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— Na coragem. Agora sei que o Homem é capaz de grandes acgées. Mas, se nao for capaz de um grande sentimento, nao me interessa. a “Tense impressio de que ele 6 capaz de tudo —disse Tamron. —Nio, 6 incapaz.de sofrer ou de ser feliz. durante muito) tempo. Portanto, nao é capaz de algo que valha a pena, = Olhow para eles ¢ continuou: — Vejamos, Tarrou, vocd 6 capaz de morrer por um amor? = i ~ — Nao sei, mas parece-me que nao, agora. — AY esta. Voc’ ¢ capaz de morrer por uma ideia, 6 visivel a olho nu. Pois bem, eu estou farto das pessoas cr siorem por uma Idefa. Nao acredito no herotsmo. Sei queé facil e aprendi que era criminoso. O que me interessa 6 que Sevivaequesemormapeloqueseama. ~Rieux escuitara 0 jornalista com atengao. Sem deixar de olhar para ele, disse com brandura: ~ 0 Homem nao é uma ideia, Rambert. outro saltou da cama com o rosto inflamado de painio, — uma ideia, e uma ideia curta, a partir do momento em qui se desvia do amor. E, justamente, nés ja nao somos capazes de amar. Resignemo-nos, doutor. Esperemos vira Slo @, so verdadeiramente nao 6 possivel, esperemos @ Mibertac&o geral sem fingir heroicidade, Por mim, nao vol maisTonge. — Rieux levantou-se com um ar de stbita lassida — Tem razio, Rambert, tem inteiramente razAo. e por’ ite mundo eu quereria desvid-lo do que vai fazer, ‘que me parece justo e bom. Mas, entretanto, devo dizer-lhe uma Coisa: nao se trata de heroismo ém tudo isso. Trata-se tase de honestidade. Fruma ideia que talvez fagarir, mas a nica Tmaneira de lutar contra a peste 6 a honestidade. ~~ 0 que é a honestidade? — perguntou Rambert, com um ar subitamente sério. — Nao sei o que ela é em geral. Mas, no meu caso, sei que ola consiste em fazer o meu trabalho. Ah! — disse Rambert com raiva. — Nao sei qual 60 meu trabalho, Com efeito, talvez erre em escolher o amor. Rioux fez-lhe frente. — Nao — disse com energia —, nao erra Rambert olhava-os pensativamente. — Greio que os senhores nada tém a perder em tudo isso. E mais facil estar do lado bom. Rioux esvaziou o copo. — Vamos — disse. — Temos que fazer. E saiu. Tarrou seguiu-o, mas pareceu reflectir no momento de sair. Depois voltou-se para o jornalista e disse: — Sabe que a mulher de Rieux se encontra numa casa de satide a alguns quilémetros daqui? Rambert teve um gesto de surpresa, mas Tarrou jé safra, Muito cedo, no dia seguinte, Rambert telefonava ao médico. — Aceitaria que eu trabalhasse consigo até encontrar 0 meio de sair da cidade? Houve um siléncio do outro lado e depois Rieux disse: — Com certeza, Rambert. Muito obrigado, Tl Assim, ao longo de semanas, os prisioneiros da peste debateram-se como puderam. E alguns-entre eles, como. mbert, chegavam até a imaginar que agiam ainda como peste, e sentimentos compartilhados por todos. O a separagao e 0 exilio, com o que isso comportava @ de revolta. Eis porque o narrador cré que convém, neste auge do calor e da doenca, descrever de maneira geral, e a titulo de exemplo, as violéncias dos nossos concidadaos vivos, os enterros dos defuntos e 0 sofrimento dos amante: separados. Foi no meio desse ano que o vento se levantou e soprou varios dias na cidade empestada, O vento é particularmente temido pelos habitantes de Ordo, pois nfo encontra qualquer obstaculo natural no planalto em que ela esté construfda ¢ engolfa-se assim nas ruas com todaa violéncia. Depois dest longos meses em que nem uma gota de agua tinha refrescado a cidade, ela tinha-se recoberto de uma camada cinzenta que se escamou sob 0 sopro do vento. Este tiltimo levantav assim vagas de poeira e de papéis, que batiam nas pernas dos transeuntes, agora mais raros. Viam-se passar apressados pelas ruas, curvados para a frente, com a mao ou um leno na boca. A noite, em lugar dos ajuntamentos em que se tentava prolongar o mais possivel estes dias em que cada um podia ser o tltimo, encontravam-se pequenos grupos de pessoas apressadas em voltar a casa ou em entrar nos cafés, de modo que durante alguns dias ao crepiisculo, que chegava bem mais depressa nesta é6poca, as ruas estavam desertas e s6 0 vento soltava gemidos continuos. Do mar agitado e sempre invisivel subia um cheiro de algas ¢ de sal, Esta cidade deserta, branca de poeira, saturada de odores marinhos, toda sonora dos gritos do vento, gemia entao como uma ilha infeliz Até aqui, a peste tinha feito muito mais vitimas nos bair 108 exteriores, mais povoados e menos confortaveis, do que no centro da cidade. Mas ela pareceu, de repente, aproximar- -se ¢ instalar-se também nos bairros comerciais. Os habitantes acusavam o vento de transportar os germes de infecgao, «Ele baralha as cartas», dizia o gerente do hotel. Porém, fosse como fosse, os bairros do centro sabiam que a sua ver tinha chegado ao ouvirem vibrar muito perto deles, na noite, cada vez mais frequentemente, a sereia das ambulancias, que faziam ressoar sob as suas janelas 0 apelo ldigubre e sem paixao da peste. Mesmo no interior da cidade teve-se a ideia de isolar certos bairros particularmente castigados ¢ de s6 autorizar a'sair os homens cujos servigos eram indispensdveis, Oe que af viviam até-entaonao puderam impedir-so d Considerar esta medida como uma partida eee dirigida contra eles e, em todo o caso, pensavam, por contraste, nos habitantes dos outros bairros como em Homens livres. Estes tltimos, por outro lado, nos sous mo- inentos dificeis, encontravam uma consolagio em imaghiar que outros eram ainda menos livres do que eles. «Ha sempre quem seja mais prisioneiro que eu» era a frase que resumia_ entio-a tniica esperanga possivel. ~~Pouico mais ou menos por esta época houve também uma recrudescéncia de incéndios, sobretudo nos bairros residenciais, as portas oeste da cidade. Tomadas informa- G6es, tratava-se de pessoas regressadas de quarentena e que, 156 enlouquecidas pelo luto e pela desgraca, deitavam fogo as suas casas, na ilusio de que lé faziam morrer a peste. Foi muito dificil combater estes empreendimentos, cuja frequéncia submetia bairros inteiros a um perigo perpétuo por causa do vento violento. Depois de ter demonstrado, em véo, que a desinfeceao das casas efectuada pelas autoridades bastava para excluir todo o risco de contégio, foi necessdrio promulgar penas severas contra estes incendiérios inocentes. E, sem divida, nao era a pena de prisio que fazia recuar estes desgragados, mas a certeza, comum a todos os habitantes, de que uma pena de prisdo equivalia a uma pena de morte, em consequéncia da excessiva mortalidade verificada na prisio municipal. Bem entendido, esta crenga tinha o seu fundamento, Por razdes evidentes, parecia que a peste se encarnicava particular: mente sobre aqueles que tinham adquirido o habito de am grupo — soldados, religiosos e prisi apesar do isolamento de certos detidos, uma prisio é uma_ inidade e 0 que o prova bem é que na nossa prisio municipal os guardas, tanto como os presos, pagavam oseu tributo a doenga. Do ponto de vista superior da peste, to a gente, desde o director ao ultimo dos detidos, « condenada, 6, talvez pela primeir uma, absol Foi em vo que as autoridades tentaram introduzir hierarquia neste nivelamento, concebendo a ideia de conde- corar os guardas da prisao mortos no exercicio das suas fungdes. Como o estado-de-sitio estava decretado e, sob certo Angulo, podia considerar-se que os guardas da prisao estavam mobilizados, deu-se-lhes a medalha militar, a titulo péstumo. Porém, se os detidos nao fizeram ouvir qualquer protesto, os meios militares nao aceitaram bem a ideia e fizeram notar, com razao, que podia estabelecer-se no espirito do puiblico uma lamentével confusao. Fez-se justiga ao seu pedido e pensou-se que o mais simples era atribuir aos guardas a medalha da epidemia. Para os primeiros, porém, 0 mal estava feito, ndo se Ihes podia retirar as condecoragées e os meios militares continuaram a manter seu ponto de vista. Por outro lado, pelo que diz respeito & medalha da epidemia, ela tinha o inconveniente de nao produzir o efeito moral que se tinha obtido coma atribuigao de uma condecoragao militar, visto que, em tempo de epidemia, era banal obter uma condecoracao deste género. Todos ficaram descontentes. Além disso, a administragao da penitencidria nao pode actuar como as autoridades religiosas e, em menor medida, as militares. Com efeito, os monges dos dois tnicos conventos da cidade tinham sido dispersados e alojados provisoriamente em casa de familias devotas. Igual mente, sempre que foi possivel, pequenas companhias tinham sido destacadas das casernas e postas em guarnigao em escolas ¢ edificios paiblicos. Assim, a doenca que, aparentemente, tinha forgado os habitantes a uma solidariedade de sitiados, quebrava ao mesmo tempo as associacdes tradicionais enviava de novo os individuos para a sua solidao. Isto cau- sava perturbagées. Pode pensar-se que todas estas circunstancias, acrescen- tadas a0 vento, levaram também o incéndio a certos espiritos. As portas da cidade foram atacadas de novo durante a noite, e por varias vezes, mas desta feita por pequenos grupos armados. Houve trocas de tiros, feridos e algumas evasoes. Os postos de guarda foram reforcados e estas tentativas cessaram assaz rapidamente. No entanto, bastaram para levantar na cidade um sopro de revolugo, que provocou algumas cenas de violéncia. Casas incendiadas ou fechadas por razdes sanitédrias foram pilhadas. Para dizer a verdade, 6 dificil supor que estes actos tenham sido premeditados. A maior parte das vezes, uma ocasio sibita levava pessoas até entdorespeitaveis a acobes repreenstveis, que foram ime- diatamente imitadas. Encontraram-se assim furioso: capazes de se precipitarem numa casa ainda em chamas, em presenga do préprio proprietério, embrutecido pela dor, Perante a sua indiferenga, 0 exemplo dos primeiros foi seguido por muitos espectadores, e nesta rua obscura, a luz do incéndio, viram-se fugir por todos os lados sombras deformadas pelas chamas moribundas e pelos objectos ou méveis que levavam aos ombros. Foram incidentes que forgaram as autoridades a assimilar 0 estado de peste ao estado-de-sitio e a aplicar as leis que dele decorrem. Fuzilaram-se dois ladrées, mas é duvidoso que isso fizesse impressao aos outros, pois no meio de tantos mortos estas duas execugées passaram despercebidas — eram uma gota de 4gua no oceano. E, na verdade, cenas semelhantes desenrolaram-se com bastante frequéncia, sem que as autoridades fizessem mengao de intervir. A Gnica medida que pareceu impressionar os habitantes foi a instituigao da hora de recolher. A partir das onze horas, mergulhada na noite completa, a cidade era de pedra. Sob os céus luarentos, ela alinhava as suas paredes esbranquigadas e as suas ruas rectilineas, jamais manchadas pela massa negra de uma érvore, jamais perturbadas pelos passos de um transeunte ou pelo latido de um co. A grande. cidade silenciosa nao era entéo mais do que um aglomerado de cubos macigos © inertes; entre os quais as efigies. taciturnas de benfeitores esquecidos ou de antigos grandes homens, abafados para sempre no bronze, tentavam sozinhas, com os seus falsos rostos de peda ou de bronze evocar uma imagem degradada do que tinha sido ohomem. Fstes fdolos mediocres reinavam sob um o6u espesso, nas pragas sem vida, brutos insonsiveis que representavam bastante bem o reino imével em que tinhamos entrado, ou, Belo menos, a sua ordem dltima, a de uma necr6pole em (que peste peda ea noite teriam feito calar,enfim, todas as vozes, Mas a noite estava também em todos os coragies e as verdades, como as lendas, que se contavam sobre os enterros, nao eram de molde a tranquilizar os nossos concidadaos. Porque é necessério falar dos enterros, e o narrador pede desculpa. Sente bem a censura que poderia fazer-se-lhe a este respeito, mas a tinica justificagao é que houve enterros durante toda esta época, que, de certo modo, o obrigaram, ‘como obrigaram todos os nossos concidadaos, a preocupar- -se com os enterros. Nao é, em todo o caso, que ele tenha gosto por este género de ceriménias, preferindo, pelo contrario, a sociedade dos vivos e, para dar um exemplo, os banhos de mar, Mas, em suma, os banhos de mar tinham sido suprimidos @ a Sociedade dos vivos receava durante todo o dia ser obrigada a ceder 0 passo a sociedade dos mortos. Erva evidencia. Bem entendido, era sempre possivel ~gstorgar-se por nao a ver, fechar os ofhos @ recusé-la, mas a evidéncia tem uma forca terrfvel que acaba sempre por vancer. Qual'o meio, por exemiplo, de recusar os enlerros “no dia em que aqueles que amamos tém necessidade de serem enterrados? Pois bem, 0 que caracterizava, a principio, as nossas cerim6nias era a rapidez! Todas as formalidades tinham sido simplificadas e, de uma maneira geral, o cortejo fainebre hha sido suprimido. Os doentes morriam longe da familia ¢ tinham sido proibidos os vel6rios rituais, de modo que os que morriam a tardinha passavam a noite s6s ¢ os que morriam de dia eram enterrados sem demora. Avisava-se a familia, bem entendido, mas, na maior parte dos casos, esta ndo podia deslocar-se, por estar de quarentena, se tinha vivido perto do doente. No caso de a famflia nao habitar com o defunto, apresentava-se a hora indicada, que era a da partida para o cemitério, depois de o corpo ter sido lavado e metido no caixao. Suponhamos que esta formalidade se passava no hospital auxiliar de que se ocupava o doutor Rieux. A escola tina uma safda por trés do edificio principal. Uma grande arrecadacao que dava para o corredor continha os caixdes. No proprio corredor, a familia encontrava um tinico caixio, ja fechado. Passava-se imediatamente ao mais importante, ou seja faziam-se assinar papéis ao chefe da familia, Em seguida metia-se 0 corpo num carro, que podia ser um verdadeiro carro funerario ou uma ambuléncia transfor- mada. Os parentes subiam para um dos taxis ainda autorizados ea toda a velocidade dirigiam-se ao cemitério por ruas exteriores. A porta, os gendarmes faziam parar 0 reduzido cortejo, punham um carimbo sobre o salvo- -onduto oficial, sem o qual era impossivel ter aquilo a que os nossos concidaddos chamam uma altima morada, afastavam-se e os carros iam colocar-se perto de um quadrado onde numerosas covas esperavam que as en chessem, Um padre recebia 0 corpo, pois os servigos fiine- bres tinham sido suprimidos da igreja. Tiravam 0 caixao, acompanhado de orag6es, passavam-lhe uma corda, era arrastado, deslizava, tocava no fundo, o padre agitava 0 seu hissope e jé a primeira terra cafa sobre a tampa. A ambulén- cia tinha partido um pouco antes para se submeter a uma desinfecgio e, enquanto as pazadas de argila ressoavam cada vez mais surdamente, a familia metia-se num téxi. Um quarto de hora mais tarde, tinha voltado ao seu domicflio. Assim, tudo se passava verdadeiramente com 0 méximo de rapidez.¢ 0 minimo de riscos. E, sem diivida, ao principio, pelo menos, é evidente que o sentimento natural das familias se ofendia, Porém, em tempo de peste nao ¢ possivel ter em conta semelhantes consideragdes — tinha-se sacrificado tudo a eficdcia. Para mais, se, a principio, o moral da populagiio tinha sofrido com estas praticas, porque o desejo de ser enterrado decentemente esté mais espalhado do que se supée, um pouco mais tarde, por felicidade, o problema do reabastecimento tornou-se delicado e 0 interesse dos habitantes derivou para preocupacdes mais imediatas. Absorvidas pelas bichas que era preciso fazer, pelas dili- sgéncias a realizar e pelas formalidades a cumprir se queriam comer, as pessoas nao tiveram tempo de se ocupar da ‘maneira como se morria a sua volta e como elas préprias morreriam um dia, Assim, estas dificuldades materiais que © medo, tanto mais que o trabalho era pago na proporgao dos riscos. Os servigos sanitdrios puderam dispor de uma. lista de pretendontes e, logo que se dava uma vaga, avisavae ° os primeiros da lista que, salvo no caso de terem também entrado em férias no intervalo, nao deixavam de se apresentar. Foi assim que o prefeito, que hesitara muito tempo em utilizar os condenados, temporérios ou por toda a vida, para este género de trabalhos, péde evitar chegar a esse extremo. Enquanto houvesse desempregados, ele era de opiniao, que se podia esperar. Melhor ou pior, até ao final do més de Agosto, os nossos concidadaos puderam, pois, ser conduzidos a sua tiltima morada, se nao decentemente, pelo menos com uma ordem suficiente para que as autoridades mantivessem a consciéncia de que cumpriam o seu dever, Mas é necessario antecipar um pouco a sequéncia dos acontecimentos para relatar os tltimos processos a que foi preciso recorrer. Com efeito, no estado em que a peste se manteve, a partir do més de Agosto a acumulagao das vitimas ultrapassou em muito as possibilidades que o nosso pequeno cemitério podia oferecer. De nada servira abater muros, abrir aos mortos uma. saida para os terrenos circundantes — em breve tornou-se necessario encontrar outra coisa. Decidiu-se, em primeiro lugar, enterrar de noite, o que, para logo, dispensou de se tomarem certos cuidados. Péde apinhar-se cada vez mais 6s corpos nas ambuliincias. E alguns retardatédrios que, contra todas as regras, se encontravam ainda nos bairros exteriores depois da hora de recolher — ou aqueles que 0 dever para la levava —, encontravam por vezes longas ambulancias brancas que corriam a toda a velocidade, fazendo soar discretamente as campainhas nas ruas vazias da noite. A pressa, os corpos eram lancados nas fossas, Mal tinham acabado de cair, j4 as pazadas do cal se abatiam sobre 08 rostos ¢ a terra os cobria de modo anénimo, nas covas que se abriam cada vez mais profundas. ma "Um pouco mais tarde, contudo, foi preciso procurar 164 outro sitio. Uma ordem da Prefeitura expropriou os jazigos perpétuos e dirigiram-se para 0 forno cremat6rio todos os restos exumados. Em breve tornou-se necessério conduzir 8 préprios mortos da peste para a cremacao. Mas houve entdo que utilizar o antigo forno de incineracao, que se encontrava a leste da cidade, fora de portas. Afastou-se para mais longe o piquete da guarda e um empregado da Camara facilitou muito a tarefa das autoridades, aconselhando que se utilizasse os carros eléctricos que outrora serviam a estrada marginal e que se encontravam sem serem utiliza- dos. Para esse efeito, arranjou-se o interior dos carros reti- rando os assentos e desviaram-se os carris em direcgdo ao forno, que se tornou assim um término de linha. Edurante todo o final do Vero, como durante as chuvas do Outono, péde ver-se passar a beira-mar, no coragao de cada noite, estranhos comboios de carros eléctricos sem passageiros, dancando sobre as linhas por-cima do mar. Os habitantes tinham acabado por saber do que se tratava._ E, apesar das patrulhas que proibiam o acesso a marginal, certos grupos conseguiam insinuar-se bastantes vezes por centre os rochedos e atirar flores para os atrelados, & passagem dos carros. Ouviam-se entdo os vefculos aos solavancos na noitede Verio, com o seu carregamento de flores e de morlos.. ~~ Pela manha, em todo o caso, nos primeiros dias, um cheiro nauseabundo flutuava sobre os bairros orientais da cidade. Segundo a opiniao dos médicos, essas exalagbes, embora desagradaveis, nao podiam fazer mal a ninguém. Mas 0s habitantes desses bairros ameagaram imediatamente desertar, persuadidos de que a peste se abateria também sobre eles do alto dos céus, de modo que as autoridades foram obrigadas a afastar 0 fumo através de um complicado sistema de canalizagées complicado, ¢ os habitantes acal- maram-se. S6 nos dias de muito vento um vago cheiro vindo de leste Ihes lembrava que estavam instalados numa nova ordem e que as chamas da peste devoravam a sua tribo a cada noite. = rane estas Ee consequéncias extremas: da epidemia, foi uma felicidade que ela nao tivesse aumentado depois, porque pode pensar-se que o engenho das nossas reparticdes, as disposicdes da Prefeitura e até a capacidad de absorgao do forno podiam ter sido ultrapassadas,Ricux sabia que se tinham previsto entao solugdes desesporadas, como 6 langamento dos-cadaveres ao mat, e imaginava facilmente a sua espuma monstruosa sobre a égua azul. Sabia Tambem quo, se a estatistica continuasse a subir, nenhuma | rganizacdo, por mais excelente que fosse, resistiria, que os homens viriam morrer em monte e apodrecer na rua, a dospattodaPrefeitura, i act releitura, ¢ que a cidade verla nas pracas Era este género de evidéncia ou de apreensao, em todo caso, que mantinha nos nossos concidadaos o sentimento do seu exilio e da sua separagao. A este respeito, o narrador sabe perfeitamente quanto é lamentavel nao poder citar aqui algo que seja verdadeiramente espectacular, como, ie steel pec he RO esac ella semelhantes aqueles que se encontram nas velhas narrativas. E que nada 6 menos espectacular do que um flagelo e, pela siaair6p and ea Mgt eet ea lcsieatae sho inanTonal Na recordago daqueles que os viveram, os dias terriveis da peste nfo aparecem como grandes chamas sem fim e cruéis, mas antes como uma marcha interminavel que esmaga tudo Nao, a peste nada tinha com as grandes imagens exultantes que haviam perseguido o doutor Rieux no principio da epidemia. Ela era, em primeiro lugar, uma administragio prudente e impecével, de bom funcio- namento. E assim que, diga-se entre pardntesis, para nada trair e sobretudo para nao se trair a si préprio, 0 narrado: ernie para wuteer valid stiesttb tesdicereacee ace pelos efeitos da arte, salvo no que diz respeito as pecessidades de uma descrigio mais ou menos coerente. E 6a propria objectividade que o forga agora a dizer que, se 0 grande softimento desta época, o mais geral como o mais profundo, era a separacio, se é indispensével, em cons- Ciéncia, fazer dele uma nova descrigao nesta fase da peste, nao é menos vordade que até este sofrimento perdia entéo um pouco do seu patético. ‘Acaso os nossos concidadaos, pelo menos aqueles que mais tinham sofrido com esta separagao, se habituavam a este estado de coisas? Nao seria inteiramente justo dizé-lo. Seria mais exacto afirmar que, moral como fisicamente, eles ‘ofriam de descarnamento. No comeco da peste lembravam- “se nitidamente do rosto amado, do seu riso, de tal dia que agora reconheciam ter sido feliz, imaginavam dificilmente ‘0 qud0 outro podia fazer no proprio. momento em que o Gvocavam e em lugares agora tao longinquos. Em. suma, nesse momento tnham memoria, Thas_uma imaginagao ‘msuffcionte, Na segunda Tase da peste perderam também 2 meméria. Nao que tivessem esquecido esse rosto, mas, 0 que vinha a ser o mesmo, ele tina perdido a carne, nao.o sentiam ja no interior de si mesmos. E enquanto, tendiam a quelxar-se, nas primairas samanas, de nao Thes restarem. ) “gndo sombras dos objectos do seu amor, compreanderam, coma contimuagao, que essas sombras podiam_tornar-se sada mais descarnadas, perdendo até as cores infimas que | Ihes mantinham a recordagao. Ao fim desse longo tempo de auséncia, ja nso Tmaginavam essa intimidade que tinha sido a sua, nem como tinha podido viver perto deles um ser omque podiam a todo o momento pousar a méo. este ponto de vista, tinham entrado na propria ordem da pesto, tanto mais eficaz quanto mais mediocre ora. Ninguém, entro nos, tinha jé grandes sentimentos, mas toda a gente experimentava sentimentos monétonos. «i tempo de isto acabary, diziam os nossos concidadaos, pois em periodo de flagelo ¢ normal desejar o fim dos sofrimentos 167 colectivos e, de facto, desejavam que aquilo acabasse. Mas tudo isso era dito sem o calor e sem a acriménia do principio © somente com as poucas razdes que nos restavam ainda claras e que bem pobres eram. Ao grande impulso agastado das primeiras semanas tinha sucedido um abatimento que seria erro tomar por resignagio, mas que nem por isso era menos uma espécie de consentimento provisério. Os nossos concidadaos tinham-se posto a par, tinham-se adaptado, como costuma dizer-se, porque nao havia maneira de proceder de outro modo. Eles tinham ainda, naturalmente, aatitude da desgraca e do sofrimento, mas jd nao os sentiam. De resto, o doutor Rieux, por exemplo, considerava que isso era justamente a principal desgraga e que o habito do desespero é pior do que o proprio desespero. Dantes, os separados nao eram realmente infelizes, pois havia no seu sofrimento uma luz que acabava de se apagar. Agora viam- -se pelas esquinas das ruas, nos cafés ou em casa dos amigos, plcidos e distrafdos, e com um ar téo aborrecido que, gracas a eles, toda a cidade parecia uma sala de espera. __Aqueles que tinham uma profissio realizavam-na ao ritmo da prépria peste, meticulosamente e sem fulgor. Toda a gente era modesta. Pela primeira vez, os separados nao tinham repugnancia“emtalar dos ausentes, em usar a Tinguagem de toda a gente, em examinar a sua separacdo gobo mesmoa_angulo_que_as estaisticas da epideom. inquanto, até entéo, tinham subtraido ciosamente o sell S0- fae a infelicidade colectiva, aceitavam agora a confusao. Sem memoria e sem esperanca, instalavam-se no presente. A peste, é preciso dizé-lo, tirara a todos o poder fo amor e até o da amizade. Porque o amor exige um pouco. de futuro e, para nés, j4 nao havia sendo instantes. Bem entendido, nada de tudo isto era absoluto. Pois, se 6 verdade que todos os separados chegaram a esse estado, 6 justo acrescentar que nao chegaram todos ao mesmo tempo e que também, uma vez instalados nessa nova atitude, lampejos, retrocessos, bruscos estados de lucidez levavam s pacientes a uma sensibilidade mais nova e mais dolorosa. Exam precisos para isso esses momentos de distracgio em que eles formavam algum projecto que implicava o fim da peste. Era preciso que eles sentissem inopinadamente, e por efeito de alguma graca, a mordedura de um citime sem objecto. Outros encontravam também renascimentos stibitos, salam do seu torpor em certos dias da semana, ao domingo, naturalmente, ¢ aos sabados a tarde, porque esses dias eram consagrados a certos ritos, do tempo do ausente. Ou ainda uma certa melancolia que os invadia ao final da tarde dava-lhes o aviso, de resto nem sempre confirmado, do que a meméria ia voltar. ssa hora da tarde, que para os) t crentes 6 a do exame dé consciéncia, é dura para 0 neiro ou 0 exilado, que s6 podem examinar o vacuo. | ensos por-um momento; depois | voltavam @ atonia, voltavam a encerrar-se na peste. " Jase compreendeu que isso consislia em renunciarem ao que tinham de mais pessoal. Enquanto nos primeiros tempos da peste se surpreenderiam com a quantidade de pequenas coisas que contavam muito para eles, sem terom qualquer exist@ncia para os outros, e faziam assim a experiéncia da vida pessoal, agora, pelo contrario, s6 se interessavam por aquilo que interessava aos outros, j4 nao tinham senao ideias gerais e o seu préprio amor tinha fomado para eles a forma mais abstracta, Estavam a tal pon- to abandonados & peste que Ihes acontecia por vezes nao terem esperangas sendo no seu sono e surpreenderem-se a pensar: «Venham os tumores e acabemos com isto!» Mas dormiam jé, na realidade, e todo este tempo nao foi mais do que um longo sono. A cidade estava povoada por adormecidos-acordados, que nao escapavam realmente & sua sorte, a néo ser nos raros momentos em que, de noite, a sua forida aparentemente fechada se abria bruscamente. E, acor- dados em sobressalto, apalpavam entao, como distraidos, os bordos irritados dessa ferida, reencontrando num relampago o seu sofrimento, subitamente rejuvenescido, e, 169 com ele a imagem perturbada do seu amor. De manha voltavam ao flagelo, ou seja a rotina. Mas qual era 0 aspecto, perguntar-se-4, desses separados? E muito simples: nao tinham qualquer aspecto. Ou, se se prefere, tinham 0 aspecto detoda agente, im aspecto inteiramente geral, Compar- ‘filtvavam a placidez e as agitacdes pueris da cidade. Perdiam as aparéncias do Senso Grilico, ao mesmo tempo-que gatihavam as aparéncias do sangue-frio. Podiam ver-se, por @xemplo, os mais inteligentes entre eles simularem procurar, como toda a gente, nos jornais ou nas emissdes radiof6nicas, jes para acreditarem num fim rapido da peste e conceberem, aparentemente, esperangas quiméricas, ou sentirem receios sem fundamento ao lerem consideragées que um jornalista tinha escrito um pouco ao acaso, bocejando de aborrecimento. Quanto ao resto, bebiam a sua cerveja ou tratavam dos seus doentes, preguigavam ou esgotavam-se, arquivavam fichas ou faziam girar discos, sem se distinguirem de outro modo uns dos outros. Por outras palavras, j4 nada escolhiam, A peste tinha suprimido os jaizos de valor. E isso via-se pela maneira como ja ninguém Seocupava da qualidade do vestuario ou dos alimentos que Tompravam. Aceitava-se tudo em bloco. Pode dizer-se, para terminar, que os separados jé nao tinhiam_esse privilégio que no principio os preservava Tinham perdido o egoismo do amor e o beneficio que dele fGavam. Pelo menos, agora a situagao era clara: o flagelo ongtobava foda a gente. Todos nds, no meio das detonacoes que estalavam as portas da cidade, dos carimbos que marcavam o compasso da nossa vida ou da nossa morte, no meio dos incéndios ¢ das fichas, do terror e das formalidades, prometidos a uma morte ignominiosa, mas registada, entre os fumos terrfveis e as campainhas tranquilas das ambulincias, todos nos nutriamos do mesmo pao do exilio, esperando, sem o saber, a mesma reunido e a mesma paz perturbadoras. O nosso amor, sem dtivida, estava presente ainda, mas simplesmente era inutilizével, pesado, inerte em 0, Nao era mais do nés, estéril como o crime ou a condenagao. mead ae a Ga ro e uma espera obstin E, q na paciéncia sem futuro i i) aaa titude de alguns dos nossos este ponto de vista, a al u a ae ios fazia pensar nessas longas phe coe al nentos. Era a0 a cantos da cidade, diante das lojas de alimentos. Er: pepe seeignagio e a mesma magnanimidade, co mesiro te i see, Seria apenas necessério elovar e imitada e sem ilusdes. ; 1 Oa ean ‘auma escala mil vezes maior no que ier je 4 separagdo, porque tral: ao de uma ou capaz de tudo devorar. aa eras es Em todo 0 caso, supondo que se que me Sade rasta do estado de espirito dos separados da nossa c}dac sua preciso evocar de novo asses eters tardes dowracse ea aay lade sem arvores, a » caiam sobre acidade som 4 ¢ poeirentas que cat s,onguanlo ee e mulheres se espalhavam. por todas as. oe eh estranhamente, o que subia enta0 para o» terrog ainda anhamente, subi paras tora sol, na auséncia do ruido de cheios de sol, na au de veiulos@ de aqui jam ordinariamente toda a lingua uinas que fazem ordin a2 a iste a apenas um rumor de passos € de i cade siproroso deslizar de milhares de sola ritmado pelo Se oc fiagelo no céa pasado, um marcar-passo intermineye > serocente que enchia pouco a pouco toda a cidade © as, tarde apés tarde, dava a sua voz mais fie eke Nara bstinagéo cega que nos nossos coragoes substituis favacse ent amor.

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