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O que impressiona no livro, quase tanto como as histórias de uma infância miserável, é a ausência de
rancores, sem condenar alguém nem sentir pena de si própria
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Ao longo de 23 cartas que a pintora colombiana Emma Reyes (n. 1919) escreve ao seu
amigo e compatriota Germán Arciniegas, ensaísta, político e historiador, ela conta a sua
infância miserável num bairro de San Cristóbal, em Bogotá, no início dos anos 1920, e
também na clausura de um convento onde viveu mais de uma dezena de anos. O Livro
de Emma Reyes – Memória por Correspondência, acabado de publicar por cá pela
Quetzal, reúne essas cartas começadas a escrever em 1969 (datando a última de 1997), e
que só puderam ser publicadas (por vontade expressa da autora) após a sua morte, que
ocorreu em 2003, em Bordéus. A primeira edição da compilação, na Colômbia, data de
2012. Talvez o que mais impressione neste livro, e quase tanto como as histórias da
infância miserável de uma mulher, narrada por ela própria, é a ausência de rancores e
de ressentimentos, sem condenar alguém nem sentir pena de si própria; isto para além
da particularidade de ter sido escrito por alguém que foi quase analfabeto até aos 18
anos. O editor colombiano Camilo Jiménez, e citado pela escritora argentina Leila
Guerriero num texto que introduz o livro, escreveu: “A sua maior virtude consiste na
precisão e na quantidade de detalhes, mas sobretudo no olhar: a autora escreve quando
é adulta, mas quem fala nestas linhas é a menina que ela foi. Nunca ergue o olhar,
nunca completa as sensações que descreve com o que sabe quando escreve; vê sempre
com os olhos do momento em que sucederam as coisas.” Este é, sem dúvida, um dos
predicados desta colectânea epistolar.
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Não se sabe quem são os pais de Emma, nem qual a relação com María, uma mulher
que esteve com ela até a abandonar e Emma ter entrado no convento das “filhas de
Maria Auxiliadora”, um lugar onde dezenas de meninas bordam e cosem, onde se faz
“todo o tipo de bordados a branco, seda e ouro, e se confeccionam ornamentos para a
igreja”. A narrativa começa num bairro pobre de Bogotá, num quarto muito pequeno,
sem janelas e com uma única porta, que dava para a rua. Nesse quarto vivia Emma, a
irmã Helena (mais velha), Eduardo (um rapazinho a quem chamavam Piolho), e María,
a única adulta, uma senhora de quem Emma Reyes diz apenas recordar a enorme juba
de cabelo preto que a cobria completamente e que, quando a usava solta, “me fazia dar
gritos de pavor e esconder-me debaixo da única cama que lá havia”. O olhar da mulher
adulta ao narrar a miséria da criança mantém o mesmo deslumbramento desta décadas
passadas e é assim que se refere ao “momento mais feliz do dia”, que acontecia sempre
depois de vazar o penico na esterqueira: “Todas as crianças do bairro passavam o dia
ali, a brincar, a gritar e a rebolar numa montanha de barro, insultando-se e brigando
umas com as outras, chafurdando nas poças de lama e esgaravatando o lixo com as
mãos à procura daquilo a que chamávamos tesouros: latas de conserva para fazermos
música, sapatos velhos, pedaços de arame, de borracha, paus, vestidos velhos; tudo nos
interessava, era o nosso quarto de brinquedos.”
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Numa entrevista televisiva dada a um canal colombiano em 1976, recordada por Diego
Garzón (que pesquisou o passado da pintora), Emma Reyes acrescenta algo sobre a
fuga, que não conta nas cartas enviadas a Arciniegas: “Saí com a farda que tinha posta e
sentia-me como se estivesse no meio de um sonho, até que me vi ao pé de um comboio
no qual fui obrigada a entrar, e era tudo muito irreal, porque eu nunca tinha visto um
comboio, um elétrico, um automóvel (aqui contradiz-se, pois no livro há uma referência
à chegada do primeiro carro a uma aldeia onde esteve antes de voltar a Bogotá);
imagina o que isso é, quando só sabemos destas coisas através de descrições?” Ainda
acerca da fuga e sobre o que de positivo a vida conventual lhe deu, e sem
ressentimentos por todos os maus-tratos a que foi sujeita durante uma década,
acrescenta na mesma entrevista televisiva: “A minha infância foi passada num convento
e nunca saí de lá. Num mundo absolutamente de sonho, de abstração, porque nós
chamávamos a tudo o que acontecia fora do convento ‘o mundo’, como se vivêssemos
noutro planeta. É claro que isto desenvolveu em nós uma enorme imaginação, a nossa
imaginação enlouqueceu e até imaginávamos que as árvores eram de outra cor e as
pessoas tinham uma forma diferente, e era tamanha a nossa angústia em relação ao que
estava lá fora que um dia eu decidi fugir.”
RECOMENDAÇÃO
Depois de ter deixado o convento, Emma Reyes inicia um périplo casual por vários
países da América do Sul. Contou ela, algures, que começou o seu périplo à boleia
“vendendo óleo de fígado de bacalhau, trabalhando em hotéis, fazendo limpezas ou
cozinhando”. Ia ficando em lugares se as coisas fossem correndo de feição, caso
contrário continuava o seu caminho: desta forma chegou à Argentina, ‘fugindo’ da
Colômbia. Entretanto, casou-se no Uruguai com um escultor colombiano, que depressa
se arrependeu de o ter feito. O casamento não durou muito. Foi por essa altura que
Emma decidiu ser pintora. “Ela não pinta a óleo, mas a lágrimas”, disse um dia
Arciniegas. Os seus primeiros quadros, flores, paisagens e naturezas-mortas,
provocavam o riso entre os amigos e apenas ela os elogiava. De qualquer forma, anos
depois, já em Buenos Aires, acaba por receber uma bolsa que lhe permite ir estudar
para Paris. Na viagem de barco para a Europa conhece um médico francês, com quem
se casa e que foi o amor da sua vida. Fez várias viagens pela Europa e contactou alguma
elite cultural europeia, como Alberto Moravia, Jean-Paul Sartre, Pier Paolo Pasolini, ou
Elsa Morante. No livro de visitas de uma sua exposição parisiense, consta também a
assinatura de Picasso. Curiosamente, e ainda quando estava na Colômbia, Emma
conheceu uma mulher que lia a sorte no tabaco e que adivinhou – isto contou ela ao
crítico de arte colombiano Álvaro Medina – que o seu destino estaria repleto de viagens
e de aventuras.
A obra pictórica de Emma Reyes nunca atingiu o topo que alguns artistas sul-
americanos lograram, apesar de ter trabalhado (e ter tido o reconhecimento) com Diego
Rivera e Frida Kahlo. A este propósito, o crítico de arte Luis Caballero, num texto de um
livro dedicado à obra de Emma Reyes, e citado por Diego Garzón, escreveu: “Há
pintores místicos, lendários. Daqueles de que se fala, em redor dos quais se tecem e
destecem histórias mas cuja pintura se ignora. A Emma é um deles. A sua enorme
personalidade impede a visão da sua obra, para desventura daqueles que amam a
pintura. A lenda da Emma forjou-se a partira da sua própria vida e apesar da sua obra.
Talvez seja por isso que a sua obra é ignorada.”