se prestarmos atenção à
utilização que Bomfim faz de metáforas naturalistas (no âmbito da analogia
estabelecida por ele entre o médico, que era, e o crítico da história, que
também era). Numa passagem bastante significativa, dedica mais de duas
páginas e meia a explicitar os fatos que explicam o porquê de alguns

534
Idem, ibidem, p.49-50.
535
Idem, ibidem, p.50. Grifos nossos.
536
Idem, ibidem, p.57.
238
organismos animais se tornarem parasitas. Nesse ponto, o autor versa sobre
as características do Chondracanthus gibbosus, um animal marinho, muito
rudimentar e simples, que, à primeira vista, parecia tratar-se de um verme,
mas que Bomfim demonstrará tratar-se, antes, de um parasita (537). A este
pretexto, o argumento do parasitismo biológico serve-lhe de substrato
referencial para a análise da formação histórica dos povos peninsulares –
entendidos como a origem comum dos povos latino-americanos. Tal como
o Chondracanthus, que transitou de animal predador para parasita, o
mesmo processo ter-se-ia observado com as nacionalidades colonizadores
da Ibero-América. Assim o vemos questionar: “sucederá o mesmo com os
organismos sociais? Sim; é impossível negá-lo”. E, numa patente analogia
entre organismo e sociedade, considera que “uma causa deprimente e
perniciosa para os indivíduos em particular não pode deixar de ser
perniciosa e deprimente para a sociedade no seu total”. Afinal, “os
organismos sociais regem-se por leis peculiares a eles, mas estas leis não
podem estar em oposição com as que regem a vida dos elementos sociais
em particular [pois] o todo participa das qualidades das partes, e delas
depende”, na medida em que “o vigor de um organismo representa a soma
de vigor dos elementos que o constituem; uma condição que é nociva a

537
Apenas a título de exemplo, merece a pena atentar no movimento analítico de Bomfim:
“colocai um organismo em condições de vida que o dispensem de exercitar os seus órgãos
sensoriais e locomotores, e estes se atrofiarão fatalmente. Foi o que sucedeu com o
Chondracanthus: era um crustáceo livre, inteligente – do grau de inteligência que possui o
comum dos crustáceos, provido de todos os instrumentos – órgãos e aparelhos – indispensáveis
para guiá-lo na procura dos alimentos, ir ao encontro deles, fugir dos perigos, apanhar as
substâncias nutritivas, levá-las à boca, triturá-las, digeri-las; munido de um tegumeno que o
protegia dos choques exteriores. Por uma circunstância qualquer, ele se achou um dia sobre uma
presa viva; tirou dela o alimento; deu-se bem, voltou ainda… Então, ele era apenas um animal
depredador. Depois, nem mais se afastou da vítima, apegou-se a ela, fixou-se definitivamente, e
todo o seu esforço ou trabalho vital se resumiu, deste momento em diante, em sugar o animal a
que se prendia. Aí encontra ele tudo; a vida lhe é muito mais fácil do que se, da natureza, tivesse
de tirar diretamente o sustento. (…) Fatalmente, um tal regime reflete sobre a inteligência, e esta
se amesquinha, decai, também. A inteligência nutre-se e enriquece às custas das impressões e
imagens ávidas do mundo exterior; ela se desenvolve na luta pela conquista dos alimentos, e
para escapar aos perigos; num animal que tenha o sustento garantido e a vida abrigada,
conservando-se ao mesmo tempo em condições de não receber impressões exteriores – num tal
animal, a inteligência atrofia-se necessariamente”. Idem, ibidem, p.56-58.
239
esses elementos considerados, individualmente, é fatalmente nociva ao
organismo”. O paralelo traçado por Bomfim entre o progresso social e o
progresso orgânico é claro: “diferenciação dos órgãos, especialização das
funções, divisão do trabalho – estas são as condições indispensáveis à
perfeição” (538).
Conforme já se disse, a teoria darwiniana não pressupunha o
entendimento da natureza vinculado à ideia de perfeição. Neste ponto,
aliás, reside um dos aspectos de maior importância da noção darwiniana da
“descendência com modificações”, noção esta que, entretanto, acabará por
se ver “amalgamada” com o ideal de perfeição colado à Inglaterra vitoriana
através dos trabalhos de Spencer e Haeckel (539). É sabido, por outro lado,
que este pano de fundo perfectibilista enquadra, até certo ponto, uma
espécie de “naturalização” das filosofias da história que, partindo da
impulsão hegeliana, emprestavam um cariz ascendente e progressivo ao
desenrolar do tempo histórico. Ora, o que é visível no caso do autor
brasileiro é a sua disponibilidade para se situar na articulação daqueles dois
contributos, no sentido de utilizar o “tribunal da história” hegeliano para
julgar o “parasitismo” ibérico nos nascentes “organismos sociais” da
América Latina. Este aspecto permite entender diversas linhas
interpretativas desenvolvidas por Bonfim. Torna compreensível o processo
de julgamento do passado ao qual se entregará. Antes, porém, não podem
restar dúvidas de que, se “a marcha do progresso e da evolução é a mesma
nos organismos biológicos e nos sociais, é fatal que as circunstâncias
capazes de entravar esse progresso nos primeiros há de forçosamente
produzir os mesmos efeitos nos segundos”. Bem vistas as coisas, “um
organismo social, vivendo parasitariamente sobre outro, há de fatalmente
degenerar, decair, degradar-se, evoluir, em suma”. Bomfim, verosímil

538
Idem, ibidem, p.59. Grifos no original.
539
Conforme mostramos na segunda parte deste trabalho.
240
leitor dos diversos autores que propagavam as noções de “luta” e de
“seleção natural”, recupera-as a um sem-número de interpretações de cariz
filosófico-histórico, como a de que “uma sociedade que viva
parasitariamente sobre a outra perde o hábito de lutar contra a natureza; não
sente necessidade de apurar seus processos, nem de pôr em contribuição a
inteligência, porque não é da natureza diretamente que ela tira sua
subsistência, e sim do trabalho de outro grupo; com o fruto desse trabalho
ela pode ter tudo” (540). Atente-se que, para Bomfim, a luta não se dá na
natureza (como em Darwin) mas, numa perspectiva bastante colada ao
ideário hegeliano, esta luta dá-se contra a natureza, no sentido de, com os
instrumentos da razão, superar os condicionantes naturais.
Manoel Bomfim propaga uma visão que liga a ideia de
“degeneração” biológica, ou parasitismo, à noção de “degeneração moral”,
entendida esta como consequência daquela, para em seguida, agregar estas
noções ao espectro de um “julgamento” de fato. Daí que, citando a
Nouvelle théorie biologique du crime, de Max Nordau, afirme que o “crime
é parasitismo humano”, pois o “degenerado é um débil, e em virtude da lei
do menor esforço ele procura explorar o próximo, em vez de viver com ele
sobre a base das trocas equivalentes, porque isto lhe é mais fácil”(541). No
desenrolar desta ideia sobressairá sua condição de médico que não se furta
à mobilização do organicismo social, na certeza de que “uma verdade,
porém, é hoje universalmente aceita – que as sociedades existem como
verdadeiros organismos, sujeitos como os outros a leis categóricas” (542). E,
“como organismos vivos”, explica o autor que “as sociedades dependem,
não só do meio, não só das condições de lugar, mas também das condições
de tempo. Quer dizer: para estudar convenientemente um grupo social –
uma nacionalidade no seu estado atual, e compreender os motivos pelos
540
Idem, ibidem, p.59-60.
541
Idem, ibidem, p.61.
542
Idem, ibidem, p.51.
241
quais ela se apresenta nestas ou naquelas condições, temos de analisar não
só o meio em que ela se acha, como os seus antecedentes. Uma
nacionalidade é o produto de uma evolução; o seu estado presente é
forçosamente a resultante de ação do seu passado, combinada à ação do
meio” (543). E porque as analogias com o naturalismo organicista permitem-
lhe, e porque é forte sua convicção sobre a relevância do “fator tempo” na
obtenção do diagnóstico, logo lembrará os ares de médico-historiador: “é o
estudo, o conhecimento deste passado que o vai instruir definitivamente, e
dizer se o indivíduo pode, ou não, curar-se. A cura depende, em grande
parte, da importância desse «histórico», principalmente quando as
condições presentes são relativamente favoráveis, e são tais que a elas o
indivíduo se poderia adaptar facilmente, se não tivesse contra si uma
herança funesta. Então, num tal caso, o empenho do clínico é dirigido todo,
não contra o meio atual, pois que este é propício – mas contra o passado,
para vencê-lo e eliminá-lo” (544).
Logicamente, então – será esta a decorrência de Bonfim – que o
“histórico” deste paciente atrás descrito é semelhante ao caso das
nacionalidades latino-americanas: afinal,
“não há nada que justifique ou explique esse atraso em que se vêm, as
dificuldades que têm encontrado no seu desenvolvimento. O meio é propício, e por
isso mesmo, diante desta anomalia, o sociólogo não pode deixar de voltar-se para o
passado a fim de buscar as causas dos males presentes. Há um outro fator a indicar
bem expressamente que é nesse passado, nas condições de formação das
nacionalidades sul-americanas, que reside a verdadeira causa das suas perturbações
atuais: é que, por um lado, estas perturbações, estes males são absolutamente os

543
Dirá o médico que o “mesmo sucede com os organismos biológicos: se, num espaço, num
meio muitas vezes restrito, único e igual, encontramos organismos de uma diversidade infinita,
é porque eles não dependem só do meio atual, mas também das condições e formas anteriores,
que a hereditariedade conserva – representam uma herança adaptada. É por isso, ainda, que
uns se mostram mais perfeitos do que outros; é nestes – nos mais perfeitos – que a adaptação é
mais completa; neles, o passado não pesa tão fortemente que embarace as adaptações
indispensáveis. Isto se dá quanto às espécies, e se dá também quanto aos indivíduos em
particular. Que vem a ser a doença? Uma inadaptação do organismo a certas condições
especiais. Por que razão nem todos os indivíduos adoecem ao mesmo tempo, por uma mesma
causa? Porque uns são mais resistentes; quer dizer, mais adaptáveis a essas causas do que
outros”. Idem, ibidem, p.52. Grifos nossos.
544
Idem, ibidem, p.53. Grifos nossos.
242
mesmos – mais ou menos atenuados – em todas elas; e, por outro lado, estes povos
tiveram a mesma origem, formaram-se nas mesmas condições, foram educados pelos
mesmos processos, e esses males eles os vêm sofrendo desde o primeiro momento.
Pois, se os antecedentes são comuns, se os sintomas são os mesmos, se estes
continuam com aqueles – é bem natural que nestes antecedentes esteja a verdadeira
causa” (545).

Daí que convide seu leitor a analisar esse passado para ver até que
ponto ele explica “os vícios atuais, até que ponto tais vícios derivam da
herança e educação recebida” (546). E o que Manoel Bonfim conclui a
esterespeito? Que indicações retira das suas investigações analíticas em
torno da “formação” histórica da América Latina? Acaso perceberá aí
alguma especificidade luso-brasileira frente às relações “castelhanas”, entre
espanhóis e americanos, ou, ao contrário, perceberá um único fio-condutor
na colonização ibérica no Novo Mundo? Segundo ele, “ao fazer este exame
necessário da vida e do caráter das nações colonizadoras da América do
Sul, um fato impõe-se logo à nossa atenção: é que elas padecem com as
naturais modificações de meio – os mesmo males que as nações da
América Latina. Nas duas – Espanha e Portugal, que, no caso, figuram
como uma unidade – o mesmo atraso geral: uma geral desorientação,
porventura, um certo desânimo, falta de atividade social, mal-estar em
todas as classes, irritação constante e, sobretudo, uma fraqueza tão
acentuada, que a muitos se afigura, também, como uma incapacidade
essencial a manterem-se soberanas e livres a par dos outros povos. Isto é
muito para notar, principalmente porque essas nações foram, em tempos
relativamente bem próximos, excepcionalmente poderosas, ricas e
adiantadas” (547). Eis aqui um ponto de vista que merece todo o nosso
interesse: o tratamento conjunto de Portugal e Espanha, que conformariam
uma unidade histórica e étnica, em escala ibérica, tomados como base para
o entendimento da formação brasileira, fazem ressoar nele um eco da
545
Idem, ibidem, p.53. Grifos nossos.
546
Idem, ibidem, p.54.
547
Idem, ibidem, p.54. Grifos nossos.
243
História da Civilização Ibérica, de Oliveira Martins. Vejamos a fortuna
desta similitude.

2.3. Para o intelectual brasileiro, durante os séculos XVII e XVIII, “a


Ibéria, que havia dado ao mundo Cervantes, Camões, Murilo, Lope de
Vegal, Rivera… desaparece, involui, degenera; não se vê um só nome
espanhol ou português entre os homens que fundaram a cultura moderna e
dominam a natureza, ou naquelas que refazem a filosofia racionalista, que
iluminará as gentes na conquista da justiça e da liberdade”. O reflexo das
críticas feitas pela Geração de 70 portuguesa, como nas Conferências do
Casino, parece bastante claro. O jogo de contraste entre o glorioso passado
ibérico e o anseio de modernização atrelado ao sentimento de decadência
ecoam na obra de Manoel Bomfim. Para ele, “enquanto os ânimos,
fortalecidos pela ciência, vão lutando e se vão liberando, aqui e ali, aos
poucos, mas continuamente, até chegar a esse estado de emancipação de
espírito dos fins do século XIX, a Espanha apropria-se da Inquisição para
eliminar sistematicamente todas as aspirações de liberdade e ergue em
sistema a escravidão espiritual – degrada-se…” (548). Desde os fins do
século XV, afirma Bomfim, “a Espanha está constituída nação moderna,
livre, organizada, vitoriosa e à custa dos seus próprios esforços. Este
trabalho íntimo de organização fora prodigioso, único talvez, do que se
conhece na história dos povos. Daqueles aluviões sucessivos de gentes –
fenícios, celtas, cartagineses, romanos, godos, suevos, alanos, mouros,
árabes… ela fizera uma nacionalidade única, perfeitamente caracterizada,
homogénea e forte. Foi um cadinho de povos e raças, tradições e costumes
– depurou, eliminou os elementos irredutíveis, irritantes; fundiu,
congregou, numa massa única, o resto. O cadinho ferveu doze séculos –

548
Idem, ibidem, p.54.
244
1.200 anos de luta, guerra contínua!” (549). Perante tal quadro, “qual o
efeito destes onze séculos de guerra constante e generalizada sobre o
carácter das nacionalidades ibéricas?… De que forma esse passado vem
influir sobre o futuro?” (550).
O passado ibérico de lutas contra os árabes teria caucionado duas
vertentes de elementos condicionantes da formação dos povos que, depois,
colonizaram a América Latina: “a educação guerreira, exclusivamente
guerreira, a cultura intensiva dos instintos belicosos de centenas de
gerações sucessivas; o regime a que eles se afizeram durante esses longos
séculos – de viver de saques e razias; o desenvolvimento sempre crescente
das tendências depredadoras; a impossibilidade, quase, de se habituarem ao
trabalho pacífico” (551). Significa isto que, para Manoel Bomfim, a guerra e
a cobiça, a depredação e a exploração, são componentes estruturais dos
povos ibéricos. Características estas advindas de uma longa tradição que
remete ao processo de reconquista da Península junto ao Sarraceno, tornado
elemento fundante do carácter do português e do espanhol. Fatores de onde
teria provindo uma inexorável apetência para a reprodução, no Novo
Mundo, das práticas “herdadas”: a depredação, a exploração, a rapina, a
aversão ao trabalho, etc. Um flagrante esqueleto neolamarckiano – isto é, a
transmissão dos caracteres adquiridos – logo coberto com os panos da
moral do Iluminismo eurocêntrico. Será este figurino híbrido – um
neolamarckismo moralista – que consubstanciará, no autor, sua teoria sobre
o “parasitismo ibérico” e sua ação deletéria nos povos latino-americanos
(552).

549
Idem, ibidem, p.72.
550
Idem, ibidem, p.71. Recorde-se que Oliveira Martins fazia semelhante questionamento.
551
Idem, ibidem, p.74.
552
Vejamos mais um pouco o argumento do brasileiro. Segundo ele, “um povo que viveu
continuamente em guerra por oito séculos, viveu certamente de rapinas e saques por todo esse
tempo. Tornou-se um regime normal; e era fatal: porque estava nos hábitos da época, porque os
ódios e as vinditas estimulavam a isto, porque a perversão dos instintos guerreiros leva
245
Bomfim dirá que se a Espanha só “queria conquistar é porque o
movimento adquirido a precipitava a isto; porque se habituara a viver
exclusivamente do fruto das conquistas; porque não sabia fazer outra coisa
senão guerrear; porque cultivara, intensamente, por onze séculos, os
instintos guerreiros e agressivos, e guerrear se tornara para os homens
uma necessidade orgânica; porque, em contato por oito séculos com o
árabe depredador e mercantil, tomara gosto ao luxo e à riqueza facilmente
adquiridas; porque aprendera com ele a ter horror e repugnância ao trabalho
normal, sedentário, verdadeiramente produtor” (553). Por isso, indaga em
tom algo inquisitorial: “que juízos se pode fazer da beleza moral dessas
almas, que passavam a existência a cortar de açoites as carnes de míseros
escravos e que aceitavam como legítimo viver do trabalho destes
desgraçados, cuja vida será um martírio contínuo?!” (554). Inquietações
tanto mais justificadas porquanto, como ensinava Oliveira Martins, cuja
obra Bonfim bem conhecia e cita em demasia, “é na história ultramarina,
vasto campo onde os caracteres podiam bracejar mais à larga que todas as
extravagâncias e bizarrias do temperamento peninsular se mostram mais
livremente” (555).
Recorde, a este respeito, que Oliveira Martins já havia escrito
trechos muito semelhantes àqueles que, assinados por Bonfim, acima
transcrevemos (556). Conforme afirmamos, ao não diferenciar, nem racial
nem moralmente, a formação de Portugal e da Espanha, tratando-os

invariavelmente os povos belicosos a se fazerem depredadores, e, finalmente, porque o trabalho


normal, pacífico, era quase impossível”. Idem, ibidem, p.76.
553
Idem, ibidem, p.81-82. Grifos nossos.
554
Idem, ibidem, p.61.
555
MARTINS, J.P. de Oliveira História da Civilização Ibérica. Lisboa: Guimarães Editores,
[1879], 1994, p.254-255.
556
Veja-se o que diz J.P. de Oliveira Martins em O Brasil e as Colónias Portuguesas:
“Esgotadas as minas, banida para as tradições da história a caça dos indígenas, abolida em
princípio a escravidão, o no Brasil remiu-se do fardo da herança colonial. A agricultura, fonte de
um comércio abundante e próspero, exige dotes diversos e melhor educação”. MARTINS, J. P.
de Oliveira. O Brasil e as Colónias Portuguesas. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, [1880],
1978, p.151.
246
conjuntamente, o autor brasileiro aproximava-se do português: ambos
fazem da escala (neo)ibérica uma referência identitária de primeira
grandeza. Estas aproximações se reforçam ao verificarmos o modo
expresso como Oliveira Martins é referido no livro de Bomfim (embora
nem sempre deixe explícita sua fonte). É o que sucede com a apropriação
bomfiniana de partes do quadro histórico identitário martiniano sobre
Portugal: para os portugueses, “a vergonha é trabalhar, lavrar a terra. «A
sociedade que se desenvolve num modo espontâneo, diz Oliveira Martins
em estilo de alta sociologia, à lei da natureza (guerreando e saqueando), vai
sucessivamente definindo as ideias coletivas, a maneira que progride na
série das formas evolutivas». A idéia coletiva aqui é varrer a Terra – saque
universal” (557). E se Oliveira Martins havia já considerado a História da
Civilização Ibérica como um caso de “teratologia histórica” (558), não
parecerá absurdo, para Manoel Bomfim, a utilização dos mesmos juízos
históricos martinianos no sentido de mostrar a necessidade da cultura
brasileira se demarcar da portuguesa. De igual modo, não lhe repugnará
exercitar as analogias históricas para dramatizar o período colonial, como
não lhe merecerá reservas a adequação da sua linha interpretativa às fases
históricas definidas para o processo evolutivo português, sustentando que
ao findar o período das reconquistas, sucederá o período das depredações e
saques. Afinal, era certo que, no colonialismo português, “fazia-se a rapina,
porque a guerra necessária a isto obrigava; agora, quer-se a guerra pelo
amor do saque e da rapina. É o segundo período – o da expansão
depredadora: sede de riqueza, voracidade desencadeada, apetites
insaciáveis” (559).

557
BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.82.
558
OLIVEIRA MARTINS, J.P. História da Civilização Ibérica. Lisboa: Guimarães Editores,
[1879], 1994, p.54.
559
BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.82.
247
A transposição orgânica da “herança” da metrópole portuguesa para
as elites brasileiras fica nítida num quadro histórico – narrado em América
Latina, e muito ecoado doravante, por um sem-número de obras –, que
considera que a independência brasileira exprimiria um fenômeno de
transporte parasitário grave, na medida em que “não só não houve alteração
essencial no regime governativo, como não foi destituído um só dos altos
funcionários. Era o Estado-colônia; um dia, espantada pelas águias de
Bonaparte, partiu-se de lá da metrópole a coroa, e veio achar-se aqui,
substituindo o governador geral; depois retirou-se o rei, deixando aqui o
príncipe em seu lugar-tenente – e o Estado sempre o mesmo, mantendo a
orientação tradicional. Foi então quando o príncipe, lugar-tenente da
metrópole, chefe do Estado-colônia, declarou nacionalizar-se brasileiro, e,
em vez de «futuro rei de Portugal e do Brasil», qual era, passou a
«Imperador do Brasil e futuro rei de Portugal»”. Tal relação entre Estado e
sociedade permanecerá posteriormente à Abdicação de D. Pedro I, pois ele
“partiu, e a máquina ali ficou no trilho: regência, maioridade, rei,
revolução, ditadura, presidentes… várias gentes se têm sucedido nas
funções, mas o ponto de vista não muda” (560). Mais ainda, Bomfim vai
recordar factos históricos da independência nacional – isto é, do marco
fundacional colectivo – no sentido de lhes conferir alguma unidade
enquanto reflexo da permanência da moral colonial na sociedade brasileira.
Diz ele que, “repassando-se os fatos e a história da independência nas
colónias latinas da América, se vê que ela se divide em dois períodos: 1)
resistência violenta dos refractários à ideia emancipadora; 2) transigência
dos mesmos, sua adesão aos movimentos. Em nenhum país estas duas fases
se acusam melhor do que no Brasil. Em 1789-92 esquarteja-se a
Conjuração mineira; em 1817, os independentes de Pernambuco são
combatidos, vencidos e executados implacavelmente; em 1822, a
560
Idem, ibidem, p.192.
248
independência é proclama pelo próprio «futuro rei de Portugal». É
característico.” (561). Para ele, “no Brasil, os refratários e realistas ainda
foram mais felizes, porque tiveram um príncipe de sangue, o próprio
herdeiro da coroa da metrópole, para chefe da monarquia com que eles
fizeram aqui a independência”(562). O verdadeiro momento “emancipador”
brasileiro teria ocorrido em Pernambuco, com os republicanos de 1817.
Libertação “abafada”, portanto, apesar de ser óbvio, para Bomfim
considerava que o “Brasil representava desde muito tempo os elementos
constitucionais de uma nacionalidade”. E se, entretanto, esta se emancipara,
fora porque “as ideias de liberdade andavam por toda parte” e porque “a
colônia era forte demais, e Portugal, decrépito, era a sombra, apenas, de
uma grandeza passada e efémera: crescera e fora logo anulado pelo
parasitismo” (563).
Importante é perceber, no decurso desta toada discursiva, que foi
exatamente pela influência enorme dos “retratos históricos” de Portugal
pintados pelas cores do “vencidismo” de Oliveira Martins que Manoel
Bomfim pôde formatar boa parte da sua leitura da realidade portuguesa e a
respectiva actuação nos trópicos. Foi-lhe igualmente possível compor
quadros da vida colonial como o seguinte: “É esta a síntese da vida
económica das novas nacionalidades por todo o tempo de colónia: o senhor
extorquindo o trabalho ao escravo, o negociante, o padre, o fisco e a
chusma dos subparasitas, extorquindo ao colono o que roubara ao índio e
ao negro. Trabalhar, produzir, só o escravo fazia” (564). Tal como Oliveira
Martins, Manoel Bomfim considera que “a escravidão na América do Sul

561
Idem, ibidem, p.220.
562
Faz-se notar que também Oliveira Martins chamava atenção para a “comunidade de sangue”,
seja em escala ibérica, seja em escala ibero-americana. Veja-se, por exemplo, seu texto
publicado no Nacional, em 27/01/1891, posteriormente editado em MARTINS, J.P. de Oliveira.
Dispersos. Tomo II. Lisboa: Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1824. Idem, ibidem, p.
227
563
Idem, ibidem, p. 227.
564
Idem, ibidem, p.131.
249
foi a abjeção moral, a degradação do trabalho, o embrutecimento e o
aniquilamento do trabalhador; e foi também a viciação da produção,
gerando males de efeitos extensíssimos, que teriam, todavia, desaparecido
com o progredir normal das nacionalidades nascentes”(565). É verdade que,
neste ponto, o escritor português introduzia um elemento de escusa de
responsabilidades. Reconhece, com efeito, que “a filantropia moderna tem
acusado os portugueses de inventores deste comércio de nova espécie; e a
nosso ver com fundamento, por isso nos coube a sorte de possuirmos o
litoral da África e boa parte da América tropical. Tínhamos a produção e o
consumo, a mercadoria e o mercado, dentro dos vastos limites das nossas
colónias”. Mas pergunta: “Era, porém, um crime como se pretende, o
escravizar o negro e levá-lo à América? Eis aí uma questão mais grave a
que nós respondemos negativamente, apesar da crueldade e da fereza dessa
espécie de comércio. Não menos ferozes e horrendos nos parecem,
também, os morticínios e a escravidão com que os Romanos submeteram a
nossa Península; e esse foi, entretanto, o duro preço por que ela pôde entrar
no grémio dos povos de civilização latina. Também a escravidão do negro
foi o duro preço da exploração da América, porque, sem ela, o Brasil não se
teria tornado no que vemos” (566).
Na realidade, se Oliveira Martins assim se permite referir ao
escravismo, é porque o compreende no âmbito de um “ciclo” histórico
consumado – um corsi e recorsi à Vico. Pacientes na Antiguidade e agentes
na Modernidade, os portugueses já teriam completado todos os ciclos vitais
desta instituição humana. E mais: o autor ainda afirma que, sem o escravo
negro levado à América pelas mãos portuguesas, o Brasil não teria se
tornado uma nação desenvolvida, conforme a compreendia ele no último
quartel dezenovista. Ora, tal como Oliveira Martins, Bomfim crê na
565
Idem, ibidem, p.133.
566
MARTINS, J.P. de Oliveira. O Brasil e as Colónias Portuguesas. Lisboa: Guimarães & C.ª
Editores, 7ª edição, [1880], 1978, p.55-56.
250
capacidade de regeneração das sociedades: “as sociedades humanas têm
energias regeneradoras de que mal desconfiamos”. No entanto, se o
português tinha na modernidade parisiense o parâmetro a contrastar, o
brasileiro já busca nos Estados Unidos o diferencial explicativo, com se
percebe quando afirmava que “na América do Norte, os estados do Sul
estão, hoje, em situação bem próspera, apesar da escravidão. É que as
colônias inglesas puderam organizar-se desde logo segundo convinha aos
seus próprios interesses, e não foram vítimas de um parasitismo integral,
como esse que as metrópoles ibéricas estabeleceram para as suas colónias”
(567). Por isso, incontornável lhe parece realçar os “desastrosos efeitos” do
escravismo português para a nascente sociedade brasileira.
A evidência da decadência lusitana, tal como narrada
dramaticamente pelo próprio Oliveira Martins nas suas obras
historiográficas, permitir a Manoel Bomfim uma radicalização da sua
própria interpretação (568). É que, para este fito, por paradoxal que possa
parecer, nenhuma fonte seria mais adequada aos seus propósitos que a
interpretação martiniana, como se vê, claramente, neste excerto:
“Referindo-se à metrópole, diz Oliveira Martins: «Se a guerra é antes um
sistema de rapinas que uma sucessão de campanhas, a justiça é também
mais a expressão arbitrária de um instinto do que a aplicação regular de um
princípio». Esse instinto é o parasitismo, e na colónia é que ele se tornou,
por sua vez, o inspirador único de todas as justiças”. Eis o terreno
preparado para a condenação sumária da “herança” portuguesa: “fora disto,
não há mais nada: nem polícia, nem higiene, nem proteção ao fraco, nem
garantias, nem escolas, nem obras de interesse público… nada que

567
BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993,
p.133-134.
568
Segundo Bomfim, “quando foram instituídas as colónias, as nações ibéricas ainda não tinham
completado a sua organização; ou, melhor: a evolução política havia parado; a decadência, a
degeneração, começara já”. Idem, ibidem, p.141.
251
represente a ação benéfica e pacífica dos poderes públicos” (569). Dois
motivos, para Bonfim, teriam tido papel fundamental para que o
parasitismo português conseguisse raízes no solo brasileiro: i) “o Brasil era,
naquela época, a única e verdadeira colónia portuguesa, e para cá vinham
quase todos os que, no reino, não obtinham viver diretamente ou
indiretamente do Tesouro real”; e ii) “emigrando para o Rio de Janeiro, a
corte trouxera consigo uma sobrecarga desses elementos refratários – o que
havia de melhor no gênero”. Neste ponto, convirá atentar, uma vez mais,
para o facto de que a fonte deste “retrato” histórico dos elementos
“refractários” que chegam ao Brasil, quando da transferência da Coroa, é,
justamente, J.P. de Oliveira Martins. A pujança pictórica da narrativa
martiniana salta aos olhos, citada explicitamente no livro do brasileiro:

“«Enxame de parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e


sécias, frades e freiras, monsenhores e castrados. Os botes formigavam carregando,
levando, vasando bocados da nação despedaçada… monges, desembargadores, toda
essa ralé de ineptos figurões de lodo… Uma nuvem de gafanhotos, que desde o século
XVII devorava tudo em Portugal, e ia pousar agora no Brasil, para, em casa, o dirigir
mais à vontade»” (570).

Diante de tal quadro – e de outros semelhantes –, composto pela


pena de um português, não há que estranhar o aproveitamento que dele faz
Bomfim para sua teoria do parasitismo e apontar para o passado – para a
“herança” portuguesa – na hora de definir o verdadeiro mal de origem
brasileiro. Um passado colonial que ganha tonalidade de evidência
histórica num sentido que extrapola, inclusive, o “fato passado” mobilizado
a título de res gestae, indo mais além, no sentido em que indica o quinhão
sociológico a ser combatido; ou não fosse certo, para Bomfim, que o
Estado brasileiro, pelos seus vícios e degradação completa, representa

569
Idem, ibidem, p.143.
570
O trecho citado também consta na História de Portugal, à página p.237 da edição já referida.
BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.227.
252
ainda o passado colonial português (571). Esta será a bactéria a combater: o
lastro da memória lusitana na sociedade brasileira, que o autor isola, qual
“parasita”, como responsável pelo “mal de origem” da América Latina.
Afinal, o colonialismo português “não era, como nos Estados Unidos, um
regime político espontâneo, inspirado pelas necessidades próprias das
sociedades nascentes, não era sequer um regime fictício, artificial, mas
lógico, estável, garantidor e progressista, ao qual as nacionalidades em
embrião se pudessem moldar com o tempo. Não; era um regime antipático,
iníquo, arcaico e incompleto – era o sistema da metrópole, desnaturado o
preciso para ser adaptado ao programa parasitário, imposto à colônia” (572).
Esta constatação, porém, não resolvia o problema de todo. Havia
um agravante importante. O fato de que o organismo parasitado derivar do
organismo parasita, sendo por ele educado, gera uma situação contrditoria e
exasperadora: “o novo organismo nacional procura, ao mesmo tempo,
imitar e repelir as instituições e o regime da metrópole”. Descortinam-se,
com isso, duas tendências fatais às novas nacionalidades latino-americanas,
“a hereditariedade, imitação e educação aproximando-as dos costumes e
processos políticos da metrópole; a repulsa, a antipatia e o horror à
opressão e espoliação de que foram vítimas, afastando-as daquilo que a
hereditariedade e a educação lhes impõem. Nacionalidades saídas das
nações ibéricas, mas ao mesmo tempo oprimidas e exploradas por elas, as
repúblicas sul-americanas viverão por muito tempo ainda neste conflito
permanente consigo mesmas” (573).
Citando particularmente a Hérédité psycologique, de Ribot, Manoel
Bomfim considera a existência de “caracteres psicológicos” transmitidos

571
Para o autor, no Brasil do final do século XIX, “o Estado é o inimigo, o opressor e o
espoliador; a ele não se liga nenhuma idéia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança…
Tal é a tradição; ainda hoje se notam estes sentimentos, porque, ainda hoje, ele não perdeu o seu
caráter, duplamente maléfico – tirânico e espoliador”. Idem, ibidem.
572
Idem, ibidem, p.144.
573
Idem, ibidem, p.154-155.
253
hereditariamente pela colonização ibérica às sociedades latino-americanas
(574). Pelo que, focando a identidade latino-americana, em relação à ibérica,
Manoel Bomfim considera que “no fundo, as qualidades dominantes de
caráter são as mesmas, mostrando bem claramente o parentesco que entre
elas existe” (575). Apesar das variações relacionadas com o meio, a
“herança” ibérica que os povos latino-americanos portam justificam a
persistência de “qualidades dominantes de caráter”, ingrediente moral
ibérico conservado em suas ex-colônias. De cariz materialista-monista –
fundamento teórico em que, recorde-se, a correlatividade entre matéria e
espírito é esteio epistêmico –, sua compreensão da hereditariedade entre os
povos não se resume apenas às questões raciais, por assim dizer,
incorporando também o entendimento de uma transposição “psicológica” e
conformando, com isso, uma transferência moral, facto que ajuda a que se
lhe agreguem as colorações de ordem moral de um julgamento no “tribunal
da história”.
Assim sendo, cabe saber, dentre as características morais herdadas,
qual a que deixa claro o grau de parentesco ibérico. A este respeito,
Bomfim é taxativo: “das qualidades a nós transmitidas, a mais sensível e
mais interessante – por ser a mais funesta – é o conservantismo, não se
pode dizer obstinado, por ser, em grande parte, inconsciente, mas que se
pode chamar propriamente – um conservantismo essencial, mais afeito que
intelectual”, pois, “na prática, todos esses homens das classes dirigentes são
escravos passivos da tradição e da rotina; são ativos apenas para opor-se a
qualquer inovação afetiva, a qualquer transformação real, progressista”.
574
Junte-se a isto o retrato histórico de Oliveira Martins e o resultado estará dado: “se o fato da
hereditariedade social não fosse coisa evidente por simples raciocínio, o espetáculo das
sociedades ibero-americanas, em comparação aos povos da península, seria bastante, por si só,
como prova completa. Não é que, ao transitar-se por esta ou aquela parte da América do Sul, se
tenha a impressão de estar em Sevilha ou em Trás-os-Montes. Os povos aqui variaram, e o meio
é outro. Mesmo nos limites de um só país e sob as mesmas instituições, a feição moral das
populações se transforma um tanto; a variação é, a par da hereditariedade, o fator necessário na
evolução dos seres vivos”. Idem, ibidem, p.157-158
575
Idem, ibidem, idem.
254
Trata-se de uma “tendência instintiva ao conservantismo” (576). Daí uma
perplexidade: “a história nos mostrará, nas nacionalidades sul-americanas,
um partido «conservador», pesando decisivamente sobre a marcha das
coisas públicas. Pergunta-se agora: que é que havia então para
conservar?”. Perceba-se: a elite latino-americana é, para ele, a
representante da “herança” ibérica; uma herança nefasta; donde, sua crítica
social aponta para as elites enquanto verdadeiras representantes do passado
(577). Daí a reincidência na questão: “que pretendem então defender, deste
passado?… Ele é uma série de crimes, iniqüidades, violações de direitos,
resistências sistemáticas ao progresso. Que é que pretendem conservar? Só
se é justamente a decadência, a resignação social, e tudo mais que,
prendendo-nos ao passado, se opõe obstinadamente à vida e ao progresso,
que não é mais que a perda incessante de hábitos, a luta contra os costumes
estabelecidos, a adoção do que é moda e do que é novo, em oposição à
tendência dos preguiçosos e tímidos a imitar a história (Tarde)” (578).
“Imitar a história”. Eis o “calcanhar de Aquiles” da noção de
correlatividade, implícita à compreensão da hereditariedade, consoante o
materialismo-monista: ao mesmo tempo moral e natural, em todos os casos,
a transmissão das qualidades ibéricas era, para Bomfim, o verdadeiro óbice
a ser superado em direcção a um real progresso das sociedades latino-
americanas (579). Daí que seja o “passado” o obstáculo a vencer, pois o
“conservadorismo” das elites representaria, ainda, o jugo colonial. Este só
seria ultrapassado pela “ilustração”, pela “ciência”, em estreita ligação às
filosofias racionalistas da história. Em ordem a este desiderato, Bonfim não
hesita em promover a combinação de um Gabriel Tarde e de um Nietzsche,
576
Idem, ibidem, p.159-160. Grifos nossos.
577
Não deixa de ser curiosa a mobilização da obra de Manoel Bomfim no âmbito dos estudos
sobre a “superação” do “atraso brasileiro”, como, por exemplo, em SILVA, José Maria de
Oliveira. “Manoel Bomfim e a sociedade do futuro”. Educação & Sociedade, n.º22, 1987.
578
Ibidem, idem, idem. Grifos nossos.
579
Para uma reverberação deste posicionamento de Bomfim, tomado como “radicalismo”, ver
CÂNDIDO, Antônio. “Radicalismos” In: Revista Estudos Avançados, Vol.4, n.8, 1990, p.4-38.
255
mobilizados à moda de uma Magistra Vitae monista, na altura de explicar
que, mais que superar, se trata de desrespeitar o passado como condição
para o desenvolvimento, como vitória da “razão” contra as forças
“herdadas” da natureza degenerada:

“Nietzsche tem razão quando diz ser o irrespeito e o desprestígio a condição


essencial de todo o progresso. As nações sul-americanas têm que recompor toda a sua
vida política, administrativa, econômica, social e intelectual; se não querem morrer
entanguidas, mesquinhas e ridículas, têm que travar uma luta sistemática, direta,
formal, conscientemente dirigida contra o passado, respeitando apenas a sociabilidade
afetiva, natural entre as populações, e os sentimentos de hombridade e independência
nacional, característicos destes povos. Tudo mais será tenazmente combatido – é o
meio de levar estas sociedades ao progresso, e colocá-las a par de outros povos, e de
ganhar a distância enorme que nos separa das nações verdadeiramente cultas e
progressistas” (580).

Deste ponto de vista, o conservadorismo das elites é entendido


como um resultado do passado colonial, pois “não é só por interesse, é por
herança, por educação”, que se instalam o sentimento de “desconfiança” e
“o horror ao progresso”, uma “antipatia” que “é incontestavelmente
herdada dos povos colonizadores que o parasitismo tornou conservadores
ferrenhos”. Trata-se, no fundo, para Bomfim, da “essência do parasitismo”:
um organismo quando principia a viver às custas de outro cessa de
progredir, pois já não tem necessidade. Assim sendo, gera-se-lhe, pelo
contrário, um deletério interesse de não alterar a sua situação.
Sendo o progresso só alcançável no âmbito de uma “luta” contra o
passado, e entendendo-se este como o palco “natural” da “herança ibérica,
compreende-se que, assim sendo, a superação do fardo ibérico, verdadeiro
“mal de origem” latino-americano, só possa vir, entretanto, com a adopção
de uma organização intelectual e moderna que tinha nos países centro-
europeus sua fonte emissora. Entendendo que somente a adoção da ciência
mais avançada propiciaria a superação dos vícios naturais herdados da
decadência ibérica e que tanto obstaculizavam o florescimento das

580
Idem, ibidem, p.160-161. Grifos nossos.
256
sociedades novas, o autor de América Latina: males de origem articulava,
de modo muito particular, os preceitos do organicismo sociológico sob o
fio condutor de uma temporalidade que se consumava tal qual um tribunal
ilustrado. E é nesse ponto que, numa metáfora orgânica, entende a funesta
herança que os colonizadores deixaram na América Latina: o mal de
origem como expressão de parasitismo. Ao conhecimento, à ciência, à
instrução popular, caberia a missão de “curar” esse mal e limpar o passado,
actuando como um remédio para a doença da sociedade latino-americana,
essa sobrevivência e essa herança do passado ibérico, chaga produzida
pelos anos de parasitismo das “sanguessugas de além mar” (581).
A perspectiva bomfiniana, pois, é clara. Não vale a pena prolongar-
lhe os trechos explicativos. Mas carece, entretanto, de ser acentuado que
também o anseio de modernização de Bomfim, à semelhança do que
pudemos apreciar noutros níveis, é análogo ao de Oliveira Martins.
Enquanto o “retrato” do passado lusitano feito pelo autor de O Brasil e as
Colónias Portuguesas suscita, no contexto português, uma recepção crítica
vertida para o reconhecimento social (e para sua melhoria), no Brasil, a
recepção daquele mesmo quadro autocrítico é pretexto para um reforço
demarcatório, sutentando o afastamento de uma pecha originária que,
comprovadamente – a partir da própria leitura martiniana –, havia razões de
sobra para recusar. Pense-se, a título de exemplo, no retrato inscrito na
História de Portugal, de um rei português de não-desprezível importância
na estética identitária das relações luso-brasileiras: D. João VI, personagem
que, em todas representações martinianas, foi o “mais extenso e
pormenorizado, tanto no plano físico como no ponto de vista psicológico”
(582):

581
Idem, ibidem, p.175.
582
MATOS, Sérgio Campos de. “História e Ficção em Oliveira Martins. Imagens da
Degenerescência”. Revista de História das Ideias. Vol.21, 2000, p.161-162.
257
“Representante quase póstumo de uma dinastia, epitáfio vivo dos Braganças,
sombra espessa de uma série de reis doidos ou ineptamente maus, D. João VI, já
velho, pesado, sujo, gorduroso, feio e obeso, com o olhar morto, a face caída e
tostada, o beiço pendente, curvado sobre os joelhos inchados, baloiçando como um
fardo entre as almofadas de veludo dos velhos coches dourados de D. João V, e
seguindo um magro esquadrão de cavalaria – era, para os que assim o viram, sobre as
ruas pedregosas de Lisboa, uma aparição burlesca. Para nós, ao lembrarmo-nos de
que nesse coche, desconjuntado pelos solavancos das calçadas, vai o herdeiro e o
representante do Condestável, o espectáculo ressuscita-nos a história da Nação,
também desconjuntada pelos balanços da sua vida tormentosa. E se, porventura, as
misteriosas leis da vida têm um papel na história, força é reconhecer que na família
dos Braganças não vingou a semente da nobre raça de Nuno Álvares: viu-se em
todos eles a descendência do crasso sangue alentejano da filha do Barbadão” (583).

Diante de tão “burlesca” figura, imagem de evidente decadência ao


mesmo tempo orgânica e histórica” (584), bem se pode entender que a
respectiva repercussão na margem ocidental do Atlântico e, em concreto,
na atmosfera intelectual em que surpreendemos Manoel Bonfim, fosse
pretexto para confirmar as piores leituras sobre o carácter parasita da
“semente da nobre raça de Nuno Álvares” ou da sua semente abastardada.
Nos dois autores mencionados, Manoel Bomfim e Oliveira Martins,
há uma tentativa de aprender com os erros do passado, tal qual uma
Magistra Vitae moderna, é certo. No entanto, uma coisa é combater o
próprio passado, ou melhor, os equívocos e corrupções da dinastia de
Bragança, com o faz Oliveira Martins, em sentido autocrítico. Outra coisa,
porém, é combater um passado tido como passado do outro, como “herança
funesta”. Num caso, o magistério da história produz uma apetência por
aperfeiçoamento; no outro, produz-se um anseio por afastamento, feito
bandeira de uma necessária “cura” do passado e de um necessário combate
a ser consumado contra o tudo o que remetesse ao passado lusitano (585). É

583
MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol. II. Lisboa: Europa-América, [1879],
1991, p.188. Grifos nossos.
584
MATOS, Sérgio Campos de. “História e Ficção em Oliveira Martins. Imagens da
Degenerescência”. Revista de História das Ideias. Vol.21, 2000, p.161-162.
585
Após um intervalo de mais de uma década, a produção historiográfica bomfiniana, depois da
publicação de América Latina: males de origem, em 1905, empreenderá a produção de uma
trilogia: O Brasil na América, publicado em 1929, O Brasil na História, estampado em 1930, e
O Brasil Nação, editado em 1932. Nestes livros, o autor dá azo à incorporação gradual do
ideário marxista, que já ganhava força no início do século XX. Contudo, a mobilização da
258
que, precisamente, a construção da nação brasileira deverá começar, para
Bomfim, a partir do marco de onde Portugal acabou. Embora parecida com
a imagem pintada pelas obras de Oliveira Martins, a ideia de Bomfim se
distingue da do autor de O Brasil e as Colónias portuguesas, justamente,
na utilização feita da exemplaridade do passado: o que para um é
positividade, para outro é negatividade. Mesmo com base em utilização do
mesmo “retrato” ou juízo sobre o passado, aparentemente próxima, por
vezes até idêntica, seu efeito, porém, será diverso, posto que a evidência da
degradação, num lado do Atlântico, receitará sua extirpação, em sua
margem tropical. Em finais do século XIX e nos inícios do seguinte, o culto
do afastamento brasileiro face a Portugal, defendido por representativa
linha interpretativa da identidade brasileira em redefinição, ditava, frente à
lição da história, a sua inversão.
Bem vistas as coisas, o percurso que efectuamos conduziu nossa
investigação ao cerne da problemática demarcatória. Sendo a historicidade
elemento fulcral da demarcação cultural, compreender-se-á que ela
acompanhe a própria lógica demarcatória e que se torne possível que sua
delimitação, mesmo quando iniciada pelo seu próprio centro de referência –
a história nacional –, possa transmitir-se como matriz a outros contextos,

história e o “papel” conferido a Portugal na construção de projectos para o desenvolvimento


brasileiro permanecerá o mesmo que fora traçado em 1905, ou seja, o de “mal de origem”. A
este respeito, valerá à pena estudar, em futuros trabalhos, a influência das idéias de Manoel
Bomfim, sobretudo de sua estética identitária, por exemplo, na obra de Caio Prado Júnior,
principalmente em A Formação do Brasil contemporâneo, publicado em 1945. No prefácio de
O Brasil na América, Bomfim revela a influência de suas idéias de América Latina na
organização das obras posteriores, dizendo que “compreende-se, pois, que nestas páginas de
agora se encontre, apenas, o desenvolvimento de conceitos patentes no outro livro. Não há
modificação de sentimentos, nem novidade de pensamento”. Esta compreensão da relação luso-
brasileira foi também ecoada nos seus livros posteriores, ganhando mais nitidez ainda. Em O
Brasil na História, por exemplo, estampado em 1930, há poucos anos antes de sua morte,
Bomfim afirmará que “das condições duras e tristes que a história nos impoz, nenhuma é mais
dura e lastimável do que essa necessidade de – affirmarmos a nosso caracter e toda a tradição
nacional contra esse povo, mesmo, que nos formou”. BOMFIM, Manoel. O Brasil na América.
Caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929, p.7 e
BOMFIM, Manoel. O Brasil na História: deturpação das tradições. Degradação política. Rio
de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1ª edição, 1930, p.193. Grifos nossos.
259
outros fins e, sobretudo, possa produzir efeitos diversos ou inversos.
Afirma Rui Cunha Martins que, em matéria de estratégias de transgressão
e/ou reafirmação de fronteiras, bem como de definição e estabelecimento
de limites – também os de ordem cultural –, “o que aqui se emancipa pode,
ali, num outro contexto, manifestar propriedades de constrangimento, e que
o contrário é também possível”. Asserção válida para o complexo processo
de construção das identidades nacionais, quando se sabe que estas, ao
trabalharem sobre fenômenos de demarcação cultural, trabalham sobre
fenômenos de redefinição do limite. E este, “em rigor, nem sequer solicita a
sua resolução, superando-se, unicamente, como perpétua reinvenção de si
mesmo. Motivo pelo qual pode dizer-se, com propriedade, que o maior
produtor de fronteiras é a própria fronteira” (586).

3. Moçárabes e Mestiços: a concorrência da forma híbrida.

Do processo de clarificação identitária luso-brasileiro não emergia


apenas a proposta de uma diferenciação futura por via de um radical
afastamento do passado originário. Na verdade, essa mesma questão da
origem, agora entendida enquanto primazia de determinado núcleo de
características tidas por fundantes de cada uma das nacionalidades, dava
corpo a uma leitura concorrente do relacionamento entre as culturas
portuguesa e brasileira. Em rigor, a problemática de base é a mesma nos
dois casos: o entendimento do fator “originalidade” e a necessidade
imperiosa de, para efeitos de demarcação identitária, clarificar os limites
pertinentes entre duas culturas historicamente comprometidas. Mas esta
mesma questão comportava duas dimensões complementares: a questão da

586
MARTINS, Rui Cunha. “O paradoxo da demarcação emancipatória: a fronteira na era da sua
reprodutibilidade icónica”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º59. Fevereiro 2001, p.50-
51.
260
“origem” tomada por equivalente de “começo” e a questão da “origem”
tomada por equivalente de “originalidade” e de ineditismo. E se aquela, a
dimensão da origem enquanto princípio, era resolvida, à escala brasileira,
pela noção de “mal de origem” (foi o que vimos), imperioso parecia, em
simultâneo, resolver a dimensão da essência, isto é, da “originalidade”, da
“forma original”. A dificuldade estava na coexistência de duas “formas
originais” de igual matriz, afinal, sua manifestação em duas culturas
diferentes só podia aparecer como negação da própria originalidade
buscada. A concorrência surge aí, numa comum reivindicação da “forma
híbrida”.
Recordar-se-á que, em capítulo anterior, abordamos a polêmica
entre Teófilo Braga e Sílvio Romero. Importa agora recuperar essa corrente
dialógica entre as obras do açoriano e do sergipano, que aqui tomaremos
por expressiva da aludida linha concorrencial instalada no universo
identitário luso-brasileiro. São dois, para o nosso intuito, os aspectos a
reter: sua similitude formal (587) e uma paralela concorrência estético-
identitária – tipificada pelas figuras do “moçárabe” e do “mestiço” – no
âmbito das demarcações da história processadas no seio da fundação das
culturas nacionais “portuguesa” e “brasileira”.

3.1. Como é sobejamente reconhecido, Teófilo Braga possui um papel


destacado no rol de intelectuais que, nos finais do XIX, se preocuparam
com escrutinar o passado para construir, a partir daí, referenciais estéticos
sobre a “cultura portuguesa”. Sua ação na divulgação de ideias, no âmbito
da “frente cientista”, teve uma amplitude que não se resumiu ao âmbito
587
Aproximações hermenêuticas das obras de Teófilo Braga e Sílvio Romero foram já
delineadas por alguns pesquisadores que participaram do III Colóquio Tobias Barreto. A este
respeito, sugerimos a consulta de Sílvio Romero e Teófilo Braga. Actas do III Colóquio Tobias
Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1996, em especial os textos de
RODRIGUES, Ana Maria Moog, “Sílvio Romero, consciência da nacionalidade e afinidade
com Theófilo Braga”, pp.81.101 e BORGES, Paulo Alexandre, “Tradição, literatura e
nacionalidade em Teófilo Braga e Sílvio Romero”, pp.121-136.
261
português (588). Ao contrário, sua obra teve repercussão bastante também
no Brasil (589), tanto no sentido de um “irmanar” cientista, como no sentido
de se instituir em pólo de contraste no processo de autodeterminação
idearia e estética brasileiro (590). Trata-se, deste modo, de um perfil
intelectual e de uma obra de alguma forma atuantes em escala cultural
“luso-brasileira”. Tomaremos como expressão de seu pensamento, para o
que aqui nos interessa, a edição de 1909 de sua História da Literatura
Portuguesa, o que se justifica pelo fato de se tratar de uma versão madura
de suas ideias que já há tempos vinham sendo submetidas ao público
letrado (591) e à crítica académica (592), ao ponto de se poder afirmar que
muitas das questões que Teófilo havia antes abordado confluíram neste

588
É interessante também realçar a importância da obra de Teófilo Braga no âmbito da
demarcação cultural da Galiza. A este respeito, consultar FEIJÓ, Elias J. Torres. “Cultura
portuguesa e legitimação do sistema galeguista: historiadores e filólogos (1880-1891)”. Ler
História, 36, 1999, pp.273-318.
589
Veja-se, por exemplo, a extensa lista de citações e referências a Teófilo Braga colectadas na
imprensa brasileira pelo seu discípulo Fran Paxeco. PAXECO, Fran. Teófilo no Brasil. Lisboa:
Casa Ventura Abrantes, 1917. Consultar também as cartas onde Teófilo menciona seu
relacionamento cultural com vários brasileiros, bem com algumas cerimónias realizadas por
Fran Paxeco, no Brasil, em homenagem ao seu mestre. PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo (com
um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo). Lisboa:
Portugália, 1924.
590
Como foi no caso de Sílvio Romero, conforme expusemos no primeiro capítulo. Lembrem-se
também as referências a Teófilo nos “Fatores da Literatura Brasileira” em ROMERO, Sílvio.
História da Literatura Brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora.
Coleção Documentos brasileiros, dirigida por Octávio Tarquínio de Sousa. 3ª Edição organizada
e prefaciada por Nelson Romero, [1888], 1943.
591
É o próprio Teófilo quem o diz, ao mencionar que “já por três vezes o vasto corpo da
História da Literatura portuguesa tem sido submetido a este processo de condensação: em 1875
no Manual de História da Literatura portuguesa (in-de VII- 474p.), destinado às lições orais. Em
breve ficou atrasado, pela publicação dos Cancioneiros trovadorescos e pelo aperfeiçoamento do
método histórico e filosófico, dando lugar à remodelação do plano em 1885 no Curso da
História da Literatura portuguesa (in-8º granda, de 421p.)”. BRAGA, Teófilo. História da
Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda,
[1909], 1989, p.59.
592
Veja-se, a este respeito, a intensa polêmica com Oliveira Martins, entre outros. BRAGA,
Teófilo. Os críticos da História da Literatura Portugueza. Exame das affirmações dos Srs.
Oliveira Martins, Anthero de Quental e Pinheiro Chagas. Porto: Imprensa Portugueza Editora,
1872 e MARTINS, J.P. de Oliveira. “A Teoria do Mosarabismo, de Teófilo Braga” (Inédito).
Biblos. Coimbra, n.º28, 1952, pp.139-177.
262
opúsculo, servidas agora por uma maior sistematização de seu pensamento
(593), constatação que avaliza sua representatividade (594).
Oriunda de uma compreensão estético-filosófica que crê na
representatividade da Literatura como “manifestação do génio” português,
a História da Literatura Portuguesa enquadra-se na perspectiva atinente ao
cientismo histórico, para onde convergem, desde o momento jusante da
“frente cientista”, muitos elementos do pensamento heterodoxo positivista
à Littré, amalgamados com traços do neolamarckismo e do materialismo
monista. Uma atmosfera intelectual cujo denodo fatual conferia ao estudo
das literaturas nacionais uma dimensão que correspondia ao escrutínio
estético da nacionalidade. Se, no caso de Teófilo Braga, a preocupação
nacionalista, em suas vinculações filosóficas ao cientismo dezenovista,
assume um destaque particularmente importante, isso se deve à sua
participação em uma matriz de compreensão da identidade e da cultura
portuguesa que, por sua vez, exercita uma mobilização da história peculiar:
a definição de “factores estáticos” e “dinâmicos” da cultura portuguesa
corresponderia ao intuito de, uma vez mais, “revivescer” as energias
indómitas de uma lusitanidade “racial”. É tendo em conta este cenário pré-
compreensivo, bem como a sua natural interferência sobre a nossa
específica escala de análise, que temos por pertinente a colocação das
seguintes questões: i) como Teófilo definia a “cultura” portuguesa? ii) qual
a mobilização da história exercitada pela matriz teofiliana? e iii) qual o

593
Referimos, aqui, além do Manual de História da Literatura em Portugal, editado em 1875, e
do Curso da História da Literatura Portuguesa, de 1885, mencionados por Teófilo, também
Epopêas da Raça Mosárabe, publicado pela Imprensa Portuguesa Editora em 1871, “Elementos
da Nacionalidade Portuguesa”, publicado em fragmentos na Revista de Estudos Livres, no
biênio1883-1884, e Contos Tradicionais do Povo Português, volumes I e II, publicados em
1883.
594
Lembre-se também que esta edição da História da Literatura Portuguesa, de 1909, foi dada
à estampa em meio ao conturbado ambiente posterior ao regicídio e ao acirramento da
campanha republicana. Como se sabe, em 1910, Teófilo Braga será nomeado o primeiro
presidente da República em Portugal, posição a que fora alçado pela sua liderança e
representatividade no âmbito dos movimentos envolvidos na troca de regime político.
263
lugar, expresso ou implícito, do Brasil no relacionamento cultural luso-
brasileiro deduzido da sua abordagem? Será do escrutínio destes elementos
que nos ocuparemos a seguir.
De acordo com o pensamento teofiliano “a elaboração da Literatura
portuguesa é o produto do ethos da raça, do sentimento da nacionalidade e
da consciência histórica”. Sua obra representaria, assim, o estudo histórico
de um “produto superior do génio português”, com o auxílio analítico de
“processos críticos” que buscavam compreender “a psicologia colectiva e o
ponto de vista sociológico” (595). É que, para Teófilo Braga, “para que uma
Literatura se forme é necessário que uma raça fixe os seus caracteres
antropológicos pela prolongada hereditariedade, que funde a agregação ou
consenso moral da Nacionalidade, tendo o estímulo de resistência na sua
Tradição e na unidade a Língua disciplinada pela escrita, universalizando a
relação psicológica das emoções populares com as manifestações
concebidas pelos génios artísticos” (596). Daí que o estudo da literatura
fosse entendido como o representante de uma “síntese completa” da
nacionalidade, na medida em que para ele confluíam “os aspectos da sua
evolução secular e histórica”. Pois “na marcha histórica de qualquer povo”,
considera Teófilo, “existe um trabalho constante de síntese ou coordenação
espontânea de todas as suas energias, conformando os actos com os
sentimentos e ideias dominantes” (597). Nas linhas escritas em 1909, Braga
considera existirem três sínteses: a “síntese activa” exercitada pela política
geral; a “síntese especulativa” representada pela filosofia, entendida esta
como o espaço discursivo para onde dimanavam os dados objectivos das

595
BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.61-62.
596
Idem, ibidem, p.63.
597
Idem, ibidem.
264
ciências; e ainda uma “síntese afectiva” manifestada na literatura e na arte,
enquanto manifestação da “tradição” e da “autonomia nacional” (598).
Atente-se para o papel de representante “afectivo” que o autor
confere à Literatura. A sua explicação radica em que, mesmo sendo adepto
da filosofia positiva, Teófilo não deixou, entretanto, de fazer eco de
compreensões algo metafísicas vinculadas à ideia de “Povo” (599), baliza
tão cara ao romantismo de um Schlegel, por exemplo. Lembre-se, neste
ínterim, que muito de sua curiosidade filológica também possui esta
filiação. Não obstante isto, o pensamento teofiliano, como já se disse com
propriedade (600), apresenta originalidade, não se submetendo à glosa nem
do positivismo ortodoxo laffitista nem mesmo da heterodoxia littreana.
Entre outras coisas, sua preocupação com a demarcação rácica da cultura
portuguesa, no âmbito dos demais povos ibéricos, bem como pela sua
vinculação mais geral ao movimento de cientifização das sociedades, foi
marcada pelo “enlace” de um heterodoxo positivismo com o materialismo
monista. A este respeito, valerá a pena recordar, com Amadeu Carvalho
Homem, que “facilmente se explica a transição teofiliana da positividade
para o cientismo monístico-materialista, ou melhor, a simbiose que nele se
opera entre estes dois termos. Segundo as leituras de Comte e Littré, o
positivismo escapava à dicotomia idealismo-materialismo. Como nada
afirmava ou negava sobre a existência de primeiros princípios e de fins
últimos, limitando-se a assinalar a impertinência destas noções no plano da
funcionalidade científica, aquela filosofia pôde ser apresentada como um
agnosticismo. Mas a postura positivista, precisamente pelo facto da sua
neutralidade, tanto consentia a compaginação com um idealismo cauto, – é
exemplar, neste aspecto, o discurso de Spencer sobre o Incognoscível –,
598
Idem, ibidem, p.64.
599
PALMA-FERREIRA, João. “Prefácio”. In: BRAGA, Teófilo. História da Literatura
Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1989.
600
HOMEM, Amadeu Carvalho. O Positivismo em Portugal: o contributo de Teófilo Braga.
Coimbra: Minerva, 1989.
265
como permitia a inflexão materialista. Bastava, para isso, abandonar com
decisão o campo agnóstico e sustentar a imanência de uma armadura de leis
naturais e de princípios materiais em que se incluíssem todos os aspectos
do «cosmos» inerte e vivente. Teófilo não hesitou em dar esse passo” (601).
De posse destes elementos, estamos melhor apetrechados para
situar a importância que não poderia deixar de lhe merecer o problema da
natureza e do cariz identitário da “cultura portuguesa”, do mesmo modo
que o estudo das literaturas nacionais. Para o pensador açoriano, seu estudo
está subordinado ao meio social, tanto na origem como no destino.
Entenda-se: origem e destino da nacionalidade. É que o método utilizado
por Teófilo, como ele próprio o dizia com ênfase, “assenta no ponto de
vista francamente histórico” (602), afirmação que, entretanto, não quer dizer
que a matriz teofiliana mobilizava uma mesma lógica da história que a de
um Oliveira Martins, por exemplo. Ao contrário: entre a “lição moral” da
história martiniana, e a abordagem de Teófilo, há muito que distinguir.
Interessa-nos, em especial, o acento exposto a este respeito por Ana Leonor
Pereira, ao chamar a atenção para o fato de que “as noções de
imprevisibilidade, acaso, indeterminação, não têm lugar na teoria teofiliana
da história” (603). É que, para o autor da História Universal: esboço de
Sociologia Descriptiva, editada entre 1878-1882 (604), a cientifização da

601
HOMEM, Amadeu Carvalho. O Positivismo em Portugal: o contributo de Teófilo Braga.
Coimbra: Minerva, 1989, p.105.
602
BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.64.
603
PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal (1865-1914). Filosofia. História. Engenharia
Social. Coimbra: Nova Almedina, 2001, p. 162.
604
Obra que, aliás, Joaquim Saldanha Marinho, célebre senador e jornalista – signatário do
Manifesto Republicano de 1870 –, agradeceu a Teófilo Braga. Em carta assinada a 8 de janeiro
de 1879, no Rio de Janeiro, expressava-se da seguinte maneira o senador brasileiro: “Por
intermédio do seu digno editor tive a honra de ser obsequiado com um exemplar da História
Universal, com que v. acaba de enriquecer as letras portuguesas e os estudos históricos. Há
muito acompanho, sempre com crescente entusiasmo, os variados e importantes trabalhos
literários e científicos que tem valido a v. os encómios e louvores de juízos mais competentes do
que eu. Admiro-o pelo seu muito saber e brilhante talento; não o admiro menos pela sua
infatigável perseverança no trabalho, e pela coragem com que propaga as doutrinas que eu
considero as únicas capazes de regenerarem a sociedade moderna”. In: BRAGA, Teófilo.
266
história advinha da “subordinação do facto social ao facto biológico” (605).
Dir-se-ia que a “entificação da História”, manifesta nas filosofias da
história, fora substituída pela “entificação da Ciência” (606). É que, tal como
vimos, a sociologia – entendida como ciência-mater da cientifização da
realidade social – fora “arrancada ao pélago da História”, na poética de
Isidro Martins Júnior. Daí que não possa passar despercebido que a
mobilização da história, em Teófilo Braga, se dê enquanto sociologia
descritiva. Deve, entretanto, frisar-se que nenhum destes aspectos pode
brigar com outra precisão igualmente nuclear: sua leitura da “história” em
muito estava condicionada pelas ciências da matéria. E se era lícito admitir
que nada se cria, tudo se transforma, especial relevância teria de ser
concedida ao princípio da correlatividade entre matéria e espírito, entre
natureza e sociedade – pressuposto-chave do monismo materialista (607). A
transferência epistêmica dos princípios e leis gerais da natureza para a
compreensão da vida do homem em sociedade foi a escora fundamental do
sistêmico pensamento de Teófilo Braga. Representava a premência da
empiria e sua recusa às metafísicas filosofias da história.
Dito isto, não surpreenderá a detecção, na História da Literatura
Portuguesa, de uma preocupação especial com os conceitos de raça e meio,
mobilizados como constantes epistêmicas para o entendimento das

Quarenta Anos de Vida Literária 1860-1900) – Cartas a Teófilo Braga, com um prólogo
“Autobiografia mental de um pensador isolado”. Lisboa: Tipografia Lusitana – Editora Artur
Brandão, 1902, p.210.
605
BRAGA, Teófilo. História Universal: Esboço de sociologia descritptiva, p.9 citado por
PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal (1865-1914). Filosofia. História. Engenharia
Social. Coimbra: Nova Almedina, 2001, p.156.
606
Sobre a entificação da ciência e sua relação com o historicismo, consultar CATROGA,
Fernando. “Cientismo e Historicismo”, In: FITAS, Augusto J.; CATROGA, Fernando et all.
Seminário sobre o Positivismo. Évora: Centro de Investigação da U. E. Série: Centro de Estudos
de História e Filosofia da Ciência, n.º3, 1998.
607
Segundo Amadeu Carvalho Homem, “A correlatividade será, desta maneira, o grande
princípio norteador das sínteses filosóficas positivas, já que conhecer a matéria pelas
modificações do meio (ou forças) é o mesmo que garantir que a acção das forças (movimento)
modificará os equilíbrios da matéria”. HOMEM, Amadeu Carvalho. O Positivismo em
Portugal: o contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Minerva, 1989, p.111.
267
sociedades. Consoante o pensamento teofiliano, “a Literatura reflecte todas
as sucessivas modificações desse meio, achando-se, como todos os outros
fenómenos sociológicos, sujeita a leis naturais de ordem estática ou de
conservação, e de acção dinâmica ou de progresso”. Por isso, Teófilo
chamará a atenção para o fato de que estes elementos constantes
funcionariam “como órgãos subtraídos à vontade individual, mas pelos
quais se exercem os processos da concepção artística e constituem os
elementos estáticos das Literaturas: a Raça, a Tradição, a Língua e a
Nacionalidade” (608). A estes, porém, se juntariam forçosamente os
elementos variáveis, “dinâmicos”, que seriam representadas pela soma das
“épocas históricas” e a ação do meio social sobre a Literatura Nacional.
Neste quesito, destacará a Idade Média, a Renascença e o Romantismo.
Vejamos, por conseguinte, a concretização de uma noção de
história fortemente coincidente com a ideia de “sociologia descritiva”
aliada a uma paralela voracidade sistêmica em permanente requisição dos
caracteres “raça” e “meio”, mobilizados como constantes históricas. A isto,
agregue-se uma compreensão da temporalidade vinculada ao monismo-
materialista que, ao enfatizar a existência de uma “elaboração orgânica da
literatura”, ajuda a fundamentar a existência de uma originalidade racial
portuguesa no âmbito ibérico (609). Estes tópicos, em sua
complementaridade, parecem assentar bem ao pensamento teofiliano. Por
ser assim, vemo-lo dedicar-se amiúde à questão dos critérios rácicos da

608
BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.64-65.
609
Teófilo ecoava as considerações de Pi y Margall acerca da existência de diversas
“nacionalidades ibéricas”, conforme pode-se ver no seguinte trecho: “Entre as Literaturas
hispânicas, duas correspondem às duas raças, a ibérica e a lusitana, que subsistem diferenciadas
desde as épocas remotas até as mais recentes crises históricas, e basta esta correspondência para
descobrir o seu carácter tradicional e popular, e por vez modificado pelo pedantismo erudito.
Enquanto as Literaturas castelhana e portuguesa avançam para a perfeição estética, outras,
como a aragonesa, valenciana e catalã, que floresceram, extinguiram-se, porque o apoio da
nacionalidade reduziu-se a um regionalismo em revolta contra uma incorporação política e
administrativa, como se confirma pela galiciana”. Idem, ibidem, p.66.
268
Antropologia dezenovista, tomada como um estudo “verdadeiramente
reconstrutivo da história primitiva” (610), na medida em que “os grandes
factos antropológicos da formação de uma raça e do seu agrupamento
espontâneo em sociedade, até chegar à forma voluntária ou consciente de
nação, com costumes, língua, religião e indústria próprias, não podem ser
determinados pelo cômputo cronológico, não começam em um dado dia;
são a consequência de elementos anteriores, de energias persistentes, de
acção do meio cósmico, e por isso quanto mais se profundarem estas
condições mesológicas, antropológicas e étnicas, tanto mais se esclarece
esse facto complexo que se denomina a História, e se compreende melhor a
evolução progressiva da actividade de um povo” (611).
Para Braga, o estudo da “raça” é “preliminar para a compreensão da
Literatura” porque é entendido como revelador das condições da vida
nacional. Baseado nas conclusões “científicas” da Antropologia de sua
época, chama atenção para o critério monista da persistência dos
caracteres adquiridos, ou como ele revela, para a “persistência das Raças,
nos seus tipos ainda os mais remotos, e a conservação dos seus costumes
através dos mais numerosos e mais fortes” (612). Com tal arcabouço teórico,
natural parecia a Teófilo que se escrutinasse o recôndito passado da história
primitiva em busca das constantes étnicas. O recurso à filologia e à
antropologia estaria, deste modo, a subsidiar sua análise da literatura
portuguesa – seria ele o suporte descritivo do sistema teofiliano. Por outro
lado, estribado em Prichard, Teófilo Braga assinalava a nuclearidade da
noção de hereditariedade através do conceito de raça, entendido como
representante da “origem”. Um critério analítico que tinha o poder de
explicar o porquê das formas literárias, tendo igualmente a capacidade de
610
Idem, ibidem, p.67.
611
BRAGA, Teófilo. “Elementos da Nacionalidade Portuguesa” In: Revista de Estudos Livres,
Lisboa: Nova Livraria Internacional Editora, volume 1883-1884, 1884, p.5.
612
BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.67.
269
realçar a originalidade e a autonomia nacionais. Afinal, “as Literaturas
distinguem-se entre si pelas tradições elaboradas em línguas escritas e pelo
modo de sentir de uma nacionalidade” (613). A isto, somava-se a influência
das análises de Taine sobre a literatura inglesa (614). Tal como o inglês,
Teófilo cria na transparência dos diversos componentes étnicos na literatura
nacional, como bem se percebe ao sustentar que “sob este critério, há um
outro importante fenómeno a considerar: o encontro e fusão de duas raças
determina uma revivescência de tradições hierológicas ou poéticas”.
Segundo ele, será “o estudo da raça na história de qualquer literatura o
meio de descobrir a base tradicional sobre que se desenvolveu, e dela
deduzir o que tenha originalidade e feição nacional” (615).
Esta incursão a que procedemos, mesmo que de forma sucinta, pelo
pensamento de Teófilo e pela matriz de entendimento histórico que
mobilizava, habilita-nos a averiguar sua definição da “cultura portuguesa”.
Nada a estranhar, pois, o seu convencimento de que, em se tratando de
Portugal, o “problema da raça é do mais alto interesse”, posto que a faixa
ocidental da Península Ibérica, constituída reino autônomo no século XII,
preenche o território que “é ainda o que foi ocupado pelas tribos lusitanas,
tendo a menos a Galiza e a Andaluzia, que formavam, segundo Estrabão,
no seu conjunto a LUSITANIA dos antigos” (616). Como é sabido, a tese de
Teófilo Braga – que buscava sustentar a existência de uma originalidade
racial como determinante da existência de Portugal como nação – ia em
desacordo com a historiografia de Alexandre Herculano (a qual ressalta o

613
Idem, ibidem, p.68.
614
Como o próprio Teófilo revela: “este mesmo critério foi aplicado por Taine à Literatura
inglesa, em que o elemento saxão conserva o génio e as tradições germânicas, ao passo que o
normando submete-se à disciplina da imitação, como se manifesta na dupla influência de
Shakespeare e Pope”. O paralelo entre esta dualidade Shakespeare e Pope e a estabelecida,
depois, entre Camões e Gil Vicente foge aos propósitos desta pesquisa. Deixamos, contudo,
apenas esta sugestão analítica. Idem, ibidem, p.68.
615
Idem, ibidem, p.69
616
Idem, ibidem.
270
carácter da vontade política dos reis) (617). Esta mesma questão, seria o
cavalo de batalha da intensa polêmica travada entre o açoriano e Oliveira
Martins – que ecoava a tese de Herculano (618). Assim, não surpreende que
Teófilo considere que os mencionados “dois historiógrafos,
desnacionalizaram Portugal”. Outra desnaturação do tipo português, para
Brga, “é feita pelos eruditos que compilam factos, que identificam Portugal
com um país de Celtas, sem conhecerem nem a cronologia desta raça, nem
os seus caracteres antropológicos em antítese com os dos portugueses. E, já
é favor; porque, para os nossos vizinhos castelhanos, não há diferença
alguma entre Espanhóis e Portugueses, são um povo único!” (619). Não há,
para Teófilo, um descolamento entre a esfera política – a vontade política
da proclamação da autonomia portucalense – e a concretude dos princípios
constantes observados na natureza. Sendo a correlação entre matéria e
espírito a pedra-de-toque do materialismo monista, a pujança deste ideário
no pensamento teófiliano deu-lhe a segurança necessária para buscar a
explicação da existência de Portugal na natureza. Fez-lhe demarcar a
cultura pela raça. O “espírito do povo” ou a vontade política seriam
consequência de uma longa maturação racial. Assim, o período 1128-1141
era compreendido como uma revivescência do lusismo, avesso aos anseios
unionistas do castelhanismo.
Esta demarcação entre o luso e o castelhano remontava, porém, ao
período romano. Uma dualidade que, para Teófilo, não remete à política;

617
Sobre a existência de determinações rácicas para a existência de Portugal, declara o açoriano:
“a esta pergunta, respondeu Alexandre Herculano negativamente, considerando a Lusitânia um
território diferente do de Portugal, e os Lusos umas tribos bárbaras, com quem o povo português
nada tinha de comum, por ser um elemento adventício, transplantado das Astúrias e do reino de
Leão; que pretender relacionar os dados de Estrabão sobre os Lusitanos com os portugueses, era
uma preocupação heráldica dos humanistas do século XVI. Como poderia o historiador
compreender o individualismo étnico de Portugal?”. Idem, ibidem, p.70.
618
Sobre Oliveira Martins, diz Teófilo: “Pior do que Herculano, veio o frasista Oliveira
Martins, considerando Portugal essa horda de adventícios asturo-leoneses submetendo-se à
agregação de uma nacionalidade pelas ambições e esforços continuados dos políticos
dirigentes”. Idem, ibidem, p.70.
619
Idem, ibidem, p.70.
271
relaciona-se com a persistência de caracteres antropológicos, pois, “a
eterna divortia”, dirá ele, mencionando a Púnica de Sílio Itálico, “entre
Iberos e Celtas, é ainda hoje implacavelmente mantida nas duas
nacionalidades hispânicas”, conformando, com isto, “duas raças, a ibérica e
a lusitana, evolucionando nas situações primitivas”. De acordo com esta
leitura, a Península Ibérica entendia-se como estando dividida em dois
segmentos étnicos, duas vertentes: “a oriental, ocupada pelos Iberos, e a
ocidental pelos Lusitanos, mantendo através de todos os cataclismos
sociais e históricos as suas individualidades étnicas, manifestando-se ao
fim de tantos séculos a Nacionalidade castelhana e a Nacionalidade
portuguesa, sempre inconfundíveis” (620). E se a constituição cientista
demanda à descritividade fatual o saciar da sede probatória, não espanta
que Teófilo busque definir fenotipicamente, bem à moda da antropologia
física dezenovista, os caracteres essenciais da raça lusitana, base da sua
definição do Luso enquanto representante pré-céltico do ramo dos Ligures:
“na vertente ocidental estabeleceu-se o Luso, ramo de uma raça navegadora
que fazia o comércio do âmbar, do mar do Norte, os Ligures. Distingue-se
esta raça pela sua estatura mediana, e cabeça redonda; pela cor trigueira da
pele, cabelos e olhos castanhos, e leptorrinia” (621).
De tudo o foi citado, resulta patente a importância que Teófilo
emprestava à demarcação entre Portugal e Espanha (622). E será deste ponto
que arranca a importância desmesurada conferida ás divisões raciais,
linguísticas e literárias. Afinal, aquela “primitiva extensão do território
mostra-nos como a população lusitana pôde contrabalançar-se com a
população ibérica, cujos caracteres são nitidamente diferenciados pelos

620
Idem, ibidem, p.70.
621
Idem, ibidem, p.71.
622
É importante frisar que, para Teófilo, “as diferenças do Ibero e do Luso ainda hoje se
impõem à observação no antagonismo político, intelectual e moral; não os separam fronteiras
materiais, nem tão-pouco instituições religiosas ou sociais, mas prevalece uma imanente
antinomia. É na raça que ela se há-de encontrar”. Idem, ibidem.
272
geógrafos gregos e romanos. Embora diminuído o território pelas divisões
administrativas romanas, e pelas incorporações neogóticas, o pequeno
Portugal de hoje nunca perdeu a população lusitana que o ocupava,
podendo afirmar-se, pelos recursos da comprovação antropológica, que não
há solução de continuidade do tipo luso para o português actual” (623). Por
isto, dirá, no território em que veio a constituir-se um dia o Estado de
Portugal, “vê-se que essa nova nacionalidade apareceu no século XII como
uma revivescência étnica” (624). Acresce a esta interpretação, o papel
atribuído aos Celtas pela compreensão teofiliana das nacionalidades na
Península Ibérica. Segundo o autor da História da Literatura Portuguesa, a
invasão dos Celtas atuou mais fortemente entre os Iberos que entre os
Lusos. Por isso, fazendo eco das considerações de Sarmento, aduz que
“celtas e iberos formam uma nação mixta, os Celtiberos”, informação que,
contudo, só ganha o devido realce com a adenda de que “frente os lusitanos
a invasão céltica foi mesquinha” (625). De uma forma ou de outra, e isso
parece ser o dado a reter, a demarcação rácica entre os povos habitantes da
Península Ibérica sustenta a respectiva demarcação identitária. Esta,
entretanto, será completada ainda por outro elemento.
Para Teófilo, nem romanos, nem celtas, nem fenícios se mestiçaram
com a raça lusa, quadro que se irá alterar com a invasão sarracena de 711.
É neste contexto que se processa, na teoria teofiliana, a entrada em cena
dos moçárabes. É neste contexto preciso que, por maioria de razão, as suas
considerações aumentam exponencialmente de significado para a instrução
da nossa problemática. A matriz interpretativa de base é, grosseiramente,
esta: “quando se constituiu a nacionalidade portuguesa, no século XII, foi
essa população dos Moçárabes a matéria-prima; era ela que estava no

623
Idem, ibidem, p.72.
624
Idem, ibidem, p.73.
625
Idem, ibidem, p.74.
273
território da obliterada Lusitânia” (626). O detalhe da matéria-prima não é
de somenos: no contexto da constituição nacional, o incremento moçárabe
é elemento fundante, primevo, verdadeiro traço de originalidade da cultura
portuguesa.
Em bom rigor, a influência moçárabe foi sendo trabalhada, por
Teófilo durante bastante tempo (627), em simultâneo, com a paralela
ascendência do “lusismo”, conformando de alguma maneira, uma
dualidade cultural entre “cultura aristocrática” e “cultura popular” (628).
Segundo Braga, “a classe popular, cada vez mais comprimida, só pôde
evolucionar socialmente no princípio do século VIII, quando a invasão dos
Árabes pela tolerância política e religiosa lhe permitiu a sua livre
actividade e expressão das suas crenças. É preciso distinguir esta dupla
influência, a aristocracia eclesiástica, ou erudita, a qual pela circunstância
da resistência contra os Árabes se chama Asturo-Leonesa, e a popular,
desde o século XI conhecida pelo nome de Moçárabe” (629). Já na Epopeia
da Raça Moçárabe, publicada em 1871, Teófilo chamava atenção para a

626
Idem, ibidem, p.80.
627
Desde a versão de 1871, da História da Literatura Portuguesa, Teófilo Braga propagava a
importância da contribuição rácica do moçárabe na formação de Portugal. Esta edição de 1871
foi alvo de muitas críticas, às quais o autor respondeu no opúsculo Os Críticos da História da
Literatura Portuguesa. É, entretanto, na Epopéia da Raça Moçárabe, publicada em 1871, que
se podem encontrar trechos como este, que revelam muito do argumento teofiliano: “O povo
portuguez também teve uma poesia própria, nacional, filha do génio da raça a que pertencia,
cantando as paixões e as phases da vida, acompanhando as suas transformações, contando a sua
história mais ou menos apagada, mais ou menos original. Ninguém suspeitou tal existência;
alguns poetas, como Gil Vicente, tiraram d’ella grandes recursos de espontaneidade, mas não
com o respeito que dá a verdadeira comprehensão. (…) Procurar na intima organização da raça
mosarabe, que constitui o povo portuguez, os elementos primários que entraram na cração dos
Romanceiros, eis o que forma o objecto d’este livro. Todas as investigações seriam sem critério,
se por ventura se não acompanhar o problema do génesis da raça”. BRAGA, Teófilo. Epopêas
da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portuguesa Editora, 1871, p.5-6. Grifos nossos.
628
“A nacionalidade portugueza é formada de dois elementos; perfeitamente caracterizados na
ethnographia e na primitiva occupação do território, torna-se mais evidente esta verdade na
história da Poesia. Do Douro até ao Algarve existiam essas povoações mosarabes, que foram
sendo encorporadas no território em que Dom Affonso Henriques constituiu o seu reino; estas
povoações formam o elemento gothico-arabe da nossa nacionalidade, e a ellas pertence a grande
poesia épico-narrativa dos Romanceiros”. Idem, ibidem, p.5
629
BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.87-88.
274
incorporação e mistura do elemento árabe com o godo (luso). Segundo ele,
“do século VII ao século XIII o godo tornou-se Mosarabe ou imitador do
árabe: do século XIII ao século XV o povo continuou a reconhecer essa
influencia sustentada pelos Mixtiarabes ou árabes forros que viviam entre
as povoações christãs”. (630). Assim sendo, foi fácil “a harmonia moral
entre a população existente e o invasor, que se apropriara da civilização
helénica, abrindo novos focos de revivescência do génio grego em
Damasco e Bagdade. Os hispano-godos imitaram o viver dos árabes,
conservando as suas crenças cristãs, e formaram a população dos
Moçarabes” (631). Explicitações deste teor poderiam, como se sabe, repetir-
se. Para os nossos intuitos, não se torna necessário prolongar a evidência
probatória. O significado do “moçárabe” na sua abordagem da cultura
portuguesa está, para nós, suficientemente gravado. A ele voltaremos em
seguida. Mais proveitoso, em contrapartida, se afigura recuperar o que se
sabe sobre a função da língua em Teófilo. Será também deste modo que
nos aproximaremos do lugar ocupado pelo Brasil no seio da sua matriz
teórica. Como se verá adiante, o olhar teofiliano sobre o Brasil prolonga a
sua reflexão sobre o modo da “originalidade” cultural portuguesa.
Na História da Literatura Portuguesa, em sua edição de 1909,
desenvolverá suas ideias veiculadas desde a década de 1870, dizendo que
“a língua portuguesa, que diferenciava uma raça, era meio de expressão do
sentimento de uma nacionalidade. A escrita fixa-a, dá-lhe a norma de
analogia nas suas derivações, e modificando-a artisticamente pelo estilo
literário, torna-a pelo génio dos seus escritores, um meio de coesão da
própria nacionalidade. Terminada a época dos Descobrimentos, os
Quinhentistas fortificavam a vida da nação proclamando a cultura da

630
BRAGA, Teófilo. Epopêas da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portuguesa Editora, 1871,
p.111-112.
631
BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.103.
275
língua” (632). E se podia aceitar-se que “Camões, servindo o sentimento
nacional na epopeia dos Lusíadas, unificou a língua popular com a erudita,
que é a que se fala e que se escreve em todo o país” (633), tal fato não podia
escamotear que “fora da Literatura a língua portuguesa teve um largo
desdobramento de dialectos, devido ao forte individualismo do povo, e em
consequência da expansão histórica em um vastíssimo domínio colonial”
(634). Razão mais do que justificativa para conferir a devida importância, a
importância que Braga comprovadamente lhes reconhecia, aos Cantos e
Contos Populares do Brasil e ao seu estudo. Com sua “bagagem” teórica
marcada pelos critérios do materialismo-monista – nomeadamente quanto à
transmissão de caracteres adquiridos –, a pesquisa sobre a modificação
portuguesa nos trópicos brasileiros assumia características análogas às de
um laboratório étnico e sociológico (635).
Compreender-se-á que seja justamente neste ponto que a definição
das características culturais “portuguesas” intersecta visivelmente os
limites da própria cultura “brasileira”. E compreender-se-á, também, a
inevitabilidade de um questionamento como o seguinte: sendo o
“moçarabismo” português uma mistura do luso com o árabe, quais
poderiam ser as repercussões linguísticas deste hibridismo cultural se lhe
fossem agregados africanos e índios? À luz desta reflexão, a curiosidade
científica de Teófilo Braga para com a “cultura popular” brasileira traduz a
convicção na possibilidade de escrutinar, em diversas partes do globo, a
“revivescência” da cultura portuguesa. Afinal, “temos o dialecto do Crioulo
nas possessões da África e Cabo Verde, o Matuto, no Brasil, o Reinol ou

632
Idem, ibidem, p.109-110.
633
Idem, ibidem, p.110.
634
Idem, ibidem.
635
Nos Contos Populares do Povo Português, Teófilo faz a seguinte consideração: “Parecerá à
primeira vista estéril a investigação das tradições em um recente nacionalidade como o Brasil;
mas com a colonização deste importante país dá-se um fenómeno conjuntamente étnico e
sociológico, que poremos em relevo”. BRAGA, Teófilo. Contos Tradicionais do Povo
Português. Volume I, Lisboa: Publicações Dom Quixote, [1883] 1987, p.62
276
Indo-português, em Colombo, capital do Ceilão, em Malaca”. Certo era, de
qualquer modo, que “os dialectos do português são numerosos e têm sido
estudados proficientemente por filólogos estrangeiros e nacionais; são um
documento do poder de assimilação e de resistência do povo português”
(636). As evidências linguísticas assinalavam não apenas graus de dispersão
da presença portuguesa, mas, sobretudo, o seu substrato, essa fonte de
energias a serem revividas. Afinal, “durante quarenta anos da unificação
ibérica (1580-1640) a língua portuguesa trocada pela castelhana pela
aristocracia e homens cultos, era usada pela gente do povo, como o último
vestígio da nacionalidade, e foi ela também o estímulo da sua
revivescência” (637).
Em carta enviada a seu discípulo no Brasil, Fran Paxeco, em 27 de
Novembro de 1905, Teófilo, sem deixar de mencionar seu desafeto com
Sílvio Romero, deixava bem claras as suas intenções: “quem relancear os
dois volumes da História da poesia portuguesa, compreenderá os meus
objectivos, quando atirava a impressão dos cantos populares do Algarve, da
Madeira, da Galiza, do Brasil, afim de integrar as desmembradas tradições
lusitanas. O Sílvio anda muito longe de perceber isto. Deixo-o onde está,
evitando contactos desabonadores”(638). Tanto quanto parece, a
preocupação de bem enquadrar um lugar para o “hibridismo” na
caracterização da cultura portuguesa surge como móbil maior de Teófilo ao
debruçar-se sobre a “cultura popular brasileira”. No opúsculo “Sobre a
Novelística Brasileira” – que inicialmente serviu como prefácio à
publicação dos Contos de Romero, e que posteriormente foi agregado aos

636
BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.111.
637
Idem, ibidem.
638
Carta de Teófilo Braga a Fran Paxeco, Lisboa, 27/1111905. In: Fran Paxeco, Cartas de
Teófilo (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo).
Lisboa: Portugália, 1924, p.64-67.
277
Contos Tradicionais do Povo Português –, Teófilo Braga escreve que, no
Brasil,

“a primeira ocupação dos Portugueses fez-se por um modo pacífico, com


intuitos mercantis conciliados com a propaganda religiosa; a necessidade da
cooperação agrícola obrigou ao aproveitamento de uma raça degradada, e nesta co-
habitação permanente em um grande campo de exploração, o Português radicou a sua
tenacidade colonial pela fusão ou mestiçagem com o elemento indígena e com o
elemento negro. Este importante fenómeno histórico, donde derivam os novos
caracteres de uma nacionalidade, distingue de um modo bem acentuado o sistema de
colonização da América do Sul” (639).

Ora, Sílvio Romero, apesar de Teófilo dizer que “estava muito


longe de perceber” isto, percebera, seguramente, que a intenção de Teófilo
era justamente perscrutar na “cultura popular brasileira”, nos Cantos e nos
Contos, por si compilados, o fenômeno de modificação da “raiz” lusitana
em um meio diverso, o brasileiro. Sílvio, aliás, sabia mais do que isto.
Sabia também que o empreendimento intelectual teofiliano chocava-se com
o seu – justamente pela similitude da forma. Pela semelhante recorrência à
estética do hibridismo. Pela forma como o “moçárabe” de um – e tratando-
se do “moçárabe” com potencial de revivescência – diminuía a
peculiaridade demarcatória do “mestiço” do outro – tratando-se de um
“mestiço” talhado para vincar a unicidade e a diferenciação de carácter. Daí
que ao movimento de aproximação intelectual transatlântico expresso na
associação do açoriano com o sergipano, nas páginas da Revista de
Estudos Livres, se tenha seguido de uma acirrada polêmica, posto que,
justamente por compartilharem de uma mesma atenção ao potencial
demarcatório do estudo étnico e sociológico das literaturas – atento aos
efeitos da hereditariedade –, as duas perspectivas acabavam por concorrer
uma com a outra. É que a assunção da escala nacional como referência

639
BRAGA, Teófilo. Contos Tradicionais do Povo Português. Volume I, Lisboa: Publicações
Dom Quixote, [1883] 1987, p.62-63. Grifos nossos.
278
cultural encarava com suspeição a partilha de um mesmo “código de
originalidade” por duas culturas diferentes.

3.2. Impõe-se, agora, colocar a observação do lado de Sílvio Romero.


Dizer que ele se tratar do “duplo” brasileiro de Teófilo é, até certo ponto,
verdade. Mas não é dizer tudo: é na sua similaridade de pontos de partida
formais que radica a procura do distanciamento. Como mobilizava o
brasileiro a historicidade e, a partir desta, buscava demarcar a originalidade
cultural brasileira? Esta é, aqui, a questão a elucidar. De um aspecto não
sobram dúvidas: a Romero reconhece-se papel destacado nas narrativas
dezenovistas que buscaram fundar um padrão estético-identitário para o
Brasil (640).
Encarada nessa perspectiva, sua História da Literatura Brasileira
permite acompanhar os esforços romerianos naquele sentido. Trata-se de
uma obra dividida em duas partes distintas. Num primeiro tomo, Romero
define os elementos de uma “história natural” da literatura brasileira,
emprestando especial relevo às “condições de nosso determinismo
literário”, bem como às “aplicações da geologia e da biologia às criações
do espírito” (641). No segundo volume, uma vez estabelecidas as
demarcações teóricas, o autor desenvolve então a sua perspectiva analítica.
A concepção, aí desenvolvida, de quatro fases histórias da formação
nacional brasileira – o período de formação (1500-1750), período de
desenvolvimento autonômico (1750-1830), período de transformação
romântica (1830-1870) e período de reacção crítica, que vai de 1870 em

640
MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero. Dilemas e combates no Brasil da virada
do século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
641
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora
[1888], 1953, p.59
279
diante – completa a apresentação formal da sua obra (642). Vejamos o
respectivo sentido e os correspondentes pressupostos pré-compreensivos.
Romero foi loquaz em declarar a “morte do passado” – leia-se, do
“passado” lusitano – destacando, pelo estudo da literatura, a “originalidade
brasileira”. Quanto ao relevo dado à literatura, refira-se que – como Teófilo
Braga – Sílvio acreditava na possibilidade de coletar traços da “cultura
popular”, inventariando o que diferenciava – demarcava – o Brasil no
concerto mundial. Por isso, sua utilização da literatura ultrapassava em
muito o “fato literário”. Como ele mesmo o dizia, “a divisão proposta não
se guia exclusivamente pelos fatos literários; porque para mim a expressão
literatura tem a amplitude que lhe dão os críticos e historiadores alemães.
Compreende todas as manifestações da inteligência de um povo: - política,
economia, arte, criações populares, ciências” (643). Em termos profundos, a
“Literatura Brasileira” definia-se, para o crítico sergipano, por um
“processo de adaptação de ideias europeias às sociedades do continente”. O
flagrante recurso à ação do “meio” como elemento diferenciador,
modificador, da influência portuguesa, não é casual: advém do impacto do
materialismo monista, temperado por uma apetência de futuro – leia-se: de
superação do passado, representado pela teleologia evolucionária.
Refletindo as demarcações operadas no contexto dos diversos
“evolucionismos”, esta arquitectura ideária perfazia um movimento que ia
“da imitação tumultuária, do antigo servilhismo mental”, à “escolha, à
seleção literária e científica”. É que, para Romero, “a darwinização da

642
Nas palavras de Romero: “o positivismo filosófico francês, o naturalismo literário da mesma
procedência, a crítica realista alemã, o transformismo darwiniano e o evolucionismo de Spencer
começaram a espalhar-se em alguns círculos acadêmicos, e uma certa mutação foi-se operando
na intuição corrente. Todos os anos crescia o número dos combatentes; foram eles os primeiros
que no Brasil promoveram a reação seguida e forte contra o velho romantismo transcendental e
metafísico”. Atente-se que na periodização romeriana, destaca-se o ano de 1870 – a geração de
1870 – como sendo aquela que teria operado uma “reacção crítica” fundamental no sentido de
definir a “cultura brasileira”. Como já se disse, este movimento crítico veio na esteira do
impacto da chegada do “bando de idéias novas”. Ibidem, idem, p.60.
643
Ibidem, idem.
280
crítica é uma realidade tão grande quanto é a da biologia”. Imbuído que
estava desta “poderosa lei da concorrência vital por meio da seleção
natural”, isto é, “da adaptação e da hereditariedade”, o crítico brasileiro
perscrutava na literatura a marca da diferenciação nacional (644).
Com o exposto, pode-se perceber que, tanto a História da
Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, quanto a História da Literatura
Brasileira, de Sílvio Romero, compartilham de um mesmo cuidado para
com a comprovação factual da cultura nacional de seus países. Os
conceitos de “raça” e “meio” balizam empiricamente a linha divisória que
separava, para o açoriano, o “português” dos demais “povos ibéricos”, e,
para o sergipano, o “brasileiro” de Portugal. Só no horizonte deste escopo
se entenderá a “função estética” análoga de suas interpretações nacionais,
emblematicamente definidas como “moçarabismo” teofiliano e
“mestiçagem” romeriana. Em paralelo, outro ponto em comum nos dois
projectos culturais é a idealização de um sistema composto por “fatores
estáticos” e “fatores dinâmicos”, complementarmente articulados. Para
Romero, “a hereditariedade representa os elementos estáveis, estáticos, as
energias das raças, os predicados fundamentais dos povos; é o lado
nacional nas literaturas”. E se a hereditariedade, é compreendida como uma
constante histórica, a este “elemento estável” Romero trata de aduzir “a
adaptação”, entendida como expressão dos “elementos móveis, dinâmicos,
genéticos, transmissíveis de povo a povo”. Hereditariedade e Adaptação
eram, portanto, duas faces da mesma moeda: uma, referindo-se à escala
universal, outra à nacional; uma, representando a semelhança, outra a
diferenciação. Ecos da perspectiva naturalista da história da literatura,
considerações de quem se assume “munido do critério popular e étnico para

644
Ibidem, idem, p.63.
281
explicar o nosso carácter nacional”, e esteio da mobilização própria do
“critério positivo e evolucionista da nova filosofia social” (645).
Por isso, o estudioso pretendia estar no um exercício da atenção
creitériosa:
“todo poeta, todo romancista, todo dramaturgo, todo crítico, todo escritor
brasileiro de nossos dias tem a seu cargo um duplo problema e há-de preencher uma
dupla função: deve saber do que vai pelo mundo culto, isto é, entre aquelas nações
europeias que imediatamente influenciam a inteligência nacional, e incumbe-lhe
também não perder de mira que escreve para um povo que se forma, que tem suas
tendências próprias, que pode tomar uma feição, um ascendente original. Uma e outra
preocupação são justificáveis e fundamentais”. [Afinal], “para que a adaptação de
doutrinas e escolas europeias ao nosso meio social e literário seja fecunda e
progressiva, é de instante necessidade conhecer bem o estado do pensamento do Velho
Mundo e ter uma ideia nítida do passado e da atualidade nacional” (646).

Não surpreende, assim, que o autor entenda retomar as suas


anotações dos primeiros textos publicados no Rio de Janeiro – expostas na
primeira parte deste trabalho –, operando, em 1888, na sua História da
Literatura Brasileira, uma espécie de copy and paste analítico,
nomeadamente quanto à discussão das “principais teorias da história do
Brasil”. Ou seja, o autor trabalha a partir das suas linhas escritas em 1883 e
primeiramente publicadas na Revista de Estudos Livres. As “principais
teorias” em causa, relativas à história brasileira, eram a de Karl Friederich
von Martius, a de Thomas Buckle, a de Teófilo Braga, a de Oliveira
Martins, a dos discípulos de Comte e a dos sectários de Spencer(647).
Romero analisa cada uma delas.
Começa pela obra do botânico Karl Friederich Philipp von Martius,
autor de uma dissertação intitulada “Como se deve escrever a história do
Brasil”, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico

645
Idem, ibidem, p.64
646
Idem, ibidem.
647
ROMERO, Silvio. “Teorias Históricas e Escolas Literárias no Brasil” In: Revista de Estudos
Livres. Ano I, volume I, 1883-1884, p.203 e ROMERO, Sílvio. História da Literatura
Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora [1888], 1953, pp.64-65.
282
Brasileiro, em Janeiro de 1845(648). Segundo Romero, embora pequeno,
trata-se de um dos “mais interessantes” trabalhos feitos por escritores
estrangeiros, pois “Martius abriga-se ao grande princípio moderno das
nacionalidades, coloca-se num ponto de vista etnográfico e indica em
traços rápidos os diversos elementos do povo brasileiro”, revelando, desta
forma, os “selvagens americanos” e seus hábitos, os portugueses e “suas
vantagens de gente civilizada”. Não admira que as considerações do
naturalista alemão mereçam a anuência do crítico sergipano: na verdade,
como assentirá este último, foi “de tudo isto é que saiu o povo brasileiro”
(649). Este reconhecimento não impedia, contudo, a imputação de uma
lacuna: a de sua exposição ser “puramente descritiva”. Faltava, com efeito,
no realce da ação dos elementos raciais, um “nexo causal”. Este nexo
causal que será estabelecido, na interpretação romeriana da literatura
brasileira, pela mobilização do evolucionismo spenceriano – como veremos
adiante. Por sua vez, de decididos reparos se compõe, entretanto, a sua
apreciação da obra de Thomas Henry Buckle, “afamado autor da História
da Civilização da Inglaterra”, que, publicada em 1857 e “detalhadamente”
se ocupando do Brasil. Desta feita, está em causa a divisão das nações, feita
por Buckle, através do par analítico “moderno/primitivo”. Dentro deste
postulado, o “moderno” teria as condições naturais favoráveis, tornando a
força civilizacional superior à natureza e, no último, no pólo “primitivo”,
dar-se-ia o contrário, isto é, sem condições ambientais favoráveis, o homem
ficaria subjugado às forças naturais. Vale frisar que a análise romeriana
desta perspectiva se opões à sua aplicação ao Brasil, na medida que ditava
648
MARTIUS, Karl F. P. von, “Como se deve escrever a história do Brasil”. In: Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro . Rio de Janeiro : IHGB, n.º24, 1845. Para uma
análise da obra de von Martius, no âmbito da produção historiográfica do IHGB, consultar,
entre outros, GUIMARÃES, Manoel Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto
Histórico e Geográfico e o Projeto de uma História Nacional”. In: Estudos históricos. Rio de
Janeiro, n.1, 1988, p.5-27.
649
ROMERO, Silvio. “Teorias Históricas e Escolas Literárias no Brasil”. In: Revista de Estudos
Livres. Ano I, Volume I, 1883-1884, p.203 e ROMERO, Sílvio. História da Literatura
Brasileira. Rio de Janeir: José Olimpio Editora [1888], 1953, p.65.
283
a “falta de uma civilização primitiva brasileira”. Isto se revela, para
Romero, “falsa na descrição geral do clima brasileiro” e “em demasia
exterior [posto que] cosmológica demais” (650).
Debruça-se então Romero, com muito maior detalhe, sobre a obra
do português Teófilo Braga. Faz, contudo, a ressalva de que Teófilo não
tivera por objetivo primeiro escrever uma teoria da história brasileira,
realizando apenas alguns estudos sobre a evolução literária do Brasil. O
sergipanoo se refere às informações contidas no prólogo do Parnaso
Português Moderno, de 1877 (651), depois reproduzidas também nas
Questões de Literatura e Arte Portuguesa, obra de 1881 (652). Primeira nota
a ter em conta: nas considerações de Romero patenteia-se uma especial
atenção à noção de “hibridação”, aspecto que não pode deixar de remeter
para a interpretação que temos defendido quanto à existência de uma
acentuada concorrência entre os dois autores no âmbito da estética do
hibridismo.
Naturalmente, a expressão dessa lógica concorrencial não se dá de
uma vez por todas e de modo assumido. Ele é definida laboriosamente no
quadro de um elenco de discordâncias que remetem francamente para
aquela questão de fundo. Merece censura a Romero o fato de que “Braga
acredita que o lirismo da Europa meridional teve uma origem comum” e
que “esta fonte geral foram as populações turanas, descidas da alta Ásia”,
divididas em dois grupos, um dolicocéfalo e outro branquicéfalo. Essa
crítica tem sua razão de ser porque tem efeitos na compreensão que Teófilo
terá dos índios americanos, motivo pelo qual Romero rejeitará também o

650
Conforme Romero, o britânico, em “sua pretensiosidade de explicar puramente pela física do
globo as civilizações primitivas e actuais”, criou uma doutrina “incompleta é estéril”. A tese
sobre a história do Brasil propagada pelo autor da History of Civilizacion in England é
considerada como um “círculo vicioso”, na medida em que explica o “clima pela civilização e a
civilização pelo clima”. Para Sílvio, teorias como esta apenas “atiram-nos frases ao rosto,
supondo que nos enchem a cabeça de fatos”. Idem, ibidem, p.66-67.
651
BRAGA, Teófilo, Parnaso português moderno. Lisboa: Francisco Arthur da Silva, 1877.
652
BRAGA, Teófilo, Questões de literatura e arte portuguesa. Lisboa: A.J.P. Lopes, 1881.
284
postulado de que se tenha dado na América uma “semelhante marcha de
povos turanianos” (como defendia o açoriano), fundada na homologia,
observada na Europa, entre a “branquicefalia do basco francês e a
dolicocefalia do basco espanhol”, e manifestada, em contexto americano,
com a “suposta dolicocefalia das raças da América do Norte e a pretendida
branquicefalia geral das da América meridional”. Para Sílvio, “tudo isto é
muito largo e também muito aventuroso”, sendo, antes, “presunções que
nada têm de positivo, nada têm de provado” (653). De acordo com ele, “a
hipótese de Teófilo Braga, tirada das idéias de Retzius, Beloguet, Pruner-
Bey e Varnhagen, para ser aceite, deveria justificar os seguintes fatos”: i)
“o monogenismo das raças humanas e sua origem comum na Ásia, o que
não é nada fácil no estado atual da ciência e diante justamente dos trabalhos
de Paul Broca, que o escritor português chama sem razão em seu auxílio
[Romero dirá que Broca defendia o poligenismo]; ii) “a veracidade da
tríade de M. Muller, que defende que os povos dividem-se em arianos,
semitas e turanos, empresa difícil ante a lingüística das raças uralo-altaicas,
polinesias, africanas e americanas”; iii) “a emigração dos turanos para a
América”; iv)“a redução dos povos deste continente a esse ramo único”; e
v) “enfim demonstrar a identidade do desenvolvimento das raças
americanas e asiáticas, um impossível a olhos vistos”(654). Considera, por
fim, Romero, que “tudo o que se disser sobre a tese do asiatismo dos povos
americanos é pintar na água, ou escrever na areia”, o que o conduz a
defender a tese de Lund que afirmava ser o continente americano habitado
antes mesmo do velho mundo (655). E conclui: “admitindo a identidade das

653
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora
[1888], 1953, p.67.
654
Idem, ibidem, pp.67-68.
655
É interessante notar a ressalva cientista, feita por Romero, a respeito da origem dos povos
americanos: “Os estudos científicos sobre as raças americanas começam agora no Brasil.
Reduzem-se por ora a pequenos trabalhos sobre craniologia, lingüística e arqueologia artística e
industrial. Não existem muitos fatos demonstrados, os materiais são ainda limitadíssimos;
285
origens do lirismo português e tupinambá, como quer Teófilo Braga, o que
daí se poderá inferir para a filosofia da história brasileira? Nada. A tese do
notável português é puramente literária e não visa a uma explicação
científica de nossos desenvolvimento social” (656).
Em seguida, parte para a análise de J.P. de Oliveira Martins,
focando seu livro O Brasil e as Colónias Portuguesas. Segundo Romero, as
teses martinianas dão conta de “todo o interesse dramático e filosófico da
história nacional na luta entre os jesuítas e os índios de um lado e os
colonos portugueses e os negros de outro”. Critica, porém, o dualismo da
obra, visto ser “em grande parte de pura fantasia, e, no que tem de real, não
passa de um fato isolado, de pouco valor e duração […] que não pode
trazer em seu bojo, como um segredo de fada, toda a latitude da futura
evolução do Brasil”. De acordo com Sílvio, o erro cometido por Oliveira
Martins seria o de alçar “à categoria de princípio geral e dirigente” o que
era “um simples incidente”, fazendo da sua obra como “uma dessas
sínteses fúteis com que certos novelistas da história gostam de nos
presentear de vez em quando” (657). Será, ainda, no mesmo tom de
desconsideração que irá analisar as teorias produzidas pelo positivismo
brasileiro, detendo-se particulamente nas obras de Teixeira Mendes e
Anibal Falcão, produtoras de uma “teoria da pátria brasileira”(658). Nestas
obras, denuncia sua “comodidade” de suas interpretaçõespor estarem
ancoradas na reprodução do dualismo histórico entre germânicos e ibéricos,
reprodução para ele desnecessária e demasiadamente simétrica. Sua

entretanto, já temos uma dúzia de teorias para explicar a origem dos tupis-guaranis e dos
americanos em geral”. Idem, ibidem, p.68-69
656
Idem, ibidem, p.70.
657
Idem, ibidem, p.70
658
MENDES, Teixeira. A pátria brasileira. Rio de Janeiro, 1881. FALCÃO, Aníbal. Fórmula
da civilização brasileira. In: Diário de Pernambuco, n.º 46 a 50, 1883.
286
transportação para explicação do caso brasileiro era forçada e produto de
pura “fantasia” (659).
Mas, uma vez refutadas, em maior ou menor grau, as várias
aproximações ao fenômeno brasileiro, qual, em fim de contas, a sua própria
visão? É significativo, a este propósito, o modo como Sílvio Romero opta
por comentar a última das linhas teóricas a cuja crítica se tinha proposto,
justamente a que, nas suas próprias palavras, exprimia uma conotação
spenceriana. Dirá o seguinte:

“Uma teoria da evolução histórica do Brasil deveria elucidar entre nós a ação
do meio físico, por todas as suas faces, com fatos positivos e não por simples frases-
feitas; estudar as qualidades etnológicas das raças que nos constituíram; consignar as
condições biológicas e econômicas em que se acharam os povos para aqui imigrados
nos primeiros tempos da conquista; determinar quais os hábitos antigos que se
estiolaram por inúteis e irrealizáveis, como órgãos atrofiados por falta de função;
acompanhar o advento das populações cruzadas e suas predisposições; descobrir assim
as qualidades e tendências recentes que foram despertando; descrever os novos
incentivos de psicologia nacional que se iniciaram no organismo social e
determinaram-lhe a marcha futura. De todas as teorias propostas a de Spencer é a que
mais se aproxima do alvo, por mais lacunosa que ainda seja” (660).

Compreende-se. Se “uma teoria da história dum povo parece-me


que deve ser completa de sua marcha evolutiva [e que] deve apoderar-se de
todos os fatos, firmar-se sobre eles para esclarecer o segredo do passado e
abrir largas perspectivas na direção do futuro”; se, além disso, “seu fim não
é só o de mostrar o que esse povo tem de comum com os outros; sua
obrigação é ao contrário exibir os motivos das originalidades, das
particularidades, das diferenciações desse povo no meio de todos os
outros”; então, a tal projecto “não lhe cumpre só dizer, por exemplo, que o
Brasil é o prolongamento da cultura portuguesa a que se ligaram vermelhos
e negros. Isto é muito descarnado e seco; resta ainda saber como estes
elementos aturaram e atuarão uns sobre os outros e mostrar as causas de

659
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora
[1888], 1953, p.71.
660
Ibidem, idem, p.73.
287
seleção histórica que nos vão afastando de nossos antepassados ibéricos e
de nossos vizinhos também filiados na velha cultura ibérica” (661). A
preocupação de Sílvio Romero de fundar um padrão estético-analítico da
“cultura brasileira” anda, pois, de mãos dadas com uma mobilização da
história onde o tempo futuro ultrapassa o passado em importância, posto
ser o garantidor da ação demarcatória do nacional – via “seleção natural”.
Não é casual, portanto, que o sergipano autor de História da
Literatura Brasileira, publicada em 1888, iniciasse do seguinte modo seu
projeto estético identitário: “a história do Brasil, como deve ser hoje
compreendida, não é, conforme se julgava antigamente e era repetido pelos
entusiastas lusos, a história exclusiva dos portugueses na América. Não é
também, como quis de passagem supor o romanticismo, a história dos
tupis, ou, segundo o sonho de alguns representantes do africanismo entre
nós, a dos negros em o Novo Mundo” (662). Entrevêem-se as referências
implícitas aos clássicos padrões de explicação da “cultura brasileira”: o
“lusismo” de um Francisco Adolfo de Varnhagen (663), o “indianismo” de
um José de Alencar (664) e o “africanismo” de um Castro Alves (665). Como
vimos em capítulos anteriores, desde há muito Romero buscava a definição
de uma estética identitária que definisse a singularidade da “cultura
brasileira” perante os demais povos. Lembre-se como, em 1880, no
opúsculo A literatura brasileira e a crítica moderna, já declarava que “o

661
Idem, ibidem, p. 72-73. Grifos nossos
662
Idem, ibidem, p.55.
663
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert e
Madrid, 1ª edição 1854-1857. Para um análise da obra de Varnhagen, consultar WHELING,
Arno. Estado História e Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
664
ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Círculo do Livro, 1ª edição 1857, [s.d]. Existem
muitas obras que se dedicaram a estudar o indianismo alencariano. Indicamos, aqui, em título de
exemplo, a obra de BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2003.
665
ALVES, Castro. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s.d.], principalmente
“Navio Negreiro” e “Vozes d’África”, contidas no livro Os escravos, de 1868. Para uma análise
bio-bibliográfica de Castro Alves, indicamos o recente trabalho de COSTA E SILVA, Alberto
da. Castro Alves:um poeta sempre jovem. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
288
índio não é o brasileiro, mas o português também não; a alternativa entre o
cauin e o vinho verde é antigalha – carunchosa. É preciso descortinar entre
os dois extremos, alguma coisa de melhor” (666).
Na sua História da Literatura Brasileira, estampada oito anos
depois das linhas acima e poucos dias antes da Abolição da Escravidão no
Brasil, suas ideias ganham maturidade e maior solidez formal. Daí que
dissesse que a história do Brasil “é antes a história da formação de um tipo
novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária em que predomina a
mestiçagem. Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas
ideias. Os operários deste fato inicial têm sido: o português, o negro, o
índio, o meio físico e a imitação estrangeira” (667). De transcendência
máxima era, para Romero, estudar “tudo quanto há contribuído para a
diferenciação nacional”, sendo esta diferenciação entendida,
simbolicamente, como o “critério novo”. Detalhe não desprezível: o critério
da novidade. Ele assinala o lugar nevrálgico da originalidade, preocupação
maior de Romero no âmbito da fundação estética da “cultura brasileira”,
intuito identitário que, ao laborar em torno de uma alteridade definida, em
boa medida, pelas propriedades do contraste, redundava, segundo o viés
romeriano, num axioma afinal bem simples: “tanto mais um autor ou um
político tenha trabalhado para a determinação de nosso carácter nacional,
quanto maior é o seu merecimento [do mesmo modo que, ao contrário,]
quem tiver sido um mero imitador português, não teve ação, foi um tipo
negativo” (668).
O crivo analítico de Sílvio, como em suas linhas de 1880, seguia
apontando para Portugal, com o objetivo de demarcar os “produtores” da
“cultura brasileira” relativamente ao lusitano. Assim explanava o autor:
666
ROMERO, Sílvio. A literatura brasileira e a crítica moderna. Rio de Janeiro: Imprensa
Industrial, 1880, p.75-76.
667
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora
[1888], 1953, p.55-56. Grifos nossos.
668
Ibidem, idem, p.56. Grifos nossos
289
“Só contemplarei, portanto, como nossos os nascidos no Brasil, quer
tenham saído, quer não, e os filhos de Portugal, que no Brasil viveram
longamente, lutaram e morreram por nós, como Anchieta e Gonzaga nos
tempos coloniais, e, como políticos, nos tempos modernos, Clemente
Pereira e Limpo de Abreu. Todos estes tiveram do reino só o berço, sua
vida foi brasileira e pelos brasileiros” (669). De alguma maneira, este
Romero para quem “os tempos passados são como mortos” e que, com base
nesse pressuposto, neles se permite instalar aqueles, e apenas aqueles, que
se acordavam com a sua ideia de originalidade e que compunham essa
originalidade como critério maisor de uma história rescrita a partir dessa
obsessão presente e dessa “antevisão”, a posteriori, do que o passado
deveria ser, realiza aquilo que Fernando Catroga, parafraseando Schlegel,
chamou de “previsão ao contrário” (670). Com efeito, para Romero, o
critério da originalidade e da diferenciação nacional é a constante analítica
de sua genealogia mestiça. Combinado com certo anseio romântico, pela
preocupação com a idiossincrasia nacional, cola-se, porém, à batuta
empiricista do positivismo heterodoxo. Herbert Spencer lhe dará o norte
evolutivo, chave-mestra da diferenciação brasileira face ao passado
português, germe da originalidade mestiça. Afinal, “um povo que se forma
não deve só pedir lições aos outros; deve procurar ser-lhes também um
exemplo” (671).
Num tal cenário, como estranhar a concorrência pela matriz de
hibridização cultural que o interesse de Teófilo Braga no estudo das
tradições, modinhas e lendas brasileiras – tomado, enquanto
“prolongamento” das tradições portuguesas em novo contexto – vem abrir?
Como não aceitar que é exatamente neste ponto que sua estética relacional
669
Ibidem, idem, p.58.
670
CATROGA, Fernando. Caminhos do Fim da História. Coimbra: Quarteto, 2003, p.79.
671
ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora. Coleção Documentos brasileiros, dirigida por Octávio Tarquínio de Sousa. 3ª
Edição organizada e prefaciada por Nelson Romero, [1888], 1943, p.43.
290
entra em choque com a de Sílvio Romero, conformando, a um primeiro
nível, um confronto ditado pela similaridade formal, um choque pela
semelhança do modelo original idealizado? E como não perceber, de igual
modo, as diferenças que a partir dessa base comum se levantam? Afinal, a
libertação do telos histórico implícito na sociologia materialista monista de
Teófilo Braga será combatida pelo objectivo demarcatório de Sílvio
Romero, enformado pelo telos evolucionista de matriz spenceriana que
justificava a originalidade e autonomia da cultura brasileira. Dito de outro
modo: a “persistência” lusitana nos trópicos que, para Teófilo, representará
o espectáculo neolamarckiano e monista da readaptação de uma “raiz”
cultural em novo meio ambiente – o laboratório tropical brasileiro –, entra
em forte choque com a demarcação pela história da originalidade de um
povo em formação, como era o brasileiro, consoante a explicação
nacionalista de Romero. Demarcações de vária ordem, portanto. Não eram
as únicas combinatórias possíveis. Porque se este tipo de dispersões
hermenêuticas e de modelos concorrenciais atuava à escala luso-brasileira,
definindo, nesse jogo demarcatório, os contornos de cada uma das culturas
nacionais implicadas.
Dito isto, importa ter presente que outro tanto sucedia,
paralelamente, no âmbito interno brasileiro. No âmbito escalar regional
também se reproduziam aqueles alinhamentos, aquelas mobilizações
teóricas, aquela mesma busca de definição identitária. Mesmo se realizada,
tão somente, a título exploratório, a aproximação a esse processo
constituirá o nosso derradeiro investimento analítico.

291
4. “Riograndeseses” e “Sertanejos”: a intersecção portuguesa do
regionalismo brasileiro.

De acordo com a nossa hipótese, o regionalismo brasileiro


representou também uma forma de “administrar” o “passado português” no
Brasil. Dito de outro modo, a fundação de estéticas culturais e identitárias
que apelam à escala regional terá ativado, por sua vez, mobilizações da
história no sentido de “naturalizar” (consoante o espectro materialista-
monista) a “presença” do “português” na formação dos tipos regionais
brasileiros. Quererá isto dizer, de algum modo, que passamos a indagar a
construção de “mestiços regionais”, se a expressão é permitida? Até certo
ponto, pode considerar-se que sim, que intentamos, afinal, aferir do
desdobramento processado pelo “efeito” romeriano e pela obsessão pela
originalidade, de uma matriz nacional para um ambiente regional.
Vejamos, a partir de dois estudos de caso, os contornos desta
percepção para o período em estudo. A análise a que nos propomos, tem
carácter exploratório. O nosso suporte empírico constará, exclusivamente,
do opúsculo de Víctor Valpírio, “Contos Rio-Grandenses (Introdução)”,
escrito em Porto Alegre, em 1872, e de um fragmento da magistral obra de
Euclides da Cunha, Os Sertões: campanha de Canudos, que veio à estampa
em 1902. Nos dois casos, ocupar-nos-emos apenas com os aspectos
relevando de determinada mobilização da história, e, mesmo aí, somente
com aqueles em que essa mobilização se faz a pretexto de determinado
entendimento ou proposta analítica referente à escala luso-brasileira, mais
propriamente à sua “negociação” em âmbito regional. Damos assim lugar,
é certo, a uma compressão momentânea do nosso objeto de estudo. Esse é,
de forma declarada, o nosso intuito. A problemática de fundo é a mesma,
mas a possibilidade de lhe apreciar os efeitos a níveis não coincidentes com
as esferas nacionais de relacionamento é desafio indeclinável para captar o
292
fenômeno da multiplicação de escalas característico de qualquer estratégia
de delimitação (672) e uma das manifestações do caráter configuracional das
relações luso-brasileiras do período em questão.
Publicado em Porto Alegre, no número cinco da Revista Mensal do
Partenon Literário (673), em Novembro de 1872, o opúsculo intitulado
“Contos Rio-Grandenses (Introdução)” simboliza claramente uma busca da
“identidade regional” propulsionada a partir de um “acerto de contas” com
Portugal. Um “acerto” que tem o endosso do naturalismo, tão caro ao
repertório teórico disponível naquele contexto. O autor, Victor Valpírio,
inicia chamando a atenção para a premência de “fazermos independência
literária, e estabelecermos na federação das letras república à parte”.
Rápido se surpreende o mesmo sentido estético da americanização, já
observado no manifesto republicano de 1870. A opção de ressaltar o
“cunho americano” na produção literária, o faz chamar atenção para o “raio
de sol das Américas, que doira as nossas frontes juvenis [e que] espelhar-se
brilhante nas produções da musa dos brasileiros” (674).
O subentendido da aposta americana de Valpírio comporta a
correção de alguma excessiva reverência para com o legado e a capacidade
referencial europeia: “Não modelemos tanto as nossas aspirações pelo
cadinho europeu, nós que na mais opulenta plaga lemos a epopéia
estupenda da criação do livro infinito da natureza. De originalidade ou ao

672
MARTINS, Rui Cunha. O Método da Fronteira. Radiografia histórica de um dispositivo
contemportâneo (matrizes ibéricas e americanas). Coimbra: Almedina, 2008.
673
Sobre a Revista Mensal do Partenon Literário consultar CÉSAR, Guilhermino. História da
Literatura do Rio Grande do Sul (1737-1902). Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro/ Corag,
2006, principalmente o capítulo “O grupo do Partenon Literário”, pp.181-200, e também
HESSEL, Lothar. O Partenon Literário e sua obra. Porto Alegre: Flama, 1976. O “programa”
do Partenon Literário de Porto Alegre foi publicado na revista Letras de hoje, n.40, 1980, pp.17-
19.
674
Assim se manifestava Victor Valpírio: “Dos ombros da náiade do Amazonas afastemos o
manto servil da imitação européia, pesado para o nosso clima ardente, e demos-lhes as vestes
leves, gentis, da virgem das florestas natalícias”. VALPÍRIO, Víctor. “Contos Rio-Grandenses
(Introdução)”. In: Revista Mensal do Partenon Literário: 2ª série. Novembro de 1872, n.º 5.
Porto Alegre: Tipografia do ‘Constitucional’, 1872, pp.41.
293
menos naturalização da ideia, precisa a literatura pátria”. Num país de
dimensões continentais, fácil era interpretar a diversidade natural e
climática como apelo à mobilização da escala regional para a constituição
de um referente estético primordial. Aliás, nas palavras do autor, “segundo
a região, clima ou natureza do país, são as condições de vida dos povos;
outra a face predominante do seu carácter; outras as suas inclinações
naturais, o seu sentir social: como que todos os povos têm uma alma natal”
(675).
Se o apego à natureza como produtora de originalidade estético-
cultural parece assim inquestionável (676), importa não o entender como
indicador de uma menor atenção à história, nem como incapacidade para
estruturar, sobre a história e a partir dela, essa vertente tópica da construção
identitária que é o complexo acerto de contas com o passado. O apelo ao
espaço não significa o esquecimento do tempo: ao contrário, naturaliza-o,
sedimenta-o. Quem não distingue “em uma roda de brasileiros o filho de
Portugal?”. Para Valpírio, “não é preciso que ele fale para indicar-se-lhe a
naturalidade!” (677). Não era verdade que, como rezava esse opúsculo de
1872, “Portugal é de algum modo nosso avoengo; nossos antepassados se
entroncarão na família lusitana”? A questão era a de que o liame entre
gaúchos e portugueses se traçava pela negatividade, na medida em que “de
comum temos a língua que falamos, já com acentuada cor brasileira, a casa
de Bragança e Bourbon, cujo cetro agrilhoa o gordo costado lusitano e a

675
Idem, ibidem, p.42. Grifos nossos.
676
Outro elemento que parece evidente é o processo de “naturalização da ideia”, certamente eco
da divulgação do “bando de idéias novas” em Porto Alegre, como provam as elogiosas frases de
Sílvio Romero à acção de Carlos von Koseritz. Sobre as demarcações nativistas gaúchas sob
influência do pensamento de Kosertiz, consultar GANS, Magda Roswita. Presença Teuta em
Porto Alegre no século XIX (1850-1889). Porto Alegre: Editora da UFRGS/ANPUHRS, 2004,
principalmente o capítulo “A construção dos limites étnicos pelos teutos de Porto Alegre.
Discursos intelectuais e representações coletivas”, pp.111-210.
677
Idem, ibidem, p.42-43.
294
um pouco mais franzina lombeira brasileira, e instituições caducas,
desprestigiadas, que mutuamente se copiam” (678).
Terreno aberto, por conseguinte, para todo o gênero de exercícios
de diferenciação, forçando a linha divisória a ganhar nitidez, a ganhar o
recorte de uma “mestiçagem” diferencial, não já estruturada sobre o
“brasileiro” mas sobre o “rio grandense”, conceito e escala capaz, tanto
quanto aquele, de fundar a separação em relação ao português. Pois “no
sangue do nosso povo corre, de mescla com os portugueses, gotas de outra
raça; em nossa imaginação pululam outras ideias, em nosso coração outro
sentir e em nossa alma outras ambições”. Para Valpírio,

“não é o bom lavrador do Minho, que após prolongado trabalho em


suas geiras descança ao crepitar dos velhos cepos no fogo da lareira, – o
audaz gaúcho que voa nos pampas do sul montado no furioso bagual, tendo
por pátria a solidão sem fim, sem amores nem família, sem laços que o
detenham em sua vida errante! Não é o barqueiro do Douro, não é o
saudoso pescador do Tejo, – o intrépido jangadeiro dos mares do norte, que
no frágil lenho arrosta a sanha do oceano seu descôr; – o robusto caboclo
do Pará, que entronizando na piroga corta com o remo subtil as argentas
escamas do rei das águas! O trabalhador da Beira, que passa longos serões
ao lado do fogo na debulhada do trigo, – das não é o escravo brasileiro, que
ao cantar do galo à meia-noite, mal dormido, corre ao som do sino da
charqueada, tremendo de frio que corta, sob o açoite ameaçador do capataz,
a cancha, para matar bois até dia alto, e daí até a noite lidar com carnes:
isto, meses seguidos, uma safra inteira” (679).

678
Idem, ibidem, p.42.
679
Idem, ibidem, p.42-43.
295
Compreensivelmente, dado que a referencialidade portuguesa surge
como algo a ser superado, o recurso à história surge como o móbil
organizador desta renegociação memorial. Falará, por isso, Valpírio, “do
velho e decadente Portugal, mortuário esquife onde repousam para sempre
as glórias de um povo ilustre, que há dois séculos conduz à sepultura a
dinastia de Bragança, fatal coveiro, – ao Brasil, que, ainda envolto nas
fachas da infância, prega os olhos cintilantes, onde bóiam inebriadas as
aspirações do século, no véu azul que venda o horizonte futuro” (680). O
quadro traçado é claro: na busca pela originalidade estética dos Contos Rio-
Grandenses, a “herança” portuguesa é entendida como o referente do
passado a ser superado. Tal como verificado à escala nacional, a fundação
de uma originalidade cultural gaúcha passa, assim, pelo processo de
demarcação de fronteiras identitárias que mobilizam, também elas, o
passado “português” como ultra-passado. Veja-se, a título exemplar, o
retrato desse português prisioneiro da sua própria herança, tal como
descrito no discurso gaúcho: “O gênio português, lidador cansado, de alvas
cãs à mercê dos ventos, assenta-se à beira da estrada, inválido hoje, a
embeber-se nas cismas de um passado venturoso de poderio e glória;
rememorando um por um todos os seus feitos grandiosos nas éras que já lá
vão. Volve os olhos saudosos ao passado, relê folha por folha a história
grandiosa do seu arrojo e génio, e de seus lábios frios com o bafejar da
noite, ao ver tumultuariamente desfraldarem o estandarte do século nas
ameias do progresso os povos viris, escapam-se as palavras: «Ai! Já não
posso mais!»”(681).
Não desconhecemos que o processo da construção da identidade
regional no Rio Grande do Sul foi influenciado por outros elementos, não

680
Idem, ibidem, p.43.
681
VALPÍRIO, Víctor. “Contos Rio-Grandenses (Introdução)”. In: Revista Mensal do Partenon
Literário: 2ª série. Novembro de 1872, n.º 5. Porto Alegre: Tipografia do ‘Constitucional’,
1872, pp.43.
296
limitados, nem sequer obrigatoriamente reportados à referencialidade
portuguesa (682). Para os nossos intuitos, porém, afastados da problemática
concreta da identidade reiograndese ou gaúcha e seus componentes
históricos, resulta óbvia uma linha de imbricação que, envolvendo os
esforços demarcatórios verificados às escalas transnacional (luso-
brasileira), nacional (portuguesa e brasileira) e regional (gaúcha) (683),
suporta razoavelmente bem a nossa hipótese de trabalho prévia. Aliás, no
mesmo sentido parece apontar a outra via de inquérito, respeitante, desta
feita, conforme se recordará, ao espaço nordestino. Também para a
definição da cultura sertaneja foi necessário um retraçar de fronteiras que
implicou as configurações luso-brasileiras em “solo” metafórico regional.
Neste ponto, não hesitamos quanto à conveniência de tomarmos o
livro Os Sertões: campanha de Canudos, de Euclides da Cunha, como
narrativa estética seminal. Como é sabido, a mencionada obra euclidiana,
estampada em 1902, possui destacado papel no âmbito da cultura brasileira
(684), fato que mereceu a dedicação de muitos intérpretes (685). Contudo, o

682
Consultar, entre outros, OLIVEN, Rubem George. A Parte e o Todo. A diversidade cultural
no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 1992 entre outros.
683
As relações entre nacionalismo e nativismo não escaparam aos comentaristas da época. Eça
de Queirós, por exemplo, em crônica publicada na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em
1896, fazia as seguintes considerações sobre o movimento nativista no Brasil: “e é certo ainda
que muitos moços, com a ingenuidade um pouco tumultuosa que é própria da nossa raça,
confundindo nativismo com nacionalismo, tivessem concebido o sonho de um Brasil só
brasileiro. Estas idéias e interesses, tendo um fundo idêntico de negação sem dúvida se
juntariam, atravancariam a rua com o seu bando e a sua bandeira, e por motivo daquela
excitação contagiosa, que tanto prejudica as sociedade meridionais, encontrariam apoio, por um
momento, entre multidões crédulas e com os nervos ainda abalado por uma dura guerra civil.
Mas essa influência do nativismo só podia ser (como foi, creio eu) muito transitória, no meio de
uma nação tão amorável, tão generosa, tão hospitaleira, tão européia e de tão vasta fraternidade
como é o Brasil, para sua grande honra entre as nações”. Na mesma crônica, Eça relacionava o
apelo ao nativismo no âmbito do crescimento da influência “yankee” no Brasil, percebendo,
assim, as imbricações escalares no âmbito identitário do final do século XIX. QUEIRÓS, Eça.
“Nativismo”. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamim (org.). Ecos do Brasil: Eça de Queirós,
leituras brasileiras e portuguesas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p.156.
684
ZILLY, Berthold. “A Reinvenção do Brasil a partir dos sertões: como Canudos é a
quintessência do sertão, e o sertão a quintessência do país, o livro de Euclides da Cunha "é" o
país, ele reinventa o Brasil, contribuindo para a idéia que a nação tem de si mesma”. In: Revista
Humboldt Ano 42, 2000, n.º 80, p. 44-51.
297
que aqui nos interessará em Os Sertões será, especificamente, o momento
em que, para estabelecer um “retrato” do sertanejo, Euclides da Cunha
estabelece uma dialogia estética com um específico “retrato” português. E
se, ao longo de Os Sertões, a demarcação da originalidade cultural do
sertanejo, habitante do interior do nordeste brasileiro, se assume como
pedra-de-toque da obra, deve dizer-se que, nessa sua busca pela melhor
definição das populações do hinterland brasileiro, Euclides da Cunha não
hesita em apelar à história como suporte da sua indagação identitária. Não
hesita, de igual modo, em “convocar” o passado português, gerindo-o em
articulação com o perfil desenhado para um mestiço brasileiro
regionalmente definido.
Por que “regionalmente” definido? Porque, não havia, para o
Euclides de 1902, “um tipo antropológico brasileiro” (686). E por que a
“gestão” do referente português? Por uma dupla razão: primeiro, pela
utilização da obra de Oliveira Martins, que Euclides menciona
expressamente, como fonte explicativa sobre quem eram os portugueses
que para o sertão tinham ido; segundo, pela mobilização histórica no
sentido de realçar a “herança” lusitana como ingrediente na formação do
ripo regional do sertão. Para o autor de Os Sertões, no interior nordestino
sobrevivia “uma grande herança de abusos extravagantes, [a qual,] extinta
na orla marítima pelo influxo modificador de outras crenças e de outras
raças, no sertão ficou intacta” (687).

685
Estando, designadamente, neste caso, as nossas próprias incursões pela obra euclidiana, seja
quanto ao processo intelectual do contato de Euclides da Cunha com o interior do nordeste
brasileiro seja quanto ao papel fundante de sua obra numa matriz cultural brasileira. Para a
primeira questão, ver PAREDES, Marçal de Menezes. “Nacionalidade brasileira e projeto
moderno: entre a incorporação da diferença e a introjeção da culpa”. Revista de História das
Ideias. Vol.23. Coimbra: Faculdade de Letras, 2002, pp.545-574; para a segunda, PAREDES,
Marçal de Menezes. Memórias de um ser-tão brasileiro. Tempo, história e memória em ‘Os
Sertões’ de Euclides da Cunha. Curitiba: Juruá, 2002. Neste último trabalho, dicutem-se as
diferentes interpretações da obra euclidiana.
686
CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. Edição crítica de Walnice
Nogueira Galvão. São Paulo: Editora Ática, 2000, p.84.
687
Idem, ibidem, p.125.
298
E, de fato, tão intacta ficara, no sertão, a marca portuguesa que
trouxera esses “abusos extravagantes”, que Euclides da Cunha mais não faz
do que buscar inspiração, rquitetando seu discurso sobre os quadros de
autoria de Oliveira Martins, como que decalcados pelo autor de “Os
Sertões” ao descrever essa herança lusa:

“trouxeram-na as gentes impressionáveis, que afluíram para a nossa terra,


depois de desfeito no Oriente o sonho miraculoso da Índia. Vinham cheias daquele
misticismo feroz, em que o fervor religioso reverberava à candência forte das
fogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na Península. Eram parcelas do mesmo
povo que em Lisboa, sob a obsessão dolorosa dos milagres e assaltado de súbitas
alucinações, via, sobre o paço dos reis, ataúdes agoureiros, línguas de flamas
misteriosas, catervas de mouros de albornozes brancos, passando processionalmente;
combates paladinos nas alturas… E da mesma gente que após Alcácer-Quibir, em
plena «caquexia nacional», segundo do dizer vigoroso de Oliveira Martins,
procurava ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior das
esperanças messiânicas” (688).

No contexto da obra euclidiana, a referência direta ao episódio de


Alcácer-Quibir, que Oliveira Martins considera um dos marcos da “morte”
de Portugal, é mobilizada por Euclides da Cunha como a prova de que o
sertanejo representava um caso de “atavismo” na história. No sertão
brasileiro remanescia a sobrevivência de algo morto: Portugal. De outra
forma não se entenderá a explicação do sebastianismo “sertanejo”,
manifesta na figura de Antônio Conselheiro, líder político-religioso de
Canudos, que ecoava a crença no retorno de D. Sebastião. Como não se
entenderá a insistência posta por Euclides na mesma tónica: “considerando
as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos que as provocam,
irresistivelmente nos assaltam, empolgantes, as figuras dos profetas
peninsulares de outrora – o rei de Penamacor, o rei da Ericeira, errantes
pelas faldas das serras, votados ao martírio, arrebatando na mesma
idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio, as multidões

688
Idem, ibidem. Grifos nossos.
299
crendeiras” (689). Euclides, é sabido, não se furtou, ao longo de toda a sua
obra, a fazer inúmeras considerações acerca do “funcionamento” do tempo
(690). No caso da sua explicitação sobre o atavismo sertanejo, ressoava,
como sobrevivência de um passado supostamente “morto”, um lastro da
herança portuguesa. Ou seja, é precisamente com a sua particular
predisposição para com o elemento temporal que nos deparamos. A
demarcação identitária do tipo regional sertanejo, é, assim, também o
resultado de um encontro com a história. Com diferentes momentos
históricos, visto tratar-se, na versão euclidiana, de um processo temporal de
justaposição. Uma “justaposição histórica” que se calca “sobre três
séculos” e que é

“Exata, completa, sem dobras. Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade


sertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda na
atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doudos, o Miguelinho e o Bandarra.
Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo político do sebastianismo.
Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador,
nos sertões do Norte” (691).

Fiquemos por aqui. A “justaposição histórica” de nos alerta


Euclides da Cunha não não serve, apenas, para pensar o caso das
imbricações escalar que se suporpõe em níveis diferentes: um apelo à
discussão dos limites simbólicos em escala transnacional, nacional e
também visto em nível regiona. Desta feita, todos estes âmbitos escalares
fazem parte de desdobramentos do discurso identitário. Nesse processo,

689
Idem, ibidem, p.125-126.
690
A imbricação da delimitação cultural com a demarcação da história é clara desde a
introdução de Os Sertões, como se vê no seguinte excerto: “O jagunço destemeroso, o taberéu
ingênuo e o caipira simplório, serão em breve tipos relegados às tradições evanescentes, ou
extintas. Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dos
princípios imediatos de uma grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada ou
equilíbrio, que lhes não permite mais a velocidade adquirida pela marchas dos povos neste
século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo. A civilização avançará nos sertões
impelida por essa implacável «força motriz da História» que Gumplowicz, maior que Hobbes,
lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes”.
Idem, ibidem, p.13-14.
691
Idem, ibidem, p.126. Grifos nossos.
300
couve às interpretações da história um papel duplo: seja como garantidor
das novas referencialidades escalares, seja como agente diferenciador em
estéticas concorrenciais. Em todos os casos, contudo, ressoa indelével o uso
da história como recurso probatório mais crível, como instrumento de
contrução e de reconstrução de memórias forjadoras de indentidade. Numa
palavra: como mecanismo central renegociador dos sentimentos de
pertencimento no seio das configurações culturais luso-brasileiras.

301
CONCLUSÃO: AS FRONTEIRAS CULTURAIS
LUSO-BRASILEIRAS.

Nos finais do século XIX, as culturas portuguesa e brasileira


entregam-se a um complexo esforço demarcatório – ao mesmo tempo
teórico, político e identitário –, cujo resultado mais visível é uma atmosfera
de tendencial afastamento cultural entre ambas, quando não de obsessiva
aposta na diferenciação. No seguimento da nossa investigação, não pode
ser outro o eixo conclusivo primordial. Afinal, foi possível verificar que
aquele investimento demarcatório realizado à escala transatlântica e
transnacional – configuracional – é parte integrante e indispensável da
própria definição de cada uma das escalas nacionais de referência. Como se
o reconhecimento das culturas nacionais envolvidas fosse inabarcável à
margem da clarificação do relacionamento entre Portugal e Brasil.
Acrescente-se, por fim, a estas dimensões, a percepção do lugar de
manifesta nuclearidade ocupado pela história nestes processos – evidente
na centralidade tomada pela problemática da “origem” – e teremos aqueles
que podem considerar-se, em termos genéricos, os eixos conclusivos de
maior relevo a que conduziu a análise efetuada sobre a realidade cultural
luso-brasileira para a conjuntura histórica de 1870-1910. Uma análise
estruturada, por sua vez, sobre três patamares de inquérito.

302
A identificação de um âmbito relacional marcado por intensa
circulação de informação e por intensa actividade argumentativa entre
ambos os lados do Atlântico – por nós identificado enquanto configuração
luso-brasileira –, obrigou-nos a uma caracterização dessa mesma escala,
atenta à sua respectiva funcionalidade. Nesse contexto, mereceram
particular destaque quer as redes discursivas nela atuantes, quer os modos
de relacionamento com mais frequência ativados, quer ainda os modelos
interpretativos desenvolvidos, em tonalidade concorrencial, sobre o próprio
sentido dessa escala de caráter configuracional. Em relação às redes
discursivas observaram-se a que, partindo da reflexão política,
desembocava na alegoria da “comunidade de sangue” luso-brasileira, por
um lado, e a que, partindo da partilha científica dinamizada no seio do
positivismo e do republicanismo, desembocava na alegoria dos “povos
irmãos” como expressão da busca pela “fraternidade universal” à dimensão
luso-brasileira, por outro. No tocante aos modos de relacionamento,
abordou-se o recurso fosse à linha da dissensão, fosse à linha do consenso
– esta última averiguada a pretexto do comemoracionismo camoniano –
para a produção de efeitos negociais entre as duas culturas. E concedeu-se,
enfim, uma atenção às interpretações concorrenciais. Isto permitiu a
identificação de três eixos de entendimento sobre o relacionamento luso-
brasileiro: o primeiro, que chamámos de derivativo, apontava para a
consideração do Brasil como prolongamento de Portugal no continente
americano; o segundo, denominado convergente, assinalava a associação
de brasileiros e portugueses no âmbito da cientifização destas sociedades
no seio do positivismo republicano; o terceiro, propagado pelos que
chamados cultores do distanciamento, incidia numa separação identitária
do Brasil através da incorporação de Portugal como um ingrediente, entre
outros, de uma “brasilidade” original e autônoma.

303
Mediante o desenvolvimento de um segundo patamar de inquérito,
pretendeu-se, uma vez constatada e demonstrada a vigência de uma
configuração cultural luso-brasileira, direcionar a pesquisa para aquilo que,
teoricamente, a fundamentaria: o “repertório teórico” disponível para
pensadores portugueses e brasileiros em finais do século XIX. Nesse nível,
vieram à tona as condições históricas, políticas e autorais de mobilização
do quadro teórico trabalho, bem como os defazamentos e paralelos
alinhamentos, profundos ou ocasionais, a que deu lugar a recepção da
bagagem doutrinária. Com este fito, surpreendemos a existência de
movimentos correlatos de renovação cultural nos dois países, autorizando o
tratamento conjunto das “portuguesas” Questão Coimbrã e Conferências
do Casino Lisbonense e da “brasileira” Escola do Recife, bem como, no
quadro deste processo de crítica cultural, a formação de uma frente
cientista luso-brasileira. Esta última, inicialmente incrementada pela
difusão do positivismo como esteio crítico da metafísica, do
anticlericalismo e do ultramontanismo, evoluirá, através da dispersão
gradual das teorias naturalistas disponíveis no final do século XIX, no
sentido da produção de demarcações várias – primeiramente entre níveis de
ortodoxia e heterodoxia –, perfazendo eixos teóricos em nível transnacional
luso-brasileiro, a saber: o eixo ultraortodoxo, o demoliberal, o materialista
monista. Em todos estes casos, os pressupostos atinentes aos variados
“evolucionismos” existentes em escala luso-brasileira acusaram, por sua
vez, diferentes formas de mobilização da história, tornada critério
nevrálgico dos fenômenos demarcatórios.
A verificação do lugar da história na configuração cultural luso-
brasileira, antevista nos patamares anteriores, do mesmo modo que a
verificação do potencial delimitador que se lhe reconhecia em sede de
negociação e de redefinição de fronteiras político-culturais, conduziram a
investigação bem ao cerne do problema identitário luso-brasileiro: a

304
problemática da originalidade. Deste ponto de vista, foi possível assinalar
duas principais linhas de força. Em primeiro lugar, uma inversão produzida
no âmbito do critério do julgamento moral e das “lições da história”. Com
base em O Brasil e as Colónias Portuguesas, de J. P. de Oliveira Martins,
percebemos uma compreensão do Brasil como o “herdeiro” americano dos
navegadores portugueses e uma leitura da sociedade brasileira como
revivescência derivada do período áureo da cultura lusitana; mas, ao invés
disto, notamos, em contraposição, o brasileiro Manoel Bomfim, em sua
obra América Latina: males de origem, lançar a “orgânica” ligação
portuguesa ao “tribunal da história”, invertendo o pressuposto martiniano
da “herança” e condenando-o enquanto mal de origem brasileiro. Por seu
turno, uma segunda linha de força pode definir-se como uma concorrência
no recurso à forma da hibridização cultural enquanto critério de
originalidade, depreendendida a partir do confronto entre as obras de
Teófilo Braga e Sílvio Romero. Por um lado, a observação de uma comum
apetência estética pelo hibridismo – expresso nas figuras do moçárabe
“português” e do mestiço “brasileiro” –, no momento de atribuir marca de
originalidade às culturas “portuguesa” e “brasileira”, é fator de
aproximação entre ambos os pontos de vista. Por outro lado, contudo, essa
similitude, ao revelar-se concorrencial na disputa pela singularidade – em
paralela atribuição da diferença nacional baseada no critério da “forma
híbrida” –, imporá uma estratégia de enfrentamento e uma pugna pelo
afastamento das fronteiras culturais e políticas. Tendências, igualmente
verificáveis em outros âmbitos escalares: o deslocamento do nosso campo
de observação para os contextos regionais brasileiros (analisados a partir
das construções identitárias do “sertanejo” e do “rio-grandense”),
delineadas a título exploratório, conferiu razoável dose de credibilidade à
hipótese de que as escalas infra-nacionais são, também elas, participantes
dos referidos processos de arquitetura identitária. As pistas apontam no

305
sentido de que as culturas regionais definiam a sua própria originalidade e,
por isso, os critérios da sua própria diferença à medida em que também o
fazia a escala nacional. Em ambos os casos, a assunção do afastamento
com Portugal parece fazer-se em paralelo com a demarcação das
respectivas matrizes identitárias.
Cabe ainda apontar para uma potencial averiguação, em outros
contextos – e para além deste estudo – da fortuna de perscrutar o uso
mobilizador da história na contrução de matrizes identitárias. Daqui
surgiriam outras linhas de desenvolvimento desta pesquisa. O certo é que –
e esta é nossa convicção –, o esforço de fundamentação identitária em
várias escalas potenciais envolvidas não foi – nem é – exclusividade do
contexto luso-brasileiro entre 1870-1910. O processo de demarcação entre
as culturas portuguesa e brasileira não deixará de ser questionado com
regularidade, quer de um quer de outro lado do Atlântico. Tanto assim que,
poucas décadas depois, Gilberto Freyre se viu na necessidade de lhe
conferir um sentido, propondo um entendimento luso-tropical destes
mesmos fenômenos. Como se compreende, ao entregar-se a semelhante
tarefa, Freyre não poderia ter deixado de mergulhar, nessa atmosfera de
finais do século XIX em que, de modo significativo, as matrizes identitárias
que ele pretendia estudar haviam merecido particular investimento político
e doutrinário. Avaliar a atenção concedida por Freyre – na sua elaboração
teórica e nas suaa mobilizações para além do eixo luso-brasileiro –, é
matéria ainda por trabalhar. A ventura de testar o uso das ideias e dos
princípios teóricos mobilizados pelos autores estudados neste estudo, em
outros contextos – e dando margem a fundamentação de outras
manifestações identitárias – é assunto, porém, para outras investigações e,
com certeza, para outras escalas.

306
FONTES

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