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CRÔNICAS

LIÇÕES QUE
A VIDA ENSINA

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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
NÃO É PRECISO MOSTRAR
O QUE SE É, BASTA SÊ-LO
O rapaz chegou à pequena cidade do
interior como um passarinho solto da
gaiola. Tudo lhe parecia sorrir e não foi
difícil entender a razão. Há muito tempo
morava na cidade grande, onde
constituiu família e acabou por se
prender. Na verdade era de ascendência
indígena e nunca se acostumara à vida
citadina. Agora estava muito feliz de, se
não voltar às origens, pelo menos
usufruir um pouco de paz naquele lugar
tranquilo. Ficou especialmente
maravilhado com o grande rio que
cortava o povoado, ainda de águas
claras e limpas, abrigo de muitas
espécies de peixes.
Sendo de origem simples não teve
dificuldades em fazer amizade com o
povo do lugar. Embora fosse de natureza
humilde, hora ou outra contava suas
peripécias do passado e falava das
grandes aventuras vividas na natureza.
Tinha sempre bons ouvintes, pois, o
povo local era, na maioria, pessoas do
interior, consequentemente amantes do
belo e natural.
Entre os que o ouviam com prazer
estavam alguns rapazolas de uma
família oriunda do lugar. Tanto eles
como o pai eram dados a boas
brincadeiras. Não tardaram a começar a
zombar do nativo pelo fato de o
convidarem para um mergulho no rio e
ele sempre negar. Primeiro que estava
sempre ocupado, uma vez que a
mudança lhe dificultara a vida. Ali, sem
sombra de dúvida era muito difícil
manter três crianças na escola e toda a
família nas condições que estava
acostumada. Depois, discreta e
humildemente, ele explicava que
passara muitos anos sem os bons
exercícios naturais e precisava se
readaptar aos poucos. Era exatamente o
que os zombeteiros aproveitavam.
Faziam a maior galhofa dizendo ser
mentira tudo o que ele contava e que, na
verdade, ele nem sequer sabia nadar.
Quando um grupo ia para o rio, o
convidavam mais veementemente
dizendo que hoje podia ir tranquilo, pois
havia muitos para salvar-lhe a vida e
tirá-lo da água.
Toda essa surriada acabava sempre
com o sorriso calmo e discreto do
humilde rapaz, o que muito me irritava.
Nunca fui dado a muita zombaria.
Sempre disse que há uma diferença
muito grande entre rir com os outros e
rir dos outros. Ainda mais que eu
acreditava ser um ato desarrazoado
naquele caso, sabendo muito bem o que
o mateiro era capaz de fazer. Mais ainda
me irritava o fato de um dos garotos ser
tremendamente petulante e
convencido, sempre contando com
exagero o que achava serem grandes
façanhas. Era exatamente ele o maior
zombeirão, o que me deixava a pensar
porque o índio não lhe ensinava uma boa
lição, porque não lhe calava a boca
mostrando tudo de que era capaz. ``Há,
se fosse eu...``, sempre amargava.
Mas toda história tem um ponto final.
Num certo dia de verão, daqueles que
não dá vontade de olhar para fora, fui à
casa dos brincalhões tratar algum
assunto, mas eles não estavam. A mãe
estava sozinha e me informou que o pai
e os garotos haviam ido à cidade vizinha
comprar peças para o carro. No exato
momento dessa explicação, passou por
ali o índio e me convidou a ir com ele até
a ilha. Era uma expressão conhecida,
todos sabíamos que se tratava de uma
bela ilha um pouco acima no rio. Num dia
como aquele não precisava convidar
duas vezes, mas estranhei o fato de ser
convidado por quem negara tantas
vezes ir até lá. O assombro não foi só
meu, até a senhora no portão sorriu e
perguntou se ele resolvera conhecer o
lugar.
Quando chegamos ao local a
fisionomia do mateiro mudou. Ele olhava
por todos os lados com um sorriso de
garoto matreiro que acabara de
descobrir o modo de aprontar mais
alguma. Por outro lado trazia no
semblante o nítido contentamento de
quem reencontrou a própria vida.
Desceu até a margem, encheu várias
vezes as mãos em concha e deixou a
água deslizar suavemente entre os
dedos, admirando-a. Molhou a cabeça e
entrou calmamente no rio. Nadou até a
ilha, voltou e saiu da água. Olhou em
volta por instantes e comentou que
achava que dava para brincar um pouco.
Nadou novamente até a ilha e dessa vez
a adentrou. Segui-o, curioso. Ele foi até
o outro lado, onde tinha o maior volume
de água, subiu numa árvore e deu um
dos mais espetaculares saltos que eu já
vira até então. Daí para frente foi um
show de agilidade e força,
demonstrando que a amizade com a
natureza ainda estava forte.
Quando saíamos do rio, chegaram os
zombadores, ávidos por uma boa troça,
mas que decepção, o espetáculo já havia
acabado. Por mais que insistissem, o
nativo se desculpou dizendo que fora
apenas dar uma molhada no corpo.
Diante dos desafios provocativos,
quando passei por eles sussurrei que
era bem melhor que não o desafiassem.
Não sei se por desconfiarem ou se por
confiarem muito em mim, mas a
galhofada teve fim. Parece que
entenderam ser melhor não zombar de
quem não conhecem. Não sei se por
acaso ou se aprenderam alguma coisa,
mas eu aprendi a não ter que provar
nada para ninguém. Aprendi que não
preciso mostrar o que sou, mas preciso
ser o que mostro.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
 LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
MÁS ASSOCIAÇÕES
ESTRAGAM HÁBITOS ÚTEIS
Embora muitas pessoas discordem
dessa afirmação, o dia a dia tem
provado a sabedoria da sua veracidade.
Usada em palavras e formas diferentes
é uma expressão conhecida em todo o
mundo. Minha mãe nunca se cansou de
repeti-la aos ouvidos dos filhos, mas na
minha pouca idade não conseguia
entender só uma coisa: como eu poderia
sempre escolher por companheiro
alguém melhor do que eu? Se o outro
fosse melhor do que eu e aplicasse o
mesmo princípio, não me aceitaria por
companheiro. Mas como por natureza
sempre fui bom ouvinte, meditava
sempre naquele alerta.
Aprendi a lição quando morava
naquela fazenda, numa colônia de
agricultores. Vários quilômetros abaixo
foi construída uma usina hidrelétrica e a
represa formada chegava até o fundo
dos nossos quintais, num dos braços
formados pelo vale em que se situava a
fazenda. Era ali, à beira da represa, que
passava grande parte do tempo à cata
de aventuras e descobertas. O
companheiro inseparável era o vizinho
da mesma idade, talvez pouco mais
velho, para grande preocupação da
minha mãe. O garoto tinha mais do que
apenas a fama, era de fato peralta ao
extremo. Mas como não havia outros
para brincar, acabávamos sempre juntos
desbravando as redondezas. O pai do
meu amigo era um senhor já idoso todo
grisalho, muito bonzinho, porém,
austero. O último adjetivo era o terror
do garoto, pois, não era incomum ouvir, à
tarde, quando o pai chegava do trabalho,
os castigos a que era submetido.
Algumas vezes ficava desaparecido até
bem tarde da noite, esperando os
ânimos se acalmarem.
Naturalmente eu percebia essas
várias más qualidades e sempre tentava
não me envolver, procurando dissuadir o
companheiro de traquinices maiores.
Volta e meia, porém, acabava caindo em
alguma enrascadela e sofrendo as
consequências; quando não um castigo
mais pesado, pelo menos a ladainha da
minha mãe sobre não ter por
companheiro alguém pior do que eu.
Certo dia, logo após o almoço, lá
estávamos a revirar o matagal
procurando armas contra o tédio
naquela época quente do ano. Entre os
tantos ruídos da natureza, discernimos
o som de uma galinha chamando seus
pintinhos que, por sua vez, piavam
estridentemente, revelando serem
muitos e bem novinhos. Logo apareceu
na mente malévola a ideia macabra e
não tardou o convite por parte do amigo:
"Vamos matar os pintinhos?" Pego de
surpresa não fiz outra coisa a não ser
acompanhá-lo mato adentro em busca
da presa. Tão logo, porém, me recobrei,
passei à costumeira bateria de
argumentos que sempre tinha de usar
com aquele coração insensível. E mais
uma vez recebi tremenda carga de
adjetivos destacando minha "fraqueza e
covardia".
Era um tremendo disparate.
Justamente eu que já era zombado em
casa por não gostar de caçar nem matar
animais domésticos para alimento, às
voltas com uma chacina de pintinhos.
Ante o olhar reprovador e provocativo
do amigo, seguido da sua arrancada
mato adentro, acabei por segui-lo,
mesmo que a contragosto. Logo
divisamos a ninhada e o experimentado
garoto lançou mão de uma grande pedra
e jogou sobre os depenados filhotes. A
galinha ficou muito irritada e levou
rapidamente seus protegidos embora,
provocando grande barulho. O malvado
garoto ficou desalentado, para minha
alegria, ao perceber que errara o alvo.
Durou pouco, porém, meu alívio, pois, fui
justamente eu que percebi um dos
pintinhos atolado no chão. Ali, bem
próximo da represa, a terra era fofa e
úmida, o que possibilitou prender o
pobre infeliz que, ainda vivo, tentava
debalde se soltar da prisão em que fora
metido.
Sacando a faca, o frio garoto passou a
esquartejar a presa sobre uma pedra.
Foi quando ouvi o grito de minha mãe
me chamando. Ela lavava roupa na
represa e ouvira a fuzarca produzida
pela galinha e, naturalmente, já
desconfiou de alguma traquinice. Ao
ouvir o chamado desaparecemos
incontinenti. Agora cada um para o seu
lado, procurando um meio de escapar do
que viria. Da minha parte apliquei um
velho truque. Corri para o lado oposto,
numa grande volta, e respondi
respeitosamente à minha mãe. Esforço
vão, pois ela já havia encontrado os
restos mortais da pequena ave.
Daquela vez não adiantou meu amigo
sumir até tarde da noite, pois, a julgar
pelo alarido na madrugada, o castigo foi
dos piores (ou melhores, sei lá). Mas
tenho certeza que ele sofreu bem
menos do que eu, pois, até hoje ainda
sinto arrepios quando me lembro da
triste cena. A lição, porém, passou a me
proteger pela vida afora. Aprendi a
escolher muito bem com quem me
associar e, cada vez que certas ações ou
mesmo ideias de amigos pareciam fugir
ao controle, aquelas imagens me faziam
pensar duas vezes. A pedra toda
vermelha e as mãos embebidas em
sangue ainda povoam minha mente.
Realmente, os bons costumes
desaparecem sob a pressão das más
companhias.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
DA ADAPTAÇÃO
DEPENDE A VIDA
Naquela vida maravilhosa de
liberdade total, correndo pelos
cerrados, montanhas e florestas,
enfrentando os desafios das loucas
aventuras, eu acreditava ter adquirido a
habilidade da adaptação. Fui treinado
para isso, sendo sempre lembrado de
aprender com o camaleão. Eu me
acreditava autossuficiente. O que eu
não sabia é que não conhecia situações
e lugares deveras diferentes.
Por força das circunstâncias tive de
deixar a pequena cidade do interior e
rumar para uma das maiores cidades do
mundo. O espírito aventureiro ainda
permanecia, de modo que cada
novidade era um novo desafio.
Esforçava-me em encarar com
naturalidade as situações e coisas
nunca dantes imaginadas. Tinha um bom
salário e morava próximo ao trabalho,
situação privilegiada. Casara-me no ano
anterior e um dos maiores sonhos da
vida estava para se realizar: minha
primeira filha estava para nascer.
Tudo parecia muito bem. Eu apenas
sentia dificuldade para me levantar de
manhã e estava sempre cansado. A vista
se escurecia e me sentia zonzo. Não
entendia, pois me alimentava bem e
descansava o suficiente. A fraqueza
aumentou gradativamente até o ponto
de ficar difícil trabalhar, o que me levou
a procurar um médico. Os exames de
rotina tiveram resultados negativos, de
modo que fui encaminhado a clínicas
especializadas. Dias depois meu médico
me chamou e demonstrou seu assombro
diante de tão boa saúde. Não
entendendo o que se passava comigo,
pediu-me para tomar alguns remédios
para me reanimar um pouco. Quando
voltei alguns dias depois, estava ainda
pior. As mãos suavam e os lábios
tremiam. Trabalhar exigia colossal
esforço. Por um lado ele estranhou, pois
o remédio que me prescrevera, segundo
brincou, era para levantar até defunto.
Por outro lado, porém, já esperava por
isso e havia me reservado algum tempo
extra.
Embora não o fosse, se transformou
num psicólogo e perguntou pelos
mínimos detalhes da minha vida. Ainda
posso lembrar-me da atenção que
prestava às minhas palavras e do seu
olhar de assombro diante de certas
narrativas. Quando se deu por contente
tinha um braço apoiado na mesa,
servindo de coluna para sustentar o
queixo. Mudou de posição, num gesto
que denotou cansaço de tanto ouvir e
concluiu: "Não é difícil entender o que
está acontecendo." E voltou a perguntar:
"Você sabe qual o lugar correto para
plantar arroz?" Respondi que sim, num
lugar úmido. Ele continuou no mesmo
tom: "O que acontece se plantarmos
arroz na areia quente?" "Não vai
produzir", respondi. O médico apoiou os
cotovelos em cima da mesa, me olhou
firme nos olhos e falou de modo solene:
"Você é um pé de arroz arrancado do
brejo e plantado na areia. Está secando."
E depois de certo silêncio, explicou que
as mudanças na minha vida foram muito
drásticas, para as quais eu não estava
preparado. Agora estava
profundamente afetado.
Em conclusão, o atencioso médico
aconselhou-me a voltar para o interior.
Ao explicar-lhe a impossibilidade, ele
concluiu: "Então, você não tem opções.
Terá de se adaptar. Aprenda com o
camaleão que chega a transformar-se
para se adaptar ao lugar em que está
para escapar com vida. No seu caso
também, da adaptação depende a vida."
Interessante, mas esta lição eu já
conhecia, precisava aprender.
Caminhei lentamente de volta para
casa naquela tarde, mergulhado em
profundos pensamentos. Percebi que
estava vivendo o sonho e sonhando a
realidade. Era normal subir até o
apartamento do meu irmão, dois
andares acima do meu, todos os dias, e
quedar-me na janela vislumbrando, além
da fumaça que cobria o subúrbio, os
picos das montanhas ao longe. Gastava
todo meu tempo de conversa narrando
as peripécias da vida livre e mateira e
falando das maravilhas de onde viera.
Todos os meus planos se concentravam
em voltar à vida que deixara. Sim, eu
vivia o sonho e sonhava a realidade.
Naquela noite após o jantar minha
esposa veio mostrar-me as novas
roupas compradas para o bebê.
Orgulhosamente desdobrando aquela
roupa, eu senti que desdobrava o meu
futuro. A vida havia mudado... logo eu
seria um pai, com um futuro imenso a
ser construído.
Anos depois, num exame de rotina,
aquele bom médico me parabenizou por
ter conseguido vencer tão grande
barreira. Confessou que não acreditava
que eu conseguisse e comentou que até
minha fisionomia havia mudado. Mas eu
vencera. Ainda não sabia, mas daquele
tempo em diante a única coisa
permanente na minha vida seria a
mudança. Aprendi que as mudanças
serão sempre ganho se aprendermos a
tirar proveito delas. A Terra tem forma
circular para que não haja fim. Podemos
chegar ao mesmo lugar sem nunca
voltar. Não existe lugar totalmente ruim
nem totalmente bom. Existe falta de
controle do que dá prazer e carência na
capacidade de adaptação. O camaleão
continua vivendo porque se transforma.
Da adaptação depende a vida.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
IMITE O BURRO E
ATINJA O OBJETIVO
Parece que o que mais povoa a mente
de uma criança são as expectativas. Por
isso mesmo eu estranhei o fato de
estarmos nos preparando para mudar e
não perceber grande expectativa nas
crianças. Prestei atenção e logo
apareceu o motivo. A filha mais velha,
então com uns dez anos, não concordava
com a mudança, e vivia falando dela de
modo negativo para a irmã menor: “O
lugar para onde vamos não tem isso, não
tem aquilo, tem esse problema e aquela
desvantagem”... e assim por diante.
Aguentei isso por alguns dias até que a
filha mais jovem veio questionar: “se o
lugar é tão ruim assim, por que nos
mudaremos para lá?”
Entendi que já era hora de acabar com
esse impasse. Sentei-a na minha perna e,
chamando a outra, expliquei-lhes que
não podemos avaliar as coisas pelo
nosso gosto, mas, pela razão. Teremos
ainda de fazer muitas mudanças na vida
e, olhando do ponto de vista correto, elas
serão sempre para melhor. Um novo
lugar para morar será ruim, se fixarmos a
mente no que estamos deixando, ao
invés de atentar para a razão da nossa
mudança. Nesse ponto, viajei no tempo e
lhes contei como aprendi essa valiosa
lição.
Eu tinha por volta de seis anos de idade e,
como tal, estava em grande expectativa
da mudança. Já havíamos visitado outra
fazenda, para onde minha mãe queria ir.
Porém, meu irmão mais velho, de uns
quatorze anos, queria se mudar para a
cidade. Eu estava dividido, pois, na
floresta ou na fazenda me sentia em
casa, vivendo a vida de bem com a
natureza. Da cidade eu só tinha a vaga
lembrança das poucas vezes que passara
por lá. A imagem que eu tinha era de um
povo esquisito, que falava uma da pouca idade, comecei a entender que
linguagem que eu não entendia muito a razão precisa superar o gosto.
bem, e não esquecia o mau cheiro Quando terminei a minha narrativa
dominante em cada canto. Mas, a percebi que a filha menor não entendera
expectativa do desconhecido me atraía.
nada, pois, ainda me perguntou:
Meu irmão sempre criticava a fazenda
―Então o lugar pra onde vamos é
que fôramos ver. Dizia que era um buraco gostoso?
danado, de onde só se via o céu, cercado
―Sim― emendei. ―Tenho certeza
de tal modo pelos montes que mal dava
que você vai gostar.
para respirar. Minha mãe sempre
E, fixando os olhos firmemente na mais
animada dizia que aquele sim, era um
velha, perguntei:
bom lugar para criar galinhas e porcos, e
para gozar da tranquilidade que só ali ―E você, entendeu a lição?
parecia existir. Ela abaixou a cabeça, se esforçando em
O tempo passou rápido e, para alegria de esconder um sorriso.
uns e tristeza de outros, logo estávamos Depois de uns três meses de morada
tentando nos ajeitar naquela pequena nova, perguntei a ela:
casa na cidade. Fomos morar num ―E, então, gostou da mudança?
loteamento novo, com muitos terrenos Ela respondeu, no seu orgulho de menina
ainda vazios. O loteamento ficava entre que já pensa ser moça:
os montes e nossa casa ocupava uma
―É..., não é tão ruim assim.
das partes mais baixas. Todos os dias
E para o meu espanto, mostrou seu
ouvia minha mãe reclamar daquele
entendimento completando, enquanto
buraco danado, de onde só se via o céu,
saía de fininho:
cercado por tantos montes que mal dava
―E afinal, a razão tem de superar o
para respirar. Também ouvia o assobio
gosto,
feliz do meu irmão, até trabalhando
agora, coisa que ele não era muito dado
a fazer. Estava construindo um cercado e
sempre comentava que, aquele sim, é
que era um lugar tranquilo, excelente
para criar galinhas e porcos.
Na minha mente infantil eu não podia
compreender como as pessoas podem
ver as mesmas coisas de modo tão
diferente. Mas, prestava muita atenção
a tudo que acontecia, e logo percebi que
as mudanças chegam com as mudanças,
e que o que há pouco nos era tão
abominável, agora já pode ser pelo
menos aceitável. Foi assim que, apesar
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
IMITE O RIO:
VENÇA OS OBSTÁCULOS
Naquele dia eu estava fazendo o meu
trabalho normal, visitando os
escritórios dos grandes supermercados.
Mas, estava mais preocupado do que o
normal. Estava chegando o dia em que
deveria fazer uma palestra com o
objetivo de encorajar pessoas que
estavam passando por sérios
problemas.
E o meu problema era que ainda não
conseguira criar um raciocínio que
fizesse com que os ouvintes se
sentissem realmente reanimados.
Foi então que, ao entrar no carro, notei o
muro pichado à minha direita:
"Todas as nascentes correm para o mar
e não há quem possa mudar o seu
destino final".
As visitas terminaram cedo naquela
tarde e já viajava de volta para casa,
mas, com aquela frase fervilhando na
minha cabeça. Entre as cidades, numa
região plana, passava um rio de porte
médio, de águas claras naquela época do
ano. Como tinha algum tempo, desviei o
carro para uma pequena estrada de
chão batido à esquerda de uma ponte e
estacionei um pouco abaixo, debaixo de
grande árvore.
Saí do carro e caminhei por ali,
embevecido com a beleza do lugar.
Sentei-me sobre uma grande pedra e
fiquei a perscrutar as mansas águas,
como se esperasse ver alguma coisa. A
frase do muro continuava na minha
cabeça e, como sempre foi normal para
mim, me fez perder em reflexões.
Olhando o rio percebi como minha vida
sempre dependera dele. Primeiro, lá na
selva ele me era fonte de alimento,
locomoção e higiene. Depois, logo que a
minha família veio para a cidade, meu
pai foi trabalhar na construção de usina
hidrelétrica e eu cresci como
barrageiro. De forma que conhecia bem
a luta do homem com o rio. Primeiro é
preciso desviar o seu curso, para então
construir a barragem. O homem pode
desviar o seu curso, mas, não pode pará-
lo. Depois de a barragem pronta, o rio
volta ao seu curso original, mas,
encontra aquele imenso paredão;
toneladas e toneladas de concreto.
Assim se forma uma imensa represa,
algumas tendo mais de seis vezes o
volume de água da baía da Guanabara.
Essa enorme pressão da água, entrando
por caracóis gigantes, faz girar os
enormes rotores das turbinas, gerando
energia elétrica. Interessante é que o
homem trabalha consciente que não
pode parar o rio. O objetivo da grande
barragem não é, em si mesmo, prender
a água, mas, criar um volume suficiente
para, na sua fúria incontrolável, fazer
girar aqueles enormes rotores de
dezenas de toneladas cada um. Depois
de prestar esse valioso préstimo, lá vai o
rio, livre, rumo ao seu destino final.
Ninguém pode prendê-lo.
Olhando as águas mansas no seu avanço
contínuo, minha mente vagueou
também por aqueles lugares curiosos,
onde rios atravessam rochas. Em alguns
casos cavam montanhas que se
interpõem no seu caminho. Em outros
lugares as fortes chuvas movem
toneladas de terra que barram as águas.
Mas, o rio limpa o caminho e continua
correndo para o mar. E curioso é que, na
sua nascente, não passa de um filete
de água brotando da rocha. Ao contrário
do ser humano que perde o ânimo e a
força na caminhada, ele vai se
fortalecendo à medida que avança. Vai
aumentando o volume e a força e, cada
vez que vence um obstáculo, ganha
maior poder e desliza, ora sereno, ora
estrondoso, rumo ao seu objetivo final.
Ninguém pode detê-lo.
Quando voltei ao carro, o sol já
despencava no poente, e já me enchia
com aquele sentimento triste do
crepúsculo, misturado à admiração que
sempre me causa o pôr-do-sol.
Voltando para casa já não tinha a
preocupação com a falta de argumento
para a palestra. Naquela noite trabalhei
até tarde e a matéria ficou pronta.
Muito tempo depois, pessoas que
assistiram àquela conferência, me
agradeciam pelo raciocínio encorajador.
E eu sempre agradeço o rio por mais
uma lição de força e perseverança.
Deveras, não existe obstáculo quando
temos objetivo. Na verdade, ninguém
supera a força de um motivo ― muito
menos de uma razão. E o rio tem tudo
isso. Ele nasce para chegar ao mar.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
DESAFORO SE LEVA
PRA CASA
Lá pelos treze anos, no auge do
orgulho de ter vencido a infância, eu me
dava bem em quase todas as coisas que
fazia. De criação mateira, possuía a
agilidade dos felinos e a resistência dos
touros. Embora de estatura pequena e
sem nenhuma musculatura que
aparecesse, conseguia vencer num
confronto até mesmo garotos mais
velhos e mais fortes. Não gostava de
brigas e sempre procurava me dar bem
com todos, mas não tolerava desaforos.
Havia crescido ouvindo a frase tão
conhecida: “Eu não levo desaforo para
casa.” Apesar de ser pacato por
natureza, sempre me escurecia a vista
quando alguém me lançava invectivas, e
então, eu não me responsabilizava mais
pelo que pudesse acontecer.
Geralmente, o resultado era alguém
meio quebrado e o meu coração partido,
porque, na verdade, eu não era violento
e nem gostava de violência. Mas... afinal
eu não podia levar desaforo para casa.
Naquela tarde bonita, de um verão
escaldante, minha mãe pediu-me para ir
à mercearia do centro da vila comprar
ovos. Lá estava eu, depois de sair da
mercearia, virando a esquina da
pracinha quando tudo começou. Os dois
garotos pedalavam suas bicicletas em
direção oposta, cada um querendo
passar primeiro numa faixa estreita
onde a rua estava sendo consertada.
Nenhum deles conseguiu atingir o alvo e,
em grande velocidade, acabaram por se
chocar com violência. O resultado foi
uma bela queda; uma bicicleta com a
roda dianteira meio quadrada e a outra
com o guidom virado para trás.
Os dois garotos talvez tivessem a
mesma idade, mas um era mais
avantajado, de ombros largos, enquanto
o outro era mais franzino e de menor
estatura. O primeiro, ainda sem se
levantar, deixou escapar sua indignação:
－ Ô seu vagabundo, será que não vê
por onde anda?
O outro retrucou imediatamente,
pondo-se de pé com maior destreza:
― Eu é que sou culpado, é? Você é que
vem se enfiando onde não lhe cabe, seu
paspalhão!
― Paspalhão, eu?!　― gritou o
grandalhão, já pulando por cima da
bicicleta ainda caída.
Sem dar tempo para nada, meteu uma
mão na nuca e a outra no lado da cintura
do menor e empurrou tão violentamente
que o pobre coitado deu várias
cambalhotas e acabou com o rosto
enfiado na areia.
O agressor, de peito estufado, bradou:
― Isso é pra você aprender que eu não
levo desaforo pra casa.
Nesse ponto eu já estava chorando de
tanto rir. A cena foi muito engraçada.
Chorava mais ainda olhando o franzino
lá no chão, mais parecendo um frango
destroncado. Ele tanto balançava a
cabeça como esticava e encolhia o
pescoço, na tentativa de livrar-se da
areia. Por fim, sentou-se, cuspindo a
areia da boca e removendo a que podia
do rosto. Caminhou com uma calma
inacreditável para o agressor, que agora
estava montado na roda dianteira da
sua bicicleta, tentando endireitar o　
guidom. Sem tempo para defesa, o
franzino desferiu tantos golpes de mãos
e pés ao mesmo tempo, que a pena dos
presentes se voltou agora para o
grandalhão, que acabou com o quadro
da própria bicicleta enfiado no pescoço.
A julgar pelos gemidos e a cara que
fazia, devia ter alguns ossos quebrados.
Nesse ponto, eu já não ria mais. Achei
que a coisa ficou muito séria. Fiquei
mais sério ainda quando ouvi o franzino
dizer, enquanto empurrava sua bicicleta
calmamente pelo canto da rua:
― Quem não leva desaforo pra casa,
aguenta na rua mesmo. Só fica um
pouco mais feio.
Pedalei minha bicicleta de volta para
casa tão calado quanto um túmulo e
mais concentrado do que um monge em
meditação. Parece que não encontrei
ninguém pelo caminho, pelo menos não
percebi.
Depois daquele dia, não demorou muito
alguém notar alguma mudança em mim.
Cultivava autodomínio e já não quebrava
as pessoas por nada. Inquirido sobre a
razão, a explicação era simples, embora,
talvez, não entendida por todos:
― Apenas aprendi que é melhor levar
desaforos pra casa. É mais seguro… e
menos feio.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva

DESAFORO SE LEVA
PRA CASA
O motivo da conversa naquele dia, no
intervalo do trabalho, foi problemas no
casamento. O meu colega se casara uns
dois anos antes e comentava como
entendia agora porque tantos casais se
separam. Logo colocamos o “seu Pele”
na conversa. Nunca perguntei a razão
desse apelido, mas era um senhor de
raça negra, cuja cabeça grisalha
mostrava a vivência e sempre gostava
pensando em trocar de carro e queria passar a me zombar por estar, naquele
de passar suas boas experiências. Ao
antes trocar algumas ideias com quem dia, no mundo da lua. Expliquei apenas
incluí-lo na conversa esperávamos
entende melhor do assunto. Queria que havia aprendido uma lição e estava
aprender uma boa lição. Em tom de
comprar o carro do Sérgio, o meu pensando nela.
narrador o experiente senhor contou a
vizinho. Veículo bem cuidado, de bela
história:
aparência. “Ao entrar em casa, minha esposa
estava a um canto do sofá, terminando
“Naquela tarde um tanto cinzenta, o
“Na oficina, depois de inteirar-se das de pintar as unhas. Parei, por instantes,
que era comum naquela cidade grande,
intenções do meu amigo, o seu Paulo olhando-a fixamente. Incomodando-se,
eu caminhava pela calçada de mãos
ponderou por alguns instantes e ela perguntou:
enfiadas nos bolsos, chutando as
raciocinou com o Beto:
pedrinhas que se atreviam a fazer frente
“- O que foi?
aos meus pés. Acabara de sair de casa
“‘- Hum, é verdade que o carro do
chateado com minha esposa.
Sérgio está muito bonito, mas pense um “E eu convidei:
pouco, Beto. Muitas vezes só não
“Mergulhado em pensamentos eu
estamos contentes com o que temos “- Vamos sair essa noite?
rememorava os quase cinco anos do
porque temos opções. Seu carro é tão
nosso casamento. Definitivamente, o
bom quanto o do Sérgio. É verdade que “- Com amigos? Ela inquiriu.
nosso relacionamento não ia bem. Eu
ele tem alguns defeitos, mas você está
pensava seriamente em me separar
cônscio deles e isso é uma grande “- Não! Respondi.
dela. Afinal não havia motivos para me
vantagem. Você vê em outro carro
prender a um casamento que não
apenas seus atrativos, mas sendo “- Hoje quero olhar pra você, sem
funcionava bem, cheio de defeitos e
apenas uma máquina produzida pelo ser opções.
problemas. Eu era jovem e boa pinta.
humano imperfeito, também tem
Havia muitas garotas jovens e bonitas
defeitos. E tais você não conhece, o que “Quando passei por ela percebi a
no meu círculo social. Muitas delas com
pode lhe resultar em prejuízo pela troca.’ expressão de quem nada entendera,
atrativos e qualidades que minha
mas fomos para um lugar diferente e
esposa sequer sonhava em possuir. E
“Nesse ponto da conversa passei a não solitário.
sem aqueles defeitos irritantes dos
ouvir mais nada. Novamente me perdera
quais eu já me cansara. É verdade que
em pensamentos, sentindo nas palavras “No dia seguinte à tarde, quando saía
muitos foram ajustados com o tempo,
do bom homem a sabedoria que me para ir ao supermercado, o meu vizinho
mas... não, não estava dando mais para
faltava para enfrentar e resolver meus Sérgio estava chegando de carona com
aguentar.
problemas, em vez de apenas fugir o seu Paulo mecânico. Seu carro havia
deles. De novo de mãos nos bolsos, a um fundido o motor.
“De repente, um carro parou ao meu
canto da oficina, permitia que meu olhar
lado e a voz alegre do meu amigo Beto
envergonhado se perdesse no vazio, “Hoje, uns vinte e cinco anos depois, e
me acordou daquele turbilhão de
enquanto me sentia martirizado pela a ventura de criar um lindo casal de
pensamentos negativos.
covardia da fuga. filhos, ainda sou por demais apegado à
Instintivamente entrei no carro para
minha esposa. Ah, e o Beto já não tem
acompanhá-lo a algum lugar por perto,
“Quando saímos da oficina foi fácil aquele carrinho. Afinal, um carro não
como sempre fazíamos. Logo ele
para o meu amigo notar o meu estado de dura para sempre. Mas um casamento
explicou que estava indo à oficina do seu
perplexidade e, galhofeiro como era, pode durar.”
Paulo, o nosso mecânico. Estava
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
PODE SER FRIO,
MAS É BONITO
Quando me preparava para ir para o
Japão realizar certo trabalho, uma das
principais preocupações dos amigos e
parentes era com o rigor do inverno
naquela parte da Terra. Todos sabiam
muito bem que eu detestava o frio e
louvava os dias ensolarados e as noites
quentes do meu rincão. Confesso que a
lembrança do que viria pela frente não
me agradava muito. Sempre que via
aqueles quadros lindos de montanhas
nevadas e lagos congelados comentava
que podia até ser bonito, mas era muito
frio para o meu gosto.
A viagem estava marcada para a
primavera naquele país, mas mesmo
assim telefonei várias vezes antes de
partir para saber como estava o tempo.
Felicidade tremenda foi sair do
aeroporto suando, ouvindo as pessoas
reclamando do calor que já estava
fazendo. Costumavam falar-me de como
seria insuportável o calor dos meses à
frente, com temperatura elevada e
grande umidade. Isso me deixava mais
animado e esperançoso. Passou muito
rápido, porém, o que chamam de verão
naquela região. Não demorou e as folhas
já estavam se pintando e soltando-se
dos galhos. Um vento frio já começava a
soprar e o medo do que viria pela frente
era agora mais ameaçador. Não tardou
muito e eu já começava a duvidar se
suportaria. E ainda nem havia chegado a
neve.
Nesse ponto conheci um rapaz nativo
muito empolgado com a época. A
expectativa das nevascas parecia ser a
própria razão da sua existência. Contava
os dias e seguia com atenção e profundo
interesse todos os noticiários que
mostravam a previsão do tempo. Como
eu não podia entender um sentimento
desses, ele me explicava que eu não
gostava porque não conhecia, mas que,
no inverno seguinte, eu também já
estaria nessa expectativa.
Foi justamente em companhia desse
rapaz que eu saí de casa certa manhã.
Ele parecia mais uma criança que
chegara ao dia de receber um muito
esperado presente. Com um sorriso
zombeteiro me deixou saber que a
previsão do tempo apontava para uma
forte nevasca. Não tardou muito ela
chegou.
Confesso que até hoje não esqueci
nosso primeiro encontro. Olhando para
baixo na rua vi uma cena ímpar. O vento
soprava manso e parecia mais que tufos
de algodão caíam aos montes sobre a
terra. Ao se aproximarem eram
soprados pelo vento e desenhavam
todos uma curva idêntica, flutuando por
vários metros acima do solo até
tocarem suavemente o chão,
derretendo-se imediatamente. Logo a
atmosfera foi tomada por um branco só,
completo, total. Simplesmente não há
possibilidade de descrever o misto de
admiração e assombro que me tomou
conta naquele dia. Era beleza demais
para se contemplar.
À medida que o carro passava pelas
plantações de chá, já cobertas pela
neve, a beleza crescia ainda mais. Era
impressionante a ondulação perfeita,
mais parecendo o trabalho de um perito
artesão. Ficamos longo tempo sem
pronunciar uma palavra sequer,
extasiados pela grandeza daquele show
gratuito e magnífico.
Quando chegamos a casa, notei algo
muito interessante: eu não estava
sentindo tanto frio. Então, refleti
profundamente na capacidade de
adaptação do ser humano. E como
muitas vezes antecipamos o sofrimento
pelo exercício de uma mente negativa.
Como foi fácil perceber agora que nada
que existe, especialmente na natureza, é
dotado de um todo negativo! Mas tudo
tem o seu lado bonito, saudável, ou, de
alguma forma, benéfico. Precisamos
apenas ver, sentir esse lado bom nas
coisas ruins.
À tardinha, do terraço do meu
apartamento, no quarto andar,
contemplávamos as montanhas em
volta da cidade. Não é possível
descrever a beleza nem o sentimento.
O meu amigo se aproximou e
perguntou:
- E então, gostou?
Apenas respondi:
- Muito! É muito, muito bonito!
Ele questionou:
- Não o ouvi reclamar do frio hoje.
Então eu completei, sorrindo:
- Não sei se todos poderão entender
tantas lições contidas em apenas uma
frase:
É melhor aprender a admirar a beleza da
neve do que reclamar do frio que ela
traz.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
A MODÉSTIA É LOUVÁVEL
QUANDO NÃO COÍBE VALORES
Já fazia algum tempo que eu me
afiliara ao escotismo, mas era a primeira
vez que participava de um
acampamento de todo o grupo, numa
região bastante selvagem. Acampamos
no Pontal do Sucuriú, no que é hoje o
Mato Grosso do Sul, não muito distante
do grande rio Paraná.
Na inspeção de sábado à tarde o chefe
do grupo me notou e meu monitor
explicou que eu já estava na patrulha há
algum tempo e estava me saindo bem. O
chefe usou de certo sarcasmo,
comentando:
― Pode ser, mas acho difícil um
cabeludinho desse se sair bem no
movimento escoteiro. Tem mais cara é
de bandeirante.
Aquilo mexeu comigo, pois, nunca
cortara o cabelo curto, desde que viera
para a cidade. Naquele tempo a onda de
cabelos longos tomava conta de tudo, e
a maioria das instituições não via tal
onda com bons olhos. Eu já havia tido
problemas na escola e agora ouvia
aquele comentário ofensivo. Senti-me
um tanto intimidado, pois, não era dado
a autoridades. Elas sempre me metiam
medo, dando a impressão de que
existiam para punir e, na minha
modéstia natural, não gostava de
chamar a atenção. Preferia ficar no meu
canto, sem aparecer. Isso me
entristecia, pois, já entendera que essa
modéstia excessiva, às vezes, atrofiava
meu progresso.
À noite, enquanto todos se
preparavam para o fogo de conselho, o
chefe convidou os que já estavam
prontos para participar de alguns jogos.
Avisou que valeria pontos. Como eu já
me aprontara me reuni aos
participantes, não imaginando que
chamaria tanto a atenção. Todos os
jogos envolviam rastejamento e o uso
dos sentidos, o que para mim era
natural, criado nas selvas como fora.
Quando terminaram os jogos eu havia
somado uma quantidade espantosa de
pontos, o que me levou a ganhar uma
chacota elogiosa do chefe:
― “É... as aparências enganam, hem?
Quando vi esse guri hoje pensei que
fosse mais um pó-de-arroz que iria dar
trabalho no acampamento. Mas nunca vi
um novato tão esperto!” Isso não
diminuiu a minha cisma pelas
autoridades.
Durante o fogo de conselho, mais uma
vez apareci sem querer. Ocorre que
havia participado em teatro na escola e
me dera mais ou menos bem; gostava
muito de representar. Como meu
monitor e eu havíamos ensaiado muito
bem algumas esquetes, quando foram
apresentadas o sucesso foi geral. Todos
se contorciam de tanto rir das nossas
apresentações. O chefe usava o lenço de
pescoço tentando enxugar o rosto
banhado de lágrimas, enquanto a banha
balançava gostosamente. Isso,
naturalmente, me valeu mais alguns
pontos.
No fim do fogo de conselho o chefe
anunciou que naquela noite haveria
"ladrão" no acampamento. Esse é um
jogo em que um escoteiro é designado
como ladrão e tenta roubar as barracas
durante a noite. Os que tiverem
pertences roubados perdem pontos e o
ladrão ganha. Quem conseguir pegar o
ladrão ganha uma boa soma de pontos.
O ladrão designado naquela noite era
um pioneiro bem experiente e bom
rastejador, conseguindo roubar todas as
barracas, menos a minha, pois sempre
que ele se aproximava, minha cabeça se
erguia. Mas eu queria mais do que evitar
ser roubado; queria pegar o ladrão. Meu
sentimento ainda estava ferido e agora
estava decidido a provar que as
aparências enganam, de fato. De forma
que arrumei minha cama como se lá
estivesse e deslizei por baixo do pano
da barraca, me ocultando nas macegas
numa posição estratégica.
Após alguns minutos de silêncio
profundo, quebrado apenas pelo
crepitar do fogo que os vigias
mantinham aceso, senti a aproximação
do ladrão. Prendi a respiração quando
ele passou bem perto de mim,
deslizando como uma serpente. Quando
enfiou o braço para dentro da minha
barraca, falei ao seu lado:
― É melhor não mexer nessa barraca.
Ele virou a cabeça rapidamente e
sentou-se com destreza me estendendo
a mão esquerda, num cumprimento
escoteiro.
Após a inspeção daquela manhã o
chefe anunciou a contagem dos pontos.
Os meus ultrapassaram o que era de se
esperar que um escoteiro somasse
durante todo o acampamento. Senti
vontade de sumir quando todo o grupo
irrompeu em fortes aplausos. Mas a
lição ficou marcada para sempre em
minha vida: ser modesto e humilde, sim;
mas nunca permitir que essas
qualidades coíbam os valores.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
RESPEITO SIM, MEDO NUNCA
Naquele mesmo acampamento, naquela
mesma manhã, foi lembrada a atividade
incomum daquele dia. O grupo iria para a
cidade, visto que o time de futebol dos
escoteiros deveria disputar a semifinal
do campeonato municipal naquela
manhã. Ficaria no acampamento apenas
uma patrulha de serviço, da qual,
naturalmente eu não fazia parte. Pedi ao
meu monitor para ficar, visto que ele
também ficaria. Ele, por sua vez, pediu
ao chefe do grupo e a permissão foi
concedida.
Não gostei, porém, do que fiquei
sabendo logo a seguir. Deveríamos
receber logo mais a pessoa do
comissário distrital, que faria uma visita
ao acampamento. Era uma grande
autoridade e parece que não haveria
modo de não nos cruzarmos de alguma
forma. Quando eu preparava alguns
cabides para o uniforme, ele chegou.
Vestido à vontade como estava, apenas
de short, fiz questão de continuar o meu
trabalho a um lado da barraca. Meu
monitor e outros graduados receberam
o comissário e passaram a mostrar-lhe o
acampamento. De ouvidos afinados ouvi
quando a autoridade se referiu a mim.
Meu monitor me chamou e eu corri a me
apresentar, naturalmente com o corpo
saltando por dentro.
Outra vez tive de suportar a mesma
referência à minha aparência delicada e
aos cabelos longos. Fiquei aliviado
quando todos se reuniram e o
comissário expressou o desejo de fazer
uma jornada até a barranca do rio
Paraná que, pelos seus cálculos, ficava
bem próximo. Preferia ficar de vigia no
acampamento a ter de partilhar a
companhia daquela autoridade, mas a
minha sede de aventura me deixou feliz
quando o chefe escalado para chefiar a
patrulha me escalou para ir junto. Visto
que se tratava de atividade extraoficial
fui da maneira como estava vestido,
assim como os outros, embora o
comissário envergasse um impecável
uniforme.
Após uns vinte minutos de caminhada
demos num pantanal sem saída,
mesclado de grandes árvores e capim
navalha em abundância. Cipós
entrelaçados e espinheiros de toda
espécie impediam a penetração. O guia
da patrulha era um jovem robusto,
escoteiro sênior, bem experimentado e
decidido. Logo ele avançou contra a
inóspita floresta, abrindo caminho a
facão. Eu o segui logo atrás, não
imaginando que dali nasceria uma
grande e duradoura amizade, e
imaginando menos ainda o que
enfrentaríamos juntos.
Entre picadas de insetos, cortes de
capim navalha, arranhões de galhos e
espinhos, e os pés dilacerados sabe-se
lá pelo que, lutamos por duas horas
contra aquele fim de mundo. A altura da
água variava dos meus joelhos até o
peito, mas era impossível nadar. Quando
a água foi diminuindo e surgiu um
gramado seco fomos simplesmente nos
jogando ao chão. O sangue marcava
todas as faces e a parte superior do
corpo onde a água não lavou. O inchaço
nos rostos já aparecia, resultado de
tantas picadas. Diante dessa cena
comovente tive de conter a custo a
gargalhada quando divisei o comissário
saindo da floresta. O pobre coitado mais
parecia um pão amanhecido que fora
jogado na lama. Todo inchado e
arranhado, as meias caídas, a camisa
toda suja pra fora da calça. O chapéu,
pouco antes impecável, já não tinha
forma. A aba mais parecia um tobogã.
Muito firme, porém, o comissário
lembrou que o objetivo era chegar ao rio
Paraná e, não acabara de falar e o guia já
estava de pé. Segui-o novamente e não
tardamos a alcançar o volumoso rio.
Alguns ainda se vingaram, tendo
coragem para dar um mergulho e
deslizar um pouco rio abaixo numa
câmara de ar de pneu de caminhão que
alguém havia levado.
Logo partimos e a decisão foi
contornar o pântano, o que parecia mais
rápido e suave. Agora corríamos alegres
pelas trilhas de animais, quando o
comissário deu com o pé num toco e
rolou violentamente pelo chão. A julgar
pela rapidez que inchou e escureceu,
devia ter quebrado algum osso. O pobre
homem andava mancando com grande
dificuldade, variando entre caretas e
gemidos. Foi aí que chegamos ao que
parecia ser uma estrada de água
serpenteando entre as árvores, agora
mais escassas. Decidimos atravessar
por ali. Então, tive uma ideia. Amarrei
uma corda naquela câmara de ar e
ofereci ao comissário deitar-se nela
para que eu o puxasse através da água.
Ele relutou um pouco no seu orgulho,
mas foi vencido pela dor e cansaço.
Quando a profundidade aumentava, eu
mordia a corda e nadava.
Quando conseguimos chegar ao
acampamento um toque de corneta
reuniu as patrulhas que nos procuravam.
Fomos cuidados e alimentados, mas não
sem muita zombaria dos amigos.
Descansava ao lado do comissário
quando ele me agradeceu. Ele já não me
era uma temível autoridade, mas um
amigo de jornada, dono da mesma
fragilidade de qualquer ser humano.
Hoje já não sinto as dores daquela
jornada, mas ainda sinto a força do que
aprendi com ela: respeito sim, medo
nunca.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
É A EXPRESSÃO
QUE DOMINA
A REAÇÃO
Para quem sempre gostou de prestar
atenção para aprender dos outros,
aquela palestra foi deveras instrutiva.
Aquele orador tinha mesmo a habilidade
de penetrar na mente e fazer raciocinar.
Viera da matriz à nossa filial justamente
para algumas palestras e treinamento
do quadro de vendedores. Fiquei muito
interessado em aprender com ele, pois
sempre me esforcei em fazer com que
qualquer pessoa com quem fale,
entenda com clareza o que desejo
transmitir, quer seja um conselho, uma
sugestão ou uma venda. De forma que
me senti muito feliz ao saber que iria
trabalhar com ele no dia seguinte,
conversando com as pessoas em suas
casas naquela redondeza.
No dia seguinte lá estava eu, entre
nervoso e curioso, na reunião matinal.
Após alguns lembretes nos dirigimos ao
trabalho, e logo se dissipou aquele
receio da autoridade quando notamos o
supervisor brincando com os cachorros
nas casas. Ele tinha uma tremenda
habilidade de "conversar" com eles e
parecia que os animais realmente o
entendiam, até parecendo responder-
lhe.
Depois de algumas demonstrações
perguntei-lhe sobre o que achava ser
mais importante na arte da
conversação. Ele me explicou que há um
conjunto de fatores muito importantes,
porém, no seu entendimento, um fator
que se destaca é a expressão facial
correta acompanhada de gestos
condizentes. Podemos até empolgar
uma assistência com palavras bonitas e
bem colocadas, mas a sinceridade do
que transmitimos é expressa pela nossa
face e nossos gestos.
― Imagine ― continuou ele ―
como não seria convincente, numa noite
enluarada, um gorila nervoso, de cara
fechada, batendo um punho cerrado na
outra mão aberta e dizendo para sua
amada: "eu te amo, meu amor, eu te
amo". Da mesma forma, é fácil notar a
falsidade na demagogia de tantos
políticos, porque não conseguem
demonstrar sinceridade nas suas
promessas absurdas. Até em líderes
religiosos é fácil notar a apenas
aparente santimônia ao expressarem
crenças que eles mesmos não têm.
Ouvi tudo muito atento (e
naturalmente, às vezes, rindo), mas o
supervisor parece que não se convenceu
de que havia me convencido. De modo
que me pediu para prestar atenção.
Ao nos aproximarmos da próxima
porta, um cachorro correu para as
grades com cara de bravo e já
começando a rosnar. O supervisor
começou a falar com ele num tom
amigável, com voz macia, expressão
facial dócil, olhar lânguido e gestos
suaves. Interessante, porém, eram as
palavras:
―Sai seu cachorro nojento, seu
fedorento, feioso. Sai seu sarnento...
E continuou nessa ofensiva toda até
que o cachorro lambeu seus dedos por
entre as grades, balançando o rabo
tranquilamente.
Precisamos tocar a campainha, pois o
vigia não dera sinal de vida. Quando sua
dona nos atendeu não foi difícil notar
seu espanto pelo silêncio do cachorro,
pois ela disse, parecendo que consigo
mesma: ''ué... nem ouvi o cachorro latir".
Ao sairmos daquela casa o supervisor
me pediu para ter paciência até
encontrarmos outro cachorro, o que não
tardou a acontecer. A primeira parte da
cena se repetiu, mas o tom agora era
outro. Áspero, com voz dura, expressão
facial fechada, olhar acusador e gestos
bruscos. Novamente, o contraste eram
as palavras:
―Venha cá seu cachorrinho
bonitinho, valente, cheiroso. Venha cá,
amigão...
E tanto mais ele usava adjetivos, mais
o cachorro latia e pulava. E, ao destacar
as qualidades mais desejáveis, ele batia
o pé no chão, e o cachorro mais pulava e
latia. Naturalmente nem foi necessário
tocar a campainha e logo a dona da casa
apareceu, tentando acalmar o seu feroz
vigia. Depois de falarmos com ela
descemos pela rua até uma pracinha
próxima, local de encontro com os
demais. Eu estava admirado com a
veracidade da ilustração. Naturalmente,
não era necessário me dizer nada, mas o
supervisor me olhou com um olhar
convencido e perguntou:
― E então, viu como é a expressão
que domina a reação?
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
É MELHOR APRENDER
POR OBSERVAR DO QUE POR SENTIR
Lições fazem parte da nossa vida, do
dia a dia, de toda hora. Basta
prestarmos atenção às coisas que
acontecem à nossa volta. Mas eu tive de
aprender isso por sentir na pele. Uma
das lembranças mais antigas da minha
infância ainda faz doer. Depois desse
aprendizado percebi que é melhor
aprender por observar do que por sentir.
Aconteceu por volta dos quatro anos
de idade, ainda vivendo numa região
selvagem e primitiva. Meu pai sempre
me perturbava pelo fato de já ter essa
idade e ainda não saber nadar. Aliás,
todos sempre me perturbavam por
alguma moleza ― como eles
chamavam ― como não gostar de
caçar ou andar sozinho na mata. Todos
os dias quando nos banhávamos no
grande rio, me esforçava para aprender
a nadar, mas sem grandes resultados.
Certo dia, quando já íamos embora, vi
um dos meus primos chegar correndo,
saltar no rio e nadar com grande leveza.
Pareceu-me, naquela hora, que nunca
prestara muita atenção a como se faz
para nadar. Agora, de repente, pareceu-
me muito fácil e eu fiquei muito feliz, já
imaginando a volta ao rio no dia seguinte
para demonstrar minha descoberta.
Cheguei à casa todo eufórico e logo
contei a novidade ao meu pai, mas tão
animado estava que afirmei já saber
nadar. Ele pareceu não se empolgar,
apenas comentando que já estava na
hora.
Alguns costumes são interessantes na
cultura do meu povo. Algumas coisas
que normalmente são consideradas
sérios erros podem até ser aceitáveis, e
outras, de aparente menor importância,
nunca são admitidas. Uma destas é a
mentira. Ela é simplesmente inaceitável,
inadmissível, imperdoável. A ideia é que
não existe razão para mentir e que, atrás
da mentira existe o engano, a traição, a
destruição.
Naquela tardinha meu pai convidou-
me para a pescaria, o que estranhei
muito, pois, ele nunca me levava naquele
horário, dado o perigo devido aos
jacarés e grandes cobras. Certificou-se,
porém, que meu irmão fosse junto. O sol
desmaiava numa tarde amarela e
realçava a beleza do lugar, criando
sombras na baixada e dando aos montes
uma agradável palidez. Quando
entramos na canoa a noitinha já
ameaçava chegar.
Desde aquele tempo, ainda tão
criança, abrigo o mesmo sentimento
com respeito a essa hora do dia. O
crepúsculo vespertino não me é muito
agradável; deprime, entristece. E
naquela tarde, de um modo especial,
pois eu sentia que alguma coisa não
estava bem naquele "passeio" e meu
irmão parecia sentir a mesma coisa,
pois, ninguém dissera ainda uma só
palavra.
A canoa deslizou suave cortando a
corrente até um grande remanso onde o
rio se alargava ainda mais, reduto de
grandes jacarés que descansavam nas
ilhas flutuantes de taboa. De repente,
senti as mãos fortes do meu pai
erguendo-me pelos braços e, com toda
sua força, atirando-me longe nas águas
escuras. O susto foi tão grande que não
consegui pensar, nem me lembrar de
nada, nem mesmo que "aprendera" a
nadar mais cedo naquele dia com o meu
primo. Eu apenas me debatia de modo
frenético, afundando e voltando à
superfície em grande desespero. Cada
vez que vinha à tona via a imagem calma
da canoa flutuando com meu pai
tranquilamente fazendo o seu trabalho e
o meu irmão imóvel, assistindo meu
martírio. Quando ele percebeu que eu
não suportava mais, atirou-se na água e
levou-me para a canoa. Quando subiu,
olhou apreensivo para o pai que, por sua
vez, fitou-o com um olhar duro e
corretivo, mas apenas dizendo:
― Por que você o tirou? Ele disse
que já sabia nadar...
Deitado no fundo da canoa eu sentia o
mundo inteiro balançar. Não sabia se
morria a tarde ou se era eu. Apenas
sentia que qualquer raio de luz que
restasse, sumia rapidamente. Não sabia
se doía mais o meu tão lavado canal
respiratório, se o meu peito perdido em
tanta tosse, ou se era o meu orgulho
ferido. Meu pai nunca mais tocou no
assunto. Não era necessário, eu havia
aprendido a lição. Ao abrir a boca, nunca,
nem sequer dar a ideia de mentira. Mas
eu aprendera mais, muito mais do que
isso.
É melhor aprender por observar do que
por sentir.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
OLHANDO O LAGO
Não é nada fácil viver quando a
maioria das coisas à nossa volta parece
estar trabalhando contra o nosso
propósito. Para mim, uma das maiores
dificuldades enfrentadas é quando dou
meu melhor a favor das pessoas e sou
mal interpretado. E aquela fase estava
difícil, parecia que não ia passar. Eu
procurava entender. Sabia que as
pessoas estavam tremendamente
estressadas, numa vida difícil, naquele
país estrangeiro. Mas, às vezes, os
agravos acabavam me afetando.
Naquela manhã de inverno eu estava
especialmente triste. Fora dormir na
noite anterior com a cabeça
transbordando de problemas e acordara
com os mesmos pensamentos. Agora eu
estacionava o carro no Parque Sul e
descia para caminhar um pouco,
enquanto meditava nas dificuldades.
"Por que as pessoas precisam ser tão
ingratas como são hoje em dia? Por que
ferem justamente a quem lhes estende
a mão ou os pacíficos que nada lhes
fazem de mal? Ah...! É muito difícil
manter a paz e serenidade tão
necessárias".
Neste ponto dos pensamentos
cheguei à beira do lago e parei,
admirando sua beleza. Quanta paz e
serenidade tomavam conta do lago!
Quisera ser como ele... Tamanha a sua
placidez que transportava o céu para o
chão numa pintura que, certamente,
nenhum artista jamais conseguiu
retratar tão perfeitamente. Azul...
calmo... sereno...
De repente, um forte vento gelado me
fez estremecer e uma enorme
quantidade de folhas secas que
restaram do trabalho do outono
precipitaram-se para dentro do lago,
cobrindo-o por inteiro, maculando sua
beleza. Isso me irritou e eu saí andando
novamente, remoendo a ideia de que
nem o lago fica livre da podridão alheia.
Sim, as folhas secas, podres, que já não
servem para as árvores, estas as
descartam para dentro do lago.
Caminhei por uma trilha no parque,
tiritando, pois, fazia muito frio, mas
tentando me refazer com aquela
sensação de liberdade que só a natureza
pode dar. Logo depois de uma curva
cheguei a um ponto em que o lago
aparecia novamente, e... que surpresa! O
vento se transformara numa brisa
mansa, quase imperceptível, e todo
aquele monturo de folhas estava bem
amontoado a um canto, como que
ordenadamente arrumado para algum
tipo de uso. E o lago voltara àquela
calma e serenidade contagiantes de
alguns minutos atrás.
Quedei-me imóvel por algum tempo,
como que sugando tudo aquilo que o
lago podia me transmitir. Foi quando o
furioso grasnar de uma centena de
patos tomou conta do ar. Parece que,
assustado com alguma coisa, o bando
saiu de entre as árvores e voou para o
lago. Eu quase pude sentir aquelas
tantas garras rasgando a superfície do
lago numa tamanha ingratidão. E outra
vez foi maculada aquela tão grande
beleza. E outra vez voltei a caminhar, um
tanto mais calmo agora. Parece que a
caminhada me fizera bem. Agora
pensava em como aqueles patos podiam
gostar tanto do inverno. Eram aves
migratórias, só vistas ali naquela época
do ano. É... parece que o que incomoda
uns, é o motivo da paz de outros.
Bem, era hora de ir embora e,
contornando o lago, voltei ao
estacionamento. Mas não sem admirar
mais uma vez aquela maravilha. E mais
uma vez fiquei surpreso ao ver o lago
tranquilo e sereno. Os patos apenas
flutuavam a um canto, à sombra de
grandes árvores. Alguns mergulhavam
de vez em quando, buscando algum
petisco. Isso aumentava a beleza da
superfície das águas, formando
pequenas ondas.
A serenidade do lago era outra vez
contagiante. Parecia adormecido,
descansando num berço de sonhos,
alheio aos males do mundo. Nem sequer
parecia sentir a intempérie e os ataques
que lhe eram desferidos como parte do
pagamento pela beleza e calma que ele
tão bondosamente espalhava à sua
volta.
Sorri tranquilo e satisfeito, sabendo
que encontrara a paz e serenidade que
precisava para enfrentar o dia a dia.
Voltaria ali muitas vezes, não sei se
apenas para relaxar ou, quem sabe, para
aprender um pouco mais, olhando o lago.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
OS ESPINHOS
SÃO NECESSÁRIOS
Eu estava numa daquelas fases
difíceis quando todo vento sopra
contrário e a tempestade parece não
acabar nunca. Naquela noite acho que
pensei um pouco alto, deixando escapar
uma aparente reclamação e minha
esposa me contestou:
― Não é você que sempre diz que os
espinhos são necessários?
― Sim. ― Concordei. ― Mas, às
vezes, eles arranham tanto, e tanto
sentimos que nos esquecemos da
beleza da rosa.
E pela primeira vez ela teve a
curiosidade de me perguntar de onde eu
havia tirado essa ideia, de sempre
ilustrar, de modo otimista, com os
espinhos da roseira. E eu contei:
“A cena ainda era viva na minha mente.
Meu pai estava sentado num banco
tosco, com o olhar vagando pelo vale
verdejante do início da primavera,
parecendo um quadro emoldurado pelos
batentes da pequena janela. Minha mãe,
ali perto, bordava uns panos de prato.
Ele reclamava das dificuldades pelas
quais estava passando, aparentemente
muito grandes, dado o seu tom de voz
carregado de preocupação, quase
melancolia. Minha mãe tentava ser
otimista e o animava com a ideia de que
na vida nem tudo são flores, às vezes os
espinhos machucam.
“Eu estava do lado de fora brincando
com minha faca, instrumento com o qual
sempre me dei muito bem, desde a
infância. A roseira estava vistosa
naquela época, carregada de botões
prestes a desabrochar. Não me lembro
do que fui fazer por ali, mas acabei com
o braço arranhado profundamente por
um espinho bem afiado. Olhando o
sangue minando no braço cerrei os
dentes furioso, pois não gostava de ser
ferido. Empunhei a faca de modo mais
firme e, num golpe, decepei um espinho.
Aí descobri algo muito interessante
para uma criança. Bati a faca em outro
espinho e confirmei o fato. Era gostoso
golpear o espinho e senti-lo saltar
secamente da haste. E assim foi: top,
top, top, desde o botão até próximo do
chão.
“Quando já estava terminando o
"serviço", minha mãe desconfiou de
alguma coisa errada e chegou à porta.
Ainda posso ver sua testa franzida e os
olhos arregalados, me dizendo:
“― Mas o que é que você está
fazendo?! Está matando a roseira?
“Diante da ideia de matar fiquei logo
assustado. Não tinha a menor intenção
de matar a planta, de forma que logo me
defendi:
“― Não estou matando, só tirando os
espinhos. ― E apontando para o braço
sangrando: ― Olha o que ele me fez.
“Aí veio a explicação:
“― O espinho não lhe arranhou. Você
se arranhou nele. Além disso, os
espinhos são necessários para a vida da
roseira. Sem eles ela não sobrevive e
nem dá uma linda rosa. Essa haste vai
morrer. Não corte mais os espinhos,
está bem? Apenas tenha consciência
que eles existem e podem arranhar, mas
são necessários. E voltou a sentar-se
para continuar o seu bordado, enquanto
completava o raciocínio com meu pai:
“― Assim como ele, será que você
não está se arranhando nos espinhos?
Não será o caso de aprender a lidar com
eles?
“Eu continuava lá fora, um tanto
envergonhado e pensativo, preocupado
com o que fizera. Depois disso, via todos
os dias aquela haste murchando até que
se secou por completo.”
Minha esposa ouviu atentamente e
achou a história muito interessante,
logo me perguntando:
― Agora você está sendo arranhado
por espinhos ou está se arranhando
neles?
Olhei para ela de modo profundo e
respondi:
― Olha, no momento não tenho
certeza, mas sabe de uma coisa? Nossa
vida é uma linda roseira. Vamos
aprender a lidar com os espinhos e fazer
com que se revertam em proteção.
Fui dormir mais tranquilo naquela
noite. Nos dias à frente parece que a
tempestade começou a se acalmar e os
ventos contrários já não sopravam tão
fortes.
Assim como no passado eu ia todos os
dias ver aquela haste que secava, passei
a procurar todos os dias olhar para uma
roseira e me embevecer com a beleza da
rosa, mas também olhar para os
espinhos e me lembrar de que eles
também são necessários.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
O ÚLTIMO CATETO
Acredito ter de agradecer muito pelo
fato que sempre que precisei, tive um
incentivo no momento certo. Aquela
fase de desânimo estava um pouco
difícil de me deixar. Sempre me
destacara entre os primeiros alunos da
escola, praticamente em todas as
matérias. Mas agora nada me parecia
valer a pena o esforço. Nas aulas de
educação física sempre fora ajudado
pelo meu corpo elástico, mas agora, nem
na natação, que era o que eu mais
gostava, estava me saindo bem.
Aquele sempre amigo professor de
português não tardou a notar minha
visível indiferença e sentou-se comigo
num dos intervalos das aulas para
considerar o assunto. Visto que ele
mencionou o fato de eu ser um dos
primeiros, expliquei-lhe que não estava
nem um pouco preocupado de ficar para
trás. Ele aceitou o meu argumento, mas
raciocinou comigo:
― Não estou lhe dizendo que tem de
ser o primeiro, mas ficar para trás pode
ser perigoso. Imagine um grupo numa
tempestade de areia no deserto e sinta
o perigo maior que corre o último da fila,
quase desgarrado dos outros. Ou um
grupo perdido numa nevasca e você
separado dos demais, alguns metros
atrás. Sem dúvida, ao passo que não
precisamos ser exatamente o primeiro,
ficar para trás pode ser perigoso.
Prometi me esforçar mais, agradeci
pela grande preocupação, mas não
consegui cobrar ânimo. Estava
esperançoso com respeito a alguns dias
de folga que teríamos pela frente, visto
que marcáramos um acampamento do
jeito que eu mais gostava: informal e em
apenas três pessoas. Seria
acompanhado apenas pelo Perigoso e
mais um amigo bem experiente na vida
mateira. Iríamos numa picape até onde
fosse possível na selva, até as margens
do rio Sucuriú, e dali subiríamos o rio
num barco de alumínio de nove metros,
equipado com um motor de 20 cv.
Não tardou a chegar o dia e logo me vi
subindo o rio, respirando aquela brisa
que parecia me renovar a vida. Aquela
região era selvagem e praticamente
intacta, um verdadeiro paraíso natural.
Bandos de araras de todas as cores
coloriam o ar em grande alarido. Na
verdade, aves de incontáveis espécies
criavam a sinfonia que eu mais gostava
de ouvir. Enormes jacarés descansavam
ao sol, dividindo as margens do rio com
grande variedade de outros animais.
Acampamos numa clareira à beira do
rio, quando a tarde já vinha caindo,
trazendo aquela paz que só a natureza
pode dar. Nenhum animal serviria de
caça para o Perigoso naquele
acampamento a não ser um cateto. Ele
estava decidido a saborear um assado
no dia seguinte. Normalmente eu
sempre ficava preparando o
acampamento, mas naquela tarde, por
algum motivo, eu o acompanhei. Embora
fosse muito experiente na vida mateira,
eu não era bom nas estratégias de caça
com armas de fogo, visto que as
detestava. Mas isso não era problema
para o meu amigo. Logo, ele detectou
uma trilha do esperado animal.
Acomodamo-nos debaixo de grande
árvore, aguardando a chegada do bando.
Não demorou muito e meus ouvidos
afiados captaram o ruído crescente das
batidas atemorizantes das fortes
mandíbulas. Tratamos de subir na árvore
e nos camuflamos bem.
O bando aproximou-se e o Perigoso
esperou pacientemente que todos
fossem passando bem embaixo da sua
inseparável espingarda. Quando todos
passaram, ele mirou no último do bando
e o abateu com apenas um tiro. Os
demais deram um pulinho para frente e
continuaram na sua caminhada trilha
afora. Logo, o Perigoso, com ares de
orgulho, explicava:
― Essa é a única maneira de caçar
um cateto com segurança. Ocorre que
eles não têm vértebras no pescoço, de
forma que não olham para os lados nem
para trás. Assim, atirando no último, os
demais continuam caminhando sem
atacar.
Não era preciso muita explicação, eu já
mergulhara numa profunda reflexão. Ao
descermos da árvore e preparar o
transporte da opulenta caça, eu
rememorava as palavras do bom
professor.
Foram três dias de grande gozo e
alegria naquele magnífico santuário da
vida silvestre. Mas para vencer a minha
fase de desânimo, bastou o primeiro
acontecimento marcante. O último
cateto me impressionara. Realmente,
ficar para trás pode ser perigoso.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
NUNCA CRITIQUE O QUE NÃO CONHECE
Mais uma vez eu ficara chateado com
minha filha. Garota esperta, inteligente,
cheia de boas qualidades nos seus dez
anos de vida, porém, aquele problema
estava difícil de ser resolvido. Às vezes
criticava sem razão algo que não
conhecia bem. E mais uma vez chamei
atenção para o fato, explicando que
agimos de modo desarrazoado quando
falamos sobre um assunto sem
conhecê-lo, especialmente quando o
fazemos de modo negativo. No entanto,
não falei muito como de outras vezes.
Sabia que precisava algo mais profundo
do que apenas explicações para marcar
sua mente e tocar seu coração,
ensinando de uma vez por todas, uma
simples, mas grande lição.
Logo depois daquela conversa saímos
de casa. Era uma manhã de outono e a
cerração estava densa. Era difícil
enxergar dois metros à frente. Quando
entramos no carro que estava na rua não
era possível ver nada pelo para-brisa.
Logo ela pegou uma flanela no porta-
luvas e começou a limpar o vidro por
dentro. Expliquei-lhe que não adiantava;
o embaçamento era devido ao acúmulo
de neblina pelo lado de fora. O limpador
de para-brisa resolveria o problema.
Enquanto ligava o carro alguma coisa
me veio à mente. Olhei para a menina
que ainda passava a flanela no vidro e
uma cena da infância me reportou ao
passado. Perguntei por que ela ainda
limpava o vidro. Ela respondeu que o
vidro estava suado por dentro também.
Perguntei por que isso acontecia. No seu
entendimento ainda limitado ela
explicou que era devido ao calor no
interior do veículo que o vidro suava.
Concordei e aproveitei a oportunidade
que tanto esperava.
― Imagine ― propus ― se uma
pessoa que não soubesse disso a visse
limpando o vidro por dentro e a
criticasse por querer limpá-lo por fora,
mas passando o pano por dentro só pelo
fato de o vidro ser transparente, não
seria essa pessoa desarrazoada e
estúpida?
Ela respondeu com um sorriso
desdenhoso:
― Ah, mas todo mundo sabe disso.
Então lhe expliquei que não é verdade
e contei-lhe a história:
“Lá naquela fazenda em que
morávamos quando eu era criança, o
motorista do fazendeiro chamava a
atenção pela sua perícia ao volante. A
colônia de lavradores ficava à beira de
uma linda represa, na parte mais baixa, e
a sede da fazenda ficava na colina, a
certa distância. Sempre que o
fazendeiro vinha à fazenda, creio que
nos finais de semana, as pessoas
simples daquele tempo ficavam a
admirar as manobras daquele carrão. O
motorista era um negro de bom porte, e
muitas vezes ouvi adultos comentarem,
no seu típico linguajar interiorano:
― Êh, Negão!... Esse Negão parece o
capeta!
Mas a cena que marcou a minha mente
infantil foi a que ocorreu num certo dia
de chuva. Como sempre, o motorista
manobrou o carro com agilidade e o
deixou na direção de saída. Enquanto
aguardava os patrões passava um pano
no lado de dentro do para-brisa. Foi aí
que alguém, naturalmente na sua grande
simplicidade e falta de conhecimento,
observou, como que pensando alto:
― É, Negão, você pode ser muito
bom motorista, mas é meio burrinho.
Será que você pensa que vai enxugar
esse vidro limpando por dentro?
Os outros riram e fizeram seus
comentários em tom zombeteiro,
concordando com o observador. Eu fixei
os olhos naquela cena como que
tentando gravá-la na mente, sem sequer
imaginar que aprenderia com ela.
Muitos anos depois, já me
acostumando com os carros na cidade,
vi alguém limpando o para-brisa por
dentro e recordei o fato passado. Notei
que realmente o vidro fica úmido por
dentro e, consequentemente,
embaçado. Lembrei-me daquela crítica
e notei que fora totalmente infundada. E
como sempre, nas minhas reflexões,
concluí que não há sabedoria na crítica
do desconhecido.”
A menina ouviu a história toda em
silêncio. Eu também não acrescentei
mais nada. Acreditava não ser
necessário. De fato, daquele ponto em
diante foi sensível a sua melhora. A
história provara a estupidez de criticar o
que não se conhece.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
O PEDREIRO
CONSTRÓI
O CASAMENTO
Houve certa época na minha vida que eu
mais parecia um conselheiro
matrimonial, tantos eram os casais mais
jovens com problemas à minha volta.
Mas certo casal tinha algo de especial,
estranho. Casados há pouco, diziam se
amar demais, tinham objetivos comuns
e, apesar de tudo, a palavra "separação"
já era constante na sua vida.
Já gastara muito tempo com eles na
tentativa de encontrar as causas dos
seus problemas que, na verdade, nem
sequer existiam. A complicação era que
suas ações do dia a dia os afastavam um
do outro, em vez de unirem. Ora um não
suportava o fato de ter sido ofendido
sem um pedido de desculpas, ora o
outro calado por dois dias inteiros,
ofendido sabe-se lá pelo quê.
Agora parece que haviam mesmo
chegado à ruptura e queriam conversar
comigo mais uma vez. Marcamos um
horário numa tardinha de domingo na
minha casa. Quando eles chegaram
ainda estava lá um amigo meu,
construtor, que era um ministro
religioso muito experiente, acostumado
a lidar com problemas alheios. Logo, ele
quis sair discretamente, se despedindo,
mas o casal que conhecia o bom
conceito de que ele gozava na
comunidade local, pediu para que ele
ficasse e também participasse da
conversa. Ele concordou e voltou a se
ajeitar na poltrona.
Enquanto tomávamos um chá,
perguntei àquele meu amigo se
acreditava que aquele casal tão bonito e
sorridente estava para se separar. Ele
ficou surpreso e comentou que os dois
mais pareciam a própria estampa da
felicidade. Comentei o que ocorria com
eles, o que foi suficiente para iniciar a
conversa.
De modo animado, mas com uma clara
tristeza no tom da voz, explicaram que
não conseguiam mais ver outra saída. E
outra vez desfiaram um longo cordão de
desacertos e desacordos. Durante longo
tempo explicaram, ora um, ora o outro,
como pequenas coisas do cotidiano os
irritavam e afastavam cada vez mais um
do outro.
E mais uma vez eu me pus a recapitular
com eles tanta coisa que já havíamos
considerado, tentando encontrar o que
não fora aplicado e o que poderia ser de
ajuda. Quando, no fim da conversa eles
agradeceram pelo meu esforço em
ajudar e já faziam menção de ir embora,
o meu amigo, até então calado, pediu
licença e explicou o seguinte:
― Olhem, para quem está de fora só
escutando como eu, é fácil ver onde está
a raiz do problema de vocês. É o mau uso
das pequenas ações do cotidiano. São
nossos pequenos atos, pequenos
gestos, simples expressões, que atraem
ou repelem as pessoas. Vejam bem,
vocês sabem que eu sou pedreiro. Há
anos que todos os dias junto pequenos
tijolos para construir grandes edifícios.
Sempre que vou começar uma nova obra
tem um monte de tijolos a um canto do
terreno vazio. Assim como as ações do
dia a dia, com esse mesmo monte de
tijolos eu posso construir uma casa que
abriga ou um muro que separa.
Todos os olhares estavam fixos no
proferidor de tão sábias palavras e
pareciam perguntar pela sequência.
Mas, por instantes, o silêncio foi total.
Ele havia falado tudo. Algum tempo
depois a moça quebrou o silêncio, num
tom de concordância:
― É...
E o rapaz completou:
― Acho que entendi o ponto.
E como já se esgotara o tempo livre
que tínhamos, as despedidas concluíram
a conversa daquela tarde. O jovem casal
agradeceu mais uma vez pela atenção e
hospitalidade. E apertando a mão do
pedreiro, expressaram gratidão pela
simples, mas contundente ilustração.
Acabaram por não definir exatamente o
que fariam.
Já não me lembro se as coisas
mudaram depressa ou se fui eu que,
como sempre, logo depois mudei-me
dali, mas nunca mais falei com aquele
casal sobre os seus problemas. Apenas
nos encontrávamos, de vez em quando,
em algum evento em comum. Tanto
tempo depois, recentemente nos
encontramos numa dessas ocasiões. E
como sempre, me cumprimentaram
sorridentes. Eles aprenderam a
construir uma casa que abriga.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
DO SIMPLES É QUE VEM O MAIOR PRAZER
Eu ainda não me acostumara com
aquela enorme fábrica no ABC paulista
onde fora parar. Era ainda um jovem
assustado com o poderio da grande
metalúrgica que, na década de 70,
estava em plena expansão. As pessoas
mais me pareciam dentes de uma
grande engrenagem que rodava sem
parar. Eu não queria me transformar
naquilo, de forma que não trabalhava
mais do que as horas normais dos cinco
dias da semana. Acreditava em valores
espirituais e queria aumentá-los na
minha vida. Queria acompanhar de perto
o desenvolvimento da pequena filha que
já tinha, bem como da de outras que
viesse a ter, provendo-lhes a melhor
educação parental possível.
Entendia que, na minha inexperiência,
eu precisava aprender para ensinar.
Incomodava-me um pouco, porém, o
conceito diferente de todos à minha
volta. Meus colegas de trabalho
moravam na fábrica e passeavam em
casa. Criticavam-me pela vida que
levava, gastando tempo com pessoas lá
fora, sem ganhar nada, enquanto deveria
estar, na opinião deles, ganhando mais
dinheiro para dar uma melhor condição
de vida para minha família.
Peguei-me várias vezes preocupado,
pensando se afinal eles não tinham
alguma razão. Eles eram, na maioria,
pessoas de vida difícil do interior assim
como eu. O conceito geral era: "eu nunca
tive nada, por isso vou dar tudo que
puder para meus filhos."
Mas era exatamente isso o que eu
queria para minha filha ― dar-lhe tudo
o que pudesse ―, mas num sentido
pleno. De que adiantaria dar-lhe tudo,
mas lhe negasse meu tempo, minha
companhia, minha amizade, meu amor?
Eu tinha certeza que não estava errado,
mas, às vezes, a pressão da maioria me
incomodava. Logo vieram, porém, as
ajudas para me tranquilizar. Bastou
prestar atenção.
Um dos meus colegas chegou ao
trabalho um tanto triste, certo dia. No
intervalo do almoço eu quis saber o que
estava acontecendo. Ele contou que
havia ocorrido um problema de queda
de energia elétrica na fábrica na noite
anterior, de modo que ele foi embora
mais cedo. O que o chateou foi que seu
filhinho de menos de dois anos de idade
o estranhou e ficou muito nervoso com a
presença do pai. Ele nunca antes vira o
pai em casa à noite, nem com o uniforme
da fábrica.
O que mais me ensinou, porém, foi o
ocorrido com aquele meu colega
maçariqueiro. Era um homem de meia
idade, firme, retratando bem o típico
interiorano meio seco, meio bruto. A era
da eletrônica havia chegado e lucrava
muito com ele. Comprava para o filhinho
de uns quatro anos de idade todo novo
lançamento que aparecia. Quando me
falava com orgulho da última novidade
adquirida, eu não podia deixar de pensar
um pouco. Minha filha, naturalmente,
tinha muitos brinquedos, porém, mais
simples. Gastávamos muito tempo
passeando nos parques, ou em boa
associação com amigos, quando ela se
deleitava em brincar com outras
crianças. Será que precisava mais do
que isso? A resposta não tardou.
O meu colega maçariqueiro estava
muito irritado naquela segunda-feira de
manhã e, quando veio cortar uma chapa
para mim, falou do motivo da sua
irritação. Já não sabia o que fazer para
colocar algumas coisas na cabeça do
seu filho. Conversamos mais no
intervalo do almoço e ele explicou
melhor. Sempre que comprava um
brinquedo novo para o garoto, só durava
um dia. No dia seguinte ele o encontrava
todo desmontado pela casa e o menino
brincando com caixas vazias de papelão.
No dia anterior ele o encontrara dentro
de uma grande caixa, com um pano preto
de guarda-chuva velho amarrado no
pescoço, cobrindo as costas.
Falamos muito sobre a criatividade
das crianças e sua capacidade de
imaginação. Um carrinho eletrônico do
último tipo será sempre um carrinho,
mas uma caixa de papelão vazia será um
carrinho agora, um navio daqui a pouco,
um avião amanhã e assim por diante.
Lembramos-nos de como brincávamos
felizes quando crianças, no interior, com
as coisas mais simples, mas sempre
cheios de grandes ideias.
Depois da conversa o colega ficou
mais calmo e conformado. Ao voltar ao
trabalho, eu lhe agradeci, sem que ele
entendesse por quê. Acabara de firmar
mais ainda a minha convicção de que as
coisas complexas nascem de grande
criatividade, mas a grande criatividade
nasce das coisas simples, assim como
os grandes prazeres da vida.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
LIÇÕES QUE A VIDA ENSINA
Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
DESEJO DOS OLHOS,
CANSAÇO DO CORPO
A situação econômica do país não
estava boa. Os juros andavam
novamente em alta e os crediários outra
vez em voga. A propaganda comercial
tomava conta de todo veículo de
comunicação, sempre com a mesma
tônica: usufrua desde já e pague em
muitos meses.
Certa noite admirávamos a beleza e
conforto de um novo carro num jornal
quando minha esposa arriscou a ideia de
que, à prestação, poderíamos comprá-
lo. Ela já esperava o rápido movimento
da minha cabeça, lançando sobre ela um
terrível olhar de desaprovação que,
embora sem nenhum som, gritava alto.
Ela conhecia bem meu conceito sobre
compras à prestação, mas nunca quisera
saber a fundo como eu o estabelecera.
Naquela oportunidade, com um sorriso
disfarçado, se desculpou, mas quis
saber por que eu era tão avesso a
crediário.
Minha ideia era que quando eu devia
alguma coisa a alguém me tornava
escravo de tal. Acreditava ser melhor a
economia para conseguir adquirir algo
que, no momento, eu não podia. Não
acreditava ser proprietário de alguma
coisa se esta não tivesse sido
completamente paga. Gostava de falar,
cheio de orgulho: "Não tenho tudo, mas
não devo nada". E agora, diante à
pergunta da minha esposa, contei-lhe
como estabelecera essa base em minha
vida.
“A época era de ascensão do crediário.
O comércio teimava em fazer com que
todos acreditassem na facilidade de
adquirir qualquer coisa que antes a
pessoa nunca pudera. A propaganda
mostrava a facilidade de trocar móveis,
carro e até casa. Uma grande loja
chegou ao extremo de promover a troca
de todos os móveis da casa numa
facilidade aparentemente incrível. O
pagamento? Ah, poderia ser em 24, 36 e
até em 60 meses, às vezes. O valor da
prestação mensal era muito pequeno.
Com um pouco mais de esforço a pessoa
poderia pagar. Foi nessa armadilha que
caiu certo amigo meu.
“O Chico trabalhava numa firma em
que nunca faltava serviço. De modo que,
se trabalhasse algumas horas a mais,
poderia renovar toda a sua casa. Foi à
loja com a esposa e logo notou que não
era tão fácil pagar as prestações se
comprasse os móveis que queria. Os que
apareciam nos comerciais,
naturalmente eram muito simples. Mas
agora, lá na loja, ante aquela maravilha
toda era difícil não comprar.
“O que ficou mais caro no orçamento
do meu amigo foi um magnífico jogo de
estofado, todo em couro, muito prezado
na época. A casa do Chico ficou
realmente nova, muito bonita e bem
montada. Mas depois do dia em que ele
me mostrou a reforma, não mais o vi por
vários meses à frente, embora passasse
pela sua casa em direção à minha.
Quando perguntava por ele à sua
esposa, ela dizia que ele estava
trabalhando muito, até tarde da noite e
na maioria dos domingos.
“Uns três meses depois de vê-lo pela
última vez passei por ali certo dia de
manhã e o vi, sentado na mureta da
varanda. Parei para conversar um pouco
e o notei um tanto desolado. Estava tão
cansado que não conseguira ir trabalhar
naquele dia. E nem mostrou um pouco
mais de ânimo com a minha chegada.
Apenas respondia as minhas perguntas
com poucas palavras. Só esticou um
pouco a conversa para reclamar do
cansaço e da tolice que cometera ao
assumir tão grande dívida. Quando
tentei animá-lo dizendo que afinal
alcançara um objetivo e tinha agora uma
casa renovada, ele levantou-se num
gesto desalentado, olhou-me nos olhos
pela primeira vez e reclamou:
“― Que objetivo eu alcancei? Não sou
dono de nada do que tenho. Aquilo que
possuo é que é dono de mim. É assim,
moço... o desejo dos olhos é o cansaço
do corpo. Se você quer saber, ainda não
me sentei naquela poltrona para
descansar. Ainda não tive tempo.
“Saí dali chateado por não conseguir
animar o meu amigo, mas com a certeza
de mais uma base estabelecida para
conduzir a minha vida.”
Ao terminar a narrativa, minha esposa
concordou:
― Realmente, é melhor não ter tudo,
mas não dever nada.
E brincou:
― A propósito, você está me
devendo aquela viagem às montanhas
do sul. Quando é que vai pagar?
Respondi que poderia programar para
o próximo feriado.
Quando ela indagou se seria mesmo
possível, respondi cheio de orgulho e
muito satisfeito:
― Claro, não devemos nada pra
ninguém.
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METAMORFOSE EM 21 DIAS
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Extraído do livro Lições que a vida ensina - autor: Wanderley da Silva
A QUEDA DE UM REINADO NÃO SIGNIFICA O FIM DE UM REI
Entre tantas mudanças na vida,
algumas parecem mais difíceis de
serem aceitas. Numa dessas enfrentei
grande dificuldade com uma das minhas
filhas. Passamos vários anos naquele
lugar que ela aprendeu a gostar. Foi ali
que passou boa parte do período
escolar, entrou na adolescência e
planejou seu futuro. Agora, bem no meio
de um curso, via seus planos serem
frustrados. Por mais que argumentasse
com ela sobre as vantagens e os novos
desafios da mudança, bem como a
necessidade, permanecia triste e
descontente. Certa noitinha, numa
dessas baterias de argumentação,
lembrei a ela que pior foi para mim... E aí
me calei por instantes, sentindo todo
um passado passar pela mente como um
raio em apenas alguns segundos. Ela
nem perguntou o que, tão
desinteressada estava, mas depois que
lhe contei a história passou a se
esforçar mais em aceitar melhor a
mudança.
Quando eu tinha a mesma idade que
ela tinha na época, tive que aceitar a
destruição literal do meu mundo. Por
vários anos morei naquele lugar ímpar,
diferente de qualquer outro que
pudesse haver no mundo. Era uma
pequena vila, acampamento dos
construtores da usina hidrelétrica de
Jupiá. A vila fora construída num lugar
muito bonito, às margens do grande rio
Paraná e próximo ao rio Sucuriú, no
Mato Grosso do Sul. Era toda construída
em madeira e em forma circular. A
avenida central era um grande círculo,
dentro do qual ficava o centro
comercial, administrativo e de lazer, em
volta de uma linda praça gramada e altas
palmeiras. Em volta da avenida central
nasciam as ruas em círculos crescentes
até a avenida perimetral que, por sua
vez, era cercada por matas primitivas.
Não havia brigas, mendigos e nem
movimento de carros. As crianças
brincavam livres e nem sequer
imaginavam o tipo de mundo que as
esperava. A região ainda era selvagem,
do jeito que eu gostava. E foi aí que eu
construí meu mundo, meu reinado.
Dominava o tempo e o espaço. Naquela
tranquilidade e simplicidade de vida,
fazia as minhas próprias leis, vivendo ao
ar livre, usufruindo a natureza que eu
tinha por mãe. Foi nesse ambiente que
eu cresci, fui à escola, cheguei à
adolescência e me afiliei ao movimento
escoteiro, vivendo as aventuras que
ainda fazem parte das minhas doces
recordações.
Infelizmente chegou o tempo das
mudanças. A construção da usina estava
chegando ao fim e parte dos
funcionários seria enviada para outra
construção, porém, muitos seriam
dispensados. Aquela vila seria
desmontada e o lugar completamente
abandonado. Quando meu pai trouxe a
amarga notícia que fora dispensado eu
já estava trabalhando na cooperativa
local e não acompanhei a família na
mudança. Fui morar numa sala onde
ficava a sede dos escoteiros, num
complexo hospitalar construído na
floresta, mas que nunca fora usado. Não
tardou e eu comecei a sentir a dor da
perda da família. Não sabia que era
apenas um arranhão em tudo que ainda
tinha para perder. Com o término das
obras cada vez mais pessoas eram
transferidas ou dispensadas. Conforme
os conjuntos de casas eram
desocupados passavam a ser
desmontados. Eu passava horas
sentado à distância, observando a
destruição. E me destruía com cada
telha que caía, com cada tábua
arrancada. Vi a casa em que morava se
desfazer, os amigos partirem e meu
mundo ruir completamente.
Foi nesse desespero que me
transferiram para a Ilha Solteira, na
construção da nova usina. Ali seria
diferente. Em vez de um acampamento,
estava sendo construída uma cidade,
mas ainda não havia quase nada, apenas
abundante terra vermelha por todos os
lados. No fim de semana eu não tinha
nada para fazer a não ser andar de
bicicleta entre as construções com um
único velho amigo que encontrei por lá.
Numa certa tarde nos sentamos numa
grande pedra para observar o pôr do sol
refletido nas águas do grande rio
Paraná, tendo do outro lado as matas
verdejantes do Mato Grosso do Sul. Foi
aí que ele me disse: "Você precisa
reconstruir sua vida. A queda de um
reinado não significa o fim de um rei." Eu
ainda contra-argumentei: "No meu caso
não foi uma queda, foi a destruição."
Mas sua mente esperta já estava
preparada, de forma que acrescentou:
"Um bom rei não perde a coroa quando
perde o reino. Ele aceita o desafio da
reconquista." Não dissemos nenhuma
palavra a mais, a não ser quando nos
despedimos mais tarde.
No próximo feriado após isso aquele
fiel amigo me levou para acampar num
pantanal selvagem do outro lado do rio.
Foram três dias de retorno ao paraíso.
Ao regressar cruzamos o rio numa balsa
e, quando subimos o ancoradouro, o
bom amigo comentou que eu estava
melhor ultimamente. Parei e, depois de
fitá-lo nos olhos em silêncio, deixei o
olhar vagar pelas águas avermelhadas
pelo reflexo da luz do entardecer. O pôr
do sol estava magnífico. Os raios do
astro rei já não feriam os olhos. Era
possível olhar diretamente para ele.
Enorme bola cor de sangue deslizando
suavemente atrás da curvatura da Terra.
Procurei os olhos do leal amigo e vi,
refletido na alegria do seu rosto, o meu
sorriso. E fiz minhas as suas palavras:
"Um bom rei não perde a coroa quando
perde o reino. Aceita o desafio da
reconquista."
21
METAMORFOSE EM 21 DIAS