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Corria o ano de 1532.

Postumamente, o tratado que Niccolò Machiavelli havia


escrito em 1513, intitulado O Príncipe, fora publicado. O debate polémico seria
imediato. No seguimento da difusão da obra, ilustres como o papa Clemente VIII ou
Erasmo de Roterdão depreciaram o seu conteúdo. Em 1559, a obra entra na lista de
livros proibidos, o index.
Niccolò Machiavelli nasceu em Florença, 1469, filho de um advogado, Bernardo
di Niccolò Machiavelli e de Bartolomea di Stefano Nelli. Foi filho terceiro e primeiro
rapaz. A época em que cresceu foi deveras conturbada, com a Itália dividida em estados,
os quais derivavam das grandes cidades: Veneza, Milão, o reino de Nápoles, o papado e
a terra natal de Machiavelli, Florença. No caso do reino de Nápoles, encontrava-se sob
domínio espanhol e havia sido partilhado com os franceses. Já Milão, graças a Carlos
VIII e Luís XII, estava sob domínio francês. Florença, por sua vez, era governada pela
influente família Medici.
Estes poderosos estados, diria Machiavelli, procuravam assegurar o poder para
eles mesmos, sem intervenção política exterior, ou seja, de um país estrangeiro,
garantindo assim que nenhum deles enaltecesse o seu poder e território às custas dos
outros. A balancear o poder destes grandes estados, durante 1469 a 1492, graças ao uso
engenhoso da diplomacia, estava Piero di Lorenzo de’ Medici, governador de Florença.
Houve, de facto, confrontos armados, onde foram chamados a combater mercenários,
que apesar da natureza do seu nome, não eram bravos guerreiros prontos a dizimar
inimigo que fosse. Machiavelli, aquando da escrita d’ O Príncipe, dedicaria as primeiras
linhas da obra ao “magnífico” filho de Medici.
Lorenzo di Piero de’ Medici, ou Lorenzo II, filho, liderou Florença a partir de
1513 e foi duque de Urbino desde 1516 a 1519, ano da sua morte. As razões autênticas
por trás da dedicatória de Machiavelli são desconhecidas, embora, após uma leitura da
obra, pareça querer informar Medici do método sensato a usar, caso pretendesse unificar
a Itália. Contudo, Lorenzo não foi particularmente entusiasta da proposta de
Machiavelli.
A preparação para governar de forma justa e sensata, sendo duplamente temido e
amado para ser respeitado (o qual será analisado abaixo), estes conselhos, ou se
preferirmos, metodologia minuciosa para criar uma personalidade governativa, podem
ser entendidos como depósito de confiança da parte do autor na figura de Medici,
embora, analistas contemporâneos, como Leo Strauss (1899-1973, Universidade de

1
Chicago) afirmaram a possibilidade de leitura irónica d’ O Príncipe, tendo por base a
interpretação satírica do séc. XVIII.
Mas o que dizer sobre Machiavelli, o homem? Um homem cujo físico reflecte o
retrato do pintor Santi de Tito, “estatura média, magro, fronte larga, olhos penetrantes e
lábios finos 1 ”. Um filósofo humanista. Um escritor do Renascimento. Uma mente
fundamental para o exercício da ciência política, por isso o filósofo político na essência.
Um artista sensível que escreveu poesia e comédia. Sobretudo um homem com uma
sensibilidade profundamente enraizada nos clássicos da antiguidade. Um homem que
deve o raciocínio aos grandes mestres latinos e helénicos. Este retomar do saber antigo,
tão característico do renascimento, com certeza explica o conhecimento histórico e
sobretudo a consciência histórica do autor, no discorrer d’ O Príncipe.
Há pouca informação acerca da juventude do autor. Esta escassez não impede de
sabermos que teve bom ensinamento de latim e de literatura. Após o restauro da
república de Florença, Machiavelli tornou-se secretário da Segunda Chancelaria, onde
lidava com assuntos vindos do estrangeiro. Esteve sempre a serviço do governo até à
queda da república em 1512. No ano seguinte, Lorenzo II iniciaria a sua breve
ascendência ao poder de Florença.
Machiavelli era tido em conta como um homem capaz e trabalhador, dedicado
por inteiro ao serviço público. Foi enviado em embaixadas por ser um exímio
negociador (chegou a acompanhar César Borgia) embora se considere que fosse
limitado pela indecisão dos seus soberanos. Tal resultava numa humilhação face à falta
de recursos. Estaria aqui a base para o discurso apaixonado que percorre toda a obra do
autor? Um desejo pela soberania que ao mesmo tempo reconhecia que estava fora do
seu alcance? Às suas viagens deve o conhecimento sobre a natureza humana, na gestão
de poder e relações entre as camadas estratificadas da sociedade. Embora Machiavelli
fosse um republicano devoto, estava consciente das minuciosas falhas que
ensombravam uma república.
Em 1502 casou-se com Marietta di Luigi Corsini. Juntos tiveram sete filhos.
Pouco se sabe da vida privada do autor. Depois, em 1504, após sucessivas tentativas
para fazer vigorar forças que não as mercenárias, ou seja, milícias de cidadãos,
conseguiu que lhe fosse confiada tal tarefa de angariação de homens. Graças a esse
esforço, em 1509, foi reconquistada a cidade fortaleza de Pisa, deveras resistente aos

1
MAQUIAVEL, Nicolau, O Príncipe; Escritos Políticos, 3ª ed., Abril Cultural, São Paulo, 1983, p. 7.

2
florentinos. Este passo é considerado o momento áureo da vida política de Machiavelli.
Contudo, em 1512, a milícia de cidadãos enfrenta o desafio que ditaria a sua debilidade:
o confronto com tropas estrangeiras, nomeadamente a aliança espanhola com o papa
Júlio II.
Os Medici estiveram no poder por mais quinze anos (até 1527). Durante esse
período, a península itálica continuou a sofrer ataques estrangeiros. Machiavelli tornara-
se, entretanto, fogoso apoiante da antiga república, criticando os Medici. Leia-se
Decennale Primo, de 1504. A carreira política do autor findou pouco depois do desastre
de 1512. Após fazer conhecidas as suas opiniões, os Medici retiraram-no do cargo que
praticava e foi exilado da cidade de Florença, embora não pudesse abandonar o
território Florentino durante os primeiros tempos. A dedicatória n’ O Príncipe reflecte o
desejo de Machiavelli servir Florença sob um novo governo. Mas, em 1513 foi acusado
de conspiração contra os Medici, sendo preso e torturado antes de ser solto. No decorrer
desse ano, em San Casciano, Machiavelli ocupou-se a gerir a pequena propriedade onde
estava enclausurado. Conviveu com os habitantes locais e dedicou-se à feitura da obra
que, provavelmente, lhe é logo associada, O Príncipe.
O autor faleceu sem ver concretizado os temas em que se debruçou durante o
exílio, temas pelos quais tinha lutado em vida. O seu legado de ciência política
aglomera uma série de meditações feitas em clausura. A sua obra abriu novos caminhos,
alternativos à obra de Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino ou Dante Alighieri. Antes o
estudo político reflectia sobre a moral e os ideais de organização política e social. Nem
mesmo Erasmo de Roterdão ou Thomas More, nos respectivos Manual do Príncipe
Cristão e na Utopia, conseguiram munir-se de temática concreta, ficando por
idealizações, numa espécie de humanismo abstracto2.
Machiavelli tem, portanto, consciência do seu desbravar de terreno
desconhecido, pois distancia-se da escolástica medieval e do pensamento antigo a que
tanto deve. Afinal, não é próprio do seu tempo emprestar o conhecimento da
antiguidade para dele progredir? O autor rompe com o pensamento anterior por
necessidade humanista palpável e possível. N’ O Príncipe, substitui o arquétipo moral,
quase dogmático, por um conjunto de necessidades e fins concretos para o
manuseamento do poder. Expõe um conjunto de raciocínios práticos, recorrendo sempre
que possível a exemplos factuais da História que tão bem estudou. Por isso “o objecto

2
IDEM, ibidem, p. 13.

3
das suas reflexões é a realidade política, pensada em termos de prática humana
concreta.3”

De modo a compreender a obra de Machiavelli no que diz respeito à natureza do


príncipe, cargo hereditário ou “novo” (fundado sem antecedentes), será necessário rever
dois conceitos-chave da cultura antiga, mais concretamente da cultura latina, e revê-los
à luz da obra, que tanto se inspira neles, como os adapta ao período em estudo. São eles
princeps e virtus.
O primeiro significa a pessoa imediata e final, o primeiro homem que
personifica a liderança, distinto. É, pois, curioso observar a transformação do conceito,
desde a época de Octávio Augusto. O estatuto quase divino que há no termo latino
princeps dá lugar, em Machiavelli, a um príncipe humanista, intimamente ligado com o
povo que governa, do qual resulta, segundo o autor, o amor ou o ódio dos súbditos por
si. Por isso o príncipe em Machiavelli também é, duplamente, o início do poder, como o
fim, embora nunca possa ser alheio ao povo para ser um bom governante.
Adiante, a soberania está envolta numa aura histórica que permite fundamentar
os ideais do autor. Eis a ponte entre a antiguidade e a contemporaneidade: os
governantes antigos deixam como legado o infortúnio ou o sucesso, e ambos são
elemento de estudo para o novo modelo de principado. Porém, não será descabido dizer
que o autor deixa tácito a falta de autenticidade do cargo, através de um fingimento
natural, que o torna plausível de ser praticado. Ou seja, a pessoa imediata e final é um
homem comum, com a diferença (e que preciosa diferença) do meio e da possibilidade
de governar sob todos os outros. É de facto possível ler a obra num tom satírico, como
foi supradito e será consolidado abaixo. Esse tom satírico que nos pode (tão facilmente)
induzir à má leitura do conteúdo da obra, resulta da observação do quotidiano
contemporâneo do autor, afirmações do seu próprio empirismo e estudo do passado. O
Príncipe poderá ser, em certos momentos, irónico, mas está escrito com a sobriedade de
quem intenta discorrer sobre algo que acredita ser o seu meio.
O segundo conceito a ser considerado é virtus. Pensa-se provir do mesmo sufixo
das palavras senectus (velhice) e iuventus (juventude), embora não signifique ser-se
homem maduro ou jovem. É antes “ser homem” no sentido de “homem direito”4. Na

3
IDEM, Ibidem, p. 13.
4
PEREIRA, Maria Helena da Rocha, Estudos de História da Cultura Clássica, II Volume – Cultura Romana,
4ª ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2009, p. 406.

4
Lei das Doze Tábuas compreende o significado “valentia”, ligada intimamente com a
aretê homérica. Lúcilio propõe eloquentemente que virtus “é saber o que para o homem
é recto, o que é útil, honesto, o que é bom, como o que é mau, o que é inútil, feio,
desonesto”5.
Machiavelli idealiza o príncipe como um cargo propenso à virtus, para que não
lhe afectem incidentes de má natureza, sem que vacile com os distúrbios à sua liderança.
Por isso, o tempo e as situações mal geridas podem ditar o perecimento antecipado de
um príncipe. Se a virtus de um soberano for mal gerida, tão depressa será tarde para o
recobro da posição de liderança.
O “príncipe novo”, atesta Machiavelli, terá formas distintas de governar. Pela
imitação, seguindo exemplos de outros príncipes em demais regiões, ou celebres que a
história consagrou. Pela inovação, reformando a sociedade e a religião, mas, de igual
modo, com a referência a homens distintos do passado 6 . O recolhimento da
ancestralidade clássica e bíblica, através de personagens como Moisés (mesmo que “não
deva falar de Moisés, por isso que foi um mero executor das coisas que lhe eram
ordenadas por Deus”) Rómulo, Ciro ou Teseu7, recaí sobre o princípio que estes homens
não se manifestaram como detentores de fortuna, mas como detentores de valor
enobrecedor, tornando-lhes exemplos a seguir.
O identificar da essência moral e ética das situações enfrentadas por um príncipe
através da virtus, permite-o escolher as pessoas certas para ter do seu lado. E nisto o
autor é claro em diversos momentos da obra, o povo é sempre a alternativa certa,
distinguindo-os dos homens de poder. Leia-se: “Aquele que chega ao principado com a
ajuda dos grandes mantém-se com mais dificuldade do que aquele que o atinge com a
ajuda do povo8”.
A atitude de um príncipe diz respeito à benevolência liberal. Machiavelli não crê
na possibilidade de um bem último para atingir os fins da governação de um estado.
Ora, um soberano conhecido pela sua liberalidade será prejudicado na medida em que
não consegue obter o respeito da massa que pretende que seja submissa. E, sem o
respeito e respectiva obediência que daí advém, incapacita-se a governação do príncipe.

5
IDEM, ibidem, p. 406, apaud Romana, p. 27.
6
STRAUSS, Leo,
http://users.polisci.wisc.edu/avramenko/Methods/Strauss_Machiavelli's%20Intention%20in%20the%20
Prince.pdf [consultado a 19-04-2011], p. 27.
7
MAQUIAVEL, Nicolau, O Príncipe, 6ª ed., Guimarães Editores, Lisboa, 1994, p. 31.
8
IDEM, ibidem, p. 50.

5
É uma questão ambígua no que concerne à forma de lidar com o povo: por um lado o
autor aprova necessidades sumptuosas, que façam a destrinça entre o nível hierárquico,
bem como o “exercer do fisco e fazer tudo aquilo que se costuma para obter dinheiro9”;
pelo outro deve manter o povo do seu lado, de modo a triunfar e ser amado. A
duplicidade em Machiavelli é, ironicamente, o processo natural de respeito entre súbito
e soberano. O súbito reconhece a superioridade do soberano, enquanto este mantém o
seu estatuto de liderança através da manifestação de poder.
O príncipe deve evitar ter o povo contra si, mas não deve deixar que as camadas
descontentes, por um motivo ou outro, o façam vacilar nas decisões. Essa parcela que
deprecia a governação de um príncipe é algo natural e inevitável. Pois, o
descontentamento tanto é resultado de uma boa ou má governação. A prudência de um
príncipe não pode ser abalada, nem condicionada, pela benesse ou adversidade que lhe
apresentem os governados ou estrangeiros. É, pois, consequência directa da intenção do
príncipe. Intenção que servirá (ou não, pois aí jaz o sucesso ou o infortúnio do estado)
as necessidades do principado conforme o bom senso do soberano. Ou seja, o
principado não pode vergar a exigências internas infundadas, para que haja triunfo
governativo. Muito menos cederá a influências de outros estados. E no caso de
influência externa, o autor é claro quanto ao confronto de armas. Deve, contudo, um
príncipe evitar o ódio do povo para que tal não condicione a sua prudência, fazendo por
agradar os seus interesses, satisfazendo os súbditos.
Mas deve então o príncipe ser mais “amado que temido, ou antes temido do que
amado10”? O autor acha preferível um soberano ser tido por piedoso do que por cruel,
mas considera haver mais segurança na temeridade do que no apreço. Deve-se à
temperança, à prudência, ou, permitindo o acrescento, à virtus, o equilíbrio entre o
temor e o apreço. Porque ambos são essenciais para o supradito respeito. A
problemática reveste-se na incompatibilidade entre os conceitos, ou antes, a dificuldade
de conciliação de ambos. É próprio do homem não ofender pessoa que “se faça amar”
do que uma que “se faça temer 11 ”. Mas então, qual o defeito do apreço por um
soberano? O interesse que reveste a maldade natural do Homem: o autor crê no mal
como essência humana. E este mal está descrito n’ O Príncipe. Da dualidade oposta
entre o bem e o mal, surge a questão: devemos crer na maldade humana ou na

9
IDEM, ibidem, p. 77.
10
IDEM, ibidem, p. 79.
11
IDEM, ibidem, p. 81.

6
benevolência? O pensamento maquiavélico n’ O Príncipe sugere, em momentos, que
nos guiemos pela descrição da má conduta para ilustrar o idealismo da virtus. O poder
terá a qualquer momento a corrupção devida, quer por factores determinantes, como o
desejo pelo excesso, quer por motivos aleatórios, como a doença (leia-se os feitos de
Alexandre, que tão bem ilustram a adversidade da fraqueza corporal12).
Todas estas diferenças de estado de pensamento, quer sejam ambiguidades, quer
sejam certezas veementes, apontam para que, de facto, O Príncipe tenha tonalidades
satíricas, profundamente enraizadas na ironia. Ora, que Machiavelli tivesse sentido de
humor e uma acutilante observância, provam-no a escritura de comédias, ou breves
passagens na obra em estudo. Provam-no também, o descontentamento sentido nas
últimas décadas de vida, que a sua biografia nos explica. A passagem mais emblemática
d’ O Príncipe, que poderá ser lida com ironia lê-se: “Não é necessário a um príncipe
possuir todas as supraescritas qualidades, sim que lhe é necessário parecer possuí-las.
Assim, ousarei dizer isto de que, tendo-as e observando-as sempre, são danosas, e,
parecendo tê-las, são úteis: como é bom parecer piedoso, fiel, humano, íntegro,
religioso, e sê-lo; mas guardar tal disposição de ânimo que, necessitando não o ser,
possa e saiba o príncipe desempenhar o contrário13”.
Que poderá ser este jogo de personalidade, esta ausência de todos os valores
descritos anteriormente? Como poderá explicar-se que o autor nos prega princípios de
soberania, de guerra, de benevolência, de aliança ao povo, para depois conjugar os seus
ensinamentos com a mera aparência de todos os anteriores? Isto não só representa a
praticabilidade do idealismo maquievélico, como prova que a legitimidade sentida da
dedicatória a Lorenzo II é dúbia. Não ambicionaria antes Machiavelli mostrar ao
efémero soberano aquilo que ele nunca seria? Mais, o príncipe “novo” ou hereditário, a
que o autor faz menção um pouco por toda a obra, acaba por ser irrelevante face a esta
oscilação de espírito, quando se entende neste decorrer de pensamento que, para
governar basta apenas parecer que se governa. O parecer quando não se pode ser, é a
pista mais próxima para dar a entender a intenção do autor, ou seja, a sátira. Para
governar é preciso ter virtudes e defeitos. Quando se tem virtudes, usam-se os defeitos
para equilibrar o poder. Quando se tem defeitos, camuflam-se com virtudes.
Uma leitura satírica d’ O Príncipe permite compreender a animosidade de
Machiavelli pelos Medici. Diga-se que a obra é uma resposta do autor ao exílio forçado

12
IDEM, ibidem, p.24.
13
IDEM, ibidem, p. 85.

7
pela dita família. Compreender a natureza de um príncipe, de um cargo soberano, passa
por entender a frustração e reflexão prolongada de Machiavelli, que demonstrando em
alturas ser capaz de decisões críticas, e, culpando as demais adversidades que surgiram
na falta de apoio dos a quem obedecia, está incapacitado de ser o príncipe novo,
idealizado e praticável. De igual modo, revia-se no povo que julgava ser essencial para
o bom mantimento de um estado. Povo esse que, em maioria, estaria capacitado para
ditar a grandiloquência ou o infortúnio de um príncipe. Mas Machiavelli, confinado,
preso às palavras escritas, deverá ter sentido nas suas obras a única forma possível para
atingir meios. O Príncipe seria editado postumamente. Machiavelli não receberia os
louros pelo legado político que moldara.

Se falarmos no legado deixado pela obra de Machiavelli, em concreto no caso d’


O Príncipe, podemos mencionar consequências quase imediatas à difusão da obra.
Henrique VIII, monarca inglês, por exemplo, soube aproveitar os ensinamentos
maquiavélicos a seu favor, aquando da anulação do casamento com Catarina de Aragão,
separando a sua soberania da Santa Sé e alicerçando o poder absoluto. Até no seio dos
Medicis, na figura de Caterina Maria Remola, filha de Lorenzo II, aproveitaram-se os
ensinamentos de Machiavelli. Esta pôs católicos contra protestantes, levando ao
massacre de 157214.
A obra esteve durante vários anos sob ameaça das instituições religiosas. No
período da Contra-Reforma, quando o cisma protestante opôs-se à ortodoxia,
procurando dar nova vida ao poder espiritual da Igreja, a obra de Machiavelli tornou-se
alvo de depreciação, na medida em que apoiava a subordinação do poder religioso à
soberania política. Após a morte do autor, queimaram-lhe a efígie, e, como já havia sido
dito, por ordens do papa Paulo IV, O Príncipe foi incluído no index, embora tal não
tenha impedido que a obra circulasse em grande escala pela Europa15.
No século das luzes, Rousseau e Diderot defenderam O Príncipe, com base na
problemática republicana. Foi, aliás, com Diderot que se inicia a corrente de
pensamento que julga a obra como uma sátira e não como um elogio, como também são
inegáveis as convicções políticas de Machiavelli, como afirma Rousseau. Aliás, o autor
teria de esconder o seu favoritismo pela educação do povo antes à dos reis16.

14
MAQUIAVEL, Nicolau, O Príncipe; Escritos Políticos, 3ª ed., Abril Cultural, São Paulo, 1983, p. 7.
15
IDEM, ibidem, p. 18.
16
IDEM, ibidem, p. 18.

8
Já em setecentos, Friedrich II, rei da Prússia e patrono de Voltaire, redigiu o
Anti-Machiavel, consistindo numa refutação por capítulo d’ O Príncipe, e em âmbito
mais geral, uma crítica ao pensamento maquiavélico 17 . Voltaire chegou, inclusive, a
fazer uma revisão exaustiva do manuscrito.
No século XIX, os democrata-radicais percebem o valor da historicidade da
obra, declarando o maquiavelismo como a “prática política corrente entre os poderosos
de todos os tempos18”. E aqui entende-se o ideal de ensinamento ao povo, tornando o
poder soberano como algo irrisório e falível. No mesmo século, Machiavelli seria uma
figura emblemática por trás do movimento de unificação da Itália, o Risorgimento,
graças ao pensamento maquiavélico, unificador da península itálica19.
Na primeira metade do século XX, através de figuras como Benito Mussolini e
Adolf Hitler, a obra de Machiavelli seria reinterpretada, de novo sob novas influências.
Hitler afirmaria que tinha O Príncipe como leitura de serão, uma contínua fonte de
inspiração. Já Mussolini declarou que acreditava que o pensamento maquiavélico era o
guia último de um estadista, e a doutrina da obra prevalecia porque, passados
quatrocentos anos, nenhum mudar profundo ocorrera na mentalidade das pessoas ou na
acção dos estados. O ditador italiano mudaria mais tarde a opinião, quando em 1939
incluiu Machiavelli na lista de autores proibidos nas bibliotecas de Roma, através do
index fascista20.
Não será surpreendente esta panóplia de interpretações que a obra sugere. A
ambiguidade sentida durante a sua leitura e o grau de clareza e esclarecimento por parte
dos leitores no que diz respeito ao contexto histórico, quer seja da época, quer seja da
vida do autor, leva a tão distintas interpretações. Inegável é a influência repetida em tão
marcantes figuras da história mundial, de diferentes períodos.
Hoje em dia, até à feitura deste texto, a obra de Machiavelli é considerada no
seio académico como pertencente ao contexto da época, e não como uma adaptação aos
tempos que correm. E isso é crucial para a leitura d’ O Príncipe: mediante a noção do
contexto histórico em que a obra se insere, entenderemos que ela pertence ao seu tempo
e a mais nenhum, por mais que as variáveis se repitam.

17
IDEM, ibidem, p. 18.
18
IDEM, ibidem, pp. 18-19.
19
IDEM, ibidem, p. 19.
20
SIEGAL, Janice, http://people.hsc.edu/drjclassics/syllabi/IH/Machiavelli.shtm [consultado a 20-04-
2011].

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