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Paris, 1929
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Instituto René Guénon
de Estudos Tradicionais
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para a língua portuguesa.
Copyright() Abdel Wahid Yebya
René Guénon

AUTORIDADE
ESPIRITUAL

PODER
TEMPORAL
PRÓLOGO
Não temos o hábito, em nossos trabalhos. de nos
referir à atualidade imediata, já que o que constantemente
temos em vista são os princípios, que são, poder-se-ia
dizer, de uma atualidade pennanente. posto que se situem
fora do tempo: e. inclusive. embora saiamos do domínio
da metafísica para considerar cenas aplicações. fazemo-lo
sempre de tal maneira que estas aplicações conservem um
alcance completamente geral. É o que faremos aqui
também; e, entretanto, devemos convir que as
considerações que vamos expor neste estudo oferecem
ainda certo interesse mais particular no momento
presente, em razão das discussões que se produziram
nestes últimos tempos sobre a questão das relações entre
a religião e a política, questão que não é mais que uma
forma especial. em certas condições detenninadas, das
relações entre o espiritual e o temporal. Isso é certo, mas
seria um engano acreditar que tais considerações nos
foram mais ou menos inspiradas pelos incidentes aos
quais aludimos, ou que pretendemos relacioná-las
diretamente com eles, pois isto seria conceder uma
importância muito exagerada a questões que têm apenas
um caráter puramente episódico e que não poderiam
influir sobre concepções cuja natureza e origem são na
realidade de uma ordem muito diferente. Como nos
esforçamos sempre em dissipar, em primeiro lugar, os
mal-entendidos que nos é possível prever, devemos
descartar acima de tudo, tão clara e explicitamente quanto
seja possível, essa falsa interpretação que alguns
poderiam dar sobre nosso pensamento. seja por paixão
política ou religiosa, ou em virtude de algumas idéias
preconcebidas, seja inclusive por simples incompreensão
do ponto de vista no qual nos situamos. Tudo o que aqui
diremos o teríamos dito também. e exatamente da mesma
maneira. se os fatos que hoje em dia atraem a atenção
sobre o assunto do espiritual e do temporal não se
tivessem produzido; as circunstâncias presentes somente
nos demonstraram, mais claramente que nunca, que era
necessário e oportuno dizê-lo; constituíram, caso se
queira, a ocasião que nos conduziu a expor agora certas
verdades com preferência a muitas outras que igualmente
nos temos proposto fommlar. mas que não parecem
suscetíveis de uma aplicação Ião imediata; e a isto se
limita lodo seu papel no que a nós concerne.

O que nos chamou especialmente a atenção nas


discussões de que se trata é que. nem de um lado nem de
outro, existiu a princípio a preocupação por situar as
questões em seu verdadeiro terreno, para distinguir de
maneira precisa entre o essencial e o acidental, entre os
princípios necessários e as circunstâncias contingentes; e,
para falar a verdade. isto não nos surpreendeu. pois não
vimos nisso senão um novo exemplo, entre muitos outros,
da confusão que hoje em dia reina em lodos os domínios,
e que consideramos como eminentemente característica
do mundo moderno, pelas razões que já explicamos em
precedentes obras (1). Não obstante, não podemos
impedir de deplorar que esta confusão afete até os
representantes de uma autoridade espiritual autêntica, que
parecem ter perdido de vista o que deveria ser sua
verdadeira força. quer dizer. a transcendência da doutrina
em nome da qual estão qualificados para falar. Faria falta
distinguir acima de tudo entre questão de princípio e
questão de oportunidade: sobre a primeira não cabe
discutir, pois se tratam de coisas que pertencem a um
domínio que não pode estar submetido aos procedimentos
essencialmente "profanos" de discussão; e, enquanto à
segunda, que, por outro lado, não é senão de ordem
política e, poder-se-ia dizer, diplomática, é em lodo caso
muito secundária e. inclusive, rigorosamente, não deve
contar com respeito à questão de princípio;
consequentemente. teria sido preferível não oferecer ao
adversário a possibilidade de expô-la. embora não seja
senão sobre simples aparências; acrescentaremos que,
quanto a nós, não nos interessa absolutamente.

Pretendemos, pois, de nossa parte, nos situar


exclusivamente no domínio dos princípios; é o que nos
pennite permanecer inteiramente além de toda discussão,
de toda polêmica. de toda querela de escola ou de partido.
estes assuntos com os quais não queremos nos misturar.
nem de peno nem de longe, de nenhum modo e em
nenhum grau. Sendo absolutamente independentes com
relação a tudo o que não é a verdade pura e
desinteressada, e decididos a permanecer nesta,
simplesmente nos propomos a dizer as coisas tal como
são, sem o menor cuidado de agradar ou desagradar a
quem quer que seja; não temos nada a esperar nem de uns
nem de outros, não concamos inclusive com que aqueles
que possam tirar vantagens das idéias que formulemos o
agradeçam de algum modo e. além do mais, isto nos
importa muito pouco. Advertiremos uma vez mais que
não estamos dispostos a nos deixar encerrar em nenhum
dos limites ordinários, e que seria perfeitamente vão
tentar nos aplicar uma etiqueta qualquer, pois, entre
aquelas que existem no mundo ocidental, não há
nenhuma que na realidade nos convenha; algumas
insinuações, chegadas simultaneamente dos setores mais
opostos, demonstraram-nos de novo recentemente que era
bom renovar esta declaração. a fim de que as pessoas de
boa fé saibam a que se ater e não sejam induzidas a nos
atribuir intenções incompatíveis com nossa verdadeira
atitude e com o ponto de vista puramente doutrinal que é
o nosso.

Em razão da própria natureza deste ponto de vista.


separado de toda'i as contingências, podemos considerar
os fatos atuais de uma maneira tão completamente
imparcial como se tratassem de acontecimentos que
pertencessem a um passado longínquo, como aqueles dos
quais trataremos, sobretudo aqui, quando citarmos alguns
exemplos históricos para esclarecer nossa exposição.
Deve ficar claro que damm a esta. tal e qual dissemos
desde o começo, um alcance completamente geral. que
supera todas as formas particulares das quais se podem
revestir, segundo os tempo~ e lugares, o poder temporal e,
inclusive. a autoridade espiritual; e é necessário
estabelecer especialmente, sem demora, que esta última,
para nós, não tem necessariamente uma fonna religiosa,
ao contrário do que usualmente se acredita no Ocidente.
Deixamos a cada um o cuidado de fazer com estas
considerações as aplicações que julgue conveniente em
relação aos casos particulares que, a propósito. nos
abstemos de considerar diretamente; basta que esta
aplicação, para ser legítima e válida, esteja feita com um
espírito verdadeiramente conforme aos princípios dos
quais tudo depende, espírito que é ao qual chamamos
espírito tradicional no verdadeiro sentido da palavra. e do
qual, infelizmente, todas as tendências especificamente
modernas são sua antítese ou sua negação.

Precisamente é um desses aspectos da separação


moderna o que vamos considerar e. a este respeito, o
presente estudo completará o que já ti\'emos ocasião de
explicar nas obras às quais aludimos anteriormente. Ver-
se-á, além do mais. que, sobre esta questão das relações
entre o espiritual e o temporal, os enganos que se
desenvolveram no curso dos últimos séculos estão longe
de ser novos; mas ao menos suas manifestações
anteriores jamais tiveram mais que efeitos bastante
limitados, enquanto que hoje em dia estes mesmos
enganos se tomaram, de certa forma, inerentes à
mentalidade comum, fonnam parte integrante de um
estado de espírito que se generaliza cada vez mais. Isto é
o mais particularmente grave e inquietante e, a menos que
em breve não se opere uma retificação, é previsível que o
mundo moderno seja arrastado a alguma catástrofe, para a
qual parece marchar com uma rapidez sempre crescente.

9
Tendo exposto em outro lugar as considerações que
podem justificar tal afirmação (2), não insistiremos sobre
elas, e somente acrescentaremos o seguinte: se ainda há,
nas presentes circunstâncias. alguma esperança de
salvação para o mundo ocidental, parece que esta
esperança deve residir, ao menos em parte, na
manutenção da única autoridade espiritual que subsiste;
mas para isso é necessário que esta autoridade possua
uma plena consciência de si mesma, a fim de que seja
capaz de oferecer uma base efetiva aos esforços que. de
outro modo, correm o risco de permanecer dispersos e
sem coordenação. Este é, ao menos, um dos meios mais
imediatos que podem ser tomados em consideração para
uma restauração do espírito tradicional; sem dúvida há
outros, se este faltar; mas, como esta res1auração, que é o
único remédio à desordem atual, é o propósito essencial
que temos em vista desde que. saindo da pura metafísica.
devamos considerar as contingências, é fácil compreender
que não desprezemos nenhuma das possibilidades que se
oferecem para alcançá-la, ainda que estas possibilidades
pareçam ter no momento muito poucas chances de
realização. Nisso, e somente nisso, consistem nossas
verdadeiras intenções; todas as que nos poderiam atribuir.
além delas, são perfeitamente inexistentes; e, se alguns
chegassem a pre1ender que as reflexões que vamos dar a
seguir nos foram inspiradas por influências ex.teriores,
sejam quais forem, opomos a partir de agora nosso mais
formal desmentido.

lO
Dito i~to, já que por experiência sabemos que tais
precauções não são inúteis, pensamos poder nos
dispensar a seguir de toda alusão direta à atualidade. a
fim de fazer ainda mais sensível e indubitável o caráter
estritamente doutrinal que pretendemos conservar em
todos nossos trabalhos. Sem dúvida, as paixões políticas
ou religiosas não contam aqui, mas isto é algo do qual
devemos nos felicitar, pois absolutamente se tratam para
nós de alimentar novas discussões que nos parecem muito
vãs, inclusive bastante miseráveis. senão, pelo contrário,
de recordar os princípios cujo esquecimento é, no fundo,
a única verdadeira causa de rodas estas discussões. É,
repetimo-lo, nossa própria independência que nos permite
realizar esta pontualização com toda imparcialidade, sem
concessões nem compromissos de nenhum tipo; e. ao
mesmo tempo. ela nos proíbe qualquer outro papel
distinto do qual acabamos de definir, pois não pode ser
mantida senão à condição de pennanecer sempre no
domínio puramente intelectual, domínio que. por outra
parte, é o dos princípios essenciais e imutáveis e. em
conseqüência. aquele do qual todo o resto deriva mais ou
menos diretamente. e pelo qual deve forçosamente
começar a retificação da qual falamos: fora da vinculação
aos princípios, não se podem obter mais que resultados
exteriores. instáveis e ilusórios; mas isto, para falar a
verdade, não é mais que uma das formas da própria
afinnação da supremacia do espiritual sobre o temporal,
que precisamente vai ser o objeto deste estudo.

li
Notas

(l) "Oriente e Ocidente'· e ··A Crise do Mundo Moderna··


(2) "A Crise do Mundo Moderno"
Capítulo 1: AUTORIDADE E
HIERARQUIA
Em épocas muito diferentes da história. e
inclusive nos remontando muito além do que se conveio
chamar "tempos históricos", na medida em que nos é
possível fazê-lo com ajuda dos testemunhos coincidentes
que nos subministram as tradições orais ou escritas de
todos os povos (1), encontramos os indícios de uma
freqüente oposição entre os representantes dos dois
poderes, um espiritual e o outro temporal, sejam quais
forem por outra parte as formas especiais que se tenham
revestido um e outro para se adaptarem à diversidade das
circunstâncias. segundo as épocas e os países. Isto não
significa, entretanto, que esta opo~ição, e as lutas que
engendra, sejam "velhas como o mundo", segundo uma
ex.pressão da qual se abusa muito; seria esta um exagero
manifesto, pois, para que se cheguem a produzir, é
preciso, segundo o ensino de todas as tradições, que a
humanidade já tenha alcançado uma fase bastante
afastada da pura espiritualidade primitiva. Por outra parte,
na origem. ambos os poderes não deveriam existir em
estado de funções separadas, exercida~ respectivamente
por individualidades diferentes; pelo contrário, deviam
estar contidas, então, no princípio comum de que
procedem. e do qual representavam somente dois
aspectos indivisíveis, indissoluvelmente unidos na
unidade de uma síntese simultaneamente superior e
anterior a sua distinção. É o que expressa especialmente a

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doutrina hindu quando ensina que não havia no princípio
mais que uma só casta; o nome de Hamsa dado a esta
casta primitiva única indica um grau espiritual muito
elevado, hoje em dia completamente excepcional, mas
comum então a todos os homens e que, de certo modo,
possuíam espontaneamente (2); e este grau está para além
das quatro castas que se constituíram posteriormente, e
entre as quais se repartem as diferentes funções sociais.

O princípio da instituição das castas, tão


completamente incompri!endido pelos ocidentais. não é
outra coisa que a diferença de natureza existente entre os
indivíduos humanos, e que estabelece entre eles uma
hierarquia cujo desconhecimento só pode levar à
desordem e à confusão. É precisamente este
desconhecimento que está implícito na teoria
"igualitária", tão cara ao mundo moderno, teoria que é
contrária aos fatos melhor estabelecidos, e que inclusive é
desmentida pela simples observação, posto que a
igualdade não exista na realidade em parte alguma; mas
não vamos nos estender sobre este ponto, que já tratamos
em outro lugar (3).

As palavras que servem para designar à casta, na


Índia, significam "natureza individual"; por isto deve ser
entendido o conjunto dos caracteres que se acrescentam à
natureza humana "específica" para diferenciar os
indivíduos entre si; e convém acrescentar, a seguir, que a
herança entra apenas em parte na determinação dos
caracteres, já que do contrário os indivíduos de uma

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mesma família seriam ex.atamente semelhantes, de modo
que, em princípio, a casta não é estritamente hereditária,
ainda que de fato tenha chegado a sê-lo freqüentemente
na prática. Além disso, posto que não poderiam ex.istir
dois indivíduos idênticos ou iguais em todos os aspectos,
há forçosamente diferença entre aqueles que pertencem a
uma mesma casta; mas. tal como há mais caracteres
comuns entre os seres de uma mesma espécie que entre
seres de espécies diferentes, há também mais, no interior
da espécie, entre os indivíduos de uma mesma casta do
que entre os de castas diferentes; poder-se-ia dizer então
que a distinção das castas constitui, na espécie humana,
uma verdadeira classificação natural, à qual deve
corresponder à repartição das funções sociais.
Efetivamente. cada homem, em razão de sua natureza
própria, é apto para cumprir algumas funções definidas
com a exclusão de outras; e, numa sociedade
regulannente estabelecida sobre bases tradicionais. estas
aptidões devem ser determinadas segundo regras precisas,
a fim de que, pela correspondência entre os diversos
gêneros de funções com as grandes divisões da
classificação das "naturezas individuais" -salvo ex.ceções
devidas a enganos de aplicação sempre possíveis. embora
reduzidas de certa forma ao mínimo- cada um se encontre
no lugar que deva ocupar normalmente, e desta forma a
ordem social traduza ex.atamente as relações hierárquicas
que resultam da própria natureza dos seres. Tal é,
resumida em poucas palavras, a razão fundamental da
existência das castas; e é necessário conhecer ao menos
estas noções essenciais para compreender as alusões que

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forçosamente estaremos obrigados a fazer em seguida,
seja a sua constituição tal como existe na Índia, seja às
instituições análogas que se encontram em outros lugares,
pois é evidente que os mesmos princípios, embora com
modos de aplicação diferentes, presidiram a organização
de todas as civilizações que possuem um caráter
verdadeiramente tradicional.

A distinção das castas, com a diferenciação das


funções sociais à qual corresponde, resulta, em suma, de
uma ruptura da unidade primitiva; e é então quando
aparecem também, como separados um do outro, o poder
espiritual e o poder temporal. que constituem
precisamente, em seu exercício distinto. as funções
respectivas das duas primeiras castas, a dos Brâhmanes e
a dos Kshatriyas (Kshatriyas). Por outra parte, entre
ambos os poderes, assim como de uma forma geral entre
todas as funções sociais atribuídas após a grupos
diferentes de indivíduos, devia haver originariamente
uma perfeita harmonia, pela qual a primeira unidade era
mantida tanto quanto o permitiam as condições de
existência da humanidade em sua nova fase, pois a
harmonia não é, em suma. mais que um reflexo ou uma
imagem da verdadeira unidade. Seria apenas em outro
estágio, quando a distinção deveria transformar-se em
oposição e em rivalidade, que a harmonia haveria de ser
destruída e deixaria lugar à luta dos dois poderes,
chegando ao ponto em que as funções inferiores
pretendessem, por sua vez, a supremacia. para terminar
finalmente na confusão mais completa, na negação e na

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inversão de toda hierarquia. A concepção geral que
acabamos de esboçar assim, de um modo geral, é
conforme à doutrina tradicional das quatro idades
sucessivas nas quais se divide a história da humanidade
terrestre, doutrina que não só se encontra na Índia, mas
também era igualmente conhecida pelos Gregos e pelos
Latinos. Estas quatro idades são as diferentes fases que
atravessa a humanidade afastando-se do princípio. quer
dizer, da unidade e da espiritualidade primitiva; são como
as etapas de uma espécie de materialização progressiva,
necessariamente inerente ao desenvolvimento de todo
ciclo de manifestação, tal e como em outro lugar já o
explicamos (4).

É só na última destas quatro idades, à qual a


tradição hindu chama de Kali-Yuga, ou "idade sombria",
e que corresponde à época em que nos encontramos,
quando a subversão da ordem normal pôde se produzir e
quando, em primeiro lugar. o poder temporal pôde se
elevar sobre o espiritual; mas as primeiras manifestações
da revolta dos Kshatriyas contra a autoridade dos
Brâhmanes podem, não obstante, se remontar a muito
antes do início desta idade (5), início que é ele mesmo
muito anterior a tudo o que conhece a história ordinária
ou "profana". Esta oposição dos dois poderes, esta
rivalidade de seus representantes respectivos, estava
representada entre os Celtas com a figura da luta entre o
javali e o urso, segundo um simbolismo de origem
hiperbórea que se vincula a uma das tradições mais
antiga'i da humanidade. caso não o seja, inclusive, à

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primeira de toda-;, à verdadeira tradição primitiva; e este
simbolismo poderia dar lugar a amplos
desenvolvimentos, que não podem encontrar aqui seu
lugar, mas que possivelmente tenhamos ocasião de expor
algum dia (6).

No que vem a seguir. não temos intenção de nos


remontar até as origens, e todos nossos exemplos serão
tirados de épocas muito mais próximas a nós, inclusive
circunscrita-; unicamente no que podemos chamar de
última parte do Kali-Yuga, a qual é acessível à história
ordinária, e que exatamente começa no século VI antes da
era cristã. Não menos necessário era oferecer estas
noções sumárias sobre o conjunto da história tradicional,
sem as quais o resto não seria compreendido senão de
uma forma muito imperfeita. pois não se pode
compreender verdadeiramente uma época qualquer senão
a situando no lugar que ocupa dentro do todo, do qual é
um dos elementos; assim, como tivemos que demonstrar
recentemente, as características particulares da época
moderna não se explicam senão quando se considere a
esta constituindo a fase final do Kali-Yuga. Bem sabemos
que este ponto de vista sintético é completamente
contrário ao espírito de análise que preside o
desenvolvimento da ciência "profana", a única que
conhecem a maioria de nossos contemporâneos; mas
precisamente convém afirmá-lo tanto mais claramente
quanto mais seja desconhecido e, por outra parte. é o
único que podem adotar todos aqueles que, como nós,
pretenderem se manter escritamente na linha da

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verdadeira ortodoxia tradicional, sem nenhuma concessão
a esse espírito moderno que. jamais insistiremos muito,
não constitui mais do que uma coisa só com o próprio
espírito antitradicional.

Sem dúvida, a tendência que prevalece atualmente


é tratar de "lendários" e inclusive de "míticos" os fatos da
história mais longínqua. tais como aqueles aos quais
acabamos de aludir, ou inclusive alguns outros que não
obstante serem muito menos antigos, como os que
poderemos tratar a seguir, porque escapam aos meios de
investigação de que dispõem os historiadores "profanos".
Quem assim pensa, em virtude de costumes adquiridos
por uma educação que, hoje em dia, não é com muita
freqüência mais que uma verdadeira deformação mental,
poderá ao menos. se apesar de tudo conservou certas
possibilidades de compreensão, tomar estes fatos
simplesmente por seu valor simbólico~ sabemos, quanto a
nós, que este valor nada tira a sua realidade própria
enquanto fatos hi:itóricos, ma~ é em suma o que mais
importa, posto que lhes confere um significado superior,
de uma ordem muito mais profunda que o que em si
mesmos podem ter; e este é um ponto que requer certas
explicações.

Tudo o que é. sob qualquer modo que seja,


participa necessariamente dos princípios universais, e não
é nada senão por participação em tais princípios, que são
as essências eternas e imutáveis contidas na permanente
atualidade do Intelecto divino; em conseqüência, pode-se

19
dizer que toda~ as coisas, por contingentes que sejam em
si mesmas. traduzem ou representam os princípios a sua
maneira e segundo sua ordem de existência, pois, de
outro modo. não seriam mais que puro nada. Assim. de
uma ordem a outra, tudo se encadeia e se corresponde
para concorrer à harmonia universal e total. pois a
harmonia, como já indicamos. não é mais que o reflexo
da unidade principiai na multiplicidade do mundo
manifestado; e esta correspondência é o verdadeiro
fundamento do simbolismo. Tal é a razão pela qual as leis
de um domínio inferior sempre podem ser tomadas para
simbolizar as realidades de uma ordem superior, no qual
têm sua razão profunda, que é simultaneamente seu
princípio e seu fim; e assinalaremos de passagem, nesta
ocasião, o engano das modernas interpretações
"naturalistas" das antigas doutrinas tradicionais,
interpreiações que invertem pura e simplesmente a
hierarquia das relações entre a~ diferentes ordens de
realidades. Por exemplo, para não considerar mais que
uma das teorias mais estendidas em nossos dias. os
símbolos ou os mitos jamais tiveram o papel de
representar o movimento dos astros, embora o que é certo
é que freqüentemente se encontram figuras inspiradas
neste e destinadas a expressar Analogicamente outra
coisa, posto que as leis deste movimento traduzem
fisicamente os princípios metafísicos dos quais
dependem; e nisto se fundamenta a verdadeira astrologia
dos antigos. O inferior pode simbolizar o superior. mas o
contrário é impossível; por outra parte, se o símbolo
estivesse mais afastado da ordem sensível que aquilo que

20
representa, em lugar de estar mais próximo, como poderia
cumprir a função à qual está destinado, que é a de fazer a
verdade mais acessível ao homem lhe oferecendo um
"suporte" para sua concepção? Além do mais, é evidente
que o emprego de um simbolismo astronômico, para
retomar o mesmo exemplo, não impede absolutamente
que os fenômenos astronômicos existam como tais, e que
tenham, em sua própria ordem, toda a realidade da qual
são suscetíveis; ex.atamente o mesmo ocorre com os fatos
históricos, pois estes, como todos os outros, ex.pressam
segundo seu modo as verdades superiores e se adequam a
esta lei de correspondência que acabamos de indicar.
Estes fatos, também, ex.istem realmente como tais, mas,
ao mesmo tempo, são igualmente símbolos: e, desde
nosso ponto de vista, são muito mais dignos de interesse
enquanto símbolos do que enquanto fatos; não pode ser
de outra forma a partir do momento em que pretendemos
nos vincular aos princípios. e é isto precisamente, como
em outro lugar já explicamos (9), o que distingue
essencialmente a "ciência sagrada" da "ciência profana".
Se insistimos ainda um pouco sobre isso é para que não
se produza nenhuma confusão a este respeito: é
necessário saber pôr cada coisa no lugar que
normalmente lhe corresponde; a história, à condição de
ser considerada como convém, tem, como todo o reslO,
seu lugar no conhecimento integral, ma" carece de valor,
sob este aspecto, se não permitir encontrar, nas próprias
contingências que são seu objeto imediato, um ponto de
apoio para elevar-se acima de tais contingências. Quanto
ao ponto de vista da história "profana", que

21
exclusivamente se apega aos fatos e não os transcende,
não tem interesse para nós. tal como tudo o que depende
do domínio da simples erudição; não é então
absolutamente como historiador, caso se entenda em tal
sentido, como consideramos os fatos, e é isto o que nos
permite não levar em conta certos preconceitos "críticos"
particulannente caros a nossa época. Parece, além do
mais, que o emprego exclusivo de certos métodos foi
imposto aos historiadores modernos para lhes impedir de
ver claramente em questões às quais não terei que tocar,
pela simples razão de que teriam podido conduzi·los a
conclusões contrárias às tendências "materialistas" que o
ensino "oficial" tem por missão fazer prevalecer; é
evidente que. por nossa parte, não nos sentimos de modo
algum obrigados a manter a mesma reserva. Dito isto.
pensamos já poder abordar diretamente o tema de nosso
estudo, sem nos demorar mais nestas observações
preliminares, que em suma não têm como fim senão o
definir o mais claramente possível o espírito no qual o
escrevemos, e no qual igualmente o convém ler se
verdadeiramente quer compreender seu sentido.
Notas

(1) Estas tradições sempre foram primeiramente orais; às vezes,


como entre os celtas. nunca seriam escritas; sua concordância prova
ao mesmo tempo a comunidade de origem e, portanto, a vinculação a
uma tradição primitiva. e a rigorosa fidelidade da transmissão oral.
cuja manutenção é, neste caso. uma das principais funções da
autoridade espiritual.
(2) A mesma indicação se encontra também claramente formulada na
tradição extremo-oriental. como o mostra concretamente esta
passagem do Lao-Tse: «Os Antigos, mestres possuíam a Lógica. a
Clarividência e a Intuição; esta Força da Alma permanecia
inconsciente: esta Inconsciência de sua Força Interior dava a sua
aparência a majestade ... Quem poderia, em nossos dias, por sua
claridade majestosa. clarificar as trevas interiores? Quem poderia. em
nossos dias, por sua vida majestosa, revivificar a mone interior?. Eles
levavam a Via (Tao) em sua alma e foram Indivíduos Autônomos:
como tais. viam as perfeições de suas debilidades» (Tao-te-king. c.
XV: também Chuang-tse. c. VI. que é o comentário desta passagem).
A «Inconsciência» da qual se fala aqui se refere à espontaneidade
desse estado, que não era então o resultado de nenhum esforço; e a
expressão «Indivíduos Autônomos» deve entender-se no sentido do
sãnscrito. swêc/1chllâchâri. quer dizer. «que segue sua própria
rnntade», ou segundo outra expressão equivalente que se encontra no
esoterismo islãmico. «que é ele mesmo sua própria lei».
(3) "A Crise do Mundo Moderno... e. VI: por outra pane, sobre o
princípio da instituição das casta~. ver. Introdução geral ao eswdo
da.f do14tri11as hindus. 3ª parte, c. VI.
(4) "A Crise do Mundo Moderno... c. 1.
(5) Encontra-se uma indicação a este respeito na história de Parash11-
Râma. que. diz-se. aniquilou aos Kshatriyas rebeldes. numa época
em que os antepassados dos hindus habitavam ainda uma região
setentrional.

23
(6) Por oulra pane. é necessário dizer que os dois símbolos do javali
e do urso não aparecem sempre forçosamente em luta ou em
oposição. mas sim podem também representar às vezes os dois
poderes espiritual e temporal, ou as duas castas dos druidas e dos
cavaleiros. em suas relações normais e harmônicas, como se vê
concretamente na lenda de Merlin e de Artur, que. efetivamen1e, são
também o javali e o urso. assim como o explicaremos se as
circunstâncias nos permitirem desenvolver este simbolismo em outro
estudo.
(7) "A Crise do Mundo Moderno". e. IV.
Capítulo li: FUNÇÕES DO
SACERDÓCIO E DA REALEZA
A oposição entre os poderes espiritual e temporal.
sob uma forma ou outra, encontra-se em quase todos os
povos. o que não tem nada de surpreendenle, posto que
corresponda a uma lei geral da história humana,
relacionada. além do mais, com todo o conjunto dessas
"leis cíclicas" às quais, em quase todas nossas obras.
fizemos freqüentes alusões. Para os períodos mais
antigos, esta oposição se acha habitualmente, nos dados
tradicionais, expressa sob uma forma simbólica, tal como
indicamos anteriormente no que concerne aos Celtas; mas
não é este aspecto da questão que nos propomos
especialmente desenvolver aqui. Ater-nos-emas,
sobretudo, no momento. em dois exemplos históricos,
tirados um do Oriente e outro do Ocidente: na Índia, o
antagonismo de que se trata se encontra na forma da
rivalidade entre Brâhmanes e K.rhatriyas, da qual
mencionaremos alguns episódios; na Europa da Idade
Média aparece. sobretudo, como o aquilo que se chamou
a questão entre o Sacerdócio e o Império. embora
também tivesse então outros aspectos mais particulares,
ainda que não menos característicos, como se verá
posteriormente (1). Por outra parte. não seria muito difícil
comprovar que a mesma luta prossegue ainda em nossos
dias, embora, devido à desordem moderna e à "mescla
das castas", complique-se com elementos heterogêneos

25
que podem dissimulá-la às vezes ante o olhar de um
observador superficial.

Não é que se conteste, no geral ao menos, e


excetuando alguns casos extremos, que ambos os
poderes, aos quais podemos chamar o poder sacerdotal e
o poder real, pois são estas suas verdadeiras
denominações tradicionais, não lenham um e outro sua
razão de ser e seu domínio próprio. Em suma, o debate
não alcança habitualmente mais que sobre a questão das
relações hierárquicas que devem existir entre eles; trata-
se de uma luta pela supremacia, e esta luta se produz
invariavelmente da mesma maneira: vemos os guerreiros,
depositários do poder temporal, depois de estarem a
princípio submetidos à autoridade espiritual, rebelarem-se
contra ela e se declararem independentes de toda
potestade superior, ou inclusive tentar submeter esta
autoridade da qual não obstante, na origem. houvessem
reconhecido seu poder. e fazer dela um instrumento a
serviço de sua própria dominação. Tão somente isto basta
para demonstrar que deve haver, em tal rebeldia, uma
inversão das relações nonnais; mas esta se vê ainda muito
mais claramente ao se considerarem estas relações como
sendo, não simplesmente as de duas Funções sociais mais
ou menos claramente definida~ e nas quais cada uma
pode ter a natural tendência a elevar-se sobre a outra, mas
sim as de dois domínios nos quais se exercem
respectivamente tais funções; são, efetivamente, as
relações entre ambos domínios o que deve logicamente
detenninar as dos poderes correspondentes.

26
Entretanto, antes de abordar diretamente estas
considerações, devemos formular algumas observações
que facilitarão sua compreensão, tomando preciso o
sentido de alguns dos termos dos quais deveremos nos
servir constantemente; e isso é ainda mais necessário
quando tais termos, no uso corrente, tenham adotado um
significado bastante vago e, às vezes, muito afastado de
sua concepção original. Em primeiro lugar. se falarmos
de dois poderes, e se podemos fazê-lo nos casos nos quais
cabe, por razões diversas, guardar entre eles uma espécie
de simetria exterior. preferimos não obstante. mais
freqüentemente e para marcar melhor a distinção,
empregar, para a ordem espiritual, a palavra "autoridade",
mais que a de "poder", que reservaremos à ordem
temporal, à qual convém mais propriamente quando quer
entender em seu sentido estrito. Efetivamente, a palavra
"poder"' evoca quase inevitavelmente a idéia de potência
ou de força. e, sobretudo, de uma força material (2). de
uma potência que se manifesta visivelmente fora e que se
afirma mediante o emprego dos meios exteriores; e tal é,
por própria definição, o poder temporal (3). Pelo
contrário, a autoridade espiritual, interior por essência,
não se afirma senão por si mesma, independentemente de
todo apoio sensível, e de certo modo se exerce
invisivelmente; caso possa se falar aqui de potência ou de
força não é mais que por transposição analógica e, ao
menos no caso de uma autoridade espiritual em estado
puro, se assim pode ser dito, deve se compreender que se
trata de uma potência totalmente intelectual, cujo nome é
"sabedoria", e da única força da verdade (4).

27
Algo que também precisa ser explicado, e
inclusive um pouco mais amplamente, são as expressões,
que faz um momento empregamos, de poder sacerdotal e
de poder real: o que deve ser entendido exatamente por
sacerdócio e por realeza? Começando com esta última,
diremos que a função real compreende tudo o que, na
ordem social, constitui o "governo" propriamente dito, e
isso ainda que este governo não tenha forma monárquica;
esta função, efetivamente, é a que propriamente pertence
à casta dos Kshatriyas, e o rei não é mais que o primeiro
deles. A função de que se trata é em certo modo dupla:
administrativa e judicial por um lado. militar por outro,
pois deve assegurar a manutenção da ordem,
simultaneamente dentro, como função reguladora e
equilibradora. e fora, como função protetora da
organização social; ambos os elementos constitutivos do
poder real estão, em diversas tradições, simbolizados
respectivamente pela balança e pela espada. Vê-se com
isso que "poder régio" é realmente sinônimo de "poder
temporal", inclusive tomando este último em Ioda a
extensão de que é suscetível; mas a idéia muito mais
restrita que o Ocidente moderno faz da realeza pode
impedir que esta equivalência apareça imediatamente. e
por isso foi necessário fonnular esta definição, que jamais
se deverá perder de vista a partir de agora.

Quanto ao sacerdócio, sua função essencial é a


conservação e a transmissão da doutrina lradicional, em
que toda organização social regular encontra seus
princípios fundamentais: esta função, além do mais, é

28
evidentemente independente de toôas as formas especiais
que pode revestir a doutrina para se adaptar, em sua
expressão, às condições particulares de tal povo ou de tal
época, e que não afetam em nada o fundo mesmo desta
doutrina, que permanece sempre e em todas panes
idêntica e imutável, desde que se tratem de tradições
autenticamente ortodoxas. É fácil compreender que a
função do sacerdócio não é precisamente a que as
concepções ocidentais, especialmente hoje em dia,
atribuem ao "clero" ou aos "sacerdotes", ou que, ao
menos, ainda que o seja em certa medida e em alguns
casos, também pode ser algo distinto. De fato, o que
possui propriamente o caráter "sagrado" é a doutrina
tradicional e o que se refere diretamente a ela. e esta
doutrina não toma necessariamente a fonna religiosa (5);
"sagrado" e "religioso" não são equivalentes de modo
algum, e o primeiro de ambos os tennos é muito mais
abrangente que o segundo; embora a religião forme parte
do domínio "sagrado", este compreende elementos e
modalidades que não têm absolutamente nada de
religioso; e o sacerdócio, como seu nome indica, refere-
se, sem nenhuma restrição, a tudo o que verdadeiramente
deva ser chamado "sagrado".

A verdadeira função do sacerdócio é, pois, acima


de tudo, uma função de conhecimento e de ensinamento
(6) e por isso, como dissemos anteriormente, seu atributo
próprio é a sabedoria; com segurança, algumas outras
funções mais exteriores, como o cumprimento dos ritos,
pertencem-lhe igualmente. porque requerem do
conhecimento da doutrina, ao menos em princípio, e
panicipam do caráter "sagrado" inerente a esta; mas tais
funções não são senão secundárias, contingentes e de
certo modo acidentais (7). Se, no mundo ocidental, o
acessório parece aqui haver se convertido na função
principal, quando não -inclusive- na única. é porque a
natureza real do sacerdócio foi esquecida quase que por
completo; este é um dos efeitos da separação moderna,
que nega a intelectualidade (8), e que, embora não pôde
fazer desaparecer todo o ensino doutrinal, ao menos o
"minimizou" e o relegou a um segundo plano. Nem
sempre foi assim, e a própria palavra "clero" nos oferece
a prova, pois, originariamente, "clérigo" significava
"sábio" (9), e se opõe a "laico", que designa ao homem do
povo, quer dizer. ao "vulgar", comparado ao ignorante ou
ao "profano", a quem não se pode pedir senão que creias
no que não é capaz de compreender, porque é este o
único meio de lhe fazer participar da tradição na medida
de suas possibilidades (10). É inclusive curioso notar que
as pessoas que, em nossa época, vangloriam-se de
chamar-se "laicos", assim como aquelas a quem agrada
intitularem-se "agnósticos", e que por outra parte
freqüentemente são as mesmas, não fazem com isso
senão gabar-se de sua própria ignorância; e, para que não
se dêem conta de que tal é o sentido das etiquetas com as
quais se adornam, é preciso que esta ignorância seja
efetivamente muito grande verdadeiramente
irremediável.

30
Embora o sacerdócio é, por essência, o depositário
do conhecimento tradicional, isso não significa que tenha
o monopólio do mesmo, posto que sua missão consiste,
não somente em conservá-lo integralmente, mas também
em comunicá-lo a todos aqueles que sejam aptos para
recebê-lo, em distribuí-lo de certo modo
hierarquicamente segundo a capacidade intelectual de
cada um. Todo conhecimento desta ordem tem então sua
origem no ensino sacerdotal, que é o órgão de sua
transmissão regular; e o que aparece como mais
particularmente reservado ao sacerdócio, em razão de seu
caráter de pura intelectualidade. é a parte superior da
doutrina, quer dizer, o conhecimento dos próprios
princípios, enquanto que o desenvolvimento de certas
aplicações convém melhor às aptidões de outros homens,
a quem suas funções próprias põem em contato direto e
constante com o mundo manifestado, quer dizer, com o
domínio ao qual se referem ditas aplicações. É a razão de
que vejamos na Índia, por exemplo, que certos ramos
secundários da doutrina tenham sido estudados mais
especialmente pelos Kshatriyas, enquanto que os
Brâhmanes não lhes concedem senão uma importância
muito relaliva, estando sem cessar sua atenção fixada na
ordem dos princípios transcendentes e imutáveis, dos
quais todo o restante não são mais que conseqüências
acidentais, ou, caso se tomem as coisas em sentido
inverso, sobre a meta suprema, em relação à qual todo o
resto não são mais que meios contingentes e
subordinados (li). Existem inclusive livros tradicionais
particularmente destinados ao uso dos Kshatriyas, já que

31
apresentam aspectos doutrinais adaptados a sua natureza
própria (12); há "ciências tradicionais" que convêm,
sobretudo, aos Kshatriyas, enquanto que a metafísica
pura é patrimônio dos Brâhmanes (13). Não há aqui nada
que não seja perfeitamente legítimo, poi:-. tais aplicações
ou adaptações formam também parte do conhecimento
sagrado considerado em sua integralidade e, por outra
parte, embora a casta sacerdotal não se interesse
diretamente nelas. entretanto é sua obra, posto que
unicamente ela esteja qualificada para controlar sua
perfeita conformidade com os princípios. Ainda assim,
pode ocorrer que os Kshatriyas. quando entram em
rebelião contra a autoridade espiritual. desconheçam o
caráter relativo e subordinado de tais conhecimentos, aos
quais ao mesmo tempo consideram como seu bem
próprio, e negam havê-los recebido dos Brâhmanes. e que
finalmente cheguem inclusive até pretendê-los superiores
aos que são da posse exclusiva destes últimos. O que
disso se resulta é, nas concepções dos Kshatriyas
rebeldes, a inversão das relações normais entre os
princípios e suas aplicações, ou inclusive às vezes, nos
casos mais extremos, a pura e simples negação de todo
princípio transcendente; trata-se então, em todos os casos,
da substituição da "metafísica" pela "física". entendendo
ambos os termos em seu sentido rigorosamente
etimológico. ou, em outras palavras, o que se pode
chamar o "naturalismo". assim como se verá melhor
ainda na continuação (14).
Desta distinção, no conhecimento sagrado ou
tradicional, de duas ordens que se podem, de maneira
geral. designarem como a dos princípios e a das
aplicações, ou ainda. segundo o que acabamos de dizer,
como a ordem "metafísica" e a ordem "física", derivava-
se, nos mistérios antigos. tanto no Oriente como no
Ocidente, a distinção entre o que se chamava "grandes
mistérios" e "pequenos mistérios", implicando estes. de
fato, essencialmente o conhecimento da natureza, e
aqueles o conhecimento do que está além da natureza
(15). Esta mesma distinção corresponde precisamente à
existente entre a "iniciação sacerdotal" e a "iniciação
real", quer dizer, que os conhecimentos que eram
ministrados nestas duas classes de mistérios eram os que
se consideravam necessários para o exercício das
respectivas funções dos Brâhmanes e dos Kshatriyas. ou
do que era o equivalente destas castas nas instituições de
diversos povos (16): mas, é obvio, é o sacerdócio o que,
em virtude de sua função de ensino, conferia igualmente
as duas iniciações. e o que assegurava assim a
legitimidade efetiva, não só de seus próprios membros,
mas também daqueles da casta à qual pertencia o poder
temporal; e disso, como veremos, procede o "direito
divino" dos reis (17). Se isto é desta forma. é porque a
posse dos "grandes mistérios" implica, a fortiori e "além
disso", a dos "pequenos mistérios"; como toda
conseqüência e toda aplicação estão contidas no princípio
do qual procedem, a função superior engloba
"eminentemente" as possibilidades das funções inferiores
(18); necessariamente é assim em toda hierarquia

33
verdadeira, quer dizer, fundada sobre a natureza mesma
dos seres.

Há ainda um ponto que devemos assinalar, ao


menos sumariamente e sem insistir muito: junto às
expressões de "iniciação sacerdotal" e de "iniciação real",
e por assim dizer de forma paralela, encontram-se
também as de "arte sacerdotal" e "arte real", que
designam a colocação em prática dos conhecimentos
adquiridos nas correspondentes iniciações, com todo o
conjunto das "técnicas" que dependem de seus
respecLivos domínios (19). Estas denominações se
conservaram durante longo tempo nas antigas
corporações. e a segunda. a de "arte real", teve inclusive
um destino bastante singular, pois se tran!-.mitiu até a
Maçonaria moderna. embora seja evidente que já não
subsista, assim como muitos outros termos e símbolos,
mais que como um vestígio incompreendido do passado.
Assim que a designação de "arte sacerdotal" desapareceu
completamente: entretanto, convinha evidenlemente à
arte dos construtores de catedrais da Idade Média, do
mesmo modo que aos construtores dos templos da
Antigüidade; mas aconteceu de se produzir
posteriormente uma confusão entre ambos os domínios.
devido a uma perda ao menos parcial da tradição,
conseqüência das usurpações do temporal sobre o
espiritual; perdeu-se assim inclusive o nome de "arte
sacerdotal", sem dúvida na época do Renascimento, que
assinala efetivamente, sob todos os aspectos, a

34
consumação da ruptura do mundo ocidental com suas
próprias doutrinas tradicionais (20).

35
Notas

(1) Poder-se-iam encomrar mui1os outros exemplos sem muito


esforço. especialmente no Orieme: na China. as lutas que se
produziram em certas épocas emre os taoís1as e os confucionistas,
cujas respecti..,as doutrinas se referem aos domínios de ambos os
poderes. como mais adiame explicaremos: no Tibete. a hostilidade
testemunhada em princípio pelos reis contra o Lamaísmo. que por
outra pane acabou não somen1e por triunfar. mas também por
absorver completamente o poder temporal na organização
"teocrática" que ainda atualmeme existe [N.T.: O livro foi escrito
antes da invasão do Tibete pela China. em 1951 ].

(2) Poder-se-ia, além do mais, fazer entrar também nesta noção a


força da vomade, que não é •·material" no semido estrito da palavra.
mas que, para nós. ê ainda da mesma ordem. já que está
essencialmente oriemada à ação.

(3) O nome da casta dos Ksfiatriyas [K.fhatriyas] deriva de kshatra.


que significa "força".

(4) Em hebraico. a distinção que aqui indicamos es1á expressa pelo


emprego de raízes que se correspondem. mas que diferem pela
presença das letras kaf e qiif, que são respectivamente. por sua
interpretação hieroglífica. os sinais da força espiritual e da força
material, de onde. por um lado, os sentidos de verdade, sabedoria,
conhecimento, e, por outro, os de potência, posse, dominação: tais
são as raízesjaq e joq, kall e qah, designando as primeiras formas de
cada par as atribuições do poder sacerdotal, e as segundas as do
poder real (ver ··o Rei do Mundo", cap. VI). [N. T.: Do JAK deriva
JOJMA (Sabedoria). do JOQ deriva JOQ (lei. decreto). do KAH
deriva KOHEN (Sacerdote). e do QAH deriva QAHAL (Reunir.
congregação)].

(5) Além do mais, mais adiante veremos por que motivo a forma
religiosa propriamente dita é algo particular ao Ocidente.

36
(6) Em razão desta função de ensino. no P1m1sha·sltkra do Rig-Vêda,
os Brâhmanes são representados como correspondendo à boca de
P11rusha. considerado como o "Homem Universal". enquanto que os
Kshatriyas correspondem a seus braços. posto que suas funções se
refiram essencialmente à ação.

(7) Às vezes, o exercício das funções intelectuais por um lado e


rituais por outro deu na:o.cimento. no próprio sacerdócio. a duas
divisões: encontra-se um exemplo muito claro disso no Tíbete: '"A
primeira das duas grandes divisões compreende a quem preconiza a
observação dos preceitos morais e das regras monásticas como meios
de saJvação; a segunda engloba a aqueles que preferem um método
puramente intelectual (denominado "via direta"), liberando a aquele
que a segue de todas as leis, sejam quais forem.

"Nenhum biombo perfeitamente estanque separa os aderentes de


ambos os sistemas. Muito raros são os religiosos vinculados ao
primeiro que não reconheçam que a vida virtuosa e a disciplina das
observâncias monásticas. por excelentes e, em muitos casos.
indispensáveis que sejam, não constituem entretanto mais que uma
simples preparação a uma via superior. Quanto aos partidários do
segundo sistema, todos, sem exceção, acreditam plenamente nos
efeitos benéficos de uma estrita fidelidade às leis morais e a aquelas
que foram especialmente decretadas para os membros do Sangha
(comunidade budista). Além disso, todos são unânimes em declarar
que o primeiro dos métodos é o mais recomendável para a maioria
dos indivíduos" (Alexandra David-Neel. "Le Thibet mys1iq11e". na
"ReV11e de Paris", 15 de fevereiro de 1928). Reproduzimos
textualmente a passagem, embora quamo a algumas das expressões
utilizadas se requeira alguma reserva: assim, não há dois .. sistemas'",
que, como tais, se excluiriam forçosamente: mas o papel dos meios
contingentes que é o dos ritos e das observâncias de toda classe e sua
subordinação com respeito à via puramente intelectual está definido
muito claramente. e de uma maneira que. por outra parte. é

37
exatamente conforme aos ensinos da doutrina hindu sobre o mesmo
assunto.

(8) Pensamos que é quase supéríluo recordar que tomamos sempre


esta palavra no sentido em que se reíere à inteligência pura e ao
conhecimento supra-racional.

(9) Não é que seja legítimo estender o significado da palavra


"clérigo" como tem íeito Julien Benda em seu livro liJ Trahison des
Clercs. pois tal expressão implica o desconhecimento de uma
distinção fundamental, a mesma que a existente entre "conhecimento
sagrado" e "saber profano"; a espiritualidade e a intelectualidade não
têm cenamente o mesmo sentido para Benda que para nós, e faz
entrar no domínio ao que qualifica de "espiritual" muitas coisas que,
a nossos olhos. são de ordem puramente temporal e humana, o que,
por outra pane. não nos deve impedir que reconheçamos que há em
seu livro considerações muiw interessantes e justas em muitos
aspectos.

(10) A dii.tinção feita no Catolicismo entre a "Igreja ensinadora" e a


"Igreja ensinada" deveria ser precisamente uma distinção entre
"quem sabe" e "quem acredita": o é em princípio, mas, no presente
estado das coisas. é ainda de fato? Limitamo-nos a expor a pergunta,
pois não é a nós a quem corresponde resolvê-la e, por outra parte, não
lemos os meios para isso; efetivamente, se muitos indícios nos fazem
temer que a resposta não deve ser positiva, não pretendemos
entretamo ter um conhecimento completo da organização atual da
Igreja católica, e não podemos senão expressar o desejo de que ainda
exista, em seu interior. um centro no qual se conserve integralmente
não só a "letra". mas também o "espírito" da doutrina tradicional.

(11) Tivemos, além do mais, ocasião de assinalar um caso ao qual se


aplica o que aqui dizemos: enquanto que os Brâhma11es sempre estão
vinculados quase exclusivamente. ao menos em seu âmbito pessoal, à
realização imediata da "Liberação" final, os Kshatriyas
desenvolveram preferentemente o estudo dos estados condicionados

38
e transilivos que correspondem aos diversos estados das duas "vias
do mundo manifes1ado". chamadas dfra-yâna e pitri-yâna ("'O
Homem e seu Devir Segundo o Vedama", 3" ed., cap. XXI).

(12) Tal é, na Índia, o caso dos /tihâsas e dos Purânas. enquanto que
o estudo do Vêda concerne propriamente aos Brâhmanes, porque
neles se encontra o princípio de todo o conhecimento sagrado; ver-
se-á além do mais posteriormente que a distinção dos objetos de
estudo que convêm às duas castas corresponde. de maneira geral. à
das duas panes da tradição que, na doutrina hindu, são chamadas
Shrnti e Smriti.

(13) Falamos sempre de Brâhmanes e Kshatriyas tomados em seu


conjunto; embora existam distinções individuais. isso não implica
nenhum prejuízo ao próprio princípio das castas. e somente provam
que a aplicação deste princípio não pode ser senão aproximada,
especialmente nas condições do Kali-Yuga.

(14) Embora falemos aqui de Brâhma11es e dos Kshatriyas. porque o


emprego de tais palavras facilita enormemente a expressão daquilo
do que se trata, deve ficar claro que tudo o que aqui dizemos não se
aplica unicamente à Índia; e esta mesma observação será válida todas
as vezes que empreguemos tais termos sem nos referir expressamente
à forma tradicional hindu; explicar-nos-emo mais completamente
sobre isso, além de tudo, um pouco mais adiante.

(15) De um ponto de vista um pouco diferente, embora não obstante


estreitamente ligado a este, pode-se dizer 1ambém que os "pequenos
mistérios" concernem somente às possibilidades do estado humano,
enquanto que os ··grandes mistérios" concernem aos estados supra-
humanos; pela realização destas possibilidades ou estados, conduzem
respectivamente ao "Paraíso terrestre" e ao "Paraíso celestial". tal e
como afirma Dante num texto do De Monarchia que mais adiante
citaremos; e não se deve esquecer que, como indica o mesmo Dante
bastan1e claramente em sua Divina Comédia, e como teremos ocasião
de repeti-lo a seguir. o "Paraíso terrestre" não de\·e ser considerado,

39
na realidade, mas sim como uma e1apa na via que conduz ao "Paraíso
celestial".

(16) :'\o antigo o Egito, cuja constituição era claramente "1eocrática",


parece que o rei era considerado como assimilado à casta sacerdotal
pelo fato de sua iniciação aos mistérios. e inclusive. às vezes, foi
eleilo demre os membros desta casta; ao menos é o que afirma
Plutarco: .. Os reis eram escolhidos dentre os sacerdotes ou os
guerreiros, porque ambas as classes, uma em razão de sua coragem, a
outra em virtude de sua sabedoria. gozavam de uma estima e de uma
consideração paniculares. Quando o rei provinha da classe dos
guerreiros. enb'ava do momento de sua eleição a formar parte da
classe dos sacerdotes; era então iniciado nessa filosofia em que tantas
coisas, sob fórmulas e mitos que envolviam com uma aparência
obscura a verdade e a manifestavam por transparência, estavam
ocuhas" (Ísis e Osiris. 9. tradução de Maria Meunier). Advertir-se-á
que o final desta passagem contém uma indicação muito explícita do
duplo sentido da palavra "revelação" (cf...O Rei do Mundo'". P. 38).

(17) É necessário acrescentar que. na Índia, a terceira casta. a dos


Vaisl1yas, cujas funções próprias são as de ordem econômica.
também é admitida a uma iniciação que lhe outorga direito às
qualificações, que lhe são assim comuns com as duas primeiras, de
âry•a ou "nobre" e de dwija ou "duas vezes nascido"; os
conhecimentos que lhe convêm especialmente não representam por
outra parte. em princípio ao menos, mais que uma porção restringida
dos "pequenos mistérios" tal como acabamos de defini-los; mas não
vamos insistir sobre este ponto, já que o tema do presente estudo não
implica propriamente senão a consideração das relações entre as duas
primeiras castas.

(18) Pode-se dizer então que o poder espiritual pertence


"formalmente" à casta sacerdotal. en~uanto que o poder temporal
pertence "eminentemente~ a esta mesma casta sacerdotal, e
"fonnalmente" à casta real. Assim, segundo Aristóteles. as "formas"
superiores contêm ~eminentemente" as "formas" inferiores.

40
(19) Devemos notar a propósito disso que. entre os romanos. Jano.
que era o deus da iniciação aos mistérios. era ao mesmo tempo o
deus dos Coffegia fabrorum: este paralelismo é particularmente
significativo do pomo de visla da correspondência que aqui
indicamos. Sobre a 1ransposição mediante a qual toda arte. assim
como toda ciência. pode receber um valor propriameme "iniciático",
ver "O Esoterismo de Dante'". pp. 12-15.

(20) Alguns fixam com precisão na metade do século XV a data


desta perda da antiga rradição, que entranhou a reorganização. em
1459, das confrarias de construtores sobre uma nova base, desde
então incompleta. É de as'iinalar que é a partir desta época quando as
Igrejas deixaram de estar oriemadas regularmente, e este fato tem,
quanto àquilo do que se trata. uma importância muito mais
considerável do que se poderia pensar a primeira vista (cf. "O Rei do
Mundo"" . pp. 96 e 123-124 ).
Capítulo Ili: CONHECIMENTO E
AÇÃO
Dissemos anteriormente que as relações entre os
poderes espiritual e temporal devem ser determinadas
pelas de seus respectivos domínios; reconduzida assim a
seu princípio, a questão nos parece muito simples. pois
não é diferente. no fundo, que a das relações entre o
conhecimento e a ação. Poder-se-ia objetar a isto que,
segundo o que acabamos de expor, os depositários do
poder temporal devem também possuir normalmente um
detenninado conhecimento; mas, além de que não o
possuem por si mesmos, mas o recebem da autoridade
espiritual, este conhecimento não corresponde senão às
aplicações da doutrina. e não aos próprios princípios; não
é então. propriamente falando, mais que um
conhecimento por participação. O conhecimento por
excelência, o único que verdadeiramente merece esse
nome na plenitude de seu sentido, é o conhecimento dos
princípios, independentemente de toda aplicação
contingente, e é este o que pertence exclusivamente a
aqueles que possuem a autoridade espiritual. porque não
há nele nada que dependa da ordem temporal. inclusive
entendida em sua acepção mais ampla. Pelo contrário,
quando se passa às aplicações. encontramo-nos nessa
ordem temporal, posto que o conhecimento já não é
considerado então unicamente em si mesmo e por si
mesmo, mas sim enquanto que dê à ação sua lei; e é nesta
medida que é necessário {o conhecimento) àqueles cuja

42
função própria depende essencialmente do domínio da
ação.

É evidente que o poder temporal, em suas diversas


fonnas, militar, judicial e administrativa, está
completamente envolto na ação: encontra-se então, por
suas próprias atribuições, encerrado nos mesmos limites
que esta, quer dizer, nos limites do mundo ao qual se
pode chamar propriamente "humano", compreendendo,
além disso, neste termo. possibilidades muito mais
amplas das que habitualmente se consideram. Pelo
contrário, a autoridade espiritual se funda inteiramente no
conhecimento. já que, como se viu, sua função essencial é
a conservação e o ensino da doutrina, e seu domínio é
ilimitado como a própria verdade (1); o que lhe está
reservado pela natureza mesma das coisas. aquilo que não
pode comunicar aos homens cujas funções são de outra
ordem, e isto porque suas possibilidades não o implicam,
é o conhecimento transcendente e "supremo" (2), o que
supera o domínio "humano" e inclusive, mais geralmente,
o mundo manifestado, que é, não somente "físico", mas
sim "metafísico" no sentido etimológico da palavra. Deve
compreender-se que não se trata aqui de uma vontade da
casta sacerdotal de guardar só para si o conhecimento de
certas verdades, mas sim de uma necessidade que
diretamente se desprende das diferenças de natureza que
ex.istem entre os seres, diferenças que. como já dissemos,
são a razão de ser e o fundamento da distinção das castas.
Os homens que estão feitos para a ação não estão feitos
para o puro conhecimento e. numa sociedade constituída

43
sobre bases verdadeiramente tradicionais, cada um deve
desempenhar a função para a qual está realmente
"qualificado"; de outro modo, não há mais que confusão e
desordem, nenhuma função se desempenha como se
deveria, e é isto precisamente o que se produz na época
atual.

Bem sabemos que, por causa desta confusão, as


considerações que aqui expomos podem parecer muito
estranhas no mundo ocidental moderno, no qual o que se
chama "espiritual" freqüentemente não tem senão uma
muito longínqua relação com o ponto de vista
estritamente doutrinal e com o conhecimento desligado
de todas as contingências. Pode-se inclusive, a este
respeito. fazer uma curiosa observação: hoje em dia
ninguém se limita a distinguir entre o espiritual e o
temporal, como seria legítimo e inclusive necessário,
senão que se tem a pretensão de separá-los radicalmente;
e justamente ocorre que ambas as ordens jamais
estiveram tão mescladas como no presente, e que,
sobretudo, as preocupações temporais nunca afetaram
tanto àquilo que lhe deveria ser absolutamente
independente; sem dúvida, é inevitável que o seja assim,
em razão das condições própria., de nossa época, às quais
descrevemos em outro lugar. Devemos. além disso. para
evitar toda falsa interpretação, declarar claramente que o
que aqui dizemos não concerne senão ao que
anteriormente chamamos autoridade espiritual em estado
puro, e seria necessário abster-se de procurar exemplos
disso ao nosso redor. Poder-se-á inclusive, caso se queira,

44
que aqui não se trata mais que de um tipo teórico e de
certo modo "ideal". embora, para falar a verdade, esta
maneira de considerar as coisas não seja inteiramente a
nossa: reconhecemos que. de fato. nas aplicações
históricas. é sempre necessário ter em conta as
contingências em certa medida, mas, entretanto. tomamos
à civilização do Ocidente moderno tão somente pelo que
ela é, ou seja, uma separação e uma anomalia. que por
outra parte se ex.plica por sua correspondência com a
última fase do Kali-Yuga.

Mas voltemos para as relações entre o


conhecimento e a ação; já tivemos ocasião de tratar este
tema com certo desenvolvimento (3). e. em conseqüência.
não repetiremos aqui tudo o que dissemos então; mas é,
não obstante. indispensável recordar ao menos os pontos
mais essenciais. Consideramos a antítese entre o Oriente
e Ocidente, no presente estado das coisas. como podendo
em suma reduzir-se a isto: Oriente mantém a
superioridade do conhecimento sobre a ação. enquanto
que o Ocidente moderno afinna pelo contrário a
superioridade da ação sobre o conhecimento, e isto
quando não chega à completa negação deste; dizemos
somente o Ocidente moderno, pois foi de um modo muito
distinto na Anrigüidade e na Idade Média. Todas as
doutrinas tradicionais, sejam orientais ou ocidentais, são
unânimes em afirmar a superioridade e inclusive a
transcendência do conhecimento sobre a ação, com
respeito à qual desempenha de certo modo o papel do
"motor imóvel" de Aristóteles, o que, é obvio, não quer

45
dizer que a ação não tenha também seu lugar legítimo e
sua importância em sua ordem, mas esta ordem não é
mais que a das contingências humanas. A mudança seria
impossível sem um princípio do qual procedesse e que.
precisamente por ser seu princípio, não pode estar
submetido a ele. logo é forçosamente "imóvel", sendo o
centro da "roda das coisas" (4); da mesma forma, a ação.
que pertence ao mundo da transitoriedade, não pode ter
seu princípio em si mesma; toda a realidade da qual é
suscetível é extraída de um princípio que se encontra
além de seu domínio, e que não pode estar mais que no
conhecimento. Só este, efelivamente, pennite sair do
mundo da transitoriedade ou do "suceder" e das
limitações que lhe são inerentes e, quando alcança o
imutável, o que é o caso do conhecimento principiai ou
metafísico, que é o conhecimento por excelência (5),
possui a imutabilidade. já que todo conhecimento
verdadeiro é essencia1mente identificação com seu objeto.
A autoridade espiritual, devido ao que se implica neste
conhecimento, possui em si mesma a imutabilidade; o
poder temporal, pelo contrário, está submetido a todas as
vicissitudes do contingente e do transitório, a menos que
um princípio superior lhe comunique, na medida
compatível com sua natureza e seu caráter, a estabilidade
que não pode obter por seus próprios meios. Este
princípio não pode ser mais que o que é representado pela
autoridade espiritual; o poder temporal tem então
necessidade, para subsistir, de uma consagração que lhe
venha desta; é esta consagração a que proporciona sua
legitimidade, quer dizer, sua conformidade com a ordem

46
mesma das coisas. Tal era a razão de ser da "iniciação
régia", à qual definimos no capítulo anterior; nisso
consiste propriamente o "direito divino" dos reis, ou o
que a tradição extremo-oriental denomina o "mandato do
Céu"; trata-se do exercício do poder temporal em virtude
de uma delegação da autoridade espiritual, à qual este
poder pertence "eminentemente". tal como já explicamos
(6). Toda ação que não proceda do conhecimento carece
de princípio e não é mais que uma vã agitação; do mesmo
modo, todo poder temporal que ignore sua subordinação
frente à autoridade espiritual é igualmente vão e ilusório;
separado de seu princípio, não poderá exercer-se mais
que de uma maneira desordenada, e irá fatalmente a sua
perdição.

Posto que falamos do "mandato do Céu". não


estará fora de propósito narrar aqui como, segundo o
próprio Confúcio, devia cumprir-se este mandato: "Os
antigos príncipes, para fazer brilhar as virtudes naturais
no coração de todos os homens, aplicavam-se em
primeiro lugar a governar bem seus principados. Para
governar bem seus principados, punham antes em ordem
suas famílias. Para pôr ordem em suas famílias,
trabalhavam antes em aperfeiçoar-se a si mesmos. Para
aperfeiçoar-se a si mesmos. ordenavam antes os
movimentos de seus corações. Para ordenar os
movimentos de seus corações, tornavam antes sua
vontade perfeita. Para tomar sua vontade perfeita,
desenvolviam seus conhecimentos ao máximo.
Desenvolviam seus conhecimentos escrutinando a

47
natureza da'i coisas. Uma vez escrutinada a natureza das
coisas, os conhecimentos alcançavam seu mais alto grau.
Tendo chegado os conhecimentos a seu mais alto grau, a
vontade se fazia perfeita. Sendo perfeita a vontade, os
movimentos do coração se ordenavam. Ordenados tais
movimentos, lodo homem está isento de defeitos. Depois
de haver-se corrigido a si mesmo, estabelece-se a ordem
na família. Reinando a ordem na família, o principado
está bem governado. Estando bem governado o
principado, muito em breve todo o reino desfruta da paz"
(7). Há que se reconhecer que existe aqui uma concepção
do papel do soberano que difere singularmente da idéia
que disso se faz o Ocidente moderno, e que o converte
por outra parte em algo muito difícil de cumprir, embora
também lhe dê um alcance muito diferente: e
particularmente se observará que o conhecimento está
expressamente indicado como a primeira condição para o
estabelecimento da ordem. inclusive no domínio
temporal.

É fácil agora compreender que a inversão das


relações entre o conhecimento e a ação, numa civilização,
é uma conseqüência da usurpação da supremacia por
parte do poder temporal; este, efetivamente, deve então
pretender que não exista nenhum domínio superior ao
dele, que é precisamente o da ação. Entretanto, embora as
coisas se apresentem assim, não chegam ainda ao ponto
em que as vemos atualmente, onde todo valor é negado
ao conhecimento; para que assim seja, é preciso que os
próprios Kshatriyas tenham sido alheados de seu poder

48
pelas castas inferiores (8). De fato, como indicamos
anteriormente, os Kshatriyas, inclusive rebeldes, têm
mais tendência a afirmar uma doutrina truncada, falseada
pela ignorância ou pela negação de tudo o que supera a
ordem "física", mas na qual subsistem ainda certos
conhecimentos reais. embora inferiores: podem inclusive
albergar a pretensão de fazer passar a esta doutrina
incompleta e irregular como expressão da verdadeira
tradição. Há aqui uma atitude que, embora imperdoável
com respeito à verdade, não está desprovida ainda de
certa grandeza (9); por outra parte, termos como os de
"nobreza". "heroísmo", "honra", não são, em sua acepção
original. a designação das qualidades que são
essencialmente inerentes à natureza dos Kshatriyas? Pelo
contrário, quando os elementos correspondentes às
funções sociais de uma ordem inferior chegam a dominar
por sua vez. toda doutrina tradicional, inclusive mutilada
ou alterada. desaparece inteiramente; nem sequer subsiste
o menor vestígio da "ciência sagrada'', e é o reino do
"saber profano", quer dizer, da ignorância, o que se toma
por ciência e sente prazer em seu nada. Tudo isto poderia
resumir-se em poucas palavras: a supremacia dos
Brâhmanes mantém a ortodoxia doutrinal; a rebelião dos
Kshatriyas conduz à heterodoxia; mas com a dominação
das castas inferiores. entramos na noite intelectual, e é ela
a que domina atualmente no Ocidente, que por outra pane
ameaça estendendo suas próprias trevas sobre o mundo
inteiro.

49
Seremos reprovados possivelmente por falar como
se houvesse castas em toda pane, e o estender
indevidamente a toda organização social denominações
que não convêm propriamente mais que à Índia; e,
entretanto, posto que tais denominações designam, em
suma, funções que necessariamente se encontram em toda
sociedade, não pensamos que tal extensão seja abusiva. É
certo que a casta não somente é uma função, que também
é, e acima de tudo, o que, na natureza dos indivíduos
humanos, os faz aptos para desempenhar essa função
preferencialmente a qualquer outra; mas tais diferenças
de natureza e de aptidões existem também em todo lugar
onde haja homens. A diferença entre uma sociedade em
que há castas, no verdadeiro sentido da palavra. e outra
em que não as há. consiste em que na primeira se dá uma
normal correspondência entre a natureza dos indivíduos e
as funções exercidas por eles, com a única reserva dos
enganos de aplicação que, em todo caso, não são senão
exceções, enquanto que, na segunda, esta
correspondência não existe, ou, ao menos, não se
encontra mais que acidentalmente; e este último caso é o
que se produz quando a organização social carece de base
tradicional (10). Nos casos nonnais sempre há algo
comparável à instituição das castas, com as devidas
modificações requeridas pelas condições próprias a tal ou
qual povo; mas a organização que encontramos na Índia é
a que representa o tipo mais completo, enquanto
aplicação da doutrina metafísica à ordem humana, e esta
única razão bastaria em suma para justificar a linguagem
que adotamos preferentemente a toda outra que

50
tivéssemos podido tirar de instituições que tenham, por
sua forma mais especializada, um campo de aplicação
muito mais limitado e, em conseqüência, não possam
oferecer as mesmas possibilidades para a expressão de
cenas verdades da ordem completamente geral (11). Há,
por outra parte, outra razão, que, sendo mais contingente,
nem por isso é desprezível. e é esta: é muito notório que a
organização social da Idade Média ocidental estava
exatamente calcada sobre a divisão das castas,
correspondendo o clero aos Brâhmanes, a nobreza aos
Kshatriyas, o terceiro estado aos Vaishyas e os servos aos
Shúdras; não se tratava de castas em toda a acepção da
palavra, mas esta coincidência, que com segurança não
tem nada de fortuito, permite efetuar bem facilmente uma
transposição de tennos para passar de um ao outro de
ambos os casos; e esta observação encontrará sua
aplicação nos exemplos históricos que consideraremos a
seguir.

51
Notas

(1) Segundo a douuina hindu, os três termos "Verdade,


Conhecimen10. Infinito" estão idemificados no Princípio Supremo: é
o sentido da fórmula Satyam Jnânam Anantam Brahma.

(2) Na Índia, o conhecimento (l'idyâ). segundo seu objeto ou seu


domínio, distingue-se em "supremo" (parâ) e "não supremo" (aparâ).

(3) "A Crise do Mundo Moderno". cap. Ili.

(4) O centro imóvel é a imagem do princípio imutável. e tomamos


aqui o movimento para simbolizar a mudança em geral. do que não é
mais que uma espécie particular.

(5) Pelo contrário. o conhecimento "físico" não é mais que o


conhecimento das leis da mudança. leis que somente são o reflexo
dos princípios transcendentes na natureza: esta. integralmente, não é
mais que o domínio da mudança; por outra parte. o latim natura e o
grego physis expressam ambos a idéia de "devir".

(6) Por isso, a palavra melek. que significa "rei" em hebraico e em


árabe, tem ao mesmo tempo, e inclusive em primeiro lugar. o sentido
de "enviado".

(7) Ta-hio, 1• parte, tradução de P. Couvreur.

(8) Em particular. o fato de conceder uma importância preponderante


às considerações de ordem econômica, que é um caráter muito
patente de nossa época, pode ser considerado como um sinal da
dominação dos Vaisliyas. cujo equi\'a]ente aproximado está
representado no mundo ocidental pela burguesia; e efetivamente é
esta a que domina depois da Revolução.

(9) Esta atitude dos Kshalriyas rebeldes poderia ser caracterizada


exatamente pela denominação de "luciferismo", que não deve ser

52
confundido com o "satanismo", embora sem dúvida entre um e outro
exista certa conexão: o "\uciferismo" é a repul~ ao reconhecimento
de uma autoridade superior; o "satanismo" é a inversão das relações
normais e da ordem hierárquica; e este é freqüentemente uma
conseqüência daquele, assim como Lúcifer se converteu em Satã
depois de sua queda.

(10) Quase não há necessidade de assinalar que as "classes" sociais.


tal como se as entende hoje no Ocidente. não têm nada em comum
com as verdadeiras castas. e não são mais que uma espécie de
falsificação sem valor nem alcance. ao não estarem absolutamente
fundadas sobre a diferença das possibilidades implícitas na natureza
dos indivíduos.

(11) A razão pela qual é dessa forma consiste em que a doutrina


hindu é. entre as doutrinas tradicionais que subsistiram até nossos
dias. a que parece derivar mais diretamente da tradição primitiva;
mas este é um ponto sobre o qual não vamos insistir aqui.
Capítulo IV: NATUREZA
RESPECTIVA DOS BRÂHMANES E
DOS KSHATRIYAS
Sabedoria e força. tais são os atributos respeclivos
dos Brâhmanes e dos Kshatriyas. ou, caso se prefira, da
autoridade espiritual e do poder temporal; é interessante
notar que, entre os antigos egípcio~. o símbolo da
Esfinge. num de seus significados. reunia precisamente
estes dois atributos considerados segundo suas relações
normais. De fato, a cabeça humana pode ser considerada
como representando a sabedoria. e o corpo de leão, a
força; a cabeça é a autoridade espiritual que dirige. e o
corpo é o poder temporal que atua. É. além disso. digno
de assinalar que a Esfinge sempre está representada em
repouso, tomando-se aqui o poder temporal no estado de
"não ação" em seu princípio espiritual. no qual está
contido "eminentemente", quer dizer, apenas como
possibilidade de ação, ou. melhor dizendo. no princípio
divino que unifica o espiritual e o temporal, estando além
de sua distinção, e sendo a fonte comum da qual ambos
procedem, embora o primeiro diretamente e o segundo de
maneira indireta e por mediação do primeiro. Noutro
lugar encontramos um símbolo verbal que. por sua
constituição hieroglífica, é um exato equivalente daquele:
é o nome dos Druidas, que se lê dru-vid, no qual a
primeira raiz significa a força, e a !->egunda a sabedoria
(1); e a reunião de ambos os atributos ne~se nome, como
a dos dois elementos da Esfinge num só ser, além de

54
indicar que a realeza está implicitamente contida no
sacerdócio, é sem dúvida uma lembrança da longínqua
época em que os dois poderes estavam ainda unidos, em
estado de indistinção primitivo, em seu princípio comum
e supremo (2).

Já consagramos um estudo especial a este


princípio supremo dos dois poderes (3); indicávamos
então como, de visível que era a princípio, fez-se
invisível e se ocultou. retirando-se do "mundo exterior"
na medida em que este se afastava de seu estado
primitivo, o que necessariamente devia conduzir à
aparente divisão de ambos os poderes. Demonstramos
também como esse princípio se encontra, sob nomes e
símbolos diversos, em todas as tradições, e como aparece
especialmente na tradição judaico-cristã nas figuras de
Melquisedeque e dos Reis Magos. Recordaremos apenas
que, no Cristianismo, o reconhecimento deste princípio
único subsiste sempre, ao menos teoricamente, e se
afinna pela consideração das duas funções sacerdotal e
real como inseparáveis na própria pessoa de Cristo.
Desde certo ponto de vista, por outra parte, ambas as
funções. referentes assim a seu princípio, podem ser
consideradas como sendo de certo modo complementares,
logo, embora a segunda, para falar a verdade, possua seu
princípio imediato na primeira, há não obstante entre elas,
em sua própria distinção, uma espécie de correlação. Em
outras palavras, do momento em que o sacerdócio não
implica, de maneira habitual, no exercício efetivo da
realeza, é preciso que os representantes respectivos do
sacerdócio e da realeza extraiam seu poder de uma fonte
comum. que está "além das castas"; a diferença
hierárquica que existe entre elas consiste em que o
sacerdócio recebe seu poder diretamente desta fonte, com
a qual está em contato imediato por sua própria natureza,
enquanto que a realeza. em razão do caráter mais exterior
e propriamente terrestre de sua função, só pode receber o
seu apenas por mediação do sacerdócio. Este, de fato,
desempenha verdadeiramente o papel de "mediador"
entre o Céu e a Terra; e não é casual que a plenitude do
sacerdócio tenha recebido, nas tradições ocidentais, o
nome simbólico de "pontificado". pois, tal e como disse
São Bernardo, "o Pontífice, como o indica a etimologia
de seu nome, é uma espécie de ponte entre Deus e o
homem" (4). Se for possível então remontar-se à origem
primitiva de ambos os poderes, sacerdotal e real. é no
"mundo celestial" onde é preciso buscá-lo; isto. além do
mais. pode ser interpretado real e simbolicamente,
simultaneamente (5); mas esta questão é [uma] daquelas
cujo desenvolvimento transbordaria o limite do presente
estudo e. se tivennos devotado uma breve visão de
conjunto, é porque não vamos poder evitar, no que se
segue, aludir às vezes a esta fonte comum dos dois
poderes.

Retomando o que foi o ponto de partida desta


digressão, é evidente que os atributos de sabedoria e de
força se referem respecti,vamente ao conhecimento e à
ação; por outra pane, na lndia, ainda se diz. em conexão
com o mesmo ponto de vista, que o Brâhmane é o tipo

56
dos seres estáveis, e que o Kshatriya é o tipo dos seres
mutáveis (6); em outros termos, na ordem social. que
além do mais está em perfeita correspondência com a
ordem cósmica, o primeiro representa o elemento
imutável, e o segundo o elemento móvel. Aqui ainda, a
imutabilidade é a do conhecimento, que por outra pane
está representado sensivelmente pela postura imóvel do
homem em meditação; a mobilidade, por sua parte, é
aquela que é inerente à ação, devido ao caráter transitório
e momentâneo desta. Enfim, a natureza própria do
Brâhmane e a do Kshatriya se distinguem
fundamentalmente pelo predomínio de um guna
diferente; como em outro lugar explicamos (7), a doutrina
hindu considera três gunas, qualidades constitutivas dos
seres em todos seus estados de manifestação: sattwa, a
conformidade à pura essência do Ser universal, que se
identifica com a luz inteligível ou com o conhecimento, e
é representado como uma tendência a'icendente; rajas, o
impulso expansivo, segundo o qual o ser se desenvolve
num determinado estado e, de certo modo, num nível
determinado da existência; finalmente, ramas, a
obscuridão, assimilado à ignorância, e representado como
uma tendência descendente. Os gunas estão em perfeito
equilíbrio na indiferenciação primitiva. e toda
manifestação representa uma ruptura deste equilíbrio;
estes três elementos estão em todos os seres. mas em
proporções diversas. que determinam as respectivas
tendências de tais seres. Na natureza do Brâhmane
predomina sauwa, orientando-o para os estados supra-
humanos; na do Kshatriya, rajas, que tende à realização

57
das possibilidades compreendidas no estado humano (8).
Ao predonúnio de sattwa corresponde o da
intelectualidade; ao de rajas, o que, a falta de um tenno
mais adequado, podemos chamar a sentimentalidade; e
esta é outra justificação do anterionnente mencionado,
que o Kshatriya não está feito para o puro conhecimento:
a via que lhe convém é a via à que poderia denominar-se
"devocional", se nos é permitido empregar tal tenno para
significar, bastante imperfeitamente por sinal, a palavra
sânscrita bhakti, ou seja, a via que toma como ponto de
partida um elemento da ordem emotiva; e, embora esta
via se ache também fora das formas propriamente
religiosas, o papel do elemento emotivo não está em parte
alguma tão desenvolvido como nestas. onde afeta com
um colorido especial à expressão da doutrina toda inteira.

Esta última observação permite advertir a


verdadeira razão de ser destas formas religiosas: convêm
particularmente às raças cujas aptidões estão, de maneira
geral, dirigidas, sobretudo, à ação, quer dizer, àquelas
que, consideradas coletivamente, têm nelas um
predomínio de elementos "rajásicos", característicos da
natureza dos Kshatriyas. Este caso é o do mundo
ocidental e, por isso, como já em outro lugar assinalamos
(9), diz-se na Índia que, se o Ocidente retornasse a um
estado nonnal e possuísse de novo uma organização
social regular, encontrar-se-iam muitos Kshatriyas, mas
poucos Brâhmanes; também por isso a religião, entendida
em seu sentido mais estrito, é algo propriamente
ocidental. Além disso, é o que explica que não pareça

58
haver, no Ocidente, autoridade espiritual pura, ou que ao
menos não se afirme exteriormente como tal, com as
características que precisamos anteriormente. A
adaptação religiosa, assim como a constituição de
qualquer outra forma tradicional, é entretanto devida a
uma verdadeira autoridade espiritual. no sentido mais
completo da palavra; e esta autoridade, que parece então
ao exterior como religiosa, pode também, ao mesmo
tempo. ser algo distinto em si mesma. enquanto haja em
seu seio verdadeiros Brâhmanes, e com isto entendemos
uma elite intelectual que conserve consciência daquilo
que está além de todas as formas particulares, ou seja, da
essência profunda da tradição. Para tal elite, a forma não
pode desempenhar mais que um papel de "suporte" e, por
outra parte, oferece um meio de fazer participar da
tradição àqueles que não têm acesso à pura
intelectualidade; ma<; estes últimos, naturalmente, não
vêem nada mais além da forma, já que suas próprias
possibilidades intelectuais não lhes permitem ir mais
longe e, consequentemente, a autoridade espiritual não
tem por que mostrar-se a eles sob outro aspecto senão o
que corresponda a sua natureza (10), embora seu ensino,
inclusive o exterior. esteja sempre inspirado no espírito
da doutrina superior (11)_ Mas também pode ocorrer que,
uma vez realizada a adaptação, aqueles que são os
depositários desta forma tradicional se encontrem, por
sua vez, fechados nela, devido à perda do conhecimento
efetivo do que está além; isto, por outra parte. pode ser
devido a diversas circunstâncias, especialmente à "mescla
das castas", em razão da qual pode acontecer que entre

59
eles se encontrem homens que, na realidade, são em sua
maior parte Kshatriyas; é fácil compreender, por isso
acabamos de dizer, que este caso seja possível
principalmente no Ocidente, tanto mais na medida em
que a forma religiosa possa prestar-se particularmente a
isso. De fato, a combinação de elementos intelectuais e
sentimentais que caracteriza a esta fonna cria uma
espécie de domínio misto, no qual o conhecimento é
considerado muito menos em si mesmo que em sua
aplicação à ação; se a distinção entre a "iniciação
sacerdotal" e a "iniciação real" não se manteve de uma
fonna clara e rigorosa, tem-se então um terreno
intennediário no qual podem produzir-se toda classe de
confusões, sem necessidade de se falar de certos conflitos
que nem sequer seriam concebíveis caso o poder
temporal tivesse a sua frente uma autoridade espiritual
pura (12).

Não vamos aqui investigar qual é, das duas


possibilidades que acabamos de indicar, a que
corresponde atualmente ao estado religioso do mundo
ocidental, e a razão disso é fácil de compreender: uma
autoridade religiosa não pode ter a aparência do que
denominamos uma autoridade espiritual pura, mesmo que
possua interiormente sua realidade; certamente houve um
tempo no qual possuiu esta realidade, mas ainda a possui
de fato agora? (13) Isto seria muito difícil de responder,
pois no momento em que a verdadeira intelectualidade se
perdeu tão completamente como na época moderna, é
natural que a pane superior e "interior" da tradição se

60
torne cada vez mais oculta e inacessível. posto que
aqueles que são capazes de compreendê-la não são já
mais que uma ínfima minoria; queremos. até que não nos
demonstre o contrário, admitir que possa ser assim e que
a consciência da tradição integral, com tudo o que ela
implica. subsista ainda efetivamente em alguns, por
pouco numerosos que sejam. Por outra parte, ainda que
esta consciência tivesse desaparecido por completo, nem
por isso deixaria de ser ceno que toda forma tradicional
regularmente constituída, tão somente pela conservação
da "letra" ao abrigo de toda alteração, mantém sempre a
possibilidade de sua restauração, que se produzirá se
algum dia se encontrarem, entre os representantes desta
forma tradicional, homens que possuam as aptidões
intelectuais requeridas. Em todo caso. embora, por
qualquer meio. tivéssemos a este respeito dados mais
precisos, não os exporemos aqui publicamente a menos
que sejamos levados a isso por circunstâncias
excepcionais, e eis aqui o porquê: uma autoridade que
não é mais que religiosa, no caso mais desfavorável, é
ainda uma autoridade espiritual relativa; queremos dizer
que, sem ser uma autoridade espiritual plenamente
efetiva. leva em si a virtualidade para isso. que extrai de
sua origem e, por isso, sempre pode desempenhar sua
função no exterior (14); cumpre então legitimamente seu
papel frente ao poder temporal, e deve ser
verdadeiramente considerada como tal em suas relações
com este. Quem tenha compreendido nosso ponto de vista
poderá. sem dificuldade, dar-se conta de que, em caso de
conflito entre uma autoridade espiritual. seja qual for,

61
inclusive relativa, e um poder puramente temporal,
sempre devemo~ nos situar a princípio do lado da
autoridade espiritual~ dizemos "a princípio", pois deve
ficar claro que não temos a menor intenção de intervir
ativamente em tais conflitos, nem sobretudo de adotar
uma posição qualquer nas questões do mundo ocidental. o
que, por outra parte, não seria absolutamente nosso papel.

Não faremos então, nos exemplos que vamos


considerar a seguir, distinções denrre aqueles dos quais se
tratam de uma autoridade espiritual pura e daqueles nos
quais não podem se tratar mais do que de uma autoridade
espiritual relativa; consideraremos como autoridade
espiritual, em todos os casos, àquela que socialmente
desempenhe esta função; e, além do mais, as notáveis
~imilaridades que apresentam todos estes casos, por
afastados que possam estar uns de outros na história,
justificarão suficientemente esta assimilação. Não
teríamos que estabelecer distinções, ainda que se
expusesse a questão da po~~e efetiva da pura
intelectualidade e, de fato, esta não é exposta aqui;
igualmente, do mesmo modo, no que concerne a uma
autoridade vinculada exclusivamente a certa forma
tradicional, não teremos que nos preocupar de delimitar
exatamente suas fronteiras, se nos permite a expressão,
mais que no caso no qual as pretendesse transpor. e este
caso não é o que vamos agora a examinar. Sobre este
último ponto, recordaremos o que dissemos antes: 0
superior contém "eminentemente" o inferior; aquele que é
competente em certos limites, que definem seu domínio

62
próprio, o é também então. a fortiori, para tudo o que está
mais para cá desses mesmos limites, enquanto que, pelo
contrário, não o é quanto ao que está além; se esta regra
muito simples, ao menos para quem possui uma justa
noção da hierarquia, fosse observada e aplicada como
convém, nenhuma confusão de domínios e nenhum
engano de "jurisdição". para dizer desta forma, produzir-
se-ia jamais. Sem dúvida, alguns não verão, nas
distinções e reservas que fonnulamos. senão precauções
de uma utilidade bastante duvidosa, e outros se sentirão
tentados a não lhes atribuir, quando muito, mais que um
valor puramente teórico; mas pensamos que há outros que
ainda compreenderão que, na realidade, são [coisas]
muito distintas, e convidamos estes últimos a refletir com
uma atenção muito particular.
Notas

(]) Este nome tem. além do mais. um duplo sentido. que se refere a
outro simbolismo: dru ou dero, como o latim rob11r, designa ao
mesmo tempo a força e o carvalho (em grego drus); por outra parte,
vid é, como em sânscrito, a sabedoria ou o conhecimento,
relacionado à visão. enquanto que 1ambém é o visgo: assim. dni-i•id é
o visgo do carvalho, que efetivamente era um dos principais símbolos
do Druidismo. e ao mesmo tempo é o homem em quem reside a
sabedoria apoiada sobre a força. Além disso, a raiz dru, como se vê
nas formas sânscritas equivalemes dhru e dhri, implica a idéia de
estabilidade, que, além do mais. é um dos sen1idos do símbolo da
árvore em geral e do carvalho em particular; e este sentido de
estabilidade corresponde aqui exatamente à ati1ude da Esfinge em
repouso.
(2) No Egito. a incorporação do rei ao sacerdócio. que assinalamos
anteriormeme segundo as palavras do Plutarco. era por outra parte
como um vestígio deste antigo eslado de coisas.
(3) ·-o Rei do Mundo".
(4) Traculf11s de Moribus et Officio Episcoporum. III. 9. A propósito
disso, e em relação com o que indicamos a respeilo da Esfinge. é de
se destacar que esla representa o Harmakliis ou Honnaklro111i, o
"Senhor dos dois horizontes". quer dizer. o princípio que une os
mundos sensível e supra-sensível. 1errestre e celeste: e esta é uma das
razões pelas quais. nos primeiros tempos do Cristianismo. foi
considerada como um símbolo de Cristo. Outra razão para este fato é
que a esfinge. como o grifo ·do qual fala Dante, é "o animal de duas
na1urezas". representando por isso a união das naturezas divina e
humana em Cristo: e pode encontrar-se ainda urna terceira razão no
aspecto sob o qual ele simboliza. como dissemos, a união dos dois
poderes, espiritual e temporal. sacerdotal e real, em seu princípio
supremo.
(S) Trata-se aqui da concepção tradicional dos "três mundos". que já
explicamos além de tudo em diferentes ocasiões: desde este ponto de

64
vista, a realeza corresponde ao "mundo terres1re", o sacerdócio ao
"mundo intermédio", e seu princípio comum ao "mundo celestial":
mas é conveniente acrescentar que, desde que este princípio se fez
invisível aos homens. o sacerdócio representa também exi.erionnente
o "mundo celestial".
(6) O conjunto de todos os seres, assim divididos em estáveis e
mutáveis, é designado em sânscrito com o nome composto sthâ\'ara-
jar1gama; desta forma. todos, segundo sua natureza. estão
principalmente em relação, seja com o Brâhmane, seja com o
Kshatriya.
(7) ..O Homem e seu Devir Segundo o Vedanta", cap. IV.
(8) Aos três gunas correspondem três cores simbólicas: o branco a
satf\\'a, o vermelho a rajas, o negro a tamas; em vinude da relação
aqui indicada. as duas primeiras cores simbolizam também.
respectivamente. a autoridade espiritual e o poder temporal. É
interes~nle notar a propósito dislo que a "auriflama" dos reis da
França era vermelha; a posterior substituição do vermelho pelo
branco como cor real indica, de certo modo. a usurpação de um dos
atributos da autoridade espiritual.
(9) "A Crise do Mundo Moderno", P. 45 (2ªed.).
(10) É dito simbolicamente que os deuses. quando aparecem ante os
homens, revestem!-se] sempre (com as] formas que estão
relacionadas com a natureza própria daqueles a quem se manifestam.
(li) Trata-se ainda, aqui. da distinção. que já indicamos
anteriormente, entre "quem sabe" e "'quem acredita".
(12) Tendo sido esquecido o conhecimento "supremo", não subsiste.
então, mais que um conhecimento "não !>Upremo". não mais devido a
uma revolta dos Ksliatriya:'i. como no caso que anteriormente
consideramos, senão por uma espécie de degeneração intelectual do
elemento que corresponde aos Brâlmranes não por sua função, mas
!>im por sua natureza; neste último caso. a tradição não é alterada
como no outro. mas tão somente diminuída em sua parte superior; o
último grau desta degeneração é aquele no qual já não subsiste

65
nenhum conhecimento efetivo. aquele em que só a virtualidade deste
conhecimemo subsiste graças à conservação da "letra", e onde
somente existe uma simples crença, indistintamente em lodos. Deve
se acrescemar que os dois casos que aqui separamos teoricameme
podem, também, combinar-se de fato, ou ao menos produzir-se
concorrentemen1e num mesmo meio e, por assim dizer, condicionar-
se reciprocamente; mas isto pouco importa, pois, neste ponto. não
pretendemos fazer nenhuma aplicação de fatos detenninados.
(13) Esta questão corresponde. sob uma forma diferente. àquela
an1eriormen1c ex.posta com relação à "Igreja ensinadora" e a "Igreja
ensinada".
(14) É necessário indicar que quem desempenha assim a função
exterior dos Brâhmai1es, sem possuir realmente as qualificações para
isso. não é por causa disso [um] usurpador. como o seriam os
Kshatriyas rebeldes que tivessem tomado o lugar dos Brâhmanes
para instaurar uma tradição desviada; não se trata aqui. de fato, mais
do que uma siruação devida às condições desfavoráveis de certo
meio. que, por outra parle, assegura a manutenção da doutrina em
toda a medida compatível com tais condições. Sempre se poderia.
inclusive na hipótese mais desfavorável, aplicar aqui esta sentença do
Evangelho: "Na cadeira de Moisés se assentam os escribas e fariseus.
Portanto, 1udo o que vos disserem, isso fazei e observai" (Mateus.
XXlll. 2·3).

66
Capítulo V: DEPENDÊNCIA DA
REALEZA COM RELAÇÃO AO
SACERDÓCIO
Voltemos agora para as relações entre Bnihmanes
e Kslwrriya.'i na organização social da Índia: aos
Kshatriyas pertence normalmente toda a potência
exterior, já que o domínio da ação, que é o que
diretamente lhes concerne, é o mundo exterior e sensível;
mas tal potência não é nada sem um princípio interior,
puramente espiritual, encarnado na autoridade dos
Brâhmanes. e no qual encontra sua única garantia real.
Comprova-se assim que a relação entre ambos os poderes
poderia também ser representada como a do "interior" e
do "exterior". relação que, efetivamente. simboliza a
existente entre o conhecimento e a ação. ou. como queira,
entre o "motor" e o "móvel", retomando a idéia que
anteriormente expusemos ao nos referirmos tanto à teoria
aristotélica quanto à doutrina hindu (1). É da harmonia
entre este "interior" e este "exterior" (haJTilonia que, por
outra pane, não deve absolutamente ser concebida como
uma espécie de "paralelismo". pois isso seria desconhecer
as diferenças essenciais dos dois domínios) de onde
resulta a via normal do que pode se denominar "entidade
social", sem pretender sugerir no emprego desta
expressão uma comparação qualquer entre a coletividade
e um ser vivo, ainda mais que, em nossos dias. alguns
tenham abusado que modo estranho de dita comparação.

67
tomando erroneamente como identidade verdadeira o que
não é mais que analogia e correspondência (2).

Em troca da garantia que oferece a sua potência a


autoridade espiritual, os Kshatriyas devem, com ajuda da
força da qual dispõem, assegurar aos Brâhmanes o meio
de cumprir em paz. ao abrigo da confusão e da agitação.
sua própria função de conhecimento e de ensino; é o que
o simbolismo hindu representa na figura de Skanda, o
Senhor da guerra. protegendo a meditação da Ganêsha, o
Senhor do conhecimento (3). Cabe notar que o mesmo
era ensinado, inclusive exteriormente, na Idade Média
ocidental; efetivamente. Santo Tomás de Aquino declara
expressamente que todas ao;; funções humanas estão
subordinadas à contemplação como a um fim superior.
"de maneira que. ao considerá-las como se devem, todas
aparecem ao serviço de quem contempla a verdade", e
que o governo da vida civil tem, no fundo, como
verdadeira razão de ser, assegurar a paz necessária para
esta contemplação.

Vê-se quão longe islo está do ponto de vista


moderno. e também se observa que o predomínio da
tendência à ação, tal como indubitavelmente existe entre
os povos ocidentais. não implica necessariamente na
depreciação da contemplação. ou seja. do conhecimento,
ao menos enquanto tais povos possuam uma civilização
de caráter tradicional, seja qual for, por outra parte, a
forma com a qual se revista a tradição. e que aqui era uma
forma religiosa, de onde o matiz teológico que, na

68
concepção de Santo Tomás. se vincula sempre
contemplação, enquanto que, no Oriente, esta
considerada na ordem da metafísica pura.

Por outra parte, na doutrina hindu e na


organização social -que constitui sua aplicação, e por
conseguinte num povo no qual as aptidões
contemplativas. entendidas aqui num sentido de pura
intelectualidade, são manifestamente preponderantes e
inclusive estão geralmente desenvolvidas num grau que
possivelmente não se encontre em parte alguma, o lugar
que corresponde aos Kshatriyas, e consequentemente à
ação, estando subordinado como normalmente deve ser.
acha-se não obstante muito longe de ser desprezível,
posto que compreende tudo aquilo que pode ser chamado
"poder aparente". Por outro lado, como já indicamos em
outra ocasião (4). quem, sob a influência das
interpretações errôneas que têm lugar no Ocidente,
duvidasse desta importância muito real, embora relativa,
concedida à ação pela doutrina hindu, e também por todas
as demais doutrinas tradicionais, não teriam, para se
convencer, mais que acudir ao Bhaga1'ad-Gi1â, que -não
se deve esquecer caso se queira compreender seu sentido-
é um desses livros especialmente destinados ao uso dos
Kshatriyas e aos quais aludimos anterionnente (5). Os
Brâhmanes devem exercer uma autoridade de certo modo
invisível, que, como tal, pode ser ignorada pelo vulgo,
mas não deixa de ser o princípio imediato de todo poder
visível; tal autoridade é como o pivô em tomo do qual
gira todo o contingente, o eixo fixo ao redor do qual o

69
mundo cumpre sua revolução. o pólo ou o centro
imutável que dirige e regula o movimento cósmico sem
participar dele (6).

A dependência do poder temporal com respeito à


autoridade espiritual tem seu signo visível na coroação
dos reis: estes não são realmente "legítimos" senão
quando recebam do sacerdócio a investidura e a
consagração, que implica na transmissão de uma
"influência espiritual" necessária para o exercício regular
de suas funções (7). Esta influência se manifestava às
vezes ao exterior mediante efeitos claramente sensíveis, e
citaremos como exemplo o poder de cura dos reis da
França. que efetivamente estava diretamente relacionado
com a consagração; não era transmitida ao rei por seu
predecessor, mas simplesmente a recebia por ocasião da
coroação. Isto demonstra que tal influência não pertence
propriamente ao rei, mas lhe é conferida por uma espécie
de delegação da autoridade espiritual, delegação em que,
como já indicamos antes, consiste propriamente no
"direito divino"; o rei não é, pois. mais que seu
depositário e, em conseqüência. pode perdê-lo em certos
casos; por isso, na "Cristandade" da Idade Média. o Papa
podia liberar as pessoas de seu juramento de fidelidade ao
soberano (8). Além disso. na tradição católica, São Pedro
é representado tendo em suas mãos não só a "chave de
ouro" do poder sacerdotal, mas também a "chave de
prata" do poder real; ambas as chaves eram. entre os
antigos romanos, um dos atributos de Jano, e se tratava
então das chaves dos "grandes mistérios" e dos "pequenos

70
mistérios" que, como já explicamos. correspondem
também respectivamente à "iniciação sacerdotal" e à
"iniciação real" (9). É preciso observar a este respeito que
J ano representa a origem comum dos dois poderes,
enquanto que São Pedro é propriamente a encarnação do
poder sacerdotal. ao qual as duas chaves são assim
transferidas, pois é por sua mediação que se transmite o
poder real, enquanto que o primeiro é recebido
diretamente da fonte comum (10).

O que acabamos de dizer define as relações


normais entre a autoridade espiritual e o poder temporal;
e se estas relações fossem sempre e em todas as partes
observadas, jamais nenhum conflito poderia interpor-se
entre um e outro. ocupando assim cada um ~eu lugar em
virtude da hierarquia das funções e dos seres, hierarquia
que, insistimos. é estritamente conforme à natureza
mesma das coisas. Infelizmente, de fato. isso está longe
de ser sempre assim, e tais relações normais
freqüentemente foram ignoradas e inclusive invertidas; a
este respeito, importa notar primeiro que é já um grave
engano considerar simplesmente o espiritual e o temporal
como dois termos correlativos ou complementares, sem
dar-se conta que o temporal tem seu princípio no
espiritual. Tal engano pode ser cometido com mais
facilidade visto que, como já indicamos, tal consideração
da complementaridade tem também sua razão de ser
desde certo ponto de vista. ao menos no estado de divisão
dos dois poderes. no qual um não tem no outro seu
princípio supremo e último, senão somente seu princípio

71
imediato e também relativo. Tal e como temos feito notar
em outro lugar no que concerne ao conhecimento e à ação
(11), tal complementaridade não é falsa, mas apenas
insuficiente, porque só corresponde a um ponto de vista
que ainda é exterior, como o é, por outra parte, a própria
divisão entre ambos os poderes, tornada necessária
devido a um estado do mundo no qual o poder único e
supremo já não está ao alcance da humanidade ordinária.
Poder-se-ia, inclusive. dizer que, quando se diferenciam,
os dois poderes se apresentam em princípio forçosamente
numa relação normal de subordinação. e que sua
concepção como correlativos aparece numa fase posterior
da marcha descendente do ciclo histórico; a esta nova
fase se referem particularmente certas expressões
simbólicas que põem especialmente em evidência o
aspecto da complementaridade, embora uma
interpretação correta possa fazer reconhecer também aqui
uma sugestão da relação de subordinação. Tal é
concretamente o apólogo bem conhecido, embora pouco
compreendido no Ocidente, do cego e do paralítico, que
efetivamente representam, num de seus principais
significados. ao;; relações entre a vida ativa e a vida
contemplativa; a ação liberada a si mesma é cega, e a
imutabilidade essencial do conhecimento se traduz ao
exterior como uma imobilidade comparável à do
paralítico. O ponto de vista da complementaridade está
indicado pela ajuda mútua entre os dois homens, em que
cada um supre com suas próprias faculdades aquilo de
que carece o outro; e se a origem desce apólogo. ou ao
menos a consideração mais especial da aplicação que
assim se faz dele (12), deve ser relacionada com o
Confucionismo, é fácil compreender que este
efetivamente deve se limitar a tal ponto de vista, assim
como exclusivamente se mantém na ordem humana e
social. Indicaremos inclusive, a propósito disso, que, na
China. a distinção entre o Taoísmo, doutrina puramente
metafísica, e o Confucionismo, doutrina social,
provenientes um e outro de uma mesma tradição integral
que representa seu princípio comum, corresponde
exatamente à distinção entre o espiritual e o temporal
(13); e devemos acrescentar que a importância do "não-
agir" do ponto de vista do Taoísmo justifica
especialmente, para quem o considere do exterior (14). o
simbolismo empregado no apólogo em questão. Não
obstante, é necessário ter em conta que, na associação
entre ambos os homens, é o paralítico o que desempenha
o papel diretor, e sua própria posição -montado sobre os
ombros do cego- simboliza a superioridade da
contemplação sobre a ação, superioridade que o próprio
Confúcio estava muito longe de negar em princípio, como
testemunha o relato de seu encontro com Lao-Tsé, tal
como foi conservado pelo historiador Sse-ma-tsien;
confessava, além disso, que ele não havia "nascido no
conhecimento", quer dizer, que não tinha alcançado o
conhecimento por excelência, que é o da ordem
metafísica pura, e que, como dissemos anteriormente,
pertence exclusivamente, por sua própria natureza, aos
depositários da verdadeira autoridade espiritual (15).

73
De modo que, se é um engano considerar o
espiritual e o temporal como simplesmente correlativos,
há outro. mais grave ainda, que consiste em pretender
subordinar o espiritual ao temporal, quer dizer, em suma,
o conhecimento à ação; este engano. que inverte
completamente as relações normais, corresponde à
tendência que é, de uma maneira geral, a do ocidente
moderno, e evidentemente que não se pode produzir
exceto num período de decadência intelectual muito
avançada. Em nossos dias, por outra parte, alguns chegam
inclusive mais longe neste sentido, até à negação do valor
próprio do conhecimento como tal, e também, por uma
conseqüência lógica. pois ambas são estreitamente
solidárias. até a negação pura e simples de toda
autoridade espiritual; este último grau de degeneração,
que implica o domínio das castas mais inferiores, é um
dos sinais característicos da fase final do Kali-Yuga. Se
em particular consideramos a religião, posto que é a
forma especial que adota o espiritual no mundo ocidental.
a inversão das relações pode se expressar da seguinte
maneira: em lugar de considerar a ordem social por
completo como derivando da religião, como, de certa
forma, estando suspensa dela e tendo nela seu princípio,
tal como era na "Cristandade" da Idade ~édia, e tal como
igualmente o é no Islã. que a este respeito é muito
comparável. não se quer hoje em dia ver na religião, no
máximo, senão um dos elementos da ordem social, um
elemento dentre os outros e sob o mesmo título que os
outros; é a servidão do espiritual ao temporal, ou
inclusive sua absorção. à espera da completa negação

74
espiritual que é sua conclusão inevitável. De fato,
considerar as coisas desta maneira induz forçosamente a
"humanizar" a religião, quer dizer, a tratá-la como um
fato puramente humano. da ordem social ou, melhor,
"sociológica" para uns, ou da ordem psicológica para
outros; e. então. para falar a verdade, já não é religião,
pois esta implica essencialmente algo "supra-humano", à
falta do qual já não estamos no domínio espiritual, sendo
em realidade idênticos no fundo o temporal e o humano,
segundo o que anterionnente explicamos; há aqui então
uma verdadeira negação implícita da religião e do
espiritual. sejam quais possam ser suas aparências, de tal
modo que a negação explícita e provada será menos a
instauração de um no\'o estado de coisas que o
reconhecimento de um fato completo. Assim, a inversão
das relações prepara diretamente a supressão do termo
superior, inclusive a implica, ao menos virtualmente, tal
como a rebelião dos Kshatriyas contra a autoridade dos
Brâhmanes, tal como veremos, prepara e impulsiona. por
assim dizer, o predomínio das casta<; mais inferiores; e
quem tenha seguido até aqui nossa exposição
compreenderão sem muito esforço que há nesta relação
algo mais que uma simples comparação.
Notas

(1) Também poderia se aplicar aqui, como fizemos emão, a imagem


do centro e da circunferência da "roda das coisas"
(2) O ser-vivo tem em si mesmo seu princípio de unidade, superior à
multiplicidade dos elementos que entram em sua constituição; não há
nada assim na coletividade, que é propriamente tão somente a soma
dos indivíduos que a compõem; em conseqüência, uma palavra como
a de "organização". quando é aplicada a ambos, não pode
rigorosamente ser tomada no mesmo sentido. Não obstante, é
possível afirmar que a presença de uma autoridade espiritual introduz
na sociedade um princípio superior aos indivíduos. já que esta
autoridade, por sua natureza e por sua origem, é "supra-individual";
mas isto ~upõe que a sociedade não é considerada somente sob seu
aspecto temporal, e esta consideração, a única que pode fazer dela
algo mais que uma simples coletividade no sentido indicado, é
precisamente daquelas que escapam por completo aos sociólogos
contemporâneos que pretendem identificar a sociedade com um ser
vivo.
(3) Ga11êsha e Skanda são, além disso, representados como irmãos.
sendo ambos os filhos do Shil'a; eis aqui. pois, outra maneira de
expressar que os dois poderes espiritual e temporal procedem de um
princípio único.
(4) "A Crise do Mundo Moderno", P. 47 (2.edição).
(5) O Bhagal'ad-Gitâ não é, propriamente falando. mais que um
episódio do Mahâbllârata. que é um dos dois ltihâsas. sendo o outro
o Râmâmna. Esta característica do Bhagavad-Gitâ explica o
emprego. de um simbolismo guerreiro. comparável, em cenos
aspectos, ao da "guerra Santa" entre os muçulmanos: existe por outra
parte um modo "interior" de ler este livro, dando-lhe al>sim seu
sentido profundo. e então toma o nome de "Atmâ-Gitâ".
(6) O eixo e o pólo !ião acima de tudo símbolos do princípio único
dos dois poderes, assim como explicamos em nosso estudo sobre "O

76
Rei do Mundo"; mas tais símbolos também podem ser aplicados à
autoridade espiritual em referência ao poder temporal, como aqui
fazemos, pois e::.ta autoridade, em razão de seu atributo essencial de
conhecimento, forma parte efetivamente da imutabilidade do
princípio supremo, que é o que os mencionados símbolos expressam
fundamentalmente, e 1ambém porque, como já dissemos, representa
diretamente esse princípio com relação ao mundo exterior.
(7) Traduzimos como "influência espiritual" a palavra hebraica e
árabe barakah; o rito da "imposição de mãos" é uma das formas mais
habituais de transmissão da barakah e também da produção de
cenas efeitos, especialmente de cura, por meio deste.
(8) A tradição muçulmana também ensina que a barakah pode ser
perdida; por outra parte. na tradição extremo-oriemal igualmente. o
"mandato do Céu" é revogável quando o soberano não cumpre
regularmente suas funções. em harmonia com a ordem cósmica.
(9) São também. segundo outro simbolismo. as chaves das portas do
"Paraíso celestial" e do "Paraíso terrestre". como se verá no texto do
Dante que mais adiante citaremos: mas possivelmente não seja
oportuno. ao menos no momento. dar algumas considerações de certo
modo "técnicas" sobre o "poder das chaves". nem de explicar outros
vários assuntos, que mais ou menos diretamente se referem a isso. Se
fizemos aqui esta alusão é unicamente para que quem já possua
algum conhecimento disto veja que se trata aqui. por nossa pane. de
uma reserva voluntária, à qual não nos aderimos por nenhum tipo de
compromisso.
(10) Há, não obstante, no concernente à transmissão do poder real,
alguns casos excepcionais nos quais. por razões especiais. é
diretamente conferido por representantes do poder supremo, origem
dos outros dois: assim. os reis Saul e David não foram consagrados
pelo Grande Sacerdote. mas sim pelo profeta Samuel. Poder-se-á
relacionar com isto o que em outro lugar dissemos ( ''O Rei do
Mundo" . cap. IV) sobre o tríplice caráter de Cristo como profeta,
sacerdote e rei. em conexão com as funções respectivas dos três Reis
Magos. correspondendo eslas à divisão entre os "três mundos" que

77
recordamos numa nota anterior: a função "profética", já que implica a
inspiração direta. corresponde propriamente ao "mundo celeste".
(li) "A Crise do Mundo Moderno'', P. 44 (2• edição).
(12) Existe oulra aplicação do mesmo apólogo, já não social. mas sim
cosmológica. que se encontra nas doutrinas da Índia. e que
propriamente pertence ào Sânkhya: aqui, o paralítico é Purusha.
enquanto imutável ou "não agente", e o cego é Prakriti. cuja
potencialidade indiferenciada se identifica com as trevas do caos;
trata-se efetivamente de doi!> princípios complementares, dos pólos
da manifestação universal, e procedem além do mais de um princípio
superior único, que é o Ser puro. quer dizer. lslnvara, cuja
consideração supera o especial ponto de vista do Sânkhya. Para
conectar esta interpretação com a que acabamos de indicar, é
necessário observar que se pode estabelecer uma corTespondência
analógica entre a contemplação ou o conhecimento com a Purusha. e
entre a ação com o Prakriri; mas naturalmente não podemos entrar
aqui na explicação de ambos os princípios, e devemos nos limitar a
remeter ao exposto a este respeito em "O Homem e seu Devir
Segundo o Vedanta".
(13) Esta divisão da tradição extremo-oriental em dois ramos
diferentes se produziu no século VI antes da era cristã. época da qual
tivemos ocasião em outra obra de demonstrar seu caráter especial
("A Crise do Mundo Moderno", pp. 18-2\), e sobre a qual
voltaremos a seguir.
(14) Dissemos do exterior porque, do ponto de vista interior, o "não-
agir" é na realidade a atividade suprema em toda sua plenitude; mas.
precisamente em razão de seu caráter total e absoluto, tal atividade
não se mostra ao exterior como as atividades particulares.
determinadas e relativas.
(15) Se vê com isso que não existe nenhuma oposição de princípio
entre o Taoísmo e o Confucionismo, que não são nem podem ser
escolas rivais, posto que cada uma tenha seu domínio próprio
claramente dislinto; se não obs1ante houve lutas, às vezes violentas.
como demons1ramos, foram. sobretudo. devidas à incompreensão e

78
ao exclusivismo dos confucionistas. que tinham esquecido o exemplo
que seu próprio meslre os deu.

79
Capítulo VI: A REBELIÃO DOS
KSHATRIYAS
Em quase todos os povos, em diversas épocas, e
cada vez mais freqüentemente na medida em que se
aproximam da atualidade, os depositários do poder
temporal tenderam, como dissemos, a se fazer
independentes de toda autoridade superior, pretendendo
não obter seu próprio poder senão de si mesmos e separar
completamente o espiritual do temporal, ou inclusive
submeter aquele a este.

Nesta "insubordinação", no sentido etimológico


da palavra, existem graus diferentes, dentre os quais os
mais acentuados são também os mais recentes, como
indicamos no anterior capítulo; as coisas jamais chegaram
tão longe neste sentido como na época moderna e.
sobretudo. não parece que, anteriormente, as concepções
que lhe correspondam sob diversos aspectos tenham sido
alguma vez incorporadas à mentalidade geral como o tem
acontecido no curso dos últimos séculos. Poderíamos
repetir especialmente, a propósito disso. o que já em
outro lugar dissemos sobre o "individualismo".
considerado como característico do mundo moderno (1):
a função da autoridade espiritual é a única que se refere a
um domínio supra-individual; no momento em que esta
autoridade é ignorada, é lógico o individualismo aparecer
imediatamente, ao menos como tendência, senão como
afirmação definida (2), pois todas as restantes funções

80
sociais. começando pela função "governamental" que é a
do poder temporal, são de ordem puramente humana, e o
individualismo é precisamente a redução de toda a
civilização tão somente a seus elementos humanos.
Ocorre igualmente com o "naturalismo". tal como
indicávamos anteriormente: estando ligada a autoridade
espiritual ao conhecimento metafísico e transcendente, só
ela tem um caráter verdadeiramente "sobrenatural": o
resto é da ordem natural ou "física", como fazíamos notar
no que concerne ao gênero de conhecimentos que é
principalmente, em uma civilização tradicional.
patrimônio dos Kshatriyas. Por outra parte.
individualismo e naturalismo são estreitamente solidários.
pois quase não são, no fundo. mais que dois aspectos que
adotam uma só e mesma coisa, conforme se considere
com respeito ao homem ou com respeito ao mundo; e
poderia constatar-se, de uma maneira muito geral, que a
aparição de doutrinas "naturalistas" ou antimetafísicas se
produz quando o elemento que representa o poder
temporal adquire, numa civilização, predomínio sobre o
que representa a autoridade espiritual (3).

É o que ocorreu na própria a Índia, quando os


Kshatriyas, não se contentando por ocupar o segundo
nível na hierarquia das funções sociais, embora este
segundo nível implicasse no exercício de toda a potência
exterior e visível, rebelaram-se contra a autoridade dos
Brâhmanes e quiseram se liberar de toda dependência a
seu respeito. Aqui. a história traz uma assombrosa
confirmação do que dizíamos antes, que o poder temporal

81
arruína a si mesmo ao ignorar sua subordinação diante da
autoridade espiritual, porque, como tudo o que pertence
ao mundo da mudança. não pode baslar-se a si mesmo,
sendo a mudança inconcebível e contraditória se carecer
de um princípio imutável. Toda concepção que negue o
imutável, situando o ser integralmente no "devir". oculta
em si mesmo um elemento de contradição; tal concepção
é eminentemente antimetafísica. já que o domínio
metafísico é precisamenle o do imutável, o do que está
além da natureza ou do "devir"; e poderia ser também
chamada "temporal", para indicar com isso que seu ponto
de vista é exclusivamente o da sucessão; é necessário,
além disso, destacar que o próprio emprego da palavra
"temporal". quando é aplicada ao poder que é assim
denominado. tem por razão de ser significar que este
poder não se estende além do que está inscrito na
sucessão. pelo que está submetido à mudança. As
modernas teorias "evolucionistas", em suas diversas
fonnas, não são os únicos exemplos desse engano que
consiste em situar toda realidade no "devir", embora
tenham adicionado um matiz especial com a introdução
da recente idéia de "progresso"; teorias deste gênero
existiram da Antigüidade. especialmente entre os gregos.
e este caso foi também o de certas fonnas de Budismo
(4). às quais. por outra parte, devemos considerar como
fonnas degeneradas ou desviadas, embora, no Ocidente,
adotou-se costume de considerá-las como
representando o "Budismo original". Na realidade, quanto
mais se estuda de perto o que é possível saber deste, mais
diferente aparece da idéia que dele se fazem geralmente

82
os orientalistas; em especial. parece estabelecido que não
implicava de modo algum na negação do Atmâ ou do
"Si", quer dizer, do princípio pennanente e imutável do
ser, que é precisamente o que, sobretudo, temos aqui em
conta. Que tal negação tenha sido introduzida
posteriormente em certas escolas do Budismo hindu pelos
Kshatriyas rebeldes ou sob sua inspiração, ou que
somente tenham querido utilizá-la para seus próprios fins,
é algo que não tentaremos elucidar, pois no fundo
importa pouco. e as conseqüências são as mesmas em
todos os casos (5). De fato, pôde-se ver (por isso o
expusemos) o vínculo direto que existe entre a negação
de todo princípio imutável e da autoridade espiritual. e
entre a redução de toda realidade ao "devir" e a afinnação
da supremacia dos Kshatriyas: e devemos acrescentar
que. submetendo o ser por completo à mutabilidade, se
lhe reduz por isso ao indivíduo, pois o que pennite
superar a individualidade, o que é transcendente com
relação a ela, não pode ser senão o princípio imutável do
ser; comprova-se então claramente aqui essa
solidariedade entre o naturalismo e o individualismo que
indicamos faz um momento (6).

Mas a rebelião superou seu objetivo, e os


Kshatriyas não foram hábeis para deter no ponto preciso
do qual poderiam ter adquirido vantagem, o movimento
que a:-1sim tinham desencadeado: foram as castas mais
inferiores as que na realidade se aproveitaram dele, e isso
se compreende facilmente, pois, uma vez comprometidos
neste declive, é impossível não descer até o final. A

83
negação do Atmâ não era a única que se introduziu no
Budismo desviado; também o estava a da distinção das
ca-;tas, base de toda a ordem social tradicional; e esta
negação, dirigida primeiro contra os Brâhmanes, não
devia demorar em voltar-se contra os próprios Kshatriyas
(7). De fato, do instante em que a hierarquia é negada no
seu próprio princípio, não se explica como uma casta
qualquer poderia manter a supremacia sobre as outras,
nem, além do mais, em nome do que l se J pretenderia
impô-la; qualquer [um], em tais condições, pode acreditar
que tem tanto direito ao poder como qualquer outro, por
pouco que materialmente disponha da força necessária
para apropriar-se dele e para exercê-lo de fato; e, se não
for mais que uma simples questão de força material, não é
evidente que esta deva ser encontrada em maior grau nos
elementos que simultaneamente são os mais numerosos e,
por suas funções. os mais afastados de toda preocupação
relativa. sequer indiretamente, à espiritualidade'! Com a
negação das castas, a porta se abria assim a todas as
usurpações; também os homens da última casta. os
ShUdras, podiam prevalecer; de fato, viu-se em ocasiões
alguns deles apoderarem-se da realeza e, por uma espécie
de "repulsa" que estava na lógica dos acontecimentos.
desapropriarem os Kshatriyas do poder que lhes tinha
pertencido em princípio legitimamente. mas do qual
haviam, por assim dizer, destruído eles mesmos a
legitimidade (8).

84
Notas

(1) "A Crise do Mundo Moderno". cap. V.

(2) Es1a afirmação. seja qual for a forma que se adote. não é na
realidade. além de tudo. senão uma negação mais ou menos
dissimulada: a negação de todo princípio superior à individualidade.

(3) Ouuo fato que não podemos senão destacar incidentalmente é o


imponame papel que desempenha freqüentemente um elemento
feminino, ou simbolicamente representado como tal. nas doutrinas
dos Ksliatriyas. tratando-se por outra pane de doutrinas regularmente
constituídas para seu uso ou de concepções heterodoxas que eles
mesmos fizeram prevalecer: é inclusive digno de destacar, a este
respeito. que a existência de um sacerdócio feminino. em certos
povos. aparece como ligada à dominação da casta guerreira. Este fato
pode ser explicado, por um lado. pela preponderãncia do elemenlo
"rajásico" e emo1ivo nos Kslwtriyas, e. especialmente, por oulro lado.
pela correspondência do feminino, na ordem cósmica. com o Prakriti
ou a "Na1ureza primitiva", princípio do "devirH e da mutação
temporal.

(4) Por isso, os budis1as destas escolas receberam o epí1eto de san'a-


1•ainâshikas, quer dizer. "aqueles que sustentam a dissolubilidade de
tudo": esta dissolubilidade é, em suma. um equivalente do "fluido
universal" ensinado por alguns "filósofos físicos" da Grécia.

(5) Não se pode invocar contra o que aqui dissemos do Budismo


original e de uma separação posterior o fato de que o próprio Shâkya-
Mu11i pertencia por nascimento à casta dos Kshatriyas, pois isto pode
legitimamente explicar-se pelas especiais condições de uma época,
condições que resultam das leis ciclicas. Pode-se. além do mais,
indicar a este respeito que Cristo também descendia da tribo real de
Judá, e não da tribo sacerdolal de Levi.

85
(6) Poderá se notar. além disso. que as teorias do "devir" tendem
muito naturalmente aceno "fenomenismo". embora. por outra parte.
o "fenomenismo·· em sentido estrito não seja, para falar a verdade.
mais que algo muito moderno.

(7) Não se pode dizer que o próprio Buda tenha negado a distinção
das castas. senão somente que não tinha por que tomá-la em conta. já
que o que tinha realmente em mente era a constituição de uma ordem
monástica, no interior da qual esta distinção não se aplicava; é só
quando se pretendeu estender esta ausência de distinção à sociedade
exterior que se transformou numa verdadeira negação.

(8) Um governo no qual os homens de casta inferior se atribuem o


título e as funções da realeza é o que os antigos gregos denominavam
"tirania": o sentido primitivo do termo está. como se vê. bastante
afastado do que tomou entre os modernos. que mais o empregam
como um sinônimo de "despotismo".

86
Capítulo VII: AS USURPAÇÕES DA
REALEZA E SUAS
CONSEQÜÊNCIAS
Diz-se às vezes que a história se repele, o que é
falso, pois não pode haver no universo dois seres nem
dois acontecimentos que sejam rigorosamente
semelhantes entre si sob todas as relações: se fossem, já
não seriam dois, pois, coincidindo em tudo, pura e
simplesmente se confundiriam. de forma que não seriam
mais que um só ser ou um só acontecimento (1). A
repetição de possibilidades idênticas implica, além disso,
numa hipótese contraditória, a de uma limitação da
possibilidade universal e total e. como já explicamos em
outro lugar com todos os desenvolvimentos necessários
(2). é isto o que permite repelir teorias tais como as da
"reencarnação" e do "eterno retorno"_ Mas outra opinião
não menos falsa é aquela que, no extremo oposto,
consiste em pretender que os fatos históricos são
completamente diferentes entre si, que não têm nada em
comum; a verdade é que sempre existem
simultaneamente diferenças em certos aspectos, e
semelhanças em outros, e que, tal como há diferentes
gêneros de seres na natureza, também há, neste domínio
como em outros, gêneros de fatos; em outras palavras, há
fatos que são, em circunstâncias diferentes, manifestações
ou expressões de uma mesma lei. É a razão de que às
vezes se encontrem situações comparáveis, e que. caso se

87
esqueçam as diferenças para não se reterem senão os
pontos de semelhança, podem dar a impressão de uma
repetição; na realidade, jamais existe identidade entre os
diferentes períodos da história, mas há correspondência e
analogia, tanto aqui, quanto entre os ciclos cósmicos ou
entre os estados múltiplos de um ser; e, assim como
diferentes seres podem passar por fases comparáveis,
com a reserva das modalidades que são próprias à
natureza de cada um deles, o mesmo ocorre também
quanto aos povos e às civilizações.

Assim, como ressaltamos antes, existe, apesar das


grandes diferenças, uma analogia indubitável. e que
jamais pode ser evidenciado o ba-.tante. entre a
organização social da Índia e a da Idade Média ocidental;
entre as castas de uma e as classes da outra não há
identidade. senão correspondência, mas tal
correspondência não deixa de ser importante, porque
pode servir para demonstrar, com uma particular
claridade, que todas a<> instituições que apresentam um
caráter verdadeiramente tradicional se apóiam nos
mesmos fundamentos naturais e não diferem, em suma,
mais que por uma adaptação necessária às diferentes
circunstâncias de tempo e de lugar. É necessário
observar. por outra parte, que não pretendemos
absolutamente sugerir com isso a idéia de uma aquisição
que a Europa, nesta época. teria absorvido diretamente da
Índia, o que seria muito pouco verossímil; tão somente
dissemos que há aqui duas aplicações de um mesmo
princípio e, no fundo, só isso que importa. ao menos do

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ponto de vista no qual atualmente nos situamos. Por
conseguinte, reservamo-nos quanto à questão de uma
origem comum, que, em todo caso, não poderia
encontrar-se certamente mais que se remontando muito
longe no passado; esta questão se vincularia à da filiação
das diferentes formas tradicionais a partir da grande
tradição primitiva. e nisso, compreender-se-á sem
esforço, há algo extremamente complexo. Se não obstante
ressaltamos tal possibilidade é porque não pensamos que,
de fato, estas semelhanças tão claras possam ser
explicadas de uma maneira totalmente satisfatória fora de
uma transmissão regular e efetiva. e também porque
encontramos, na Idade Média, muitos outros indícios
concordantes, que mostram muito claramente que havia
então no Ocidente um vínculo consciente, ao menos para
alguns, com o verdadeiro "centro do mundo", fonte única
de todas as tradições ortodoxas. enquanto que, pelo
contrário, não vemos nada semelhante na época moderna.

Na Europa encontramos também, da Idade Média.


uma analogia com a rebelião dos Kshatriyas; vemo-la,
inclusive, com particularidade na França, onde, a partir de
Felipe, "o Belo", que deve ser considerado como um dos
principais autores da separação característica da época
moderna, a monarquia tenta, quase constantemente, fazer-
se independente da autoridade espiritual, conservando
não obstante, por um singular ilogismo, a marca exterior
de sua dependência original. posto que, como já
explicamos, a consagração dos reis não era outra coisa.
Os "juristas" de Felipe, "O Belo" são assim, muito antes

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que os "humanistas" do Renascimento, os verdadeiros
precursores do "laicismo" atual; e é nesta época, quer
dizer, a princípios do século XIV, onde é preciso fazer
remontar, na realidade. a ruptura do mundo ocidental com
sua própria tradição. Por razões que seria árduo expor
aqui. e que por oucra parte já indicamos em outros
estudos (3), pensamos que o ponto de partida de tal
ruptura esteve muito claramente marcado pela destruição
da Ordem do Templo; recordaremos tão somente que esta
[se} constituía [tal] como um laço entre o Oriente e
Ocidente, e que, no próprio Ocidente, era. por seu duplo
caráter religioso e guerreiro, uma espécie de sinal de
união entre o espiritual e o temporal, se é que este duplo
caráter não deve ser interpretado como o signo de uma
relação mais direta com a fonte comum dos dois poderes
(4). Possivelmente alguém estará tentado a objetar que tal
de!itruição. embora tenha sido desejada pelo rei da
frança. ao menos foi realizada de acordo com o Papado;
a verdade é que foi imposta ao Papado. o que é muito
diferente; e foi assim como, invertendo as relações
normais, o poder temporal começou desde então a se
servir da autoridade espiritual com a finalidade de
dominação política. Sem dúvida se dirá que o fato de que
esta autoridade espiritual se deixasse subjugar assim
demonstra que já não era o que deveria ser, e que seus
representantes já não possuíam plena consciência de seu
caráter transcendente: isso é certo e, além do mais, é o
que ex.plica e justifica, nesta mesma época, as imectiva!-.
freqüentemente violentas de Dante a seu respeito; mas
nem por isso deixava de ser, apesar de tudo, frente ao


poder temporal, a autoridade espiritual, e dela o primeiro
obtinha sua legitimidade. Os representantes do poder
temporal não estão, como tais, qualificados para
reconhecer se a autoridade espiritual que corresponde à
forma tradicional da que dependem possui ou não a
plenitude de sua realidade efetiva: inclusive são incapazes
disso por definição, já que sua competência está limitada
a um domínio inferior; seja qual for esta autoridade, se
ignorarem sua subordinação com relação a ela,
comprometem com isso sua legitimidade. É necessário
então tomar cuidado em distinguir a questão do que pode
ser uma autoridade espiritual em si mesma, em tal ou qual
momento de sua existência, e a de suas relações com o
poder temporal; a segunda é independente da primeira.
que não considera senão a quem exerce as funções da
ordem sacerdotal ou a quem normalmente estaria
qualificado para exercê-la; e, inclusive embora esta
autoridade, por um defeito de seus representantes, tivesse
perdido completamente o "espírito" de sua doutrina, tão
somente em se mantendo depositária da "letra" e das
formas exteriores nas quais esta doutrina está de certo
modo contida, continuaria ainda lhe assegurando a
potência necessária e suficiente para exercer validamente
sua supremacia sobre o temporal (5). já que esta
supremacia está vinculada à própria essência da
autoridade espiritual e lhe pertence, enquanto subsistir
regularmente, por diminuída que em si mesma possa
estar, pois a menor parcela de espiritualidade é
incomparavelmente superior a tudo o que depende da
ordem temporal. Disso resulta que. enquanto que a

91
autoridade espiritual pode e deve sempre controlar ao
poder temporal, ela mesma não pode ser controlada por
nada, ao menos exterionnente (6); por estranha que tal
afirmação possa parecer aos olhos da maioria de nossos
contemporâneos, não duvidamos em declarar que não é
mais que a expressão de uma verdade inegável (7).

Mas voltemos para o Felipe, "O Belo", que nos


oferece um exemplo particularmente típico para o que
nos propusemos explicar agora: é digno de notar que
Dante atribui como móvel de suas ações à "cobiça" (8),
que é um vício dos Vaishya, e não dos Kshatriyas;
poderia se dizer que os Kshatriyas, do momento em que
entraram em estado de rebeldia, degradaram-se de certo
modo e perderam seu caráter próprio para adotar o de
uma casta inferior. Poderia. inclusive, acrescentar-se que
tal degradação deve inevitavelmente acompanhar à perda
de sua legitimidade; se os Kshatriyas forem, por sua falta,
despojados de seu direito normal ao exercício do poder
temporal, é porque não são verdadeiros Kshatriyas. quer
dizer. porque sua natureza já não é tal que os faça aptos
para desempenhar àquela que era sua função própria. Se o
rei já não se limitar a ser o primeiro dos Kshatriyas, quer
dizer, o chefe da nobreza, e a cumprir o papel "regulador"
que pertence a este título, perde então o que constitui sua
razão de ser essencial e, ao mesmo tempo, fica em
oposição com essa nobreza da qual não era senão sua
emanação e como sua expressão mais acabada. É assim
como vemos à monarquia, para "centralizar" e absorver
nela os poderes que pertencem coletivamente à nobreza

92
em seu conjunto, entrar em luta com esta e trabalhar com
encarniçamento para a destruição do feudalismo. do qual,
não obstanre. tinha surgido; por outra parte. não o poderia
fazer mais que se apoiando sobre o terceiro estado, que
corresponde aos Vaishya; e é esta a razão de que vejamos.
precisamente a partir do Felipe, "O Belo", os reis da
França se rodearem quase constanlemente de burgueses,
especialmente àqueles que, como Luís XI e Luís XIV.
levaram muito longe o trabalho de "centralização", do
qual a burguesia devia, além do mais, recolher
posterionnente os benefícios quando se apropriou do
poder mediante a Revolução.

A "centralização" temporal é geralmente a marca


de uma oposição frente à autoridade espiritual. e os
governos que a praticam se esforçam por neutralizar
assim a influência daquela e substituí-la pela sua; por
isso, a fonna feudal. que é aquela em que os Kshatriyas
podem exercer mais integralmente suas funções normais.
é, ao mesmo tempo, a que parece convir melhor à
organização regular das civilizações tradicionais. tal
como o era a Idade Média. A época moderna, que é a da
ruptura com a tradição. poderia. no a'l.pecto político,
caracterizar-se pela substituição do sistema feudal pelo
sistema nacional; e é no século XV quando as
"nacionalidades" começaram a constituir-se, através desse
trabalho de "centralização" do qual acabamos de falar. Há
razão ao dizer que a formação da "nação francesa", em
particular, foi obra dos reis; mas estes, precisamente por
tal motivo, prepararam, sem o saber, sua própria ruína

93
(9); e se a França foi o primeiro país da Europa no qual a
monarquia foi abolida, é porque na França a
"nacionalização" teve seu ponto de partida. Por outra
parte, quase não há necessidade de recordar que a
Revolução foi ferozmente "nacionalista" e
"centralizadora", e também o emprego propriamente
revolucionário que se fez. durante todo o curso do século
XIX, do suposto "princípio das nacionalidades" (10);
existe então uma singular contradição no "nacionalismo"
que esgrimem hoje certos adversários declarados da
Revolução e de sua obra. Mas o mais interessante agora
para nós é o seguinte: a fonnação das "nacionalidades" é
essencialmente um dos episódios da luta do temporal
contra o espiritual; e se quer chegar-se ao fundo das
coisas, pode-se dizer que exatamente por isso foi fatal
para a monarquia. que. inclusive, embora parecesse
realizar todas suas ambições. não fazia mais que correr
para sua perdição (11).

Há uma espécie de unificação política.


completamente exterior, que significa o
desconhecimento, quando não a negação, dos princípios
espirituais que são os únicos que podem fazer a unidade
verdadeira e profunda de uma civilização, e as
«nacionalidades» são um exemplo disso. Na Idade Média,
havia, em todo ocidente, uma unidade real, fundada sobre
bases da ordem propriamente tradicional, que era a da
«Cristandade»; quando se formaram essas unidades
secundárias. de ordem puramente política, quer dizer,
temporal e já não espiritual, que são as nações. esta

94
grande unidade do ocidente se quebrou
irremediavelmente, existência efetiva da
«Cristandade» chegou a seu fim. As nações, que não são
mais que os fragmentos dispersos da antiga
«Cristandade», as falsas unidades que substituíram à
unidade verdadeira pela vontade de domínio do poder
temporal, só podiam viver, pelas condições próprias de
sua constituição, opondo-se umas às outras, lutando sem
cessar entre elas sobre todos os terrenos (12); o espírito é
unidade, a matéria é multiplicidade e divisão, e quanto
mais nos afastamos da espiritualidade, mais se acentuam
e amplificam os antagonismos. Ninguém duvidará de que
as guerras feudais, estreitamente localizadas e, por outra
parte, submetidas a uma regulamentação restritiva que
emanava da autoridade espiritual, não eram nada em
comparação com as guerras nacionais. que
desembocaram, com a Revolução e o Império, nas
"nações em armas" (13), e que vimos apresentar em
nossos dias novos acontecimentos muito pouco
tranqüilizadores para o futuro.

Além do mais. a constituição das "nacionalidades"


tornou possíveis verdadeiras tentativas de subjugação do
espiritual ao temporal, trazendo assim uma inversão
completa das relações hierárquicas entre ambos os
poderes; esta servidão encontra sua expressão mais
definida na idéia de uma Igreja "nacional", quer dizer,
subordinada ao Estado e fechada nos limites deste; e a
mesma palavra de "religião de Estado", sob sua
voluntariamente equívoca aparência, não significa no

95
fundo outra coisa; trata-se da religião da qual o governo
temporal se serve como de um meio para assegurar seu
domínio; é a religião reduzida a não ser mais que um
simples fator da ordem social (14). Esta idéia de Igreja
"nacional" viu a luz em primeiro lugar nos países
protestantes. ou, para dizê-lo melhor, é talvez. sobretudo.
para realizá-la que se tenha suscitado o Protestantismo.
pois bem parece que Lutero quase não tenha sido,
politicamente ao menos, mais que um instrumento das
ambições de alguns príncipes alemães, e é muito provável
que, sem isso, embora se tivesse produzido sua rebelião
contra Roma, as conseqüências disso tivessem sido tão
completamente desdenháveis como as de muitas outras
dissidências individuais que não foram mais que
incidentes sem decorrências. A Reforma é o sintoma mais
aparente da ruptura da unidade espiritual da
"Cristandade", mas não foi ela a que começou, segundo a
expressão de Joseph de Maistre, a "rasgar a roupa sem
costuras"; esta ruptura era então um fato consumado há
muito tempo, já que, como mencionamos, seu início se
remonta na realidade a dois séculos antes; e poderia se
fazer uma observação análoga com relação ao
Renascimento, que, por uma coincidência que nada tem
de fortuito, produziu-se quase ao mesmo tempo que a
Refonna, e somente quando os conhecimentos
tradicionais da Idade ~édia haviam se perdido quase que
por completo. O Protestantismo foi então, a este respeito.
mais um desenlace que um ponto de partida; mas, se
acima de tudo foi, na realidade, obra de príncipes e
soberanos, que a utilizaram em primeiro lugar com fins

96
políticos, suas tendências individualistas não deviam
demorar a voltar-se contra eles, pois prepararam
diretamente a via para as concepções democráticas e
igualitárias características da época atual (15).

Retomando o concernente à subjugação da


religião ao Estado, sob a forma que acabamos de indicar,
seria, além de tudo, um engano acreditar que não se
encontrariam exemplos disso fora do Protestantismo (16):
se o cisma anglicano de Henrique VIII é o resultado mais
completo na constituição de uma Igreja "nacional", o
próprio galicanismo, tal como Luis XIV pôde concebê-lo,
não era outra coisa no fundo; se tal intento tivesse
triunfado, a vinculação com Roma sem dúvida haveria
subsistido em teoria, mas, virtualmente, os efeitos teriam
sido completamente anulados pela interposição do poder
político, e a situação não teria sido sensivelmente
diferente na França do que o poderia ser na Inglaterra, se
as tendências da facção "ritualista" da Igreja anglicana
chegassem definitivamente a prevalecer (17). O
Protestantismo, em suas diferentes fonnas, levou as
coisas ao extremo; mas não foi só nos países onde este se
estabeleceu que a realeza destruiu seu próprio "direito
divino", quer dizer, o único fundamento real de sua
legitimidade e. ao mesmo tempo, a única garantia de sua
estabilidade; segundo o que acabamos de expor, a
monarquia francesa, sem chegar a uma ruptura tão
manifesta com a autoridade espiritual, atuou. em suma,
exatamente da mesma forma, embora utilizando outros
meios mais sutis e, inclusive, parece que foi a primeira a

97
se envolver nesta via; aqueles de seus partidários que
fazem disso uma espécie de glória quase não parecem
dar-se conta das conseqüências que esta atitude conduziu
e que não podia não conduzir. A verdade é que foi a
realeza a que com isso abriu inconscientemente o
caminho à Revolução, e que esta, ao destruí-la, não fez
mais do que ir um pouco mais além ao sentido da
desordem na qual a própria monarquia havia começado a
se enredar. De fato, por toda parte no mundo ocidental, a
burguesia chegou a tomar o poder, no qual a realeza a
tinha feito, primeiro, participar indevidamente; pouco
importa, além do mais, que haja então abolido a
monarquia como na França, ou que a tenha deixado
subsistir nominalmente como na inglaterra ou em outros
lugares; o resultado é o mesmo em todos os casos, o
triunfo do "econômico", sua supremacia abertamente
proclamada. Mas. à medida que tudo se afunda na
materialidade, cresce a instabilidade e as mudanças se
produzem cada vez de forma mais rápida; assim, o reino
da burguesia não poderá ter senão uma cuna duração
comparada com a do regime ao qual sucedeu; e, como a
usurpação chama à usurpação. depois dos Vaishyas, são
agora os Shúdras os que, por sua vez, aspiram à
dominação: é este, exatamente. o significado do
bolchevismo. Não desejamos, a este respeito, fonnular
nenhuma previsão. mas sem dúvida não seria muito
difícil extrair, pelo precedente, certas conseqüências para
o futuro: se os elementos sociais mais inferiores
chegarem ao poder de uma ou outra maneira, seu reino
será possivelmente o mais breve de todos, e marcará a

98
última fase de certo ciclo histórico. posto que já não é
possível descer mais baixo; inclusive, ainda que tal
acontecimento não tivesse um alcance mais generalizado,
é de se supor que ao menos será, para o Ocidente, o fim
do período moderno.

Um historiador que se apoiasse nos dados que


indicamos poderia sem dúvida desenvolver estas
considerações quase indefinidamente, investigando fatos
mais particulares que fariam ressalt:u, de uma forma mais
exata, o que quisemos principalmente demonstrar (18):
essa responsabilidade pouco conhecida do poder real na
origem de toda a desordem moderna, essa primeira
separaçào, nas relações entre o espiritual e o temporal,
que inevitavelmente devia abarcar a todas as restantes.
Quanto a nós, não pode ser esse nosso papel; somente
quisemos oferecer exemplos destinados a esclarecer urna
exposição sintética; devemos pois nos ater às grandes
linhas da história, e nos limitar às indicações essenciais
que se desprendem da própria série dos acontecimentos.

99
Notas

(l) t. o que Leibnilz chamou de "princípio dos indiscerníveis"; tal


como já tivemos ocasião de indicar, Leibnitz. diferentemente dos
restantes filósofos modernos, possuía alguns dados tradicionais,
ainda que, por outra parte. fragmentários e insuficientes para lhe
permitir franquear cena!> limitações.
(2) "O Erro Espírita". 2• parte, cap. VI.
(3) Veja-se especialmente "0 Esoterismo de Dame".
(4) Ver a este respeilo nosso estudo sobre São Bernardo; indicamos
que os dois caracteres do monge e do cavaleiro se encontravam
reunidos em São Bernardo, autor da regra da Ordem do Templo,
qualificada por ele como "tropa de Deus", e com isso se explica o
papel que constantemente teve que desempenhar de conciliador e
árbitro entre o poder religioso e o poder político.
(5) Este caso é comparável ao de um homem que li vesse recebido em
herança um cofre fechado que contivesse um tesouro. e que. não
podendo abri-lo. ignorasse a verdadeira natureza des1e: tal homem
não deixaria de ser o autêntico dono do tesouro; a perda da chave não
anularia sua propriedade, e. se certas prerrogativas exteriores
estivessem vinculadas a esta propriedade, conservaria sempre o
direito às exercer; mas. por oUlra parle, é evidente que. no que lhe
concerne pessoalmente, não poderia. em tais condições, ter
efetivamente pleno desfrute de ~u tesouro.
(6) Esta reserva concerne ao princípio supremo do espiritual e do
temporal, que esiá além de todas as formas particulares. e cujos
representantes diretos possuem evidentemente o direito de controle
sobre um e outro domínio: mas a ação deste princípio supremo. no
atual estado do mundo. não se exerce visivelmente. de modo que
pode se dizer que toda autoridade espiritual aparece ao exterior como
suprema. inclusive ainda que somente seja o que ante!> denominamos
uma autoridade espiritual relativa, e inclusive também quando. em tal

100
caso, tenha perdido a chave da forma tradicional da qual está
encarregada de assegurar sua conservação.
(7) O mesmo ocorre com a "infalibilidade pontifícia", cuja
proclamação levantou tantos protestos devidos simplesmente à
incompreensão mcxlerna. incompreensão que. por outra parte. fazia
sua afirmação explícita e solene tão mais indispensável: um
representante autêntico de uma doutrina tradicional é
necessariamente infalível quando fala em nome desta doutrina; terá
que dar-se conta de que esta infalibilidade está vinculada à função, e
não à individualidade. Assim, no Islã, tcxlo mufti é infalível enquanto
intérprete autorizado da shariyah, quer dizer. da legislação
essencialmente baseada na religião. embora sua competência não se
estenda a uma ordem mais interior; os orientais poderiam então se
assombrar. não de que O Papa seja infalfvel em seu domínio, o que
não poderia ter para eles a menor dificuldade. senão de que seja o
único a sê-lo em todo o Ocidente.
(8) Por isso se explica não só a destruição da Ordem do Templo. mas
também. ainda mais visivelmente, o que se chamou a alteração da
moeda. e ambos os fatos possi\'e\mente estejam mais estreitamente
ligados do que se poderia supor à primeira vista; em todo caso. se os
contemporâneos de Felipe. "O Belo", entenderam como um crime
esta alteração, deve se deduzir que. ao trocar por própria iniciativa o
lítu\o da moeda, transpunha os direitos reconhecidos ao poder real.
Há aqui uma indicação que deve ser retida. pois este assunto da
moeda tinha. na Antigüidade e na Idade Média, aspectos
absolutamente ignorados pelos modernos. que se acolhem ao simples
ponto de vista "econômico"; se indicou que, entre os Celtas, os
símbolos que apareciam nas moedas não podem ser explicados senão
quando se os refere a conhecimentos doutrinais próprios dos druidas,
o que mostra uma intervenção direta destes em tal domínio; e esse
controle da autoridade e~piritual se perpetuou até o final da Idade
Média.
(9) À luta da monarquia contra a nobreza feudal pode aplicar-se
estritamente esta frase do Evangelho: "Toda casa dividida contra si
mesma perecerá".

101
(10) Cabe dizer que este "princípio das nacionalidades" foi,
sobretudo, explorado contra o Papado e contra Áustria. que
representava o último bastião da herança do Sacro Império.
(li) Ali onde a monarquia pôde ser mantida. transfonnando-se em
"constitucional". já não é mais que a sombra de si mesma e quase não
tem senão uma existência nominal e "representativa", tal como
expressa a conhecida fórmula segundo a qual "o rei reina, mas não
governa"; verdadeiramente. não é mais que uma caricatura da antiga
realeza.
(12) Por isso, a idéia de uma "sociedade de nações" não pode ser
senão uma utopia sem alcance real; à forma nacional lhe repugna
essencialmente o reconhecimento de uma unidade qualquer superior
à dela; por outra pane, nas concepções que saem atualmente à luz,
não se trataria evidentemente mais que de uma unidade da ordem
exclusivamente temporal. logo ineficaz, e jamais poderia ser mais
que uma paródia da verdadeira unidade.
(13) Como em outro lugar indicamos ('"A Crise do Mundo
Moderno", pp. 104-105), ao ohrigar a todos os homens
indistintamente a tomar pane nas guerras modernas. ignora-se por
completo a distinção essencial das funções sociais; esta é, além do
mais, uma conseqüência lógica do "igualitarismo".
(14) Esta concepção pode por outra parte realizar-se sob outra<>
formas distintas às de uma Igreja "nacional" propriamente dita; tem-
se disso um exemplo do mais notável num regime como o de
"Concordata" napoleônico, que transformou os sacerdotes em
funcionários do Estado, o que é uma verdadeira monstruosidade.
(15) Cabe notar que o Protestantismo suprime o clero. e que, embora
preten~a manter a autoridade da Bíblia. arruína-a de fato pelo "livre

(16) Não considera~os aqui o caso da Rússia, que é um pouco


especial e que deveria dar lugar a distinções que complicariam
inutilmente nossa exposição; é certo que, também ali, encontra-se a
"religião de Estado" no sentido que definimos; mas ao menos as

102
ordens monásticas puderam escapar de certa forma à subordinação do
espiritual ao temporal, enquanto que nos países protestantes sua
supressão 1em 1ornado esta subordinação tão completa quanto era
possível.
( 17) Observar-se-á, além do mais. que existe. enU"e as denominações
de "anglicanismo" e "ga\icanismo". uma estreita similitude que
corresponde à realidade.
(18) Poderia ser interessante. por exemplo, estudar especialmente
desde este ponto de vista o papel de Richelieu, que se tomou de fúria
na destruição dos últimos vestígios do feudalismo, e que,
combatendo aos protestantes no interior, aliou-se com eles no
exterior conlfa aquilo que ainda podia subsistir do Sacro Império,
quer dizer. contra as sobrevivências da antiga "Cristandade".
Capítulo VIII: PARAÍSO TERRESTRE
E PARAÍSO CELESTIAL
A constituição política da "Cristandade" medieval
era, como dissemos, essencialmente feudal; sua cúspide
residia numa função. verdadeiramente suprema na ordem
temporal, que era a do Imperador, que devia ser com
relação aos reis o que estes, por sua vez, eram com
relação a seus vassalos. É necessário dizer, além disso,
que esta concepção do Sacro Império era acima de tudo
teórica e que jamais foi plenamente realizada, sem dúvida
por causa dos próprios Imperadores. que, desorientados
pela amplitude da potência que se lhes tinha sido
conferida, foram os primeiros a duvidar de sua
subordinação frente à autoridade espiritual, da qual
entretanto obtinham seu poder. como todos os outros
soberanos, e inclusive ainda mais diretamente (1). Foi
isto o que se conveio chamar de "querela entre o
Sacerdócio e o Império", cujas diversas vicissitudes são
bastante conhecidas para que tenhamos que as recordar
aqui, nem sequer sumariamente, ainda mais que o
detalhamento de tais fatos importa pouco para o que nos
propusemos; o mais interessante é compreender o que
verdadeiramente deveria ter sido o Imperador, e também
o que é que pôde dar nascimento ao engano que lhe fez
tomar sua supremacia relativa como uma supremacia
absoluta.

104
A distinção entre o Papado e o Império provinha,
de certo modo, de uma divisão dos poderes que, na antiga
Roma, tinham sido reunidos numa só pessoa. já que, por
então, o lmperator era ao mesmo tempo Pontifex
Maximus (2); não iremos, além do mais, investigar aqui
como se pode explicar, neste caso especial. esta reunião
do espiritual e do temporal, pois correríamos o risco de
nos perder em considerações bastante complexas (3). Seja
como for, O Papa e o Imperador não eram exatamente "as
duas metades de Deus", como escreveu Vítor Hugo,
senão mais precisamente as duas metades desse Cristo~
Jano que algumas representações nos mostram tendo em
uma mão uma chave e na outra um cetro. emblemas
respectivos dos poderes sacerdotal e real, unidos nele
como em seu princípio comum (4). Esta assimilação
simbólica de Cristo com Jano. enquanto princípio
supremo dos dois poderes, é uma marca muito clara de
certa continuidade tradicional, muito freqüentemente
ignorada ou negada de antemão, entre a antiga Roma e a
Roma cristã; não se deve esquecer que, na Idade Média, o
Império era "romano" como o Papado. Mas esta mesma
representação nos oferece também a razão do engano que
acabamos de indicar, e que devia ser fatal para o Império;
tal engano consiste. em suma, considerar como
equivalentes as duas metades de Jano. que efetivamente o
são na aparência, mas que, quando representam o
espiritual e o temporal, não o podem ser na realidade; em
outras palavras, é o mesmo engano que consiste em
considerar os dois poderes unidos mediante uma relação
de coordenação, quando verdadeiramente se trata de uma

105
relação de subordinação, posto que, desde o momento em
que estão separados, enquanto um procede diretamente
do princípio supremo. o outro não procede dele senão
indiretamente; já nos explicamos suficientemente sobre
isso no que precedeu, para não haver, por isso, a
necessidade de se insistir ainda mais sobre o assunto.

Dante, ao final de seu tratado De Monarchia,


define de uma fonna muito clara as respectivas
atribuições do Papa e do Imperador; eis aqui esta
importante passagem: "A inefável Providência de Deus
oferece ao homem dois fins, ou seja: a felicidade da vida
presente, que consiste no exercício da virtude própria e
que se simboliza pelo paraíso terrestre; e a felicidade da
vida eterna, que consiste no gozo da visão de Deus. à qual
a virtude humana não pode ascender se não for ajudada
pela divina luz. felicidade esta que nos é dada a entender
como Paraíso celestial. A estas duas felicidades, como a
duas diferentes conclusões, pode-se chegar por diversos
meios. De fato, à primeira podemos chegar pelos ensinos
filosóficos. contanto que as sigamos. operando de acordo
com as virtudes morais e intelectuais. À segunda
podemos chegar por preceitos espirituais que
transcendem a razão humana, contanto que os sigamos,
operando de acordo com as virtudes teologais. fé.
esperança e caridade. Estas conclusões e estes meios.
bem que nos sejam ensinados, uns pela razão humana que
nos é manifestada inteiramente pelos filósofos, os outros
pelo Espírito Santo que nos revelou a verdade
sobrenatural. necessária para nós, pelos profetas e

106
escritores sagrados, e pelo Filho de Deus, Jesus Cristo.
coeterno ao Espírito, e por seus discípulos, tais
conclusões e tais meios, a concupiscência humana os
faria abandonar se os homens, semelhantes a cavalos que
vagabundeiam em sua bestialidade. não fossem
conduzidos pelo freio em seu caminho. Por isso foi
necessário ao homem ter uma guia dupla. de acordo com
esta dupla finalidade, ou seja: o Supremo Pontífice. que
conduziria ao gênero humano à vida eterna segundo a
Revelação, e o Imperador, que, segundo os ensinos
filosóficos. dirigi-la-ia à felicidade temporal. E como a
este porto ninguém poderia chegar, ou não chegariam
senão muito poucas pessoas e ao custo das piores
dificuldades, caso o gênero humano não pudesse repousar
livre na tranqüilidade da paz. depois de que tivessem sido
apaziguadas as ondas das paixões, é esta meta para onde
deve tender, sobretudo. aquele que rege a terra. o Príncipe
romano: que nesta pequena morada dos mortais se viva
livremente em paz (5)".

Este texto precisa de certo número de explicações


para ser perfeitamente compreendido. já que é necessário
não se deixar confundir com ele: sob uma linguagem na
aparência puramente teológica, encerra verdades de uma
ordem muito mais profunda, o que por outra parte está de
acordo com os costumes de seu autor e das organizações
iniciáticas às quais estava vinculado (6).

Por outra parte, é bastante estranho. digamos de


pa<;sagem, que quem escreveu estas linhas tenha podido,

107
às vezes, ser apresentado como um inimigo do Papado;
sem dúvida, tal como antes dissemos, denunciou as
insuficiências e as imperfeições que pôde comprovar no
estado do Papado em sua época e, particularmente, como
uma de suas conseqüências. o recurso muito freqüente
aos meios propriamente temporais, logo pouco
convenientes para a ação de uma autoridade espiritual;
mas soube não imputar à própria instituição os defeitos
dos homens que a representavam circunstancialmente, o
que nem sempre sabe fazer o individualismo moderno
(7).

Se nos referirmos ao que já explicamos. \"er-se-á


sem dificuldade que a distinção que Dante estabelece
entre os dois fins do homem correspondem exatamente à
dos "pequenos mistérios" e dos "grandes mistérios", e
também, em conseqüência. à da "iniciação real" e a da
"iniciação sacerdotal". O Imperador preside os "pequenos
mistérios". que concernem ao "Paraíso terrestre", quer
dizer, a realização da perfeição do estado humano (8); o
Soberano Pontífice preside os "grandes mistérios". que
concernem ao "Paraíso celestial", quer dizer, à realização
dos estados supra-humanos, ligados assim ao estado
humano pela função "pontifical" entendida em seu
sentido estritamente etimológico (9). O homem, enquanto
tal, não pode evidentemente alcançar por si mesmo senão
o primeiro destes fins. que pode ser chamado "natural",
enquanto que o segundo é propriamente "sobrenatural",já
que reside para além do mundo manifestado; tal distinção
corresponde à da ordem "física" e a da ordem

108
"metafísica". Aparece aqui tão claramente como é
possível a concordância de todas as tradições, sejam do
Oriente ou do Ocidente: ao definir como o temos feito as
atribuições respectivas dos Kshatriyas e dos Brâhmanes,
estávamos autorizados a não ver tão somente nisso algo
aplicável a uma determinada fonna de civilização, a da
Índia, posto que as encontramos, definidas de uma
maneira rigorosamente idêntica, naquilo que foi. antes da
separação moderna, a civilização tradicional do mundo
ocidental.

Dante atribui então por funções ao Imperador e ao


Papa o conduzir a humanidade respectivamente ao
"Paraíso terrestre" e ao "Paraíso celestial"; a primeira de
ambas as funções se cumpre ''segundo a filosofia". e a
segunda "segundo a Revelação"; mas estes termos
requerem uma cuidadosa explicação. É evidente, de fato,
que a "filosofia" não poderia ser entendida aqui em seu
sentido ordinário e "profano", pois, se assim o fora. seria
manifestamente incapaz de cumprir o papel que lhe é
atribuído; é necessário, para compreender aquilo de que
realmente se trata. restituir a esta palavra seu significado
primitivo, que tinha para os Pitagóricos, que foram os
primeiros em empregá-la. Como em outro lugar o
indicamos (10), esta palavra. significando
etimologicamente "amor à sabedoria", designa em
primeiro lugar uma disposição prévia requerida para
alcançar a sabedoria, e também pode aludir, por uma
extensão natural, à busca que. nascendo dessa mesma
disposição, deve conduzir ao verdadeiro conhecimento:

109
não é então senão um estádio preliminar e preparatório,
um caminho para a sabedoria, assim como o "Paraíso
terrestre" é uma etapa na via que conduz ao "Paraíso
celestial". Esta "filosofia", assim entendida, é o que se
poderia chamar, caso se queira, a "sabedoria humana", já
que compreende o conjunto de todos os conhecimentos
que podem ser alcançados apenas pelas faculdades do
indivíduo humano, faculdades sintetizadas por Dante na
razão, pois esta é o que propriamente define ao homem
como tal; mas esta "sabedoria humana". precisamente por
não ser mais que humana, não é absolutamente a
verdadeira sabedoria, que se identifica com o
conhecimento metafísico. Este é essencialmente supra-
racional, logo também supra-humano; e. do mesmo modo
que, a partir do "Paraíso terrestre", a via do "Paraíso
celestial" deixa a terra para "salire alie stel/e", como diz
Dante (11). quer dizer, para elevar-se aos estados
superiores, representados pelas esferas planetárias e
estelares na linguagem da astrologia, e pelas hierarquias
angélicas no da teologia, as faculdades individuais são
impotentes para o conhecimento de tudo aquilo que
supera o estado humano, e são precisos outros meios: é
aqui quando intervém a "Revelação", que é uma
comunicação direta com os estados superiores,
comunicação que, como indicávamos anteriormente, é
efetivamente estabelecida pelo "pontificado". A
possibilidade desta "Revelação" se apóia na existência de
faculdades transcendentes com respeito ao indivíduo: ~eja
qual for o nome que se lhe dê, falando, por exemplo, de
"intuição intelectual" ou de "inspiração", é sempre no

110
fundo o mesmo; o primeiro destes termos poderá fazer
pensar num sentido nos estados "angélicos", que
efetivamente são idênticos aos estados supra-individuais
do ser, e o segundo evocará, sobretudo. essa ação do
Espírito Santo à qual Dante alude expressamente (12);
poderá se dizer, também, que o que é interiormente
"inspiração", para aquele que a recebe diretamente, será
exteriormente "Revelação" para a coletividade humana à
qual se transmitiu por sua mediação. na medida em que
tal transmissão é possível, quer dizer. na medida do que é
expressável. Naturalmente, não fazemos mais do que
resumir aqui, muito sumariamente e de uma forma
possivelmente um pouco simplificada. um conjunto de
considerações que, caso fosse desenvolvida de um modo
mais completo. levar-nos-ia a certas complexidades e
escapariam por outra parte de nosso tema; o que
acabamos de dizer é em todo caso suficiente para o fim
que atualmente nos propomos.

Nesta acepção, a "Revelação" e a "filosofia"


correspondem respectivamente às duas partes que, na
doutrina hindu, são designadas com os nomes do Shruti e
de Smriti (13); devemos destacar que. também aqui.
dizemos que existe correspondência. e não identidade,
pois a diferença das formas tradicionais implica uma
diferença real dos pontos de vista dos quais as coisas são
consideradas. A Shruti, que compreende todos os textos
védicos, é fruto da inspiração direta. e a Smriti é o
conjunto das conseqüências e aplicações diversas obtidas
mediante a reflexão; sua relação é, em diversos aspectos.

Ili
a do conhecimento intuitivo e o conhecimento discursivo;
e, de fato, de ambos os modos de conhecimento, o
primeiro é supra-humano, enquanto que o segundo é
propriamente humano. Tal como o domínio da
"Revelação" é atribuído ao Papado e o da "filosofia" ao
Império, a Shruti concerne diretamente aos Brâhmanes,
cuja principal ocupação é o estudo do Vêda, e a Smriti.
que compreende o "Dharma-Shâstra" ou "Livro da Lei"
(14), logo a aplicação social da doutrina, concerne mais
aos Kshatriyas, aos quais estão mais especialmente
destinados a maioria dos livros contidos ne~ta expressão.
A Shruti é o princípio do qual deriva todo o resto da
doutrina, e seu conhecimento, ao implicar o dos estados
superiores, constitui os "grandes mistérios"; o
conhecimento da Smriti, quer dizer, das aplicações no
"mundo do homem". entendendo por isso o estado
humano integral. considerado em toda a extensão de suas
possibilidades, constitui os "pequenos mistérios" (15). A
Shruri é a luz direta, que, como a inteligência pura (que
ao mesmo tempo é aqui a pura espiritualidade),
corresponde ao sol, e a Smriti é a luz refletida, que, como
a memória, da qual leva o nome e que é a faculdade
"temporal" por definição, corresponde à lua (16); por
isso, a cha\"e dos "grandes mistérios" é de ouro, e a dos
"pequenos mis1érios" de prata, pois o ouro e a prata são,
na ordem alquímica, o equivalente exato do que são o sol
e a lua na ordem astrológica. Ambas as chaves, que eram
as de Jano na antiga Roma, constituíam um dos atributos
do Soberano Pontífice, ao qual estava essencialmente
vinculada a função do "Hierofante" ou "mestre dos

112
mistérios"; com o próprio título de Pontifex Maximus,
mantiveram-se entre os principais emblemas do Papado e,
além do mais, as sentenças evangélicas relativas ao
"poder das chaves" não fazem em suma. assim como
igualmente ocorre com respeito a outros pontos, mais que
confirmar plenamente a tradição primitiva. Pode agora se
compreender, ainda mais completamente, pois já o
tínhamos explicado antes, por que estas duas chaves são
ao mesmo tempo as do poder espiritual e do poder
temporal; poder-se-ia dizer, para expressar as relações
entre ambos os poderes. que o Papa deve guardar para si
a chave de ouro do "Paraíso celestial", e confiar ao
Imperador a chave de prata do "Paraíso terrestre"; e
acabamos de ver que. no simbolismo, esta segunda chave
era às vezes substituída pelo cetro, insígnia mais
específica da realeza (17).

Há no que precede um ponto sobre o qual


devemos chamar a atenção, com o objetivo de evitar
inclusive a aparência de uma contradição: dissemos, por
um lado, que o conhecimento metafísico, que é a
verdadeira sabedoria, é o princípio do qual deriva
qualquer outro conhecimento a título de aplicação em
ordens contingentes, e. por outro, que a "filosofia", em
seu sentido original, segundo o qual designa o conjunto
de tais conhecimentos contingentes, deve ser considerada
como uma preparação à sabedoria; como podem
conciliar-se ambas as afirmações? Já em outro lugar nos
explicamos sobre este assunto, a propósito do duplo papel
das "ciências tradicionais" (18): há aqui dois pontos de

113
vista, um descendente e o outro ascendente,
correspondendo o primeiro a um desenvolvimento do
conhecimento que parte dos princípios para chegar às
aplicações, cada vez mais afastadas deste, e o segundo a
uma aquisição gradual deste mesmo conhecimento,
procedendo do inferior ao superior, ou também, caso se
queira, do exterior ao interior. Este segundo ponto de
vista corresponde, então, à via segundo a qual os homens
podem ser conduzidos ao conhecimento, de uma maneira
gradual e proporcionada a suas capacidades intelectuais; e
é a<;sim que, em primeiro lugar, são conduzidos ao
"Paraíso terrestre", e depois ao "Paraíso celeslial"; mas
esla ordem de ensino ou de comunicação da "ciência
sagrada" é inversa a sua ordem de constituição
hierárquica. De fato, todo conhecimento que
verdadeiramente po~sua o caráter de "ciência sagrada",
seja da ordem que for, não pode ser validamente
constituído exceto por aqueles que, acima de tudo,
possuem plenamente o conhecimento principiai. e que,
por isso mesmo, são os únicos qualificado~ para realizar,
conforme à ortodoxia tradicional mais rigorosa, todas as
adaptações requeridas pela~ circunstâncias de tempo e de
lugar; por isso, tais adaptações, quando são regularmente
efetuadas, são necessariamente obra do sacerdócio, ao
qual. por definição, pertence o conhecimento principiai; e
também por isso só o sacerdócio pode legitimamente
conferir a "iniciação real", mediante a comunicação dos
conhecimentos que a constituem. Pode se deduzir disso
que as duas chaves, consideradas como sendo as do
conhecimento na ordem "metafísica" e na ordem "física",

114
pertencem ambas realmente à autoridade sacerdotal, e é
somente por delegação, se assim pode se dizer, que a
segunda é confiada aos depositários do poder real. De
fato. quando o conhecimento "físico" é separado de seu
princípio transcendente, perde sua principal razão de ser e
não demora para converter-se em heterodoxo; é então
quando aparecem. tal como explicamos, as doutrinas
"naturalistas", resultado da adulteração das "ciências
tradicionais" por parte dos Kshatriyas rebeldes; trata-se já
de um caminhar para a "ciência profana", que será a obra
própria das castas inferiores e o sinal de sua dominação
na ordem intelectual, se ainda. em semelhante caso, pode
falar-se de intelectualidade. Aqui. como na ordem
política, a rebelião dos Kshatriyas prepara a via à dos
Vaishyas e dos Shtidrm; é assim que, de ecapa em etapa,
se chega ao mais baixo utilitarismo. à negação de todo
conhecimento desinteressado, ainda que seja de um nível
inferior. e de toda realidade que supere o domínio
sensível; é isto. ex.atamente. o que podemos comprovar
em nossa época, em que o mundo ocidental quase chegou
ao último grau dessa descida que, como a queda dos
corpos pesados, acelera-se sem pausa.

Ainda fica, no texto do De Monarchia, um ponto


que não elucidamos, e que não é menos digno de destacar
que o resto do que até aqui explicamos: é a alusão à
navegação contida na última frase, segundo um
simbolismo do qual, além de tudo, Dante se serve
freqüentemente (19). Entre os emblemas que foram
antigamente os de Jano, o Papado não somente conservou

115
as chaves, mas também a barco, igualmente atribuída a
São Pedro e convertida na figura da Igreja (20); seu
caráter "romano" exigia esta transmissão de símbolos,
sem a qual não teria representado senão um simples fato
geográfico sem alcance real (21). Quem não visse aqui
exceto "empr6timos", com os quais estaria tentado a
reprovar o Catolicismo por isso, dariam assim mostra de
uma mentalidade absolutamente "profana"; por nossa
parte, vemos nisso, pelo contrário, uma prova dessa
regularidade tradicional sem a qual nenhuma doutrina
poderia ser válida, e que se remonta de degrau em degrau
até a grande tradição primitiva: e estamos seguros de que
nenhum dos que compreende o sentido profundo destes
símbolos poderá nos contradizer. A figura da navegação
foi empregada freqüentemente na Antigüidade grego-
latina: especialmente. podemos citar como exemplos. a
expedição dos Argonautas à conquista do "Tosão de
ouro" (22) ou as viagens de Ulisses; é encontrada também
em Virgílio e em Ovídio, e igualmente na Índia esta
imagem se encontra às vezes, e já tivemos ocasião de
citar noutro lugar uma frase que contém expressões
estranhamente semelhantes às de Dante: "o Iogue, diz
Shankarâchárya, tendo atravessado o mar das paixões,
está unido à tranqüilidade e possui o "Si" em sua
plenitude" (23). O "mar de paixões" é evidentemente o
mesmo que as "ondas da cobiça", e, em ambos os textos,
trata-se igualmente da "tranqüilidade": efetivamente, o
que representa a navegação simbólica é a conquista da
"grande paz" (24). Esta pode, além do mais, ser entendida
de duas maneiras, caso se refira ao "Paraíso terrestre" ou

116
ao "Paraíso celestial"; neste, identifica-se com a "luz de
glória" e com a "visão beatífica" (25); no outro, é a "paz"
propriamente dita. num sentido mais restrito, embora
ainda muito diferente do sentido "profano"; deve se
destacar que Dante aplica a mesma palavra "beatitude"
aos dois fins do homem. O barco de São Pedro deve
conduzir os homens ao "Paraíso celestial"; mas o papel
do "príncipe romano", quer dizer. do Imperador, é o de
conduzi-los ao "Paraíso terrestre", e também há aqui uma
navegação (26); por isso a "Terra Santa" das diversas
tradições, que não é mais que esse "Paraíso terrestre",
freqüentemente é representada como uma ilha: o objetivo
atribuído por Dante "àquele que rege a terra" é a
realização da "paz" (27); o porto para o qual deve dirigir
o gênero humano é a "ilha sagrada" que permanece
imutável em meio da agitação incessante das ondas. é a
"Montanha de Salvação". o "Santuário da Paz" (28).

Deixaremos aqui a explicação deste simbolismo,


cuja compreensão, depois destas elucidações, não deve já
oferecer a menor dificuldade, ao menos na medida em
que é necessário para o entendimento dos respectivos
papéis do Império e do Papado; por outra parte. quase não
poderíamos dizer mais sobre isso sem entrar num
domínio que não queremos agora abordar (29). A citada
passagem do De Monarchia é, a nosso entender, a
exposição mais clara e completa, em sua voluntária
concisão, da constituição da "Cristandade" e da maneira
em que as relações de ambos os poderes deveriam ser
consideradas.

117
Sem dúvida nos perguntará a razão de que tal
idéia se manteve como a expressão de um ideal que
jamais haveria de ser realizado; o estranho é que, no
preciso momento em que Dante a formulou assim, os
acontecimentos que se sucederam na Europa eram
justamente de tal calibre que deviam impedir para sempre
sua realização. A obra inteira do Dante é, em certos
aspectos. como o testamento da Idade Média agonizante;
mostra o que teria sido o mundo ocidental se não tivesse
quebrado com sua tradição; mas, se acaso se pôde
produzir separação moderna. é porque, verdadeiramente,
esse mundo já não possuía tais possibilidades, ou ao
menos não eram senão o patrimônio de uma elite muito
restringida, que sem dúvida as realizou em si mesma,
embora sem que nada disso pudesse passar ao exterior e
refletir-se na organização social. Tinha chegado já então
esse momento da história em que devia começar o
período mais obscuro da "idade sombria" (30)
caracterizado, em todas as ordens, pelo desenvolvimento
das possibilidades mais inferiores; e este
desenvolvimento, avançando sempre no sentido da
mudança e da multiplicidade, devia desembocar
inevitavelmente no que hoje em dia comprovamos: do
ponto de vista social, como desde qualquer outro ponto
de vista. a instabilidade está de certo modo em seu
máximo grau, a desordem e a confusão reinam em todas
as partes; jamais, com toda segurança, a humanidade
nunca esteve tão afastada do "Paraíso terrestre" e da
espiritualidade primitiva. É preciso concluir que este
afastamento é definitivo, que nenhum poder temporal

118
estável e legítimo voltará a reger jamais na terra, que toda
autoridade espiritual desaparecerá deste mundo. e que as
trevas, estendendo-se do Ocidente ao Oriente, ocultarão
para sempre aos homens a luz da verdade? Se esta fosse a
nossa conclusão, certamente não teríamos escrito estas
páginas, assim como tampouco, por outra parte, nenhuma
de nossas outras obras, pois isso seria, ne:".ita hipótese, um
esforço inútil; fica por dizer por que razão não pensamos
que isso tenha que ser assim.
Notas

(1) O Sacro Império começou com Carlos Magno. e se sabe que foi o
Papa quem conferiu a este a dignidade imperial: seus sucessores não
poderiam ser legitimados de um modo diferente.

(2) É notável que O Papa sempre tenha conservado este título do


Pontifex Maximus, cuja origem é tão evidentemente estranha ao
Cristianismo e. além disso, tão anterior; este é um desses fatos que
deveriam fazer pensar. a quem é capaz de reflexão, que o suposto
"paganismo" possufa na realidade um caráter muito diferente ao qual
normalmente se lhe atribui.

(3) O Imperador romano aparece de ceno modo como um Kshatriya


que exerce, além de sua função própria, a função de um Brâhmane;
parece então que exista aqui uma anomalia. e seria preciso saber se
acaso a tradição romana não possuía um caráter particular que
permitisse considerar este fato de uma maneira distinta de uma
simples usurpação. Por outra parte. pode se por em dúvida que os
Imperadores tenham estado. em sua maioria. verdadeiramente
"qualificados" do ponto de vista espiritual; mas às vezes deve se
distinguir entre o representante '"oficial" da autoridade e seus
depositários efetivos. e basta que estes inspirem àquele. inclusive
ainda quando não seja um deles, para que as coisas sejam como
devem ser.

(4) Ver um artigo de L. Charbonneau-1..assay intitulado "Un ancien


embleme d11 mois de janrier". publicado na revista '"Regnabit"
(março de 1925 ). A chave e o cetro equivalem aqui ao conjunto mais
habitual das duas chaves de ouro e de prata; ambos os símbolos
estão. por outra pane, diretamente referidos a Cristo por esta fórmula
bíblica: "O Clavis David, et Sceptrum domus Israel..." (Breviário
romano. oficio de 20 de dezembro).

(5) De Monarchia.111. 16.

120
(6) Ver especialmeme, a este respeito. nosso estudo "O Esoterismo
de Dante'', e 1ambém a obra de Luigi Valli. II Linguaggio se greto di
D:mte e dei Fedeli d'Amore; infelizmente, o autor morreu sem ter
podido levar suas investigações até o final, e justo no momento em
que estas pareciam lhe conduzir a considerar as coisas num espírito
mais próximo ao esoterismo tradicional.

(7) Ao se falar do Catolicismo. dever-se-ia sempre tomar cuidado em


distinguir o que concerne ao Catolicismo em si enquanto doutrina e o
que somente se refere ao atual estado da organização da Igreja
católica: seja o que for que se possa pensar desta última questão, a
pnmeira não podia ser absolutamente afetada. O que aqui dissemos
do Catolicismo. já que este exemplo apresenta imediatamente a
propósito de Dante. poderia além do mais encontrar muitas outras
aplicações; mas são muito poucos os que hoje em dia sabem, quando
faz falta, liberar-se da~ contingências históricas, até tal ponto que,
para seguir com o mesmo exemplo, alguns defensores do
Catolicismo. e também seus adversários. acreditam poder reduzir
tudo a uma simples questão de "historicidade", o que constitui uma
das formas da moderna "superstição dos fatos".

(8) Esta realização constitui. efetivamente, a restauração do "estado


primitivo" do que se trata em todas as tradições. tal como já tivemos
oportunidade de expor em diversas ocasiões.

(9) No simbolismo da cruz, a primeira de ambas as realizações está


representada pelo desenvolvimento indefinido da linha horizontal. e a
segunda pelo da linha vertical: trata-se. segundo a linguagem do
esoterismo islâmico. dos dois sentidos da "amplilude" e da
"exaltação". cujo plena expansão se realiza no "Homem Universal".
que é o Cristo místico. o "segundo Adão" de São Paulo.

(10) "A Crise do Mundo Moderno", pp. 21-22 (2•edição).

(li) Purgatório. XXXllI, 145; ver "O Esoterismo de Dante , P. 60.

121
(12) O intelecto puro. que é da ordem universal e não individual. e
que religa entre si todos os estados do ser. é o princípio ao qual a
doutrina hindu denomina Buddhi. nome cuja raiz expressa
essencialmente a idéia de "sabedoria".

(13) Veja-se "O Homem e seu Devir Segundo o Yedanta". cap. Iº.

(14) Sob este aspecto, poderiam possivelmente extrair-se certas


conseqüências do fato de que, na tradição judaica, origem e ponto de
partida de tudo o que pode levar o nome de "religião'' em seu sentido
mais exato, já que o Islã se relaciona com ela tanto quanto o
Cristianismo. a denominação da Thorah ou "Lei" é aplicada a todo o
conjunto dos Livros sagrados: vemos nisso, sobretudo, uma conexão
com a conveniência especial da forma religiosa para os povos nos
quais prepondera a natureza dos Kshatriyas. e também com a
importância particular que adma nesta forma o ponto de vista social.
havendo entre estas considerações. além do mais. laços bastante
estreitos.

(15) Deve ficar claro que, em tudo o que dissemos. se trata sempre de
um conhecimento que não é só teórico, mas também efetivo. e que,
em conseqüência, compreende essencialmente a correspondente
realização.

(16) A este respeito, devemos assinalar que o "Paraisa celestial" é


essencialmente o Brahmâ-loko., identificado com o "Sol espiritual"
("O Homem e seu Devir Segundo o Yedanta", capítulos. XXI e
XXII), e que, por outra parle, o "Paraíso terrestre" é descrito como
tocando a "esfera da Lua" ( ··o Rei do Mundo" , P. 55): o cume da
montanha do Purgatório. no simbolismo da Divina Comédia. é o
limite do estado humano ou terrestre, individual. e o ponto de
comunicação com os estados celestes, supra-individuais.

(17) O cetro. como a chave. tem relações simbólicas com o "eixo do


mundo"; mas este é um ponto que não podemos mais que destacar

122
aqui ocasionalmente. reservando-nos convemen1e
desenvolvimento para outros estudos.

(18) ''A Crise do Mundo Moderno'', pp. 63-65 (2• edição)

(19) Cf. a este respeito Anuro Reghini. "L'Alfegoria esoterica di


Dante", em "li Niwvo Pa1to". setembro-novembro de 1921, pp. 546-
548.

(20) O "barco simbólico" de Jano era um barco que podia avançar


nos dois sentidos. para frente e para trás. o que corresponde às duas
faces do próprio Jano.

(21) Observar-se-á. (>Or outra parte. que. se houver no Evangelho


frases e fatos que permitem atribuir diretamente as chaves e o barco a
São Pedro. é porque o Papado, desde sua origem, estava destinado a
ser "romano", em razão da situação de Roma como capilal do
Ocidente.

(22) Dante alude precisamente a isso numa das passagens da Divina


Comédia mais característicos no que concerne ao emprego do
simbolismo (Paraíso. li. 1-18); e não é casual que recorde esta alusão
no último canto do poema (Paraíso, XXXllI, 96); o significado
hermélico do "Tosão de ouro" era além do mais bem conhecido na
Idade Média.

(23) Atmâ-Bodlia; veja-se ..O Homem e seu devir Segundo o


Vedanta... cap. XXIII e ·-o Rei do Mundo'", P. 121.

(24) Esta mesma conquista está também represenlada às vezes em


forma de uma guerra: destacamos antes o emprego deste simbolismo
no Bhaga1·ad-Gitâ, assim como entre os muçulmanos, e podemos
acrescentar que se enconira também um simbolismo do mesmo
gênero nas novelas de cavalaria da Idade Média.

123
(25) É o que indicam muito clarameOle os diferentes sentidos da
palavra hebraica Shekinal1: por outro lado. os dois aspectos que
mencionamos aqui são os que designam as palavras Gloria e Pa.t na
fónnula "Glorifica in excelsiJ Deo et in terra Pax homil1ibus bonae
vol11nta1is", como o explicamos em nosso estudo "O Rei do Mundo"
Capítulo IX-A LEI IMUTÁVEL
Os ensinos de todas as doutrinas tradicionais são,
como se já viu. unânimes em afirmar a supremacia do
espiritual sobre o temporal e em não considerar como
normal e legítima senão uma organização social em que
se reconheça esta supremacia e se traduza nas relações
entre os poderes correspondentes a ambos os domínios.
Além do mais, a história mostra claramente que o
desconhecimento desta ordem hierárquica traz consigo
sempre e em todas as partes as mesmas conseqüências:
desequilíbrio social. confusão das funções, domínio dos
elementos inferiores, e também degeneração intelectual,
esquecimento dos princípios transcendentes, primeiro.
para chegar depois, de queda em queda, até a negação de
todo conhecimento verdadeiro. É preciso. por outra parte.
insistir em que a doutrina. que permite prever que tudo
deva irremediavelmente ocorrer deste modo, não tem
necessidade. em si mesma, de tal confirmação a
posteriori; mas, se apesar disto acreditam dever insistir
nisso, é porque, sendo nossos contemporâneos
panicularmente sensíveis aos fatos em razão de suas
tendências e de seus hábitos mentais, aqui há com o que
lhes incitar a refletir seriamente. e talvez inclusive
possam ser levados a reconhecer a verdade da doutrina.
Se esta verdade fora reconhecida, ainda que só por um
pequeno número, seria um resultado de uma importância
considerável. já que não é mais que desta forma que se
pode começar uma mudança de orientação tendente a
uma restauração da ordem normal; e esta restauração,

125
sejam quais forem seus meios e modalidades,
necessariamente se produzirá cedo ou tarde; sobre este
último ponto devemos dar ainda algumas explicações.

O poder temporal, dissemos, concerne ao mundo


da ação e da mudança; agora, não possuindo a mudança
em si mesma sua razão suficiente (1), deve receber de um
princípio superior sua lei. tão somente pela qual se
integra na ordem universal; se, pelo contrário. pretende-se
independente de todo princípio superior, já não é, por isso
mesmo, senão pura e simples desordem. A desordem é,
no fundo, o mesmo que o desequilíbrio, e, no domínio
humano, se manifesta através disso que se chama
injustiça, pois há identidade entre as noções de justiça,
ordem, equilíbrio, harmonia... ou. mais precisamente,
todos estes não são mais que distintos aspectos de uma só
coisa, considerada de diferentes e múltiplas maneiras
segundo os domínios nos quais se aplique (2). Agora,
segundo a doutrina extremo-oriental, a justiça é feita da
soma de todas as injustiças, e, na ordem total, toda
desordem se compensa por outra desordem; por isso, a
revolução que eliminou à realeza foi, ao mesmo tempo,
sua conseqüência lógica e seu castigo, quer dizer, a
compensação da anterior revolta desta mesma realeza
contra a autoridade espiritual. A lei é negada do instante
em que se nega o princípio mesmo do qual ela emana;
mas seus negadores não puderam realmente suprimi-la, e
se volta assim contra eles; deste modo, a desordem deve
finalmente entrar na ordem, à qual nada poderia se opor,

126
se não for tão somente na aparência e de uma forma
totalmente ilusória.

Objetar-se-á, sem dúvida, que a revolução,


substituindo o poder dos Kshatriya ...· pelo das castas
inferiores, não é mais que um agravamento da desordem
e, com segurança, isto é certo se não forem considerados
mais que os resultados imediatos; mas é exatamente este
mesmo agravamento que impede a desordem se perpetuar
indefinidamente. Se o poder temporal não perdesse sua
estabilidade ao ignorar sua subordinação com respeito à
autoridade espiritual, não haveria nenhuma razão para
que cessasse a desordem uma vez introduzida na
organização social; mas falar da estabilidade da desordem
é uma contradição nos termos, já que não é em suma.
caso possamos dizer assim, senão a mudança reduzida a
si mesma; seria como pretender encontrar a imobilidade
no movimemo. Cada vez que se acentua a desordem. o
movimento se acelera, pois se dá um passo a mais no
sentido da mudança pura e da "instantaneidade"; por isso,
como antes dissemos, quanto mais inferior é a ordem dos
elementos sociais que preponderam, menos duradouro é
seu domínio. Tal como tudo o que não tem mais que uma
existência negativa, a desordem se destrói a si mesma; é
em seu próprio excesso onde se pode encontrar o remédio
para os casos mais desesperados, posto que a rapidez
crescente da mudança necessariamente terá um término;
e, na atualidade, não começam muitos a sentir mais ou
menos confusamente que as coisas não poderão continuar
assim indefinidamente? Inclusive, ainda que no ponto em

127
que está o mundo já não seja possível uma retificação
sem uma catástrofe, não é esta uma razão suficiente para
considerá-la apesar de tudo? E. se isto fosse rechaçado,
não constituiria esta uma forma de esquecimento dos
princípios imutáveis, que estão além de todas as
vicissitudes do "temporal" e que, em conseqüência,
nenhuma catástrofe poderia afetar? Anteriormente
dissemos que a humanidade jamais esteve tão afastada do
"Paraíso terrestre" de como atualmente o está; mas,
entretanto, não deve se esquecer que o fim de um ciclo
coincide com o começo de outro; além do mais, se nos
remetermos ao Apocalipse, ver-se-á que é no limite
extremo da desordem, quase na aparente destruição do
"mundo exterior", quando deve produzir o advento da
"Jerusalém celestial", que será. para um novo período da
história da humanidade, o análogo do que foi o "Paraíso
terrestre" para aquele que terminará nesse mesmo
momento (3). A identidade entre as características da
época moderna e aquelas que as doutrinas tradicionais
indicam para a fase final do Kali-Yuga permitem pensar,
sem muito engano, que esta eventualidade poderia não ser
muito longínqua; e este seria, com segurança, depois do
atual obscurecimento, o completo triunfo do espiritual
(4).

Se tais previsões parecerem muito incertas, como


efetivamente podem parecer para aqueles que não
possuam suficientes dados tradicionais para as apoiar,
podem ao menos lhes recordar exemplos do passado, que
claramente demonstram que tudo o que não se apóia

128
senão no contingente e o transitório passa fatalmente, que
sempre a desordem se desvanece e a ordem finalmente se
restaura, de modo que, ainda que às vezes a desordem
pareça triunfar, este triunfo não poderia ser mais que
passageiro, e tanto mais efêmero quanto maior seja a
desordem. Sem dúvida, ocorrerá o mesmo. cedo ou tarde,
e possivelmente mais cedo do que se estaria tentado a
supor, no mundo ocidental. onde a desordem. em todos os
domínios, levou-se atualmente mais longe do que jamais
o esteve em parte alguma; aí também, convém esperar o
fim; e, inclusive se, como há alguns motivos para temê-
lo, esta desordem deva se estender por um tempo à terra
inteira. isso tampouco seria sufiriente para modificar
nossas conclusões, já que seria apenas a confirmação das
considerações que indicávamos faz um momento quanto
ao fim de um ciclo histórico, e a restauração da ordem só
teria que se operar, neste caso, numa escala muito mais
vasta que em todos os exemplos conhecidos, embora
também teria de ser incomparavelmente mais profunda e
mais integral. posto que chegaria até esse retomo ao
"estado primitivo" do qual falam todas as tradições (5).

Além do mais, quando alguém se coloca, como


nós o temos feito, sob o ponto de vista das realidades
espirituais, pode-se esperar sem desconcerto, e tanto
quanto seja necessário, posto que, como o dissemos,
trata-se do domínio do imutável e do eterno; a pressa
febril, que é tão característica de nossa época, prova que,
no fundo, nossos contemporâneos ficam sempre no ponto
de vista temporal, inclusive quando acreditam lhe haver

129
superado, e que. a despeito das pretensões de alguns a
este respeito, quase não sabem o que é a espiritualidade
pura. Por outra parte, entre aqueles mesmos que se
esforçam em reagir contra o "materialismo" moderno,
quantos haverá que sejam capazes de conceber essa
espiritualidade fora de toda fonna especial, e mais
particularmente de uma forma religiosa, e extrair os
princípios de toda aplicação circunstâncias
contingentes? Entre os que se erigem em defensores da
autoridade espiritual, quantos há que suspeitem o que
pode ser esta autoridade em estado puro, como dizíamos
mais atrás, que se dêem conta verdadeiramente do que
são suas funções essenciais, e que não se detenham em
aparências exteriores, reduzindo tudo a simples questões
de ritos, cujas razões profundas pennanecem, além do
mais, totalmente incompreendidas. e inclusive de
"jurisprudência". que é algo totalmente temporal? Entre
aqueles que quereriam tentar uma restauração da
intelectualidade, quantos haverá que não a rebaixem ao
nível de uma simples "filosofia", entendida esta vez no
sentido habitual e "profano" desta palavra. e que
compreendam que, em sua essência e em sua realidade
profunda. intelectualidade e espiritualidade não são
absolutamente mais que uma única coisa sob dois nomes
diferentes? Entre aqueles que guardaram, apesar de tudo,
algo do espírito tradicional, e não falamos mais que
desses porque são os únicos cujo pensamento pode ter
para nós algum valor, quantos terá que considerem a
verdade por si mesma, de uma maneira inteiramente
desinteressada, independente de toda preocupação

130
sentimental, de toda paixão de partido ou de escola, de
toda preocupação de dominação ou de proselitismo?
Entre aqueles que. para escapar ao caos social no qual se
debate o mundo ocidental, compreendem que é
necessário, acima de tudo, denunciar a vaidade das
ilusões "democráticas" e "igualitárias", quantos haverá
que tenham a noção de uma verdadeira hierarquia,
apoiada essencialmente sobre as diferenças inerentes à
natureza própria dos seres humanos e sobre os graus de
conhecimento aos quais estes chegaram efetivamente?
Entre aqueles que se declaram adversários do
"individualismo", quantos haverá que tenham neles a
consciência de uma realidade transcendente em relação
aos indivíduos? Se formularmos aqui todas estas
perguntas, é porque permitirão, àqueles que queiram
refletir bem nelas, encontrar a explicação da inutilidade
de alguns esforços, apesar das excelentes intenções das
quais estão sem dúvida animados aqueles que os
empreendem. e também a de todas as confusões e de
todos os mal-entendidos que surgem hoje em dia nas
discussões às quais fazíamos alusão nas primeira'\ páginas
deste livro.

Entretanto, enquanto subsista uma autoridade


espiritual regularmente constituída, ainda que seja
desconhecida de quase todo mundo e inclusive de seus
próprios representantes, ainda que esteja reduzida a não
ser mais que a sombra de si mesma, esta autoridade terá
sempre a melhor parte, e esta parte não lhe poderia ser
arrebatada (6). porque nela há algo mais alto que as

131
possibilidades puramente humanas, já que, inclusive
debilitada ou adonnecida. ainda encarna "a única coisa
necessária", a única que não passa. "Patiens quia
aeterna", diz-se às vezes da autoridade espiritual, e muito
justamente, não porque alguma das formas exteriores que
possa se revestir seja eterna, pois toda fonna não é mais
que contingente e transitória. mas sim porque. em si
mesma, em sua verdadeira essência, participa da
eternidade e da imutabilidade dos princípios; e é por isso
que, em todos os conflitos que enfrentem o poder
temporal com a autoridade espiritual. pode-se estar
seguro de que, sejam quais possam ser as aparências,
sempre é esta a que terá a última palavra.

132
Notas

(1) Trata-se propriamente da própria definição da contingência.

(2) Todos estes sentidos, e também o de "lei", estão compreendidos


no que a doutrina hindu designa pelo termo dhanna; ao cumprimento
por cada ser da função que convém a sua natureza própria, sobre o
qual repousa a distinção das castas, chama-se .nvadharma. e se
poderia fazer uma aproximação com o que Dante. no texto que
citamos e comemamos no capítulo precedente, designa como "o
exercício da virtude própria". A propósito disto, remetemos também
ao que dissemos em outra pane sobre a '1ustiça" considerada como
um dos atributos fundamentais do "Rei do Mundo" e suas relações
com a ..paz"
(3) Sobre as relações do "Paraíso terrestre"" e da "Jerusalém celeste".
ver "O E~terismo de Dante'". pp. 91-93 (edic. francesa).
(4) Seria também, segundo algumas tradições do esoterismo
ocidental. que se vinculavam à corrente à qual pertencia Dante. a
verdadeira realização do "Sacro Império": e. efetivamente. a
humanidade teria reencontrado então o ..Paraíso terrestre", o que,
além do mais, incluiria a reunião dos dois poderes espiritual e
temporal em seu princípio, estando este manifestado de novo
visivelmente como o estava na origem.
(5) Deve se emender bem que a restauração do "estado primitivo" é
sempre possível para alguns homens. mas que não constituem então
senão casos de exceção; aqui se trata desta restauração considerada
para a humanidade tomada coletivamente e em seu conjunto.
(6) Pensamos aqui no relato evangélico bem conhecido. no qual
Maria e Mana podem ser consideradas. de fato, como simbolizando
respectivamente o espiritual e o temporal, enquanto co1Tespondem à
vida contemplativa e à vida ativa. Segundo Santo Agostinho (Contra
Fa11stunr, XX, 52-58), encontra-se o mesmo simbolismo nas duas
esposas do Jacó: Lia (laboram) representa à vida ativa, e Raquel
(visum principium) à vida contemplativa. Além disso, na "Justiça'" se

133
resumem todas as virtudes da vida ativa, enquanto que na "Paz" se
realiza a perfeição da vida contemplativa; e se encontram aqui os
dois atribulas fundamemais do Melquisedeque, quer dizer. do
princípio comum dos dois poderes espiritual e temporal, que regem
respectivameme o domínio da vida contemplativa e o da vida ativa.
Por outra parte, para Santo Agos1inho igualmente (Senno XL/11 de
Verbis lsaiae, c. 2). a razão está no topo da parte inferior da alma
(sentido. memória e cogitação). e o imelecto no topo de sua parte
superior (que conhece as idéias eternas que são as razões imutáveis
das coisas): à primeira pertence a ciência (das coisas terrenas e
transitórias). à segunda a Sabedoria (conhecimento do absoluto e do
imutável); a primeira se refere à vida ativa. a segunda à vida
contemplativa. Esta distinção equivale a das faculdades individuais e
supra-individuais e a das duas ordens de conhecimento que lhes
correspondem respectivamente; e também se pode aproximar disto
este texto de Santo Tomás de Aquino: "Dicendwn quod sicut
ra1ionabiliter procedere aflrib11it11r namrali philosoplriae, q11ia in
ipsa obsermtur maxime modus rationis, ita intel/ect11a/11er procedere
attribuilllr divinae scier1tiae, eo qrwd in ipsa obsen-arur maxime
modus intellecrus" (111 Boetium de Triniuue. q. 6. art. l. ad. 3). Viu-
se precedentemente que, segundo Dame. o poder temporal se exerce
de acordo com a "filosofia" ou a "ciência" racional. e o poder
espiritual de acordo com a "Revelação" ou a "Sabedoria.. supra-
racional, o que corresponde exatamente a esta distinção das duas
partes -inferior e superior- da alma.

134
ÍNDICE
René Guénon ...... 3
PRÓLOGO.. . .......................... .5
Capítulo I: AUTORIDADE E HIERARQUIA ............. 13
Capítulo II: FUNÇÕES DO SACERDÓCIO E DA
REALEZA... ........................ ...25
Capítulo III: CONHECIMENTO E AÇÃO.. .. ........ .42
Capítulo IV: NATUREZA RESPECTIVA DOS
BRÂHMANESE DOS KSHATRIYAS... .. ....... 54
Capítulo V: DEPENDÊNCIA DA REALEZA COM
RELAÇÃO AO SACERDÓCIO.. .. .. 67
Capítulo VI: A REBELIÃO DOS KSHATRIYAS ......... 80
Capítulo VII: AS USURPAÇÕES DA REALEZA E
SUAS CONSEQÜÊ:-ICIAS ............. .. ....... 87
Capítulo VIII: PARAÍSO TERRESTRE E PARAÍSO
CELESTIAL ................................ .. 104
Capítulo IX - A LEI IMUTÁVEL... ......... 125
ÍNDICE.. .. ........ 135

135
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em sistema digital pela

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