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lmmanuel Wallerstein

CAPITALISMO
/
HISTORICO
e
CIVILIZAÇAO -
CAPITALISTA

TRADUÇÃO

Renato Aguiar

REVISÃO DE TRADUÇÃO

César Benjamin
Immanuel Wallerstein

MEClUFFINDC Material: Livro


Preço ~D o N. Fiscal ~~ '51
Fornecedor Pregílo 45f06
Mente Sana Item 3ÇÇ
. Unidade: Bc~ 2007NE901524

(OOTIAPOOTO
A VERDADE COMO ÓPIO:
RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇÃO

O CAPITALISMO HISTÓRICO foi prometéico em suas aspirações.


Embora mudanças científicas e tecnológicas tenham sido uma
constànte na atividade humana, só com o capitalismo histórico
Prometeu, sempre presente, foi "desacorrentado", na frase de
David Landes. Generalizou-se a imagem de que a G:ultura cien-
tífica do capitalismo histórico foi proposta por nobres 'cavalhei-
ros que enfrentaram a resistência obstinada das forças da cultu-
ra não cientifica "tradicional". No século XVII, Galileu contra a
Igreja; no século XX, o "modernizador" contra o mullah. Em to-
dos os casos, fala-se de "racionalidade" versus "superstição", de
"liberdade" versus "opressão intelectual': Presume-se que o pro-
cesso foi paralelo (ou mesmo idêntico) à revolta do empreende-
dor burguês contra o senhor de terras aristocrático no âmbito
da economia política.
A imagem de uma luta cultural mundial teve uma premis-
sa oculta, uma premissa de temporalidade. Presumia-se que a
"modernidade" fosse nova, ao passo que a "tradição" seria ve-
lha, anterior; em algumas versões fortes da imagem, a tradição
era a-histórica, virtualmente eterna. Essa premissa era histori-
camente falsa e fundamentalmente equívoca. As múltiplas cul-
turas, as múltiplas "tradições" que floresceram no interior das
fronteiras espaço-temporais do capitalismo histórlco não eram
mais originais do que as múltiplas estruturas institucionais. Em
grande parte, elas são criações do mundo moderno, integram
sua construção ideológica. É claro, existiram vínculos das várias
"tradições" com grupos e ideologias anteriores ao capitalismo.
histórico, no sentido de que freqüentemente foram construídos
com materiais históricos e intelectuais já existentes. Além disso,
a afirmação desses vínculos trans-históricos desempenhou im-
portante papel na coesão dos grupos em suas lutas políticas e

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CAPITALISMO HISTÓRICO

económicas no seio do capitalismo histórico. Porém, se quiser-


mos compreender as formas culturais dessas lutas, não pode-
mos nos dar ao luxo de tomar essas "tradições" pelo seu valor
nominal; Particularmente, não podemos afirmar que as "tradi-
ções" são, de fato, tradicionais.
Forças de trabalho foram criadas nos lugares certos, com os
níveis mais baixos possíveis de remuneração, no interesse dos
que desejavam facilitar a acumulação de capital. Já discutimos
como a criação de unidades domiciliares nas quais o trabalho
assalariado desempenhava um papel secundário como fonte de
renda possibilitou níveis inferiores de pagamento nas atividades
económicas periféricas da economia mundial. Uma maneira
,como essas unidades domiciliares foram "criadas", isto é, pres-
sionadas a se estruturar por si mesmas, foi a "etnização" da vida
comunitária no capitalismo histórico. Com a expressão "grupos
étnicos~ queremos dizer o seguinte: grupos dimensionáveis de .
pessoas para as quais se reserva um certo papel ocupacionall
. '
económico, em relação a outros grupos vivendo na proximi-
dade geográfica. A simbolização externa de uma tal alocação da
força de trabalho é a "cultura" distintiva do grupo étnico - sua
religião, sua língua, seus "valores", seu conjunto particular de
padrões de comportamento cotidiano.
É daro, não estou sugerindo que no capitalismo histórico
exista algo como um perfeito sistema de castas. Porém, desde
que utilizemos categorias ocupacionais suficientemente amplas,
estou sugerindo que há, e sempre houve, alta correlação entre
etnicidade e papel ocupacional/económico nas várias áreas es-
paço-temporais do capitalismo histórico. Também estou suge-
rindo que essas localizações da força de trabalho têm variado
ao longo do tempo, e que à medida que variaram, variou tam-
bém a etnicidade, em termos das fronteiras e dos traços cultu-
rais característicos do grupo; e mais, quase não há correlação
entre a atuallocalização da força de trabalho étnica e seus su-

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RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇÃO

postos ancestrais que viveram em períodos anteriores· ao capi-


talismo histórico.
A "etnização" da força de trabalho teve três conseqüências
importantes para o funcionamento da economia-mundo. Em
primeiro lugar, possibilitou a reprodução da força de trabalho,
não no sentido de prover renda suficiente para a sobrevivência
dos grupos, mas no de prover quantidades suficiel?-tes de traba-
lhadores em cada categoria, com expectativas de renda manti-
das em níveis apropriados, tanto em termos dos montantes to-
tais quanto das formas que assumiria a renda domiciliar. Além
disso, precisamente por ser "etnicizada", a localização da força
de trabalho ficou flexíveL A etnicidade gerou mais mobilidade
geográfica e ocupacional em grande escala, não menos. Sob a
pressão de condições econômicas em constante modificação,
para mudar a localização da força- de trabalho bastava que al-
guns ~divíduos empreendedores de um grupo étnico levassem
adiante um reassentamento geográfico ou ocupadonal e fossem
recompensados por isso; isso exercia uma "influência" natural
sobre os outros membros do grupo, no sentido de transferirem
sua localização na economia-mundo.
Em segundo lugar, a "etnização" propiciou um mecanismo
intrínseco de treinamento da força de trabalho, garantindo que
grande parte da socialização nas tarefas ocupadonais fosse de-
sempenhada no interior de unidades domiciliares etnicamen-
te definidas, e não à custa de Estados ou de empregadores de
assalariados.
Em terceiro lugar, e provavelmente o mais importante, a
"etnização" trouxe embutida uma hierarquização de papéis eco-
nômicos, propiciando um código fácil de distribuição global de
renda revestido com a legitimação da "tradição".
Essa terceira conseqüência, elaborada de maneira mais deta-
lhada, formou um dos alicerces do capitalismo histórico, o ra-
cismo institucional. O que queremos dizer com racismo tem
pouco a ver com a xenofobia que existiu em vários sistemas his-

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CAPITALISMO HISTÓRICO

tóricos anteriores. A xenofobia era; literalmente, medo do "es-


trangeiro': No capitalismo histórico, o racismo nada tem a ver
com "estrangeiros". Ao contrário. O racismo foi o modo como
vários segmentos da força de trabalho foram obrigados a se re-
·lãcionar uns cornos outros no interior de uma mesma estru-
tura económicà. O racismo é a.justificativa ideológica da hie-
rarquização da força de trabalho e da distribuição, altamente
desigual, da recompensa. O racismo é o conjunto de afirmações
ideológicas combinado com o conjunto de práticas duradouras
que resultaram em manter, ao longo do tempo, uma alta corre~
lação entre etnicidade e localização da força de trabalho. Essas
afirmações ideológicas se manifestam sob a forma de alegações,
segundo as quais traços genéticos ou «culturais" duradouros de
vários grupos seriam a causa principal da sua localização dife-
renciada em posições da estrutura económica. Contudo, a cren-
ça de que certos grupos eram "superiores" a outros em traços
relevantes para o desempenho econômico sempre se firmou
depois, e não antes, da localização desses grupos na força de
trabalho. O racismo sempre foi pós-hoc. Afirmou-se que os que
foram económica e politicamente oprimidos são culturalmen-
te "inferiores". Se o lo cus da hierarquia econômica mudasse
por alguma razão, o locus da hierarquia social tendia a acom-
panhá-lo (após um lapso; certamente, pois sempre se necessita
de uma geração ou duas para erradicar os efeitos de uma so-
cialização anterior).
O racismo tem sido uma ideologia abrangente para justifi-
car a desigualdade. Mas tem sido mais. Serve para que gru-
pos sejam socializados dentro dos papéis que devem ocupar
na economia. As atitudes inculcadas (os preconceitos, os com-
portamentos abertamente discriminatórios no dia-a-dia) ser-
viram para estabelecer condutas individuais apropriadas e le-
gitimadas, oc:upando diferentes posições na unidade domiciliar
e no grupo étnico. O racismo, como o sexismo, funcionou co-
mo uma ideologia que cria e delimita expectativas.

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RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇÃO

o racismo não é somente auto.-restritivo. É opressivo. Serve


para manter na linha os grupos de baixo escalão e utilizar os de
escalão médio como soldados não remunerados do aparato po-
licial mundial. Assim, não só os custos financeiros das estruturas
policiais foram significativamente reduzidos, mas a capacidade
dos grupos anti-sistêmicos de mobilizar amplas populações foi
obstaculizada, pois o racismo joga vítima contra vítima.
O racismo não é um fenômeno simples. É, em um sentido,
uma linha de demarcação, excluindo status relativos no sistema
mundial como um todo. Tal foi a fronteira da "coi'. O "branco",
ou superior, era um fenômeno social, é claro, e não fisiológico,
como fica evidente pela posição historicamente cambiante, nas
"fronteiras de cor" mundial (nacional) e socialmente definidas,
de grupos como os europeus meridionais, os árabes, os mesti-
ços latino-americanos, os asiáticos do leste. '
Era fácil utilizar a etiqueta da cor (ou da fisiologia), pois é
difícil disfarçá-la. Até onde foi historicamente conveniente, da-
das as origens do capitalismo histórico na Europa, ela foi utili-
zada. Sempre que deixou de ser conveniente, foi descartada ou
modificada em favor de outras características identificadoras.
Em muitos lugares, o conjunto de marcas de identificação se
tornou muito complexo por causa disso. Se considerarmos o
fato de que a divisão social do trabalho está em evolução cons-
tante, revela-se que a identificação étnica/racial constitui uma
base muito instável para delinear as fronteiras dos grupos so-
ciais existentes. Os grupos vão e vêm, alterando com conside-
rável facilidade as definições que fazem de si mesmos (com a
mesma facilidade, são percebidos pelos outros como tendo
fronteiras diferentes). Mas a volatilidade de qualquer fronteira
de grupo não é contraditória com a permanência de uma hie-
rarquia global entre os grupos; ao contrário, é provavelmente
1
uma função dela, da "etnização" da força de trabalho mundial.
O racismo foi um pilar cultural do capitalismo histórico.
O vazio intelectual em que se move não impediu que desenca-

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CAPITALISMO HISTÓRICO

deasse terríveis crueldades. Entretanto, haja vista o surgimento


dos movimentos anti-sistêmicos mundo afora nos últimos cin-
qüenta ou cem anos, mais recentemente o racismo tem sofrido
alguns ataques severos. Sem dúvida, as variantes mais cruas de
racismo sofrem hoje uma certa deslegitimação no âmbito mun-
dial. Mas o racismo não foi o único pilar ideológico do capita-
lismo histórico. Ele foi importante para criar forças de trabalho
apropriadas, mas não .foi suficiente para permitir a acumula-
ção incessante do capital. Não se pode esperar que as forças de
trabalho pudessem ser eficientes e permanentes, a menos que
fossem administradas por dirigentes. E dirigentes também têm
de ser criados, socializados, reproduzidos. A ideologia primária
que operou para criá-los, socializá-los e reproduzi-los não foi a
ideologia do racismo, mas a do universalismo.
O universalismo é uma epistemologia. É um conjunto de
crenças sobre o que pode ser conhecido e como pode ser· co-
nhecido. A essência desse ponto de vista é a seguinte: há afirma-
ções gerais significativas sobre o mundo o mundo físico, o
. mundo social- que são universais e permanentemente verda-
deiras; o objeto da ciência seria buscar essas afirmações gerais,
de modo a eliminar de sua formulação todos os assim chama-
dos elementos subjetivos, isto é, historicamente limitados.
A crença no universalismo é a pedra fundamental do arco
ideológico do capitalismo histórico. Tanto quanto uma episte-
mologia, <.? universalismo é uma fé. Exige respeito e reverência
em relação a uma verdade indefinida, mas pretensamente real.
As universidades foram as oficinas da ideologia e os templos da
fé. Harvard ostenta Veritas em seu escudo. Sempre se afirmou
que é impossível conhecer uma verdade definitiva.,- suposta-
mente, isso distingue a ciência moderna e a teologia medieval
ocidental - , mas também se afirmou que a busca da verdade
era araison d'être da universidade e, mais amplamente, de toda
atividade intelectual. Para justificar a arte, Keats disse que "ver-
dade é beleza, beleza é verdade". Nos Estados Unidos, uma das

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RACIONALIDADE E RAClONALIZAÇÃO

justificativas preferidas para as liberdades civis é que a verdade


só pode ser conhecida como resultado da interação que ocorre
no "mercado livre de idéias'~ .
Como ideal cultural, a verdade funcionou· como um ópio,
talvez o único ópio sério do mundo moderno. Karl Marx disse
que a religião era o ópio do povo.. Raymond Aron respondeu
dizend~ que as idéias de Marx eram, por sua vez, o ópio dos in-
telectuais. Há perspicácia em ambas as observações polêmicas.
Mas, perspicácia é verdade? Gostaria de sugerir que a verdade
tem sido o verdadeiro ópio, tanto das 'massas quanto dos inte-
lectuais. O ópio, certamente, nem sempre é mau. Ele possibilita
escapar quando as pessoas temem que o confronto com a dura
realidade só possa precipitar perdas ou decadências inevitáveis.
Todavia, a maioria de nós não recomenda os opiáceos. Nem
Marx nem Raymond Aron o fizeram. Na maioria dos Estados e
para a maioria das propostas, ele é ilegal.
Nossa educação coletiva nos ensinou que a busca da verdade
é uma virtude desinteressada, mas isso é apenas uma raciona-
lização cheia de interesses. A busca da verdade, pedra funda-
mental prodamada do progresso e do bem-estar, tem sido no
mínimo pouco coerente com a manutenção de uma estrutura
social hierárquica e desigual em certo número de aspectos. Os
processos envolvidos na expansão da eConomia mundial capi-
talista a "periferização" de economias, a criação de estrutu-
ras estatais frágeis que participam no sistema interestatal e são
constrangidas por ele - implicaram uma certa quantidade de
pressões no plano cultural: proletarização cristã, imposição das
línguas européias, educação em tecnologias e Costumes espeCí-
ficos, alterações de códigos legais. Muitas dessas mudanças
foram feitas à força. Outras foram levadas adiante pela persua-
são de "educadores" cuja autoridade, em última análise, tam-
bém se apoiava na força militar. A esse complexo de processos
às vezes chamamos "ocidentalização" ou, mais arrogantemente,
"modernização': legitimada pela desejável vantagem de parti-

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CAPITALISMO HISTÓRICO

lhar tanto OS frutos do universalismo quanto a fé na ideologia


que o acompanha.
Houve dois motivos principais por trás dessas mudanças
culturais impostas. Um foi a eficiência económica. Para que se
possa esperar que certo número de pessoas se comportem de
certa maneira no âmbito da economia, é preciso ensinar as nor-
mas culturais requeridas e erradicar as normas culturais com-
petidoras. O segundo motivo foi a segurança política. Acredita-
va-se que se as assim chamadas elites das zonas periféricas se
"ocidentalizassem", se separariam de suas "massas" e estariam
menos propensas a se revoltar - ademais, seriam menos capa-
zes de arregimentar seguidores para suas revoltas.~ Isso se reve-
lou um monumental erro de cálculo, mas é plausível que tenha
funcionado por um tempo. (Um terceiro motivo terá sido a.in-
solência e arrogância dos conquistadores. Eu não desprezo este
fator, mas não é necessário evocá-lo entre as pressões culturais,
que teriam sido semelhantes mesmo na sua ausência.)
O racismo serviu como mecanismo de controle mundial dos
produtores diretos, enquanto o universalismo serviu para diri-
gir as atividades da burguesia de outros Estados e de váriqs es-
tratos médios mundo afora para canais capazes de maximizar
a integração dos processos de produção e tornar mais suave a
operação do sistema interestatal, facilitando assim a acumula-
ção de capital. Para tal, era necessário criar uma estrutura.cul-
tural burguesa mundial, passível de ser enxertada nas variações
"nacionais': Isso foi particularmente importante em termos de
ciência e tecnologia, mas também no espaço das idéias políticas
e das ciências sociais.
O conceito de uma cultura universal "neutra" pela qual os
gerentes da divisão mundial do trabalho seriam "assimilados" .
(aqui, a voz passiva é importante) passou a servir como um dos
pilares do sistema mundial, tal como evoluiu historicamente.
A exaltação do progresso e posteriormente da "modernização"
sintetizava esse conjunto de idéias, que serviam menos como

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RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇÃO

normas verdadeiras de ação social do que como símbolo de um


status de obediência e participação no estrato superior do mun-
do. A ruptura com a base religiosa do conhecimento, supos-
tamente estreita, em favor de bases científicas transculturais de
conhecimento serviu como autojustificativa para uma forma
particularmente perniciosa de imperialismo cultural. Ela domi-
nou em nome da liberação intelectual e se impôs em nome do
ceticismo.
O processo de racionalização, central para o capitalismo,
exigiu a criação de um estrato intermediário que abrangesse os
especialistas dessa racionalização, como administradores, téc-
nicos, cientistas e educadores. A própria complexidade não só
da tecnologia mas do sistema social tornou essencial que esse
estrato fosse grande e, com o tempo, passível de ampliação. Os
recursos usados para sustentá-lo foram tirados do excedente
global, extraído por empreendedores e Estados. Neste sentido
- elementar, mas fundamental - , esses gerentes são parte da
burguesia, e sua reivindicação de participar na partilha do exce-
dente ganhou forma ideológica precisa no conceito, - do sé-
culo xx: de capital humano. Tendo pouco capital para trans-
mitir como herança aos membros da sua família, esses gerentes
buscaram assegurar sua sucessão garantindo o acesso preferen-
cial dt; seus filhos aos canais educacionais que afiançam sua po-
sição. Esse acesso foi apresentado como uma realização, pre-
tensamente legitimada por uma "igualdade de oportunidades"
estreitamente definida.
Assim, a cultura científica se tornou o código fraternal dos
acumuladores de capital do mundo. Serviu em primeiro lugar
para justificar tanto suas próprias ,atividades como as recom-
pensas diferenciadas de que usufruíam. Promoveu a inovação
tecnológica. Legitimou a eliminação impiedosa de todas ,as bar-
reiras à expansão eficiente da produção. Gerou uma forina de
progresso que seria benéfico para todos - se não imediata-
mente, pelo menos no fim.

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CAPITALISMO HISTÓRICO

Mas a cultura cientifica é mais do que uma racionalização.


Ela foi a forma de socialização dos gerentes das estruturas insti-
tucionais necessárias. Como sua lingua comum - não direta-
menteacessíve1 à força de trabalho - , ela também se tornou
um meio de coesão de classe para os estratos superiores, limi-
tando as perspeCtivas ou a amplitude de eventuais atividades
rebeldes por parte dos gerentes que pudessem sentir-se tentados
a isso. Foi também um mecanismo flexível para a reprodução
desses gerentes. Ela se prestou ao conceito hoje conhecido como
"meritocracià' e anteriormente como "carreira aberta aos talen-
tos': A cultura científica criou unia estrutura no interior da qual
a mobilidade individual é possível sem ameaçar a estrutura hie-
rárquica dà organização da força de· trabalho. Ao contrário, a
meritocracia reforça a hierarquia. Finalmente, a meritocracia
como operação e a. cultura científica como ideologia criaram
. véus que obstruíam a percepção das operações subjacentes do
capitalismo histórico. A ênfase na racionalidade da atividade,
cientifica serviu para mascarar a irracionalidade da acumulação
incessante.
O universalismo e o racismo podem parecer doutrinas con-
traditórias, se não virtualmente antagónicas: uma aberta, a ou-
trafechada; uma igualitária, êl outra polarizadora; uma convi-
dando ao discurso racional, a outra a encarnar o preconceito.
Contudo, visto que essas doutrinas se disseminaram e preva-
leceram lado a lado.na evolução do capitalismo histórico, pre-
cisamos observar com cuidado de que modos podem ter sido
compatíveis.
O universalismo tem uma peculiaridade. Ele não abriu seu
caminho como uma ideologia flutuante, mas como o discurso
dos que detinham o poder económico e político no sistema
mundial do capitalismo histórico. Assim, o universalismo foi
oferecido ao mundo como um presente dos poderosos para os
fracos. Tímeo Danaos et dona ferentes! Mas o próprio presente

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RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇÃO

abrigava um certo racism.o, pois deixava duas opções aos que o


recebiam: aceitá-lo; aceitando desse modo a existência dos que
estavam situados na parte baixa da hierarquia do saber; recusá~
lo, recusando assim uma arma capaz de reverter a situação de-
sigual de poder.
Não é de se estranhar que mesmo os gerentes que estavam
sendo cooptados pelo privilégio fossem ambivalentes diante da
mensagem do universalismo, vacilando entre a adesão entusiás-
tica e uma rejeição cultural causada por aversão a presunções
racistas. Essa ambivalência se expressou em múltiplos movi-
mentos de "renascimento" cultural. A própria palavra renasci-
mento, amplamente utilizada em muitas áreas,encarnava essa
ambivalência. Ao usá-la, afirma-se a glória de uma era cultural
anterior, mas também se reconhece a inferioridade cultural do
momento presente: A palavra renascimento foi copiada da his-
tória cultural européia.
Pode-se pensar que as forças de trabalho do mundo fossem
mais imunes a essa ambivalência, pois nunca foram chamadas a
cear à mesa dos senhores. Na realidade, contudo, as expressões
políticas das forças de trabalho mundiais, os movimentos anti-
sistêmicos, têm estado impregnados da mesma ambivalência.
Como observamos, eles adotaram a ideologia do Iluminismo,
ela própria, na origem, um produto da ideologia universalista.
Por conseguinte, estenderam para si a armadilha cultural em
que estão presos desde então: tentam minar o capitalismo his-
, tórico usando estratégias e estabelecendo objetivos de médio
prazo decorrentes das "idéias das classes dominantes" que bus-
cam destruir.
Desde o começo, a variante socialista dos movimentos anti-
sistêmicos sempre foi comprometida com o progresso cientifi-
co. Desejoso de se distinguir de outros que ele mesmo criticou
como "utópicos': Marx afirmou estar defendendo o "socialismo
científico". Seus escritos enfatizaram as maneiras como o capi-
talismo era "progressista': O conceito de que o socialismo surgi-

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CAPITALISMO HISTÓRICO

ria primeiro nos países mais "avançados" sugeria um progresso


mediante o qual o socialismo se desenvolveria a partir do (e em
contraposição ao) avanço do capitalismo. A revolução socialista
emularia e viria depois da "revolução burguesa". Alguns teóricos
posteriores chegaram a argumentar que era dever dos socialis-
tas apoiar a revolução burguesa naqueles países em que ela ain-
da não tivesse ocorrido.
As diferenças posteriores entre a Segunda e a Terceira In-
ternacionais não envolviam qualquer discordância sobre essa
epistemologia, que ambas partilhavam. Tanto os social demo-
cratas quanto os comunistas no poder tenderam a dar grande
prioridade ao desenvolvimento dos meios de produção. O slo-
gan de Lenin "socialismo é igual a sovietes mais eletricidade"
figurava em enormes faixas nas ruas de Moscou. Na medida em
que esses movimentos socialdemocratas e comunistas - ,
uma vez no poder, implementaram os slogans de Stalin "socia-
lismo em um só país", eles passaram a promover a mercantiliza-
ção de tudo, que tinha sido essencial para a acumulação global
de capital. Na medida em que permaneceram no seio do siste-
ma interestatal e lutaram contra todos aqueles que tentaram
expulsá-los - , eles aceitaram e promoveram" a realidade mun-
dial do domínio da lei do valor. O "homem socialista" tinha a
suspeita aparência de um taylorismo irrefreável.
Houve, é claro, ideologias "socialistas" que pretenderam re-
jeitar o universalismo e o Iluminismo, defendendo algumas va-
riedades "indígenas" de socialismo nas áreas periféricas da eco-
nomia-mundo. Na medida em que essas formulações foram
mais do que mera retórica, elas pareceram tentativas de usar,
como unidade de base do processo de mercantilização, não as
novas unidades domiciliares que compartilham a renda, mas
entidades comunais mais amplas, que eram e isso fazia parte
do argumento mais tradicionais. No fim das contas, essas
tentativas, quando sérias, se revelaram infrutíferas. De qualquer
modo, a tendência dominante no mundo dos movimentos so-

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RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇÃO

cialistas foi criticar essas tentativas como não socialistas, como


formas de nacionalismo cultural retrógrado.
A primeira vista, por atribuir centralidade a temas separatis-
tas, a variedade nacionalista dos movimentos anti -sistêmicos
parecia menos comprometida com a ideologia do universalis-
mo. Porém, um exame mais cuidadoso desmente essa impres-
são. O nacionalismo tem um componente cultural que movi-
mentos particulares reivindicaram em nome do fortalecimento
das "tradições" nacionais, isto é, uma língua nacional e freqüen-
temente uma herança religiosa. Mas era o nacionalismo cul-
tural uma forma de resistir às pressões dos acumuladores de ca-
pital? Na verdade, os dois elementos principais do nacionalismo
cultural se moviam em direções opostas. Primeiro, a unidade
escolhida como veículo para conter a cultura tendeu a ser o
Estado, que era membro do sistema interestatal. O mais fre-
qüente era vermos esse Estado investido e encarregado da cul-
tura "nacional'~ Em praticamente todos os casos, isso envolveu
uma distorção, freqüentemente muito severa, das continuida-
des culturais. Em quase todos os casos, a afirmação de uma cul-
tura nacional enquadrada pelo Estado implicou supressão, tan-
to quanto reafirmação, de continuidades. Em todos os casos, as
estruturas do Estado saíram fortalecidas, e com elas o sistema
interestatal e o capitalismo histórico como sistema mundial.
Em segundo lugar, um exame comparativo das afirmações
culturais de todos esses Estados deixa claro que, apesar de va-
riarem na forma, eles tendem a ser idênticos no conteúdo. Os
morfemas das linguas eram diferentes, mas o vocabulário co-
meçou a convergir. Os rituais e teologias das religiões do mun-
do podem ter se fortalecido todos, mas seus conteúdos come-
çaram a ser menos diferentes entre si. E os antecedentes do
cientificismo foram redescobertos sob muitos nomes diferentes.
Em resumo, grande parte do nacionalismo cultural foi uma
gigantesca charada. Mais do que isso, assim como a "cultura
socialista': o nacionalismo cultural freqüentemente sustentou a

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CAPITALISMO HISTÓRICO

ideologia universalista do mundo moderno, apresentando-a às


forças de trabalho de maneiras que estas pudessem achá-la mais
palatável. Neste sentido,· os movimentos anti-sistêmicos servi-
ram como intermediários culturais dos poderosos diante dos
fracos, viciando- em vez de consolidar suas fontes de resis-:c
tência mais enraizadas.
Articuladas, as contradições inerentes à estratégia de toma-
da do Estado e a aceitação tácita da epistemologia universalista
produziram sérias conseqüências para os movimentos anti-sis-
têrnicos. Eles tiveram de lidar crescentemente com o fenóme-
no da desilusão, para o qual sua principal resposta ideológica
tem sido a reafirmação da justificativa central do capitalismo:
o caráter automático e inevitável do progresso, ou como era
popular dizer na ex-União Soviética, a "revolução científico-
tecnológica".
No século XX, e com veemência crescente desde a década de
1960, o tema do "projeto civilizacional'~ como Anouar Abdel-
Malek gosta de chamá-lo, começou a ganhar força. Para muitos,
a nova linguagem de "alternativas endógenas" servia como va-
riante verbal dos velhos temas culturais nacionalistas e univer-
salizantes; para outros, havia no tema um conteúdo epistemo-
lógico genuinamente novo. O "projeto civilizacional" reabriu a
questão de saber se verdades trans-históricas de fato existiam.
Uma forma de verdade, que refletia as correlações de força e os
imperativos económicos do capitalismo histórico, floresceu e
permeou o planeta. Isso é verdade, como vimos. Mas, quanta
luz essa forma de verdade terá projetado sobre o processo de
declínio desse sistema histórico, ou sobre a existência de alter-
nativas reais ao sistema histórico baseado na acumulação inces-
sante de capital? Eis a questão.
Essa forma mais nova de resistência cultural tem uma base
material. Ao longo do tempo, as sucessivas mobilizações dos
movimentos anti-sistêmicos do mundo recrutaram um número
cada vez maior de elementos económica e politicamente mais

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RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇÃO

marginais ao funcionamento do sistema e menos aptos a usu-


fruir, mesmo que eventualmente, do excedente acumulado. Ao
mesmo· tempo, as sucessivas desmistificações desses movimen..;
tos minaram a reprodução, da ideologia universalista no seu in-
terior. Eles começaram a se abrir para aqueles que questionavam
mais asperamente as suas premissas. Comparado com o perfil
da militância dos movimentos anti-sistêmicos do mundo de
1850 até 1950, seu perfil passou a abranger, a partir de 1950,
mais áreas periféricas, mais mulheres, mais grupos "minoritá-
rios" (das mais diferentes definições) e uma parcela maior do se-
tor menos qualificado e menos remunerado da força de traba-
lho. Isso foi verdade tanto no mundo como um todo quanto no
interior dos Estados, tanto nas bases militantes como nas lide-
ranças. Tal deslocamento da base social não poderia ocorrer sem
alterar as escolhas dos movimentos anti-sistêmicos do mundo.
Até aqui, tentamos descrever como o capitalismo operou de
fato como sistema histórico. Mas sistemas históricos são apenas
isso: históricos. Eles surgem e finalmente deixam de existir, em
conseqüência de processos que exacerbam as contradições in-
ternas e produzem uma crise estrutural. Crises estruturais são
maciças. Levam tempo para se exaurir. O capitalismo histórico
entrou em sua crise estrutural no começo do século XX e pro-
vavelmente morrerá, como sistema histórico, no próximo sé-
culo. É difícil prever o que acontecerá. O que podemos fazer
agora é analisar as dimensões da crise estrutural e tentar perce-
ber para que direções a crise sistémica está nos levando.
O primeiro e talvez mais fundamental aspecto dessa crise
é que estamos perto de mercantilizar tudo. O capitalismo his-
tórico está em crise porque, perseguindo a acumulação in-
cessante de capital, começa a se aproximar daquele estado que
Adam Smith afirmou ser "natural" para o homem mas que
nunca existiu historicamente. A "propensão [da humanidade J
a negociar, barganhar e trocar uma coisa por outra" penetrou
em domínios e zonas antes intocados, e a pressão para expandir

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CAPITALISMO HISTÓRICO

a mercantilização tornou-se praticamente irrestrita. Marx refe-


riu-se ao mercado como um "véu" que oculta as relações de
produção. Isso era verdade em certo sentido: comparando-se
com a apropriação direta: e local do excedente, a apropriação
indireta e extralocal, pelo mercado, é mais difícil de discernir
e, por isso, de ser politicamente combatida pelas forças de tra-
balho do mundo. Mas o "mercado" opera nos termos de uma
medida geral quantitativa, o dinheiro. Isso explicita, em vez de
mistificar, o quanto está sendo apropriado. Mas, como uma es-
pécie de rede de segurança política, os acumuladores de capital
contavam que só uma parte do trabalho fosse mensurado de§sa
forma. Na medida em que a força de trabalho é cada vez mais
mercantilizada e as unidades domiciliares se tornam cada vez
mais um elo das relações mercantis, o fluxo de excedente se tor-
na cada vez mais visível. Por isso, mobilizam-se cada vez mais
contrapressões politicas e a estrutura da economia se torna, ca-
da vez mais, um alvo direto de mobilização. Longe de acelerar a
proletarização, os acumuladores de capital tentam retardá-la.
Mas não podem fazê-lo inteiramente, por causa dos seus pró-
prios interesses contraditórios, já que são ao mesmo tempo em-
preendedores individuais e membros de uma classe.
Esse tem sido um processo estável e incessante, impossível de
conter enquanto a economia for guiada pela acumulação per-
manente de capital. O sistema pode prolongar sua vida reduzin-
do o ritmo de algumas atividades que o estejam desgastando,
mas a morte permanecerá à espreita no horizonte.
Uma das maneiras usadas pelos acumuladores de capital para
prolongar a vida do sistema foi introduzir restrições ao seu fun-
cionamento. Os movimentos anti-sistêmicos foram empurrados
para criar organizações centradas na estratégia de tomar o poder
de Estado. Eles não tinham escolha, mas sua estratégia está fada-
da a desaparecer, pelo curso natural dos acontecimentos.
Como vimos, as contradições dessa estratégia podem ter
gerado por si mesmas uma crise na esfera política. Esta, po-

80
RACIONALIDADE E RACIONALIZAÇÃO

rém, não seria uma crise do sistema interestatal, que continua


a funcionar muito bem em sua missão primária de manter a
hierarquia e conter os movimentos de oposição. A crise política
em questão é a crise dos próprios movimentos anti-sistêmicos.
Como a distinção entre os movimentos socialistas e naciona-
listas come.çou a se diluir, e como um número cada vez maior
desses movimentos alcançou a tomada do poder de Estado
(com todas as suas limitações), a coletividade mundial dos mo-
vimentos os forçou a reavaliar todas as lealdades definidas a
partir de análises feitas no século XIX. Assim como o sucesso
dos acumuladores em acumular criou uma mercantilização de-
masiada que ameaça o sistema, também o sucesso dos movi-
mentos anti-sistêmicos em tomar o poder fortaleceu o sistema,
que ameaça romper-se por causa da aceitaçãO, pelas forças de
trabalho do mundo, dessa estratégia autolimitadora.
Finalmente, a crise é cultural. A crise dos movimentos anti-
sistêmicos, o questionamento da sua estratégia básica, está le-
vando a um questionamento das premissas da ideologia univer-
salista. Este processo está em curso em dois âmbitos distintos:
há movimentos que, pela primeira vez, buscam a sério alterna-
tivas em termos de civilização; e na vida intelectual, todo o apa-
rato intelectual engendrado desde o século XIV está sendo len-
tamente colocado em dúvida. Em parte, essa dúvida é produto
do próprio sucesso desse aparato. Nas ciências fisicas, os pro-
cessos internos de pesquisa gerados pelo método cientifico mo-
derno parecem levar a um questionamento das leis universais
existentes, que eram sua premissa. Fala-se hoje em introduzir a
noção de "temporalidade" na ciência. Nas ciências sociais, o pa-
radigma desenvolvimentista como um todo está sendo explicita
. e centralmente questionado.
A reabertura de questões intelectuais é, por um lado, o pro-
duto dos sucessos e contradições internas do capitalismohistó-
rico. Mas também é o produto das pressões dos movimentos,
eles próprios em crise, no sentido de que estão à altura e lutam

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CAPITALISMO HISTÓRICO

mais eficazmente contra as estruturas do capitalismo histórico,


cuja crise éo ponto de partida para toda atividade.
Fala-se freqüentemente da crise do capitalismo histórico em
termos de transição do capitalismo para o socialismo. Eu con-
cordo com a fórmula, mas ela não explica muita coisa. Não sa-
bemos exatamente como operaria uma ordem mundial socia-
lista, uma ordem que diminuísse radicalmente as diferenças de
bem-estar material e a disparidade de poder entre as pessoas.
Os Estados ou movimentos que se autodenominam socialistas
oferecem pouca referência para o futuro. São fenômenos do
presente, isto é, do sistema mundial capitalista, e devem ser ava-
liados dentro dessa perspectiva. Como indicamos, podem ser
agentes do fim do capitalismo, embora não uniformemente.
Mas a ordem mundial futura será construída lentamente, de
maneiras que hoje mal podem ser imaginadas e muito menos
previstas. Acreditar que será bOà, ou mesmo melhor que a que
aí está, é apenas um ato de fé. Sabemos, porém, que o que te-
mos não é bom. Em minha opinião, na medida em que o capi-
talismo histórico percorreu seu caminho - e por seus sucessos
- , ele piorou em vez de meIliorar.

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