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2ª edição revisada
Para minha filha,
a única.
ÍNDICE
Introdução .....................................................................................15
O nascimento ................................................................................16
Nascimento II................................................................................17
Nascimento III..............................................................................18
Arábia (Uma História do Tesouro da Juventude)..............................20
Genealogia.......................................................................................22
Pureza, solidão...............................................................................23
Desencanto......................................................................................28
Espera...............................................................................................29
A perseverança...............................................................................30
Outra noite......................................................................................31
Vulcão...............................................................................................32
Transe...............................................................................................34
O bicho ...........................................................................................35
Época de colheita..........................................................................37
Dezenove anos...............................................................................38
A jovem............................................................................................39
Jovem sábio.....................................................................................40
A carta..............................................................................................41
No caminho....................................................................................43
A batalha.........................................................................................45
O destino........................................................................................46
A canção da era............................................................................47
Meritíssimo já-era........................................................................48
Poemão...........................................................................................52
Fruta-pão.........................................................................................60
A companheira..............................................................................64
Vou embora...................................................................................66
Deixe-me – longe de você........................................................69
Frivolidades......................................................................................70
Didi....................................................................................................72
Banquete familiar...........................................................................74
Estranho banquete........................................................................76
Riviera...............................................................................................80
Glória ao pai...................................................................................87
Entre o azul e o verde.................................................................88
Um vazio no vazio........................................................................89
Tabela periódica.............................................................................90
Velho.................................................................................................92
Só o velho........................................................................................93
Alma vaga........................................................................................94
A mulher..........................................................................................96
Modigliane.......................................................................................97
O pintor e a mulher......................................................................98
Em mauá..........................................................................................99
Ternura...........................................................................................100
Eu e ela...........................................................................................102
Corpo..............................................................................................103
O coração da pedra.....................................................................107
Três cascas.....................................................................................111
Resposta.........................................................................................115
Posfácio..........................................................................................123
Resposta versão 1993................................................................124
TRECHO de uma correspondência
Paulo Neves
2001
12
INTRODUÇÃO
Uma coisa só
passando
Uma coisa só
enquanto
Uma coisa só
acontecendo
Uma coisa só
indiferente
Uma coisa
somente.
15
O NASCIMENTO
Ao fim da travessia
senti sede
e senti que sentia.
16
NASCIMENTO II
Um ponto se aproxima:
um camelo com um feto em cima.
Equilíbrio precário, terror iminente:
seus olhos sem Deus
refletem os meus.
17
NASCIMENTO III
Um ponto se aproxima:
um camelo com um feto em cima.
O que me comove ao vê-lo dentro
são seus olhos de astronauta
perdidos numa órbita sem volta.
Vem de longe
(e eu, venho de onde?)
para conhecer no fim
o começo do verbo
ou, ao inverso
encontrar no início
o fim do universo.
18
ARÁBIA (UMA HISTÓRIA DO “TESOURO DA JUVENTUDE”)
Dilatada e árida
corpo feito de areia: Arábia,
heróica fantasia
de um menino que percorre,
dum ponto a outro interior,
solidões enormes...
“Chegaram os beduínos
(estranhos dignos)
no alto dos bichos corcundas.
Ignoram mulheres e filhos
mas seus olhos cegos dão idéia
dos vãos dos confins.
Tenda de luxo
cântaro mágico
fruta, peixe salgado
coalho, fogueira, fumo;
manteiga feita por mulher
esteira, biscoito duro.
20
De uma luz tenuíssima, as estrelas
imenso templo
cúpula
azul
e vento.
O menino vigília
ouvindo as vozes da areia
uns ventos ou uivos de sereia: Arábia
alivia uma agonia que não tem fim
-- de homens que se divertem
num propósito sem fim.
Em manhãs enevoadas
a aparência é freqüente
em cima do horizonte.
Mas hoje é diferente
o menino vê, não imagina
a silhueta do acampamento
sumindo na linha.
É indizível a tristeza
no panorama do destino;
o sol da realidade
bate a pino.
O menino dentro do menino
varia
como um rio absorvido
de bruços na areia”.
21
GENEALOGIA
22
PUREZA, SOLIDÃO
24
Quando a carroça estava cheia
e meu pai me ajudava a subir
o cavalo me pôs um olho
que ria da minha cara
do meu jeito de escalar as malas
com uma mão segurando o calção que caia.
Enfim me instalei no ponto mais alto
esperando aquilo que se chamava mudança
que viria a ser um vendaval de nomes
nome para cada grão da minha areia.
Quando o cavalo moveu o ar
o ar moveu-se e o vento
ardia meu rosto
e varria-me por dentro;
para cegar a escuridão eu escancarava os olhos
que logo se fechavam para não ver a luz
mas então abriram-se depressa
porque (de onde?) vinha uma sensação
coisa que era um sentimento
o primeiro sentimento que eu tinha
que foi simplesmente
sentir que sentia.
Ao fim da travessia
conheci o medo
na imagem que eu vi
de meu pai e minha mãe rindo de mim.
25
O medo paira, gira, some
volta, está aqui, vejo
se quiser eu toco...
Aquela pessoa mãe já era antes
mãe que hoje para mim antes não era
e os irmãos que não eram, eram
e a formiga que não andava, andava
e o tempo que não passava, passava.
Agora sei das coisas e nomes de tudo
labirinto, relatividade, memória, perdão, culpa, Deus
e a parte que me cabe neste latifúndio.
Se hoje quando cheguei em casa
foi difícil abrir a porta
e entrar na sala vazia
e subir as escadas com as pernas duras
para escrever palavras sombrias,
sei que o medo é o mesmo que no começo eu não sentia
mas agora dói demais
porque sei sentir.
E chegou o hoje em dia
e não tenho tendo mais o pai que tive e não tinha,
pai passou como uma chuva termina
mãe como a duração do gosto de uma bala
resta-me agora destilar purezas
dos nomes trás-os-montes de nadas.
Desço as escadas
vejo minha filha dormindo
e procuro amar as perguntas que me dividem:
como recomeça?
como se livra?
como se anima?
26
•
O camelo vem
mansinho
aproxima-se
e seu olho agora
é só um olho egípcio
girando em órbita
em torno...
(de quem?
de mim... quem?)
de mim.
Pára, vai
está aqui, acolá
ri
agora sumiu...
Vai voltar...
(em torno de quem?...)
não vai...
vai...
se
es-
vai...
27
DESENCANTO
O homem nasceu
a mulher já havia
concebido.
A vida satura
o tao é utopia
só o corpo sabe.
A dor é d’menos
a fórmula singela:
perdoa-te.
Perdoa-te a ti.
Atura-te a ti.
Retira-te de ti.
Em meio à melancolia,
acho bonita a minha letra
e clara estas palavras.
Hoje sonhei que asfaltaram o mar.
29
A PERSEVERANÇA
A perseverança do solitário
como o murmúrio d’água
num riacho canalizado;
de dia, repetindo o seu caminho
de noite, chorando seu destino.
30
OUTRA NOITE
Esta noite
mas existe outra noite dentro da
noite
antiga.
Uma noite
eclipse desta noite
vazia.
Sua essência
matéria dessa presença
ambígua.
Débito do tempo
cobra nesse momento
sua dívida.
31
VULCÃO
32
Na paisagem uma gota deságua
A barragem dura e antiga
Foi a lágrima de um olho
Que viu no fim a ruína.
33
TRANSE
A porta do banheiro.
A porta do banheiro está aberta.
Nada.
Quem está aí?
Nada natural, nada transcendental.
O efeito me desintegra;
como num espelho
eu me aproximo de você
e você aparece à minha frente:
-- te agarro e me expulso de mim.
34
O BICHO
36
ÉPOCA DE COLHEITA
Fim de tarde:
adolescentes pescam
no riacho canalizado.
37
DEZENOVE ANOS
38
A JOVEM
Desilusão da jovem:
com um garfo tenta espetar o gelo
que dança inquieto no prato
e gruda no resto de couve.
39
JOVEM SÁBIO
40
A CARTA
Quarto escuro
cachimbo apagado
e aquele silêncio que tiro do bolso desde o dia em que
nasci.
41
NO CAMINHO
44
A BATALHA
45
O DESTINO
Sua tarefa
será descobrir a tarefa
e cumpri-la.
Sua tarefa
será descobrir a tarefa
e cumpri-la.
46
A CANÇÃO DA ERA
47
MERITÍSSIMO JÁ-ERA
Os poetas já declamaram
e os deuses já
devoraram-se
e o dito-cujo, já sei
não é até tu, bruto
– sou eu.
Êh, iá-iá...
Mas que pressa...!
Êh, iá-iá...
Era já.
48
E enfim, já não há mais mistério
e o padre tirou a batina;
nu, já!
A missa foi pro dicionário
e o templo p’ras picas
e eu pergunto: qual é a minha mística?
Pois é, iá-iá...
Comé q’fica...?
E eu já, eu já-já.
já sou, já fui, já hei
até mesmo pé beijei,
a casca da sola do pé da porra
da mula, já
beijei.
Êh, iaiá...
‘té gostei...
Êh.., iá...
Êh... →
49
Eta suadouro, logradouro público
dentro de mim, de ti, de tudo.
Fragmento caleidoscópico
numa gota de sal que sai
e se arrebenta...
mas como a onda de Hokusai se sustenta?
Êh, iá-iá...
‘ssa foi boa, iaiá...
É muito bom
é muito bom... Êh...
50
Sinhá fresquinha
venha cá, pegue a linha
pra coser este arranhão...
Nhá-nhá é minha...
não é não...?
Nhanhã maminha...
Na-não...?
‘deus... não...
51
POEMÃO
Não!
Chuva não!
A noite foi boa
a conversa à toa
o sonho terrível
eu ando sensível
mas chuva, impossível!
Chove, e eu disse:
use o verbo chover
use os tempos da chuva
o substantivo chuva
o plural, chuvas
o som, ch’...u...
o alívio, ...va.
Nascer é fácil,
quero ver renascer
sem pai sem mãe sem cabeça;
perder o cabaço
no poço do cagaço
e tudo começa de novo.
Um ovo, uma ova!
Olho bruto.
Olho culto.
Olho hindu.
Olho urutu.
Olho guru
Olho cru.
Olho nu.
A pobreza do encanto
a ilusão do que reluz;
nada resplandece
nada é translúcido
e basta de prefixos:
só o canto, a luz
e o lúcido. →
53
Falei como Fernando Pessoa
falamos d’ele na conversa.
A conversa foi boa,
à-toa, descomplexa,
mesmo aquela do círculo
cujo raio era o cúmulo
de pi infinito.
Teta pura
carne dura polida
de preta é mais bonita
no silêncio de um canto
um canto de rua...
“Parece um lamento
unm... unm... unm...” →
55
Lembrança não é bananeira
mãe nação: parteira
pai patrão: porteira
meu sertão: veredas.
Toda a dor é passageira
desde a partida
até a derradeira.
José sou eu
José aflito
José-josé bendito,
não como esses Josés de poemas e canções
estereótipos de homem comum.
Josés assim são incomuns.
Eu sou o único comum.
O ingênuo insistia:
“Não sou poeta nessa noite toda
sou só um ratinho escrivão
desta toda imensidão
sou só um cambaleante
um navegante desses espaços
muito maior que eu possa...”
57
e a fé é o fio no desafio
que eu fiz, fiei, fio e confio.
Chorar sim
mas chorar sem
58
chorar som
chorar como vem
e vão.
Chorar como chuva
num chorão.
Poemão:
essa língua não é minha
anda solta, à-toa
a procura de ecos perdidos
no templo da boca;
uma voz vazia de matéria
ou vasilha de uma coisa oca.
59
FRUTA-PÃO
Escrever. De repente
rompe-se a solidão.
Quem vem?
Quem me acompanha?
Pois fique comigo
você que manda e se manda...
Hoje.
Eu não passo daqui.
Telhado.
Moedas.
Terrores.
Hoje.
60
Saturo de sonhos.
Sentidos.
Mitos.
Interpretações, miragens, milagres, acasos.
Ilusões.
Círculos.
Deus é o limite.
-- Fale, Deus, fala!
Mas Deus não são eus
e não escuta poesia
só quer saber de mim
se estou com tudo em dia. →
61
Oh Deus salve o oratório e a oratória
Deus salve a glória e a gloríola
e a corruptela da palavra vazia
que é dela o reino dessa terra
por onde perambula esse rêi
com acento circunflexo.
62
Agora escute
chegue aqui pertinho:
tua luta não me ilude
tu queres é carinho
e buscas na fria plenitude
o que tens dentro do teu ninho.”
Filha pequena
isso é um poema
fruta-pão
que eu te dou
de todo o
coração.
63
A COMPANHEIRA
65
VOU EMBORA
Terminando a cerveja
vou embora.
A janela aberta
me convida a pensar.
Perguntaria a Ele:
o que é isso que sinto?
Ele me diria:
feche a janela e vá embora.
66
Amanhã já esquecerei
esse dia inútil.
Vou embora,
andar agora é uma necessidade.
Chegar em casa
e regar as criancinhas.
O tempo passa
mas não me engana.
67
Pôr a existência no bolso:
como?
Já bebi demais
é melhor fechar a janela.
68
DEIXE-ME – LONGE DE VOCÊ
Agradeça me esquecendo
agradeça-me seguindo o seu caminho
mas você não consegue
você quer sempre uma última vez
e abaixa a cabeça como um mendigo
e se torna ainda mais repulsivo.
69
FRIVOLIDADES
70
Por mais que se entenda
que uma ilusão seja breve
um dia assim deixa mais leve
o pão nosso do dia seguinte.
71
DIDI
73
BANQUETE FAMILIAR
74
E aquelas nisseis enchendo o salão
de graça, samba e cio. Pedaço de pão
atirei (caiu) no rosto do meu irmão.
Desde então me penitencio – só por isso
escrevo essa coisa anos a fio.
75
ESTRANHO BANQUETE
Amam-se de verdade
(estranha forma de união)
alguém traz a novidade
vem de ontem à tarde:
narração.
Noves-fora nada, só
queria chamar a atenção;
rio também, tu rias, ele ria
e isto posto: nova piada
de mau gosto.
76
Ali estão um mais dois três
vasculhando velhas vaidades
até as últimas conseqüências;
como sempre só interessa
a própria experiência.
77
(Minha voz não é esta,
está mudada; meu jeito,
meu peito, minha boca peluda,
tudo isso me leva a crer
que o lobo sou eu, não a puta).
78
A explosão será em casa
junto à bem amada
junto ao corpo do marido
junto à filha da mãe
junto à mãe do filho.
79
RIVIERA
Tudo bem
quanto ao sangue
e à carne.
O mar é tudo
o vinho é sangue
o pão é carne
e este papel, branco
(enquanto escuto o mar)
qual é?
80
Há também
um cálice cheio, um vazio
uma garrafa, um ramo seco
dispostos ao acaso sobre a mesa da varanda
a de trilha sonora do mar
e o vento; como estas palavras
transformam-se em outra coisa?
Quando o mar-mar vira poesia na areia?
81
Foi uma dupla refeição
que servia ao mesmo tempo
meu corpo e espírito
melando minha alma, minha mão
e o papel cheio de palavras.
E a poesia?
O milagre não pode ter sido parcial.
Só acredito em mim
e, em mim, no meu fim.
O resto é ilusão
e o mar não canta.
82
(Como posso ouvir o mar
se só ouço a mim...?)
Falso, tudo.
Ter jogado cartas com meus amigos,
tudo falso.
83
Por isso preciso acordar amanhã
sobressaltado
pois não posso me perder
o caminho sou eu
e, se me distrair
apaga-se o caminho.
O Outro Papel
Amanhã:
acordar às dez
e ir embora.
No máximo, ao meio-dia
— tenho que ir.
84
Eu durmo quando amanhece o dia
bebo muito, tomo remédio
mas amanhã preciso acordar cedo.
Não interessa o conselho dos amigos
que nada sabem.
Nem adianta escrever.
É preciso saber
o que vai acontecer
e basta olhar pra mim.
Eu sei: preocupar-me
mesmo que o vento venha
e o ar,
mais azul
e o mar, bata
e Mavi, queira
e minha filha, bela
e o amor, seja. →
85
Preciso voltar logo a São Paulo
logo encarar o vazio
e pensar o porquê,
o que errei já bem antes de tudo
para logo então me libertar...
E um dia, enfim
poder ver o mar
poder ouvir o mar
(mas um mar inteiro, como imagino)
e passar a noite na varanda de um prédio chique
e tomar um bom vinho
e escrever uma poesia na madrugada...
se aparecer papel na mesa...
86
GLÓRIA AO PAI
87
ENTRE O AZUL E O VERDE
88
UM VAZIO NO VAZIO
89
TABELA PERIÓDICA
90
O vazio é tão nítido
que pressinto pelo avesso
a matéria sem vida
-- que será animada
quando então reconhecida.
91
VELHO
Acertam em mim
em si, em rouxinóis
tanto faz;
uns vivem pela guerra
outros morrem pela paz.
Se em vão ou não
vou indo
vá tu.
Quem sobrevoa sobretudo lindo
é o urubu.
92
SÓ O VELHO
(A criança vê a lua
algumas contemplam a lua
mas quando cresce esquece.)
93
ALMA VAGA
É melhor me conhecer
que ficar desesperadamente admirado
na hora da angústia.
95
A MULHER
96
MODIGLIANI
97
O PINTOR E A MULHER
98
EM MAUÁ
99
TERNURA
100
E o que ela diz nesse momento?
Com a boca: linda, querida, amor, etc...
mas seu corpo desnudado
fala outra coisa.
101
EU E ELA
Amor é o mar.
O amor cabe no homem.
Deus sabe o que dois podem.
102
CORPO
O corpo sabe
o corpo espera.
Amanheceu chovendo
o corpo sente.
Ontem a namorada
o corpo esquece.
O corpo fala
quando sente dor.
O corpo chama
quando sua frio.
O corpo ignora
o tempo físico.
O corpo ignora
o físico.
•
103
A verdade está no corpo
todo corpo é sincero.
Corpo é evidente
ninguém conhece o corpo.
A mente pensa
o corpo espera.
A mente comanda
o corpo desmanda.
A mente insiste
corpo faz corpo mole.
O corpo obedece
o que o corpo pode.
104
Tudo é ilusão
só o corpo é pó.
Toda a eternidade
passa pelo corpo.
Toda a divindade
cabe num corpo.
O mistério
esconde-se no corpo.
O corpo é a hóstia
servida a cada um.
O corpo é a meta
imposta a cada um.
A meta é a medida
onde o corpo se limita.
105
Corpo em si
é pura abstração.
Corpo se alimenta
de relação.
Corpo é fração
de um corpo infinito.
O corpo é a forma
da utopia humana.
O corpo se conforma
com a estupidez humana.
O corpo se deforma
com a estupidez contínua.
O corpo espera
o corpo sabe.
106
O CORAÇÃO DA PEDRA
Esse coração:
como um olho que abre
de um sono profundo.
Esse olho:
como uma luz que nasce
para renovar o mundo.
107
O coração do homem quando bate
só adormece
as pedras do mundo.
Pedras dormindo
são pedras propriamente ditas
pedras frias.
108
Ninguém sabe o que bate
de repente
o coração da pedra.
Tentei o vazio
zen
e nada.
109
Então fui eu que deixei
a pedra
com a minha interrogação.
E parti sozinho
(como quem desiste de tudo)
ouvindo apenas meu coração.
110
TRÊS CASCAS
111
Ninguém repara a beleza
a graça, a leveza, a ordem, o movimento
dessas cascas
(penso que se caminha pela praia
com as pernas
com a cabeça
ou com os olhos).
Ninguém vê que coisas há
dentro dos ocos.
112
Adiante, encontro pequenos sarcófagos
quase soterrados na areia
e com pincel de arqueólogo
limpo esse sítio mais mundano que histórico
até recuperar todo o grupo.
Reparo que eles mantém entre si uma relação proporcional
(no amendoim há sempre um, dois, três ou quatro
amendoins)
e espalham-se contíguos segundo alguma ordem
o que me sugere a existência de um código
de um possível alfabeto oracular,
lançado na areia pelo gesto do homem
transmutado em seguida pelo gesto do mar,
restando só um contratempo de ondas
para se decifrar.
113
As algas em algumas
cobrindo as cascas como heras
dão a elas o aspecto de velhas
e de fato são:
não flores vivas
mas antepassadas antecipações.
114
RESPOSTA
Não me interessa
-- quero sentir o sabor da pinga
que um cara me serviu em Caratinga
“é pura, de cabeça, envelhecida, etc”
de fato, nunca tinha tomado uma dessa.
Comprei um litro
fui tomar em São Paulo com um amigo
quando vi, surpreendido
a pinga aqui tinha gosto de pinga
e por mais que tomasse, pinga
me deixando desapontado
desarvorado ou quase
porque entendi:
este gosto é de dia paulista
este gosto é rotina
o gosto mudou porque a pinga
sente falta do carinho de Minas
porém (eu disse pra ele)
eu não pirei, há de vir
ainda hei de sentir
(e estou sentindo, agora, bebendo a pinga
enquanto escrevo)
aquele sabor ou qualquer outro bom sabor
porque até a pinga é viva
e só precisa de paz... →
115
Isso posto, doravante
não quero saber de nada que fuja à ordem da natureza
daquilo que nela é fugaz ou permanente
que no ser fugaz me ensina o seguir
e no ser permanente, o essencial.
116
Preciso ver as marcas do tempo nas coisas
(não é isso a beleza, simplesmente?)
por isso saio na rua e me contento
quando observo o paradoxo das transformações
e as confusões do homem em nomear a matéria alterada;
quando a casa é ruína?
quando a folha é sujeira?
quando a menina é mulher?
(Minha mulher não tem idade definida
e me encanto com isso:
por sua beleza de jovem madura
pela inocência de velha aprendiz.)
(Isso me faz pensar em mim mesmo:
onde estou?
a que ponto do fim?
a que distância do começo?)
(Estes versos ficaram bons
porque soam comuns.) →
117
Escrever vale mais que o escrito,
e o que escrevo não tem nome
porque não sei como se define aquele homem-menino
esperando o caminhão vir buscar sua barraca de laranja.
Olhe, é preciso que antes eu diga:
não gosto de poesia
nunca tive paciência com abstrações poéticas
nem com arte refinada de espécie alguma;
para mim, a poesia vaga por aí
como alma penada em busca de um corpo
e naquele dia pegou a forma daquela figura.
Não que fosse puro, belo, sábio, etc...
-- na verdade, nem olhei sua cara
não sei se era japonês, se era feliz, etc...
Era poesia e só
e na hora não notei
-- na hora eu parecia um aloprado caçador de formas
poéticas
procurando o melhor ângulo para fotografar
uma uva solta no asfalto --
(agora vejo tão bem)
aquele menino-homem
sozinho, num domingo, três da tarde, rua deserta
sentado na sarjeta esperando um caminhão
com o corpo inclinado tocando o chão com os dedos
como se tivesse encontrado algo ainda menor que a minha
uva...
e nem precisasse fotografar...
118
É por isso que eu digo,
se a idéia do transitório está na moda, foda-se
porque uso dela há muito tempo
e é sobre seu fio que procuro equilibrar-me,
entre um crepúsculo subindo
(que as sombras vêm de baixo)
e uma alvorada, sempre à frente, caindo.
Por isso o passarinho continua lindo
e a morte continua sendo a dama da noite
e a vida, a puta do dia
e Deus em cima da pinta me dizendo:
ora pensa que de você Eu quero muito
ora que quero pouco
mas a medida é bem menos que seu muito
mais que seu pouco.
(Estas palavras não me enganam,
estão cheias de orgulho e vaidade.
Como quando ouço dizer
que o homem é um grão de areia
dito com prepotência de pedreira.) →
119
Poeira. Canta o passarinho já.
Pegue seu caso: você escolheu sua mulher
porque diferente das outras
mas quando chegou perto era igual.
Se passou desse ponto e mergulhou mais fundo
encontrou nova diferença e conheceu o essencial.
Poderá se deparar com nova semelhança
se penetrar ainda mais em seu espírito;
ali então existe um lugar e um tempo
que são todos os lugares e todos o tempos
iguais.
Verá que a eternidade está a seu lado
em tudo.
Quem sou eu pra dizer isso?
Pra que serve? Como você quem me ouve?
O que me importa?
Só me importa isso: esta é a minha resposta.
120
122
POSFÁCIO
123
RESPOSTA versão 1993
Numa só palavra
me importa ver e ouvir
me importa a diferença dos aromas e sabores
me importa o carinho da pele que me toca
me importa a memória desses sentidos
e suas transformações, suas nuances
mas me importa sentir as coisas
com sentimentos bons
de comunhão com a paixão humana
e comunhão com as leis da natureza
pois me importa aprender com a natureza
com o que nela é constante
com o que nela é instável
com o que nela é metáfora
e as marcas que tempo imprime nas coisas
numa folha, num fóssil, num curso de rio
pois me importo muito com o tempo
especialmente o departamento de espera
precisamente saber esperar
os caminhos que um dia se abrirão
e que hoje nos convidam a percorrê-los
me importa perceber o início tênue destes caminhos
e os desenhos que vão formando
intrincando-se, enrolando-se
num labirinto fácil de entrar
difícil de sair
pois me interessa a forma opressora da vastidão
e da insignificância
porque fazem parte da existência
e o limite absoluto do conhecimento
que nos conduz à necessidade do singelo
124
do transitório
e à necessidade de entrega
para com aquilo que flui naturalmente
- como estes versos -
como escrever em linha reta
idéias espiraladas
acreditando que as palavras possam traduzir...
pois me importa a harmonia e a integração
de coisas pequeninas com a vastidão
por exemplo: encontrar uma similitude qualquer
entre o som de besouros, latidos e gritos da noite
com meus versos aflitos...
- mas não é isso, nada disso
me importa integrar meus versos
não com a natureza concreta
nem com a realidade implícita
nem com sentimentos tão bravamente sentidos
mas com um comando geral dessas coisas
com uma lei regente e precípua
que eu intuo, sinto, quase sei
mas não sei
por isso me importo principalmente com o que não tem
nome
nem data
como o destino do homem
como a diferença da mulher
como a criança sempre ser o que é
seja chinesa ou africana, e independente
dessa tal mistura genética/cultura
me importa somente a criança
em qualquer lugar em qualquer época →
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porque me importo com a relação ancestral de dependência
e a visceral ligação com a origem
e a transcendental ruptura do parto
e aquele interior antes do parto
e aquele anterior ao interior
pois me importa o sofrimento
não a dor, a sua razão de ser
a sua necessidade (assim como a morte)
a sua precisão na composição da vida
e a aparente desordem que cria na vida
pois me interessa o que não compreendo
desde as grandes incógnitas da miséria
(da miséria propriamente
mas aquilo da miséria
que é a miséria de sempre)
até, e principalmente
o reinado do ódio entre as pessoas
dentro de uma família
no amor entre duas pessoas
que lugar é esse chamado ódio?
pois me importo com a célula
o âmago
daquilo que está na cara
e mesmo nesse centro
me importo somente, repito
com aquilo que é sendo,
em qualquer tempo, civilização
que me importa aquela dimensão das coisas
compreendida intuitivamente por qualquer um
independente das categorias sociais com que se pretende
humilhar os homens
126
mas totalmente dependente de categorias universais
de bondade, sabedoria, fé, resignação
pois me importa esse toque de Deus
seu jeito de fazer absolutamente indiferenciado
e o tempo que usa em sua obra
e a própria reflexão de sua natureza
(pelos reflexos)
mas essa reflexão sendo feita preferencialmente
percorrendo os mesmos caminhos de outros homens
para chegar a resultados já há muito compreendidos
e expressos e impregnados nas línguas dos povos
nos provérbios, canções, lendas
nas histórias rotineiras e reais
porque justamente me importa o que não é original
porque procuro o específico
mas detesto a originalidade em si
sobretudo a pretensão de querê-la
e a prepotência que acompanha este gesto
(desviei-me do assunto)
pois muito me importa saber
-- passo muito tempo me importando com isso –
que onde quer que eu chegue
estará longe de onde tantos já chegaram
e não me refiro a sábios, gênios etc.
mas a homens comuns, reais
como uma mulher de um político sórdido
(ela me veio à cabeça)
que vi falando na televisão
coisas que levei muito tempo pra descobrir
e que julgava sabê-las especialmente
e que ela discorria com tanta simplicidade... →
127
então me importa esse humano igual
e o poder que de repente irrompe
de dentro de qualquer um
como um vulcão
rompendo as camadas das padronizações humanas
dos preconceitos, das ideologias
e dos modismos que destroem a pureza do indivíduo
mas considerando também
a padronização, o preconceito, a ideologia
como mediocridades imprescindíveis
simplesmente porque existem
pois o que me importa é saber
que tudo compõe a grandeza da vida
e que tudo se transforma
como qualquer tia já disse
como filosofias orientais afirmam
como filósofos ocidentais discutem
como Buda ilumina
como Heráclito olha o rio
como Jesus oferece a face
como Jesus deixa que lavem seus pés
como Jesus se entrega à cruz
e provoca o terremoto mais profundo dos tempos
eu escrevo escrevo escrevo mas na verdade
sinto que não tenho idade
pra entender o que eu digo
então finjo entender
às vezes penso entender
mas logo se me escapa
meu corpo não tem massa pra reter
por exemplo... me parece impossível perdoar
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compreender e ajudar um assassino
e saber que sua importância ou desimportância
na alquimia da vida
é a mesma de um padre verdadeiro que conheci
e de todos nós que pregamos justiça
pois me importa esta dúvida:
o que sabemos de justiça?
esta é a parte confusa desse poema
porque não me importa a justiça comum
mas a justiça do destino
no quanto é justa a dor do arrependimento
consciente ou inconsciente
-- deste castigo ninguém escapa –
na medida exata de cada ato
desde um singelo desacato
até uma violência desmedida
todos pagam, estamos pagando
às vezes com a própria vida
sob formas muitas vezes desconhecidas
impalpáveis, desviadas, imprevistas
mas nunca moralistas e reformatórias
como esta justiça com que os homens
vingam-se da culpa dos homens
como se pudessem atirar a primeira pedra
como se o desacerto do mundo lhes fossem independente
como se o ofendido nada tivesse com a ofensa
como se ninguém tivesse parte
do choro de uma criança
como se a loucura – como querem implantar em nossas
mentes –
fosse problemas de gens →
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como se cada indivíduo soubesse o que faz
tivesse controle do que é
e responsabilidade por si
e que umas palavrinhas na escola
outras dos pais, outras do padre
fossem suficientes para conter uma vida
mas então me expliquem
(vocês que estão achando insano
o que estou dizendo)
por que bate aquele constrangimento
quando passamos pela calçada
com um homem estendido no chão?
eu me importo com isso
com minha parte nesse escarro
eu me importo com isso
mas não confundo isso com culpa
me importo pelo constrangimento em si
que não é meu, é nosso
sempre me importei com isso
desde criança
como qualquer criança.
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2ª EDIÇÃO REVISADA [2006]