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UMA COISA SÓ

2ª edição revisada
Para minha filha,
a única.
ÍNDICE

Trecho de uma correspondência - Paulo Neves....................9

Introdução .....................................................................................15
O nascimento ................................................................................16
Nascimento II................................................................................17
Nascimento III..............................................................................18
Arábia (Uma História do Tesouro da Juventude)..............................20
Genealogia.......................................................................................22
Pureza, solidão...............................................................................23
Desencanto......................................................................................28
Espera...............................................................................................29
A perseverança...............................................................................30
Outra noite......................................................................................31
Vulcão...............................................................................................32
Transe...............................................................................................34
O bicho ...........................................................................................35
Época de colheita..........................................................................37
Dezenove anos...............................................................................38
A jovem............................................................................................39
Jovem sábio.....................................................................................40
A carta..............................................................................................41
No caminho....................................................................................43
A batalha.........................................................................................45
O destino........................................................................................46
A canção da era............................................................................47
Meritíssimo já-era........................................................................48
Poemão...........................................................................................52
Fruta-pão.........................................................................................60
A companheira..............................................................................64
Vou embora...................................................................................66
Deixe-me – longe de você........................................................69
Frivolidades......................................................................................70
Didi....................................................................................................72
Banquete familiar...........................................................................74
Estranho banquete........................................................................76
Riviera...............................................................................................80
Glória ao pai...................................................................................87
Entre o azul e o verde.................................................................88
Um vazio no vazio........................................................................89
Tabela periódica.............................................................................90
Velho.................................................................................................92
Só o velho........................................................................................93
Alma vaga........................................................................................94
A mulher..........................................................................................96
Modigliane.......................................................................................97
O pintor e a mulher......................................................................98
Em mauá..........................................................................................99
Ternura...........................................................................................100
Eu e ela...........................................................................................102
Corpo..............................................................................................103
O coração da pedra.....................................................................107
Três cascas.....................................................................................111
Resposta.........................................................................................115

Posfácio..........................................................................................123
Resposta versão 1993................................................................124
TRECHO de uma correspondência

(...) Ao ler a última versão do seu livro, recordo o que me


impressionou em muitos dos poemas, quando os lia indi-
vidualmente à medida que você os escrevia e me enviava:
cada um deles já formava um todo, uma coisa só. E em
quase todos havia um traço admirável de seu estilo, esse
impulso combativo, impulso de verdade, o mesmo que o
faz revolucionar sua casa para achar uma agulha, como
você disse, e que imprime à sua experiência, à matéria ver-
bal, uma transformação ininterrupta. Eu já havia assinala-
do essas transformações depois de ler a primeira versão de
“Resposta”. Lembra o que escrevi então?

“Resposta não me parece um poema formalmente bem


acabado, mas sem dúvida é um de seus grandes poemas,
grande no sentido de força, de desafio, como foi o Poemão.
(...) A idéia essencial é a das transformações: o perigo na
estrada, o vento que muda um percurso, a percepção alte-
rada do gosto da pinga, da folha de quaresmeira. Você diz
isso magnificamente nestes versos: ‘Preciso ver as marcas
do tempo nas coisas / e uma espécie de alegria brota em
mim / quando posso observar o paradoxo das transforma-
ções / e as confusões do homem para nomear / a matéria
alterada’. “ E vejo agora, examinando a última versão do
livro, que mesmo nesses versos você fez novas alterações.

Mas fico pensando que impressão terá quem vier a tomar


contato com seus poemas em conjunto, de uma vez só,
sem o privilégio que tive de os ir penetrando e compreen-
dendo aos poucos, cada um, a cada nova leitura, e a seqü-
ência que eles formam. Pois hoje me parece muito claro
que há movimentos bem marcados, mudanças de inflexão
9
no modo de apresentar os temas, que ora se agrupam poli-
fonicamente, ora retornam com variações como numa sin-
fonia. Gostaria de mostrar como vejo esses movimentos
para saber o que você acha de algumas pequenas modifica-
ções que proponho. Veja:

O primeiro movimento é formado pelos “Nascimentos”


(I, II, III), “Arábia” e “Pureza, solidão”. Nesse conjunto,
“Genealogia” me parece deslocado pelo tom e pela forma
breve do poema. Acho que poderia figurar noutra parte
(na abertura do segundo movimento que começa com
“Desencanto”) ou ser simplesmente eliminado.

O segundo é um pouco mais difícil de definir e talvez seja


só um desdobramento modulado e mais variado das ques-
tões e dos traumas muito condensados no primeiro. Inclui
“Desencanto”, “Espera”, “Outra noite”, “Vulcão”, “Tran-
se” e “O Bicho” (observe que textos em prosa como esse
servem para marcar transições).

“Época de colheita” inicia claramente um terceiro movi-


mento que se prolonga em “Dezenove anos”, “A Jovem”
(que hoje reconheço que diz bem e no lugar certo), “O
jovem sábio”, “A Carta” e, talvez aqui, o recém-incluído
“O Destino”, todos esses com características de pinceladas
e de antecipações.

“No caminho” é a retomada de um tipo de enunciação for-


te que marca, a meu ver, o começo do quarto movimento.
Mas o poema seguinte, “A Batalha”, apesar desse tom, tem
algo de redundante que eu não gosto (como poema ele é
10
fraco, isso já comentei uma vez com você). “A canção da
era” também não me parece corresponder muito bem a
esse movimento, que prossegue mesmo, e com força, em
“Meritíssimo já-era”, ‘Poemão” e “Fruta-pão”.

“A Companheira” situa-se justamente no meio do livro e


por muitos motivos vejo esse texto como um eixo em tor-
no do qual todos os outros giram.

O quinto movimento é um recomeço a partir de “Vou em-


bora”, solilóquio conciso, delicioso. “Deixe-me”, “Dia lim-
po”, “Didi”, “Banquete familiar” e “Riviera” são poemas
que retomam questões pessoais e familiares, mas deixam
transparecer um certo distanciamento na autoanálise que
os anteriores não tinham.

“Glória ao pai” marca uma nova inflexão e um sexto movi-


mento, seguido por “Entre o azul e o verde”, “Um vazio no
vazio”, “Tabela periódica”, “Velho” (uma sugestão: repen-
sar o título desse poema), “Só o velho” e “Alma vaga”.

“A mulher” inaugura muito tematicamente um sétimo mo-


vimento que prossegue em “Modigliani”, “O pintor e a
mulher”, “Em Mauá”, “Ternura” e se encerra com “Eu e
ela” (“Areia”, em minha opinião, deve ser eliminado: é um
pouco forçado como poema e não está bem colocado na
seqüência).

O último movimento, enfim, comporta uma espécie de de-


puração ou de síntese em “Corpo” e “Coração da pedra”, e
duas maravilhosas demonstrações de sua poética em “Três
11
cascas” e “Resposta”.

Pode haver um pouco de artificialismo nesse esquema,


mas no geral penso que é bastante consistente. Se concor-
dar, resta a questão de saber se deve ou não haver alguma
espécie de marca separando os movimentos (página em
branco, sinal, numeração...).

Responda dizendo o que achou desses comentários. (...)

Paulo Neves
2001

12
INTRODUÇÃO

Uma coisa só
passando

Uma coisa só
enquanto

Uma coisa só
acontecendo

Uma coisa só
indiferente

Uma coisa
somente.

Uma coisa só.

15
O NASCIMENTO

O passo do camelo moveu o ar


que moveu o ar
e o vento
varreu o vale do rio absorvido
onde eu jazia distraído
fazia tanto tempo.

Quando a pressão aumentou


abri os olhos de medo
e em minha órbita eu vi
seu olho luz, olho egípcio, olho
do início sem fim.

Sua fuça me lançou às corcovas


e era o verbo do movimento
e era vendaval
era espiral
era caos
no qual eu ouvia
um ruído de surdo dodecafônico.

Ao fim da travessia
senti sede
e senti que sentia.

Depois foi o afônico nascimento.

16
NASCIMENTO II

Perdido num templo


onde o longínquo é perto
cheguei ao lugar do momento
(procurava havia tempo)
no horizonte do deserto.

Um ponto se aproxima:
um camelo com um feto em cima.
Equilíbrio precário, terror iminente:
seus olhos sem Deus
refletem os meus.

Como uma lágrima gigante


o feto escorre do animal
enquanto outra mina do meu olho
como bola de cristal
-- de onde se vê: o início e o final.

17
NASCIMENTO III

Lugares vazios são cheios de folhas


pedras, pó e vento
mas aqui não existe nem tempo
só um camelo pasta areia
numa beira de rio absorvido.

Um ponto se aproxima:
um camelo com um feto em cima.
O que me comove ao vê-lo dentro
são seus olhos de astronauta
perdidos numa órbita sem volta.

Vem de longe
(e eu, venho de onde?)
para conhecer no fim
o começo do verbo
ou, ao inverso
encontrar no início
o fim do universo.

18
ARÁBIA (UMA HISTÓRIA DO “TESOURO DA JUVENTUDE”)

Dilatada e árida
corpo feito de areia: Arábia,
heróica fantasia
de um menino que percorre,
dum ponto a outro interior,
solidões enormes...

“Chegaram os beduínos
(estranhos dignos)
no alto dos bichos corcundas.
Ignoram mulheres e filhos
mas seus olhos cegos dão idéia
dos vãos dos confins.

Tenda de luxo
cântaro mágico
fruta, peixe salgado
coalho, fogueira, fumo;
manteiga feita por mulher
esteira, biscoito duro.

Berços, gaiolas, cadeiras


e mil coisas mais.
Grande é a tribo; mães
dobrando cuidadosamente
as pregas do acampamento.

20
De uma luz tenuíssima, as estrelas
imenso templo
cúpula
azul
e vento.

O menino vigília
ouvindo as vozes da areia
uns ventos ou uivos de sereia: Arábia
alivia uma agonia que não tem fim
-- de homens que se divertem
num propósito sem fim.

Em manhãs enevoadas
a aparência é freqüente
em cima do horizonte.
Mas hoje é diferente
o menino vê, não imagina
a silhueta do acampamento
sumindo na linha.

É indizível a tristeza
no panorama do destino;
o sol da realidade
bate a pino.
O menino dentro do menino
varia
como um rio absorvido
de bruços na areia”.

21
GENEALOGIA

Meu avô morreu, eu nascia


minha mãe sofreu e sofria
seu marido não era quem ela queria
muito menos eu.

22
PUREZA, SOLIDÃO

Um camelo pastava areia


na beira do rio absorvido
e me mantinha entretido
com seu olho que mexia
quando eu flutuava em sua órbita.
Durante o dia eu vivia
no alto do sofá de napa
de onde eu só via nada
além do camelo pastando.
Mas tinha medo do poço oco
que havia atrás do meu trono
e funcionava de madrugada
quando o ar do reino parava
e a paisagem vibrava com estranho magnetismo.
Então era grande o risco
de tudo ser tragado pelo poço;
sabia, por mais que vigiasse
o sono me pegaria, e de repente:
o poço puxando meus pés
e eu agarrando mesa, bufê, parede
tudo vindo mole, torto, suspenso
e eu chupado pouco a pouco
do quarto pra escada pra sala pro reino
até que, no limite do meu esforço
minha mãe naturalmente aparecia
(tudo voltava ao lugar)
passava ao meu lado
e perguntava de soslaio:
-- por que está sempre tombado?
Eu não podia explicar
o que ela não iria entender. →
23

O medo veio muito depois


junto com o tempo
que também começou depois.
Que o nome dela era mãe, eu sabia
e pai e irmãos, sabia
mas só depois nome mãe virou a mãe
nomes do mundo, o mundo
e o nome medo, o medo.
Quando conheci a alegria e a tristeza
foi fácil dizer: lá não havia alegria.
Mas não fazia falta
porque sempre esteve ausente
como o medo eu não sentia
porque nunca esteve ausente.
Hoje eu fumo charuto
sem saber o que ganhei ou perdi
no dia em que fomos embora daquela casa.

24
Quando a carroça estava cheia
e meu pai me ajudava a subir
o cavalo me pôs um olho
que ria da minha cara
do meu jeito de escalar as malas
com uma mão segurando o calção que caia.
Enfim me instalei no ponto mais alto
esperando aquilo que se chamava mudança
que viria a ser um vendaval de nomes
nome para cada grão da minha areia.
Quando o cavalo moveu o ar
o ar moveu-se e o vento
ardia meu rosto
e varria-me por dentro;
para cegar a escuridão eu escancarava os olhos
que logo se fechavam para não ver a luz
mas então abriram-se depressa
porque (de onde?) vinha uma sensação
coisa que era um sentimento
o primeiro sentimento que eu tinha
que foi simplesmente
sentir que sentia.
Ao fim da travessia
conheci o medo
na imagem que eu vi
de meu pai e minha mãe rindo de mim.

25
O medo paira, gira, some
volta, está aqui, vejo
se quiser eu toco...
Aquela pessoa mãe já era antes
mãe que hoje para mim antes não era
e os irmãos que não eram, eram
e a formiga que não andava, andava
e o tempo que não passava, passava.
Agora sei das coisas e nomes de tudo
labirinto, relatividade, memória, perdão, culpa, Deus
e a parte que me cabe neste latifúndio.
Se hoje quando cheguei em casa
foi difícil abrir a porta
e entrar na sala vazia
e subir as escadas com as pernas duras
para escrever palavras sombrias,
sei que o medo é o mesmo que no começo eu não sentia
mas agora dói demais
porque sei sentir.
E chegou o hoje em dia
e não tenho tendo mais o pai que tive e não tinha,
pai passou como uma chuva termina
mãe como a duração do gosto de uma bala
resta-me agora destilar purezas
dos nomes trás-os-montes de nadas.
Desço as escadas
vejo minha filha dormindo
e procuro amar as perguntas que me dividem:
como recomeça?
como se livra?
como se anima?
26

O camelo vem
mansinho
aproxima-se
e seu olho agora
é só um olho egípcio
girando em órbita
em torno...
(de quem?
de mim... quem?)
de mim.
Pára, vai
está aqui, acolá
ri
agora sumiu...
Vai voltar...
(em torno de quem?...)
não vai...
vai...
se
es-
vai...

27
DESENCANTO

O homem nasceu
a mulher já havia
concebido.

Meu lago é frio


meu umbigo blue
meu destino comum.

A vida satura
o tao é utopia
só o corpo sabe.

A dor é d’menos
a fórmula singela:
perdoa-te.

Perdoa-te a ti.
Atura-te a ti.
Retira-te de ti.

Adeus para quem parte


todo filho é triste
e o tigre solitário.

Três tristes tigres


pai, filho e espírito santo
no meu desencanto.

Não há nada atrás da porta


nunca houve diferença
sempre assim por diante.
28
ESPERA

Em meio à melancolia,
acho bonita a minha letra
e clara estas palavras.
Hoje sonhei que asfaltaram o mar.

Continuo pescando botas


no lago azul do meu peito.
E no estômago
o material não se entrega à digestão.

29
A PERSEVERANÇA

A perseverança do solitário
como o murmúrio d’água
num riacho canalizado;
de dia, repetindo o seu caminho
de noite, chorando seu destino.

30
OUTRA NOITE

Esta noite
mas existe outra noite dentro da
noite
antiga.

Uma noite
eclipse desta noite
vazia.

Sua essência
matéria dessa presença
ambígua.

Débito do tempo
cobra nesse momento
sua dívida.

Escuro sobre escura


sombra numa penumbra
escondida.

31
VULCÃO

Na paisagem há uma imagem de homem


Refletida no bafo da vidraça
A forma inversa tem nome
No verso perdeu sua graça.

Na paisagem há um rosto que fuma


O homem tem gosto de homem
A diferença entre dois é uma
Poeira que voa mais leve.

Na paisagem tudo é evidente


Como homens construindo viaduto
Nas colunas de concreto aparente
O terror de um abalo súbito.

Na paisagem o céu está limpo


Escurece então rapidamente
Quando toca a campainha
A solidão vem de repente.

Na paisagem uma mosca zumbindo


Conduz às dunas da lembrança
Foi na piscina de um clube
Que quase afogou uma criança.

Na paisagem rola uma lenda


Que lagoa é cheia de mágoa
Quem passa estranha a força
Da superfície parada da água.

32
Na paisagem uma gota deságua
A barragem dura e antiga
Foi a lágrima de um olho
Que viu no fim a ruína.

Na paisagem há um livro aberto


Numa estampa do monte Fuji
Quem vê pensa no Japão
Num vulcão longe de si.

33
TRANSE

A porta do banheiro.
A porta do banheiro está aberta.
Nada.
Quem está aí?
Nada natural, nada transcendental.

A porta do banheiro está aberta.


Explode-se dentro de mim.
Ecoa-se no fundo do meu ser.
Quem é você?
Corro desesperado, corro até você.

O efeito me desintegra;
como num espelho
eu me aproximo de você
e você aparece à minha frente:
-- te agarro e me expulso de mim.

34
O BICHO

Estava distraído vendo TV, quando senti uma fisgada na


sola do meu pé direito, bem no meio do calcanhar. Tirei
sapato, meia e vi com repulsa e horror: um bicho ia entran-
do no meu pé. Não havia tempo para pensar, precisava ar-
rancá-lo imediatamente pela parte corpo que ainda restava
fora. Enquanto puxava aquela coisa, surpreendia-me com
o seu comprimento, parecendo mesmo, naquele longo ins-
tante, que não teria fim. O bicho saindo assemelhava-se a
uma centopéia, cujas pernas fossem longas como de grilos
e asas transparentes como de moscas. Quando por fim o
retirei, aquilo esperneava na minha mão com tal repugnân-
cia que imediatamente o larguei, e ele saiu rastejando em
direção à lavanderia. O problema é que o buraco aberto
no meu pé ficou cheio de seus restos, patas, pedaços de
asas que eu ia limpando com alguma dor, pois inevitavel-
mente fisgava um bocado da minha carne. A natureza da-
quele bicho não me era desconhecida, já ouvira falar sobre
essa espécie dos artrópodes que penetra tão rapidamente
no corpo humano -- mas não lembrava seu nome. Achei
por bem então matá-lo, para evitar novos incidentes tanto
comigo quanto com qualquer outro. Mas já não estava fácil
encontrá-lo em meio às folhas e aos trapos que se espa-
lhavam pelo chão. Quando enfim dei com ele, faltou-me a
ferramenta adequada, uma vassoura, um sapato qualquer,
com a qual pudesse esmagá-lo; o que encontrei foi uma pá,
e com ela acertei bem no meio do bicho, o que só dobrou
o meu trabalho, pois agora eram duas metades correndo
em direções opostas. Sem hesitar um instante, esmaguei
a primeira delas com meu pé perfurado. O nojo que senti
foi ainda maior que a dor, pelo efeito sonoro e gosmento
que aquilo gerou, como se eu tivesse estourado uma lesma
35
cuja epiderme fosse de plástico. A outra metade escapou.
E não adiantava continuar procurando dentre tantos des-
troços. Também já era hora de me cuidar, de pedir ajuda
para alguém me levar a uma farmácia, pois agora, exami-
nando novamente meu pé, fiquei impressionado com os
nacos de carne pustulentos que se desprendiam do bura-
co, e bastante preocupado com uma possível infecção, por
conta daqueles dejetos pretos que sobraram incrustados lá
dentro. Percebi que não seria nada fácil tratar dessa ferida
e que certamente deveria levar muitos pontos.

36
ÉPOCA DE COLHEITA

Fim de tarde:
adolescentes pescam
no riacho canalizado.

Jogam a rede: nada.


Jogam a rede: nada.
Jogam a rede: porrada de lambaris.

Atenção: fecharam as águas do canal!


Alegria dos adolescentes: peixes na lama
— época de colheita.

37
DEZENOVE ANOS

O sol se põe ao norte


O perigo me deixa mais forte
O jogo se joga com a sorte
Tenho dezenove anos não temo a morte
Mas
De onde vem esse acorde
Esse acorde
Esse acorde no ar?

38
A JOVEM

Desilusão da jovem:
com um garfo tenta espetar o gelo
que dança inquieto no prato
e gruda no resto de couve.

Não tem essa de esperar


resolve que vai ser já.
— Se vocês estivessem certos
não teriam tantos problemas.

39
JOVEM SÁBIO

Não tenho nada a dizer


neste instante sou suficientemente sábio para isso.
Como todo sábio é cego
prefiro saber as coisas acomodadas
na sombra, no avesso, no vazio.

Marquei encontro comigo


no dia em que nasci
e aqui me apresento.

Ainda não arrumei namorada


mas não faz mal;
hoje ouço o silêncio
e sinto que existe sentido no tempo.

40
A CARTA

Quarto escuro
cachimbo apagado
e aquele silêncio que tiro do bolso desde o dia em que
nasci.

Mas hoje o silêncio é outro


ficando muito mudo
e o quarto mais escuro.

O profeta avista uma praia


cada passo é uma palavra
e aí estão minhas pegadas.

Agora o passo mais difícil:


estou apaixonado por você.
Pronto: pegadas na areia.

Leia logo: maré cheia.

41
NO CAMINHO

A mulher sentou zangada no meio da estrada e insistia a


Joca Ramiro que lhe desse uma sela, que sem uma sela,
repetia mais uma vez, não continuaria o caminho. Joca Ra-
miro, do alto de seu cavalo, com aquela voz que ecoa o ser-
tão, ordenou simplesmente que a tropa prosseguisse. Mas
ela não era uma mulher qualquer, também fora moldada
pelos traços de caráter e beleza que o pó e o sol dessa terra
esculpem na pele de sua gente, e por isso, recusando-se a
obedecer, agarrou um rapaz que ali assistia a tudo atônito,
colocou seu corpo mole entre as coxas e com ele deitou
no chão, como se este gesto insólito pudesse convencer o
homem daquilo que ela queria — que não era outra coisa
senão uma sela, para que pudesse seguir o caminho. Sendo
assim, desvencilhou-se bruscamente do jovem, sentou-se e
lançou seus olhos nos olhos de Joca Ramiro, dizendo com
eles nitidamente: entende? Enquanto isso, o rapaz posto
de lado tocava com muito cuidado os botões da blusa da
mulher, abrindo-os vagarosamente e escorregando seus
dedos em meio aos seios túmidos, seguro de que ninguém
em volta o observava, nem a própria dona dos seios, hip-
notizados que estavam com a questão que partia dos olhos
da mulher como uma palavra concreta: entende? O grande
chefe permanecia quieto, absorto, impassível, seu cavalo é
que parecia um tanto impaciente. Foi quando a mulher, em
desespero iminente, trouxe o rapaz de volta para si, enla-
çou-o novamente, mas dessa vez simulando de tal forma o
ato sexual, que o rapaz acabou inteiramente envolvido, es-
quecendo-se por completo de sua condição de simulacro.
E quando maior era a sua excitação, a mulher descartou-o
em definitivo, levantou-se e se dirigiu para junto das per-
nas de Joca Ramiro. Agora, com a voz menos arrogante e
43
quase amorosa, tentou um segundo argumento, deixando
simplesmente seus olhos parados na direção do caminho,
enquanto balbuciava qualquer coisa a respeito da lama que
cobria o caminho.

44
A BATALHA

Por acaso, mito ou destino


O certo é que o errado se rendeu
E no reino masculino e feminino
A força do mais fraco convenceu
Os putos, brutos e cretinos
Que o amor é a graça de Deus
E o horror de todo o desatino
É a persona non grata do Eu.
Então
O mau virou um bem maligno
E o bom mal soube que venceu.

45
O DESTINO

Sua tarefa
será descobrir a tarefa
e cumpri-la.

Nada mais posso dizer


que lhe ajude a compreender
seu destino.

Sua tarefa
será descobrir a tarefa
e cumpri-la.

46
A CANÇÃO DA ERA

Era uma vez uma era


era uma
era duas
era três
e o mundo inteiro se fez
e agora tudo outra vez

47
MERITÍSSIMO JÁ-ERA

Os poetas já declamaram
e os deuses já
devoraram-se
e o dito-cujo, já sei
não é até tu, bruto
– sou eu.

Eta, esta besta...


Êh, iá-iá...

Já não há mais becos


nem a voz umbilical da sentinela.
Antes, agora, depois:
já.
Liberdade, igualdade, fraternidade:
já.

Êh, iá-iá...
Mas que pressa...!

Já mexi no pote, enfiei a mão


a solução é o fim da questão.
Já cozi, passei do ponto
e no fundo
nada no pretérito do futuro:
meritíssimo já-era!

Êh, iá-iá...
Era já.

48
E enfim, já não há mais mistério
e o padre tirou a batina;
nu, já!
A missa foi pro dicionário
e o templo p’ras picas
e eu pergunto: qual é a minha mística?

Pois é, iá-iá...
Comé q’fica...?

E eu já, eu já-já.
já sou, já fui, já hei
até mesmo pé beijei,
a casca da sola do pé da porra
da mula, já
beijei.

Êh, iaiá...
‘té gostei...

Já: passaram-se cinco minutos.


Já: tudo está deserto
um astronauta dentro do feto
bailando entorno do universo
ao som daquela valsa:
passo falta, passo falta, passo falta...

Êh.., iá...
Êh... →

49
Eta suadouro, logradouro público
dentro de mim, de ti, de tudo.
Fragmento caleidoscópico
numa gota de sal que sai
e se arrebenta...
mas como a onda de Hokusai se sustenta?

Êh, iá-iá...
‘ssa foi boa, iaiá...

Já foi descrito, tudo isso


já foi transcrito, prescrito, proscrito
antes, por e pós Cristo
e eu pergunto: como é que purifico meu bendito patuá?
“Cumé, cumé, cumé...?
e os quindins de iaiá...?

Cumé, cumé, cumé...


os quindins de iaiá...”

“Eu agora tenho a vida


que sempre pedi a Deus
tenho casa e comida
gozo dos carinhos teus
(ai, ai, amor...)
um carinho é bom...”

É muito bom
é muito bom... Êh...

50
Sinhá fresquinha
venha cá, pegue a linha
pra coser este arranhão...
Nhá-nhá é minha...
não é não...?
Nhanhã maminha...

Na-não...?
‘deus... não...

51
POEMÃO

Não!
Chuva não!
A noite foi boa
a conversa à toa
o sonho terrível
eu ando sensível
mas chuva, impossível!

Chove, e eu disse:
use o verbo chover
use os tempos da chuva
o substantivo chuva
o plural, chuvas
o som, ch’...u...
o alívio, ...va.

Nascer é fácil,
quero ver renascer
sem pai sem mãe sem cabeça;
perder o cabaço
no poço do cagaço
e tudo começa de novo.
Um ovo, uma ova!

Quis pôr as mãos


uma vez só, não
não sabe: a coisa.
Se escrever o bicho pega
se calar o bicho come.
Você não entende, não entendo
o que eu digo.
52
Pomba preta no telhado.
Antena.
Pó rendado.
Pura expressão
o que seria
(para mim)
o que seria?

Olho bruto.
Olho culto.
Olho hindu.
Olho urutu.
Olho guru
Olho cru.
Olho nu.

Sobre a ponte um camelô anuncia:


lá vem o chinês com um cetro em cima.
Era o chinês com o cetro em cima.
É o chinês com o cetro em cima.
Fecho os olhos: é o chinês.
Abro os olhos: já era.
Fecho os olhos.

A pobreza do encanto
a ilusão do que reluz;
nada resplandece
nada é translúcido
e basta de prefixos:
só o canto, a luz
e o lúcido. →
53
Falei como Fernando Pessoa
falamos d’ele na conversa.
A conversa foi boa,
à-toa, descomplexa,
mesmo aquela do círculo
cujo raio era o cúmulo
de pi infinito.

Se isso fosse escrever


eu diria:
também pudera
o tempo da arara
o mais-que-perfeito;
a dor, a flora, o amado
a rima, o ritmo, o contratempo.

E a ira, a gana , a tara


como fica?
Uma criança grita, cristalizará.
Ninguém escuta a hora, haverá.
O cristal se quebra, carcará.
Eu jou, eu já, eu jará
agouro, agora, gorará.

Quando então toca a campainha:


é a morte,
o vexame a galope.
Digo a ela: podes me levar
mas me trarás de volta
pois acertaste o endereço
mas erraste a hora.
54
(“Aquele valente medieval...
por instantes sei do poeta...
sou poeta nessa noite tolda
sou quem-anda pelas florestas...”
Era o que eu escrevia
debaixo daquela lua
lá na bruxa que pariu...

“Dez horas da noite


na rua deserta
a preta mercando
parece um lamento...
Ô acarajé ecoô
ora iê-iê-ô
vem benzê, ehn...?”

O que lamenta a preta,


o que deserta a rua?
Que noite canta essa melodia
que todos ouvem certos
que todos testemunham
e que distingue essa noite das noites
numa preta escura.

Teta pura
carne dura polida
de preta é mais bonita
no silêncio de um canto
um canto de rua...
“Parece um lamento
unm... unm... unm...” →
55
Lembrança não é bananeira
mãe nação: parteira
pai patrão: porteira
meu sertão: veredas.
Toda a dor é passageira
desde a partida
até a derradeira.

O que é isso, José?


Você eu mesmo, José!
Eu você precisamos dormir.
A chuva acabou, o poema acabou
o que mais, José?
Nunca tinha escrito meu nome
como agora.

José sou eu
José aflito
José-josé bendito,
não como esses Josés de poemas e canções
estereótipos de homem comum.
Josés assim são incomuns.
Eu sou o único comum.

Filha, vem cá.


Você está bonita.
Quantos anos você tem?
Você conhece seu pai?
Eu também.
Agora deixe o papai trabalhar
e feche a porta.
56
Deu medo.
Deu muito.
Deus medos.
Olhei a lua, era um poeta.
A lua desceu, era o demo.
Foi no ano de setenta e sete
não me perguntem como.

O ingênuo insistia:
“Não sou poeta nessa noite toda
sou só um ratinho escrivão
desta toda imensidão
sou só um cambaleante
um navegante desses espaços
muito maior que eu possa...”

Depois disso não deu.


Depois disso:
morreu. Depois
durou.
Durou depois.
Depois não era.
Depois, foi engano.

Por isso, cuidado ao olhar a lua


com esse olhar de poeta, olhar nu.
Nu e nu, é cru
cru é cru, é cruel
quem crê crê, é fiel →

57
e a fé é o fio no desafio
que eu fiz, fiei, fio e confio.

Ei mãe, minha massa


what’s happenning with your children?
Estranho stranger
“Strange Fruit”.
Corpo de ferrugem ruge
sangue que não corre, ruge
mas um dia todo o dia o sol ressurge.

Quem é a dona destes pares? São teus.


De quem são estes trapos? Teus.
E estes troços, estes troncos, estes braços?
Teus.
E estes olhos, boca, e a porra destas palavras?
Tuas.
Então leva.

Eu só queria acrescentar um detalhe:


não adianta raça no futebol
nem emoção na poesia
nem paixão no amor
nem jogar tinta na tela
nem soltar a voz no microfone
nem soltar a franga no palco.

Chorar sim
mas chorar sem

58
chorar som
chorar como vem
e vão.
Chorar como chuva
num chorão.

Poemão:
essa língua não é minha
anda solta, à-toa
a procura de ecos perdidos
no templo da boca;
uma voz vazia de matéria
ou vasilha de uma coisa oca.

Diz agora baixinho:


que beleza a natureza
como vem esse verão
e como dói essa vida
ou melhor, como castiga
essa cascata...
psiu...

Como o vento desenha


a ordem na areia
como a areia aceita
as patas do animal
como a onda apaga
a ordem e as pegadas:
a vida é superficial. →

59
FRUTA-PÃO

Escrever. De repente
rompe-se a solidão.
Quem vem?
Quem me acompanha?
Pois fique comigo
você que manda e se manda...

Um galo cantou no escuro


o eco do galo no escuro
o silêncio do eco.
Eu também canto
eco
silêncio.

Hoje.
Eu não passo daqui.
Telhado.
Moedas.
Terrores.
Hoje.

Sonhei que dormia


um sono profundo
um sono sem sonhos
sem luz nem som.
Era a sensação de uma morte companheira
ou era uma vez uma vida inteira.

60
Saturo de sonhos.
Sentidos.
Mitos.
Interpretações, miragens, milagres, acasos.
Ilusões.
Círculos.

Quero a coisa que tem nome


como o céu é azul
e superficial.
Pode amanhecer, pode escurecer
podem brilhar as luzes do sol
o céu é azul: só.

Quero a poesia concreta


— não aquela.
A poesia
poesia
poesia
poesia.

Deus é o limite.
-- Fale, Deus, fala!
Mas Deus não são eus
e não escuta poesia
só quer saber de mim
se estou com tudo em dia. →

61
Oh Deus salve o oratório e a oratória
Deus salve a glória e a gloríola
e a corruptela da palavra vazia
que é dela o reino dessa terra
por onde perambula esse rêi
com acento circunflexo.

De repente Deus responde:


“ Que queres tu, Zezinho
que queres que eu te conte?
Que tu andas num barquinho
na linha do horizonte
equilibrando-se ali sozinho

sem ter porquê nem por onde


com medo de um redemoinho
que está fora do meu controle?
Ora! Tu só perfazes o caminho
entre o nascimento e a morte
e te arranhas nos espinhos

que distinguem o azar da sorte


— que novidade há nisso, menino?
Precisas de um avalista do meu porte
pra recordar-te que o destino
rege a instância dos homens?
não perscrutes o divino...

62
Agora escute
chegue aqui pertinho:
tua luta não me ilude
tu queres é carinho
e buscas na fria plenitude
o que tens dentro do teu ninho.”

Tudo em inho, tudo em e.


É fácil escrever
como vaga o vaga-lume
como louva o louva-a-deus,
dá na mesma
(dá nada!)

Danada minha filha


que me disse uma vez:
nem tudo se realizará
quando eu crescer
então não fica dizendo
como vai ser.

Filha pequena
isso é um poema
fruta-pão
que eu te dou
de todo o
coração.

63
A COMPANHEIRA

“Também, você joga tudo pro ar...”, pensei... não, ouvi,


alguém falou... então me virei e a vi: parecia uma menina
de origem hindu, a julgar pela pele morena e o turbante
branco enrolado na cabeça. Na verdade, era uma mulher
de feições joviais e eu reconhecia a sua beleza de algum lu-
gar. Estava sentada em cima de uma pedra, mas não havia
pedra; seu corpo simplesmente acomodava-se na posição
sentada olhando para um abismo que também não existia,
apenas um nevoeiro ou nem isso, a cor cinza de um nevo-
eiro. Voltou-se para mim, sorriu e disse: “então me encon-
trou...”, ao mesmo tempo em que eu pensava: “então você
existe...”. Mantinha-se serena, ainda que eu tenha notado
em seus olhos uma leve expressão de surpresa com o fato
de a ter descoberto. Perplexo, compreendi imediatamente
que é ela quem me acompanha desde sempre, que é dela a
voz que sopra meus pensamentos, especialmente aqueles
que me libertam dos momentos de desânimo e desilusão,
quando fico parado no nada sem ver saída. Nessa hora
ela vem e me fala, e se meu estado de ânimo é tal que
não posso ouvir seu sopro sutil, transporta-se para a de
qualquer pessoa, um vizinho, um pedinte, ou então para
coisas concretas, como orelha de livro, bula de remédio,
reportagem de TV, etc. Eu desconfiava de sua existência
(nunca nessa forma de menina-mulher que parece me amar
com amor humano, mas provavelmente sob a imagem de
um anjo católico, ou de um espírito ancestral qualquer) e,
quem sabe, a tenha encontrado pela freqüência com que
venho caminhando por veredas desabitadas, quase proi-
bidas, onde a matéria transcendente pode acontecer sem
grandes sobressaltos. Mas é possível também a ocorrência
de um pequeno descuido de sua parte ao me falar de tão
64
perto, acostumada decerto com meu jeito de escutá-la com
o olhar fixo para o chão. E eu me virei. É certo, porém,
que ela não se importou com isso, pois emitia um sorriso
que denotava total segurança de que a sua realidade não
resistiria às primeiras intempéries do dia. Quando acordei,
sua presença (em especial, a sua beleza) ainda estava viva,
e a frase que ela havia me dito ressoava forte na minha
cabeça.
Eu não acordei de um sono. Tinha acabado de me deitar
(eu demoro muito a dormir). O que aconteceu não foi um
sonho – mas isso não me interessa explicar. Escrevo ape-
nas para tentar subverter, ao menos em parte, sua certeza
de que será esquecida (mesmo que a correnteza já esteja
levando seu espectro...). Palavras nunca serviram com pre-
cisão à matéria da vida, mas podem conter, a seu modo, a
metafísica. Por isso, esse registro se propõe apenas a guar-
dar o nosso encontro na projeção física e limitada das pa-
lavras.

P.S. Agora que passo a limpo este texto, alguns me-


ses depois, já não tenho lembrança alguma, exceto daquilo
que as palavras puderam reter. Dói-me, especialmente, ter
perdido a noção da sua beleza, termo que usei duas ve-
zes no meu relato e que hoje não significa mais nada. Sou
apenas um leitor, como vocês. É como se minha experiên-
cia comprovasse a abstração sem vida das palavras. Mas o
objetivo, como foi dito anteriormente, não era outro; de
algum modo, ela foi traduzida, transladada para uma forma
com a qual eu posso, ao menos, sonhar.

65
VOU EMBORA

Vou embora pra casa


tem alguém me esperando.

Como sou romântico,


vou a pé.

Frio seco e noite escura


lavam a alma.

Terminando a cerveja
vou embora.

Não sei se hoje fiz


tudo o que podia.

Sinto que sempre aumenta


a minha dívida.

A janela aberta
me convida a pensar.

Deus poderia aparecer


como essa mariposa.

Perguntaria a Ele:
o que é isso que sinto?

Ele me diria:
feche a janela e vá embora.

66
Amanhã já esquecerei
esse dia inútil.

Como posso chamar inútil


um dia igual a outros?

Qualquer dia é matéria-prima


para o esquecimento.

Isso passa da conta,


vou embora.

Vou embora,
andar agora é uma necessidade.

Pôr a existência no bolso


e a cara no frio.

Chegar em casa
e regar as criancinhas.

O tempo passa
mas não me engana.

Eu conheço essa agonia


de areia movediça.

Só quero dizer uma coisa


antes de sair. →

67
Pôr a existência no bolso:
como?

Precisaria primeiro tê-la na mão


como fosse uma maçã.

Pegar, cheirar, morder


e sentir o gosto.

Depois desenhar sua forma


e admirar sua beleza.

Só então poderia guardá-la


num bolso vazio.

Já bebi demais
é melhor fechar a janela.

68
DEIXE-ME – LONGE DE VOCÊ

Esqueça – esqueça-se de mim


não siga meus passos
não derrame em mim o seu desespero
eu sei que você me ama
eu conheço o seu coração
e sei que você precisa
ansiosamente
agradecer o bem que lhe fiz.

Agradeça me esquecendo
agradeça-me seguindo o seu caminho
mas você não consegue
você quer sempre uma última vez
e abaixa a cabeça como um mendigo
e se torna ainda mais repulsivo.

Chega. Vá. Não pode? Está bem.


Procure então uma praia deserta
(longe, bem longe daqui)
e acenda uma vela pra mim
-- por mim, como você acredita --
e eu tentarei receber sua chama
com a aquiescência que o mar
aceita um copo d’água.

69
FRIVOLIDADES

Dia limpo, frio, comum, bonito


cheirando a sexo amanhecido.
Na gravura de um bezerro e criança
está escrito: bonança.

Bonança vem do grego malakia,


moleza, calmaria
pelo latim malacia,
bom tempo, favorável.

Favorável como o bolero de Ravel


une tempo e espaço,
integro-me neste compasso
lento – hoje é feriado.

Feriado como um hiato


entre o passado e o futuro
como uma pausa
entre a coisa e a causa.

Sem por que nem por onde,


natural como lambi o dedo
e senti gosto de figo
que nessa manhã tinha comido.

Eu sei que tudo isso não passa


de uma conversa ingênua
mas às vezes a vida flutua
e penetra no mundo da lenda.

70
Por mais que se entenda
que uma ilusão seja breve
um dia assim deixa mais leve
o pão nosso do dia seguinte.

71
DIDI

Dói a alma desse trouxa pai de uma menina


exilado do mundo onde ela caminha... Homônimo meu,
Gepeto fez um filho de fantasia e pediu a Deus
que o tornasse verdadeiro, não deu outra:
recebeu um espírito de pau humano tão mundano
quanto minha filha roda viva nesse parque prolixo,
esquizofrênico e promíscuo feito de vácuos
de luzes, ilusões, estandartes, velocidades
que dão forma e nome e sentido para uma peça
cujo enredo é uma verdadeira mentira... Homônimo meu,
Josef K. quis desmascarar o mundo, se fudeu
e mereceu seu veredicto, eu não: renuncio,
fica o dito pelo não dito, e ainda digo
o céu dim-gom-bel sempre aceso é bonito
a terra sem sombras de dúvidas é linda
e do alto do meu monte de oliveiras assisto
minha filha (suave morena) correndo
entre os achados e perdidos do mundo
mas do mundo mundo
não deste meu mundo atrás do mundo,
que para ela não existe esse meu
onde divago literalmente por fora,
velho trouxa louco ímpio
fabricante de verdades existencialistas
vendidas em frasquinhos de porta em porta:
“Ei dona, tua voz não é esta
está mudada,
teus seios, tua coxa peluda
tudo em ti me leva a crer
que tu não é a tua...”.
Mas donas são naturalmente tuas
72
assim como minha filha vê na cara a cara
enquanto eu só vejo lobo na cara do mundo,
no que sou aquele tipo de solitário
prepotente, réu primário, inocente inútil
...que anda solto por aí no mundo mundo...

Mas não tão só,


não tão só quanto penso que sou pelo que sinto
agora, nesse poema
pois quando ela passa por mim cantando uma canção
e a atenção com que pára para ouvir esse velho
e o salva da baleia,
fictícia para ela, para mim tão verdadeira...
tão gelado aquele ventre...
tão fugaz o amigo Cleo...
Gepeto procurando o filho perdido
que o salva do mundo cruel.

73
BANQUETE FAMILIAR

O cão sentiu o que senti:


o cheiro daquela mulher.
Um cara veio e beijou
minha bochecha; faltava
uma peça na minha cabeça...

Afeto sincero, cheio de graça.


A bebida é que enchia-se
de dúvida: era alegria
ou, acabada a feitiçaria,
a culpa seria o feiticeiro?

Na dúvida. O que falei? Mais.


E o tom, altura, riso, boca dura
opinião e piada fora de hora
tudo agora ansiava por ser revisto
pois notava farpas no improviso.

(Peso. 300, 400 gramas a mais


na cabeça. Preciso ficar sozinho.
Entro no banheiro e digo digo digo
pra mim: corta o cordão do umbigo
e cala a boca deste ventríloquo.)

(Peso: gestos brutos, bestialidades.


De novo pensa, ela pensa:
por que tanto brio? — vaidade
cultivando um caráter sombrio
como um busto de cobre na dispensa.)

74
E aquelas nisseis enchendo o salão
de graça, samba e cio. Pedaço de pão
atirei (caiu) no rosto do meu irmão.
Desde então me penitencio – só por isso
escrevo essa coisa anos a fio.

Vejo: todos estão bem entre si


e o mundo me chamando pra fora,
o mundo: como um anjo nessa hora
querendo resgatar-me do exíguo
exílio da minha alma.

Passa tio, passa tempo, passa velho


e aquela mãe tira o filho pra dançar;
dizem que ela tem problemas com o filho
dizem que ele tem problemas em geral
-- mas a dança é genial!

Abraço a minha. Meu pai já vai.


Voltará para o ano?
Não. Está indo, já foi, não volta.
Como é ser um homem?
Parece que Deus foi embora.

75
ESTRANHO BANQUETE

Quando então aqui começa,


(sempre a mesma peça
sempre a mesma taça
enchendo-se da mesma graça)
o ritual da confraternidade.

Banquete teve início


na mais longínqua antigüidade
teatro ambíguo de costumes
onde homens e mulheres
gozam fina iniquidade.

Telegramas vêm de fora


anuncia-se primeira dama!
Cavalheiros criam tramas
catando a mais nova firula
da modernidade.

Amam-se de verdade
(estranha forma de união)
alguém traz a novidade
vem de ontem à tarde:
narração.

Noves-fora nada, só
queria chamar a atenção;
rio também, tu rias, ele ria
e isto posto: nova piada
de mau gosto.

76
Ali estão um mais dois três
vasculhando velhas vaidades
até as últimas conseqüências;
como sempre só interessa
a própria experiência.

Assim o banquete vai ultrapassando


estranhos perigos de polaridades.
Mas estúpido (o estúpido pensa)
é aquele que só vê, em tudo
correntes de psicodramaticidades.

Gincanas passam, crianças, músicas


curiosa vida se produz
-- telefone introduz nova dama
e o que ela diz?
cochicham bocas de chafariz.

Farto usufruto do alheio


cujo quem se fode é tempero
de conversa furada ao espeto,
mas tudo com muito cuidado
para não ferir o coitado.

E o cara que vê se revê:


o problema não são eles
mas você, para quem aqueles
viram os olhos e perguntam:
e como está você? →

77
(Minha voz não é esta,
está mudada; meu jeito,
meu peito, minha boca peluda,
tudo isso me leva a crer
que o lobo sou eu, não a puta).

Mas todos são bons, aceitam bem


o estranho é da corte
e só faz papel de palhaço
quando tropeça nos destroços
que estão espalhados.

Então, ich! machuca-se


inspira cuidados – o que foi?
melhor ir embora, não não
tomar sais de fruta, não não
calma!

O café servido em boa hora


segue-se o ritmo da digestão.
O sono acaba com a graça
e a ressaca já prefigura
uma noite de amargura.

Nada do que quem viu


foi visto, nada, nada existiu.
Nem esses rostos opacos
despedindo-se afetuosos
com sorrisos surripiados.

78
A explosão será em casa
junto à bem amada
junto ao corpo do marido
junto à filha da mãe
junto à mãe do filho.

Uma D.Maria rabugenta


sempre fecha a porta, obrigado;
pobre de quem sente saudade
de não haver
outra possibilidade.

79
RIVIERA

O vinho vem da uva


penso
era de barro
o tonel onde o primeiro
foi guardado.

O pão vem do trigo


imagino
mulheres em círculo
modelando os primeiros
paralelepípedos.

Tudo bem
quanto ao sangue
e à carne.

Mas o que quer de mim


nessa noite
esta folha de papel?

O mar é tudo
o vinho é sangue
o pão é carne
e este papel, branco
(enquanto escuto o mar)
qual é?

Papel diante de prédios chiques.


Diante do meu limite.
Diante da emérita madrugada.

80
Há também
um cálice cheio, um vazio
uma garrafa, um ramo seco
dispostos ao acaso sobre a mesa da varanda
a de trilha sonora do mar
e o vento; como estas palavras
transformam-se em outra coisa?
Quando o mar-mar vira poesia na areia?

Estas perguntas não são vazias


como o mar não é apenas mar,
veja: o pão poesia era carne
eu estava com fome
e fui buscar pão-carne na cozinha.
Encontrei um pão de forma murcho
do tipo que eu não como
mas daquele gostei porque era carne
havia dito que era carne, e era.

Mas a revelação maior estava por vir


de volta à varanda, comendo o tal pão
ouvindo o mar batendo no escuro:
à direita, em cima de uma grelha
apareceu uma carne-carne
assada e prontinha, que me disse:
venha me comer, poetão
estou aqui pra ser comida. →

81
Foi uma dupla refeição
que servia ao mesmo tempo
meu corpo e espírito
melando minha alma, minha mão
e o papel cheio de palavras.

E a poesia?
O milagre não pode ter sido parcial.

O Outro Lado do Papel

Eu não acredito em nada,


tudo o que está bom agora
é esse vinho
e o vento.

Não existem amigos


(mesmo com a casa cheia)
não há mulher
(mesmo havendo essa mulher)
não tenho sobrinhas
(que gostam tanto de mim)
nem minha afilhada pequena disse nada
quando me disse sorrindo
“que bom que você fica hoje...”

Só acredito em mim
e, em mim, no meu fim.
O resto é ilusão
e o mar não canta.

82
(Como posso ouvir o mar
se só ouço a mim...?)

Falso, tudo.
Ter jogado cartas com meus amigos,
tudo falso.

Verdade é o mundo dentro de si.


Verdade: só o que se passa
dentro de mim...

Vinho, farás mal!


está bom mas não me iludo:
a verdade virá com essa:
por que se distraiu? eih?
por quê?

Carne, farás mal!


não há maior ilusão
que encontrar uma carne fria
dura e estragada, na madrugada.
E ouvir mar.
Tudo ilusão
e a neblina na estrada era miragem
a neblina está dentro de mim. →

83
Por isso preciso acordar amanhã
sobressaltado
pois não posso me perder
o caminho sou eu
e, se me distrair
apaga-se o caminho.

O Outro Papel

Amanhã:
acordar às dez
e ir embora.

No máximo, ao meio-dia
— tenho que ir.

Não ver o mar.


Não levar Mavi
ver o mar.
Não olhar minha filha
não comer minha mulher
nada, tomar café
e ir embora.

84
Eu durmo quando amanhece o dia
bebo muito, tomo remédio
mas amanhã preciso acordar cedo.
Não interessa o conselho dos amigos
que nada sabem.
Nem adianta escrever.
É preciso saber
o que vai acontecer
e basta olhar pra mim.

Eu sei: preocupar-me
mesmo que o vento venha
e o ar,
mais azul
e o mar, bata
e Mavi, queira
e minha filha, bela
e o amor, seja. →

85
Preciso voltar logo a São Paulo
logo encarar o vazio
e pensar o porquê,
o que errei já bem antes de tudo
para logo então me libertar...
E um dia, enfim
poder ver o mar
poder ouvir o mar
(mas um mar inteiro, como imagino)
e passar a noite na varanda de um prédio chique
e tomar um bom vinho
e escrever uma poesia na madrugada...
se aparecer papel na mesa...

86
GLÓRIA AO PAI

Glória, (eu canto) glória, meu pai


Fim da luta, começou o luto
Acabou-se a história! Glória!

Glória (amarga que nem jiló)


Para um homem comum, glórias
Mil a meu pai de pó.

Glória, eu canto sozinho


Glória, um filho sombrio
Caminha numa estrada amarela.

Glória -- sua glória foi pro brejo


Mas em mim se glorifica
A sua glória e o seu brejo.

87
ENTRE O AZUL E O VERDE

Havia prometido parar com tristezas


mas não é todo dia em que morre um pai.
Eu escrevo pra você
que agora sabe que sou escritor.
Entre o azul e o verde
cabe tudo o que Deus quiser.
Eu digo pai pai pai pai pai
e sei o que estou dizendo.

Me dou o direito de não explicar nada.


Hoje, dou-me o direito de não me fazer entender.
De dizer: o sumiê tem segredos
que não podem ser revelados.
Estou livre para escrever o que quiser
como o rio que só responde.
( Se eu pudesse sempre seguir esse chamado
que agora escuto tão bem...)

Terá meu pai


— não sua glória e sua agonia —
me deixado como último legado
poder escrever qualquer coisa
sem querer dizer nada a ninguém
— e que se dissesse, o fizesse
sem pretender ter dito
nada a ninguém?

88
UM VAZIO NO VAZIO

São muitas as formas de entender como a linguagem dá


sentido ao vazio da existência, reparem: fui com minha
mãe visitar o túmulo do meu pai, uma semana após o seu
falecimento. Enquanto procurávamos o jazigo em meio a
tantos iguais, não sabia ainda o que sentir, embora levasse
comigo uma breve ansiedade. Quando o encontramos, fui
tomado por essa perplexidade: ... não sentia nada. Notei
também que minha mãe parecia ausente.
Mas eu e ela acabamos por observar que, se a lápide esti-
vesse pronta e o nome e os números do meu pai nela cra-
vados, aí sim, certamente teríamos podido nos emocionar.

89
TABELA PERIÓDICA

(Recordo ter estudado no meu colegial a origem da Tabe-


la Periódica, em que seu criador Mendeleiev, ao classificar
todos os elementos naturais de acordo com suas proprie-
dades físicas, acreditou ter encontrado uma ordem tão
perfeita, que reservou em sua diagramação espaços vazios
destinados a elementos que ainda seriam – ele tinha certe-
za—descobertos.
Com o passar dos anos, esses elementos – denominados
antecipadamente, se não me engano, de gases nobres – fo-
ram de fato encontrados e continham justamente aquelas
propriedades físicas por ele previstas.)

Terror de catacumbas; é de madrugada


sem ancestrais por perto
e no meio de uma sala
ergue-se a ruína de uma escada
real e imaginada.

Tudo acabou, mesmo assim


tudo está no lugar
porque Deus está no fim
e agora a escada
é uma Tabela Periódica.

O que vejo e o porvir


formam uma só imagem
e não me assustam mais;
os degraus que faltam
já têm seu lugar.

90
O vazio é tão nítido
que pressinto pelo avesso
a matéria sem vida
-- que será animada
quando então reconhecida.

91
VELHO

Não ando à-toa, não


vago preciso e despreocupado
topando tantas brigas propriamente ditas
quanto tediosas intrigas de egos
peremptoriamente certos.

Acertam em mim
em si, em rouxinóis
tanto faz;
uns vivem pela guerra
outros morrem pela paz.

Por onde passo


milhares de objetos diretos
abatem pronomes pessoais;
se me acertam eu contra-ataco
com paradigmas paranormais.

Se em vão ou não
vou indo
vá tu.
Quem sobrevoa sobretudo lindo
é o urubu.

92
SÓ O VELHO

Só o velho pode ver a lua


(eu não, nem você)
porque está no fim.

Antes, lua é nome, astro


bola, símbolo, metáfora
enfeite, luz, retórica.

A lua-nua revela-se ao velho


(a lua e outros reflexos).
Quem tem tempo é cego.

Eu gosto de ver o velho


vendo a lua, o brilho
que seus olhos refletem.

(A criança vê a lua
algumas contemplam a lua
mas quando cresce esquece.)

Essa lua bonita


em cima da minha janela
é ilusão.

93
ALMA VAGA

O monge não sente fome


eu não sou monge
meu estômago reclama.

Eu sou um cara fraco


qualquer coisa me abala
muita coisa abala muito.

É melhor me conhecer
que ficar desesperadamente admirado
na hora da angústia.

Passei a vida lutando


hoje passeio pelos campos
das batalhas perdidas.

De nada adiantou minha energia,


bondade, perseverança, sabedoria
e toda a religião.

Invoquei Deus, pedi a sua ajuda


Ele me deu o que me devia:
a derrota.

Trago o corpo ferido


e a alma cansada
— estou aqui me entregando.

O guerreiro está livre


mas exilado;
como se vive deste lado?
94
Uma amiga um dia percebeu
que sua família não era sua
e deu o fora.

Aquela mulher vai entender


que para sobreviver
mandará seu filho embora.

Comigo também aconteceu


que aquilo que em mim havia
expulsou o atual pra fora.

95
A MULHER

A mulher abre as pernas.


Está tudo parado no quarto.
Deito-me a seus pés.

Eu conheço essa mulher.


Já foi minha esta boceta.
Sei o gosto que isto tem.

Só quero olhar seu corpo.


Lembro o jeito desta calcinha.
Como os pêlos saem pra fora.

Mas nem tudo é igual.


A pele está mais frouxa.
O tempo passou nestas coxas.

A mulher fecha as pernas.


Abre as pernas.
Está tudo parado no quarto.

96
MODIGLIANI

Nu, de bruços, deitado nas almofadas.


A pele rosada contrasta sobre tons marrons.
Uma beleza que não esquece nenhum desvão.
Numa posição da mais nobre indecência.
Sabe-se que é homem, mas não com certeza.
Quando um homem chega ao limite da mulher.
Mas isso não interessa.
Meus olhos em sua bunda e eu penso: por quê?
O que retém a bunda, uma bunda, mas esta bunda?
Que me encara como se fosse olhos.
Seus próprios olhos agora me chamam, mas em vão.
Um mundo separa seu sim do meu não.
Ele assim é especialmente qualquer um.
De onde estou, posso imaginar:
Que era madrugada
Havia silêncio
E não era caso de amor.
Apenas aquela questão diabólica da beleza.
Quando se entrega a vida na obcecação.
E o cara que via era pintor.

97
O PINTOR E A MULHER

O pintor quer parar a mulher


porque seu movimento
perturba a beleza.

Quando consegue que tire o vestido


os peitos afundam-se aflitos
na cara que só quer ver.

A bunda está sempre sentada


ou aparece de relance
quando corre ao chuveiro.

O pintor já desistiu de olhar,


naturalmente, a boceta
por conta do frenesi histérico.

Resta-lhe observar o rosto


cujos olhos, se olhassem
e a boca, se calasse

daria pra fazer a tela.

98
EM MAUÁ

Ela está sentada no parapeito da janela.


Alguém me enviou esta fotografia.
Eu estava com saudades.
Do lado de fora, o verde da paisagem.
Do lado de dentro, o escuro do quarto.
Conheço esta bota.
Este vestido, fui eu que comprei.
Os braços cruzados resguardam os seios.
Sinto que sorri de lá pra mim.
É a minha menina.
Já não é tão minha.
Nem tão menina.

99
TERNURA

Mãe e filha nuas


duas vezes nuas
pela fragilidade do desenho
feito com lápis comum.

Uma está para a outra


e nada mais interessa:
isso é o que significa
o vasto branco do papel.

A mãe (jovem, moderna, amiga)


ajoelha-se no ar
estica seus braços
e segura os braços duros da menina.

Que fica assim parada


em pé, como uma boneca
ou como toda criança, sem graça
ao receber carinho.

E a menina pisa no mesmo nada


mas um pouco acima, daquele ar
que sustenta os joelhos da mãe
— então parece que flutua.

É por isso que a mãe a segura?


ou quer parar o tempo
olhando aqueles olhos pequenos
que nunca mais serão os mesmos?

100
E o que ela diz nesse momento?
Com a boca: linda, querida, amor, etc...
mas seu corpo desnudado
fala outra coisa.

Obviamente sobre as diferenças


de uma menina e uma mulher
mas fala sobretudo aquilo que cala
a poiésis e o designo de um corpo.

(Se o que se cala pudesse ser dito


quem escreve estas palavras não o faria
pelo risco de se intrometer
na intimidade das duas.)

Curioso é que a autora do desenho


(que não gosta desse texto)
não é mulher como a mãe
nem tão menina como a filha.

Ela desenha uma ternura


estando num ponto eqüidistante
de uma e de outra.
Constata ou carece de alguma coisa.

Não sei se sonha com o que foi


ou com o que deseja que seja no futuro
ou vê que não foi o que gostaria que fosse
ou como é, mesmo sem antes ter sido.

101
EU E ELA

A seca não seca o mar.


A cheia não enche o mar.
Nada abala o mar.

Uma montanha pode ser removida.


Uma pedreira, destruída.
Uma floresta, queimada.

O mar, nada abala.


Todas as espécies se extinguem.
E as horas somem.

Amor é o mar.
O amor cabe no homem.
Deus sabe o que dois podem.

102
CORPO

“E nada, nem Deus, é maior


que nosso verdadeiro eu...”
(Walt Whitman)

O corpo sabe
o corpo espera.

Amanheceu chovendo
o corpo sente.

Ontem a namorada
o corpo esquece.

Não lembro o problema


o corpo sente.

A dor era forte


o corpo esquece.

O corpo fala
quando sente dor.

O corpo chama
quando sua frio.

O corpo ignora
o tempo físico.

O corpo ignora
o físico.


103
A verdade está no corpo
todo corpo é sincero.

A mentira está no corpo


o corpo não mente.

Corpo é evidente
ninguém conhece o corpo.

Cada corpo é diferente


todo corpo é igual.

A mente pensa
o corpo espera.

A mente sabe que.


O corpo espera que.

A mente comanda
o corpo desmanda.

A mente insiste
corpo faz corpo mole.

O corpo obedece
o que o corpo pode.

104
Tudo é ilusão
só o corpo é pó.

Toda a eternidade
passa pelo corpo.

Toda a divindade
cabe num corpo.

O mistério
esconde-se no corpo.

O corpo é a hóstia
servida a cada um.

O corpo é a meta
imposta a cada um.

A meta é a medida
onde o corpo se limita.

Deus é esta medida


só o corpo sabe.

O corpo é Seu éter


Deus é sua carne.

105
Corpo em si
é pura abstração.

Corpo se alimenta
de relação.

Corpo é fração
de um corpo infinito.

Corpo não é meu


é caminho.

O corpo é a forma
da utopia humana.

O corpo se conforma
com a estupidez humana.

O corpo se deforma
com a estupidez contínua.

Tudo está no começo


só o corpo sabe.

O corpo espera
o corpo sabe.

106
O CORAÇÃO DA PEDRA

Quando bate o coração da pedra


e a pedra desperta
o mundo de dentro sente.

O coração da pedra quando bate


o mundo de fora sabe
o que significa.

Porque é um coração de pedra


que bate
quando bate seu coração.

E não há nada mais evidente


que um coração de pedra
batendo simplesmente.

Esse coração:
como um olho que abre
de um sono profundo.

Esse olho:
como uma luz que nasce
para renovar o mundo.

O coração de pedra quando bate


abre o olho do início
de um início sem fim.

107
O coração do homem quando bate
só adormece
as pedras do mundo.

Pedras dormindo
são pedras propriamente ditas
pedras frias.

E o sentido da vida então


são pedras propriamente frias
soltas pelo chão.

O coração da pedra quando bate


desperta a pedra
do coração do homem.

Para sempre será


esse momento
dos corações de pedra batendo.

A batida desse duplo coração


ecoa no longínquo
quer queira quer não.

Porque o eco dessa batida


bate
nas pedras dos corações dos homens.

108
Ninguém sabe o que bate
de repente
o coração da pedra.

E quem busca saber


não sabe
que só adormece o coração da pedra.

Cheguei a pensar que a sinceridade


absoluta
tocasse o seu coração.

Depois cri em sacrifícios


trabalho
amor.

A pedra dormindo sorria


dos debates
da minha confusão.

Tentei o vazio
zen
e nada.

E quando menos esperava


(uma vez eu sonhava)
batia o seu coração.

109
Então fui eu que deixei
a pedra
com a minha interrogação.

E parti sozinho
(como quem desiste de tudo)
ouvindo apenas meu coração.

Quando cheguei ao fim


meu ódio deu um murro
num muro de pedra.

Um murro numa pedra


é duro
e fere a própria pedra.

A lágrima da pedra ferida


despertou o coração da pedra
e a pedra do meu coração.

Meu coração desperto pedia perdão


por desejar à força
aquele coração.

Nesse dia eu aprendi


por exemplo
a esperar em vão.

110
TRÊS CASCAS

Poesia não muda de tema


sempre o mesmo mar e o pequeno grão de areia
sempre o mesmo céu e vento e rio que passa
e flor efêmera e lua cíclica,
metáforas que expressam mais retórica
que a experiência existencial contemplativa.

E a natureza é tão vasta e vertiginosa


que nesse pedaço de praia velha
encontro três pequenas obras
que hoje me parecem mais prodigiosas
que o próprio mar:
a casca do coco, a casca do amendoim e a casca da laranja.

Porque o grão de areia e o mar lhes valem mais?


Talvez um grão corresponda à idéia de unidade mínima
e o mar, de um organismo infinito
- grandezas com que se mede a vaidade do homem -
e as cascas não inspirem metáforas nobres
por serem concretas demais, meras embalagens
como se o coco sem água
o amendoim sem amendoim
e a laranja sem suco
perdessem a razão de ser
e deixassem até mesmo de ser naturais. →

111
Ninguém repara a beleza
a graça, a leveza, a ordem, o movimento
dessas cascas
(penso que se caminha pela praia
com as pernas
com a cabeça
ou com os olhos).
Ninguém vê que coisas há
dentro dos ocos.

O mar recuou, o coco deu duas, três voltas


e parou, chique
no meio do tapete brilhante,
como se fosse uma escultura moderna
no chão de uma galeria vazia.
Um coco se difere do coco
pelas arestas hexagonais com que foi lapidado
abstrato
e no centro abre-se um olho caolho
que olha para o mundo de dentro
ou então
fecha-se um olho caolho que recolhe o mundo
num buraco negro
mais negro ainda na intensidade do sol.

112
Adiante, encontro pequenos sarcófagos
quase soterrados na areia
e com pincel de arqueólogo
limpo esse sítio mais mundano que histórico
até recuperar todo o grupo.
Reparo que eles mantém entre si uma relação proporcional
(no amendoim há sempre um, dois, três ou quatro
amendoins)
e espalham-se contíguos segundo alguma ordem
o que me sugere a existência de um código
de um possível alfabeto oracular,
lançado na areia pelo gesto do homem
transmutado em seguida pelo gesto do mar,
restando só um contratempo de ondas
para se decifrar.

Finalmente, no ocaso de uma marola


chega a casca da laranja
girando em si mesma como uma embarcação futurista
e encalha a meus pés com o glamour de uma caravela.
Pode ser que seja só bela
essa circunferência perfeita sobre meia esfera—já bastaria;
mas observando seu bagaço
que mais parece um esqueleto
vejo que carrega consigo uma mensagem
de alguma uma alquimia essencial:
estrutura, areia, água e sal. →

113
As algas em algumas
cobrindo as cascas como heras
dão a elas o aspecto de velhas
e de fato são:
não flores vivas
mas antepassadas antecipações.

114
RESPOSTA

“ Saulo, Saulo, porque me persegues?”


(Ato 9,4)

Não me interessa
-- quero sentir o sabor da pinga
que um cara me serviu em Caratinga
“é pura, de cabeça, envelhecida, etc”
de fato, nunca tinha tomado uma dessa.
Comprei um litro
fui tomar em São Paulo com um amigo
quando vi, surpreendido
a pinga aqui tinha gosto de pinga
e por mais que tomasse, pinga
me deixando desapontado
desarvorado ou quase
porque entendi:
este gosto é de dia paulista
este gosto é rotina
o gosto mudou porque a pinga
sente falta do carinho de Minas
porém (eu disse pra ele)
eu não pirei, há de vir
ainda hei de sentir
(e estou sentindo, agora, bebendo a pinga
enquanto escrevo)
aquele sabor ou qualquer outro bom sabor
porque até a pinga é viva
e só precisa de paz... →

115
Isso posto, doravante
não quero saber de nada que fuja à ordem da natureza
daquilo que nela é fugaz ou permanente
que no ser fugaz me ensina o seguir
e no ser permanente, o essencial.

Digo isso de um modo geral para que se entenda


porque não quero nada com o novo
a idéia do novo me aborrece demais.
O que escrevo é e sempre será
banal, comum, reconhecível
porque me esforço por aproximar-me
por assemelhar-me
por simbiotizar-me com as coisas à minha volta
para com elas me distrair e me entregar
a um movimento casual e religioso,
como encanar com uma folha de quaresmeira
que hoje encontrei junto ao telefone da delegacia
e que se assemelhava a uma que eu fotografara
ali mesmo, outro dia.
Perguntei: meu Deus
aquela era verde com manchas vermelhas
esta, vermelha com manchas verdes;
será que o tempo transformou a primeira
ou terá caído outra no mesmo lugar?
Me importa esta diferença
mas a verdade, o que importa?

116
Preciso ver as marcas do tempo nas coisas
(não é isso a beleza, simplesmente?)
por isso saio na rua e me contento
quando observo o paradoxo das transformações
e as confusões do homem em nomear a matéria alterada;
quando a casa é ruína?
quando a folha é sujeira?
quando a menina é mulher?
(Minha mulher não tem idade definida
e me encanto com isso:
por sua beleza de jovem madura
pela inocência de velha aprendiz.)
(Isso me faz pensar em mim mesmo:
onde estou?
a que ponto do fim?
a que distância do começo?)
(Estes versos ficaram bons
porque soam comuns.) →

117
Escrever vale mais que o escrito,
e o que escrevo não tem nome
porque não sei como se define aquele homem-menino
esperando o caminhão vir buscar sua barraca de laranja.
Olhe, é preciso que antes eu diga:
não gosto de poesia
nunca tive paciência com abstrações poéticas
nem com arte refinada de espécie alguma;
para mim, a poesia vaga por aí
como alma penada em busca de um corpo
e naquele dia pegou a forma daquela figura.
Não que fosse puro, belo, sábio, etc...
-- na verdade, nem olhei sua cara
não sei se era japonês, se era feliz, etc...
Era poesia e só
e na hora não notei
-- na hora eu parecia um aloprado caçador de formas
poéticas
procurando o melhor ângulo para fotografar
uma uva solta no asfalto --
(agora vejo tão bem)
aquele menino-homem
sozinho, num domingo, três da tarde, rua deserta
sentado na sarjeta esperando um caminhão
com o corpo inclinado tocando o chão com os dedos
como se tivesse encontrado algo ainda menor que a minha
uva...
e nem precisasse fotografar...

118
É por isso que eu digo,
se a idéia do transitório está na moda, foda-se
porque uso dela há muito tempo
e é sobre seu fio que procuro equilibrar-me,
entre um crepúsculo subindo
(que as sombras vêm de baixo)
e uma alvorada, sempre à frente, caindo.
Por isso o passarinho continua lindo
e a morte continua sendo a dama da noite
e a vida, a puta do dia
e Deus em cima da pinta me dizendo:
ora pensa que de você Eu quero muito
ora que quero pouco
mas a medida é bem menos que seu muito
mais que seu pouco.
(Estas palavras não me enganam,
estão cheias de orgulho e vaidade.
Como quando ouço dizer
que o homem é um grão de areia
dito com prepotência de pedreira.) →

119
Poeira. Canta o passarinho já.
Pegue seu caso: você escolheu sua mulher
porque diferente das outras
mas quando chegou perto era igual.
Se passou desse ponto e mergulhou mais fundo
encontrou nova diferença e conheceu o essencial.
Poderá se deparar com nova semelhança
se penetrar ainda mais em seu espírito;
ali então existe um lugar e um tempo
que são todos os lugares e todos o tempos
iguais.
Verá que a eternidade está a seu lado
em tudo.
Quem sou eu pra dizer isso?
Pra que serve? Como você quem me ouve?
O que me importa?
Só me importa isso: esta é a minha resposta.

120
122
POSFÁCIO

Jogando fora quilos de rascunhos usados neste imbróglio,


encontrei a primeira versão do poema “Resposta”, de 1993,
que me fez hesitar justo na iminência de dar um ponto final
nesse livro sem fim. Crio poemas com muitas camadas de
revisões e eles acabam sofrendo, evidentemente, grandes
transformações - mas procuro não alterar o fogo inicial,
afinal, a razão de existirem. Mas, nesse caso, me pareceu ter
havido um exagero no processo, a ponto de constatar que
a atual versão transformou-se em um outro poema, de um
mesmo tom, é certo, mas com a eliminação de vários as-
pectos de conteúdo da versão original. Resolvi então nessa
edição colocá-los lado a lado, para um leitor compará-los
simplesmente, e também, sem esconder a vaidade, para
expor um pouco do meu jeito de trabalhar, através desse
exemplo um tanto radical.

É claro que não o reproduzo textualmente, pois o encontrei


cheio de erros e redundâncias. Mas acredito ter mantido o
pulso primário, inocente, e contido a tentação de reme-
xer nos conteúdos que ali afloraram com tanta dificuldade
numa madrugada que bem lembro, cercada de escuridões.

Mais uma observação: por se tratar do último poema de um


livro escrito em toda a minha vida adulta, achei interessante
também que o mesmo pudesse contemplar dois finais: um
primeiro, horizontal, representante de uma verdade extra-
ída de um contínuo esforço do acabamento; um segundo,
vertical, representante de uma outra verdade, a pureza do
impulso em traduzir a profunda emoção que eclode num
momento, mesmo que de resultado superficial.

123
RESPOSTA versão 1993

Numa só palavra
me importa ver e ouvir
me importa a diferença dos aromas e sabores
me importa o carinho da pele que me toca
me importa a memória desses sentidos
e suas transformações, suas nuances
mas me importa sentir as coisas
com sentimentos bons
de comunhão com a paixão humana
e comunhão com as leis da natureza
pois me importa aprender com a natureza
com o que nela é constante
com o que nela é instável
com o que nela é metáfora
e as marcas que tempo imprime nas coisas
numa folha, num fóssil, num curso de rio
pois me importo muito com o tempo
especialmente o departamento de espera
precisamente saber esperar
os caminhos que um dia se abrirão
e que hoje nos convidam a percorrê-los
me importa perceber o início tênue destes caminhos
e os desenhos que vão formando
intrincando-se, enrolando-se
num labirinto fácil de entrar
difícil de sair
pois me interessa a forma opressora da vastidão
e da insignificância
porque fazem parte da existência
e o limite absoluto do conhecimento
que nos conduz à necessidade do singelo
124
do transitório
e à necessidade de entrega
para com aquilo que flui naturalmente
- como estes versos -
como escrever em linha reta
idéias espiraladas
acreditando que as palavras possam traduzir...
pois me importa a harmonia e a integração
de coisas pequeninas com a vastidão
por exemplo: encontrar uma similitude qualquer
entre o som de besouros, latidos e gritos da noite
com meus versos aflitos...
- mas não é isso, nada disso
me importa integrar meus versos
não com a natureza concreta
nem com a realidade implícita
nem com sentimentos tão bravamente sentidos
mas com um comando geral dessas coisas
com uma lei regente e precípua
que eu intuo, sinto, quase sei
mas não sei
por isso me importo principalmente com o que não tem
nome
nem data
como o destino do homem
como a diferença da mulher
como a criança sempre ser o que é
seja chinesa ou africana, e independente
dessa tal mistura genética/cultura
me importa somente a criança
em qualquer lugar em qualquer época →
125
porque me importo com a relação ancestral de dependência
e a visceral ligação com a origem
e a transcendental ruptura do parto
e aquele interior antes do parto
e aquele anterior ao interior
pois me importa o sofrimento
não a dor, a sua razão de ser
a sua necessidade (assim como a morte)
a sua precisão na composição da vida
e a aparente desordem que cria na vida
pois me interessa o que não compreendo
desde as grandes incógnitas da miséria
(da miséria propriamente
mas aquilo da miséria
que é a miséria de sempre)
até, e principalmente
o reinado do ódio entre as pessoas
dentro de uma família
no amor entre duas pessoas
que lugar é esse chamado ódio?
pois me importo com a célula
o âmago
daquilo que está na cara
e mesmo nesse centro
me importo somente, repito
com aquilo que é sendo,
em qualquer tempo, civilização
que me importa aquela dimensão das coisas
compreendida intuitivamente por qualquer um
independente das categorias sociais com que se pretende
humilhar os homens
126
mas totalmente dependente de categorias universais
de bondade, sabedoria, fé, resignação
pois me importa esse toque de Deus
seu jeito de fazer absolutamente indiferenciado
e o tempo que usa em sua obra
e a própria reflexão de sua natureza
(pelos reflexos)
mas essa reflexão sendo feita preferencialmente
percorrendo os mesmos caminhos de outros homens
para chegar a resultados já há muito compreendidos
e expressos e impregnados nas línguas dos povos
nos provérbios, canções, lendas
nas histórias rotineiras e reais
porque justamente me importa o que não é original
porque procuro o específico
mas detesto a originalidade em si
sobretudo a pretensão de querê-la
e a prepotência que acompanha este gesto
(desviei-me do assunto)
pois muito me importa saber
-- passo muito tempo me importando com isso –
que onde quer que eu chegue
estará longe de onde tantos já chegaram
e não me refiro a sábios, gênios etc.
mas a homens comuns, reais
como uma mulher de um político sórdido
(ela me veio à cabeça)
que vi falando na televisão
coisas que levei muito tempo pra descobrir
e que julgava sabê-las especialmente
e que ela discorria com tanta simplicidade... →
127
então me importa esse humano igual
e o poder que de repente irrompe
de dentro de qualquer um
como um vulcão
rompendo as camadas das padronizações humanas
dos preconceitos, das ideologias
e dos modismos que destroem a pureza do indivíduo
mas considerando também
a padronização, o preconceito, a ideologia
como mediocridades imprescindíveis
simplesmente porque existem
pois o que me importa é saber
que tudo compõe a grandeza da vida
e que tudo se transforma
como qualquer tia já disse
como filosofias orientais afirmam
como filósofos ocidentais discutem
como Buda ilumina
como Heráclito olha o rio
como Jesus oferece a face
como Jesus deixa que lavem seus pés
como Jesus se entrega à cruz
e provoca o terremoto mais profundo dos tempos
eu escrevo escrevo escrevo mas na verdade
sinto que não tenho idade
pra entender o que eu digo
então finjo entender
às vezes penso entender
mas logo se me escapa
meu corpo não tem massa pra reter
por exemplo... me parece impossível perdoar
128
compreender e ajudar um assassino
e saber que sua importância ou desimportância
na alquimia da vida
é a mesma de um padre verdadeiro que conheci
e de todos nós que pregamos justiça
pois me importa esta dúvida:
o que sabemos de justiça?
esta é a parte confusa desse poema
porque não me importa a justiça comum
mas a justiça do destino
no quanto é justa a dor do arrependimento
consciente ou inconsciente
-- deste castigo ninguém escapa –
na medida exata de cada ato
desde um singelo desacato
até uma violência desmedida
todos pagam, estamos pagando
às vezes com a própria vida
sob formas muitas vezes desconhecidas
impalpáveis, desviadas, imprevistas
mas nunca moralistas e reformatórias
como esta justiça com que os homens
vingam-se da culpa dos homens
como se pudessem atirar a primeira pedra
como se o desacerto do mundo lhes fossem independente
como se o ofendido nada tivesse com a ofensa
como se ninguém tivesse parte
do choro de uma criança
como se a loucura – como querem implantar em nossas
mentes –
fosse problemas de gens →
129
como se cada indivíduo soubesse o que faz
tivesse controle do que é
e responsabilidade por si
e que umas palavrinhas na escola
outras dos pais, outras do padre
fossem suficientes para conter uma vida
mas então me expliquem
(vocês que estão achando insano
o que estou dizendo)
por que bate aquele constrangimento
quando passamos pela calçada
com um homem estendido no chão?
eu me importo com isso
com minha parte nesse escarro
eu me importo com isso
mas não confundo isso com culpa
me importo pelo constrangimento em si
que não é meu, é nosso
sempre me importei com isso
desde criança
como qualquer criança.

130
2ª EDIÇÃO REVISADA [2006]

ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM GARAMOND 11PP E IMPRESSA


SOBRE PAPEL COLOR PLUS MARFIM.
EDIÇÃO INDEPENDENTE, 3 EXEMPLARES.
DEZEMBRO DE 2006.
PROJETO GRÁFICO TATI TATIT.

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