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Na capa, um desenho de Abdias

Nascimento: Opachorô de Oxalá, tinta


nanquim sobre papel, 20 x 15 cm,
1979. No candomblé, o opachorô é o
bastão cerimonial do orixá Obatalá.

A folha de rosto traz o símbolo


do quilombismo, criado por
Abdias Nascimento em 1980 com
inspiração nos orixás Exu e Ogum.
O desenho une os princípios da
comunicação, da contradição e da
dialética (Exu) com os da inovação
tecnológica e do compromisso de
luta (Ogum).
São Paulo, 2016
Nos materiais desta Ocupação,
grafamos “Abdias Nascimento”
– e não, como é também usado,
“Abdias do Nascimento” –,
seguindo a uniformização
realizada pelo Instituto de
Pesquisas e Estudos Afro-
Brasileiros (Ipeafro) de acordo
com o pedido do autor.

Para fechar os textos desta


publicação, usamos o adinkra
Mate Masie.
Esse ideograma de origem
africana é símbolo de sabedoria,
conhecimento e prudência. Pode
ser traduzido por: “O que escuto
eu guardo”.
Sumário

6 Sustentar-se no Sonho
10 Olhar Forte Cheio de Ternura, Elisa Larkin Nascimento
15 Semente Abdias, Iara Rosa
18 Dilemas de uma Intelectualidade Afro-Brasileira:
Caso Abdias Nascimento, Tulio Custódio
24 O Negro, Sujeito e Herói do Teatro
32 Abdias Nascimento e Sua Pintura da Escola do
Inominável, Renata Felinto
42 Abdias Nascimento, um Poeta em Movimento, Lindinalva Barbosa
52 O Brasil de Pele Preta no Congresso, Conceição Freitas
58 A Beleza da Identidade, Roger Cipó
72 Cartografia Abdias Nascimento: um Olhar sobre
o Pensamento, Maurinete Lima e Eugênio Lima
94 Coração Calejado por uma Longa Luta, Abdias Nascimento
Sustentar-se no Sonho

E xu, segundo a tradição, abre os caminhos; abre também este


texto sobre Abdias Nascimento, dramaturgo, escritor, artista visual e
ativista que é o homenageado da 32ª edição da Ocupação, programa
dedicado a discutir artistas que mudaram os rumos de sua área de
expressão. Abdias fala ao orixá em uma poesia-prece: ao “senhor
dos caminhos da libertação” do povo negro ele pede que lhe restitua
a língua que lhe foi roubada, que exorcize a domesticação do gesto.
Avisa: em cada coração de negro há um quilombo pulsando; em cada
barraco, outro Palmares crepita.
Esses versos delineiam toda a atividade de Abdias, seja na arte,
seja na política. Sua vida – ele nasceu em 1914 e morreu em 2011 –
foi atravessada por uma luta contra o racismo. Combateu em várias
frentes para valorizar a cultura africana e recuperar a autoestima do
negro, assim como desmentir a ideia de que, no Brasil, se vivia em
uma “democracia racial”. Articulou grupos de pressão política, ações
educativas, espaços de debate intelectual; produziu poemas, telas,
peças, livros.
É tão surpreendente a extensão de suas atividades quanto o
fato de que, em tantas delas, precisava ser pioneiro. “Quem já não
sentiu”, pergunta ele, “a atmosfera de solidão e pessimismo que rodeia
o gesto inaugural quando se tem a sustentá-lo unicamente o poder
de um sonho?”. Abdias soube resistir a essas debilidades de todos os
princípios e criar coisas novas, “axés de sangue e de esperança”.
A Ocupação Abdias Nascimento procura dar a conhecer as
várias facetas desse trabalho. É fruto de uma parceria com o Instituto
de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), que resguarda a
herança do homenageado e que abriu suas portas por dois anos para
as pesquisas necessárias, além de elaborar os conteúdos com o Itaú

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Cultural. A curadoria da mostra é compartilhada entre o instituto, Elisa
Larkin Nascimento, responsável pelo Ipeafro e viúva de Abdias, e
Vinícius Simões, que também assina a cenografia.
Nesta publicação, apresentamos a trajetória política e artística de
Abdias a partir dos arquivos do Ipeafro, de artigos sobre as áreas de
atuação do homenageado, de um ensaio fotográfico inspirado em um de
seus projetos e de um mapa dos principais conceitos que trabalhava.
Os debates sobre o legado de Abdias têm ainda um espaço no
site da Ocupação – itaucultural.org.br/ocupacao –, que reúne artigos
sobre como ele compreendia a diáspora (a saída forçada do povo
negro do continente africano) e sobre as comunidades quilombolas
do Brasil contemporâneo. Além disso, há entrevistas com artistas e
ativistas marcados por seu trabalho.
Também no site, alguns textos falam da relevância de Abdias
nos dias de hoje. Quanto a isso, é possível dizer que as temáticas que
ele pôs em evidência continuam, infelizmente, atuais. Para discutir o
que mudou e o que persiste nesse cenário, convidamos ativistas e
grupos políticos que prosseguem o embate pela igualdade no Brasil
contemporâneo para nos contar sua experiência.
Em “Padê de Exu Libertador”, o poema a que nos referimos
anteriormente, Abdias lembra os nomes “daqueles que empunharam teus
ferros em brasa contra a injustiça e a opressão”: o abolicionista Luiz Gama;
os comandantes de revolta Luísa Mahin, Cosme Bento das Chagas e João
Cândido; alguns quilombolas sagrados, como Isidoro e Zumbi. É entre
essas figuras – indomáveis, desabusadas – que quer estar.
“Cresça-me à tua linhagem”, reclama a Exu. Isso lhe foi concedido.

Itaú Cultural

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Abdias e a esposa, a
pesquisadora Elisa Larkin
Nascimento, em 1991 | imagem:
© Chester Higgins/
chesterhiggins.com

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Olhar Forte
Cheio de Ternura
A convivência com Abdias foi um privilégio, pela riqueza e pelo
vigor da sua postura

Elisa Larkin Nascimento

P ara refletir sobre Abdias, peço licença para usar como título e ponto
de partida uma frase emprestada de Iara Rosa. Poetisa, escritora e
artista plástica, Iara participou do projeto Museu de Arte Negra (MAN),
fruto de resolução do I Congresso do Negro Brasileiro, realizado em
1950 pelo Teatro Experimental do Negro (TEN). Com curadoria de
Abdias, o projeto MAN deixou um acervo de mais de 500 obras, hoje sob
a guarda do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro).
Fazia tempo que não víamos a amiga Iara. Poucos dias após o
falecimento de Abdias, chegou-me a bela memória tecida por ela
em palavras, tão colorida e bem desenhada quanto o casaco de
tapeçaria que criara para ele se aquecer em Nova York quando para
lá partiu em 1968.
Iara recorda em Abdias o “olhar forte cheio de ternura”. Mais
que seu semblante, a frase resume a qualidade essencial da
personalidade e da atuação artística e política de Abdias.
O combate ao racismo era o eixo central de sua vida e ação. O
olhar forte traduzia sua firmeza e determinação nas posições que
defendia, seu discurso inflamado de convicção e indignação perante
a injustiça, sua irredutível coerência diante das propostas teóricas e
práticas despistadoras que constantemente lhe eram oferecidas. Por
tudo isso, ele ganhou a reputação de ativista radical e intransigente.
Incontáveis vezes, tal reputação se expressou nos epítetos “racista”
e “criador de caso”, que lhe eram aplicados por pessoas insensíveis
à injustiça racial ou que pensavam deter o monopólio da análise e do
discurso corretos sobre ela.

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Mas a veemência de Abdias Janeiro lhe trouxera a convivência O projeto MAN buscava
no discurso e na atuação política com o samba, o choro e o culto a inclusão e a valorização de
era movida pela ternura, por aos orixás. Dessa confluência artistas negros e do legado
sua profunda sensibilidade à resultou a primeira iniciativa de africano; sua marca era a
condição humana e ao sofrimento resistência à discriminação racial convivência. Colaboraram nos
alheio. Seu foco era o povo a adotar como pauta a defesa cenários das peças do TEN
negro, porque ele testemunhou, e a valorização da cultura de artistas como Tomás Santa Rosa
desde criança, a discriminação origem africana – o TEN. Artista e Enrico Bianco. Com eles e
impactando sua própria família. por natureza, Abdias abriu sua outros artistas Abdias discutia
A injustiça racial era para ele frente de luta na seara da cultura, a arte africana como referência
– e é em sua essência – uma que para ele não se separava fundamental da arte moderna.
injustiça contra o ser humano. E do mundo da política. Além de A coleção de obras doadas
o combate ao racismo, uma luta uma extensa atuação artística, por artistas de todas as cores
solidária por direitos humanos. o TEN organizou convenções apresenta um panorama da
O TEN, fundado em e congressos para combater o arte brasileira da época, sendo
1944, foi fruto maduro dessa racismo na academia e na política. complementada mais tarde por
sensibilidade solidária. Aos 30 Publicou o jornal Quilombo, que peças de artistas africanos e
anos, Abdias já havia sido duas aprofundava o debate e a reflexão caribenhos adquiridas por Abdias
vezes preso político; viajado sobre arte negra, negritude e durante seu tempo de exílio.
pela América do Sul, a partir do a questão racial, abrindo suas Em 1968, Abdias aceitou o
Amazonas, com os poetas da páginas a candidatos negros de desafio do irmão orquídea Efraín
Santa Hermandad Orquídea; todos os partidos. Tomás Bó e iniciou seu próprio
passado um ano no Teatro del
Pueblo, em Buenos Aires; e criado
dentro do Carandiru o Teatro
do Sentenciado. Na prisão, ele
escreveu o romance Zé Capetinha O combate ao racismo
e o livro Submundo, este baseado
em entrevistas de condenados,
era o eixo central de sua
como Gino Meneghetti e o vida e ação. O olhar forte
traduzia sua firmeza
“Homem da Mala”, entre outros
colegas presos. Ambos os
textos testemunham a aguda
sensibilidade humana de Abdias,
e determinação nas
expressa na ternura de seu olhar. posições que defendia
Uma temporada anterior no Rio de

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fazer artístico, com o apoio de
dois jovens artistas mineiros
do MAN: o pintor Sebastião
Januário, de Dores de Guanhães,
e o escultor José Heitor da Silva,
de Além Paraíba. Perseguido
pelo regime militar, Abdias
partiu para os Estados Unidos
e lá desenvolveu sua pintura
em meio à intensa militância
pan-africanista que o levou à
África e ao Caribe. O olhar forte
do ativismo político continuava
repleto da ternura expressa na
criação artística. A evolução de
sua sensibilidade sobre a questão
de gênero se revelava mais
nítida na poesia, na pintura, na
militância e na reelaboração de
sua peça Sortilégio.
Voltando ao Brasil, Abdias
retomou o ativismo com uma
nova geração do movimento
negro e ajudou a fundar o Partido
Democrático Trabalhista (PDT),
com Leonel Brizola; assumiu
como deputado federal ao lado
do indígena Mário Juruna; atuou
como senador e secretário do

Acima, os pais de Abdias,


Georgina e José Ferreira
Nascimento, em registro de 1911;
no meio, Abdias aos 4 anos, em
1918; abaixo, foto da formatura
do bacharelado em economia,
pela Universidade do Rio de
Janeiro, em 1938 | imagem:
Acervo Ipeafro
Abdias é Semente.
Criou muitas árvores em
vários cantos do planeta

governo do estado do Rio de Bissau; passamos um ano função do trabalho a quatro


Janeiro. Continuou pintando e na Universidade de Ile-Ife, no mãos nas diversas frentes dessa
publicou peça e poesias ao lado coração da Nigéria. Ao traduzir luta, movidos por um amor que
de obras como O Quilombismo, e ajudar na pesquisa de seus só crescia a cada obstáculo
O Genocídio do Negro Brasileiro textos e discursos, eu me erguido pelo preconceito ou
e Sitiado em Lagos. Participou do engajava em sua causa. Era uma pelas convenções hipócritas
movimento negro até se juntar continuidade de meu ativismo da sociedade ao redor. A
aos ancestrais, ali ao lado do anterior contra a Guerra do convivência com Abdias foi um
Cais do Valongo. Vietnã e em defesa dos presos da privilégio pela riqueza e pelo vigor
Eu tive o privilégio de penitenciária de Ática, acusados de sua postura diante da vida
compartilhar com Abdias parte das mortes ocorridas na rebelião e da causa. Postura de amor a
dessa trajetória a partir do de 1971 – quando todas essas todos os seres. A unicidade das
momento em que o conheci em mortes haviam sido causadas coisas aparentemente diversas,
Buffalo (Estados Unidos), minha pela repressão. A atuação de como força e sensibilidade, arte e
cidade natal, onde ele atuava Abdias em teatro, poesia e militância política, era sua práxis
como professor da Universidade pintura, artes que eu amava, diária e a mensagem de seu
do Estado de Nova York. O trazia ao ativismo uma dimensão trabalho artístico. Essa unicidade
racismo já era um tema que apaixonante que me reforçou remete à essência humana
me mobilizava, e eu conhecia o convicções e renovou energias, comum a todas as pessoas,
Brasil de um intercâmbio feito unindo aspectos essenciais de motivo tanto do olhar forte como
anos antes. Logo me vi ao lado minha vida, porém até então da ternura de Abdias.
de Abdias como intérprete em vividos separadamente.
Dacar, no Senegal, no encontro Embarquei com ele em Elisa Larkin Nascimento é diretora-
em que foi fundada a União de uma nova etapa de luta por presidente do Instituto de Pesquisas
e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro),
Escritores Africanos. Visitamos direitos humanos e contra o instituição fundada em 1981, com
a recém-independente Guiné- racismo. Passamos a viver em ajuda sua, por Abdias, seu marido.

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Abdias com os filhos Henrique
Cristóvão e Abdias Nascimento Filho,
o Bida | imagem: Acervo Ipeafro

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SEMENTE ABDIAS

U ma irmã de meu pai era muito parecida com Abdias, tinha o


olhar forte cheio de ternura, rosto leve, bonito e gentil,
onde vagava suave um jeito de poesia.
Minha tia trabalhava como cozinheira. Ganhava muito pouco e
gastava quase todos os seus ganhos comprando passarinhos em
gaiolas que eram vendidos nas feiras livres da cidade.
Ela carregava suas gaiolas até uma mata próxima de sua casa e
ali, com grande alegria, soltava seus pássaros, observando os voos.
Um dia minha tia Maria ficou doente. Minha mãe dizia que ela
não se tratava, gastando seu dinheiro com passarinhos. Que iria
morrer em algum hospital como indigente. Meu pai dizia:
— Este negócio de morte não é com Maria.
Minha mãe, irritada, dizia:
— Quer dizer que sua irmã vai virar semente?
E meu pai respondia orgulhoso:
— Ela já é semente. Semente Maria.
Abdias é semente. Criou muitas árvores em vários cantos do
planeta. Nos olhos fortes havia uma ternura grandiosa. Em seu
rosto leve, a poesia de todos os poetas. Esse negócio de morte
nunca foi para Abdias. Semente Abdias.

Iara Rosa é poeta e artista plástica. Este texto foi escrito em Armação dos Búzios, no Rio de
Janeiro, em outubro de 2011, após o falecimento de Abdias.

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imagem: © Chester Higgins/chesterhiggins.com

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Dilemas de uma
Intelectualidade
Afro-Brasileira: Caso
abdias Nascimento
O confronto de Abdias com a invisibilidade de artistas, militantes e
pensadores negros é uma luta que continua ainda hoje

Tulio Custódio

E m 1903, o sociólogo e historiador afro-americano W. E. B. Du


Bois (1868-1963) definiu, de maneira inspiradora, dois aspectos
que guiariam a questão racial nos anos subsequentes: a existência
de uma dupla consciência na vida dos negros e a necessidade do
“treinamento” de líderes e pessoas que trabalhassem em prol do
desenvolvimento do povo negro. Esses elementos, diagnosticados na
madrugada do século XX, permitem tratar de um dos dilemas mais
difíceis enfrentados por intelectuais negros: sua invisibilidade.
O intelectual negro sofre constantemente o desafio de superar
a dupla consciência – que é o resultado de dois olhares operando
na vida de um negro: o olhar externo, dirigido ao negro pelo branco,
e o olhar do negro a si próprio, determinado pelo anterior. O olhar
externo se impõe à sua forma de se ver e se representar no mundo.
Além dessa barreira, de esfera mais íntima, precisa se engajar
em uma luta simbólica pelo direito de falar de si por si e, ao se
expressar e produzir reflexões sobre sua condição, ter legitimidade
para tal. Uma batalha constante para ter sua voz ouvida, seja em
ambientes formais, como a academia (na qual são tão poucos os
expoentes), seja em atividades de militância (portanto, políticas), na
cultura, no ramo das artes, da literatura ou do teatro. Dois desafios,
um da ordem de representação de si, outro da representação sobre

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si. A mente que vê e o ser que ele, no auge de seus 54 anos, O Imperador Jones, de Eugene
fala por si no mundo. uma mudança complementar O’Neill, experiência que, de grande
Vejamos como isso se dá de carreira e atividades, pois maneira, inspirou a criação do TEN.
no caso de um dos maiores começou a atuar como professor Em 1950, no Congresso
pensadores e ativistas negros e artista visual naquele país, além do Negro Brasileiro, os artistas
brasileiros, Abdias Nascimento. de ter tido a oportunidade de e pensadores negros do TEN
Abdias foi, sem dúvida, frequentar diversos congressos tiveram seu lugar de fala e
grande. Grande pelo tempo de internacionais, levando sempre o pensamento questionados
atuação, que começa no final tema do racismo brasileiro a todos pelos chamados “intelectuais
dos anos 1930, em um flerte com os cantos pelos quais passava. e estudiosos da academia”
a Frente Negra Brasileira, e vai Abdias foi grande. Mas não (ligados aos estudos culturalistas
até o início da segunda década escapou do dilema da invisibilidade. sobre questão racial no Brasil),
do século XXI, quando, mesmo Ele foi uma das pessoas segundo os quais os membros
cansado pela idade (97 anos), que introduziram, nos anos 1940, do TEN – como Guerreiro Ramos,
frequentou eventos e palestrou a discussão e a crítica contra o Aguinaldo de Oliveira Camargo
para gerações mais novas. blackface, discussão tão viva e e Sebastião Rodrigues Alves
Grande pelo leque de atuações: centro de um debate em 2015, – não tinham legitimidade para
economista de formação, foi quando uma companhia de teatro falar da questão racial como
teatrólogo, diretor, ativista, se utilizaria desse recurso (que intelectuais, mas apenas como
professor universitário, político consiste em pintar de preto o “ativistas”. Questionamento não
(deputado e senador), artista rosto de um ator branco, com a muito diferente daquele que,
plástico. Grande. intenção de que ele represente hoje, as feministas negras sofrem
Abdias atravessou o século um personagem negro), mas quando publicam seus textos
XX e protagonizou as expressões foi questionada por diversos reflexivos e analíticos acerca
mais importantes da presença militantes negros. A pergunta da intersecção opressora entre
política e cultural negra, como a que uma das pessoas mais ativas raça e gênero. Ou ainda quando
já citada Frente Negra Brasileira, nesse protesto, Stephanie Ribeiro, o rico e vastíssimo acervo criado
o Teatro Experimental do Negro fez – “Por que não um ator negro pela produção pictórica e poética
(TEN), que fundou em 1944, e o para representar o papel? Por de Abdias – seus quadros, suas
Movimento Negro Unificado, nos que a escolha de um padrão poesias e peças teatrais – não é
anos 1970. Além disso, teve sua historicamente datado e marcado exibido, não é explicitado como
passagem (e que passagem!) pelo racismo e pela agressão à um grande legado.
pelos Estados Unidos, período representação do povo negro?” O que Abdias enfrentou – e
em que se exilou e foi exilado – é a mesma feita por Abdias isso tem reflexos diretos nos
(sim, isso aconteceu com em 1941, quando passava por problemas com que os jovens
ele!). O exílio significou para Lima, no Peru, e assistiu à peça ativistas lidam no contexto atual

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– é a constante invisibilidade do escritos para diversos congressos negro brasileiro historicamente.
intelectual negro como legítimo internacionais entre os anos E, infelizmente, muito do legado de
produtor de conhecimento e 1960 e 1980 – incluindo uma Abdias está sob esse silenciamento.
reflexão, seja sobre sua vivência, passagem de um ano na Nigéria, Abdias é o exemplo da
seja sobre outros assuntos que pela Universidade de Ile-Ife. Essa intelectualidade negra brasileira,
o interessem, e a negação da abordagem identitária e contrária e o esforço do Itaú Cultural em
importância que sua produção aos processos encampados pelo organizar uma exposição em seu
e seu legado podem ter para racismo à brasileira – expressão nome é uma forte contribuição
outras gerações. que Abdias preferia mencionar para acender a importância de
Como confrontou Abdias a como “genocídio do negro seu legado intelectual, político e
questão da dupla consciência? brasileiro” – é importante e rica, e artístico para o povo brasileiro.
Incorporando de modo enérgico não pode ser subestimada. Sim, porque a pior perda que
e amplo em seu pensamento as As novas gerações precisam advém da invisibilidade dos
culturas negras brasileiras como conhecer o produto das lutas intelectuais negros é a de um
parte de um legado mais amplo, das gerações anteriores, de legado para todo o povo de
de origem africana, diante da modo a formar novos quadros riqueza cultural, intelectual,
diáspora forçada pelo escravismo de referência, criar a partir artística. A perda de vozes que
colonial. A visão deturpada do realizado, superá-lo, ir nos ensinaram ontem, dão base
do negro sobre si se dava por além. O racismo brasileiro, ao hoje e nos ajudam a lutar pelo
um processo sistemático de em suas especificidades e na amanhã. Resgatar essa riqueza é
embranquecimento físico (por eficácia mortífera simbólica, superar o dilema.
meio do genocídio, da eliminação executa – como Abdias já
e da ideologia da democracia apontava nos anos 1960 – com
racial) e cultural (ao negar perfeição o embranquecimento
Tulio Custódio é sociólogo,
a conexão da cultura negra epistemológico da população curador de conhecimento, criador
brasileira com a África e ao não brasileira. Isso significa não do site Pitacodemia e membro do
Coletivo Sistema Negro. Escreveu
reconhecer a importância do evidenciar pensadores negros. a dissertação de mestrado
legado africano como potência Isso significa não retomar sua Construindo o (Auto) Exílio: Trajetória
inteira, mas só como “um pedaço produção e ressaltar seu legado. de Abdias do Nascimento nos
Estados Unidos, 1968-1981.
de cultura”). Isso significa ignorar toda a
Abdias enfrentou, com potência de impacto que a
Sankofa – representado por
muito afinco e perseverança, a presença e a memória de líderes um pássaro que volta a cabeça à
cauda – faz parte do conjunto de
invisibilidade do intelectual negro e intelectuais negros possuem ideogramas africanos chamados
ao propor ações e congressos no no sentido de confrontar o adinkra. Sankofa significa “retornar
ao passado para ressignificar o
TEN, ao levar sua reflexão e seus racismo que acomete o povo presente e construir o futuro”

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Abdias em Sortilégio: Mistério
Negro, peça escrita por ele em
1950 e retida pela censura até
1957, quando estreou no Theatro
Municipal do Rio de Janeiro, em
produção do TEN | imagem:
Acervo Ipeafro

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O Negro, Sujeito e
Herói do Teatro
Em fotografias, a história do TEN, “um organismo teatral aberto
ao protagonismo do negro”, com ações de formação, apoio
psicológico e mobilização política

O Teatro Experimental do Negro (TEN) surgiu do espanto de Abdias


Nascimento depois de assistir à peça O Imperador Jones, de
Eugene O’Neill (1888-1953), no ano de 1941, em Lima, no Peru. O
protagonista era um ator maquiado com blackface. “Por que um
branco brochado de negro?”, Abdias se indignou, “pela inexistência
de um intérprete dessa raça?”. Seu pensamento não parou aí:
“[...] em meu país, onde mais de 20 milhões de negros somavam
a quase metade de sua população de 60 milhões de habitantes, na
época, jamais assistira a um espetáculo cujo papel principal tivesse
sido representado por um artista da minha cor. [...] na minha pátria,
tão orgulhosa de haver resolvido exemplarmente a convivência entre
pretos e brancos, deveria ser normal a presença do negro em cena,
não só em papéis secundários e grotescos, conforme acontecia, mas
encarnando qualquer personagem – Hamlet ou Antígona –, desde que
possuísse o talento requerido. Ocorria de fato o inverso [...]. Intérprete
negro só se utilizava para imprimir certa cor local ao cenário, em
papéis ridículos, brejeiros e de conotações pejorativas.”
Abdias decidiu reagir: “Ao fim do espetáculo, tinha chegado a
uma determinação: no meu regresso ao Brasil, criaria um organismo
teatral aberto ao protagonismo do negro, onde ele ascendesse da
condição adjetiva e folclórica para a de sujeito e herói das histórias
que representasse”.
O TEN surgiria em 1944 e duraria até 1968. Realizou cursos de
alfabetização e de formação em teatro; ofereceu apoio psicológico a
pessoas negras para combater o “dilaceramento” de sua consciência

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em um mundo branco; produziu Afonso Arinos, que definiu certos colaboração de artistas como
um jornal, o Quilombo, para casos de discriminação racial José Medeiros, Enrico Bianco,
discutir as temáticas da como contravenções penais. Loio Pérsio e Tomás Santa Rosa.
população negra; promoveu Isso tudo além de montar Os destaques da história cênica
congressos e outros espaços textos nacionais e internacionais, do TEN são contados nesta seção
de discussão; e se mobilizou levando os conflitos e a cultura por meio de imagens históricas do
como ente político – atuação que negra aos palcos – tendo, na acervo do Instituto de Pesquisas e
influenciou a aprovação da Lei construção desse trabalho, a Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro).

Palmares
O Teatro Experimental do Negro existia havia alguns meses quando,
em dezembro de 1944, fez uma participação especial em uma cena da
peça Palmares, da poetisa Stella Leonardos (1923). O TEN ATUOU EM
CONJUNTO COM UM elenco formado por integrantes do Teatro do
Abdias na peça O Imperador
Jones, em 1953, no Teatro São Estudante do Brasil (TEB).
Paulo, em São Paulo | imagem:
G. Lorca Foto Studio

O Imperador Jones
Foi vendo a encenação desta peça
em Lima, no Peru – cujo elenco
era formado por atores brancos
com o rosto pintado de preto –,
que Abdias Nascimento começou a
pensar no que viria a ser o Teatro
Experimental do Negro. Escrito por
Eugene O’Neill (1888-1953), o texto
foi encenado na estreia do TEN, em
1945, no Theatro Municipal do Rio de
Janeiro, com direção de Abdias.

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Othello
O clássico do dramaturgo inglês William Shakespeare
(1564-1616) foi montado como esquete em dezembro de 1946,
integrando a programação do Festival do Segundo Aniversário
do TEN. Os protagonistas foram Abdias (Othello) e Cacilda
Becker (Desdêmona).

O Moleque Sonhador
como parte da programação do Festival
do Segundo Aniversário do TEN, a peça O
Moleque Sonhador, escrita por Eugene
O’Neill (1888-1953), teve Abdias no papel
principal. Também integraram o elenco as
atrizes Ruth de Souza, Marina Gonçalves e
Ilena Teixeira. A direção foi de Willy Keller.

Abdias em O Moleque
Sonhador, em 1946, no Teatro
Regina, no Rio de Janeiro |
imagem: Acervo Ipeafro
Todos os Filhos de Deus Têm Asas
Devido ao sucesso da primeira montagem de um texto de
Todos os Filhos de Deus Têm Eugene O’Neill (1888-1953), o TEN resolveu apostar em outra
Asas, em 1946, no Teatro Fênix,
no Rio de Janeiro | imagem: peça do autor e, em julho de 1946, estreou Todos os Filhos de
Acervo Ipeafro
Deus Têm Asas, com direção de Aguinaldo Camargo (1918-1952).

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Recital Castro Alves Terras do Sem Fim
Realizado em 31 de março de 1947, no Teatro Em agosto de 1947, o TEN
Fênix, no Rio de Janeiro, o recital teve encenou Terras do sem Fim,
direção de Abdias Nascimento, cenografia em colaboração com o grupo Os
de Tomás Santa Rosa e colaboração Comediantes. Escrita por Jorge
musical de Gentil Puget e Abgail Moura. Amado (1912-2001), a peça foi
Entre os artistas que se apresentaram, adaptada pelo ator Graça Mello
em números variados, estavam Ruth de (1914-1979) e contou com direção
Souza, Marina Gonçalves, Aguinaldo do polonês Zygmunt Turkov
Camargo e Neusa Paladino. (1896-1970) e cenários de Tomás
Santa Rosa.

Aruanda
O Filho Pródigo Em cartaz de 23 de
dezembro de 1948 a 2 de
Primeiro texto criado
janeiro de 1949, Aruanda,
especialmente para o TEN, O Filho
de Joaquim Ribeiro,
Pródigo, assinado por Lúcio Cardoso
misturava dança, poesia
(1913-1968), era uma livre adaptação
e canto para falar sobre
da parábola bíblica homônima. Foi
a convivência dos deuses
a primeira peça de um dramaturgo
afro-brasileiros com os
brasileiro levada ao palco pelo TEN,
mortais. A montagem
tendo sido encenada em dezembro
deu origem ao grupo
de 1947 (com cenários de tomás
Brasiliana, que, formado
Santa Rosa e figurino de Nadir de
por dançarinos, cantores
Andrade), maio de 1953 e julho de
e percussionistas,
1955 (com cenários e figurino de
excursionou pela Europa
Anízio Medeiros).
por quase dez anos.

Abdias em O Filho Pródigo, Ruth de Souza em Aruanda,


em 1947, no Teatro Ginástico, no Teatro Ginástico, no Rio de
no Rio de Janeiro | imagem: Janeiro. A foto foi registrada
Acervo Ipeafro entre 1948 e 1949 | imagem:
Acervo Ipeafro

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A Família e a Festa na Roça Filhos de Santo
Em parceria com o Serviço Nacional do Teatro, o Encenada em março e abril de 1949, em
TEN encenou, em dezembro de 1948, o espetáculo dois teatros – o Ginástico e o Regina,
A Família e a Festa na Roça, de Martins Pena. no Rio de Janeiro –, com texto de José
Com direção de Dulcina de Moraes, que também Morais de Pinheiro e direção de Abdias, a
atuava na montagem, e cenografia e figurino peça conta a história de trabalhadores
assinados por Tomás Santa Rosa, a peça tinha do Recife, em Pernambuco, entre o
Ruth de Souza
e Abdias em leitura no elenco Abdias, Ruth de Souza, Bibi Ferreira e candomblé e a perseguição policial. a
dramatizada de Calígula, Jardel Filho, entre outros nomes.
no Teatro Ginástico, no
cenografia foi de Tomás Santa Rosa.
Rio de Janeiro, em 1949 |
imagem: Acervo Ipeafro

Rapsódia Negra
Com texto e direção de Abdias, a peça
montada em 1952 “lançou duas artistas
de grande destaque”, segundo o diretor:
a dançarina Mercedes Batista e a atriz
Léa Garcia. O espetáculo foi encenado
em julho, outubro e novembro daquele
Calígula ano, com coreógrafos e compositores
Montagem do texto do filósofo argelino Albert Camus (1913-1960), o diferentes a cada edição.
espetáculo não conseguiu os recursos para ser encenado, tendo sido
feita apenas uma apresentação do primeiro ato ao autor, no Teatro
Ginástico, em 1949, seguida de algumas músicas da Orquestra Afro-
Brasileira e da exibição de danças por Mercedes Batista. A direção era de Léa Garcia em Rapsódia
Negra, peça escrita por Abdias.
Abdias; figurino e cenografia, de Tomás Santa Rosa.
A apresentação ocorreu no
Teatro Cultura Artística, em São
Paulo, no ano de 1952 | imagem:
Acervo Ipeafro

28
Festival O’Neill
Realizado em 1954 no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, trata-se
da exibição de cenas das peças de Eugene O’Neill (1888-1953).
Foram encenados trechos de Todos os Filhos de Deus Têm Asas,
Onde Está Marcada a Cruz e O Imperador Jones – essa última,
texto com que O TEN ESTREOU, Abdias dirigiu e atuou.

Orfeu da Conceição
Com texto de Vinicius de Moraes, música de Tom Jobim (sendo
esta a primeira colaboração entre os dois), cenografia de
Oscar Niemeyer e elenco formado por Abdias e outros atores
do TEN, a peça – que mescla a mitologia grega e o imaginário
das favelas cariocas – foi apresentada em 1956.

Perdoa-me por
Me Traíres
Escrita pelo dramaturgo Nelson Rodrigues,
a peça foi exibida em 1957, com atuação de
Abdias e do próprio Rodrigues.

Abdias interpreta Jubileu de

Sortilégio – Mistério Negro


Almeida, personagem da peça
Perdoa-Me por Me Traíres, de
Nelson Rodrigues | imagem:
Este texto de Abdias discute a busca de identidade por Acervo Ipeafro
meio do percurso de um homem negro que se vê distante
Abdias em Sortilégio: Mistério
tanto da cultura europeia quanto da africana. Foi Negro, peça escrita por ele em
1950 e retida pela censura até
montado em 1957, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. 1957, quando estreou no Theatro
Municipal do Rio de Janeiro em
produção do TEN | imagem:
Acervo Ipeafro

29
Teogonia Afro-Brasileira
Onipotente (Iansã,
e Imortal, NºObatalá,
4:
Oxum, Adinkra
Oxossi, Yemanjá, Ogum, de
Asante (1992), Ossaim,
Abdias
Exu) (1972), acrílico
Xangô,Nascimento, acrílicosobre
sobretela
tela |
30 reprodução: RCS Digital
31
Abdias Nascimento e
sua pintura da escola
do inominável
Como o projeto artístico-político de Abdias que visa resgatar a
ancestralidade africana desemboca nas artes visuais

Renata Felinto

P
oucos seres humanos passaram pela terra envolvendo-se em
tantos fazeres e pensares como Abdias Nascimento. Esse homem
compreendeu e praticou a arte como ato criativo e estético nunca
separado de uma importante dimensão política e social com fins à
conscientização e à humanização. Como dizia Mário de Andrade
(1893-1945): “Arte é uma expressão interessada na sociedade”. Fato
é que poucos artistas conseguiram abarcar essa assertiva como
Abdias, tanto em sua produção no teatro quanto nas artes visuais.
Desenvolveu amplo trabalho como ator, diretor e dramaturgo,
profundamente comprometido com a iniciativa revolucionária de fazer
teatro enegrecendo os palcos com atrizes e atores provenientes
dos estratos marginalizados da sociedade. A partir dessa ação
– formando e fortalecendo uma consciência política por meio do
exercício artístico, revelando grandes nomes da dramaturgia brasileira,
como as atrizes Ruth de Souza (1921-) e Léa Garcia (1933-), e criando
concomitantemente uma dramaturgia negra –, Abdias envolveu-se
mais e mais com processos que fazem com que a arte também seja
identificada e utilizada como instrumento transformador, mobilizador
e constituidor de mentalidades e seres políticos. Fundou e dirigiu o
Teatro Experimental do Negro (TEN), no qual configurou sua arte
como “estratégica-estética-criativa-provocadora-política”.
Essa ação-missão-intuição extrapolou os limites das artes
cênicas e adentrou o território das artes visuais. Isso se deu a partir

32
do questionamento levantado por Braque e Picasso; todavia, lhe criativos e pictóricos que os
Mário Barata (1921-2007) acerca era negado o status de obra de artistas europeus desconheciam
da inexpressiva incorporação das arte autônoma proveniente do até então.
ricas características estéticas da exercício estético e criativo de Assim, diz Abdias em um dos
obra escultórica do continente artistas africanos. Seria fetiche textos de O Quilombismo: “[...]
negro na produção de artes criado por incivilizados selvagens. um dos objetivos do Museu de
visuais do Brasil. Havia ainda outra Lembremos que, proveniente da Arte Negra era o de proceder a
ausência flagrante: onde estavam língua francesa, o termo pode ser um levantamento dos africanos
os artistas visuais negros no traduzido como “feitiço”. e de suas criações no Brasil.
panteão da história das artes do Bem, se não fosse esse Isto necessita ser feito com
país? Afinal, sendo esse segmento feitiço que tomou conta dos urgência”. Vários críticos, artistas
populacional fundamental europeus em fins do século XIX, e historiadores da arte apoiaram
aos alicerces da construção num contexto de subjugação, essa iniciativa; entretanto, Abdias
da sociedade brasileira e tão destruição e dominação, identificou obstáculos a ser
significativo para a formação certamente não teria sido transpostos para a efetivação
de nossa cultura, como é que empreendida por Picasso e pelo do MAN, como a incompreensão
estava afastado desse lugar de movimento cubista a revolução e a falta de apoio dos poderes
visibilidade e de reconhecimento? no modo de representação e de oficiais e da classe hegemônica.
Se essa herança negro- desconstrução da representação Até mesmo os mais progressistas
africana se fazia e se faz presente do mundo visível, da figuração, da estavam, de alguma forma,
e possante em várias frentes, relação entre figura e fundo rumo contaminados pela “mentalidade
como não aparecia demarcada a uma abstração e, portanto, a escravocrata” – expressão
nitidamente nas artes visuais do uma liberdade nos processos empregada por Abdias ao se
Brasil e do mundo? Em 1950, o
I Congresso Negro Brasileiro,
promovido pelo TEN, decidiu
criar o Museu de Arte Negra
(MAN). Além das considerações Sua produção não se
de Barata, uma questão que
colaborou para a criação do MAN
vincula a nenhuma escola
foi o tratamento paradoxal dado ou movimento artístico.
à produção escultórica negro-
africana: servia de referência É preciso aceitar que há
criativa e subversiva aos artistas
europeus do início do século XX,
quem seja inclassificável
como Vlaminck, Matisse, Derain, e Abdias é um deles
33
referir à elite dita simpática às de saberes de africanos, forjando
ações de reparação junto ao assim uma nova identidade negra.
segmento negro-brasileiro – que Como resposta, em 1968
estruturava a nação. foi exposta pela primeira vez no
Em 1955, foi realizado um Museu da Imagem e do Som do
concurso de artes plásticas Rio de Janeiro (MIS/RJ) a coleção
com o tema do Cristo negro de obras artísticas e documentos
– tanto como forma de reunidos durante os 18 anos de
promover a reflexão sobre essa esforços para a concretização do
representação quanto para MAN [material atualmente sob
ampliar a coleção do MAN. tutela do Instituto de Pesquisas e
Em 1966, na ocasião do I Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro)].
Festival Mundial de Arte e Cultura Era uma forma de comemorar
Negra (Festac), promovido pelo os 80 anos da abolição da
então presidente do Senegal, o escravidão no Brasil, mas também
poeta Léopold Sédar Senghor de denunciar os grilhões políticos
(1906-2001), a escolha da e sociais que limitavam o acesso
delegação brasileira excluiu do negro à área das artes visuais.
artistas negros, expondo ao No mesmo ano, cresceram
mundo a falácia da democracia as dificuldades para a
racial. Também demonstrou a manutenção do projeto do
ignorância do governo e da classe MAN, assim como a vigilância e
dominante em relação ao conceito o cerceamento das atividades
de negritude, desenvolvido a artísticas por parte do Estado.
partir de um movimento literário Diante desse contexto, Abdias
francófono afro-caribenho de Nascimento exilou-se nos
mesmo nome e que procurava Estados Unidos.
revalorizar o negro cultural, política A partir disso, o “artivista” –
e artisticamente. O Festac foi, termo que identifica a conjunção
de certa forma, a concretização de artista e ativista, cunhado
dessas aspirações: reuniu o que pelo artista visual e historiador
povos afrodiaspóricos criavam Nelson Fernando Inocêncio –
pelo mundo considerando a aventurou-se nas artes visuais.
convergência dos conhecimentos À semelhança de outros artistas
impostos pelos europeus com as Ao lado, Padê de Exu (1988), de
visuais brasileiros, que se voltaram Abdias Nascimento, acrílico sobre
heranças e as ressignificações à sua identidade quando levados tela | reprodução: RCS Digital

34
ao estrangeiro – é o caso do simétricas. Se passarmos uma
pintor paulistano Almeida Júnior linha vertical ao centro das obras,
(1850-1899), que retratou o caipira observaremos equilíbrio entre
de São Paulo, homem da labuta e os elementos distribuídos pelo
da terra, enquanto em residência espaço. Abdias também não se
artística na França –, assim que restringiu a seguir rigidamente
exilado, Abdias também teve um as cores que correspondem a
alumbramento de suas origens. cada orixá. Aliás, a exploração
Talvez esse tenha sido um despudorada da paleta é uma
modo de Abdias não se afastar das características de suas obras
de si mesmo, conectando-se que nos remetem ao imaginário
ao que os brasileiros guardam de uma África colorida, como
de mais poético e profundo a dos mercados com mulheres
em termos de ancestralidade. comerciantes carregando suas
Para os estadunidenses, o crias em capulanas estampadas.
panteão iorubano era novidade, Dessa maneira, Oxumaré –
especialmente aliado à pauta pan- metade do ano homem, metade
africanista – ideologia do início do ano mulher – é representado
do século XX, concebida por W. como um “sereio” com braços-
E. B. Du Bois (1868-1963), que serpentes pintados em cores
propõe a irmandade entre povos luminosas, assim como o arco-íris,
africanos e afrodescendentes seu meio de se fazer presente
em todo o mundo. Ao adotar na terra. Xangô, deus da justiça,
a temática afrorreligiosa com é representado por um céu
menção aos orixás, Abdias vermelho. Oxóssi, perspicaz
informava que o primor estético caçador, tem seus arcos e flechas
não era o centro de seu fazer, mesclados a folhas, síntese de
mas, sim, o reconhecimento dessa sua morada, a floresta. Para Exu,
espiritualidade como fundação primeiro a ser homenageado,
resistente do povo negro. Afirmava pinta os padês, nome dado às
que tais divindades estavam vivas oferendas destinadas a esse deus.
naquele momento e hoje. Durante os 13 anos em
Suas pinturas são marcadas que permaneceu no autoexílio,
pela simplicidade e pela dedicando-se a seus trabalhos
Ao lado, Borboletas de Franca
(1973), de Abdias Nascimento, liberdade. As composições em pintura, ao ativismo e à
acrílico sobre tela | reprodução:
RCS Digital geralmente são frontais e docência, Abdias conquistou

37
prestígio e expôs em vários quem seja inclassificável, e SANTOS, Renata A. F.
locais. Permitiu-se conhecer Abdias é um deles. Ele não era A construção da identidade
vários países, como Nigéria, Gana iniciado no candomblé, porém foi afrodescendente por meio das
e África do Sul, entre outros que o maior baba – “pai”, em iorubá artes visuais contemporâneas. Tese
se inserem na diáspora africana. – do ativismo negro no país. No (Doutorado) – Instituto de Artes da
Dessa experiência, foram contexto da diáspora africana, Unesp, São Paulo, 2016.
incorporadas às suas pinturas ele faz do continente a fonte que
a escrita da região de Gana, os potencializa sua ação criadora
adinkra – símbolos visuais que em todas as áreas em que
atuou. Empresta do continente- Renata Felinto é artista plástica
trazem, cada um, um ensinamento
e professora de teoria da arte na
–, elementos visuais originários mãe a vitalidade, a força e a Universidade Regional do Cariri
do potente Reino do Congo e o ancestralidade e as deposita em (Urca), no Ceará Mestra e doutora em
artes, trata, em sua dissertação e em
vodu haitiano, que seria próximo cores e formas em suas pinturas,
sua tese, da representação do negro
do candomblé. manifestos visuais que dignificam na arte contemporânea brasileira.
Essa busca por elementos a pujança de homens e mulheres
visuais com forte conexão que lutam ao longo dos séculos.
sobrenatural com a África e que Como o adinkra ancestral, a
tornassem visíveis a sagacidade pintura de Abdias é ensinamento.
dos afrodescendentes na missão
de se manterem espiritualmente
ligados às suas raízes Referências bibliográficas
transparece nas cores e nas CLEVELAND, Kimberly L. Black
formas presentes nas pinturas de art in Brazil: expressions of
Abdias Nascimento. identity. Florida: University Press
Seria leviano categorizar of Florida, 2013.
sua produção. Ela não se FERREIRA, Ligia F.
vincula a nenhuma escola ou “Negritude”, “negridade”,
movimento artístico. Tampouco “negrícia”: história e sentidos
pode ser nomeada ingênua, naïf de três conceitos viajantes. In:
ou primitiva, como fazem os que ARAÚJO, Emanoel (Org.). Textos
colocam no balaio da arte popular de negros e sobre negros. São
tudo aquilo que não conseguem Paulo: Museu Afro Brasil, 2011.
aproximar e identificar dos INOCÊNCIO, Nelson.
registros da história geral ou Emanoel Araújo: o mestre
Ao lado, Oxum em Êxtase
universal da arte. das obras. Rio de Janeiro: (1975), de Abdias Nascimento,
acrílico sobre tela | reprodução:
É preciso aceitar que há Garamond, 2010. RCS Digital

38
Abdias discursa na Serra da
Barriga, em Alagoas, no dia 20
de novembro de 1983 | imagem:
Elisa Larkin
Abdias, Nascimento
no 3º Congresso de Cultura
Negra das Américas, em 1982
40
41
Abdias Nascimento,
um Poeta em Movimento
Para Abdias, a poesia “é exatamente a busca permanente da
liberdade. Quando a poesia não está atrás da liberdade, ela deixa
de ser poesia...”

Lindinalva Barbosa

A bdias Nascimento, embora não se considerasse poeta, nos deixou


um valioso legado de composição em versos. Tudo isso reunido
em um único livro, publicado em 1983 e intitulado Axés do Sangue e
da Esperança: Orikis, com 22 poemas que abordam desde aspectos
autobiográficos, memórias e personagens familiares até a relevância
da história e da cultura africana e afro-brasileira, a denúncia do
racismo e a resistência negra diaspórica. O livro também traz
desenhos do autor e fotos pessoais e de familiares.
Abdias sempre afirmou que sua arte (incluindo sua produção
poética) consistia muito mais em uma ferramenta de luta antirracista
e pan-africanista – compromisso político que norteou toda a sua
vida desde a adolescência – do que propriamente em uma afiliação
a uma estética literária e a recursos estilísticos canônicos. Em
entrevista concedida a mim em 2006, presente na minha dissertação
de mestrado, o autor afirma: “A minha literatura – se é que eu faço
literatura – qualquer negra, qualquer negro entende. [...] É porque, em
tudo que eu faço, eu tô falando do sofrimento da raça, eu tô falando
na opressão que nós sofremos. […] É porque todo negro e toda negra
é parte disso, é protagonista da poesia...”.
A poesia de Abdias é parte constitutiva da literatura negra – um
conceito em movimento que subscreve a produção literária de autoras
e autores negros brasileiros, sobretudo a partir da década de 1970 –,
que é fortemente marcada pela articulação com outras formas de

42
luta por liberdade. Dessa forma, dos ancestrais honoráveis, Em “Autobiografia”, poema
a literatura negra incorpora de indivíduos ilustres e das no qual é refletido objetivamente
discursos de contraposição ao grandes linhagens. Funcionam o ego do autor, os versos são
racismo e à discriminação racial; como documentos da memória constantemente ritmados, enquanto
a valorização de signos africanos coletiva de determinado desfiam sutilmente aspectos da
e afro-brasileiros; a solidariedade grupo, cidade ou família. Assim vida familiar na adolescência vivida
aos povos africanos oprimidos; a também os poemas de Abdias na cidade de Franca, em São Paulo.
consciência negra e a afirmação redesenham cartografias sobre Fragmentos da memória recente da
identitária. Todos esses a vivência e a resistência negra escravidão marcam intensamente
elementos estão presentes na na diáspora chamada Brasil. os versos do sujeito poético:
poética de Abdias, para quem a
literatura negra – ainda de acordo
com a entrevista de 2006 – revela
“o negro com suas experiências,
seus dons, suas dúvidas diante
do universo, dentro dessa coisa EITO que ressoa no meu sangue
tão obscura que é o futuro da sangue do meu bisavô pinga de tua foice

foice da tua violação


gente”. Para o autor, a poesia “é
exatamente a busca permanente
da liberdade. Quando a poesia ainda corta o grito de minha vó
não está atrás da liberdade, ela
deixa de ser poesia”.  [...]
O poeta Abdias nomeia

PRECONCEITO esmagado no feito


seus poemas como oriki,
associando sua criação literária
ao modelo de composição destruído no conceito/eito ardente desfeito
poética africana dos iorubás,
cujo nome pode ser traduzido ao leite do amor perfeito
como “canto de louvor,
saudação a alguém”. Os oriki sem pleito
são parte da tradição oral
eleito ao peito
iorubá e têm por principal
finalidade evocar, saudar, louvar
da teimosa esperança
e lembrar os feitos históricos em que me deito.
da comunidade, sobretudo

43
[...]

Invocando essas leis


imploro-te Exu
plantares na minha boca/
o teu axé verbal
[...]

Teu punho sou


Exu-Pelintra
quando desdenhando a polícia
defendes os indefesos
vítimas dos crimes
do esquadrão da morte

44
punhal traiçoeiro da mão branca
somos assassinados
porque nos julgam órfãos
desrespeitam nossa humanidade
“Padê de Exu Libertador”

[...] é provavelmente o poema


mais conhecido de Abdias,
constantemente recitado em
Exu momentos de posicionamento
político importante. Exu, o
tu que és o senhor do teu povo mensageiro cósmico e senhor da
comunicação, o dono da palavra e
sabes daqueles que empunharam do primeiro ebó, é o predileto do
poeta entre todas as divindades
teus ferros em brasa iorubanas. A Exu são dedicados
os versos que falam da indignação
contra a injustiça e a opressão diante de todas as violências e
também a súplica pelo poder
Zumbi Luiza Mahin Luiz Gama da palavra exata a ser proferida
no ato de defesa do povo negro
Cosme Isidoro João Cândido [...] oprimido pelo racismo.

45
[...]

Navego teu leite A forte ligação de Abdias


com sua mãe, dona Josina, é
perfume de flor de laranjeira constantemente assinalada pelo
poeta, e a ela são creditadas as
mergulho teu seio materno
primeiras lições de determinação
que me devolve à boca no enfrentamento do racismo e
na preservação da autoestima
o leite primal de Ísis e da dignidade. Essa profunda

irmãe admiração inspirou longos e


belíssimos versos de exaltação à

amantesposa mulher negra, representada pela


figura materna de dona Josina,

Ísis que me pariu como no poema “Mãe”.

em seus negros seios


leite negro me nutriu
[...]

e de materna valentia
perdido vim eu
navegador sem bússola
da mesma gota tua
fertilizante dos óvulos
da maninha Ismênia
frágil mãe adolescendo
nos doces olhos contritos [...]

46
[...]

Como posso Oxum continuar O mesmo fio que tece a teia


poética em “Mãe” reaparece

se até a língua me arrancaram? em “Prece a Oxum”, poema de


exaltação à orixá do amor e da
fertilidade, a mãe da água doce,
[...]
rainha da beleza e do ouro.

sou o vosso filho-peixe Nestes versos, o sujeito poético


apresenta Oxum como orixá-
mãe, portadora de fecundidade
peixe-filho nadando vim e detentora da capacidade de
proteção comunitária. Coloca aos
ekodidê trançado a meus cabelos pés da maternal e amorosa Oxum
suas súplicas e queixas.
flutuando às águas fecundantes do vosso

ventre genitor e provedor


das crianças deste mundo
milhões de crianças deste mundo
milhões de crianças negras
[...]

Senhora mãe Oxum perdão


chego e parto
vou partir agora o coração
parto ao odor das violetas
do meu campo santo de amor [...]

47
Eis aqui o chão ancestral
debaixo dos meus pés seu coração pulsa
o vibrante tan-tan subterrâneo
trepida a matriz da terra negra
grávida de tanta lágrima
tanta vida
tanta esperança
[...]

Meus passos ecoam o resgate da esperança


pelo caminho antecedente
(nem largo nem estreito)
[...]

Serra serrote serra da vingança


serra o mal de barriga da serra
serra bem serrada a gorda pança/
do latifúndio da desesperança
[...]

Zambi Zumbi
Zambiapungo
Zumbi Zenith
48
O protesto negro, as histórias A literatura é a própria
de luta e resistência negras vida se manifestando e se
e as proposições políticas do reproduzindo por meio das
movimento negro são os temas palavras, do sentir, do fazer
prioritários da poética de Abdias e do existir dos indivíduos.
Nascimento. Assim, o Quilombo Assim, Abdias Nascimento,
dos Palmares, símbolo maior em seus poemas, nos informa
disso tudo, é evocado em de sua própria trajetória como
“Escalando a Serra da Barriga” negro. Principalmente, ele nos
como um emblema territorial da informa também de seus pares,
batalha anticolonial e escravista. homens e mulheres negras,
com quem partilha uma história
e uma experiência civilizatória
como povo. É esse composto
de relações e vivências que
atribui o adjetivo final ao gênero:
literatura negra.

Lindinalva Barbosa é licenciada


em letras, educadora para relações
étnico-raciais e de gênero e mestra
em estudo de linguagens, com a
dissertação As Encruzilhadas, o Ferro
e o Espelho – a Poética Negra de
Abdias Nascimento.

49
Campanha de Abdias para deputado
federal pelo Partido Democrático
Trabalhista (PDT), em 1982 | imagem:
Elisa Larkin Nascimento

50
51
O Brasil de Pele Preta
no Congresso
Abdias e seu papel no Legislativo e no Executivo: um boi
de piranha na política institucional

O NEG
Conceição Freitas

Q uatro dias depois de completar 69 anos, em 18 de março de


1983, Abdias Nascimento subiu pela primeira vez à tribuna como
deputado eleito pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) do Rio
de Janeiro para um extraordinário chamamento: “Invoco o nome de
Olorum, criador de todas as coisas: dos seres humanos e do universo.
Invoco as forças telúricas da nossa pátria ancestral – a mãe África”.
Destemido, foi além: “Invoco Exu, senhor de todos os caminhos da
existência humana, senhor das encruzilhadas onde a contradição
dialética vem ocorrendo desde os tempos imemoriais presididos
pelos mitos”. E encerrou o sagrado clamor: “Evoco e suplico a
proteção da mãe ancestral de todos nós, Nossa Senhora Oxum,
doadora do amor, da compaixão e da esperança”.
A oposição comemorava a primeira grande vitória desde o golpe
de 1964. Com Abdias, assumiam a 47ª Legislatura nomes como Ulysses
Guimarães, Mário Covas, Miguel Arraes, Eduardo Suplicy e Alencar
Furtado. Companheiro dos caciques da luta pela redemocratização do
país, Abdias tingiu o plenário da Câmara, pela primeira vez na história,
com a cor da luta pela igualdade racial. Outros negros já haviam sido
eleitos, mas até então nenhum havia se declarado preto e dedicado o
mandato ao combate à discriminação étnica.
Embora o panorama pudesse parecer favorável, dada a presença
de líderes emblemáticos para a retomada da democracia no país,
Abdias não encontrou ambiente confortável ou, pelo menos, solidário
a seus propósitos: “Ainda prevalecia, nas esquerdas daquela época,
a ideia de que as questões sociais específicas, como a racial e a de
gênero, eram inoportunas e politicamente equivocadas porque dividiriam

52
e enfraqueceriam a luta do o preto, o negro é tão nobre e tão
proletariado contra a exploração digno que o povo brasileiro o traz
econômica e de classes”, disse. para a tribuna do Congresso”.
Nunca foi fácil para Abdias, Em troca, o incansável
mas ele assumiu uma cadeira Abdias deu uma aula de
na Câmara e mais tarde, por realidade racial brasileira:
duas vezes, foi eleito no Senado, “V. Ex.a vê o racismo como

GRO
disposto a continuar sendo “boi consequência do capitalismo.
de piranha”, expressão que usava O acúmulo do capital que
para afirmar a dimensão de seu permitiu à Europa desenvolver
compromisso com a defesa dos o capitalismo industrial é o
direitos humanos e civis de sua resultado do racismo e da
gente. E também para deixar claro exploração escravagista. [...] Ao
que sabia das dificuldades que afirmar que não há racismo no
viriam. Boi de piranha é o animal Brasil por existir um deputado
de sacrifício entregue às piranhas negro no Congresso Nacional, V.
para que a boiada possa passar Ex.a está exatamente provando
pelo rio. Ou seja, ele se dispunha a que ele existe. A maioria do
ser atacado para abrir caminhos. povo brasileiro é de origem
Nos anos 1980 e nos africana, e só um deputado
seguintes, ainda se enaltecia a negro vem aqui falar a respeito
democracia racial brasileira. Tome- do seu povo. Esse é o exemplo
se como exemplo a sessão, em 21 mais clamoroso de racismo”.
de março de 1985, na qual Abdias Diante de um plenário que
voltou à tribuna para marcar o desconhecia e negligenciava a
Dia Internacional pela Eliminação questão racial, Abdias dedicava-
da Discriminação Racial. O então se a longas e pedagógicas
deputado Gerson Peres, do Partido preleções sobre a história que
Democrático Social (PDS) do o Brasil escondia de si mesmo.
Paraná, interpelou o orador: “V. Ex.a “Não me deixavam falar, queriam
violenta uma das maiores tradições cortar a minha palavra, achavam
aqui existentes, pois o que aqui que eu falava inverdades
existe, deputado, são preconceitos absurdas”, disse em depoimento
sociais, provenientes, talvez, do ao Arquivo Nacional, já aos 96
sistema capitalista vigente. Mas anos. Ele tinha a resiliência dos
não há discriminação racial. Aqui, que suportaram a escravidão.

53
ESTÁ deu poderes quase absolutos à
ditadura militar. Se antes de deixar
o país Abdias já vinha sendo
convocado pela polícia política
por suas posições de esquerda,
com o AI-5 percebe que não havia
condições de voltar ao Brasil.

ACORDA
O exílio negro, porém, se
diferenciava dos demais. Abdias
se considerava como todos
os pretos apartados da África:
Não Vote em Branco, Vote alguém “em situação de exílio
no Preto Abdias Nascimento permanente”. Nessa condição,
Havia duas décadas que Abdias denunciava a falsa democracia
vinha forçando a porta de racial brasileira. Até que, no final
entrada do Parlamento à causa dos anos 1970, teve um encontro
da igualdade racial. Pouco antes delimitador de fronteiras. Exilado
do início da campanha eleitoral em Lisboa, Leonel Brizola
de 1954, o Rio de Janeiro viu um articulava a criação do PDT. Como
santinho com a foto de um negro toda a esquerda brasileira, o líder
e o slogan: ‘’Não vote em branco, gaúcho não via sentido na luta
vote no preto Abdias Nascimento, pela igualdade racial, até que
criador do teatro negro no Brasil”. ouviu, durante uma noite inteira
Mas sua candidatura pelo Partido em Nova York, Abdias contar a
Social Trabalhista (PST) no então história do Brasil de dentro da
Distrito Federal foi negada. pele preta. “Acendeu uma luz na
Deixe estar. cabeça do Brizola”, lembra-se o
Depois da conflagração cientista político Clóvis Brigagão.
política que resultou no golpe de Daí em diante, com o retorno
1964, Abdias ganhou uma bolsa de dos exilados ao país, Abdias se
estudos de uma fundação norte- candidatou a deputado federal
americana destinada a entidades pelo PDT de Brizola. Do criador
culturais negras. Deixou o Brasil do Teatro Experimental do Negro,
em outubro de 1968, dois meses artista plástico, ativista e professor
antes de ser decretado o Ato surge o parlamentar, e é nessa
Institucional no 5 (AI-5), o ato que condição que ele “abre as portas

54
para a aprovação de leis que hoje acabou se consolidando o Projeto de Lei no 1.661/83,
são realizadas”, no dizer de Paulo como um princípio de que dispunha sobre o crime de
Paim, do Partido dos Trabalhadores diversidade generalizado. Ação lesa-humanidade a qualquer
(PT) do Rio Grande do Sul, um dos compensatória não pretendia discriminação em razão de cor
dois senadores negros da atual apagar o passado, mas trazê-lo da pele, raça ou etnia, “como
legislatura [o outro é Magno Malta, como fonte límpida para o futuro. anteriormente foram definidos o
do Partido da República (PR) do O PL n 1.332/83 previa a inclusão
o antijudaísmo nazista e o apartheid

ADO,
Espírito Santo]. A fonte de onde do ensino de história e cultura da África do Sul”, argumentou.
brotou o Estatuto da Igualdade de matriz africana nos currículos Com essa iniciativa, Abdias
Racial está em Abdias, reconhece escolares e acadêmicos, em pretendia a revogação da Lei
Paim, autor do Projeto de Lei n o
todos os níveis. O projeto Afonso Arinos, de 1951, e “sua
12.288, de 20 de julho de 2010. propunha “o princípio da isonomia substituição por um dispositivo
social do negro em relação aos legal que realmente puna,
demais segmentos étnicos da como determina o artigo 153 da
A Pressa de Impor Cores Novas população brasileira, conforme Constituição Brasileira”.
Três meses depois de assumir direito assegurado pelo artigo 153 Nem bem chegara e Abdias
o mandato de deputado federal, da Constituição da República”. já impunha à pauta branca do
Abdias apresentou o Projeto de Abdias também apresentou, Congresso Nacional as cores da
Lei n 1.332/83, que propunha
o
no mesmo dia, proposta de realidade racial brasileira. Todo
a implementação de políticas criação de um memorial ao e qualquer gesto seu era de um
públicas de igualdade racial, escravo desconhecido na ativista da causa negra. Indignado
no que ele chamava de “ação Praça dos Três Poderes e de com o fato de o então presidente
compensatória”, e não “ação estabelecimento do 20 de da Câmara, Nelson Marchezan,
afirmativa”, termo que acabou se novembro como Dia Nacional ter impedido o deputado eleito
impondo no vocabulário das lutas da Consciência Negra. Quase Mário Juruna de tomar posse com
por igualdade racial. 40 anos haviam se passado a vestimenta indígena, Abdias
Ação afirmativa (affirmative desde a Convenção Nacional encaminhou à mesa um ofício
action) é uma expressão de do Negro, em 1946, quando solicitando mudança no Regimento
origem norte-americana cunhada foram apresentadas ao país as Interno “capaz de incluir, entre os
em 1961 para designar as primeiras reivindicações da causa padrões de vestuário adequado ao
medidas positivas de combate negra. Lá estava Abdias. comparecimento de parlamentares
à discriminação racial. Ação O deputado tinha pressa. em plenário, não somente a roupa
compensatória é um termo que Vinte e oito dias depois de formal européia, mas também o
nasceu no movimento negro apresentar o projeto de ação traje originário da África”. Malvista
brasileiro na primeira metade compensatória, submeteu à e mal-entendida pela mídia, a
do século XX. Ação afirmativa apreciação da Câmara Federal proposta caiu no esquecimento.

55
E
Quando Tancredo Neves mas já não era o único candidato PDT, em 1991 Abdias deixou a
adoeceu e deixou o país em verdadeiramente preto nas Sedepron para assumir a vaga
estado de suspensão, Abdias eleições. Chegaram à Câmara, de Darcy Ribeiro, que deixava
foi à tribuna para, depois de naquele ano, Paulo Paim, Benedita o Senado com a missão de
se pronunciar sobre o Dia da Silva e Carlos Alberto de criar os Centros Integrados de
Internacional pela Eliminação Oliveira Caó. Já não era apenas Educação Pública (Ciep) de
da Discriminação Racial, um, mas três bois de piranha. Brizola. Saudado como “primeiro
invocar os orixás: “Imploro Fora do Parlamento, Abdias senador negro”, Abdias voltou

CON
compaixão de Obaluaiyê para seguia espalhando a causa da mais provocador ainda. “Após
curar o mais rapidamente igualdade racial às instituições uma viagem pela história desta
possível a enfermidade do governamentais. Desde que Casa, um olhar perquiridor sobre
nosso presidente Tancredo varou a noite contando a Brizola as origens raciais dos milhares
Neves. Atôtô!”. Era o Brasil como a escravidão está fincada de brasileiros que ocuparam
negro clamando pela vida do na história da alma brasileira, estas cadeiras no Império e na
primeiro presidente civil pós- Abdias ficou guardado na República, consegui concluir
ditadura. Eram os brasileiros lembrança e nos projetos do líder que, antes de mim, mais de duas
das religiões de matriz africana pedetista. Eleito governador do dezenas de filhos de africanos
clamando pela saúde do Rio de Janeiro em 1990, o gaúcho – aí incluídos pretos, mulatos,
presidente da República. criou uma inédita Secretaria pardos, filhos de primeira e
Findo o mandato de Extraordinária de Defesa e segunda geração – cumpriram
deputado federal, Abdias fez Promoção das Populações Afro- mandatos no Senado.” Abdias
um balanço que, num primeiro Brasileiras (Sedepron, depois cotejou informações e fotos
momento, confirmou a disposição renomeada Seafro) e convidou para chegar a esse número, isso
para boi de piranha. Suas Abdias para ser o secretário. porque “aqueles 22 senadores
principais proposições foram Na posse, diante de um Palácio não assumiram etnicamente a sua
rejeitadas pelo Congresso, que da Guanabara lotado, o titular condição de afro-brasileiros”.
de negro só tem o imponente da Sedepron evocou as rainhas Na volta ao Senado, em
salão principal. É fato que o Nzinga e Yaa Asantewaa, Zumbi 1997, Abdias percebeu que já não
projeto de ação compensatória dos Palmares, Luiz Gama e Luísa era um boi de piranha apenas.
foi rejeitado, como muitos outros, Mahin: Axé Babá! E personificou Quinze anos haviam se passado
por causa da entrada em vigor da mais uma vez o orador, o ativista, desde que chegara ao Congresso
Constituição de 1988. o professor e o historiador em Nacional pela primeira vez. A
Com o codinome “negro um discurso pleno de informação, expressão simbólica da mudança
constituinte”, Abdias lançou-se evocação da herança africana e foi a inscrição do nome de Zumbi
à campanha de 1986 para um convocação para a luta. dos Palmares no livro dos heróis
segundo mandato. Não se elegeu, Suplente de senador pelo nacionais do Panteão da Pátria,

56
monumento de Oscar Niemeyer na Requião, observou que a ação
Praça dos Três Poderes. A proposta afirmativa tem o propósito
tinha sido apresentada pela de “reparar grave injustiça
senadora Benedita da Silva (PT/RJ). sedimentada no passado e
Velhos caciques da política que ainda se verifica no mundo
brasileira se alternavam na tribuna: atual”. Mesmo assim, o projeto
Antônio Carlos Magalhães, José foi arquivado.
Sarney, Romero Jucá, Renan Quando terminou o período

NTINUA
Calheiros, José Serra. Havia um legislativo no Senado, em 1999,
que tinha muitas afinidades com Abdias estava com 85 anos.
Abdias, Eduardo Suplicy, como Nove anos depois, em longa
ele mesmo diz. De todo modo, entrevista ao Arquivo Nacional,
no Senado havia mais respeito e ele concluiu: “O negro neste
reverência ao representante da país está acordado, alerta, e vai
causa negra. “Embora pudessem continuar sua luta sempre. Isto é
discordar de Abdias, todos o um processo irreversível! Espero
tratavam com a consideração que que o Brasil tenha a sensatez de
merecia”, lembra-se Suplicy. No ouvir-lhe os gritos em vez de se
Senado, “depois de anos passados fazer de surdo. O negro no Brasil
fazendo a minha pregação, é maioria, e democraticamente
juntaram-se outras vozes à minha no futuro deve assumir a direção
e até recebia o aval dos senadores do país! É só uma questão de
aos meus projetos de lei. A tempo e de aprimoramento das
sociedade vem mudando, à medida instituições democráticas”.
que a gente bate, bate na mesma
tecla. É assim aos pouquinhos, mas
é um processo irreversível”. Conceição Freitas é jornalista,
foi repórter em jornais de Goiânia
Outra demonstração de que
e Brasília e escreveu crônicas no
os tempos haviam mudado, e Correio Braziliense durante 12 anos.
para melhor, foi quando Abdias Ganhou dez prêmios de jornalismo,
entre eles o Abdias Nascimento.
apresentou o projeto de ação
compensatória, aquele de
1983 arquivado na Câmara. A
recepção foi outra. O parecer
do relator da Comissão de
Constituição e Justiça, Roberto

57
Renan Alves, da periferia de
Diadema, em São Paulo, para
o mundo. Conhecido também
como Tutuco, o atleta é destaque
nas rodas de capoeira de São
Paulo e tem se dedicado à
atividade de personal training, à
musculação e ao body building |
imagem: Roger Cipó

58
59
A Beleza da Identidade
Um ensaio fotográfico de Roger Cipó a partir de uma inspiração
vinda de Abdias

U m pioneiro da capoeira na Noruega. Um economista sacerdote do


candomblé. Uma cantora que é deputada. Uma criança com nome
de guerreira de Palmares. Um pai e uma mãe do samba de São Paulo.
Vivências múltiplas de negros e negras que, pelas lentes do fotógrafo
Roger Cipó, são reunidas aqui.
Pedimos a Roger este ensaio provocados por um dos projetos de
Abdias. O ativista – por meio do Teatro Experimental do Negro (TEN)
e do jornal Quilombo – promoveu os concursos Rainha das Mulatas e
Boneca de Pixe entre 1947 e 1950. Segundo ele, a missão era “pôr um
ponto final na tradição brasileira de só ver na mulher negra e mulata
um objeto erótico”. Julgavam aparência e “qualidades morais”. Além
disso, pretendia-se romper com um padrão notado nos concursos de
misses: a participação reduzida ou nula de mulheres negras.
Para a pesquisadora Elisa Larkin Nascimento, essas ações
visavam à “construção de alicerces de autoestima para a população
negra” e apontavam as “implicações racistas dos padrões de estética
vigentes”. Lutas que, hoje, prosseguem.
As fotos a seguir expandem o escopo das atividades originais – não
se trata mais só da boniteza ou da postura de uma miss –, mas seguem
sua essência: o esforço de ressaltar a variedade de belezas e identidades.

Roger Cipó é fotógrafo, educador, pesquisador e militante pelos direitos e pela liberdade
dos povos de terreiro. Gere o grupo Olhar de um Cipó, voltado para a preservação da
identidade e da estética religiosa afro-brasileira.

Tia Cida é uma das fundadoras do Berço do


Samba de São Mateus, terreiro de samba na zona
leste de São Paulo. Cantora, gravou seu primeiro
disco aos 73 anos de idade, com produção
do Quinteto em Branco e Preto, grupo que ela
viu nascer no seu quintal. Na foto, Tia Cida é
acariciada por um de seus filhos, o músico Tocão. 

60
61
Ryan Lucas, estudante, é um dos muitos
garotos de periferia que mantêm o sonho
de se tornar jogador de futebol e atuar nos
grandes clubes do mundo. Seu time do
coração é o Santos Futebol Clube. 

62
Dandara Guimarães, de 2 anos, é a princesa
da mãe, a professora Geisa,, e do pai, o
vendedor Sidnei.

63
Erika Vicentina é arte-educadora e atriz. É
também militante pelos direitos da população
negra e pela diversidade de gênero, atuando
em coletivos artísticos que pautam as
questões de diferentes lutas sociais. 
Babá Mojé é o nome sagrado de Maurício
Almeida, profissional da economia que, fora
da rotina corporativa, assume a função
de asogbá – importante cargo do culto a
Omolu, orixá dono da terra e da cura – no
terreiro de candomblé Egbé Iya G’unté, em
Juquitiba, São Paulo.
Raissa Teixeira é uma jovem blogueira,
feminista ativista pelos direitos da mulher
e pelo empoderamento feminino. Escreve
em seu blog, Toda Melanina, além de
palestrar em encontros temáticos que
abordem as questões do feminismo e a
cultura do candomblé, religião seguida por
ela no tradicional terreiro Kupapa Unsaba,
no Rio de Janeiro. 

67
Professor Poca é capoeirista desde 1996 e
já resgatou da violência centenas de crianças
pobres nas comunidades de Diadema, em
São Paulo, por meio do esporte. Tornou-se
um dos precursores dessa forma de combate
no norte da Europa, tendo estabelecido o
grupo de capoeira Beija-Flor na cidade de
Bergen, na Noruega.

Leci Brandão, deputada estadual em


São Paulo em seu segundo mandato. A
carioca, que completou 72 anos em 2016, é
compositora e uma das principais cantoras
brasileiras, conhecida mundialmente por
suas interpretações e por uma longa carreira
destacada por letras afirmativas e românticas. 

68
A professora de controle de qualidade
Geisa Guimarães e sua princesa Dandara,
nome inspirado na histórica guerreira
Dandara de Palmares. 

Seu Dadinho do Camisa, ou Eduardo


Joaquim, tem uma vida inteira dedicada ao
samba e transformada por ele. Seu grande
amor é a Camisa Verde e Branco, uma das
mais tradicionais escolas de samba de
São Paulo.

69
ilustração: Robinho Santana
70
71
CARTOGRAFIA
ABDIAS NASCIMENTO:
Um olhar sobre
o pensamento
Maurinete Lima e Eugênio Lima | ilustração Robinho Santana

“Resgatar nossa memória significa


resgatarmos a nós mesmos do
esquecimento, do nada e da negação,
e reafirmarmos a nossa presença
ativa na história pan-africana e na
realidade universal dos seres humanos.”
(NASCIMENTO, 2009, p. 11)

E sta cartografia sobre o pensamento de Abdias pede para ser


compreendida a partir do ponto de vista da desterritorialização, em
que a multiplicidade de períodos históricos conflui para o pensamento
do autor, criando outras possibilidades de acesso aos ramos de
um conhecimento influenciado pelos conceitos e movimentos que
construíram uma narrativa da gente negra brasileira.
Como toda visão cartográfica, ela não pretende ser um
caminho único e linear para o material: ela se localiza na imensidão
da diáspora negra, com seus fluxos, contrafluxos, suas derivas e,
sobretudo, seus encontros.
Nesta publicação, o material se guia pelo eixo Dia Nacional da
Consciência Negra, que está dividido em partes; cada uma das partes
é uma porta. São elas: Negritude, Pan-Africanismo, Consciência

72
Negra, Brasil, Quilombismo, Racismo como Dispositivo de Controle
e Antigamente Quilombos, Hoje Periferia. Uma versão ampliada
deste conteúdo cartográfico pode ser vista em itaucultural.org.br/
ocupacao – por exemplo, com material sobre o feminismo negro e o
genocídio do negro brasileiro.
Dia Nacional da Consciência Negra foi organizado na contramão
da história oficial, constituindo-se em um portal de entrada para outra
história possível, que se utiliza das impossibilidades para criar a narrativa
de um povo negro – “estes seres-capturados-pelos-outros” –, que,
contrariamente a todas as circunstâncias adversas, conseguiu “articular
uma linguagem para si, reivindicando o estatuto de sujeitos completos do
mundo vivo...” (MBEMBE, 2014).
Uma malha que conecta as partes umas às outras, mas também
que existe em si, como um espaço aberto onde tempo histórico,
território, língua ou nacionalidade têm suas fronteiras suprimidas, pois
o mapa nunca se fecha, ele sempre aponta para outro lugar, que não
está contido nele próprio.
Aqui, cada parte é um mosaico e, quando unida a outras, forma
um novo desenho, uma nova cartografia. Uma cartografia da diáspora
do pensamento de Abdias Nascimento.
Sejam bem-vindos(as)!

“Como uma alternativa à metafísica


da ‘raça’, da nação e de uma cultura
territorial fechada, codificada no corpo, a
diáspora é um conceito que ativamente
perturba a mecânica cultural e histórica
do pertencimento. Uma vez que a simples
sequência dos laços explicativos entre lugar,
posição e consciência é rompida, o poder
fundamental do território para determinar
a identidade pode também ser rompido.”
(GILROY, 2001, p. 18)

73
Eixo Dia Nacional da Consciência Negra

Negri
74
“ A negritude, aos meus olhos, não é uma


filosofia.
A negritude não é uma metafísica. A materialidade da negritude é produto
A negritude não é uma pretensiosa de uma realidade histórica. A negritude
concepção do universo. seria, para os negros, uma estratégia
É uma maneira de viver a história dentro da afirmação e reafirmação de si. Um
da história; a história de uma comunidade ‘si’ grupal; oposto àquele estilhaçado e
cuja experiência parece em verdade grotesco ‘negro’ – convertido na figura
singular, com suas deportações de historicamente emblemática do Outro pelo
populações, seus deslocamentos de racismo – que povoa o imaginário de um
homens de um continente a outro, suas todo mundo racializado.
lembranças distantes, Raça existia; era uma construção
seus restos de culturas assassinadas.
(CÉSAIRE , 2010)
1 “ social concreta, um incontornável
legado perverso da história. Havia que
desmitificá-la e torná-la inoperante
mediante um pensamento e uma
1 Poeta e homem público martiniquense. Um dos
grandes teóricos e ativistas do movimento da práxis. Para isso, faz-se necessário
negritude. Seu poema “Cahier d’un Retour au Pays apelar para uma consciência
Natal” é uma espécie de hino da diáspora africana
em todo o mundo (LOPES, 2004, p. 182-183). identitária especificamente negra
e, consequentemente, estruturar
organizações sociais, também negras,
para se contrapor em todos os planos
quando o negro fora negado e esmagado.
A negritude situa-se no terreno
de um movimento de ideias e práticas
que, assumindo a noção de raça, para

tude
desmitificá-la, visa derrotar o racismo.
(MOORE2,1 2010, p. 18-19) “
2 Cientista político, etnólogo e sociólogo nascido em Cuba
em 1942. Militante do pan-africanismo, coordenou, entre
outros, o colóquio Negritude e Culturas Africanas nas
Américas (Miami, 1987) (LOPES, 2004, p. 448).
Crítica ao Marxismo
“ O que eu quero é que o marxismo e o
comunismo sejam colocados a serviço
dos povos negros, e não os povos negros
a serviço do marxismo e do comunismo.
Que a doutrina e o movimento sejam
feitos para os homens, não os homens
para a doutrina ou para o movimento. E
compreenda-se bem que isso não vale
unicamente para os comunistas. Se
eu fosse cristão ou muçulmano, diria a
mesma coisa.
“ (CÉSAIRE, 2010)

Negritude –
Afrorismo 1
“ A negritude transformou a identidade
sociocultural dos povos negros numa
ocidental, até então considerado um
critério universal de referência. Ela
arma de emancipação e num projeto contribuiu para voltar a ligá-los à sua
de renascimento. Ela lutou contra o história, às suas tradições culturais,
eurocentrismo, o racismo, os preconceitos às suas línguas. Por consequência,
e a incompreensão e a arrogância das permitiu consolidar as consciências
potências coloniais triunfantes; ela dos povos negros e mobilizá-los para
rejeitou a aculturação e a assimilação
e dessacralizou o paradigma cultural
as lutas anticoloniais e libertadoras.
(SOW, 1977, p. 15-16) “
76
consciência
negra “ Em nosso manifesto político, definimos

Pan-
os negros como aqueles que, por lei
ou tradição, são discriminados política,
econômica e socialmente como um

africanismo
grupo na sociedade sul-africana e que
se identificam como uma unidade na luta
pela realização de suas aspirações. Tal
definição manifesta para nós alguns pontos:
1. ser negro não é uma questão de

A ideologia pan-africanista surgiu como


um sentimento solidário e como
consciência de origem comum entre
pigmentação, mas o reflexo de uma
atitude mental;
2. pela mera descrição de si mesmo
negros de todo o mundo. como negro, já se começa a trilhar o
Expoentes importantes: W. E. B. Du Bois caminho rumo à emancipação, já se está
(Estados Unidos, 1868-Gana, 1963), Marcus comprometido com a luta contra todas as
Garvey (Jamaica, 1887-Inglaterra, 1940), forças que procuram usar a negritude como
Amílcar Cabral (Guiné-Bissau, 1924-Guiné- um rótulo que determina a subserviência.
Conacri, 1973), Stokely Carmichael (Trinidade, Os negros – os negros verdadeiros
1941-Guiné-Conacri, 1998), Angela Davis – são os que conseguem manter a
(Estados Unidos, 1944) e demais membros cabeça erguida em desafio, em vez de
do Partido dos Panteras Negras, fundado em entregar voluntariamente sua alma ao
1966 nos Estados Unidos. branco. Assim, numa breve definição,

77
consciência negra é essencialmente a
percepção do homem negro sobre a
necessidade de juntar forças com seus
irmãos em torno da causa de sua atuação
– a negritude de sua pele – e agir como
um grupo, a fim de se libertarem das
correntes que os prendem a uma servidão
perpétua. A consciência negra procura
provar que é um equívoco considerar
o negro uma aberração do ‘normal’,
que é ser branco. Procura infundir na
comunidade negra um novo orgulho de
si mesma, seus esforços, seus sistemas
de valores, sua cultura, sua religião e sua
maneira de viver a vida.
A inter-relação entre a consciência
do ser e o programa de emancipação é
de importância primordial. A libertação
tem importância básica no conceito de
consciência negra, pois não podemos ter
consciência do que somos e ao mesmo
tempo permanecer em cativeiro. Queremos
atingir o ser almejado, um ser livre.
(BIKO, 1990, p. 65-66) “
78
brasil
Embranquecimento

O embranquecimento é uma ideologia que
visa ao branqueamento cultural e biológico.
Quanto mais branco melhor. A alusão ao
embranquecimento como ‘uma bênção’ é
significativa até os dias de hoje.
O tema cor tem prevalecido desde
que o Brazil é Brasil, ou melhor, desde
quando éramos América Portuguesa.
Vejamos a descrição dos primeiros
L (lei) e sem R (rei); naturais esses que
viajantes, que destacavam a existência de
foram caracterizados a partir da noção
uma paradisíaca, mas, lamentavelmente,
da falta ou da ausência de algo. Começa
estranheza de nossa gente.
a ser posta em prática então a noção de
É de autoria do português Gândavo
laboratório racial brasileiro: é no século
(1540-1580) uma máxima que definiria
XIX que teóricos do darwinismo racial
com ênfase não tanto a natureza do Brasil,
tornam atributos externos e fenotípicos
mas seus naturais: povos sem F (fé), sem
os elementos essenciais definidores das
moralidades e do devir dos povos. Raça,
no Brasil, jamais foi um termo neutro; ao
contrário, associou-se com frequência a
uma imagem particular do país. Muitas
vezes, na vertente mais negativa do final

79
do século XIX, a mestiçagem existente
no país parecia atestar a própria falência
da nação. Nina Rodrigues é o grande
defensor dessa premissa. Adepto do
Mestiçagem
darwinismo racial e dos modelos do
poligenismo – que defendiam que as raças
“ A miscigenação que largamente se
praticou aqui corrigiu a distância social
humanas correspondiam a realidades que doutro modo se teria conservado
diversas, fixas e essenciais, e, portanto, entre a casa-grande e a mata tropical;
não passíveis de cruzamento –, ele entre a casa-grande e a senzala. A índia e
acreditava que a miscigenação extremada a negra-mina, a princípio, depois a mulata,
era sinal de degenerescência. a cabrocha, a quadrarona, a oitavona,
Também o antropólogo Roquette-Pinto tornando-se caseiras, concubinas e até
previa, anos depois e a despeito de sua crítica esposas legítimas dos senhores brancos,
às posições racistas, um país cada vez mais agiram poderosamente no sentido de
branco: em 2012, teríamos uma população
composta de 80% de brancos e 20% de
democratização social no Brasil.
(FREYRE, 1966) “
mestiços; nenhum negro, nenhum índio.
(SCHWARCZ, Lilia, 2012) “
Democracia Racial
“ Pare e olhe para a base. Nós somos
um cadinho de raças? Nós somos
uma democracia racial? Como pode a
democracia racial aparecer num país que
não tem tradição de democracia política?
O ideário de democracia racial não aparece
historicamente no século XIX para acomodar
estrangeiros? O ideário de democracia racial
traz algum avanço em relação à questão
do negro? O negro está realmente em
questão quando se fala em democracia
racial? Onde estão os negros? Onde está a
história? Onde estão os negros na história?
Quem acredita em democracia racial? Muita
gente... Os negros acreditam... Acreditam?
(FRENTE 3 DE FEVEREIRO, 2005) “
80
movimento negro
no brasil
“ Os movimentos negros são uma série
de movimentos sociais organizados em
Os movimentos negros no Brasil
costumam ser divididos, grosso modo,
torno da luta antirracista. Organizam-se de em quatro períodos principais: República
maneiras diversas, com estrutura filosófica, Velha (1889-1930); da Revolução de
social e ideológica próprias, realizados 1930 ao Estado Novo de Getúlio Vargas
a partir de uma perspectiva de gênero, (1930-1937); da democratização ao Golpe
raça e etnia por pessoas que lutam contra Militar (1945-1964); da abertura política
o racismo naturalizado na sociedade
brasileira e a marcas da escravidão.
(1978/79) ao contexto atual.
(DOMINGUES, 2007, p. 100-122) “
81
Quilombismo 3
1

Quilombo
Palmares
Zumbi dos Palmares
Quilombismo segundo Abdias
Nascimento
Dia Nacional da Consciência Negra

3 Sugestão de leitura: Quilombismo e


Quilombolas: Experiências Históricas e
Culturais Negras.

quilombismo
Quilombo
“ Quilombo era ‘toda habitação de negros
fugidos que passassem de cinco, em
parte despovoada, ainda que não tenham
ranchos levantados nem se achem
pilões neles’, segundo resposta do rei
de Portugal a consulta do Conselho
Ultramarino datada de 2 de dezembro
de 1740. De acordo com essa definição
da metrópole, o Brasil praticamente se
converteu em um conjunto de quilombos,
uns maiores, outros menores, mas todos
significativos para a compreensão da
nossa história social.
Os pequenos quilombos possuíam
uma estrutura muito simples: eram
grupos armados. As lideranças, por isso,
surgiam no próprio ato da fuga e da sua
organização. Os grandes, porém, já eram Palmares
muito mais complexos. O de Palmares


Confederação de quilombos, sendo
chegou a ter cerca de 20 mil habitantes
os principais: mocambo de Zumbi; de
e o de Campo Grande, em Minas Gerais,
Acotirene; de Dambrabanga; de Osenga;
cerca de 10 mil ou mais, assim como o de
de Andalaquituche, irmão de Zumbi; de
Ambrósio, no mesmo estado.
Alquatune e mãe de Zumbi, além de muitos
Convém notar, porém, que o
outros menores. Desses quilombos, o
quilombo, além de não ser completamente
mais importante era a Cerca Real do
defensivo, nunca foi uma organização
Macaco, situado na atual cidade de União
isolada. Para seu núcleo convergiam
dos Palmares, em Alagoas. Em cada
elementos igualmente oprimidos na
mocambo, o chefe era senhor absoluto,
sociedade escravista: fugitivos do serviço
mas, nas ocasiões de guerra, reuniam-se
militar, criminosos, índios, mulatos e
para deliberar conjuntamente na Casa
negros marginalizados.
“ do Conselho do Macaco, sob as ordens


(MOURA, 1981, p. 16-18)
de Zumbi ou de outro chefe da república.
(MOURA, 1981, p. 36-37)

83
Zumbi dos Palmares Definição de
“ Primeiro militante do pan-africanismo e da
luta por liberdade em terras brasileiras, Zumbi
Quilombismo
dos Palmares nasceu em 1655, no estado
de Alagoas. Ícone da resistência negra à
“ O quilombismo é um conceito científico histórico-
social. Quilombo não significa escravo fugido.
escravidão, liderou o Quilombo dos Palmares. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre,
Embora tenha nascido livre, foi capturado solidariedade, convivência, comunhão existencial.
aos sete anos de idade e entregue a um A sociedade quilombola representa uma etapa
padre católico, do qual recebeu o batismo e no progresso humano e sociopolítico em termos
foi nomeado Francisco. Aprendeu a língua de igualitarismo econômico. Como sistema
portuguesa e a religião católica. Porém, aos econômico, o quilombismo tem sido a adequação
15 anos, voltou a viver no quilombo, pelo ao meio brasileiro do comunitarismo ou do
qual lutou até a morte, em 1695. Símbolo ujamaaísmo1 da tradição africana. Em tal sistema,
da luta contra a escravidão, Zumbi lutou as relações de produção diferem daquelas
também pela liberdade de culto religioso e prevalecentes na economia espoliativa do
pela prática de culturas africanas no país.
(PERSONALIDADES NEGRAS, 2016) “ trabalho, chamada capitalismo, em que se busca
o lucro a qualquer custo. Compasso e ritmo
do quilombismo se conjugam aos mecanismos
operativos, articulando os diversos níveis de uma
vida coletiva cuja dialética interação propõe e
assegura a realização completa do ser humano.
Todos os fatores e elementos básicos são de
propriedade e uso coletivo.
A revolução quilombista é fundamentalmente
antirracista, anticapitalista, antilatifundiária, anti-
imperialista e antineocolonialista.
(NASCIMENTO, 2009) “
4 Ujamaa – palavra suaíli para “comunidade familiar” – foi uma
política social e econômica desenvolvida por Julius Kambarage
Nyerere, presidente da Tanzânia de 1964 a 1985, centrada na
agricultura coletiva, na nacionalização dos bancos e da indústria e
no aumento da autossuficiência em níveis individuais e nacionais.

84
Dia Nacional da
Consciência Negra
“ O Dia da Consciência Negra deve
resumir tudo o que tiver ocorrido nos
território onde houve o infame cativeiro. Na
celebração de encerramento da Semana
dias anteriores. Ênfase à figura de Zumbi, da Memória Negra, deve-se dar todo o
consolidador da luta palmarista, que destaque aos programas e projetos das
selou com sua morte em plena batalha a entidades e da comunidade, tendo em vista
determinação libertária do povo negro- um futuro melhor para os afro-brasileiros.
africano escravizado. Ele é o fundador, na O último evento da Semana deve, de
prática, do conceito científico histórico- preferência, acontecer ao ar livre, numa
cultural de quilombismo. Quilombismo concentração da comunidade negra e das
continuado por outros heróis da história pessoas de qualquer origem interessadas
negra: Luísa Mahin e seu filho Luís Gama, em nossas atividades. Durante todo o
Chico-Rei, os enforcados da Revolta dos decorrer da Semana, deverá ser evitada
Alfaiates, dos levantes dos Malês, da toda a retórica acadêmica e ideológica
Balaiada, o Dragão do Mar, Karocango, incapaz de apresentar conteúdos ou
João Cândido e os milhões de quilombolas
assassinados em todas as partes do nosso
propostas úteis.
(NASCIMENTO, 2009) “

Racismo
como
Dispositivo
de Controle
Desvalorização o mito da inexistência do racismo em
Continuada da nosso país (GONZALEZ, Lélia, 1988). A
sistemática desvalorização da natureza
Natureza Feminina feminina negra não foi simplesmente uma

Negra consequência direta do ódio pela raça; foi


um método calculado de controle social.

“ No racismo disfarçado, prevalecem as


teorias da miscigenação, da assimilação
Durante os anos da reconstrução, o povo
negro emancipado demonstrou que, sendo-
e da democracia racial e essa forma lhes dadas as mesmas oportunidades
de se manifestar impede a consciência que aos brancos, podia se sobressair em
objetiva desse racismo sem disfarces e todas as áreas. O seu feito era um desafio
o conhecimento direto de suas práticas direto às noções racistas sobre a inerente
cruéis, pois a crença historicamente
construída sobre a miscigenação criou
inferioridade das raças de pele escura.
(HOOKS, 2014) “

86
Genocídio Negro –
Casa-Grande Moderna
O Medo Branco
Entrevista no vão do Museu de Arte de São
Paulo (Masp) sobre por que a Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo
Crítica da Razão (Fiesp) é a Casa-Grande Moderna.

Negra – O Devir Como você responderia à pergunta

Negro do Mundo escrita no cartaz que ergueu: “Abolição


é golpe?”?

“ O negro é, na ordem da modernidade, o


único de todos os humanos cuja carne
foi transformada em coisa e o espírito em
O teatro tem sido um dos espaços
mais criativos (e contundentes) no
questionamento do racismo que atravessa
mercadoria – a cripta viva do capitalismo. a sociedade brasileira. Nos últimos anos,
Em muitos países, assevera-se agora um tornou-se também um espaço de irrupção
‘racismo sem raça’. No intuito de aprimorar das tensões raciais que por décadas
a prática da discriminação, tornando a foram encobertas por mitos como o da
raça conceptualmente impensável, faz- “democracia racial”.
se com que cultura e religião tomem o
lugar da ‘biologia’. Além disso, se no meio E hoje, você acha que a abolição
dessa tormenta o negro conseguir de fato já aconteceu?
sobreviver àqueles que o inventaram, e se, A abolição é um projeto incompleto. Os
numa reviravolta de que a história guarda efeitos desse projeto incompleto estão
segredo, toda a humanidade subalterna se no extermínio da juventude negra, e
tornar negra, que riscos acarretaria um tal esse é um projeto muito nítido. É o eixo
devir-negro do mundo a respeito da universal fundamental de uma política de controle
promessa de liberdade e de igualdade populacional, criada em simbiose com
de que o nome negro terá sido o signo um aparato jurídico-policial que está
manifesto no decorrer do período moderno?
(MBEMBE, 2014, p. 19-21) “ fundamentado em dois pontos centrais.
Um deles é o encarceramento em massa:

87
no comportamento social, que, de maneira
geral, tenta negar a existência de racismo.
Isso é o que a socióloga Vera Malaguti
Batista define como medo branco: a ideia
dessa conflitividade óbvia, de que um dia o
país, que é majoritariamente negro, vai se
insurgir, de que um dia haverá um grande
o Brasil tem a quarta maior população conflito social se “o morro descer”. E
carcerária do mundo e a única entre as isso só pode ser evitado com uma dura e
quatro primeiras que continua a crescer. mortífera política de controle. Daí a nitidez
Isso está baseado numa espécie de do projeto de extermínio da juventude negra.
naturalização do racismo, seja na ideia de O genocídio da juventude negra é real, mas
“suspeito cor padrão”, seja na ideia de que é tratado como uma exceção, uma anomalia
negro/homem/pobre é igual a ser bandido. – e não uma política (LIMA, 2016).
Essas são justificativas para uma atuação
diferenciada tanto da polícia quanto da
justiça no que diz respeito a negros e
brancos no Brasil. Negros têm geralmente
penas mais duras do que os brancos,
pelos mesmos crimes cometidos. Epílogo
E o segundo ponto central?
É o da “vida matável”. A polícia vive a
Antigamente
Quilombos,
lógica de uma guerra, seja contra o crime,
seja contra as classes consideradas
perigosas. Ou seja, a polícia combate um
inimigo comum, com táticas de guerra
e aparatos de segurança importados
de outros países, principalmente dos
que vivem guerras contra populações
determinadas, como o estado de Israel.
Uma vida matável é uma vida dispensável.
Mas, como o racismo internalizado nas
corporações policiais é sistêmico, é como
se ser negro(a) fosse ser uma “espécie de
sujeito a ser combatido”. E isso tem lastro

88
“ Antigamente quilombos, hoje periferia
O esquadrão zumbizando as origens,
‘z’africania’
Somos filhos de uma terra sagrada
Qualquer periferia, qualquer quebrada é
um pedaço d’África
[...]
E nos antigos mistérios da quilombologia,
toda quebrada é quebrada na grande
periafricania.
Somos todos Zumbi.
(MC GASPAR, 2007) “

Hoje
Periferia
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CÉSAIRE, Aimé. Discursos sobre a negritude. Tradução Ana
Maria Gini Madeira. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
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brasileira sob o regime da economia patriarcal. Recife: Imprensa
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Entrevista concedida a Eliane Brum. Disponível em: <http://brasil.
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Acesso em: 3 out. 2016.
LOPES, Nei. Enciclopédia da diáspora africana. São Paulo: Selo
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90
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Lisboa: Antígona, 2014.
MC Gaspar. Periafricania-brasileiroz. In: FRENTE 3 DE
FEVEREIRO. Zumbi somos nós: diáspora afronética. São Paulo:
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MOURA, Clóvis. Os quilombos e a rebelião negra. 1. ed. São Paulo:
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NASCIMENTO, Abdias. Quilombismo: um conceito emergente
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SCHWARCZ, Lilia M. Nem preto nem branco: muito pelo
contrário, cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro
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SOW, Alpha et al. Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições
70, 1977.

Eugênio Lima é ator, diretor Maurinete Lima é poeta, Robson Santana da


de teatro, coreógrafo, doutoranda em antropologia Silva, o Robinho Santana,
DJ e pesquisador. É social pela Universidade de é ilustrador, designer
membro fundador do São Paulo (USP) e bacharel 3D e animador. Publica
Núcleo Bartolomeu de em sociologia e ciência seus trabalhos em
Depoimentos, da Frente 3 de política pela Universidade robinhosantana.tumblr.com
Fevereiro e da Banda Cora. Federal de Pernambuco
(UFPE). É membro-
fundadora da Frente 3
de Fevereiro.

91
Abdias fala após a Marcha
Zumbi Vive, na Cinelândia, no Rio
de Janeiro, em 1983 | imagem:
Elisa Larkin Nascimento

92
93
Coração calejado por
uma longa luta
Abdias Nascimento

(Discurso proferido em 20 de março de 1997. O texto foi extraído do site do Congresso


Nacional. O título foi acrescido por nós.)

E xmª Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de


Olorum, inicio o meu pronunciamento.
Numa bela tarde de sol, ao pisar na praça onde meninas e
meninos negros de Soweto haviam sido assassinados em 1976
por terem organizado pacificamente uma manifestação contra o
sistema de ensino racista do apartheid, a emoção que me acometeu
foi a mesma que sinto em cada dia 21 de março, Dia Internacional
pela Eliminação da Discriminação Racial. Acompanhado do ilustre
jornalista e hoje Deputado Neiva Moreira, da jornalista Beatriz
Bissio e da escritora Elisa Larkin Nascimento, visitamos, em 1994, o
monumento erguido a essas vítimas, por ocasião da nossa estada
em Johannesburg, representando nosso Partido, o PDT, na primeira
reunião da Internacional Socialista em terras africanas. Pudemos
testemunhar a mobilização febril e entusiasta de uma sociedade ao
se livrar dos grilhões seculares do racismo e organizar-se para o
exercício da democracia. Entretanto, para mim foi aquele o momento
mais significante, pois a homenagem ao martírio daqueles meninos,
no próprio instante da ascensão de Nelson Mandela ao Poder,
simbolizou o protagonismo e a esperança dos negros, em todo o
mundo, na sua justa resistência à opressão racista. Resistência a que,
no Brasil e no exterior, dediquei a minha vida e as minhas energias.
Hoje, subo a esta tribuna para dar continuidade a esta luta em
defesa dos direitos dos afro-brasileiros, vitimizados de forma cruel
e inquestionável pelo racismo, fonte maior das desigualdades neste
país. Solto esta minha voz rouca para manter vivo e em estado de
alerta o espírito de justiça desta Casa diante de um dos problemas
mais graves a ameaçar hoje a construção de uma verdadeira

94
democracia em nosso País: a Entretanto, muito mais apenas um chegava ao porto
exclusão, no rol da cidadania, de terrível que o holocausto do de destino. Alguns morriam
uma maioria da nossa população. povo judeu, perpetrado pelos ainda nas longas caminhadas
O que nos traz aqui neste dia nazistas alemães durante a no território africano. Outros,
é o aniversário do massacre de Segunda Guerra Mundial, e nos postos de embarque. Um
Sharpeville, ocorrido há 27 anos de proporções muito maiores, número considerável era atirado
na África do Sul: tragédia tão foi aquele que os europeus ao mar devido a enfermidades,
hedionda que se transformou em protagonizaram, desde o século mortos de sede. Por fim, nos
símbolo da luta contra a opressão XVI, na África e nas Américas. mercados de escravos, já no
racial. Naquele dia, foram mortas Nesse episódio, aniquilaram Brasil, outros não resistiam
69 pessoas e feridas centenas povos inteiros e submeteram aos sofrimentos da travessia
de outras que protestavam os remanescentes à condição atlântica e descansavam nos
pacificamente contra a infame Lei de objetos ou mercadorias braços da morte. Somem-se
do Passe, pela qual os africanos destituídos de sua condição a isso milhões de habitantes
eram impedidos de circular humana. Estimativas falam das Américas exterminados
livremente em sua própria terra. em 200 milhões de homens, pelos conquistadores europeus,
Se hoje a África do Sul é mulheres e crianças capturados ibéricos sobretudo, configurando
um Estado democrático dirigido e transformados em escravos. um quadro aterrador,
por um homem extraordinário, Sob grilhões, foram obrigados freqüentemente mascarado sob
o grande Presidente Nelson a atravessar o Atlântico, na o idílico título de colonização
Mandela, encarcerado durante 27 maior migração forçada de humanitária ou benevolente.
longos e angustiantes anos por que se tem notícia. Para cada O racismo, Sr. Presidente
se manter sempre fiel aos ideais dez africanos aprisionados, e Srs. Senadores, não é um
de liberdade, justiça e igualdade,
muito tempo ainda há de passar
para que aquele país se recupere
plenamente dos traumas causados
por séculos de opressão racial e
O dominador pretendia
por décadas de apartheid. Esse reduzir sua identidade à cor
de pele, feita sinônimo de
foi o sistema de segregação racial
mais hediondo de que se tem
notícia, responsável pela produção
de um Estado étnico comparável
condenação à inferioridade e
apenas à Alemanha hitlerista e
definido pela ONU como crime
à condição de escravo
contra a humanidade.

95
problema apenas de cor da pele. A crônica da construção faziam cirurgias para a remoção
Sua natureza mais profunda reside dessa imagem, às custas da de cataratas oculares e a
na tentativa de desarticular um falsificação da história africana, é extração de tumores cerebrais?
grupo humano pela negação de a história do eurocentrismo, que A se fazer justiça, aliás, o título
sua identidade coletiva. Assim, conseguiu erguê-la à condição de de Pai da Medicina não deveria
ao rotular de “negros”, “kaffirs”, verdade dita científica. caber a Hipócrates, mas ao
“ladinos”, “pretos” ou “crioulos” os Tempos atrás, ninguém cientista e clínico egípcio
africanos e seus descendentes, o duvidava que os africanos Imhotep, que quase três mil
dominador pretendia arrancar-lhes construíram as bases da própria anos antes de Cristo praticava
a referência básica à sua condição civilização ocidental. Heródoto, virtualmente todas as técnicas
humana, simbolizada na referência o Pai da História, descreveu básicas da Medicina, com
à sua vida soberana na terra de os egípcios como “negros de profundo conhecimento de
origem; reduzir sua identidade cabelos lanudos”. Eram eles os assepsia, anestesia, hemostasia e
à cor da pele, feita sinônimo de responsáveis por grande parte cauterização, além de vacinação
condenação à inferioridade e à do legado creditado à cultura e farmacologia. Junte-se o
condição de escravo. grega: das Artes e da Literatura à domínio egípcio da Arquitetura,
Até hoje as comunidades Filosofia, Medicina e Matemática, da Metalurgia, da Astronomia, a
de origem africana nas Américas sem esquecer a invenção da engenhosidade dos sistemas de
sofrem a falta de uma referência escrita, por eles atribuída ao irrigação, e se terá a razão do
histórica que lhes permita deus Toth. A influência egípcia é interesse dos gregos por esse
construir uma auto-imagem digna assinalada pelos próprios gregos, povo africano: aprender.
de respeito e auto-estima. A seja com seu reconhecimento Os ideólogos arianistas do
identidade “negra” fica confinada explícito, seja pelo interesse século passado foram obrigados
às surradas categorias do que sempre manifestaram em a se lançar a uma árdua e infame
ritmo, do esporte, do vestuário atravessar o Mediterrâneo para tarefa “intelectual”: reduzir
e da culinária, e parece que a estudar no Egito. Pitágoras e a importância das matrizes
atividade intelectual, política, Euclides, por exemplo, passaram egípcias na formação da
econômica, técnica e tecnológica décadas aprendendo Matemática cultura grega e descaracterizar
não está a seu alcance. Assim, no Egito, enquanto a famosa a africanidade dos egípcios,
a criança de origem africana República de Platão - que odiava valendo-se de interpretações
tende a não identificá-las como a democracia ateniense - nada que beiram o grotesco em
áreas de profissionalização ou mais é que uma idealização da seu afã de desmentir o óbvio.
de aspiração, reproduzindo ela hierarquizada sociedade egípcia. Criou-se, desse modo, a raça
própria a imagem excludente Como divorciar a identidade vermelho-amarronzada, ou
implícita na versão da história que africana da tecnologia, se, há marrom-avermelhada, como
lhe é passada. 4.600 anos, médicos egípcios se construções terminológicas

96
O linchamento físico quintos de existência do Brasil
constituiu mais de dois terços de
que sofriam os afro- sua população, e que ainda hoje

americanos nos Estados compõe uma maioria minorizada.


Até hoje, nossos livros
Unidos foi substituído no didáticos contam balelas como
aquela de que o africano aceitava
Brasil por um linchamento a condição escrava. Ora, a

cívico, mais sutil e eficaz história da escravidão no Brasil


é a crônica da constante e
multifacetada resistência dos
africanos. Individual ou coletiva,
fossem capazes de mascarar rotas comerciais, de intercâmbio essa recusa incluía tudo, desde o
para sempre a natureza das e comunicação internacional, a suicídio até a luta organizada nos
verdades históricas. África jamais se reduziu ao viveiro quilombos ou em insurreições
A civilização egípcia teve de povos isolados, perdidos como as Revoltas dos Malês.
suas origens na África Central na selva e ocupados somente O Aurélio nos dá quilombo
e estendeu sua influência aos com a caça e a pesca, retratado como “valhacouto de negros
quatro cantos do Continente. pelo eurocentrismo. No século fugidos”. Mais que equívoco, é
Todas as regiões da África XII, por exemplo, Estados da uma agressão à verdade, pois
foram bafejadas, em algum África Oriental exportavam o quilombo foi uma singular
momento da sua história, pelos ouro e elefantes para a China, experiência societária e humana,
ventos autóctones da civilização, utilizando embarcações bem mais reconstruindo no Novo Mundo
produzindo uma variedade sofisticadas do que as caravelas a vida soberana dos africanos
imensa de culturas dotadas de que, mais tarde, transportariam em sua terra de origem. O maior
variados graus de conhecimento os portugueses em suas jornadas quilombo do Brasil, a República
e sofisticação tecnológica. de “descobrimento”. de Palmares, foi o primeiro
Historiadores e antropólogos Sr. Presidente, Srªs e Srs. Estado livre nas Américas após a
honestos foram obrigados Senadores, quando as nossas invasão colonial.
a admitir o desenvolvimento escolas ensinam apenas que Início do verdadeiro
intelectual dos africanos em o negro veio da África como movimento abolicionista neste
diversas áreas. escravo, cometem e perpetuam país, Palmares durou mais de um
Sr. Presidente, Srªs e o crime de roubar de nossas século, resistindo à repressão
Srs. Senadores, palco de uma crianças a sua própria história, das forças militares e praticando
movimentação constante em pois a história da África é o retrato uma agricultura mais sofisticada
busca de novos espaços, de do povo que durante quatro que as fazendas da região, cujos

97
proprietários desafiavam as leis Palmares existiu, tem sido local reforma agrária para garantir
da Colônia para trocar armas por de repetidas peregrinações, para aos recém-libertos condições
seus produtos agrícolas. render homenagens a Zumbi de sobrevivência. O espectro
Destruído em 1694 pelo e a seus comandados. Graças da cidadania afro-brasileira
maior exército reunido no ao esforço e à persistência dos assustou tanto as elites, que
Brasil antes da Independência, irmãos e irmãs afro-brasileiros, essas aboliram também o voto
Palmares legou-nos aquele que Palmares começa a emergir do analfabeto, até então exercido
não é apenas o maior herói negro, como fonte inspiradora de todos por iletrados donos de posses
mas o maior herói brasileiro: os brasileiros envolvidos com a coloniais.
Zumbi, o general e líder político causa da justiça, da igualdade Após a imensa ressaca do
que soube conduzir seu povo e da liberdade. Esperamos 14 de maio, os afro-brasileiros
na mais bela e inspiradora agora que o Estado brasileiro, acordaram para uma realidade
jornada pela liberdade jamais representado pela Fundação de discriminação, injustiça,
empreendida neste País. Cultural Palmares, assuma sua humilhação e opressão que
Tão inspirador foi o exemplo devida responsabilidade no se tem mantido, sem muita
de Palmares que ele se espalhou projeto de desapropriação e alteração, nos quase 110 anos
por todos os cantos desta reflorestamento da Serra da que nos separam da Abolição.
terra que um dia seria o Brasil. Barriga, e na concretização do Longe de encontrar uma
Quilombos surgiram em toda parte, Pólo de Libertação e Monumento sociedade receptiva à sua
assustando os escravocratas, a Zumbi naquele local, projetado mão-de-obra, agora livre, os
alimentando o sonho libertário no convênio já firmado com o descendentes de africanos
dos africanos escravizados e seus Memorial Zumbi. tiveram de enfrentar barreiras de
descendentes, e contribuindo de Ao assinar, a 13 de maio toda ordem às suas perspectivas
forma decisiva para a derrocada de 1888, a chamada Lei Áurea, de uma vida digna no País de
final da instituição escravista. A a Princesa Isabel cumpria um que foram seus antepassados os
força da mulher negra sintetiza- cronograma que visava colocar o principais construtores.
se na figura de heroínas como Brasil em condições de participar O linchamento físico de que
Dandara ou Luísa Mahin, lideranças do sistema econômico mundial eram vítimas os afro-americanos
femininas que demonstram a transformado pela Revolução no sul dos Estados Unidos foi
determinação da mulher africana Industrial. O principal objetivo substituído no Brasil por um
em sua luta pela liberdade. não foi absolutamente beneficiar linchamento cívico, muito mais
Ainda hoje Palmares serve os negros, o que explica ter sido sutil e eficaz como instrumento
de paradigma aos afro-brasileiros rejeitado o projeto do eminente de dominação. Mas o espírito de
identificados na luta contra a engenheiro negro André resistência dos afro-brasileiros
discriminação racial. Desde Rebouças, que previa realizar- continuava vivo. Organizavam-
1980, a Serra da Barriga, onde se, junto com a Abolição, uma se em torno das tradicionais

98
irmandades religiosas e de Essa teoria fazia parte de como crime de lesa-humanidade.
associações e clubes voltados uma vertente ideológica que Ao lado do protagonismo artístico
para a diversão e o lazer. Nasce, compreende José Vasconcellos teatral, a atuação do Teatro
em 1915, a imprensa negra de e sua raza cósmica, no México, Experimental, nesse campo
São Paulo e, no início da década a teoria do café con leche, sociopolítico, continuou ao longo
de 30, a Frente Negra Brasileira, na Venezuela, e as idéias do de toda a sua trajetória.
organização em que praticamente herói cubano José Martí. Em Os anos 50 e 60 foram
iniciei minha militância. A Frente todas elas, a ênfase está, sacudidos por lutas travadas
Negra transformou-se em partido declaradamente ou não, na na África, pela independência
político e foi extinta pelo golpe do assimilação dos negros e índios à dos regimes coloniais, e, nos
Estado Novo, em 1937. cultura branca européia e no seu Estados Unidos, pela garantia dos
A Frente Negra não desaparecimento físico por meio direitos civis. Lutas sangrentas
retornaria à cena política com a da miscigenação, aqui encarada revelaram a face altiva de um
redemocratização de 1945, que sob fortes tinturas eugênicas. povo que não aceita a condição
propiciou a volta dos antigos Finda a Segunda Guerra, de inferioridade.
partidos políticos, porque em 1945, surgem com a Sr. Presidente, Srªs e Srs.
a década de 30 assistira à abertura política no Brasil novas Senadores, geradora de uma
elaboração do mais sofisticado organizações e iniciativas com profusão de heróis militares
mecanismo de dominação racial vistas a combater a discriminação e intelectuais engajados, e
que o mundo já conheceu, racial. Em 1944, fundei, no Rio de de gente que unia as duas
mais terrível que a segregação Janeiro, o Teatro Experimental qualidades, como Agostinho
oficial do apartheid na África do Negro, cujo marco histórico Neto, Samora Machel ou Amilcar
do Sul, ou do Jim Crow no sul foi o casamento da militância Cabral, a luta de libertação
dos Estados Unidos. Refiro-me no campo artístico com o africana revitalizava no Brasil
ao mito da “democracia racial”, compromisso na luta política. Até as tradições de resistência que
segundo o qual as relações aquele momento, as organizações aqui se implantaram desde a
raciais no Brasil teriam uma negras propunham um combate à chegada dos primeiros africanos
dinâmica diferente daquela discriminação racial sem vinculá- escravizados. Assim, assistimos,
vigente em outros países. Aqui, lo ao resgate da identidade e dos no início dos anos 70, à
negros e brancos conviveriam valores culturais específicos dos reorganização dessa resistência,
em quase total harmonia, afro-brasileiros. O TEN reuniu com o surgimento do Movimento
havendo pouco espaço para o os dois elencos de objetivos, Negro contemporâneo, que hoje
racismo e a discriminação, que, propondo, já em 1946, que a se faz presente em todas as
por sinal, desapareceriam de Assembléia Nacional Constituinte regiões e cidades importantes
morte natural, com o tempo, em aprovasse um dispositivo do País, constituindo-se numa
decorrência da miscigenação. constitucional definindo o racismo verdadeira malha nacional

99
No papel somos agora nos surpreende a inédita

cidadãos. De fato, a
decisão do Tribunal Superior do
Trabalho, concedendo ganho de

escravidão para nós


causa a um funcionário negro da
Eletrosul que havia sido demitido

não terminou
por racismo.
Os homens brancos ganham
o dobro da renda dos negros e
quase quatro vezes o que ganha
a mulher negra. Essa mesma
mulher negra, que ocupa o último
de combate ao racismo e à de seleção, quando, nos anúncios escalão da pirâmide social, é
discriminação racial. de jornais e nas exigências chefe de família em muito maior
Numa Nação que só de emprego, as empresas se número, configurando um quadro
agora começa a reconhecer ocultam na famigerada exigência de absoluta destituição.
a existência do racismo e da da “boa aparência”, senha ou Em todos os níveis do ensino,
discriminação, o Movimento código da política racista de o acesso dos afro-brasileiros é
tem desempenhado um papel rejeição. Quando um afro- muito inferior ao dos brancos.
fundamental: pressionar o brasileiro consegue furar muralha, Da população brasileira, 18% são
Estado e a sociedade civil a entra em jogo outro processo analfabetos, mas entre os afro-
responderem ao clamor da discriminatório: desempenhando brasileiros essa porcentagem
população afro-brasileira. Ao as mesmas funções que um sobe a trinta. No outro extremo,
mesmo tempo, discute e propõe trabalhador branco, receberá 4,2% dos brancos alcançam o
medidas e políticas públicas para quase sempre remuneração ensino superior, contra apenas
as relações raciais em plano bastante inferior. Se, ainda 1,4% dos afro-brasileiros.
nacional e internacional. Nesse assim, esse negro permanecer Nossa Constituição
último campo, propõe, cobra e no mercado de trabalho, terá estabelece que a saúde é direito
monitora as ações do Governo de conviver com mecanismos de todos e dever do Estado. Para
brasileiro em suas relações com de avaliação de desempenho e a comunidade afro-brasileira,
os países africanos, denunciando critérios de promoção utilizados sobretudo suas mulheres, essa
as tentativas de nossos freqüentemente para barrar- é uma questão de vida ou morte.
colonialistas de segunda mão. lhe a ascensão funcional e Sua expectativa de vida é inferior
No mercado de trabalho salarial. Após um século de em 7,5 anos à do branco, e sua
nacional, a discriminação impera vigência desse quadro no País da taxa de mortalidade infantil é
nos setores da produção e de “democracia racial” com toda a de 105 em cada mil crianças
serviços. Começa no processo sua legislação dita anti-racista, só nascidas, contra 77 em cada

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mil crianças brancas nascidas. meninas afro-brasileiras estão reivindicações, a qual solicito,
Até o útero da mulher negra sendo objeto de uma espécie Sr. Presidente, seja transcrita na
é considerado descartável: a de “marketing da cor” que as íntegra como parte deste meu
elevada taxa de histerectomias e considera “meninas de sangue discurso. Nela, afirmam: “A terra
esterilizações entre elas retrata quente”, preferidas pelo nefasto que temos hoje foi conquistada
uma verdadeira mutilação em negócio da prostituição infantil e por nossos antepassados
massa. A anemia falciforme, do turismo sexual. com muito sacrifício e luta. E,
doença geneticamente específica Na Constituição de 1988, passados 107 anos do fim oficial
à população de origem africana, o art. 68 das Disposições da escravidão, essas terras
clama por uma efetiva atenção Transitórias estabelece como continuam sem o reconhecimento
das autoridades da saúde. dever do Estado a demarcação legal do Estado. Estamos, assim,
A violência, um dos grandes das terras remanescentes expostos à sanha criminosa da
problemas do Brasil, incide em de quilombos. Em fase de grilagem dos brancos, que são,
dobro sobre a população de implementação e enfrentando na atualidade, os novos senhores
origem africana. Nossos meninos os obstáculos interpostos pelos de tão triste memória. No papel
e meninas de rua, covardemente inúmeros interesses em jogo, somos cidadãos. De fato, a
assassinados, são na grande o art. 68 é objeto de especial escravidão para nós não terminou.
maioria negros. Ainda vale ao pé atenção do Movimento Negro. E nenhum governante da Colônia,
da letra o ditado: “Negro parado Envolvidos nesse processo do Império e da República
é suspeito, negro correndo é de demarcação se alinham o reconheceu nossos direitos”.
ladrão”. Em 1988, quase 11% Ministério da Justiça, o Ministério A organização desses
dos afro-brasileiros sofreram da Reforma Agrária e, sobretudo, autênticos quilombolas
agressão policial, contra 3,9% da o Ministério da Cultura, por contemporâneos representa
população branca. Nas prisões, o intermédio da Fundação Cultural um fato histórico de grande
número de negros encarcerados Palmares. Tais ministérios têm a significação, comparável
é sempre maior que o dos responsabilidade, por mandato ao Movimento dos Sem-
brancos, não por praticarem constitucional, de implementar a Terra, porém destituído de
crimes em maior proporção, mas demarcação dessas terras. semelhante repercussão
por serem vitimados por uma As comunidades nacional e internacional junto
justiça racista e pela falta de remanescentes de quilombos aos setores que defendem os
meios para uma defesa jurídica estão organizadas e, no seu direitos humanos. Por que esse
capaz de encurtar ou encerrar primeiro Encontro Nacional, silêncio? A situação dessas
suas penas. realizado em Brasília, em 20 de comunidades clama por uma
Há poucos anos, a mulata novembro de 1995, dirigiram ao atenção imediata, respaldada em
era o “melhor produto de Presidente Fernando Henrique dispositivo constitucional, mas
exportação” brasileiro; hoje, as Cardoso uma carta com suas cai nos ouvidos ensurdecidos de

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uma opinião pública insensível a rede democrática nacional criada no Brasil, objetivando
às demandas coletivas do povo contra o racismo em nosso a formulação de políticas
afro-descendente. País. Relevante e exemplar públicas capazes de atender às
A evasão escolar entre nesse contexto é o inédito necessidades específicas dos
crianças negras, a agressão reconhecimento oficial do descendentes de africanos neste
às religiões afro-brasileiras racismo por um Presidente da País. Vêm surgindo também, em
por grupos autodenominados República, e a instalação de um vários Estados e Municípios,
cristãos, a criminalização da Grupo de Trabalho Interministerial assessorias e órgãos de caráter
cor negra pela polícia e pelos destinado a propor políticas consultivo, a começar pelo
tribunais, a perseguição social públicas de combate ao racismo Conselho de Participação e
e policial à juventude negra e de valorização da população Desenvolvimento da Comunidade
em seus espaços de lazer, a afro-brasileira. A criação em Negra de São Paulo, criado em
constante depreciação pela 1988 da Fundação Cultural 1984 pelo então Governador
mídia de nossa identidade, de Palmares, órgão do Ministério da Franco Montoro.
nossas tradições e de nossa Cultura, e a inscrição amanhã, Srªs Senadoras e Srs.
imagem, o veto tácito aos afro- no próprio dia 21 de março, de Senadores, vem ganhando
brasileiros em certas posições Zumbi dos Palmares no Panteão força, nos últimos anos, a
de prestígio, poder e visibilidade: dos Heróis Nacionais são reivindicação de medidas
eis alguns dos problemas também frutos dessa mesma destinadas a reduzir a enorme
enfrentados cotidianamente pela intervenção esclarecida. Esses distância que separa negros
população afro-brasileira e que três fatos somam-se ao processo e brancos nesta sociedade,
compõem a extensa agenda de cumulativo de conquista de matéria sobre a qual pretendo
luta do Movimento Negro, cuja órgãos específicos de gestão apresentar projeto específico.
capacidade de mobilização foi administrativa e de assessoria Tais medidas têm sido adotadas
testada e aprovada na Marcha em diferentes contextos em países tão diversos como
Zumbi dos Palmares contra o governamentais. Em nível Índia, China, Canadá, Nigéria,
Racismo, pela Cidadania e a estadual, destaca-se a iniciativa Indonésia, Israel e as antigas
Vida, realizada em Brasília, no pioneira do então Governador Iugoslávia e União Soviética.
dia 20 de novembro de 1995, Leonel Brizola, criando, em 1991, No caso norte-americano, vêm
com a participação de trinta mil a Secretaria Extraordinária sendo consideradas um dos
militantes e simpatizantes. de Defesa e Promoção das fatores que mais contribuíram
Diversos são os indícios de Populações Afro-brasileiras para a sensível melhoria das
mudança na sociedade brasileira, (Seafro), da qual tive a honra de condições de vida da população
decorrentes da intervenção das ser titular. afro-americana, observada nas
centenas de organizações e Trata-se da única agência três últimas décadas, sem falar
personalidades que compõem de primeiro escalão até hoje nos benefícios proporcionados

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às mulheres de maneira geral. da Unesco, promete constituir Fundação Cultural Palmares,
As medidas adotadas não se mais uma instância de afirmação Angela da Silva; do Professor
restringem a cotas, embora, da magnitude do crime Eduardo de Oliveira, Presidente
em alguns casos, essas sejam perpetrado contra a África e do Congresso Nacional Afro-
necessárias. Abrangem desde seus filhos na forma do tráfico brasileiro; e da nossa querida
ações legislativas em âmbito mercantil escravista, bem como amiga e dirigente do movimento
federal, estadual e municipal até a da contribuição africana à do Rio Grande do Sul, Vera
política de pessoal das empresas civilização universal. Triunfo, que sempre triunfa nas
privadas, que as vêm adotando Todos esses fatos novos têm causas que esposa em favor dos
por terem descoberto que fazê- realimentado de esperança meu negros no Rio Grande do Sul.
lo é lucrativo, pois aumenta a coração calejado pelos rigores Muito obrigado, Sr. Presidente.
sua flexibilidade diante de um de uma longa luta sem quartel.
mercado globalizado. Conclamo todos os verdadeiros
No Brasil, algumas democratas a assumir, neste
organizações do Movimento 21 de março, o desafio de fazer
Negro já vêm implementando valer os princípios constitucionais
ações dessa natureza na área de justiça e cidadania,
da educação, com a criação de indispensáveis para que o Brasil,
cursos pré-vestibulares para maior país negro fora da África
alunos negros e carentes, como e maior beneficiário da riqueza
tem acontecido na Baixada humana da diáspora forçada do
Fluminense, em São Paulo e na povo desse continente, rompa o
Bahia. Ao mesmo tempo, alguns Terceiro Milênio tendo ao menos
setores do aparelho de Estado encaminhado a solução de sua
e do mundo empresarial têm-se questão racial. A resolução
mostrado mais abertos a uma dessa questão é o nó górdio
discussão séria a respeito desse a ser cortado, isto é, o fator
tema, o que nos leva a crer que indispensável para que este País
novos projetos a esse respeito venha a ocupar o lugar que de
venham a ter melhor destino direito lhe cabe no concerto das
do que aquele que apresentei à nações civilizadas.
Câmara Federal em 1983, e que Sr. Presidente, ao terminar,
jamais chegou a ser apreciado quero agradecer a presença do
pelo Plenário. representante da Embaixada de
Em âmbito internacional, Angola, Conselheiro Quintino
o Projeto Rota dos Escravos, Faria; do representante da

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EXPEDIENTE Pesquisa e produção-executiva NÚCLEO CENTRO DE MEMÓRIA,
Ana Estaregui DOCUMENTAÇÃO E REFERÊNCIA
coordenação editorial Carlos Costa Coordenação de atendimento Gerência Fernando Araujo
edição Duanne Ribeiro conselho educativo Tatiana Prado Coordenação Eneida Labaki
editorial Ana de Fátima Sousa, Ana Equipe Amanda Freitas, Caroline Digitalização de fotos e documentos
Estaregui, Claudiney Ferreira, Elisa Faro, Danilo Fox, Thays Heleno, Victor Laerte Fernandes
Larkin Nascimento, Fernanda Castello Soriano e Vinicius Magnun
Branco, Icaro Mello, Kety Fernandes Estagiários Alan Ximendes, Aline Agradecimentos
Nassar, Paula Bertola, Roberta Roque, Rocha, Bianca Ferreira, Bruna Caroline Abdias do Nascimento Filho (Bida), Aline
Valéria Toloi e Vinícius Rodrigues Ferreira, Bruna de Oliveira, Danielle de Oliveira Costa, Anani Dzidzienyo,
coordenação de design e projeto de Oliveira, Edson Bismark, Gabriela Ângelo Flávio, Arany Santana, Carlos
gráfico Jader Rosa diagramação Liane Lima, Giovani Monaco, Giovanna Henrique Bemfica, Carlos Moore,
Iwahashi produção editorial Luciana Nardini, Guilherme Wichert, Juliane Carmen Luz, Chester Higgins, Jr.,
Araripe supervisão de revisão Polyana Lima, Kaliane Miranda, Letícia Clícea Maria Augusto de Miranda,
Lima revisão Karina Hambra e Rachel Sato, Lidiany Shuede, Luan Lima Daniel I. Larkin, Djalma Corrêa, Domício
Reis (terceirizadas) colaboraram nesta Silva, Lucas Balioes, Marcus Ecclissi, Proença, Douglas Belchior, Elisa
publicação Conceição Freitas, Elisa Maria Luiza Kazi, Marina Moço, Mario Larkin Nascimento, Empresa Brasil de
Larkin Nascimento, Eugênio Lima, Iara Rezende, Paloma Xavier, Pamela Comunicação (EBC/RJ), Evelyn Beatriz
Rosa, Lindinalva Barbosa, Maurinete Camargo, Pamela Mezadi, Renan Lucena Machado, Genésio Rodrigues
Lima, Renata Felinto, Robinho Ortega, Sidnei Santos, Silas de Nogueira, Giba Jet, Haroldo Costa, Iara
Santana, Roger Cipó e Tulio Custódio Almeida, Thais Gonçalves, Vinicius Rosa, Ipeafro, Iza Costa, Jhony Guima,
Escócia, Vitor Augusto da Cruz, João Jorge Rodrigues dos Santos,
FICHA TÉCNICA Wellington Rodrigues e William Miranda Jorge Lucas Maia, Kwesi Dzidzienyo,
Léa Garcia, Luiz Carlos Gá, Luiz Carlos
Pesquisa, concepção, curadoria e NÚCLEO DE ENCICLOPÉDIA Semog, Luiz Paulo Lima, Mãe Beata
realização Itaú Cultural, Ipeafro, Elisa Gerência Tânia Rodrigues de Yemonjá, Márcio Macedo (Kibe),
Larkin Nascimento e Vinícius Simões Pesquisa e produção-executiva Icaro Mello Margaret J. Larkin, Maria Amanda
Projeto expográfico Vinícius Simões Emiliano de Freitas, Marina Santos de
(terceirizado) NÚCLEO DE PRODUÇÃO Miranda, Michelle Tito, Nadia Prestes,
Pesquisa Marcos Florence Martins DE EVENTOS Nelson Maca, Olympio Serra, Paulo
Santos (terceirizado) Gerência Henrique Idoeta Soares Rogério Nunes, Renan Ferreira da Silva,
Coordenação Edvaldo Inácio Silva e Renato Cecílio, Romolo Mazzoccante
ITAÚ CULTURAL Vinícius Ramos (TV Senado), Ruth de Souza, Ruth
Presidente Milú Villela
 Produção Carmen Fajardo, Daniel Pinheiro, Secretaria Municipal de
Diretor-superintendente Eduardo Saron Suares (terceirizado), Érica Pedrosa, Promoção da Igualdade Racial (SMPIR),
Superintendente administrativo Sérgio Maria Zelada (terceirizada), Samara em especial Mauricio Pestana e Marister
M. Miyazaki Fantin e Wanderley Bispo Santos, Sergio Oliveira, Solange Santos,
Tatiane de Oliveira Lima, Tita Reis e
NÚCLEO DE AUDIOVISUAL NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO Tulio Custódio
E LITERATURA E RELACIONAMENTO
Gerência Claudiney Ferreira Gerência Ana de Fátima Sousa
 ---
Coordenação de conteúdo audiovisual Coordenação de conteúdo Carlos Costa

Kety Fernandes Nassar Produção e edição de conteúdo Duanne O Itaú Cultural realizou todos os
Pesquisa e produção-executiva Paula Ribeiro e Fernanda Castello Branco esforços para encontrar os detentores
Bertola e Roberta Roque Redes sociais Renato Corch dos direitos autorais incidentes
Produção audiovisual Paula Bertola Supervisão de revisão Polyana Lima sobre as imagens/obras fotográficas
Captação de imagem Richner Allan e Revisão de texto Karina Hambra e aqui publicadas, além das pessoas
Gabriela Barreto (terceirizada) Rachel Reis (terceirizadas) fotografadas. Caso alguém se reconheça
Edição Richner Allan Coordenação de design Jader Rosa ou identifique algum registro de sua
Som direto Tomás Franco (terceirizado) Produção editorial Luciana Araripe autoria, solicitamos o contato pelo e-mail
Paisagem sonora Renato Gama Comunicação visual Jader Rosa e atendimento@itaucultural.org.br.
Estúdio Claraboia (terceirizado)
NÚCLEO DE EDUCAÇÃO Edição de fotografia André Seiti
E RELACIONAMENTO Coordenação de eventos e comunicação
Gerência Valéria Toloi estratégica Melissa Contessoto
Coordenação de projetos especiais Produção e relacionamento Simoni
Tayná Menezes Barbiellini e Vanessa Golau Olvera
Centro de Memória, Documentação e Referência Itaú Cultural

Ocupação Abdias Nascimento/ organização Itaú Cultural. - São Paulo : Itaú


Cultural, 2016.
108 p. : il.

ISBN 978-85-7979-089-8

1.   Nascimento, Abdias. 2. Racismo. 3. Teatro. 4. Artes visuais. 5.


Literatura. 6. Exposição de arte – catálogo  I. Instituto Itaú Cultural. II. Título.

CDD 927
quinta 17 de novembro a domingo 15 de janeiro

terça a sexta 9h às 20h [permanência até as 20h30]


sábado, domingo e feriado 11h às 20h

piso 1

#ocupacaoabdias

avenida paulista 149 são paulo sp 01311 000 [estação brigadeiro do metrô]
itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 atendimento@itaucultural.org.br
ç

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