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ISSN 1517-2422 (versão impressa)

ISSN 2236-9996 (versão on-line)

cadernos

metrópole
financeirização, mercantilização
e urbanismo neoliberal

Cadernos Metrópole
v. 19, n. 39, pp. 339-690
maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3900
Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP

Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–,

Semestral
ISSN 1517-2422 (versão impressa)
ISSN 2236-9996 (versão on-line)
A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22
A partir de 2016, a revista passou a ser quadrimestral.

1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos.


I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles

CDD 300.5
Periódico indexado no SciELO, Redalyc, Latindex, Library of Congress – Washington

Cadernos Metrópole

Profa. Dra. Lucia Bógus


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles
Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes
05015-001 – São Paulo – SP – Brasil

Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro


Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles
Av. Pedro Calmon, 550 – sala 537 – Ilha do Fundão
21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais
Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes
05015-001 – São Paulo – SP – Brasil
Telefone: (55-11) 94148.9100
cadernosmetropole@outlook.com
http://web.observatoriodasmetropoles.net
Secretária
Raquel Cerqueira
ffinanceirização,
i n a n ce
e irr i z a ç ã o ,
mercantilização
m e rc a n till i za
ação
eu
urbanismo
rbanismo n neoliberal
e o lii b e r a l
PUC-SP
Reitora
Maria Amalia Pie Abib Andery

EDUC – Editora da PUC-SP


Direção
José Luiz Goldfarb

Conselho Editorial
Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente), José Luiz Goldfarb, José Rodolpho Perazzolo,
Karen Ambra, Ladislau Dowbor, Lucia Maria Machado Bógus, Mary Jane Paris Spink,
Matthias Grenzer, Norval Baitello Junior, Oswaldo Henrique Duek Marques

Coordenação Editorial
Sonia Montone
Revisão de português
Equipe Educ
Revisão de inglês
Carolina Siqueira M. Ventura
Revisão de espanhol
Vivian Motta Pires
Projeto gráfico, editoração
Raquel Cerqueira
Capa
Waldir Alves

Rua Monte Alegre, 984, sala S-16


05014-901 São Paulo - SP - Brasil
Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085
educ@pucsp.br
www.pucsp.br/educ
cadernos
metrópole

EDITORES
Lucia Bógus (PUC-SP)
Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ)

COMISSÃO EDITORIAL
Eustógio Wanderley Correia Dantas (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/Ceará/Brasil) Luciana Teixeira Andrade (Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil)
Sérgio de Azevedo (Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Suzana Pasternak (Universidade de São Paulo,
São Paulo/São Paulo/Brasil)

CONSELHO EDITORIAL
Adauto Lucio Cardoso (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Aldo Paviani (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/
Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, Toluca/Estado del México/México) Ana Cristina Fernandes (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/
Pernambuco/Brasil) Ana Fani Alessandri Carlos (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi
(Universidad Nacional de General Sarmiento, Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires/Argentina) Angélica Tanus Benatti Alvim (Universidade Presbiteriana Mackenzie,
São Paulo/São Paulo/Brasil) Arlete Moyses Rodrigues (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Carlos Antonio de Mattos (Pontificia
Universidad Católica de Chile, Santiago/Chile) Carlos José Cândido G. Fortuna (Universidade de Coimbra, Coimbra/Portugal) Claudino Ferreira (Universidade de
Coimbra, Coimbra/Portugal) Cristina López Villanueva (Universitat de Barcelona, Barcelona/Espanha) Edna Maria Ramos de Castro (Universidade Federal do
Pará, Belém/Pará/Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (Universidade Federal do Pará, Belém/Pará/Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (Universidade
de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Félix Ramon Ruiz Sánchez (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Fernando Nunes
da Silva (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal) Frederico Rosa Borges de Holanda (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Geraldo
Magela Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Gilda Collet Bruna (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/
São Paulo/Brasil) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heliana Comin Vargas
(Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heloísa Soares de Moura Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil)
Jesus Leal (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) José Alberto Vieira Rio Fernandes (Universidade do Porto, Porto/Portugal) José Antônio F.
Alonso (Fundação de Economia e Estatística, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) José Machado Pais (Universidade de Lisboa, Lisboa/Portugal) José Marcos
Pinto da Cunha (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal)
José Tavares Correia Lira (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Leila Christina Duarte Dias (Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corrêa do Lago (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luís Antonio Machado
da Silva (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza/Ceará/Brasil) Márcio Moraes Valença (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes
(Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria do Livramento
M. Clementino (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marília Steinberger (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito
Federal/Brasil) Marta Dominguéz Pérez (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) Montserrat Crespi Vallbona (Universitat de Barcelona, Barcelona/
Espanha) Nadia Somekh (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Nelson Baltrusis (Universidade Católica do Salvador, Salvador/Bahia/
Brasil) Norma Lacerda (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/Pernambuco/Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Raquel Rolnik (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ricardo Toledo Silva (Universidade de São Paulo, São
Paulo/São Paulo/Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Rosa Maria Moura da
Silva (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Curitiba/Paraná/Brasil) Rosana Baeninger (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Sarah
Feldman (Universidade de São Paulo, São Carlos/São Paulo/Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/
Brasil) Wrana Maria Panizzi (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil)
Colaboradores deste número

Adauto Lucio Cardoso (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Adriano Botelho (Universidade de São Paulo, São Paulo/SP/Brasil) Alex Ferreira
Magalhães (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Alexsandro Ferreira Cardoso da Silva (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/RN/
Brasil) Ana Paula Correa de Carvalho (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Antonio Carlos Alkmim dos Reis (Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Artur Monteiro (Fundação Vitória Amazônica, Manaus/AM/Brasil) Benny Schvarsberg (Universidade de Brasília, Brasília/DF/Brasil)
Blanca Rebeca Ramires Velásquez (Universidad Autonoma de Madrid, Madri/Espanha) Camila d’Otaviano (Universidade de São Paulo, São Paulo/SP/Brasil) Carlos Antônio
Brandão (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Carolina Zuccarelli (Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ/Brasil) Charles Freitas Pessanha
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Christopher Gaffney (University of Zurich, Zurique/Suíça) Cidoval Morais de Sousa (Universidade Estadual da
Paraíba, João Pessoa/PB/Brasil) Daniel Medeiros de Freitas (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG/Brasil) Daniel Sanfelice (Universidade Federal Fluminense,
Niterói/RJ/Brasil) Daniel Veloso Hirata (Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ/Brasil) Demóstenes Andrade de Moraes (Universidade Federal de Campina Grande,
Campina Grande/PB/Brasil) Edgar Samuel Jaramillo Gonzalez (Universidad de Los Andes, Bogotá, Colômbia) Eduardo Alberto Cusce Nobre (Universidade de São Paulo,
São Paulo/SP/Brasil) Eliana Mara Pellerano Kuster (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, Vitória/ES/Brasil) Eliane da Silva Bessa (Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Emilio Pradilla Cobos (Universidad Autónoma Metropolitana, Xochimilco/México DF/México) Érica Tavares da Silva Rocha
(Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ/Brasil) Ernesto López Morales (Universidad de Chile, Santiago de Chile/Chile) Fania Fridman (Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Frederico Rosa Borges de Holanda (Universidade de Brasília, Brasília/DF/Brasil) Geraldo Magela Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte/MG/Brasil) Gilmar Mascarenhas (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Campos dos Goytacazes/RJ/Brasil) Gislene Pereira (Universidade de São Paulo, São Paulo/
SP/Brasil) Gustavo Antonio das Neves Bezerra (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Heloisa Soares de Moura Costa (Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG/Brasil) Hipólita Siqueira de Oliveira (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Inaiá Carvalho (Universidade Federal
da Bahia, Salvador/BA/Brasil) João Farias Rovati (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS/Brasil) João Luiz Pereira Domingues (Universidade Federal
Fluminense, Niterói/RJ/Brasil) João Manuel Machado Ferrão (Universidade de Lisboa, Lisboa/Portugal) Jorge Blanco (Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires/Argentina)
José Julio Lima (Universidade Federal do Pará, Belém/PA/Brasil) Juliano Pamplona Ximenes Ponte (Universidade Federal do Pará, Belém/PA/Brasil) Leo Heller (Fundação
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Luciana da Silva Andrade (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Luciana de Oliveira Royer (Universidade
de São Paulo, São Paulo/SP/Brasil) Luciana do Lago (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Luiz Antonio Machado (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Luiz Augusto Rodrigues (Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ/Brasil) Luiz Renato Bezerra Pequeno (Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza/CE/Brasil) Manuel Villaverde Cabral (Universidade de Lisboa, Lisboa/Portugal) Marcelo Tadeu Baumann Burgos (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Maria Beatriz Cruz Rufino (Universidade de São Paulo, São Paulo/SP/Brasil) Marcia da Silva Pereira Leite (Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Marcio Moraes Valença (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/RN/Brasil) Marcos Barcellos de Souza (Universidade Federal do ABC,
Santo André/SP/Brasil) Maria Julieta Nunes de Souza (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Maria Ligia de Oliveira Barbosa (Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Mariana Fix (Universidade de São Paulo, São Paulo/SP/Brasil) Mariane Campelo Koslinski (Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Mauro Osório (Instituto Pereira Passos, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Norma Lacerda Gonçalves (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/PE/
Brasil) Olga Firkowski (Universidade Federal do Paraná, Curitiba/PR/Brasil) Pablo Lira (Instituto Jones dos Santos Neves, Vitória/ES/Brasil) Paulo Roberto Ferreira Carneiro
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Paulo Gabriel Godinho Delgado (Fundação GetúlioVargas, São Paulo/SP/Brasil) Paulo Roberto Rodrigues
Soares (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS/Brasil) Pedro Celio Alves Borges (Universidade Federal de Goiás, Goiânia/GO/Brasil) Pedro Pírez (Universidad
de Buenos Aires, Buenos Aires/Argentina) Pedro Roberto Jacobi (Universidade de São Paulo, São Paulo/SP/Brasil) Rafael Soares Gonçalves (Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Rainer Randolph (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Rita Veloso (Universidade de Lisboa, Lisboa/Portugal)
Robert Moses Pechman (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ/Brasil) Rodrigo Santos de Faria (Universidade de Brasília, Brasília/DF/Brasil) Rosa Moura
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Curitiba/PR/Brasil) Rosana Denaldi (Universidade Federal do ABC, Santo André/São Paulo/Brasil) Rosangela Dias Oliveira da Paz
(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/SP/Brasil) Ruben Kaztman (Universidad Católica del Uruguay, Montevideo/Uruguai) Saint-Clair Trindade Jr. (Universidade
Federal do Pará, Belém/Pará/Brasil) Sandra Lencioni (Universidade de São Paulo, São Paulo/SP/Brasil) Simone Aparecida Polli (Universidade Federal Tecnológica do Paraná, Curitiba/
PR/Brasil) Virginia Pontual (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/PE/Brasil)
sumário

347 Apresentação

dossiê: financeirização, mercantilização


e urbanismo neoliberal

Financializa on, commodifica on and space- me 351 Financeirização, mercan lização e reestruturação
restructuring: reflec ons from the systemic espaço-temporal: reflexões a par r do enfoque
cycles of accumula on approach dos ciclos sistêmicos de acumulação e da teoria
and the theory of double movement do duplo movimento
Luiz César de Queiroz Ribeiro
Nelson Diniz

Financializa on: concepts, experiences 379 Financeirização: conceitos, experiências


and relevance to the field of Brazilian e a relevância para o campo do planejamento
urban planning urbano brasileiro
Jeroen Klink
Marcos Barcellos de Souza

New urban sprawl vectors of the real 407 Novas frentes de expansão do complexo
estate-financial complex in São Paulo imobiliário-financeiro em São Paulo
Paula Freire Santoro
Raquel Rolnik

The metropolis in-between neoliberalism 433 A metrópole entre o neoliberalismo


and the common: disputes and alterna ves e o comum: disputas e alterna vas
in the contemporary produc on of space na produção contemporânea do espaço
João Bosco Moura Tonucci Filho
Felipe Nunes Coelho Magalhães

Urban partnership opera ons with Cepac: 455 Operações urbanas consorciadas com Cepac:
a part of the cons tu on of the real uma face da cons tuição do complexo
estate-financial complex in Brazil? imobiliário-financeiro no Brasil?
Laisa Eleonora Marós ca Stroher

Tourism gentrifica on in Lisbon: 479 Gentrificação turís ca em Lisboa:


neoliberalism, financializa on neoliberalismo, financeirização
and austerity urbanism in the period e urbanismo austeritário em tempos
of the 2008-2009 capitalist post-crisis de pós-crise capitalista 2008-2009
Luís Mendes

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 339-690, maio/ago 2017 345
The neoliberal spa ality of social housing 513 La espacialidad neoliberal de la producción
produc on in the metropolitan areas de vivienda social en las áreas metropolitanas
of Valparaíso and San ago (1990-2014): de Valparaíso y San ago (1990-2014): ¿hacia la
for the ideological construc on of a human face? construcción idelógica de un rostro humano?
Rodrigo Hidalgo Da wyler
Voltaire Chris an Alvarado Peterson
Daniel Santana Rivas

Urban accumula on downturn 537 A retração da acumulação urbana


in Brazilian ci es: the state crisis nas cidades brasileiras: a crise do Estado
in view of the market crisis diante da crise do mercado
Suely Ribeiro Leal

The public policy for urban water supply 557 A polí ca pública para os serviços urbanos
and sanita on services in Brazil: de abastecimento de água e esgotamento
financializa on, commodifica on sanitário no Brasil: financeirização,
and resistance perspec ves mercan lização e perspec vas de resistência
Ana Lucia Bri o
Sonaly Cris na Rezende

Polí ca urbana no Brasil e Estados Unidos: 583 Urban poli cs in Brazil and the US: state,
Estado, atores econômicos e cenários economic actors and local development scenarios
de desenvolvimento local Nelson Rojas de Carvalho

Artigos complementares

Regula on inside out? An analysis about 609 Regulação às avessas? Uma análise
the urban regula on ins tuted sobre a legislação urbanís ca ins tuída
in the municipali es of the Campinas nos municípios da Região Metropolitana
Metropolitan Region between 1970 and 2006 de Campinas entre 1970 e 2006
Sidney Piochi Bernardini

Public space and the playing aspect 635 O espaço público e o lúdico como estratégias
as strategies of human urban planning de planejamento urbano humano em:
in Copenhagen, Barcelona, Medellin and Curi ba Copenhague, Barcelona, Medellín e Curi ba
Marina Simone dias
Milton Esteves Júnior

The rela on between public municipal 665 La relación entre inversión municipal
investment and quality of life pública y calidad de vida en las ciudades
in the metropolitan ci es of Chile metropolitanas en Chile
Arturo Orellana
Catalina Marshall

687 Instruções aos autores

346 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 339-690, maio/ago 2017
Apresentação

O capitalismo atravessa, desde os anos 1970, uma crise global expressa pela combinação
entre baixo crescimento da economia mundial, sucessivas bolhas especulativas, explosão em diversas
escalas das desigualdades sociais entre os muitos ricos e o restante da população, fragilização da
função regulatória dos Estados Nacionais, entre outros traços. A hoje famosa crise das hipotecas
subprimes de 2007-2008, iniciada nos Estados Unidos e tornada global, vem suscitando nos meios
acadêmicos o debate sobre a vigência de tendências à financeirização do capitalismo expressas pela
emergência de um padrão sistêmico de acumulação de riqueza baseado em endividamento, liquidez,
securitização e rentismo que penetra profundamente na economia, indo além da exacerbação do
tradicional bancário e desencadeando efeitos societários mais gerais. A literatura vem apontando
como carro-chefe dessa transformação o desenvolvimento de uma indústria financeira global com
capacidade de gerar novas mercadorias baseadas em títulos e dívidas, decorrente do acúmulo da
sua capacidade de articular mercados creditício, de capitais e de derivativos.
O tema da financeirização penetrou nos meios acadêmicos ganhando, pouco a pouco,
importância na agenda de pesquisa dedicada aos estudos urbanos. Sem pretender construir o
mapeamento sistemático, podemos identificar alguns eixos de análise presente na literatura já
bastante robusta que trata do tema denominando a financeirização urbana.
Em primeiro lugar, algumas pesquisas vêm buscando entender as condições criadas pela
indústria financeira para tornar viáveis novas modalidades e condições de circulação do capital no
meio ambiente construído, setor que historicamente apresentava como limite o fato de implicar
na imobilização de longa duração de grandes massas de capital fixo. As inovações financeiras
decorrentes da mobilização de investidores institucionais, como fundo de pensão, fundos de
investimentos, fundos imobiliários, companhias de seguros, têm permitido a criação da liquidez para
investimento de capital imobiliário, mudando a intensidade, a natureza e a escala das transformações
do meio ambiente construído.
Outro eixo da pesquisa tem buscado lançar luz nas novas ondas de privatização dos serviços
urbanos impulsionadas pela financeirização, não apenas pela maior abundância de capital-dinheiro
disponível, mas também pelas possibilidades de integrar esse setor na gestão de portfólios de negócios

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 347-350, maio/ago 2017 347
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3900
Apresentação

dos grandes grupos econômicos, forma organizacional típica do capital financeirizado. Se antes a
privatização retirava a provisão dos serviços urbanos do âmbito político-institucional dos serviços
públicos e dos direitos sociais para inseri-los na rentabilidade capitalista, as novas ondas de privatização
submetem a sua gestão às condições que regulam o movimento do capital no mercado financeiro.
Um terceiro eixo refere-se à proliferação das operações urbanas baseadas nas parcerias
público-privadas como padrão de planejamento da cidade, nas quais o financiamento se funda na
geração e valorização de instrumentos próprios do mercado de capital, como os conhecidos Cepacs.
O desenho urbanístico e arquitetônico dessas operações assim como as escolhas dos lugares, dos
atores, da estratégia de realização ficam subordinados a estudos da modelagem financeira que
assegure a conexão entre valorização imobiliária dos empreendimentos projetados e a valorização
dos ativos financeiros criados para circularem no mercado de capitais.
Por fim, podemos identificar o eixo da pesquisa sobre a financeirização urbana que
analisa a conexão entre a financeirização e as finanças públicas das municipalidades, expressa
nas práticas de venda antecipada de receitas futuras, oriundas da cobrança de tributos sobre a
propriedade imobiliária incidente nas zonas mais valorizadas da cidade, condicionando os governos
a concentrarem os investimentos urbanos nesses pedaços.
Se a hipótese da financeirização urbana é evidenciada na literatura como fenômeno em
curso, com fortes tendências a universalizar-se em razão da mundialização da indústria financeira,
ela parece se difundir de forma variegada na escala do sistema-mundo capitalista. Por essa razão, a
chamada para o presente número de Cadernos Metrópole foi formulada com a intenção de sugerir
reflexões que criem as bases teóricas e empíricas necessárias à compreensão de como, no Brasil e
na América Latina, estão se constituindo as conexões entre financeirização e a difusão do urbanismo
liberal. Nesse contexto periférico, o traço distintivo central que emerge é, de um lado, processos de
destruição criativa espacial e institucional que anteriormente embebiam a cidade em mecanismos
de proteção anexos ao mercado, contramercados ou mitigadores dos efeitos desarticuladores do
mercado; e, de outro lado, a constituição de novos marcos regulatórios e formas de governança
urbana que buscam colocar no centro da política urbana a “disciplina de mercado”.
O conjunto dos artigos selecionados foi um interessante mosaico de reflexões que podem ser
agrupadas em dois conjuntos: o primeiro dedicado a propor a reflexão teórica e conceitual sobre os
temas da financeirização e da sua tradução em modelos liberais de urbanismo. O segundo, reunindo
artigos que apresentam análises de processos concretos de transformações urbanas que traduzem
esses dois processos.
Assim, no artigo Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal:
reflexões a partir do enfoque dos ciclos sistêmicos de acumulação e da teoria do duplo movimento,
Luiz César de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz propõem uma reflexão conceitual sobre os processos
de financeirização do capitalismo e de mercantilização e suas implicações no atual ciclo de
reestruturação espaço-temporal a partir das teorias do sistema-mundo capitalista e da economia
política das relações internacionais. Já, no artigo Financeirização: conceitos, experiências e a
relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro, Jeroen Klink e Marcos Barcellos de

348 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 347-350, maio/ago 2017
Apresentação

Souza sistematizam a literatura internacional e nacional e analisam a relevância do debate para


o campo do planejamento urbano, priorizando as questões brasileiras. Ainda nesse grupo de
textos conceituais, insere-se o artigo A metrópole entre o neoliberalismo e o comum: disputas e
alternativas na produção contemporânea do espaço. Nele, João Bosco Moura Tonucci Filho e Felipe
Nunes Coelho Magalhães propõem uma sintética reflexão teórica acerca de como as contradições
da produção do espaço da metrópole contemporânea podem ser compreendidas a partir do embate
entre dois polos políticos e teóricos contrapostos – o do neoliberalismo e do bem comum. Para
tanto, o trabalho explora injunções e cruzamentos geo-históricos entre neoliberalismo e metrópole,
assim como os processos de endividamento e financeirização da cidade.
No segundo grupo de artigos, Paula Freire Santoro e Raquel Rolnik, em Novas frentes de
expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo, exploram o conceito de complexo
imobiliário-financeiro na análise ainda preliminar das conexões globais-locais da financeirização na
compreensão de uma nova frente de expansão imobiliária junto ao Rodoanel. Esse tema é novamente
explorado no artigo de Laisa Eleonora Maróstica Stroher, Operações urbanas consorciadas com
Cepac: uma face da constituição do complexo imobiliário-financeiro no Brasil?, no qual a autora
apresenta uma visão crítica panorâmica sobre a literatura acerca da implementação das operações
urbanas consorciadas (OUCs) com Cepacs no Brasil.
Mudando de objeto e de continente, Luís Mendes, em Gentrificação turística em Lisboa:
neoliberalismo, financeirização e urbanismo austeritário em tempos de pós-crise capitalista 2008-
2009, propõe pensar a relação entre financeirização da produção imobiliária e prática do urbanismo
neoliberal na explicação das tendências da gentrificação turística da cidade de Lisboa na última
década. Já Suely Ribeiro Leal, em A retração da acumulação urbana nas cidades brasileiras: a
crise do Estado diante da crise do mercado, apresenta a reflexão sobre a hipótese da retração das
tendências da expansão da acumulação urbana como força de transformação das cidades brasileiras
em razão dos impactos da crise mundial de 2008 sobre o nosso mercado imobiliário.
Centrando a atenção mais em aspectos institucionais, o presente número apresenta três
interessantes reflexões sobre condições que favorecem ou dificultam o avanço de políticas públicas
orientadas pela financeirização urbana e a mercantilização da cidade. Em A política pública para
os serviços urbanos de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil: financeirização,
mercantilização e perspectivas de resistência, Ana Lucia Britto e Sonaly Cristina Rezende analisam
como foram criados marcos institucionais favoráveis à financeirização e à mercantilização do serviço
de saneamento em razão das ambiguidades práticas e de concepção da política de abastecimento
de água e esgotamento sanitário durante as gestões do Partido dos Trabalhadores entre 2007
e 2014. Por outro lado, Nelson Rojas de Carvalho, em Urban politics in Brazil and the US: state,
economic actors and local development scenarios, propõe interessante reflexão comparativa sobre
diferentes padrões de articulação entre mercado e estado em unidades subnacionais no Brasil e
nos EUA. O artigo enfatiza que a atrofia organizacional dos atores econômicos no Brasil, em nível
local, associada à presença das gramáticas políticas do clientelismo e corporativismo nos governos
municipais colocam-se como desafios analíticos para o uso de teorias urbanas inspiradas pela

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 347-350, maio/ago 2017 349
Apresentação

economia política norte-americana, como o regime urbano e as teorias de máquinas de crescimento.


Por último, o dossiê deste número de Cadernos Metrópole publica a reflexão proposta
por Rodrigo Hidalgo Dattwyler, Voltaire Christian Alvarado Peterson e Daniel Santana Rivas, em
La espacialidad neoliberal de la producción de vivienda social en las áreas metropolitanas de
Valparaíso y Santiago (1990-2014): ¿hacia la construcción idelógica de un rostro humano?, sobre
como o neoliberalismo em torno da política de habitação social, praticada nas cidades chilenas de
Valparaíso e Santiago, no período 1990-2014, constituiu discursos humanistas que atuam como o
que os autores chamam ideologias espaciais legitimadoras da expansão da produção imobiliária
capitalista e mercantilizadora da cidade.
Fora do dossiê temático, publicamos ainda o artigo de Sidney Piochi Bernardini, Regulação
às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística instituída nos municípios da Região
Metropolitana de Campinas entre 1970 e 2006, que examina as consequências da contradição
entre a autonomia municipal e a necessidade da regulação urbanística do território metropolitano,
tomando o caso da Região Metropolitana de Campinas–SP. Os dois últimos artigos que compõem
este número tratam de temas e questões que certamente estão fora da concepção do urbanismo
liberal impulsionado pela financeirização. Marina Simone Dias e Milton Esteves Júnior, em O
espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano em: Copenhague,
Barcelona, Medellín e Curitiba, apresentam uma perspectiva comparativa, envolvendo as cidades de
Copenhague, Barcelona, Medellín e Curitiba, sobre o papel de um urbanismo dos espaços públicos
baseado em valores de liberdade, diversidade e lazer poder gerar conexões virtuosas entre práticas
sociais, cultura urbana e afirmação da cidadania. Por outro lado, Arturo Orellana e Catalina Marshall,
em La relación entre inversión municipal pública y calidad de vida en las ciudades metropolitanas
en Chile, usando informações de uma pesquisa empírica em cidades chilenas, refletem sobre os
desafios na promoção da qualidade de vida na escala metropolitana, confrontando as alternativas
via os investimentos públicos municipais e os investimentos privados.

Luiz César de Queiroz Ribeiro


Orlando Alves dos Santos Jr.
Organizadores

Luiz César de Queiroz Ribeiro


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Institutos Nacionais de
Ciência e Tecnologia/Observatório das Metrópoles. Rio de Janeiro, RJ/Brasil.
lcqribeiro@gmail.com

Orlando Alves dos Santos Jr.


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das
Metrópoles. Rio de Janeiro, RJ/Brasil.
orlando.santosjr@gmail.com

350 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 347-350, maio/ago 2017
Financeirização, mercantilização
e reestruturação espaço-temporal:
reflexões a partir do enfoque
dos ciclos sistêmicos de acumulação
e da teoria do duplo movimento
Financialization, commodification and space-time
restructuring: reflections from the systemic cycles
of accumulation approach and the theory of double movement

Luiz César de Queiroz Ribeiro


Nelson Diniz

Resumo Abstract
Pretendemos, com este artigo, refletir sobre as re- We intend, with the present article, to reflect
lações entre financeirização e mercantilização. O on the relations between financialization and
principal objetivo desta pesquisa é encontrar mar- commodification. The main objective of this
cos teóricos para a compreensão do atual ciclo research is to find theoretical frameworks for the
de reestruturação espaço-temporal a partir das understanding of the current cycle of space-time
teorias do sistema-mundo capitalista e da eco- restructuring based on the theories of the capitalist
nomia política das relações internacionais. Nossa world-system and of the political economy of
exposição possui dois objetivos. Primeiro, posicio- international relations. Our exposition has two
naremo-nos, a partir das perspectivas braudelia- objectives. First, we will position ourselves, from a
na e polanyiana, nos debates sobre os sentidos Braudelian and Polanyian perspective, in the debates
atribuídos à financeirização e à mercantilização. about the meanings attributed to financialization
Em seguida, ilustraremos, com alguns exemplos, and commodification. Next, we will illustrate, with
como essas perspectivas sugerem a construção some examples, how these perspectives suggest the
de novos olhares sobre fenômenos que estão no construction of new views on phenomena that are
centro das investigações no campo dos estudos at the center of investigations in the field of urban
urbanos e territoriais. and territorial studies.
Palavras-chave: financeirização; mercantilização; Keywords: financialization; commodification;
ciclos sistêmicos de acumulação; duplo movimento. systemic cycles of accumulation; double movement.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 351-377, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3901
Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

uma melhor definição dos limites teóricos entre


Introdução
esses dois conceitos fundamentais. Em seguida,
procuramos ilustrar, com alguns exemplos, de
Pretendemos, com o presente artigo, refletir so-
que maneira essas leituras particulares suge-
bre as relações entre financeirização e mercan-
rem a possibilidade de construção de um novo
tilização, considerados os impactos urbanos e
olhar sobre fenômenos e objetos que estão no
territoriais desses processos inter-relacionados.
centro das investigações no campo dos estudos
Ao fazê-lo, apresentaremos algumas das hipó-
urbanos e territoriais.
teses da pesquisa “Metrópole, Capital e Esta-
do”, desenvolvida no âmbito do Observatório
das Metrópoles. Em linhas gerais, o principal
objetivo dessa pesquisa é encontrar marcos O que é financeirização?
teóricos para a compreensão do atual ciclo de
reestruturação espaço-temporal a partir das É comum iniciar o debate sobre o significado
teorias do sistema-mundo capitalista e das teo- da financeirização contemporânea do capita-
rias da economia política das relações interna- lismo enfatizando sua forma de manifestação
cionais, fundadas numa matriz braudeliana. mais aparente. Sendo assim, podemos afirmar,
Em nossa opinião, as justificativas ime- em consonância com Braga (1997), que esse
diatas para uma reflexão dessa natureza po- processo se refere, antes de tudo, à “crescen-
dem ser deduzidas do próprio tema do semi- te e recorrente defasagem, por prazos longos,
nário para o qual foi originalmente elaborada: entre os valores dos papéis representativos da
“Crisis mundial y financiarización: impactos riqueza […] e os valores dos bens, serviços e
1
urbanos y territoriales”. Como se sabe, as mu- bases técnico-produtivas em que se fundam a
danças urbanas e territoriais típicas da atual reprodução da vida e da sociedade” (p. 196). O
fase de desenvolvimento do capitalismo ex- Quadro 1 permite ilustrar essa tendência atual
pressam, cada vez mais, uma lógica geral de por intermédio da comparação entre o cresci-
produção social do espaço que está determi- mento do estoque de ativos financeiros e o do
nada pelas novas formas de acumulação finan- PNB mundiais.
ceirizada. Sem dúvida, essas formas manifesta- É evidente que a identificação da defa-
ram, explicita e abertamente, seus efeitos mais sagem entre o valor dos ativos financeiros e
contraditórios desde o início da última grande o dos bens e serviços não é, de modo algum,
crise sistêmica do capitalismo, ainda em curso.2 suficiente para definir com precisão o processo
Pois bem, organizaremos nossa expo- em tela. Não obstante, os dados acima indicam
sição em torno de dois objetivos básicos. Em que, mesmo após a crise sistêmica de acumu-
primeiro lugar, pretendemos nos posicionar, a lação iniciada em 2007-2008, mantiveram-se
partir de uma perspectiva braudeliana e po- as projeções de crescimento da desproporção
lanyiana, nos debates sobre os diferentes sen- entre esses valores. Portanto, ainda de acordo
tidos atribuídos à financeirização e à mercanti- com Braga (1997), tomamos como um ponto
lização. Desse modo, buscamos contribuir para de partida mais consistente a ideia segundo a

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Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

Quadro 1 – Riqueza fictícia e renda real

Estoque mundial de ativos PNB mundial Relação estoque ativos


Ano
financeiros* (US$ trilhões) (US$ trilhões) financeiros/PNB

1980 12 11,8 1,02


1993 53 24,9 2,13
1996 69 30,3 2,28
1999 96 31,1 3,09
2003 118 37,1 3,18
2006 167 48,8 3,42
2007 200** 54,8 3,65
2010*** 209 55,9 3,74

* Inclui ações e debêntures, títulos de dívida privados e públicos e aplicações bancárias; não inclui derivativos.
** Estimativas. *** Projeções.
Fonte: Elaborado por Paulani (2009) a partir de dados do McKinseys Global Institute (ativos) e do FMI (PNB).

qual a financeirização deve ser compreendida Teorias desenvolvidas, principalmente, por au-
como o padrão sistêmico de riqueza do capi- tores clássicos do marxismo, como Hilferding
talismo contemporâneo. Quer dizer, como um (1986), Bukharin (1986) e Lenin (1977);
processo geral de transformação do capitalis- c) o resgate das teorias do capitalismo mo-
mo que se torna estrutural, cria novas formas nopolista, que consolidaram e ampliaram as
institucionais, marca as estratégias de todos os formulações dos clássicos do marxismo e que
agentes privados relevantes, altera a operação se referem, por exemplo, às elaborações semi-
das finanças e dos gastos públicos e, de algu- nais de Magdoff e Sweezy (1987);
ma maneira, diferencia-se dos modos de ma- d) as abordagens que buscam compreender
nifestação do capital enquanto expressão do as relações entre as crises de sobreacumulação
valor-trabalho. de capitais e a produção social do espaço. Sem
Com efeito, são muito variadas as dúvida, Lefebvre (2008) e Harvey (2015) são
formas de explicar e enunciar as característi- seus principais expoentes;
cas, as causas e as consequências da deno- e) as teses e teorias sobre o surgimento do
minada financeirização. Dentre elas, destaca- regime de acumulação financeirizado ou com
mos, por exemplo: dominância financeira, elaboradas por auto-
a) a releitura das reflexões de Marx (1986) res tais como Aglietta (1998) e Boyer (2000).
sobre o capital portador de juros e o capital fic- Em nossa opinião, essas teses e teorias se
tício, assim como de suas teorias da renda; tornaram as formas mais difundidas de com-
b) a retomada das teorias sobre o advento preensão crítica da financeirização contem-
e as relações entre o imperialismo e o capital porânea, sobretudo na versão formulada por
financeiro, na passagem do século XIX ao XX. Chesnais (2002);

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Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

f) a hipótese da instabilidade financeira do Dito de outra maneira, buscamos relativizar ou


capitalismo, de matriz pós-keynesiana, desen- mesmo superar as interpretações que enfati-
volvida por autores como Minsky (1982), e que zam, excessivamente, as mudanças contempo-
expressam a renovação e a atualização da Teo- râneas do capitalismo.
ria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda de
Keynes (1986);
g) as distintas perspectivas que denominamos,
provisoriamente, sociologia econômica e/ou
Tempo, espaço e capitalismo
geografia econômica da acumulação financei-
na perspectiva braudeliana
rizada. Sublinhamos, por exemplo, as reflexões
de: 1) Lapavitsas (2009), sobre as novas formas Como já mencionado, a concepção dos ciclos
de expropriação financeira; 2) García-Lamarca sistêmicos de acumulação está fundada no
e Kaika (2016), sobre a biopolítica do endivida- pensamento de Fernand Braudel, particular-
mento hipotecário; e 3) Bauman (2010), sobre mente nas suas formas de conceber o papel do
a vida à crédito; tempo e do espaço na explicação dos processos
h) as teorias do sistema-mundo capitalista sociais e em sua descrição singular das caracte-
e as teorias da economia política das relações rísticas gerais do capitalismo. Portanto, antes
internacionais, de viés braudeliano, cujos prin- de nos referirmos sistematicamente a essa con-
cipais representantes são Wallerstein (2011), cepção, apresentaremos alguns elementos de
Arrighi (2003) e Fiori (2014). Ressaltamos, prin- sua fundamentação teórico-metodológica.
cipalmente, a concepção dos ciclos sistêmicos
de acumulação, apresentada por Giovanni Arri-
ghi em seu clássico O longo século XX: dinhei- A injeção de história na economia
ro, poder e as origens do nosso tempo.
Sem deixar de dialogar com as demais Em sua exposição sobre as posturas metodoló-
abordagens, tomamos como referência fun- gicas estabelecidas por Braudel, Cecilio (2012)
damental a concepção dos ciclos sistêmicos destaca, em primeiro lugar, o que denomina
de acumulação. Desse modo, tal como Arrighi “injeção de história na economia”. Ao fazê-
(2003), acreditamos que é possível buscar for- -lo, aponta dois “méritos” principais na abor-
mas de compreensão das atuais transforma- dagem histórico-social de matriz braudeliana.
ções do capitalismo “à luz de padrões de repe- De um lado, ela permitiria identificar padrões
tição e evolução que abarcam todo o curso do de recorrência típicos de toda a história do ca-
capitalismo histórico como sistema mundial” pitalismo e fundamentais para a compreensão
(p. 4). Para nós, ainda em consonância com do mundo contemporâneo.3 De outro, seria um
Arrighi (ibid.), a ampliação dos horizontes de contraponto aos distintos modos de elaboração
referência espaço-temporais permite revelar de leis sociais abstratas e universalmente vá-
como “tendências que pareciam inéditas e im- lidas, sobretudo as produzidas no campo das
previsíveis começam a afigurar-se familiares”. ciências econômicas.4

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Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

De acordo com Wallerstein (2006), no das nossas ilusões, das nossas rápidas tomadas
que diz respeito à concepção do tempo, Braudel de consciência” (ibid., p. 11). Por seu turno, a
travou uma “batalha” teórico-metodológica história econômica e social salientou a oscila-
em duas frentes, isto é, “contra as duas posi- ção cíclica e sua duração. Trata-se do recitativo
ções nominalmente antitéticas que vêm domi- da conjuntura, que investiga o passado o divi-
nando o pensamento social desde pelos menos dindo em amplas seções. Acima do recitativo
a metade do século XIX, as epistemologias da conjuntura, encontrar-se-ia “uma história de
ideográfica e nomotética” (p. 161). A perspec- fôlego ainda mais contido e, nesse caso, de am-
tiva ideográfica é a que se concentra em datar plitude secular: trata-se da história de longa, e
acontecimentos para obter “uma cronologia e, mesmo de muito longa, duração” (ibid., p. 10).
por conseguinte, uma narrativa, um relato, uma Nos termos de Braudel (ibid.), considerar a lon-
história que é peculiar e explicável somente em ga duração significa reconhecer que todas as
seus próprios termos” (ibid.). A perspectiva no- possíveis escalas e fragmentações do tempo
motética, por sua vez, ao pretender distinguir devem ser compreendidas a partir da “profun-
padrões universais do comportamento huma- didade” e das “estruturas” em torno das quais
no, torna o tempo histórico irrelevante. Em seus gravitam. Isto é, envolve “familiarizar-se com
esforços de superação simultânea das episte- um tempo que se tornou mais lento, por vezes,
mologias ideográfica e nomotética, Braudel até quase ao limite da mobilidade” (p. 17).
(1990) recorreu à construção de uma tipologia Portanto, apesar de conceber a “existên-
diferencial dos tempos histórico-sociais. Para cia de dezenas e até centenas de tempos na
tanto, ainda segundo Wallerstein (2006), su- história” (Rojas, 2013, p. 21), Braudel elaborou
blinhou a importância dos ritmos cíclicos e das sua proposta metodológica das temporalidades
estruturas duradouras, em detrimento do tem- diferenciais a partir da “tripla esquematiza-
po breve da história dos acontecimentos. ção do tempo dos acontecimentos ou tempo
Braudel (1990) não defendeu que os his- da curta duração, tempo das conjunturas ou
toriadores e cientistas sociais abandonassem tempo médio e tempo longo das estruturas, o
por completo o tempo dos acontecimentos, “a tempo da longa duração histórica” (ibid.). Para
mais caprichosa, a mais enganadora das du- Rojas, a concepção braudeliana das temporali-
rações” (p. 11). Não obstante, sugeriu “sair-se dades diferenciais conduz à desconstrução da
dele para voltar a ele mais tarde, mas com ou- visão moderna do tempo. Quer dizer, em opo-
tros olhos, carregados com outras inquietações, sição ao tempo linear, plano e unitário, Braudel
com outras perguntas” (ibid., p. 17). Em sua elaborou uma “nova teoria da decomposição e
perspectiva, todo trabalho histórico decompõe diferenciação temporal” (ibid., p. 23) – teoria
o tempo passado de acordo com preferências fundada em “tempos e durações de densidade
e exclusões. A história tradicional, por exemplo, e intensidade diferençadas, hierarquizados, en-
privilegiou a narrativa atenta ao tempo breve, tre os quais o mais importante é a longa dura-
“à medida dos indivíduos, da vida cotidiana, ção” (ibid.).

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Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

O espaço-tempo ampliado: de poder realizados no curso de conflitos, ten-


da economia-mundo europeia sões e crises econômicas.
à economia mundial capitalista Até aproximadamente 1750, os centros
dominantes da economia-mundo europeia fo-
Braudel definiu sua investigação da histó- ram cidades ou cidades-Estados: sucessivamen-
ria de longa duração do capitalismo, entre te, Veneza, Antuérpia, Gênova e Amsterdam. A
os séculos XV e XVIII, como uma tentativa partir de então, criações e dominações urbanas
de “vincular o capitalismo, sua evolução e foram substituídas pela dominação nacional.
seus meios a uma história geral do mundo” Quando o centro da economia-mundo europeia
(Braudel, 1987, p. 30). Para tanto, discerniu se deslocou para Londres, a Inglaterra já era
uma unidade que se afirmou progressivamen- uma economia nacional, ou seja, “um espaço
te sobre a existência de todas as economias. político transformado pelo Estado, em virtude
Para explicar o processo de constituição da de necessidades e inovações da vida material,
sociedade mundial hierarquizada, estabe- num espaço econômico coerente, unificado,
leceu a distinção entre economia mundial e cujas atividades podiam encaminhar-se em
economia-mundo. 5 conjunto numa mesma direção” (ibid., p. 36).
As economias-mundos são definidas a A ascensão de Londres, assim como a trans-
partir de três aspectos básicos: 1) ocupam um formação da Inglaterra em economia nacional
espaço geográfico determinado, ainda que po- unificada, inaugurou uma nova etapa da histó-
tencialmente suscetível a rupturas; 2) organi- ria do capitalismo.
zam-se em torno de um centro ou núcleo, um Braudel (ibid.) observa que a Revolução
polo representado por uma cidade dominante; Industrial inglesa foi decisiva no deslocamen-
e 3) dividem-se em zonas sucessivas: o centro, to do centro da economia-mundo europeia, no
as zonas intermediárias e as margens. Conside- século XVIII, de Amsterdam para Londres. No
rada a organização hierárquica da sociedade entanto, ao contrário do que sugere o termo
mundial, essas zonas concêntricas são progres- “revolução”, tratou-se de fenômeno lento e
sivamente desfavorecidas à medida que se dis- de determinações profundas. Seja como for, a
tanciam do núcleo – locus dos preços e salários partir desse momento, a economia-mundo eu-
altos, das indústrias lucrativas, do desenvolvi- ropeia tornou-se, progressivamente, economia
mento técnico-científico e do afluxo de metais mundial capitalista, baseada na formação de
preciosos, de moedas e de títulos de crédito. 6 monopólios de direito ou de fato e na explora-
Pois bem, a partir da ampliação das esca- ção dos recursos do mundo inteiro.
las espaço-temporais de explicação dos proces- O processo de centragem, descentragem
sos sociais, Braudel (ibid.) demonstrou como e recentragem da economia-mundo europeia,
a economia-mundo europeia constituiu-se na em benefício de Londres, assim como a trans-
matriz do capitalismo e da economia mundiais. formação da Inglaterra num espaço político e
Para reconstruir essa trajetória, enfatizou movi- econômico coerente, já indicam alguns dos tra-
mentos de centragem, descentragem e recen- ços da concepção braudeliana do capitalismo.
tragem. Isto é, concentrações e deslocamentos Sugerem, acima de tudo, uma dialética entre

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Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

poderes capitalistas e poderes territoriais. A a vida econômica é dividida em três camadas


dialética entre Estado e capital será retomada que correspondem às estruturas da vida ou da
mais adiante. Antes disso, é preciso destacar de civilização material, da economia de mercado e
que maneira, segundo essa concepção, a flexi- do capitalismo.
bilidade, o ecletismo e a liberdade de escolha Pois bem, tal como sugerido pela obser-
são considerados características fundamentais vação da Figura 1, as camadas nas quais a vida
da reprodução do capitalismo histórico como econômica é dividida constituem uma hierar-
sistema mundial. quia. Na base dessa hierarquia está a camada
da vida material, quer dizer, a esfera da repro-
dução social cotidiana, organizada, prioritaria-
A unidade do capitalismo: mente, em torno da lógica do valor de uso.7
flexibilidade, ecletismo Acima dessa camada, ergue-se a economia
e liberdade de escolha de mercado, uma esfera de trocas e comuni-
cações horizontais reguladas de maneira mais
À semelhança do que fez com os tempos ou menos automática pela lógica da demanda,
histórico-sociais, Braudel também criou um da oferta e dos preços. No topo, a camada do
esquema conceitual tripartido para definir as capitalismo ou do antimercado consiste numa
características gerais do capitalismo. Confor- esfera de circulação diferenciada, caracteriza-
me esse esquema, representado na Figura 1, da, sobretudo, pela não especialização, pela

Figura 1 – Representação do esquema tripartido da vida econômica

CAPITALISMO

ECONOMIA DE MERCADO

VIDA OU CIVILIZAÇÃO MATERIAL

Fonte: Elaborado pelos autores.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 351-377, maio/ago 2017 357
Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

formação de monopólios e pelo privilégio das econômica, ora desterritorializam-se e assu-


8
relações com o Estado. Enfim, o capitalismo é mem formas mais líquidas de valorização dos
concebido como a camada superior não espe- capitais. Fazem isso sempre a partir da media-
cializada da hierarquia do mundo do comércio. ção fundamental com os poderes estatais e
Por conseguinte, a flexibilidade, o ecletismo e com o objetivo de ampliar sua liquidez, sua fle-
a liberdade de escolha foram as características xibilidade, enfim, sua liberdade de escolha. A
essenciais de sua unidade, desde a Itália do partir dessa caracterização do capitalismo, em
século XIII. geral oposta à concepção de modo de produ-
Arrighi (2003) defende que a concepção ção, Braudel (1987) estabeleceu e demonstrou
braudeliana do capitalismo pode ser tomada a ideia de que todas as fases de significativa
como uma reafirmação da fórmula geral do expansão material da economia-mundo capi-
capital de Marx (DMD'). O capital-dinheiro talista foram sucedidas por fases de expansão
(D) é o mesmo que liquidez, flexibilidade e financeira. Portanto, em consonância com a
liberdade de escolha. O capital-mercadoria matriz de pensamento braudeliana, defen-
(M) indica a expectativa de lucro com base no demos que a financeirização contemporânea
investimento numa dada combinação de insu- deve ser considerada como um dos momen-
mo-produto e, dessa maneira, significa con- tos históricos recorrentes em que “os agen-
cretude, rigidez, estreitamento e fechamento tes capitalistas passam a ‘preferir’ a liquidez,
das opções. Por fim, D' expressa a ampliação e uma parcela incomumente grande de seus
da liquidez, da flexibilidade e da liberdade de recursos tende a permanecer sob forma líqui-
escolha. Assim, não são as inversões em com- da” (Arrighi, 2003, p. 5). Esse é o pressuposto
binações específicas de insumo-produto que básico da concepção dos ciclos sistêmicos de
tornam um agente capitalista. Tais inversões acumulação que apresentaremos a seguir.
são apenas um meio contingente para alcan-
çar seus objetivos, ou seja, “para chegar à
finalidade de assegurar uma flexibilidade e
liberdade de escolha ainda maiores num mo-
A concepção dos ciclos
mento futuro” (ibid., p. 5). sistêmicos de acumulação
Ainda de acordo com Arrighi (ibid.),
quando há frustração da expectativa de au- As teses e as teorias sobre o advento de um re-
mento da liberdade de escolha, “o capital ten- gime de acumulação financeirizado (Chesnais,
de a retornar a formas mais flexíveis de inves- 1996 e 2002) indicam que, ao menos desde a
timento – acima de tudo, à sua forma monetá- metade dos anos 1970, há uma preponderân-
ria”. Dito de outro modo, trata-se da questão cia crescente dos capitais de aplicação finan-
da preferência pela liquidez.9 Ou seja, sendo ceira em relação à totalidade dos capitais que
absolutamente flexíveis e ecléticas, as ações circulam na economia mundial. No contexto
dos principais agentes capitalistas ora indi- do esgotamento do regime de acumulação
cam o sentido geral de territorialização e de fordista-keynesiano, esse processo teria coin-
investimento em formas materiais de expansão cidido com mudanças estruturais no alcance e

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Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

no conteúdo da mundialização do capitalismo. A evidência de que algo fundamental se


Chesnais (1996) observa que, a partir de en- transformou no modo como funciona o capi-
tão, “o estilo de acumulação é dado pelas talismo, nos anos 1970, também é o ponto de
novas formas de centralização de gigantescos partida das reflexões de Arrighi (ibid.). Como o
capitais financeiros” (p.15). Segundo Paulani próprio autor sugere, suas indagações se asse-
(2013), consagradas na literatura de economia melham às de Harvey (2007), cuja tese é bas-
política nacional e internacional desde a déca- tante conhecida:
da de 1990, as teses e as teorias sobre a finan-
Vem ocorrendo uma mudança abissal nas
ceirização do capitalismo apontam que:
práticas culturais, bem como político-eco-
nômicas, desde mais ou menos 1972.
[...] a partir de meados dos anos 1970, o
Essa mudança abissal está vinculada à
capitalismo ingressa numa fase em que a
emergência de novas maneiras domi-
valorização financeira vai adquirindo um
nantes pelas quais experimentamos o
papel cada vez mais importante, até as-
tempo e o espaço. […] Mas essas mu-
sumir o comando do processo de acumu-
danças, quando confrontadas com as re-
lação. Em outras palavras, atualmente,
gras básicas de acumulação capitalista,
o processo de valorização do valor que
mostram-se mais como transformações
é definidor do capitalismo, estaria sob o
da aparência superficial do que como si-
comando da lógica financeira, que é ren-
nais do surgimento de alguma sociedade
tista e curto-prazista, além de ainda mais
pós-capitalista ou mesmo pós-industrial
contraditória do ponto de vista do funcio-
inteiramente nova. (p. 8)
namento do sistema como um todo ou, se
quisermos, do ponto de vista da acumula-
ção sistêmica. (p. 255) Para ambos, períodos de crise, reestrutu-
ração e reorganização são inerentes à reprodu-
Para nós, os limites das teses e teorias so- ção ampliada do capitalismo. Não obstante, Ar-
bre a emergência de um regime de acumulação righi (2003) busca esclarecer as tendências con-
financeirizado ou com dominância financeira temporâneas à luz de padrões de repetição e
dizem respeito, principalmente, à excessiva ên- evolução de longa duração.10 Conforme o autor:
fase nas transformações econômicas contem-
porâneas. Com efeito, formulações como as de Nossa tese é a de que, de fato, a história
Aglietta (apud Chesnais, 2002) sugerem que, do capitalismo está atravessando um mo-
ao menos nos países centrais, sobretudo nos mento decisivo, mas essa situação não é
tão sem precedentes quanto poderia pa-
Estados Unidos, algo como um “capitalismo de
recer à primeira vista. Longos períodos de
amanhã” estaria em desenvolvimento. Como crise, reestruturação e reorganização – ou
não acreditamos que a atual fase de expansão seja, de mudanças com descontinuida-
financeira constitui uma etapa inteiramente de – têm sido muito mais típicos da
nova do capitalismo, defendemos, em conso- história da economia capitalista mundial
do que os breves momentos de expansão
nância com a abordagem de matriz braudelia-
generalizada por uma via de desenvol-
na de Arrighi (2003), que é necessário ampliar vimento definida, como a que ocorreu
os horizontes espaço-temporais de análise da nas décadas de 1950 e 1960. No passa-
denominada financeirização. do, esses longos períodos de mudanças

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Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

com descontinuidade terminaram em (do século XV ao início do século XVII); 2) o ci-


reorgani zações da economia capitalista clo holandês (do fim do século XVI até a maior
mundial sobre bases novas e mais am-
parte do século XVIII); 3) o ciclo britânico (da
plas. (p. 1)
segunda metade do século XVIII até o início
Ao desenvolver sua tese, Arrighi (ibid.) do século XX); e 4) o ciclo norte-americano (do
recorreu à fórmula geral do capital de Marx final do século XIX até o período contemporâ-
(DMD') para compreender, não apenas a lógica neo). Em cada um dos ciclos, combinaram-se,
dos investimentos capitalistas individuais, mas, de maneira contraditória, duas lógicas de po-
igualmente, o padrão reiterado do capitalismo der distintas, dando forma à economia capita-
histórico como sistema mundial. Esse padrão é lista mundial e ao moderno sistema interesta-
definido pela alternância de fases de expansão tal. Sobre as relações entre as lógicas territo-
material, nas quais os capitais são investidos rialista e capitalista do poder, o autor propõe
em combinações específicas de insumo-pro- o seguinte:
duto, e de fases de renascimento e expansão
Parafraseando a fórmula geral do capi-
financeiros, nas quais os capitais se libertam de
tal de Marx sobre a produção capitalista
sua forma mercadoria. Associadas, essas duas (DMD'), podemos traduzir a diferença
fases constituem um completo ciclo sistêmico entre essas duas lógicas do poder pelas
de acumulação. fórmulas TDT' e DTD', respectivamente.
As fases de expansão material (DM) ca- Segundo a primeira fórmula, o domínio
econômico abstrato, ou o dinheiro (D), é
racterizam-se por mudanças contínuas, isto é, a
um meio ou elo intermediário num pro-
economia capitalista cresce por uma única via cesso voltado para a aquisição de territó-
de desenvolvimento. Por sua vez, as fases de rios adicionais (T' – T = + T). De acordo
expansão financeira (MD') caracterizam-se por com a segunda fórmula, o território (T)
mudanças descontínuas, quando o crescimen- é um meio ou um elo intermediário num
processo voltado para a aquisição de
to pela via estabelecida atinge seu limite, im-
meios de pagamento adicionais (D' – D =
pondo reestruturações sob a liderança de de- + D). (p. 33)
terminados blocos de agentes governamentais
e empresariais. Ou seja, “em toda e qualquer A combinação contraditória dessas lógi-
expansão financeira, o capitalismo mundial cas correspondeu à formação de blocos capita-
reorganizou-se ainda mais fundamentalmen- listas/territorialistas de poder, baseados em re-
te sob uma nova liderança” (Arrighi e Silver, gimes de acumulação particulares e capazes de
2001, p. 41, tradução nossa). Por conseguinte, exercer funções de governo e liderança sobre
a expansão do capitalismo vinculou-se à com- um sistema de nações soberanas. Em sua aná-
11 lise comparativa dos ciclos genovês, holandês,
petição interestatal pelo capital circulante e
à emergência de estruturas políticas dotadas britânico e norte-americano, Arrighi (ibid.) su-
de capacidades organizacionais cada vez mais blinha o padrão recorrente de ascensão, plena
amplas e complexas. expansão e superação desses blocos de poder.
Arrighi (2003) identificou quatro ciclos Em primeiro lugar, há um período de
sistêmicos de acumulação: 1) o ciclo genovês expansão financeira no decorrer do qual um

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Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

novo regime de acumulação se desenvolve processos sistêmicos de acumulação revelam


dentro das estruturas do antigo regime. Em “uma avaliação negativa da possibilidade de
seguida, há uma fase de consolidação e de- continuar a lucrar com o reinvestimento do
senvolvimento do novo regime, no qual seus capital excedente na expansão material da
agentes fundamentais promovem e se be- economia mundial” (ibid., p. 220). Conco-
neficiam da expansão material da economia mitantemente, estabelecem-se as condições
mundial. Por último, há outro momento de ex- para uma “avaliação positiva da possibilida-
pansão financeira, quando as contradições do de de prolongar sua liderança/dominação, no
regime plenamente desenvolvido criam opor- tempo e no espaço, através de uma especiali-
tunidades para a ascensão de regimes con- zação maior nas altas finanças” (ibid.). Além
correntes, um dos quais se torna dominante. da especialização nas altas finanças, os mo-
Reunidas, essas etapas constituem “séculos mentos de “colheita dos frutos” de uma fase
longos” – progressivamente mais curtos, em anterior de expansão material apresentam,
virtude da aceleração dos ritmos da história segundo o autor, as seguintes características
capitalista (Figura 2). fundamentais: 1) intensificação da concor-
O início de cada fase de expansão finan- rência intergovernamental e intercapitalista;
ceira é marcado por uma crise sinalizadora 2) crescimento do controle dos interesses
do regime de acumulação dominante, isto é, monetários sobre os governos e 3) consumo
o momento em que os principais agentes dos ostensivo de produtos culturais. Encerradas as

Figura 2 – Séculos longos e ciclos sistêmicos de acumulação

Fonte: Arrighi (2003).

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 351-377, maio/ago 2017 361
Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

oportunidades de expansão financeira, a crise d) as novas formas de organização capi-


sistêmica subjacente transforma-se na crise talista que apontam, de um lado, para a for-
terminal do regime de acumulação dominan- mação de conglomerados globais de serviços
te. Abre-se espaço para uma nova expansão financeiros e, de outro, para a ampliação das
material da economia mundial monitorada por funções financeiras no interior das corpora-
um novo bloco hegemônico de agentes capi- ções produtivas;
talistas e territorialistas. e) a transformação da gestão da riqueza em
Portanto, a financeirização como padrão gestão de portfólios de negócios. Quer dizer,
sistêmico de riqueza do capitalismo contem- todos os agentes privados relevantes tendem,
porâneo – cujo advento remonta às transfor- cada vez mais, a organizar suas ações de modo
mações econômicas estruturais iniciadas nos multiescalar, multifuncional e multissetorial;
anos 1970 – possui precedentes nos ciclos f) a fragilização da capacidade regulatória
sistêmicos de acumulação anteriores ao norte- dos Estados nacionais e territoriais. Fragilização
-americano. No entanto, não se trata da sim- evidenciada, por exemplo: 1) no modo como se
ples repetição do que ocorreu nos demais ci- tornaram emprestadores de última instância; 2)
clos. A narrativa histórico-estrutural de Arrighi no crescimento do componente financeiro dos
(ibid.) admite como igualmente relevantes déficits públicos; e 3) na diminuição relativa da
processos sistêmicos de repetição e de inova- influência dos gastos governamentais sobre as
ção. Isto coloca uma questão fundamental: o rendas nacionais.
que há de novo na atual fase de expansão fi- g) o rentismo como traço característico dos
nanceira do capitalismo? Em consonância com contemporâneos processos de acumulação de
Braga (1997) e Paulani (2016), destacamos os capital. Acumulação que, de acordo com Paula-
seguintes aspectos fundamentais: ni (2016), “se dá sob os imperativos da proprie-
a) a escala, o alcance, o volume e a profun- dade mais do que da produção e propriedade
didade dos negócios e da lógica financeira; que é cada vez mais de capital fictício do que
b) a securitização, entendida, em sentido de meios de produção” (p. 533).
amplo, como “o processo pelo qual empresas A hipótese central que orienta nossa
produtivas, bancos, demais empresas financei- pesquisa sugere que as características distin-
ras e governos emitem títulos de dívida, com tivas da atual fase de expansão financeira do
inúmeras finalidades, envolvendo e interligan- capitalismo desencadearam um novo ciclo de
do, dessa forma, os mercados creditícios, de mercantilização generalizada que tende a al-
capitais, de derivativos” (Braga, 1997, p. 198); cançar e aprofundar-se em todos os âmbitos
c) a crescente substituição, nos mercados ou dimensões da vida social. Portanto, antes de
financeiros em geral, da importância relati- ilustrarmos de que maneira a financeirização
va das moedas e dos depósitos à vista por produz impactos urbanos e territoriais típicos
ativos financeiros geradores de juros – isto do período contemporâneo, é necessário definir
é, ativos dotados, a um só tempo, de liqui- o modo como compreendemos o fenômeno da
dez e de rentabilidade; mercantilização.

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Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

trabalho, da terra e do dinheiro em mercado-


O que é mercantilização?
rias e em elementos fundamentais da ativida-
de industrial pode ser interpretada como um
Consideramos que a definição do conceito de
processo de mercantilização que resultou da
mercantilização exige, antes de tudo, a defini-
denominada Revolução Industrial, na medida
ção do conceito de mercadoria. Tal como Jessop
em que o advento de maquinarias e fábricas
(2007), optamos por uma síntese que atribui à
complexas exigiu seu fornecimento permanen-
mercadoria três sentidos básicos:
te, sistemático e por intermédio de mecanis-
a) uma mercadoria é, em primeiro lugar, um
mos de mercado.
bem ou serviço produzido para a venda por in-
Segundo Polanyi (ibid.), o duplo movi-
termédio do processo de trabalho;
mento de mercantilização e desmercantilização
b) na acepção marxista, uma mercadoria ca-
do trabalho, da terra e do dinheiro fundou-se
pitalista é aquela produzida por intermédio do
em “dois princípios organizadores da socieda-
processo de trabalho submetido à concorrência
de (liberal), cada um deles determinando os
capitalista. Isto é, aos imperativos de diminui-
seus objetivos institucionais específicos, com
ção do tempo de trabalho e do tempo de rota-
o apoio de forças sociais definidas e utilizan-
ção do capital socialmente necessários;
do diferentes métodos próprios” (ibid., p. 139).
c) por último, uma mercadoria fictícia, nos
Conforme o autor:
termos de Karl Polanyi, é aquela que possui a
forma de uma mercadoria – pode ser comprada Um foi o princípio do liberalismo econô-
e vendida –, mas que não foi necessariamen- mico, que objetivava estabelecer um mer-
cado autorregulável, dependia do apoio
te e originalmente produzida para a venda. Ou
das classes comerciais e usava principal-
seja, ela já existe na “natureza” ou foi criada mente o laissez-faire e o livre comércio
apenas com um valor de uso antes de adquirir como seus métodos. O outro foi o princí-
um valor de troca. pio da proteção social, cuja finalidade era
Como se sabe, Polanyi (2012) descreveu preservar o homem e a natureza, além da
organização produtiva, e que dependia
o surgimento e a consolidação da economia de
do apoio daqueles mais imediatamente
mercado, na Europa do século XIX, como o re- afetados pela ação deletéria do merca-
sultado de um duplo movimento. De um lado, do – básica, mas não exclusivamente, as
“os mercados se difundiam sobre toda a face classes trabalhadoras e fundiárias – e que
do globo”, de outro, “uma rede de medidas e utilizava uma legislação protetora, asso-
ciações restritivas e outros instrumentos
políticas se integravam em poderosas institui-
de intervenção como seus métodos. (Ibid.)
ções destinadas a cercear a ação do mercado
relativa ao trabalho, à terra e ao dinheiro” Dito de outro modo, se o princípio do
(p. 88). De acordo com essa perspectiva, o liberalismo foi o que se identificou com o ob-
trabalho, a terra e o dinheiro são mercadorias jetivo de estabelecer mercados globais au-
fictícias, elementos da natureza e da socieda- torreguláveis, o princípio da proteção social,
de que não foram originalmente produzidos por sua vez, correspondeu aos contramovi-
12
para a venda. Portanto, a transformação do mentos que buscavam evitar a subordinação

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Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

total da “substância da própria sociedade mecanismo automático; e 3) os bens devem cir-


às leis de mercado” (ibid., p. 77). Na origem cular livremente entre países.14
dessa formulação, está o pressuposto que in- Silver e Arrighi (ibid.) assinalam que
dica que as sociedades seriam completamen- a principal distinção entre as hegemonias e
te desarticuladas e, no limite, destruídas se a os ciclos sistêmicos de acumulação britânico
utopia liberal da sociedade de mercado fosse e norte-americano refere-se, justamente, ao
plenamente realizada. afastamento dos Estados Unidos dos princípios
Pois bem, seguindo o renovado interesse e práticas do liberalismo da Grã-Bretanha, tal
13
pelo pensamento de Karl Polanyi, Silver e Ar- como descritos acima. Em sua opinião, esse
righi (2014) ressaltam que, como no século XIX, distanciamento pode ser explicado pelas dife-
os movimentos contemporâneos em direção a renças na estrutura e organização dos sistemas
mercados autorreguláveis, nos marcos da “glo- globais de governo e acumulação centrados,
balização neoliberal”, também desencadea- sucessivamente, na Grã-Bretanha e nos Esta-
ram “um contramovimento de proteção das dos Unidos. O Quadro 2 sintetiza alguns crité-
perturbações causadas pela intensificação da rios de comparação.
concorrência mundial por capital e mercados” Para Arrighi (2003), os ciclos britânico e
(p. 23). No entanto, há diferenças no modo co- norte-americano distinguiram-se, principalmen-
mo o duplo movimento se realizou em cada ca- te, pelo caráter respectivamente extrovertido e
so – diferenças que podem ser compreendidas autocentrado das economias da Grã-Bretanha
tomando os ciclos sistêmicos de acumulação e dos Estados Unidos. Dentre os fatores respon-
britânico e norte-americano como referências sáveis pela natureza extrovertida da economia
de periodização. britânica e que permitiram sua adesão unila-
No ciclo sistêmico de acumulação britâ- teral aos princípios do livre comércio, Silver e
nico, a Revolução Industrial e a afirmação dos Arrighi (2014) destacam, de um lado, o papel
princípios do liberalismo foram decisivas para da Grã-Bretanha como entreposto comercial
a formação e expansão dos mercados globais e financeiro da economia global e, de outro, o
autorregulados. Por um lado, como já mencio- império do qual extraía tributos e forças mili-
nado, impôs-se a necessidade de mercantiliza- tares adicionais – sobretudo da Índia. Por sua
ção e fornecimento sistemático dos elementos vez, na primeira metade do século XX, a eco-
fundamentais da atividade industrial. Por outro, nomia norte-americana não exercia funções de
a aceitação generalizada dos princípios clássi- entreposto e não controlava diretamente um
cos do liberalismo tornou-se uma força adicio- império territorial além de suas próprias fron-
nal. Quer dizer, acompanhando as exigências teiras. Entretanto, possuía dimensões continen-
de transformação do trabalho, da terra e do tais e era amplamente autossuficiente.
dinheiro em mercadorias, esses princípios fo- O caráter autocentrado e autossufi-
ram resumidos da seguinte maneira: 1) o tra- ciente da economia norte-americana, isto é, a
balho deve encontrar seu preço no mercado; 2) abundância de recursos demográficos e terri-
a criação do dinheiro precisa ser objeto de um toriais, dispensava a necessidade de abertura

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Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

Quadro 2 – Comparação da relação hegemônica dos Estados


com a economia política global

Sistema mundial de governo e acumulação

Centrado no Reino Unido Centrado nos Estados Unidos

Relação estrutural predominante Entreposto/complementar Autocentrado/competitivo

Liberalização comercial negociada/


Principal instrumento de reorganização Comércio livre unilateral/tributo colonial
investimento direto estrangeiro

Principal restrição na capacidade Equilíbrio do poder/rivalidades Poder social dos grupos subordinados/
de reorganização interimperialistas desafios comunistas e nacionalistas

Fonte: Silver e Arrighi (2014).

unilateral de seu mercado interno para as ex- modernas corporações transnacionais permiti-
portações de todo o mundo. Concomitante- ram aos Estados Unidos conquistar mercados
mente, ensejou meios diversos de reorganiza- por intermédio de investimentos externos dire-
ção da economia global em torno da potência tos, mesmo quando esses mercados estivessem
hegemônica. No pós-Segunda Guerra Mundial, protegidos contra importações estrangeiras.
o desequilíbrio entre a renda nacional e o po- No que se refere aos contramovimen-
der militar dos Estados Unidos e o dos demais tos de proteção social, a primeira distinção
países tornaram-se prerrogativas na definição remete ao papel das forças sociais subordina-
dos termos dos acordos bilaterais e multilate- das. Conforme Silver e Arrighi (ibid.), no ciclo
rais de comércio.15 Mais precisamente, torna- sistêmico de acumulação norte-americano,
ram-se vantagens consideráveis “na indução essas forças restringiram, desde o início, o
de outros Estados no sentido de que entrassem movimento no sentido da autorregulação. Ou
em negociações para a liberalização do comér- seja, a partir da segunda metade do século
cio e cedessem à pressão dos EUA no decurso XX, os contramovimentos teriam antecipado o
das negociações” (ibid., p. 17). movimento em direção a mercados autorregu-
Do mesmo modo, as novas condições láveis. De acordo com essa interpretação, no
hegemônicas fundamentaram-se na interna- ciclo norte-americano, o poder social dos gru-
lização dos custos de transação. Quer dizer, a pos subordinados e os desafios “comunistas”
internalização, no campo organizacional de e “nacionalistas” tornaram-se os principais fa-
corporações verticalmente integradas, de ati- tores de limitação da capacidade dos Estados
vidades antes executadas por unidades empre- Unidos de reorganizar o sistema mundial e de
sariais distintas. O surgimento e expansão das promover o livre comércio.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 351-377, maio/ago 2017 365
Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

A segunda diferença fundamental diz Ou seja, os contramovimentos de prote-


respeito à ausência da principal força desesta- ção social não são necessariamente anticapita-
bilizadora dos mercados globais autorregula- listas e/ou contra-hegemônicos.17 São, antes de
dos centrados na Grã-Bretanha. Silver e Arrighi tudo, formas de estabilização que permitem a
(ibid.) indicam que, no ciclo norte-americano, continuidade dos processos de acumulação de
principalmente na fase de expansão financei- poder e capital. Para explicar esses processos
ra, a autocracia das potências capitalistas foi gerais de estabilização, defendemos, em con-
substituída pela centralização do poder militar sonância com Fiori (2000), uma releitura da
nos Estados Unidos e por uma crescente inter- teoria do duplo movimento que o decomponha
dependência das unidades territoriais que com- em quatro movimentos. Ao fazê-lo, há que se
16
põem o moderno sistema interestatal. considerar as duas contradições essenciais do
Observadas as características distintivas capitalismo: “a contradição entre capital e tra-
do duplo movimento nos ciclos sistêmicos de balho e a contradição entre a globalidade dos
acumulação britânico e norte-americano, Silver seus fluxos econômicos e a territorialidade de
e Arrighi (ibid.) defendem que, ao lado da “re- sua gestão política” (ibid., p. 70). Em outras
sistência vinda do Sul do mundo” (p. 24), uma palavras, existe uma face do duplo movimen-
das fontes mais importantes de reversão do im- to que corresponde aos conflitos entre capital
pulso à formação contemporânea de mercados e trabalho – principalmente, mas não exclusi-
globais autorregulados é o próprio protecionis- vamente, no interior de cada Estado-economia
mo dos Estados Unidos. Segundo os autores: nacional – e outra que se refere à competição
interestatal.18 Ambas, variando no tempo e no
Uma fonte mais provável de reversão do
processo de formação do mercado mun- espaço da economia-mundo, foram respon-
dial centrado nos EUA é o seu próprio sáveis por determinar a existência de formas
protecionismo persistente. Como já ob- institucionais e de coesão social funcionais ao
servado, mesmo no auge de sua cruzada desenvolvimento do capitalismo, mesmo que,
para mercados abertos e livres, os Esta-
para tanto, tenham limitado a expansão das
dos Unidos têm pregado, muito mais do
que praticado, o credo liberal. [...] Esta forças de mercado.19
é outra diferença importante entre o Em suma, o duplo movimento e suas es-
funcionamento do duplo movimento de pecificidades espaço-temporais referem-se às
Polanyi sob o domínio britânico e sob a tensões entre os objetivos de mercantilização
hegemonia dos EUA. Embora a Grã-Bre-
e de desmercantilização dos principais elemen-
tanha consistentemente tenha aderido ao
movimento de comércio livre, os Estados tos da vida material e coletiva. Em consonância
Unidos têm sido muito menos consisten- com a matriz braudeliana que orienta nossas
tes, minando assim a credibilidade da sua reflexões, destacamos, dentre esses elemen-
cruzada para mercados abertos e livres.
tos, além do trabalho, da terra e do dinheiro,
[...] As inconsistências dos EUA são sem
o papel fundamental das cidades.20 Assim, para
dúvida um grande fator contribuinte para
o contramovimento para a proteção da ilustrar nosso ponto de vista e concluir o pre-
sociedade. (Ibid.) sente artigo, esboçaremos, a seguir, algumas

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Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

indicações do modo como os processos gerais Por sua vez, na atual fase de expansão
de mercantilização, desencadeados pela atual financeira do capitalismo, as múltiplas formas
fase de expansão financeira do capitalismo, de mercantilização das cidades correspondem
possuem dimensões urbano-territoriais. a uma inversão do movimento anterior. Segun-
do essa perspectiva, a crise sinalizadora do ci-
clo sistêmico de acumulação norte-americano,
Conclusão: impactos a crise do regime de acumulação fordista-
-keynesiano e a ascensão do neoliberalismo, a
urbanos e territoriais partir do final da década de 1960, deram lugar
da financeirização- a uma reestruturação espaço-temporal funda-
-mercantilização da, entre outros fatores, na busca por alternati-
contemporâneas vas mais rentáveis de aplicação de capitais ex-
cedentes – capitais sobreacumulados que não
Em nossa opinião, até aproximadamente o final podiam ser reinvestidos de maneira lucrativa
dos anos 1960, sobretudo nos países centrais e nos setores tradicionais da produção material.
nos marcos do regime de acumulação fordista- Dentre essas formas, sobressaiu, sem dúvida, o
-keynesiano, o duplo movimento assinalado por investimento de capitais financeiros nos merca-
Polanyi (2012) correspondeu a uma tendência dos imobiliários e no desenvolvimento urbano
de desmercantilização parcial das cidades. Tal em geral. Ainda no que diz respeito ao exemplo
como Topalov (1991), podemos dizer, para fins da habitação, Rolnik (ibid.) considera que esse
de ilustração, que o advento e a difusão do processo levou à sua desconstrução como bem
urbanismo e do planejamento urbano e regio- social e à sua “transmutação em mercadoria e
nal, abrangentes e regulatórios, coincidiram ativo financeiro” (p. 26).
com a emergência de um ideário reformador Ou seja, o papel das cidades, como ele-
incompatível com os interesses imediatos de mentos centrais da vida material e como ba-
mercado. O que não quer dizer que esse ideá- ses da reprodução geral da ordem capitalista,
rio tenha sido completamente disfuncional em mudou ao longo do tempo. De parcialmente
relação ao desenvolvimento capitalista. Muito desmercantilizadas, as cidades passaram a ser
ao contrário, foi um componente fundamental tratadas como mercadorias e entraram nos cir-
da estabilização e do crescimento econômico cuitos da valorização financeirizada. Conforme
no contexto do capitalismo do pós-Segunda Paulani (2016), defendemos que a contemporâ-
Guerra Mundial. No que se refere, por exemplo, nea fase de expansão financeira do capitalismo
à habitação de interesse social, Rolnik (2015) ampliou a tendência geral de transformação
aponta que, particularmente nas décadas de do espaço urbano em um campo aberto para
1950 e 1960, “a provisão pública de habitação a circulação de capitais portadores de juros, o
constituiu-se em um dos pilares da construção que permite uma aliança entre proprietários de
de uma política de bem-estar social na Europa, terra e capitalistas e só é possível à medida que
um pacto redistributivo entre capital e trabalho são deslocadas as demais formas de proprieda-
que sustentou décadas de crescimento” (p. 35). de. De acordo com a autora:

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 351-377, maio/ago 2017 367
Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

[...] para que desapareça a contradição essas novas formas de empreendedorismo


entre a lei do valor e a existência da ren- correspondem à fragilização das capacidades
da fundiária, a terra deve se constituir
regulatórias dos Estados nacionais e territo-
num campo aberto à circulação do ca-
riais. Recorrendo à concepção do duplo mo-
pital portador de juros, ou seja, deve ser
tratada como capital fictício. Isso signi- vimento, defendemos que, ao menos desde a
fica que o preço da terra deve refletir a passagem dos anos 1960 aos 1970, no centro
permanente busca do capital por rendas da economia-mundo capitalista, há um relativo
futuras aumentadas. Esse arranjo permite
enfraquecimento dos mecanismos de proteção
a coordenação do processo de utilização
social dos Estados nacionais diante da crescen-
da terra, de modo a se garantir sempre os
melhores e mais lucrativos usos e a ma- te globalização, financeirização e liberalização
ximizar a produção de valor excedente. A dos fluxos econômicos. Por sua vez, na periferia
situação ideal é que toda terra seja assim e na semiperiferia, o Estado-nação não existe
encarada, de modo que todas as outras
em sua forma plena. Assim, a permanente ex-
formas de propriedade da terra desapa-
centricidade dos Estados territoriais periféricos
reçam. [...] O importante a destacar é o
caráter virtuoso da associação entre cap- e semiperiféricos, em relação à dinâmica do nú-
tura de renda e busca de lucro que a cir- cleo central da economia-mundo e de seu siste-
culação do capital portador de juros pode ma de gestão interestatal, torna ainda menores
propiciar. (Ibid., p. 528)
as possibilidades de reação em face das forças
Quer dizer, a terra urbana torna-se, a um nacionais e internacionais mercantilizadoras.
só tempo, capital fictício e mercadoria fictícia. Nesse contexto, os Estados em geral, em seus
A cidade tende a ser, cada vez mais, não ape- distintos níveis de governo, assumem, crescen-
nas um negócio, mas um negócio líquido e ren- temente, o papel de promotores de políticas de
tável. Para nós, o exemplo da mercantilização criação de espaços competitivos, abandonando
das cidades reforça interpretações como as de a concepção do planejamento abrangente e re-
Bienefeld (2007), que, ao contrário de Silver e gulador do mercado.
Arrighi (2014), sugere a possibilidade, não da As iniciativas de empreendedorismo ur-
antecipação, mas do retardamento, da distor- bano e territorial traduzem-se, por exemplo,
ção ou mesmo da supressão dos contramovi- nas denominadas Parcerias Público-Privadas
mentos de proteção social diante da contem- (PPPs). É o caso de projetos como o Porto
porânea “ditadura das finanças” e da “revolu- Maravilha, uma política de “revitalização”
21 de uma área de 5 milhões de km² nas proxi-
ção neoliberal”.
Pois bem, do nosso ponto de vista, é midades da área central do Rio de Janeiro. A
possível considerar os impactos urbanos e lei municipal que instituiu o Porto Maravilha
territoriais da financeirização-mercantilização flexibilizou parâmetros de uso e ocupação
contemporâneas destacando ao menos três as- do solo, estabeleceu intervenções prioritá-
pectos básicos. rias de infraestrutura e transporte, assim co-
Em primeiro lugar, ressaltamos o surgi- mo mecanismos público-privados de gestão
mento de distintas formas de empreendedoris- e financiamento. Um consórcio de empresas
mo urbano e territorial. Em nossa perspectiva, privadas – o Consórcio Porto Novo (OAS,

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Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

Odebrecht e Carioca Engenharia) – foi contra- Esse arranjo financeiro ambivalente impli-
tado para realizar obras e serviços urbanos, ca a transferência de riscos para as ins-
tituições públicas, ao mesmo tempo que
por um prazo de 15 anos, no valor estimado
mantém os lucros – geralmente aumenta-
inicial de R$7,6 bilhões. Esse valor resultaria
dos por subsídios indiretos – com agentes
da comercialização de Certificados de Poten- privados.24 (p. 309)
cial Adicional de Construção (Cepacs), que
são emitidos pelas autoridades municipais e Além disso, assinalamos a mudança
podem ser adquiridos por investidores priva- radical nas estratégias e características dos
dos. A venda dos títulos – que podem, inclusi- agentes capitalistas que operam no âmbito
ve, ser negociados em bolsas de valores – fi- dos mercados imobiliários e do desenvolvi-
nanciaria as obras. No entanto, um Fundo de mento urbano em geral. Tal como estabelecido
Investimento Imobiliário (FII) organizado por por parte da literatura do campo dos estudos
um banco público, a Caixa Econômica Federal urbanos e territoriais, há, no período contem-
(CEF), adquiriu a totalidade dos títulos, libe- porâneo, uma tendência crescente de inversões
rando os recursos para o início de obras e ser- em ativos imobiliários, titularizados e securiti-
viços. Até o presente momento, apenas 8,74% zados, como uma das alternativas centrais ao
deles foram recomprados por investidores problema da sobreacumulação de capitais. Em
privados. 22
Quer dizer, apesar dos discursos consonância com De Mattos (2016), acredita-
sobre a origem privada dos investimentos, na mos que a maior incidência de investimentos
prática, o Estado assumiu os riscos.23 financeiros nas transformações urbanas modifi-
Algo semelhante sucedeu com parte das cou substancialmente a organização, o funcio-
políticas urbanas setoriais, principalmente de namento, a morfologia e a aparência das prin-
habitação, cada vez mais próximas das lógicas cipais cidades em todo o mundo. Do mesmo
do mercado imobiliário e das inovações finan- modo, implicou a mudança das estratégias e
ceiras. No Brasil, por exemplo, o lançamento do das características dos agentes mais relevantes
Programa Minha Casa Minha Vida, em 2009, da produção social do espaço.
reproduziu um padrão histórico de apropriação Sanfelici (2013), por exemplo, destaca
de fundos públicos por agentes privados. Para como o processo de abertura de capitais das
Rolnik (2015): principais incorporadoras/construtoras brasilei-
ras, na primeira década do século XXI, alterou
O programa é representativo de padrões
alguns aspectos fundamentais dos negócios
específicos de articulação entre agentes
públicos e privados no capitalismo brasi- imobiliários no Brasil. Por mais que essa aber-
leiro. Se, por um lado, foi desenhado para tura não indique, por si só, a completa financei-
incentivar empresas privadas a se com- rização dos mercados imobiliários brasileiros,
prometerem com a produção de habita- ela estreitou os vínculos das incorporadoras/
ção para moradores de baixa renda, por
construtoras com os mercados de capitais e
outro, permaneceu altamente dependente
de recursos públicos, mobilizados para induziu um processo de dispersão territorial e
subsidiar a aquisição da propriedade por de ampliação da escala de investimento dessas
compradores de baixa e média rendas. empresas – que deixaram de operar apenas nos

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Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

seus mercados regionais de origem, passando penetração da lógica mercantil no tecido social
a atuar em escala nacional. Fizeram-no não só e urbano. Para ilustrar esse argumento, é pos-
pela via da capitalização em bolsa de valores, sível tomar como referência, por exemplo, o
mas, sobretudo, acompanhando o ciclo de ex- modo como as rendas, os ativos, os patrimô-
pansão da produção habitacional promovido nios e as dívidas familiares sustentam novas
pelo Estado brasileiro e consubstanciado no formas de acumulação.
25
Programa Minha Casa Minha Vida. Como se sabe, diversos autores que ana-
Mudando a escala de ilustração, pode- lisaram a crise das hipotecas subprime revela-
mos citar, de maneira quase anedótica, a pro- ram informações sobre o desenvolvimento de
jeção de construção das Trump Towers no âm- uma economia de ativos vinculada aos patri-
bito do mencionado Porto Maravilha. De acor- mônios familiares.28 Segundo Harvey (2011), o
do com o sítio oficial das Trump Towers Rio, a ambiente macroeconômico caracterizado por
“marca Trump […] já abrange projetos nos Es- juros baixos, inflação de ativos, repressão sa-
tados Unidos, Panamá, Canadá e Turquia [e] larial e afrouxamento das restrições ao crédito
é conhecida por representar o mais alto nível transformou o refinanciamento das hipotecas
de excelência e luxo em propriedades residên- numa das principais fontes de expansão do
cias e comerciais, hotéis, escritórios e campos consumo das classes médias e trabalhadoras
26
de golfe”. Na verdade, uma reportagem da norte-americanas. Roubini e Stephen (2010),
BBC Brasil, de julho de 2016, intitulada “Por por sua vez, afirmam que os imóveis hipote-
que o maior empreendimento de Trump no cados nos Estados Unidos se tornaram uma
27
Brasil encalhou?”, indica que ele será even- espécie de “caixa eletrônico”, ao serem mo-
tualmente conduzido por um consórcio de seis bilizados como garantias de uma cadeia per-
construtoras e imobiliárias licenciadas pela manentemente renovada de empréstimos ao
marca Trump – entre as quais se destacam – consumo. Para Rolnik (2015), trata-se de novas
a búlgara MRP, a espanhola Salamanca e a maneiras de assegurar condições monetárias
brasileira Even. Ou seja, as Trump Towers Rio de reprodução social em face da diminuição da
são apenas mais um elemento do portfólio de participação dos salários na composição da ri-
negócios da marca Trump. Enfim, após as elei- queza global e da pressão sobre os indivíduos
ções presidenciais nos Estados Unidos, não e as famílias para buscarem mecanismos priva-
é preciso dizer muito sobre o nome Trump. dos de proteção social.29
Cumpre apenas sublinhar que, cada vez mais, Bauman (2010) observa que a emer-
os agentes capitalistas que operam nos mer- gência de novas formas de financiamento ao
cados imobiliários o fazem segundo estraté- consumo acompanhou a passagem de uma so-
gias rentistas de caráter multiescalar, multi- ciedade de produtores, na qual os lucros pro-
funcional e multissetorial típicas da atual fase vinham da exploração do trabalho, para uma
de expansão financeira do capitalismo. sociedade de consumidores, na qual os lucros
Por último, sugerimos que a profundi- se fundamentam na exploração dos desejos de
dade da atual fase de expansão financeira do consumo. Sustenta, ademais, que os indivíduos
capitalismo deve ser relacionada ao grau de que se abstêm de tomar empréstimos e os que

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Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

pagam seus compromissos financeiros nos Do nosso ponto de vista, de inspiração


prazos estabelecidos não possuem utilidade braudeliana, estamos diante da penetração ca-
alguma para as instituições de crédito. Ou se- da vez mais profunda das lógicas financeira e
ja, “o devedor ideal é aquele que jamais paga mercantil na camada da vida material, isto é,
integralmente suas dívidas” (ibid., p. 30). Em na camada da reprodução social.31 Em conso-
consonância com a lógica da transformação nância com Sandel (2015), acreditamos que a
do endividamento numa fonte constante de mudança mais decisiva do período contempo-
lucros, bancos e empresas de cartão de crédi- râneo foi “a extensão dos mercados, e dos valo-
to, por exemplo, “contam mais com o 'serviço' res de mercado, a esferas da vida com as quais
continuado das dívidas do que com seu pronto nada têm a ver” (p. 12). Tal como formulado
pagamento” (ibid.). por Bourdieu (2002), mesmo quando integra
Não é preciso aceitar a tese do advento o circuito mercantil, a casa, por exemplo, não
da sociedade dos consumidores para concluir é jamais um simples bem econômico. A casa
que, de fato, o endividamento crescente vin- manifesta uma forte relação de pertencimento,
culado à reprodução geral das classes traba- é um projeto ou uma aposta coletiva sobre o
lhadoras e médias tornou-se uma fonte per- futuro da unidade doméstica e base da coesão
manente de lucros financeiros. Nos termos de afetiva. Ou seja, uma vez que a denominada
Sanfelici (2013), esse processo corresponde à financeirização deixou de se expressar apenas
emergência de um novo ethos financeiro fun- nas esferas das “altas finanças” para atingir
dado no “entrelaçamento inaudito das cadeias as esferas da vida cotidiana, necessariamente
de crédito nos interstícios mais recônditos da emergiram graves tendências de desarticulação
30
vida social” (p. 30). Ainda de acordo o autor, social. Dadas as consequências da atual crise
esse entrelaçamento demonstra o modo como sistêmica do capitalismo, pode-se dizer, para
“o crédito e as finanças medeiam a relação concluir este artigo, que essas tendências se
entre os indivíduos, impõem ritmos no uso do revelam ainda mais preocupantes diante da já
tempo e engendram um ethos que define as mencionada hipótese do retardamento, da dis-
expectativas e modela as disposições subjeti- torção ou da supressão dos contramovimentos
vas dos indivíduos” (ibid.). de proteção social.

Luiz César de Queiroz Ribeiro


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional.
Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia/Observatório das Metrópoles. Rio de Janeiro, RJ/Brasil.
lcqribeiro@gmail.com

Nelson Diniz
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Rio
de Janeiro, RJ/Brasil
nelsondiniz@hotmail.com

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Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

Notas
(1) Este artigo é uma versão amplamente modificada de trabalho anterior, preparado para
a participação dos autores no XIV Seminario Internacional da Red Iberoamericana de
Inves gadores sobre Globalización y Territorio (RII), realizado em Monterrey, México, de 3 a 7
de outubro de 2016.

(2) Referimo-nos, mais precisamente, às consequências da denominada crise das hipotecas subprime,
nos Estados Unidos. Para um relato dos efeitos dessa crise nas cidades norte-americanas, em
especial no que diz respeito ao número de despejos e execuções hipotecárias, cf. Harvey (2011).
Em sua obra mais recente, informada por sua a vidade como relatora especial para o Direito à
Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Rolnik (2015) oferece uma ampla
descrição das consequências sociais da “financeirização global da moradia”.

(3) “O mérito de Braudel é, pelo seu olhar aguçado, ter detectado certas constâncias que estavam
esquecidas na leitura hegemônica sobre a economia pré-industrial e que iluminam também a
compreensão do mundo hoje” (Cecilio, 2012, p. 47).

(4) “[…] há ainda um outro mérito nessa abordagem descri va de Braudel: ela se apresenta como um
contraponto essencial – e radical – ao rumo que a teoria econômica adotou no úl mo século.
Como explica Morineau, a economia nesse período se desenvolveu com base em intuições
geniais, porém de aplicação limitada ao mundo concreto. Assim, privilegia a análise está ca, a
elegância formal e a matemá ca. Procura se comportar como uma ciência dura, onde se pode
encontrar leis universais e válidas para todos os tempos” (Cecilio, 2012, p. 47).

(5) “Por economia mundial, entende-se a economia do mundo considerada em seu todo, o ‘mercado
de todo o universo’, como já dizia Sismondi. Por economia-mundo, palavra que forjei a par r
do vocábulo alemão Weltwirtscha , entendo a economia de somente uma porção do nosso
planeta, na medida em que essa porção forma um todo econômico” (Braudel, 1987, p. 30).

(6) Segundo Braudel (1987), a Rússia, até 1869, o Império Turco, o Império Chinês, o Japão, a Índia-
-Insulíndia e o mundo islâmico, até o final do século XVIII, são exemplos de economias-mundos
“coexistentes, que só têm entre elas trocas extremamente limitadas” (p. 31). Ao lado delas,
muito antes de 1942, a Europa e o Mediterrâneo formavam, igualmente, uma totalidade
econômica centrada em Veneza, Milão, Gênova e Florença.

(7) Rojas (2013) afirma que o conceito de vida ou civilização material – “que se conforma com todas
aquelas realidades, elementares e cotidianas, frutos das diferentes estratégias de resposta
humana às diversas pressões e coações da base geo-histórica” (p. 94) – foi desenvolvido por
Braudel com o obje vo de abordar temá cas tais como as “da alimentação, dos mecanismos
de reprodução demográfica e do controle do crescimento da população, da técnica, das
formas do habitat, do vestuário ou dos diferentes esquemas de organização e colonização do
território, tanto urbano quanto rural. São temá cas picamente ‘antropológicas’, resgatadas no
conceito braudeliano da vida material, mas agora com uma clara vocação para estabelecer sua
real historicidade e sua vinculação global com as demais dimensões civilizatórias da evolução
humana no tempo” (p. 91).

(8) “O capitalismo só triunfa quando se iden fica com o Estado, quando ele é o Estado” (Braudel,
1987, p. 25).

372 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 351-377, maio/ago 2017
Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

(9) Para Keynes, o “desejo de manter o dinheiro como reserva de valor cons tui um barômetro do
grau de nossa desconfiança e de nossos cálculos e convenções quanto ao futuro” (Keynes, 1937,
p. 173 apud Belluzzo, 2015, p. 30).

(10) “As indagações que geraram esse estudo são semelhantes às de Harvey. Mas as respostas são
de uma inves gação das tendências atuais à luz de padrões de repe ção e de evolução que
abarcam todo o curso do capitalismo histórico como sistema mundial. Uma vez que ampliemos,
dessa maneira, o horizonte espaço-temporal de nossas observações e conjecturas teóricas,
tendências que pareciam inéditas e imprevisíveis começam a afigurar-se familiares” (Arrighi,
2003, p. 4).

(11) Sobre o papel da compe ção interestatal pelo capital circulante na formação do capitalismo,
Weber observa que: “Essa luta compe va criou as mais amplas oportunidades para o moderno
capitalismo ocidental. Os estados, separadamente, veram que compe r pelo capital circulante,
que lhes ditou as condições mediante as quais poderia auxiliá-los a ter poder. (...) Portanto,
foi o Estado nacional bem delimitado que proporcionou ao capitalismo sua oportunidade de
desenvolvimento – e, enquanto o Estado nacional não ceder lugar a um império mundial, o
capitalismo também persis rá” (apud Arrighi, 2003, p. 12).

(12) “Trabalho é apenas um outro nome para a a vidade humana que acompanha a própria vida que,
por sua vez, não é produzida para venda, mas por razões inteiramente diversas, e essa a vidade
não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada. Terra é
apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmente, o dinheiro
é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é produzido, mas adquire vida
através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é produzido para a
venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fic cia
(Polanyi, 2012, p. 78). Em nossa opinião, isso significa dizer, recorrendo à matriz braudeliana,
que o trabalho, a terra e o dinheiro são elementos fundamentais da vida material.

(13) Cf., por exemplo, Bugra e Agartan (2007).

(14) Segundo Polanyi (2012), o resultado da “cruzada liberal” das décadas de 1830 e 1840 pode ser
demonstrado levando em consideração a aprovação de três medidas principais pelo Parlamento
britânico: 1) o Poor Law Amendment Act, de 1834, responsável por subordinar a oferta de
trabalho aos mecanismos de mercado; 2) o Peel’s Bank Act, de 1844, que vinculou a circulação
monetária interna ao funcionamento internacional do padrão-ouro; e 3) o An -Corn Law Bill, de
1846, que garan u a abertura do mercado britânico aos grãos do mundo inteiro.

(15) “Em 1948, a renda nacional dos EUA foi mais do dobro da renda nacional conjunta da Grã-
-Bretanha, França, Alemanha, Itália e países do Benelux e seis vezes maior do que a da URSS. […]
Finalmente, ao promover a liberalização e a expansão do comércio mundial, os Estados Unidos
podiam contar com sua incontestável primazia militar vis-à-vis seus aliados no confronto com a
URSS” (Silver e Arrighi, 2014, p. 17).

(16) “Não estamos dizendo que não haja brigas entre as potências capitalistas sobre o ritmo e
a direção do processo de formação do mercado mundial. Simplesmente não vemos essas
discussões se transformando na força motriz na reversão desse processo, como o que ocorreu
no final do século XIX e no início do século XX” (Silver e Arrighi, 2014, p. 23).

(17) Segundo Bienefeld (2007), Polanyi não descartou, inclusive, a possibilidade de que os
contramovimentos à expansão de mercados autorreguláveis assumissem formas fascistas.

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Luiz César de Queiroz Ribeiro, Nelson Diniz

(18) De nossa perspectiva, a referência às contradições essenciais do capitalismo torna-se tanto


mais relevante quando consideramos que, “embora Polanyi reconhecesse a existência (e, às
vezes, até mesmo a importância) do poder diferencial entre classes e Estados, ele, no entanto,
minimizou o papel que essas relações de poder desiguais desempenharam na determinação da
trajetória histórica que ele analisava” (Silver e Arrighi, 2014, p. 7).

(19) Aqui cabe, portanto, uma vez mais, enfatizar a distinção braudeliana entre capitalismo e
economia de mercado.

(20) Ao jus ficar por que optou pela reflexão sobre a moeda e as cidades nos úl mos capítulos do
primeiro volume de sua obra Civilização Material, Economia e Capitalismo – volume dedicado
à camada da vida material – Braudel (1987) observa que: “Quis livrar desses temas o volume
seguinte, é verdade. Mas essa razão, evidentemente, não é por si só suficiente. A verdade
é que as moedas e as cidades mergulham, ao mesmo tempo, no co diano imemorável e na
modernidade mais recente. A moeda é uma invenção muito velha, se entendo por moeda todo
o meio que acelera a troca. E sem troca não há sociedade. Quanto às cidades, elas existem
desde a pré-história. São as estruturas mul sseculares da vida mais comum. Mas são também
os mul plicadores, capazes de se adaptar à mudança, de a ajudar poderosamente. Poder-se-ia
dizer que as cidades e a moeda fabricaram a modernidade; mas também, segundo a regra de
reciprocidade cara a Georges Gurvitch, que a modernidade, a massa em movimento da vida dos
homens, impeliu para diante a expansão da moeda, construiu a rania crescente das cidades.
Cidades e moedas são, ao mesmo tempo, motores e indicadores; elas provocam e assinalam a
mudança” (p. 10).

(21) A tese central de Bienefeld (2007) é anunciada imediatamente no tulo original de seu trabalho
sobre essa questão: Supressing the double movement to secure the dictatorship of finance.

(22) Informações do sítio oficial do Porto Maravilha na internet. Disponível em: http://www.
portomaravilha.com.br/estoque. Acesso em: 10 nov 2016.

(23) Para uma descrição das caracterís cas gerais do projeto Porto Maravilha, assim como de seus
antecedentes, cf. Diniz (2014).

(24) Destacamos que a concepção braudeliana das relações de dependência entre capitalismo e
Estado, apresentada na seção 3.3, é fundamental para a compreensão de processos econômicos
picos de formações sociais como a brasileira. Ao mesmo tempo, permite ques onar até que
ponto a “articulação entre agentes públicos e privados no capitalismo” é representativa da
especificidade dessas formações ou pode ser entendida como uma caracterís ca estrutural do
moderno sistema interestatal.

(25) Basta considerar, conforme Sanfelici (2013), que “o volume de unidades habitacionais financiadas
no Brasil saltou de uma média de 250 mil por ano, entre 2000 e 2005, para mais de 1 milhão em
2010” (p. 35).

(26) Disponível em: h p://www.trumptowersrio.com/pt-br/. Acesso em: 10 nov 2016.

(27) Disponível em: h p://www.bbc.com/portuguese/brasil-36901182. Acesso em: 10 nov 2016.

(28) Cf., por exemplo, Lapavitsas (2009), Roubini e Stephen (2010), Harvey (2011), Fix (2011), Sanfelici
(2013) e Rolnik (2015).

(29) “O uso da casa própria como estoque de riqueza, sua valorização ao longo do tempo e
possibilidade de mone zação funcionaram na prá ca como subs tuto potencial dos sistemas
públicos de pensão e aposentadoria” (Rolnik, 2015, p. 38).

374 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 351-377, maio/ago 2017
Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal

(30) Para nós, numa ampliação da proposição de Jameson (2001), trata-se do surgimento e da
generalização de algo como uma “cultura urbana do dinheiro”.

(31) Braudel definiu a vida material como “a camada da não economia, o solo em que o capitalismo
crava suas raízes, mas no qual nunca consegue penetrar” (apud Arrighi, 2003, p. 10). Numa
atualização de seu argumento, defendemos que uma das principais especificidades da atual fase
de expansão financeira diz respeito, exatamente, à penetração do capitalismo na camada da
vida material.

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Texto recebido em 22/dez/2016


Texto aprovado em 27/mar/2017

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 351-377, maio/ago 2017 377
Financeirização: conceitos,
experiências e a relevância
para o campo do planejamento
urbano brasileiro
Financialization: concepts, experiences
and relevance to the field of Brazilian urban planning

Jeroen Klink
Marcos Barcellos de Souza

Resumo
Este artigo apresenta uma sistematização da litera- Abstract
tura internacional e nacional acerca do fenômeno T his pa p er review s t he inter national and
da financeirização e analisa a relevância do debate national literature on financialization and
para o campo de planejamento urbano-metropoli- analyzes the relevance of the debate to the
tano, priorizando as questões brasileiras. Parte do field of urban planning, prioritizing Brazilian
reconhecimento de que a literatura internacional issues. We recognize that the literature on
sobre financeirização avançou significativamen- f inancialization has made progress, up to
te, e alguns autores já apontam para um possível the point that some authors argue that the
esgotamento do conceito. No entanto, argumenta concept has been hollowed out. However, we
que há grande potencial de exploração conceitual, believe that there is substantial potential for
metodológica e empírica sobre processos de finan- exploring – conceptually, methodologically
ceirização em andamento no Brasil, assim como and empirically – on-going financialization
dos seus limites políticos. Discute os vetores da processes in Brazil, as well as their political
financeirização urbana no Brasil que se dá no en- limits. We discuss the mechanisms of urban
trelaçamento de grandes projetos urbanos, nos me- financialization in Brazil, which unfolds in
canismos de financiamento e crédito públicos e na t h e int e rco nn e c t io n of la r g e p r oje c t s , in
própria transformação da atuação territorial do Es- state-driven credit mechanisms, and in the
tado e de seus instrumentos de planejamento. Na transformation of the st ate and planning.
conclusão, explora elementos para uma agenda de We conclude with suggestions for a research
pesquisa sobre financeirização com relevância para agenda on financialization with relevance to
o campo de planejamento urbano no Brasil. the field of Brazilian urban planning.
Palavras-chave: financeirização; estado; planeja- Keywords: f inancialization ; st ate ; ur ban
mento urbano; escalas espaciais; austeridade. planning; spatial scales; austerity.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 379-406, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3902
Jeroen Klink, Marcos Barcellos de Souza

debate. O próprio campo do planejamento ur-


Introdução
bano, principalmente com base em temas como
Este artigo tem três objetivos. O primeiro deles os grandes projetos urbanos, a gentrificação e
é apresentar uma sistematização da literatura a natureza das rendas fundiárias, analisou, des-
internacional e nacional sobre o fenômeno da de os anos 1970, assuntos relacionados com
financeirização. Nesse sentido, discutimos os a financeirização sem, no entanto, aprofundar
diversos esforços teóricos que foram desenvol- essa agenda específica.
vidos nos últimos anos. O segundo objetivo é Conforme ressalta Christophers (2015,
analisar a relevância das pesquisas sobre a fi- p. 184), chegou a hora de “fazer um intervalo,
nanceirização para os estudos urbanos e para respirar, e (re)avaliar cuidadosamente”1 a lite-
o campo do planejamento urbano, priorizando ratura sobre financeirização. Contudo, não ape-
as questões brasileiras. Nessa perspectiva, pro- nas na direção que apontamos no primeiro ob-
curamos avaliar se as literaturas internacional jetivo (que se alinha às ideias do autor supra-
e nacional acerca da financeirização proporcio- citado) – no sentido de apontar sobreposições,
nam insights para dialogar com os estudos ur- eventuais modismos em relação às discussões
banos e com o campo do planejamento urbano antigas (com “rótulos” diferentes), lacunas e
brasileiro. Por fim, o terceiro objetivo é explorar imprecisões nas definições conceituais –, mas
dimensões para uma agenda de pesquisa sobre também o alinhavando com o segundo obje-
financeirização com relevância para o campo tivo deste artigo , proporciona subsídios para
do planejamento urbano brasileiro. mapear melhor os diálogos entre as diversas
Presenciamos, principalmente nas úl- vertentes na literatura internacional e nacional
timas duas décadas, um crescimento da lite- sobre financeirização e campo do planejamen-
ratura sobre a financeirização em áreas de to urbano.
conhecimento como a geografia, a economia No caso brasileiro, isso é importante
política e o próprio planejamento urbano- por duas razões. Primeiramente, porque con-
-regional. Essa discussão acerca da financei- tribui para gerar uma reflexão crítica sobre as
rização não foi apenas estimulada pelo esgo- dinâmicas socioespaciais, as racionalidades
tamento do padrão de regulação do sistema dos agentes públicos e privados e os impasses
monetário internacional de Bretton Woods, o que cercam a agenda da reforma urbana e da
que desencadeou maior volatilidade nas variá- função social da propriedade com possíveis
veis macroeconômicas-chave (câmbio, juros e insights a partir da discussão sobre a financei-
preços dos commodities) e a “reemergência” rização. Além disso, porque mobiliza um debate
das finanças globais (Helleiner, 1994). A neoli- sobre a transformação da própria “práxis urba-
beralização e a reestruturação do Estado e as na” contraditória nas cidades brasileiras.
sucessivas “bolhas” que estouraram no mer- Assim sendo, o terceiro objetivo deste ar-
cado internacional de capitais, a partir da crise tigo é explorar as dimensões de uma agenda
das empresas de tecnologia (Nasdaq), e, em de pesquisa sobre a financeirização com rele-
2007/2008, a partir da crise subprime das hi- vância conceitual e “política” para o planeja-
potecas “podres”, também impulsionaram o mento urbano brasileiro.

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Financeirização: conceitos, experiências...

Cumpre mencionar que a agenda de pes- ênfase para a realidade das metrópoles brasi-
quisa sobre financeirização é fortemente mol- leiras. Finalmente, é apresentada uma breve
dada pela circulação de ideias no âmbito da conclusão com base no desdobramento das
comunidade acadêmica dos países centrais, em discussões realizadas.
geral, e do bloco anglo-saxão, em particular.
Salvo exceções, o debate nas diversas revistas
internacionais indexadas não contempla mui- Origem e principais
tas experiências sul-americanas, de modo ge-
ral, nem, mais especificamente, as brasileiras.
vertentes no debate teórico
Foge do escopo deste artigo explorar os limites sobre financeirização
e potencialidades de uma teoria de financeiri-
Aalbers (2015, p. 214), um dos protagonistas
zação com base na noção de Sul Global ou nas
nos debates recentes em torno do tema, define
especificidades geográficas e históricas da tra-
a financeirização de forma elástica:
jetória do desenvolvimento latino-americano e
brasileiro. Mesmo assim, nossa análise repre- A crescente dominância de agentes, mer-
senta um primeiro passo para situar o debate cados, práticas, métricas e narrativas fi-
sobre a financeirização urbana “entre nós”, nanceiros, nas múltiplas escalas, o que
apoiado na premissa da comparibilidade, isto tem gerado uma transformação estrutural
das economias, das corporações (incluin-
é, reconhecer similaridades em função das in-
do instituições financeiras), dos Estados e
terdependências e transformações estruturais das famílias.2
que caracterizam o atual quadro da economia
mundial, sem, no entanto, perder de vista as Referida definição é útil porque mostra
especificidades geográficas e históricas que a abrangência do processo de financeirização,
marcam a trajetória das cidades brasileiras que mobiliza diversas escalas, agentes (finan-
(Robinson, 2002). ceiros – não financeiros; públicos e privados),
Após esta Introdução, o artigo estrutura- práticas (materiais e discursivas) e institucio-
-se em quatro seções complementares. Na pri- nalidades na transformação das economias,
meira, apresentamos uma definição operacio- das corporações e da própria vida quotidiana.
nal da financeirização e três grandes vertentes Além disso, essa conceituação abre a perspec-
presentes na literatura mais recente (economia tiva de uma variedade de abordagens. Grosso
política; “contabilidade crítica”; financeiri- modo, podemos destacar três grandes verten-
zação e vida quotidiana). Na segunda, anali- tes entrelaçadas na literatura mais recente so-
samos como essa literatura articula-se com o bre o tema, a saber: (1) marxismo, regulacio-
debate sobre as cidades e a (re)produção do nismo e economia política; (2) governança cor-
espaço urbano-regional. Na terceira seção, ex- porativa, contabilidade crítica e capitalismo de
ploramos elementos para uma agenda de pes- coupon pool (3) financeirização e a vida quo-
quisa sobre financeirização que articula os de- tidiana: economia cultural, performatividade e
bates internacionais e nacionais com o campo os estudos sociais sobre as finanças. A seguir,
do planejamento urbano-metropolitano, com trataremos de cada uma delas.

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Jeroen Klink, Marcos Barcellos de Souza

Marxismo, regulacionismo influência dos agentes financeiros sobre o de-


e economia política senho da política macroeconômica de viés mo-
netarista, constituíram um ambiente propício à
A primeira vertente, que rotulamos generica- circulação internacional de fluxos financeiros
mente como a abordagem da economia políti- em escala relativamente inédita. Tal penetra-
ca,3 tem raízes no marxismo (por intermédio de ção das finanças no mundo industrial-fordista
autores como Hilferding), mas conta também também transformou uma lógica até então
com trabalhos desenvolvidos na tradição da pautada por estabilidade e previsibilidade. As
escola de regulação (por intermédio de autores finanças e a antecipação de fluxos de renda fu-
como Boyer, Chesnais), no pós-keynesianismo tura para o presente (a chamada capitalização)
(com Minsky) e na teoria politica de relações facilitaram a reestruturação da economia para
internacionais (com Helleiner). um sistema mais flexível, analisado por David
Independentemente das diferenças entre Harvey em termos da aceleração de tempo e
os autores, essa linha de pesquisa prioriza as espaço. A partir desse período, presenciamos
grandes transformações macroestruturais que a proliferação de projetos e estratégias em-
ocorreram no sistema de acumulação (a eco- presariais marcados por retornos mais rápidos
nomia) e no modo de regulação (a atuação do (perío do de repagamento de investimentos
Estado nas múltiplas escalas, a relação salarial, iniciais), obsolescência precoce de investimen-
o regime monetário, as formas de competição e tos e ativos e ajustes espaciais intensos, en-
de inserção no sistema internacional). A análise volvendo relocação de plantas industriais em
sobre a reemergência das finanças globais no escala global. A teorização sobre o fenômeno
pós-Bretton Woods, sob a hegemonia do Es- de capital switching sinalizou que as sucessivas
tado norte-americano e do capital financeiro, crises de acumulação no sistema produtivo-
é emblemática. O colapso de Bretton Woods -industrial (o circuito primário) são temporaria-
implicou na ruptura do sistema de câmbio fi- mente absorvidas (mas nunca resolvidas) pela
xo, o que imediatamente transformou a di- circulação do capital no ambiente construído (o
nâmica dos mercados de câmbio, de juros e circuito secundário).5
de commodities. Os juros variáveis, a taxa de Na tradição da economia política, a fi-
câmbio flutuante e a reciclagem dos petrodóla- nanceirização está umbilicalmente ligada às
res nas principais praças financeiras do mundo relações sociais e ao conflito entre o capital e
geraram, nos anos 70, um quadro de grande o trabalho.6 Por exemplo, a escola da regula-
volatilidade e risco. Ao mesmo tempo, esse ção ressalta que a ampliação do acesso a cré-
cenário, que viria a ser uma tendência, desen- dito não pode ser dissociada da transformação
cadeou oportunidades para capitalizar lucros da própria relação salarial que, ao menos nos
associados às operações de compra e venda no países centrais, representava a espinha dorsal
mercado futuro. 4 durante os anos dourados do fordismo-keyne-
Além disso, a liberalização dos mercados sianismo. Com a crise desse modelo de desen-
de capitais e a criação de novas engenharias volvimento, o arrocho salarial, a precarização
financeiras, como a securitização e a crescente da oferta de emprego com registro em carteira

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Financeirização: conceitos, experiências...

e o recuo do Estado de bem-estar social na pro- endividamento público interno7 (Bruno et al.,
visão de uma série de bens públicos – como 2011). Embora sejam importantes os esforços
moradia e infraestrutura social-urbana – foram de periodizar o avanço da financeirização no
acompanhados por uma ampliação dos me- País e de relacioná-lo com as mudanças no
canismos de acesso ao crédito. Nesse cenário, ambiente institucional, entendemos que esses
denominado por Crouch (apud Van Der Zwan, processos não se limitam à dinâmica macroe-
2014, p. 117) “keynesianismo privatizado” ou conômica ou às decisões tomadas nas escalas
“keynesianismo hipotecário”, não é o governo, nacional e supranacional. Em outras palavras,
mas o trabalhador quem assume o papel de existe o desafio de relacionar como a finan-
azeitar o multiplicador de renda e emprego que ceirização condiciona as operações de finan-
garanta o crescimento macroeconômico. ciamento e de despesas públicas, modificando
No entanto, isso não implicou o esvazia- as estratégias de diversos agentes, com uma
mento do Estado. Rolnik (2015), por exemplo, abordagem que seja mais sensível às principais
aponta que a relação imbricada entre a neo- dimensões espaciais: escalas, lugares, redes
liberalização e a financeirização foi articulada e territórios. Assim, será possível uma melhor
por meio de um projeto de “inclusão predató- compreensão das relações micro e macro do
ria”, que incentivou e democratizou o acesso a fenômeno e da evolução de suas geografias
diversas fontes de crédito imobiliário e finan- históricas no Brasil.
ciamento habitacional, com ênfase nas abor- Um relevante ponto de partida seria
dagens orientadas para a demanda via carta combinar aspectos quantitativos e qualitati-
de crédito. Diversos países na Europa privati- vos da financeirização. Embora seja desejável
zaram suas companhias habitacionais e trans- apresentar aspectos mensuráveis da penetra-
formaram o estoque de aluguel subsidiado por ção das finanças em diversas esferas da econo-
meio de estratégias de ampliação de acesso mia, do Estado e da vida quotidiana, o foco da
a fontes de financiamento para a compra da análise não deve se limitar à comparação de
casa própria. índices, mas deve entender como as relações
A literatura nacional alinhada de alguma entre os agentes são transformadas em dife-
forma a essa vertente (Fiz, 2011; Royer, 2014) rentes contextos.
discute a trajetória brasileira da política urba- É importante considerar que as diferen-
na e habitacional, desde os anos 1990, no que ças entre o processo de neoliberalização dos
diz respeito às relações entre a ampliação do anos 1990 – stop and go das políticas habita-
financiamento habitacional, a financeirização cionais e da política voltada para a urbaniza-
e a (des)(r)estruturação do Estado nacional- ção de assentamentos precários e mudanças
-desenvolvimentista sob a suposta “dominân- contínuas do setor dentro do organograma do
cia das finanças” e do rentismo (Paulani, 2011). governo (Arretche, 1996) – e o projeto social-
Nesse sentido, é importante reconhecer -desenvolvimentista de crescimento econômico
a particularidade da financeirização da econo- com inclusão social do período dos governos
mia brasileira, pois esta se desenvolve sobre dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dil-
a base da renda de juros e tem como eixo o ma Rousseff, da primeira década do século XXI,

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Jeroen Klink, Marcos Barcellos de Souza

foram reais. Mesmo assim, é possível apontar implementados em áreas periféricas, mas tam-
um denominador comum na política federal bém um atendimento do déficit habitacional
que foi a procura para novos mecanismos de via o programa “de habitação social de mer-
subsídio e financiamento que pudessem, ao cado” que, para todas as faixas de renda con-
mesmo tempo, focalizar os segmentos popula- templadas, ficou aquém do esperado (Rolnik e
cionais de baixa renda com menor capacidade Klink , 2011; Shimbo, 2012).
de endividamento e pagamento – aliviando, as- De certa forma, a referida literatura crítica so-
sim, o fundo público da responsabilidade pela bre o desafio de recortar adequadamente o de-
provisão de moradia para as classes mais abas- senho dos subsídios e dos financiamentos para
tadas – e fomentar o protagonismo do merca- as camadas menos abastadas durante o perío-
do imobiliário e financeiro na criação de um do social-desenvolvimentista dos governos
sistema moderno de intermediação financeira Lula e Dilma remete-nos ao debate de Fran-
com escala, liquidez e menores taxas de risco cisco de Oliveira referente ao papel do fundo
para o setor privado. público, tanto na reprodução do capital quanto
A literatura brasileira apresenta um ba- na da força de trabalho (Oliveira, 1988). No
lanço desse projeto contraditório. Por exemplo, momento atual essa discussão assume maior
ao contrário da narrativa constituinte, o Siste- complexidade à luz da crescente penetração da
ma Financeiro Imobiliário (SFI) não proporcio- “finança” na formulação e implementação das
nou maior liquidez para o segmento residencial políticas públicas.
por meio da alocação de “dinheiro novo” do
mercado de capitais. Na prática, as sucessivas
medidas de flexibilização da regulação permi- Governança corporativa, contabilidade
tiram uma confluência entre a esfera pública crítica e capitalismo de coupon pool
e a privada, no sentido de que os recursos do
criticado sistema paraestatal do Sistema de Fi- Um segundo grupo de pesquisas sobre finan-
nanciamento Habitacional (SFH) pudessem ser ceirização, que denominamos aqui “contabi-
aplicados na aquisição dos títulos financeiros lidade crítica”, está ancorado na tradição das
criados no âmbito do SFI (Royer, 2014; Cagnin, discussões sobre a governança corporativa.
2012). Na outra ponta da estrutura, as pesqui- Cabe primeiramente destacar que esta última
sas apontaram que a focalização dos mecanis- linha, desde as discussões seminais de auto-
mos de subsídio e de crédito para a baixa ren- res como Cyert e March (1963), desmistificou
da, por meio de programas como Minha Casa a ideia da corporação moderna como um blo-
Minha Vida (PMCMV), mostrou-se desafiadora. co monolítico organizado em departamentos
Os subsídios diretos e indiretos desencadearam funcionais – marketing , finanças, produção,
uma dinâmica de capitalização de rendas fun- recursos humanos, etc. – que compartilham
diárias pelos proprietários da terra e pelas in- informações no âmbito de um processo racio-
corporadores com efeitos sobre os preços imo- nal de tomada de decisões em prol do objetivo
biliários, gerando não apenas baixa inserção da maximização dos lucros da organização. Na
urbana dos empreendimentos frequentemente prática, os departamentos possuem interesses

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Financeirização: conceitos, experiências...

conflitantes, e a corporação moderna é marca- o lucro líquido sobre patrimônio (uma aproxi-
da pelas assimetrias de informações e pela ra- mação da taxa de retorno) e a relação entre o
cionalidade limitada. Nesse contexto, a melhor preço das ações e o lucro líquido (como uma
estratégia não é a maximização dos lucros, mas espécie de projeção acerca da capacidade de a
um lucro satisfatório. corporação gerar renda para o investidor).
A teoria do principal-agente carrega esse racio- As análises desenvolvidas na literatura
cínio para a análise dos conflitos de interesse da contabilidade crítica apresentaram uma vi-
entre o alto executivo e os acionistas-proprie- são sombria sobre a distribuição funcional de
tários no âmbito das corporações financeiras renda (isto é, entre trabalhador e capitalista)
e, particularmente, das não financeiras (Fama, no âmbito da corporação, destacando o ônus
1970; Froud e Williams, 2002). Os executivos para o trabalhador comum e os expressivos
têm agenda própria e nem sempre procuram ganhos para o alto executivo, com os seus in-
atender aos interesses dos acionistas por meio teresses agora atrelados à agenda do acionista
da maximização do shareholder value , isto (Van Der Zwan, 2014). Froud, Johal e Williams
é, a soma dos dividendos e a valorização do (2002) levam essa análise pessimista um passo
preço da ação ao longo do tempo. Portanto, adiante, quando descrevem o capitalismo de
o acionista precisa monitorar as atividades do coupon pool (marcado pela transformação de
executivo, o que implica custos transacionais. um sistema de intermediação financeira que,
Nesse sentido, as estratégias de remuneração por sua vez, apenas articula poupança e inves-
de executivos, por meio de programas de dis- timentos, para um mercado de capitais mais
tribuição e compra de ações, representam uma sofisticado, que regula o comportamento de
estratégia de aglutinar o executivo em torno da empresas e famílias a partir da securitização,
maximização do valor das ações. gerando tendências de instabilidade).
A mudança na relação entre acionis- Os casos emblemáticos de coupon pool,
ta e executivo, no sentido de maximizar o no qual a condição básica é a destinação de
shareholder value, gera novas práticas empre- grande parte da poupança de longo prazo em
sariais. Por exemplo, a gestão tende a priori- títulos securitizados que criam um fluxo contí-
zar resultados no curto prazo, acelerando o nuo de recursos nos mercados secundários, são
payback dos investimentos e mostrando re- os modelos norte-americano e britânico.
sultados nos balanços financeiros trimestrais No entanto, a inexistência dessa situa-
que estejam alinhados com as expectativas ção genérica não significa que o capitalismo de
do mercado. Além disso, shareholder value coupon pool não possa ser analisado em ou-
implica reduzir riscos, priorizando o foco nas tros países, como o Brasil. Com efeito, não se
atividades centrais e subcontratando ativida- trata de um modelo que prevê certos resulta-
des periféricas. dos, mas de “uma forma de pensar sobre o que
Nesse contexto, emergem também novas precisa ser investigado e especificado”, sendo
métricas sintéticas e reconhecíveis para reduzir seus efeitos gerais dependentes de vários ele-
os custos transacionais para os acionistas mo- mentos como “o tamanho do coupon pool, a
nitorarem o alto executivo, como, por exemplo, escala dos fluxos, as normas e comportamento

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Jeroen Klink, Marcos Barcellos de Souza

e as regulações que determinam o que famílias profissional composta pelos executivos de


e corporações podem e devem fazer” (Froud e construtoras e incorporadoras, analistas, con-
Williams, 2002). sultores e intermediadores financeiros, geren-
No cenário brasileiro, vários pesquisado- tes de fundos imobiliários e mídia financeira.
res desenvolveram trabalhos que dialogaram Na visão dos autores, em um primeiro momen-
com a literatura da contabilidade crítica. Por to, foram as próprias construtoras e incorpora-
exemplo, a análise de Shimbo (2012) sobre a doras que disseminaram a narrativa que criou
“Empresa Construtora Pesquisada” virou estu- ressonância junto aos agentes do mercado de
do de caso obrigatório para quem quisesse en- capitais em torno de uma estratégia expansio-
tender melhor a transformação das relações en- nista em mercados regionais via captação de
tre o capital construtor e incorporador e o mer- recursos e investimento por meio de formação
cado de capitais, a partir das emissões na bolsa de bancos de terra. A divulgação dos resulta-
de valores, bem como as repercussões sobre o dos desalinhados com as projeções financeiras
ambiente construído e o canteiro da obra em iniciais, a partir do período 2010-2011, gerou
termos da padronização dos produtos imobiliá- dissonância nessa comunidade profissional e
rios e precarização das relações de trabalho. implicou ajustes em normas e convenções. O
Rocha Lima Júnior (2012, p. 17), por sua próprio mercado de capitais, em um proces-
vez, debruçou-se sobre as decisões equivoca- so dinâmico de aprendizagem, reconhecendo
das que foram tomadas pelas construtoras no as especificidades do mercado do ambiente
período de expansão a partir da Região Me- construído, assumiu agora mais protagonismo
tropolitana de São Paulo (RMSP) para outras no desenho de estratégias mais cautelosas e
regiões brasileiras por meio da captação de marcadas pela ênfase na rentabilidade ao in-
recursos no mercado de capitais. Ressaltou os vés do crescimento. Cabe destacar que Sanfe-
erros cometidos no sentido de transformar pro- lici e Halbert analisaram elementos do proces-
jeção de valor geral de venda utilizada em es- so constituinte de financeirização a partir de
tudos de viabilidade econômico-financeira em uma abordagem que também dialoga com a
fluxo de caixa realizado e de delegar decisões economia cultural e a economia de normas e
sobre investimentos para “os jovens analistas convenções, que será objeto de análise na pró-
planilheiros” (ibid., p. 18). xima seção. Pode-se argumentar que a aborda-
Sanfelici e Halbert (2015) ampliaram a gem da contabilidade crítica se encontra num
perspectiva sobre esse período e romperam nível analítico meso e possibilita uma “ponte”
com a visão dicotômica entre acionista e ge- entre as contribuições da economia política e
rência, traço marcante de algumas abordagens da financeirização da vida quotidiana. Em re-
da literatura sobre shareholder value. Os auto- lação aos regulacionistas, por exemplo, ambas
res discutiram as relações imbricadas entre as estão preocupadas com fluxos macro, formas
construtoras-incorporadoras e o mercado de monetárias, circuitos e setores, mas a contabi-
capitais a partir de um enfoque de circulação lidade crítica rejeita o que considera uma visão
de expectativas, normas e convenções, criando mecanicista em favor de questões dinâmicas
“ressonâncias” dentro de uma comunidade relacionadas a mudanças no comportamento

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Financeirização: conceitos, experiências...

(de firmas e famílias), rompendo, assim, com a o próprio indivíduo em um analista que deve-
8
noção de regime de crescimento (Froud, Johal ria passar a gerenciar os riscos de sua vida co-
e Williams, 2002). Além disso, o ponto de con- mo uma espécie de ativo financeiro: “enquan-
tato com a financeirização da vida quotidiana to gerencia ativamente os riscos, o indivíduo
ocorre na conexão entre as finanças e as mas- investidor pode preparar-se adequadamente
sas financeirizadas, que estaria relacionada ao para um futuro que nunca é seguro e sempre
crescimento do investimento em ações pelos cercado por incertezas. Consequentemen-
fundos de pensão das empresas e a dissemi- te, a própria vida transforma-se em um ativo
nação da casa própria (o que nos EUA e Reino que precisa ser gerenciado”10 (Van Der Zwan,
Unido teria ocorrido nos anos 1950 e 1960). 2014, pp. 112-113).
Um exemplo dessa linha de argumen-
tação é o estudo de Soaita e Searle (2016)
Financeirização e a vida quotidiana: sobre os significados da casa própria em ter-
economia cultural, performatividade mos de cálculos subjetivos acerca de custos
e os estudos sociais sobre as finanças e benefícios da propriedade no Reino Unido.
Os proprietários, como “investidores”, tendem
A terceira vertente prioriza a análise da supos- a subestimar os custos nos discursos e metá-
ta penetração do crédito e das finanças na (re) foras mobilizados, o que gera uma “amnésia
produção da vida quotidiana via o acesso a da dívida”, enquanto superestimam os ganhos
9
diversas formas de (micro)crédito e finanças, por meio de cálculos ilusórios e pouco sofisti-
variando de hipotecas e financiamento imobi- cados. Esse fenômeno seria socialmente cons-
liário – o que Aalbers (2012) intitula como a truído pela circulação de narrativas e ideolo-
emergência das subprime cities – ao crédito ao gias congruentes.
consumo. O recorte implícito na literatura que Nos governos dos presidentes Luiz Iná-
trata do tema está voltado para a população cio Lula da Silva e Dilma Rousseff, esse debate
de baixa à média-baixa renda. Nesse sentido, também se intensificou em função da “ban-
existe uma complementaridade com a econo- carização” da população de baixa renda e da
mia política em geral e as vertentes do capital ampliação do crédito consignado. Ambos os
switching em particular, no que diz respeito ao processos foram impulsionados pelo aumento
arrocho salarial em tempos de neoliberaliza- do salário-mínimo e do emprego com carteira
ção que fez com que as finanças penetrassem assinada, além da política de formalização de
com mais facilidade nas estruturas individuais categorias profissionais até então à margem do
de contenção de risco via planos de seguro de mercado formal, como os empregados domés-
vida e seguro-saúde, planos privados de previ- ticos e as cooperativas de coleta de resíduos
dência e de financiamentos de acesso a bens sólidos (Costa, 2002).
de consumo como carros e eletrodomésticos, Ainda no âmbito dessa linha de pes-
entre outros exemplos. Na realidade, o recuo quisa, a economia cultural e os estudos so-
do Estado de bem-estar social e o aperfeiçoa- bre a performatividade representam uma
mento do mercado de capitais transformaram abordagem específica no debate sobre

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Jeroen Klink, Marcos Barcellos de Souza

financeirização. A ideia da performatividade na elaboração de estudos de viabilidade finan-


ganhou destaque a partir do trabalho de au- ceiro-econômica e no desenho de parâmetros-
tores como MacKenzie e Callon que argumen- -chave para programas de parceria público-
taram que os modelos econômicos utilizados -privada e Operações Urbanas Consorciadas
no mercado financeiro não apenas descrevem (OUCs) nas cidades brasileiras (por meio de
a realidade da bolsa, mas transformam as instrumento como a Outorga Onerosa do Direi-
práticas utilizadas pelos operadores na pra- to de Construir – OODC – e Certificados de Po-
ça financeira e, com isso, o próprio mercado tencial Adicional de Construção – Cepac).11 Na
(Callom, 1998; Mackenzie, 2005). prática, como discutiremos adiante, na próxima
O conceito transborda para além de mo- seção, esses profissionais da consultoria urba-
delos econômicos e práticas utilizados pelos na assumem papel importante tendo em vista
operadores financeiros no mercado. Performa- suas práticas espaciais-calculistas na trans-
tividade pode ser relacionada com narrativas, formação das cidades e áreas metropolitanas.
estratégias e práticas materiais, discursivas e Alguns autores argumentam que as métricas
“calculistas”, de agentes públicos e privados, e as técnicas financeiras utilizadas por esses
no sentido de usar modelagens para trans- consultores nos estudos de viabilidade (como,
formar o próprio espaço urbano (Henrikson, por exemplo, a taxa interna de retorno de um
2009). Essa ampliação do escopo metodo- projeto e os modelos de fluxo de caixa descon-
lógico também permite articular a ideia da tado)12 paulatinamente influenciam normas e
performatividade para o campo da economia convenções que norteiam o desenho da politica
política e do debate sobre a financeirização co- de cobrança das contrapartidas a serem pa-
mo um processo contestado, relacionado com gas pelos empreendedores. McAllister (2017),
a neoliberalização (Berndt e Boeckler, 2009). por exemplo, discute a influência de modelos
Da mesma forma, as métricas financeiras que e consultores no mecanismo de planning gain
são objeto das diversas análises, no campo da adotado na Inglaterra, enquanto Klink e Stroher
contabilidade crítica, sobre shareholder value (2017) analisam o papel dos estudos de viabi-
refletem modelagens que podem ser utilizadas lidade na precificação dos Cepacs. Desse mo-
não apenas para descrever, mas transformar o do, conforme argumenta Muellerleile (2013), o
mundo e o espaço urbano-regional. potencial analítico da performatividade torna-
Nesse sentido, uma das aplicações ainda -se ainda maior quando se contornam algumas
pouco exploradas é a relação entre os modelos de suas tendências a produzirem argumentos
ortodoxos da economia financeira e imobiliária aespaciais e apolíticos. Ainda de acordo com
utilizados pelas consultorias para descrever e esse autor, a análise rigorosa dos mercados
representar a estrutura do espaço urbano-re- financeiros requer entender tanto sua lógica e
gional e as práticas efetivamente adotadas pe- operações internas como o contexto mais am-
los agentes públicos e privados na elaboração plo e as relações de poder no qual se inserem e
e execução dos instrumentos da política urba- dependem para sua reprodução.
na. Por exemplo, o grupo seletivo de escritórios Um aspecto promissor das pesquisas
de consultoria desempenha um papel relevante sobre a financeirização é que um número

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Financeirização: conceitos, experiências...

crescente de trabalhos procura articular as re- condições sobre as quais as cidades e a terra
lações imbricadas entre as três vertentes men- são transformadas em ativos financeiros.
cionadas anteriormente no sentido de aperfei- Evoluindo dos temas mais específicos pa-
çoar as leituras analíticas sobre esse fenômeno, ra questões mais gerais e abstratas, apontamos
assim como o seu entrelaçamento com o espa- três vertentes entrelaçadas na literatura na
ço urbano-metropolitano, aspecto este que se- qual essa relação entre “o urbano” e o proces-
13
rá objeto da próxima seção. so de financeirização se tornou objeto explícito
do debate:
(1) Grande Projetos Urbanos “2.0” e os no-
vos agentes no circuito imobiliário;
A financeirização (2) a reestruturação do financiamento públi-
e as metrópoles co para o desenvolvimento urbano; e
(3) o Estado, o espaço e a “financeirização”
Segundo Rutland (2010, p. 1167): do empresariamento urbano.

Os estudos sobre o re-desenvolvimento


do urbano poderiam certamente ganhar
algo da literatura sobre a financeiriza-
Grandes Projetos Urbanos “2.0”
ção, desde que os primeiros continuem a e os novos agentes no circuito
tratar não apenas do capital financeiro, imobiliário
mas também dos mecanismos materiais
e ideológicos através dos quais a proprie-
O debate sobre grandes projetos urbanos não é
dade imobiliária é constantemente trans-
formada em ativo financeiro.14 recente e, de certa forma, está imbricado com o
tema da neoliberalização e do empresariamen-
A literatura sobre o “redesenvolvimento to urbano.15 Desde os anos 1980, a literatura
do urbano” antecedeu e previu algumas das no campo da economia política e do institu-
discussões mais recentes sobre financeirização cionalismo crítico tem ressaltado as contradi-
que apresentamos na seção anterior. Rutland ções inerentes associadas às novas formas de
(ibid.), citado acima, por exemplo, argumenta planejamento e à gestão via grandes projetos
que há mais de três décadas Harvey (1982) foi (Swyngedouw, Moulaert e Rodriguez, 2002).
pioneiro no debate a partir de suas análises so- Apesar da riqueza das abordagens e dos
bre as relações entre o empresariamento urba- estudos empíricos que acompanharam a dis-
no, os grandes projetos urbanos e a tendência cussão sobre os grandes projetos urbanos, não
à transformação da terra em ativo financeiro. houve, paradoxalmente, muitas análises sobre
Mesmo que adote um tom cético acerca de seu o crescente entrelaçamento do mercado imo-
caráter inovador, o próprio Rutland reconhece biliário com o financeiro. Guironnet e Halbert
que a literatura recente sobre a financeirização (2015), por exemplo, argumentam que a am-
potencialmente agrega valor aos debates exis- pliação do recorte analítico para os agentes do
tentes sobre a transformação do espaço urba- mercado financeiro desencadeia novas pergun-
no, desde que aprofunde a análise acerca das tas para a agenda de pesquisa sobre grandes

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Jeroen Klink, Marcos Barcellos de Souza

projetos urbanos. Quais projetos e estratégias renda associados aos ativos, normalmen-
adotados pelos investidores e pelos diversos te por meio de um processo de agregação
que permite, apenas após sua consolida-
agentes que atuam no mercado de capitais
ção, que a especulação ocorra.17
(analistas, empresas de consultoria financeira,
bancos de investimento, agência de avaliação Os referidos autores proporcionam exem-
de risco, etc.)? E como esses agentes inserem- plos desse processo de produção e circulação
-se e articulam-se nos grandes projetos urba- de rendas em torno do ambiente construído
nos? Como a governança de grandes projetos nas cidades, alguns mais conhecidos (mercado
urbanos e seus resultados são moldados por secundário de títulos hipotecários, transfor-
eles? Em certo sentido, trata-se de uma abor- mação de aluguéis em títulos de recebíveis de
dagem relacional para a financeirização, na alugueis, etc.) e outros menos disseminados no
qual esta só pode ser entendida consideran- cenário brasileiro.
do-se estratégias, fluxos e relações entre os As parcerias público-privadas para o
agentes que atuam em várias escalas. desenho, financiamento, construção e opera-
Halbert também procura analisar sob ção de projetos de infraestrutura urbana para
quais condições as estratégias de precificação execução do setor privado em troca de paga-
e capitalização16 de rendas futuras associadas mento de juros e de amortizações ao longo da
ao ambiente construído (moradia, prédios co- vida útil do projeto pelo setor público talvez
merciais, redes de infraestrutura, etc.) tendem seja um exemplo menos conhecido. Mais espe-
a transformar o espaço urbano-regional em cificamente, a capitalização e a securitização
um Portifólio de Ativos Rentáveis e Comercia- dos recebíveis de juros e amortizações nessas
lizáveis (Parc). Sendo que, por rentáveis, têm-se parcerias permitem que o setor privado assu-
uma combinação de rendas periódicas – fixas ma, em tempo real, novos compromissos para
ou variáveis – com ganhos de capital e, por diversificar e ampliar a escala das operações e
comercializáveis, têm-se ativos que podem ser também dos riscos. No mundo anglo-saxão, a
comercializados em mercados secundários – penetração dessa lógica financeira tem gera-
Tradeable Income Yielding Assets (Guironnet e do contradições no planejamento e na gestão
Halbert, 2015). Da mesma forma que a finan- públicos das redes de infraestrutura no anseio
ceirização influenciou o relacionamento dos de satisfazer às expectativas dos investidores
acionistas com o alto executivo dentro das por meio de cortes na manutenção, aumento
corporações, a constante procura pelo “Parc” de tarifas e enxugamento de quadros profissio-
no ambiente urbano muda a governança terri- nais essenciais.
torial que articula público e privado, que será A financeirização via grandes proje-
cada vez mais moldada por lógicas, métricas e tos urbanos não ocorre apenas por meio “da
práticas do capital financeiro. Leyshon e Thrift finança” (Paulani, 2011). Kaika e Rugierro
(2007, p. 98), por exemplo, argumentam que: (2016), por exemplo, descrevem o caso em-
O capital financeiro depende da constante blemático de crise e reestruturação da fábrica
procura ou construção de novos fluxos de da Pirelli com o Projeto Techno-City, na Região

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Financeirização: conceitos, experiências...

Metropolitana de Milão. A experiência mostra financeiros (Sandroni, 2010; Maleronka, 2010).


que, no bojo da crise fordista que acometeu o Emerge daí um questionamento: quais foram o
parque industrial italiano nos anos 1980, a elite processo constituinte e “a técnica” para defi-
industrial literalmente: nir determinado preço mínimo dos Cepac que
garantisse viabilidade econômico-financeira, o
largou a sua prática tradicional no sen-
desenho adequado dos perímetros da área e a
tido de tratar os terrenos industriais
como condição de produção, que iriam quantidade e qualidade dos investimentos pú-
depreciar ao longo do tempo, e reinven- blicos previstos para a OUC (Operação Urbana
tou a sua propriedade fundiária como Consorciada)? Em sua análise sobre o projeto
‘um puro ativo financeiro’ (Harvey, 1982, estratégico do Porto Maravilha no Rio de Ja-
p. 347), que agora poderia ser precifica-
neiro, Pereira (2016) mostra que as OUCs via
do no balanço da empresa de acordo
com o aluguel que este potencialmente Cepac não podem ser dissociadas de uma ava-
poderia receber no mercado imobiliário. liação da modelagem institucional e financeira
(Kaika e Rugierro, 2016, p. 8) em geral, e de suas relações com o desenho e
a execução dos mecanismos de financiamento
Desse modo, capitalizando as rendas nacional para o ambiente construído via fun-
fundiárias futuras, que também foram impul- dos semipúblicos, como o Fundo de Garantia
sionadas pelos parâmetros urbanísticos mais do Tempo de Serviço (FGTS) e, recentemente, o
flexíveis adotados pelo planejamento urbano Fundo de Investimento do Fundo de Garantia
no contexto do projeto estratégico Projeto do Tempo de Serviço (FI-FGTS) em particular.
Techno -City, a empresa conseguiu melhorar Essas relações entre financiamento público do
seus balanços e demonstrações financeiras pe- desenvolvimento urbano e a financeirização é
rante o mercado. objeto da próxima seção.
O debate brasileiro sobre a financeiri-
zação via grandes projetos urbanos foi par-
ticularmente recortado para a análise das A reestruturação do financiamento
consequências socioespaciais adversas desen- público para o desenvolvimento
cadeadas pelas Operações Urbanas Consorcia- urbano
das (OUCs) com Cepac. Processos de gentri-
ficação e expulsão dos assentamentos precá- A financeirização requer compreensão de me-
rios, seletividade dos investimentos em termos canismos de crédito e financiamento público
de privilegiar determinados setores (rodovias e para o ambiente construído, em geral, e os en-
mobilidade privada) e classes sociais foram os trelaçamentos dos recursos públicos e privados,
aspectos mais ressaltados na literatura voltada em particular.
ao tema (Fix, 2011). O ambiente institucional norte-america-
No entanto, salvo poucas exceções, as no, marcado pela disseminação das parcerias
operações não foram analisadas com base público-privadas na infraestrutura urbana e
em um prisma que também lançou luz sobre pelo acesso direto das cidades ao mercado
as racionalidades dos investidores e agentes de capitais em tempos de austeridade fiscal,

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Jeroen Klink, Marcos Barcellos de Souza

representa terreno particularmente fértil para Lorrain (2011), a liberalização das indústrias de
o debate. rede teve papel fundamental como catalizador
Ashton, Doussard e Weber (2016), por da financeirização da arena urbana, abrindo
exemplo, analisam as concessões de infraes- território (e mercados). O autor argumenta
trutura urbana a partir das relações financeiras que até os anos 1980 não eram os banqueiros
imbricadas entre estado local e concessionário quem “criavam as cidades”, mas “os proprie-
(entanglement) que transbordam o momento tários de terra, incorporadores, companhias
inicial da assinatura dos contratos. A aborda- de construção, frequentemente o Estado, às
gem desses autores lembra o approach teóri- vezes os habitantes, e, apenas raramente, os
co relacional de escalas e do Estado (Jessop, banqueiros” (ibid., p. 50). A privatização das
2008) que procura analisar, ao longo da vida indústrias de rede nos anos 1990 teria sido
útil das parcerias público-privadas, os projetos essencial para essa mudança no poder sobre
e as estratégias dos setores público e privado as cidades, um poder que influencia a política
em relação ao gerenciamento de riscos e even- urbana ao “monitorar e avaliar um grande nú-
tos não previstos na assinatura dos contratos, mero de projetos, e porque seus instrumentos
bem como suas repercussões sobre a política e critérios associados foram amplamente disse-
urbana e a viabilidade econômico-financeira minados e têm impactos além de sua esfera de
dos empreendimentos privados: intervenção direta, introduzindo uma mudança
nos tipos comuns de análise” (ibid., p. 48). Se
As complexidades associadas às con- a ampliação dos projetos urbanos enfrentava
cessões da infraestrutura sugerem que é
ainda barreiras pelo longo prazo de maturida-
preciso ampliar nossa perspectiva no sen-
tido de incorporar as dimensões locais da de e localização física, as finanças romperam
financeirização. Mais notadamente, consi- esse limite e inseriram novas formas de pressão
derando o papel significativo dos gover- do mercado sobre as políticas públicas, em am-
nos locais na criação desses mercados, bientes institucionais diferenciados.
as teorizações sobre financeirização em
Na realidade, a capacidade de as cidades
escala local deviam funcionar, ou inspirar-
-se, nas teorias sobre o Estado. (Ashton, norte-americanas emitirem títulos no mercado
Doussard e Weber, 2016, p. 1386)18 de capitais gera um cenário específico. Peck
e Whiteside (2016), por exemplo, analisam o
Com efeito, o estudo da financeirização caso “não tão especial” da cidade de Detroit,
da infraestrutura urbana, apesar de ter avança- na perspectiva histórica de financeirização da
do relativamente menos no que se refere aos governança urbana nos EUA, culminando na
trabalhos mais difundidos sobre a financei- falência em 2014/2015 e no subsequente plano
rização da terra e da propriedade imobiliária, de ajuste fiscal que reenquadrou a gestão da
tem muito a contribuir com os estudos acerca cidade de acordo com os padrões do mercado
da emergência do poder da finança global no de capitais. De um lado, a cidade, pressionada
ambiente construído. As inegáveis similarida- pela desindustrialização, pelo esvaziamento de
des operacionais e cronológicas reforçam a tra- sua base tributária e pelas políticas federais
jetória imbricada entre esses setores. Segundo de austeridade fiscal, que desencadearam um

392 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 379-406, maio/ago 2017
Financeirização: conceitos, experiências...

protagonismo municipal no mercado de capi- o regime do keynesianismo espacial no circuito


tais por meio de sucessivas emissões de títulos financeirizado (Rolnik, 2015).
de dívida; de outro, a penetração de lógicas e No arcabouço institucional do federalis-
métricas do mercado de capitais que evoluíram mo fiscal brasileiro, os municípios também não
no sentido de disciplinar a governança em es- têm capacidade para emitir títulos da dívida
cala local. no mercado de capitais. Portanto, diferente do
O mercado de crédito e de títulos muni- contexto anglo-saxão, as relações entre crédito
cipais abriu outras perspectivas para a finan- e financiamento públicos para o desenvolvi-
ceirização avançar em escala local nos EUA. mento urbano e a financeirização não são me-
Exemplo emblemático foi o mecanismo de Tax diadas por intermédio de um mercado de capi-
Increment Financing (TIF), que se disseminou a tais nos quais se emitem e comercializam títu-
partir das primeiras experiências em Chicago los da dívida municipal. Na realidade, conforme
(Weber, 2010). O TIF prevê o desenho de um argumenta Royer (2014), na análise do entre-
grande projeto urbano dentro de uma área de- laçamento entre o FGTS e o sistema de finan-
gradada e/ou com problemas de esvaziamen- ciamento imobiliário, a procura pela construção
to econômico, com delimitação do perímetro. dos Parcs no Brasil ocorre de formas diferencia-
O instrumento permite capitalizar o aumento das, por exemplo, por meio de projetos e estra-
projetado da base tributária na área delimita- tégias que captam e transformam os próprios
da para que o município possa, em seguida, fundos (semi) públicos. Marques (2016) lança
acessar o mercado de crédito em condições mão de argumentos semelhantes sobre a re-
mais favoráveis.19 A ferramenta não apenas lação entre financeirização e a apropriação do
consolidou uma nova competência e habilidade fundo público. Além disso, a ausência de um
profissional para as prefeituras – o consultor- mercado para títulos municipais obriga abrir
-especialista que desenha, monitora e avalia a perspectiva conceitual para a aproximação
as operações do TIF –, mas também reforçou entre as diversas estratégias (públicas e priva-
as interdependências entre a governança e o das) de financeirização, a atuação territorial do
planejamento urbanos e o mercado de capitais. Estado e as formas de regulação e intervenção
No entanto, em contextos institucionais urbanas no espaço.
diferentes dos EUA, a penetração da financei-
rização por meio da reestruturação do crédito
e do financiamento públicos não ocorreu da O Estado, o espaço e a “financeirização”
mesma forma. No cenário europeu, por exem- do empresariamento urbano
plo, o esvaziamento do keynesianismo espacial
implicou estratégias de privatização do esto- Essa vertente do debate tem um recorte mais
que habitacional público, combinado com a abrangente, pois relaciona grandes proje-
transformação do aluguel social em casa pró- tos, recursos e financiamentos em uma pers-
pria via sistemas de financiamento privado. De pectiva de financeirização que contempla a
certa forma, a neoliberalização preparou o ter- transformação do Estado e do próprio pla-
reno para a inserção dos países alinhados com nejamento urbano. Conforme mencionamos

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 379-406, maio/ago 2017 393
Jeroen Klink, Marcos Barcellos de Souza

anteriormente, a teoria da regulação e a eco- riscos e expectativas de retorno dos agentes


nomia política geraram insights sobre as diver- envolvidos. A cada etapa dessa sequência, a
sas trajetórias de neoliberalização dos espaços engenharia financeira encontrava uma forma
e da variedade de formas de empresariamento de repassar as dívidas e os compromissos para
urbano. No entanto, até recentemente, essa o próximo investidor. O impasse em torno da
literatura não aprofundou a análise das rela- área fez com que o planejamento urbano da
ções imbricadas entre o capital financeiro e a cidade de Sesto San Giovanni ficasse entrela-
financeirização, de um lado, e a transformação çado com a dinâmica dos agentes financeiros
da governança e do planejamento urbanos, de e imobiliários, procurando a captação de uma
outro (Klink e Denaldi, 2014 e 2015). A esse parcela das rendas fundiárias a partir do aval e
respeito, cumpre mencionar que um conjunto da aprovação de um projeto que já se desenrai-
mais recente de contribuições começa a preen- zou dos interesses locais:
cher a lacuna.
O governo local tornou-se crescentemen-
Ecoando a descrição de Hall (1995) sobre
te dependente da realização da taxa de
o empreendedorismo urbano dos anos 1970 retorno do projeto; a programação do
em termos de um processo de “virando o pla- projeto virou instrumental para a neces-
nejamento de ponto cabeça”, o tema recorren- sidade urgente de liberar o capital para
te agora gira em torno de como o planejamen- a circula ção, ao invés de desempenhar
papel de instrumento para responder às
to urbano se “descontextualiza” sob influência
demandas locais. A regulação local de
da financeirização e das estratégias do capital zoneamento não freou o gerenciamen-
financeiro. As cidades em processos de reestru- to especulativo da terra pelos diversos
turação produtiva continuam um objeto privile- proprietários financeiros, mas, ao con-
giado das discussões. trário, permitiu que a expectativa refe-
rente à produção imobiliária aumentasse.
Savini e Aalbers (2015), por exemplo,
(Aalbers, 2015, p. 13) 20
discutem o projeto de reconversão da área
de uma antiga fábrica siderúrgica, na cidade Na mesma linha, Guironnet, Attuyer e
fordista de Sesto San Giovanni, localizada no Halbert (2016) analisam a experiência de Saint-
cinturão industrial no nordeste da Região Me- -Quen, uma pequena cidade de perfil industrial
tropolitana de Milão. A partir da venda da área na periferia de Paris administrada por um go-
pela empresa Falck, em 2000, uma incorpora- verno local progressista. Os autores descrevem
dora local comprou o terreno com empréstimo a perda da capacidade de o governo local re-
bancário e desenvolveu um primeiro projeto sistir às expectativas dos investidores na ne-
prevendo usos residencial e comercial. As su- gociação de um grande projeto urbano de re-
cessivas crises, falências corporativas e transa- conversão territorial-industrial. Os investidores
ções de compra e venda da área desencadea- acabavam assumindo a liderança na definição
ram um aumento de escala e complexidade do do perfil da operação urbana, por exemplo, por
projeto em termos da estrutura acionária-pro- meio do fomento de um padrão de homogenei-
prietária (envolvendo holdings de investidores zação e aumento de escala dos projetos (em
internacionais além dos agentes locais), dos detrimento do uso misto e projetos menores)

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Financeirização: conceitos, experiências...

e restringindo inquilinos com um perfil mais dos fundos de investimentos imobiliário so-
arriscado (como, por exemplo, pequenas em- bre o setor de aluguel social na cidade de
presas de base tecnológica e de capital de Nova York. As comunidades nova-iorquinas
risco). É notável que esta última orientação não apenas contestaram, mas desenvolveram
contrariava a própria narrativa e estratégia da uma práxis alternativa a partir de: estratégias
cidade no sentido de fomentar uma nova eco- de comunicação com contranarrativas críticas
nomia urbana de conhecimento. sobre o papel dos fundos imobiliários; coleta
A economia criativa, o empresariamento de dados e elaboração de indicadores sobre as
urbano e a financeirização estão umbilicalmen- práticas financeiras predatórias dos fundos em
te ligados na experiência do projeto estratégico propriedades alugadas (reduzindo manuten-
“22@Barcelona”, que ocorreu no bojo da bo- ção abaixo dos padrões formais, entre outros
lha imobiliária espanhola até 2007 (Charnock, exemplos); e a reconstituição dos espaços de
Puercell e Ribera-Fumaz, 2014). Esses autores financeirização, apontando os altos valores de
descrevem a estratégia discursiva subjacente aluguel utilizados pelos fundos na sua comu-
ao projeto “22@Barcelona”. Enquanto a narra- nicação com os investidores e inconsistentes
tiva oficial era de transformar o distrito fordista com a capacidade de pagamento no segmento
de Poblenou em uma nova economia local ba- do aluguel social (ibid., pp. 152-159).
seada na inovação e no conhecimento, na prá-
tica, esse projeto serviu aos interesses do mer-
cado imobiliário e financeiro e, via o aumento
da base tributária, à própria prefeitura.
A financeirização urbana.
Os estudos de caso citados ilustram co-
E o planejamento urbano
mo o poder público passa a atuar em estra- (brasileiro) com isso?
tégias de maximização das rendas da terra e
como as relações de poder na implementação Conforme mencionamos no início deste artigo,
dos projetos de desenvolvimento urbano têm Christophers (2015) tece seus argumentos em
sido deslocados em favor dos investimentos fi- torno dos limites do conceito de financeiriza-
nanceiros ao longo das frequentes mudanças ção, sejam tais limites analítico-teóricos, sejam
de usos. os recortes temporais e/ou espaciais estrei-
No entanto, cabe ressaltar que a finan- tos que foram adotados nas análises. No que
ceirização do planejamento em escala local re- se refere ao primeiro aspecto, o autor pontua
presenta um processo contestado. Não apenas que uma parcela expressiva da literatura ape-
a própria literatura brasileira (Fix, 2011), mas nas retoma e atualiza aspectos já tratados na
o debate internacional mostra crescente inte- literatura mais antiga sobre a globalização fi-
resse e preocupação com os projetos e estraté- nanceira. Além disso, na maioria das vezes, o
gias contra-hegemônicas em várias cidades do recorte temporal-espacial dos debates refere-se
mundo. Fields (2014), por exemplo, apresenta ao mundo anglo-saxão no cenário pós-Bretton
o papel do “planejamento subversivo” das co- Woods, limitando a aplicabilidade das afirma-
munidades em um cenário adverso do avanço ções para outros contextos.

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Jeroen Klink, Marcos Barcellos de Souza

Talvez o argumento mais interessante compreender melhor a dinâmica da moeda, do


desse autor seja que o debate sobre a finan- crédito e das finanças, bem como questionar
ceirização, de forma paradoxal, perdeu rele- o crescente entrelaçamento de suas lógicas
vância política porque, na maioria das vezes, com a espacialidade do Estado, o planejamen-
priorizou investigar as consequências con- to urbano-metropolitano e a (re)produção do
traditórias, no sentido de penetrar com seus espaço urbano e da própria vida.
tentáculos na lógica do mundo não financeiro, Nessas notas finais, exploramos duas di-
sem aprofundar a análise sobre o que é a fi- mensões para essa agenda numa perspectiva
nanceirização e seu processo constituinte. Isso geográfica e histórica que reconheça as espe-
requer deslocar o debate do tema de financei- cificidades da trajetória do desenvolvimentis-
rização ( de-financialization ) para os mecanis- mo brasileiro:
mos subjacentes ao mundo das finanças, do (1) Estado, Fundo Público e “os espaços e as
financiamento e do crédito: escalas constituintes” da financeirização urbana
Em outras ocasiões exploramos o poten-
financeirização representa uma crítica li-
cial de uma abordagem relacional da escalari-
mitada no sentido que ela apenas critica
o que o mundo das finanças faz – par- dade e espacialidade do Estado para superar
ticularmente em outras esferas – onde uma leitura “fetichista” dos instrumentos urba-
seus tentáculos esticam-se, quais os nistas e dos impasses que cercam o projeto re-
constituintes-sujeitos que acabam sendo distributivo da reforma urbana (Klink e Denaldi,
embrulhados e entrelaçados e quais são
2015; Brajato, 2015). Na referida leitura, esses
as lógicas não financeiras adulteradas – e
não o que ele é [...]. (Ibid., p. 232)21 impasses relacionam-se com a ausência da au-
toaplicabilidade dos instrumentos urbanísticos
Não obstante a relevância das referidas do Estatuto ou, nessa mesma lógica, com a fal-
críticas, essas não invalidam explorar elemen- ta de empenho das administrações locais em
tos de uma agenda de pesquisa “de segunda efetivamente aplicá-los.
geração”, com recortes específicos para paí- A chave teórica alternativa que apresen-
ses emergentes como Brasil e com relevância tamos para a leitura dos impasses da reforma
para o campo de planejamento. Essa agenda urbana e do “urbanismo progressista” ancora
não analisa apenas consequências e efeitos, a avaliação dos instrumentos urbanísticos em
mas também a própria natureza da financei- uma perspectiva mais ampla, dialogando com
rização. Pois, antes de a financeirização “es- a atuação do Estado – nas múltiplas escalas –
ticar os seus tentáculos”, ela precisa emergir assim com projetos e estratégias (materiais e
num processo constituinte cuja análise, para imateriais) adotados pelos demais agentes
o caso dos países emergentes com mercados que influem no desenho e na implementação
de capitais menos consolidados, assume ainda da política urbana. De acordo com essa pers-
maior relevância. Dessa forma, uma agenda pectiva, a maneira pela qual os instrumentos
de pesquisa dessa natureza assume – ao me- “progressistas” – como Zonas Especiais de
nos potencialmente – relevância política, isto Interesse Social (Zeis), Parcelamento, Edifica-
é, capacidade transformadora, no sentido de ção e Utilização Compulsórios (Peuc), Imposto

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Financeirização: conceitos, experiências...

Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo fundiárias produzidas por políticas. (Mar-
no tempo, etc. – e market friendly – como a ques, 2016, p. 30)
OUC – são desenhados e implementados é re-
flexo das disputas multiescalares dos agentes No entanto, a partir da premissa da va-
públicos e privados sobre a organização e atua- riedade das estratégias (materiais e imateriais)
ção territorial do Estado por meio de projetos de transformar ativos e propriedades em fluxos
e estratégias de financiamento e de regulação. de renda capitalizáveis – terra, dívida pública,
Existe uma perspectiva promissora para fundos semipúblicos, como FGTS, conhecimen-
articular essa leitura alternativa sobre os impas- to, etc. – não há, necessariamente, uma contra-
ses do planejamento progressista, influenciada dição entre a procura por valorização imobiliá-
pela economia política, pelo regulacionismo ria e por obras e contratos públicos, que são
e pela teoria relacional do Estado, com os de- ambos mediados pelo Estado.
bates sobre a financeirização. Mais particular- A atual conjuntura brasileira, de baixo
mente, no caso brasileiro, isso remete ao papel crescimento econômico, de uma nova rodada
estratégico do fundo público e da regulação de recuo do Estado e de austeridade fiscal,
num cenário institucional ainda marcado pela abre uma nova fase para esse tipo de abor-
baixa penetração das finanças imobiliárias e dagem e de linha de pesquisa que articula as
pela ausência do mercado de capitais e merca- diversas vertentes e escalas da literatura sobre
do secundário consolidados. Pois, nesse cenário a financeirização (economia política, contabili-
específico, a “constante procura ou construção dade crítica e estudos sociais de finanças) com
de novos fluxos de renda associados aos ati- os estudos urbanos. Em outras palavras, acre-
vos” que podem ser capitalizados (Leyshon e ditamos que essa agenda tenha o potencial de
Thrift, 2007, p. 98) a partir da penetração das catalisar o diálogo, pouco praticado nos estu-
lógicas e métricas financeiras tendem a ocorrer dos urbanos brasileiros, entre reestruturação
por meio da articulação de projetos e estraté- espacial do Estado no período recente (neolibe-
gias que mobilizam, nas múltiplas escalas, o ralização) e financeirização.
próprio planejamento e a atuação territorial do Cumpre lembrar que a austeridade é
Estado. Numa análise mais recente sobre o pa- aplicada em configurações já neoliberalizadas
pel “dos capitais urbanos”, Eduardo Marques de poder do Estado, o que reforça a dinâmica
relativiza a relevância da tese norte-americana dialética dos momentos destrutivos e construti-
das growth machines imobiliárias, impulsiona- vos do neoliberalismo (Peck, 2012). Com efeito,
das pelas coalizões dos governos locais com não se trata de um mero retorno do neolibera-
as construtoras-incorporadoras em torno dos lismo destrutivo (roll back) do início dos anos
grandes projetos de renovação urbana, e res- 1990, pois seu alvo não são apenas aqueles
salta a centralidade dos fundos públicos: mais tradicionais (direitos trabalhistas, políticas
industrial e social), mas também elementos da
se existe alguma máquina nas coalizões
fase adaptativa e criativa (roll out) presentes
urbanas do Brasil, ela está mais ligada
à execução de obras e à contratação de no novo desenvolvimentismo (Programa Mi-
serviços do que à captura de valorizações nha Casa Minha Vida – PMCMV, Programa de

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Jeroen Klink, Marcos Barcellos de Souza

Aceleração do Crescimento – PAC, valorização (2) Financeirização, reforma e contrarreforma


do salário-mínimo e do crédito, aperfeiçoamen- urbanas em tempos de austeridade fiscal
to dos mecanismos de coordenação interfede- A análise preliminar do processo de rees-
rativa, reforço do aparato institucional do Esta- truturação do arcabouço institucional referen-
do). Estamos, portanto, diante de um roll back te a planejamento e financiamento das áreas
do roll out (ibid.). metropolitanas brasileiras aponta para duas
A política de austeridade em andamento tendências. A primeira diz respeito à ausência
no Brasil não representa um momento cíclico, de fundos nacionais que projetam – por meio
mas um processo cumulativo de incapacita- de fórmulas preestabelecidas – o compartilha-
ção do Estado, que se mesclará, hibridizará e mento de recursos (não) tributários em bases
evoluirá a partir do choque com a paisagem transparentes e previsíveis para as áreas me-
geoinstitucional herdada e com os experimen- tropolitanas. A segunda é a emergência de um
tos regulatórios pró-mercado já implementa- padrão de financiamento mais flexível, marca-
dos – ou tentados –, assumindo características do pela presença de mecanismos como a par-
materiais e discursivas peculiares (Barcellos de ceria público-privada (tanto no desenho quanto
Souza, 2015). na execução de políticas urbanas) e a operação
No que tange mais especificamente urbana consorciada, entre outros exemplos. O
à austeridade urbana, a tendência é que se Estatuto da Metrópole, uma espécie de reesca-
produza uma forma particular e também so- lonamento do próprio Estatuto da Cidade para
cialmente regressiva de política escalar, “com a dimensão metropolitana, reforça esse cenário
as cidades na ponta” (Peck, 2012). A política marcado pela reestruturação regulatória em
de austeridade apresenta-se como uma “es- tempo de austeridade fiscal. A lei não prevê
tratégia de deslocamento do neoliberalismo um fundo metropolitano, que foi vetado no
(do mercado para o Estado, das elites para os processo de aprovação pela presidente Dilma
marginalizados e do governo federal para os Rousseff. As únicas fontes de recursos previstas
governos estaduais e municipais)” (ibid., 2013, pela lei apontam para o papel estratégico do
p. 19) e é sob esse ângulo que seus efeitos setor privado no financiamento da cidade via
deverão ser sentidos e estudados no contexto a constituição das Operações Urbanas Consor-
brasileiro. Portanto, as formas da austerida- ciadas interfederativas e as parcerias público-
de urbana e as “entradas e entraves” com os -privadas. De certa forma, a lei sinaliza novos
quais os capitais financeiros deparam-se na tempos a partir da transformação de um cená-
circulação pelo ambiente construído se entrela- rio de “recursos sem planejamento” (primeira
çam com o processo de reestruturação do arca- década de 2000) para um de “planejamento
bouço institucional que norteia o planejamento sem recursos” na metrópole. O cenário abre
urbano-metropolitano no País, que será objeto uma nova disputa entre os agentes (públicos/
do próximo ponto. privados; financeiros/não financeiros) sobre

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Financeirização: conceitos, experiências...

o fundo público. Na análise dessas disputas, para ampliar as pesquisas sobre a financeiriza-
ressaltamos dois aspectos para a agenda de ção urbana para além do prisma dos estudos
pesquisa sobre financeirização com relevância imobiliários-habitacionais.
política para o campo de planejamento urba- Em segundo lugar, a análise das opera-
no-metropolitano. ções urbanas consorciadas não apenas requer
Primeiramente, ao contrário do cenário recortar as consequências contraditórias sobre
internacional, não produzimos, entre nós, mui- as populações menos abastadas, mas também
tas pesquisas sobre as parcerias público-pri- o próprio processo constituinte dessas mesmas
vadas e as transformações no financiamento em termos do desenho físico (o tamanho da
das redes de infraestrutura urbana, como, por área de intervenção; o perfil dos investimentos
exemplo, o saneamento ambiental (Moreira, e dos bens públicos a serem providenciados,
2008). Isso surpreende, principalmente à luz como habitação de interesse social e áreas pú-
das rápidas transformações no arranjo institu- blicas) e financeiro (o preço mínimo dos certi-
cional e financeiro que ocorreram nos últimos ficados Cepac versus o custo das obras), assim
anos nesses setores. O caso da Região Metro- como a governança das operações via prefeitu-
politana de São Paulo é emblemático. No ano ra, empresa pública de capital misto ou outros
2002, a Companhia de Saneamento Básico do arranjos institucionais.
Estado de São Paulo (Sabesp) emitiu ações no Quais serão, então, os reais limites e as
mercado de capitais enquanto acirrou as dispu- potencialidades para o projeto de financeiri-
tas com as companhias municipais em torno da zação urbana avançar por meio de parcerias
tarifa de água cobrada e do tamanho da dívida público-privadas, OUCs e Grandes Projetos
dos municípios junto a ela. Em novembro do Urbanos, considerando as especificidades bra-
ano 2015, o serviço municipal de saneamento sileiras e as experiências mais recentes que
ambiental de Santo André (Semasa) apresen- vêm ocorrendo em um contexto de estagna-
tou requerimento de instauração de inquérito ção da macroeconomia? Por exemplo, o caso
administrativo para apuração de infrações de da OUC do Porto Maravilha no Rio de Janeiro,
ordem econômica junto ao Conselho Adminis- marcada pela captação do fundo semipúblico
trativo de Defesa Econômica (Cade), acusando via investimentos do FGTS, pela transferência
a Sabesp de lançar mão de práticas monopo- de ativos fundiários estatais e pela injeção
listas por meio de margin squeeze, isto é, de de recursos públicos adicionais para cobrir os
praticar preços abusivos juntos às companhias déficits associados ao descompasso entre as
municipais.22 As relações entre os acionistas e expectativas dos investidores e os resultados
o alto executivo numa empresa pública como a efetivados alcançados numa economia estag-
Sabesp, registrada na bolsa de valores de Nova nada, representa uma nova face de um velho
York, assim como as suas estratégias junto às padrão? (Pereira, 2016).
empresas municipais e à qualidade de serviços As contradições na OUC do Rio de Janei-
e às tarifas praticadas junto aos “principais”, ro também remetem à necessidade de mobi-
isto é, os consumidores de água na Região Me- lizar chaves teóricas complementares para ex-
tropolitana, abrem uma perspectiva promissora plorar o descompasso entre a “financeirização

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Jeroen Klink, Marcos Barcellos de Souza

ideal” e a “efetivamente existente”, que, no realidade urbana brasileira ainda está distante
caso brasileiro, parece recortado para capta- de ser realizado. Foram apresentadas três ver-
ção e capitalização de rendas futuras associa- tentes de pesquisa comumente associadas à fi-
das ao próprio fundo público (Marques, 2016). nanceirização (economia política, contabilida-
Compreender melhor as especificidades e con- de crítica e financeirização da vida quotidiana)
tradições dessas relações imbricadas entre Es- e indicados diálogos existentes e possíveis com
tado, planejamento urbano e capital financeiro base na literatura nacional. Apesar dos avan-
no caso específico do Brasil requer também ços significativos em várias frentes de pesqui-
apreender melhor modelos, metáforas, narra- sa, argumentou-se que o campo do planeja-
tivas e ideologias que circulam na comunidade mento urbano no Brasil teria muito a ganhar
profissional de planejadores urbanos, analistas com uma abordagem que tentasse um diálogo
e consultores financeiros, bancos de investi- mais aberto entre os principais conceitos apre-
mento e construtoras, entre outros agentes sentados. Foge do nosso objetivo, neste traba-
(Sanfelici e Halbert, 2015). Nesse sentido, re- lho, propor uma teoria sobre a financeirização
constituir as relações entre a moeda, o crédito, no capitalismo urbano periférico. Não obstan-
as finanças, os fluxos financeiros e a variedade te, parece óbvio que a financeirização no Brasil
de estratégias de mercantilização da cidade segue trajetórias particulares – em termos de
no contexto da Contrarreforma Urbana repre- volumes, processos, temporalidades, institui-
senta ferramenta essencial para reconstituir os ções, espacialidades, etc. E, mais importante
espaços da financeirização e apontar caminhos que buscar sua relevância em termos de dina-
para um planejamento urbano alternativo, mismo da securitização e dos mercados secun-
“subversivo” em relação à naturalização de dários, é entender sua articulação com o fundo
um projeto da cidade para o lucro e não para público e com a reestruturação da espacialida-
as pessoas (Brenner et al., 2011). de e escalaridade do Estado.
Nesse sentido, pretendemos propor uma
agenda de pesquisa ao sistematizar as princi-
À guisa de uma conclusão pais contribuições e inovações presentes na
literatura internacional e apontar pontos de en-
Este artigo partiu da premissa de que, embora trada com a realidade e os problemas urbano-
o debate sobre financeirização apresente al- -metropolitanos brasileiros, diante da comple-
guns sinais de esgotamento em certos círculos xidade de sua reestruturação setorial, espacial
acadêmicos no mundo anglo-saxão, seu po- e escalar e das contradições da sua reforma
tencial de exploração conceitual e empírica na urbana (incompleta).

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Financeirização: conceitos, experiências...

Jeroen Klink
Universidade Federal do ABC, Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. Santo
André, SP/Brasil.
jeroen.klink1963@gmail.com

Marcos Barcellos de Souza


Universidade Federal do ABC, Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. Santo
André, SP/Brasil.
marcos.barcellos@ufabc.edu.br

Notas
(1) Tradução nossa, do original: “[...] now is the me, […] to pause, breathe in, and carefully (re)
evaluate”.

(2) Tradução nossa, do original: “the increasing dominance of financial actors, markets, prac ces,
measurements and narratives, at various scales, resulting in a structural transformation of
economies, firms (including financial ins tu ons), states and households”.

(3) Seguindo Aalbers e Christophers (2014), adotamos três premissas para classificar a variedade de
abordagens dentro do campo da economia polí ca, quais sejam: (1) a prioridade para questões
relacionadas com a produção e circulação de valor e renda; (2) as relações entre classes sociais;
e (3) a ideologia.

(4) O mercado futuro centraliza contratos que proporcionam direito de compra e vendo no futuro de
mercadorias (commodi es, produtos agrícolas, moedas etc.) a preços pré-fixados no presente.

(5) As análises mais recentes sobre o processo de capital switching e a crise hipotécaria mostram
que o capital financeiro foi instrumental na cons tuição de relações imbricadas entre o circuito
secundário e o terciário (relacionado com a reprodução da vida via os planos de aposentadoria,
de previdência e de saúde, entre outros exemplos). A bolha imobiliária nos EUA desencadeou um
aumento de endividimento hipotecário da população mais vulnerável, que u lizou os recursos
emprestados para complementar planos privados de aposentadoria e de saúde (Aalbers, 2008).

(6) O campo da economia polí ca aqui discu do apresenta desdobramentos em diversas direções,
como nos debates sobre globalização e neoliberalismo, e não implica exclusivamente em
abordagens sobre a financeirização. Os conceitos mais comumente presentes nesta tradição
relevantes para este trabalho são: a existência de um regime de finance led growth, a
penetração do capital a juros e do ren smo em diversas esferas da vida econômica e social
ou a observância de lucros cada vez maiores através de canais financeiros em detrimento da
produção e do comércio.

(7) De início, já há aqui uma diferença estruturante em relação às economias desenvolvidas, em


que “a financeirização tende a se desenvolver através do endividamento privado e sob taxas
reduzidas de juros, pois é o mercado de capitais o lócus da revalorização ren sta” (Bruno et al.,
2011, p. 731).

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(8) O capitalismo de coupon pool é considerado um “não-sistema”, que se move rapidamente (Froud,
Johal e Williams, 2002).

(9) O microcrédito caracteriza-se pela ampliação dos mecanismos de acesso a crédito para segmentos
populacionais tradicionalmente excluídos desse mercado: trabalhadores autônomos informais,
sem possibilidade de dar garan a individual, sem conta bancária, etc.

(10) Tradução nossa, do original: “By ac vely managing risk, the inves ng individual can adequately
prepare for a future that is never secure and always rife with uncertainty. As a result, life itself
becomes an asset to be managed”.

(11) Nossas pesquisas em andamento, por exemplo, mostram que duas firmas concentram o mercado
para os estudos de viabilidade econômico-financeira nas operações urbanas consorciadas nas
Cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, São Bernardo do Campo, Belo Horizonte e Curi ba.

(12) Os modelos de fluxo de caixa descontado são amplamente disseminados e usados no mundo das
finanças corpora vas. São elaborados a par r da projeção de uma renda líquida futura associada
à u lização de um a vo ou propriedade durante determinado período. Esta projeção de renda
futura é capitalizada (descontada) para o presente, u lizando a taxa de juros (que incorpora um
prêmio de risco), para obter uma es ma va para o preço do a vo.

(13) Nesse sen do, a evolução da literatura crí ca sobre a crise subprime representa um exemplo
emblemá co do poten al de ar cular e territorializar as diversas vertentes crí cas.

(14) Tradução nossa, do original: “Studies of urban redevelopment would indeed gain something
with the financializa on literature, so long as the former con nue to a end not just to financial
capital but also to the material and ideological mechanisms through which property is con nually
reproduced as a financial asset”.

(15) Defendemos uma classificação como tema específico na literatura pela riqueza e diversidade
dos estudos de caso. Isso abre uma possibilidade de articular os diversos estudos de caso
com o debate sobre a variedade dos processos de reestruturação dos estados nacionais –
neoliberalização, etc. – (Barcellos de Souza, 2015).

(16) A capitalização significa trazer rendas e fluxos de caixa que ocorrerão no futuro para o presente.
Antecipar e precificar essas rendas (calculando o chamado valor presente líquido) permite usar
esses tulos como garan a para captar mais recursos.

(17) Tradução nossa, do original: “financial capital is dependent on the constant searching out, or the
construc on of, new asset streams, usually through a process of aggrega on, which then – and
only then – allows specula on to take place”.

(18) Tradução nossa, do original: “The intricacies of infrastructure concessions suggest we need to
broaden our lens to incorporate the local dimensions of financialisa on. Most notably, given the
extensive role of the local state in producing these markets, theorisa ons of financialisa on at
the local level must func on as, or draw from, state theory”.

(19) De acordo com as regras do TIF, a arrecadação tributária da área não é transferida para o fundo
geral do município, mas é obrigatoriamente reinvestida no perímetro da área. Se a receita
tributária efe vamente realizada não cobre o custo das intervenções da operação, os impostos
gerais arrecadados pelo município complementam o déficit da operação do TIF, reduzindo,
assim, os riscos para os inves dores.

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Financeirização: conceitos, experiências...

(20) Tradução nossa, do original: “The local government became increasingly dependent on realising
the yields from the project; the project programming became func onal to the urgent need to
unlock capital for realisa on, rather than being a tool to respond to par cular local needs. Local
zoning regula ons have not stopped the specula ve management of the land by the different
financial owners, but instead have allowed increases to the expected real estate output”.

(21) Tradução nossa, do original: “[…] Financializa on is a poli cally limited cri que insofar as it is
essen ally a cri que of what finance does , especially elsewhere -- of where its tentacles extend
to, of the cons tuencies thus enrolled and ensnared, of the ‘nonfinancial’ logics thus adulterated
-- and not of what finance is […].”

(22) Informação disponível no site do Cade: http://sei.cade.gov.br/sei/institucional/pesquisa/


processo_exibir.php?tzuQpynClZls_rHQcc3fMu8I2htJ1ahuckyi_C139hQjKmt586E2jVZ4mUCAE4
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Texto recebido em 10/dez/2016


Texto aprovado em 17/mar/2017

406 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 379-406, maio/ago 2017
Novas frentes de expansão do complexo
imobiliário-financeiro em São Paulo
New urban sprawl vectors of the real
estate-financial complex in São Paulo

Paula Freire Santoro


Raquel Rolnik

Resumo Abstract
Este artigo investiga a participação de agentes This article approaches the participation of global
globais no complexo imobiliário-financeiro em players in the real estate-financial complex in São
São Paulo, compreendidos como fundos de inves- Paulo. Global players are defined as investment
timento e empresas transnacionais especializadas funds and transnational companies specialized in
no setor imobiliário que adentram mercados finan- real estate that enter financial markets not only as
ceiros para diversificar ativos e mitigar riscos, e a way to diversify assets and mitigate risks, but also
também como forma de acessar localizações geo- to enable their action in geographical locations,
gráficas, criando frentes de expansão. Pretende creating sprawl vectors. The article intends to
desenvolver questões como: (1) Os agentes globais discuss the following questions: (1) Are global
e o capital internacional estão penetrando o com- players and international capital penetrating the
plexo imobiliário-financeiro em São Paulo? De que real estate-financial complex in São Paulo? How?
forma? (2) Como esse capital se espacializa? Ele (2) How is this capital spatialized? Does it create
cria novas frentes e produtos imobiliários, morfo- new urban sprawl vectors and real estate products,
logias e tipologias? Sua ação resulta em processos morphologies and typologies? Does its action
de reestruturação territorial? (3) Como sua lógica result in territorial restructuring processes? (3)
espacial dialoga com os processos de remoção e re- How does its spatial logic interact with involuntary
locação involuntária? Para responder tais questões, dispossession and relocation processes? To answer
mapeou ativos imobiliários, encontrando, dentre these questions, the article mapped global players’
outros, uma nova frente de expansão imobiliária real estate assets and found a new urban sprawl
junto ao Rodoanel. vector at the Rodoanel.
Palavras-chave: complexo imobiliário-financeiro; Keywords: real estate-financial complex;
fundos de investimento imobiliário; companhias real estate investment funds; global real
imobiliárias globais; capital internacional; expan- estate companies; international capital; urban
são urbana. sprawl.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 407-431, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3903
Paula Freire Santoro, Raquel Rolnik

impondo sua lógica sobre o destino dos lugares,


Introdução: agentes globais
ao submeterem as definições das formas de uso
na constituição do complexo e características de ocupação às necessidades
imobiliário financeiro de rentabilidade desses ativos (Rolnik, 2015).
O complexo imobiliário-financeiro tem
No contexto político-econômico em que se articulado essa interdependência entre o se-
insere o momento atual, definido por Harvey tor imobiliário, as finanças e o Estado, espa-
(2014) como a era da hegemonia das finanças, lhando-se por diversas frentes de expansão
do capital fictício e da supremacia da extração imobiliária pelo mundo. Em algumas dessas
de renda sobre o capital produtivo, a finan- regiões, já pesquisadas por Aalbers, essa
ceirização, ou seja, “o domínio crescente dos articulação conta com a ação dos chamados
atores financeiros, mercados, práticas, medidas global players – ou agentes globais: fundos
e narrativas, em várias escalas, resultando em de investimento e empresas imobiliárias trans-
uma transformação estrutural das economias, nacionais que adentram mercados financeiros
empresas (incluindo instituições financeiras), como forma de diversificar ativos e mitigar
Estados e famílias” (Aalbers, 2015), tem to- riscos, mas também para penetrar em localiza-
mado um papel central também nos processos ções geográficas onde não têm presença, ca-
de reestruturação territorial. Para analisar esse pilarizando-se territorialmente e submetendo a
imbricamento entre as esferas da financeiri- produção das cidades a sua lógica financeiriza-
zação e da transformação do espaço, diversos da (Aalbers, 2014).
trabalhos têm destacado a importância de uma Entretanto, não é evidente como essa
leitura associada do circuito financeiro ao imo- dinâmica se dá no Brasil, e tampouco o seu
biliário, constituindo o que Aalbers define como papel nos processos de reestruturação espa-
“Complexo Imobiliário-Financeiro”1 (Harvey, cial em curso no País. Surgem, então, algumas
1989; Aalbers e Fernandes, 2016; Rolnik, 2015; questões que modelam as análises que se es-
Fix, 2007; entre outros). tabelecerão ao longo dos próximos itens deste
Como parte desse processo, no Brasil e artigo: os global players estão penetrando no
no mundo assistiu-se a uma veloz reestrutura- complexo imobiliário-financeiro brasileiro e, es-
ção do Estado e das formas de regulação dos pecialmente, em São Paulo? Se sim, quem são
mercados, envolvendo a criação e o aperfeiçoa- e como se dá essa entrada? Como esse capital
mento de vários instrumentos urbanísticos e se espacializa? Cria novas frentes de expansão
financeiros, voltados para aproximar e ampliar imobiliárias? Cria novos produtos imobiliários,
as conexões entre capital financeiro e capital com tipologias e morfologias específicas? Co-
imobiliário, conquistando, inclusive, territórios mo a sua lógica espacial dialoga com proces-
em cidades sob governos de “esquerda”, e sos de remoção e relocação involuntária?

408 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 407-431, maio/ago 2017
Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo

fundos de pensão, para empreendimentos imo-


Financeirização no Brasil:
biliários, tornando-se, apenas depois, alvo de
marco regulatório interesse de outros investidores cujas práticas
e especificidades se repercutem na dinâmica territorial urbana
(Sanfelici, 2017; Fix, 2009; Botelho, 2007).
A conexão entre capital financeiro e imobiliário ● A criação do Sistema Financeiro Imobiliá-
no Brasil, e principalmente em São Paulo, foi rio (SFI), em 1997, que permitiu a participa-
se estruturando no País a partir da década de ção de instituições financeiras nas operações
1990, o que coincidiu com a implementação de de financiamento de imóveis, oferecendo, ao
instrumentos urbanísticos que deram subsídio investidor, a garantia da alienação fiduciária
para que a ação dos investidores nesse ramo e a possibilidade de captação de investidores
se tornasse interessante em algumas porções institucionais, como fundos de pensão e ban-
do território, tendo em vista as perspectivas de cos de investimento, e também do mercado se-
rentabilidade que movem o mercado de capi- cundário de recebíveis imobiliários, através de
tais. Esses instrumentos urbanísticos serão re- instrumentos financeiros “inovadores”, como
tomados mais adiante neste artigo. Entretanto, o Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRIs),
alguns marcos regulatórios foram essenciais as Letras de Crédito Imobiliário (LCIs) (Royer,
para a constituição de ativos imobiliário-finan- 2014; Eloy, 2015);
ceiros e de estruturas que articulam esses ati- ● A reorganização, na década de 1990, dos
vos com o capital internacional, como fundos fundos de pensão, aumentando o percentual
de investimento imobiliários (FIIs), bem como de recursos que poderiam ser investidos no
empresas que agenciam esse mercado de ati- mercado de capitais imobiliários, em especial
vos – como, por exemplo, as que administram fundos imobiliários, debêntures e instrumen-
os FIIs ou as que compram e revendem Certi- tos financeirizados, como recebíveis imobiliá-
ficados de Potencial Adicional de Construção rios, entre outros. Em São Paulo, grande parte
(Cepacs) – em uma criação paulatina de mer- das pesquisas que mostraram a presença dos
cado especializado nesses produtos. Para com- fundos de pensão financiando a transforma-
preender o objeto dessa frente de pesquisa, ou ção urbana analisa as mudanças urbanas ao
seja, os global players e sua ação no território, longo do rio Pinheiros, da região no entorno
foi necessário adentrar esse marco regulatório da Avenida Luis Carlos Berrini (Brooklin, zona
e, especialmente, os pontos ligados à criação Sul de São Paulo), determinantes para o boom
dos ativos imobiliário-financeiros, pautados de torres corporativas, shoppings e hotéis. No-
nos itens abaixo: bre (2000) afirma que a entrada dos fundos de
● a criação dos Fundos de Investimento Imo- pensão no mercado imobiliário paulistano e a
biliários (FIIs), em1993, que foi seguida de uma mudança na estratégia das empresas – que, em
série de instruções da Comissão de Valores vez de construírem e imobilizarem suas sedes
Mobiliários (CVM) para sua regulamentação. próprias, passaram a ser locatárias de lajes ou
Os FIIs foram utilizados, inicialmente, com o edifícios de contratos de longa duração – fo-
objetivo de captar recursos, principalmente dos ram determinantes para esse boom. Segundo

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 407-431, maio/ago 2017 409
Paula Freire Santoro, Raquel Rolnik

o autor, entre 1984 e 1999, foram lançados securitização do crédito habitacional, e a finan-
mais de 800 mil metros quadrados de edifícios ceirização mais próxima à que ocorre nos paí-
corporativos, com forte participação do Previ, ses de capitalismo avançado ficou concentrada
Funcef, Sistel e outros fundos de pensão (ibid., no setor imobiliário não residencial. Entretanto,
p. 523). A presença dos fundos de pensão nes- se, por um lado, isso fez com que se evitasse o
ses edifícios foi possibilitada em face das alte- estabelecimento de situações de alto risco, co-
rações de regulação destes que inicialmente mo a que gerou as bolhas hipotecárias da habi-
viabilizaram e ampliaram a participação dos tação dos EUA e da Espanha, por outro, imple-
fundos em ativos imobiliários. Vale lembrar, mentou-se um modelo conservador para a pro-
entretanto, que, embora a ação dos fundos de dução habitacional, no qual os grandes players
pensão tenha sido muito significativa durante da financeirização não foram agentes privados,
a década de 1990, nos anos 2000 ela foi se re- mas sim os fundos de pensão e o FGTS.
traindo, segundo Botelho (2007), como reflexo Em decorrência da adoção desse mo-
de uma política federal de captar recursos des- delo, foram os fundos de pensão e os para-
ses agentes para investimento em infraestru- estatais que assumiram os riscos dos inves-
tura, que limitou as porcentagens disponíveis timentos: como reflexo da crise econômica
para a ação em bens imobiliários. atual, os fundos de pensão fecharam o ano de
● A reorganização do Fundo de Garantia por 2015 com um aumento de 151% no déficit e
Tempo de Serviços – FGTS nos anos 2000 mos- um rombo de 77,8 bilhões de reais, segundo
trou a tendência de investir crescentemente em a Previc (Superintendência Nacional de Pre-
outras aplicações – títulos da dívida pública, vidência Complementar). Mais de 60% desse
FIIs, debêntures, CRIs e, notadamente, os em- déficit concentra-se em três grandes fundos:
préstimos via FI-FGTS –, ampliando os recursos Previ – fundo dos funcionários do Banco do
utilizados com títulos mobiliários. No entanto, Brasil, Petros – Petrobrás – e Funcef – Caixa
Rolnik (2015) procura mostrar que a destinação Econômica Federal ( O Estado de S.Paulo ,
de seus recursos – que esteve historicamente 2016); e todos eles se encontram sob inves-
associada aos interesses estatais – voltou-se, tigação, pois há irregularidades na ação de
nos anos 2000, assim como os fundos de pen- empresas vinculadas a eles, a exemplo da Se-
são, para os grandes projetos de infraestrutura, te Brasil, criada para fornecer sondas para a
viabilizados através do Fundo de Investimento Petrobrás e hoje à beira de pedir recuperação
do FGTS – FI-FGTS, criado em 2007, atraindo, judicial em função das investigações.
inclusive, os recursos que seriam utilizados em O cenário repete-se com os investimentos
outros títulos mobiliários. de infraestrutura do FGTS que, nesse momento
A estrutura financeira que se constituiu a de recessão econômica, iniciam um movimen-
partir desses eventos ficou menos exposta às to de retração, o qual se agrava em função dos
oscilações do mercado financeiro especulativo escândalos de corrupção na contratação dessas
internacional se comparada a outros países, obras, uma vez que as empreiteiras envolvidas
já que, embora estivessem disponíveis ins- estão listadas na Operação Lava Jato, investi-
trumentos como os CRIs, não se avançou na gação em andamento pela Polícia Federal do

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Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo

País que vem deflagrando, desde 2014, diversos grandes fundos de pensão e no FGTS, a ação
esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro dos global players passa atualmente por um
envolvendo as maiores empreiteiras brasileiras processo de expansão e de diversificação de
e empresários – como OAS, Galvão Engenharia, seus eixos de atuação, já que, com a crise eco-
Engevix, Camargo Correa e UTC, Odebrecht e nômica, têm ganhado um espaço que antes era
Andrade Gutierrez –, diversas empresas públi- pouco ocupado pela esfera privada. Levanta-
cas – dentre elas destacam-se a Petrobrás, a mos também a hipótese de que eles penetrem
Eletronuclear, entre outras –, e partidos políti- o mercado imobiliário de uso não residencial,
cos – como o PT, PP, PMDB, PSDB, entre outros. através do qual a financeirização já tem gerado
Contudo, a partir do momento em que impacto nos preços da terra e nas condições de
os “principais motores” da financeirização moradia das cidades. Entretanto, na introdução
brasileira passam a enfrentar um esgotamen- deste artigo, uma das questões norteadores
to de recursos e têm suas atividades limitadas da pesquisa que estavam colocadas apontava
diante dos processos de investigação que os para a necessidade de compreender como se
envolvem, ações e empresas vinculadas a dá essa entrada dos agentes globais no com-
eles têm seus valores reduzidos, o que pas- plexo imobiliário-financeiro de São Paulo. Ao
sa a atrair investidores internacionais que nos aproximarmos dessa questão, no entanto,
compram os ativos antes que seja retomado deparamo-nos com uma série de dificuldades
o crescimento nos preços. Um exemplo rele- para desvendar os caminhos dos investimentos,
vante do uso desse tipo de estratégia é o da volume de recursos e beneficiários finais. Ainda
transnacional Blackstone, que tem pautado assim, foi possível elencar alguns dos mecanis-
seu crescimento na compra de pacotes de “pe- mos que têm sido utilizados pelos investidores
chinchas” imobiliárias em vários países e abriu para trazer capital internacional às transações
um escritório em São Paulo em 2015 (Portal imobiliárias no Brasil, compreender seu funcio-
Uol Economia, 2015) no auge da crise econô- namento e o porquê de serem tão difíceis as
mica do Brasil. O que ocorre é que o risco mais investigações mais profundas a seu respeito.
alto inerente a esses ativos vem acompanhado
de uma perspectiva de rentabilidades maiores
ao longo do tempo, o que pode se colocar co- Capital internacional comprou ações
mo uma ótima oportunidade para atores que das empresas imobiliárias quando
possuem um grande volume de recursos dis- da oferta pública inicial – IPO
poníveis para investimento.
No desenvolvimento urbano, vários autores
descrevem a diversificação das fontes de re-
Desafios “to follow the money” cursos disponíveis para seu financiamento, que
se expandiram de forma a abarcar recursos
Vimos, na seção anterior, que, embora a finan- obtidos no âmbito financeiro, como foi o caso
ceirização no Brasil tenha estado, ao longo das da abertura de capital de empresas construto-
últimas décadas, apoiada principalmente em ras, conseguindo recursos nacionais e globais

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 407-431, maio/ago 2017 411
Paula Freire Santoro, Raquel Rolnik

quando das ofertas públicas na bolsa de valo- e modalidades financeiras, de acordo com as
res pela primeira vez, em um processo conheci- normas estabelecidas pelo Conselho Monetário
do como Initial Public Offering – IPOs (Shimbo, Nacional – CMN, que determinam, por exem-
2010, 2012; Sanfelici e Halbert, 2015). É impor- plo, que o investidor estrangeiro nomeie uma
tante destacar que essa forma de financeiriza- instituição financeira autorizada a funcionar
ção tem sido vista como grande alternativa pa- como seu representante fiscal, e esta será a
ra captar recursos no setor habitacional (Royer, responsável pelo cumprimento das obrigações
2014; Rolnik, 2015; Shimbo, 2010, 2012; Rocha tributárias decorrentes de suas operações.
Lima, 2012), que vinha apresentando uma li- Em relação ao Imposto de Renda (IR), o
gação mais tímida com outros mecanismos regime tributário é favorável para os investido-
de financeirização, o que transmuta o caráter res estrangeiros que realizam operações finan-
da habitação de bem social em direção ao de ceiro-imobiliárias no Brasil. Estão isentos de
mercadoria e ativo financeiro (Rolnik, 2015). A ganhos de capital – operações realizadas em
captação de valores em 2012, segundo Rocha bolsas de valores e nas operações com ativos
Lima, representava “pelo valor do patrimônio financeiros, e, nos casos em que operam com
líquido, quase 8 “gafisas”, 4,5 “cyrelas” ou ativos que estão sujeitos ao pagamento de IR,
mais de 20 “viver/inpar” (Rocha Lima, 2012, obedecem às normas aplicáveis aos investido-
p. 3). Alguns autores apontam que essa estraté- res brasileiros ou, ainda, aplicações financeiras
gia não funcionou – seus empreendedores des- em cotas de fundos de investimento não estão
concentraram decisões, caindo em descrédito sujeitas a IR.
quanto à sua capacidade de governança, força- Um dos primeiros desafios para mapear
ram margens não realizadas, não fizeram boas o fluxo do capital internacional está no fato de
análises de risco, geraram VGVs sem suporte estes adentrarem mercado brasileiro geralmen-
de absorção do mercado – e, após 2011, as te a partir dos bancos, cujas regras de sigilo
empresas perderam valor, tiveram até mesmo globais impedem a identificação e a quantifi-
prejuízo ao não conseguirem operacionalizar cação dos recursos. O Chinese Wall é o termo
o crescimento em expansão territorial e novos emprestado da intransponível Muralha da Chi-
produtos (segmento popular, por exemplo) que na, utilizado pelos mercados financeiros para
os investimentos exigiram (Rocha Lima, 2012; o mecanismo que protege informações privi-
Sanfelici e Halbert, 2015). legiadas em bancos de investimentos e outras
instituições do setor, evitando a circulação de
informações estratégicas e confidenciais que
Entrada se dá através dos bancos possam gerar conflito de interesse. No Brasil,
e fundos de investimentos assim como em outros países, é considerado
em participações protegidas crime o uso indevido de informações não pú-
pelo sigilo bancário blicas para conseguir vantagem no mercado
(insider trading), no entanto, é ingênuo pensar
No Brasil, investidores estrangeiros podem apli- que os gestores de investimento das empresas
car seus recursos em quaisquer instrumentos (asset managers) não se aproveitem dessas

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Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo

informações privilegiadas para definir escolhas numa SPE ela é tabelada e calculada com base
e oportunidades para seus clientes. num lucro presumido de 8%. A vantagem para
Na esfera da entrada do capital inter- o investidor nessa relação está no fato de o lu-
nacional a partir dos bancos, um instrumento cro real geralmente atingir o patamar dos 20%,
comumente utilizado é a formação de FIPs ou seja, pagam-se tributos com base numa por-
(Fundos de Investimento em Participações) com centagem que equivale a apenas 40% do que
investidores estrangeiros, que têm como objeti- de fato deveria ser pago, caso se utilizasse co-
vo principal o investimento em empresas tan- mo referência o lucro real (Rocha Lima, 2016).
to abertas quanto fechadas, nos mais diversos b) Ações em fundos hedge
setores. Uma das vantagens do FIP para o in- Os “fundos hedge” fornecem alto risco
vestidor é sua flexibilidade, tendo em vista que ao investidor e, em consequência desse alto
é permitido pela CVM (Comissão de Valores risco, um alto retorno. A situação de crise fiscal
Mobiliários) que a maioria das regras para seu do Estado, associada à crise político-financeira
funcionamento seja estabelecida no próprio re- mais recente no País, com refreamento e dete-
gulamento do fundo, o que inclui o patrimônio rioração dos negócios imobiliários internos, e
mínimo, a amortização, o prazo do fundo e as a desvalorização cambial têm dado sinais de
políticas de investimento (Campos, 2003), ga- maior abertura à entrada de capitais interna-
rantindo a diversificação de ativos. Essa flexibi- cionais já identificados como global players em
lidade permite que o FIP incida na produção de outras pesquisas pelo mundo, como já foi cita-
transformação no espaço indiretamente, seja do anteriormente neste artigo. Nesse caso, a
pelo investimento em cotas de outros fundos atração de investidores internacionais alinhar-
ligados ao mercado imobiliário (o que também -se-ia ao que Fernandez (2015) coloca como
é permitido por sua regulação), seja pela via do sendo intervenções pós-crise.
investimento em empresas que atuam nesse Esse tipo de ação geralmente provém de
ramo, segundo o processo descrito abaixo: grandes fontes de recursos, que estão aptas
a) FIPs compõem Sociedades de Propósito a lidar com os grandes riscos. Grandes fun-
Específico – SPEs dos imobiliários e empresas como Blackstone,
As SPEs são sociedades empresárias que Exxpon e Top Capital, visitam o País em busca
possibilitam a desvinculação de determina- de oportunidades imobiliárias que permitam
da atividade das ações de uma empresa – ou comprar barato, aproveitando-se do período
grupo de empresas – num sentido de evitar a de economia fraca, para lucrar quando o ciclo
contaminação dos outros ativos, caso aquela de retomada chegar. Blackstone, por exemplo,
operação específica não obtenha sucesso, de já investiu US$ bilhões no Brasil em 2015, ad-
modo que investidores e compradores fiquem quirindo alguns ativos da BR Properties, braço
protegidos dos riscos. Esse caráter das SPEs já de um dos bancos cujo dono esteve envolvido
as torna muito atraentes para a ação dos FIPs, em escândalo político como Lava Jato, envol-
o que é potencializado por outra vantagem tri- vendo corrupção entre Estado e empreiteiras.
butária: numa empresa comum, a tributação Muitas dessas grandes empresas têm um pla-
acontece com base em seu lucro real, enquanto no de investimento em que um percentual

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 407-431, maio/ago 2017 413
Paula Freire Santoro, Raquel Rolnik

muito baixo, cerca de 3%, dos recursos são têm correspondido principalmente a títulos de
destinados a economias emergentes, dos financiamento de edificações comerciais, mais
quais 50% geralmente são aplicados no Bra- rentáveis que os habitacionais. Os fundos de
sil (Rocha Lima, 2016). Por tratar-se de uma investimento imobiliário, compostos pela divi-
porcentagem pequena em relação ao total de são de cotas negociáveis na Bolsa de Valores,
ativos da empresa, é vantajoso que se invis- estão entre os primeiros a captar recursos nes-
ta em ações de alto risco, já que se ampliam se mercado.
as possibilidades de obtenção de lucro, e não Os principais motivos pelos quais pode
ocorre grande perda, caso a rentabilidade não estar ocorrendo uma entrada de capital inter-
atinja os níveis esperados. nacional via FIIs se aproxima aos dos FIPs: há
c) Compras de cotas em FIIs – Fundos de in- uma série de vantagens tributárias e flexibili-
vestimento imobiliário zações capazes de potencializar a rentabili-
Uma outra forma pela qual pode se dar dade dos ativos inseridos neles, como a isen-
a entrada de capital internacional no comple- ção da cobrança de impostos de renda para
xo imobiliário-financeiro do Brasil é a compra pessoas físicas sobre seus bens líquidos (lei
de cotas dos FIIs. Como já visto nas análises n. 11.196/2005). Isenções sobre o imposto de
do marco regulatório, os FIIs foram criados na renda são uma característica global dos fundos
década de 1990 como ferramenta para atrair de investimento imobiliário e produtos finan-
recursos, com destaque para os de fundos de ceiros semelhantes, associada à possibilidade
pensão, como forma de substituição ao crédi- de competição entre modelos de investimento
to inexistente naquele período para a produ- por investimentos internacionais (Rocha Lima,
ção de edifícios comerciais (Fix, 2009). Com 2016). No modelo brasileiro, essa característica
o tempo, porém, a sua forma de condomínio explica o fato de 88,1% dos investidores des-
fechado de investimento, com a possibilidade ses fundos serem pessoas físicas, uma vez que
de organização em cotas a custos acessíveis ao a regulação brasileira dá descontos tributários
pequeno e médio investidor fizeram com que neste caso (Uqbar, 2016). Outro ponto central
os FIIs conformassem uma boa ferramenta pa- são facilidade e velocidade da transação de ati-
ra que se pudesse juntar recursos de diversas vos, que, num processo de venda comum, leva
fontes menores com o intuito de se atingir um cerca de 60 a 90 dias e consome entre 7 e 10%
bem imobiliário de maior expressividade do do valor do imóvel e, no modelo do fundo, se-
que seria possível caso aquelas fontes atuas- gue a alta velocidade do mercado de ações e
sem sozinhas (Rocha Lima, 2011). Esse modelo consome apenas 0,5% do valor do imóvel, gra-
dos FIIs foi responsável pela utilização das pri- ças a isenções nos impostos e economias nos
meiras emissões de recebíveis imobiliários. In- processos burocráticos de transferência (ibid.).
clusive, por isso, o modelo financeiro brasileiro Embora os FIIs brasileiros tenham um
é tido por Royer (2014) e Fix (2009) como um funcionamento ainda restrito quando com-
modelo ainda simples, melhor dizendo, mais parado aos internacionais, 2 sua relevância
restrito, uma vez que os recursos obtidos com crescente na transformação do espaço torna-
a emissão primária de recebíveis imobiliários -se perceptível quando se analisam os dados

414 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 407-431, maio/ago 2017
Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo

da Comissão de Valores Mobiliários que de- alguns dos modos de entrada descritos acima
monstram que seu patrimônio total aumen- permitem que se localizem os bens imobiliários
tou de 2,4 bilhões em 2005 para 57 bilhões que possivelmente estão ligados a ele. Desse
em 2014, representando um crescimento de modo, destacaram-se a atuação de empresas
mais de 2.000% num intervalo de apenas 9 globais especializadas no mercado imobiliário
anos (Botelho, 2007, pp. 169; Rolnik, 2015, e os fundos de investimento imobiliário. Expli-
pp. 272), e, portanto, é possível considerar a ca-se: muitas das empresas globais disponibi-
hipótese de que parte desse grande aumento lizam portfólios abertos de suas propriedades,
se deva à presença de agentes globais na rea- no intuito de atrair investidores com os atribu-
lização dos investimentos. tos dos ativos oferecidos. Já os fundos de in-
vestimento imobiliário são obrigados a seguir
vários parâmetros de transparência em seu ca-
dastro na CVM e para sua inserção na Bovespa,
Pesquisa exploratória sobre o que facilita o acesso aos dados de seus ati-
a entrada de agentes globais vos. O mesmo não ocorre com os FIPs, que, por
a partir de duas frentes: não investirem diretamente em bens imobiliá-
mapeamento e tipificação rios e sim em empresas, acabam tendo sua ati-
dos ativos de FIIs listados vidade desvinculada do espaço em uma primei-
ra análise, sendo necessário que se descubram
pela CVM e das empresas as empresas em que investem para chegar nos
globais com atuação produtos, o que é uma tarefa de grande com-
no mercado imobiliário plexidade e que não necessariamente atingiria
os objetivos de territorialização esperados.
Tendo em mente essas diversas formas de en- Foram definidas, assim, as duas frentes
trada do capital internacional nos processos de exploratórias da pesquisa por meio das quais
transformação urbana, e as limitações quanto se produziu o mapeamento que dará subsídio
às possibilidades de acesso à informação em às leituras finais deste artigo. O percurso meto-
cada uma delas, foi necessário realizar uma dológico da realização do mapeamento a partir
escolha na pesquisa para dar seguimento aos de cada uma delas será narrado a seguir.
seus objetivos. Desenhou-se um segundo eixo
norteador que procurou compreender quais as
frentes de expansão criadas pela atuação dos Mapeamento via empresas globais
agentes globais e quais seriam os produtos,
as tipologias e as morfologias geradas nessas Diferentemente dos FIIs, as empresas globais
frentes. Para realizar essa análise, portanto, era que atuam no mercado imobiliário não seguem
imprescindível analisar a inserção desses pro- um padrão bem definido por um marco regu-
dutos no território. latório no Brasil, e tampouco têm uma organi-
Ainda que fosse impossível quantificar zação uniforme entre si. Talvez essa seja uma
e localizar a aplicação do capital estrangeiro, das razões que fazem com que elas também

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Paula Freire Santoro, Raquel Rolnik

não componham as análises realizadas por ins- megaempreendimento multiuso inserido na


tituições especializadas no mercado financeiro, OUC Água Branca, em São Paulo. Sabe-se que
como a Uqbar, que tem produzido relatórios o Hines comprou uma participação de 17,5%
anuais sobre a ação de entidades desse tipo no capital social do Jardim das Perdizes, en-
no Brasil, fornecendo dados importantes para tretanto ele não aparece em seu portfólio. Isso
a seleção de agentes mais relevantes. Na au- pode, hipoteticamente, decorrer do dinamismo
sência desses materiais, e também de fontes da operação, eventualmente as cotas já foram
oficiais de informação, como os dados que es- revendidas, o dado pode estar desatualizado
tão disponíveis na CVM a respeito dos FIIs, a ou, ainda, pode consistir em uma estratégia da
escolha de quais empresas mapear se baseou empresa de ocultar alguns dados;
numa pesquisa em sites de notícias sobre gran- ● Blackstone – EUA (1985) + Pátria (tornou-
des transações que as envolviam. -se parceira em 2010) – A ação da Blackstone
A partir dessa pré-seleção, chegou-se no Brasil é recente e tem enfrentado um cres-
a dez nomes: Hines, Blackstone, Brookfield, cimento maior nos tempos de crise econômi-
Global Logistic Properties, Tishman Speyer ca, com o surgimento de oportunidades de
Properties, Cushman & Wakefield Properties, investimento a baixos valores. A atuação da
Exxon Mobil. Top Capital, Goodman e GP Blackstone em grupo com a Pátria se aproxi-
Investments. Restava, então, apurar quais des- ma bastante à do Hines: o portfólio é composto
tas mantinham dados de portfólio abertos, de por propriedades com usos diversificados, e os
modo que se pudesse mapear suas proprieda- imóveis também se dividem entre várias cate-
des. Essa segunda seleção chegou a um con- gorias de ação por parte do fundo: Buy/Lease,
junto de seis empresas, com uma diversidade Landbank, Built-to-suit, Sale & Leaseback,
de comportamentos significativa: Acquisition, etc. A Blackstone é conhecida por
● Hines – EUA (1957)/ BR (1998) – A Hines se ligar a diversas empresas parceiras, e a Pá-
é uma empresa do tipo full real-estate, ou se- tria é apenas uma das que mantêm o acesso
ja, que desenvolve uma série de relações di- a seu portfólio público. Há a possibilidade de
ferentes com os imóveis: em cada item de seu mais imóveis – de que não é possível ter co-
portfólio ela pode estar colocada como proprie- nhecimento – estarem vinculados de algum
tário, desenvolvedor, gestor de propriedade, modo à Blackstone em São Paulo;
gestor de ativos, gestor de instalações, gestor ● Brookfield – EUA (1788) / BR (2000) – A
de desenvolvimento, comprador, etc. É impor- Brookfield é uma das maiores e mais antigas
tante observar que ela atua em muitos setores empresas no mercado imobiliário global. No
diferentes, no que se refere tanto ao uso quan- Brasil é composta por vários fundos de inves-
to ao público para que o imóvel se destina. Não timento, cada um deles especializado em um
se sabe, entretanto, se há alguma estrutura de setor. Há um fundo para shopping centers ,
fundos ligada a ela. Durante o levantamento um para escritórios, um para residências, um
nos artigos jornalísticos, uma informação cen- para projetos de infraestrutura e um para in-
tral sobre a Hines foi a da compra de cotas da vestimentos em energia. Essa estratégia de
PDG e da Tecnisa no Jardim das Perdizes, um compartimentação facilita a manipulação das

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Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo

informações disponíveis sobre a atuação da incluindo a construção e incorporação, mas sua


empresa: alguns dos fundos especializados têm ligação com mecanismos financeiros como fun-
seus portfólios liberados, outros só demarcam dos imobiliários ou de private equity é tardia,
que há propriedades, mas não as localizam. iniciando-se apenas no fim da década de 2000.
Ao conter, além dos investimentos imobiliá- Diferentemente dos demais portfólios visitados,
rios, aplicações em infraestrutura e energia, a em que havia maior diversificação de usos, a
Brookfield constitui-se como uma das poucas concentração das propriedades da Cushman
empresas efetivamente privadas de caráter es- & Wakefield dá-se primordialmente no campo
sencialmente financeiro que alocam grande vo- dos escritórios, e outra característica peculiar
lume de recursos para esses setores no Brasil; é o fato de elas serem muito mais fragmen-
● Global Logistic Properties – Singapore (2003) tadas: enquanto as demais empresas pesqui-
/ BR (2012) – A GLP é uma empresa especializa- sadas comumente apresentavam no portfólio
da em galpões logísticos e industriais, que tam- conjuntos inteiros, blocos ou até conjuntos de
bém é composta por muitos fundos, separados andares, muitas das propriedades da Cushman
por país e forma de atuação. Os fundos atuantes & Wakefield são lajes soltas, embora o número
no Brasil são o GLP Brazil Development Partners de empreendimentos seja muito maior que o
e o GLP Brazil Income Partners I e II; das demais.
● Tishman Speyer Properties – EUA (1978) / BR Tendo mapeado os portfólios de todas
(2000s) – Ao observar o portfólio da Tishman essas empresas, o resultado foi o mapa (Figura
Speyer, fica nítido que a empresa se foca no 1), que cobre toda a Região Metropolitana de
mercado de propriedades de alto padrão, sejam São Paulo. Todavia, pelas limitações metodoló-
elas residências de luxo ou torres corporativas gicas descritas anteriormente, o mapeamento
de alta tecnologia. Não está tão claro, porém, não constitui uma leitura fiel quanto à quantifi-
se há vários tipos de relação entre essa empre- cação dos ativos e, tampouco, é completamen-
sa e os imóveis, e só há uma articulação entre te precisa sua distribuição em cada uso, de sor-
a criação de fundos e relações de propriedade. te que seu objetivo principal seja a leitura dos
Um ponto relevante da atuação da Tishman padrões de distribuição ao longo do território.
Speyer é o investimento em residências, que
dificilmente são vistas como ativo interessan-
te no Brasil por estruturas fincanceirizadas, a Mapeamento via FIIs
exemplo dos FIIs. Outra questão central é o fa-
to de vir ocorrendo, a partir da década de 2000, O mapeamento via FIIs deu-se através de um
um grande enfoque dessa empresa no investi- processo mais simples, já que havia uma dis-
mento em países emergentes, como a Índia e a ponibilidade de dados com os quais as empre-
China, além do Brasil. sas globais não contavam. O primeiro passo
● Cushman & Wakefield Properties – R.U. para esse mapeamento foi acessar e listar os
(1820) / BR (2000s) – A Cushman & Wakefield FIIs inscritos na Bovespa e na CVM. Depois,
também é uma empresa muito antiga no ramo cruzou-se a tabela de proprietários e de en-
imobiliário com atuação em diversos setores, dereços disponibilizada a partir dos cadastros

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Figura 1 – Ativos imobiliários ligados a empresas globais

Fonte: Equipe ObservaSP.

do IPTU na cidade de São Paulo com os FIIs frente. Outro aspecto importante é o fato de
listados durante a primeira etapa, a fim de essa segunda frente abranger apenas os limi-
obter pontos correspondentes às proprieda- tes municipais de São Paulo, pois não há como
des dos fundos. acessar os dados de IPTU dos demais municí-
Com isso, obteve-se um mapa que é fiel à pios que compõem a RMSP. Fica destacada aí a
distribuição dos fundos até na indicação quan- importância de um sistema de transparência e
titativa de áreas de laje e usos de seus imóveis. acesso a informação para que pesquisas nesse
Contudo, ao realizar essa análise em grande âmbito consigam se efetivar.
escala, perdeu-se a possibilidade de tipificar Unindo os pontos das duas frentes ex-
todos os produtos encontrados, e o enfoque ploratórias, obteve-se um mapa que agrega lei-
dessa segunda frente, por isso, esteve mais turas de concentração e tipificação dos ativos
relacionado à aproximação a alguns pontos mapeados ao longo do território. Na próxima
específicos, com destaque para os que não se seção, serão reunidas algumas das interpreta-
encaixavam em nenhuma das categorias de ti- ções do grupo de pesquisa acerca dos resulta-
pificação definidas com as leituras da primeira dos finais do mapeamento.

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Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo

Figura 2 – Ativos imobiliários ligados à Flls

Fonte: Equipe ObservaSP.

Leitura dos dados: -suit (principalmente para atividades de logís-


diversidade de tipos de ativos tica). Os dados do Anuário Imobiliário Uqbar,
de 2016 (ver Gráfico 1) corroboram com os
Olhando para o conjunto de pontos mapeados, resultados da pesquisa, uma vez que mostra o
ficou evidente a diversidade dos tipos de ati- crescimento de outros tipos de ativos no âmbi-
vos. Contrariando a noção de que os agentes fi- to dos FIIs.
nanceiros só atuam nas frentes tradicionais de Agrupamos as principais descobertas
shoppings e torres corporativas, foram encon- da pesquisa quanto à tipificação dos ativos
trados hotéis, faculdades, hospitais, agências mapeados em três classificações, conforme
bancárias, supermercados, equipamentos de seus objetivos e suas particularidades de in-
logística e terrenos disponíveis para built-to- serção territorial.

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Gráfico 1 – Composição da capitalização de mercado por tipo de imóvel

Escritórios Escolar

Varejo – Shopping Centers Hospitalar

Diversificado Industrial

Varejo – Lojas individuais Varejo – Galerias

Logística Hospedagem

Residencial

Fonte: Anuário Imobiliário Uqbar (2016).

Concentração nas frentes poder público, como as Operações Urbanas


de expansão “tradicionais” Consorciadas Faria Lima e Águas Espraiadas,
e tipologias reconhecidas que implementam uma série de mudanças nos
pelo capital internacional desenhos viários na região do eixo descrito,
utilizando, para isso, o capital de companhias
Eduardo Nobre (2000), Mariana Fix (2009), interessadas em empreender na região.
entre diversos outros autores, já vinham sinali- O Mapeamento dos FIIs e das Empresas
zando a existência de uma frente de expansão globais confirma e reforça a existência desse
do mercado imobiliário situada nos arredores eixo de expansão com esses mesmos produ-
da Marginal Pinheiros e da Avenida Luís Car- tos e entende, ainda, que shoppings e hotéis
los Berrini, focado essencialmente em produtos ajudam a compor essa leitura da distribuição
corporativos. A formação de tal eixo de expan- espacial dos ativos voltados para um público
são, que vinha se estabelecendo desde a déca- de alto padrão, focada no quadrante sudoes-
da de 1990 com a ação dos fundos de pensão, te da cidade e, especialmente, no eixo Berrini-
é parte de uma agenda de processos de valo- -Pinheiros. O que não ficava claro, porém, era
rização da terra apoiada em instrumentos de o porquê da preponderância desse tipo de ati-
reestruturação do espaço implementados pelo vo em relação aos outros. Em entrevista com

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Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo

João Rocha Lima, que trabalha com consulto- é manter uma linguagem que se altera pouco
ria de Real Estate e presta assessoria a fundos conforme mudam as localizações, e isso pos-
imobiliários, ficou claro que se trata de uma sibilita que os investidores, e em especial os
questão de conhecimento do comportamento investidores estrangeiros, reconheçam nelas
dessa tipologia pelos investidores. Segundo um produto já desvendado, que, portanto,
ele, a tipologia arquitetônica das torres cor- gerará expectativas de risco e rentabilidade
porativas de alto padrão e shopping centers também conhecidas.

Figura 3 – Empresas globais e tipologia corporativa


no eixo da Marginal Pinheiros

Rochaverá
Marketplace Tower

Nestlé Bank Boston


Torre Z

Tower Bridge

Ed. Plaza I
Torre Norte

Word Trade Center

Florida Penthouses

Landmark Nações Unidas

Fonte: Equipe ObservaSP.

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Figura 4 – Ativos no setor corporativo de Flls e empesas globais

Fonte: Equipe ObservaSP.

Como a transformação nessa região já Empresas Globais na desmobilização


vinha ocorrendo há bastante tempo, resgata- de ativos e estratégias
mos um mapeamento do início da década de de isenção tributária
1990 (Castro, 2006), quando começaram a ser
implementadas as operações urbanas Faria Li- Considerando a reorganização das formas de
ma e Águas Espraiadas, para realizar a leitura produção no território, a pesquisa demons-
da ação dos agentes em contraposição com os trou que o formato dos fundos imobiliários
processos de remoção. O resultado mostra que seria interessante para estruturar a divisão
as remoções abriram um espaço para a atua- entre operação e manutenção das infraestru-
ção de agentes financeirizados que se cons- turas, desassociando a gestão da atividade
truiria ao longo das décadas subsequentes. produtiva da gestão de imóveis, cujos custos

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Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo

de manutenção e depreciação são tidos como financeiros que envolveu a criação de novos
desvantajosos e caros. Dessa forma, os ins- mercados (de aluguel de imóveis para super-
trumentos de financeirização retiram o capi- mercados, compondo a rede), com intuito de
tal que fica fixo no imóvel para que ele possa garantir que o sistema produtivo seja capaz de
circular mais livremente e rapidamente, como operar dentro de contextos que exigem rápi-
exige o fluxo do capital flexível. Estes seriam das mudanças, adaptando-se continuamente
os casos de desmobilização de ativos. às variações da demanda. No caso, o aluguel
Essa lógica se insere no âmbito da subs- possibilita essa agilidade.
tituição de um modelo de produção e acumu- Nos mapeamentos, os casos em que
lação calcado na rigidez produtiva para um entendemos que há um objetivo central de
regime fundamentado em maior flexibilidade desmobilização de ativos são diversos: há,
de processos, produtos, padrões de consumo, por exemplo, a vinculação de hospitais e
mercados e organização do trabalho (Harvey, universidades às empresas imobiliárias glo-
2008). Sinaliza a emergência de novos setores bais, ou de agências bancárias a fundos de
de produção, novas modalidades de serviços investimentos.

Figura 5 – Ativos corporativos no eixo Berrini x Pinheiros e remoções

Fonte: ObservaSP sobre base de remoções disponível em Castro (2006).

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Figura 6 – Hospitais vinculados a empresas imobiliárias globais

Fonte: Equipe ObservaSP.

Nova frente de expansão do complexo Ao percebermos a existência de muitos


imobiliário- financeiro: logística pontos com o uso de logística e a tipologia dos
no Rodoanel galpões built-to-suit nas proximidades do Ro-
doanel, com destaque para os entroncamentos
Uma descoberta central atingida a partir do com outras rodovias que partem da cidade de
mapeamento realizado no decorrer da pesqui- São Paulo, vimos a necessidade de investigar
sa foi a da constituição de um novo eixo de até que ponto as obras de implantação desse
expansão do complexo imobiliário financeiro, sistema rodoviário estavam articuladas à ação
contando com ação de fundos e empresas glo- das companhias globais mapeadas. Após a
bais, ao longo do eixo do novo anel viário que realização de uma aproximação fotográfica a
está sendo construído em volta da cidade de alguns desses casos ao longo do tempo, ficou
São Paulo – O Rodoanel. clara uma enorme sincronização entre a ação

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Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo

Figura 7 – Ativos logísticos de companhias imobiliárias globais

Fonte: Equipe ObservaSP.

do Poder Público, que, por meio de uma Parce- muitas das quais estão localizados nas proxi-
ria Público-Privada, deu início às obras do Ro- midades do Rodoanel (Rostás, 2014).
doanel, e a construção dos galpões. Como em todo processo de valoriza-
A estruturação dessa frente de expansão ção de terras que ocorre a partir da criação
logística ao longo do Rodoanel com a entrada de uma nova frente de expansão imobiliária,
de agentes globais torna-se ainda mais clara a tendência é que se acentuem, ao longo
quando tomamos como exemplo a vinda da dessa frente, a segregação socioterritorial e
especializada em logística GLP para o Brasil as remoções. Cruzando a ação dos fundos
em 2012, coincidindo com o início das obras logísticos com o mapa disponibilizado pela
dos trechos Leste, no final de 2011, e Norte, plataforma do Observatório de Remoções
no início de 2013. Para além disso, em 2014, a de 2016, é possível observar que, ainda que
GLP comprou um grande pacote de proprieda- se trate de um vetor incipiente, já há uma
des logísticas da BR Properties, no movimento concentração de ameaças nas proximidades
de baixa dos preços devido à crise econômica, do Rodoanel.

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Figuras 8-11 – Imagens aéreas do entroncamento do rodoanel


com a rodovia dos Imigrantes entre os anos de 2004 e 2016

Fonte: Ferramenta de “time lapse” do Google Earth Pro.

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Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo

Figura 12 – Remoções e galpões logísticos de empresas globais no Rodoanel

Fonte: Equipe ObservaSP sobre base disponibilizada pelo Observatório de Remoções (2016).

Considerações finais estrangeiros. As descobertas, tanto no que diz


respeito ao desenvolvimento de uma metodo-
Ainda que se tenha enfrentado uma série de logia de ação factível e que trouxesse resulta-
barreiras quanto às possibilidades de explora- dos dentro dos limites experimentais, quanto
ção da entrada dos investimentos provenientes no que tange à revelação de situações das
de agentes globais no complexo imobiliário- quais antes não se tinha conhecimento, pos-
-financeiro de São Paulo, a pesquisa narrada sibilitam a formulação de outras hipóteses e
por este artigo conseguiu um avanço muito questionamentos, e formam, assim, toda uma
relevante na territorialização dos ativos de nova agenda de pesquisa dentro do tema.
empresas internacionais e fundos que muito Nesse sentido é importante destacar
possivelmente vêm recebendo investimentos a visibilização da nova frente de expansão

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imobiliária que vem se desenvolvendo com as com isso, a inquietação de se expandir ainda
obras do Rodoanel em São Paulo, que só foi mais a escala das análises, atingindo o âmbito
possível graças à realização do mapeamento da macrometrópole, de forma a – quem sabe –
numa escala metropolitana, compreendendo explicitar outras questões relevantes que estão
o território de maneira articulada, e não frag- sendo ocultadas pela adoção de um sistema de
mentado pelas fronteiras municipais. Surge, compreensão não integrado.

Paula Freire Santoro


Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Departamento de Projeto da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, SP/Brasil.
paulasantoro@usp.br

Raquel Rolnik
Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, SP/Brasil.
raquelrolnik@gmail.com

Notas
Isabel Martin Pereira e Pedro Henrique Rezende Mendonça, pesquisadores do Laboratório
de Habitação e Assentamentos Humanos, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da
Universidade de São Paulo, colaboraram com a criação deste trabalho.

(1) U lizamos aqui a expressão “complexo imobiliário financeiro” no sen do proposto por Aalbers,
como uma metáfora inspirada no complexo industrial/militar norte-americano, capaz de
chamar a atenção para a relação entre a produção imobiliária, as finanças e os Estados. Ambos
os complexos devem ser entendidos como triângulos, uma vez que os Estados também fazem
parte dessa equação. A expressão complexo industrial militar foi u lizada, pela primeira vez,
pelo então presidente Eisenhower em seu discurso de despedida da presidência em 1961,
referindo-se ao triângulo que incluiu contribuições políticas, aprovações de orçamento
militares, lobbies para sustentar burocracias e uma rede de contratos e fluxos de dinheiro entre
indivíduos, corporações e ins tuições ligadas a provedores de armas e serviços militares (fonte:
Oxford Dic onaries).

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Novas frentes de expansão do complexo imobiliário-financeiro em São Paulo

(2) Os FIIs têm aspectos semelhantes aos do Real Estate Investment Trust (Reit), a vo securi zado no
mercado de valores mobiliários americanos, que tem obrigatoriedade de um percentual mínimo
a ser inves do em imóveis, um percentual mínimo de distribuição de rendimentos elevados
e alíquota baixa ou nula para o imposto de renda, que, no caso brasileiro, dá-se apenas para
pessoa sica. Possuem uma forma híbrida de se comportar, como uma ação (equity) ou uma
renda fixa (que paga coupon ou payout mensal), o que atrai inves dores interessados por seu
bene cio de renda fixa. Diz-se que os Reitss são mais flexíveis que os FIIs. Estes úl mos, por
sua vez, não fomentam a formação de grandes imóveis comerciais (são mais uma par lha de
inves mento em imóveis) e são um instrumento de funding do próprio inves mento (o que não
ocorre com os Reits).

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VAN LOON, J. (2014). The financialisa on of Dutch real estate: how Real Estate became “just another
asset class”. Presenta on at European Research Council.

Texto recebido em 31/jan/2017


Texto aprovado em 16/maio/2017

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 407-431, maio/ago 2017 431
A metrópole entre o neoliberalismo
e o comum: disputas e alternativas
na produção contemporânea do espaço
The metropolis in-between neoliberalism
and the common: disputes and alternatives
in the contemporary production of space
João Bosco Moura Tonucci Filho
Felipe Nunes Coelho Magalhães

Resumo Abstract
Oposto às racionalidades neoliberais que tendem In opposition to neoliberal rationalities that tend to
a estender os imperativos do mercado e da pro- extend the imperatives of the market and of private
priedade privada a todas as esferas da vida, o property to all spheres of life, the common delineates
comum delineia a construção de formas coopera- the construction of cooperative forms of production
tivas de produção e gestão de recursos compar- and management of shared resources. In this article,
tilhados. Propomos, neste artigo, uma breve re- we propose a brief theoretical reflection on how
flexão teórica acerca de como as contradições da certain contradictions in the production of space
produção do espaço da metrópole contemporânea in the contemporary metropolis can be understood
podem ser compreendidas a partir do embate through the clash between these two opposing
entre esses dois polos políticos contrapostos – o political poles – neoliberalism and the common.
neoliberalismo e o comum. Para tanto, explora- The paper explores geo-historical injunctions and
mos injunções e cruzamentos geo-históricos entre interlacements between neoliberalism and the
neoliberalismo e metrópole, assim como proces- metropolis, as well as the processes of indebtedness
sos de endividamento e financeirização da cidade. and financialization of the city. We present the
Apresentamos as principais formulações críticas main critical theoretical formulations concerning
do comum e apontamos para a crescente relevân- the common and highlight the growing relevance
cia do comum urbano como alternativa à metró- of the urban commons as an alternative to the
pole do neoliberalismo. neoliberal metropolis.
Palavras-chave: metrópole; neoliberalismo; finan- Keywords: metropolis; neoliberalism;
ceirização; o comum; comum urbano. financialization; the common; urban commons.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 433-454, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3904
João Bosco Moura Tonucci Filho, Felipe Nunes Coelho Magalhães

De modo geral, o comum refere-se as


Introdução
bens e recursos, materiais ou imateriais, que
A metrópole contemporânea, em larga medida são compartilhados, usados e geridos coleti-
resultado geo-histórico de um processo amplo vamente, por meio de uma série de práticas,
de industrialização e modernização econômica, regras e saberes gestados pela própria comuni-
é marcada pela densidade crescente de rela- dade. Nos dias de hoje, as práticas e os concei-
ções transescalares que conectam dinâmicas tos do comum estão se fortalecendo em torno
urbanas localizadas a processos e agentes dis- de um princípio político que suporta, ajuda a
tantes. Ao longo da dinâmica sócio-histórica de articular e reconhece a potência de uma plura-
formação desse ente geográfico, adensaram-se lidade de lutas, resistências e alternativas radi-
relações que interligam a cidade – que se torna cais ao Estado e ao mercado. Opondo-se à pro-
metrópole através da industrialização – ao ter- priedade privada, fundada no direito de excluir,
reno, situado e operado na escala do Estado- o comum não se confunde com a propriedade
-nação, da macroeconomia e da política econô- pública do Estado, mais bem entendida como
mica. Mesmo após o declínio de um regime de forma coletiva de propriedade privada.
acumulação centrado na indústria, esse vínculo Muitas das lutas que se opõem ao neo-
permanece em cena de forma decisiva na dinâ- liberalismo são animadas e orientadas pelo
mica metropolitana contemporânea. comum, contra a crescente onda de cercamen-
Para além dessa primeira forma com que tos daquilo que é considerado patrimônio “co-
as transformações sociais operadas pelo neo- mum” da humanidade (a natureza, o espaço
liberalismo se fazem presentes na metrópole, público, as culturas, o conhecimento, etc.) e
há também um fortalecimento progressivo de contra a extensão da lógica da mercadoria a
formas de operação e realização do neolibe- todas as esferas da vida. A ideia política do
ralismo a partir do Estado nas escalas local e comum reapareceu ainda com mais força no
regional – em grande medida a partir do im- último ciclo global de protestos (Primave-
perativo das chamadas vantagens comparati- ra Árabe, movimentos das praças, occupy,
vas e de uma forma de planejamento e gestão etc.) detonado pela crise do capitalismo em
em busca de uma suposta eficiência pautada sua face financeira e neoliberal, sustentan-
pelos padrões do mercado, logo, abrindo ter- do e orientan do a construção de múltiplas
reno para sua expansão e predomínio. A pro- experiên cias que se pretendem autônomas,
dução do espaço atravessada por processos democráticas e autogeridas.
(governamentais) neoliberais envolve a ativa Em diferentes metrópoles ao redor do
construção de um conjunto de pressupostos mundo – e não coincidentemente nos países
sociopolíticos para esse fortalecimento do mais impactados pela atual crise –, a ideia do
mercado: contratos, propriedade, polícia, for- comum urbano tem sido invocada por movi-
mação da oferta de mão de obra – através dos mentos, manifestantes, coletivos, pesquisado-
cercamentos, do bloqueio ao surgimento de res, ativistas e até por formuladores de política
alternativas autônomas de sobrevivência, do pública, para fazer referência a recursos e espa-
sufocamento do comum. ços urbanos compartilhados e para reivindicar

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A metrópole entre o neoliberalismo e o comum

mais amplamente que a cidade como um todo à tona a herança e as genealogias coloniais
seja mais aberta ao uso, à apropriação cole- dessa relação, considerando suas presenças e
tiva e à participação. Ao apontar para modos persistências em suas manifestações socioes-
mais cooperativos e compartilhados na produ- paciais. A relação Estado-espaço sob o neo-
ção contemporânea do espaço urbano, contra liberalismo necessariamente interage com o
a hegemonia da competição e da propriedade legado de tal percurso histórico, e essa intera-
privada, a metrópole do comum emerge como ção é um aspecto fundamental na produção do
uma potente crítica e alternativa concreta à espaço na metrópole hoje. Ou seja, abordar o
metrópole do neoliberalismo. processo de neoliberalização em contextos se-
Portanto, propomos, neste artigo, uma miperiféricos específicos, como as experiências
breve reflexão teórica acerca desses dois polos latino-americanas, invoca a necessidade de
políticos opostos – o neoliberalismo e o co- compreender a formação econômico-social e
mum (como em Dardot e Laval, 2014) – tendo espacial resultante dos processos históricos an-
a metrópole contemporânea como sujeito atra- teriores sobre a qual essa dinâmica de aprofun-
vessador, espaço produzido que é aglutinador damento do neoliberalismo atua e com a qual
de ambos, enquanto potência e/ou realidade ela interage – bastante distinta das geografias
vivida/sobrevivida. A primeira parte é dedica- resultantes da experiência fordista-keynesiana
da à compreensão de injunções e cruzamentos nos países de centro.
geo-históricos entre neoliberalismo e metrópo- A escala da economia nacional e da po-
le, assim como dos processos de endividamen- lítica macroeconômica – tanto no sentido da
to e financeirização da cidade. A segunda parte ação governamental de curto prazo, voltada
explora algumas formulações críticas do co- para dinâmicas inflacionárias, de crescimento,
mum e aponta para a crescente relevância do de câmbio, etc., quanto no que diz respeito às
comum urbano na metrópole contemporânea. políticas de longo prazo, de desenvolvimento
Por fim, nas considerações finais, são levanta- ou de reestruturação econômica na escala da
das algumas questões em aberto – teóricas e nação – traça relações diretas com a metró-
práticas – quanto aos enfrentamentos entre o pole.1 Para além disso, no caso brasileiro, as
neoliberalismo e o comum na metrópole. origens da própria transformação da cidade
(administrativa, mercantil, portuária) em me-
trópole (industrial e sede de uma hiperconcen-
A metrópole do neoliberalismo tração de atividades de serviços avançados)
são diretamente vinculadas a transformações
Camadas e linhagens de ordem macroeconômica e à própria gênese
de um cruzamento geo-histórico da macroeconomia – enquanto técnica apli-
cada à governamentalidade. O período entre
Dentre uma série de outras dinâmicas, o urba- 1930 e 1980 conforma no Brasil um arranjo
no é resultante da relação Estado-espaço com espacial (Harvey, 1982), centrado na metró-
uma dinâmica econômica que lhe dá movi- pole, adequado à centralidade da indústria no
mento. Pensar no caso brasileiro envolve trazer formato de acumulação de capitais vigente,

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João Bosco Moura Tonucci Filho, Felipe Nunes Coelho Magalhães

em que havia a necessidade de uma ampla sobre o qual a reestruturação neoliberal poste-
oferta de mão de obra de baixo custo, bem rior atuaria, e suas interfaces urbanas se agen-
como a concentração de condições gerais de ciam também por sobre – e em meio a – essa
produção (Lojkine, 1981) adequadas à fluidez paisagem sócio-histórica herdada.
e à expansão da atividade industrial. A metró- A partir de sua constituição como um es-
pole transforma a cidade numa máquina de paço de concentração de relações entre escalas,
crescimento econômico com efeitos na escala dentre elas a ligação direta entre globalização,
nacional, agregando elementos necessários pa- macroeconomia e produção do espaço urbano,
ra a acumulação centrada na indústria, elimi- a metrópole torna-se agenciadora e mediadora
nando – através do Estado – barreiras, garga- transescalar do neoliberalismo, tornando es-
los ou ameaças políticas (que a própria cidade se formato de governo real na vida cotidiana,
engendra, como um produto urbano, da densi- de forma próxima e imediata, “descendo” do
dade, da pólis). O modelo econômico centrado plano da macroeconomia ao espaço da vida.
na metrópole que se cria a partir dessa guinada O período de crise gerada pela reestruturação
nacional-desenvolvimentista baseada na indus- que atinge em cheio o Estado e a economia
trialização substitutiva de importações de 1930 brasileiros na década de 1980 transforma a
passa por diversos ciclos de crises e reestrutu- metrópole num ponto de grande concentração
ração interna, mas é somente com a crise da dí- de eventos e processos derivados da crise. Em
vida da década de 1980, que atinge as maiores contraste com a onda que se fortalecia naquele
economias latino-americanas de forma avas- momento através dos movimentos de reforma
saladora, que o ponto de inflexão gerado pela urbana na direção da democratização da políti-
crise é profundo o suficiente para ocasionar a ca e do planejamento urbano, o neoliberalismo
desestruturação do próprio regime de acumula- se apresenta, nesse contexto, como um prog-
ção. As consequências desse período de crise e nóstico de saída da crise através da promoção
tentativas de reestruturação para as metrópo- das virtudes do mercado que seria progressi-
les foram decisivas. O arranjo espacial metro- vamente adotado no plano macroeconômico
politano voltado para a expansão e a fluidez da e em diversas cidades e regiões não alinhadas
acumulação industrial deixa de ser veículo, du- politicamente àquela dinâmica de busca por
rante esse período, do crescimento econômico democratização do planejamento e da gestão
ao qual ele serviria progressivamente a partir na escala urbana.
da década de 1930. Nisso, convoca-se (muitas O imperativo da busca por vantagens
vezes à força) um grande contingente popula- comparativas como forma de saída da crise
cional a participar desse amplo processo, para se faz presente de diversas formas e atinge as
abandoná-lo em seguida. Enquanto o cresci- relações entre regiões e cidades, que passam
mento assistido no período autoritário criou ao plano da promoção da competição em di-
pobreza urbana, concentrou renda e produziu versos níveis de agentes (desde os indivíduos
espaços espoliados, sua herança combinada à até os próprios Estados, sendo a exposição ao
ausência do crescimento em si envolve conse- risco um princípio fundamental no estímulo ao
quências ainda mais nefastas. Este é o legado ganho de competitividade). Como argumentam

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A metrópole entre o neoliberalismo e o comum

Peck e Tickell (2002), há um processo de neo- ações planejadas tendem a seguir uma lógica
liberalização do espaço em que as relações de potencialização da valorização.
espaciais são tornadas neoliberais e em que Em termos setoriais, a partir dos pro-
as cidades e regiões se relacionam umas com cessos de reestruturação regional da indústria
as outras a partir de padrões de competição que levam a uma configuração metropolitana
(inclusive entre modos de regulação mais efi- ampliada, na direção da cidade-região (Maga-
cientes e favoráveis ao crescimento e ao inves- lhães, 2008; Lencioni, 2003), os serviços avan-
timento privado). Nisto, cidades e regiões tor- çados se destacam como a principal vantagem
nam-se agentes neoliberais fundamentais, pois comparativa das economias metropolitanas.
a própria competição entre territórios torna-se Trata-se de um grande grupo de atividades al-
um fator importante na dinâmica geoeconômi- tamente heterogêneo, que concentra a grande
ca do neoliberalismo, passando a ser insumo maioria dos empregos de alto nível de quali-
de decisões de investimento e localização que ficação e renda na estrutura produtiva atual,
rebatem sobre a própria dinâmica regional e sendo um setor cujo insumo principal é a mão
nos próprios padrões de regulação praticados de obra intelectual e cujos subsetores diversos
de forma decisiva. são altamente interdependentes uns dos ou-
Em relação à busca por vantagens com- tros. As complementaridades com os setores in-
parativas como um princípio norteador e uma dustriais e primários são óbvias, e o crescimen-
prática que tende a se tornar onipresente no to econômico puxado por aquelas atividades
neoliberalismo, a cidade regida a partir desse traz impactos diretos nos serviços.
preceito opera predominantemente a partir Desse modo, a localização torna-se um
do mercado – e, nesse processo, o solo urba- insumo fundamental nesses setores de pon-
no torna-se uma mercadoria primordial da ta. Ao contrário do declínio de importância da
cidade-empresa, agenciado pelo seu planeja- geografia, muito discutido no período em que
mento, com desdobramentos importantes na as novas tecnologias de comunicação e trans-
direção da financeirização do espaço urbano, portes começaram a se tornar mais acessíveis
como veremos adiante. A partir do momento e generalizadas, reafirma-se justamente o con-
em que a competição pelo solo metropolitano trário, ou seja, a sua centralidade no capitalis-
atinge determinados patamares e que ele se mo. Nos termos da abordagem de Harvey em
torna mercadoria disputada, o planejamento diversas de suas obras, a competição por espa-
sintonizado a esses mesmos preceitos busca ço torna-se uma busca por vantagens compe-
agenciar esses espaços para venda, ao mesmo titivas que podem resultar em maior poder de
tempo alimentando e atuando a reboque da mercado na direção de uma condição monopo-
valorização fundiária, que cria um ciclo retroa- lista (ou de concorrência monopolista),2 atra-
limentado através da arrecadação de impostos vés da própria vantagem locacional adquirida
de propriedade imobiliária. Ações do planeja- (que tende a envolver, na economia imaterial
mento que reduzam o valor da terra em deter- urbana, uma vantagem relacional, ligada aos
minada região – como a oferta de habitação de vínculos relacionais que a proximidade pode
interesse social – tendem a ser evitadas, e as fornecer). Nisso, o solo urbano situado nos

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João Bosco Moura Tonucci Filho, Felipe Nunes Coelho Magalhães

territórios vinculados a esse nexo econômico circuito inferior da economia urbana, caracte-
de alto valor agregado ganha poder de mer- rizadas por baixos rendimentos/remunerações
cado e se torna uma oferta inserida num pa- e por uma situação de frequente precariedade
drão de concorrência monopolista ainda mais e instabilidade. Esse trabalho, para Hardt e Ne-
acentuado que anteriormente, ampliando sua gri (2009), bem como para Lazzarato e Negri
capacidade de extração de renda da terra, fun- (2001) envolve um aspecto biopolítico e é reali-
damental no processo de aprofundamento da zado pelo agenciamento do corpo na produção
financeirização do mercado imobiliário – que de forma distinta do trabalho industrial, que,
se torna, ao fim e ao cabo, a financeirização da por sua vez, envolve presença física e com-
própria cidade. partilhada com insumos materiais, máquinas
O insumo produtivo fundamental da eco- e outras estruturas físicas. O trabalho imaterial
nomia imaterial urbana, da qual os serviços torna-se o próprio pensar, o saber, a produção
avançados fazem parte e que tangencia, em intelectual, emocional e subjetiva, não se sepa-
partes, a produção cultural de forma ampla, é rando, assim, da própria vida e, sendo por isso,
o conhecimento (técnico, científico, aplicado) produção biopolítica (ibid., pp. 30 e 47).
e a informação. O elemento capaz de poten- É, nesse sentido, que surge a noção da
cializar a produtividade deixa de ser o coefi- cidade como “fábrica social”, pois é nela on-
ciente técnico mobilizado nas máquinas e na de se concentram esse transbordamento e essa
tecnologia aplicada à produção e passa a ser mescla do trabalho com a vida, a partir da sua
um adendo do trabalho vivo. Nesse sentido, há generalização no espaço social da metrópole,
uma tendência pós-industrial nessas geogra- que se torna “usina biopolítica” (Hardt e Ne-
fias econômicas bem delineadas, mas ressalta- gri, 2009, p. 251). Hardt e Negri enxergam a
mos que elas se inserem numa divisão espacial produção contemporânea não somente como
do trabalho em constante aprofundamento e uma bioeconomia, um trabalho biopolítico, em
em redes ampliadas e que se organizam na es- função de sua mescla com o espaço-tempo da
cala da globalização, nas quais a acumulação própria vida, mas veem, no comum já existen-
industrial permanece central na produção de te, uma ampla base de produções de afetos, de
valor, na organização da produção e na conse- conhecimentos, de subjetividades, de técnicas
quente definição de investimentos. e de informações da qual a república da pro-
É importante ressaltar a heterogeneida- priedade e o capital extraem renda através de
de que o trabalho intelectual pode assumir na seus cerceamentos. Assim, o trabalho biopolí-
prática: pode ser massificado, automatizado, tico transborda, é transbordante por natureza,
estandardizado; pode ser liberado, criativo em- uma vez que tais tentativas de cerceamento já
bora instrumentalizado; pode ter coeficientes não são totalmente capazes de fazê-lo e, nesse
variados de complexidade e de conhecimento transbordo, há vazamentos na direção da cons-
especializado, abarcando, assim, ocupações, se- trução do comum. Trata-se assim, para aqueles
tores e atividades tanto na ponta da geração autores, de romper esse elo de dominação e
(ou fonte de canalização) de alto valor agrega- sucção de renda e de promover o comum liber-
do, como naquelas que se situam no chamado to através da sua produção já existente, que o

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A metrópole entre o neoliberalismo e o comum

capitalismo cognitivo e a produção biopolítica calçadas fartas para pedestres, etc. retiram
já constroem diariamente de forma potencial- em grande parte o caráter democrático que se
mente não excludente. No entanto, a ideia de acreditava vinculado a essa forma de urbani-
que a extração de renda de forma difusa toma zação anterior ao modernismo, como atesta o
as rédeas do processo amplo de acumulação – e próprio processo de haussmanização em seu
nisso se torna dominante na própria economia caso original parisiense. Ou seja, mesmo no
urbana, em detrimento do valor propriamente padrão urbanístico situado fora dos elementos
dito, agenciado diretamente no âmbito interno modernistas que se fazem presentes e persis-
à produção como na teorização marxista clás- tentes no funcionalismo vinculado ao cercea-
sica – envolve certa sinédoque no erro (de se mento (que o novo urbanismo busca criar de
tomar a parte pelo todo), ligado à identificação forma alegórica dentro das próprias bolhas
e à projeção exagerada de uma tendência real, cercadas e que aparece também em contextos
mas que convive em conjunto e não substitui a de espetacularização mais explícita, como é o
proeminência do valor produzido e canalizado caso do espaço aberto das operações urbanas
através do lucro advindo da produção, mesmo recentes), o processo excludente entra em ce-
que não seja necessariamente material/indus- na através da gentrificação. No entanto, como
trial. É importante não confundir a primazia também demonstrado na trajetória da expe-
contemporânea das finanças com uma tendên- riência de Paris pós-Haussmann, o “espaço
cia de a renda tornar-se também primaz diante público oposicional” (Negt, 2007) permanece
dos lucros, pois o financeiro é alimentado por decisivo nessas localidades, não sendo essas
ambos. Propõe-se, assim, o reforço mútuo entre dinâmicas de elitização suficientes para anular
estes, e tal proeminência do capital financeiro o caráter inerentemente político da produção
resolve o conflito clássico entre o rentismo e o do espaço urbano em constante disputa. Ilustra
capital produtivo, ao agenciar e controlar am- esse aspecto com clareza a centralidade da re-
bos de forma simultânea. pressão policial na hegemonia urbana baseada
No que diz respeito ao padrão de pro- no bloqueio do aprofundamento democrático,
dução do espaço na escala intraurbana e à configurando um regime de violência estrutural
dimensão da apropriação, há uma tendência em que a ordem se estabelece fundamental-
inicial da reestruturação (pós-crise da metrópo- mente a partir do emprego da força (Graeber,
le fordista keynesiana) do espaço urbano que 2004, pp. 71-72).
leva na direção do cerceamento e da privati-
zação,3 e do definhamento do espaço público
de apropriação aberta, livre e democrática. Financeirização da cidade
Mas não é necessariamente o caso: há uma e endividamento como mecanismo
conciliação conservadora entre os arquétipos de controle
de Jane Jacobs e Robert Moses no urbanismo
neoliberal (Larson, 2013), em que os processos Em paralelo ao avanço do neoliberalismo
de gentrificação que operam sobre o urbanis- em escala ampla, o capitalismo contempo-
mo de pequena escala da mistura de usos, das râneo é marcado por uma expansão do setor

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financeiro e em sua proeminência política em fazem com que sua atuação se espalhe e pas-
relação a outros setores e grupos de interesse se a operar na produção de condições para sua
anteriormente mais fortes nos espaços de dis- própria entrada em domínios anteriormente
puta entre capitais. Em termos tanto políticos isolados de sua influência – o que é o caso das
quanto econômicos, as finanças tornam-se o parcerias público-privadas na gestão pública
principal grupo de atividades que compõem obrigada a buscar recursos alternativos em
a economia imaterial urbana contemporânea. função das restrições orçamentárias produzi-
Nesse processo, cria-se a possibilidade de o das pelo seu próprio endividamento, gerando
mercado de capitais entrar de formas diversas oportunidades de investimento privado em
em inúmeros setores de atividade, ampliando estruturas coletivas que vão desde estádios de
sua atuação e sua vinculação – construindo futebol de propriedade pública até o caso ex-
canalizações de mais-valor na sua direção –, tremo dos presídios.
no limite da direção da totalidade das ativida- A difusão, a extensão e o aprofundamen-
des econômicas. Há também uma tendência à to desses canais de extração de valor e renda
formação de monopólios e cartéis em setores agenciados pela proeminência do setor finan-
diversos, como apontado em 1910 na obra ceiro e incentivados diretamente pelo Estado
clássica de Rudolf Hilferding (1985 [1910]) a ocorrem através de redes de agentes interliga-
respeito do capital financeiro e de seus vín- dos e situados em esferas diversas de atuação.
culos com o capitalismo monopolista, devido O produto desse processo também é a forma-
ao fato de haver interesse de que as finanças, ção de redes, atuando como uma tecnologia
operando no comando e controle de firmas di- social mobilizada na extração difusa e de cana-
versas e concorrentes, unam-se num só agen- lização de valor e renda através das finanças e
te, com economias de escala ampliadas, e um em sua direção. A profusão de setores de ponta,
poder de mercado fortalecido. internos às finanças, que atuam na busca por
A financeirização pode ser entendida, oportunidades de investimento em territórios
desse modo, como a construção ampliada e ampliados e diversos da acumulação no âmbito
diversificada desses canais por onde passam da economia real, seja nos bancos de investi-
fluxos de mais-valor, lucros e renda advindos mento de portes diversos, seja nos fundos de
de fontes diversificadas e geograficamente private equity que se multiplicam em escala e
difusas. Tais rendimentos remuneram capitais escopo, é exemplo dessa engenharia das redes
também angariados e mobilizados de forma de canais que efetivam as ligações difusas com
ampliada, como na criação de fundos de in- as finanças, nesse caso no âmbito da produ-
vestimento amplamente disponíveis para cor- ção, envolvendo a extração de valor. Padrões
rentistas de grandes bancos comerciais ou na semelhantes ocorrem na ponta do crédito, na
mobilização de fundos de pensão com grandes busca por novas formas e mercados para a
quantidades de recursos disponíveis para in- ampliação da concessão de financiamentos de
vestimento de longo prazo. Essa presença cres- forma ampla e do endividamento, que também
cente e o ganho de protagonismo das finanças constituem redes semelhantes, mas no domínio
em busca de oportunidades de investimentos da renda, na remuneração de juros ao capital

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A metrópole entre o neoliberalismo e o comum

financiador. Há, assim, uma transformação de e estruturas de canalização de mais-valor na


ordem qualitativa nas finanças, acompanhada sua direção.
de um aumento significativo de sua atuação Se essa nova economia urbana é susten-
através da expansão do próprio crédito. As con- tada por fluxos de renda em parte advindos de
sequências de tal fato são de grande enverga- outros espaços, o setor imobiliário cria um me-
dura, sendo a própria crise financeira de 2008 canismo semelhante em relação aos serviços
diretamente ligada a esse aprofundamento da avançados: apreende parte dos valores que ele
financeirização e à ampla diversificação de no- extrai de uma base produtiva maior através da
vas formas de atuação das finanças. remuneração da renda da terra, criando opor-
A partir desse nexo, o neoliberalismo tunidades para o capital rentista organizado no
urbano baseia-se numa lógica econômica que setor imobiliário em novos patamares. E, nesse
promove a financeirização da cidade, que fo- processo, esse espaço urbano transformado em
menta e pega carona na valorização imobiliá- mercadoria, produto do capital imobiliário, tor-
ria e se agencia através de um fortalecimento na-se também um produto financeiro, um título
do poder de fogo dos capitais imobiliários na lançado no mercado e que concorre com ou-
conformação da política urbana e de uma for- tros papeis – desde ações até títulos de dívida
ma de planejamento voltada para o abasteci- pública ou derivativos diversos. Nisso, há um
mento desse mecanismo através de projetos e processo de financeirização do espaço urbano
planos urbanos diversos, sendo o processo de que é mais aprofundado que a simples vincula-
gentrificação a frente de expansão territorial ção do imobiliário ao mercado de capitais, pois
de um meio urbano ultra valorizado que esse trata-se de uma abertura para que o setor fi-
modelo de planejamento busca promover. Os nanceiro atue na própria cidade transformada
serviços avançados que compõem a economia em fábrica social, tendo a renda da terra como
urbana nos pilares desse mercado imobiliário uma forma de canalização de valor da econo-
inflado abarcam atividades de apoio direto à mia imaterial urbana do terciário avançado.
organização do comando e controle da esfera Como proposto por Hardt e Negri, “a me-
produtiva, que se posicionam na ponta de ca- trópole está para a multidão da mesma forma
nais diversos de valor extraído da produção, que a fábrica estava para a classe operária in-
da distribuição e do consumo, recebendo flu- dustrial” e, enquanto “a fábrica gerava lucro,
xos de lucros e dividendos oriundos de capi- a metrópole gera renda” (2009, p. 250), na
tais de diversas naturezas e de grande alcance forma da renda da terra capturada nos canais
territorial. O setor financeiro é a expressão difusos produzidos pelo capital imobiliário ou
máxima desse padrão de canalização de valor sob outras entradas da financeirização no es-
advindo de fontes diversificadas, abarcando paço econômico dessa fábrica social metropo-
atividades desde a indústria até a mobilização litana. Adicionando nossa perspectiva crítica já
da renda da terra, que permite uma criação de delineada acerca dessa visão (que não retira
vínculos extrativos de valor com a economia a centralidade da produção de valor no abas-
urbana de forma ampla e difusa. Sua hege- tecimento da própria renda, mas não somen-
monia passa pelo poder de criar tais vínculos te na produção material), há um processo de

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canalização do valor produzido na metrópole a lançar a população de baixa renda para áreas
no seguinte encadeamento: da esfera produti- distantes, pois sua presença em locais de gran-
va como um todo na direção dos serviços avan- de potencial de valorização tende a diminuir
çados (que já inclui, nesse elo, grandes porções esse potencial. Também se produzem espaços
do setor financeiro), para a renda da terra que como ativos financeiros comercializáveis que
sustenta materialmente a localização dessas entram em circuitos especulativos separados
atividades, interdependentes entre si e por isso do uso dos imóveis, resultando num aumento
altamente dependentes dos núcleos metropo- da quantidade de unidades residenciais e co-
litanos, para o mercado imobiliário financeiri- merciais vazias, de propriedade de investidores
zado. No contexto da metrópole brasileira, a e especuladores imobiliários, apostando na va-
forte desigualdade no acesso à terra cria uma lorização de médio e longo prazo de seus imó-
condição de desigualdade entre investimento e veis em patamares superiores a outros ativos
dívida, engendrando relações sociais de finan- financeiros quaisquer.
ceirização, sendo o acesso à propriedade priva- O processo de financeirização, entendido
da do imobiliário uma forma de ampliação do também como uma tomada da hegemonia por
alcance dessas relações de endividamento, que parte do capital financeiro, envolve um enfra-
correspondem ao fim e ao cabo à produção de quecimento do conflito clássico entre agentes
vínculos de remuneração rentista. rentistas e o capitalismo produtivo, que gera
Tendo em vista que o próprio solo urbano consequências políticas importantes para esse
se torna mercadoria de um mercado em con- nexo de fomento à valorização fundiária vin-
corrência monopolista – ou seja, com grande culado à financeirização da cidade. Como o
poder por parte dos ofertantes de definição de setor financeiro cria vínculos de canalização de
seus próprios preços e, portanto, com grande mais-valor com um amplo leque de atividades
capacidade de angariar maiores rendimentos –, econômicas, que na metrópole inclui tanto a
a política urbana passa a atuar em função da economia imaterial urbana que ajuda a susten-
maximização do somatório dessa valorização tar a renda da terra quanto os próprios setores
fundiária, parcialmente em função do imperati- do capital imobiliário que a sugam do circuito
vo da busca por vantagens comparativas como de valorização através da produção (ainda que
forma de promover o crescimento econômico majoritariamente intangível), a hegemonia do
urbano. O potencial de criação de renda fundiá- setor financeiro esvazia o conflito entre esses
ria diferencial, a partir de atributos adicionados dois grupos subsumidos.
tanto fisicamente quanto no fortalecimento da É interessante notar como em grandes
própria densidade relacional apropriada pelo cidades dos países de centro essa dinâmica
terciário avançado, tende a ser aproveitado se faz presente no esvaziamento de formas
ao máximo possível por parte desses agencia- diversas de políticas públicas estruturadas pe-
mentos. O resultado é um reforço da tendên- la hegemonia anterior do capital produtivo na
cia excludente inerente à cidade capitalista, na direção de minimizar a renda da terra (através
medida em que essa busca pela maximização do provimento direto de habitação de interes-
da valorização agregada do solo urbano tende se social, do controle de aluguéis, do aluguel

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A metrópole entre o neoliberalismo e o comum

social provido pelo Estado, do fomento a coo- e político. A ausência histórica dessa disputa
perativas de habitação popular não gerencia- envolve consequências cristalizadas tanto em
das pelo Estado, dentre outras modalidades, nossos ambientes construídos na metrópole
ainda presentes, com menor poder de fogo quanto na paisagem social do meio rural (ain-
diante da pujança do processo de neolibera- da) marcado por um altíssimo grau de concen-
lização, em diversas localidades – sobretudo tração fundiária.
na Europa ocidental, nos países escandinavos De forma análoga à ideia da fábrica
e em outros formatos, mais diretamente liga- social, a financeirização, e sua resultante pro-
dos ao socialismo autoritário e centralizado, na liferação da figura do endividado pelo espa-
China). Trata(va)-se de um modo de atuação do ço social, atua na difusão de uma relação de
Estado keynesiano diretamente associado ao dominação e de exploração do trabalho alheio
capital industrial que encara a renda da terra (que envolve uma remuneração monetária in-
nos termos do conflito clássico com a aristo- tertemporal por parte do endividado), não mais
cracia improdutiva antiga, cujos landlords su- limitado ao contato direto e bem delineado no
gavam parcelas da renda gerada na produção tempo-espaço entre capital e trabalho, mas
simplesmente em função de suas inserções difundido e espraiado tanto temporal quanto
como proprietários. Reduzir ao mínimo possí- espacialmente. A relação social através da ren-
vel a renda da terra sugada através de políti- da dos juros complementa aquela baseada na
cas que resultem, ainda que indiretamente, em remuneração do capital produtivo nesse cená-
menor valorização fundiária como um objetivo rio e se prolifera para além da renda da terra
público de bem-estar social era, nesses termos, alimentada pelo avanço da economia imaterial
uma política keynesiana de potencialização da urbana, difundindo-se de outras formas (Hardt
demanda efetiva que se revertia aos capitais e Negri, 2012, p. 16).
produtivos (sobretudo industriais) na forma do Para Hardt e Negri (ibid.), o endividado
consumo mais elevado. Ou seja, não se tratava emerge como uma das figuras subjetivas em-
ali de uma política anticapitalista – o que não blemáticas da crise, em conjunto com o me-
seria verdade nas condições atuais, no contex- diatizado, o securitizado e o representado. O
to da hegemonia do capital financeiro que pro- endividamento é visto por aqueles autores,
move ativamente a valorização fundiária como em termos deleuzoguattarianos, como uma
parte de uma apreciação geral de seus ativos forma de controle e disciplinamento, através
e, logo, de seus rendimentos. Considerar o ca- da progressiva formação de uma “consciência
so brasileiro em que tal conflito entre landlords infeliz” que carrega um senso de responsabi-
aristocratas e o capital (industrial) produtivo lidade e culpa pela própria dívida. Na perspec-
nunca foi forte o suficiente ao ponto de se tiva spinoziana daqueles autores, esse tipo de
traduzir numa formatação de políticas públi- vínculo negativo tem o efeito disciplinador/
cas a favor do segundo grupo é fato bastante controlador de diminuir a potência criativa do
revelador das especificidades de nossa forma- pobre, do trabalhador, do subalterno, essencial
ção social e, nestse caso, dos grupos que com- para a sua própria produção de autonomias
põem seus estratos de maior poder econômico e formas de saída dessas relações. Trata-se,

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João Bosco Moura Tonucci Filho, Felipe Nunes Coelho Magalhães

também, de uma forma de se conduzir novas


A metrópole do comum
rodadas do processo de acumulação primitiva,
de formação de uma oferta de mão de obra ba-
Além do público e do privado:
rata através de dinâmicas que Harvey (2004)
a alternativa do comum
denomina despossessão, que significa, ao fim
e ao cabo, a destituição de outras alternativas
de sobrevivência em grupos cuja única opção Referindo-se a bens e recursos abertos e com-
é a venda de sua própria força de trabalho. partilhados, como a riqueza material da natu-
Além do aspecto moral que carrega a relação reza (o ar, a água, os frutos do solo, etc.) ou
devedor-credor, o endividado tende a aceitar a riqueza imaterial da produção social (conhe-
trabalhar por menos, tem possibilidades menos cimentos, culturas, linguagens, etc.), o comum
elásticas de busca por e criação de alternativas delineia a construção de novas formas demo-
de inserção e sobrevivência e se torna mais cráticas de produção e gestão de recursos com-
avesso ao engajamento em atividades que co- partilhados, contra sua apropriação privada ou
locam seu emprego em risco, tal qual a própria pública (Hardt e Negri, 2009). Não obstante,
mobilização trabalhista. o comum não é uma coisa ou um recurso em
Passamos, nesse ponto, ao tema do co- si, diz Bollier (2014, pp. 175-176), mas um re-
mum – como um contraponto radical à neoli- curso compartilhado e associado a uma dada
beralização da sociedade e do espaço. Nessa comunidade e a protocolos, normas e valores
passagem, é necessário estabelecer um pres- criados para a sua gestão coletiva, com espe-
suposto, como em Magalhães (2016), que os cial atenção a questões de acesso igualitário,
pilares desses processos são constituídos por uso e sustentabilidade. Ou seja, nada é comum
elementos estatais e jurídicos. Não há neolibe- por natureza: um recurso é tornado comum
ralismo sem Estado. Trata-se de um modelo de por uma prática coletiva de gestão e cultivo
governo e de estruturação do poder na socie- (Dardot e Laval, 2015). O comum como subs-
dade que opera a partir de ajustes regulatórios tantivo envolve muito mais a construção de um
que abrem terreno para processos econômicos princípio político do que os recursos em si ou
diversos. Problematizar esses pilares implica essa produção de um conjunto de bens e servi-
discutir não somente os embates e contradi- ços abertos à apropriação coletiva.
ções que surgem (e que a história contempo- Os recursos comuns têm sustentado socie-
rânea tem demonstrado ser inerentes) entre dades humanas por um longo tempo, mas a for-
democratização e neoliberalização, mas, para mação – e contínua expansão e reprodução – do
além, aponta para a necessidade de se pensar modo capitalista de produção, baseado na pro-
em construções alternativas coletivas que não priedade privada e na relação mercantil, foi (e
passem necessariamente pelo âmbito do Esta- ainda é) alcançada pelo cercamento, expropria-
do – que este tenderá a reprimir, na medida ção e mercantilização do comum. Marx (2013
em que elas demonstrem potências de enfra- [1867]) e Polanyi (2012 [1944]) revelaram que
quecer relações sem as quais o hegemônico a gênese histórica do capitalismo, sistema
não se sustenta. econômico de mercado baseado na separação

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A metrópole entre o neoliberalismo e o comum

entre produtores e seus meios de produção, en- as tentativas de transformar a Internet livre em
contra-se no processo de cercamento – privati- um mercado de propriedade fechada, a mer-
zações – das terras comunais na Inglaterra. Os cantilização de infraestruturas urbanas e es-
direitos costumeiros e regimes de propriedade paços públicos, etc. Nas palavras de Linebaugh
comunal da terra e dos recursos, cultivados por (2014), o processo de cercamento é o antônimo
séculos, foram violenta e/ou institucionalmente histórico do comum. Ontem e hoje.
destruídos e eclipsados, dando lugar à hege- As resistências aos novos cercamentos
monia da propriedade privada e ao desenraiza- e privatizações perpetrados pelo capitalismo
mento da economia das demais esferas sociais. neoliberal revelaram um mundo de proprie-
Mas o cercamento do comum não foi um fenô- dades e relações comunais que se imaginava
meno histórico restrito à Europa: a colonização extinto ou não valorizado: e mais, chamaram
do planeta pelo Ocidente deu-se também como a atenção não apenas para o fato de que o
um violento processo de despossessão e apro- comum tenha sobrevivido, mas de que novas
priação colonial de terras e recursos que eram formas de cooperação social estejam continua-
usados comunalmente por outros povos e que mente a ser produzidas. No caso do século
constituíam o fundamento territorial da sua passado, a ideia “pré-moderna” do comum
sobrevivência, material e simbólica. No Brasil, reapareceu como um potente conceito teóri-
por exemplo, a implantação do projeto colonial co e discurso político, apontando alternativas
português deu-se pela sistemática apropriação, para além da dicotomia Estado-mercado, do
exploração e destruição das terras, meios de vi- público-privado. Como apontado por uma mi-
da e saberes comuns dos inúmeros povos que ríade de autores (Bollier, 2014; Dardot e Laval,
aqui viviam (Ribeiro, 2006). 2014; Federici, 2010; Hardt e Negri, 2009; e
Tampouco o assalto global ao comum é Linebaugh, 2014), hoje o comum contribui para
apenas um registro histórico: ele prossegue a dar sentido, potencializar e conectar uma plu-
todo vapor nas fronteiras de avanço da acumu- ralidade de lutas e resistências anticapitalistas
lação capitalista no mundo pós e neocolonial. em todo o mundo.
Conforme visto na sessão acima, em decor- Quais as razões por trás da (re)apro-
rência da expansão do capitalismo neoliberal, priação dessa ideia supostamente arcaica?
desde as últimas décadas do século XX pode-se Por um lado, pode-se falar da necessidade de
mesmo falar de um novo ciclo de cercamen- repensar e propor alternativas democráticas
tos massivos do comum em escala global, de à falência soviética e dos demais socialismos
mercantilização da natureza que se dá como reais, noutros termos, do modelo estatista de
uma acumulação por despossessão (Harvey, revolução que, por décadas, havia servido de
2004). A expropriação da nossa riqueza comum orientação às tentativas radicais de construir
se dá hoje, nos termos de Bollier (2014), sob uma alternativa ao capitalismo; por outro, há
formas tão diversas quanto o patenteamento o crescente reconhecimento e indignação so-
de genes e as formas de vida, a extensão das ciais ante os efeitos deletérios da total subor-
leis de direitos autorais sobre a criatividade e dinação da natureza e da vida ao capital, da
a cultura, a privatização da terra e das águas, extensão da lógica neoliberal da competição

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João Bosco Moura Tonucci Filho, Felipe Nunes Coelho Magalhães

à toda a sociedade (Dardot e Laval, 2014; e e históricas de inúmeras experiências bem-


Federici, 2010). -sucedidas de gestão coletiva de recursos co-
Se a crise do Estado keynesiano de bem- muns (common-pool resources) ao redor do
-estar social e a do Estado soviético tornaram mundo (florestas, pastos, pesqueiros, etc.). Ao
evidentes os limites do intervencionismo, a cri- revelar uma rica mistura de institucionalidades
se global do capitalismo financeiro detonada coletivas distintas das soluções privatistas de
em 2008 tem colocado em xeque a panaceia mercado e do intervencionismo estatal, Os-
neoliberal das “soluções de mercado”. Sob o trom escancarou os limites da falaciosa nar-
neoliberalismo, que ataca qualquer foco de re- rativa da “tragédia do comum” traçada por
sistência à norma geral da concorrência, o Es- Hardin (2009 [1968]), que previa que qualquer
tado é tanto alvo de políticas que visam a en- recurso comum de livre acesso estaria fadado
quadrá-lo nessa lógica, tornando-o mais “com- à superexploração. Essa perspectiva aberta
petitivo” e “eficaz”, quanto é ele mesmo que por Ostrom teve muita repercussão no debate
organiza o seu desaparecimento – via privati- ambiental, principalmente por haver trazido à
zações, desregulamentações, etc. – em favor do tona que a gestão de recursos naturais pelas
privado. Dardot e Laval (2014) consideram que, próprias comunidades poderia ser mais susten-
sob tais condições de hibridização generaliza- tável, em algumas circunstâncias, do que a ges-
da entre o Estado e o mercado, não cabe mais tão pelo Estado ou pelo mercado.
opor frontalmente o público ao privado. Entretanto, a perspectiva aberta por
Mas a emergência contemporânea do Ostrom, circunscrita aos limites da economia
comum não se dá apenas no plano político, liberal, acaba por reificar os recursos comuns
tendo importantes implicações no âmbito como um tipo específico de bens complemen-
das ciências humanas e sociais. Segundo Wall tares aos bens públicos e privados, e não a
(2014), o debate teórico sobre o comum en- eles opostos, ofuscando, assim, as relações
volve complexas nuances epistemológicas e de poder; além de, por vias de um economi-
ontológicas e atravessa inúmeras disciplinas cismo funcionalista centrado na maximização
(como antropologia, ecologia, direito, geogra- da utilidade individual, recusar-se a reconhe-
fia, história e economia, dentre outras). Grosso cer que as pessoas possam ter motivações
modo, os estudos sobre o comum dividem-se não-econômicas para cooperarem. As abor-
em duas grandes abordagens: uma desenvolvi- dagens de cunho mais crítico sobre o comum
da no âmbito das ciências sociais mainstream, tentam levar em consideração essas ques-
sob a égide do pensamento econômico liberal; tões, tendo em vista que o comum é antes
e a segunda, formulada nos termos da teoria uma relação social e um conceito político do
crítica, em estreita proximidade com a crítica que um bem ou um regime coletivo de pro-
da economia política. priedade. Ademais, partem do entendimento
A primeira abordagem é tributária dos de que o comum é antagônico ao capital, e
trabalhos da economista Elinor Ostrom (1990), que o capitalismo, onde quer que se insta-
que foi pioneira em sistematização e análi- le, o faz cercando e expropriando o comum,
se de evidências antropológicas, sociológicas minando as possibilidades de reprodução e

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A metrópole entre o neoliberalismo e o comum

produção social fora do âmbito compulsório (2010) vai defender que a política do comum
do mercado. seja encarada a partir de uma perspectiva fe-
Dardot e Laval (2014) reconhecem, na minista constituída em torno da vida cotidiana,
obra de Michael Hardt e Antonio Negri, a pri- do trabalho de reprodução social (trabalho do-
meira teoria de cunho crítico do comum. Como méstico não remunerado, atividades não mo-
visto, o argumento central de Hardt e Negri netizadas, produção de valores de uso, etc.),
(2009) é que a indústria e o trabalho material estruturalmente a cargo das mulheres. As lutas
já não detêm a hegemonia sobre a economia femininas pelo comum mostram como a coleti-
e a sociedade, perdendo espaço nas últimas vização e o compartilhamento dos meios mate-
décadas para a produção biopolítica (ou ima- riais de reprodução constituem a primeira linha
terial, cognitiva) de ideias, linguagens, afe- para desligar nossa reprodução do mercado ca-
tos, códigos, imagens, etc. Ao contrário dos pitalista, tornando-a mais cooperativa. Também
recursos naturais, o comum imaterial produzido para De Angelis (2007), essas práticas de repro-
em rede tem reprodutibilidade e compartilha- dução (que podem ser orientadas por relações
mento indefinidos, potencialmente escapando e valores, como a dádiva, a reciprocidade, a
às circunscrições da propriedade privada. Por- solidariedade e a cooperação) constituem um
tanto, uma sociedade baseada no comum já comum “fora” e antagônico ao capital.
estaria em gestação pela crescente introdução Uma outra perspectiva crítica importan-
de elementos cognitivos comuns no coração te sobre o comum foi formulada por Dardot
da produção capitalista. Abre-se, portanto, um e Laval (2014), para os quais o comum, no
espaço para gestação do comunismo, tal qual substantivo, corresponde ao princípio político
defendido por Marx, por meio das próprias segundo o qual a participação em uma ativida-
contradições agenciadas pelo capital. Tal proje- de coletiva constitui o fundamento da coobri-
to político atravessa diagonalmente a oposição gação política. O comum não se confunde com
binária entre socialismo e capitalismo e entre os recursos comuns, ou com o bem comum.
seus regimes de propriedade correspondentes: Deve-se falar, portanto, de comuns para de-
o público e o privado, excludentes do comum. signar não aquilo que é, naturalmente ou por
O lócus da produção de riqueza extravasa as direito, comum, mas aquilo que é investido por
fronteiras da fábrica para recobrir e mobilizar uma atividade de compartilhamento. Assim,
toda a vida, deslocando-se para a metrópole, há comuns de espécies muito diferentes em
usina biopolítica do comum. função do tipo de atividade que os instituem
Entretanto, o foco de Hardt e Negri no (comuns fluviais, florestais, de produção, de
comum imaterial deixa de lado o comum ges- conhecimento, etc.). É a atividade que “torna
tado em margens e periferias do capitalismo, comum” a coisa, inscrevendo-a em um espaço
assim como os recursos “naturais” e a própria institucional mediante a produção coletiva de
terra, ainda essenciais à sobrevivência de gran- regras específicas. Dardot e Laval defendem
de parte da população mundial não integrada que esse princípio do comum emergiu no seio
aos circuitos mais avançados da economia. das próprias lutas e movimentos em contrapo-
É contra esse silêncio e ausência que Federici sição à racionalidade neoliberal, à extensão da

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João Bosco Moura Tonucci Filho, Felipe Nunes Coelho Magalhães

lógica proprietária a todas as esferas da vida comunitários, espaço em que esse mesmo in-
e da natureza, já que a propriedade privada, divíduo – produto da nossa modernidade – é
base filosófica, jurídica e econômica do capita- obrigado a trafegar anonimamente com certa
lismo, retira as coisas do uso comum e corrói indiferença e segundo seus interesses parti-
a cooperação. Portanto, o comum deve ser de- culares ou com aquela atitude blasé de que
finido por uma norma de inapropriabilidade e falava Simmel (1973), para não se deixar ser
disponibilidade das coisas contra a apropriação arrebatado e subjetivamente dilacerado pelos
exclusivista e depredadora, seja ela pública ou desconcertantes estímulos das ruas e do mun-
privada. Trata-se, enfim, da experimentação de do da mercadoria. A urbanização é usualmen-
um direito de uso coletivo contra o direito de te tomada como força anticomum, na medida
propriedade, mais do que da reivindicação de em que se reconhece a formação da metrópo-
uma propriedade coletiva. le moderna (industrial) como o outro lado da
moeda do processo histórico de cercamentos e
despossessões que assolou o campo nos albo-
O comum urbano: a cidade res do modo de produção capitalista.
contra o neoliberalismo Entrementes, inúmeros movimentos, co-
letivos e ativistas, ao redor do mundo invocam
Como visto, as abordagens teóricas e os es- a ideia do comum para orientar suas ações de
tudos históricos e antropológicos disponíveis contestação, apropriação e transformação co-
sobre o comum, seja em sua vertente liberal letiva da cidade; noutros termos, sua luta pe-
institucionalista ou nas suas formulações mais lo direito à cidade (Lefebvre, 2008 [1968]) em
radicais, abarcam em seu registro empírico oposição à intensificação dos cercamentos,
tanto os recursos naturais e terras comunais privatizações e despossessões decorrentes da
quanto o comum imaterial e digital. Logo, em neoliberalização do urbano. Segundo Foster
um movimento geográfico e epistemológico de e Laione (2016), a linguagem do comum vem
consequências não desprezíveis, salta-se dos sendo mobilizada para reivindicar e proteger
domínios da natureza e do campo ao universo um conjunto de recursos e bens urbanos que
cibernético e informacional, passando ao largo poderiam ser mais amplamente compartilha-
da realidade urbana. Ao mesmo tempo que a dos entre os habitantes da cidade.
urbanização planetária se afirma como ten- Esses autores identificam a existência do
dência irreversível, os pesquisadores do comum potencial para uma ampla gama de comuns
não se propuseram – salvo notáveis exceções – em diferentes escalas do espaço urbano, tais
a discutir mais detidamente como seria olhar como o próprio solo urbano (particularmente
para a urbanização contemporânea a partir terras vagas e não construídas), uma variedade
do comum, nem a se interrogar sobre como se de espaços abertos e de infraestruturas (como
produzem espaços comuns na metrópole. as ruas) e a reivindicação ao uso e ocupação
Muito já foi dito e escrito sobre a metró- de edifícios e estruturas, públicos ou privados,
pole como o espaço por excelência do indiví- abandonados ou subutilizados. Outros pes-
duo atomizado, desgarrado de quaisquer laços quisadores também atentaram para esse fato

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A metrópole entre o neoliberalismo e o comum

e puseram-se a investigar espaços que são ou políticas (Praça Syntagma, Praça, Tahrir, Plaza
poderiam ser comuns: espaços públicos, calça- de Catalunya)? Portanto, proteger o comum
das, hortas comunitárias, parques, centros cul- exige também que se proteja o fluxo de bens
turais autogeridos, transporte público, energia públicos que sustentam a vida urbana, contra
e água, moradias coletivas, etc. (Dellenbaugh privatizações e cercamentos neoliberais.
et al., 2015; e Kip, 2015). Certos espaços na Para Lefebvre (2008 [1968]), a cidade é
metrópole brasileira que encerram práticas so- uma obra coletiva, calcada no uso (e no valor
lidárias, compartilhadas, etc., principalmente de uso), em detrimento da mercadoria, do valor
nos territórios populares e periféricos (embora de troca. Socialmente produzida, a cidade é di-
não todos), podem também ser considerados ferente de todos os demais produtos: o que lhe
comuns urbanos. dá especificidade é o primado do valor de uso
Ainda que a terra urbana esteja hoje sobre o valor de troca. Na cidade capitalista, es-
profundamente mercantilizada e subsumida se valor de uso da cidade é eviscerado pela ló-
aos mais avançados circuitos da produção do gica de mercado e pela difusão da propriedade
espaço pelo capital, de modo algum ela deixa privada (da terra, dos imóveis, do espaço, etc.),
de ser um dos fundamentos da reprodução da daí a luta pelo direito à cidade, pelo uso e apro-
vida coletiva: daí as várias lutas em torno de priação coletiva do espaço. Mas não é a própria
espaços urbanos que contestam certas confi- cidade um bem ou recurso comum que passa a
gurações de direitos de propriedade resistindo ser objeto das mais diversas apropriações, in-
ao cercamento dos comuns (Blomley, 2004), e vestimentos e disputas? Não é ela também um
as muitas reivindicações para tornar a terra um caldeirão produtivo, espaço de concentração de
comum no qual as necessidades sociais (valor capitais, meios de produção e força de traba-
de uso) seriam favorecidas em detrimento de lho, ela própria uma força produtiva coletiva?
necessidades puramente políticas e econômi- Alguns teóricos valeram-se, ainda, da noção do
cas (valor de troca). comum urbano para se referirem à essa dimen-
Harvey (2012) distingue entre, de um são mais ampla da vida urbana, da experiência
lado, espaços públicos e bens públicos e, de urbana coletiva, da potência que a cidade tem
outro, os comuns. Os processos de industria- de provocar encontros e entrelaçar relações de
lização e urbanização exigiram que o Estado comunalidade, da própria cidade como um bem
nacional e as administrações públicas locais se ou recurso comum.
encarregassem de garantir bens públicos urba- Foster e Laione (2016) reconhecem que o
nos, tais quais habitação social, saneamento, ímpeto principal por trás das contestações em
pavimentação, água, saúde, educação, espaços torno de quem usa e se beneficia do espaço
abertos, etc. Ainda que tais bens públicos pos- urbano (e que estão na origem de muitas expe-
sam contribuir para as qualidades do comum, riências de comuns) reside no confronto entre
é preciso ação política dos cidadãos para deles a crescente privatização e mercantilização dos
se apropriar, protegê-los, fortalecê-los e torná- bens e recursos comuns na cidade neoliberal e
-los efetivamente comuns. Não é esse o caso os movimentos sociais urbanos que reivindi-
das praças apropriadas para manifestações cam não apenas um “direito” a este ou aquele

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João Bosco Moura Tonucci Filho, Felipe Nunes Coelho Magalhães

recurso particular, mas o “direito à cidade” co- Ainda que muitas vezes não possa ser cerca-
mo direito à tomada de decisões democráticas do (em sentido estrito), esse comum urbano
sobre o espaço urbano como um todo. é capitalizado e apropriado privadamente via
Para Simone (2014), o comum urbano renda fundiária. Para o autor, a urbanização
não é apenas uma coleção de coisas (edifícios, capitalista realiza-se contraditoriamente como
infraestruturas, espaços públicos, etc.) aces- produção permanente de um comum urbano e
síveis a uma ampla gama de usos e atores, já como simultânea degradação e expropriação
que seu sentido reside principalmente nas re- desse mesmo comum pela ação predatória do
lações e práticas mutáveis de comunalidade, capital e do Estado.
de entrelaçamento entre diferenças, de com- Tonucci Filho (2017) considera que o
partilhamento e de complementaridade que comum urbano geralmente se afirma nas prá-
são produzidas pelos residentes urbanos nos ticas socioespaciais insurgentes e contra-he-
seus engajamentos cotidianos entre si e com a gemônicas que povoam dobras e interstícios
cidade. Também Hardt e Negri (2009), como já do espaço abstrato, em emergentes processos
mencionado, consideram que a cidade não se de apropriação e experimentação espacial que
reduz ao ambiente construído, pois é um dína- cultivam o sentido do uso, da obra e da diferen-
mo de práticas culturais, circuitos intelectuais, ça contra o valor de troca e a dominação, nas
instituições sociais e redes afetivas. Esses ele- aberturas e desestruturações que desafiam as
mentos do comum contidos na cidade não tentativas de manter a cidade “na linha”. Nas
são apenas os pré-requisitos para a produção metrópoles do Sul global, essa pluralidade de
biopolítica, mas também seu próprio resultado. práticas urbanas comuns que escapam e/ou se
Nos termos dos autores, a metrópoles contem- contrapõem ao Estado e ao capital florescem
porânea é uma usina biopolítica do comum, num campo opaco e incerto demarcado pela
tanto fonte quanto receptáculo da produção do instabilidade e abertura da periferia, na qual
comum imaterial, cognitivo. relações informais de reciprocidade e comparti-
Já Harvey (2012) considera que a cidade lhamento sobrepõem-se às teias de subjugação
é o lócus em que pessoas de todos os tipos e da vida e do espaço.
classes se misturam, mesmo que de modo re- Portanto, os comuns não são apenas o
lutante e agonístico, para produzir uma vida território de uma nova geração de grupos ati-
comum, embora perpetuamente mutável e vistas: nas metrópoles brasileiras, o fazer-co-
transitória. Entretanto, as comunalidades dessa mum há muito tempo encontra-se incorporado
vida urbana – comentadas por urbanistas e ce- nas favelas, periferias e espaços – tais quais as
lebradas por amantes da cidade desde há mui- ocupações de moradia (ibid.) – designadas aos
to – encontram-se demasiado ameaçadas pela pobres urbanos, devido ao entrelaçamento en-
onda neoliberal de privatizações, cercamentos, tre estratégias de sobrevivência, informalidade,
controles espaciais, policiamento e vigilância. engenhosidade coletiva e reprodução social.

450 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 433-454, maio/ago 2017
A metrópole entre o neoliberalismo e o comum

generalização do mercado que atinge a própria


Considerações finais
produção do urbano em seu âmago.
Daí a relevância e a atualidade de se pen-
Muitos dos processos metropolitanos contem- sar a metrópole do comum contra a metrópole
porâneos – desindustrialização, gentrificação, neoliberal. A lógica do urbano – definido por
financeirização, endividamento, onipresença Lefebvre como o espaço da centralidade, do
do etos da competição, enfraquecimento e encontro e da produção de diferenças – pode
sucateamento de estruturas coletivas e o im- se encontrar com a lógica do comum (o com-
perativo das soluções privadas e individuais partilhamento) contra a lógica da mercadoria,
para problemas de ordem pública, privatização contra a ordem proprietária. Apesar de seus
dos espaços e infraestruturas públicas, dentre constrangimentos, da sua submissão ao Estado
inúmeros outros – relacionam-se de formas e ao capital, a cidade continua sendo um espa-
diversas ao neoliberalismo enquanto forma ço generativo e contraditório onde variados ti-
de estruturação do Estado e dos aparatos de pos de recursos, bens e espaços comuns podem
governo e exercício do poder na sociedade. florescer, articular-se e fortalecer-se.
Trata-se de um emaranhado de dinâmicas que Da mesma forma que o presente argu-
tende à generalização da lógica da produção mento se pauta por uma postura de pluralismo
de mercadorias e da competição no mercado teórico-metodológico dentro do campo assumi-
em domínios anteriormente restritos à sua pe- damente progressista, não buscamos indicar,
netração. O momento atual no Brasil é repleto de forma alguma, a proposição normativa das
de manifestações dessa lógica, que perpassa a potências da construção do comum de forma
nova rodada de reajuste neoliberal e readequa- unívoca. Trata-se de um terreno formador de
ção do aparato regulatório que inclui, além da alternativas radicais à neoliberalização da cida-
simples retirada de direitos coletivos politica- de e do espaço, em conjunto e cooperação com
mente construídos e conquistados, a transfor- pautas ligadas à radicalização da democracia
mação do provimento público de serviços em e às práticas agonísticas de transformação ra-
terreno de expansão potencial para provedores dical das instituições (Mouffe, 2013) – tema
privados (geralmente oligopolizados) de pre- que transborda o escopo do argumento aqui
vidência, educação, saúde, etc. O processo de delineado –, pois se o neoliberalismo urbano
financeirização vem a reboque de forma direta tem pilares fundamentais no Estado, sua trans-
através do ganho extraordinário de atrativida- formação na direção de se abrir espaço para
de da previdência privada e indiretamente na que o comum possa surgir e se reproduzir tor-
demanda por crédito gerada pela necessidade na-se imprescindível.
de acesso aos demais serviços. Sendo terreno O exercício da hegemonia sustenta-se
de grande concentração da oferta de tais ser- num conjunto ampliado de relações sociais,
viços, as metrópoles abrigam parte substan- que envolve uma intrínseca assimetria de po-
cial desses potenciais novos mercados, que se der em relações de dominação e exploração.
somam a um nexo de organização socioespa- Rotas de fuga possíveis que criem alternati-
cial já pautado pelo aprofundamento e pela vas e enfraqueçam tais vínculos tendem a ser

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 433-454, maio/ago 2017 451
João Bosco Moura Tonucci Filho, Felipe Nunes Coelho Magalhães

diretamente reprimidas pelo agenciamento construí-lo sem a repressão direta do Esta-


que opera e reproduz o hegemônico. Ou se- do, o que invoca a necessidade de sua ampla
ja, é importante pensar a construção do di- transformação para tal. Sustentamos a pro-
reito ao comum , caso contrário os poderes posição de que o comum, a despeito de seus
que atravessam o Estado tendem a continuar limites e contradições, é um potente mote
impedindo violentamente sua constituição aglutinador, capaz de prover direcionamen-
ainda enquanto potência. Se o neoliberalismo to a um ampliado leque de pautas centrais
se constitui no espaço social como uma forma na questão urbana contemporânea, de unir
de exercício do poder hegemônico – dentre esforços e construções de possibilidades de
outras facetas interligadas –, as aberturas transformação e alternativas diante do avan-
democráticas para a potência do comum pas- ço das hegemonias neoliberais sobre a produ-
sam necessariamente pela possibilidade de ção do espaço.

João Bosco Moura Tonucci Filho


Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Geociências. Belo Horizonte, MG/Brasil.
jontonucci@gmail.com

Felipe Nunes Coelho Magalhães


Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Geociências. Belo Horizonte, MG/Brasil.
felmagalhaes@gmail.com

Notas
(1) As crí cas à ideia e à conceituação da cidade neoliberal propostas por Storper (2016), além de se
construírem a par r de ataques à validade teórico-conceitual da própria noção de neoliberalismo,
como tão recorrente nos campos dominantes e hegemônicos da ciência econômica e
do jornalismo mainstream das últimas décadas, perdem de vista essa transescalaridade
fundamental não somente do neoliberalismo urbano (que, consequentemente, não pode ser
compreendido de forma adequada em abordagens restritas a escalas menores e suas respec vas
ins tuições), mas da própria dinâmica neoliberal de forma ampla, que é fundamentalmente
interligada à globalização e dependente de seus desdobramentos.

(2) Estrutura de mercado em que a oferta é caracterizada por produtos que são similares, mas
com características distintas o suficiente para serem tratados como únicos, portanto sem
concorrência, como é o caso dos imóveis.

452 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 433-454, maio/ago 2017
A metrópole entre o neoliberalismo e o comum

(3) Como no “urbanismo em bolhas” – produzido em larga escala na metrópole brasileira a


par r do final da década de 1980, em certa medida em resposta às deteriorações do espaço
público e ao aumento da violência urbana –, formado pela tríade condomínio fechado (não
necessariamente horizontal) e com relações defensivas com seu entorno imediato, primazia
dos automóveis e motocicletas, preferencialmente em vias expressas, e shopping centers.
Esse modelo apropria-se, não necessariamente de forma consciente, de alguns elementos
fundantes do urbanismo modernista, recusando as intenções voltadas à construção do espaço
da esfera pública naquele contexto.

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Texto recebido em 9/dez/2016


Texto aprovado em 5/abr/2017

454 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 433-454, maio/ago 2017
Operações urbanas consorciadas
com Cepac: uma face da constituição
do complexo imobiliário-financeiro
no Brasil?
Urban partnership operations with Cepac:
a part of the constitution of the real
estate-financial complex in Brazil?

Laisa Eleonora Maróstica Stroher

Resumo Abstract
Este trabalho propicia uma visão panorâmica críti- This article provides a critical overview of the
ca sobre a literatura acerca da implementação das literature on the implementation of Urban
Operações Urbanas Consorciadas (OUCs) com Cer- Partnership Operations (UPOs) with Cepac
tificado de Potencial Adicional Construtivo (Cepac) (additional building right certificate) in Brazil, based
no Brasil, com base em um enfoque teórico inspira- on a theoretical approach inspired by debates on
do nos debates sobre financeirização espacial, de spatial financialization, in articulation with the
forma articulada à abordagem dos regimes espa- state spatial regimes approach (as discussed by the
ciais estatais (da Escola de Regulação anglo-saxã). Anglo-Saxon Regulation School). The methodology
A metodologia baseou-se em uma seleção de ar- was based on a search and selection of papers
tigos sobre experiências de OUCs, os quais foram that address UPO experiences. The papers were
analisados a partir de questionamentos centrais às analyzed from central issues related to the
abordagens teóricas elencadas, a saber: “quais as theoretical debates discussed, namely: What are
principais articulações entre os agentes do merca- the main articulations among financial market
do financeiro, imobiliário e o Estado e quais suas agents, real estate market agents and the State?
estratégias (materiais e discursivas)?”; “De que What are their strategies (material and discursive)?
forma as disputas em torno das OUCs têm contri- How have struggles over UPOs contributed to
buído para moldar o Estado?”; e “Quais as princi- shaping the State? What are the main socio-spatial
pais contradições socioespaciais promovidas?”. contradictions that have been promoted?
Palavras-chave: operação urbana consorciada; Keywords: urban partnership operations; Cepac;
Cepac; financeirização urbana; reescalonamento; urban financialization; rescaling; large urban
grandes projetos urbanos. projects.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 455-477, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3905
Laisa Eleonora Maróstica Stroher

as análises sobre as OUCs, bem como verifi-


Introdução
car as possibilidades de diálogos com o qua-
dro teórico aqui discutido. Pretende-se, dessa
Este trabalho1 visa propiciar uma visão pano- forma, contribuir para uma aproximação entre
râmica sobre a literatura acerca da implemen- a práxis e os debates teóricos no campo dos
tação das Operações Urbanas Consorciadas estudos urbanos, já que, como argumenta
(OUCs) no Brasil, com base em um enfoque Law-Yone (2007), a produção teórica nesse
teórico inspirado nos debates sobre financeiri- campo vem paulatinamente se distanciando
zação espacial de forma articulada à aborda- dos contextos práticos, materiais e sociais do
gem dos regimes espaciais do Estado, da Es- planejamento urbano.
cola de Regulação anglo-saxã. A partir dessa Como fonte de pesquisa, foram estabe-
ótica, pretende-se discutir os nexos entre o lecidos os artigos das revistas indexadas pela
processo de financeirização global e as dispu- Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
tas locais que envolvem as OUCs. Busca-se, de Nível Superior (Capes). Em seu portal, fo-
ainda, contextualizar as OUCs como parte da ram encontrados dezoito artigos que discutem
dinâmica de reestruturação territorial-escalar experiências de OUCs,3 dos quais foram esco-
pós-crise do Estado Nacional Desenvolvimen- lhidos apenas oito para serem problematiza-
tista2 no País. dos, uma vez que foram excluídos os artigos
A metodologia de pesquisa baseou-se, em que tratam de OUCs que não chegaram a se
uma primeira etapa, em busca e seleção de arti- efetivar ou que não relacionavam discussões
gos que abordassem experiências de implemen- teóricas aos estudos de caso.
tação de OUCs. Em seguida, tais artigos foram O trabalho é dividido em três partes. Na
analisados a partir de questionamentos centrais primeira são apresentadas as lentes teóricas
aos debates teóricos elencados, a saber: através das quais se pretende discutir os arti-
• quais as principais articulações entre os gos, sem pretensões de esgotar o tema. Na se-
agentes do mercado financeiro, imobiliário e gunda é problematizado o resultado da análise
o Estado; e quais suas estratégias (materiais e dos trabalhos, que abordam quatro OUCs em
discursivas)? curso: Água Branca (um artigo), Água Espraia-
• De que forma as disputas em torno das da e Faria Lima (cinco artigos), ambas em São
OUCs têm contribuído para moldar o Estado? Paulo; e Porto Maravilha (dois artigos), no Rio
• Quais as principais contradições socioespa- de Janeiro. Nas conclusões, são apresentadas
ciais promovidas? as principais constatações a respeito dos ques-
Interessa, ainda, analisar quais as lentes tionamentos que motivaram a pesquisa, além
teóricas utilizadas nos trabalhos, a fim de re- de considerações sobre lacunas na literatura
fletir sobre possíveis complementaridades ou que contribuem para compor uma agenda fu-
divergências entre as teorias que suportam tura de pesquisa.

456 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 455-477, maio/ago 2017
Operações urbanas consorciadas com Cepac

as instabilidades e as disparidades territoriais,


Reescalonamento &
através da difusão de estratégias empresariais
financeirização espacial de gestão urbana.
Um dos temas-chave relacionados à de-
Essa abordagem se baseia na teoria dos regi- sestruturação do regime keynesiano refere-se
mes espaciais, formulada por Brenner (2004). à importância que têm assumido os grandes
Trata-se de teoria realizada a partir de uma projetos de desenvolvimento urbano (GPUs)
articulação entre o materialismo científico geo- fomentados através de Parcerias Público-
gráfico – de Lefebvre, Harvey, entre outros – e -Privadas (PPPs), como forma de promover
a teoria do Estado Estratégico Relacional – de a competição entre as cidades para atrair o
Bob Jessop. Entende-se, a partir dessa visão, capital financeiro internacional excedente
que o Estado e a sua espacialidade (a forma (Brenner, 2004; Harvey, 1989; Swyngedouw,
como se organiza e intervém no espaço, nas Moulaert e Rodriguez, 2002). Essa forma de
diversas escalas) não são estáticos, ambos se intervenção tem sido amparada pelo paradig-
alteram em função das mudanças no regime de ma do planejamento estratégico. Antigas áreas
acumulação capitalista, bem como através da industriais, áreas portuárias e terrenos vagos
luta dos agentes pelo Estado, buscando preen- foram ocupados por megaempreendimentos
chê-lo de acordo com seus interesses. Essa imobiliários, que passaram a representar as
interação é determinante para compreender a novas centralidades urbanas: como o London
seletividade do Estado em relação aos espaços Docklands, em Londres; o Battery Park City,
(territórios de intervenção, escalas de gover- em Nova York e La Défense, em Paris (Nobre,
nança, etc.) e aos grupos sociais priorizados em 2009). Os antigos usos foram substituídos por
determinado momento histórico. outros mais rentáveis, priorizados pela reestru-
A partir desse entendimento, diversos turação econômica, como serviços financeiros,
autores têm demonstrado como a espacialida- de comunicação, turismo e entretenimento.
de do Estado tem se moldado a partir da crise Outra expressão importante do rees-
do Estado de Bem-Estar, com especial atenção calonamento do Estado refere-se à chamada
a Europa Ocidental e Estados Unidos. Brenner financeirização do espaço. Embora esse tema
(2004) tem teorizado sobre a transição de um não seja usualmente tratado nos trabalhos que
regime espacial keynesiano – baseado (pre- discutem a teoria do reescalonamento estatal
dominantemente) em projetos e estratégias nem na literatura sobre os GPUs, entende-se
redistributivos coordenados pelo Estado Na- que ele seja central para entender as transfor-
ção – para um regime espacial reescalonado mações na atuação do Estado, bem como os
e competitivo. Em linhas gerais, evidencia-se conflitos que circundam a implementação dos
a emergência de um regime com enfoque na processos de renovação urbana.
competitividade urbano-regional, bem como O debate sobre a financeirização destaca
na proeminência do papel de outras escalas a centralidade da terra e do ambiente construí-
(como as supranacionais e subnacionais). O do para o salto de capital fictício nas últimas
autor entende que esse regime tem aumentado décadas, por meio da criação de uma enorme

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 455-477, maio/ago 2017 457
Laisa Eleonora Maróstica Stroher

variedade de instrumentos que ligam o fun- coletivos (Aalbers, 2008; Rolnik, 2015), o que
diário e o imobiliário ao mercado de capitais, implica direcionamentos bastante distintos da
como: a securitização das hipotecas habita- política urbana.
cionais, das rendas provenientes de aluguéis, Ao analisar os impactos sobre a política
dos impostos ligados ao imobiliário e fundiário habitacional em vários países nas últimas dé-
(Aalbers, 2008; Weber, 2010; Fix, 2011). Esses cadas, Rolnik (2015) destaca dois movimentos
ativos financeiros têm sido alguns dos princi- simultâneos: um enfoque em políticas que vi-
pais alvos da nuvem de capital excedente da sam ao acesso à moradia pela via da proprie-
Ásia, Europa e Estados Unidos, especialmente a dade privada (condição essencial para que a
partir dos anos 1990. casa possa se tornar um ativo financeiro mais
Dessa forma, uma gama maior e mais líquido) – o que implicou, por exemplo, pro-
diversificada de atores (agentes do mercado cessos de privatização de antigos parques pú-
financeiro, investidores no mercado de capi- blicos habitacionais de aluguel na Europa – e
tais, etc.), em diversas partes do mundo, pas- uma posterior reestruturação regulatória do
sa a participar dos jogos especulativos imobi- financiamento imobiliário, para possibilitar a
liários locais, alterando a estrutura do conflito promoção dos títulos financeiros lastreados
sobre a produção do espaço. Em termos de em imóveis.
reescalonamento, é possível afirmar que, com No que tange ao planejamento urbano,
a financeirização, as disputas em torno do um dos impactos discutidos é a subordinação
espaço são cada vez menos definidas pelos dos projetos de renovação urbana aos interes-
processos que ocorrem nos contornos locais e ses do complexo imobiliário-financeiro (Weber,
nacionais estritos, tratando-se cada vez mais 2010; Guironnet e Halbert, 2015; Savini e
de uma luta glocalizada. Evidentemente, que Aalbers, 2015; Kaika e Rugierro, 2016). Essas
a trajetória de financeirização é muito dife- literaturas debatem os efeitos da articulação
renciada de acordo com contexto histórico e desses projetos com arranjos financeiros vin-
geográfico, especialmente se compararmos o culados ao mercado de capitais (por meio de
Sul e o Norte globais. composições diversas, envolvendo securitiza-
Além de um processo de imbricação ção de impostos das áreas de renovação, arti-
maior entre as múltiplas escalas, é possível ob- culações com fundos de investimento imobiliá-
servar uma articulação mais estreita entre os rios e outros). Uma das consequências relacio-
agentes que atuam no Estado, no setor finan- na-se à penetração da lógica de valorização
ceiro e no imobiliário. A fim de chamar atenção rápida (própria dos investidores no mercado
à centralidade dessa coalizão, Aalbers (2008) de capitais), o que influencia no direcionamen-
cunhou o termo “complexo imobiliário-finan- to do projeto para privilegiar usos com maior
ceiro”. Um dos impactos dessa conexão na potencial de alavancar a valorização imobi-
política urbana e habitacional tem sido possi- liária (que lastreia os ativos financeiros), em
bilitar uma ótica cada vez mais forte da terra e detrimento de outros usos mais conectados às
da moradia enquanto meros ativos financeiros, necessidades efetivas da população das áreas
em contraposição a uma visão enquanto bens de intervenção.4

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Operações urbanas consorciadas com Cepac

Reescalonamento do Estado Nacional para a criação do Sistema Financeiro Imobiliá-


Desenvolvimentista e financeirização rio (SFI), em 1997.
urbana no Brasil O SFI propiciou um quadro institucional
para a captação de recursos no mercado de
capitais para financiar o setor imobiliário, nos
Em relação ao contexto brasileiro, essas trans- moldes dos Estados Unidos e da Europa, inspi-
formações não ocorrem nos mesmos termos, rado no paradigma da nova economia institu-
visto que o País nunca viveu um regime de cional (Royer, 2014). Apesar de a justificativa
acumulação semelhante ao fordista keynesia- do SFI se estruturar na ideia de maior eficiência
no. Em distinção ao Estado de Bem-Estar So- do setor privado e na substituição do Sistema
cial, vigorou no Brasil, entre os anos 1930 e Financeiro Habitacional (SFH), mediado pelo Es-
início dos anos 1980, um modelo específico de tado), este continua dominando o financiamen-
Estado Nacional Desenvolvimentista, que asso- to habitacional. Os valores de 2012 mostram
ciou elevadas taxas de crescimento econômico que 93% do enorme montante da dívida em
a um processo intenso de polarização socio- habitação (R$195.000.000.000,00) no País foi
espacial. Portanto, os impactos do urbanismo financiado pelo SFH (Cagnin, 2012, pp. 20-21).
neoliberal e da financeirização no Brasil podem Além disso, ao contrário da hipótese
ser entendidos mais como um reforço da lógica de autossuficiência do mercado privado, os
seletiva de intervenção territorial do Estado, do recursos públicos têm sido essenciais para im-
que, de fato, como uma ruptura com o padrão pulsionar o SFI, seja através de isenções fiscais
que vigorou nos anos guiados pelas políticas (prática comum em vários países), seja, inusi-
desenvolvimentistas (como discutido em Klink, tadamente, através do investimento direto na
2014 e Stroher, 2017). compra de títulos imobiliários no mercado de
Vários autores que têm estudado as- capitais. Royer (2014) registrou as sucessivas
pectos da financeirização espacial brasileira mudanças de regulações do Banco Central que
(Fix, 2011; Klink e Denaldi, 2014; Royer, 2014) permitiram a captação do Fundo de Garantia
identificam a emergência desse fenômeno com do Tempo de Serviço (FGTS) – principal fonte
a desestruturação do Nacional Desenvolvimen- de financiamento de habitação social e sanea-
tismo, especialmente a partir dos anos 1990. O mento básico do País – para investimentos
caminho para impulsionar as formas privadas nesses títulos. Em 2011, o FGTS adquiriu quase
de financiamento habitacional no Brasil foi 20% do valor emitido em títulos do tipo Certi-
aberto após os ajustes econômicos nos anos ficado de Recebíveis Imobiliários (ibid., p. 20).
1990, com maior força especialmente após A contradição torna-se maior ao se obser var
plano de estabilização econômica do governo que a securitização imobiliária no Brasil é des-
Fernando Henrique. A diminuição e a estabili- tinada majoritariamente ao financiamento de
zação da inflação, alcançadas pelo Plano Real, construções comerciais de alto padrão. Nesse
reduziram os riscos investidores e abriram pers- sentido, a autora argumenta que o SFI tem
pectivas para impulsionar os mercados de cré- servido para encobrir a drenagem de recursos
dito privado de longo prazo,5 o que contribuiu do FGTS para os setores de mais alta renda.6

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 455-477, maio/ago 2017 459
Laisa Eleonora Maróstica Stroher

No que tange às transformações no pla- rentabilidade está associada à valorização imo-


nejamento urbano, ao mesmo tempo que ocor- biliária. Fix (2009, p. 53, grifo nosso) argumen-
reu a emergência de uma agenda de efetivação ta que: “com isso, cria-se a possibilidade de um
de direitos urbanos via políticas públicas após novo tipo de especulação imobiliária financeiri-
a crise dos anos 1980, também se observou a zada, com os investimentos feitos segundo os
emergência da ideia de entrada do capital pri- parâmetros e as expectativas próprios de uma
vado em setores anteriormente associados ao lógica de valorização de tipo financeiro”.
setor público. A própria construção do Estatuto As OUCs com Cepac têm se disseminado
da Cidade (lei federal nº 10257/2001) ilustra gradualmente após sua inserção no Estatuto da
bem esse cenário, com a incorporação das ope- Cidade. Conforme informações obtidas no por-
rações urbanas consorciadas; espécies de PPP, tal da Comissão de Valores Imobiliários (CVM),
inspiradas nas experiências internacionais de até o momento, há cinco OUCs com Cepac em
grandes projetos urbanos. curso no Brasil: Água Espraiada, Faria Lima e
As OUCs baseiam-se no instrumento Água Branca, em São Paulo; Porto Maravilha,
da Outorga Onerosa pelo Direito de Construir no Rio de Janeiro; e Linha Verde, em Curitiba.
(OODC), com a diferença de que os recursos Cabe destacar, ainda, que o Estatuto da Metró-
arrecadados só podem ser investidos na área pole (lei federal nº 13.089/2015) reforçou as
da OUC. Um formato de OODC que tem ga- OUCs, que agora figuram entre os instrumentos
nhado espaço é o Certificado de Potencial da governança metropolitana, com a possibili-
Adicional Construtivo (Cepac), que são títulos dade de aplicação interfederativa. Embora haja
comercializados na bolsa de valores, em lei- produtos financeiros com algumas caracterís-
lões públicos, que podem ser comercializados ticas em comum,7 à primeira vista parece que
em mercados secundários, antes de serem o Cepac não possui um correspondente exato
vinculados a um empreendimento. O Cepac fora do País.
é mais um dos produtos financeiros que pre-
tendem conectar os interesses dos agentes do
mercado imobiliário (proprietários de terra,
construtoras, incorporadoras, empreiteiras) e
Operações Urbanas
do mercado financeiro (possíveis investidores),
Consorciadas com Cepac
ao mesmo tempo que visa prover os governos
locais com recursos para financiar bens públi- Após esse panorama inicial, analisam-se os
cos. Esse modelo foi criado na OUC Faria Lima, oito artigos selecionados para discussão so-
aprovada em 1995, na gestão Maluf, mas só bre operações urbanas consorciadas, a saber:
pôde ser implementado em 2004, após sua Sánchez et al.(2004); Pessoa e Bógus (2008);
inserção no Estatuto da Cidade. Desde então, Fix (2009); Nobre (2009); Alvim, Abascal e
tem sido continuadamente aplicado por gover- Moraes (2011); Coma (2011); Cardoso (2013);
nos de distintos matizes ideológicos. e Siqueira (2014). A análise divide-se em dois
De acordo com a BM&FBovespa, os blocos. No primeiro, é discutido o arcabouço
Cepacs são títulos de renda variável, pois sua teórico dos trabalhos, suas convergências e

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Operações urbanas consorciadas com Cepac

divergências, bem como os possíveis diálogos de Janeiro. Apesar das diferentes chaves, é pos-
com a teoria dos regimes espaciais e os deba- sível constatar uma convergência teórica entre
tes sobre financeirização. No segundo, avaliam- esses estudos; assim como é possível observar
-se os principais agentes, suas estratégias e es- que essas leituras dialogam de forma direta
calas de atuação, além das contradições decor- ou complementar com a discussão sobre os
rentes dessa disputa no (e através do) espaço. regimes espaciais e os debates sobre a finan-
ceirização. Além disso, um dos artigos (Alvim,
Abascal e Moraes, 2011) filia-se ao paradigma
Lentes teóricas & diálogos do Novo Urbanismo, que se distancia das abor-
com a teoria dos regimes espaciais dagens anteriores, conforme discutido adiante.
e o debate da financeirização A ideia de empresariamento urbano está
presente como pano de fundo na maioria dos
De forma geral, todos os artigos selecionados trabalhos.8 Esse conceito, da obra clássica de
reconhecem a associação entre as OUCs e a Harvey (1989), associa-se à tese de que está
substituição do paradigma do planejamento em curso uma mudança (não completada) de
integrado (associado ao ideário modernista) um modo gerencial (ou administrativo) para
pelo planejamento estratégico, impulsionado um modo empresarial, pós-crise do pacto for-
pelas PPPs. Fix (2008, p. 52) e Siqueira (2014, dista nos países centrais. Tal transformação se
p. 407) assinalam, no entanto, que, uma vez relaciona principalmente às PPPs,
que os planos integrados nunca foram implan-
tendo como principal objetivo políti-
tados na sua totalidade (funcionando na práti-
co e econômico imediato (embora não
ca como “planos discurso”, conforme concep- exclusivo) mais o investimento e o de-
ção de Flávio Villaça), não é possível concluir senvolvimento econômico por meio de
que essa mudança se caracterize como uma empreendimentos imobiliários especula-
ideia de abandono do plano, da mesma manei- tivos do que a melhoria das condições
em um âmbito específico. (1989, p. 8;
ra como foi entendida nos países de capitalis-
tradução nossa)
mo avançado.
A maioria dos autores compartilha de Importante ressaltar que é a concepção
uma preocupação central em relação ao au- especulativa, que, no entender do autor, sujei-
mento das disparidades socioespaciais a partir ta os governos locais aos perigos inerentes aos
das intervenções urbanas ligadas a esse ideal novos empreendimentos imobiliários, o que
pós-moderno. Algumas das chaves teóricas se relaciona à impossibilidade de prever “que
mais recorrentes nesses trabalhos são: empre- ‘pacote’ terá êxito em um mundo de conside-
sariamento urbano (Harvey); máquina do cres- rável instabilidade e volatilidade econômica”
cimento (Logan e Molotch); grandes projetos no contexto da crise global. Harvey (1989) des-
urbanos – GPUs (Swyngedouw; Moulaert e taca o papel do turbilhão de inovações urba-
Rodriguez) e gentrificação (Neil Smith). Além nísticas que surgem nesse contexto (como os
disso, o tema dos megaeventos e do eventis- GPUs) para ampliar as fronteiras de acumula-
mo são recorrentes nos trabalhos sobre o Rio ção do capital.

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Laisa Eleonora Maróstica Stroher

Na concepção da teoria dos regimes es- quem são e quais suas estratégias para driblar
paciais de Brenner (2004), o autor bebeu di- possíveis entraves à captura das rendas fundiá-
retamente dessa tese de Harvey, adicionando rias. Fix (2009) e Cardoso (2013) demonstram
outras dimensões, como a noção de reescalo- como se consolidou uma parceria de diversos
namento do Estado. Ou seja, além de uma mu- agentes para impulsionar a valorização das
dança da forma de gestão, ocorre um processo áreas onde se localizam as operações Água
de mudança da escalaridade do Estado, tanto Espraiada e Porto Maravilha, respectivamente.
escalas de organização como de intervenção. Isso significou, por exemplo, ações conjuntas
Os GPUs são um claro exemplo disso. O Estado para deslocar a população pobre residen-
passa a privilegiar áreas pontuais, abandonan- te, além da priorização de investimentos em
do a visão abrangente do território; além dis- obras rodoviaristas e de apelo estético, em
so, passa a criar agências estatais específicas detrimento de investimentos em habitação
(enclave agencies) para cuidar desses territó- social, que poderiam comprometer a valoriza-
rios, que podem contribuir para a fragmenta- ção imobiliária.
ção da gestão e ampliação da seletividade de
Como se fosse um “buraco negro” atrain-
atuação territorial do Estado. Podemos citar,
do tudo ao seu redor, o critério de “valori-
como exemplo, a criação da Companhia de De- zação financeira” extrai a sua potência da
senvolvimento Urbano da Região do Porto do submissão dos elementos formadores do
Rio de Janeiro (CDURP) para gerir a operação próprio espaço: a natureza (a paisagem
da OUC Porto Maravilha (Cardoso, 2013). da Baía de Guanabara), a cultura, o am-
biente construído através da instalação
O conceito da máquina de crescimen-
das infraestruturas urbanas. (Cardoso,
to, originalmente desenvolvido por Logan e 2013, p. 83)
Molotch (1987), é trabalhado com maior ênfa-
se nos artigos de Fix (2009) e Cardoso (2013). Interessante apontar uma diferença des-
O conceito refere-se à leitura de que, por trás tacada por Mariana Fix em relação à compo-
dos projetos de redesenvolvimento urbano, há sição das coalizões no Brasil, no que se refere
uma rede de agentes das mais diversas natu- à ausência de um sistema de crédito “que de-
rezas (proprietários de terra, órgãos públicos, sempenhe o papel fundamental de coordena-
fundos de pensão, incorporadoras, mídia, ban- dor das funções, atuando como uma espécie de
cos, empresas de crédito, construtoras, polí- ‘sistema nervoso’ que regula os movimentos
ticos, indústria cultural, entre outros) que se do capital” (Fix, 2009, p. 57). Tanto Fix (ibid.)
unem em torno do ideal de se beneficiar com como Cardoso (2013, p. 81) apontam que,
a valorização imobiliária. Esse intuito se choca no Brasil, os fundos de pensão nacionais têm
com o interesse na promoção de um bem co- constituído atores-chave na substituição do
mum, que, via de regra, acompanha as justifi- sistema crédito. Esses fundos têm sido fun-
cativas de tais projetos urbanos. damentais para dar a liquidez necessária a
A partir dessas premissas, os trabalhos vários megaempreendimentos nas áreas das
concentram-se na avaliação de como são es- OUCs, tanto no caso da Faria Lima (FL), como
truturadas essas coalizões pró-crescimento, da Água Espraiada (AE) e de Porto Maravilha

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Operações urbanas consorciadas com Cepac

(PM). Fix (ibid.) comenta alguns dos impactos tais projetos como os elementos mais repre-
da participação desse agente na tipologia e no sentativos da história recente de produção do
perfil dos empreendimentos imobiliários priori- espaço urbano, que são entendidos como for-
zados nessas áreas: ma de subordinação do ambiente construído
aos ditames dos novos circuitos do capitalismo
Essa participação tem impacto no projeto
arquitetônico dos edifícios e em sua loca- globalizado. As OUCs são reconhecidas como
lização na cidade. Os fundos de pensão exemplos paradigmáticos dos GPUs no Brasil.
tratam a terra como um ativo financeiro, O Estado possui uma centralidade nessas lei-
de modo a ter acesso a rendimentos futu- turas, como um elemento-chave organizador
ros. Não é por acaso que os alvos dos fun-
do complexo de forças que engendra os GPUs,
dos são os edifícios de mais alto padrão,
classificados como A, duplo A, ou triple A. através de “um conjunto – homogêneo – de
orientações que passam a compor uma pauta
Essa abordagem de Logan e Molotch a ser buscada e colocada em prática pelos di-
(1987) fornece uma metodologia consistente versos administradores urbanos, independente-
para identificar os tipos de agentes e a forma mente de sua filiação político-partidária” (Sán-
como disputam a produção das cidades. Cabe chez et al., 2004, p. 42).
destacar, no entanto, que essa tese foi objeto Com esse ponto de partida, Sánchez et
de amplo debate crítico no cenário internacio- al. (ibid.) enfocam o estudo da convergência
nal, que culminou no livro The urban growth entre as principais técnicas discursivas e mate-
machine. Critical perspectives two decades riais utilizadas pelo poder público em 14 GPUs
later. Uma das críticas refere-se a um enfoque nos Estados Unidos, Europa e América Latina,
demasiado na escala local, ou seja, um negli- incluindo duas operações urbanas (em Niterói
genciamento das coalizões supralocais. A arti- e Rio de Janeiro). Coma (2011), por sua vez,
culação dessa chave teórica com a teoria dos debate a noção de “excepcionalidade” (que
regimes espaciais, de claro viés multiescalar, se refere ao estado de exceção e urgência que
pode ser promissora, a fim de cobrir lacunas perpassa grande parte dos GPUs), que, de
das duas abordagens. A abordagem dos regi- acordo com Swyngedou (2002), aparece como
mes espaciais também é comumente alvo de estratégia recorrente para justificar violações
críticas em relação ao seu caráter estruturalis- de direitos urbanos. Os dois artigos trabalham
ta, seu intuito de promover leituras generali- mais no sentido do que há de convergente en-
zantes, o que pode incorrer no risco de dei- tre os GPUs, do que de suas especificidades
xar escapar as especificidades dos processos em relação aos diferentes contextos políticos
locais. As categorias de análise dos agentes e econômicos.
propostas por Logan e Molotch podem ajudar A chave teórica dos GPUs dialoga com
no sentido de dar maior concretude aos pro- a teoria dos regimes espaciais, na medida em
cessos analisados. que contribui para identificar como estratégias
A abordagem dos Grandes Projetos Ur- e projetos do Estado vêm sendo moldados, a
banos (GPUs), mais debatida nos trabalhos de partir dos novos ideários sobre a política urba-
Sánchez et al. (2004) e Coma (2011), identifica na. Observa-se, a princípio, uma possibilidade

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Laisa Eleonora Maróstica Stroher

de potencializar essa abordagem ao relacioná- coaliciones extra-territoriales, lo que


-la com alguns pressupostos da teoria dos regi- denomina una diáspora de la máquina de
crecimiento. (Coma, 2011, p. 215)
mes espaciais, como o papel relacional entre a
disputa dos atores para capturar estratégias e
O conceito de gentrificação – adotado
projetos estatais (e vice-versa); o que poderia
no artigo de Siqueira (2014), a partir de Smith
contribuir para entender as diferenças que os
(2002) e de outros autores – é definido (em sua
GPUs podem assumir em cada contexto geo-
concepção contemporânea) como o processo
gráfico e político.
de redesenvolvimento urbano que acarreta na
O eventismo e os megaeventos – dis-
elitização socioespacial. Uma ideia importante
cutidos no artigo de Coma (2011) a partir de
é a possibilidade de lucrar com a renda diferen-
Hiller (2000), Gaffney (2010) e outros – relacio-
cial propiciada pela dinâmica de investimento
nam-se aos grandes eventos internacionais (a
e desinvestimento no espaço (rent gaps). Um
exemplo dos grandes eventos esportivos) que
exemplo disso é o caso do redirecionamento
são considerados catalisadores da implantação
dos investimentos públicos e privados nos EUA
da agenda neoliberal urbana. Aproveitando-se
para os subúrbios, com o consequente abando-
do discurso supostamente neutro e universal
no e popularização do centro, e posterior retor-
do esporte, os eventos facilitam a implantação
no de investimentos, ocasionando no enobreci-
dos projetos a partir de regimes de governança
mento dessa área.9 Essa dinâmica que ocorreu
de caráter excepcional. Coma (2011) identifica
nos EUA faz parte da primeira onda de gentri-
esse estado na realização dos grandes eventos
ficação – assim caracterizada por Hackworth
esportivos recentes no Rio de Janeiro, como
e Smith (2001) –, já a terceira onda em curso
indica a votação do projeto da OUC-PM em
é caracterizada pela intensificação dos pro-
menos de um mês após o anúncio da vitória
cessos de gentrificação através de estratégias
da cidade como sede das Olimpíadas de 2016.
que envolvem “novos produtos imobiliários em
Ressalta-se, em relação ao debate da espacia-
localizações já fora dos bairros adjacentes aos
lidade do Estado, o caráter transnacional que
centros urbanos” (Siqueira, 2014, p. 397).
esses eventos representam em associação às
Siqueira (ibid.), entretanto, chama
coalizões locais:
atenção para as diferentes geografias de in-
Siguiendo a Surborg et al. (2008) estos vestimento/desinvestimento. Nesse sentido,
mega eventos deportivos requieren de
ela compreende que o Brasil (e outros países
una aproximación bidireccional – global y
local – que de cuenta de lãs dimensiones
emergentes como a Índia e na Ásia) não teria
transnacionales de la máquina de vivido de forma clara a primeira fase, visto que
crecimiento urbano, en la medida en que os centros urbanos não tiveram um desinves-
éstos plantean una versión de máquina de timento tão abrupto como nos EUA. A partir
crecimiento selectivamente transnacional
disso, ela defende que os melhores exemplos
y local cuya función principal es equilibrar
el poder político tradicional de las
para estudar a gentrificação no Brasil seriam
coaliciones de desarrollo local, con La as OUCs e não os processos de revitalização de
necesidad de responder a actores y áreas centrais. Siqueira (ibid.) analisa as OUCs

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Operações urbanas consorciadas com Cepac

FL e AE em São Paulo e constata a presença de A preocupação central do trabalho de


três processos comuns às dinâmicas de gen- Alvim, Abascal e Moraes (2011) relaciona-se
trificação: produção de espaço gentrificável à não efetivação de um projeto urbano consis-
(existência de condições para que seja possível tente na operação urbana Água Branca. Esses
extrair renda diferencial); elitização social com autores entendem que, nesse caso, as vanta-
expulsão dos grupos vulneráveis; e transforma- gens do novo modelo de urbanismo não estão
ção na paisagem construída (produção de íco- sendo traduzidas em ganhos sociais ou melho-
nes arquitetônicos, uso de novos estilos arqui- ria da qualidade urbanística. Eles atribuem um
tetônicos com referência estética pós-moderna, peso grande disso à ausência de um projeto ur-
entre outros). bano capaz de articular os diversos interesses.
O paradigma do Novo Urbanismo ,
Embora os objetivos enunciados pela lei
discutido por Alvim, Abascal e Moraes (2011)
nº 11.774/1995 [Lei da OUC Água Branca]
com base em Ascher (2010), defende que o pla- fossem incentivar a ocupação das áreas
nejamento estratégico possui vantagens (co- vazias e reestruturar o adensamento com
mo maior adaptação às crises, através de um novos padrões de uso e ocupação do so-
modelo de intervenção mais flexível com um lo, atraindo principalmente investimentos
dos setores privados, a ausência do pro-
programa de curto prazo) em relação ao mo-
jeto urbano como importante instrumento
do tradicional de planejamento (planejamento de interlocução entre Prefeitura, empre-
integrado). Tais vantagens, se bem geridas, po- endedores, proprietários e moradores po-
deriam contribuir decisivamente para amenizar de ser detectado como importante proble-
as contradições urbanas e conferir maior quali- ma. (Ibid., pp. 215-216)
dade urbanística às cidades, no entendimento
A despeito da filiação teórica dos auto-
dos autores.
res, entende-se que as abordagens anteriores
[...] um novo urbanismo ou neourbanis- poderiam contribuir para iluminar algumas de
mo, conforme denominação de Ascher suas preocupações. Um olhar atento às coali-
(2010), visa à realização de objetivos in-
zões que promovem as OUCs, por exemplo,
centivando atores públicos e privados a
estabelecer parcerias, a fim de potencia- elucidaria que os interesses hegemônicos que
lizar os efeitos e o alcance social das pro- as movem estão bem coordenados em certos
postas. (...) Na sociedade contemporânea, casos. As OUCs FL e AE, como exemplo, conse-
em que as cidades assumem papel pro- guiram articular interesses de entes públicos
tagonista para a realização do processo
e privados para impulsionar grandes interven-
econômico, é incabível pautar o desenvol-
vimento urbano em planos e projetos de- ções urbanas, igualmente sem um projeto ur-
finidos como programas de longo prazo, bano de qualidade.10
como fora prática consagrada durante os Além disso, cabe apontar que, no período
anos de vigência do paradigma moderno. em que foi escrito este artigo, a área da ope-
Ascher (ibid.) conclama a definir um novo
ração Água Branca ainda não era um vetor de
urbanismo, reflexivo e adaptado à socie-
dade complexa e de futuro incerto. (Ibid., grande interesse do mercado imobiliário como
pp. 215-216) tem se constituído nos últimos anos, o que

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Laisa Eleonora Maróstica Stroher

pode ajudar a explicar o insucesso até aquele participar da captura das rendas fundiárias,
momento em promover grandes transforma- sem precisar (a priori) manter nenhum envolvi-
ções na sua área. Não se trata de relegar a im- mento direto com a produção daqueles lugares.
portância do projeto urbano, mas de entender Já o arranjo da OUC-PM, conforme
que a concretização de “bom projeto” estaria discutido por Cardoso (2013), envolveu a cons-
relacionada a uma coalizão e a um regime es- tituição de um megafundo de investimento
pacial e de acumulação que priorizem tais pa- imobiliário coordenado pelo FGTS (FI-FGTS),
râmetros projetuais qualitativos (ou interesses que adquiriu todo o estoque de Cepac por 3,5
coletivos) em detrimento de uma lógica orien- bilhões, além dos terrenos públicos da OUC.12
tada pela valorização imobiliário-financeira. Como contrapartida, o FI-FGTS assumiu a re-
Com relação ao tema da financeirização, ponsabilidade de arcar com todo o custo de
uma constatação comum à parte dos traba- obras e serviços públicos vinculados à OUC
lhos é a identificação de que, com o avanço (originalmente orçado em oito bilhões), o que
da neoliberalização, há uma nova relação e dependeria do sucesso da valorização dos tí-
maior imbricação entre os capitais financeiro, tulos e terrenos. Para atingir tal intuito, além
imobiliário e o Estado (Sánchez et al., 2004; de garantir a remuneração do próprio FGTS, a
Fix, 2009; Coma, 2011; Cardoso, 2013; e Si- autora observa que as diretrizes de investimen-
queira, 2014). Essa relação se estabelece na to do fundo têm priorizado a negociação dos
medida em que o capital imobiliário passa a terrenos e Cepacs com empreendimentos com
servir mais à reprodução do capital financeiro, maior capacidade de alavancar a valorização,13
do que o inverso, anteriormente mais comum. distantes das necessidades de uma das metró-
Uma expressão disso seria a constatação poles que concentra os maiores déficits sociais
comum nesses trabalhos de que os GPUs se do País. A partir disso, Cardoso (2013, p. 79)
orientam mais pelo impulso de valorizar a ter- entende que:
ra. Dessa forma, valorizam-se todos os ativos
financeiros a ela vinculados, sejam os Cepacs, As diretrizes expostas evidenciam que a
terra se transformou em um ativo finan-
os fundos de investimento imobiliários (FIIs)
ceiro. Logo, o princípio básico que move
ou outros tipos de títulos lastreados em imó- toda a dinâmica de produção do espaço
veis na área das OUCs. na área da OUC do Porto do Rio, opera-
Nem todos os trabalhos, no entanto, ção esta assentada sobre um fundo de in-
buscam responder como ocorre esse fluxo de vestimento imobiliário, é a rentabilidade.
Como consequência, os resultados serão
recursos de um circuito do capital para o outro,
medidos, projetados e avaliados a partir
com algumas exceções. Fix (2009) discute a desse princípio.
sobreposição dos FIIs às áreas das OUCs FL e
AE. Apesar de os FIIs não constituírem parte Cabe destacar, ainda, que, no caso do
do arranjo financeiro dessas OUCs, por meio Porto Maravilha, a negociação de parte dos
deles os seus acionistas (nacionais e inter- Cepacs tem sido elaborada por meio da troca
11
nacionais) no mercado de capitais podem dos títulos por cotas em FIIs de imóveis que

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Operações urbanas consorciadas com Cepac

estão sendo erguidos na área da OUC. Essa Agentes, estratégias,


experiência demonstra maior e mais complexa escalas e contradições
relação entre o imobiliário e o financeiro, na
qual o Cepac constitui um veículo facilitador Sanchez et al. (2004) enfocam a análise das
(tendo em vista o vínculo de sua rentabilidade estratégias discursivas e programáticas comuns
com o rendimento dos FIIs). Surpreende, no en- à 14 GPUs estudados em diversos países – do
tanto, o fato de que aquele que cumpre o papel norte e sul global – e como o Estado é mol-
do principal investidor dos títulos (FI-FGTS) se dado por elas. Uma tática recorrente para a
confunda com o próprio Estado. Novamente, defesa dos GPUs como motores da transfor-
evidencia-se o uso do discurso e dos arranjos mação urbana é a desqualificação do “outro”
próprios da financeirização para escamotear a (do planejamento integrado, ou das cidades e
drenagem de recursos públicos para os setores regiões que sigam outros modelos). Algumas
de maior renda. das palavras de ordem, propagadas pelo uso
É notável, contudo, a ausência de aná- do citymarketing para caracterizar o novo são:
lises mais detalhadas a respeito do Cepac na “sinergias”, “competitividade”, “parcerias”,
experiência paulista no que corresponde à for- “sustentabilidade” (ambiental e financeira),
mação de um mercado de investidores do título “pertencimento”, “cidadania” e “eficiência”
na bolsa de valores. Embora haja evidências (2004, p. 42). Os trechos destacados por Coma
14
de que esse mercado seja pequeno, não há (2011, p. 218) da fala do então prefeito do Rio
dados que permitam avaliar possíveis tendên- de Janeiro (Eduardo Paes), sobre os objetivos
cias (como a evolução do número e do valor da OUC-PM, são simbólicos nesse sentido: “re-
das transações, perfil dos compradores, entre cuperar as origens do Rio e a autoestima do
15
outros) e suas motivações. Essa análise pode- centro da cidade” como “instrumento de rever-
ria contribuir para entender em que medida o são da decadência”.
Cepac está facilitando a penetração dos agen- Os autores entendem que, através des-
tes financeiros nesses casos. Mesmo que não sa “luta simbólica para impor determinada
haja um mercado secundário desenvolvido, o visão de mundo associada a um modelo”, os
arranjo institucional do Cepac pode favorecer a discursos atuam sobre o campo das práticas,
um acirramento da lógica de gestão orientada reelaborando-as (Sánchez et al., 2004, p. 44).
pela rápida valorização imobiliária, na medida Desse modo, as sinergias e parcerias são tra-
em que a possibilidade tanto de haver correção duzidas na busca da construção de consensos
do seu valor mínimo nos sucessivos leilões, co- (no lugar do reconhecimento dos conflitos)
mo de promover maior interesse na compra do “para que todos possam se beneficiar da nova
título (tendo em vista financiar as intervenções cidade gerencial (2004, p. 48)”. A convergência
previstas) está atrelada à dinâmica de valoriza- programática dos GPUs é resumida, em linhas
ção imobiliária. gerais, por Sánchez et al. (2004, p. 51) pela:

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Laisa Eleonora Maróstica Stroher

[...] combinação de investimentos públi- baixo, mimetizar os padrões encontrados


cos e privados para a construção de novos nas cidades dos países centrais. A sua
equipamentos culturais e de serviços, am- produção coloca em funcionamento uma
pliação do número de empreendimentos máquina imobiliária de crescimento que
com fins habitacionais próximos aos cen- procura associar seus empreendimentos à
tros financeiros e comerciais e criação de imagem de uma cidade “globalizada”, da
áreas públicas junto ao mar. A partir daí, “classe mundial”, ou de “primeiro mun-
segundo a retórica oficial dos projetos, do”. (Ibid., p. 61)
o êxito seria medido por vários critérios:
desde o aumento da receita com o turis- O Estado (nas diversas escalas) é, cer-
mo e do índice de emprego até o melho- tamente, uma das forças mais analisadas
ramento da qualidade de vida e elevação
nos trabalhos. Dentre suas atuações, a mais
da autoestima dos habitantes.
discutida é aquela em que ele provê o suporte
Nesse sentido, a OUC-PM se encaixa nos institucional, regulatório e de financiamento.
projetos waterfront, enquanto as OUCs FL e AE Além da atuação na criação das leis locais, Fix
tratam da criação de um novo centro financei- (2009) e Siqueira (2014) assinalam a importân-
ro, com produção de unidades habitacionais cia da inclusão das OUCs no Estatuto da Cida-
principalmente voltadas à população de alta de para a disseminação do modelo; e Siqueira
renda. (2014, p. 407) assinala algumas conexões inte-
Sánchez et al. (2004) também indicam ressantes que possivelmente contribuíram para
que a ideologia do novo ganha base material inserção das operações na lei nacional. A partir
no uso da arquitetura espetacularizada, através da leitura das atas da comissão em que a lei
da disseminação de projetos de grife. Entre os foi discutida na câmara legislativa, essa autora
projetos de caráter simbólico que expressam o observa que o relator da lei federal (do mesmo
“novo”, Fix (2009) e Siqueira (2014) destacam partido de Paulo Maluf) tece agradecimentos
a estética pós-moderna dos megaempreendi- ao então secretário de planejamento de São
mentos ao longo das marginais do Rio Pinhei- Paulo, Gilberto Kassab (posteriormente prefei-
ros, e, especialmente, a famosa ponte estaiada to na mesma cidade e Ministro das Cidades) a
(inspirada nas pontes do starchitect Santiago respeito da implantação da OUC-FL. Ainda so-
Calatrava), nas operações AE e FL. Já a OUC- bre a inserção do tema no Estatuto, Fix (2009,
-PM conta com o Museu do Amanhã, de au- p. 52) chama a atenção para a relevância do
toria do próprio Calatrava. Fix (2009) ressalta respaldo de determinados setores identificados
a contradição que representam essas táticas com o urbanismo dito progressista, ao carac-
transpostas aos países emergentes: terizar as operações como um mecanismo de
recuperação das mais-valias urbanas.
Nesses países, que se encontram em uma Uma questão central em diversos tra-
situação intermediária na hierarquia do
balhos é o peso dos recursos públicos (prin-
sistema mundial, a produção dessa base
exige a concentração de investimentos cipalmente municipais e federais) para a sus-
públicos e privados capazes de, mesmo tentação financeira das operações, através de
com um padrão de acumulação mais recursos humanos (funcionários, gestores para

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Operações urbanas consorciadas com Cepac

operar os projetos) ou materiais (terrenos, re- (como Rio de Janeiro e São Paulo) têm sido
cursos financeiros, isenções fiscais). Fix (ibid.) fundamentais na propagação dos GPUs, mas
destaca a importância das obras feitas direta- também o Estado nacional tem sido essencial
mente com recursos municipais previamente à para alavancá-los.
implementação da OUC-AE (como o custo de Vale relembrar, ainda, a captação de re-
mais de um bilhão com a canalização do córre- cursos dos fundos de pensão e de previdência
go Espraiada e a abertura da avenida Roberto para financiar os megaempreendimentos nas
Marinho, além dos recursos com a remoção das OUCs, revelando as várias frentes simultâneas
favelas), que recorrentemente são escamotea- de especulação com os recursos oriundos dos
das nos cálculos para aferir o sucesso da ope- trabalhadores. O fundo imobiliário do Centro
ração. Fix (ibid., p. 47) chama atenção ao dado Empresarial Nações Unidas, um grande em-
de que 85% dos investimentos públicos em preendimento comercial de luxo na OUC-AE,
infraestrutura urbana em São Paulo na década tem como principal cotista o fundo de pensão
de 1990 se concentraram na área ou nas proxi- dos trabalhadores da Caixa Econômica Federal
midades das duas operações. (Fix, 2009), em 2016, o terceiro maior fundo de
No caso do Rio de Janeiro, a captura dos pensão do Brasil. Já Cardoso (2013) discute a
recursos públicos é ainda mais explícita. Car- participação do fundo de previdência dos fun-
doso (2013, pp. 74-79) destaca que 75% dos cionários da prefeitura do Rio de Janeiro (Previ-
terrenos disponíveis para intervir na operação -Rio) em empreendimentos imobiliários na zo-
são de propriedade pública (principalmente na portuária.
da União) e que a primeira fase da operação Cabe destacar a atuação do poder públi-
contou com 350 milhões (financiados pela Pre- co municipal em conjunto com agentes imobili-
feitura e pelo Ministério do Turismo). Ademais, ários, no deslocamento da população pobre da
a segunda fase16 ficou toda por conta do FI- área das operações. O que é entendido, por Fix
-FGTS, conforme anteriormente discutido; ou (2009) e Cardoso (2013), como forma de não
seja, parte substancial dos riscos financeiros comprometer a valorização imobiliária que
ficou a cargo do fundo constituído pelo conjun- poderia ser arrefecida no caso de uma ocupa-
to dos trabalhadores do País.17 O alinhamento ção social mais equilibrada. Fix (2009) des-
político entre o prefeito, o governo estadual e taca que, anteriormente à OUC-AE, durante a
o governo federal, nos anos iniciais da OUC, construção da Av. Roberto Marinho, houve um
foi certamente determinante para facilitar es- processo intenso de remoções no local (onde
sa convergência de recursos, como argumenta havia cerca de 20 mil famílias residentes em fa-
Coma (2011). velas), através principalmente de indenizações,
Além de colocarem em xeque a supos- insuficientes para comprar uma casa em outra
ta autossuficiência financeira das operações área irregular (Fix, 2009, p. 50). A ação do po-
através da arrecadação dos Cepacs, ou mesmo der público foi acompanhada da coação pelos
um possível equilíbrio entre os investimentos empreendedores, bem como, do próprio aporte
públicos e privados, esses exemplos eviden- em recursos de 122 empresas para financiar
ciam que não somente as cidades ditas globais uma parcela das indenizações (Fix, 2009, p. 45;

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 455-477, maio/ago 2017 469
Laisa Eleonora Maróstica Stroher

Nobre, 2009, p. 207). Os poucos moradores que que poderia se destinar para esse fim. A autora
conseguiram resistir, voltaram a ser coagidos ressalta que a favela do Morro da Previdência,
após o início da operação. Destaca-se o caso localizada na área da operação, foi objeto de
dos moradores da favela Jardim Edith, que só um projeto de urbanização – no âmbito do Pro-
conseguiram o direito de ser atendidos (ao me- grama Morar Carioca – que iniciou a remoção
nos em parte) dentro do perímetro da opera- de 800 famílias para áreas periféricas, mesmo
ção, após intensa mobilização e terem recorri- a favela sendo uma Área Especial de Interesse
do às instâncias judiciais (Fix, 2009). Social (Aeis). Da mesma forma que ocorreu no
Siqueira (2014) adverte que o Jardim Jardim Edith, os moradores precisaram recorrer
Edith se tratava de uma Zona Especial de Inte- à defensoria, o que resultou na suspensão das
resse Social (Zeis), o que reforça a contradição intervenções, ao menos temporariamente.
do intuito de removê-la. Além disso, a autora A autora chama a atenção para as sobre-
assinala a importância de instrumentos como posições de papéis das grandes empreiteiras e
este, no sentido de reforçarem a argumentação construtoras que atuam na região portuária, já
nas disputas judiciais pela permanência das po- que o mesmo grupo que ganhou o consórcio
pulações, fato que, de acordo com ela, “não se para operar a segunda fase da OUC-PM ven-
verifica naqueles países de casos tradicionais ceu a concorrência do Morar Carioca.18 Cabe
de gentrificação” (2014, p. 408). Casos seme- destacar ainda que boa parte dessas empresas,
lhantes têm sido observados em outros proje- e outras que atuam nas áreas das operações,
tos de renovação, como será discutido adiante. construindo infraestrutura ou edifícios, possui
Associada a essa dinâmica, Pessoa e Bógus capital aberto na bolsa. O que significa que os
(2008) constatam, através dos dados do cen- interesses que cercam as OUCs devem respon-
so demográfico, uma diminuição de população der, ainda, aos critérios de lucratividade dos
nas localidades equivalentes a OUCs FL e AE, acionistas dessas empresas (em diversas partes
ao mesmo tempo que revelam que as maiores do mundo).
taxas de incremento demográfico têm acon- Além disso, Cardoso (2013, p. 95) ressalta
tecido nas periferias da cidade. Nesse sentido, o papel de resistência das populações afetadas
poderíamos dizer que a nova paisagem verti- por esses grandes projetos, como um contra-
calizada que poderia sugerir um maior número ponto importante ao processo de dominação,
de pessoas usufruindo os benefícios dos in- e destaca a atuação do Fórum Comunitário do
vestimentos esconde uma verdadeira “cidade Porto, que tem denunciado o caráter excluden-
oca” (termo cunhado por Nakano, 2015) para te das intervenções na região portuária.
usufruto de uma minoria privilegiada. Outros agentes que aparecem nas aná-
Cardoso (2013) constata que, a despeito lises são os órgãos multilaterais, como impor-
dos inúmeros documentos oficiais que apontam tantes difusores dos modelos dos GPUs, seja
como prioridade a provisão habitacional de in- através de sua divulgação como best practices,
teresse social na OUC-PM, não foram divulga- seja no financiamento de projetos desse cunho.
das propostas para atender à questão, em que Revela-se, portanto, o caráter transnacional
pese a imensa quantidade de terrenos públicos da nova política urbana. Várias operações

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Operações urbanas consorciadas com Cepac

urbanas no Brasil possuem como inspiração no sentido sudeste, sobre os municípios da


direta as experiências estrangeiras: documen- região do Grande ABC, além de um crescente
tos da OUC-PM revelam inspiração nos proje- interesse nos grandes terrenos localizados em
tos realizados para as olimpíadas em Barcelona orlas ferroviárias. Não à toa, articuladas a esse
(Cardoso, 2013), assim como Battery Park é processo, começam a surgir propostas de no-
citado como referência para as operações em vas OUCs ou revisão dos parâmetros de opera-
São Paulo (Siqueira, 2014). Na mesma linha, os ções antigas, exatamente nesses novos eixos. A
megaeventos e a rede de organizações e ca- OUC-AB, localizada em área lindeira à ferrovia,
pitais envolvidos na sua promoção aparecem foi revisada em 2013 e teve o seu primeiro lei-
como importantes disseminadores, agindo, nas lão de Cepac em 2015. Ao mesmo tempo, está
palavras de Coma (2011), como catalisadores sendo discutida a lei da operação Bairros do
(impondo temporalidades e modelos de gestão Tamanduateí, localizada em uma área de orla
excepcionais) e vetores de consenso da agenda ferroviária no vetor sudeste, divisa com o ABC
de renovação urbana. paulista. Recentemente, o município da região
Uma leitura recorrente nos trabalhos a do ABC que mais teve lançamentos imobiliários
respeito das contradições das OUCs refere-se na última década, São Bernardo do Campo, te-
à constatação de que elas só têm obtido êxito ve uma OUC aprovada, que já se encontra em
(no sentido de arrecadação) quando coincidem processo de aprovação na CVM.
com as áreas de interesse imobiliário, em que Por fim, parece unânime a constatação
geralmente há uma melhor provisão de infra- quanto à ausência de um projeto urbano de
estrutura, incorrendo em um círculo vicioso de qualidade nas operações estudadas (Alvim,
investimento em áreas já privilegiadas (Sánchez Abascal e Moraes, 2011; Fix, 2009; e Coma,
et al., 2004; Pessoa e Bógus, 2008; Fix, 2009; 2011). Os projetos são muito mais detalhados
Nobre, 2009; Cardoso, 2013; e Siqueira, 2014). nas definições em relação aos coeficientes de
As operações debatidas neste artigo são claros aproveitamento do que nas definições em rela-
exemplos disso. A OUC-FL e a OUC-AE locali- ção ao desenho urbano.
zam-se no setor sudoeste – reduto tradicional
da elite paulistana – e a OUC-PM localiza-se em
uma das poucas áreas existentes para expansão Considerações finais
imobiliária na região central do Rio de Janeiro.
Além disso, as operações urbanas Centro A partir da análise dos artigos, argumenta-se
e Água Branca, em São Paulo, são tidas, geral- que a teoria dos regimes espaciais, em diálogo
mente, como casos de insucesso de arrecada- com outros debates teóricos (como o empresa-
ção. Há indícios, no entanto, de mudanças nesse riamento urbano, a máquina do crescimento,
quadro. Pesquisas recentes (Sígolo, 2014) sobre as vertentes que analisam os grandes projetos
a dinâmica do boom imobiliário da última dé- urbanos, os processos de gentrificação e os im-
cada evidenciam novos vetores de atuação do pactos dos megaeventos), parece promissora
mercado imobiliário na metrópole paulistana, para iluminar os impasses atuais da política
como um retorno para o centro, uma expansão urbana no contexto da dominância financeira

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 455-477, maio/ago 2017 471
Laisa Eleonora Maróstica Stroher

global e de desestruturação do Estado Nacio- das demandas coletivas, visto que, apesar do
nal Desenvolvimentista no Brasil, ao relacionar discurso recorrente de atendimento ao déficit
as alterações na forma de organização e inter- habitacional, observa-se uma dinâmica intensa
venção do Estado com as lutas dos agentes e de gentrificação em curso nas áreas das OUCs.
as transformações no regime de acumulação. Observa-se, ainda, uma dinâmica de esvazia-
Enquanto a ótica do Novo Urbanismo, parece mento populacional em algumas OUCs, dife-
relegar esses aspectos que poderiam ser úteis rentemente do que a paisagem verticalizada
para entender os entraves da concretização de poderia sugerir.
projetos urbanos orientados por uma lógica de No que diz respeito aos agentes e suas
universalização de bens coletivos. estratégias, abordaram-se as práticas discur-
No que se refere ao debate da financeiri- sivas comuns que acompanham as narrativas
zação, observa-se que a visão que tem guiado sobre os GPUs, que envolvem a desqualifica-
a implementação das OUCs atualmente tem si- ção de outros modelos de intervenção, como
do mais a noção da terra como um ativo finan- contraponto ao novo. A ideia de moderniza-
ceiro, do que uma busca pela suposta recupe- ção é ainda reforçada simbolicamente através
ração das mais-valias aos cofres públicos, com da arquitetura pós-moderna e de projetos de
o seu reinvestimento sob a ótica da redistribui- grife. A convergência programática dos GPUs,
ção ou inclusão social. Foram discutidos, ainda, com a prescrição de um modelo independen-
alguns expedientes que têm facilitado os nexos te do contexto socioespacial em que incidem,
entre o financeiro e o imobiliário, como os FIIs foi outro aspecto destacado. Em relação ao
que se concentram nas áreas das OUCs, além Estado, além do seu papel no suporte regu-
do arranjo financeiro da OUC – que envolveu latório, discutiu-se sua atuação central no fi-
a constituição do FI-FGTS, que tem negociado nanciamento das OUCs, por meio de recursos
os ativos da OUC (Cepacs e terrenos) guiados e terras, em distintas fases de implementação
prioritariamente pelo princípio rentabilidade, e mediante vários níveis de governo e dife-
distanciando o projeto de renovação das ne- rentes agências governamentais (com o FGTS
cessidades básicas da maior parte da popula- se consolidando como uma arena de disputa
ção carioca. Destacou-se, também, ausência de importante). A respeito do financiamento, os
análises mais detalhadas sobre as dinâmicas fundos de pensão e de previdência (públicos
do Cepac no mercado secundário e suas mo- e privados) emergem enquanto um impor-
tivações. Ainda que tal mercado seja pequeno, tante agente na sustentação financeira dos
essa análise poderia contribuir para entender megaempreendimentos nas áreas das OUCs.
em que medida o Cepac está facilitando a pe- Discutiu-se, também, a atuação do Estado em
netração dos agentes financeiros na produção articulação com empreendedores em ações de
do espaço nas OUCs. deslocamento da população de baixa renda;
Algumas das principais contradições enquanto o papel de resistência das popula-
socioespaciais levantadas referem-se à in- ções afetadas aparece como um contraponto
compatibilidade de se conciliar os objetivos importante a esse processo. A sobreposição de
de valorização imobiliária ao atendimento papéis das grandes empresas de infraestrutura

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Operações urbanas consorciadas com Cepac

em contratos nas áreas das OUCs também cha- da bolsa de valores que operam os leilões)?”;
ma a atenção. Foi abordado, ainda, o papel de “Qual o papel do agente que coordena a emis-
organizações multilaterais e de agências envol- são e a distribuição do Cepac?”; “Quais as
vidas nos megaeventos esportivos enquanto influências das empresas de consultoria que
importantes disseminadores e catalisadores do assessoram a elaboração da modelagem finan-
modelo dos GPUs. ceira e urbanística das OUCs?”. A compreensão
Observa-se, contudo, a ausência de infor- desses questionamentos poderia contribuir
mações sobre alguns agentes, o que suscitou para complementar o entendimento de outros
alguns questionamentos: “Qual a influência fatores e interesses envolvidos nas disputas
em relação ao desenho e implementação das sobre a promoção das OUCs. As lacunas aqui
OUCs dos agentes do mercado financeiro (co- identificadas constituem parte de uma agenda
mo corretores que intermedeiam a compra do de pesquisa em curso e serão objetos de deba-
Cepac no mercado de capitais, os funcionários te em trabalhos futuros.

Laisa Eleonora Maróstica Stroher


Faculdades Integradas Alcântara Machado/Faculdades de Artes Alcântara Machado, Curso de
Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, SP/Brasil.
laisaeleonora@gmail.com

Notas
(1) Este ar go integra uma pesquisa de doutorado em curso sobre as Operações Urbanas Consorciadas
na Região Metropolitana de São Paulo, orientada pelo professor Jeroen Klink, no Programa
de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território na Universidade Federal do ABC.
A primeira versão deste ar go foi apresentada como trabalho final da disciplina “Prá cas de
planejamento e gestão dos territórios”, ministrada pelas professoras Rosana Denaldi e Sandra
Momm. Agradeço aos comentários das professoras, do meu orientador e dos pareceristas da
revista Cadernos Metrópole, que contribuíram para aprimorar o resultado aqui apresentado.

(2) O conceito de Estado Desenvolvimen sta u lizado alinha-se à definição de Gonçalves (2012,
p. 6), que o entende, resumidamente, como: “projeto de desenvolvimento econômico
assentado no trinômio: industrialização subs tu va de importações, intervencionismo estatal
e nacionalismo”.

(3) Busca elaborada em janeiro de 2016.

(4) Alguns dos exemplos recorrentes referem-se ao privilegiamento de empreendimentos voltados a


escritórios de alto padrão em prejuízo do direcionamento para habitação, especialmente para a
população de menor renda.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 455-477, maio/ago 2017 473
Laisa Eleonora Maróstica Stroher

(5) Ao mesmo tempo que as altas taxas de juros, parte do mesmo pacote, acederam às crí cas sobre
os efeitos em termos de desindustrialização e da financeirização da economia (Paulani, 2008).

(6) Em apresentação recente (na VII Conferência Anual de Economia Polí ca, em setembro de 2016,
em Lisboa), a autora mostrou dados atualizados que demonstram que os recursos do FGTS
investidos em títulos imobiliários superam atualmente o utilizado para subsidiar a política
habitacional de interesse social.

(7) Como é o caso do Tax Increment Financing (TIF), u lizado nos Estados Unidos, que se refere
à securi zação da expecta va de valorização futura da arrecadação de impostos locais sobre
a propriedade fundiária e imobiliária em áreas voltadas a projetos de renovação urbana (ver
Weber, 2010).

(8) Especificamente nos trabalhos de: Sánchez et al. (2004); Fix (2008); Coma (2011); Cardoso (2013)
e Siqueira (2014).

(9) Portanto, o lucro foi ob do primeiro transformando as terras rurais em subúrbio, depois com a
valorização do centro.

(10) Qualidade nos termos que Alvim, Abascal e Moraes entendem: com inserção social, preocupação
central em termos de mobilidade a pé e por transporte não motorizado. Ademais, as duas
operações possuem apenas uma lista de intervenções, o que não configura um projeto.

(11) Pesquisa em curso, conduzida pelo LabCidade da USP, demonstra que, apesar de os inves dores
dos FIIs nessas áreas serem na maioria nacionais, há uma presença também de agentes
internacionais, conforme apresentação de Paula Santoro na VII Conferência Anual de Economia
Polí ca, em setembro de 2016, em Lisboa.

(12) Em 2016, o FI-FGTS era o FII com maior patrimônio líquido do País, segundo informações ob das
no portal da CVM.

(13) Como empreendimentos comerciais e de escritório de alto padrão.

(14) Um indica vo disso é o fato de que 91% e 95% dos Cepacs das OUCs AE e FL, respec vamente, já
foram vinculados a algum empreendimento imobiliário, restando poucos tulos em circulação
que poderiam estar disponíveis para a venda no mercado de capitais. Dados obtidos dos
relatórios financeiros disponibilizados pela Prefeitura Municipal de São Paulo. Disponíveis em:
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/urbanismo/sp_urbanismo/operacoes_
urbanas/index.php?p=19525. Acesso em: 1º nov 2016.

(15) Faz parte do escopo da pesquisa à qual este ar go se vincula esclarecer essas questões no que
se refere à experiência de São Paulo, o que será objeto de discussão em trabalhos futuros. A
ausência dessas análises aqui é jus ficável, uma vez que, já que não é recorrente a negociação
do tulo na bolsa de valores, não há análises públicas sistema zadas como há para outros pos
de tulo. Destaca-se, ainda, que boa parte da negociação de Cepac no mercado secundário é
realizada fora do ambiente da bolsa, por meio de escrituração, intermediada pelo Banco do
Brasil, sobre o que não há um registro histórico organizado, conforme informações ob das por
meio de entrevistas.

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Operações urbanas consorciadas com Cepac

(16) A primeira fase da operação foi realizada pelo Consórcio Saúde – Gamboa, formado pela
Construtora OAS Ltda., Empresa Industrial Técnica S.A. e Odebrecht Serviços de Engenharia e
Construção S.A. A segunda fase, licitada para formação de uma PPP através da modalidade de
concessão administra va, está sob a responsabilidade do consórcio Porto Novo, composto pela
Construtora OAS Ltda., Construtora Norberto Odebrecht Brasil S.A. e Carioca Chris ani-Nielsen
Engenharia S.A. (Cardoso, 2009, p. 75).

(17) Cabe destacar que a falta de liquidez na venda dos a vos desencadeou um novo aporte do FGTS
de 1,5 bilhão em 2015 (além dos 3,5 bilhões iniciais com a compra dos Cepacs). Além disso,
ressalta-se que o suporte financeiro do FI-FGTS está sendo inves gado, em função de suspeita
de que teria sido condicionado a pagamento de propina pelas construtoras que atuam na OUC,
envolvendo o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e seu cunhado, Fábio Cleto, vice-
presidente da Caixa Econômica Federal na época. Disponível em: h p://www1.folha.uol.com.
br/poder/2016/07/1790371-cunha-agia-para-favorecer-odebrecht-em-fundo-diz-delator.shtml.
Acesso em: 15 jul 2016.

(18) Ressalta-se que algumas dessas empresas figuram entre os grandes financiadores eleitorais,
conforme consta da reportagem “As quatro irmãs: Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa e Andrade
Gu errez”: “No Estado do Rio de Janeiro, o PMDB é de longe o par do mais beneficiado, com
R$6,27 milhões, mais que a soma dos quatro seguintes: PT, PSDB, PV e DEM. Porém os repasses
podem ser ainda maiores em anos não eleitorais. Em 2013, por exemplo, somente a Odebrecht
repassou R$11 milhões dos R$17 milhões arrecadados pelo PMDB”. Disponível em: h p://www.
brasildefato.com.br/node/29039. Acesso em: 15 jan 2016.

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Texto recebido em 10/dez/2016


Texto aprovado em 22/abr/2017

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 455-477, maio/ago 2017 477
Gentrificação turística em Lisboa:
neoliberalismo, financeirização
e urbanismo austeritário em tempos
de pós-crise capitalista 2008-2009
Tourism gentrification in Lisbon:
neoliberalism, financialization and austerity urbanism
in the period of the 2008-2009 capitalist post-crisis
Luís Mendes*

Resumo Abstract
Neste artigo pretendo identificar forças motrizes In this paper, I intend to identify important drivers
importantes da financeirização do ambiente cons- of the financialisation of the built environment
truído e do setor imobiliário que estão na raiz da and of the real state sector that are at the root of
onda de gentrificação turística que está ocorrendo the wave of tourism gentrification that has been
em Lisboa na última década. Será analisada a vira- occurring in Lisbon in the last decade. The recent
gem neoliberal recente na política urbana em Por- neoliberal turn in urban policy in Portugal will
tugal, responsável por ter criado as condições para be analyzed, as it is responsible for creating the
um urbanismo austeritário, legitimando a ideologia conditions for an austerity urbanism, legitimating
da necessidade "natural" e "inevitável" da turisti- the ideology of the "natural" and "inevitable"
ficação nos bairros históricos de Lisboa, no período necessity of touristification in Lisbon’s historic
do pós-crise capitalista de 2008-2009. Nas narrati- districts, in the period of the 2008-2009 capitalist
vas de marketing urbano e racionalidade neolibe- post-crisis. In the rhetoric of urban marketing and
ral, a viragem neoconservadora no governo da ci- neoliberal rationality, this neoconservative turn
dade tem como objetivo tornar Lisboa uma cidade in city government aims to make Lisbon a more
mais competitiva, atraindo investimentos estran- competitive city, attracting foreign investment,
geiros, visitantes e turistas, amarrando os fluxos de visitors, tourists, tying the flows of real estate
capital imobiliário ao seu ambiente construído, em capital to its built environment, in a frame of
um quadro da globalização da concorrência entre globalization of competition between cities and
cidades e lugares. places.
Palavras-chave: gentrificação turística; financeiri- Key words : tourism gentrification;
zação; política urbana neoliberal; urbanismo auste- financialisation; neoliberal urban policy; austerity
ritário; Lisboa. urbanism; Lisbon.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 479-512, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3906
Luís Mendes

impôs a adoção de novos modelos de gestão


Introdução
e de desenvolvimento do território, com vista
a acautelar o sucesso dos compromissos sub-
Em Portugal, os primeiros sintomas da crise do jacentes ao Programa de Assistência Financeira
Estado-Providência começaram a manifestar- Internacional, obviamente condicionadores da
-se por volta de meados dos anos 1980 e 1990. atuação do Estado e dos demais setores públi-
A partir de então, a gradual desagregação do cos e privados, enquanto norma transnacional.
modelo predominante de intervenção pública O Memorando de Políticas Econômicas e Fi-
fez-se paralelamente à superação do fordismo nanceiras, também conhecido como Memoran-
pelo pós-fordismo, tornando cada vez mais do de Entendimento ou Plano da Troika, é um
difícil para o Estado reunir os recursos neces- acordo de entendimento celebrado em maio
sários para garantir a intervenção da despesa de 2011 entre o Estado Português e o Fundo
pública ao mesmo ritmo que se atingira em Monetário Internacional, a Comissão Europeia
anos anteriores. À inevitável precariedade da e o Banco Central Europeu, visando ao equi-
situação laboral dos trabalhadores mais des- líbrio das contas públicas e ao aumento da
qualificados e dos grupos sociais mais des- competitividade em Portugal, como condição
favorecidos, acumulou-se a desregulação do necessária para o empréstimo de cerca de 80
mercado de habitação e do uso do solo ur- mil milhões de euros que essas três entidades
bano, que tende a valorizar um padrão mais concederam ao Estado português. O memoran-
aleatório na produção temporal e espacial dos do propôs uma série de ações que tinha como
acontecimentos urbanos e o fabrico de uma metas estabilizar a dívida pública por volta de
segregação residencial a escalas mais finas, 2013, acrescentando que tal refletia um apro-
produzindo uma fragmentação socioespacial priado equilíbrio entre as ações necessárias
em microescala. Esse padrão é produto social para restaurar a confiança dos mercados e as-
do jogo do mercado imobiliário pouco regula- segurar que esse ajustamento não prejudicava
do, de processos especulativos de valorização excessivamente o desenvolvimento da econo-
fundiária e imobiliária, num contexto de cres- mia e do emprego.
cente financeirização do ambiente construído. O documento, que entrou em vigor a 17
O governo urbano orienta-se por um modelo de maio de 2011, é profundamente marcado
gestionário (gestão estratégica importada do por um fundamentalismo de mercado e teve
meio empresarial) em que o uso dos recursos ramificações consequentes para o programa do
públicos se faz para atrair investimento, o for- governo português da altura, tendo produzido
necimento dos serviços passa a fazer-se pelo políticas de forte austeridade financeira (cortes
mercado e pelo setor privado e são valorizadas na despesa social, contração do investimento
as parcerias público-privadas. público, aumento de impostos, etc.) e reformas
Essas transformações no espaço urbano estruturais que resultaram num verdadeiro
intensificaram-se em Portugal com a realida- atentado aos direitos laborais e sociais (facili-
de econômica, financeira e orçamental resul- tação dos despedimentos, redução da duração
tante da crise capitalista de 2008-2009, que e dos montantes de subsídios de desemprego,

480 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 479-512, maio/ago 2017
Gentrificação turística em Lisboa

etc.). Uma dessas reformas foi a do novo regi- mais do que em 2014, segundo o Instituto Na-
me de arrendamento urbano (NRAU) de 2012, cional de Estatística (INE). O boom turístico que
alvo de forte contestação social, uma vez que dá vida nova e cria novos negócios em Lisboa
é acusado de ter imposto um mecanismo de e Porto também está a aumentar as tensões
atualização de rendas que tem originado valo- latentes e a gerar novos problemas e desafios
res incomportáveis para muitos inquilinos sem urbanos e fiscais. Em nome do turismo, reali-
que estejam estabelecidos os apoios sociais za-se a reabilitação de prédios desocupados,
adequados e necessários, afetando as famílias mas as rendas aumentam exponencialmente,
de mais baixo estatuto socioeconômico. multiplicando expulsões de moradores vulnerá-
O desalojamento tem sido uma marca veis e fechamentos de lojas históricas, isto é,
da nova lei do arrendamento, que nada mais desalojamentos (deslocamentos) residenciais e
é que o bastião de uma virada neoliberal mui- comerciais. Além disso, graças ao turismo, mui-
to maior na política urbana em Portugal, res- tos portugueses são lançados no negócio de
ponsável por ter criado as condições para um aluguel de quartos, e muitos jovens desempre-
urbanismo austeritário e legitimando a ideolo- gados dão os primeiros passos no mercado de
gia da necessidade "natural" e "inevitável" da trabalho, mas isso nem sempre significa empre-
turistificação nos bairros históricos de Lisboa, gos com direitos e rendimento acima da média.
no período do pós-crise capitalista de 2008- Em geral, as discussões em torno do turismo
2009. Nas narrativas de marketing urbano e dão voz a posições opostas entre aqueles que
racionalidade neoliberal, a viragem neoconser- lucram com o boom das chegadas e saúdam
vadora no governo da cidade tem como objeti- a modernização das avenidas, da cidade e da
vo tornar Lisboa uma cidade mais competitiva, economia ("turismo como panaceia") e aque-
atraindo investimentos estrangeiros, visitan- les que estão contrariados com a incapacidade
tes, turistas, amarrando os fluxos de capital de pegar os transportes públicos já lotados no
imobiliário ao seu ambiente construído, em um centro histórico de Lisboa e com o aumento
quadro da globalização da concorrência entre das rendas no mercado imobiliário ou a des-
cidades e lugares. truição da tradição e autenticidade nos bairros
É à luz do quadro teórico de produção históricos da cidade ("turismo como desastre")
neoliberal do espaço urbano que pretendemos (Mendes, 2016a). De fato, é inegável que Lis-
identificar importantes forças impulsionadoras boa está a viver um pico de projeção interna-
da financeirização que estão na raiz da onda de cional, e que as receitas do turismo podem con-
turistificação que ocorreu em Lisboa na última tribuir para a recuperação econômica do país e
década. Lisboa recebe cada dia mais de 37 mil da cidade, durante e após a crise capitalista. O
turistas. Em 2015, a capital recebeu 5,25 mi- turismo urbano pode também ser um motor de
lhões de visitantes/turistas, o que gera um total regeneração urbana para a preservação do pa-
de 3.500 milhões de euros por ano em receitas trimônio arquitetônico e a reabilitação de edifí-
de turismo. O ano de 2015 foi o melhor de sem- cios em estado avançado de degradação, além
pre para o turismo nacional. No total, Portugal de contribuir para a criação de emprego. Mas
recebeu 17,4 milhões de turistas, 8,6 por cento a ausência aparente de qualquer estratégia de

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 479-512, maio/ago 2017 481
Luís Mendes

planejamento e avaliação do seu impacto e o mercantilização, financeirização do mercado de


quase inexistente processo de regulamentação habitação lisboeta, em favor de uma crescente
têm consequências esmagadoras. A mais im- gentrificação pelo turismo.
portante será precisamente o foco deste artigo:
a gentrificação turística.
Como linha metodológica, gostaríamos
de destacar que o texto que apresentamos con-
Produção do urbanismo
figura tão e somente um mero ensaio teórico,
austeritário no pós-crise
problematizador e exploratório dessa temática, capitalista 2008-2009
reconhecendo que carece de referência a casos
empíricos concretos. Seguindo uma metodo- A depressão econômica experimentada pelas
logia hipotético-dedutiva, a construção deste grandes cidades durante a crise capitalista de
ensaio parte de postulados ou conceitos já es- 2008-2009 foi seguida por políticas urbanas
tabelecidos na literatura consultada, através de já não apenas de cariz neoliberal, mas verda-
um trabalho lógico de relação de hipóteses ex- deiramente austeritárias, que descolam daqui-
plicativas, que configura, a nosso ver, e embora lo que foi o urbanismo neoliberal muito mais
desprovido de trabalho empírico, uma possível orientado para o mercado e, portanto, afe-
perspectiva de interpretação dos fenômenos tado por filosofias baseadas na promoção do
em estudo e enquadramento à análise de consumo, na competitividade entre cidades e
conteúdo dos vários pacotes legislativos que no protagonismo dos atores privados no pro-
configuram a viragem neoliberal na política cesso de planejamento e produção da cidade
de cidades. Assim sendo, foi intencional a não (Ley, 1980; Hall e Hubbard, 1996; Hackworth,
reserva de uma parte do texto à abordagem 2007; Peck, 2010; Steger e Roy, 2013; Rossi e
teórica e outra à ilustração empírica, bem como Vanolo, 2015). Num contexto de globalização
o enfoque quase exclusivo nas forças motrizes econômica e de concorrência interurbana, o
do processo, ao invés da atenção aos impactos enquadramento das políticas de habitação e
sociais e territoriais criados no centro histórico de renovação urbana deverá ser analisado à luz
de Lisboa, como se tem tornado evidente nas do projeto neoliberal, dos seus recentes desen-
centenas de casos de desalojamento de mora- volvimentos no contexto da crise econômica e
dores dos bairros centrais para áreas periféri- financeira de 2008-2009 e dos efeitos que pro-
cas da cidade ou mesmo para municípios fora duziu, por exemplo, na textura socioestrutural
desta, mas ainda na área metropolitana. Neste nas cidades do Sul da Europa (Mendes, 2013
artigo, a abordagem da teoria e a da empiria e 2014; Santos, Teles e Serra, 2014; Eckardt
serão abordadas de forma integrada, de modo e Sánchez, 2015; Tulumello, 2015; Sevilla-
a facilitar a leitura do fenômeno. Portanto, as -Buitrago, 2015; Seixas, Tulumello, Corvelo e
questões teóricas serão constantemente inter- Drago, 2015; Zwiers, Gideon, Van Ham e Van
caladas e ilustradas com referência a peque- Kempen, 2016; Mendes e Carmo, 2016).
nos aspetos empíricos que evidenciem o apro- Harvey (1989), de forma visionária,
fundamento das tendências de privatização, apreende a gênese dessas transformações na

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Gentrificação turística em Lisboa

governança urbana no capitalismo tardio, como O empreendedorismo urbano, como diz


passagem do administrativismo/gerenciamento Harvey (ibid.), tem como ponto central a noção
para a inovação do empreendedorismo/empre- de uma "parceria público-privada" na qual um
sariamento urbano no início dos anos 1970, boosterismo local tradicional é integrado com
construído a partir do consenso – transversal a o uso de poderes governamentais locais para
fronteiras nacionais e partidos políticos – que a tentar atrair fontes externas de novos investi-
ideologia neoliberal produziu de que as cidades mentos diretos ou de novas fontes de empre-
que adotassem uma postura mais empreen- go. Em muitos casos, isso significou que o setor
dedora e proativa em relação ao investimento público assumia o risco e o setor privado tirava
e ao desenvolvimento econômico obteriam os benefícios. Alguns autores críticos, como o
maiores benefícios positivos para as suas po- próprio Harvey e Smith chamam isso de "pri-
pulações. Dessa forma, os administradores vatização de lucros e socialização de custos",
públicos, além de atuarem no sentido de faci- pois é a lógica empresarial e especulativa que
litar os investimentos privados no âmbito local, orienta a realização de empreendimentos nas
também procuraram inserir a sua cidade em cidades, através de novos produtos imobiliá-
redes de maior competitividade internacional, rios pontuais e de caráter excepcional, tanto
explorando vantagens locais, reforçando o grau em termos econômicos, de alavancagem de
de atração da cidade com vista, pretensamen- investimento público e privado, como de es-
te, a uma elevação geral da qualidade de vida. trutura urbana, rompendo com a continuidade
Enfrentando a grande mudança econômica e socioespacial da envolvente urbana, agravando
social provocada pela fortíssima reestruturação a segregação e a fragmentação socioespaciais.
tecnológica e industrial que acompanhou toda Estas são, aliás, inerentes a uma lubrificada di-
a tendência de desindustrialização e terciariza- visão social do espaço urbano, motor básico do
ção das cidades do capitalismo avançado nos desenvolvimento capitalista que, novamente,
anos 1970 e 1980, bem como para facilitar a produz desigualdade social urbana que, por si
transição geral da dinâmica do capitalismo de só, reproduz as próprias condições de acumu-
um regime fordista keynesiano de acumulação lação capitalista, e assim sucessivamente.
capitalista para um regime dito pós-fordista Investe-se em áreas urbanas de oportunidade
de acumulação flexível, multiplicaram-se as para aproveitar o rent-gap gerado, onde é mais
iniciativas de governo urbano local de impri- rentável e garanta retornos de capital imobiliá-
mir em diversas medidas e ações uma marca rio mais rápidos e seguros. Todavia, os custos
empreendedora e empresarial, típica de um e as externalidades são compartilhados pelos
modelo gestionário, oferecendo incentivos sob contribuintes, classe trabalhadora e cidade da
a forma de subvenções, empréstimos a fundo maioria, enquanto os benefícios são apropria-
perdido e infraestruturas subsidiadas. Tudo isto dos apenas pelos promotores associados aos
de forma a atrair fontes externas de financia- projetos de reestruturação urbana que ocorrem
mento, novos investimentos diretos ou fontes nas cidades, entre outros grupos privilegiados
geradoras de emprego, sem o necessário envol- da banca, da finança, da política, à custa do
vimento da comunidade. erário público.

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Luís Mendes

As administrações dos governos urbanos e um imperialismo relegitimados. Consequen-


assumem como inevitável e natural a narrati- temente, há maior arraigamento dos arranjos
va neoliberal da austeridade, reestruturando regulatórios disciplinados pelo mercado, maior
as suas modalidades ao serviço do paradig- lubrificação e aceleração dos sistemas neolibe-
ma da nova gestão pública, para irem ao en- ralizados e maior frequência de experimenta-
contro a novas engenharias de governança ção regulatória em diferentes contextos, sob o
urbana: 1) governo catalítico – tomar o leme signo do “Deus-Mercado”.
em vez de remar; 2) governo pela comunida- Dessa forma, nos últimos tempos, o neo-
de – delegar autoridade em vez de servir; 3) liberalismo continua a reinar, apesar dos seus
governo competitivo – injetar competição na espetaculares fracassos, sendo o exemplo pa-
função pública; 4) governo orientando para os radigmático da crise econômica e financeira
resultados – financiar os resultados/ outputs e do recente período 2008-2009, no qual as
não as entradas/ inputs ; 5) governo empresa- políticas de austeridade parecem ser a única
rial – ganhar mais do que gastar; 6) governo solução alternativa (Bourdin, 2011; Künkel e
descentralizado – da hierarquia à participação Mayer, 2012; Millet e Toussaint, 2013; Schui,
e ao trabalho de equipe; 7) governo orientado 2014; Lurdes Rodrigues e Adão e Silva, 2015;
para o mercado – apoiar a mudança através do Eckardt e Sánchez, 2015; Clark, Larsen e Han-
mercado (Steger e Roy, 2013)). Nessa medida, sen, 2015; Rolnik, 2015), marcando uma nova
as administrações urbanas assumem-se, assim, fase descrita por Harvey (2010, 2012 2014)
como entidades estratégicas, agilizadoras e como "acumulação por espoliação", isto é, a
garantidoras da reprodução dos interesses do acumulação através da extração direta do lucro
desenvolvimento capitalista no espaço urbano de formas públicas ou comuns de riqueza cole-
e no ambiente construído. tiva. Na "cidade empreendedora", os governos
Num cenário de pós-crise capitalista locais agem como atores de negócios de redu-
2008-2009, a ideologia neoliberal ortodoxa ção de custos que administram suas cidades
dominante é cada vez mais questionada, mas como empresas. Enfrentando cortes de impos-
a maquinaria política da disciplina de merca- tos e outros cortes em sua renda, esses gover-
do imposta pelo Estado permanece essencial- nos têm promovido cada vez mais políticas de
mente intacta; as agendas de políticas sociais austeridade, o que resultou em menos serviços
e econômicas continuam a ser subordinadas à para os cidadãos e menos investimento em
prioridade de manter a confiança do investi- recursos e equipamentos coletivos e na maior
dor e uma atmosfera ideal e vibrante para os parte da infraestrutura da cidade, especialmen-
negócios; e as agendas de políticas como livre te no setor de habitação a preços acessíveis, ao
comércio, privatização, financeirização, merca- mesmo tempo que a gentrificação vê as suas
dos de trabalho flexíveis e competitividade ter- fronteiras expandidas. Expansão territorial, plu-
ritorial urbana continuam a ser tidas como cer- riescalar e glocal da gentrificação, não só a ou-
tas. Como defendem Brenner, Peck e Theodore tras áreas da cidade, como também a cidades
(2012 e 2013), o resultado mais provável da de todo o mundo, simultaneamente como es-
atual crise geoeconômica é um neoliberalismo tratégia ideológica ao serviço de um urbanismo

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Gentrificação turística em Lisboa

global neoliberal e revanchista (Smith, 2009; como também as dialéticas que se produzem
López-Morales, Gasic Klett e Meza Corvalán, entre os mercados, a produção do espaço urba-
2012; Lees, Bang Shin e López-Morales, 2015 e no e os fluxos transnacionais de capital finan-
2016; Mendes, 2016c e 2016e). ceiro. A autora dá conta de como o paradigma
Nessa ideia de expansão da fronteira da da financeirização nas políticas urbanas de
gentrificação, encontra-se contida uma com- habitação se infiltra na superestrutura gover-
binação evocativa e dialética entre capital e nativa e desce até aos meandros da vida social
território, entre o econômico e o espacial. Os e econômica do quotidiano, legitimando a vio-
processos de desenvolvimento da cidade ou lência da destruição criativa e da acumulação
urbanização são a manifestação espacial do por despossessão pela máquina do capitalismo
processo de acumulação de capital. De motor neoliberal contemporâneo:
de crescimento, a cidade tornou-se um espaço
A propriedade imobiliária em geral e a
organizado para o (re)investimento de capital,
habitação em particular configuram uma
em função de ciclos de valorização e desvalo- das mais novas e poderosas fronteiras da
rização constantes; mas, no urbanismo auste- expansão do capital financeiro. A cren-
ritário, estes são comandados a partir de nor- ça de que os mercados podem regular a
mas transnacionais que servem aos interesses alocação da terra urbana e da moradia
como forma mais racional de distribuição
das geografias neoliberais dos fluxos interna-
de recursos, combinada com produtos fi-
cionais de capital. As contradições experimen- nanceiros internacionais experimentais e
tadas no espaço construído são reproduzidas “criativos” vinculados ao financiamento
em parte devido aos passos dados para con- do espaço construído, levou as políticas
verter o capital financeiro no elo mediador públicas a abandonar os conceitos de mo-
radia como um bem social e de cidade co-
entre o processo de urbanização (em todos
mo um artefato público. As políticas habi-
os seus aspetos, inclusive a edificação de am- tacionais e urbanas renunciaram ao papel
bientes construídos) e as necessidades dita- de distribuição de riqueza, bem comum
das pela dinâmica subjacente do capitalismo que a sociedade concorda em dividir ou
financeirizado. Também na gentrificação co- prover para aqueles com menos recursos,
para se transformarem em mecanismo
mo processo de (re)desenvolvimento urbano,
de extração de renda, ganho financeiro e
o capital imobiliário procura uma estratégia acumulação de riqueza. Esse processo re-
para se expandir, não só para dar resposta às sultou na despossessão massiva de terri-
necessidades de realização e descobrir novas tórios, na criação de pobres “sem lugar”,
frentes urbanas de mercado, mas também pa- em novos processos de subjetivação es-
truturados pela lógica do endividamento,
ra satisfazer as exigências das fases seguintes
além de ter ampliado significativamente a
do ciclo de acumulação. segregação nas cidades. (Ibid., pp. 14-15)
Numa obra lapidar e de grande enver-
gadura, pondo em diálogo o debate teórico e Em estudos recentes, Peck (2012, 2015)
casos empíricos de diferentes contextos socio- e Peck e Whiteside (2016) descrevem como o
espaciais do nosso mundo globalizado, Rolnik neoliberalismo fortaleceu seu domínio sobre as
(2015) desvenda o nexo Estado-Finanças, assim cidades daquela a que os autores se referem

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Luís Mendes

como a Grande Recessão de 2007-2008, tra- 2014; Sevilla-Buitrago, 2015; Jonas, McCann e
balhando no conceito de "urbanismo de aus- Thomas, 2015).
teridade". Devido à concentração espacial de A financeirização, conceito cunhado pela
trabalhadores sindicalizados, minorias étnicas, economia política para designar a mais impor-
grupos socioeconômicos vulneráveis e grupos tante transformação estrutural do capitalismo
liberais, as cidades são objetos particularmen- desde a crise da década de 1970, designa, as-
te desejáveis para a implementação de me- sim, a crescente influência desses mercados
didas de austeridade. Os governos urbanos financeiros (de seus atores, processos e produ-
reduzem os serviços sociais e os salários dos tos) na atividade geral do tecido social e eco-
trabalhadores do setor público (cada vez mais nômico, a todas as escalas, desde o indivíduo
como forma de negar a esses trabalhadores o e sua família, às empresas, às economias na-
direito à negociação coletiva), além de cortar cionais até às geografias neoliberais dos inves-
os orçamentos escolares e eliminar unidades timentos glocais e transnacionais. No quadro
habitacionais a preços acessíveis, enquanto pri- da globalização capitalista contemporânea, na
vatizam as funções do centro da cidade e sub- qual a finança é uma das forças motrizes mais
sidiam os investidores privados, numa lógica de fortes, a autonomia que parece caracterizar o
mercantilização, privatização e financeirização movimento insaciável de acumulação de capi-
do setor da habitação em particular. tal e a predominância que a economia financei-
As autoridades urbanas em muitas cida- ra parece ter sobre todas as restantes esferas
des foram forçadas a reduzir os serviços essen- da vida social se acentua de forma qualitativa
ciais, despedir funcionários do setor público, (Santos, 2012). Veja-se, por exemplo, que, para
controlar os gastos e reduzir a dívida, a fim de acompanhar o esforço de hiperconsumo, em
satisfazer as obrigações fiscais atuais e futuras detrimento da poupança, as famílias recorrem
e atender às restrições impostas por níveis mais cada vez mais ao crédito, tanto para os bens
altos de governo, muitas vezes supranacional, de consumo como para a aquisição de habita-
como foi o caso da Troika em Portugal. A auste- ção. Uma consequência genérica dessa linha
ridade está, definitivamente, tornando-se uma de evolução é o endividamento das empresas
característica generalizada do urbanismo neoli- e das famílias que cresceu consideravelmente e
beral hoje em dia. Longe de incitar a mudança representa uma das características dominantes
institucional orientada para uma reforma pro- de nossas economias e sociedades.
gressiva do sistema, o resultado em termos de Na história recente da imbricação entre
política é um esforço redobrado para ampliar finança, setor da construção e mercado de ha-
ainda mais a agenda neoliberal, ao ponto de bitação em Portugal, Rodrigues, Santos e Teles
a financeirização estender-se a todos os cam- (2016) defendem que a construção do Merca-
pos do corpo social, atingindo a plenitude da do Único e da União Econômica e Monetária
totalidade espacial e temporal do quotidiano. no seio da União Europeia permitiu à Banca
A recuperação econômica nunca foi o ponto, a nacional ter acesso aos mercados de capitais
austeridade foi sobre usar a crise para repro- internacionais, abrindo caminhos para a con-
duzir o capital, não a resolver (Harvey, 2012 e vergência entre as práticas do setor bancário

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Gentrificação turística em Lisboa

português e a banca internacional. O setor social e economicamente mais vulneráveis,


financeiro beneficiou-se também do floresci- resultaram num acentuado aumento do incum-
mento do mercado privado de provisão de ha- primento das prestações por parte das famílias
bitação e da expansão da concessão de crédito portuguesas aos seus bancos credores. Com o
para a compra de casa própria, o que reforçou agravar da atual crise – ela própria fortemente
o crescimento do endividamento das famílias enraizada em processos especulativos – o di-
portuguesas, ao ponto de o peso da dívida reito à habitação encontra-se por isso cada vez
contraída pelas famílias em crédito hipotecá- mais comprometido. A subida do desemprego,
rio ganhar relevância relativamente ao crédito a quebra acentuada dos rendimentos das famí-
às empresas, desde finais de 1990. A própria lias e o aumento do custo de vida têm vindo a
política de habitação promovida pelo Estado, conduzir a um aumento muito significativo das
assente num modelo de provisão de habitação situações de não cumprimento bancário, exis-
baseado no mercado, beneficiou, assim, o setor tindo hoje cerca de 140.000 famílias portugue-
financeiro e o setor da construção. Mas os ga- sas sem capacidade para pagar a prestação da
nhos da Banca são duplos: consegue capturar casa. Essa situação de crise levou a que milha-
partes dos lucros dos construtores na esfera da res de pessoas, aproveitando a procura interna-
produção, como também consegue extrair, ain- cional que a cidade de Lisboa tem registado co-
da, uma parte dos salários dos trabalhadores mo atração turística, disponibilizassem os seus
com o endividamento hipotecário. apartamentos para alojamento turístico, conse-
Como já desenvolvemos noutras pu- guindo, com isso, arrecadar algum capital que
blicações (Mendes e Carmo, 2016), no Sul da lhes permitisse ultrapassar com maior facilida-
Europa, especialmente em Portugal, os efeitos de o quadro de austeridade econômica e social
da crise urbana foram sentidos mais intensa- pelo qual todo o país passou nos últimos anos.
mente devido ao colapso do mercado imobiliá- E é precisamente nessa inflexão que se
rio já frágil, baseado no incentivo a aquisição afirma e legitima a turistificação como pana-
e compra de casa sustentada por um acesso ceia para a crise social e urbana. A crise finan-
fácil ao crédito barato paralelamente ao desen- ceira portuguesa (2009-2013) foi uma grande
volvimento de um modelo de expansão urba- crise política e econômica, relacionada com a
na baseado na produção em massa de novas crise da dívida soberana europeia e o seu for-
construções, especialmente nos subúrbios das te impacto em Portugal. Essa crise começou a
grandes cidades, consolidando as áreas me- registar-se nas primeiras semanas de 2010 e só
tropolitanas e levando a um endividamento veio a desaparecer com o início da recuperação
gradual dos indivíduos no acesso ao crédito econômica portuguesa no fim de 2013. Foi a
para aquisição de moradias. Evidentemente, recessão mais grave da economia portuguesa
esses fatos relacionados com o início de uma desde os anos 1970, e o turismo definitivamen-
recessão econômica muito forte desde 2008 e te ajudou a criar emprego e a atenuar as con-
contínua até 2013, acompanhados por aumen- sequências e os impactos da crise e da austeri-
to do desemprego, impostos sobre a classe tra- dade junto das famílias portuguesas. Por isso,
balhadora e cortes no apoio social aos grupos mesmo em Lisboa, a gentrificação turística tem

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Luís Mendes

sido privilegiada como estratégia política de re- na amputação das funções sociais das
vitalização urbana promovida pelo Estado Ca- instituições públicas ou na destruição do Esta-
pitalista, alicerçando-se no argumentário neo- do Social, mas converte essas funções em me-
liberal e no ideário do urbanismo austeritário canismos que servem aos seus interesses atra-
que legitimam a hegemonia da turistificação vés de uma seletividade estratégica, um “inter-
enquanto panaceia no contexto de pós-crise vencionismo de mercado” (Rodrigues e Teles,
capitalista. Nesse sentido, o Estado Neoliberal 2015; Santos, Teles e Serra, 2014; Rodrigues,
e Garantidor leva-nos a ver para além da linha Santos e Teles, 2016; Dardot e Laval, 2013;
divisória “Estado/Economia” e considerar a Brown, 2015; Storper, 2016; Bauman e Bordoni,
gentrificação tanto como uma estratégia go- 2016; e Jessop, 2012 e 2016). Não se trata tan-
vernamental, como uma estratégia de acumu- to de reduzir o peso da despesa pública, mas,
lação capitalista, que assegura a extração e sim, de promover a entrada dos privados em
a apropriação privada do excedente coletivo, múltiplas áreas da sua esfera tradicional – sen-
através de socialização dos custos e privatiza- do a da reabilitação urbana um exemplo para-
ção dos lucros. digmático – para, dessa forma, favorecer a sua
No caso das políticas públicas de reabi- mercadorização mais ou menos gradual. No
litação urbana em relação a um turismo resi- nível da regeneração e da reabilitação urbanas,
dencial na cidade/centro, podemos dizer que, essa privatização envolve complexas engenha-
ao invés da destruição sistemática da provisão rias financeiras com recurso a fundos de inves-
pública de bens e serviços, o neoliberalismo timento imobiliário, parcerias público-privadas
influencia a governação urbana no sentido de nem sempre transparentes, complexas subcon-
uma recomposição sofisticada da figura do Es- tratações ou dispendiosos subsídios e incenti-
tado no nível local, tornando-o um instrumento vos fiscais, garantidos pelo domínio público,
de mercadorização da vida urbana. Portanto, e envolvendo um ativismo estatal permanente e
embora a ideologia neoliberal pareça apontar constante. Construir um mercado nacional da
para a redução do Estado a uma espécie de regeneração e da reabilitação urbanas e, sobre-
Estado Mínimo, não devemos confundir o neo- tudo, garantir seu funcionamento e expansão
liberalismo com o regresso ao puro laisser-faire progressivos são bastante dispendiosos e exi-
e aos mercados livres que dispensam e até re- gem, dada a natureza do setor em causa, uma
pudiam a intervenção do Estado na Economia. poderosa maquinaria estatal (Brenner, Peck e
O projeto neoliberal depende da capacidade Theodore, 2013; Rossi e Vanolo, 2015; Harvey,
coerciva, transformadora e mediadora do Esta- 2010 e 2014; Penny, 2016).
do para injetar competição nos processos so- Nesse contexto, o papel do Estado Neo-
ciais e econômicos e, como tal, reestruturar os liberal é exatamente criar, manter e conservar
espaços da cidade contemporânea em torno do uma estrutura institucional apropriada às prá-
mercado como princípio único organizador da ticas do mercado, apesar de, depois de criadas,
vida urbana coletiva e social. Portanto, o neo- as condições não mais requererem interven-
liberalismo não se concentra necessariamente ções que ultrapassem as de um Estado mínimo.

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Gentrificação turística em Lisboa

Nesse sistema, ganha relevo a forma como a


Turistificação, o turismo
produção do espaço se realiza cada vez mais
como condição geral da (re)produção capitalis-
como panaceia ou…
ta, não só na produção de infraestrutura, como em direção a uma definição
no ambiente construído, formando o aparato de gentrificação turística
necessário à reprodução ininterrupta do siste-
ma. O objetivo do Estado Capitalista não é eli- A partir da teoria crítica nos estudos urbanos de
minar as contradições do sistema, mas atenuá- cerca dos últimos 40 anos, percebemos que a
-las, reproduzindo, no tecido social, a dinâmica gentrificação se refere a um processo de abur-
da acumulação capitalista extraída da produ- guesamento de certos bairros e áreas da cidade
ção de ambiente construído. Cabe ao Estado, com história de desinvestimento de capital e
inserido na lógica do sistema capitalista, garan- degradação urbanística. Corresponde, nos seus
tir a reprodução do capital, gerindo conflitos e mais variados moldes, a um fenômeno de subs-
contradições produzidos pelo próprio sistema e tituição social classista e de reapropriação pela
que podem interferir na plena realização do ci- burguesia – e da própria e respetiva ideologia
clo de capital, seja pela produção de infraestru- neoliberal e ordem simbólica subjacentes – dos
turas, seja pelo controle dos salários de modo espaços de habitat populares das áreas antigas
a mantê-los baixos, seja pelas políticas de con- centrais. É um processo de mudança urbana,
corrência e de regulação que formula (Lojkine, no qual a reabilitação de imóveis residenciais
1997; Lefebvre, 1974; Bourdieu, 2014; Carlos, situados em bairros da classe trabalhadora ou
2015; e Avelãs Nunes, 2013 e 2016). de gênese popular/tradicional atrai a fixação
A emergência e o recente desenvolvi- de novos moradores relativamente endinhei-
mento extraordinário do setor do turismo em rados, levando ao desalojamento e à expulsão
Lisboa têm, portanto, de ser compreendidos de ex-residentes que não podem mais pagar o
nesse contexto de governança urbana neoli- aumento dos custos de habitação que acom-
beral, promotora de estímulos ao mercado e panham a regeneração urbana que o processo
à iniciativa privada, mas também nas geogra- comporta, culminando com um aprofundamen-
fias neoliberais dos fluxos transnacionais de to da segregação residencial e divisão social do
capitais à escala global que comandam, hoje espaço urbano (Smith, 1979). Essas tendências
mais do que nunca, os destinos das microgeo- são muito evidentes, sobretudo numa extensão
grafias de (des)investimento e reinvestimento do conceito de gentrificação a recentes casos
no parque imobiliário do espaço intraurbano. de grandes operações urbanísticas de renova-
Todavia, torna-se também necessária uma lei- ção e regeneração, levadas a cabo por diversos
tura da retrospectiva das políticas municipais agentes de produção do espaço urbano, já ca-
de reabilitação urbana, cujo percurso, no caso racterizados por Lefebvre (1974): os proprietá-
da cidade de Lisboa, tem sido, à semelhança rios fundiários, os promotores imobiliários, o
de Portugal, marcado por um caro desígnio de Estado, as empresas e os cidadãos.
liberalização e de desbloqueio do mercado de A gentrificação é uma questão ideológica,
habitação português. política, e é o processo de mudança urbana que

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Luís Mendes

melhor materializa a luta de classes no palco Mas por que podemos falar de gentrifi-
cidade na/da contemporaneidade. As relações cação turística? Em Lisboa, por exemplo, os flu-
socioespaciais estruturadas pela gentrificação xos de capital no mercado imobiliário combina-
são reguladas pelas estruturas capitalistas, de dos com a mudança econômica e política para
forma a reforçar e a reproduzir a riqueza e o po- o turismo (turistificação) parecem atualmente
der da classe dominante, por via da acumulação explicar melhor a gentrificação contemporânea
por despossessão, expropriação, desalojamen- comparativamente às teses tradicionais que se
to e expulsão da classe dominada. Todavia, os concentram na demanda gerada pelo gentrifier
processos subjacentes à gentrificação e às mu- enquanto consumidor ou nas preferências cul-
danças materiais que se produzem parecem ter turais de uma nova classe média para bairros
sido esticados ao longo do tempo e do espaço. históricos do centro da cidade. Especialmente
A gentrificação contemporânea tornou-se ca- no contexto de pós-crise financeira, a estru-
da vez mais complexa, pois diferentes atores e tura urbana, social e econômica de Lisboa foi
lugares se envolveram, e as paisagens produ- profundamente transformada para acomodar
zidas mudaram. Uma série de transformações a crescente demanda do turismo internacio-
derivadas de um novo contexto político e eco- nal. O turismo no centro de Lisboa parece ser
nômico imposto pela globalização gerou uma percepcionado pelos poderes públicos e pela
nova forma de gentrificação significativamente própria iniciativa privada como uma espécie de
diferente da que se observou durante décadas, "panaceia" que pode curar todas as doenças
do ponto de vista de protagonistas e deman- da crise urbana. Tem havido alguma discussão
das, como modalidades e estrutura de oferta. ultimamente sobre se a turistificação é uma es-
O que era causal, marginal e local passa a ser pécie de gentrificação, uma vez que os proces-
sistemático e é verdadeiramente global para sos muitas vezes compartilham características
todas as regiões do planeta, assumindo uma comuns um com o outro.
dimensão estratégica na cena do urbanismo Assim, em primeiro lugar, não podemos
neoliberal contemporâneo (Smith, 2005). Me- compreender essa febre turística que a cida-
diada pela dialética entre os movimentos cícli- de experimenta sem compreender a ancora-
cos de capital financeiro à escala transnacional gem da gentrificação nas malhas imbricadas
e a produção de ambiente construído imobili- dos sistemas globais de finanças imobiliárias
ário à escala local intraurbana, e alavancada e bancárias, bem como a ideologia do mer-
por processos ditos de “regeneração urbana”, cado livre, o regime urbano de austeridade, a
a gentrificação não se resume hoje apenas ao financeirização da sociedade e da economia
setor residencial e à habitação, abrangendo que curiosamente se tem assumido uma cura
também a geografia funcional da cidade, en- para os problemas criados pela crise capitalista
globando igualmente o comércio, o turismo e a 2008-2009, quando, na verdade, são a própria
governança. Por isso se tem vindo a falar tam- causa de todo o problema da desregulamenta-
bém em gentrificação turística, comercial e até ção financeira criada.
ideológica/moral (Lees, Bang Shin e Lóppez- O ponto importante a salientar aqui é que
-Morales, 2016; e Mendes, 2016e). a literatura observa que ambos os processos

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Gentrificação turística em Lisboa

se alimentam um ao outro e se sobrepõem no turístico (como, por exemplo, apartamentos


tempo e no espaço. Embora em alguns casos a turísticos e arrendamento de curta duração –
proliferação de espaços gentrificados faça com short rental), que começa a substituir gradual-
que se tornem destinos turísticos, em outros mente as funções tradicionais da habitação
casos é o próprio turismo que, orientado por para uso permanente, arrendamento a longo
estratégias de promoção urbana para produ- prazo e comércio local tradicional de proximi-
zir um novo ambiente construído, por sua vez, dade, agravando tendências de desalojamento
atrai novos residentes com rendimentos mais e segregação residencial, esvaziando os bair-
elevados e, portanto, incentiva processos de ros de sua população original ou impedindo
gentrificação. De fato, os dois processos coexis- população de baixo estatuto socioeconômico
tem e não se distinguem no mundo empírico, de aceder a habitação nessas áreas (Mendes,
estando geralmente interligados e reforçando- 2016a e 2016b). Historicamente, o centro tra-
-se mutuamente. Independentemente do pro- dicional de Lisboa foi o lar de diversos grupos
cesso que encoraja o outro, conclui-se que de pessoas. No entanto, ao longo dos últimos
ambos tendem a coexistir no mesmo ambiente dez anos, especialmente, os valores da pro-
urbano, resultando na chamada gentrificação priedade imobiliária e do solo urbano aumen-
turística (Cocola Gant, 2015). Um dos primeiros taram. Isso, aliado à crise econômica, à auste-
trabalhos seminais sobre o assunto é o estudo ridade financeira e à nova lei do arrendamento
de Gotham (2005) do Vieux Carré de Nova Or- urbano (baluarte de uma virada neoliberal no
leans, que inventa o conceito de gentrificação marco legal urbano), legitimou a "panaceia
turística para explicar o engajamento dialético turística" no centro da cidade. O aumento
do processo de turistificação e gentrificação: galopante do preço da habitação para uso
permanente ou temporário (arrendamento ou
to highlight the role of state policy in
aluguel) tem empurrado para fora as pessoas
encouraging both gentrification and
tourism development, and the actions pobres e os imigrantes, de modo que atrações
of large entertainment corporations. turísticas, restaurantes, bares de entreteni-
[…] transformation of a middle-class mento e lojas para visitantes e turistas domi-
neighbourhood into a relatively affluent nam agora grande parte dos distritos centrais.
and exclusive enclave marked by a
Argumentamos que essa mudança nos fluxos
proliferation of corporate entertainment
and tourism venues. (pp. 1100-1102) de capital para o mercado imobiliário de aloja-
mento turístico combinada com o crescimento
Expandindo a definição de Gotham da procura turística e, ultimamente, com uma
(ibid.) e abrindo as fronteiras do quadro con- tendência neoliberal crescente nas políticas de
ceitual para a realidade empírica de Lisboa, regeneração urbana reforçam a importância
neste ensaio, entendo a "gentrificação turísti- das atividades destinadas ao consumo turístico
ca" como a transformação dos bairros popu- e encorajam o desalojamento/deslocamento,
lares e históricos da cidade/centro em locais aprofundando a segregação residencial e ele-
de consumo e turismo, mediante a expansão vando a gentrificação em Lisboa para uma fase
da função de recreação, lazer ou alojamento mais agressiva do processo.

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Luís Mendes

Como em Berlim, Barcelona, Veneza ou grupos econômicos de promoção imobiliária.


Amesterdã, assim foi também em Lisboa. Na Enquanto os marginal gentrifiers (os gentrifiers
última década a fronteira da gentrificação tem “pioneiros”) continuam a influenciar a área, a
vindo a avançar e muito, por efeito de uma gentrificação torna-se frequentemente acom-
aceleradíssima turistificação. Não só se tem ex- panhada por agentes imobiliários de maior
pandido em escala como tem mudado de con- envergadura, e a reabilitação urbana começa a
tornos, de formas e de protagonistas. Sabemos afigurar-se como estratégia política e econômi-
que, até início do século XXI, o processo era ca prioritária para a revitalização do centro his-
marginal e embrionário nas duas grandes cida- tórico. Como resultado do aumento do volume
des portuguesas de Lisboa e Porto. Designei-a de intervenções imobiliárias, as melhorias físi-
de pocket gentrification ou “gentrificação em- cas e arquitetônicas tornam-se cada vez mais
brionária” (Mendes, 2006, 2008 e 2014). Apeli- visíveis nessa fase, pelo que, consequentemen-
dava-se assim, pois tratava-se de uma marginal te, os preços das casas nos bairros históricos
gentrification, o seu estádio era primário, tanto começam a subir galopantemente. Sem regula-
que o seu crescimento era lento e esporádico, ção ou controle moderado sobre a subida das
manifestando-se no espaço urbano de forma rendas, o processo de desalojamento direto e
pontual e fragmentada, numa pequena e leve indireto expande-se para formas mais agressi-
escala circunscrita e limitada a apenas alguns vas, à medida que os valores imobiliários dos
apartamentos ou, quando muito, a alguns bairros também aumentam e o Estado aprova
quarteirões de bairro. O desalojamento era di- legislação facilitadora da iniciativa privada e
minuto ou mesmo inexistente. Isto aconteceu, do despejo de habitantes e comerciantes locais.
pois todas as políticas de reabilitação urbana As melhores propriedades habitacionais e co-
assumidas desde os anos 1970 até início do sé- merciais mantidas tornam-se parte do mercado
culo XXI eram muito protetoras dos inquilinos e da classe alta e média-alta, à proporção que os
das populações mais vulneráveis que viveram proprietários procuram tirar proveito da noto-
durante décadas no centro histórico, procuran- riedade reforçada da área, o que acaba, por sua
do fixá-los em contracorrente com o intenso vez, a conduzir a um maior desalojamento.
processo de despovoamento sofrido, à medida
que, pela expansão suburbana, consolidava-se
a área metropolitana. Para isso também contri- As principais forças motrizes:
bui a lei do congelamento das rendas de 1948,
que manteve o valor das rendas pagas a um
financeirização do mercado
nível muito baixo, como já vimos. de habitação e a virada
Neste momento, Lisboa vive um novo neoliberal nas políticas
estádio de gentrificação em todo diferente do urbanas
anterior, muito devido à explosão de diversas
formas de alojamento turístico, promovidas, so- Comumente tem-se considerado que a ex-
bretudo, pelo grande investimento estrangeiro pansão exponencial da turistificação no cen-
injetado por proprietários de peso e grandes tro histórico da cidade de Lisboa reside na

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Gentrificação turística em Lisboa

conjugação de vários elementos decisivos: 1) o que as que têm sido divulgadas. Começou com
recurso a plataformas online como o Booking. uma viragem neoliberal nas políticas urbanas
1
com, Airbnb, Windu, Homeaway, etc.; 2) o con- desde 2004 (criação das sociedades de reabili-
tínuo embaratecimento da mobilidade interna- tação urbana),2 com a aprovação de uma série
cional, nomeadamente através das companhias de pacotes de leis que foram surgindo suces-
aéreas low cost; 3) a tendência em nível global sivamente defendendo uma visão pró-mercado
de aumento da procura por estabelecimentos no que respeita à habitação, favorecendo a
turísticos alternativos, localizados em bairros iniciativa privada, as parcerias público-privadas
históricos e típicos, conferindo maior autentici- e a competitividade no setor. Essa viragem neo-
dade urbana e mais experiência local à estadia, liberal culminou com a aprovação da Nova Lei
indo ao encontro do desejo de cosmopolitismo do Arrendamento Urbano em 2012 (Mendes,
do turista/visitante personificando objetivos 2014), em conjunto com a simplificação da Lei
de distinção social, que só a qualidade urba- do Alojamento Local em 2014, com os pacotes
na de estadia e alojamento no centro histórico para atração de investimento estrangeiro, tais
pode emprestar; 4) a falta de oferta hoteleira como o regime fiscal muito favorável para os
no centro histórico da cidade, onde havia um Residentes Não Habituais (já desde 2009) e
elevado número de edifícios devolutos; 5) a para os Fundos de Investimento Imobiliário,
percepção de rentabilidades mais elevadas no bem como com o programa dos Golden Visa
alojamento turístico que no arrendamento de ou Autorização de Residência para Atividade
longo prazo; 6) o investimento de milhões de de Investimento3 e, ainda, com o regime excep-
euros em campanhas publicitárias que afirmam cional e temporário4 da reabilitação urbana de
internacionalmente Lisboa como cidade euro- 2014, no sentido de agilização e dinamização,
peia predileta para o city-break, reforçando a flexibilizando e simplificando os procedimentos
ideia de cidade enquanto lugar cosmopolita, de criação de áreas de reabilitação urbana e
rico de patrimônio e de dinamismo, vibrante, de controle prévio das operações urbanísticas
sobretudo, para jovens criativos de aspiração (Mendes, 2016a e 2016c).
boêmia e investidores imobiliários. Daí também Todo esse quadro criou um contexto
a congratulação com diversos prêmios turísti- fiscal e legal que facilitou imensamente a fi-
cos em nível internacional. Esses fatores desen- nanceirização do imobiliário, forma acabada
cadearam a entrada de novos operadores, mui- de fossilização, acumulação e reprodução do
tos deles individuais e informais, criando um capital no ambiente construído; bem como os
mercado desregulado de alojamento turístico. despejos, tendo agravado o desalojamento e a
Além disso, o aumento inesperado do turismo segregação residencial. Nesse contexto, é ex-
em Portugal deriva em grande parte do declínio pectável um crescimento contínuo do mercado
da procura turística, por questões de segurança de alojamento turístico, pois investidores e pro-
internacional, em vários países árabes – Egito, motores nacionais e internacionais continuam
Tunísia, Marrocos. a comprar edifícios no centro histórico de Lis-
Contudo, em boa verdade, essa mudança boa para os reabilitar para esse uso específico.
revela causas mais profundas e estruturais do Até porque, a conversão desses ativos para o

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Luís Mendes

uso de apartamentos turísticos permite maior e fiscais desde o início do século XXI, promo-
rentabilidade para os investidores, compara- vendo o estímulo ao mercado e à iniciativa
tivamente ao arrendamento tradicional e de privada. No entanto, é também necessária uma
longa duração, tendência cada vez mais tida retrospectiva das políticas municipais de rea-
em conta pelos investidores Golden Visa e pe- bilitação urbana, que, no caso de Lisboa, foi
los Residentes Não Habituais que tiram, assim, marcada, como Portugal, por um caro plano de
mais facilmente rendimento dos seus ativos. liberalização e desbloqueamento do mercado
Uma combinação de fatores levou a imobiliário português, elaborada já em Mendes
enormes novas pressões sobre o mercado (2008 e 2014).
imobiliário, alavancado pela combinação da À exceção da última década, todos os
liberalização da lei de arrendamento urbano programas de reabilitação urbana levados
(NRAU), os ganhos de alojamento turístico de a cabo pelo Estado, desde meados dos anos
curto-aluguel e amplos benefícios do investi- 1970, fomentaram a reabilitação urbana e a
mento imobiliário internacional. Tais pressões conservação do edificado existente no centro
resultaram num aumento muito elevado da es- histórico das cidades portuguesas de acordo
peculação imobiliária e financeira em nome de com o interesse público e coletivo e de acor-
uma suposta regeneração urbana que parece do com o interesse das populações autócto-
não beneficiar a população local. Os preços dos nes já residentes nos bairros da cidade/centro,
imóveis subiram e tornou-se cada vez mais di- contra a segregação produzida por eventuais
fícil de encontrar habitação a preços acessíveis casos de gentrificação. A associação direta da
em Lisboa. Apenas em 2015, os preços da habi- gentrificação enquanto consequência linear da
tação no centro de Lisboa aumentaram 23%, e reabilitação urbana merece, desse modo, maior
em toda a cidade cerca de 12%. Uma tendên- discussão, sobretudo no caso português, que é
cia que parece durar até 2016 (Seixas, 2016). marcado por uma grande rigidez do mercado
Em Lisboa, o Índice de Rendas Residenciais de habitação e por uma evolução de sucessivos
atingiu, no 1º trimestre de 2016, o ponto mais pacotes legislativos, desde meados do século
alto desde que o indicador elaborado pelo SIR XX, que estabilizaram o mercado de arrenda-
(Sistema de Informação Residencial) começou mento e limitaram fortemente a proliferação
a recuperar em meados de 2013. Assim, desde do fenômeno da gentrificação. Beneficiando,
este último período, as rendas habitacionais já em particular, as famílias de baixo estatuto so-
cresceram 22% na cidade de Lisboa, situando- cioeconômico e privilegiando a manutenção e
-se o índice praticamente no nível registado no a fixação da população autóctone, ou seja, já
início da série em 2010 (Confidencial Imobiliá- residente nos bairros antigos, os sucessivos pa-
rio, 2016). cotes legislativos relativos a conservação e rea-
Os problemas de acesso à habitação nas bilitação do parque habitacional funcionaram
zonas históricas de Lisboa e Porto relacionados como um pesado constrangimento ao avanço
com o boom do turismo têm de ser entendidos da gentrificação, limitando o processo de subs-
no contexto de uma virada neoliberal regista- tituição social inerente ao desalojamento dos
da em Portugal no nível das políticas urbanas grupos socioeconomicamente mais debilitados,

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Gentrificação turística em Lisboa

que, entretanto, estariam em risco de serem do decreto-lei nº 104, de 7 de maio de 2004,


deslocados pelos gentrifiers, os novos morado- que criou o Regime Jurídico Excepcional de
res, pertencentes a uma nova classe média alta Reabilitação Urbana de Zonas Históricas e de
e relativamente endinheirada (filtering up). Áreas Críticas de Recuperação e Reconversão
Esse mesmo Estado, que nos anos 1970, Urbanística. Entretanto, o decreto-lei nº 307,
1980 e 1990 apresentava preocupações sociais de 23 de outubro de 2009, assumiu a reabi-
na política de reabilitação urbana, foi mar- litação urbana como uma componente indis-
cado, doravante e a partir do início do século pensável da política de cidades e da política
XXI, por um quadro de referências neoliberal: de habitação em Portugal, prolongando o
uma nova política urbana de reabilitação, mui- regime de incentivos fiscais ao investimento
to mais orientada para o mercado e, portanto, privado no mercado da reabilitação urbana.
marcada pelas lógicas da promoção do consu- Esse regime passa também a incumbir, aos
mo, da competitividade entre metrópoles, do privados, o dever público de requalificação do
protagonismo dos atores privados no processo parque habitacional e de outras componentes
de planejamento e de produção da cidade. As do espaço público.
administrações centrais têm procurado uma re- Tudo isso ao abrigo da figura de um “Es-
dução gradual dos poderes executivos de todo tado de Exceção”, como é o caso do decreto-lei
o setor público, tentando transferir para o setor nº 53, de 8 de abril de 2014, que estabelece um
privado todos aqueles que não tinham necessi- regime excepcional e temporário no sentido
dade absoluta de ser pelo Estado executados. de agilização e dinamização, flexibilizando e
A maior parte dos governos urbanos assume simplificando os procedimentos de criação de
posições neoliberais, partindo da convicção de áreas de reabilitação urbana e de controle pré-
que o investimento privado, quando fomentado vio das operações urbanísticas. Tem, como prin-
pelo mercado, gera emprego e riqueza, produz cipal objetivo, dispensar as obras de reabilita-
diretamente bem-estar social na cidade. Reco- ção urbana da sujeição a determinadas normas
nhecem-se, nas áreas urbanas abandonadas ou técnicas aplicáveis à construção, quando elas,
em processo de declínio, áreas-oportunidade, por terem sido orientadas para a construção
para atrair investimento privado e garantir a nova e não para a reabilitação de edifícios exis-
reprodução de capital imobiliário. Na reabilita- tentes, puderem constituir um entrave à dina-
ção urbana evidencia-se o papel de relevo do mização da reabilitação urbana.
marketing territorial na gestão estratégica da Mais recentemente, a promulgação do
imagem da cidade, de forma a levar a que cada decreto-lei nº 31, de 14 de agosto de 2012,
cidade se diferencie das outras, valorizando- institui a nova lei do arrendamento urbano,
-se e projetando-se no contexto internacional, também conhecida por Novo Regime de Ar-
atraindo o investimento desejado. rendamento Urbano (NRAU), e que entrou em
Essa virada neoliberal nas políticas ur- vigor em novembro de 2012, ao abrigo do Me-
banas, marcada por uma profunda valorização morando de Políticas Econômicas e Financei-
das perspectivas do mercado na produção do ras, também conhecido como Memorando de
espaço urbano, iniciou-se com a promulgação Entendimento ou Plano da Troika – Acordo de

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Luís Mendes

Entendimento celebrado em maio de 2011 en- mobilizado pelo aproveitamento do rent gap
tre o Estado Português e o Fundo Monetário existente. O desalojamento tem sido uma mar-
Internacional, a Comissão Europeia e o Ban- ca da nova lei do arrendamento, uma vez que
co Central Europeu, visando ao equilíbrio das se permite a facilitação da ação de despejo
contas públicas e ao aumento da competitivi- caso o senhorio/proprietário alegue pretender
dade em Portugal. De acordo com Lavadinho a casa para sua habitação própria ou para de
(2013), trata-se, essencialmente, de um diplo- seus descendentes ou, ainda, quando alega de-
ma que tem como objetivo primeiro a extinção sejar realizar obras mais estruturais. A verdade
dos contratos de arrendamento celebrados é que a legislação não exige nem define que
antes da década de 1990, sem garantia de di- os alojamentos tenham de reunir as condições
reitos aos inquilinos. A crescente procura de necessárias de habitabilidade, embora permi-
arrendamento em consequência da crise do ta a ordem de despejo sem custos adicionais
mercado da construção e do imobiliário e a para o senhorio (Mendes, 2014, 2016a, 2016e;
ausência de oferta de arrendamento a preços Alves, Pereira e Rafeiro, 2015; Mendes e Carmo,
acessíveis determinaram que a reforma do ar- 2016). Através da legitimidade de mecanismos
rendamento urbano fosse assumida como um de despejo/desalojamento mais simplificados e
objetivo prioritário no domínio da habitação. rápidos da possibilidade de assegurar coerciva-
De fato, a reforma do arrendamento urba- mente o cumprimento dos contratos, sobretudo
no de 2006 não conseguiu dar uma resposta em caso de incumprimento do pagamento de
suficiente aos principais problemas com que rendas por parte dos inquilinos, reforçou-se a
se debate o arrendamento urbano, especial- confiança dos proprietários na ideia de que o
mente os relacionados com os contratos com investimento em arrendamento e em produtos
rendas anteriores a 1990, com a dificuldade de alojamento turístico seria agora um investi-
de realização de obras de reabilitação em imó- mento mais seguro para reprodução de capital
veis arrendados e com um complexo e moroso imobiliário. A Nova Lei das Rendas foi a alavan-
procedimento de despejo. ca legal necessária que o mercado encontrou
O NRAU impõe um mecanismo de atua- para desbloquear as dezenas de milhares de
lização de rendas que tem originado valores edifícios devolutos no centro histórico e que
incomportáveis para muitos inquilinos sem que albergavam populações desfavorecidas a pagar
estejam estabelecidos os apoios sociais ade- rendas baixíssimas. Esses edifícios apresentam
quados e necessários, afetando as famílias de uma localização central privilegiada, e o fato
mais baixo estatuto socioeconômico, sobretu- de apresentarem elevados graus de má conser-
do nos centros históricos das grandes cidades vação conduz a oportunidades de especulação
de Lisboa e Porto, áreas-oportunidade para imobiliária tremenda, pois os promotores imo-
o capital imobiliário, sobretudo pela intensa biliários e as construtoras vendem, depois do
desvalorização do parque habitacional e do restauro, os imóveis a um preço muito acima
edificado nas décadas passadas, funcionan- do qual o compraram ainda devoluto, maximi-
do como verdadeira oportunidade de inves- zando o princípio do rent gap (Mendes, 2016a;
timento lucrativo e de reprodução do capital Mendes, 2017; Paulo, 2017).

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Gentrificação turística em Lisboa

O mercado residencial sofreu grandes di- ferramenta. Também no 1º semestre desse ano
ficuldades durante a crise, provocando graves foram concedidos 821 vistos, superando os 766
consequências devido à falta de financiamento concedidos em 2015. Em termos de nacionali-
bancário e ao grande impacto exercido sobre dades, os chineses continuam a ser os estran-
os rendimentos dos portugueses. Na tentativa geiros que mais investem em Portugal através
de superar tais tempos difíceis, o governo lan- desse mecanismo, com um total de 2.743 vistos
çou dois programas para atrair investimentos concedidos, seguidos por brasileiros, com 180;
estrangeiros: os Golden Visa ou Vistos Gold e pelos russos, com 120; sul-africanos, com 109;
o Regime de Impostos para Residentes Não e libaneses com 58.5
Habituais. O Programa Golden Visa, lançado Esse programa fiscal, ao proporcionar
em 2012 pelas autoridades portuguesas, é uma vantagens fiscais extraordinárias para a fixação
via rápida para que investidores estrangeiros de capital financeiro internacional no ambien-
de países não comunitários (extra União Euro- te construído, impulsionou o desenvolvimento
peia) obtenham uma autorização de residência de diversos formatos de alojamento turístico
válida em Portugal. No âmbito desse programa, (várias casas de hóspedes, albergues e apar-
cidadãos não comunitários simplesmente pre- tamentos turísticos), geralmente localizados
cisam realizar um dos investimentos no imo- no centro histórico de Lisboa, onde havia falta
biliário estabelecidos na lei para se qualificar de oferta desse tipo de alojamento, um enorme
para obter uma autorização de residência em stock de edifícios devolutos e em mau estado
Portugal. Essa autorização de residência permi- de conservação, e, ao mesmo tempo, avoluma-
tirá ao investidor e aos seus familiares entrar e/ -se uma procura turística cada vez maior que
ou viver em Portugal e viajar livremente pela prima por uma estadia local, acolhedora, típi-
grande maioria dos países europeus (Espaço ca e mais “autêntica” de um bairro histórico.
Schengen). Visando a atrair investimentos es- Simultaneamente, investidores que procuram
trangeiros para Portugal, o Golden Visa é um a obtenção do Golden Visa viram, nesse mer-
programa simples e flexível, com requisitos le- cado, uma oportunidade de obter rendimento
gais bastante acessíveis e claros para a elite ca- nos seus ativos imobiliários. Com toda essa
pitalista internacional. Com requisitos de esta- dinâmica, atualmente podemos assistir a um
dia mínima extremamente reduzida, o Golden grande dinamismo na reabilitação de edifícios
Visa tem sido claramente considerado um dos no centro histórico da cidade, o que contribui
programas de residência mais atraentes para para o aumento contínuo da oferta desse tipo
investidores de todo o mundo. de alojamento, verdadeiramente subsidiado
No 1º semestre de 2016, os golden visa por uma crescente financeirização do mercado
atribuídos permitiram a captura de €509 mi- de habitação, mas, ao mesmo tempo, desalo-
lhões, um aumento de 111% em comparação jando a população mais pobre já residente no
aos 241 milhões de euros obtidos no mesmo centro histórico.
período do ano passado. Desde o início do pro- A orientação do capital imobiliário, no
grama, calcula-se que o ambiente construído já âmbito do programa Golden Visa para a pro-
encaixou 1.985 milhões de euros através dessa dução de produtos de habitação ou alojamento

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Luís Mendes

de luxo, demonstra claramente que este é um consultora internacional Savills,6 em Londres,


caso de supergentrificação – tal como cunhado faz um raio-x no mercado português e revela
por Lees (2003) e desenvolvido, por exemplo, que a capital portuguesa é um excelente exem-
por Atkinson et al. (2017) e Mendes (2017) –, plo de uma cidade europeia rica em patrimônio
quando áreas específicas constituem foco de e que está se recuperando de uma crise eco-
intenso investimento e consumo ostentató- nômica e revitalizando o mercado imobiliário.
rio por uma nova geração de "financiadores" Há muitos lugares atraentes para investir em
super-ricos, uma verdadeira classe de elite ca- Lisboa, preços baixos para o setor imobiliário,
pitalista transnacional, alimentada pelas fortu- tornando-a particularmente atraente para os
nas das indústrias globais de finanças e servi- investidores, acompanhado de bons produtos
ços corporativos. Fernandez, Hofman e Aalbers com alta qualidade.7 Lisboa tem vindo a ser re-
(2017), num estudo dedicado à análise das conhecida como um centro turístico internacio-
elites de riqueza transnacional que compram nal e um centro de crescimento para start-ups,
imóveis residenciais em Nova York e Londres ao mesmo tempo que o programa Golden Visa
como investimento e não como residência prin- é reconhecido como uma oportunidade cada
cipal, apresentam um incrível paralelo com o vez mais relevante, tendo em conta a complexa
que acontece precisamente em Lisboa, embora, conjuntura internacional. Portugal tem ativos
nesse caso, em uma escala menor certamente. imobiliários de elevada qualidade, a um preço
A elite da riqueza transnacional é um grupo de internacionalmente muito competitivo, exce-
pessoas que têm sua origem em uma localida- lentes infraestruturas, um clima ameno, segu-
de, mas que investem suas riquezas transna- rança e um ambiente social único. Estas são al-
cionalmente, de acordo com fluxos de capital gumas das qualidades referidas. Além de mui-
transfronteiriços, fazendo uso de reescalona- tas outras atrações tradicionais, os preços resi-
mento nas geografias neoliberais do investi- denciais de Lisboa correspondem a dois terços
mento financeiro. Eles focalizam a atenção na de Madrid, a um terço de Berlim e a um décimo
intercessão entre suas oportunidades de inves- de Londres. Mesmo os preços Prime são mais
timento e as redes legais e as condições pro- favoráveis em comparação a outras cidades
duzidas pelas políticas fiscais de atração de in- europeias. Lisboa também oferece a mais alta
vestimentos estrangeiros, ao invés de empreen- qualidade de vida de dez cidades referenciadas
dedores imobiliários, associações de habitação no estudo, com base no seu baixo custo de vi-
ou investidores institucionais, a que o grande da, baixas criminalidade e poluição, ambiente
capital imobiliário recorria tradicionalmente. social único, clima agradável, entre outras.
Lisboa, como Nova York e Londres, no- Essas amenidades da cidade, somadas
vamente, em uma escala diferente, registrou à forma como o mercado imobiliário e o seu
esse processo acelerado de financeirização no segmento de profissionais são organizados,
mercado de habitação e no setor do imobiliá- e acrescentando, ainda, o funcionamento do
rio em geral. Lisboa continua a ser um desti- quadro legal e fiscal reestruturado durante o
no prioritário para investimento em imóveis. período de austeridade, (re)produzem a função
Um estudo publicado em junho de 2016, pela imobiliária como um ativo específico de classe,

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Gentrificação turística em Lisboa

que dirige o “ajuste espacial” do capital, co- de capital produzidas pela capacidade diferen-
mo estudado por Harvey (1978, 1982, 1985, cial de distintos tipos de destruição criativa de
2001), num contexto de crise capitalista como ambiente construído responderem ao desafio
a que tivemos em 2008-2009. Para sobreviver e da constante mobilidade geográfica do capital.
multiplicar-se às suas crises, o capital tem que Rodrigues, Santos e Teles (2016) argu-
construir um espaço fixo (produzir “paisagem”) mentam, em seu estudo sobre a financeiriza-
necessário para seu próprio funcionamento em ção do capitalismo português, que o impacto
um certo ponto de sua história, apenas pa- desse processo no setor imobiliário não é ex-
ra destruir esse espaço (destruição criativa e clusivamente derivado da liberalização e des-
desvalorização de grande parte do capital in- regulamentação dos mercados financeiros.
vestido), a fim de dar lugar a uma nova “fixa- Trata-se, de fato, de um processo de financiar
ção espacial” (abertura para novas frentes de toda a economia e a sociedade portuguesas,
acumulação em novos espaços e territórios) em como produto social e histórico. Os autores su-
um ponto posterior de sua evolução. O capital blinham o papel central que o Estado desem-
está sempre representado na forma de uma penha na sua condução ou posição e na inte-
paisagem física e de uma determinada orga- gração internacional da economia portuguesa.
nização do espaço que, embora criada como A condição semiperiférica de Portugal, combi-
valor de uso e condição de garantia de acumu- nando características dos países desenvolvidos
lação e reprodução, coroa o desenvolvimento e menos desenvolvidos, torna o país particular-
expansível do capital na forma de capital fixo e mente vulnerável a pressões externas (incluin-
imobilizado, mas inibe a expansão adicional fu- do as decorrentes do processo de integração
tura da acumulação, funcionando, simultanea- europeia), condicionando a sua trajetória de
mente, como barreira espacial. A história do evolução na financeirização do capitalismo. De
desenvolvimento capitalista, sobretudo na sua fato, as fraquezas históricas da economia e da
geografia, demonstra como ele precisa superar sociedade portuguesas, bem como o contexto
constantemente o delicado equilíbrio entre pre- de um Estado-Providência insuficiente, favore-
servar o valor dos investimentos passados de ceram a opção de criar um mercado privado de
capital fixo na produção de ambiente construí- habitação, dominado pelas finanças, em que o
do e destruir esses investimentos para abrir es- Estado nunca deixou de desempenhar um pa-
paço novo para a acumulação. Persiste a con- pel decisivo.
tradição entre o capital fixo necessário à ab- O regime fiscal para os Residentes Não
sorção de excedentes pela produção de espaço Habituais (RNH) é outro mecanismo de atra-
urbano e o capital móvel em constante rotativi- ção de investimento estrangeiro, introduzido
dade, movimento e circulação. E, se é verdade em 2009, e atribui algumas vantagens fiscais
que toda a forma de mobilidade geográfica do às pessoas que solicitem a residência fiscal em
capital requer infraestruturas espaciais fixas e Portugal. O objetivo desse regime especial é
seguras para funcionar efetivamente, tal não atrair para Portugal profissionais não residen-
põe em causa todo o gênero de tensões e con- tes qualificados em atividades de elevado valor
tradições inerentes ao processo de circulação acrescentado ou da propriedade intelectual,

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 479-512, maio/ago 2017 499
Luís Mendes

industrial ou know-how (a dita classe criativa com atividades de alto valor acrescentado. Na
de Florida, 2002), bem como beneficiários de prática, em relação às pensões obtidas no es-
pensões obtidas no estrangeiro. Podem recorrer trangeiro, mesmo que não sejam tributadas no
a esse estatuto os cidadãos que se tornem re- país de origem, por não serem consideradas
sidentes fiscais em Portugal e que não tenham obtidas em território português, beneficiam
sido considerados residentes em território por- do método da isenção. Esses contribuintes que
tuguês nos cinco anos anteriores ao do pedido. aqui auferiram rendimentos do trabalho depen-
Isto aplica-se, quer a cidadãos estrangeiros, dente ou independente em atividades definidas
quer a cidadãos portugueses que estavam vi- como de alto valor acrescentado são tributados
vendo fora do país e pretendam regressar a a uma taxa autônoma, altamente favorável,
Portugal. Para ser considerado residente em de 20%. As retenções na fonte são efetuadas
Portugal, terá de permanecer mais de 183 dias igualmente à taxa de 20%. O estatuto de resi-
em Portugal ou ter um imóvel que faça supor a dente não habitual é uma medida fiscal de dis-
intenção de manter a permanência e ocupá-lo criminação positiva, sendo esmagadoramente
como residência habitual. mais favorável do que o regime fiscal dos resi-
O regime RNH representa um passo im- dentes, tendo levantado ultimamente questões
portante para tornar Portugal uma jurisdição de justiça e equidade fiscal. O estatuto de RNH
livre de impostos (leia-se “paraíso fiscal” ou tem atraído principalmente franceses e escan-
offshore) para os indivíduos que recebem um dinavos e resultou em investimentos no setor
rendimento não residente qualificado. Os ren- imobiliário, nomeadamente no segmento resi-
dimentos qualificados incluem pensões, divi- dencial. Em Lisboa, tal como acontece com os
dendos, royalties e rendimentos de juros. Esse Golden Visa, a procura deu-se essencialmente
status é concedido por 10 anos e não incorre no centro da cidade (John Lang Lasalle, 2015b).
em nenhum custo. Um dos principais objetivos Prosseguindo a análise dessa política
desse regime é atrair indivíduos e suas famí- neoliberal de produção de espaço urbano no
lias para Portugal, sendo benéfico, do ponto de contexto da ideologia de austeridade, no que
vista fiscal, tornar-se residente fiscal em Portu- diz respeito às finanças públicas e ao Estado
gal. Como resultado, os RNH têm a capacidade português impostas por regras transnacio-
de: aumentar sua riqueza em uma jurisdição nais, deve-se notar o novo regime tributário
branda em nível fiscal; ganhar renda em um dos Fundos de Investimento Imobiliário (FII).
ambiente favorável ao imposto; alienar os seus No que diz respeito às questões fiscais, é da-
ativos e os beneficiar de isenções fiscais; passar da especial importância ao novo regime apli-
a sua riqueza sem impostos sobre herança ou cado aos impostos cobrados sobre os FII que
doações, nomeadamente para crianças ou côn- são criados e operam nos termos estipulados
juge; e desfrutar da sua aposentadoria sem im- na legislação nacional (decreto-lei 7, de 13 de
posto sobre as suas pensões. Combinado com janeiro de 2015). Esse novo regime geralmente
as boas condições de vida que Portugal ofere- significa que os FII não serão mais tributados
ce, esse regime tem atraído vários estrangeiros, na maior parte dos rendimentos auferidos.
principalmente pensionistas e profissionais Os rendimentos típicos dos FII, em especial

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Gentrificação turística em Lisboa

os imobiliários e as mais-valias (que estavam capital canalizado e investido na manutenção,


sujeitos às taxas de 25% e 12,5%, respetiva- reparação e recuperação do parque habitacio-
mente), deixaram de estar sujeitos à tributa- nal dessas áreas no centro da cidade de Lisboa,
ção. Todos esses programas fiscais permitiram com a agravante do congelamento das rendas,
a Portugal criar um paraíso offshore que ofere- tal como já foi referido anteriormente, que aca-
ce condições únicas de retorno sobre o inves- bou por não facultar, aos proprietários e senho-
timento imobiliário, desprovido de quaisquer rios, os recursos financeiros necessários para a
obrigações de pagamento de contrapartidas e reabilitação do edificado.
impostos ao Estado. Não surpreende que, nos Desse fenômeno resultou o que Smith
primeiros três meses de 2016, o mercado imo- (1979 e 1987) denominou emergência do rent
biliário português tenha realizado 570 milhões gap nos bairros históricos do centro da cida-
de euros, um aumento significativo de mais de de – acentuando-se a diferença entre a atual
225% diante dos 175 milhões de euros investi- renda capitalizada ante o presente uso do seu
8
dos no mesmo período de 2015. solo e a renda que potencialmente poderá vir
Outra causa importante para o desenca- a ser capitalizada tendo em conta a sua locali-
dear da gentrificação é a enorme quantidade zação central. É precisamente o movimento de
de propriedades vagas, revelando uma condi- saída de capital para os subúrbios e o conse-
ção física em avançado estado de degradação quente surgimento do fenômeno rent gap no
e abandono, o que potencia o aumento do rent espaço urbano central que, segundo o autor,
gap no centro de Lisboa, uma vez que a des- criam maiores oportunidades econômicas para
valorização imobiliária produzida pela degra- a reestruturação urbana dos bairros centrais
dação e pela escassa manutenção dos edifícios e para o investimento público e privado, na
serve como oportunidade lucrativa de (re)in- reabilitação e na recuperação do seu parque
vestimento imobiliário. O movimento de saída habitacional. Corresponde a um fenômeno de
de capital para a periferia durante o período de ocorrência quase universal em todas as cida-
formação da metrópole de Lisboa – a partir da des das sociedades de capitalismo avançado, e
segunda metade do século XX – provocou uma Lisboa não é exceção.
alteração inversamente proporcional dos níveis Lisboa tem quase 5.000 edifícios vagos,
de renda do solo dos próprios subúrbios e dos em mau estado ou devolutos. Afinal, tem 2.812
bairros centrais. Enquanto o valor do solo nos prédios na categoria de "parcialmente devolu-
subúrbios aumentou significativamente com to" (degradado e com frações desabitadas) e
o crescimento de novas construções e infraes- 1.877 na categoria de "totalmente devoluto"
truturas, e com a consequente introdução nes- (abandonado e sem licença de recuperação),
ses espaços periféricos e novas centralidades segundo um levantamento da Câmara Munici-
de uma multiplicidade de atividades, durante pal de Lisboa, datado de 2009 (CML, 2012). Es-
a formação da área metropolitana de Lisboa ses 4.689 edifícios decadentes equivalem a 8%
(desde 1950), o valor fundiário dos bairros do total de 60 mil prédios existentes na capital.
centrais, ao invés, sofreu uma progressiva dimi- Ou seja, praticamente um em cada dez imóveis
nuição, sendo cada vez menor a quantidade de é considerado devoluto. O inquérito realizado

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Luís Mendes

no âmbito das atividades de supervisão do mu- Tunbridge, 1990; Mullins, 1991; e Law, 2002).
nicípio de Lisboa mostra que a maioria desses No entanto, hoje em dia o turismo urbano es-
edifícios – 65% – pertence a entidades priva- tá em plena expansão devido a um urbanismo
das (particulares ou empresas). Chega a ser de neoliberal e austeritário, a uma sociedade de
quase 1/3 a proporção de edifícios em ruínas consumo cada vez mais profusa e a internacio-
sobre os quais ninguém tem informações acer- nalização mundial dos sistemas financeiros que
ca da identidade do proprietário – 32,3% –, o reconhecem as mais-valias retiradas do novo
que bem revela o grau de ignorância existente impulso econômico criado pelos investimentos
sobre essa realidade. Os edifícios muito degra- em regeneração urbana, apoiados por políti-
dados estavam principalmente nas freguesias cas urbanas e de governança neoliberais. Isso
do centro da cidade, variando entre 33% e acompanha as mudanças nas motivações para
18%. Lestegás (2016), num trabalho de outu- a procura do turismo urbano e os importantes
bro, seguindo muito de perto o quadro teórico- investimentos feitos na preservação do patri-
-conceitual originalmente estabelecido por mônio construído e na promoção de ambien-
Mendes (2016a) apresentado em abril, diz que: tes cosmopolitas, especialmente nos bairros
históricos dos centros das cidades (Ashworth e
Em 2011, quase 27% das habitações
Page, 2011; Wilson e Tallon, 2012; Hiernaux e
familiares convencionais na freguesia
da Misericórdia; mais de 32% daqueles González, 2014; e Delgadillo, 2015).
em Santa Maria Maior; 23% daqueles O turismo urbano nas suas diversas mo-
em Santo António; e 20% daqueles em dalidades tem conhecido grande expansão no
São Vicente, estavam vazios. Uma vez início do século XXI, mas o excesso turístico
que a maioria dos moradores do Centro
como fenômeno massificador, hegemônico e
Histórico de Lisboa eram arrendatários,
tornou-se necessário alterar o regime de dominante nas grandes cidades de Lisboa e
arrendamento para os expulsar rápida e Porto é recente. Paralelamente aos hotéis de
facilmente e permitir que os investidores luxo, tem aumentado a oferta de alojamentos
privados se envolvessem na transforma- para turistas jovens e pouco endinheirados,
ção rentável da área. (p. 44)
através de hostels, da oferta privada no airbnb
ou de outras plataformas online, ou dos apar-
Esta é uma condição extremamente favo-
tamentos de short rental, alguns instalados
rável para o desenvolvimento do rent gap, as-
em imóveis reabilitados do centro histórico de
sociada ainda à política fiscal altamente atrati-
Lisboa e Porto. Essa procura massificada de
va para investimento estrangeiro no imobiliário
Lisboa como destino turístico está acelerando
devoluto do centro da cidade.
a gentrificação, entre outros impactos sociais
e econômicos no tecido urbano. Fala-se de tu-
ristificação, fenômeno para o qual não existe
Considerações finais ainda uma definição conceitual clara, em ter-
mos científico. Digamos que é uma noção que
A relação entre o turismo e as áreas urbanas tem sido muito divulgada nos círculos acadê-
não é, de modo algum, recente (Ashworth e micos e que exprime a expansão significativa

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Gentrificação turística em Lisboa

do turismo num território, quer do ponto de com o que sucede com o arrendamento habita-
vista da oferta de serviços e equipamentos, in- cional. Na perspectiva dos inquilinos, a aposta
cluindo alojamento turístico nas suas diversas dos proprietários no alojamento local prejudica
modalidades, quer do ponto de vista da pro- a oferta de casas para arrendar e faz aumentar
cura da cidade como destino turístico. Quando o preço das rendas para valores insuportáveis
aplicado, o conceito de turistificação designa e incomportáveis para a maior parte das famí-
uma hiperespecialização da economia de um lias. A verdade é que o investimento também
território no setor do turismo. Em Portugal em é mais rentável também por força do regime
geral, como nas cidades de Lisboa e Porto em fiscal existente até recentemente. O regime de
particular, o turismo tem ganho um peso signi- tributação fazia discriminação entre o arrenda-
ficativo nos últimos anos, com um crescimento mento clássico e o arrendamento a turistas. O
ininterrupto (pelo menos na última década), arrendamento normal/clássico tinha uma taxa
registrando aumentos consideráveis de che- de imposto sobre os rendimentos de 28%, en-
gadas de turistas, dormidas e receitas diárias, quanto o arrendamento a turistas, aquele que é
com impacto direto e indireto na economia na- praticado pelo alojamento local, apenas tinha
cional, tanto em nível de riqueza criada como uma taxa de imposto sobre 5% do valor rece-
de empregos assegurados. bido. Como a rentabilidade do arrendamento
Com toda essa dinâmica, atualmente po- turístico é significativamente superior à do ar-
demos assistir a um grande dinamismo na rea- rendamento permanente, muitos proprietários
bilitação de edifícios e revitalização do espaço acabam por escolher essa opção.
público no centro histórico da cidade, o que Mas no caso de Lisboa, foram a virada
contribuí para o aumento contínuo da oferta neoliberal dos sucessivos pacotes legislativos
desse tipo de alojamento, embora, ao mesmo para uma reabilitação urbana mais pró-merca-
tempo, desaloje a população mais pobre já resi- do, os programas Golden Visa e RNH, a nova lei
dente no centro histórico, tais como imigrantes de arrendamento urbano, o novo regime fiscal
e idosos. A destruição do mercado de arrenda- dos Fundos de Investimento Imobiliário, a nova
mento e o desalojamento e despejo de antigos lei do alojamento local (turístico), a disponibi-
moradores são uma realidade para dar origem lidade de um imenso parque habitacional de-
a diversas formas de alojamento turístico, mui- voluto e acumulador de um grande rent gap,
tas vezes de luxo. Os proprietários de imóveis juntamente com o forte crescimento da procura
apostam fortemente no alojamento turístico turística na cidade, que geraram uma “tempes-
local, por considerarem ser um investimento tade perfeita” que introduziu mudanças signi-
mais rentável e seguro, devido à instabilida- ficativas no mercado residencial, que passou
de geral do regime de arrendamento clássico/ de uma pausa abrupta para um alto nível de
habitacional de longo prazo. Nesse momento, demanda de forma muito rápida, com a oferta
muitos proprietários acham que o investimen- agora começando a ficar aquém de satisfação
to em alojamento local/turístico é mais seguro daquela. Essa situação levou a um rápido es-
e permite a reprodução do capital imobiliário, gotamento do stock residencial novo e de boa
de modo mais eficaz e rápido, em comparação qualidade que estava disponível, localizado

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 479-512, maio/ago 2017 503
Luís Mendes

principalmente no centro histórico da cida- reestruturação do espaço urbano implica, no


de, mas não apenas no segmento residencial entanto, repetidos surtos de transformação e
de luxo. Despertou igualmente o interesse de restauração através da destruição criativa, en-
muitos promotores imobiliários nacionais e in- fatizando a importância desses momentos de
ternacionais, levando a uma remodelação de reforma periódica do ambiente construído na
edifícios nos bairros históricos de Lisboa, com coincidência com crises capitalistas. Esse pro-
vista ao desenvolvimento massivo e desregu- cesso tem uma dimensão de classe, pois geral-
lado do alojamento turístico. Tal como noutras mente são os pobres, os desfavorecidos e os
capitais europeias, em Lisboa, esse tipo de es- marginalizados pelo poder político e econômi-
tabelecimentos tem sido considerado, cada vez co que mais sofrem com isso (Harvey, 2010 e
mais, uma alternativa à oferta mais tradicional 2014; e Gottdiener, 1985).
e “massiva” das cadeias hoteleiras nas áreas Sabe-se que a reabilitação urbana envol-
modernas da cidade. A mudança nos hábitos ve quase sempre grandes investimentos que
dos hóspedes, que começaram a procurar es- dificilmente podem ser suportados por uma só
tadias mais econômicas e “autênticas”, capa- entidade, pública ou privada. O que acontece
zes de lhes proporcionar novas experiências é que o desafio da revitalização do centro his-
de consumo visual turístico e um estilo de vida tórico é de tal forma ambicioso nos objetivos,
mais local, teve um grande impacto nesse mer- no conjunto dos stakeholders, nos investimen-
cado. Essas mudanças levaram ao surgimento tos que envolve e na extensão temporal que
de diversas guest houses, hostels e apartamen- implica, que torna praticamente inviável ser
tos turísticos, localizados maioritariamente no levado a cabo individualmente ou apenas pelo
centro histórico, onde a oferta hoteleira tem Estado. Dessa forma, as novas tendências das
sido reduzida. políticas urbanas, desde o início do século XXI,
O caso de gentrificação turística em Lis- orientadas sobretudo para cativar uma atração
boa mostra, em concreto, como a produção de do investimento estrangeiro que mobilizasse
espaço em geral, e em particular a (re)urba- esforços de redinamização da reabilitação do
nização, tornou-se um negócio importante no edificado em Lisboa, acabaram por desembo-
sistema capitalista, sendo uma das principais car na turistificação hegemônica nos bairros
formas de absorver excedentes. Uma propor- históricos da cidade, fomentando a emergência
ção significativa da mão de obra global traba- de formas mais agressivas de gentrificação tu-
lha na construção e manutenção do ambiente rística e comercial, que têm levado ao desloca-
construído. O processo de desenvolvimento mento direto e indireto e ao agravamento da
urbano mobiliza grandes quantidades de capi- segregação residencial e fragmentação socio-
tal, associado geralmente sob a forma de em- espacial. A estrutura física e as condições am-
préstimos de longo prazo. Esses investimentos bientais conheceram melhorias, mas a popula-
baseados na dívida tornam-se frequentemen- ção pobre, imigrante e idosa foi deslocada do
te epicentros para a formação de crises capi- centro da cidade, e os grupos de maior rendi-
talistas, como ocorreu em 2007-2008. O lado mento ocuparam a área. Com essa transforma-
mais sombrio da absorção de excedentes pela ção, a área foi reestruturada de acordo com as

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Gentrificação turística em Lisboa

expectativas da autoridade local e nacional, e o cativa das dinâmicas predatórias do grande


aumento das rendas para aluguel foi facilitado, capital imobiliário, ao abrigo da contínua finan-
ao mesmo tempo que o mercado de habitação ceirização do mercado de habitação.9
e de arrendamento conhece fortes distorções, Todavia, a Câmara Municipal de Lisboa
num esforço de responder à procura imobiliá- e o atual Governo de Portugal têm-se demons-
ria de uma elite capitalista transnacional, como trado atentos ao que se está a passar no cen-
oportunidade lucrativa de especulação imobi- tro histórico de Lisboa, até porque diversos
liária e reprodução do capital investido. Essas movimentos locais (como comissões de mora-
conclusões reforçam a ideia de que a gentrifi- dores, associações de bairro, organizações não
cação é eficaz no processo de regeneração ur- governamentais, etc.) e o meio universitário,
bana e que está evoluindo no centro de Lisboa em particular, a sociedade civil e a opinião pú-
para outro nível de paradigma, agora forte- blica, em geral, com o apoio da comunicação
mente acelerada por via de uma intensa turis- social, têm se manifestado, de forma a que se
tificação, que a aproxima de um modelo mais comecem a tomar medidas de regulação da
expansionista e violento, de formas agressivas, intensa turistificação que se regista. No início
típico dos moldes do protótipo desenhado na deste ano, lançou-se o Programa de Rendas
literatura anglo-saxônica e do Sul Global. Acessíveis PRA (Lisboa PRA todos), um Fundo
Nesse momento, todo esse quadro legal Nacional de Reabilitação Urbana, o Programa
e fiscal é, desde o início do século XXI, respon- das “Lojas com História” e a aplicação da Taxa
sável por esvaziar a habitação do seu estatuto Turística em Lisboa. São medidas importantes
de direito para ganhar o de mercadoria, à luz e necessárias, todavia, tem-se revelado insu-
da turistificação e da financeirização do setor ficientes, pois não influenciam diretamente o
imobiliário. Pelo contrário, o poder público de- direito à habitação na cidade/centro. As várias
via assumir um papel regulador e estabilizador medidas até agora tomadas pelo Governo e
do mercado imobiliário, que continua a seguir pela Câmara Municipal de Lisboa são uma con-
ao sabor dos grupos mais privilegiados, me- dição importante para manter uma estrutura
nosprezando os direitos da população e dos residencial e comercial sustentável e resiliente
comerciantes locais. nos bairros históricos (aliás, importante fator
Existem várias medidas que devem ser de atratividade turística pela autenticidade
adotadas, nesse momento, para mitigar os im- que representa para o turista e visitante), mas
pactos de uma gentrificação pelo turismo e que não suficientes se não forem articuladas estru-
passam por adotar uma política de cidade que turalmente com uma política de habitação jus-
se faça de uma reabilitação urbana para e pe- ta que garanta o direito à cidade. Só por via da
las pessoas, ao mesmo tempo que se combate fixação da população nos bairros, valorizando
a especulação imobiliária e promove o merca- a função de residência permanente e não a de
do social de arrendamento; ao invés do inves- alojamento turístico ou short-rental, garanti-
timento em edifícios emblemáticos de grande remos uma procura constante que mantenha
projeção internacional ou de uma política de vivos o comércio local e a própria vida social
regeneração urbana única e exclusivamente nesses bairros.

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Luís Mendes

Luís Mendes
Escola Superior de Educação de Lisboa. Universidade de Lisboa, Instituto de Geografia e
Ordenamento do Território, Centro de Estudos Geográficos. Lisboa, Portugal.
luis.mendes@ceg.ul.pt

Notas
(*) O autor gostaria de agradecer aos avaliadores, pela análise imparcial que este artigo lhes
mereceu, e pelos comentários crí cos e pelas sugestões avançadas que permi ram melhorar o
manuscrito inicial, embora reconheça que todo o conteúdo publicado seja da sua única e inteira
responsabilidade.

(1) O recurso a estas plataformas online permitem uma hiperescolha pelo lado da procura, bastante
individualizada se pensarmos nas estadias organizadas via internet, mas também, do lado da
oferta, a emergência de um micro-capitalismo ren sta baseado no aluguel informal, que vai
muito além da simples “economia de par lha” que parecia caracterizar o fenômeno no seu início,
aliás, caracterís ca comum a quase todas as cidades do mundo com economias financeirizadas
no pós-crise. É interessante denotar que este po de oferta tem vindo a criar tensões sobretudo
junto dos grandes operadores da indústria hoteleira (AHP, 2016).

(2) Decreto-lei nº 104, de 7 de maio de 2004, que criou o Regime Jurídico Excecional de Reabilitação
Urbana de Zonas Históricas e de Áreas Crí cas de Recuperação e Reconversão Urbanís ca.

(3) Que dá a possibilidade de inves dores estrangeiros (nacionais de Estados terceiros) requererem
uma autorização de residência para efeitos do exercício de uma atividade de investimento
mediante o preenchimento de determinados requisitos, nomeadamente a realização de
transferência de capitais, a criação de emprego ou compra de imóveis em áreas de necessária
regeneração urbana.

(4) Decreto-lei nº 53/2014, de 8 de abril.

(5) Disponível em: h p://vidaimobiliaria.com/no cia/golden-visa-atribu-dos-no-1-semestre-rendem-


509m. Acesso em: 10 jul 2016.

(6) Disponível em: h p://www.diarioimobiliario.pt/Actualidade/Lisboa-Um-des no-prioritario-para-


inves r-em-imobiliario. Acesso em: 2 jul 2016.

(7) O ano de 2016 fecha com um investimento de 18,1 mil milhões de euros resultantes de
transações imobiliárias, sendo 4 mil milhões de inves mento estrangeiro. Valores ligeiramente
acima do ano de 2015, quando foram alcançados 15 mil milhões de euros, dos quais 3,3
mil milhões de investimento externo. Esses números foram avançados por Reis Campos,
presidente da Confederação Portuguesa da Construção e Imobiliário – CPCI, que refere esse
ano como muito positivo, resultado de um renovado interesse dos investidores nacionais e
estrangeiros e de maior dinâmica na Reabilitação Urbana. No terceiro trimestre, as transações
de imóveis, em número, registaram um crescimento de 15,8% em comparação ao ano passado,
e o licenciamento de obras cresceu 13,4%. O mercado imobiliário, nesee ano, manteve-se, na
opinião do responsável, atra vo sobretudo devido à baixa atra vidade dos produtos financeiros

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Gentrificação turística em Lisboa

oferecidos pelos bancos, dado o atual nível das taxas de juro, a procura dos investidores
estrangeiros, o programa dos Golden Visa, o Regime de Tributação de Residentes Não Habituais,
impulsionados pelo bom momento que as a vidades ligadas ao turismo atravessam. Mesmo
assim, é necessário incen var mais o setor, defende Reis Campos. Disponível em: h p://www.
diarioimobiliario.pt/Actualidade/18-1-mil-milhoes-de-euros-investidos-em-imobiliario-este-
ano. Acesso: 31 dez 2016.

(8) Vide h p://www.diarioimobiliario.pt/Actualidade/Portugal-inves mento-imobiliario-aumenta-


225-face-a-2015. Acesso em: 20 abr 2016.

(9) Desde abril de 2016, tenho desdobrado esses dois pilares de luta em três níveis de atuação (do
mais geral para o mais par cular: i) inovação crí ca na concepção e implementação de processos
locais de regeneração urbana; ii) princípios, polí cas e prá cas para impedir o desalojamento e
a expulsão; iii) tomada de medidas e inicia vas concretas para assegurar o “direito à habitação”,
em detrimento da “gentrificação pelo turismo”) num documento que contém diversas medidas
de combate e mi gação dos efeitos da turis ficação e da gentrificação turís ca em Lisboa, de
forma a manter e fixar a população nos/dos bairros do centro histórico de Lisboa, uma das
cidades europeias com a menor densidade populacional. Vide Mendes (2016d).

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Texto recebido em 18/jan/2017


Texto aprovado em 30/mar/2017

512 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 479-512, maio/ago 2017
La espacialidad neoliberal de la producción
de vivienda social en las áreas metropolitanas
de Valparaíso y Santiago (1990-2014):
¿hacia la construcción idelógica
de un rostro humano?*
The neoliberal spatiality of social housing production in the
metropolitan areas of Valparaíso and Santiago (1990-2014):
for the ideological construction of a human face?

Rodrigo Hidalgo Dattwyler


Voltaire Christian Alvarado Peterson
Daniel Santana Rivas

Resumen
Más allá de la doctrina, el neoliberalismo se Abstract
muestra como una ideología de producción espacial Beyond the doctrine, neoliberalism is shown as
que ha comenzado a secuestrar el significado de an ideology of spatial production that has begun
reivindicaciones sociales, como el derecho a la to take over the meaning of social demands,
ciudad y justicia espacial, convirtiéndolas en un such as the right to the city and spatial justice,
“rostro humano” legitimador de la producción converting these demands into a "human face"
inmobiliaria, en el ámbito de acumulación that legitimizes real estate production in the
capitalista. Este trabajo pretende indagar en los scope of capitalist accumulation. This paper
discursos oficiales involucrados en la generación de aims to investigate official discourses involved
esta faceta, observando sus resultados en políticas in the generation of this facet, observing their
de vivienda social tanto en Santiago como en results in social housing policies in Santiago and
Valparaíso, dentro del periodo señalado. Hacia el Valparaíso within the indicated period. Finally,
final se atienden cuestionamientos a este tipo de this type of spatial production is questioned,
producción espacial, enfatizando en la hegemonía emphasizing neoliberal hegemony and its role
neoliberal y su rol en la gestión de un nuevo Estado in the management of a new neoliberal State
neoliberal en Chile. in Chile.
Palabras clave: ideología; vivienda social; Keywords: ideology, social housing, neoliberalism,
neoliberalismo; utopías socio-espaciales. socio-spatial utopias.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 513-535, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3907
Rodrigo Hidalgo Dattwyler, Voltaire Christian Alvarado Peterson, Daniel Santana Rivas

La crisis sistémica que ha vivido la Unidos (Crump et al., 2008; Niedt y Martin,
economía global en las últimas décadas, ha 2013), han servido como un propedéutico
implicado un nuevo esfuerzo por reestructurar en la gestión de las políticas bancarias y de
la hegemonía neoliberal. Los movimientos responsabilidad fiscal.
sociales alternativos, con sus reivindicaciones Pero ¿a qué se refiere este rostro
en torno al derecho a la ciudad, han fallado humano? Los estudios acerca del
una vez más en el juego de saltar escalas neoliberalismo y su relación con la producción
y en producir utopías socio-espaciales que de espacio, contienen una serie de elementos
sean efectivas alternativas al neoliberalismo, comunes, donde destacan su veloz e
posibilitando así que éste absorba sus irreversible instalación y la importancia del
reivindicaciones para convertirlas en control social como parte de los dispositivos
mecanismos dinamizantes, al servicio de flujos de estabilidad del modelo (Foucault, 2007;
y fricciones (Herod, 1997). Oxhorn, 1999); u otras referidas en los
El neoliberalismo ha buscado últimos treinta años por distintas corrientes
reestructurarse mediante la construcción de de la geografía y las ciencias sociales a nivel
un rostro humano que, además de ser una latinoamericano (Borón et al., 2004). Con todo,
medida para sostenerse a sí mismo como esta humanización del modelo neoliberal, se
hegemonía ideológica, también resulta instala en las formas que el Estado administra
favorable para reproducir las relaciones para la focalización de recursos, por una
sociales de producción capitalistas. Esta parte; pero que también organiza en la puesta
afirmación, sin embargo, debe ser examinada marcha de las políticas residenciales sobre
en detalle. El rostro humano impreso sobre el la propiedad, particularmente de la vivienda
modo de acumulación de capital, no ha sido social. Por ello, la espacialidad de estas
precisamente una invención de operadores transformaciones ha sido relativizada, aun
financieros reunidos en las convenciones cuando es un proceso inherente y, por lo tanto,
globales de magnates; por el contrario, lógico dentro de la estructuración económica
representa una tendencia al ajuste que el de las sociedades contemporáneas y, muy
Estado neoliberal aplica sobre las políticas especialmente, en el caso chileno. Las imágenes
que se dirigen a los pilares básicos de la de este rostro humano, así como algunas de
reproducción social : educación, salud y sus facetas o principales características, están
vivienda. Las tres son áreas estratégicas sobre presentes de forma temprana en el trabajo
las que el Banco Mundial (2015) o el Banco de David Hojman (1995), que ha tenido otros
Interamericano de Desarrollo (Blanco et al., impactos significativos a nivel nacional, sobre
2014) intervienen periódicamente con sendos todo en lecturas críticas o benévolas con las
documentos, cuya pretensión central está en formas que el modelo neoliberal ha asumido
consolidar líneas de acción conjuntas dentro en las últimas décadas (Atria, 2013; Hidalgo et
de un contexto regional. Para ello, las crisis al., 2016a).
económicas que han azotado tanto a España El propósito de este trabajo es
(Coq-Huelva, 2013) como a los Estados caracterizar elementos de base teórica sobre

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La espacialidad neoliberal de la producción de vivienda social...

aquellos componentes que dan estructura al a la producción de naturaleza (2011), señala


rostro humano del neoliberalismo en Chile, cuya que una de las funciones de la ideología, es
principal faceta de materialización y acción se la de vaciar los contenidos sociales que se
localiza en el espacio social, principalmente el asocian a cierta categoría y reemplazarlos por
urbano; ello a partir de una revisión crítica a otros que son útiles para ciertos fines políticos
los documentos orientadores en la producción y económicos; de esa manera la sostenibilidad
urbana, como práctica espacial desde el Estado, podría ser considerada como una ideología que
operada a través del Ministerio de Vivienda y intenta solucionar la degradación ecosistémica
Urbanismo chileno, entre los años 1990 y 2015. propia del desarrollo capitalista, a partir de
Por ello, se cotejan las principales ideas mecanismos capitalistas como el pago por
contenidas en las citadas fuentes y su relación servicios ambientales, la venta de bonos de
con la construcción del relato ideológico del carbono y demás; vaciándose el contenido
modelo neoliberal, a partir de evidencias de la categoría naturaleza y dotándola de un
normativas y de gestión territorial. Así, se nuevo sentido expresado como un “servicio”
establecen algunas directrices en la progresiva ambiental o ecosistémico (Swyngedouw, 2011).
indagación sobre las economías que delimitan, ¿Podría operar ese mecanismo de inversión
modelan y articulan las relaciones socio- ideológica respecto a las reivindicaciones
espaciales en Chile, contexto territorial del derecho a la ciudad? Carlos (2015)
considerado con alevosa recurrencia como sostiene que, en efecto, esa categoría ha
el Santo Grial de las economías sociales sido expropiada de quienes originalmente
de mercado y, por sobre todo, como el lucharon por ella, para ser transformada en
alumno más aventajado en la instalación y una ideología con un alcance reformista. Se
perfeccionamiento del neoliberalismo. podría sostener entonces, que el neoliberalismo
además de haber asumido un rostro verde,
también busca un rostro humano y urbano,
Cuando el “derecho lo que implica vaciar de contenido tanto la
noción de “derecho” como la de “ciudad”
a la ciudad” se convierten y darle nuevos sentidos. Desde luego, estos
en una faceta del rostro últimos dependen del contexto socio-espacial
humano del neoliberalismo en el cual está inmerso el Estado, por lo que
no resultarán, necesariamente, los mismos
Cuando Henri Lefebvre ([1973] 2014) señalaba elementos significantes asignados para Chile
que la producción implicaba no sólo la (Zunino e Hidalgo, 2009), a los que se endilgan
generación material de mercancías, sino de en los Estados Unidos o en el Reino Unido
sentidos y significados; tenía en mente también (Pierson, 1995).
que la producción del espacio se orienta a En el caso chileno, las tensiones sociales
producir ideología (Hidalgo et al., 2016a). En y geográficas ocasionadas por la espacialidad
ese sentido, Erik Swyngedouw, en un análisis neoliberal de la producción de vivienda
sobre la elaboración de ideologías asociadas implicaron, hasta mediados de la primera

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Rodrigo Hidalgo Dattwyler, Voltaire Christian Alvarado Peterson, Daniel Santana Rivas

década de los dos mil, la construcción ideológica Sobre esto último, se concentra la
de nuevos contenidos tanto de la noción del atención de distintos trabajos, los cuales
derecho como de la ciudad, imbricados en develan algunas de las “rugosidades
las sucesivas políticas de vivienda social y de espaciales” presentes en las soluciones
reformas urbanas (Rodriguez y Sugranyes, habitacionales generadas durante las últimas
2004; Posner, 2012). La hipótesis que aquí se décadas. En ellas, la lectura sobre el modelo
defiende es que la ciudad se ha cargado con neoliberal ha sido instalada desde una crítica
un nuevo significado: un contenedor apolítico a sus resultados, que pueden adicionarse
de mixtura social; mientras que el derecho a la a los ya citados respecto de distancias y
misma se asume como la facilidad del usuario servicios. Las lecturas sobre la gentrificación
– no del ciudadano precisamente – al acceso y las comunidades cerradas en las áreas
a servicios de transporte, educación y salud periféricas metropolitanas del Gran Santiago
(Salazar et al., 2014b). (Sabatini y Salcedo, 2007); así como también
La ciudad sería entonces un espacio de la aplicación de modelos para el análisis de las
mixtura social, entre clases medias y bajas – fragmentaciones residenciales (Baehr y Meyer-
la alta no aparece en el discurso, y la baja -Kriesten, 2007), han aportado interesantes
no es la que accede a la vivienda social sino insumos en la discusión, elevando la prioridad
la que reside en el centro en condiciones de intervenir sobre la conformación de un
de precariedad – mientras que la noción de discurso-relato de Estado. Esto no deja de
derecho a la ciudad se restringe a la facilidad ser interesante, toda vez que el grueso de
de acceso a equipamientos que se mide, por la las discusiones sobre el modelo, se producen
tecnocracia estatal, en distancias euclidianas desde la crítica a la desregulación o el rol de los
(Sabatini y Brain, 2008). Ese nuevo sentido agentes privados.
podría considerarse una forma no sólo de ganar
un consenso político y atenuar el conflicto
social potencial que genera la constitución de
guetos inmensos en las periferias urbanas, sino
La construcción del rostro
una forma de abrir el lucrativo “mercado” de la
humano en el neoliberalismo
vivienda social a las clases medias emergentes chileno
(Hidalgo et al., 2016b). Así el rostro humano
y ur b ano d el ne olib e ralism o chile no, La idea acerca de una economía social de
estaría conduciendo a dos procesos: una mercado no es para nada nueva y menos en
“medianización con rasgos gentrificadores en Chile. La investigadora Pilar Vergara (1984)
el área central de la aglomeración de Santiago describe tempranamente la revolucionaria
y Valparaíso” (Hidalgo y Borsdorf, 2005); y a la instalación del modelo, como una apuesta
constitución de nuevas centralidades urbanas por convertir los bienes sociales en
pero periféricas, configurando la localización sustancias tasables y transables, en función
y asiento de los proyectos de vivienda social de las necesidades de mercado. Entre otros
para los pobres. elementos, se apoya en fuentes inmediatas a

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La espacialidad neoliberal de la producción de vivienda social...

los acontecimientos, permitiéndole establecer El sostenido proceso de


tres aristas esenciales en el discurso de los perfeccionamiento en la distribución de los
instaladores del modelo neoliberal en plena subsidios para la vivienda social, supone la
dictadura militar – 1973 a 1990 –, para activa presencia del Estado como agente
comprender la mecánica del nuevo orden esencial en la producción de espacio
económico, las que han servido de guía para residencial e inmobiliario. Si bien es cierto no
estudios consecutivos (Pozo y Vergara, 1990; ejerce un rol como constructor, sí dinamiza
Gárate, 2012): activamente al mercado y las transacciones
a) el colapso del Estado de bienestar entre agentes privados y sociales para
que, debido su gran escala y modelo de garantizar el acceso, por la vía de aportes
empleabilidad, pensiones y definición hacia la demanda (Tapia, 2014; Hidalgo et
estratégica en el marco de políticas públicas, al., 2016a). Esta sinergia va de la mano con
había impedido el emprendimiento, desarrollo la intervención focalizada sobre la vivienda
y progreso del país durante el siglo XX; social, como principal fuente en la generación
b) el Estado, como asignador de recursos y de una propiedad residencial expandida. Pero
actor principal en el mercado, demostraba ser también emerge una intención fuerte sobre
un ineficaz administrador de las áreas sensibles la radicación y normalización de tomas de
para la población como salud, vivienda y terreno y campamentos; así como también en
educación; por lo tanto, debía reducir sus el saneamiento de títulos de dominio, acciones
acciones hacia el aseguramiento de estas articuladas por distintas agencias públicas
demandas para quienes quedaran fuera del desde 1980 en adelante (Hidalgo, 2005). La
nuevo sistema privado; finalidad en destacar estos elementos consiste
c) este nuevo Estado subsidiario sería el en que no sólo casa nueva responde a esta
garante institucional en la estabilidad de idea de enfoque subsidiario desde el Estado,
las reglas del juego de las inversiones y sino que también actúa de forma reiterada
emprendimiento económico, y actuaría como sobre sus anteriores políticas (Calvacanti y
sostén ante los moral hazards inevitables en el Cruz, 2014; Borsdorf e Hidalgo, 2008).
progreso de las iniciativas privadas.1 S o n e s t as accio n e s p olític as las
Estas aristas son pequeños testigos del que, precisamente, materializan el rostro
efecto revolucionario que la acción cívico- humano del neoliberalismo y sus evidencias
militar tuvo sobre lo público. El golpe de Estado en la producción de espacio. En efecto, el
de 1973 en Chile es, de todas maneras, un neoliberalismo manifiesta una faceta espacial,
evento refundacional en base a la violencia debido a que la forma de reproducción del
política, control social y transformación capital se sostiene en la renta futura sobre
económica (Moulian, 2002; Valdivia et al., la propiedad residencial y, también, en
2006-2008) pero también constituye un nuevo base al flujo de deuda hipotecaria que la
pivote en la producción de espacio. banca comercial capitaliza en los mercados

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Rodrigo Hidalgo Dattwyler, Voltaire Christian Alvarado Peterson, Daniel Santana Rivas

internacionales de bonos a largo plazo de menores ingresos quienes además, no


(Stiglitz, 2014; Krugman, 1992). seducían en ese entonces a la banca comercial
en el otorgamiento hipotecas.
Siguiendo lo anterior, proponer que el
La continuidad del modelo: Estado neoliberal pretenda modelar un rostro
fortalecimiento neoliberal estructural humano para la economía social de mercado
no es, en absoluto, un acto de ingenuidad.
Ahora bien ¿cómo intervienen estos elementos La inacabada gestión de suelos en favor de
en la producción de vivienda social? Los la cobertura para este tipo de residencias, ha
Estados contemporáneos, sobre la base de sido ajustada y perfeccionada en los últimos
fundamentar o entregar un acervo reflexivo decenios, en pos de consolidar operaciones
para las políticas públicas, mandatan estudios e habitacionales. Si bien a inicios de la década
informes de carácter técnico para intervenir en de 1990, la inclusión de nuevos subsidios
áreas deficitarias en cuanto a servicios mínimos para viviendas de carácter social tuvo fines
2
sociales, siendo la vivienda uno de ellos. El caso expansivos, esto no evitó que el déficit presente
chileno es un ejemplo de ello: considerando que, en ellas se redujera. El Cuadro 1 expresa una
para finales de la década de 1970 comienza una conducta expansiva de los gobiernos chilenos
transformación del espacio urbano, en razón a la desde el año señalada en adelante, donde
apertura del mercado de suelos, no fueron pocos resalta la iniciativa durante las dos primeras
los documentos elaborados para sustentar presidencias; para seguir en la inauguración del
“técnicamente” la producción de propiedad nuevo siglo con una contracción sobre estas
residencial focalizada para los estratos sociales políticas (ver Cuadro 1).

Cuadro 1 – Cantidad de instrumentos de subsidios habitacionales


entregados por mandato presidencial (1992-2015)

Presidentes de la República Periodo de mandato Instrumentos aprobados

Patricio Aylwin Azócar 1990-1994 8

Eduardo Frei Ruiz-Tagle 1994-2000 7

Ricardo Lagos Escobar 2000-2006 5

Michelle Bachelet Jeria 2006-2010 4

Sebastián Piñera Echenique 2010-2014 3

Michelle Bachelet Jeria 2014-actualidad 1

Fuente: Elaboración propia en base a datos proporcionados por Minvu (2015).

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La espacialidad neoliberal de la producción de vivienda social...

En todo caso, no representan estos desplazamientos y ocupaciones de sus millones


guarismos, la detención de Estado en la gestión de habitantes. Este último lleva décadas siendo
subsidiaria-residencial; muy por el contrario, observado por distintos estudios, los que han
inaugura una estructura fiscal focalizada descrito las relaciones y tensiones presentes
en la óptima cobertura de estos aportes. tanto en la movilidad como en el desarrollo
El siguiente cuadro exhibe algunos de los cotidiano de las actividades urbanas (de
principales aportes fiscales para viviendas Mattos, 2002; Tapia, 2014).
nuevas, subsidios habitacionales para nuevas Entonces ¿cuál ha sido el espíritu de
residencias, las cuales pueden ser adquiridas de las políticas públicas para la construcción
forma individual o colectiva (ver Cuadro 2). de la casa propia? Auscultar estas acciones
Claro está, la acción subsidiaria tiene requiere de una revisión sobre documentos
una materialización espacial relevante. La clave, que no pertenecen a la legislación en sí,
temida y anunciada escasez de suelo en las sino que forman parte de los dispositivos que
zonas centrales del país (Hidalgo, 2007), la organizan y sustentan en el contexto del
no amilanó la expansión habitacional hacia debate articulador de la ley. El rostro humano
el periurbano de la macrozona urbana que ha sido descrito en lo precedente, no se
central del país, ni tampoco contrajo los configura sólo desde un orquestado conjunto
precios de las nuevas viviendas, al menos de acciones institucionales ; descansa
desde 1995 en adelante (Salazar y Cox, también, en el asiento de las intenciones que
2014a). Sin embargo, el perfeccionamiento cada gobierno pretende instalar. Por ello, es
en un ordenamiento jurídico-subsidiario imposible sostener que la faceta espacial en
coherente con las necesidades insolutas por la producción política de viviendas sociales
vivienda, ha delimitado un amplio campo sea ubicua cuando, en realidad, su resultado
de garantías en cuanto a la obtención de la empata con transacciones del poder que
casa propia, pero con precarios servicios en decantan en un producto final, compuesto
un contexto metropolitano donde el enfoque por lo residencial y su focalización en grupos
de lo residencial está asentado sobre los precarizados.

Cuadro 2 – Principales subsidios habitacionales, periodo 1992-2014

Instrumento Público objetivo Precio de vivienda Forma de postulación

Viviendas básicas Familias con ingresos Individual (jefes de hogar); o


Desde 200 hasta 400 UF
modalidades SERVIU, 1993 mensuales entre 5 a 9 UF3 colectiva (grupos de familias)
Programa de vivienda Familias con ingresos Depende del SERVIU de cada Individual (jefes de hogar); o
nueva básica, 1995 mensuales entre 5 a 9 UF región colectiva (grupos de familias)
Programa de vivienda social Adultos mayores o grupos Depende de MINVU-SERVIU la Individual (jefes de hogar); o
dinámica sin deuda, 2007 etareos sobre 65 años forma de aplicación del subsidio colectiva (grupos de familias)
Hasta 2000 UF en todas las
Familias vulnerables, primer
D.S. 116, 2014 comunas del país, exceptuando Individual por familia
quintil4
aquellas que la ley indica

Fuente: Elaboración propia en base a datos proporcionados por Minvu (2015).

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Rodrigo Hidalgo Dattwyler, Voltaire Christian Alvarado Peterson, Daniel Santana Rivas

necesidad de generar equilibrios territoriales en


Construcción de relato
la gestión pública del suelo urbano; las áreas
espacial en las políticas metropolitanas y ciudades medias, bajo el
residenciales (1990-2014) emergente enfoque de sustentabilidad; el que
aparece descrito no sólo como una declaración
El periodo posterior al término de la última de necesidades ecológico-ambientales, sino
dictadura militar en Chile, ha sido denominado que referido a la eficiencia en el uso de los
como transición a la democracia (Richards, recursos, equidad social en la distribución de
1995). Sin embargo, y debido a la continuidad costo-beneficio y el compromiso social con el
de políticas con impacto socio-espacial, es patrimonio y las futuras generaciones (Minvu,
complejo establecer un cierre transicional. 2012, p. 79).
Los gobiernos retornan sobre un sistema de Adosado a lo anterior, y como principal
elecciones secretas, universales e informadas, eje crítico, se describe la problemática en
pero ninguno de ellos ejecuta sustanciales el ejercicio sin contrapesos del derecho a la
cambios sobre el modelo económico; lo que propiedad, el que generaría distorsiones frente
ha sostenido los procedimientos para la al perfil de bienes comunes y espacios públicos
asignación de recursos o el concurso para su que son considerados como esenciales dentro
adjudicación por parte de los grupos sociales de este conjunto de declaraciones. Por ello,
más vulnerables, en los conocidos subsidios al proponer mecanismos de compensación
para la vivienda. En este sentido, la idea de basados en el precio de las viviendas o
un periodo de postdictadura para describir las exención de gravámenes territoriales, se
formas políticas contemporáneas en Chile, ha configuran patrones de base para comprender
sido refrendada en los últimos lustros (Mayol y que la distancia de la vivienda prioritaria para
Ahumada, 2015). estratos vulnerables, constituye un resultado
En este contexto, el Ministerio de esperado por las políticas habitacionales y
Vivienda y Urbanismo – Minvu – ha organizado no una simple externalidad resultante de la
un posicionamiento respecto de la producción articulación de instrumentos de planificación
de espacio urbano y residencial, que cada territorial que afecten distintas escalas
gobierno ha pensado para el país, desde (Hidalgo, 2007; Tapia, 2011).
1990 en adelante. Existiendo en todos ellos Vale destacar que las reformas de este
elementos que se repiten, se destaca que cada periodo, más allá del contenido y espíritu
escrito pretende levantar un sello distintivo descrito, son el paso siguiente de políticas
excepcional. Los documentos principales sociales iniciadas bajo el régimen militar.
evacuados durante el periodo indicado, Ambos gobiernos citados más arriba, optaron
corresponden a los siguientes: por tomar las apuestas expansivas en materia
a) Política de Desarrollo Territorial (1993- de vivienda, de forma más sofisticada y
1996) . Gestionada entre los gobiernos del tecnocrática, pero sin perder al mercado como
decenio democratacristiano de Patricio Aylwin articulador sobre la oferta y stock residencial
y Eduardo Frei Ruiz-Tagle, se construye sobre la para estos fines. Si al rostro humano debe

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La espacialidad neoliberal de la producción de vivienda social...

fechársele en alguna etapa, es probable que Aunque la perspectiva habitacional no


esta sea la más adecuada. aparezca de forma directa en este trabajo,
b) Reforma Urbana (2001). Esta instancia se proyecta longitudinalmente. La propuesta
tiene su génesis en un mandato mayor al de un espacio urbano articulado en nuevos
reseñado anteriormente, cuya formación servicios, con una sólida estructura vial y
técnico-política representó la acción de donde los denominados impuestos verdes
distintas secretarías de estado en función de sean los que concentren el mayor aporte
los temas propuestos. en bienes públicos como parques urbanos y
El Consejo Nacional de la Reforma cubiertas vegetales, busca definir una línea
Urbana, órgano evacuado por la reforma de base para la gestión de dispositivos de
señalada, tiene como objetivo principal ordenamiento territorial efectivos, en cuanto
acompañar a la presidencia de la nación, que al distanciamiento de los centros urbanos y los
en esa fecha estaba bajo la administración nuevos sectores habitacionales en las zonas
del socialista Ricardo Lagos Escobar, hacia “la metropolitanas. Esta condición aparece en
definición de una política nacional urbana y estudios recientes acerca de sustentabilidad
con el diseño, formulación y coordinación de urbana en Santiago, principalmente, donde
5
un Plan de Reforma Urbana”. Lagos Escobar los episodios de crisis ambiental durante el
había dirigido anteriormente la secretaría de invierno, no han decaído y sólo han ido al alza
Obras Públicas, destacando el fuerte impulso a durante el último quinquenio (Schmitz, 2005;
las concesiones en infraestructura entregadas Smith y Romero, 2016).
a consorcios privados multinacionales, algo c) Avance para una Política de Desarrollo
que tuvo continuidad durante su mandato, Urbano (2009). La primera presidencia de la
expandiendo este nicho de renta espacial a también socialista Michelle Bachelet destaca,
otras dimensiones, como la construcción de entre otros aspectos, por la instalación de
hospitales y cárceles. una Red de Protección Social institucional,
Este nuevo Consejo tendría a su cargo, desarrollando una inédita articulación
por lo tanto, la evacuación de productos subsidiaria, gestándose un nuevo horizonte del
pertinentes para la confección de políticas Estado neoliberal chileno.
territoriales; coordinación interministerial Este sistema, de carácter intersectorial,
e intersectorial entre los aparatos públicos conocido como Chile Solidario (Mideplan, 2004),
adscritos al asunto espacial-residencial; gestiona y ejecuta la principal focalización de
además de las coordinaciones financieras para recursos fiscales hacia la mantención de las
ejecutar los planes que de ello resultaren. Así, áreas precarias del desarrollo social, tanto a
aparecen algunos elementos destacables para nivel rural como urbano, considerando como
ilustrar la perspectiva de rostro humano que ejes particulares el acceso a la salud; ingreso
antecede a este apartado. Que el mercado a la educación escolar en todos sus niveles
sea considerado como un eficiente regulador (Galasso, 2011); participación en subsidios
urbano y territorial (MINVU, 2012, p. 123) es, de para la vivienda de carácter social (Posner,
suyo, ejemplificador de la conducta esbozada. 2012); y empoderamiento administrativo de los

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Rodrigo Hidalgo Dattwyler, Voltaire Christian Alvarado Peterson, Daniel Santana Rivas

municipios junto al Ministerio de Planificación habitacional, disgregando sus áreas de acción


Nacional para cada una de las políticas que sobre el espacio público, los bienes y servicios
6
sean tributarias de esta nueva red. De la mano presentes en las ciudades chilenas. Con todo,
con esta estructura estatal enfocada en los se hace una importante mención al panorama
sectores sociales de menor ingreso, aparece de la localización que han tenido las viviendas
el concepto de derecho a la ciudad como de interés social, reconociendo que el precio
espina vertebral en la producción de la citada del suelo ha generado un destino para el sueño
perspectiva sobre el desarrollo urbano. de la casa propia de este tipo, hacia las zonas
E s t a r e f e r e n c i a n o e s m e n o r, con menor motilidad respecto de ocupaciones,
especialmente si se considera que, en el actividades cotidianas o de salud, entre otros
anterior documento, debía ser el mercado (Zunino e Hidalgo, 2009; Rovira, 2009).
quien regulase la producción equilibrada de d) Política Nacional de Desarrollo Urbano
lo urbano. Este caso representa, empero, el (2014). El documento final de esta secuencia
ingreso de la idea-fuerza que representa tal considera un epígrafe relevante, al mencionar
derecho en el debate sobre las ciudades en los conceptos de ciudades sustentables y
la actualidad.7 La responsabilidad del Estado calidad de vida como parte central en el cuerpo
sobre este nuevo mandato, se sintetiza en que del documento. Si la lógica anterior había
establecerá una “Política de Desarrollo oscilado entre la normalización del espacio
Urbano Sustentable” basada en el urbano, el rol del mercado y el derecho a la
“derecho a la ciudad”, asegurando ciudad, con esta nueva etapa busca consolidar
a todos/as los chilenos el derecho al las posiciones anteriores, pero también se hace
acceso a bienes públicos de calidad,
cargo del oxímoron de los tiempos: justicia
tales como: suelo urbano integrado, aire
limpio; seguridad; transporte público, social . Esto acontece durante el gobierno
espacios públicos, áreas verdes y de Sebastián Piñera, el primer gobernante
paisajes naturales protegidos; viabilidad de derecha política electo en 52 años, quien
urbana; equipamiento comunitario y instala una serie reformas denominadas como
acceso a servicios. Estos bienes públicos,
estructurales, pero sin alterar esta estructura de
imprescindibles para asegurar la calidad
de vida urbana y la sustentabilidad a aportes. Incluso, como lo muestra una primera
largo plazo de nuestras ciudades, no tabla en este trabajo, aumentó el número de
pueden depender sólo del mercado y la instrumentos subsidiarios para la vivienda,
capacidad económica de las personas como es el caso del subsidio al alquiler o el de
y familias para acceder a ellos. (Minvu,
localización, que se verá más adelante.
2012, p. 134)
Para ello, la política inscribe doce
En lo anterior, no aparece siquiera principios rectores para esta nueva faceta,
mencionado el acceso a la propiedad destacándose entre ellos la equidad, en
residencial, que en los documentos precedentes cuanto al “acceso a bienes públicos urbanos, a
estaba situado tanto las personas como en participar en las oportunidades de crecimiento
el mercado. El enfoque de este derecho a la y desarrollo”; y la integración social,
ciudad consiste en la producción de entorno considerando que las ciudades “deben ser

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La espacialidad neoliberal de la producción de vivienda social...

lugares inclusivos, que entreguen condiciones elementos estructurales de las viviendas


básicas de calidad de vida a todos sus y la flexibilidad para su crecimiento.
(Minvu, 2014, p. 26)
habitantes, respetando sus particularidades
y su libertad de expresión” (Minvu, 2014).
Estos elementos escapan de lo que
La relevancia de estas líneas de acción, más
ocurre, cuando las intenciones y subsidios
allá de la declaración de intenciones que el
se convierten en un conjunto de residencias
Estado manifiesta hacia el futuro, considera para estratos sociales vulnerables, donde el
un campo de acción que, precisamente, se acceso a servicios mínimos sociales, como
materializa sobre las formas de producción de educación y salud, es precario; y cuando el
espacio urbano. uso de espacios públicos sustentables en lo
Es interesante destacar que dichos ambiental y social es escaso. El expolio urbano,
principios, se reproducen en declaraciones que era desarrollado en la década de 1970
más específicas dentro del citado documento. por Kowarick (2000), y que ha tenido en Chile
Esto, porque el componente principal sobre importantes repercusiones, no logra revertir
el cual se materializan estas líneas de acción en el inicio de esta nueva propuesta para
es, precisamente, la vivienda social. Aquí el el desarrollo urbano, la compleja tendencia
escrito es claro al refrendar que el principio anterior (Burgos et al., 2011).
de integración social debe contener nuevas El más claro ejemplo respecto al
situaciones de segregación urbana, y lo indica continuismo en materia habitacional, está en
sosteniendo que la localización de los conjuntos residenciales en
los veinte años que han sido referidos a lo largo
los programas de vivienda social deben
del presente apartado. La siguiente ilustración
considerar, especialmente, los aspectos
que escapan de la iniciativa de los futuros expone dicha tendencia, la que permite abrir
residentes, como son la localización, los la discusión hacia el rol espacial de aquel
trazados del espacio público, la reserva rostro humano en las áreas metropolitanas de
de terrenos para equipamiento, los Valparaíso y Santiago (ver Figuras 1 y 2).

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Rodrigo Hidalgo Dattwyler, Voltaire Christian Alvarado Peterson, Daniel Santana Rivas

Figura 1 – Localización viviendas sociales, área metropolitana


de Santiago (1992-2002; 2002-2012)

Leyenda
Área Metropolitana de Santiago
Vivienda social 1992-2002
Vivienda social 2002-2012

Fuente: elaboración propia en base a datos Minvu-Techo.

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La espacialidad neoliberal de la producción de vivienda social...

Figura 2 – Localización viviendas sociales, área metropolitana


de Valparaíso (1992-2002; 2002-2012)

Leyenda
Área Metropolitana de Valparaíso
Vivienda social 1992-2002
Vivienda social 2002-2012

Fuente: elaboración propia en base a datos Minvu-Techo.

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Rodrigo Hidalgo Dattwyler, Voltaire Christian Alvarado Peterson, Daniel Santana Rivas

el colapso de los conjuntos residenciales de El


Un montón de ladrillos
Volcán (Portela, 2006) y Bajos de Mena en la
o la cara visible del comuna de Puente Alto.
neoliberalismo en el espacio Actualmente, el gobierno regional
urbano metropolitano chileno metropolitano de Santiago, desarrolla un plan
de recuperación del sector Bajos de Mena, que
Al concretarse el retorno a la democracia en albergó a los conjuntos habitacionales citados,
Chile, con ocasión del ascenso presidencial de en relación a una agenda prioritaria de cinco
Patricio Aylwin en 1990, son trazadas ciertas líneas: generar conectividad intercomunal;
hojas de ruta con el fin de transparentar, generar conectividad interna; nuevas áreas
primero, los reales resultados de las políticas verdes; nuevo equipamiento; y regeneración y
sociales principalmente, que la dictadura mejoramiento habitacional.8 Este conjunto de
cívico-militar había ejecutado, especialmente iniciativas empalma, de forma categórica, con
en el colofón de su periodo (1985-1980); y, los elementos descritos en las políticas de 2009
desde ellos, organizar una agenda legislativa y 2014, donde aparecen dos gobiernos de signo
que diera cuerpo fundacional a una nueva político opuesto, como es el caso de Michelle
democracia. Casi un tercio de todos los Bachelet (2006-2010), militante de Partido
programas para la vivienda social fueron Socialista de Chile; y Sebastián Piñera (2010-
evacuados y puestos en rigor durante el 2014), quien llegó a la presidencia con el apoyo
gobierno del citado mandatario (ver Cuadro de los partidos políticos denominados como
1). Con ellas, el último decenio de la pasada centro-derecha; y, además, quien firma como
centuria, consolida la mitad de los mismo, máxima autoridad la Política de Desarrollo
totalizando quince instrumentos de aportes Urbano de 2014.
fiscales para la vivienda. No deja de ser relevante este último
dato. La continuidad en la gestión residencial
de viviendas sociales, constituye un elemento
Santiago: algunos ejemplos central en la perspectiva espacial del Chile
contemporáneo. Además de las citadas
Aquí emergen varios elementos, que han sido localidades, existen otras que han sido
revisados en distintas publicaciones. El más intervenidas hacia el mejoramiento de barrios,
importante de todos, consiste en la apuesta remodelación de casas y departamentos
programática por alcanzar un millón de en fachada e interiores; así como también
viviendas decepcionadas por sus propietarios la focalización de las redes de protección
para el cambio de siglo (Hidalgo, 2005). Siendo social, con el fin de aumentar la satisfacción
un número complejo de alcanzar, se llega a dos residencial de quienes las habitan. El caso de
tercios de los comprometidos, sin dejar de lado la población Parinacota, ubicada en el extremo
una importante serie de externalidades que norte de Santiago, concentra una importante
sólo se visualizan en años posteriores, como intervención de recursos fiscales (ver Figura 3).

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La espacialidad neoliberal de la producción de vivienda social...

Figura 3 – Aglomeración y localización de viviendas sociales en las poblaciones


Parinacota y Bajos de Mena, Área Metropolitana de Santiago

Leyenda
Vivienda social AMS

Fuente: elaboración propia en base a datos Minvu-Techo.

A partir de 2012, y sirviéndose de las casas o departamentos, sino que también en


redes de protección social indicadas, se inicia un la valorización de ellas en remodelación de
intenso plan de recuperación de barrios para el fachadas e interiores, incluyendo espacios
conjunto residencial Parinacota, cuyo principal públicos. Siguiendo la lógica de ciudad
objetivo declara la “regeneración de barrios sustentable que enmarca la Política de
ubicados en sectores urbanos consolidados, Desarrollo Urbano de 2014, en que no han sido
cuya recuperación mejorará la calidad de vida pocos los recursos focalizados bajo la idea de
de sus habitantes y contribuirá a su integración mejoramiento tanto de las propiedades como
9
social y urbana” ilustrando el presente de su entorno (Arévalo, 2004). Este caso no es
accionar del Estado en materia de políticas aislado, en absoluto, frente a otros escenarios
públicas no sólo para la edificación de nuevas en que el Estado se manifiesta de forma

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oscilante en un periodo de tiempo, donde en absoluto con lo que acontece hacia los
inicialmente entrega las viviendas de carácter cerros que envuelven la bahía de Valparaíso.
social; para luego retornar en otra época al A partir de una serie de incendios ocurridos
modo del conjunto habitacional Parinacota. entre 2013 y 2014, en la zona de La Pólvora y
La población El Castillo, en la comuna de La los cerros Mariposa y Las Cañas, entre otros, es
Pintana, refleja esta situación expectaticia, develada la precariedad en el acceso a servicios
donde la espera por el retorno de lo público de alcantarillado y electricidad regulada en
no es, por lo general, uniforme u homogénea aquellos sectores que, siendo habitacionales,
(Alvarez y Cavieres, 2016). carecían de planificación alguna. Esta crítica
situación obliga al Minvu a tramitar una
resolución que otorga, sin concurso alguno,
Valparaíso: otros casos aportes para la construcción de nuevas casas
y departamentos; y así desmantelar posibles
Por otro lado, en el área metropolitana de eventos de similares características en
Valparaíso, la pendular acción fiscal en el otras localidades del área metropolitana de
espacio urbano, se refleja en casos similares Valparaíso, como es el caso de las comunas
a los anteriormente indicados, pero con de Viña del Mar y Concón. El Cuadro 3 indica
particularidades conflictivas entre lo natural y los aportes que reciben, en 2015, grupos
lo patrimonial. sociales en copropiedad, bajo el subsidio
La declaración patrimonial de 2003, para la construcción de condominios sociales
por parte de Unesco, que sólo cubre al casco en el marco del Programa de Protección al
histórico de la ciudad-puerto; no se condice Patrimonio Familiar.

Cuadro 3 – Grupos beneficiados REX n° 2016,


Ministerio de Vivienda y Urbanismo-Seremi Valparaíso, 2015

Total, aporte fiscal


Comuna Nombre del grupo
(millones de pesos)

Comité de Adelanto y Seguridad Ciudadana 896.869.79210


Viña del Mar
Polígono 1 La Concepción

Concón CCSS Horizontes del Mar-RPC 592.194.854

Fuente: elaboración propia en base a REX N° 2016 Minvu-Seremi.

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La espacialidad neoliberal de la producción de vivienda social...

La presencia de estos aportes, refrenda que el neoliberalismo ostenta dentro de sus


sólo una acción de la gestión subsidiaria características, una importante faceta espacial
residencial en el Estado neoliberal chileno. que materializa los flujos de acumulación y renta
El mencionado programa patrimonial indica, en nichos urbanos de negocios y extracción de
además del financiamiento para la construcción ganancias, principalmente (Lefebvre, 1976).
de condominios sociales, la opción de En segundo término, el caso chileno evidencia
financiar equipamiento comunitario o entorno; particularidades en la sostenida expansión de
mejoramiento, refacción y remodelación negocios residenciales, lo que podría suponer
de viviendas ya en patrimonio individual; que la subsistencia del modelo de acumulación
optimización de los sistemas de calefacción y neoliberal, en el sentido del espacio, opera
aislación para regiones del sur chileno; y obras como agencia en la urbanización extendida
de ampliación por individualización espacial de las áreas metropolitanas de Valparaíso
de viviendas -cocinas, dormitorios o baños y Santiago. En este caso, la vivienda social
– (Minvu, 2011). Este programa ha tenido cumple un rol fundamental toda vez que ella
una continuidad desde 2007 a la actualidad, incorpora a grupos sociales vulnerables a los
representando un conjunto de acciones a circuitos del mercado laboral y el consumo, al
mediano plazo, que ha sido solventada por convertirlos en propietarios de un bien raíz;
gobiernos de signo político antagónico, y, en consecuencia, en sujetos de crédito (de
pero insertos en los ejes longitudinales que Mattos, 2002).
promueven las políticas de desarrollo urbano Las unidades espaciales consideradas
que se presentan en la sección anterior. En en esta revisión, conforman las áreas
suma, es relevante señalar, que, entre dos metropolitanas de Valparaíso y Santiago,
gobiernos de distinto signo político, no se donde se concentra el mayor volumen de
población en Chile; y, al mismo tiempo, donde
aprecian importantes diferencias entre los
la aglomeración de servicios urbanos y el
modelos de acceso a estos beneficios, sino que
consumo de bienes tiene un tamaño superior
acusan una expansión hacia nuevos nichos de
al resto del país. En este sentido, la producción
mercado, como la edificación de condominios
residencial, las operaciones urbanas y la
sociales y la mantención del plusvalor de
expansión de los subsidios focalizados en la
la vivienda, considerando que la propiedad
demanda por vivienda social, han redibujado
habitacional constituye, en el caso de los grupos
la trama de dichas metrópolis (Hidalgo et
sociales beneficiados por estos aportes, la única
al., 2014), estableciendo variados nichos de
fuente patrimonial efectiva hacia el futuro.
acumulación y renta urbanas devengadas de
las acciones que el Estado, en tanto agente
esencial en la producción neoliberal del
Ideas finales espacio, acomete en la organización territorial
de lo urbano, para cubrir el requerimiento
Los resultados obtenidos a la fecha evidencian insoluto de la propiedad habitacional para
dos tendencias. La primera de ellas está en grupos sociales vulnerables (Lencioni, 2011).

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Rodrigo Hidalgo Dattwyler, Voltaire Christian Alvarado Peterson, Daniel Santana Rivas

A pesar de que el neoliberalismo en social en Chile ha redefinido no solamente


las políticas urbanas y de vivienda social ha el discurso de la planificación urbana y
asumido un nuevo rostro humano, reflejado regional, sino que ha contribuido a facilitar
en el interés por la equidad, la mixtura social la reproducción del capitalismo más allá de
y la sustentabilidad – algo que se refleja la minería y la agroindustria; la producción
en los planes y programas revisados – la neoliberal del espacio urbano se convertido
retórica ideológica se aparta de las prácticas como lo señalaba Lefebvre (1976) en ámbito
reales de producción de espacio urbano que neurálgico para la acumulación de capital. Lo
siguen ocasionando una mayor perifización anterior ha ocurrido mediante la ampliación y
de las clases populares ahora expulsadas a mutación de lo que Harvey (2012) denomina
las periferias de lo que Hidalgo et al. (2014) “nexo Estado-Finanzas” y lo que Aalbers
denominan como Macrozona Urbana Central ( 2012 ) llama “co m plejo inm o biliar io -
y sobre todo la disolución de la ciudad en un financiero”. La trama ideológica que sustenta
magma informe de áreas hibridas en las que ese nexo y ese complejo hace menos evidente
lo urbano degrada lo rural, y lo rural lo urbano esa ampliación y mutación, por lo que
(Lefebvre, 2014). interpretar ese proceso es una de las tareas
Se podría concluir que el neoliberalismo pendientes de la economía política urbana de
en las políticas urbanas y de vivienda carácter crítico.

Rodrigo Hidalgo Dattwyler


Pontificia Universidad Católica de Chile, Instituto de Geografía. Santiago, Región Metropolitana,
Chile.
rhidalgd@uc.cl

Voltaire Christian Alvarado Peterson


Pontificia Universidad Católica de Chile, Instituto de Geografía. Santiago, Región Metropolitana,
Chile.
vcalvarado@uc.cl

Daniel Santana Rivas


Pontificia Universidad Católica de Chile, Instituto de Geografía. Santiago, Región Metropolitana,
Chile.
ldsantana@uc.cl

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La espacialidad neoliberal de la producción de vivienda social...

Notas
(*) Este artículo expone los resultados de investigación acumulados en FONDECYT 1150360 “La
política de Vivienda Social en las áreas metropolitanas de Santiago y Valparaíso: entre la
desigualdad y sostenibilidad del desarrollo urbano (1992-2014)”.

(1) Estos elementos son desarrollados por Pilar Vergara a lo largo del citado trabajo, y se presentan
aquí de forma sinté ca (1984).

(2) Ante la imposibilidad de pificar de forma homogénea el ansiado derecho a la vivienda, se evita
proponer el argumento bajo tal categoría; esto, toda vez que en Chile al menos, el acceso a la
propiedad residencial no se ejerce como derecho, para ningún grupo social.

(3) Los valores están expresados en unidades de fomento (UF) en la citada norma. La UF es unidad
de cuenta que se u liza para otorgar plusvalor a las hipotecas y bienes raíces en general; que,
además, se reajusta diariamente dependiendo del comportamiento del indicador de precios al
consumidor (IPC). El monto de una UF para el último día de agosto de 2016, corresponde a
26.209 pesos chilenos, equivalente a 41 dólares americanos.

(4) Los quin les corresponden a la estra ficación por ingreso per cápita, realizada a través de los
instrumentos para la medición de la pobreza contenidos en Casen. El primer quin l concentra
a aquellas familias cuyo ingreso mensual por integrante, no supera los 53.184 pesos chilenos,
equivalente a 80,24 dólares americanos. El detalle de la encuesta puede consultarse en la web
h p://www.encuestacasen.cl (consultada en sep embre de 2016).

(5) Artículo 1°, Decreto n° 187 “Crea Consejo Nacional para la Reforma Urbana”, Ministerio de
Vivienda y Urbanismo. 3 de noviembre de 2001.

(6) El municipio corresponde a la mínima unidad espacial en la administración territorial del Estado.
La anteceden la provincia, que se refieren a un conjunto de comunas; y la región, que reúne a las
provincias en áreas de mayor escala.

(7) Con la revisita permanente sobre la obra de Henri Lefebvre, se presenta un interesante espacio
contemporáneo para la discusión acerca de este derecho a la ciudad que, si bien corresponde a
la obra del filósofo francés su puesta en marcha, ha rebotado con mucha fuerza sobre instancias
internacionales como Hábitat-ONU, y también en el debate académico.

(8) El detalle de todas las acciones que ejecuta al Intendencia de San ago, quien dirige el gobierno
regional, están contenidas en una página web dinámica y en permanente actualización hacia
la comunidad. Está disponible en la dirección h ps:// h p://www.planintegralbajosdemena.cl/
(Consultada en agosto de 2016).

(9) Ar culo 1°, Resolución Exenta n° 3680/2012. Servicio de Vivienda y Urbanismo Metropolitano
“Aprueba Convenio con Municipalidad de Quilicura. Programa de Recuperación de Barrios”.

(10) Los valores están expresados en unidades de fomento (UF) en la citada norma. La UF es unidad
de cuenta que se u liza para otorgar plusvalor a las hipotecas y bienes raíces en general; que,
además, se reajusta diariamente dependiendo del comportamiento del indicador de precios al
consumidor (IPC). El monto de una UF para el último día de agosto de 2016, corresponde a
$26.209 pesos chilenos, equivalente a $41 dólares americanos.

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Texto recebido em 28/out/2016


Texto aprovado em 17/maio/2017

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 513-535, maio/ago 2017 535
A retração da acumulação urbana
nas cidades brasileiras: a crise
do Estado diante da crise do mercado
Urban accumulation downturn in Brazilian cities:
the state crisis in view of the market crisis
Suely Ribeiro Leal

Resumo Abstract
A sintonia entre a crise econômica do estado brasi- The simultaneity between the economic crisis of
leiro e a crise do mercado imobiliário leva à hipóte- the Brazilian state and the crisis of the real estate
se de estar havendo uma retração do processo de market raises the hypothesis that there has been
acumulação urbana nas cidades brasileiras. Ambas a downturn in the urban accumulation process
se situam no contexto da crise econômica mundial in Brazilian cities. Both crises are situated in the
que têm afetado os países capitalistas desenvolvi- broader context of the global economic crisis
dos e periféricos desde 2008. No Brasil, essa crise that has been affecting developed and peripheral
tem se associado a uma crise de governabilidade capitalist countries since 2008. In Brazil, it has been
política, que vem tendo impactos nos arranjos de associated with a political governability crisis that
governança pautados nas parcerias público-priva- has had implications for governance arrangements
das e em modelos de empreendedorismo que de- based on public-private partnerships, and also for
ram sustentação aos grandes projetos urbanos vei- entrepreneurship models that have supported large
culados pelas políticas de planejamento estratégico urban projects conducted by strategic planning
em estados e municípios metropolitanos nos anos policies in states and metropolitan municipalities in
recentes. Este artigo avalia a capacidade de susten- recent years. This article evaluates the sustainability
tação da dinâmica da acumulação urbana diante capacity of the urban accumulation dynamics in
da retração da produção imobiliária. view of the downturn in real estate production.
Palavras-chave: acumulação urbana; grandes pro- Keywords: urban accumulation; large projects;
jetos; mercado imobiliário; crise de governabilida- real estate market; governability crisis;
de; empreendedorismo; Estado. entrepreneurship; State.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 537-555, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3908
Suely Ribeiro Leal

O foco de nossa indagação reporta-se


Introdução
ao comportamento dos atores que comandam
a dinâmica do mercado imobiliário no senti-
As reflexões que norteiam este artigo se do de provimento da oferta de megaprojetos
situam no âmago das mudanças que vêm ocor- urbanos e das demandas por eles geradas,
rendo no espaço das cidades no contexto da levando em conta que há um emaranhado de
dinâmica do Estado, da economia e da socie- redes de agentes econômicos globais que se
dade brasileira contemporânea, no qual são imiscuem nos circuitos financeiros dos mer-
identificados novos atores globais que exer- cados locais monopolizados, no provimento
cem o papel de agenciadores e interlocutores desses tipos de empreendimentos. Nesse con-
dos interesses do capital na esfera da produ- texto, intervenções físicas de grande impacto,
ção do espaço urbano. A importância dos es- sustentadas por vultosos investimentos públi-
tudos sobre as tendências da ação do mercado cos e privados e associadas à construção de
imobiliário se deve ao papel, cada vez mais vi- uma imagem atrativa da cidade para o merca-
goroso, que esses atores vêm desempenhando do global, caracterizam um modelo de desen-
como principais indutores da reconfiguração e volvimento apoiado no que Harvey denomina
produção do espaço e do processo de acumu- empreendedorismo urbano.
lação urbana das cidades brasileiras (Abramo, Os interesses econômicos, voltados para
2007; Leal, 2006, 2008a e 2008b). a disputa pelos investimentos dos mercados
Os impactos causados pela globalização imobiliário e financeiro articulados entre si na
e mundialização do capital sobre as cidades nova ordem mundial, têm o Estado como forte
não são novos, particularmente em países em mediador que atua oferecendo as condições re-
desenvolvimento, onde a segregação socioes- queridas à sustentação da acumulação urbana
pacial sempre foi um marco da urbanização. capitalista e, em paralelo, instaurando canais de
A acumulação do capital, conforme especifica participação voltados para o atendimento pon-
Harvey (2004, p. 88), é um evento histórico tual de demandas de caráter emergencial dos
e geográfico que tem como função construir, segmentos populares. Se, conforme Harvey, é na
destruir e reconstruir a cidade à sua seme- governança urbana, isto é, na coalizão de forças
lhança. Nesses termos, a transformação da mobilizadas por diversos agentes sociais, que
cidade passa a ser um fator implícito à repro- se origina o poder de organizar o espaço, cabe
dução do capital em épocas do ciclo de sobre- questionar: que tipo de governança tem con-
acumulação, representando uma destruição duzido prioritariamente a política urbana nas
criativa na paisagem da acumulação do ca- metrópoles brasileiras? Trata-se de uma postura
pital (Chesnais, 1996; Sassen, 1998; Harvey, estratégica adotada pelo Estado para legitimar-
2004, 2005 e 2009). -se como poder ordenador da sociedade?

538 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 537-555, maio/ago 2017
A retração da acumulação urbana nas cidades brasileiras

[...] grandes projetos – entendidos como


Paradigmas do neoliberalismo: aqueles capazes de promover rupturas
menos Estado, mais mercado significativas nas formas de reprodução
e apropriação social do espaço urbano –
têm características próprias que mobili-
O avanço nas duas últimas décadas dos para- zam novas justificativas e novos proces-
digmas que orientam o neoliberalismo – menos sos de legitimação para a articulação en-
Estado (menos regulação, menos planejamento) tre governos e interesses privados para a
e mais Mercado – veio a fortalecer a ação em- operação de transformações no ambiente
construído, além de novas formas de pla-
presarial e empreendedora nas cidades brasilei-
nejamento e práticas específicas de rela-
ras pela via dos governos locais e estaduais. As cionamento entre governos, empresariado
novas formas de governança urbana no exercí- e a população em geral.
cio do poder e o fortalecimento da relação entre
o público e o privado daí derivado intensificaram Nas condições acima mencionadas, os
a dinâmica da acumulação urbana. Um marco meios urbano e social veem-se transformados
desse tipo de governança foi a associação en- por intervenções de natureza técnica e política
tre atores privados e administrações públicas nas quais os agentes econômicos se moldam
na implantação ou gestão de grandes projetos pelo ideário do empresariamento, afetando a
urbanos. É fato, também, que esse modelo de geografia do espaço e de seu território e permi-
gestão exige que o mercado e seus atores se tindo o acesso do econômico aos meandros de
aliem em formatos de governança corporativa, todas as esferas da vida coletiva.
de modo a tornar seus negócios mais seguros e O capitalismo assume novas formas de
expostos a menores riscos, além de propiciar a hegemonia capitaneadas pelo capital finan-
harmonização dos interesses corporativos, fator ceiro, o qual passa a impor suas influências na
decisivo para a ampliação da confiança dos in- dinâmica econômica, provocando instabilidade
vestidores (Andrade e Rossetti, 2009). e induzindo uma constante reanimação do con-
Para o bom funcionamento desses for- sumo e da ação produtivista na administração
matos de governança, é de fundamental im- pública e nas instituições sociais. A capacidade
portância a presença do Estado, como elo de do econômico de se imiscuir em toda parte ca-
equilíbrio na regulação dos recursos e no pro- racteriza a acumulação urbana comandada pe-
vimento das infraestruturas que estimulem a lo capital financeiro, trazendo riscos de apatia
presença dos grandes grupos na produção do e de indiferença social e de medo, de aumento
solo urbano. Distintamente dos meios tradicio- da violência e de destruição de valores demo-
nais de regulação de políticas públicas, o pa- cráticos da cultura urbana.
pel do Estado no estabelecimento de parcerias Conforme afirma Harvey (1996), a
voltadas para viabilizar os grandes projetos acumu lação urbana depende da destruição
surgidos nos anos recentes, pauta-se por pro- criativa e da subordinação de formas de produ-
mover intervenções que envolvem mudanças ção e consumo, da difusão de valores culturais
significativas no espaço urbano. Para Oliveira que fortaleçam a competitividade, da sucção de
(2012, p. 79): mais-valia gerada em escalas que transcendem

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 537-555, maio/ago 2017 539
Suely Ribeiro Leal

a cidade, do controle de processos de valoriza- mudanças na dinâmica espacial, política, insti-


ção da terra urbana, da incorporação de conhe- tucional, etc.
cimento técnico no aumento da produtividade, Uma crítica que pode ser dirigida às par-
da destinação de parte significativa da poupan- cerias originadas por esses projetos é sobre o
ça das famílias e do capital público à expansão ônus oriundo dos investimentos e riscos que
da produção, do acesso a valores de uso pela recai, sobretudo, sobre o poder público. Como
via exclusiva do mercado, e de convenções que afirma Harvey (ibid., p. 27), "os regulados co-
estabeleçam a equivalência entre as mercado- meçam a escrever as regras da regulação, en-
rias, incluindo o trabalho. quanto o modo de tomada de decisão 'público'
Os grandes projetos urbanos, apesar de se torna cada vez mais opaco". Desse modo, na
suas diferenças, particularizam em conjunto parceria público-privada há uma pactuação en-
a evolução recente da acumulação urbana: tre o Estado e o mercado, visando a garantir o
shoppings centers, condomínios fechados, pré- aumento da acumulação do capital.
dios de escritórios e edifícios inteligentes e, A emergência da crise econômica mun-
com certo exagero, áreas revitalizadas, áreas dial e a consequente tendência à queda na
estas que, por suas emissões estéticas unívo- taxa de lucro e à retração dos investimentos
cas, podem adquirir características similares às levaram à redução da acumulação urbana vei-
do objeto. culada pelos grandes projetos, tendo em vista
Esses tipos de projetos entraram em efer- que o mercado imobiliário aparece como prin-
vescência na década passada e foram viabili- cipal motor da crise.
zados, sobretudo, por meio de parcerias entre É no contexto temporal de 2009 que
atores privados e administrações públicas para ocorre a mais importante crise econômica e
a implantação ou gestão de grandes projetos financeira mundial desde o final da Segunda
urbanos. Foram responsáveis pelo intenso acir- Guerra Mundial. Para Chesnais (2010, p. 26):
ramento da acumulação urbana nas metrópo-
[...] Essa crise começou no final de julho
les brasileiras, tendo como vetores principais
de 2007 e sofreu um salto qualitativo em
o mercado imobiliário e o capital financeiro. setembro de 2008. O discurso “nada de
E foram desencadeados em formas diversas, crise aqui” foi sustentado em certo nú-
a exemplos de bairros e cidades planejadas, mero de países, dentre os quais o Brasil.
revitalização de áreas centrais, processos de A ideia de diferenciação internamente
a uma totalidade hierarquizada ajuda a
incorporação e transformação da estrutura
perceber as diferenças nas relações de ca-
fundiária e de geração e apropriação de mais- da país no mercado mundial. Ela permite
-valias imobiliárias em áreas rurais, projetos ur- compreender por que os ritmos de desen-
banísticos e arquitetônicos associados a obras volvimento e as formas, assumidas por
de infraestrutura, etc. uma crise enorme tal como a crise atual,
podem eles próprios ser diferenciados.
Onde esses projetos vigoraram, provo-
Dessa forma, The Economist pôde lançar
caram impactos muitas vezes danosos sobre no seu site, em 14 de setembro de 2009,
os espaços físico, social e ambiental, além um artigo longo e substancial, intitulado
de terem contribuído para a consolidação de “Brazil and the crisis: late in, first out”.

540 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 537-555, maio/ago 2017
A retração da acumulação urbana nas cidades brasileiras

O autor explica que, segundo os critérios


de comparação internacionais mais fre-
Grandes projetos urbanos:
quentemente utilizados, o Brasil foi bem desafio para o futuro
menos atingido pela crise mundial que a das cidades
maioria dos outros países, e que ele seria
um dos primeiros das Américas a superá-
-la. (Grifos nossos) Sob a influência da onda empreendedora que
assolou as nossas cidades a partir da primei-
No entanto, o horizonte otimista traçado ra década do século XXI, os grandes projetos
pelo The Economist foi desfeito. O incessante urbanos assumiram formatos diferenciados de
acirramento da crise econômica brasileira em intervenção na produção do espaço urbano. Os
2015 não parecia um fato esperado em 2008, mais significativos configuraram-se na presen-
quando a maior potência mundial sofria uma ça dos condomínios residenciais fechados; nos
grave desaceleração na sua economia. megaeventos esportivos, envolvendo a constru-
A forte aceleração da crise econômica e ção de equipamentos e projetos imobiliários;
política brasileira entre 2015 e 2016 nos con- nos projetos de reabilitação de áreas portuá-
duz à hipótese de estar havendo, por parte dos rias e/ou centrais; e nas operações urbanas. O
empreendedores e investidores, dificuldades de denominador comum de todos eles foram os
manterem os arranjos de governança que pau- investimentos fundados nas parcerias público-
taram suas ações nos anos recentes, veiculados -privadas como meio da ampliação da valoriza-
pelas parcerias público-privadas e por um mo- ção do território e da especulação imobiliária,
delo de empreendedorismo que deu sustenta- em detrimento da reprodução das desigual-
ção aos grandes projetos urbanos. dades sociais nas grandes cidades brasileiras
Nesse cenário, há a necessidade premen- (Compans, 2005; Leal, 2003).
te por parte do capital de fazer com que os se- Os sonhos do empresariamento foram
tores indutores da acumulação urbana capita- sendo diluídos à medida que se intensifica a
lista voltem a crescer, especialmente, o merca- crise americana em 2008, induzida pela crise
do imobiliário dirigido às classes de alta renda, imobiliária. Mas, até lá, os grandes projetos
e que haja o retorno à cena dos grandes proje- urbanos foram enaltecidos por arquitetos e
tos urbanos metropolitanos capitaneados pelo planejadores e por gestores públicos e empre-
papel do empresariamento das cidades exerci- sários do mercado imobiliário involucrados em
do pelos governos estaduais e municipais. Dito sua bolha fictícia.
de outro modo, a retomada dos arranjos insti- "Em sua 12ª edição, o Prêmio de Projetos
tucionais de governança público/privada. Arquitetônicos do Futuro, ou Mipim, é a única
Restam os questionamentos: “como a di- competição que se concentra exclusivamen-
nâmica da acumulação urbana pode se manter te em projetos futuros – ela premia projetos
diante da retração da produção imobiliária?” e não construídos ou incompletos". A concep-
“que efeitos podem advir sobre o espaço social ção arquitetônica e urbanística de alguns dos
e econômico das cidades brasileiras?”. grandes projetos premiados nesse Evento já

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Suely Ribeiro Leal

demonstra o sentido de ousadia e utopia que A emergência de Grandes Projetos Ur-


os eles carregam e a provável influência que banos no caso do Brasil tem estado associada
passam a exercer. A grandiosidade e o estilo nos anos recentes à presença de megaeventos
arrojado levam, muitas vezes, ao distanciamen- esportivos, a exemplo do Porto Maravilha no
to da feição urbana das cidades para as quais Rio de Janeiro, cidade-sede dos Jogos Olímpi-
são projetados, apesar da beleza nos traços e cos de 2016. Inúmeras têm sido as críticas aos
nas cores. As Figuras 1 e 2 dão a dimensão da aspectos da monumentalidade que carregam,
imponência desses projetos, os quais não de- às suas marcas de empresariamento e similitu-
monstram, no entanto, explicitamente os seus des em relação a outros projetos de "sucesso"
impactos para o futuro das cidades. executados em outras cidades, a exemplo de

Figura 1 – Projeto Lago Paojiang, em Shaoxing, na China

Fonte: Disponível em http://www.arquiteturaene.com.br/2014/03/premio-de-projetos-arquitetonicos.html. Acesso


em: 22 dez 2016.
Observação: projetovencedor na categoria de Grandes Projetos Urbanos, criado pelo escritório Paul Kukez
Architecture com a CRJA Landscape Architects e a Green Design Union.

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A retração da acumulação urbana nas cidades brasileiras

Figura 2 – Projeto para EilandVeurLent em Nijmegen, Holanda

Fonte: Disponível em http://www.arquiteturaene.com.br/2014/03/premio-de-projetos-arquitetonicos.html. Acesso


em: 22 dez 2016.
Observação: Projeto vencedor na categoria de Regeneração e Plano Diretor, criado pelo escritório Baca Architects.
O projeto prevê a construção de um prédio residencial de 70 metros e uma nova passarela.

Barcelona, espelho de intervenção bem-sucedi- Alguns desses projetos já foram implan-


da. No entanto, os altos custos de investimen- tados, tendo se destacado pelo seu porte, co-
tos e o baixo retorno social fazem do projeto mo são os casos do Praia do Paiva, das Torres
Porto Maravilha um protótipo de cidade-mer- Gêmeas do Cais de Santa Rita, do Shopping
cado, no qual o beneficiamento, por parte do Rio Mar e da Via Mangue. Já outros estão em
Estado, aos interesses dos proprietários fundiá- andamento ou foram licenciados, a exemplo do
rios e promotores imobiliários fortaleceu enor- Convida Suape, do Projeto Multiuso Recife e do
memente a acumulação urbana. As Figuras 3 e Projeto Novo Recife.
4 ilustram a nossa afirmação. A ganância de valorização concentrada,
Na Região Metropolitana do Recife, a inicialmente, em bairros nobres, como Boa
presença de grandes projetos urbanos se acele- Viagem, hoje marcado por intensa verticali-
ra em meados desta década, por meio de fortes zação, desloca-se para a região litorânea sul
investidas do mercado imobiliário, tendo sido da metrópole recifense, no afã de atender à
inaugurados, na administração pública munici- demanda do chamado mercado imobiliário
pal e estadual, novos formatos de governança turístico caracterizado pela associação da ati-
empreendedora, fundados nas Parcerias Públi- vidade hoteleira e residencial, presente nos
co-Privadas (PPP) e em Consórcios Corporati- grandes resorts.
vos Privados. Uma série de intervenções urba- Saturada a procura pelos empreendi-
nas, inicialmente de forma tímida, vai tomando mentos litorâneos, novas convenções urbanas
vulto. Tais intervenções são lideradas pelas cor- são constituídas, já se observando uma nova
porações imobiliárias locais e nacionais. tendência de mobilidade territorial em direção

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Figura 3 – Porto Maravilha – Rio de Janeiro – Simulação

Fonte: Disponível em http://www.portomaravilha.com.br/web/sup/simulacao. Acesso em: 15 dez 2016.

Figura 4 – Galeria: Praça Mauá

Fonte: http://www.portomaravilha.com.br/web/sup/simulacao.aspx. Acesso em: 15 dez 2016.

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A retração da acumulação urbana nas cidades brasileiras

Figura 5 – Empreendimentos de impacto projetados


para Área Central do Recife

01) Multiuso Recife


02) Rio Ave Corporate Center
03) Pólo Jurídico
04) Terminal de Integração
Modal (Metrô/BRT)
05) Terminal de Integração
Modal (Metrô/Transporte
fluvial)
06) Novo Recife
07) Porto Novo

Fonte: Projeto Multiuso Recife – Memorial de Impacto / Odebrecht, 2014.

à área central da cidade do Recife, até então utilização de imóveis situados em duas
pouco valorizada em termos especulativos. A quadras, resultando em duas glebas dis-
tintas com 12.169,40 m 2 para a gleba
Figura 5 apresenta o elenco de intervenções em
contida na quadra formada pela Av. Aga-
curso nesse território, destacando alguns em-
menon Magalhães, Rua Jaguapitã, Rua
preendimentos situados nos bairros de Recife, das Fronteiras e Rua do Paissandu, e, ain-
São José, Joana Bezerra e Boa Vista. da, a gleba com 6.791,86 m2 contida na
Os empreendimentos de maior impac- quadra formada pela Rua das Fronteiras,
Rua do Paissandu e Rua Mário Domin-
to na região central são os projetos Multiuso
gues. (Projeto Multiuso Recife – Memorial
Recife e o Novo Recife. O primeiro, de autoria
de Impacto / Odebrecht, 2014)
da Construtora Odebrecht Realizações Ltda.,
propõe-se a ser um empreendimento inova- O projeto de maior impacto territorial
dor, orientando-se segundo um programa e político proposto para área central do Reci-
arquitetônico-urbanístico que prevê funções fe é o do Novo Recife, de responsabilidade do
de usos múltiplos: empresarial corporativo, Consórcio Novo Recife, integrado pelas em-
lojas comerciais, estacionamento de veículos e presas Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos,
espaços para reuniões de grupos corporativos GL Empreendimentos e Moura Dubeux En-
e convenções. genharia, e apresenta um formato de gestão
de cooperação consorciada. As articulações
Este programa diferenciado e comple-
público-privadas e os arranjos de governança
mentar tem na integração decorrente
do Projeto Arquitetônico a sua mais nele estabelecidos foram marcados por inten-
importante característica, em razão da sos conflitos entre os atores: poder público

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Suely Ribeiro Leal

municipal, movimentos sociais e o mercado O Conselho de Desenvolvimento Urbano


imobiliário. O projeto veio à tona mesmo com da Cidade do Recife (CDU), cumprindo a sua
as fortes disputas travadas pelos movimentos função de fórum de negociação da política
junto aos representantes públicos e privados, urbana municipal, foi a arena na qual se pro-
tendo como motivação principal a luta pelo cederam os pontos de embates principais, tais
espaço público e pelo direito à cidade, contra como: o leilão realizado para cessão do terreno
a especulação imobiliária. O movimento lidera- ao consórcio, cuja legalidade do processo foi
do pelos grupos “Direitos Urbanos” e "Ocupe questionada pelo Ministério Público Estadual;
Estelita" tinha como alvo das reivindicações a a intensa verticalização construtiva, já que o
proteção histórico-cultural-ambiental e urbana- projeto previa a construção de 12 torres acima
-territorial da área do Cais José Estelia, desti- de 40 pavimentos; a reestruturação do sistema
nada à construção do empreendimento, já que de infraestrutura e mobilidade urbana no local;
o projeto previa intensa verticalização, impac- e a relação entre os gestores públicos com os
tando diretamente sobre a área tombada pelo segmentos do mercado e o privado. Em 2016,
Iphan e sobre o ambiente natural e construído. o projeto, em novo formato, foi aprovado com
O movimento teve repercussões locais e inter- a anuência de membros daquele Conselho.
nacionais, envolvendo intelectuais de renome, De acordo com as modificações introduzidas,
como David Harvey, professores universitários, prevê a construção de um complexo com ativi-
artistas e cidadãos (Figura 6). dades de habitação, comércio, serviços e lazer.

Figura 6 – Ato de Apoio ao Movimento Ocupe Estelita em novembro de 2014

Fonte: Arquivo do Núcleo de Estudos em Gestão Urbana e Políticas Públicas – Nugepp (2014).

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A retração da acumulação urbana nas cidades brasileiras

Estão previstas 1.042 unidades habitacionais, unidades hoteleiras, com oferta de 600 leitos,
distribuídas em 14 tipologias (apartamentos e um centro de convenções e eventos, além de
com área de 36 a 280 m²), duas unidades em- biblioteca pública, quadras poliesportivas, en-
presariais, com 205 salas de escritórios, duas tre outros equipamentos (Figuras 7 e 8).

Figura 7 – Proposta do Projeto Novo Recife 2016

Fonte: Disponível em: http://www.novorecife.com.br/. Acesso em: 20 out 2016.

Figura 8 – Projeto Novo Recife 2016

Fonte: Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=projeto+novo+recife+2015. Acesso em: 15 out 2016.

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Atualmente, os dois projetos citados no sentido de enfrentamento da crise econômi-


encontram-se paralisados por conta da cri- ca. Artifícios de marketing e novos formatos de
se econômica que provocou forte retração no negociação não foram suficientes para enfren-
mercado imobiliário nacional e local, acirrada tamento e superação da crise que tem caracte-
pela crise política, em face do envolvimento, rísticas estruturais e sistêmicas.
nas investigações da Operação Lava Jato, das Nos anos de 2014 e 2015, as ofertas to-
principais empresas construtoras e imobiliárias tais de imóveis chegaram a apresentar ligeira
do País. alta, provavelmente, por conta do programa
Minha Casa Minha Vida, sofrendo queda mais
acentuada em 2016, com a retração daquele
Programa e o acirramento da crise econômica e
A retração acumulação política. A média da oferta ano foi mais intensa
urbana na Região em 2015, reduzindo-se em 2016 (Figuras 9, 10
Metropolitana do Recife e 11).
No ano de 2016, as vendas totais do
Neste item, tentaremos evidenciar algumas das mercado imobiliário na RMR atingiram a mé-
características da retração do mercado imobi- dia anual de 351 imóveis, contra 311, em2015,
liário, observando, com base nas análises da e 503, em 2014. Enquanto a média anual dos
Ademi sobre o Índice de Velocidade da Vendas lançamentos foi de 212, em2016; 227, em
(IVV), o perfil de oferta, lançamentos e vendas 2015, e 554, em 2014. Segundo a mesma fon-
no período 2014 a 2016, tendo como exemplo te, entre 2014 e 2016, houve um recuo de lan-
a Região Metropolitana do Recife. Nosso intui- çamentos de 61,7%, enquanto as vendas caí-
to é demonstrar, de forma sucinta, que o fato ram 31% no mesmo período, demonstrando ter
de o mercado sofrer abalos, particularmente havido estoque de imóveis em função do baixo
em 2016, evidenciados pelos poucos lançamen- poder de compra da população (Diário de Per-
tos e pela baixa procura, exigiu por parte dos nambuco, 17 e 18 de dezembro de 2016, apud
agentes econômicos, convenções e pactuações IVVV/Ademi-PE – Figuras 12 e 13).

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A retração da acumulação urbana nas cidades brasileiras

Figura 9 – Comportamento da Oferta Imobiliária na RMR (2014-2016)

10.000

8.000

6.000

2014
4.000
2015

2016
2.000

0
jan fev mar abr maio jun jul ago

Fonte: Diário de Pernambuco de 17 e 18 de dezembro de 2016, apud IVVV/Ademi-PE.

Figura 10 – Média Ano da Oferta na RMR

2014 2015 2016

6.932 6.920

6.468 6.468
6.376

5.826

Média jan/ago Média ano

Fonte: Diário de Pernambuco de 17 e 18 de dezembro de 2016, apud IVVV/Ademi-PE.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 537-555, maio/ago 2017 549
Suely Ribeiro Leal

Figura 11 – Lançamentos Imobiliários na RMR (2014-2016)

Janeiro

Fevereiro

Março

Abril

Maio

Junho

Julho

Agosto

Acumulado

Média jan/ago

Média ano

0 2000 4000 6000 8000

2016 2015 2014

Fonte: Diário de Pernambuco, de 17 e 18 de dezembro de 2016, apud IVVV/Ademi-PE.

550 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 537-555, maio/ago 2017
A retração da acumulação urbana nas cidades brasileiras

Figura 12 – Vendas do Mercado Imobiliário na RMR

Janeiro

Fevereiro

Março

Abril

Maio

Junho

Julho

Agosto

Acumulado

Média jan/ago

Média ano

0 2000 4000 6000 8000

2016 2015 2014

Fonte: Diário de Pernambuco, de 17 e 18 de dezembro de 2016, apud IVVV/Ademi-PE.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 537-555, maio/ago 2017 551
Suely Ribeiro Leal

Figura 13 – Relação vendas e lançamentos no mercado imobiliário na RMR

Lançamentos média ano Vendas totais média ano

56

43

30
27
21 23

2014 2015 2016

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados publicados no Diário de Pernambuco, de 17 e 18 de dezembro de
2016, apud IVVV/Ademi-PE.

Conclusões grandes empresas. Essa estagnação, decorre,


por um lado, da ausência da contrapartida dos
A breve leitura sobre o momento de retração investimentos públicos, na medida em que as
do mercado imobiliário, diante da crise econô- administrações municipais veem o dia a dia
mica e de governabilidade do Estado brasilei- dos seus gestores de cuia na mão, em busca de
ro, aponta para algumas constatações a serem recursos da União. Esses sintomas da Retração
reforçadas através de pesquisa mais aprofun- do Mercado Imobiliário são evidenciados na in-
dada sobre outras variáveis que implicariam terrupção dos grandes projetos urbanos e dos
maior proximidade do objeto, não viável neste arranjos de governança empreendedora que
artigo, como a necessidade de mensurar, por guiavam as ações dos estados e municípios.
exemplo, a dinâmica do comportamento do Por outro lado, a política neoliberal do atual
mercado imobiliário em outras metrópoles e os governo federal tem favorecido o mercado fi-
níveis de seus impactos sobre a produção do nanceiro, deslocando os investimentos a serem
1
espaço nacional. aplicados na indústria, nos serviços e no pro-
O fato é que se observa, nos territórios vimento de políticas públicas na área social,
metropolitanos, uma paralisia no mercado de incluindo o setor habitacional. Por sua vez, as
construção civil, atingindo particularmente as parcerias público-privadas são afetadas pela

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A retração da acumulação urbana nas cidades brasileiras

crise financeira, levando os investidores imo- oferecidas para o retorno da acumulação urba-
biliários a ficarem impossibilitados, ora de se na no setor imobiliário e a consequente gera-
associar ao Estado para levar a frente as ações ção de emprego e renda só serão possíveis, a
de empresariamento que deram sustentação nosso ver, com a restauração do estado social
aos grandes projetos urbanos, ora de dar conti- e o incentivo à ampliação de emprego e renda,
nuidade aos programas habitacionais voltados pela via do próprio marcado imobiliário.
para população de baixa renda, pela via do Conclui-se que, diante do panorama da
Programa Minha Casa Minha Vida. crise de Estado e da economia capitalista, o
Enquanto a roda financeira gira em tor- mercado imobiliário brasileiro, maculado pelo
no de si mesma, os grandes empresários do rastro infrator da corrupção, termina não re-
setor da construção civil estão enjaulados, à sistindo às teias da crise política, retraindo sua
espera da única saída que lhes é oferecida. Ou capacidade produtiva e de investimentos, atin-
se tornam delatores, ou suas empresas correm gindo a dinâmica da acumulação em face da
o risco de falência, triturando-se em cacos de incapacidade do capital em manter os funda-
vidro que provavelmente não serão mais cola- mentos estratégicos da geração do valor e da
dos. As poucas oportunidades que podem ser mais-valia urbana nas cidades.

Suely Ribeiro Leal


Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de Arquitetura e Urbanismo e Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano. Recife, PE/Brasil.
suelyleal@terra.com.br

Nota
(1) Projeto de Pesquisa PQ/ CNPq, processo 306285/2016-9, Chamada: PQ 2016.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 537-555, maio/ago 2017 553
Suely Ribeiro Leal

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Texto recebido em 26/dez/2016


Texto aprovado em 15/mar/2017

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A política pública para os serviços
urbanos de abastecimento de água
e esgotamento sanitário no Brasil:
financeirização, mercantilização
e perspectivas de resistência
The public policy for urban water supply and sanitation
services in Brazil: financialization, commodification
and resistance perspectives

Ana Lucia Britto


Sonaly Cristina Rezende

Resumo Abstract
Este artigo busca analisar a política pública de The article aims to analyze the public water
abastecimento de água e esgotamento sanitário supply and sanitation policy during the Brazilian
durante as gestões do Partido dos Trabalhadores, Labor Party's administrations between 2007 and
entre 2007 e 2014, identificando, nos instrumen- 2014, identifying, in the policy instruments, an
tos da política, uma ambiguidade entre uma lógica ambiguity between a commodification logic and
mercantilizadora e uma lógica do saneamento co- a logic of sanitation as a social right. It examines
mo direito social. São examinados o crescimento the growth of private sanitation companies in
das empresas privadas de saneamento no período, the period, showing their characteristics, and
evidenciando suas características, e as mudanças the recent changes promoted by the entry of
recentes, com entrada do capital internacional. Fi- international capital. Finally, it presents, as a
nalmente, são apresentados, como o contraponto counterpoint to what has been happening in
ao que vem ocorrendo no Brasil, casos internacio- Brazil, international cases of public management
nais de retomada da gestão pública, que demons- resumption, which demonstrate that privatization
tram que a privatização não é a única alternativa, is not the only alternative, and that it is possible
e que é possível conciliar eficiência e uma lógica de to reconcile efficiency and a logic of sanitation as
saneamento como direito social. a social right.
Palavras-chave: saneamento básico; política pú- Keywords : basic sanitation, public policy,
blica; privatização, direito social; gestão pública. privatization, social right, public management.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 557-581, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3909
Ana Lucia Britto, Sonaly Cristina Rezende

água (Loftus, 2009). Swyngedouw mostra que


Introdução
a água, além de ser um elemento vital, possui
um vasto significado no campo social, intelec-
Neste artigo, busca-se traçar o perfil das pres- tual e cultural e internaliza relações de poder.
sões mercantilizadoras sobre os serviços urba- Definindo o ciclo urbano da água, o autor mos-
nos de abastecimento de água e esgotamento tra que ela é necessariamente transformada,
sanitário no Brasil, recuperando as políticas metabolizada, em termos das suas caracterís-
públicas implementadas entre 2007 e 2014, ticas físico-químicas e, também, em termos das
identificando-se projetos e ações promovidos suas características sociais e dos significados
pelos governos federal e estaduais, contrapon- culturais e simbólicos que lhe são atribuídos.
do-os às políticas de resistência do serviço de No caso das cidades capitalistas, ou das cida-
saneamento como serviço público identificadas des em que as formas de troca se estabelecem,
em determinados países da Europa. sobretudo, pelas relações de mercado, a água
Para construir nosso argumento, recorre- também faz parte da circulação de dinheiro e
mos ao referencial analítico que trata das lógi- capital (Swyngedouw, 2004).
cas mercantilizadoras na gestão das águas, em A lógica da mercantilização da água,
geral, e dos serviços de abastecimento de água via sua inserção na circulação de dinheiro e
e esgotamento sanitário, em particular, com capital, busca transformar esse recurso num
base em autores da ecologia política da água commodity, gerando dependência a uma
e do campo da geografia crítica; recorremos, “política de preços” e sendo gradualmente
também, ao referencial que trata da análise da submetida aos “processos de financeiriza-
política pública de saneamento. ção” e ao chamado “mercado de futuros”
No que diz respeito às lógicas mercan- (Bruckmann, 2011, p. 212). Para a autora, essa
tilizadoras na gestão dos serviços urbanos de visão é defendida por representantes de em-
água, o argumento central é que a água é um presas privadas de água que concentram 75%
recurso escasso que deve ser gerido de forma do mercado mundial.
eficiente. Na lógica neoliberal, a melhor ma- A circulação da água também pode ser
neira de assegurar essa eficiência é através de entendida como governança urbana da água
uma política de preços adequada e de gestores pautada no processo de decisão e de imple-
capazes de aplicá-la: as empresas privadas. mentação sobre a alocação, o uso, o tratamen-
Para examinar as lógicas mecantiliza- to e a reciclagem de água urbana. A análise da
doras na gestão da água, recorremos aos tra- governança urbana da água enfatiza atores e
balhos de Loftus (2009) e de Swyngedouw instituições que interagem na sua gestão. Deta-
(2004), na perspectiva da ecologia política da lhando essa perspectiva, Castro (2007) ressalta
água. Para os autores, a injustiça na distribui- a perspectiva da governança como processo
ção da água é um ponto de partida. Ao invés conflituado de interações entre governo, gran-
de encontrar respostas em promessas ou so- des empresas, partidos políticos, organizações
luções técnicas, a ecologia política procura da sociedade civil, representando interesses
politizar o entendimento da distribuição de setoriais (sindicatos de trabalhadores e ONGs)

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A política pública para os serviços urbanos...

e agências internacionais (instituições financei- preocupação secundária, tendo em vista que se


ras internacionais e outros agentes do processo pode contar com subsídios oriundos da receita
de governança global). Esses atores estão en- gerada por impostos públicos (seja no gover-
volvidos em debates contínuos e em confrontos no local, seja no nacional), e os sistemas de
sociopolíticos sobre como governar serviços es- abastecimento de água tendem a se consolidar,
senciais relacionados à água, por quem e para expandindo a cobertura doméstica integrada
quem, representando o cerne do processo de a um sistema de esgoto, com disposição final,
governança democrática da água, caracteriza- mesmo que sem tratamento.
do pelo diálogo e pela negociação, e também O terceiro estágio inicia-se após a I Guer-
por crescente incerteza e por conflitos sociais e ra Mundial, quando os setores de saneamen-
políticos prolongados (ibid.). to, eletricidade e telecomunicações se tornam
Podemos afirmar que a governança da parte de uma preocupação crescente. Os Esta-
água é determinada pelo que Heller e Castro dos Nacionais passam a ter um papel central
(2007) denominam condicionantes sistêmicos: na regulação, no controle e nos investimentos,
“processos socioeconômicos, políticos e cultu- no contexto de uma política econômica e social
rais que estruturam e determinam as opções de fordista-keynesiana.
políticas públicas”. Buscando enxergar a evolução das ações
Em uma análise da economia política de saneamento no Brasil, na vertente da dis-
da água, Swyngedouw, Kaika e Castro (2016) cussão de Swyngedouw, Kaika e Castro (2016),
mostram que, no cenário internacional, a orga- percebe-se que a evolução das ações coletivas
nização dos sistemas urbanos de abastecimen- de saneamento, desde as primeiras vilas, o sur-
to de água pode, de forma geral, ser dividida gimento das primeiras cidades e polos econô-
em quatro estágios. micos e de poder, revela, na origem, a esfera
O primeiro vai até a segunda metade do privada atuando no setor, mas sem se constituir
século XIX, quando a maioria dos sistemas ur- uma atividade lucrativa. Após a vinda da Cor-
banos de água consistia de empresas privadas te Portuguesa para o Brasil, ao fim do primeiro
relativamente pequenas para o fornecimento quartil do século XIX, adotou-se a responsabi-
de água a uma parcela restrita da população. lização municipal ante a questão sanitária. Foi
A qualidade da água era variável, resultando com o aumento da população e seu adensa-
em um padrão de abastecimento altamente es- mento nas principais cidades do Império, em
tratificado, com a atuação das empresas visan- meio à insalubridade ambiental e às doenças,
do, essencialmente, à geração de lucros para que surgiu o debate pautado na teoria do con-
seus investidores. tágio e, decorrente deste, a defesa da existên-
O segundo é marcado por um processo cia da interdependência sanitária, ganhando
de municipalização dos serviços promovida, destaque a premissa de que o microrganismo
principalmente, pela preocupação causada transmissor da doença seria democrático, esco-
pela deterioração das condições ambientais e lhendo suas vítimas indistintamente (Hochman,
pelo aumento das exigências de salubridade 1998; Lira Neto, 1999). Tal compreensão resul-
urbana. A rentabilidade é, nesse contexto, uma tou em que o poder público se posicionasse

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Ana Lucia Britto, Sonaly Cristina Rezende

diante das demandas sanitárias e, dada a sua Essa nova configuração política que se
incapacidade técnica de assumir diretamente consolidou no território brasileiro, no início do
a gestão e a prestação dos serviços, no final século XX, com o passar dos anos, reverteu-se
do século XIX e início do XX, transferisse à ini- em práticas de corrupção e clientelismo que
ciativa privada tal prerrogativa. Segundo Costa refletiam no mau funcionamento dos sistemas.
(1994), assumiram esse papel de maneira he- Em um novo contexto, no entorno da Segunda
gemônica as companhias inglesas, instalando- Guerra Mundial, e tendo em conta a presença
-se em cidades estratégicas para a economia dos norte-americanos no Brasil, inicia-se uma
nacional, como a cidade portuária de Santos. A proposta para a gestão pública do saneamento
atuação dessas companhas foi breve, na maior (Brown, 1976). As relações entre o Brasil e os
parte dos locais atendidos, graças a referida EUA intensificaram-se com a criação do Serviço
qualidade variável e abastecimento de água Especial de Saúde Pública (Sesp), resultando no
estratificado, mencionados por Swyngedouw, auxílio técnico e financeiro dos EUA ao Brasil
Kaika e Castro (2016), que deram o tom a es- (Peçanha, 1976), havendo, por traz dessa ação,
sas concessões, juntamente com o mote prin- a pretensão de se explorar recursos minerais e
cipal de geração de lucros para seus investi- vegetais de áreas de especial interesse, como
dores. Tendo ficado constatado o fracasso do na região do médio rio Doce. Ali, era frequente
setor privado nesse ramo (Costa, 1994), foi a presença de engenheiros norte-americanos,
consenso de que apenas o Estado poderia mo- que inovaram ao introduzir um modelo de ges-
bilizar os recursos necessários para viabilizar tão público vinculado ao ente municipal, mas
a complexa infraestrutura sanitária requerida com autonomia para a gestão dos sistemas
(Rutkowski, 1999). (Rezende e Heller, 2008).
O poder público assumiu, então, a prer- Até a década de 1950, as diretrizes para
rogativa de cuidar do saneamento com a expe- os setores saúde e saneamento eram bastante
riência fracassada das privadas. Delineou-se, relacionadas. A partir daí o caminho da saú-
dessa forma, o segundo estágio mencionado de distanciou-se do saneamento, e este setor
por Swyngedouw, Kaika e Castro (2016), com se volta para a gestão regionalizada, susten-
a municipalização dos serviços apoiada pe- tada no modelo de sociedades de economia
lo governo federal, resultando em discussões mista, representada pelas companhias esta-
sobre a titularidade local e a intervenção por duais, que passaram a atuar, já na década de
parte das unidades da federação, no caso de 1960, prioritariamente no abastecimento de
os municípios não estarem aptos a resolverem água. Esse modelo mostrou, desde sua insta-
problemas de interesse regional. Nessa fase, lação, grande alinhamento com os propósitos
ações são implementadas com recursos oriun- pré-capitalistas que aceleraram o ritmo da
dos dos impostos públicos, e os sistemas de industrialização no País. Nesse contexto, sur-
água e esgotos saem do circuito das capitais giu o primeiro plano de saneamento do País,
por meio da administração direta do poder pú- o Planasa, em grande medida voltado para o
blico municipal. atendimento de áreas de especial interesse

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A política pública para os serviços urbanos...

econômico e para o fomento a meios de pro- e de liderança do Estado. Essa fase é marcada
dução capitalista (ibid.). por uma mudança nas relações entre setor
Ao se buscar cotejar elementos descritos público e setor privado no campo do sanea-
por Swyngedouw, Kaika e Castro (2016), para o mento. A crise econômica levou a crescentes
cenário internacional, na terceira etapa de de- dificuldades orçamentárias para os governos
senvolvimento da organização dos sistemas de nacionais e, por vezes, para os locais, resultan-
abastecimento de água, com a trajetória bra- do na redução de despesas com serviços pú-
sileira, observam-se experiências comuns ou blicos, incluindo aí os serviços de saneamento,
semelhantes. Em meio a outras necessidades preterindo-se investimentos subsidiados no se-
básicas intrínsecas ao sistema capitalista, num tor da água, sendo privilegiados investimentos
primeiro plano, figuravam as ações voltadas para apoiar setores industriais endividados. Ao
para o atendimento das atividades industriais mesmo tempo nos países centrais ocorreu um
e das demandas domiciliares a elas relaciona- envelhecimento das infraestruturas combinado
das. A escolha das Companhias Estaduais de com uma demanda crescente por água, geran-
Saneamento Básico (Cesb) como agentes do do ainda maior pressão sobre os orçamentos
Plano foi determinante para a consolidação públicos. Surgem, então, as soluções apoiadas
desse modelo de gestão e sua supremacia no no recurso ao capital privado como forma de
abastecimento de água, ação favorecida quan- enfrentar a crise do modelo fordista.
do comparada ao esgotamento sanitário. Sua A desterritorialização dos mercados fi-
lógica de criação, voltada para os rápidos ga- nanceiros, acompanhada da ampliação da par-
nhos de escala no atendimento por redes de ticipação privada na prestação dos serviços; o
água, tem um paralelo com a lógica descrita desenvolvimento de uma gestão orientada por
pelos autores. Como no plano internacional, o uma lógica de negócios ou de mercado, em
Estado brasileiro também incorpora a política sintonia com as estratégias para a geração de
econômica e social fordista-keynesiana, introje- lucro privado são aspectos comuns nesse perío-
tada aqui em um contexto de ditadura militar do. Os investidores começaram a explorar no-
no qual o Estado usava de instrumentos coerci- vas fronteiras para o investimento de capital:
tivos para alcançar seus objetivos, coadunando “a água surge como uma possível nova fron-
com os ideais imperialistas norte-americanos, teira a ser explorada, com o forte potencial de
impondo aos municípios à concessão dos servi- transformar H2O em dinheiro e ganhos priva-
ços às Cesbs, caso estes desejassem acessar os dos” (ibid., p.17)
recursos do Planasa. Por outro lado, Swyngedouw, Kaika e
Swyngedouw, Kaika e Castro (2016) mos- Castro (2016) afirmam que o processo não
tram que a quarta e mais recente fase começa ocorre sem resistência; em regimes democráti-
com a recessão global de 1970, associada ao cos, movimentos sociais e sindicais colocaram
declínio no crescimento econômico liderado barreiras a essas mudanças. Particularmente
pelo Estado, com posterior transição para um em contextos em que grupos da sociedade civil
modelo econômico pós-fordista ou de formas mobilizados por questões ambientais se torna-
mais flexíveis de desenvolvimento econômico ram mais visíveis e influentes, os sistemas de

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 557-581, maio/ago 2017 561
Ana Lucia Britto, Sonaly Cristina Rezende

governança tinham que se tonar mais sensíveis mandato do Governo Lula e no Governo Dilma,
a essas questões. procurando evidenciar leis e regras adotadas,
O efeito combinado dos processos e di- relações entre os atores, conflitos estabelecidos
nâmicas descritos provocou uma mudança na perspectiva do saneamento como um direito
mais ou menos radical (com diferentes graus social e na perspectiva do saneamento inserido
de intensidade em diferentes países), tanto na na lógica de financeirização e mercantilização.
prática como no nível ideológico/discursivo, de Os dois governos apresentaram, tanto
modo que o setor da água, convencionalmen- no discurso como nas ações, perspectivas de
te dirigido e controlado pelo Estado, teve que avanço do saneamento como direito social.
entrar em sintonia com as forças de merca- Nesse sentido identificamos: (1) a aprovação
do globalizado e com os imperativos de uma da lei n. 11.445/2007 e de seu decreto de re-
economia privatizada e competitiva (Kallis e gulamentação, de 2010; e (2) a promoção do
Coccossis, 2001, apud ibid.). Além disso, em- controle social e o funcionamento regular do
presas de saneamento tornaram-se parte de Conselho Nacional das Cidades (ConCidades),
empresas globais, com base em locais diversos e das Conferências Nacionais das Cidades. A lei
ou de conglomerados multisserviços, normal- do saneamento pauta-se em princípios de di-
mente globais. reitos sociais que apontam para a necessidade
Podemos afirmar que a política de sanea- de priorização de planos, programas e projetos
mento no Brasil se encontra nessa quarta fase, que visem a implantação e ampliação de servi-
na qual avanços e retrocessos são identificados ços e ações de saneamento nas áreas ocupadas
em dois sentidos: saneamento como direito e por população de baixa renda. Busca assegu-
saneamento na perspectiva de uma política rar o atendimento da população do campo,
neoliberal, conectada a financeirização e mer- da floresta e das águas, em áreas rurais com
cantilização da cidade. Esses avanços e retro- aglomerações ou dispersões populacionais,
cessos são atribuídos à governança conflituada considerando seus aspectos socioculturais co-
desses serviços, fruto das pressões, por um la- mo determinantes de soluções de saneamento.
do, dos movimentos sociais, sindicais e setores Ainda no campo dos avanços, identi-
mais progressistas ligados à gestão dos ser- ficamos a elaboração do Plano Nacional de
viços e, por outro, dos atores ligados ao setor Saneamento Básico (Plansab), prevista na lei
privado e de atores públicos alinhados à lógica n. 11.445/2007, e os princípios explicitados
mercantil e serão examinados a seguir. no plano: universalidade e equidade. Elabora-
do entre 2009 e 2011, o plano foi submetido
à Consulta Pública, em 2013, e aprovado pela
Presidente Dilma em novembro de 2013 (de-
A política pública do governo creto n. 8141, de 20 de novembro de 2013).
federal entre 2007 e 2014 No âmbito dos financiamentos, a institui-
ção do PAC 1 e PAC 2 elevou os investimen-
Buscamos nessa parte do texto examinar a polí- tos a um novo patamar, viabilizando recursos
tica pública federal de saneamento no segundo para que a política pública pudesse caminhar

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A política pública para os serviços urbanos...

no sentido da universalização. O PAC 1 previa do Setor, resolveu pela revogação dessa apro-
investimentos de 40 bilhões em quatro anos vação, o que não ocorreu.
e um volume contratado, em 2007, de 10,4 Até então, nos casos em que a operação
bilhões, mais que o dobro do contratado em ou a prestação dos serviços de abastecimen-
2006. O Governo Dilma deu continuidade ao to de água e/ou de esgotamento sanitário de
PAC através do PAC 2, lançado em março de município beneficiado pelos recursos do PAC
2010, prevendo investimentos da ordem de fossem delegadas para empresa ou instituição
45,8 bilhões de reais em saneamento básico, da qual o Poder Público não detivesse maioria
sendo 41,8 bilhões disponibilizados por meio de ações com direito a voto, durante a vigência
do Ministério das Cidades e outros R$ 4 bilhões do respectivo instrumento de repasse, o desem-
via Fundação Nacional de Saúde. Observa-se bolso dos recursos do PAC deveria ser suspen-
ainda dentro do PAC o Programa de Urbani- so (item 19.4 do referido manual). Por meio da
zação de Assentamentos Precários, que incluía portaria n. 280, previu-se exceção a tal suspen-
obras de implantação de sistemas de sanea- são: ela não seria aplicada aos casos em que
mento básico. a operação ou a prestação de serviços tivesse
Como aspectos positivos do PAC desta- sido transferida por contrato de concessão na
cam-se a previsibilidade e a regularidade na modalidade não onerosa (sem cobrança pelo
oferta de recursos, o que possibilitou o estabe- Poder Público de valor de outorga), firmado sob
lecimento de condições favoráveis para o pla- o amparo das leis n. 8.987/1995 – Lei de Con-
nejamento setorial, fator de extrema relevância cessões –, e n. 11.079/2004 – a Lei de PPPs.
em função das características institucionais de Assim, a partir de 2013, recursos do PAC passa-
gestão descentralizada dos serviços públicos ram a ser disponibilizados para empresas priva-
de saneamento no Brasil. No âmbito do PAC 2, das que detinham concessões de saneamento.
uma parte dos recursos foi destinada à elabo- Verificamos, portanto, ao longo dos
ração de planos municipais de saneamento bá- Governos Lula e Dilma, avanços no sentido
sico via seleção pública do PAC. Como aspectos de se construir uma política universalista e
negativos, observa-se que a distribuição dos re- democrática, mas também um movimento
cursos não foi efetivamente debatida no ConCi- através do qual a participação privada e a ló-
dades, desrespeitando-se processos democráti- gica de mercantilização no saneamento saem
cos e de controle social construídos em torno fortalecidos, beneficiados pelo acesso aos re-
da elaboração da política de saneamento. cursos públicos.
Nesse sentido, vale destacar o embate Chama a atenção, nesse sentido, a confi-
ocorrido em 2013, em torno da aprovação da guração da Saneatins, cujo controle, em 2011,
portaria n. 280, de 25 de junho de 2013, pelo passou ao Grupo Odebrecht através da subsi-
Ministério das Cidades, que possibilitou o aces- diária Foz do Brasil. Toda a composição acio-
so de recursos do Orçamento Geral da União nária privada da Saneatins (76,52% do total)
(OGU) pelo setor privado para empreendimen- foi transferida para a recém-criada Foz Cen-
tos de saneamento básico do PAC. O Conselho tro Norte. Com a associação, a Foz do Brasil
Nacional das Cidades, em sua Câmara Técnica agregou um milhão de habitantes, passando

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Ana Lucia Britto, Sonaly Cristina Rezende

a operar em 125 municípios do Tocantins e em outras empresas dos setores da construção civil
cinco do Pará. e de infraestrutura, marcando como posição a
Dados de 2015, do SNIS, mostram que de quererem:
cinco capitais estaduais: Manaus, Palmas,
[...] ser reconhecidos pela sociedade,
Campo Grande, Cuiabá e a cidade do Rio de Ja-
pelos agentes do setor de saneamento
neiro (zona Oeste) apresentam concessão pri- e pelos governos como entidades que
vada de serviços de saneamento. Outras cida- primam pelo padrão e qualidade de sua
des importantes em seus respectivos estados representação institucional, baseadas
também possuem concessão privada de servi- em princípios éticos e idôneos, em prol
do desenvolvimento do setor, promo-
ços de saneamento: Cachoeiro de Itapemirim
vendo as operações privadas que atuem
(ES), Niterói, Campos dos Goytacazes, Nova com eficácia, transparência, equidade e
Friburgo, Petrópolis e Resende, no estado do universalidade.1
Rio, e Sinop (MT). No Maranhão, duas das três
cidades que compõem a ilha de São Luiz, Paço A participação da Abcon-Sinduscon junto
de Lumiar e São José de Ribamar, contam com ao ConCidades e no processo de elaboração do
serviços prestados pela Odebrecht Ambiental Planasb foi uma constante. Em 2007, é criado o
(Brasil, 2016). Instituto Trata Brasil, uma Oscip (Organização
Algumas companhias estaduais con- da Sociedade Civil de Interesse Público) que
solidaram o processo de abertura de capital tem como associado o setor empresarial priva-
iniciados em períodos anteriores: Sabesp, do interessado em questões do saneamento. O
Copasa e Sanepar. Nas duas primeiras, os Trata Brasil vem ganhando grande legitimidade
dois estados detêm a maioria do capital, São junto à mídia e aos governos estaduais, como
Paulo, 50,3% e Minas Gerais 51,13%, sen- entidade produtora de estudos qualificados.
do o restante das ações fragmentado entre Além disso, como assinalam Swyngedouw,
pequenos acionistas nacionais e internacio- Kaika e Castro (2016), o processo não ocorre
nais; a composição acionária atual da Sane- sem resistência: movimentos sociais e sindicais
par é a seguinte: Estado do Paraná, 51,4%; colocaram barreiras a essas mudanças. No Bra-
Dominó Holdings, 12,2%; Copel, 7,6%; Fundo sil destaca-se a importância da articulação dos
garantidor PPP-PR, 7,3%; Andrade Gutierrez movimentos sociais e do movimento munici-
Concessões, 2,1%; City Group ventures, palista mais progressista, representado, sobre-
2,0%; prefeituras municipais, 0,5%, e outros, tudo, pela Assemae, (Associação dos Serviços
16,9%. Além disso, diferentes formas de asso- Municipais de entidade) organizada em Regio-
ciação com o capital privado se concretizam. nais em todo o Brasil, no freio às pressões mer-
O setor privado também se consolida cantilizadoras. Dentro do ConCidades, esses
cada vez mais como ator capaz de represen- dois grupos de atores formam uma coalização
tar seus interesses junto ao Governo Federal, em torno de uma visão de saneamento como
através da Abcon-Sinduscon, que congregam direito social. Tal coalizão foi de fundamental
empresas privadas prestadoras de serviços pú- importância para o apoio ao Decreto de regula-
blicos de água e saneamento básico, bem como mentação da lei n. 11.445/2007.

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A política pública para os serviços urbanos...

A Assembleia da Assemae, realizada isso tem provocado dú vidas quanto à


em junho de 2010, em Uberaba, teve como implementação do plano. (2014)
tema “Avançar no Saneamento é Garantir a
A entidade destaca, ainda, haver in-
Cidadania”. Comemorativa dos seus 25 anos
certeza de alocaç ã o de recursos, pelo fa-
de atuação, contou com a presença do Presi-
to de os cálculos dos valores necessá rios à
dente Lula e do Ministro das Cidades, Márcio
universalização dos serviços terem sido reali-
Fortes. Era a primeira vez que um presidente
zados com base em um cenário muito positi-
da república participava de uma Assembleia
vo (inflaç ão de 3,5% ao ano e taxa de cres-
da Assemae, evento que ocorre anualmente,
cimento anual de 4%, até 2033). Além disso,
indicando um reconhecimento pelo Governo
evidencia a dificuldade de implementaç ã o
Federal da pauta das entidades mais progres-
das macrodiretrizes decorrente da diversidade
sistas do setor.
econômica e social e dos diferentes níveis de
Nessa mesma época, a versão preliminar
do Plansab já estava em fase final de elabora- capacidade administrativa apresentados pelos
ção, porém a consulta pública só ocorreu em mais de 5.500 municípios brasileiros; e critica o
2013. Para os setores progressistas do sanea- número e a complexidade das 138 estratégias
mento, o Plansab representou um avanço pro- que visam a materializar as metas previstas
gressista do setor; ele introduziu uma cultura para 2033. Segundo a Aesbe:
de planejamento, dando maior transparência O conjunto dessas estratégias, de tão
e racionalidade à alocação dos investimentos amplo, demanda por parte do governo
federais, ainda marcada por emendas parla- federal maior ordenamento de suas es-
mentares de caráter clientelista; fortaleceu, truturas administrativas; o que exigirá
através de linhas de financiamento específicas do governo federal uma extraordinária
capacidade de harmonizar a atuação dos
para capacitação e planejamento, os gestores
entes e atores mencionados no documen-
e prestadores públicos, a regulação e o contro- to. (2014, pp. 23-24)
le social, princípios da lei n. 11.445/2007.
Mesmo sendo defendido pelo Governo Para a Abcon/Sindcon, o Plansab é uma
Federal, o Plansab foi alvo de críticas da coa- referência do déficit do setor, e, caso sejam
lizão representada pela Aesbe, Abes e Abcon/ mantidos os atuais níveis de investimento no
Sinduscon. Para a Aesbe, o Plano: saneamento, a meta de universalização esta-
belecida só será atingida em 2055. Assim, para
[...] exacerba na quantidade de estraté-
que a universalização se torne realidade, em 20
gias listadas, as apresenta de forma ge-
neralista e não prioriza diretrizes, o que anos, o Brasil precisa investir ao menos R$ 15
confere ao documento um caráter muito bilhões por ano no saneamento, mais do que
mais intencional que diretivo. Apesar de o o dobro da média investida nos últimos dez
plano inegavelmente inovar ao promover
anos. Na visão da Abcon, atingir esse patamar
no setor a prática do planejamento, ação
de investimento é um desafio que só será pos-
pouco usual na área, ele peca em não es-
tabelecer com clareza o caminho para a sível vencer com a complementaridade entre os
almejada universalização do saneamento, recursos dos setores público e privado. No 26º

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 557-581, maio/ago 2017 565
Ana Lucia Britto, Sonaly Cristina Rezende

Congresso da Abes, realizado em Porto Alegre, falta de pagamento da parcela não subsidiada.
em 2011, Paulo Roberto Oliveira, presidente da Evidentemente esse modelo garante o retorno
Abcon, fez críticas à versão preliminar do plano do investimento à empresa privada.
(anterior à consulta pública de 2012): “somen-
te nas macrodiretrizes do plano é que se faz
menção às contribuições potenciais do privado, O papel cada vez mais
que deveriam ser mais bem exploradas nas es- proeminente do setor
tratégias, nos programas e nas ações”.2
Tanto as argumentações da Aesbe quan-
privado e da lógica mercantil
to as da Abcon são pautadas por uma visão versus o enfraquecimento
empresarial do saneamento, ressaltando aspec- do setor público
tos em que o Plansab poderia contrariar essa
visão. Ambas defendem a promoção de subsí- No período entre 2011 e 2015, houve um efe-
dios à população que realmente precisa e que tivo incremento da população atendida por
se enquadre dentro dos critérios estabelecidos operadores privados, considerando-se as di-
para outros benefícios sociais do governo; e ferentes formas de contratos: concessão total,
a inclusão do subsídio para o saneamento na concessão parcial, PPP, etc. Dados da Abcon
política social do Governo Federal. Os subsídios de 2015 indicam que são 304 municípios aten-
seriam de responsabilidade do Estado, garan- didos pelo segmento privado, distribuídos por
tindo-se, portanto, o pagamento dos usuários diversos estados. A maior parte das conces-
de baixa renda, eliminando-se a inadimplência sões privadas está em cidades que possuem
e também a lógica de subsídios cruzados. Não menos de 50 mil habitantes. Isso se explica pe-
está dito, mas implícito, que os lucros auferidos lo número expressivo de municípios atendidos
na prestação dos serviços não seriam prejudi- pela Saneatins, com menos de 50 mil habitan-
cados por uma possível inadimplência da popu- tes; das 47 concessões à companhia, apenas
lação de baixa renda. Vale lembrar que a Abcon três municípios têm população superior a 50
defende como modelo adequado o de subsí- mil habitantes: Palmas, Araguaína e Gurupi
dios aos usuários de baixa renda da empresa (Abcon e Sindcom, 2015).
chilena Aguas Andinas. É adotada a fórmula se- A participação privada também se faz
gundo a qual o Estado concede subsídios des- presente em projetos nas metrópoles, como
tinados a valores de conta que ultrapassem 2 a a PPP entre a Sabesp e a CabSpat (empresa
3% da renda familiar das famílias de baixa ren- formada pela Galvão Engenharia S.A. e pe-
da. Os critérios para atribuição do subsídio são la Companhia Águas do Brasil), dos Sistemas
o custo da conta e a renda familiar em diferen- AltoTietê e São Lourenço, em São Paulo, para a
tes regiões do país. Esse subsídio cobre apenas ampliação da produção de água; o Cidade Sa-
parte do consumo do usuário, e o Estado paga neada, na Grande Recife (PPP para construção
diretamente ao prestador a parte da conta que de sistemas de coleta e tratamento de esgo-
é subsidiada, sem transferência de dinheiro tos na RM de Recife, entre a Compesa e a Foz
para o beneficiário. Ele é cancelado se houver do Brasil Odebrecht Ambiental); a concessão

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A política pública para os serviços urbanos...

do sistema de coleta e tratamento de esgoto A medida é um projeto do Governo do Estado


nas cidades do Rio de Janeiro (Região Oeste - para ampliar a capacidade de investimento da
AP5) e Maceió; a PPP feita entre a Copasa e estatal, com o intuito de abrir 49% do controle
a Odebrecht Ambiental para o aumento da da empresa para investidores.
produção de água na bacia do rio Manso, que Uma outra mudança diz respeito às no-
atende a RMBH); além das concessões em três vas relações entre empresas privadas e com-
importantes capitais do País (Campo Grande, panhias estaduais. A Sabesp associou-se a
Cuiabá e Manaus) (Abcon Sindcom, 2015). empresas privadas na prestação de serviços em
No mesmo período, outras companhias diferentes municípios (Águas do Brasil – Cab
estaduais deram início a processos de abertura Ambiental em Andradina, SP e Castilho, SP; Foz
de capital. Em 2011, o governo do Estado de do Brasil – Odebrecht Ambiental em Mairin-
Santa Catarina decidiu negociar, na bolsa de que, SP). Todos esses aspectos são indicativos
valores, 49% das ações da Companhia de Água de uma coalizão de interesses entre esses dois
e Saneamento (Casan). As ações da Casan per- grupos de atores (companhias estaduais e em-
tenciam à Companhia de Energia Elétrica de presas privadas).
Santa Catarina (Celesc), SC Parcerias (SCPar) e Vale lembrar que, para representar seus
Companhia de Desenvolvimento de Santa Ca- interesses, a Abcon assumiu a representação do
tarina (Codesc), todas estatais. Para executar segmento empresarial nos Grupos de Trabalho
o plano, o Executivo enviou à Assembleia um que discutem o Plansab e questões de orçamen-
projeto de lei para abertura de capital da esta- to dentro do Conselho Nacional das Cidades.
tal, acompanhado de uma Proposta de Emenda Um outro ponto central é a aprovação
Constitucional (PEC) que desobrigava a realiza- da portaria n. 280, de 25 de junho de 2013, no
ção de prévia consulta popular, mediante alte- âmbito do Ministério das Cidades, que possi-
ração de controle acionário. A Assembleia apro- bilita o acesso de recursos do OGU, pelo setor
vou a proposta para o governo estadual colo- privado, para empreendimentos de saneamen-
car em prática um projeto de atração de um to básico. O Conselho Nacional das Cidades,
sócio estratégico para a Casan e garantir um em sua Câmara Técnica do Setor, resolveu pela
fundo de investimento no setor de saneamento revogação dessa Portaria, o que não ocorreu.
no Estado. Os deputados aprovaram também A Portaria altera o Manual de Instruções pa-
a derrubada de uma emenda constitucional, ra Contratação e Execução dos Programas e
criada em 2010, que previa a realização de um Ações do Ministério das Cidades, inseridos
plebiscito em caso de alienação de ações da no Programa de Aceleração do Crescimento –
companhia. Contudo, até o final de 2015 não PAC, aprovado pela portaria n. 164, de 12 de
houve mudança na estrutura acionária da com- abril de 2013, do Ministério das Cidades. Ela
panhia. O Governo do Estado do Espírito Santo visa a garantir que os recursos oriundos do
também decidiu abrir o capital da Cesan, Com- PAC, destinados a ações na área de saneamen-
panhia Espírito Santense de Saneamento. Os to básico, possam ser aplicados em projetos de
deputados estaduais aprovaram, em dezembro concessões comuns subsidiadas e de parcerias
de 2015, a abertura do capital da Companhia. público-privadas.

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Ana Lucia Britto, Sonaly Cristina Rezende

contrapartida do solicitante. Os empréstimos


A participação privada
têm prazos de 20 anos para as modalidades
no setor de saneamento abastecimento de água, esgotamento sanitário,
básico: quem são os atores manejo de águas pluviais e saneamento inte-
principais e como se dá grado. O FGTS pode financiar até 95% do valor
a participação do capital do investimento, exceto na modalidade abaste-
cimento de água, na qual pode ser financiado
financeiro
até 90% do valor do investimento. As taxas de
juros são de 5% ao ano, na modalidade sanea-
A Abcon estabelece, como meta, a participação mento integrado, e de 6% ao ano, nas demais
privada no setor de saneamento em um pata- modalidades. A contrapartida mínima é de 5%
mar que atinja 30% da população, cerca de 57 do valor do investimento, exceto na modalida-
milhões de brasileiros, até 2017. Verifica-se um de abastecimento de água, na qual a contra-
histórico no qual grandes empresas construto- partida mínima é de 10%. A remuneração do
ras brasileiras investiram pesadamente no se- agente financeiro correspondente ao diferen-
tor de saneamento, através da criação de novas cial de juros nas fases de carência e amortiza-
empresas, como Foz do Brasil (parte do Grupo ção, de 2% ao ano, é feita mensalmente junto
Odebrecht), e a Cab Ambiental (parte do gru- com os juros contratuais, incidentes sobre o
po Queiroz Galvão) apenas para operar nesse saldo devedor da operação de crédito.4
setor. Observando-se as empresas privadas que O Fundo de Investimento do Fundo de
atuam no setor de saneamento básico, verifica- Garantia do Tempo de Serviço – FI-FGTS foi
-se uma mudança em sua composição de capi- criado por autorização da lei n. 11.491, de 20
tal. Até muito recentemente as empresas mais de junho de 2007. Trata-se, portanto, de um
atuantes no setor eram de capital essencial- fundo de investimento que não dispõe de per-
mente nacional, com origem no setor de obras sonalidade jurídica e de estrutura administra-
públicas. Destacam-se, nesse campo, segundo a tiva e operacional próprias, com administração
receita operacional líquida em 2015, as empre- e gestão realizadas pela Caixa. O FI-FGTS tem
sas Foz do Brasil/Odebrecht Ambiental;3 Águas por finalidade investir em ativos de infraes-
do Brasil, Aegea, CAB, GS Inima. No entanto, trutura no Brasil, por meio da ampliação da
recentemente, mudanças vêm sendo notadas, capacidade instalada dos setores de rodovia,
como detalhado no quadro a seguir. ferrovia, hidrovia, porto, saneamento, energia
No que concerne à Odebrecht Ambien- e aeroportos, conforme seu Regulamento. O
tal, os recursos da CEF/FGTS provêm do Pro- Fundo também poderá participar de projetos
grama Saneamento Para Todos que visa a fi- contratados sob a forma de Parcerias Público-
nanciar empreendimentos aos setores público -Privadas (PPP), desde que atendidas as con-
e privado, com recursos oriundos do Fundo dições estabelecidas no Regulamento (Brasil,
de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e da Ministério do Trabalho, 2016).

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A política pública para os serviços urbanos...

Empresa / Contingente
Ano de fundação e Representantes Fontes de
aspectos de Locais de atuação populacional
áreas de atuação formais financiamento
interesse atendido

Atua desde 2009 como Odebrecht Presente em 186 Em 2015, a CEF/FGTS (Programa
acionista da Foz do Ambiental S.A. municípios localizados população atendida Saneamento Para
Brasil S.A.. É prestadora em 12 estados (SP, RJ, atingiu 17 milhões Todos), FI-FGTS,
de serviços de água MG, ES, SC, RS, BA, TO, de pessoas (Abcon, BNDE[2], FNDE,
Odebrecht e esgotos. Em 2013, PA, PE, GO, MA). Sindcom, 2015). Debêntures.
Ambiental após tornar-se sócia
majoritária da empresa,
altera sua razão
social para Odebrecht
Ambiental S.A.

Atua desde 1995, com Developer S.A.: Estado do Rio de Em 2015, a BNDES (Finame e
a associação de quatro Grupo 100% Janeiro: Paraty, população atendida Finem), Itaú, Fecam,
empresas da área de nacional, formado Petrópolis, Araruama, era de aproximada- Eletronuclear e
engenharia e obras pela Carioca Saquarema, Silva mente 5.940.000 recursos próprios.
públicas. É líder no setor Engenharia, Queiroz Jardim, Campos dos habitantes (relatório
Águas do de concessões privadas Galvão Saneamento, Goytacazes, Niterói, da empresa)
Brasil de serviços de água, New Water e Resende e Nova
coleta e tratamento de Construtora Cowan Friburgo; possui o co-
esgotos. S.A. -controle da Foz Águas
5, que opera na Zona
Oeste da cidade do Rio
de Janeiro.
Atua desde 2005, ano Grupo Equivap: Atua em 41 municípios 5 milhões de Banco Mundial
da aquisição da Águas majoritariamente situados em oito pessoas atendidas / International
Guariroba, em Campo representado por estados: RO, PA, MA, (site da empresa). Finance Corporation-
Grande -MS. É a terceira uma corporação MT, MS, SP, RJ, SC. IFC; e o BNDES.
maior empresa privada familiar; os
Aegea
que opera serviços de minoritários são
água e esgotos no Brasil. fundos vinculados
ao Governo de
Cingapura e ao
Banco Mundial.

Atua desde 2006, O Grupo Galvão Está presente em cinco Atende, diretamente BNDES
quando foi criada detém o controle estados brasileiros: São ou indiretamente,
pelo Grupo Galvão acionário da Paulo, Mato Grosso, cerca de 6,6 milhões
CAB Engenharia, para ser empresa; e o BNDES Paraná, Santa Catarina de pessoas
Ambiental gestora de concessões Participações S.A. e Alagoas, por meio de
e PPPs em serviços detém 33,42% do 18 operações.
públicos de água e capital.
esgoto.

Atua desde 1995 nas Grupo de capital Sul Estado de São Paulo:
concessões de Limeira coreano que possui Campos do Jordão,
e Ribeirão Preto. É 76 filiais nacionais, Mogi Mirim, Ribeirão
especializada em das quais oito são Preto, Paraibuna, Santa
GS Inima atividades ambientais, de capital aberto Rita do Passa Quatro
associadas ao (incluindo a GS E&C) e Araçatuba; e em
tratamento de água. e uma rede global Maceió (AL). A empresa
de 68 subsidiárias atua em uma PPP com
no exterior. a Sabesp.

Fonte: adaptado de Britto(2014).

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Ana Lucia Britto, Sonaly Cristina Rezende

Segundo o relatório de 2015, contava com investimentos aproximados de


R$1,8 bilhão em empresas do setor de sanea-
essa utilização de parte dos recursos do
mento, o que correspondia a 2,5% de seu valor.
FGTS no mercado de capitais era uma
demanda de vários agentes, inclusive O Caixa FIP Saneamento já realizou o
organismos internacionais. Restrições re- aporte de R$90,6 milhões, em 2011, na Foz
gulamentares e ausência de projetos que Centro Norte Participações S.A., que posterior-
aliassem a manutenção do papel social mente alterou sua razão social para Odebrecht
do FGTS com o seu direcionamento ao
Ambiental – Centro Norte Participações S.A.
mercado de capitais só foram superadas
com o início das atividades do FI-FGTS, (OACNP), resultando na aquisição de parti-
que criou condições de aproveitamento cipação acionaria equivalente a 49% de seu
das oportunidades de investimento e se capital social. Essa companhia é controladora
tornou relevante para o desenvolvimento direta da Companhia de Saneamento do To-
do paí s. (Brasil, Ministério do Trabalho,
cantins (Saneais) (Brasil, Ministério do Traba-
2016, p. 18)
lho, 2016).
Destaca-se que o FI-FGTS, enquanto fun- A Odebrecht Ambiental recebeu também
do de natureza privada atuando como agente recursos do BNDES para investimentos nos sis-
investidor, está exposto a riscos de mercado, temas de Cachoeiro de Itapemirim, Blumenau,
de crédito e de liquidez, entre outros, confor- Limeira, Rio das Ostras e Rio Claro. Também
me se lê em seu Regulamento. Na categoria foram alocados recursos do BNDES na PPP
ativos financeiros e/ou participações, o FI-FGTS com a Embasa para o Sistema de Disposição
pode realizar investimentos em diferentes Oceânica do Jaguaribe em Salvador. Ela tam-
modalidades: a) instrumentos de participação bém recebeu recursos do Fundo de Desenvolvi-
societária; b) debêntures, notas promissórias mento do Nordeste (FNDE), regulamentado em
e outros instrumentos de dívida corporativa; novembro de 2012.
c) cotas de fundo de investimento imobiliário; O FNDE destina-se a empreendimentos
d) cotas de fundo de investimento em direitos de interesse de pessoas jurídicas que venham
creditórios; e) cotas de fundo de investimento a ser implantados, ampliados, moderniza-
em participações; f) certificados de recebíveis dos ou diversificados na área de atuação da
imobiliários; g) contratos derivativos; e h) títu- Sudene, sendo a participação de recursos na
los públicos federais (Brasil, Ministério do Tra- área de infraestrutura, saneamento e abaste-
balho, 2016). cimento de agua, áreas prioritárias, até 80%
O Caixa Fundo de Investimento Participa- do investimento total do projeto e, nas demais
ções Saneamento foi constituído em 6 de de- áreas, 70%. O Banco do Nordeste é o opera-
zembro de 2010 sob forma de condomínio fe- dor do Fundo.
chado, destinado exclusivamente a investidores Os recursos do FNDE, no valor R$400
qualificados. O principal objetivo do Fundo é a milhões, foram disponibilizados também pa-
aquisição de participação acionária em compa- ra investimentos da Odebrecht Ambiental em
nhias de saneamento e em projetos desenvol- esgotamento na Região Metropolitana de
vidos do setor. Em dezembro de 2015, o Fundo Recife, na PPP assinada com a Compesa em

570 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 557-581, maio/ago 2017
A política pública para os serviços urbanos...

2013, que abarca 15 municípios (14 municí- município, do Fundo Estadual de Conservação
pios da RM de Recife e o município de Goia- Ambiental e Desenvolvimento Urbano (Fecam)
na, fora da RM) e 3,7 milhões de habitantes. e da Eletronuclear.
Vale lembrar que, para realizar os investimen- Na parceria com a Odebrecht Ambiental,
tos previstos, a Odebrecht Ambiental também a Águas do Brasil (FOZ Águas 5) assumiu os
obteve um empréstimo da CAIXA-FGTS no serviços de coleta e tratamento de esgoto na
valor de 700 milhões. região Oeste do Rio de Janeiro (AP5), a segun-
Em função da Operação Lava Jato, da ne- da mais populosa AP da cidade (1,7 milhão de
cessidade de arrecadar R$12 bilhões, até mea- habitantes). O grupo recebeu o primeiro finan-
dos de 2017, e das negociações de dívidas de ciamento de longo prazo para a concessão. A
empresas como a Óleo e Gás (cerca de US$5 Caixa Econômica Federal destinou, à empresa,
bilhões), a Odebrecht confirmou as mudanças R$640 milhões por meio do programa Sanea-
na sua estrutura de negócios que incluem a mento para Todos, via recursos do FGTS, para
Odebrecht Ambiental. A gestora canadense investimentos em um período de quatro anos
Brookfield comprou 70% da Odebrecht Am- (2013-2016).
biental, por US$768 milhões. Esta é a primeira O grupo japonês Itochu tomou partici-
aquisição da Brookfield, em parceria com fun- pação no capital da concessionária Águas do
dos institucionais no segmento água e esgoto, Brasil no fim de 2015, adquirindo uma parte
e se fez através da Brookfield Brazil Capital da Queiroz Galvão, ingressando no mercado
Partners LLC e do Fundo de Investimentos BR de saneamento no Brasil e se tornando um
Ambiental, ambos administrados pela cana- dos acionistas da empresa, que faturou R$1,4
dense Brookfield Asset Management. bilhão em 2015. Vale lembrar que o Grupo faz
A Brookfield é um dos maiores grupos parte do consórcio asiático formado pela Itochu
de investimento do mundo, atuando nas áreas Corporation, JFE Steel Corporation, Posco, Kobe
imobiliária, de infraestrutura, energia renová- Steel, Nisshin Steel e China Steel Corp, tendo
vel, construção, agropecuária e florestal; está também adquirido 12,48% do capital social da
presente em 30 países com mais de US$250 bi- Congonhas Minérios, controladora da Compa-
lhões em ativos sob gestão. O fechamento de- nhia Siderúrgica Nacional (CNS), por meio de
finitivo da transação, previsto para o primeiro emissão primária de ações.
trimestre de 2017, está sujeito a uma série de A Aegea, por sua vez, estruturou um mo-
condições que são habituais em transações en- delo de gestão através do qual procura atuar
volvendo empresas prestadoras de serviço pú- como concessionária em processos nos quais
blico, como a obtenção de anuências do poder ocorre a municipalização dos serviços. Sua es-
público e dos financiadores e a aprovação das tratégia é aposta na pulverização do mercado
5
agência regulatórias. e no estabelecimento de longos prazos de con-
O grupo Águas do Brasil, na PPP realiza- cessão. Desde 2010, a companhia mantém um
da em 2014 para os serviços de abastecimento sistema de mapeamento de oportunidades nos
de água e esgotamento, na área urbana de Pa- municípios do País que se estendia até 2017
raty, contou com contraprestações públicas do (Britto, 2014, p. 161).

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 557-581, maio/ago 2017 571
Ana Lucia Britto, Sonaly Cristina Rezende

Já a Companhia de Águas do Brasil (CAB dentre elas a suspensão da intervenção decre-


ambiental) vem diversificando sua atuação por tada pela prefeitura de Cuiabá na CAB Cuiabá,
meio de contratos de concessão e de PPP com uma das principais concessionárias da empre-
municípios, estados e companhias públicas. Em sa. Além disso, ficou acertado que o BNDES
2008, foi assinado o primeiro contrato de PPP vai liberar os créditos já pré-aprovados com a
(CAB spat) com a Sabesp e ocorreu a entrada CAB.6
da empresa no estado do Paraná (Águas do A GS Inima Brasil é o quinto maior con-
Paraná). Atualmente, o Grupo está presente glomerado do País em termos de receita to-
em cinco estados brasileiros (São Paulo, Mato tal por grupo. Possui 76 filiais nacionais, das
Grosso, Paraná, Santa Catarina e Alagoas), por quais oito são de capital aberto (incluindo a
meio de 18 operações, que, somadas, atendem, GS E&C) e uma rede global de 68 subsidiárias
diretamente ou indiretamente, a cerca de 6,6 no exterior. A subsidiária no Brasil é especia-
milhões de pessoas. lizada em atividades ambientais, associadas
Contudo, o Grupo Galvão, que contro- ao tratamento de água. No Brasil ela atua
la suas ações e está entre as investigadas da por meio de empresas concessionárias (SPEs)
Operação Lava Jato, vem avaliando a venda controladas. Busca ampliar sua área de atua-
da concessionária de água e esgotos de Cuia- ção de forma a implantar novas concessões e
bá. Os credores da CAB pressionarem a Galvão PPPs, isoladamente ou em consórcio com ou-
Participações (Galpar) para encontrar uma so- tras empresas.7
lução de mercado para o ativo, que vinha en- Em 2016, o Governo Federal lançou o
frentando dificuldades para cumprir os inves- Programa de Parcerias de Investimentos (PPI),
timentos previstos nos seus contratos de con- coordenado pelo BNDES, com objetivo de de-
cessão. Desde o ano passado a Galpar tenta, senvolver projetos de parcerias com iniciativa
sem sucesso, vender sua participação na CAB. privada para a realização de investimentos em
Em novembro de 2016, a CAB anunciou que as abastecimento de água e esgotamento sanitá-
ações da Galpar, que está em recuperação judi- rio, buscando a universalização desses serviços
cial, passarão a ser de um fundo de investimen- nos estados. Em março de 2017, o BNDES divul-
tos em participação (FIP) da RK Partners. A RK gou o resultado do edital que tinha por objeto
Partners é um advisor independente, especiali- a contratações de serviços técnicos especia-
zado em reorganizações empresariais, atuando lizados para processos de modelagem da pri-
em projetos de reestruturação financeira e ope- vatização das seguintes companhias estaduais
racional em setores variados, estando à frente de saneamento: Companhia Pernambucana de
de alguns dos principais e maiores processos Saneamento – Compesa, Companhia de Sa-
de reestruturação empresarial realizados no neamento do Pará – Cosanpa, Companhia de
Brasil. A empresa do grupo Galvão passa a ser Saneamento Ambiental do Maranhão – Caema,
então cotista desse fundo e acionista indireto Companhia de Saneamento do Amapá – Caesa,
da CAB – sem perder o investimento feito na Companhia de Saneamento de Sergipe – Deso
empresa. Para o fechamento da operação acon- e Companhia de Abastecimento de Águas e Sa-
tecer, existem algumas condições precedentes, neamento do Estado de Alagoas – Casal.

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A política pública para os serviços urbanos...

Encontrava-se em fase de processo li- a França, com 94 casos, e os Estados Unidos,


citatório a contratação dos mesmos serviços com 58 casos, representam a grande maioria
anteriores, para as seguintes companhias esta- dos casos notificados em países de alta renda.
duais: Companhia de Água e Esgotos da Paraí- Além disso, a população afetada pelos proces-
ba – Cagepa, Companhia de Águas e Esgotos sos de remunicipalização é maior nos países de
do Rio Grande do Norte – Caern, Companhia renda baixa ou média, quando comparada aos
de Água e Esgoto do Ceará – Cagece, Departa- países de alta renda: 81 milhões de pessoas
mento Estadual de Pavimentação e Saneamen- contra pouco menos de 25 milhões (Lobina,
to – Depasa do Acre e Companhia Catarinense 2015, p. 16).
de Águas e Saneamento – Casan. Esse processo confirma a afirmação de
Definida a modelagem, de comum acor- Swyngedouw, Kaika e Castro (2016) de que o
do com cada Estado, o BNDES anunciou que processo de mercantilização não ocorre sem
continuará apoiando o processo, desde a pros- resistência; em regimes democráticos, movi-
pecção de investidores até a realização do mentos sociais e sindicais colocaram barrei-
leilão de concessão ou de outra forma de par- ras a essas mudanças. Além disso, podemos
ceria com a iniciativa privada. A política de do afirmar que mesmo onde a mobilização social
BNDES, para o setor de financiamento, permite é mais fraca, instâncias do legislativo (tribu-
financiar até 80% do projeto com taxa de juros nais) buscam intervir para garantirem o cará-
de longo prazo (TJLP) e prazos de até 20 anos. ter público do saneamento e o direito social
São, evidentemente, condições que buscam quando ameaçados.
atrair o investimento privado. Nos Estados Unidos, apesar dos esforços
das empresas privadas para entrarem no setor,
os serviços de abastecimento de água e esgo-
Um contraponto: tamento sanitário que atendem às cidades são
essencialmente públicos, sendo somente 6%
a remunicipalização dos municípios americanos os que delegam a
dos serviços e a resistência prestação de serviços a empresas privadas com
à mercantilização fins lucrativos. Desde 2000, a remunicipaliza-
ção tirou das mãos das grandes empresas de
Se, no Brasil, existe uma clara tendência de pri- água 169 contratos. É um número significativo
vatização dos serviços, em diferentes partes do em relação a um contrato de gestão privada
mundo uma onda de reestatização no setor de de água, se for levado em conta que as quatro
saneamento vem se afirmando. Em 2000 foram mais importantes empresas privadas de água
duas remunicipalizações; em março de 2015 detêm cerca de 70% do mercado americano e
foram 235, em 37 diferentes países, a maioria tinham, em 2013, contratos com 760 municí-
destes, de alta renda, nos quais ocorreram 184 pios (Grant, 2015, p. 39). Mesmo no contexto
casos de remunicipalização ao longo dos últi- de fortes pressões no sentido da privatização,
mos 15 anos, em comparação com 51 casos em cidades como Nova York, após um debate po-
países com renda baixa ou média. Dois países, lítico aprofundado, têm optado por manter o

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Ana Lucia Britto, Sonaly Cristina Rezende

controle público sobre seus sistemas de água. o governo vendeu 49,9% das ações da com-
Gandy (2002) analisa esse processo durante panhia e 51,1% permaneceram nas mãos do
prefeitura do republicano Rudolf Giulianni, em setor público. Os parceiros privados eram as
uma gestão marcada pela austeridade fiscal e empresas internacionais Veolia e RWE, cada
fortemente apoiada no setor privado. Interes- um deles tendo adquirido 24,95% das ações.
sante notar que a proposta de Giulianni, de Formalmente, a cidade de Berlim manteve o
venda do New York City Water Board, visava à controle da gestão; as decisões centrais te-
obtenção de benefícios: pagar antigas dívidas riam de ser tomadas em uma comissão mista,
e habilitar o município a ultrapassar os valores na qual o governo tinha a maioria. Mas, os
estabelecidos para empréstimos. Um dos oposi- parceiros privados eram as forças dominantes
8
tores da venda, o City Controler Alan Harversi, (Herzberg, 2010, p. 204). Usando dos meca-
considerou a proposta um truque fiscal com nismos disponíveis de participação, a Berliner
efeitos nocivos de longo termo sobre a cidade Wassertisch (“Fórum da Água Berlim"), rede
(ibid., p. 58). O estudo de Grant (2015) elenca de cidadãos preocupados e comprometidos
as razões da opção por serviços públicos muni- com os serviços públicos, lançou o referendo
cipais nos Estados Unidos: as reduções de des- para a transparência dos contratos sobre a pri-
pesas, já que a remunicipalização permitiu, em vatização da água. Em 13 de fevereiro de 2011,
média, uma redução de custos de 21%; a busca os berlinenses decidiram, por referendo, que
de melhoria de desempenho, devido à falta de os contratos de privatização, até então man-
capacidade de resposta dos serviços privati- tidos em segredo, deveriam ser publicados.
zados e do nível insuficiente de manutenção; Em 2012, a Agência Federal da Concorrência
o controle público torna possível uma ação Alemã condenou a empresa de água de Berlim
coordenada entre os setores da gestão urbana, a reduzir os seus preços em 18%, consideran-
permitindo uma melhor gestão dos recursos; do abusivo o aumento de tarifas. Uma análise
em muitas cidades, os setores de manutenção comparativa feita pela agência mostrou que
viária e de saneamento buscam coincidir as as tarifas eram significativamente superiores
substituições de canalização com obras viárias às de outras empresas comparáveis (todas em
para evitar a duplicidade de trabalho. propriedade pública). Em 2012, Berlin comprou
Na Alemanha, em 2007, os operadores as ações da RWE por 654 milhões de euros e,
públicos de água fundaram a Aliança das As- em 2013, as ações da Veolia, por 590 milhões
sociações Públicas da Água, que buscava lu- de euros. Para fazer isso, a cidade de Berlim te-
tar contra a privatização e defender a gestão ve de contrair um empréstimo que deve agora
pública. Desde 2012, pelo menos seis cidades ser reembolsado através de contas de água, ou
alemãs decidiram remunicipalizar seu serviço seja, pelos usuários, durante um período de 30
de água, sendo o caso mais emblemático o anos. Apesar disso, como mostra Hecht, des-
de Berlim. No final da década de 1990, vários de a remunicipalização, os investimentos em
de seus serviços públicos passaram para a es- infraestrutura aumentaram, e o preço da par-
fera privada, incluindo a privatização parcial te da tarifa relativa ao esgotamento diminuiu
da prestação de serviços de água: em 1998, (Hecht, 2015).

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A política pública para os serviços urbanos...

Na França existe um histórico de delega- e médios municípios, sendo que essa perda de
ção dos serviços a empresas privadas, sendo capacidade não pode ser totalmente compen-
as duas principais empresas, Veolia e Suez, sada pelo uso de auditores externos. Houve um
criadas no século XIX. Como assinala Barra- movimento de remunicipalização que envolveu
qué, dos anos 1970 a 1980, muitos municípios cidades importantes, como Grenoble, Paris e
optaram por delegar a gestão dos serviços de Marselha. Em relatório recente sobre a situa-
saneamento a empresas privadas, essencial- ção dos serviços de abastecimento de água
mente porque não podiam arcar como os in- e esgotamento sanitário no país, a Cour des
vestimentos necessários à modernização dos Comptes, indica que uma tendência à remuni-
sistemas (Barraqué, 2015). Esse período foi cipalização pode se consolidar em função de
marcado por uma forte concentração da de- uma nova lei de 2015, que se refere à organiza-
legação dos serviços de água e saneamento ção institucional, reforçando a cooperação in-
a três grandes grupos envolvidos em outras termunicipal e transferindo as obrigações com
áreas e também, muitas vezes, em atividades relação ao abastecimento de água e ao esgota-
de construção: Veolia (antiga Générale des mento sanitário às associações intermunicipais
Eaux, Vivendi), Suez Environnement (antiga (communautés de communes e a communes
Lyonnaise des Eaux) e Saur. Aproximadamente d’agglomération). Com isso, municípios que
75% dos serviços municipais de água são de- não tinham escala nem meios para garantir
legados a empresas privadas e 35% dos servi- uma gestão de serviços eficiente podem optar
ços de esgotamento sanitário. Esse aumento pela gestão pública consorciada dos serviços.
da delegação dos serviços foi reforçado tanto O caso mais emblemático de remunici-
pela falta de exigência para a concorrência, palização na França é o de Paris, onde o pro-
como pela prática de "taxas de entrada". Es- cesso foi iniciado na administração do prefeito
ta é denominada no Brasil outorga onerosa, eleito pela primeira vez em 2001, Bertrand
quando há um pagamento de um valor aos Delanoé, da coalização socialista. Uma série
municípios permitindo que esses recursos se- de auditorias e revisões dos contratos com as
jam aplicados em obras ou serviços externos à empresas Veolia e Suez, que dividiam a pres-
água e ao esgotamento. A delegação de servi- tação de serviços no município, teve início.
ços foi também fonte de corrupção, tal como Reeleito em 2008, o prefeito, com apoio da
pagamentos irregulares a prefeitos para obter Câmara Municipal, decidiu remunicipalizar os
a concessão (Lime, 2015). serviços. A efetivação do processo ocorreu em
A partir do final dos anos 1990, vários 2010, com a criação da empresa pública Eaux
fatores começaram a colocar em questão a de Paris.
renovação dos contratos: falta de transparên- Em entrevista, Anne Le Strat, que condu-
cia, perda de capacidade técnica e de conhe- ziu o processo de remunicipalização e foi pre-
cimento para monitorar o desenvolvimento sidente da Eaux de Paris, entre 2010 e 2014,
de contrato, sobretudo no caso dos pequenos afirma que:

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Ana Lucia Britto, Sonaly Cristina Rezende

Eau de Paris goza de boa reputação, e abastecimento de água fosse assumido pela
com razão. Ele funciona, nós abaixamos o empresa pública (Zamzami e Ardhianie, 2015).
preço da água, mantendo um ambicioso
programa de investimentos a longo prazo
e um modelo de governança que é mui-
to inovador em muitas áreas. Eu mesmo Considerações finais
constatei que algumas das nossas inova-
ções são assumidas por grupos grandes
privados. (Le Strat, 2015) Buscou-se, neste texto, traçar um perfil das
pressões mercantilizadoras sobre os serviços
Observando outros casos, em países do urbanos de abastecimento de água e esgo-
Sul, destacamos a cidade de Jakarta, na In- tamento sanitário no Brasil, recuperando as
donésia. Desde 1997, quando a ditadura de políticas públicas implementadas entre 2007
Suharto ainda parecia sólida, o setor privado de 2014, contrapondo-os às políticas de resis-
atua na prestação de serviços na cidade. Foi tência do serviço de saneamento como serviço
uma concessão de 25 anos, em que se firmou público, identificadas outros países.
a gestão de distribuição de água na capital, a Um primeiro aspecto a ser destacado
Thames Water (Grã-Bretanha) e Suez (França); é a política ambígua do Governo Federal nas
cada uma operava os serviços em uma metade gestões do Partido dos Trabalhadores entre
da área metropolitana: a parte Oeste é a área mercantilização e direito. Podemos afirmar que
da PT PAM Lyonnaise Jaya (Palyja, subsidiária o período em questão avançou em um marco
da Suez 51% e 49% da infraestrutura da em- regulatório (lei. 11.455/2007 e seu decreto de
presa indonésia Astratel Nusantara) e a parte regulamentação e Plansab) que fortalece uma
Leste do PT Aetra Air Jacarta (Aetra, subsidiária concepção de saneamento como direito social.
da empresa de Singapura Acuatico desde 2007, Contudo, esse marco não foi suficientemente
a empresa indonésia PT Alberta Utilities deten- forte para frear os avanços de uma lógica de
do 5% das ações). saneamento como mercadoria.
A privatização da água em Jacarta foi No discurso existe uma subordinação do
malsucedida. A taxa de cobertura na capital da acesso a recursos federais, a uma lógica de pla-
Indonésia continuou baixa, apenas 59%; as re- nejamento e controle social e fortalecimento
des estavam em mau estado, com uma taxa de do setor público. No entanto, isso, de fato, não
perdas de até 44% – uma situação denuncia- ocorreu. A distribuição de recursos para obras
da repetidamente pelo então governador. Em do PAC 1 e PAC 2 exemplifica esse aspecto: ela
24 de março de 2015, em decorrência de uma não foi subordinada aos planos municipais; as
ação coletiva dos cidadãos, o Tribunal Central prioridades de investimentos não foram deba-
do Distrito de Jacarta cancelou os contratos tidas no ConCidades e os recursos do FGTS e
de privatização, sendo alegada a incapacida- do BNDES foram amplamente disponibilizados
de de gestão privada para garantir o direito para prestadores privados, fortalecendo esse
humano à água aos habitantes da cidade. O setor. Mesmo nos casos onde houve concessão
tribunal também ordenou que o serviço de onerosa, como o da AP5 do Rio de Janeiro, em

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A política pública para os serviços urbanos...

que o grupo Foz Aguas 5 transfere à Prefeitura setor financeiro estão entrando, via compra
uma parte da receita auferida, cujo destino não de empresas ou participação acionária, nas
é transparente, a empresa recebeu um volumo- empresas de saneamento. O grupo Brookfield
so empréstimo do FGTS. Considerando os múl- adquiriu a Odebretch Ambiental; a Aegea, em-
tiplos interesses do grupo Odebrecht no muni- presa privada que tem atuação em 47 municí-
cípio e seu envolvimento em megaprojetos de pios em diferentes estados do País, tem na sua
reestruturação e renovação urbanas, podemos composição acionária a International Finance
associar essa iniciativa do grupo, apoiada pela Corporation (IFC), braço de crédito do Banco
prefeitura e referendada pelos gestores fede- Mundial, o Fundo Soberano de Cingapura (GIC)
rais da política de saneamento, como inserida e o Fundo Global de Infraestrutura (GIF), geren-
na prática de urbanismo neoliberal. ciado pelo IFC. Com o Programa de Parcerias
Observa-se, ainda, na discrepância entre de Investimentos (PPI) do governo Temer, já
o discurso e a prática a aprovação do Plan- iniciado pelo BNDES, a participação de grupos
sab em 2013, junto com a aprovação da libe- privados com essas características na prestação
ração do acesso a recursos do PAC pelo setor de um serviço que é um componente essencial
privado; a constituição do FI-FGTS, Fundo de do direito à cidade tende a se ampliar. Já foi
Investimento do Fundo de Garantia do Tempo dado início pelo BNDES ao processo de mode-
de Serviço (2007) e da Caixa Fundo de Investi- lagem da privatização de um número impor-
mento Participações Saneamento (2010), assim tante de companhias estaduais de saneamento,
como a atuação do BNDES através da alocação sobretudo nas regiões norte e nordeste. Nessas
de investimentos e da ação do BNDESPar. regiões a capacidade de pagamento de tarifas
Considerando que a governança dos de uma parte significativa dos usuários é baixa.
serviços de água envolve vários atores e níveis Não estão claros os mecanismos que farão com
de decisão e que, embora seja materializada que a gestão privada atenda a esses usuários
através dos governos, verifica-se que os ato- de baixa renda.
res que mais se fortaleceram no período fo- Se o problema é garantir recursos para o
ram os que se orientam pela mercantilização setor e uma gestão eficiente dos serviços de sa-
do saneamento: Cesbs de capital aberto e o neamento, essa política merece ser questiona-
setor privado, que através de seus órgãos de da. Até hoje os recursos para os investimentos
representação e da pressão organizada junto privados no setor não vieram dos recursos pró-
ao governo e junto à opinião pública através prios das empresas, mas, majoritariamente, de
do Trata Brasil, conseguiu fazer prevalecer fundos públicos, como o FGTS e o FAT, oriundos
seus interesses. da contribuição dos trabalhadores, disponibili-
O fortalecimento do setor privado e da zados para o setor privado com taxas de juros
lógica de financeirização aparece nas mudan- bastante atraentes. O programa anunciado pe-
ças na composição de capital das empresas lo BNDES parece reforçar essa tendência. Por
privadas do setor de saneamento. Grandes outro lado, as experiências internacionais aqui
grupos internacionais que têm origem no examinadas mostram que existe uma contra

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Ana Lucia Britto, Sonaly Cristina Rezende

tendência: o retorno ao serviço público mu- universalistas e não mercantis, pode ser muito
nicipal. As experiências de remunicipalização eficiente, tanto em países do norte, como em
revelam que a gestão pública, com objetivos países do sul.

Ana Lucia Britto


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo. Rio de Janeiro,
RJ/Brasil.
anabrittoster@gmail.com

Sonaly Cristina Rezende


Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Saneamento, Meio Ambiente
e Recursos Hídricos, Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental. Belo Horizonte, MG/Brasil.
srezende@desa.ufmg.br

Notas
(1) h p://abconsindcon.com.br/sobre-a-abcon/. Acesso em: 28 maio 2017.

(2) http://www.maxpress.com.br/Conteudo/1,446265,Abcon_avalia_pontos_criticos_do_
PlanSab,446265,7.htm. Acesso em: 28 maio 2017.

(3) Durante o primeiro semestre de 2014, a Foz do Brasil passou a se chamar Odebrecht Ambiental, o
que não implicou mudança no seu corpo de acionistas, direção, escopo de atuação ou contrato
com os municípios.

(4) http://www1.caixa.gov.br/gov/gov_social/municipal/assistencia_tecnica/produtos/
financiamento/saneamento_para_todos/saiba_mais.asp. Acesso em: 28 maio 2017.

(5) http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,brookfield-compra-70-da-odebrecht-
ambiental,10000084899; http://www.valor.com.br/empresas/4841138/odebrecht-enxuga-
por olio-de-negocios-e-define-novos-lideres; h p://www.valor.com.br/empresas/4824924/
estrangeiro-cresce-em-saneamento. Acesso em: 28 maio 2017.

(6) http://www.valor.com.br/empresas/4779833/cab-ambiental-reestrutura-sua-divida-e-rk-
partners-entra-no-capital. Acesso em: 28 maio 2017.

(7) h p://www.gsinimabrasil.com.br/pt-br/pagina/gs-inima-brasil/. Acesso em: 28 maio 2017.

(8) O City Controler é o equivalente do secretário de finanças da cidade. Com o prefeito e o


procurador, ele é escolhido pelo voto popular a cada quatro anos.

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A política pública para os serviços urbanos...

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Texto recebido em 10/fev/2017


Texto aprovado em 17/abr/2017

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 557-581, maio/ago 2017 581
Urban politics in Brazil and the US:
state, economic actors and local
development scenarios*
Política urbana no Brasil e Estados Unidos: Estado,
atores econômicos e cenários de desenvolvimento local
Nelson Rojas de Carvalho

Resumo
Abstract O presente artigo explora modalidades diversas de
This paper analyses different patterns of articulação entre mercado e estado em unidades
articulation between market and state in subnacionais no Brasil e nos EUA e infere daí os
subnational units in Brazil and the US, and cenários mais ou menos favoráveis a políticas de
forecasts scenarios that are more or less prone desenvolvimento em âmbito local. Partindo de en-
to enhancing development policies locally. Based foque centrado no Estado, o artigo chama a aten-
on a state-centered perspective, the paper argues ção para os desincentivos à organização e ao en-
that institutional grammars such as clientelism gajamento cívico dos atores econômicos no Brasil,
and corporatism produce disincentives to the no plano subnacional, como efeito de determina-
organization and civil engagement of economic das gramáticas institucionais, como o clientelismo
actors in Brazil, in the subnational level. The e o corporativismo. Chama a atenção para o fato
paper stresses that the organizational atrophy of de a atrofia organizacional dos atores econômicos
economic actors in Brazil, at the local level, limits no Brasil, em âmbito local, limitar a aplicação das
the use of urban theories inspired by the North teorias urbanas inspiradas pela economia política
American political economy, such as urban regime norte-americana, como a teoria dos regimes urba-
and growth machine theories. nos e a teoria das máquinas de crescimento.
Keywords: state; economy; local development; Palavras-chave: Estado; economia; desenvolvi-
urban theory. mento local; teoria urbana.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 583-608, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3910
Nelson Rojas de Carvalho

science and urban studies departments,


Introduction
unshackling these fields from their outdated
Marxist-structuralist approaches.
In the history of studies in the US on urban Similarly to the path followed in Europe,
politics and community power, scholars from a the attention given by Latin America to
wide variety of theoretical backgrounds have more recent US theories in the field of urban
assigned a central role to economic actors politics has much to do with transformations
within different local hierarchies and ruling to the state brought about by globalization,
coalitions. From the earliest elitist/pluralist with profound changes being observed in
debates (Dahl, 1961; Hunter, 1953; Polsby, the relation of mutuality between cities and
1963) on the nature of power within the regions (Taylor, 1995) on one hand, and the
community to the later and more influential state on a national level on the other. State
research path framed by a political economy rescaling (Brenner, 2004) in Latin America
perspective (Molotoch, 1976; Peterson, and elsewhere generally represents a process
1981; Stone, 1989), the role of business has whereby subnational units such as cities and
been not just under permanent scrutiny, regions have been endowed with increasing
but also acknowledged to play a major, if structural significance and autonomy within
not determining, part in cities’ and regions’ each territorial state’s administrative hierarchy.
fortunes. It would be no exaggeration to say Globalization processes have sparked a
that elitist, neo-pluralist and political economy broad range of transformations in the structure
theories on cities and regions have been built of the Fordist-Keynesian state that has been in
on two related assumptions: a) business has operation since the 1930s (Brenner, 2004), and
been playing a major role in the fates of US such changes have reached Latin American’s
cities; b) a central issue of the research agenda regions and nation states with varying intensity.
is to define and measure the nature and extent State rescaling processes that have increased
of the power of business within communities. cities’ and regions’ autonomy across the
Whereas the first generation of research continent have varied significantly as a result
into community power was confined within of their different institutional backgrounds
the borders of the US, studies inspired by the and due to the specific relations of mutuality
political economy perspective – particularly between cities and nation states.
urban regime and growth machine theories Regarding the impact of the
– have successfully managed to cross the globalization process on the structure of
Atlantic, setting the framework for what can be the Brazilian state, it is worth emphasizing
regarded as the first wave of European studies that global pressures toward state rescaling
on local urban power and development. It is have not only been aligned with ongoing
worth noting that the successful, though not internal state decentralization processes in
always smooth, transfer of US urban theories the country, but have also reinforced them.1
outside the country’s borders has extended, The democratization and neoliberal reforms
in recent years, into Latin American political that were set in motion in Brazil in the 1980s

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Urban politics in Brazil and the US

led to the withdrawal of state intervention in local urban development in the same way as
important economic sectors and in delivering this can be observed in US cities. If this is true,
significant welfare provisions on one hand, the use of urban regime and growth machine
and to a decentralization process that has theories will require essential modifications
empowered subnational units on the other, when applied to the Brazilian context.
particularly municipalities, in terms of both In this paper, both neo-institutionalist
fiscal resources and new constitutional and state-centered approaches are used
attributions. In summary, as a result of the joint to explain the underdevelopment of the
effect of global and internal processes, cities organization of business in Brazil and the near
and city regions in Brazil have been gaining absence of civic participation by economic
ground as autonomous actors, becoming the actors at a local level. It is argued that the
stage for new capital flows. two main institutional frameworks that have
It is within this context of profound underpinned local governments along the
change concerning the relative position of cities country’s history – state corporatism and
and the state at a national level in Brazil, with clientelism/patrimonialism – are at the root
the former gaining increasing autonomy, that a of strong incentives encouraging economic
shift in the academic agenda in this country has actors not to organize or act collectively: a)
also been observed. From an almost exclusive while prioritizing the production of distributive
concern for national governance structures, it goods at the expense of regulatory and
has begun to focus on modes of governance at redistributive politics, patrimonialism and
the subnational levels of cities and regions. Due clientelism encourage business to foster
to these changes, it is not difficult to envisage individual, short-term, rent-seeking strategies
that analyses of different modes of governance that inhibit developmental strategies; and b)
at a subnational level will be at the center of while aiming, at the same time, to organize
the research agenda in Brazil over the next few and accommodate the main social actors, such
years. It goes without saying that the fulfillment as business and trade unions, the top-down
of this new agenda implies a close dialog with hierarchical structure of state corporatism
second generation US literature on city politics, leads to short-lived organizations being put in
especially in terms of growth machine and place. In the absence of an ongoing stimulus
urban regime theories, as well as an evaluation from above, the corporatist structure is at risk
of the limits and possibilities provided by these. of falling apart and being replaced by a myriad
The purpose of this paper is to take the of parochial and conflicting organizations.
first step in this direction, analyzing the role of Therefore, it is argued that the nature of the
economic actors in Brazilian municipalities and Brazilian state has thwarted the autonomous
city regions from a comparative perspective. It organization of business at a local level from
will be shown that, despite some signs of civic different and opposing directions; this, in turn,
life in Brazilian municipalities, embodied by makes cities and city regions in Brazil less likely
the participatory budget experience, economic to pursue the type of developmental policies
actors are far from playing an active role in described by the political economy literature

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Nelson Rojas de Carvalho

in its analysis of US cities. State structures at a section, based on the marginal participation
local level in Brazil are, therefore, a hindrance to of economic actors and the redistributive
the development of collective action on the part nature of Brazilian federalism, an evaluation
of economic actors, and the mainly distributive is provided of the extent to which theories
and rarely productive nature of the country’s of urban politics based on political economy
federalism is an additional institutional perspectives can shed light on the reality of
obstacle preventing cities from setting up Brazilian cities and city regions. It is concluded
growth machines and pursuing developmental that, whereas the rescaling of the state on
policies. As local governments in the country a national level, sparked by globalization,
are now in charge of developing the important has pressed for local autonomy and local
social programs that central government has development policy, Brazilian state structures
transferred to municipalities over the last few and the nature of intergovernmental relations
decades – in education, health and social care –, in the country have refracted these broad
mayors and city council members have few inputs in the most diversified ways, aligned
opportunities or resources and little leeway with the path dependency of local institutions
to place economic and developmental issues and the specific division of labor between the
firmly on the political agenda. market and the state in each municipality.
This paper is divided into three sections.
The first highlights the main factors that, in
the view of current scholarship, account for
the weak organization of business in Brazil,
Business politics
alongside some major and broader theories
and the Brazilian state
on the rationale behind the structure of the
country’s state. The second analyzes state- As for the two main traits of the literature
corporatist and clientelist modes of governance regarding the relation between market and
respectively in Brazil’s steel capital, the city state in Brazil that focus on the place of
of Volta Redonda, and in the Metropolitan business politics in the country, we must stress,
Region of Rio de Janeiro, where business first of all, that this literature is limited in terms
has not formed an independent organized of the amount of research work undertaken
sector to press for the implementation of and also in its scope, as it focuses exclusively
developmental policies. This section also on the national scale. That said, the purpose of
discusses a central trait of federalism in Brazil: this paper is to pave the way for a new line of
local government is expected to carry out the research and explore a subject that has, until
bulk of redistributive policies transferred by now, received very little attention – namely,
central government to municipalities (Arretche, the nature of business politics and patterns
2012). This results in an institutional framework in the articulation between the state and the
in which there is little room or incentive left market at a subnational level in Brazil. It is
for political and economic actors to push worth noting that, moving from a national to
forward developmental policies. In the final a subnational level of analysis, the very nature

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Urban politics in Brazil and the US

of the question to be researched is bound to differs dramatically. In Colombia, “the political


change. Whereas at a national level inquiries power of the coffee elite and their association
relating to business associations in Brazil and matched their economic clout. Federacafe was
elsewhere are usually related to countries’ influential in a wide range of economic policies
macro-economic and democratic performance, and its head was viewed as the second most
this inquiry into business associations at powerful man after the president” (Schneider,
a subnational level brings about a double op. cit., pp. 3-4). In Brazil, despite the country’s
challenge: both normative and theoretical. On position as the world’s largest coffee producer
the one hand, a comparative analysis with US at the time, the political and organizational
cities must be performed in order to assess the position of its coffee sector was completely
feasibility of resorting to urban politics theories marginal. In Schneider’s words, “any general
following political economy assumptions, as book on Colombian politics or development in
expressed in urban regime and growth machine the second half of the twentieth century devotes
theories, for the analysis of Brazilian cities. On substantial attention to Federacafe; similar
the other hand, it should be identified to what books on Brazil make no mention of a national
extent cities and city regions in Brazil can host organization of coffee growers (Schneider, op.
developmental politics and set out projects cit., p. 4)”. It is worth stressing here that the
with a view to attracting capital and enterprise, void of voluntary and encompassing business
based on the traditional premise that these are organizations in Brazil is not a trait limited
the final links in a redistributive chain that is to the coffee economic cycle or production
spearheaded by the national government. sector. This has been a lingering characteristic
With these caveats in mind, the conclusion of business politics and organization in the
of Schneider’s (2004) impressive comparative country. Indeed, the resistance of capitalists
research into the organization of business in and businessmen in Brazil to engage in
Latin America can be discussed. According collective action has been enduring. There is
to the author, a striking feature of business no better example than the fact that, since the
organization in Brazil throughout the twentieth first few decades of the twentieth century, only
century was its feebleness: contrary to patterns two very ephemeral economy-wide, voluntary,
observed for countries such as Mexico, Chile and encompassing associations have been
and Colombia, Brazil does not have a history established in the country: the Brazilian Union
of lasting economy-wide peak association. of Businessmen (UBE) and the Institute for the
One example identified in Schneider’s research Study of Industrial Development (IEDI).
seems to provide a sufficient indication of the Although it is true that in the last few
impressive weakness of Brazilian business decades Brazil has fallen behind all of its
organizations, which is much more pronounced neighboring countries in terms of its level of
than that of its neighboring countries. Despite business organization, in the 1940s and 1950s
the fact that Brazil and Colombia are important the situation in the country was quite different
coffee producers and exporters, the level of as far as the relationship between state and
organization in this sector for each country society was concerned. As it is widely known,

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Nelson Rojas de Carvalho

during this period Getúlio Vargas sparked a strong incentives to organize. These incentives
huge process of state-led industrialization and included compulsory dues and membership,
economic development, creating the path that delegated public functions like the provision
would ultimately transform the country from of worker training and other social services,
a crop producer and exporter into a regional and extensive representation in industrial
industrial powerhouse. It is worth stressing federations” (p. 105). It is worth stressing
that, alongside the deep economic changes that, besides compulsory membership dues,
that were set in motion, there was an equally Vargas created a one per cent tax payroll to
significant overhaul of the state’s organization finance work training, amassing a fund of
and structure. First, Vargas’ revolution involved millions administered exclusively by corporatist
a ban on liberal-democratic institutions: business associations, in this way providing an
congress was dissolved, elections were additional incentive for business to organize. As
cancelled and a new constitution endowed with a result of these stimuli, industrial associations
fascist elements was decreed. It also involved popped up throughout the country in a short
tearing down the existing liberal-democratic period of time. The Federation of Industries
structure and replacing it with corporatist of the State of São Paulo (Fiesp) – by far
organizations sponsored and backed by the strongest organization – channeled the
the state. Brazil became a model of state interests of São Paulo’s industries, which were
corporatism, a variety of capitalism whereby responsible for the largest share of Brazilian
state authority and force establish and support industrial output. “The result by the end of
a system of socio-economic organization and the period was amazingly strong industry
representation “in which the constituent units associations, beyond the dreams of the São
are organized into a limited number of singular, Paulo industrialists who first created Ciesp
compulsory, noncompetitive, hierarchically in 1928. Ciesp became Fiesp to conform to
ordered and functionally differentiated the 1931 decree creating official sindicatos
categories (Schmitter, 1974, p. 93)”. In state (sectoral associations) and encompassing
corporatism, as emphasized by Schmitter, federations of these sectoral sindicatos. (…) By
“corporations were created by and kept as 1941, membership and revenues had doubled.
auxiliary dependent organs of the state which According to Fiesp estimates, its member firms
founded its legitimacy and effective functioning in 1940 accounted for two thirds of Paulista
on other bases” (op. cit, pp. 102-103). industry (in terms of capital and number
Therefore, it was for no other reason of workers). National-level organizing also
that the lack of business organization in proceeded quickly. In 1933 state federations
Brazil experienced a totally different reality from São Paulo, Rio de Janeiro, and Rio Grande
in the 1930s and 1940s, though deceptive do Sul created the Confederação Industrial do
and short-lived, when compulsory business Brasil, renamed the Confederação Nacional da
organizations were artificially created and kept Indústria (CNI) in 1938” (p. 99).
alive by the state. As highlighted by Schneider Business organizations in Brazil enjoyed
(2004), “Vargas’ governments gave business their heyday in the 1930s and 1940s thanks

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Urban politics in Brazil and the US

to the corporatist laws that set up compulsory solved by selective incentives provided by
dues and membership, but these would turn the state, in a clear commitment to a state-
out to be ephemeral and short-lived. Apart from centered analysis: “My argument is [...] when
the well-known shortcomings stemming from it organizes, the private sector is essentially a
hierarchical organizations, such as the high reactor to government actions” (p. 11). State
cost of enforcement and the asymmetrical flow actors were, therefore, not only the cause of
of information, business associations artificially corporatist associations created by decree,
created by law soon began to misrepresent but also of voluntary and encompassing
the actual economic forces within the country. associations created by means of selective
As noted by Schnneider (2004), the rigidity of benefits such as representation in policy arenas
state corporatist laws caused an ever-growing or authority over public functions or funds.
chasm in the representation between industries Though committed to reintroducing the state,
and business organizations: “[...] by the 1990s, Schneider’s analysis avoids any structural
traditional sectors of industry accounted for narrative or even corporatist analyses, which
16% of value added in São Paulo, but had 44% in his view would prevent any explanation of
of votes in Fiesp” (p. 95). On a national level, variations in business associations. According
the CNI led to less industrialized states being to the author, although organizations are not
disproportionally overrepresented. As properly described as immutable in corporatism as they
stressed by Schneider, “As these associations are depicted within analyses of civil society,
ossified, they not only ceased to represent big change would be still slow and constrained.
business but also filled the organization space Even if most corporatist analyses also
and thereby impeded efforts by big business to reintroduced the state, this would emerge as
find alternative channels for collective action “a structure and monolith”. In order to capture
and representation (...)” (p. 97). Therefore, if the variations in business organization, Schneider
history of business organization in the country makes a strong case for an actor-centered
were to be traced, this would demonstrably research approach, aimed at analyzing the
amount to weak organizations that were micro-motives of state actors.
artificially and temporarily boosted by Brazil’s At this point, it is necessary to highlight
experience of state corporatism. what seems to be an important shortcoming in
Schneider’s analysis of business organization,
which turns out to be a hindrance to further
The Brazilian state beyond steps in understanding the extent to which
corporatism: competing economic actors organize at a subnational
narratives and the challenge level. It is worth discussing three considerations
of subnational realities in this regard:
1) Even though Schneider criticizes the
It is worth stressing here that Schneider narrowness of a straight collective action
(2004) identifies the organization of business approach to business organization for
with a classical collective action equation neglecting to consider the context and the

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Nelson Rojas de Carvalho

state, he does not provide a minimum definition gradual suppression of traditional institutions,
for state structures in Latin America. or the convergence towards a homogenous
2) It is not true that structural state and modern institutional landscape. On the
approaches do not account for variations: not contrary, this evolved and unfolded through
only does the traditional literature on policy the juxtaposition of different institutional
arenas (Lowi, 1972) and polity networks frameworks, whereby traditional routines were
(Rhodes, 1997) imply different patterns of state embedded into more modern practices.
interaction with society, but these narratives In line with this perspective, Nunes’
also depict the state as a non-coherent (1997) account of Brazilian state building
system resulting from an adaptive process stands out, according to which four
of institutional change, where traditional institutional grammars underpin the pattern
structures fit into and coexist with modern of articulation between state and society in
ones (Nunes, 1997). Brazil: clientelism, corporatism, procedural
3) Mapping different institutional or state universalism and bureaucratic insularity. In
structures that exist side by side, sometimes in Brazil, formal institutions function according
a disharmonious way, may be a fundamental to a combination of one or more of these
and necessary step as one moves down from grammars that varies along different historical
the perspective of the nation state towards periods. For the purposes of this paper, it is
local realities. This demand was envisaged and worth stressing that, whereas clientelism
met by Locke (1995) in his research on the amounts to an institutional pattern that frames
causes underlying differing regional patterns of traditional societies and relations, procedural
economic development in Italy. Contrary to the universalism underlies modern, market-
current view of a coherent and homogeneous oriented societies and relations. The former is
institutional nation state, he makes his case based on a pattern of personal and asymmetric
and follows an alternative viewpoint, according relations where all goods or actions that are
to which “national political economies are exchanged are embedded in a broader setting
not coherent systems but rather incoherent of lasting interpersonal bonds and duties, along
composites of diverse subnational patterns with expectations of future payoffs. However,
that coexist (often uneasily) within the same the latter is related to impersonal patterns
territory” (p. 3). of relations where goods and actions are
Considering these caveats while exchanged according to procedures that apply
following a state-centered path to explaining without consideration for the characteristics
the different patterns of business organization of the parties involved. In this way, procedural
in Brazil at a subnational level, an account of universalism turns out to be an institutional
the Brazilian state and institutional matrix basis for modern capitalism and a necessary,
that can cope with the country’s institutional though not the sole, condition for liberal-
diversity is used. A perspective is taken in which democratic orders.
the path of state building and modernization Regarding the two other institutional
in Brazil did not translate into a linear and frameworks – corporatism and bureaucratic

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Urban politics in Brazil and the US

insularity –, these lie somewhere between the whether there is a predominant institutional
extreme institutional formulae that distinguish framework at this level and whether the four
traditional and modern societies; namely, grammars are spread evenly or unevenly
clientelism and procedural universalism throughout the territory.
respectively. Even though bureaucratic For the purpose of this exploratory
insularity implies a process through which the research, the following sections provide an
state’s technical sectors are protected from the analysis of how two of these institutional
pressures that stem from political parties and grammars – corporatism and clientelism –
pressure groups, these are in no way free from unfolded within two Brazilian local realities, the
clientelist inroads. Corporatism, on the other city of Volta Redonda, the Brazilian steel capital,
hand, sits far from procedural universalism as it and the Rio de Janeiro metropolitan region. It is
seeks policies of accommodation by shrinking verified that both corporatism and clientelism
the number of competing groups. In this hindered not just business organization but
sense, as Nunes recalls, both clientelism and also the pursuit of developmental politics in
corporatism could be said to share common these regions. Analyzing these cases, a parallel
ground, as they are both mechanisms that is drawn between Brazilian local realities and
prevent social conflicts from sparking. the cities of Pittsburgh and Chicago, where a
It is assumed along with Nunes that variety of corporatism and clientelism (political
the Brazilian state is characterized by a range machine) has not thwarted the pursuit of
of institutional grammars, and a further step growth and developmental politics.
is taken by establishing the hypothesis that a
different landscape is faced when moving down
to local government. At a local level, since city
limits exist (Peterson, 1981), the complexity
State corporatism
of the state is lower and institutional patterns in Volta Redonda:
that are less hybrid than those observed at a from rigid organizations
national level should be expected. to loose and conflicting
That said, a second hypothesis is
pluralism and challenges
proposed: at a subnational level, a pattern
of institutional heterogeneity that is regional
to economic growth
in scope is expected. In other words, city
and city regions should vary according to Once the steel capital of the US, Pittsburgh saw
different institutional frameworks, with its fortunes disintegrate with the collapse of
different patterns of articulation between the the American Steel Industry. As Barbara Ferman
state and society. Even though this is not the (1996) recalls, if the cyclical nature of the
purpose of this research, an open question manufacturing sector inevitably brings about
exists regarding how the four institutional job losses as a long-term trend, Pittsburgh
grammars identified at a national level experienced its real crunch between 1979
unfold within cities and city regions in Brazil, and 1988, when 110,000 jobs were lost,

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 583-608, maio/ago 2017 591
Nelson Rojas de Carvalho

representing a 44% decline in manufacturing important and strategic projects for the nation
employment. As it is well known, the private on its new path towards industrialization: the
and public sectors joined in a pattern of construction of the biggest steel company in
cooperation that goes back to the 1940s, the country and the continent, the National
steering the city towards a new service-based, Steel Company (CSN).2
high-tech economy. Even if the results of this As a state-owned company embedded
were positive, it did not fully compensate in the state corporatism championed by
for the losses resulting from the crisis in the Vargas, CSN played a central role not only in
manufacturing sector. As Fitzgerald (1988) planning, but also in managing the territory
states, “the number of jobs created in the of the newly founded city. Sparsely populated
service sector has not been sufficient to replace before the installation of its steel mill, Volta
the jobs lost in manufacturing. Between 1979 Redonda would later become the archetype of
and 1986, the Pittsburgh PMSA lost 97,457 the Brazilian company town. Housing, schools,
jobs in manufacturing and gained 33,304 hospitals, movie theaters and clubs were
jobs in the service sector. Even if the service built along with the steel mill, providing the
sector could absorb all those displaced from necessary urban facilities for this industry to
manufacturing, incomes would be below those operate. Later, CSN took on full responsibility for
in manufacturing. Not only do jobs pay less both providing and maintaining the main urban
in the polarized service sector, but they offer services, such as water supply, sewerage, street
fewer fringe benefits and are more likely to lighting, the construction and conservation of
be part time than jobs in the manufacturing housing and telephone communications. It was
sector (p. 246)”. In addition to evaluating only in the 1960s that the responsibility for
the achievements of Pittsburgh’s economic some of these services was transferred to the
conversion policies, it is worth pointing out City Hall. By this time, the population of the city
that the city, through a consensual pattern had reached 100,000, with 13,000 workers on
of policy-making since the 1940s, has been the payroll of the steel mill. To a large extent, it
fostering growth policies with different targets: can be argued that the city of Volta Redonda is
downtown regeneration (renaissance 1), an offspring of the CSN.
downtown and neighborhood development After it was built in the 1940s, the
(renaissance 2), and ways to put a high-tech company and the city of Volta Redonda
economy in place (strategy 21). experienced four decades of steady growth.
Once the steel capital of Brazil, the city In contrast to the US steel companies, CSN
of Volta Redonda shares some characteristics underwent two decades of crisis in the
with the US steel capital, to the extent that 1980s and 1990s, resulting in a complete
for many decades it was named the “Brazilian overhaul in its internal managerial procedures
Pittsburgh”. It is worth pointing out the and ultimately leading to the company’s
historical importance of Volta Redonda: the privatization in 1992. It is worth stressing
city was chosen by President Getúlio Vargas that 8,000 workers were laid off during
in the 1940s to implement one of his most this privatization process, and in 2002, 500

592 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 583-608, maio/ago 2017
Urban politics in Brazil and the US

qualified employees, along with the company’s A s has ha p p e n e d in ot h e r s t e e l


3
administrative headquarters, were relocated company towns, in the last few decades
to the city of São Paulo. This caused the city Volta Redonda’s manufacturing sector has
to be hit by a loss of 32,000 indirect jobs, steadily been losing ground to the service
with spillover effects to the service and retail sector. Nowadays, services not only account
sectors. According to Dulci (2008), between for the largest percentage of jobs, but also
1996 and 2006, the percentage of workers in for the largest share of added value created in
the manufacturing sector in Volta Redonda fell the city. As shown in Table 1, even after the
from 37% to 20.6%, along with a 20% loss in initial layoffs brought about by the company’s
workers’ income. It goes without saying that privatization, the manufacturing sector’s role
the relocation of the company’s headquarters in job creation continued to shrink. Whereas
had a deeper effect than a simple loss in the in 1996 it accounted for 37% of jobs in the
number of jobs: it led to the loosening of CSN’s city, by 2005 this percentage had shrunk to
historical attachment to the location, or in 17%. Meanwhile, the service sector went from
other words, its commitment to the city. representing 28% to 40% of the city’s jobs.

Table 1 – Volta Redonda 1996/2005


job evolution according to economic activity/sector

1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005
% % % % % % % % % %

Manufacturing 37 30 29 26 23 21 20 19 18 17

Construction of public facilities 1 2 2 3 2 2 2 2 2 2

Construction 6 6 8 7 10 8 10 9 9 9

Retail 15 18 18 19 19 20 21 22 24 23

Services 28 29 30 33 36 38 37 38 38 40

Civil Service 13 15 13 12 10 11 10 10 10 9

Source: Estevez (2012).

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Nelson Rojas de Carvalho

Graphic 1 – Volta Redonda GDP %

70,0%

60,0%

50,0%

40,0%
manufacturing
30,0%

20,0% services

10,0%

0,0%
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Source: IBGE.

As for the participation of the service business organization (ACIAP-VR) include three
sector in local economic output and GDP, it universities and one hospital. It is fair to say
is worth pointing out that these activities that in a trend common to other old industrial
have outperformed manufacturing results cities, Volta Redonda’s shift towards a service
for all but a few years, as shown in the economy has not made up for job losses in the
Graphic 1. It is noteworthy that even during manufacturing sector and has also resulted in a
Brazil’s commodity boom cycle between decrease in labor income.
2002 and 2012, manufacturing production Despite all the similarities between Volta
did not over take or even match ser vice Redonda and other manufacturing cities in
output in the city. terms of economic reconversion processes, it is
Again, following a pattern in economic worth underlining here a unique trait displayed
conversion that other manufacturing cities have by the Brazilian city. Here, the steel company
experienced, Volta Redonda not only headed is still the main local economic stakeholder.
in the direction of a broader service economy, It has not lost its position as the principal
but also targeted the more specific medical- individual employer, and it owns 36% of the
-educational sector, similarly to Pittsburgh, city’s land, as well as a property portfolio that
Baltimore, albeit on a smaller scale. Indeed, includes clubs, schools, hospitals and farms.4
as well as CSN and some retail companies, In addition, it accounts for 50% of the total
the top ten members of Volta Redonda’s main property tax collected by the municipality.

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Urban politics in Brazil and the US

Table 2 – Main associated member companies (ACIAP-VR, 2016)

Company Sector

1 CSN Industry
2 UnimedVR Med/Hospital
3 Royal Supermercados Retail
4 Floresta Supermercados Retail
5 Drogaria Moderna Retail
6 Drogaria Retiro Retail
7 UGB Education/University
8 UBM Education/University
9 UniFOA Education/University
10 Transporte Excelsior Transportation

Source: ACIAP.

The lingering dependence of the city on the their companies, religious leaderships and
5
company’s fate is a subject of concern at the neighborhood associations” (RPP, n. 33, 1997).
local business association (ACIAP-VR), which As it is widely known by local actors,
in 1997 launched a movement called Vamos Volta Redonda’s recent history has unfolded in
Repensar Volta Redonda (“Let’s Rethink Volta the opposite direction to that envisioned and
Redonda”) to figure out alternative economic urged by its main business association. Instead
directions for the city. As reported by the local of evolving towards a pattern of consensual
magazine Revista Primeira Página: “ACIAP is politics, it has become a stage for conflict and
going to promote its project Vamos Repensar group polarization. Indeed, in the wake of
Volta Redonda . It dreams of creating new company privatization, the city witnessed the
economic hubs around universities, hardware proliferation of groups and the emergence of
and metal-mechanical companies. In the words a polarized hyper pluralism that hindered, if
of the association’s vice-president, “we hope not fully prevented, any process of coalition
the movement will not amount to an isolated building. It has also witnessed a harsh standoff
act on the part of ACIAP-VR. We hope that it between CSN and local political actors in the
evolves to be a collective action with a broad last few years.
scope, capable of including representatives As Clarence Stone (1989) reminds us
from the city hall, city council and judiciary; in his theory on regime politics, cities rely on
and businessmen, no matter the size of a commitment between private and public

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 583-608, maio/ago 2017 595
Nelson Rojas de Carvalho

actors that assemble the necessary resources the institution with primary responsibility
to implement (“power to”) different policy for Pittsburgh’s renaissance. By formally
agendas. Consensus accommodation and joining the public and private sectors, the
coalition building therefore lie at the heart URA provided the institutional base for the
of urban and economic development. In this growth machine” (p. 49). In Pittsburgh, social
sense, Volta Redonda has undeniably failed corporatist structures and the consequent
to build institutional channels to bridge the pat tern of corporatist politics were so
gap between market and state actors as a ingrained in both institutions and organizations
step towards developmental policies. The that the ensuing steps of developmental
local president of the engineers’ union clearly policies, such as neighborhood incorporation,
exposes the astounding extent of this conflict followed the corporatist logic. “The route to
and the lack of institutional bridges in the city: neighborhood incorporation […] represented
“The relationship between CSN and the city an extension of the logic of corporatism to
is bad. It is neither as clear nor as healthy as the neighborhoods. Institutions were set up to
it was in the past. A relationship of trust was give representation to peak associations, thus
broken. Why? Because relations broke down placing neighborhood issues in the sphere of
between the company on one hand, and the elite politics” (Ferman, 1996, p. 109).
mayor, the engineers’ union, the construction In summar y, social corporatism in
union, the social movements and the church Pittsburgh paved the way for a pattern
on the other. In addition, the company itself did of consensual politics that opened up the
not take part in the mayoral elections […] we possibility for coalition building and the
will only overcome our current situation when pursuit of five decades of growth policies.
everybody comes together, including CSN and It is worth mentioning that, although these
other companies” (Lima, 2010, p. 209). coalitions brought policy together between
Unlike Volta Redonda, Pit t sburgh state and market actors, with the later
pursued its developmental path based inclusion of neighborhoods, business actors
on a social corporatist framework, which organized and played a dominant role
even if it was skewed in favor of elite in Pittsburgh’s urban regime. As Ferman
politics, set up a culture of consensus and (1996 ) highlights: “Pittsburgh’s regime
conflict accommodation. As Ferman (1996) was formed explicitly for the purposes of
underlines, Pit tsburgh’s renaissance in economic development, with the major
the 1940s was carried out within a strict initiative coming from the most powerful
corporatist institutional framework: “Economic member of the business communit y. As
development was carried out within a a result, economic elites dominated the
corporatist decision-making structure [...]. regime. With economic objectives as the
The shape of the new regime was almost guide and economic elites at the helm, the
immediately set with the establishment of the regime steered much of its activity towards
urban development authority (URA – 1946), the civic–sector arena. Operating in an

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Urban politics in Brazil and the US

arena where the underlying logic is one of loyalties, suppressed or manipulated conflict,
cooperation and civility the regime adopted little mutual respect among groups, no
a form of governance resembling the social effective means of appealing to wider publics
production model as described by Stone […] and pervasive state bureaucratic control”
this cooperative orientation was reinforced (1974, pp. 126-127).
by the regime’s primar y focus on large
scale development projects that required
substantial participation from public and Metropolitan Region
private actors” (p. 137).
Almost in the opposite direction to
of Rio de Janeiro:
Pittsburgh, state corporatism in Volta Redonda clientelism, distributive
represented top-down, artificial and short- goods and the disincentive
lived unity between local actors that was not to growth politics
by any means capable of setting up lasting
relationships of trust and cooperation. When Whereas state corporatism, as shown in the
the state corporatist structure fell down, group last section, amounts to an artificial pattern of
fragmentation and a pattern of conflicting cooperation among private and public actors
politics came to the surface. Unlike Pittsburgh, that ultimately makes way for patterns of severe
poorly organized local economic actors in group conflict and weak bridges connecting the
Volta Redonda were not able to open up a market and the state, political machines and
path of growth. On the contrary, the aftermath clientelist institutions have been more effective
of state corporatism meant the gap neither in managing and offsetting conflict. It is widely
formed a bridge between the market and the known that the “efficient secret” of clientelism
state nor mitigated the standoff between CSN lies in its propensity to bring distributive politics
and local political actors. Analyzing the case to the forefront, to the detriment of regulatory
of Volta Redonda, it can be argued that state and redistributive politics. In addition, political
corporatism not only fails to organize business, machines embedded in clientelism are
but is also unsuccessful in fostering enduring successful in dealing with conflict to the extent
consensus and cooperation. In the same way, that they set in motion simultaneous processes
Schmitter’s evaluation of the shortcomings of fragmentation and aggregation of demands,
of state corporatism can be easily extended which are vertically processed through the
to a subnational level. “Countries locked logic of individual favors. To a large extent,
into state corporatism at an early state of clientelism leads to a double process of group
development are likely to find it much more demobilization and accommodation.
difficult to evolve toward such a consensual For all that, some political machines
solution. There the established pattern is one have been described as capable of fostering
of asymmetric dependence, inauthentic and developmental politics. According to Ferman’s
fragmented representation, weak associational analysis, this was the case for Chicago’s political

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 583-608, maio/ago 2017 597
Nelson Rojas de Carvalho

machine, where Richard Daley managed to and constituents. In this case, and unlike
please voters and businessmen at the same Chicago, clientelism is clearly a hindrance to
time, pursuing a policy of simultaneous favor the pursuit of local development.
exchange and economic growth: “[…] the It must be said here that, compared
machine practiced a policy of the individual to similar areas in other Brazilian states, the
based on a material exchange of jobs for votes Metropolitan Region of Rio de Janeiro (MRRJ)
and on ethnic loyalties. Issues were avoided displays an undeniably significant position:
because they contained potential for division almost all of the municipalities7 in the region
and for conflict. The abundant supply of have socioeconomic characteristics that,
discretionary resources allowed the machine to from a structural perspective, provide them
maintain a forced army of patronage workers with both the “spending capacity” and the
and a sufficient cadre of voters. This means of “administrative capacity” required for the
securing the vote provided the machine with implementation of substantial policies. Thus,
the discretion to practice an elitist style of policy it should be expected that, endowed with
politics. Typically, bankers, businessmen and such structural assets, those municipalities
labor leaders were the principal beneficiaries behave as actors with autonomous capacity to
of the machine policy process, which was formulate and implement growth policies.
centered around major economic development Quite the contrary, the analysis both
projects” (1996, p. 32). of the results of a survey carried out among
If Chicago’s political machine, as 68 elected council members in seven
described from the perspective of Ferman’s municipalities of the MRRJ (described in detail
analysis, seems not only not to prevent, but in section below) and of the legislative output
also to foster growth politics, this conclusion is of the Rio de Janeiro and Japeri municipal
completely at odds with the Brazilian literature assemblies indicates that local development
on the institutional and economic implications and growth policies are far from being held as
of clientelism. Even where not overtly stated, a priority by legislators:
academic analyses in Brazil share the view ● According to attitudinal data, a markedly
that clientelism severely hinders economic parochial profile is detected among council
growth and that development policies require members in the MRRJ. There is a clear priority
some other institutional framework, such as given to distributive policies and an emphasis
6
bureaucratic insularity or corporatism. on casework activities of an assistentialist
In this section, a second case study at a nature. Mandates that are sustained and
local level is presented – the policy orientation renovated based on “social centers”8 seem to
of city council members in the municipalities of represent an extreme form of specialization in
the Metropolitan Region of Rio de Janeiro, in this type of activity.
which the institutional grammar of clientelism ● Although city councils in the MRRJ are
is so pervasive that political actors seem able to legislate on important areas of policy
exclusively concerned about pursuing and – such as land use, taxes, transport and urban
providing distributive goods to their localities development –, council members forego this

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Urban politics in Brazil and the US

possibility, limiting themselves to just providing which became the subject of law initiatives
9
“recommendations” – following guidelines by local executive and legislative powers.
for distributive politics. Added to this were new powers for council
Summing up, from the survey results members to legislate on municipal taxes and
concerning both the perceptions and attitudes establish regulatory standards for transport,
of city councilmen in several municipalities of the environment, municipal postures and city
MRRJ, it is possible to state, in agreement with zoning parameters on their own initiative.
previous research carried out on the national From these institutional and structural
scale, that also at local level the grammar indications, it should be expected that council
of clientelism amounts to an undeniable members from the municipal assemblies of
institutional barrier to local development. the MRRJ were engaged in the production of
Distributive politics completely overshadows policy through the ordinary legislative process.
developmental concerns and strategies. However, attitudinal evidence gathered from
the survey carried out among the council
members suggests a radically dif ferent
Perception of the mandate conclusion. As shown in Table 3, activities
and legislative activities that are strictly of a legislative nature – draft
of council members in the MRRJ laws and amendments – take second place.
What the literature describes as casework
During the year of 2014, 68 council members – non-legislative activities – represents the
from the city councils of seven municipalities fundamental activity of legislators in municipal
in the MRRJ – Mesquita, Duque de Caxias, assemblies in the MRRJ.
Belford Roxo, São João de Meriti, Nilópolis, Significant indirect evidence of the
Nova Iguaçu and Niterói – were given a disengagement of council member s in
questionnaire in order to identify: a) the basis developmental policies may be inferred from
for the council members’ mandates and their the degree of familiarity with specific policy
respective electoral connections; b) the vectors areas. As Table 4 demonstrates, those areas
of their legislative activities, and c) to what for which council members can legislate
extent their orientation was parochial in the in order to stimulate local development,
exercise of their mandates. namely urban policy and economic policy,
It is important to reiterate here the are in fourth and last place, respectively, in
context in which the inquiry into agenda power a ranking of council members’ familiarity.
and into the policy orientation (parochialism or As important as the observation that these
universalism) of the city councils was carried areas are relegated to the background is
out. It should be emphasized that after the the identification that the main priority
1988 constitution, the powers of Brazil’s city is attributed to actions under the generic
councils were increased considerably, above heading of “social policy”, which are possibly
all in terms of urban land use regulation, developed outside of legislative channels.

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Nelson Rojas de Carvalho

Table 3 – Legislative and non-legislative activities developed


along mandates of council members in the MRRJ

Activity/frequency Frequently Rarely Never Total

Answering or leading on voters’ claims 98.5 1.5 0.0 100.0

Dealing with bureaucracy for local leadership demands 83.8 10.3 4.4 100.0

Presenting draft laws 72.1 22.1 5.9 100.0

Amending draft laws 27.9 51.5 20.6 100.0

Source: Prepared based on data obtained from a survey carried out in 2014 by the author.

Table 4 – Degree of council members’ familiarity according to area of policy

Area of Policy/
Social Urban Economic
Degree of Construction Education Health Transport
Policy Policy Policy
Knowledge

High 77.9 58.8 52.9 51.5 48.5 33.8 20.6


Reasonable 16.2 32.4 42.6 44.1 42.6 52.9 69.1
Low 4.4 7.4 2.9 2.9 7.4 10.3 8.8
Unknown/no response 1.5 1.5 1.5 1.5 1.5 1.5 1.5

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Source: Prepared based on data obtained from a survey carried out in 2014 by the author.

Table 5 – Council members with social centers in the MRRJ

n %

Yes 25 36.8

No 43 63.2
Total 68 100,0

Source: Prepared based on data obtained from a survey carried out in 2014 by the author.

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Urban politics in Brazil and the US

While some analysts suggest (Kushnir, to their respective clientele without the
2010) that half of the council members elected involvement of bureaucracy; on the other hand,
in the capital of the state of Rio de Janeiro these services seem to amount exclusively to
manage social centers, 37% of the council individual, disaggregated social benefits.
members in the assemblies studied confirm Questioned on the ac tivities they
that they have at least one social center. This prioritize in their contact with their electoral
percentage suggests the centrality of casework bases, the council members surveyed indicated
in the area of social assistance, which is carried that direct contact with voters and provision
out by city councils outside of legislative of social services were most important to
channels or bureaucratic jurisdictions. them, as shown in Table 6.10 Adding this
If the social center is the result of the information to the council members’ declared
extreme specialization of mandates based on familiarity with the area of social policy (an
service provision, and generally for segments area that attracts more attention than urban
located in deprived areas, two features should or economic policy) and to the percentage
be highlighted that mean this type of service of council members that claim to manage
provision is different from what the North social centers, the assistentialist orientation
American literature describes as casework. of their mandates is clear. Local economic
On the one hand, council members in the development is certainly not a priority for
MRRJ seem to offer a range of services directly political actors.

Table 6 – Activities prioritized by council members


in contact with their electoral bases

Activity Order Mean

Direct contact with voters through meetings 1st 8.63

Provision of social services 2nd 8.25

Meetings with local leaders 3rd 7.75

Media appearances 4th 5.75

Meeting voters’ requests 5th 5.43

Source: Prepared based on data obtained from a survey carried out in 2014 by the author.

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Nelson Rojas de Carvalho

Legislative activity in two Assembly of Rio de Janeiro along the 2001-


municipalities in the MRRJ: 2004 legislature, D’Avila Filho et al. (2011)
Rio de Janeiro and Japeri verified that of all of the presented proposals,
57% corresponded to motions, 29% to
Evidence on the legislative mandates of two recommendations and only 4% to draft
municipal assemblies in the MRRJ – Rio de laws. A similar pattern of legal initiatives
Janeiro and Japeri – was evaluated. Whereas having a minor role in legislative production
these municipalities may have opposing was observed for the first three years
11 (2009/2010/2011) in the city council of Japeri.
positions for a series of indicators such as
HDI, GDP per capita, population and location As shown in Table 7, the draft laws presented
within the MRRJ, they converge in one aspect: occupy a lower position. Recommendations,
despite being able – from an institutional however, are the proposals given the highest
and socio-structural perspective – to host importance in both assemblies.
assemblies that can play a proactive role Whereas attitudinal data suggest that
in the field of local development through council members in the MRRJ prioritize casework
legislative action, in both cases this potential activities – or the provision of disaggregated social
is not used. In the municipal assemblies in benefits outside the legislative jurisdiction –,
Rio de Janeiro and Japeri, council members behavioral evidence reveals a second factor
sideline the legislative function in general, that guides council members’ behavior: the
especially legislation aimed at local economic allocation of particularized benefits to specific
development. groups and targeted regions goes hand in hand
From a survey and classification on the with the claim of personal credit for the actions
usual legislative production of the Municipal that are implemented.

Table 7 – Proposals presented in the Municipal Assembly


of Japeri (2009-2011)

Proposal Total Percentage (%)

Recommendations 164 49.54


Legislative decrees 95 28.7
Motions 34 10.27
Draft laws 32 9.66
Approved laws 6 1.81
Expert opinions 0 0
Requirements 0 0

Source: Municipal Assembly of Japeri.

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Urban politics in Brazil and the US

In order to understand the congruence for the benefit; (2) each benefit is given
between the legislative “recommendations” out in apparently ad hoc fashion, with a
congressman apparently having a hand in
and this factor, it is worth remembering a
the allocation”. (Mayhew, 1974, p. 54)
classic passage by Mayhew (1974) on one of
the central dimensions of legislative activity Therefore, recommendations in form
from a distributive politics’ perspective: and in material terms involve, without any
doubt, an instrument of credit claiming by
“[…] a second activity may be called
council members through the allocation
credit claiming, defined here as acting
so as to generate a belief in a relevant of particularized benefits via the executive
political actor (or actors) that one is power and its agencies . How do the
personally responsible for causing the mechanics of this work? The council member
government, or some unit thereof, to recommends to the mayor the need for a
do something that the actor (or actors)
particular intervention – usually related to
considers desirable”. (pp. 52-53)
“Particularized governmental benefits, paving, sanitation or street illumination. The
as the term will be used here, have two authorship and small scale of the demand are
properties: characteristic of all recommendations, making
(1) each benefit is given out to a specific these a suitable instrument for actions with
individual, group or ge ographic al
a distributive purpose. The thematic areas of
constituency, the recipient unit being of
a scale that allows a single congressman recommendations in the Municipal Assembly of
to be recognized [...] as the claimant Japeri are listed in Table 8.

Table 8 – “Recommendations” by council members


of the Municipal Assembly of Japeri to the executive power – 2009-2011

Public roads 90 38%


Basic sanitation 72 30%
Public lighting 33 14%
Public education 28 12%
Governmental action 28 12%
Sport/Leisure 26 11%
Public health 25 10%
Public events 11 5%
Tree planting 10 4%
Public cleaning 10 4%
Total 239 100%

Source: Municipal Assembly of Japeri.

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Nelson Rojas de Carvalho

Therefore, both the attitudinal and a specific policy agenda on the other. While
behavioral evidence suggests that local urban regime theory pays tribute to pluralism
political actors in the municipalities located when it sets politics (coalition process) at the
in the Metropolitan Region of Rio de Janeiro core of regime formation, at the same time it
are guided by the grammar of clientelism, relies on the political economy approach to
prioritizing the distribution of disaggregated cities, acknowledging that economic actors
benefits for their respective clientele. always enjoy a privileged position among
coalition partners. In the words of Ferman
(1996), “the concept of an urban regime
captures this bridging process. By bringing
Conclusion together economic and political elites, a regime
constitutes the informal arrangements by which
It is widely recognized that economic actors public bodies and private interests function
play an important role in shaping the fate of together in order to be able to make and carry
US cities. During a period that can be identified out government decisions. Since cooperation is
as the first phase of urban studies in the US, fundamental to this relationship, the question
researchers tried to figure out and measure of ‘who cooperates and how their cooperation
the extent to which business determined state is achieved’ is central to the understanding of
policies. As Hanson and his colleagues (2010) how a city is governed and its overall policy
argue, “the debate that has been waged orientation” (p. 2).
since the seminal works of Hunter (1953), As mentioned above, in the last few
Dahl (1961) and Polsby (1963) has been decades factors relating to globalization,
whether the role of business is determinative such as state rescaling and state reform, have
or whether business is merely one of many brought the governance of cities and city
groups exercising influence in a pluralist regions to the surface, both as a normative
polity” (p. 1). While proposing a new concept concern and a research subject. In order to
of power, which no longer enquires into who meet the challenge of understanding the new
is in control but aims at identifying who has dynamics of city and regional governance,
the capacity to act and to accomplish goals, researchers in Europe and Latin America have
Clarence Stone (1989) launched a second been resorting to theories that emerged during
phase of research into cities and coined his the second wave of urban studies in the US,
theory or concept on urban regimes, heavily mainly urban regime and growth machine
influenced by both neo-pluralism and political theories. It is worth noting here that, while
economy scholarship. Stone claims that as a trying to evaluate the fit and adequacy of
result of the necessary compromise between these theories to realities found outside cities
economic and state actors, regimes are built in the US, most authors seem to ask the wrong
upon resources that are informally assembled comparative question, as they compare cities
by means of coalition building processes on and assume a homogeneous landscape of city
one hand, and with a view to implementing governance and state/market relations in all

604 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 583-608, maio/ago 2017
Urban politics in Brazil and the US

countries under analysis, due to the unifying cross-regionally rather than cross-nationally. It
force of their nation states. Even conceding that should be expected that insights from urban
globalization has brought about new territorial regime theory apply unevenly to cities and city
scales, causing the fragmentation of otherwise regions within the same national territory.
homogeneous spaces, their assumptions seem In this essay, attention is brought to
to include a monolithic nation state that the different institutional frameworks or
conditions subnational realities in the same grammars that are mingled together in Brazil’s
direction. Even when not overtly assumed, the nation state and that are to be found in their
nation state bias is undeniably present in their more disaggregated and purer form moving
evaluation, as can be identified in Harding’s towards the subnational level of cities and city
remarks: “The evidence presented in this article regions: clientelism, corporatism, bureaucratic
suggests that three key observations that can insularity and universalism of procedures.
be made about the use of urban regime and Each institutional grammar is expected not
growth machine approaches in Britain […] it only to cause a different pattern of relations
is difficult, if by no means impossible, to apply between the state and society, but also to
some of their insight cross-nationally […] impact with different signs and strengths on
many of the attempts to apply the insights market dynamics, the organization of business
of urban regime theory and the growth and activism at a local level. It is worth
coalition thesis within a British context has remembering that, although urban regime
been insufficiently rigorous” (1999, p. 689). In theory relies on the neo-pluralist assumption
both its semantics and its content, Harding’s that liberal democracies, markets and states
assumption is a homogenous nation state lead to a double and interdependent system of
at the root of a political economy, evenly authority where business decisions are critical
distributed at a local level. to public welfare, institutional grammars that
Therefore, it should be stressed that this foster business activism are more prone to
study involves quite a different assumption create local political economies that can be
from Harding’s, as it represents an attempt to interpreted from the urban regime perspective.
seriously bring back cities’ and city regions’ It has been demonstrated in two case studies –
political economies in Brazil. Therefore, it agrees the city of Volta Redonda and the Metropolitan
with Locke’s perspective (1995), according to Region of Rio de Janeiro – that corporatism and
which a national political economy should not clientelism at a local level in Brazil are far from
be viewed as a coherent national system, but being able to foster political economies with
rather as a somewhat incoherent composite a kind of civic cooperation between economic
of diverse subnational patterns that coexist and political actors, as envisaged by urban
(often uneasily) within the same national regime theory. Indeed, state corporatism in the
territory (p. 174). It goes without saying that if steel city of Volta Redonda has achieved an
we are to assume the diversity of local political artificial and short-lived unity between business
economies, we have to suppose that the use and state that sparked into myriad conflicting
and results of US urban theories will vary groups as the corporatist façade began to

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 583-608, maio/ago 2017 605
Nelson Rojas de Carvalho

fade away. Clientelism in the Metropolitan As an inaugural investigation, it is more


Region of Rio de Janeiro signified the primacy important to identify some research questions
of distributive politics over redistributive or that lie ahead than arriving at any final
developmental politics, and indirect evidence conclusions. It is worth testing: a) how the four
has shown a pattern of business cooptation different institutional grammars are distributed
and rent-seeking activities. That said, it must throughout the Brazilian municipalities; b)
be stressed that two of the institutional whether clientelism and machine politics can
grammars underpinning the Brazilian state also foster growth politics, as was the case
clearly determine a non-cooperative pattern of in Chicago; and c) whether the universalism
relations between the market and state actors, of procedures at a local level leads to market
making it difficult – if not impossible – for relations and patterns of civic cooperation
these local political economies to be explained between the market and state actors, this being
through insights from urban regime analysis. the basis of urban regime politics.

Nelson Rojas de Carvalho


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto Multidisciplinar, Departamento de História.
Seropédica, RJ/Brazil.
nrojascarvalho@gmail.com

Notes
(*) This is a revised version of a paper prepared for presenta on at the 2016 mee ng of the American
Poli cal Science Associa on, Philadelphia, september, during my postdoctoral stage under the
generous supervision of Clarence Stone. It was supported by a Capes fellowship

(1) On the decentraliza on process in Brazil during the 1980s, see Celina Souza (1997).

(2) Along with the state-owned oil company Petrobras and the mining company Companhia Vale do
Rio Doce (CVRD), CSN was designed to play a central role in Vargas’ project for development.

(3) The company’s headquarters occupied a 16-story building that remains closed to date. The
reloca on to São Paulo is the most expressive symbol of a new process that was unleashed in
the city: the detachment of the company from its territory.

(4) Despite fierce popular opposi on, all of these assets were priva zed along with the company.

(5) Since its priva za on, CSN has expanded outside the city and merged with economic groups, such
as the Vicunha Group.

606 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 583-608, maio/ago 2017
Urban politics in Brazil and the US

(6) Whereas it is beyond the scope of this study to evaluate when and for what reasons poli cal
machines and economic growth do not get along, it is worth poin ng out a trait of Brazilian
federalism that may have a stake in the outcome of this. As Arretche (2012) notes, on average
70% of the budgets for Brazilian municipali es are cons tu onally earmarked for social areas
such as educa on, housing, sanita on, social services and social security.

(7) There are seventeen municipalities within its legal boundaries: Rio de Janeiro, Belford Roxo,
Duque de Caxias, Guapimirim, Itaboraí, Japeri, Magé, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Paracambi,
Queimados, São Gonçalo, São João de Meri , Seropédica, Mesquita and Tanguá. Most of these
(65%) have a popula on over 100,000 and an average (88%) or high (2%) score on the Human
Development Index (HDI).

(8) Social centers are organiza ons maintained by council members to provide a range of services for
voters, from professional training and qualifica on to medical a en on.

(9) “Recommenda ons” are legisla ve instruments through which council members indicate to the
mayor the need for specific interven ons in the neighborhoods of their municipali es.

(10) In order to know the poli cal resources most valued by council members when working in their
cons tuencies, we asked them to assign a value to five different ac vi es. The values range
from 1 – least important – to 10 – most important – and are displayed in Table 6.

(11) The municipality of Japeri has a popula on of 100,000, the lowest HDI in the MRRJ – although
this is an average value (0.724) – and a GDP per capita of R$3,972.33. Rio de Janeiro, however,
has a popula on of 6,182,710, the second highest HDI in the MRRJ (0.842) and a GDP per capita
six mes higher than that of Japeri: R$19,243.95.

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Texto recebido em 2/nov/2016


Texto aprovado em 17/maio/2017

608 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 583-608, maio/ago 2017
Regulação às avessas? Uma análise
sobre a legislação urbanística instituída
nos municípios da Região Metropolitana
de Campinas entre 1970 e 2006
Regulation inside out? An analysis about the urban
regulation instituted in the municipalities of the Campinas
Metropolitan Region between 1970 and 2006

Sidney Piochi Bernardini

Resumo Abstract
Este artigo pretende discutir o universo dos me- This article intends to discuss the universe of
canismos normativos de regulação urbanística urban regulation normative tools implemented in
implementados em 19 municípios da Região Me- 19 municipalities of the Campinas Metropolitan
tropolitana de Campinas entre 1970 e 2006. Duas Region between 1970 and 2006. Two issues
questões aqui serão discutidas: os limites da au- will be discussed here: the limits of municipal
tonomia municipal na gestão do uso e ocupação autonomy in the management of land use
do solo e das suas normas como indutoras de um and occupation and the limits of its norms in
desenvolvimento urbano benéfico a toda a socie- promoting an urban development that benefits the
dade. Os substratos, condicionantes e forças (in- society as a whole. The substrata, conditionings
clusive legais) que impulsionaram as transforma- and forces (legal forces included) that have
ções no âmbito do processo ainda constituem uma boosted transformations in the scope of the
lacuna no vasto campo de investigações sobre o process still constitute a gap in the large field of
modelo de urbanização da Região Metropolitana investigations about the urbanization model of
de Campinas. Os resultados alcançados demons- the Campinas Metropolitan Region. The results
traram que esses municípios instituíram 3.087 showed that these municipalities instituted 3,057
instrumentos de regulação urbanística no período, urban regulation tools in the period, and 85%
sendo 85% deles promulgados para promover mo- of them were promulgated to promote specific
dificações pontuais nestes. modifications in the municipalities.
Palavras-chave: regulação urbanística; uso e Keywords: urban regulation; land use and
ocupação do solo; zoneamento; urbanização; Re- occupation; zoning; urbanization; Campinas
gião Metropolitana de Campinas. Metropolitan Region.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3911
Sidney Piochi Bernardini

nas formas de conduzir esses processos vin-


Introdução
culados a uma coalisão entre governos, incor-
poradores, empreendedores privados e outros
Este artigo tem como objetivos principais apre- agentes imobiliários nas ações de renovação
sentar e discutir, no âmbito da Região Metro- urbana, remoção de favelas e expansão das
politana de Campinas, como ocorreram a ins- áreas centrais como estratégias para a “revita-
titucionalização e a gestão do uso e ocupação lização das cidades”, sob a égide dos poderes
do solo sob a perspectiva do planejamento e locais. Assim também, por outro lado, nos pro-
ordenamento físico-territorial de seus municí- cessos de “barganha lote a lote”, nas decisões
pios constituintes, a partir da análise dos me- sobre as regras de zoneamento das cidades
canismos legais estabelecidos entre os anos de estadunidenses, nas quais a voz dos morado-
1970 e 2006. A constatação de tais caracterís- res locais, em processos democraticamente
ticas por pesquisas já realizadas, como as de legítimos, prejudica a intensificação do uso
Mitica Neto (2008) e Pires (2007), apontam do solo e os adensamentos populacionais sob
para uma prática comum de produção do es- o discurso do Not In My Back Yard (NIMBY),
paço urbanizado na maior parte dos municí- ocorre uma sobrevalorização dos imóveis urba-
pios dessa Região, indicando, em hipótese, nos que, segundo Hills Jr. e Schleicher (2015),
que existe uma certa sinergia (como também intensifica a crise da moradia e o empodera-
indicou Pires) entre os interesses privados do mento da indústria da incorporação de terras.
mercado incorporador e iniciativas e proce- Aqui o debate sobre a relação entre o plane-
dimentos conduzidos pelos poderes públicos jamento compreensivo, como matriz do pensa-
locais. Essa sinergia não só explica a conduta mento sobre o desenvolvimento urbano, e as
comum definida pelos municípios como tam- restritivas regras de zoneamento, nem sempre
bém pode demonstrar em que bases ela se vinculadas a esse pensamento, ganha contor-
opera. Pretende-se, com isso, demonstrar que nos mais complexos.
o encadeamento exacerbado de instrumentos A permanência do plano diretor como
legais urbanísticos de todas as ordens postu- principal instrumento da política de ordena-
lados pelos Poderes Executivos e aprovados mento municipal perpetua a sua figura como
pelos Poderes Legislativos criou um arsenal meio ideológico para o setor imobiliário e o
volumoso de medidas intimamente acopladas poder público justificarem suas atuações em
aos interesses particulares. Nesse ponto de defesa do desenvolvimento urbano. Nesse
vista, pretende-se discutir a validade dos ritos ponto, a distância que se estabelece entre a re-
instituídos e apontar possíveis impactos e con- tórica contundente desses planos e os efetivos
sequências das arbitrariedades observadas. instrumentos de regulação e controle de uso
Alguns estudos, como o de Harris (2015), do solo consolida e mascara os mecanismos já
que se debruça sobre o interesse público nos consagrados da produção imobiliária (Villaça,
processos de desapropriação compulsória de 2012). No âmbito da gestão do uso e ocupa-
terras privadas nos Estados Unidos, demonstra ção do solo, concepção, instituição e aplicação
que, já nos anos 1960, houve uma transição das leis urbanísticas são partes intrínsecas do

610 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017
Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística...

cotidiano dos gestores públicos municipais


A Região Metropolitana
que, sob o manto de uma profunda legalida-
de estruturada, operam leis que não possuem
de Campinas e os aspectos
sanções para quem as infringem; que são im- da sua configuração espacial
possíveis de serem cumpridas; que eles não
têm capacidade de aplicar ou fiscalizar e até A Região Metropolitana de Campinas, criada
mesmo que se limitam a princípios gerais e ge- por força da Lei Estadual Complementar 870,
neralidades que não afetam, em nenhum grau, de 19/6/2000, agrega 20 municípios. Vincula-
qualquer ação de intervenção ou controle so- dos a uma lógica comum que se consolidou
bre o território (ibid.). com essa instituição, esses municípios confor-
Essa dimensão da fronteira legal – ile- maram uma rede urbana específica, determina-
gal, nas imperfeições subliminares da esfera da também por obras e intervenções realizadas
burocrática, adapta-se muito bem aos ritos por outras esferas governamentais, como a im-
instituídos e conduzidos para possibilitar ao plantação da Rodovia D. Pedro I, por exemplo,
mercado formal o aval às suas atividades de e investimentos dos setores privados, com a
incorporação. A malha excessiva, complexa e instalação de novos parques industriais a par-
inchada de leis, decretos e mecanismos que tir, principalmente, da década de 1970. Com
corroboram esses ritos, longe de ser abarcada e essas transformações significativas, no proces-
compreendida pela sociedade e até mesmo pe- so de interiorização da indústria no estado de
los que a opera, define esse cotidiano da ges- São Paulo, o município de Campinas teve um
tão urbana, sem haver, muitas vezes, qualquer papel preponderante sobre a sua região de
questionamento por ela e por outros poderes influência, provocando atração de população
constituídos. Assim é que, mesmo apontada e investimentos. Essa polarização induziu um
pela literatura como uma das dimensões da movimento de transposição dos limites admi-
estreita fronteira entre legalidade e ilegalida- nistrativos da cidade-sede, atingindo as cida-
de, a forma como esses institutos legais são des do entorno, estabelecendo-se relações es-
aplicados e os caminhos pelos quais se dão as pecíficas da rede urbana em formação (Cano e
restrições e permissividades nas escolhas efeti- Semeghini apud Pires, 2007, p. 14).
vadas pelos poderes locais ainda merecem ser A literatura destaca que, além de Cam-
aprofundados nas investigações sobre gestão pinas, outros municípios, como Paulínia,
urbana no Brasil, sob as mais variadas óticas. Valinhos, Sumaré e Indaiatuba, tiveram um
Supõe-se que, nessa esfera de decisões, as prá- crescimento industrial mais intenso na década
ticas referenciem-se na inversão da ilegalidade de 1970, coincidindo com o processo de inte-
pela legalidade (tornar legal o que seria ilegal), riorização do desenvolvimento econômico do
em ritos e práticas que consubstanciem os atos estado de São Paulo, desdobrando-se na mo-
discricionários por mecanismos legais em uma dernização das atividades agropecuárias arti-
associação estreita entre os poderes executivo culadas a indústria e serviços e no aumento
e legislativo na produção dos seus instrumen- das taxas de crescimento populacional (Pires,
tos de poder. 2007, p. 14). Essas mudanças coincidiram com

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Sidney Piochi Bernardini

as determinações lançadas pelo governo fe- coberto por este artigo (2006) está o prazo
deral, no âmbito do SERFHAU, da instituição estabelecido, pela lei federal 10.257/2001
de aparelhos planificadores nos municípios, (Estatuto da Cidade) para que novos planos
condicionados a elaborarem seus planos di- diretores fossem aprovados, o que poderia
retores de desenvolvimento integrado em denotar uma mudança de postura e de rumos
resposta às expectativas de investimentos na condução da gestão municipal no tocante
que se pretendiam realizar nas várias locali- a aprovação e aplicação de instrumentos le-
dades brasileiras. No outro extremo temporal gais de caráter urbanístico.

Figura 1 – Mapa da Região Metropolitana de Campinas


contendo as manchas urbanas de 1989 e de 2000

Legenda
limite da RMC mancha urbana em 1989
limites municipais mancha urbana em 2000
sistema viário
linha férrea
hidrografia

Fonte: Campinas (município). Plano Diretor de 2006 – Secretaria de Planejamento da Prefeitura Municipal de
Campinas. Disponível em: http://www.campinas.sp.gov.br/governo/seplama/plano-diretor-2006/doc/tr_rmc.pdf

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Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística...

É possível observar que, diferentemen- o papel dos instrumentos de regulação urbana


te de outras regiões metropolitanas criadas nas mudanças de padrões de densidade entre
anteriormente, como o caso da Região Metro- municípios urbanos e suburbanos na costa su-
politana de São Paulo, por exemplo, a espacia- deste dos Estados Unidos; Bengston, Fletcher
lidade resultante da Região Metropolitana de e Nelson (2004), que realizaram um balanço
Campinas não se caracterizou pela conurbação da bibliografia que trata dos instrumentos de
plena dos municípios integrantes, mas por frag- regulação da expansão urbana nos Estados
mentação e dispersão territorial sintomática Unidos, enfatizando o papel preponderante
desse processo tardio e vinculado à Terceira dos agentes privados no processo de plane-
Revolução Industrial, como aponta Soja (2000). jamento; Saizen, Mizuno e Kobayashi (2006)
Cabe alertar, nesse sentido, que a escala regio- que observaram a falta de coordenação entre
nal metropolitana escolhida se identifica com os diferentes sistemas de zoneamento (rural e
os pressupostos apontados por Villaça (1998) urbano) na Região Metropolitana de Osaka, no
quanto à natureza dos espaços intraurbanos Japão, investigando, com base nessa hipótese,
no Brasil, ao considerar que, nos processos de as mudanças de uso do solo que ocorreram em
urbanização recentes, e no caso da Região Me- três períodos, comparando-se essas mudanças
tropolitana de Campinas, em especial, a rede com o status de zoneamento de cada perío-
urbana ganhou um outro caráter, assim como do (bem aos moldes do que se pretende fazer
também maior importância diante das pendu- nesta pesquisa); XI et al. (2012) que investiga-
laridades na dinâmica de deslocamentos diá- ram os potenciais impactos da implementação
rios da sua população, evidenciadas pelo Plano de estratégias para induzir o uso do solo rural
Integrado de Transportes Urbanos, de 2006, e à nas fazendas rurais chinesas; Anthony (2004)
maior segregação a partir dos anos 1990, como que avaliou a eficácia das leis de controle da
demonstrou Cunha (2006). expansão urbana em 49 estados americanos,
Embora nos últimos anos tenha surgido concluindo que os estados que manejaram o
um conjunto expressivo de estudos e pesquisas controle experimentaram menor declínio de
que se debruçaram sobre os aspectos essen- densidade populacional do que aqueles que
cialmente espaciais e morfológicos dessas no- não o fizeram; Resnik (2010) que apresentou os
vas configurações, não há muitos trabalhos, em limites dos métodos de planejamento baseados
São Paulo, que aprofundem as especificidades no chamado “Crescimento Inteligente” (Smart
históricas da produção desses espaços sob a growth) para combater o espraiamento urba-
ótica dos mecanismos legais de planejamento no nos Estados Unidos; Buzbee (2003) que, a
e regulação urbanos instituídos e tomados em partir das suas investigações, questiona o pa-
perspectiva regional e metropolitana. Vários ar- pel de estruturas e reformas legais como meios
tigos científicos, entretanto, apontam para tal de induzir a expansão urbana de forma menos
preocupação em outros países do mundo, em danosa à saúde pública.
especial nos Estados Unidos, como é o caso das Nota-se que o tema da expansão urbana
pesquisas realizadas por Boarnet, McLaughlin “desordenada” e das novas formas de urbani-
e Carruthers (2011), que procuraram verificar zação, pautadas principalmente pelos modelos

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017 613
Sidney Piochi Bernardini

de condomínios e loteamentos fechados, tem metropolitanos sob a ótica da sua gestão, na


sido tratado sob as mais diferentes óticas por mesma linha adotada por Jardim (2007), que,
muitas pesquisas no Brasil e passaram a ser ao estudar cooperação e conflito nas relações
muito abundantes a partir da década de 2000, intergovernamentais, estabeleceu bases de
como pode ser notado pelo grande número de comparação entre os casos da Região Metro-
artigos publicados em Anais de Congresso e, politana e do Consórcio Intermunicipal do ABC
especialmente, nos Anais da Enanpur de 2007, paulista; Costa (2012), que avaliou os impactos
2009 e 2011. No caso da Região Metropolita- dos loteamentos fechados sobre os serviços
na de Campinas, não são poucos os trabalhos ambientais a partir da apropriação da natureza
que discutem as bases de seus arranjos espa- pelos empreendimentos de alta renda, e Perei-
ciais. A clássica publicação de Cano e Brandão ra (2008) sobre os processos de reestruturação
(2002) apresenta um conjunto de artigos que urbana e os movimentos pendulares na Região.
perfaz um diagnóstico socioeconômico de cada Os apontamentos apresentados por Caiado,
um dos seus municípios. A publicação organi- que chegou a sistematizar e mapear os lotea-
zada por Fonseca, Davazo e Negreiros (2002) mentos fechados aprovados entre 1994 e 2004,
também se constitui numa obra de referência, podem também ser observados em vários arti-
mesmo passados mais de 15 anos de sua pu- gos científicos (2006a, 2006b, 2007). Tomando
blicação, já que reúne artigos de vários estu- como enfoque a questão específica dos lotea-
diosos sobre questões relacionadas à gestão mentos fechados, principalmente no município
da Região Metropolitana. Sobre a ótica dos de Campinas, a tese de doutorado de Freitas
processos de vulnerabilidade e segregação em (2008) merece ser destacada nesse campo de
regiões brasileiras, a publicação organizada por pesquisas. O município de Campinas destaca-
Cunha (2006) apresenta alguns resultados da -se com algumas pesquisas referenciais, como
pesquisa desenvolvida junto ao Nepo (Núcleo as de Miranda (2002) que investigou as trans-
de Estudos Populacionais) da Unicamp, incluin- formações do uso do solo rural para urbano no
do a Região Metropolitana de Campinas. Na município; de Mitica Neto (2008), última parte
abrangência de outras pesquisas realizadas por da rede de trabalhos coordenados pelo profes-
esse Núcleo, muitas tratam da problemática re- sor Nestor Goulart Reis e uma das mais impor-
lacionada aos processos de urbanização na Re- tantes pesquisas referenciais sobre as carac-
gião, bem discutida por Baeninger e Gonçalves terísticas do processo de urbanização, o papel
(2000) em uma excelente análise histórica e de do Estado e os arranjos espaciais resultantes.
sua dinâmica populacional. O município de Vinhedo, conhecido por ser um
É também considerável o número de te- dos pioneiros a adotar o loteamento fechado e
ses e dissertações que foram desenvolvidas nos o condomínio horizontal como modelos de ur-
últimos anos. Dentre elas, destacam-se os tra- banização, está bem representado a partir da
balhos de: Pires (2007), sobre a relação entre pesquisa de Pires (2004), que investigou as ori-
expansão urbana e mercado imobiliário; Alves gens do processo de formação dos enclaves do
(2007) sobre a complexidade dos problemas município ainda na década de 1970.

614 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017
Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística...

Ainda que os aspectos dos instrumen- como principal base de dados as ementas
tos de planificação e da legislação urbanística estabelecidas para toda a sua legislação urba-
compareçam como base de estruturação das nística aprovada e instituída entre os anos de
discussões travadas por essas pesquisas reali- 1970 e 2006. O universo pesquisado abran-
zadas, eles não são o veio principal das inves- geu apenas leis e leis complementares, sem
tigações e não constituem as principais moti- considerar decretos e outras normas hierar-
vações que lhes deram origem. A apresentação quicamente inferiores.2
desse panorama em relação ao conjunto de O método desenvolvido consistiu em
estudos já desenvolvidos demonstra que um pesquisar, nos sites das Câmaras e Prefeitu-
aprofundamento dos arranjos institucionais e ras Municipais, essa legislação e classificá-la
de sua relação com as forças dos agentes de por tipos e por décadas (1970, 1980, 1990,
produção imobiliária, pela via dos instrumentos 2000), em bancos de dados separados por
de planejamento e regulação, ainda é um desa- município. Tal classificação considerou o
fio para incursões científicas que perseguem as conjunto de dispositivos legais urbanísticos
explicações sobre os fenômenos associados à tradicionalmente instituídos em seus gran-
urbanização contemporânea. des grupos: plano diretor, uso e ocupação do
Vale notar, ainda, que as diferentes abor- solo, parcelamento do solo e perímetro ur-
dagens recobrem questões e dilemas pertinen- bano, discriminando-se, entretanto, já nesse
tes às problemáticas contemporâneas, obser- primeiro momento, leis referentes a condomí-
vando-se os efeitos imediatos dos processos nios horizontais e loteamentos fechados para
como ocorrem. Centram-se na abordagem das efeitos de contabilização e análise especial
mudanças configuracionais locais e regionais, e considerando a profusão desses tipos de
nas recomposições territoriais a partir de suas assentamentos na Região. A classificação
dinâmicas populacionais, dos efeitos perversos em cada um desses grandes grupos se deu a
da dispersão sobre a lógica da modalidade; partir da leitura de todas as ementas das leis
das respostas institucionais em ternos de ges- para a sua inclusão no grupo mais indicado e

tão metropolitana, nas mudanças que se ope- na década correspondente.


Para efeitos de precisão na contabiliza-
ram nas formas resultantes desse processo de
ção das leis classificadas por grupo, as buscas
expansão ou nos impactos que tais modelos
foram feitas em dois momentos, o primeiro
impõem sobre ambiente construído e natural.
através de palavras-chave presentes nas emen-
tas e o segundo, a partir da seleção destas por
ano. A rigor, o segundo momento de busca fun-
Método empregado cionou como uma etapa de checagem da pri-
meira, de forma a incluir dispositivos que não
Os resultados que estão sendo apresenta- tinham sido, por algum motivo, encontrados no
dos neste artigo abarcam 19 municípios da primeiro momento. As palavras-chave definidas
1
Região Metropolitana de Campinas e tiveram para as buscas por grupo foram:

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Sidney Piochi Bernardini

Grupo Palavra-chave

Plano Diretor  Plano


Perímetro urbano
Perímetro urbano
 Expansão urbana
Uso e ocupação do solo
Zoneamento
Uso e ocupação do solo
 Zona
Código de Obras
Parcelamento do solo
Loteamento
Parcelamento do solo
 Desafetação
Uso comum do povo

 Loteamento fechado
Loteamento fechado
Condomínio

A checagem por ano, no momento pos- em próxima etapa da pesquisa, exclusivamente


terior, possibilitou alargar a busca para leis ur- para os dispositivos que tratam da questão da
banísticas de interesse, incluindo aquelas que expansão urbana na Região. Nessa etapa, as
não continham, a priori, as palavras-chave es- leis foram classificadas por tipos no conjunto
tipuladas. Nessa seleção, procurou-se encontrar de cada grande grupo, permitindo observar os
todas as normas que, em menor ou maior grau, seus principais objetivos e alcances.
interferiram nos aspectos de regulação do uso,
ocupação e parcelamento do solo, observando-
-os à luz das estratégias de planejamento e
Resultados preliminares:
gestão estruturadas nos planos diretores e ou-
tros instrumentos de caráter planificador.
a teia legislativa e a regulação
No momento seguinte, toda a legislação urbanística na Região
levantada foi sistematizada a partir da leitura Metropolitana de Campinas
de suas ementas, observando-se não só os as-
pectos quantitativos determinados pela recor- Foram contabilizadas 3.087 leis urbanísticas
rência no aparecimento de determinados tipos nos 19 municípios pesquisados pertencentes à
de leis, mas também os seus propósitos especí- Região Metropolitana de Campinas entre 1970
ficos identificados, sem ainda verificar e anali- e 2006, cuja classificação, por grandes grupos e
sar os seus conteúdos, o que se pretende fazer por ano, pode ser visualizada nas tabelas abaixo:

616 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017
Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística...

Tabela 1 – Número de leis aprovadas nos municípios


da Região Metropolitana de Campinas por grandes grupos
entre 1970 e 2006

Município PD LUOS LPS LPU LLF Total

Americana 4 28 187 7 1 227


Artur Nogueira 10 43 23 14 1 91
Campinas 4 82 483 18 6 593
Cosmópolis 1 18 84 37 2 154
Eng. Coelho 1 0 17 1 3 22
Holambra 2 5 13 9 1 30
Hortolândia 3 25 63 1 1 93
Indaiatuba 4 94 140 7 3 248
Itatiba 28 95 96 38 1 259
Jaguariúna 13 17 38 21 6 95
Monte Mor 2 5 65 31 0 106
Nova Odessa 3 37 88 15 0 143
Paulínia 6 52 105 5 5 173
Pedreira 2 14 28 8 0 52
Santa Bárbara 10 55 80 9 3 157
Sto. Antônio 7 19 20 8 2 56
Sumaré 4 26 165 12 4 211
Valinhos 6 112 124 46 4 292
Vinhedo 7 25 44 8 1 85
Total 117 752 1.879 295 44 3.087

Fonte: elaboração própria, a partir de dados levantados nas Câmaras Municipais.


Legenda: PD: Plano Diretor; LUOS: Lei de Uso e Ocupação do Solo; LPS: Lei de Parcelamento do Solo;
LPU: Lei de Perímetro Urbano; LLF: Lei de loteamento fechado/condomínio.

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Sidney Piochi Bernardini

Gráfico 1 – Participação dos grandes grupos de leis urbanísticas


no total de leis urbanísticas aprovadas nos municípios
da Região Metropolitana de Campinas (1970-2006)

Plano Diretor

Lei de Uso e Ocupação do Solo

Lei de Parcelamento do Solo

Perímetro urbano

Loteamento fechado

Fonte: elaboração própria, a partir de dados levantados nas Câmaras Municipais.

Tabela 2 – Número de leis urbanísticas aprovadas nos municípios


da Região Metropolitana de Campinas por década (1970-2006)

Município 1970 1980 1990 2000 Total

Americana 83 55 38 51 227
Artur Nogueira 13 12 34 32 91
Campinas 239 138 119 97 593
Cosmópolis 70 41 25 18 154
Eng. Coelho 0 0 13 9 22
Holambra 0 0 13 17 30
Hortolândia 0 0 45 48 93
Indaiatuba 29 56 96 67 248
Itatiba 35 105 55 64 259
Jaguariúna 11 18 34 32 95
Monte Mor 13 25 41 27 106
Nova Odessa 42 41 24 36 143
Paulínia 35 72 45 21 173
Pedreira 11 17 15 9 52
Santa Bárbara 36 41 29 51 157
Sto. Antônio 9 11 21 15 56
Sumaré 38 84 50 39 211
Valinhos 93 39 95 65 292
Vinhedo 21 17 33 14 85
Total 778 772 825 712 3.087

Fonte: elaboração própria a partir de dados levantados nas Câmaras Municipais.


Obs.: Municípios de Engenheiro Coelho, Holambra e Hortolândia foram desmembrados no ano de 1991, por essa razão não
possuem leis contabilizadas nas décadas de 1970 e 1980.

618 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017
Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística...

É possível observar, da interpretação os municípios de Indaiatuba e Valinhos, com


dos dados apresentados, que há uma dife- uma distribuição mais equilibrada em relação
rença significativa entre as quantidades apre- às leis de uso e ocupação do solo. Nestes, há
sentadas por grandes grupos de leis, mesmo uma sensível consonância com as taxas de
se fosse considerado um outro arranjo nesse crescimento populacional e/ou do parque in-
agrupamento, como, por exemplo, a inclusão dustrial na primeira década analisada. Outro
do grupo de loteamentos fechados/condomí- aspecto que merece ser destacado é o número
nios no grupo de parcelamento do solo. Este é total relativamente pequeno (em relação aos
o que apresenta a maior quantidade em núme- números dos demais municípios) de leis de uso
ros absolutos de leis promulgadas no período, e ocupação do solo no município de Campinas.
mais relacionadas ao processo de urbanização O levantamento mais minucioso da legislação
e de expansão urbana, seguido do grupo das urbanística produzida nesse município de-
leis de uso e ocupação do solo que se concen- monstrou, entretanto, que foram editados 129
tram mais nos aspectos relativos a utilização decretos municipais de alteração de zonea-
e ocupa ção de lotes já existentes, embora mento, concentrados, principalmente entre as
não exclusivamente a estes. Em termos relati- décadas de 1970 e 1980.
vos, o grande grupo de parcelamento do solo A quantidade de leis aprovadas por dé-
abrange mais de 60% de toda a legislação cada apresentada, na segunda tabela, demons-
aprovada, muito acima do segundo grupo, re- tra uma relativa constância quanto ao número
lacionado a uso e ocupação do solo, que repre- total de promulgações em cada um dos perío-
senta 24,36%. As leis dos planos diretores não dos, ainda que a década de 1990 desponte
são menos significativas, em termos absolutos, com um número consideravelmente maior em
considerando, via de regra, a complexidade relação às demais. A considerar, entretanto,
das suas estruturas e a abrangência de seus que a década de 2000 figure de forma inter-
conteúdos. Estas, entretanto, são superadas, rompida nesta pesquisa, já que está delimitada
em expressão, pelas leis de alteração de pe- pelo ano de 2006, não é possível aferir se, de
rímetro urbano, que também possuem fortes fato, a tendência é descendente, tendo sido a
vínculos com as de parcelamento do solo, já década de 1990, então, uma década atípica.
que as aberturas de novos loteamentos urba- Supõe-se, como hipótese de investigação, que,
nos dependem, em geral, de que as proprie- com a aprovação dos planos diretores, em sua
dades a serem parceladas estejam no interior maioria, na segunda metade dos anos 2000,
desses perímetros. Em termos relativos, estas tenha havido uma diminuição de leis aprova-
últimas possuem uma relevância no espectro das – questão que merecerá uma investigação
da legislação urbanística aprovada. futura. Além disso, deve-se considerar a criação
Ao observar os números por município, de três municípios no início da década de 1990,
nota-se uma discrepância das leis de parcela- fator indutor do aumento de leis, como é pos-
mento do solo em relação às demais nos mu- sível visualizar para o caso de Hortolândia. Em
nicípios de Americana, Campinas, Paulínia e paralelo, a análise específica de cada município
Sumaré. Em menor grau, destacam-se também revela uma tendência diferente da geral, uma

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017 619
Sidney Piochi Bernardini

vez que para vários, como é o caso de Campi- crescimento populacional da Região, questão
nas, Cosmópolis, Itatiba, Nova Odessa, Paulínia, que deve ser relativizada em razão de dois fa-
Pedreira, Santa Bárbara e Sumaré, houve uma tores já mencionados: primeiro, considerando-
diminuição do número total de leis entre as dé- -se o alto número de decretos de alteração de
cadas de 1980 e 1990, ao contrário de outros, zoneamento instituídos em Campinas (129 ao
cujo crescimento foi expressivo, como em Hor- todo), concentrados, em sua maioria, entre
tolândia, Indaiatuba e Valinhos. as décadas de 1970 e 1980, que, se fossem
Analisando esses números à luz da con- contabilizados, acresceriam expressivamente
figuração populacional dos municípios, é pos- os números dessas duas primeiras colunas;
sível concluir que existe uma forte correlação e, segundo, a criação de três municípios que
entre número de leis promulgadas e os seus acresceram 71 leis ao número total dos outros
respectivos tamanhos populacionais, conforme municípios na década de 1990. Se essas duas
demonstrado no gráfico e no índice de corre- variáveis fossem consideradas no cômputo,
lação abaixo (0,87). Além disso, há uma fraca concluir-se-ia que haveria uma correlação
correlação entre número total de leis promul- média entre esses dois fenômenos, conforme
gadas por década e as taxas geométricas de demonstrado abaixo.

Gráfico 2 – Número total de leis urbanísticas promulgadas


entre 1970 e 2006 e tamanho populacional no ano de 2006
nos municípios da Região Metropolitana de Campinas (percentuais)

40,00
tamanho populacional em 2006 (%)

35,00

30,00

25,00

20,00

15,00

10,00

5,00

0,00
0,00 5,00 10,00 15,00 20,00

nº total de leis urbanísticas 1970-2006 (%)


r=087

Fonte: elaboração própria, a partir de dados levantados nas Câmaras Municipais e Pesquisa Amostral do
Censo do IBGE, de 2006.

620 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017
Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística...

Gráfico 3 – Número total de leis urbanísticas promulgadas


entre 1970 e 2006 e Taxa Geométrica de Crescimento Populacional
da Região Metropolitana de Campinas entre 1970 e 2006

840

820

Número total de leis urbanísticas


800

por década (RMC)


780

760

740

720

700

680

7 6 5 4 3 2 1

Taxa Geométrica de Crescimento anual por décadas (RMC)


r=0,39

Fonte: elaboração própria, a partir de dados levantados nas Câmaras Municipais e Séries históricas
de contagem populacional dos Censos do IBGE de 1970, 1980, 1991 e 2006.

Gráfico 4 – Número total de leis urbanísticas promulgadas


entre 1970 e 2006* e Taxa Geométrica de Crescimento Populacional
da Região Metropolitana de Campinas entre 1970 e 2006

1000
Número total de leis urbanísticas

900
800
por década (RMC)

700
600
500
400
300
200
100
0
7 6 5 4 3 2 1
Taxa Geométrica de Crescimento anual por décadas (RMC)
r=0,53

Fonte: elaboração própria, a partir de dados levantados nas Câmaras Municipais e Séries históricas de con-
tagem populacional dos Censos do IBGE de 1970, 1980, 1991 e 2006.
*Com inclusão de 113 decretos de alteração de zoneamento de Campinas e exclusão de 71 leis promulga-
das nos municípios de Engenheiro Coelho, Holambra e Hortolândia.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017 621
Sidney Piochi Bernardini

Tabela 3 – Número total de leis promulgadas na Região Metropolitana


de Campinas por grandes grupos e por década entre 1970 e 2006

Ano PD LUOS LPS LPU LLF Total

1970 32 81 529 135 1 778

1980 20 148 547 54 3 772

1990 26 255 467 59 18 825

2000 39 268 336 47 22 712

Total 117 752 1.879 295 44 3.087

Fonte: Elaboração própria, a partir de dados levantados nas Câmaras Municipais.


Legenda: PD: Plano Diretor; LUOS: Lei de Uso e Ocupação do Solo; LPS: Lei de Parcelamento do Solo; LPU: Lei de Perímetro
Urbano; LLF: Lei de loteamento fechado/condomínio.

Outro aspecto que deve ser levado em dos lotes sob os auspícios de um desenvol-
conta é o grupo no qual o conjunto de leis es- vimento imobiliário que se intensifica nas
tá inserido, já que há uma inversão de sentidos últimas décadas, demandando instrumentos
nos acréscimos em determinados grupos por específicos nem sempre tratados ou estabele-
décadas. Ao observar a Tabela 3, percebe-se cidos nos planos diretores.
que, enquanto houve uma diminuição crescente Ao se avaliar as quantidades de leis que
do número de leis criadas entre 1970 e 2006 de estabelecem normas gerais nos planos diretores,
parcelamento do solo e alteração dos períme- uso e ocupação do solo e parcelamento do solo,
tros urbanos, também houve um crescimento conforme demonstrado na Tabela 4, depreende-
do número de leis criadas para uso e ocupação -se que, de fato, a legislação de uso e ocupação
do solo e loteamentos fechados/condomínios. do solo ganha uma dimensão mais aguda nos
Parece natural que, em um processo anos 1990, assim como ocorre com os planos
desacelerado de crescimento populacional diretores na década de 2000, estes elaborados
numa região cujo corolário é a expansão por força da lei federal 10.257/2001. Na déca-
horizontal espraiada, as normas relativas à da de 1990 ainda, não é desprezível o número
abertura de novos loteamentos deixem de au- de leis gerais que estabelecem normas de par-
mentar, sendo complementadas por outras, celamento do solo, mas em menor número das
mais características das formas de urbaniza- que se referem ao seu uso e ocupação. Raras
ção contemporâneas, representadas pelas leis são as leis que estabelecem conjuntamente as
de loteamentos fechados/condomínios, cujo regras de parcelamento e de uso e ocupação do
número de instrumentos se expandiu sobre- solo e, mais raras ainda, as que possuem todo
maneira na década de 2000, na pretensão de o conjunto de normas em um único instrumen-
regulamentar os inúmeros casos que a Re- to, como é o caso do Plano Diretor. No âmbito
gião abriga. Assim também pode-se dizer das das normas gerais, as leis que estabelecem os
normas mais relacionadas ao uso e ocupação planos diretores ganham em números absolutos

622 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017
Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística...

(43), seguidas da quantidade de leis de uso e dessas normas não é simples, a composição
ocupação do solo (40) e de parcelamento do de um conjunto amplo de dispositivos torna-as
solo (39). mais complexas e difíceis de serem operadas, só
Verifica-se, entretanto, que as normas ge- autorizadas para quem, de fato, esteja encerrado
rais estabelecidas são apenas uma parte da reali- na burocracia administrativa do Poder Público
dade do espectro de leis urbanísticas estabeleci- municipal. Assim é que, ao observar as ementas
das pelos municípios da Região. Não obstante à de cada uma dessas leis aprovadas, observa-se
importância delas como instrumentos de contro- uma outra lógica e que explica, de certa forma, a
le e da gestão do espaço urbano, elas compõem quantidade extensiva de tantos diplomas legais.
uma parcela pequena dos mecanismos utiliza- O Gráfico 5 representa os números absolutos
dos para que estes se efetivem. Se a estrutura de leis urbanísticas, agora em subclassificações,
legal que se estabelece com a implementação considerando suas ementas.

Tabela 4 – Normas urbanísticas gerais aprovadas por município e por década

Plano Diretor LUOS LPS


< 2006 < <
1970 1980 1990 2000 1970 1980 1990 2000 1970 1980 1990 2000
1970 < 1970 1970

Americana X X X X X X X X

A. Nogueira X X X X

Campinas X X X X X X X X X X

Cosmópolis X X X X X

Eng. Coelho X

Holambra X X X

Hortolândia X X X X

Indaiatuba X X X X X

Itatiba X X X X X X

Jaguariúna X X X

Monte Mor X X X

N. Odessa X X X X

Paulinia X X X X X X X X X

Pedreira X X X

Santa Bárbara X X X X X

S. Antônio X X X

Sumaré X X X X X X

Valinhos X X X X X X X

Vinhedo X X X X

Total 1 10 2 9 14 7 2 5 5 19 9 1 13 7 13 5

Fonte: elaboração própria, a partir de dados levantados nas Câmaras Municipais.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017 623
Sidney Piochi Bernardini

Gráfico 5 – Quantidades percentuais de leis urbanísticas aprovadas


nos municípios da Região Metropolitana de Campinas subclassificadas
a partir de suas ementas (1970 – 2006)

14
12
10
8
6
4
2
0
2

er 16

go bra 3
br 18

so lad 263

no 13

na 85
Co cha 110

ín 28

6
-4

-5

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38

-5

3
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-8

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A

p
A

çã

Ex
Pa

te
Pe
re
te

A
lte

In
A

Fonte: elaboração própria, a partir de dados levantados nas Câmaras Municipais.

Gráfico 6 – Participação das leis referentes à desafetação


de áreas públicas no conjunto de toda a legislação urbanística
aprovada na Região Metropolitana de Campinas (1970-2006)

Desafetação

Outras leis

Fonte: Elaboração própria a partir de dados levantados nas Câmaras Municipais.

624 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017
Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística...

A considerar a grande quantidade de leis vista todo o conjunto das demais leis. Os Gráfi-
referentes à desafetação dos espaços públicos cos de 7 a 11 representam essas subclassifica-
de uso comum do povo, optou-se por excluir es- ções por grandes grupos, trazendo os números
sa quantidade desse gráfico e incluí-la no Gráfi- absolutos e os percentuais da participação de
co 6, que apresenta a sua quantidade tendo em cada tipo no conjunto do grupo a que pertence.

Gráficos 7, 8, 9, 10 e 11 – Tipos de leis urbanísticas por grandes grupos,


aprovadas nos municípios da Região Metropolitana de Campinas (1970-2006)

LUOS geral

Alteração LUOS
PD
LUOS isolada
Alteração de PD
Código Obras
Outro
Alteração Código
Obras
Interesse
social / reg.

Parc. Solo geral


Alteração
parc. Solo
Aprovação Perímetro urbano

Parc. Solo
Expansão urbana
isolada
Int. social/Reg.

Desafetação

Suspensão

Loteamento fechado

Condomínio

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017 625
Sidney Piochi Bernardini

Cabe notar, nesses gráficos, uma certa mas que definem regras de uso e ocupação do
diversidade de tipos observados, incluindo solo independentemente desta.
nesses grupos, os casos de normas especí- Para o grupo de parcelamento do solo,
ficas de interesse social ou de regularização embora a quantidade de leis modificativas
fundiária/edilícia e os Códigos de Obras e Edi- não seja tão expressiva como é no caso das
ficações que, em alguns municípios, figuram de uso e ocupação do solo, observa-se uma
como os principais instrumentos de controle, quantidade não pequena de leis isoladas e
inclusive de uso, ocupação e parcelamento do de leis específicas que promoveram e auto-
solo. No caso das leis de perímetros urbanos rizaram a aprovação de determinados lotea-
e de fechamentos, foi possível distinguir as mentos ou desmembramentos, denunciando
variações de termos e que, em última instân- uma aparente discricionariedade dos poderes
cia, poderiam potencializar problemas concei- envolvidos que, independentemente dos ri-
tuais e de natureza jurídica a serem poste- tos estabelecidos em lei maior (como aque-
riormente investigados. les estabelecidos pela lei federal 6766/1979,
Em outro campo de análise, entretanto, por exemplo), aprovaram, sob força legal,
demonstra-se que, em significativa minoria, as empreendimentos com todas as suas excep-
leis principais de planos diretores, uso e ocupa- cionalidades, em fuga às normas principais.
ção do solo e parcelamento do solo, que de- Sob a mesma ótica, estão os casos das
veriam se constituir como plenas na aplicação leis que promoveram as desafetações dos es-
das regras de controle e gestão do uso, ocupa- paços públicos de uso comum do povo, cuja
ção e parcelamento do solo, sucumbem-se a quantidade abarca quase a maioria absoluta
um vasto aparato de outros mecanismos le- de todas as leis promulgadas nas quatro déca-
gais, mais numerosos, operando modificações das analisadas, perfazendo um total de 1.305
muitas vezes substanciosas sobre elas, como leis. Esse aspecto mereceu uma atenção es-
pode ser notado para cada grande grupo de pecial, não só pela quantidade expressiva em
leis. Ao lado de 43 planos diretores elaborados que apareceram nos momentos de busca, em
entre 1970 e meados de 2006, foram aprova- geral em todos os municípios da Região, mas
das 59 leis de modificação desses instrumen- também pelo propósito contido em suas dis-
tos, sem contar possíveis modificações poste- posições. Essa classificação, estabelecida pelo
riores a 2006, que não foram contabilizadas. Código Civil de 1916, instituiu uma diferença
No caso do grupo das de uso e ocupação do substancial entre os vários tipos de áreas pú-
solo, apenas 7% delas figuram como leis ge- blicas constituídas, seja através de sua ori-
rais ou principais, ao lado de 52% que foram gem, seja através das operações de doação
instituídas para promover-lhes alterações pon- ou aquisição. Nesse âmbito, convencionou-se
tuais – como, por exemplo, modificações nos uma separação entre aqueles bens imobiliá-
perímetros de zonas – na sua composição ori- rios públicos entendidos como sendo de uso
ginal. Soma-se a estas, um conjunto não me- comum do povo, cujo domínio está na esfera
nos significativo (18%) de leis isoladas que não da comunidade e cuja utilização pode se dar li-
possuem um caráter de alteração da lei maior, vremente, sem depender de prévia autorização

626 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017
Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística...

do Poder Público, tais como mares, rio, ruas ora para estabelecer normas de caráter abran-
e praças; entre os chamados bens especiais, gente, coadunadas com o processo de planifi-
destinados ao cumprimento das funções públi- cação técnica adotada, muitas vezes, pela via
cas, tendo sua utilização restrita à população do plano diretor; ora para acomodar e legalizar
em geral (por exemplo, repartições públicas e situações anômalas ou estranhas a essas nor-
edifícios públicos); e entre os bens chamados mas gerais estabelecidas.
dominicais ou dominiais, que incluem as áreas Verifica-se, nesse sentido, que as
patrimoniais, disponíveis, inclusive, para se- práticas cotidianas da gestão do uso, ocupação
rem alienadas pelo poder público detentor de e parcelamento do solo são mais complexas e
seu domínio. Nessa classificação, entende-se, operam em realidades mais abrangentes do
no campo do Direito, que a finalidade para as que aquelas previstas nas normas principais.
quais esses bens foram incorporados e suas A compreensão dessa lei legislativa sobre a
características determinam a sua chamada afe- qual é operada a máquina da gestão pública
tação e, portanto, a mudança dessa finalidade depende eminentemente da compreensão des-
só poderia ocorrer após um processo de desa- se cotidiano que se faz sob motivações bastan-
fetação, ou seja, alteração de sua natureza ou te variadas, para além das iniciativas técnicas
finalidade, através da instituição de uma lei mais identificadas com os quadros funcionais
específica. Não foi possível saber ainda, pelo públicos que manejam esses instrumentos.
alcance da pesquisa até agora, quais foram Ao observar a forte correlação entre
os objetivos que motivaram tantos processos quantidades de dispositivos legais de caráter
de desincorporação do uso comum do povo. urbanístico e os tamanhos populacionais das
É certo, porém, que, nessas transposições, o municipalidades, pode-se supor que a prática
caráter público das áreas e sua utilização irres- legislativa esteja associada ao conjunto de de-
trita pela população da Região foram sumaria- mandas da população residente, sob os mais
mente ceifados em detrimento de finalidades variados aspectos. Ainda que, mesmo para tal
possivelmente privatistas. suposição, seja necessário realizar outras inves-
tigações, pode-se corroborar a ideia de que, no
âmago dos processos de planejamento urbano
no Brasil e de sua interface com a regulação do
Discussão: regulação uso e ocupação do solo, encontra-se uma veia
urbanística às avessas? privatista e de proteção à propriedade privada,
utilizando-se de forma cabalmente institucio-
A quantidade de leis urbanísticas aprovadas nalizada, os poderes existentes para efetivar o
no período demonstra, a princípio, uma intensa pleno aproveitamento da propriedade em utili-
atividade de gestão do uso, ocupação e parce- zações que, nem sempre, voltam-se ao interes-
lamento do solo, que se faz de forma associada se coletivo e público.
3
entre os poderes Executivo e Legislativo. Trata- Na investigação sobre o desenvolvi-
-se de um modelo de gestão no qual, incremen- mento das estratégias de gestão e regula-
talmente, são definidos instrumentos legais, ção do uso e ocupação do solo no município

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Sidney Piochi Bernardini

de São Paulo entre 1947 e 1972, Feldman (2005, práticas, sendo parte do processo de produção
p. 111) demonstrou os três aspectos que se do espaço urbano.
inovariam, ainda nos anos 1940, com a ins- No caso da Região Metropolitana de
tituição de um modelo de zoneamento sob a Campinas, as evidências demonstram um exa-
base do Comprehensive Planning norte-ameri- cerbado processo de institucionalização dos
cano. Primeiro, sua aplicação como ordenador mecanismos de adaptação, flexibilização e aco-
do solo para o conjunto da cidade; segundo, modação das regras principais para atender a
tendo diferentes regras que se aplicam a dife- uma dinâmica que não cabia estar fixada nes-
rentes partes da cidade; e, terceiro, uma pos- sas normas de caráter mais abrangente.
tura que explicita objetivos relacionados com Na classificação realizada a partir das
os valores imobiliários, orientador dos investi- ementas legais, foi possível perceber que,
mentos econômicos sobre a terra urbana. em alguns municípios, tão logo o instrumen-
O modelo desse zoneamento orientado to geral era promulgado, uma avalanche de
para manejar as diferentes partes e suas carac- leis posteriores ia inserindo modificações e
terísticas peculiares utiliza-se, ideologicamen- alterações sequencialmente. A julgar pelos
te, dos argumentos na defesa dos aspectos possíveis equívocos cometidos na concepção
específicos no mosaico dos tecidos urbanos desses textos legais, pode-se entrever duas
diferenciados, com capacidades diversas de in- hipóteses: a primeira de que, por serem mui-
fraestrutura existente e condicionantes hetero- to detalhados, acabavam por falhar em algum
gêneas, justificadas, ainda, pela funcionaliza- aspecto, devendo receber um substitutivo pa-
ção dos espaços na relação com uma organiza- ra a disposição equivocadamente instituída.
ção territorial coerente com essas premissas. A segunda de que, ao contrário, por serem
Os fundamentos desse modelo orientaram as muito abertos e gerais, deixavam de abarcar
concepções dos instrumentos legais nas cida- todas as situações não previstas, devendo,
des brasileiras sob uma prática corrosiva da portanto, preencher a lacuna legislativa dei-
lógica funcionalista em detrimento da lógica xada para não corroborar atos discricionários.
mercantilista na utilização da terra como ati- Desconfia-se, entretanto, que tantos instru-
vo financeiro. O princípio da função social da mentos legais contenham tamanhos vícios de
propriedade, nesse aspecto, que sempre este- origem, recorrentemente e sistematicamente
ve na base da retórica constitucional no Brasil, cometidos por quatro décadas.
mistifica-se a partir dos inúmeros planos dire- O caminho que esta pesquisa procu-
tores e de leis de zoneamento formulados para ra mostrar é que estas serviram como a base
atender a tais princípios, vinculando-se, entre- de fundo, o alicerce principal, de profunda
tanto, na sua concepção original, aos moldes relevância, sobre as quais operavam as mo-
privatistas e coadunados com os processos dificações necessárias ao funcionamento dos
especulativos da terra. A engrenagem insti- processos imobiliários. Assim é que uma quan-
tucional que se pauta por quantidades abusi- tidade de 122 instrumentos urbanísticos gerais
vas de alterações dessas leis não é, portanto, e de caráter abrangente, incluindo planos di-
estranha à essência que se estrutura nessas retores, leis de uso, ocupação e parcelamento

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Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística...

do solo instituídos em quatro décadas nos 19 Nessa via da excepcionalidade que ca-
municípios da Região demonstra a relevância racteriza a regulação urbanística da Região,
destes e de sua natureza, intrínseca às práticas há todo um conjunto de normas estabelecidas
de gestão. nos seus municípios que parece concorrer com
Os números apresentados na Tabela 4 dispositivos gerais consagrados, como é o caso
podem ajudar a revelar alguns significados da lei federal 6766/1979, que contém dispo-
e oferecer mais chaves para a compreensão sições sobre o parcelamento do solo urbano.
da “subserviência” desses institutos às con- Uma leitura atenta dessa lei demonstra uma
dutas político-administrativas na gestão do clara intenção coletivista em alguns aspectos
uso do solo. Se é fácil antever, por exemplo, estabelecidos, como é o caso da preocupação
o porquê dos planos diretores aprovados esta- com a destinação de áreas públicas, seja para
rem concentrados na década de 1970 e 1980, promover a circulação viária, seja para criar
indaga-se por que se intensificou o processo de espaços de importância para a vida comunitá-
aprovação de leis de uso e ocupação do solo e ria. As ações que motivam quaisquer impactos
parcelamento do solo na década de 1990, e, nessas destinações ou causam obstruções nos
mais especificamente, no ano de 1996? acessos a esses espaços parecem colidir com o
Além disso, cabe salientar que essas seu “espírito”. Mas não é somente sob as cir-
normas se combinam a outro conjunto de leis cunstâncias que induzem a criação de normas
isoladas ou contendo regras excepcionais, co- específicas para promover adaptações às rea-
mo é o caso daquelas voltadas ao interesse lidades contemporâneas que o fenômeno deve
social ou à regularização edilícia/fundiária que ser olhado, senão a partir das concepções que
também é estabelecida a partir da infração às traduzem as referências que melhor expressam
regras convencionais, exigindo procedimentos os anseios vinculados a essa produção (Sposito
voltados à anistia ou à facilitação de parâme- e Goes, 2014). Trata-se, portanto, de uma cultu-
tros, permitindo o enquadramento das situa- ra do morar que perpassa as várias parcelas da
ções existentes nos atos de licenciamento. No sociedade e que passa a ser referendada pelos
caso das leis classificadas no grupo de uso e mecanismos estatais.
ocupação do solo, estas leis específicas (de mo- Quase todos os municípios, com exceção
dificação ou isoladas) somam 694, do total de de Pedreira, Nova Odessa e Monte Mor, pos-
752 leis levantadas, o que corresponde a 92% suem pelo menos uma lei que regulamenta os
delas. No caso das leis de parcelamento do so- condomínios horizontais ou os loteamentos fe-
lo, do total de 1.879 leis contabilizadas, 1.840 chados (ou o fechamento daqueles abertos) na
compõem-se de casos excepcionais, incluindo Região de Campinas. É possível afirmar, entre-
as de desafetação, conforme já mencionado, tanto, que todos os municípios possuam qual-
correspondendo a 97% de toda a legislação quer tipo de regra referente a esses tipos de as-
desse campo. Nesse sentido é que se pergunta sentamentos, já que, mesmo não possuindo leis
onde está a regulação, se suas regras consti- específicas, incluem disposições nas suas leis
tuintes são pensadas e aplicadas a partir, prin- de parcelamento do solo, como já foi possível
cipalmente, das excepcionalidades? investigar para os casos excepcionados acima.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017 629
Sidney Piochi Bernardini

A quantidade desses tipos de leis, como foi em projeto de loteamento como áreas verdes
possível notar na Tabela 3, aumentou conside- ou institucionais não poderiam, em qualquer
ravelmente nas décadas de 1990 e 2000. Mes- hipótese, ter sua destinação, fim e objetivos ori-
mo com as explícitas intenções municipalistas ginariamente estabelecidos alterados.
da Constituição de 1988 e as mudanças que a A pesquisa demonstrou que os muni-
própria lei 6766 já sofreu nesse contexto, com cípios já praticavam os atos de desafetação
a promulgação da lei federal 9785/1999, a co- desde o período inicial da pesquisa, mas con-
lisão com alguns de seus princípios fundantes tinuaram a fazê-lo mesmo após a promulgação
evidencia o colapso da sua estrutura diante da dessa lei estadual. Em 2007, foi proposta uma
realidade figurada em instrumentos legais que, emenda constitucional que abriu exceção a tal
embora procurem contornar tais regras essen- regra para casos de loteamentos cujas áreas
ciais, confrontam-nas sem parcimônia. verdes ou institucionais estivessem total ou
A tentativa, no âmbito nacional, de re- parcialmente ocupadas por núcleos habitacio-
gulamentar esses expedientes que passaram nais de interesse social destinados à população
a ser adotados irrestritamente por muitas mu- de baixa renda e cuja situação estivesse con-
nicipalidades brasileiras, com a proposição do solidada ou de difícil reversão. Em 2008, uma
PL 20/2007 que compunha um conjunto de nova emenda abriu tal exceção também a imó-
normas, inclusive voltadas para esses casos, veis ocupados por organizações religiosas para
ficou emperrada na Câmara Federal, já que as suas atividades finalísticas.
não se coadunava com os reais interesses dos Não houve, pelo menos a partir da con-
empreendedores imobiliários. Nessa lacuna, tabilização dessas leis promulgadas, qualquer
restou, aos municípios, instituir suas próprias alteração nas quantidades anteriores ou pos-
normas, suas próprias regras, sem se importar teriores a esses dispositivos constitucionais
com princípios estruturantes ou fundamentos estabelecidos. Resta saber, entretanto, se as
que deveriam nortear, com base nas prescrições finalidades impostas para tais alterações justi-
de caráter federal, a produção do solo urbano. ficam a sua abundância. Se foram destinados
A quantidade significativa de leis que para a implantação de equipamentos estatais
promoveram a desincorporação dos espaços ou como reserva fundiária em programas habi-
púbicos de uso comum do povo, transfor- tacionais ou se foram transferidos a organiza-
mando-os em bens patrimoniais, passíveis de ções comunitárias, clubes recreativos ou insti-
serem alienados, é outro aspecto que merece tuições religiosas, como foi possível depreender
ser destacado. O montante de 1.305 leis, que da leitura de algumas ementas, a questão não
representam 42% de todas as leis urbanísti- parece estar na refuncionalização em si, mas
cas levantadas, revela uma outra face relativa na atitude dos poderes Executivo e Legislativo
a concepção e tratamento das áreas públicas em reposicionar o domínio de terras original-
existentes. Nesse caso, a concorrência não se mente destinadas para serem espaços livres de
deu no nível federal, mas no estadual, já que a uso comunitário de caráter amplo, autônomo e
Constituição Estadual de 1989 estabelecia, no independente para o domínio das negociações
inciso VII do artigo 180, que as áreas definidas político-administrativas, utilizando-as, muitas

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Regulação às avessas? Uma análise sobre a legislação urbanística...

vezes, para finalidades alheias às da própria estabelecendo novos horizontes de planeja-


comunidade que detinha o seu domínio. Su- mento e gestão que se conformam a partir
põe-se, além disso, que tais desafetações se de alianças e acordos em uma governança
associaram aos processos de fechamento dos urbana que se traduz nas chamadas parcerias
loteamentos e condomínios, numa forma de re- público-privadas. Tal postura admite abran-
gularizar a questão dos acessos a essas áreas, damento e flexibilização dos tradicionais ins-
restringindo-os, por força da transposição do- trumentos de controle de que o Estado lança
minial, apenas aos moradores locais. mão para efetivar os objetivos preconizados
nos processos de planejamento territorial nas
suas diversas escalas.
Nos novos tempos potencializados pe-
Conclusão lo enfraquecimento do Estado com os atuais
arranjos produtivos do capitalismo tardio,
A questão da regulação do uso e ocupação do mudam as interfaces, mas a lógica presente
solo na produção do espaço urbano ganha no- nas estruturas de regulação parece não mu-
vos contornos no mundo contemporâneo, na dar. Ao contrário, parece se consolidar com a
medida em que expõe os novos arranjos insti- criação de novos instrumentos e mecanismos
tucionais estabelecidos para os desafios com- (como é o caso das Operações Urbanas, por
petitivos da economia global, indicando um exemplo) vinculados ao novo pensamento
novo papel e uma nova postura do Estado nas empreendedorista. De qualquer forma, essas
suas práticas tradicionais de controle e discipli- associações não precisam estar necessariamen-
namento dessa produção. te presentes em grandes projetos ou em gran-
A mudança do “administrativismo” pa- des escalas de intervenção, mas se mostram
ra o “empreendedorismo”, conforme apontou presentes nos cotidianos da gestão pública,
Harvey (2005), corrobora a ideia de que a que se apresenta complexa e, ao mesmo tem-
atuação do Estado passa a ser postulada, con- po, embaraçada em uma teia legislativa que é
traditoriamente, pelos objetivos do mercado, difícil de compreender e dominar.

Sidney Piochi Bernardini


Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo,
Departamento de Arquitetura e Construção. Campinas, SP/Brasil.
sidpiochi@fec.unicamp.br

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Sidney Piochi Bernardini

Notas
Isabela Cris na Guerreiro, aluna de graduação do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade
de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo e bolsista de Iniciação Cien fica, colaborou com a
elaboração do texto.

(1) Atualmente, a Região Metropolitana de Campinas agrega 20 municípios após ter sido incluído o
município de Morungaba por força da lei estadual complementar 1.234/2014. Entretanto, como
a pesquisa tem como horizonte de término de tempo o ano de 2006, optou-se por não incluí-lo.

(2) Exceção feita ao caso de Campinas, já que uma suspeita em relação ao pequeno número de leis
promulgadas de uso e ocupação do solo induziu um levantamento dos decretos rela vos às
mudanças de uso e ocupação do solo nos anos 1970 e 1980.

(3) Cabe notar que a análise não dis nguiu as leis que foram revogadas ou que ainda estejam em
vigor. No caso das leis principais, por exemplo, embora sem revogação expressa, a promulgação
de uma nova revoga, em geral, a anterior. A pesquisa procurou contabilizar toda a quan dade
de leis promulgadas, com o obje vo de verificar como se dá a dinâmica da regulação e em que
medida as modificações e alterações conformam o conjunto total de disposi vos levantados.

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Texto recebido em 7/abr/2016


Texto aprovado em 2/jun/2016

634 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 609-634, maio/ago 2017
O espaço público e o lúdico
como estratégias de planejamento
urbano humano em: Copenhague,
Barcelona, Medellín e Curitiba
Public space and the playing aspect as strategies of human
urban planning in Copenhagen, Barcelona, Medellin and Curitiba

Marina Simone Dias


Milton Esteves Júnior

Resumo
No Brasil, o debate urbano contemporâneo reto- Abstract
ma a crítica social como base conceitual, para re- The contemporary urban debate in Brazil resumes
afirmar os espaços públicos como instâncias que social critique as a conceptual basis to reaffirm
promovem práticas sociais e cultura urbana, valo- public spaces as means to promote social practices
rizando a diversidade, a democracia e o exercício and urban culture, valuing diversity, democracy
da cidadania. Analisam-se aqui os novos rumos do and the exercise of citizenship. The new paths
urbanismo com base no papel fundamental desem- of urbanism are analyzed here based on the
penhado pelos espaços públicos livres, incluídos os fundamental role played by free public spaces,
espaços lúdicos infantis, e através de exemplos em- including children’s playing spaces, and through
píricos de transformações urbanas realizadas em empirical examples of urban transformations
Copenhague, Barcelona, Medellín e Curitiba. Por implemented in Copenhagen, Barcelona, Medellin,
meio do apontamento de questões, problemáticas and Curitiba. By highlighting issues, problems and
e deficiências, abrem-se perspectivas e discutem- deficiencies, perspectives open up and alternatives
-se alternativas para o devir urbano, a partir de um for the future of cities are discussed, based on a
planejamento que ressignifique o conceito de urba- type of planning that reframes the urban concept
nidade e reconquiste o lúdico como possibilidade and revitalizes the playing aspect as a possibility
de otimização de uma cidade humana e sustentá- of optimizing a human and sustainable city for all
vel para todos os cidadãos. citizens.
Palavras-chave: urbanização; planejamento ur- Keywords: urbanization; urban planning ;
bano; espaço público livre; espaço lúdico infantil; free public space; children’s playing space;
cidades humanas. human cities.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 635-663, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3912
Marina Simone Dias, Milton Esteves Júnior

Nas últimas décadas, o planejamento ur-


Introdução
bano assumiu uma agenda audaz, objetivando
um alcance amplo e aprofundado da realidade
A cidade é uma realidade plural e multiface- urbana, ou melhor, retomando-a como um de
tada, um fenômeno polifônico e polissêmico, seus mais notórios instrumentos agenciadores.
um espaço povoado por uma multiplicidade de Buscando respostas às novas dinâmicas – que
imagens, cores, sons, linguagens e informações, já não se restringem ao âmbito das meras lo-
do qual emerge a diversidade. É uma mate- calidades devido às influências multiescalares
rialização de momentos históricos e modelos e supralocais a que estão sujeitas, vinculadas a
culturais, que articula questões e problemáti- âmbitos metropolitanos, regionais e globais –,
cas sociais, políticas, econômicas e ideológicas cabe-nos compreender permanências, inércias
(Castells, 2009). Tal complexidade demanda do e rupturas derivadas dos processos de transfor-
planejamento urbano uma interdisciplinarida- mação, os impactos de tais processos nos teci-
de com outros campos do conhecimento, que dos socioespaciais e o papel do planejamento
analisam a cidade a partir de perspectivas ge- urbano como instrumento para a recuperação
ográficas, políticas, históricas, antropológicas, da cidade para as pessoas.
sociais, culturais e artísticas. Apesar de convertidas no domínio refe-
O ambiente urbano é um lugar histórico rencial e preferencial das inter-relações entre
privilegiado no qual os indivíduos se inter-rela- indivíduos e coletividades, as cidades vêm per-
cionam com outros sujeitos sociais, numa rede dendo o status de lugar vivencial. Suas versões
em que coexistem contextos e espacialidades ampliadas, denominadas metrópoles, megaló-
propícios aos processos de subjetivação indivi- poles ou “metápoles”,1 pressupõem desafios
dual e coletiva. Nesse processo dinâmico, pes- crescentes para o planejamento urbano, na
soas de todas as idades, gêneros, raças e clas- sua função bipartida entre recuperar o que foi
ses socioeconômicas convivem e modificam degradado e tentar criar “um novo mundo”. E
suas trajetórias, tecem suas redes de interações se os avanços técnicos e científicos há muito
e se articulam no espaço fenomenológico e se mostram ineficazes para responder às pro-
existencial do urbano, atribuindo-lhe sentidos blemáticas urbanas e ambientais em âmbitos
por meio de seus encontros, experiências e vi- localizados, compete-nos agora indagar acerca
vências. Em contrapartida, tais espacialidades do futuro da condição metapolitana definitiva-
são constantemente ressignificadas e trans- mente globalizada.
formadas: como duas faces de uma mesma Com base nessas premissas, devemos
moeda, o valor do espaço depende das ações questionar: “Como superar a inércia, a obso-
que acolhe, e o valor das ações humanas de- lescência e a defasagem dos paradigmas ado-
pende do espaço onde se desenvolvem (Santos, tados pela gestão do território e das cidades
2006). Nesse contexto, ocorrem a construção diante da permanência e da multiplicação das
social do espaço e a construção espacial das citadas problemáticas?”; “Como instrumenta-
práticas sociais. lizar o planejamento urbano para recuperar e

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

ressignificar a cidade para todos os seus cida- as festas e as celebrações e as identidades cul-
dãos?”. Essas questões justificam o presente turais. Com um caráter não somente analítico,
debate que busca compreender os impactos mas também propositivo, o estudo empírico
socioespaciais desses paradigmas e os pos- traz experiências de transformações urbanas
síveis caminhos para dirimir seus efeitos. Em bem-sucedidas na Europa, na América Latina e
definitiva, urge alimentar as reflexões acerca no Brasil, evidenciando a cidade como espaço
da teoria e das experiências empíricas de (re) “real e representacional, como texto e como
estruturação urbana para orientar os rumos a contexto, como ética e como estética, como es-
serem delineados para nossas cidades. paço e como tempo, socialmente vividos e (re)
Este artigo enfrenta esses desafios as- construídos” (Fortuna, 2001, p. 4).
sumindo a materialidade do espaço real e o
ideário do espaço mental como instâncias di-
ferenciadas, entendidos de modo interdepen-
dente e indissociável. O “espaço real” situa um
O desafio das metrópoles
enfoque retrospectivo, que analisa experiências contemporâneas
vividas na concretude do território, percebidas
pelos sentidos e registradas na memória. O O ideário moderno de cidade, influenciado
“espaço mental” trata de circunstâncias pros- pelo pensamento taylorista, pelo modelo de
pectivas, instaladas em uma espacialidade ima- produção industrial fordista e, mais recente-
ginária, em um espaço projetado, planejado e mente, toyotista, provocou câmbios estrutu-
desejado. Assim, assumem-se uma teoria do rais tanto na organização do território quanto
espaço e uma experiência vivencial no espa- na sua organização social.3 O modelo fordista
ço como recursos retóricos e táticos ou, se se fundou um desenvolvimento econômico e uma
preferir, como estratégia metodológica aberta e relativa independência entre industrialização e
em permanente construção. urbanização, bem como uma desestruturação
Por um lado, a pesquisa dá ênfase às física e simbólica de cidades e regiões metro-
questões teórico-conceituais do fenômeno politanas. Esses efeitos foram potencializados
urbano lato sensu, centrando-se na condição pelo toyotismo, definitivamente atrelado à
urbana hodierna e nos efeitos das atuais con- produção flexível, à gestão política neoliberal,
figurações territoriais sobre os modos de vida ao planejamento urbano estratégico, ao capi-
nas cidades, sobre a prática da urbanidade, da talismo cognitivo e ao “Capitalismo Mundial
sociabilidade, da amabilidade e a ludicidade, Integrado” (Guattari, 2006). Em vez de con-
ou seja, sobre o exercício da cidadania. Por ou- tribuir para a geração de uma nova geografia
tro, debruça-se sobre o espaço público – espe- política e para novas morfologias urbanas que
2
cialmente o espaço livre público –, entendido diluíssem barreiras na escala global e promo-
como fundamento da urbe e ícone de suas fun- vessem o efetivo desenvolvimento local, esses
ções primigênias: dar suporte à vida em comum dois modelos – cujas denominações, não por
e acolher manifestações e conflitos, encontros acaso, estão vinculadas à indústria automobi-
e intercâmbios, o imprevisto e o espontâneo, lística – provocaram uma verdadeira mutação

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das cidades, transformando-as em uma exten- básicas do ser humano. Apesar da criação de
são das bases produtivas do território global e planos e leis, como o Estatuto das Cidades, de
criando uma grande fragmentação urbana em 2001, que representa uma resposta genuina-
prol de nocivos interesses geopolíticos e eco- mente brasileira à questão urbana, na maioria
nômicos. Na atual sociedade da informação, das vezes nossas cidades permanecem reféns
cidades desempenham o papel de elo entre o dos interesses do mercado imobiliário, um ru-
global e o local (Borja e Castells, 1998). mo que vai na contramão da produção de cida-
As metrópoles, hoje, revelam a falência des compactas e sustentáveis.
de seus próprios fundamentos por negligen- A permanência da crise urbana deriva,
ciar sua dimensão humana, seus aspectos de certo modo, da dificuldade de articulação
socioculturais e suas prerrogativas formais e entre a vida privada e a vida pública, revelan-
ambientais. As atuais configurações urbanas e do aspectos individualistas e consumistas da
territoriais apresentam-se cada vez mais seg- sociedade pós-industrial atual. Assistimos a
mentadas, em setores monofuncionais, tribu- uma verdadeira reificação da vida urbana, na
tárias do transporte individual e baseadas na qual resta pouco tempo para o lazer, para as
superestimação do fator econômico e na fa- atividades comunitárias e para a expressão e
laciosa capacidade da produção industrial de o exercício da cidadania (Silva, 2006). Nossas
suprir as necessidades materiais e de promover metrópoles, megalópoles ou metápoles não
o “desenvolvimento”. têm apresentado respostas às demandas por
As discussões sobre a questão urbana espaços que convidem ao encontro, devido
tornaram-se imperativas a partir do “fluxo uni- à transformação dos espaços públicos em es-
versal de urbanização massiva” (Harvey, 2004), paços de passagem. Os não lugares, tal como
que em um curto período provocou uma ver- definidos por Augé (1994), têm tomado conta
dadeira explosão urbana. Enquanto em 1900 das cidades, transformando-as em “não cida-
um terço da população mundial vivia nas ci- des” ou “anticidades”; têm diluído a função do
dades, logo após a virada do milênio esse nú- encontro ao esvaziar o papel republicano e dia-
mero passou para mais da metade, e com uma lógico que definiu e constituiu a cidade.
maior expectativa de vida. No caso do Brasil, Cabe a interrogação de Silva (2006, p. 10):
as cifras são ainda mais avassaladoras: desde o “Somos nós que moldamos a cidade ou é a ci-
ano 2000, mais de 82% da população mora em dade que nos molda?”. Seguindo a proposta
espaços urbanos. Ademais, nove áreas metro- de inversão da lógica capitalista de Lefebvre
politanas brasileiras concentram mais de 30% (2009), de 1968, com o direito à cidade, à so-
de toda a população nacional. ciabilidade e aos encontros em ambientes ur-
Analisando a urbanização das cidades banos, optando por um modelo de urbanismo
brasileiras, verifica-se que os princípios que de integração.
a nortearam não são claros, mas discutíveis,
O uso (o valor de uso) dos lugares, dos
pois, conforme Somekh (2010), seguiram o
monumentos, das diferenças escapa
modelo moderno sem buscar sua verdadei- às exigências do valor de troca [...]. Ao
ra essência: a superação das necessidades mesmo tempo que lugar de encontros,

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

convergência das comunicações e das “direito à cidade” quanto os novos empreendi-


informações, o urbano se torna o que mentos produzidos para o mercado imobiliário
sempre foi: lugar do desejo, desequilíbrio
formal; ocupações em áreas de risco, de preser-
permanente, sede da dissolução das nor-
vação ambiental ou pertencentes ao Estado;
malidades e coações, momento do lúdico
e do imprevisível. (Ibid., 2009, pp. 84-85) degradação ambiental e esgotamento dos re-
cursos naturais.
Retomamos, assim, a defesa de uma ci- Se tais características são nefastas para
dade para todos, compreendendo que a vida qualquer situação urbana, agravam-se quando
urbana não se restringe aos limites geopolíti- associadas à suburbanização nos denominados
cos e espaciais das cidades. Para tanto, torna- “países periféricos”.4 Nesses casos, somam-se,
-se fundamental a inclusão de questões labo- ainda, outras situações paradoxais: superpopu-
rais, mercantis, econômicas, políticas, de habi- lação, crescimento urbano acelerado e déficit
tação e mobilidade e do espaço público, assim habitacional; problemas associados à falta de
como das dimensões sociais que incluem todos condições de habitabilidade (saneamento, ser-
os grupos (culturais, etários, de gênero, etnia). viços básicos, desnutrição e doenças); empo-
brecimento, intensificação das desigualdades
e da segregação socioespacial; acirramento de
disputas sociais; marginalidade, violência, cor-
Da cidade à metápole: origens
rupção e falência de valores éticos; proliferação
e mutações, paradigmas de ocupações clandestinas e favelas; carência
e paradoxos, novos rumos ou inexistência de ambientes e espaços públi-
cos qualificados ao convívio social, resultando
Segundo Ascher (1998), os atuais modos de na precarização da sociabilidade.
produção do território e do urbano são regidos O modelo metapolitano distribui esse
por lógicas generalizantes que transcendem as crescimento urbano em nucleações atomi-
peculiaridades socioculturais, ambientais e eco- zadas, dispersando-as em zonas periféricas
nômicas locais. No entanto, apesar da extensão distanciadas da área central, com espaços
dessas lógicas à escala global e dos avanços públicos escassos, precários e inseguros, em
econômicos, técnicos, científicos e culturais, a assentamentos isolados e polarizados, ora
produção do espaço continua replicando pa- em setores formais com tendência à autossu-
radigmas discutíveis e paradoxais, tais como: ficiência, muitas vezes isentos de habitantes,
proliferação de espaços alheios às preexistên- ora em ocupações cada vez mais adensadas
cias, às peculiaridades geológicas, aos valores e carentes de infraestruturas mínimas. Essa
sociais e ao devir dos lugares; enfraquecimento dispersão metapolitana vem gerando diversas
dos valores históricos, do patrimônio, da me- problemáticas: movimentos pendulares coti-
mória coletiva e do próprio tecido urbano tradi- dianos; aumento dos tempos de deslocamen-
cional; contraposição entre centralidades, que tos de pessoas e mercadorias; intensificação
congregam qualidade de vida, e as periferias, da poluição atmosférica e sonora; gentrifica-
onde se instalam tanto aqueles que não têm ção e segregação socioespacial; destruição do

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continuum urbano; aparecimento de vazios monofuncional, esvaziado de pessoas e debili-


intersticiais, tanto internamente às unidades tado nas relações sociais.
de vizinhança quanto entre os loteamentos Considerando que grande parte das pro-
ocupados e os que restam vagos devido à espe- blemáticas aqui apontadas vem se repetindo e
culação imobiliária; surgimento de ambiências se agravando há muito tempo, cabe questionar:
urbanas inóspitas e esfaceladas; corrosão dos até que ponto esses paradigmas e paradoxos
setores rurais ou rururbanos tradicionais que continuarão se reproduzindo e comprometendo
cercavam as cidades. o devir urbano? Cientes de que essas questões
O crescimento atomizado da metápo- não podem ser afrontadas por um pensamento
le espalha, pontual e desorganizadamente, único, é arriscado buscar-lhes respostas pre-
as novas ocupações urbanas, à espera de que cisas. No entanto, mais problemático ainda é
a expansão da cidade as englobe e estruture. conformarmo-nos com tal situação, isentando-
Essa morfologia metapolitana promove con- -nos das investigações quanto aos seus impac-
trastes entre áreas de ocupações intensivas e tos sobre a realidade objetiva e quanto às pos-
de adensamento extremo (passíveis do esgota- síveis alternativas para superá-la.
mento de infraestruturas e de serviços) e zonas O planejamento urbano atravessa um
de ocupações extensivas e pouco adensadas momento de inflexão ao questionar a práti-
(onde predominam vazios intersticiais sujeitos ca modernista e funcionalista. A crise urbana
a ocupações irregulares, ilegais e informais). diagnosticada na década de 1980, que acom-
Esse modelo assume a cidade e o urbanismo, panhava a crise econômica mundial da déca-
respectivamente, como lugar e aparelho privi- da anterior, vem se arrastando até os dias de
legiados da prática burocrática do condiciona- hoje. Em sua esteira, reforçaram-se as ações
mento, da alienação e do isolamento da vida avassaladoras do (neo)liberalismo econômi-
social em categorias polarizadas: a dos espaços co, ancorado em uma revolução tecnológica e
de permanência, subdivididos em esferas pri- informacional sem precedentes e em novas e
vada e pública, e a dos espaços de passagem, escusas formas de democracia e cidadania.
dominados pelos veículos particulares. Análises contemporâneas revelam no-
A metápole expressa a dissociação en- vos desafios globais e destacam a busca por
tre urbe e civitas, o que levou alguns autores um modelo mais focado na dimensão hu-
a associar essa forma urbana à desumaniza- mana, na educação e no bem comum, fina-
ção (Rogers e Gumuchdjian, 2001) e à morte lidade da vida urbana: com uma arquitetura
da cidade (Choay, 2004). Há mais de cinquenta e um urbanismo coletivos, inclusivos, que
anos, Jacobs (2000), precursora do ativismo ur- reconquistem as ruas convencionais, as de
bano, levantava a questão dos “olhos da rua” pedestres, as calçadas, as praças, os largos,
a velar pela pólis, sem os quais as cidades se os parques, as áreas verdes, etc. Integrado ao
tornavam inóspitas, inseguras. Ela apontava direito à cidade, também deve estar o direito
para a morte da cidade como resultado do ao lazer e à recreação, ao lúdico, à beleza e
aumento do tráfego e do urbanismo disperso, à arte, não como uma questão estética, mas

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

como (re)construção de sentimentos como to- pp. 82-83), essa nova maneira de pensar e
5
pofilia, terrafilia e cidadania. planejar as cidades e as metrópoles, esse
Tratar do urbanismo hoje constitui uma “neourbanismo”,
metáfora para discutir a produção social do
[...] apoia-se em atitudes mais reflexivas,
espaço urbano (Monte Mór, 2006). Como des-
adaptadas a uma sociedade complexa
taca Gehl (2013), é possível modificar as re- e a um futuro incerto. [...] É também um
gras do jogo em prol da escala humana e de instrumento cuja elaboração, expressão,
espaços públicos que garantam uma cidade desenvolvimento e execução revelam as
viva e segura, equitativa e inclusiva, diversifi- potencialidades e as limitações que são
impostas pela sociedade, pelo atores
cada e pluralista, compacta e coesa. Tal postura
envolvidos, pelos lugares, circunstâncias e
demanda um planejamento urbano integrado, acontecimentos.
que vise à sustentabilidade pelo investimento
em edificações multifuncionais, em mobili- Ascher vislumbra um planejamento que é
dade sustentável, em valorização da cultura simultaneamente uma ferramenta de análise e
ciclista e pedonal, em aumento da eficiência de negociação, que deve desenvolver um enfo-
energética com menores níveis de poluição que funcional mais minucioso e soluções mul-
e de consumo de recursos naturais (Rogers e tifuncionais, ao considerar a complexidade e a
Gumuchdjian, 2001). Demanda, ainda, a bus- variedade das práticas urbanas, com ambientes
ca de uma nova cidade que reencontre a sua mais atrativos, confortáveis e inclusivos. Um
natureza, sua arché, para que as comunidades dos componentes fundamentais desse neour-
possam defender, preservar e/ou construir uma banismo deve ser a sustentabilidade, não como
identidade por meio de seus valores naturais e característica acessória ao planejamento, mas
culturais e de seu patrimônio, uma cidade que como premissa que, além das dimensões eco-
possa dialogar com o futuro pela valorização nômica e ambiental, envolva também a social
dos seus potenciais. Nas palavras de Brandão (Vilà e Gavalda, 2013).
(2006, p. 75), “sem retorno às origens, não há O neourbanismo deve pensar a cidade
futuro; sem memória, a cidade desfalece, e vi- como um campo de práticas epistêmicas, po-
ce-versa: sem futuro e sem projeto, a identida- líticas, sociais e culturais entrelaçadas, permi-
de e o sentido de nossas existências individuais tindo práticas socioculturais que levem à apro-
e coletivas se perdem”. priação dos espaços públicos pela população,
Nessa busca, é fundamental articular para que deixem de ser “espaços de ninguém”
passado e futuro, memória e utopia, arqué- e se efetivem como “espaços de todos”. Nes-
tipo e ideal, para que a comunidade se reco- sa cidade mais plural, a apropriação funciona
nheça dentro de uma tradição, conquistando como mecanismo de defesa e superação ante
uma identidade e construindo um patamar os modelos urbanísticos impessoais impostos
dialógico e democrático. Para Ascher (2010, pelos planejadores.

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caminhar, andar de bicicleta e encontrar outras


Repensando alternativas
pessoas em espaços urbanos comuns não eram
a partir do espaço público atividades que impactassem o desenvolvimen-
to urbano em todo o mundo.
A origem das cidades, como construto social, A intensificação e a complexidade do
fruto de um processo sócio-histórico, reside no processo de urbanização trouxeram um cres-
sentimento gregário e na necessidade de con- cimento exagerado de novas edificações,
vívio social. Sua definição varia segundo seus um aumento da densidade e os citados pro-
modos de uso e identificação dos espaços pú- blemas derivados do tráfego de veículos. As
blicos, que organizam a malha urbana, fomen- consequências desse triplo processo negativo
tando encontros, intercâmbios, manifestações do urbano – dissolução, fragmentação, privati-
e lazer, permitindo mobilidade e permanência zação – reforçam-se mutuamente e contribuem
nas dinâmicas espaciais associadas aos proces- para o desaparecimento dos espaços públicos
sos e às práticas sociais (Albernaz, 2007). como espaços de cidadania (Borja e Muxi,
El espacio público supone, pues, 2003). Ainda que indispensáveis ao equilíbrio
dominio público, uso social colectivo da cidade, verifica-se a constante redução de
y multifuncionalidad. Se caracteriza investimentos na implementação de espaços
físicamente por su accesibilidad, lo que le públicos livres multifuncionais, levando à per-
hace un factor de centralidad. La calidad
da de sua vitalidade com sérias consequên-
del espacio público se podrá evaluar
sobre todo por la intensidad y la calidad cias. A cidade viva demanda uma combinação
de las relaciones sociales que facilita, de espaços públicos conectados, articulados
por su fuerza mezcladora de grupos y em rede, acessíveis e seguros, interessantes e
comportamientos; por su capacidad de convidativos, além de certa massa crítica de
estimular la identificación simbólica, la
pessoas que queiram utilizá-los (Gehl, 2013).
expresión y la integración culturales.
(Borja e Muxí 2003, p. 28) Afrontando o modelo moderno, os espaços
urbanos são revistos hoje, na prática da arqui-
Entretanto, nas últimas décadas, o es- tetura e do urbanismo, como uma pauta para
paço público foi relegado a segundo plano. A garantir o devir urbano.
explicação estaria tanto na sua rejeição pelos Os atuais questionamentos sobre a vida
urbanistas modernos, quanto no rápido de- urbana vêm ressaltando os conflitos, a desi-
senvolvimento do tráfego de veículos e a con- gualdade e a segregação como fatores que evi-
sequente valorização da malha viária (Gehl e denciam a submissão das cidades ao mercado
Gemzoe, 2002). Para Gehl (2013, p. 26), “ideo- imobiliário e às grandes empresas. A “moderni-
logias dominantes de planejamento rejeitaram dade líquida”, tal como definida por Bauman
o espaço urbano e a vida na cidade como ino- (2001), impôs uma relação “cambiante” entre
portunos e desnecessários”. Nesse contexto, o espaço e tempo, caracterizada pelo esvazia-
planejamento urbano dedicou-se ao desenvol- mento do espaço público, pela expansão do
vimento de um cenário racional e simplificado espaço privado e pelo aumento da segregação
para as atividades “realmente necessárias”: socioespacial, decorrentes da sobrevalorização

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

de fatores econômicos. Além disso, tais ques- seguro” (Garcia, 1996, p. 26), em uma nova e
tionamentos geraram novos modelos cultu- atemporal cartografia urbana, composta por
rais e de comportamento que transformam
novos produtos imobiliários – loteamen-
radicalmente a sociabilidade, ao modificar os
tos fechados, shopping centers, centros
usos e as formas de relacionamento dos e nos empresariais, parques temáticos, centros
lugares, ressignificando a prática socioespacial turísticos [...]. Os novos espaços “públi-
(Sobarzo, 2006). cos” – realmente semipúblicos ou pseu-
Na análise de Bauman (2001), no século dopúblicos – são muitas vezes caricaturas
da vida social, negando ou ocultando as
XXI, inverte-se o papel histórico da cidade: o
diferenças e os conflitos, tornando a so-
sentimento de “medo” está agora no coração ciabilidade mais clean e, em último termo,
das cidades. Na vida pós-industrial, urbana e negando-a. (Sobarzo, 2006, p. 95)
capitalista, nossa sociedade de muros precisa
forjar monstros do lado de fora para justificar A rua, por exemplo, tem perdido seu ca-
seu isolamento, seus privilégios e seu medo ráter multifuncional e de lugar de encontro, de
do outro (Debortoli, Martins e Martins, 2008). sociabilidade e de vida comum, e os espaços
Mais do que uma dimensão concreta, a “cultu- livres públicos são cada vez menos geridos e
ra do medo” é uma prática discursiva apoiada mantidos de modo a oferecer segurança e ludi-
por interesses hegemônicos dos meios políticos cidade. Esses espaços vêm sendo cada vez mais
econômicos e de comunicação de massa, que “privatizados”: ruas são fechadas por cancelas,
espetacularizam o “caos urbano” e apresen- praças e parques são gradeados e até recebem
tam um quadro distorcido da realidade. Essa bilheterias nas suas entradas, com a justifica-
“cultura do medo” reafirma o individualismo, tiva de ampliar a segurança (Albernaz, 2007).
o hedonismo e o consumismo, em detrimen- Em contraponto, o espaço apropriado por
to das interações sociais e do contato com a meio das práticas cotidianas é mais do que um
natureza, fazendo com que, cada vez mais, os espaço concreto: é percebido, vivido, subjetiva-
habitantes tornem-se indiferentes ao cuidado e do, ressignificado. Já não é espaço consumido,
à preservação dos espaços públicos. mas, sim, lugar afetivo e simbólico, relacionado
A expansão do capitalismo produziu à “experiência antropológica, poética ou mítica
grandes câmbios nos modos de vida, transfor- do espaço”. Certeau (2003, p. 172) destaca que
mando o tempo livre em tempo de consumo. A os “usuários” das cidades possuem a capaci-
consequência direta ocorre no espaço público, dade de superar a condição de meros consumi-
apropriado simbolicamente pelas grandes for- dores passivos, convertendo-se em “cidadãos”.
ças econômicas, que estimulam a progressiva Ao criar, diversificar e valorizar seus espaços
equiparação do conceito de “público” ao de públicos, a cidade converte-se em um espaço
“coletivo”, como se fossem equivalentes. A físico carregado de identidade, em lugar sim-
realidade brasileira evidencia esse tipo de dis- bólico de construção da cidadania (Castells,
curso sobre o espaço público “simbolicamente 2009). Assim, de fato, o conceito de cidadania
recuperado, higienizado e convertido em algo implica um desafio para as cidades: fazer com

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Marina Simone Dias, Milton Esteves Júnior

que seus lugares – centrais ou periféricos –, ignorados. O Brasil, por exemplo, tem enten-
seus bairros e seus espaços públicos tornem-se dido que as melhorias sanitárias aumentam a
produtores de sentido à vida cotidiana. expectativa de vida, implicando maior núme-
Construir cidades para as pessoas é ro de idosos. Na última década, por todo o
uma política necessária aos desafios do sé- País, espaços públicos receberam academias
culo XXI: “o custo de incluir a dimensão hu- populares para a prática de exercícios físicos,
mana é tão modesto, que os investimentos convidando os cidadãos a manter-se em for-
nessa área são possíveis a cidades do mundo ma. Em contrapartida, a população infantil
todo, independentemente do grau de desen- permanece desatendida, e os espaços e equi-
volvimento e de sua capacidade financeira” pamentos que lhe são destinados em nada
(Gehl, 2013, p. 7). Confirmando seu argumen- correspondem ao imaginário infantil e muito
to, observam-se esforços de reconhecimen- menos ao ideário lúdico, seguro e atrativo
to e inclusão de contingentes sociais antes aqui defendido.

Figura 1 – Balanços no Viaduto do Chá, Vale do Anhangabaú


São Paulo, 2013

Fonte: http://www.archdaily.com.br/br/01-118456/a-cidade-e-para-brincar-slash-basurama.

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

que lhe são apresentadas, influenciando sua


Repensando as cidades
percepção espacial e criando um mundo onde
para as crianças o extramuros do condomínio são cercados de
perigos e monstros.
Se, nas sociedades pré-industriais, a vida acon- No contexto das metrópoles brasileiras,
tecia na rua, o processo de urbanização, ocor- observa-se que as crianças têm sua liberda-
rido a partir do século XIX, acompanhado do de de movimentos reduzida, além de serem
desenvolvimento de estudos sobre a criança, tolhidas no desenvolvimento de suas formas
criou a necessidade de destinar parte dos espa- particulares de perceber a cidade. Em prol de
ços urbanos à infância. A partir do pós-guerra, uma suposta segurança, vêm-se confinadas em
evidenciou-se a necessidade de apostar pela espaços reservados a elas: “infantis”, fecha-
ludicidade e pela infância na busca de um futu- dos, artificiais, homogêneos, supervisionados e
6
ro melhor do que o vivido naqueles anos. controlados por adultos (Aitken, 2014; Oliveira,
Na busca de um equilíbrio dinâmico en- 2004). Geralmente são espaços que se carac-
tre sociedade, espaço urbano e natureza, indis- terizam por relações comerciais e de consumo,
sociável de elementos como participação, edu- sem surpresas nem riscos, sem estímulos nem
cação e inovação, é válido considerar o lugar diversidade, que cerceiam a criatividade e a in-
das infâncias contemporâneas e a responsabi- fância em si.
lidade e o papel educador da cidade e do pró- Brincar é a forma de expressão da crian-
prio tecido urbano. Trata-se de colocar a cidade ça. Constitui sua primeira forma de aprendiza-
e seus espaços ao serviço de um projeto que gem, em que intervêm processos de criativi-
inclua as infâncias, não de forma “periférica”, dade, capacidade de racionalização e domínio
“adaptada”, mas especialmente planejada e da linguagem. Brincar constitui um fim em si
construída para as crianças, resgatando, assim, mesmo. Se, por um lado, a brincadeira é consi-
territórios do brincar (Dias e Ferreira, 2015). derada uma atividade cultural e antropológica,
Brincadeiras de crianças sempre fizeram biologicamente herdada, caracterizada como
parte da vida urbana. No passado, elas brin- espontânea, prazerosa e livre, na qual a apren-
cavam nos espaços urbanos, onde os adul- dizagem acontece, por outro lado, o que se vê
tos trabalhavam ou realizavam suas ativida- na nossa sociedade orientada para a produção
des. Como explica o psicopedagogo Tonucci é o “racionamento” e o “modelamento” do
(2005), há muito tempo, tínhamos medo do brincar, desnaturalizando o próprio caráter lú-
bosque. Era o bosque do lobo, da bruxa, do dico e gratuito da brincadeira (Lansky, 2012).
ogro. Era o lugar onde se podia perder, onde Notam-se o crescente desajuste do es-
podia acontecer qualquer coisa. Hoje, a cidade paço urbano para as necessidades infantis, a
tomou o lugar do bosque das fábulas infantis. ausência e/ou precariedade de espaços públi-
Principalmente para a criança que se encontra cos para o brincar livre, a escassez de espaços
na etapa de experimentar as possibilidades lúdicos, culturais e naturais, bem como a pouca
que a vida urbana oferece e se torna refém das atratividade que os existentes despertam nas
limitações que lhe são impostas e das imagens crianças (Oliveira, 2004). Mais ainda, é função

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Marina Simone Dias, Milton Esteves Júnior

dos espaços públicos promover a igualdade de água, sons e aromas, sol, sombra e brisa e, se
oferta e de oportunidades a todas as crianças, possível, equipamentos lúdicos de qualidade
sem distinção socioeconômica: espaços de qua- (Dias e Ferreira, 2015). Nossa aposta é pelos
lidade que possibilitem o brincar livre, em segu- espaços lúdicos acessíveis e de qualidade, para
rança, em contato com o urbano e a natureza, que o brincar faça parte do cotidiano – a exem-
para a vivência do coletivo, da urbanidade e da plo do que acontece em países europeus –, e
cidadania (Dias e Ferreira, 2015). não apenas pontual ou esporadicamente, nos
finais de semana. Para tanto, é essencial uma
Uma política pública de equipamentos
mudança cultural nos modos de apropriação
lúdicos deve assumir, também, um papel
de redutor das desigualdades sociais e dos espaços públicos.
econômicas. Tanto a formação das elites No atual ritmo da vida urbana, que de-
quanto a da marginalidade não se expli- termina às crianças um cotidiano repleto de
cam apenas pelas oportunidades de edu- compromissos, é necessário considerar a limi-
cação, de saúde e de acesso ao trabalho.
tação de espaço e, também, de tempo para o
Explicam-se, também, pelas oportunida-
des de brincar. (Garcia, 1996, p. 121) lazer infantil. Para contornar essas restrições,
em termos urbanísticos e paisagísticos, deve-se
O brincar no espaço público fortalece os considerar a distribuição equitativa dos espaços
vínculos comunitários, além de ser uma impor- infantis no território da cidade, bem como sua
tante ferramenta na construção de uma cultura integração e adequação com a vizinhança: pró-
de paz. A função dos parques infantis é – ou ximos a residências, escolas infantis e de ensino
deveria ser – fomentar o bem-estar e o desen- fundamental e de equipamentos públicos volta-
volvimento físico, cognitivo, emocional e social dos para outras faixas etárias (quadras espor-
da criança, unindo seus benefícios de saúde, tivas, academia da terceira idade, etc.), favore-
lazer, cultura, educação, socialização e cida- cendo, ainda, as relações intergeracionais.
dania aos do tempo espontâneo, do riso e do Apesar de convidativo a todos, os espa-
risco. Sobretudo, é importante que estimulem ços lúdicos não devem ser planejados e organi-
a iniciativa, a curiosidade e a imaginação da zados apenas para atender aos interesses dos
criança, sem determinar ou limitar suas formas pais ou dos adultos, mas sim às necessidades
de apropriação, permitindo criações e transfor- e subjetividades das crianças. Esse processo
mações no seu uso (Lima, 1989). É essencial implica conhecer a fundo a comunidade, uma
que o interesse pelo espaço lúdico não se es- vez que deve ser fruto de uma planificação que
gote após algumas brincadeiras e com o passar realmente seja capaz de atrair a criança e sua
do tempo, prolongando-se pelo maior período família. A participação das crianças no pro-
possível, renovando-se através do convite à cesso contribui para fomentar sua autonomia,
fantasia e da interação com outras crianças. fazer-lhes protagonistas, colocá-las em diálogo
É difícil idealizar um ambiente público com outros cidadãos, adquirindo um conheci-
mais saudável, rico e estimulante do que um es- mento mais profundo e duradouro da cidade.
paço lúdico com a presença da paisagem e da O cuidado e o respeito pelas singularidades
natureza: areia, terra, árvores, flores, animais, socioculturais das comunidades, aliados às

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

características do seu entorno e paisagem, po- planejamento, entendendo o potencial dos


dem ser a chave para a criação de espaços que espaços públicos em tornarem-se espaços de
preservem sua identidade cultural e garantam desfrute e aprendizagem. Por mais limitados
sua apropriação. que sejam os recursos, é importante não su-
Urge, portanto, compreender que as bestimar as possibilidades das futuras áreas
áreas lúdicas públicas podem ser diferentes infantis, já que intervenções mínimas podem
das soluções padronizadas e obsoletas gene- permitir excelentes experiências lúdicas que
ralizadas pelo Brasil afora, sem que isso pres- explorem aspectos sensoriais, emocionais e/
suponha investimentos econômicos maiores. ou simbólicos do espaço, que recordam que a
Basta dedicar interesse e criatividade ao seu cidade é para brincar.

Figura 2 – Espaços públicos lúdicos

Fonte: Gehl (2013, p. 159). Fonte: Gehl (2013, p. 228).

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Marina Simone Dias, Milton Esteves Júnior

Guardian, 2016b). Desde a década de 1960,


Experiências
essa situação começou a mudar a partir de um
de transformações planejamento urbano municipal com um inte-
urbanas humanas resse renovado pela vida pública, com ênfase
na cidade como lugar de encontro, contando
Algumas metrópoles passaram por significati- com o apoio do Centro de Pesquisa de Espaço
vas transformações na sua paisagem nas últi- Público da Escola de Arquitetura de Copenha-
mas décadas, revitalizando seus espaços, me- gue (Gehl e Gemzoe, 2002).
lhorando as condições para os pedestres e ci- Para Gehl, o espaço público poderia ti-
clistas e promovendo novos padrões inclusivos rar as pessoas do isolamento. Assim, em 1962,
de uso e práticas sociais, dando vez também a realizou-se a primeira experiência de excluir
idosos, jovens e crianças. Foram selecionadas os automóveis e as vagas de estacionamen-
quatro experiências bem-sucedidas de cidades to da principal rua de Copenhague, aberta
europeias e latino-americanas que desenvolve- para a conformação de novos espaços e usos
ram suas próprias políticas urbanas integradas: públicos. O sucesso dessas intervenções no
Copenhague, Barcelona, Medellín e Curitiba. centro da cidade estimulou novas ações estra-
tégicas, realizadas ao longo das décadas se-
guintes: outras vias tornaram-se pedonais, di-
versas praças foram criadas e revitalizadas ao
Caminhar e pedalar
longo dessas vias, e os dezoito quarteirões da
em Copenhague área central de Copenhague foram liberados
dos estacionamentos. Para a reestruturação
Copenhague, capital da Dinamarca, com mais da mobilidade, foram fundamentais o desen-
de 1,2 milhão de habitantes, é um exemplo volvimento do transporte coletivo e a criação
destacado na Europa de renovação urbana de uma grande malha de ciclovias e do sistema
que humanizou a cidade. Após a Segunda público de bicicletas. A cultura ciclista e pe-
Guerra, com o crescimento da frota particular donal ganhou novo impulso com a crise mun-
e da circulação de veículos, passou a ser uma dial do petróleo da década de 1970. O projeto
cidade voltada para automóveis. Não se acre- preocupou-se também com a arborização, a
ditava na possibilidade de redução do seu uso melhoria do mobiliário urbano e do sistema de
nem de vida pública ao ar livre em seus es- iluminação noturna. Ademais, a zona portuá-
paços urbanos deteriorados. Pensava-se que o ria foi recuperada, e o rio Arhus, canalizado e
futuro estava em enormes blocos com apar- transformado em via para o tráfego de veículos
tamentos e complexos sistemas de tráfego. na década de 1930, foi reaberto e limpo entre
Entretanto, devido à falta de recursos, esse 1996 e 1998, resultando em espaços públicos
cenário não se concretizou, e o desenvolvi- de recreação ao longo de seu curso (ibid.). Nos
mento de Copenhague tomou outra trajetória, últimos anos, outras intervenções vêm sendo
escapando das garras de concreto congestio- aplicadas em zonas mais periféricas do territó-
nadas do planejamento urbano moderno (The rio urbano e metropolitano.

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

Cinco décadas depois, Copenhague crianças é uma constante nos seus espaços
possui um modelo urbano exemplar, que con- públicos, tanto nos dedicados a elas quan-
tinua a manter o seu parque habitacional his- to nos demais, junto a outros grupos etários,
tórico, uso intensivo de bicicletas e extensa tornando-se o lúdico um bem comum. A cidade
zona pedonal. Impactantes resultados sociais conquistou uma vida pública mais versátil, o
traduzem-se no ressurgimento de uma cultu- desenvolvimento de uma nova cultura urbana e
ra ciclista para atividades diárias, perdida no a descoberta de novas oportunidades. Com um
pós-guerra, e atualmente cerca de 50% dos planejamento com ênfase no cidadão, Cope-
habitantes pedalam todos os dias em uma re- nhague atualmente transmite uma mensagem
de de ciclovias de 390 km; na presença plena clara a seus habitantes e visitantes: convida
do pedestre no espaço público, em passagem, à fruição de seus espaços públicos a partir de
descanso ou permanência; na ampliação do uma experiência inclusiva, mais vívida, mais lú-
período de realização de atividades ao ar livre, dica, da cultura ciclista e pedonal (ibid.; Gehl,
apesar das temperaturas baixas; no surgimento 2013), conferindo-lhe o título de uma das cida-
de uma cultura de cafeterias. A presença de des mais “habitáveis” do mundo.

Figura 3 – Strøget, Copenhague

Fonte: http://www.visitdenmark.com.br/pt-br/dinamarca/nordic-star

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Marina Simone Dias, Milton Esteves Júnior

Figura 4 – Cultura ciclista, Copenhague

Fonte: http://www.visitdenmark.com/copenhagen/activities/copenhagen-two-wheels-0

Barcelona, posa’t guapa! pelas muralhas medievais. Com a demolição


destas, a cidade e o governo tiveram que con-
Barcelona, na Espanha, localizada às margens ceber e gerir a súbita redistribuição de uma
do Mediterrâneo e limitada pela serra de Coll- população transbordante. Foi uma decisão con-
serola e pelos rios Llobregat e Besòs, com 1,6 troversa e política, que levou ao radical plano
milhão de habitantes, é uma cidade densa e de expansão do engenheiro Ildefons Cerdà: um
compacta. Sua primeira remodelação urbana grande distrito em grelha, com blocos ortogo-
remonta ao século XIX: em meados da déca- nais, chanfrados nos cantos, chamado Eixample
da de 1850, era um centro industrial, liderado (literalmente, “expansão”). O plano Cerdà re-
principalmente pelo setor têxtil e com um porto presentou uma espécie de “libertação”, e fun-
movimentado. Sua densidade a levava à beira dou o conceito de “urbanização” norteado por
do colapso, com uma população de 187.000 um senso de igualdade e uma ideologia social
2
habitantes em uma área de 2 km , confinada (The Guardian, 2016a).

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

No final do século XX, sua remodelação, Jogos Olímpicos a Barcelona, o processo de


desenvolvida a partir do espaço público e que renovação urbana constou de: estabelecimen-
inclui a arte e o lúdico, é emblemática na Euro- to de um plano diretor estratégico; reabilitação
pa e no mundo. No entanto, durante o período de mais de 150 espaços públicos tradicionais
franquista, seus espaços públicos foram negli- (praças, parques, jardins); implementação de
genciados, e a cidade foi tomada pelos automó- um novo mobiliário urbano para as ruas; rea-
veis, o que lhe impôs um crescimento intensivo valiação dos equipamentos urbanos; completa
e desordenado. A partir da década de 1980, a modernização infraestrutural. Foi realizada,
reconquista da democracia desencadeou uma ainda, a requalificação de sua área industrial,
avalanche de iniciativas e liberou uma geração então abandonada e deteriorada, e que, por
de arquitetos e urbanistas reprimida pela dita- sua localização, havia separado a cidade do
dura. Durante o mandato do prefeito Pasqual mar, devolvendo o contato entre Barcelona e o
Maragall, com grande apoio popular, o tecido Mediterrâneo (Bohigas, 1985).
urbano de Barcelona foi totalmente revitaliza- Nos últimos anos, a ênfase foi dada à re-
do segundo o “Modelo Barcelona”, idealiza- estruturação da mobilidade urbana, através de
do pelo arquiteto urbanista Oriol Bohigas. No expansão e melhoria do sistema de transporte
entanto, foram os Jogos Olímpicos de 1992 – coletivo intermodal e da política de restrição
como catalisador para uma reforma visionária, aos automóveis, além da implantação de ci-
com um planejamento estratégico-espetacular clovias e do sistema público de aluguel de bi-
específico – que criaram a base econômica pa- cicletas. Também foram eliminados viadutos e
ra a implantação de um planejamento de maior vias elevadas que impediam o desfrute da pai-
escala. Bohigas desenvolveu uma política urba- sagem. As intervenções disseminaram-se por
na ativa, que enfatizava mais os projetos que todo o território, tanto na escala do quarteirão
os planos e a legislação urbana. Também criou quanto na dos bairros, dos distritos, da cidade
um importante escritório de desenho urbano e dos municípios vizinhos. A nova política ur-
independente (Servei de Projectes Urbans), di- bana voltada para os pedestres e seus encon-
vidido em dez distritos (Gehl e Gemzoe, 2002). tros criou refinados espaços públicos para ati-
Realizados em apenas uma década, os vidades sociais e recreativas. A recuperação de
pontos de partida do “Modelo Barcelona” fo- parques e praças, somada à transformação de
ram claros: remodelar a cidade, respeitando e áreas residuais, vem criando espaços multifun-
aproveitando suas próprias especificidades, e cionais e diversificados, cada um com sua iden-
recuperar os escassos espaços livres existentes tidade própria. Novas edificações e obras de
(Montaner, 1999). Em sua maioria, os espaços arte de autores prestigiados passaram a fazer
públicos foram criados a partir da demolição parte dos espaços públicos, levando a arte e o
de edifícios ou fábricas abandonadas e, em lúdico à rua. Desenvolveu-se, também, uma re-
menor grau, pela restrição de áreas anterior- de com cerca de 700 áreas lúdicas infantis, ao
mente dedicadas aos veículos. Além da im- mesmo tempo que foi sendo incorporada uma
plantação de quatro áreas olímpicas integra- nova cultura que manifesta evidente consciên-
das à cidade, que constituíram um legado dos cia do brincar como parte do cotidiano urbano.

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Figura 5 – Parc de l’Estació del Nord, Barcelona

Fonte: http://andatori.blogspot.com.br/2011/02/barcelona-parque-de-la-estacio-del-nord.html

Figura 6 – Parc Diagonal Mar, Barcelona

Fonte: http://qxulus.blogspot.com.br/2013/12/parc-dels-tobogans.html

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

À medida que Barcelona foi se reinven- teve Barcelona e, principalmente Curitiba, co-
tando e desenvolvendo um novo modelo a mo modelos nos quais se inspirar. Em 2004,
partir de seus espaços públicos, bem como da uma união de forças políticas e sociais pela paz
combinação de alguns megaprojetos urbanos e cidadania promoveu a revitalização urbana
espetaculares com centenas de criativas mi- através de ações combinadas, ou melhor, de
crointervenções urbanísticas e paisagísticas de cadeias de intervenções que “costuraram” a
reabilitação de espaços públicos, consolidou- cidade. Estas incluíram experiências radicais no
-se como uma Barcelona pós-Olimpíadas, di- planejamento urbano e formas participativas
nâmica e cosmopolita, com alta qualidade de de governo, com um porta-voz e intérprete da
vida urbana e uma atrativa paisagem arquite- comunidade nas intervenções propostas e atra-
tônica, artística e cultural. Barcelona conver- vés de “oficinas imaginativas” com os morado-
teu-se em um verdadeiro ícone de desenho res das comunidades. O urbanismo foi utilizado
urbano, que se destaca pela diversidade paisa- como ferramenta para promover a mobilidade
gística e cultural. social e a equidade. A chave para sua aborda-
gem foi o estabelecimento de um compromisso
com a esfera pública como um espaço compar-
Medellín: o ponto de inflexão tilhado, transformando os espaços públicos, an-
tes vistos como áreas de segregação e medo,
Com mais de 2,4 milhões de habitantes, em espaços onde as comunidades pudessem
Medellín, na Colômbia, foi um campo de ba- conviver com qualidade (The Guardian, 2016d).
talha da guerra às drogas, marcada por anos As citadas ações combinadas incluíram
de violência, medo e desigualdade social, estratégias voltadas a acessibilidade e mobili-
plasmados na precariedade de seus espaços dade integrada, que implantaram um sistema
urbanos. À beira de um colapso, foi essa mes- intermodal adaptado à geografia da cidade,
ma situação que criou as condições de um re- incluindo: metrô (elevado e de superfície); me-
nascimento extraordinário, apagando a cisão trocable (teleférico), metroplús (BRT), micro-
entre a cidade reticulada no vale e os assen- -ônibus, ciclovias, pontes e passarelas, escadas
tamentos informais nos morros. Em menos de rolantes, além de prever a implementação do
uma década, Medellín tornou-se referência de VLT (veículo leve sobre trilhos). Outra estraté-
transformação urbana baseada no urbanismo gia foi a implantação de um sistema pré-pago,
social e inclusivo, além de ser modelo de cida- que viabilizou o fornecimento de serviços bási-
de educadora. cos a toda população. Foi importante a criação
O território de Medellín é marcado por da Empresa de Desenvolvimento Urbano (EDU),
topografia acidentada, que isolava suas co- com uma independência burocrática e equipes
munidades. Essa peculiar morfologia condicio- multidisciplinares atuando em diferentes seto-
nou as propostas arquitetônicas e urbanísticas res da cidade. Criou-se, ainda, o PUI (Projeto
que começaram a ser desenvolvidas ainda na Urbano Integral), um instrumento de interven-
década de 1990. Por ser uma experiência de ção urbana que abarca a dimensão física, so-
revitalização urbana mais recente, Medellín cial e institucional.

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Figura 7 – Plaza Botero, Medellín, Colômbia

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pano_Plazo_Botero.jpg

Figura 8 – Parque de los Pies Descalzos, Medellín, Colômbia

Fonte: https://issuu.com/maurobrunelli/docs/apropiaci__n_del_espacio_p__blico_j

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

A região nordeste da cidade, caracteriza- anteriormente hostil. Hoje é uma cidade que
da pelos bairros autoconstruídos mais densos se abre à vivência urbana e apresenta ao
e com maiores índices de violência, passou a mundo uma imagem arquitetônica, social e
ser considerada um laboratório urbano. Ali se cultural renovada.
desenvolveram projetos urbanos integrais com
alto investimento público para melhorar as
condições de vida através de equipamentos
e espaços públicos, mobilidade e habitação.
Curitiba: novo paradigma
Os morros de favelas passaram de invisíveis à
urbanístico
condição de protagonistas de uma transforma-
ção urbana com enfoque social, que requereu Maior cidade do sul do Brasil, Curitiba, capital
metodologias transdisciplinares inovadoras do Paraná, possui mais de 1,8 milhão de ha-
(Castaño Cárdenas, 2015). bitantes e é, sem dúvida, o exemplo nacional
A década passada trouxe uma nova mais paradigmático de planejamento urbano e
arquitetura expressa em obras de grande im- transformação territorial voltada para as pes-
pacto urbanístico e paisagístico nas áreas mais soas. Na década de 1960, a cidade passava por
carentes: especialmente relevantes foram os uma vertiginosa e caótica expansão: Brasília
projetos dos parques-bibliotecas, com design lançava uma sombra sobre o futuro do planeja-
ousado, que ajudaram a transformar também mento das metrópoles brasileiras. Com espaços
a imagem da cidade, e as diversas praças e públicos deteriorados, um tráfego problemático
parques com alto nível de desenho urbano, e o crescimento das favelas, que minavam a
equipamentos e mobiliário. A revitalização qualidade de vida urbana, Curitiba vislumbrava
das margens do rio Medellín, transformadas a abertura de novas vias expressas a partir da
num imenso parque linear, e cujas obras já demolição de edifícios históricos e da constru-
foram iniciadas, terá a maior parte do trânsi- ção de viadutos que se conectariam com o cen-
to veicular rebaixada, possibilitando uma nova tro da cidade (Plano Agache).
e rica interação de pedestres e ciclistas com a No entanto, em 1965, o arquiteto urba-
natureza em um espaço público qualificado e nista Jaime Lerner participou da criação do
em escala metropolitana. Instituto de Planejamento Urbano de Curi-
Levando educação, cultura e arte para tiba (Ippuc), responsável pelo Plano Diretor
os espaços públicos, Medellín transformou-se da cidade, que rechaçou a proposta, dando
em cidade educadora: nos espaços públicos, início às primeiras intervenções: restrição ao
os usuários são convidados a descalçarem-se, tráfego de automóveis no centro da cidade e
a sentirem os diferentes tipos de superfícies, substituição do crescimento radial por uma
a brincarem com fontes e espelhos d’água. expansão linear ao longo de cinco corredores
Cerca de uma década depois de iniciadas es- de transporte. Cada corredor foi construído ao
sas políticas públicas, Medellín revitalizou seu lado de um bulevar central para o transporte
tecido urbano e sua paisagem, construindo público. Entretanto, as mudanças mais signi-
um novo espírito cidadão em uma sociedade ficativas aconteceram nos três mandatos de

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Lerner na prefeitura de Curitiba (entre 1971- Além disso, foram criadas dezenas de parques
1992), antes de ser eleito duas vezes governa- e bosques urbanos e, também, outros espaços
dor do Paraná (até 2002), ao pensar a cidade públicos. Os novos parques são notáveis por
de modo integral: mobilidade, espaço público, sua profusão de tratamentos arquitetônicos
sustentabilidade. e paisagísticos. Vários deles foram instalados
Já, em 1972, através do impedimento em áreas de antigas pedreiras desativadas,
do tráfego de veículos, foi criado em Curitiba como estratégia para impedir a degradação
o primeiro “calçadão” do Brasil, a Rua XV de e valorizar seu potencial ecológico e paisa-
Novembro. A obra foi realizada em 72 horas gístico (Rogers e Gumuchdjian, 2001). Se, em
para que não houvesse tempo de ser rejeitada 1971, Curitiba tinha 0,5m2 de área verde por
pelos comerciantes e paralisada. Com as no- habitante, 20 anos depois seus indicadores
vas ruas exclusivas para pedestres, diversas contam com um total cem vezes maior, a par-
praças no centro da cidade foram renovadas, tir de um sistemático programa de tratamen-
potencializando os encontros e as vivências. O to paisagístico, que incluiu a proteção do rio
plano de Curitiba se desenvolveu a partir da Iguaçu, o principal da cidade, para que não
implantação de um sistema pioneiro de trans- fosse canalizado. Essas transformações urba-
porte coletivo de massa, o Bus Rapid Transit nas criaram áreas verdes para convívio social
(BRT). O sistema conta com: vias exclusivas de e contato com a natureza.
ônibus, de configuração alongada e articula- As intervenções em mobilidade urbana e
da; terminais confortáveis e estações “tubo”, espaços públicos livres resultaram em uma alta
em plataformas elevadas, à altura do piso dos qualidade de vida urbana e no surgimento de
ônibus, permitindo acesso rápido, boas cone- um sentimento de pertencimento e orgulho da
xões, sistema de pré-pagamento e bilhete úni- população, que possibilita, ao curitibano, não
co. O BRT revolucionou a mobilidade urbana só o desfrute e a autoexpressão, mas também
de Curitiba, com uma considerável redução do o cuidado com seus espaços públicos, servindo
tempo de espera e de deslocamento. Foi im- de exemplo para o restante do País. Apesar de
plementada, ainda, uma complexa rede de ci- ainda hoje apresentar grande número de veí-
clovias, uma das primeiras do Brasil, articula- culos particulares, Curitiba alcançou resultados
da com as zonas verdes da cidade (Gehl e surpreendentes, emergindo como referência
Gemzoe, 2002). mundial em sustentabilidade, mobilidade e
Com uma forte preocupação meio am- espaços públicos. Sua posição, como uma das
biental, criou-se o programa Green Exchange, metrópoles com mais qualidade de vida do País
através do qual os moradores trocam lixo por e líder entre as cidades sustentáveis (ibid.), foi
fichas, e estas por produtos. Hoje em dia, 90% resultado de iniciativas que conjugaram dese-
da cidade, ou seja, mais de 10.000 residentes, nho inteligente, ações de relativo baixo custo
participam do programa de reciclagem. En- e as oportunidades oferecidas pelo contexto
quanto a maioria das cidades acumula ater- e paisagem. Infelizmente, ao que tudo indica,
ros sanitários ao longo da periferia, Curitiba parece que os poderes públicos estão mais
recicla 70% do seu lixo (The Guardian, 2016c). empenhados em relegar a cidade ao descuido

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

e à degradação do que em preservar e dar plo paradigmático de qualidade urbana e am-


continuidade ao que fez de Curitiba um exem- biental para o Brasil e para o mundo.

Figura 9 – BRT, Curitiba

Fonte: http://inhabitat.com/transporation-tuesday-curitiba/

Figura 10 – Rua XV de Novembro, Curitiba

antes (anos 1960) depois (anos 2000)

Fonte: VIEIRA, 2010, p. 80; http://www.guiaturismocuritiba.com/2010/12/calcadao-da-rua-xv-rua-das-flores.html

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ser a cidade do século XXI, estamos seguros de


Considerações finais
como não deve ser. A única certeza reside na
necessidade de uma mudança de paradigma,
A partir dos processos de transformação urba- que pense a cidade para os seus cidadãos.
na aqui descritos – que incluíram reestrutura- Tal panorama suscita a necessidade de
ção, renovação, remodelação e revitalização –, reavaliar conceitos e modelos que se revela-
comprovamos a validade da hipótese proposta ram inadequados às necessidades urbanas. Ou,
de que é possível devolver à cidade sua huma- ainda, extremamente eficientes, mas nesse ca-
nidade, geralmente tomando a reestruturação so, em prol de objetivos que não atendem às
da mobilidade urbana como estratégia para aspirações atuais e muito menos à totalidade
permitir a articulação e, consequentemente, a urbana. Vivemos um momento de inflexão no
revitalização de seus espaços públicos. Cabe urbanismo mundial, principalmente no Brasil,
salientar, ainda, outros fatores comuns a esses com suas problemáticas adicionais, demandan-
exemplos: a valorização da relação de vizi- do do planejamento de modelos menos estáti-
nhança e comunidade, a ênfase à gestão terri- cos, menos influenciados por ideários predeter-
torial participativa, através de assembleias e de minados, mais abertos para aceitar e assimilar
debates públicos e a criação de algum tipo de questões mais fluidas, próprias de uma socie-
agência independente de planejamento urbano dade altamente diversificada e cambiante. O
e de projetos, com equipes multidisciplinares “neourbanismo” de Ascher, priorizando a com-
que articularam os trabalhos em conjunto às pacidade urbana, é um caminho que necessita
comunidades e aos governos locais. mais experiências para confirmar sua validade.
Quando centramos atenção na situação O “novo urbanismo”, preconizado por Gehl, é
brasileira, fica evidente que seu processo de ur- uma alternativa que propõe cidades mais hu-
banização resiste a abordagens generalizantes manas, povoadas por espaços para pessoas e
e simplificadoras. Entretanto, é possível afirmar aprendizagens. Essas propostas não foram aqui
que esteve marcado tanto por sua velocidade ressaltadas por definirem modelos de espaciali-
e intensidade, quanto pelas dificuldades em dades urbanas que se pretende meramente re-
controlá-lo mediante usuais instrumentos de plicar, mas por traduzirem princípios de ordem
planejamento urbano. O cenário atual inclui projetual capaz de resgatar o valor dos espaços
metrópoles dilatadas, com espacialidades des- públicos na vida urbana, abandonados e dete-
conectadas e descontextualizadas, que conso- riorados nas metrópoles brasileiras.
mem seus recursos naturais cada vez mais es- As promessas que justificaram a con-
cassos. A qualidade de vida urbana desvanece solidação do modelo industrial, racionalista e
diante das grandes distâncias a serem percorri- tecnológico de uma sociedade com mais tempo
das diariamente, do transporte de massa inefi- livre para lazer e recreação, para os encontros
ciente, que consome energia e tempo, e da de- e a convivência sociais e para o desfrute dos
manda por novas infraestruturas, que acrescen- espaços públicos urbanos se converteram em
ta problemáticas ambientais, entre tantas ou- uma falácia, e, na realidade, transformaram o
tras. Se ainda não sabemos ao certo como deve tempo dos cidadãos em tempo individualizado

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O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

e de consumo, consolidando os shopping cen- dos espaços públicos a fim de fortalecer o pa-
ters como sua máxima expressão. Como conse- pel da cidade como fórum democrático e lócus
quência, nossas cidades apresentam expressiva de cidadania, ou seja, como uma “extensão da
carência quantitativa e qualitativa de espaços práxis urbana, da pólis (política), da civitas (ci-
públicos livres. Escasseiam os espaços de en- dadania) e da própria urbe (enquanto espaço
contro e convívio, agradáveis e acessíveis para social construído) a todo o espaço social e hu-
o conjunto da população, ratificando uma cul- mano” (Monte-Mór, 2006, p. 193).
tura que aprende desde cedo que os espaços Mesmo numa certa periferia do mundo
públicos são inseguros, degradados e que de- globalizado, podemos acreditar que muitos
vem ser evitados. Questiona-se, portanto, acer- urbanistas brasileiros tentam encontrar um ca-
ca das cidades que estamos criando, com am- minho para reestruturação e revitalização das
bientes hostis aos seus próprios habitantes, em nossas metrópoles e para lograrmos a constru-
especial aos idosos e crianças, tratados como ção de cidades mais humanas. Para tanto, par-
cidadãos de segunda categoria. timos do pressuposto de que o espaço público
Felizmente é possível notar que, com o livre e os espaços lúdicos são estruturantes
apoio de movimentos sociais, o espaço públi- para a revitalização urbana e que as crianças
co de algumas metrópoles vem passando por devem ser a escala primária de tal processo.
um momento de redescoberta e apropriação Pensar as infâncias, a educação e a construção
coletiva, vem sendo afirmado e ressignificado de espaços de convivência e de diálogo é o
como os potenciais lugares para uma mudan- principal caminho para cidades mais inclusivas,
ça cultural efetiva em prol do desenvolvimento educadoras e igualitárias.
de uma nova cidadania. A partir da análise dos Desse modo, apostamos em um planeja-
processos de transformação urbana vividos mento urbano mais humano, inclusivo, demo-
por Copenhague, Barcelona, Medellín e Curiti- crático e seguro, e que passa por: ser susten-
ba, pudemos comprovar a validade da hipóte- tável, integrando valores naturais e humanos;
se implícita nessa redescoberta e apropriação valorizar outras práticas sociais, outras culturas
coletiva. Essas experiências confirmaram a urbanas e a diversidade; priorizar o pedestre, o
eficácia de priorizar certos aspectos ineren- ciclista e os transportes coletivos sustentáveis;
tes ao planejamento urbano responsável por valorizar os espaços de permanência em detri-
intervenções com base em segurança (ruas e mento dos espaços de passagem; valorizar, re-
bairros multifuncionais, diversidade de usos, qualificar e criar novos espaços públicos livres,
desestimando a cultura do medo), sustentabi- recuperando espaços residuais e intersticiais;
lidade (compacidade, transporte coletivo sus- valorizar os aspectos ambientais, paisagísticos,
tentável), saúde (valorização da cultura ciclista históricos e culturais em cada espaço público;
e pedonal), e vivacidade (ambientes atrativos, incorporar a arte e o lúdico aos espaços urba-
agradáveis e acessíveis). nos, estimulando seu uso criativo; requalificar
Desse modo, apostamos em um planeja- e criar novos espaços lúdicos, para todas as
mento urbano mais humano, inclusivo, demo- crianças e suas famílias; articular os espaços
crático e seguro, objetivando a revitalização públicos com a cidade e em rede; fomentar a

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Marina Simone Dias, Milton Esteves Júnior

apropriação dos espaços públicos, através dos espaço público por meio dos jogos e das brin-
processos de participação, criação, uso, identi- cadeiras, tanto na sua dimensão física quanto
ficação, cuidado e manutenção. Através da re- na simbólica, poderemos proporcionar, às in-
vitalização dos espaços públicos, fortalece-se fâncias e aos demais grupos etários, a possibi-
o papel da cidade como fórum democrático e lidade de interagir com o espaço, bem como a
lócus de cidadania. capacidade de realização da cidade que dese-
Em última análise, as metrópoles con- jamos construir: uma cidade de espaços edu-
temporâneas brasileiras revelam a necessidade cadores, com estética e dignidade para todos.
não somente de considerar a criança dentro Como planejadores urbanos, temos a oportu-
do planejamento urbano, mas também de re- nidade de projetar cenários, de (re)criar espa-
conhecer o potencial que os espaços lúdicos ços públicos como territórios lúdicos, enfim, de
têm de relação comunitária dentro do tecido assumir a utopia jamais como algo ilusório ou
urbano. A partir da cultura e da apropriação do impossível, mas sim como possibilidade real.

Marina Simone Dias


Universitat Politècnica de Catalunya, Escola Tècnica Superior d’Arquitectura de Barcelona. Barcelona,
Espanha.
marinasimonedias@yahoo.com.br

Milton Esteves Júnior


Universidade Federal do Espírito Santo, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo.
Vitória, ES/Brasil.
m.estevesg3@gmail.com

660 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 635-663, maio/ago 2017
O espaço público e o lúdico como estratégias de planejamento urbano humano...

Notas
(1) U lizamos o termo “metápoles” e “metapolitanos”, tal como Ascher (1998), para denominar
assentamentos urbanos em configurações expandidas, atomizadas, fragmentadas e
fragmentárias que ultrapassam e englobam as zonas metropolitanas stricto sensu.

(2) O conceito de “espaço público” admite inúmeras acepções. Assim mencionado, refere-se a uma
“categoria espacial” e a um enfoque epistemológico metacientífico. Quando referido como
“espaços públicos”, pressupõe contextualizações históricas e/ou sico-territoriais rela vas a
dis ntas espacialidades, das quais derivam outras tantas conceituações como “espaços livres
públicos”, “espaços semipúblicos”, “espaços públicos, mas não civis”. Já o conceito de “espaço
livre” se refere aos espaços não construídos, desprovidos de edificações ou de coberturas.
Assim, o conceito associa vo de “sistemas de espaços livres público” é mais amplo e engloba
espacialidades e instalações des nadas ao uso público, tais como ruas, largos, praças, parques,
passeios marítimos, quadras, etc. Dentre outros autores que abordam essas questões,
destacam-se: Hanna Arendt, Miranda Magnoli, Herman Hertzberger, Zygmunt Bauman, José
Guilherme Cantor Magnani, Richard Senne .

(3) O modelo “fordista”, fundado por Henry Ford em 1903, baseava-se em linhas de produção que
atuavam em monobloco, em que, em uma ponta, entravam matérias-primas e, em outra, saíam
artigos prontos para o consumo. Esse modelo foi superado pelo “toyotismo”, baseado em
cadeias produ vas que operam de modo fragmentário em montadoras, distribuídas em diversas
localidades, selecionadas em função das melhores ofertas materiais, tecnológicas e econômicas,
recursos logís cos e de mobilidade e comunicação disponíveis.

(4) Não caberia aqui detalhar os conceitos como “países subdesenvolvidos ou periféricos”, que fazem
parte de regimes de representação regidos por juízos de valores estabelecidos por modelos
(tecnológicos, econômicos e sociais) discu veis, que, via de regra, encerram preconceitos e,
portanto, estranhos ao ideário aqui defendido.

(5) No que se refere ao universo temá co da topofilia, terrafilia e iden dade territorial, destacam-se
os trabalhos desenvolvidos no Centro de Estudos do Território, Cultura e Desenvolvimento, por
autores como Zoran Roca, sistema zados e contextualizados na realidade brasileira em Moraes
(2012).

(6) A reconstrução de Amsterdã recebeu intervenções do arquiteto Aldo van Eyck, que trabalhou no
Departamento de Obras Públicas e projetou mais de oitocentos espaços infan s entre 1946-
1978, planejados para pequenas áreas residuais e pensados especificamente para cada terreno
e com mínimos elementos.

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Texto recebido em 2/maio/2016


Texto aprovado em 29/jun/2016

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 635-663, maio/ago 2017 663
La relación entre inversión
municipal pública y calidad de vida
en las ciudades metropolitanas en Chile*
The relation between public municipal investment
and quality of life in the metropolitan cities of Chile

Arturo Orellana
Catalina Marshall

Resumen
La calidad de vida urbana constituye una de Abstract
las preocupaciones principales en las ciudades Urban quality of life is one of the main concerns
metropolitanas en Latinoamérica, conforme of m e t r o p o li t a n ci t ie s in L at in A m e r ic a .
variados estudios dan cuenta de que existe un According to many studies, it is possible to
patrón de desigualdad territorial importante y que, notice that there is a significant pattern of
por lo general, afecta a la mayoría de la población territorial inequality which usually affects the
residente. En el caso de Chile, la realidad que largest part of the local population. In the case
enfrentan las tres ciudades metropolitanas en of Chile, the reality faced by the metropolitan
torno a Santiago, Valparaíso y Concepción sigue c i t i e s a r o u n d S a n t i a g o , Va l p a r a í s o a n d
esta tendencia, siendo particularmente relevante Concepción, follows this trend, and the role
el rol que juega la inversión municipal. Desde played by municipal investment is particularly
dicha perspectiva, esta investigación intenta una relevant. From this perspective, this study
aproximación al impacto de la inversión municipal investigates the impact of municipal investment
en la calidad de vida urbana; se analiza con mayor on urban qualit y of life. Public municipal
aproximación la inversión municipal pública, y se investment undergoes a more detailed analysis.
muestra que los mecanismos de financiamiento We found that the f inancing mechanisms
que operan con mayor autonomía del nivel central that operate with greater autonomy from the
de gobierno – básicamente inversión municipal y federal government – basically, municipal and
regional – no tienen una incidencia significativa regional investment – do not have a significant
en la calidad de vida urbana, siendo la inversión impact on urban quality of life, and private
privada un agente más incidente, sin embargo de investment becomes more present, although in
manera discriminatoria. a discretionary fashion.
Palabra claves: ciudades metropolitana; calidad Keywords: metropolitan cities, urban quality of life
de vida urbana e inversión municipal. and municipal investment.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3913
Arturo Orellana, Catalina Marshall

Una consecuencia de dicho contraste es


Introducción
la mayor dependencia de numerosos gobiernos
Actualmente, al interior de las ciudades de locales a fondos públicos para el desarrollo de
escala metropolitana (en adelante, ciudades programas y proyectos que permitan mejorar
metropolitanas) de Chile, coexisten realidades aspectos de infraestructura pública, educación,
fuertemente disímiles con respecto al estándar bienestar social y salud en sus respectivos
del desarrollo urbano y calidad de vida urbana. territorios. La vía de este financiamiento para
Para comprobar aquello, basta con recorrer todas las comunas en Chile, proviene en no
las principales ciudades; tanto el nivel de más de un 24% del presupuesto municipal,
desarrollo económico territorial (dado por un 14% del inversión regional y casi un 62%
el desarrollo de servicios y equipamiento) directamente del nivel central de gobierno a
como la fuerte segregación socio-espacial través de los ministerios sectoriales.1
residencial, dejan entrever una interrogante N o o b s t a n t e l o a n t e r i o r, e s t a
que se plantea hace bastantes años y que no investigación busca dar cuenta del impacto
solo tiene relación con dinámicas de carácter que tiene la acción del mercado en la
históricas y regulatorias de uso de suelo, configuración urbana de nuestras ciudades
sino también relacionadas a las dinámicas metropolitanas, para lo cual hay claridad de
de la inversión privada y pública. Una de las que a mayor inversión municipal, mayor es la
principales herramientas para medir aspectos calidad de vida, conforme se contemple tanto
de calidad de vida a nivel local (comunas) la inversión pública y privada. En este artículo
en Chile es el Indicador de Calidad de Vida nos centraremos en analizar el impacto de la
Urbana (ICVU), elaborado por el Instituto de inversión municipal pública en mayor detalle.
Estudios Urbanos y Territoriales de la Pontificia Es en este punto que nos queremos detener
Universidad Católica y la Cámara Chilena de a recalcar y mostrar que a mayor inversión
la Construcción de Chile. Este indicador busca municipal pública, no se da una tendencia
medir: “Las condiciones de vida objetivas de alza en calidad de vida en la mayoría de
de la población generadas a partir de las los casos de las tres ciudades metropolitanas
actuaciones y dinámicas de transformación del a n a l i z a d a s ( S a n t i a g o , Va l p a r a í s o y
espacio urbano inducidas por actores públicos, Concepción).
privados y la sociedad civil” (Orellana, 2013). En tal sentido, se mostrará que los
Los resultados del ICVU que se entregan cada mecanismos de financiamiento que operan
año desde el año 2011, dejan en evidencia las del nivel central de gobierno, básicamente
brechas de inequidad en calidad de vida entre inversión municipal y regional, no tienen
comunas urbanas, particularmente entre las una incidencia significativa en la calidad
ciudades metropolitanas reconocidas como tal de vida urbana, siendo la inversión privada
por los instrumentos de planificación territorial un agente más incidente, sin embargo de
(Santiago, Valparaíso y Concepción). manera discriminatoria. Para el caso de la

666 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017
La relación entre inversión municipal pública y calidad de vida...

inversión municipal privada (responsable de Fondo Nacional de Desarrollo


casi el 80% de la inversión), de carácter más Regional (FNDR)
autónoma, sí hay una correlación entre una
mayor inversión con una mayor calidad de
El Fondo Nacional de Desarrollo Regional
vida, sin embargo esta inversión se proyecta
(FNDR) está definido por la Ley Orgánica
de manera discriminatoria, no necesariamente
Constitucional sobre Gobierno y Administración
atendiendo aquellas comunas con menor
Regional (LOCGAR) como un fondo destinado
infraestructura, equipamientos y servicios,
a la fortalecer la capacidad de gestión de
sino tiende a concentrarse a modo de clusters
los Gobiernos Regionales, con respecto a la
del desarrollo en aquellas comunas con mayor
inversión pública regional (LOCGAR, 1993).
riqueza.
El FNDR se oficializó mediante el D.L 575 del
año 1974; específicamente el artículo 24 del
D.L 575 garantiza que un 5% del total de los
Mecanismos de inversión ingresos tributarios (excluidos los ingresos
pública regional y municipal provenientes de los impuestos de bienes
raíces), se destinarían a las regiones mediante
Como se mencionaba en la sección el FNDR (D.L 575, 1974). Entre 1976 y 1984,
introductoria, en Chile, el principal mecanismo el FNDR constituía aporte fiscal directo; en
de redistribución de fondos públicos destinados 1985 se comenzó a operar con recursos por
a la ejecución de programas y proyectos de contratos de préstamos mediante el Programa
desarrollo regional es el Fondo Nacional de Inversión Múltiple de Desarrollo Local –
de Desarrollo Regional (FNDR). A su vez, el cofinanciado por el Banco Interamericano de
principal mecanismo de redistribución de Desarrollo (BID).
fondos intermunicipales es el Fondo Común Si bien el FNDR no es el fondo público
Municipal (FCM). Ambos mecanismos surgen más importante del estado Chileno, es el
en el contexto del proyecto de regionalización único creado con la finalidad de reducir
de la Comisión Nacional para la Reforma las diferencias regionales (Aroca, 2009). Se
Administrativa (Conara) en 1974. La Conara financian proyectos de saneamiento básico,
fue creada por la Junta Militar (que toma el electrificación rural, educación municipal, salud
poder en 1973 tras el golpe de estado) para pública, caminos rurales, agua potable, estudios
la reorganización de la división político- de pre-inversión, entre los sectores más
administrativa del país. Hoy en día, el FNDR y el importantes (IDER, 2009). Por otra parte, no ha
FCM se inscriben dentro del conjunto de fondos habido mayores cambios a su funcionamiento
de financiamiento para la inversión pública, los inicial; hoy en día el FNDR está constituido por
otros siendo los Fondos de Inversión Sectorial, una proporción del total de gastos de inversión
y los fondos de empresas del Estado (Ministerio pública que establece anualmente la Ley de
de Desarrollo Social, 2015). Presupuesto de la Nación.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017 667
Arturo Orellana, Catalina Marshall

Los recursos se distribuyen mediante Son muchas las críticas hacia el diseño
cuotas regionales, asignadas según el siguiente del mecanismo del FNDR; para algunos los
mecanismo (Subdere, 2015): problemas yacen en la falta de transparencia
1) El 90% del fondo: se distribuye entre las en la asignación, el alto nivel de burocracia
regiones a comienzos del año presupuestario en el proceso de postulación y ejecución de
según las condiciones socioeconómicas y proyectos y la falta de una normativa que
territoriales en relación al contexto nacional. incentive el uso eficiente de los recursos
Las condiciones socioeconómicas se miden de este fondo (IDER, 2009). Sin embargo, a
en términos de indicadores que consideran al principios del gobierno de Michelle Bachelet,
menos una de las siguientes variables: tasa se creó la Comisión Asesora Presidencial en
de mortalidad infantil, tasa de desempleo, Descentralización y Desarrollo Regional el
producto per cápita regional, porcentaje de año 2014, la cual plantea algunos ajustes,
población en condiciones de pobreza, entre como ampliar la capacidad de gestión de los
otros relativos a la calidad de vida. La condición gobiernos regionales, desagregar en regiones
territorial se mide a través de indicadores que los presupuestos ministeriales, eliminar las
consideren al menos uno de los siguientes: provisiones (gasto condicionado) y transferirlas
dispersión territorial, ruralidad de los centros al FNDR de libre disposición (Comisión
de población, deterioro ecológico, distancia Descentralización, 2014).
de la Región Metropolitana, de los recursos
naturales que constituyen la base económica
de la región. Fondo Común Municipal
2) El 10% del fondo: Se distribuye entre
regiones, donde el 5% es un estímulo a la El Fondo Común Municipal (FCM), se creó
eficiencia y un 5% para gastos de emergencias. mediante el Decreto Ley n. 3.063, de 1976,
Para postular un proyecto al FNDR, se llamado “Ley de Rentas Municipales”,
debe incorporar a una plataforma llamada modificado por la Ley n. 18.294, para la
Sistema Nacional de Inversiones (SNI) y contar distribución solidaria de recursos entre
con los siguientes requisitos: 1) contar con la municipalidades. En Chile, muchos municipios
recomendación técnico-económica favorable carecen de ingresos propios suficientes, por
del organismo de planificación correspondiente lo que quedan supeditados a los fondos que
dependiendo del monto y el tipo de proyecto; reciben mediante el FCM. El mecanismo
2) ser priorizados por el Consejo Regional está definido como la principal fuente de
(Subdere, 2015). El FNDR también incluye un financiamiento para los municipios chilenos,
conjunto de provisiones, para dar orientación tal como lo define la propia Constitución
de políticas nacionales. Las provisiones son Política en su Artículo 122: “Mecanismo de
recursos para la inversión púbica aportados redistribución solidaria de los ingresos propios
desde diferentes sectores públicos a la Subdere, entre las municipalidades del país”.
y éstos se distribuyen interregionalmente a El fondo está integrado por los siguientes
base de otros criterios (Valenzuela, 1997). recursos (Subdere, 2015):

668 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017
La relación entre inversión municipal pública y calidad de vida...

1) el 60% del impuesto territorial que resulte inciso tercero de la Ley de Rentas, 4) un 30%
de aplicar la tasa detallada por el artículo 7 de en proporción directa al número de predios
la Ley sobre Impuesto Territorial. Para el caso exentos de impuesto territorial de cada
de ciertas municipalidades como Santiago, comuna con respecto al número de predios
Providencia, Las Condes y Vitacura el aporte exentos del país, ponderado según el número
será de un 65%; de predios exentos de la comuna en relación
2) el 62,5% del derecho por el permiso de con el total de predios de ésta, 5) un 35%
circulación de vehículos que establece la Ley de en proporción directa al promedio de los tres
Rentas Municipales; años precedentes al último año del trienio
3) un 55% de lo que recaude la Municipalidad anterior, del menor ingreso municipal propio
de Santiago y un 65% de lo que recauden las permanente por habitante de cada comuna,
Municipalidades de Providencia, Las Condes, en relación con el promedio nacional de dicho
Vitacura, por el pago de las patentes a que ingreso por habitante (Subdere, 2002).
se refieren los artículos 23 y 32 de la Ley Cada tres años, mediante Decreto
de Rentas Municipales, y 140 de la Ley de Supremo expedido por el Ministerio del
Alcoholes, Bebidas Alcohólicas y Vinagres. Interior, se determinarán los factores sobre la
Originalmente, era el 45% de lo que recaudaba base de los cuales se fijarán los coeficientes
la Municipalidad de Santiago solamente, hasta de distribución de los recursos contemplados;
1985, siendo un aporte fiscal complemente, también se determinar anualmente por Decreto
hasta que las Municipalidades de Las Condes Supremo, un monto total equivalente al 10%
y Providencia empezaron a aportar según sus del FCM, en que no puede corresponder a cada
ingresos por patentes; municipalidad una cantidad superior a la suma
4) un 50% del derecho establecido en el nº 7 de gasto en personal y en bienes y servicios de
del artículo 41 del decreto ley n. 3063 de 1979, consumo, que se distribuirá sobre la base de la
Ley de Rentas Municipales, en la transferencia siguiente fórmula: 1) un 50% para promover
de vehículos con permisos de circulación, y la eficiencia en la gestión municipal, 2) un
5) el aporte fiscal que conceda para este 50% para apoyar proyectos de prevención de
efecto la Ley de Presupuestos de la Nación. emergencia o gastos derivados de ellas (Art.
Luego, la distribución del FCM se basa 14, LOC de Municipalidades, Art. 38 Ley de
en la siguiente fórmula: 1) un 10% por partes Rentas Municipales) (Ibid).
iguales entre las comunas, 2) un 10% en Con respecto a la distribución comunal
relación a la pobreza relativa de las comunas del FCM, el Decreto Supremo N. 347 de 1987
medida por el o los indicadores que establezca del Ministerio del Interior, modificado por el
el reglamento, 3) un 15% en proporción Decreto Supremo 1951 de 1989, reglamenta
directa a la población de cada comuna, tanto el procedimiento de recaudación como la
considerando para su cálculo la población distribución del FCM. La distribución se efectúa
flotante en aquellas comunas señaladas en en todas las comunas del país, de acuerdo a
el decreto supremo del que hace mención el dos coeficientes de participación (Subdere, s/f):

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017 669
Arturo Orellana, Catalina Marshall

a) Coeficiente de participación trienal:


Ciudades metropolitanas
Calculado en base a características propias
de cada comuna (población, predios exentos
en Chile
e ingresos propios permanentes). Es válido En Chile existen tres ciudades metropolitanas,
por un periodo de tres años consecutivos y su las cuales corresponden a las configuraciones
cálculo se efectúa de acuerdo a los siguientes en torno a las capitales regionales de Santiago,
parámetros: un 10% en proporción directa Valparaíso y Concepción. Esta condición
al número de comunas del país, un 20% en de ciudades metropolitanas es reconocida
proporción directa al número de habitantes, por los instrumentos de planificación
incluida la población flotante para aquellas territorial, denominados Planes Reguladores
comunas consideradas balnearios y otras Metropolitanos, los cuales norman los usos
que por su naturaleza tengan variaciones del suelo en un territorio que por lo general
poblacionales estacionales, un 30 % en comprometen más de una comuna,2 superando
proporción directa al número de predios en población los 500 mil habitantes.
exentos del pago de impuesto territorial No obstante lo anterior, cabe destacar
por comuna, un 40% en proporción directa que no existe un gobierno definido a esta
al menor ingreso propio permanente por escala territorial ni tampoco existe una lógica
habitante de cada comuna, en relación al de gestión de la inversión pública, salvo
promedio nacional. cuando operan iniciativas de inversión en
b) Coeficiente de participación por menores infraestructura de transporte y movilidad.
ingresos para gastos de operación ajustados: Particularmente, referidas la ampliación de la
Es válido por un período de un año y está cobertura de Metro de Santiago S.A. (Metro) o
destinado a cubrir los déficit que originan los mejoramiento del servicio de Metro Regional
gastos de operación de algunos municipios de Valparaíso (Merval) y la concesión de
(gastos en personal y bienes de servicio autopistas privadas que se realiza con un
de consumo). Adicionalmente se pueden enfoque sectorial por parte del Ministerio
considerar otras necesidades, especialmente de Obras Públicas. Tales iniciativas, han
incremento de recursos para inversión, de correspondido a decisiones de los gobiernos
modo de asimilarlas al promedio nacional. de turno, es decir, decisiones presidencialistas
Anualmente se define el porcentaje tomadas a escala nacional de gobierno y
del FCM por cada uno de los coeficientes gestionadas por entidades que responden
indicados precedentemente. En todo caso, el a dicha escala de gobierno, en general,
aporte por Menores Ingresos para Gastos de decisiones bastantes ajenas a la participación
Operación Ajustados, no puede ser superior al de los gobiernos regionales o locales donde se
10% del monto total a distribuir. localizan o impactan estas iniciativas.

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La relación entre inversión municipal pública y calidad de vida...

Así entonces, las ciudades brechas de desigualdad en materia de calidad


metropolitanas configuran una realidad de vida urbana, conforme el Índice de Calidad
territorial que si bien se reconoce desde el año de Vida Urbana (ICVU) aplicado desde el año
2009 en la Constitución de la República, así 2011 en Chile, cuyos resultados e implicancias
como en la Ley Orgánica Constitucional sobre se pueden ver en varias publicaciones al
Gobierno y Administración Regional (Locgar), respecto (Orellana et al., 2013; Fuentes y
donde incluso se deja expreso la posibilidad Orellana, 2013; Orellana, 2016).
de que los municipios que conforman este tipo
de ciudades puedan asociarse para resolver
en conjunto asuntos urbanos y territoriales
de interés común, articulándose con las
Calidad de vida urbana
entidades sectoriales que operan a escala
en ciudades metropolitanas
regional,3 en la práctica hasta ahora resulta
ser insuficiente para motivar la voluntad El análisis comparativo sobre la calidad de
de asociarse. Fundamentalmente por tres vida urbana de las ciudades metropolitanas
razones: (1) no se especifica los mecanismos en Chile, se obtiene a par tir de los
explícitos y formales para la asociatividad resultados obtenidos a través del Índice
de municipios; (2) los asuntos de carácter de Calidad de Vida Urbana (ICVU) del año
metropolitano suelen ser competencia de 2016. Este índice resulta de la aplicación de
las secretarías ministeriales y; (3) no existen un método estadístico denominado Análisis
incentivos presupuestarios por parte del nivel de Componente Principales (ACP) sobre la
central de gobierno para estimular estos base de más de treinta variables que dicen
procesos asociativos (Orellana, 2016). relación con seis dimensiones propias de la
De acuerdo un estudio de la OECD calidad de vida urbana, cuyos resultados
(2013), el área metropolitana de Santiago por dimensión luego se ponderan 4 para
configura como una ciudad que involucra luego calcular el ICVU por comuna y ciudad
41 comunas donde viven poco más de 6,5 metropolitana (Orellana et al., 2013). Las
millones habitantes, mientras que el área seis dimensiones son:
metropolitana de Valparaíso configura una • Condición Laboral (CL), referidas a
ciudad que involucra a 6 comunas donde viven variables que miden las facilidades de acceso
alrededor de un millón de habitantes y el área al mercado laboral, ingresos, capacitaciones,
metropolitana de Concepción configura una desarrollo profesional y protección social de los
ciudad que involucra a 9 comunas también residentes.
con alrededor de un millón de habitantes. Si • Ambiente de Negocios (AN), referidas a
se considera el total de población de estas variables económicas manifiestas que permitan
tres ciudades metropolitanas, estas tres corroborar que la ciudad y/o comuna es un
metrópolis concentran el casi 50% de la medio urbano favorable para la generación de
población del país y es las realidades urbanas inversiones privadas y/o emprendimientos por
donde se expresa con mayor fuerza las cuenta propia.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017 671
Arturo Orellana, Catalina Marshall

• Condiciones Socio Culturales (CS), referido las variables no son representativos y no


a la medición de variables relativas al nivel de permite obtener su índice.
participación de la población en organizaciones Los resultados obtenido para el ICVU
sociales, así como a los niveles de seguridad y 2016 permitieron constatar que las ciudades
educación que afectan la formación de capital metropolitanas de Chile existen brechas de
social. calidad de vida urbana importantes entre las
• Conectividad y Movilidad (CM), referido comunas que las configuran, particularmente
a la medición de variables relacionadas esto queda reflejado en los Mapas 1, 2 y 3.
con las condiciones de la infraestructura de Estos gráficos representan a aquellas comunas
conectividad, movilidad y seguridad vial de la que se encuentran con un ICVU un rango
población residente. superior, rango promedio y rango inferior.5
• Salud y Medio Ambiente (SM), referido En el caso del Área Metropolitana de
a la medición de condiciones de salud de la Santiago (AMS), según Mapa 1, solo 8 comunas
población en relación a enfermedades que se ubican en el rango superior, mientras que 12
presentan una mayor correlación con las se ubican en el rango promedio y 20 en el rango
condiciones ambientales y su medio antrópico. inferior. En términos de población, significa
• Vivienda y Entorno (VE), referido a que un 50% (aproximadamente 3 millones de
variables que dan cuenta de la calidad de la personas) viven en comunas que les ofrecen un
vivienda, nivel de hacinamiento e inversión estándar de calidad de vida urbana inferior al
en el espacio público más próximo para sus promedio de las ciudades urbanas del país.
residentes. Adicionalmente, la situación del Área
El ICVU se aplica desde el año 2013 a 93 Metropolitana de Santiago es más grave que
comunas de un total de 342 comunas existentes las otras dos ciudades metropolitanas como
en el país. Esta muestra de comunas, resultan se verá, porque no solo concentra la mayor
ser todas aquellas que tienen más (o cercanas) población del país, sino porque la brecha de
a los 50.000 habitantes y es donde reside inequidad en términos de calidad de vida es más
el 85% de la población total de Chile. Ahora, amplia todavía. Lo anterior, porque esta ciudad
conforme las tres ciudades metropolitanas metropolitana tiene las comunas con mayor
involucran a 57 comunas, 48 de estas comunas calidad de vida en el país, liderando los ranking
son consideradas por el ICVU 2016, conforme cada año (Las Condes, Vitacura y Providencia)
hay 9 comunas que se excluyen dado que su y al mismo tiempo tienen la comunas de pero
población es menor a los 50.000 habitantes, calidad de vida del país (Pedro Aguirre Cerda,
por lo tanto, los datos estadísticos para todas Cerro Navia, Lo Espejo, entre otras).

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La relación entre inversión municipal pública y calidad de vida...

Mapa 1 – Distribución ICVU 2016 para Área Metropolitana de Santiago

Fuente: Elaboración propia, 2016.

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Arturo Orellana, Catalina Marshall

En el caso del Área Metropolitana de aunque solo una de cinco tiene calidad de vida en
Valparaíso (ver Mapa 2), a pesar de comprometer rango inferior, como es el caso de la comuna de
5 comunas, resulta también que existen brechas Valparaíso aunque esta que concentra un tercio
de desigualdad en calidad de vida urbana, de la población de esta ciudad metropolitana.

Mapa 2 – Distribución ICVU 2016 para Área Metropolitana de Valparaíso

Fuente: Elaboración propia, 2016.

674 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017
La relación entre inversión municipal pública y calidad de vida...

Y, en el caso del Área Metropolitana de no supera el 20% del total de población de esta
Concepción (ver Mapa 3), también es posible ciudad metropolitana. No obstante, resultan ser
verificar que existen dos comunas en rango inferior cinco de nueve comunas las que alcanzan una
de calidad de vida urbana, aunque su población calidad de vida en un rango superior.

Mapa 3 – Distribución ICVU 2016 para Área Metropolitana de Concepción

Fuente: Elaboración propia, 2016

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Arturo Orellana, Catalina Marshall

el ICVU y algunos datos de inversión pública


Análisis impacto la inversión
per cápita por comuna. La inversión pública
pública en la calidad se ha contemplado el período 2001-2015
de vida urbana en ciudades entendiendo que 15 años de inversión pública
metropolitanas en las ciudades metropolitanas resultan ser un
tiempo suficiente para explicar posibles efectos
De acuerdo a cifras estimadas por la Dirección en la calidad de vida urbana de las ciudades
de Presupuesto del Ministerio de Hacienda metropolitanas. Estos datos de inversión
como se señaló antes, la inversión pública pública han sido promediados y relacionados
representa el 20% de la inversión total del país, con el ICVU 2016, conforme se hizo un ejercicio
siendo el 80% restante fruto de la inversión de determinar lo que hubiese sido la medición
privada. Ahora, en nuestro país la población del ICVU el año 2002 y correlacionando
vive en casi un 90% en ciudades urbanas, esta ambos resultados se obtuvo un Coeficiente de
relación entre inversión pública y privada se Pearson6 de 0,86. Es decir, la alta correlación
puede afirmar con cierta certeza que mantiene muestra que no hay cambios sustantivos en
el mismo balance en nuestras urbes, muy términos del posicionamiento relativo en el
especialmente en la ciudades de carácter ranking de calidad de vida y en la brechas de
metropolitano. inequidad entre comunas metropolitanas en
No obstante, si bien un 20% de inversión ese período.
pública en las ciudades metropolitana se Yendo a los resultados, el Gráfico 1 da
puede considerar menos significante que la cuenta del volumen de inversión per cápita por
inversión privada, conforme la primera está regiones, destacando la Región Metropolitana
orientada preferentemente a la provisión de de Santiago, Valparaíso y Biobío. En estas es
bienes y servicios públicos que impactan en donde se localizan las ciudades metropolitanas,
la provisión de bienes y servicios públicos, las cuales en estudio alcanzan todas una cifra
como son; subsidio para acceso a la vivienda, per cápita por debajo del promedio nacional.
equipamientos para educación y salud, Si bien se trata de un dato regional, ya que
desarrollo y mejoramiento del espacio público, no es posible obtener con precisión el dato de
infraestructuras de conectividad, entre otros, inversión pública por ciudad metropolitana, los
su impacto en la calidad de vida urbana es datos del INE7 (2015) señalan que la ciudad
muy relevante. metropolitana de Santiago concentra el 94,7%,
Ahora, tratándose de un trabajo de la de Valparaíso 55,8% y la de Concepción
carácter exploratorio, conforme no existen 49,2%, reforzados por el hecho que capitales
antecedentes de investigaciones previas regionales suelen concentrar la mayor inversión
que relacionen el impacto de la inversión en infraestructura y equipamiento urbano,
pública y calidad de vida urbana a escala los resultados dan cuenta que éstas no han
metropolitana, se ha considerado indagar sido favorecidas en relación a otras regiones
sobre la eventual correlación que existe entre en términos de inversión pública entre el año
un indicadores de calidad de vida urbana como 2001-2015. Lo anterior, constituye un primer

676 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017
La relación entre inversión municipal pública y calidad de vida...

síntoma de cómo las ciudades metropolitanas Ahora, si se considera solo la inversión


chilenas resultan ser muy atractivas para la pública municipal per cápita, tanto la
inversión privada, porque a pesar de la menor ciudad metropolitana de Santiago como
inversión pública per cápita ha crecido su peso de Valparaíso están también por debajo
demográfico a escala regional y también en del promedio nacional, pero en este caso la
términos económicos. ciudad metropolitana de Concepción está
Por otro lado, si se considera solo la por arriba como se observa en el Gráfico 3.
inversión pública vía Fondo Nacional de Lo anterior, puede está determinado en forma
Desarrollo Regional (FNDR) per cápita promedio importante por las prioridades de inversión
por región, Gráfico 2, se constata el mismo pública que tuvo en particular gran parte
patrón anterior, es decir, las regiones donde de las comunas de esta metrópolis que se
están localizadas las ciudades metropolitanas vieron afectada por el grave sismo y posterior
en estudio, sostienen un nivel de inversión que tsunami que afectó esta zona en febrero del
en el resto de regiones del país. año 2010.

Gráfico 1 – Inversión regional per cápita en Chile


ÓN

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Fuente: Elaboración propia, según datos Ministerio de Desarrollo Social, 2016.

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Arturo Orellana, Catalina Marshall

Gráfico 2 – Inversión FNDR per cápita por regiones de Chile

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Fuente: Elaboración propia, según datos Ministerio de Desarrollo Social, 2016.

Gráfico 3 – Inversión municipal per cápita promedio por región de Chile


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Fuente: Elaboración propia, según datos Ministerio de Desarrollo Social, 2016.

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La relación entre inversión municipal pública y calidad de vida...

Así entonces, estos primero gráficos Para adentrarse ahora en la relación entre
entregan evidencia de que las ciudades inversión pública y calidad de vida urbana a
metropolitanas no son privilegiadas de forma una escala comunal, es decir, para descifrar en
importante en razón de los tamaños de qué medida las brechas de inequidad en calidad
población y complejidades urbana funcionales de vida urbana entre comunas metropolitanas
propias en términos de la inversión pública. se explican por la inversión pública se ha
Lo anterior, muy probablemente se explique procedido a relacionar la inversión pública
en el hecho de que son ciudades urbanas municipal per cápita con el ICVU 2016, para lo
donde el mercado inmobiliario de vivienda, cual se presenta el Gráfico 4. El gráfico permite
comercio y servicios asociado más fuertemente establecer una alta correlación entre mayor
a la calidad de vida urbana, operan de inversión municipal per cápita y mayor calidad
manera compensatoria, es decir, invierten de vida urbana, alcanzado el coeficiente de
más en términos per cápita que en ciudades Pearson de 0,72. Esto significa que aquellas
intermedias, cuestión que explica el por qué comunas que más invierten en su territorio
también las políticas de descentralización han en la provisión de bienes y servicios públicos,
sido ineficaces en Chile. aumentan el estándar urbano de sus comunas.

Gráfico 4 – Inversión municipal per cápita versus ICVU 2016

Fuente: Elaboración propia, según datos Ministerio de Desarrollo Social, 2016.

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Arturo Orellana, Catalina Marshall

Si esta inversión municipal que cada Para tal efecto, se procederá a


comuna hace es mayor que el promedio determinar a relación entre el porcentaje de
de todas las comunas de la región a la dependencia del Fondo Común Municipal
que pertenece, entonces también es alto el y e l I C V U 20 16 , e n t e n d i e n d o q u e l a
resultado del coeficiente de Pearson ya que se mayor dependencia es un reflejo de que
obtiene 0,71, como se expresa en el Gráfico los gobiernos locales requieren mayores
5. Este resultado y el anterior, refuerzan de a p o r t e s d e l E s t a d o p a r a a t e n d e r su s
manera importante que los municipios pueden obligaciones con la población residente en
hacer algo sustantivo a través de la inversión términos de provisión de bienes y servicios,
pública para mejorar la calidad de vida de su ya que no logran genera suficientes ingresos
población residente. No obstante, vale hacerse propios. Estos últimos, mayoritariamente
la pregunta de qué depende que esta inversión se generan por la inversión privada en el
pública se más o menos. territorio. El resultado se representa en el

Gráfico 5 – Diferencial inversión municipal per cápita versus


promedio regional versus ICVU 2016

Fuente: Elaboración propia, según datos Ministerio de Desarrollo Social, 2016.

680 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017
La relación entre inversión municipal pública y calidad de vida...

Gráfico 6 – Dependencia FCM respecto ICVU 2016

Fuente: Elaboración propia, según datos Ministerio de Desarrollo Social, 2016.

Gráfico 6, el cual da cuenta que aquellas Finalmente, bajo la premisa que


comunas con mayor calidad de vida suelen la calidad de vida urbana pudiese estar
depender muy poco o casi nada del FCM relacionada con mayor inversión municipal
( menos del 10 %) , mientras que por el debido al mayor aumento de población en las
contrario son aquellas que dependen más comunas, el Gráfico 7 da cuenta que no existe
sustantivamente (más del 60%) son las que una correlación entre mayor calidad vida y
comparativamente ofrecen una calidad de mayor población, arrojando el coeficiente de
vida urbana más deficiente. Pearson un valor solo de 0,15.

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Arturo Orellana, Catalina Marshall

Gráfico 7 – Crecimiento poblacional 2001-2015 versus ICVU 2016

Fuente: Elaboración propia, según datos INE (2015).

menos de dicho fondo. La lectura de estas


Conclusiones finales
dos conclusiones, obliga a plantear algunas
Los resultados obtenidos a partir de reflexiones al respecto para entender el origen
correlacionar el ICVU 2016 con variables de esta aparente paradoja “para los municipios
inversión pública y demográfica para las tres de ciudades metropolitanas es mejor depender
ciudades metropolitanas principales de nuestro menos del Estado para alcanzar una mejor
país, permiten establecer dos conclusiones calidad de vida urbana”.
importantes. La primera conclusión, tiene que En verdad, lo que explica esa aparente
ver con la importancia que reviste la mayor paradoja tiene que ver con el hecho de que
inversión per cápita que cada municipio la acción del mercado es discriminatoria a la
realiza en la calidad de vida urbana. Y, una hora de definir en qué comunas se producirá
segunda conclusión, aquellos municipios que la la mayor o menor inversión privada, así como
inversión pública mayoritariamente depende de el tipo de inversión privada. Y, lo anterior,
fuentes de inversión pública, especialmente del tiene un impacto directo en la capacidad de
Fondo Común Municipal, muestran una calidad financiamiento de los municipios para atender
de vida urbana menor que lo que dependen los requerimientos de bienes y servicios, sean

682 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017
La relación entre inversión municipal pública y calidad de vida...

estos públicos o privados, permitiendo en forma en ciudades industriales para la producción


más o menos autónoma definir el modelo de y el bodegaje, o algún tipo de NIMBY,8 entre
gestión de sus comunas (Orellana et al., 2012). otros. Esto implica no solo menor recaudación
En una ciudad metropolitana, como por parte de los municipios, sino muchas
quizás es posible advertir en muchas ciudades veces se trata de un tipo de inversión que no
latinoamericanas, existe una minoría de favorece o hace menos atractivo inversiones
comunas que tienen la capacidad de atraer la más asociadas a la configuración de barrios y
inversión privada con efectos más positivos en entornos con mejor calidad de vida urbana.
la calidad de vida urbana, fundamentalmente En definitiva, las ciudades metropolitanas
aquellas asociadas a las actividades terciarias no solo están condicionadas en su desarrollo
de carácter comercial, financiero y turístico, en materia de calidad de vida a la acción del
además de una oferta residencial para sectores mercado, sino a un sistema de financiamiento
de altos ingresos, hechos que repercuten público que favorece a aquellos municipios
positivamente en las finanzas municipales que logran ser más atractivos para la inversión
mejorando a su vez la provisión y calidad de privada, ya que si bien implica que dependerán
estándares de bienes y servicios públicos. Cabe menos de los recursos públicos, aumentan
consignar que estos procesos de configuración significativamente sus presupuesto per cápita.
urbana, suelen ser a través de procesos de No obstante, este modelo de gestión que
renovación y gentrificación urbana dado la impulse una mayor inversión privada, no
escasez de suelo urbanizable. será necesariamente para todas las comunas
En contraste con lo anterior, el resto de las igual, ya que aquellas que hoy sostienen un
comunas que no cuentan con suelo urbanizable bajo estándar de calidad de vida urbana o no
no constituyen territorios de interés para disponen de suelo urbanizable, para ser más
la inversión privada, sobretodo en aquellos atractivas a la acción del mercado deberán
ámbitos que impactan más positivamente en aceptar usos de suelo y transformaciones
los estándares urbanos asociados a la calidad urbanas que no necesariamente disminuirán
de vida de los residentes. Más bien la acción la brecha de calidad de vida urbana en nuestra
de los privados, tiene que ver con inversión ciudades metropolitanas.

Arturo Orellana
Pontificia Universidad Católica de Chile, Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales. Santiago,
Región Metropolitana, Chile.
amorella@uc.cl

Catalina Marshall
Pontificia en la Universidad Católica de Chile, Programa de Doctorado en Arquitectura y Estudios
Urbanos. Santiago, Región Metropolitana, Chile.
catalina.marshall@gmail.com

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017 683
Arturo Orellana, Catalina Marshall

Notas
(*) Esta inves gación es parte del Proyecto Fondecyt nº 1161550.

(1) Estos datos fueron entregado por la Dirección de Presupuesto del Ministerio de Hacienda el año
2014 en un Workshop efectuado en el Ins tuto de Estudios Urbanos y Territoriales, en el marco
de la inves gación del Proyecto Anillos SOC 1106 en que los autores par ciparon entre el año
2013-2015, el primero como Director del Proyecto y la segunda como doctorando.

(2) En nuestro país comuna hace referencia al territorio local y municipio es la ins tución del gobierno
local.

(3) Secretarías Ministeriales Regionales dependen de los ministerios sectoriales respec vos, ya sea:
Vivienda y Urbanismo; Obras Públicas, Educación, Trabajo, etc.

(4) A par r de la aplicación de una encuesta a más de 100 expertos nacionales y extranjeros, primera
encuesta aplicada el año 2012 y luego el año 2015.

(5) Dado que el ICVU no se basa en estándares internacionales, se considera que el promedio
ponderado por población que se alcanza para las 93 comunas representa el estándar promedio
del país, por lo tanto, el rango promedio será aquel que esta entre el promedio más y menos
media desviación estándar. Así entonces, el rango superior está por arriba de ese rango y el
rango inferior por debajo de ese rango.

(6) Se ha ocupado este coeficiente porque permite establecer relaciones de correlación entre dos
variables que enen escalas de valoración diferente.

(7) Ins tuto Nacional de Estadís cas (INE)

(8) Not in my back yard, expresión anglosajona referida la localización de ac vidades rechazadas por
las externalidades que genera en sus entorno.

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Ley n° 18.695 (LOCM), 1988. Ley Orgánica Cons tucional de Municipalidades. Diario Oficial de la
República de Chile. San ago, Chile.

Ley n° 19.130, 1992. Modifica Ley Orgánica Cons tucional de Municipalidades. Diario Oficial de la
República de Chile. San ago, Chile.

Texto recebido em 13/out/2016


Texto aprovado em 5/dez/2016

686 Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 665-686, maio/ago 2017
Instruções aos autores

ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL


A revista Cadernos Metrópole, de periodicidade semestral, tem como enfoque o debate de
questões ligadas aos processos de urbanização e à questão urbana, nas diferentes formas que assu-
me na realidade contemporânea. Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral,
especialmente às áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Geografia,
Demografia e Ciências Sociais.
A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam
com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema
político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão, baseados na
governança urbana.

CHAMADA DE TRABALHOS
A revista Cadernos Metrópole é composta de um núcleo temático, com chamada de trabalho
específica, e um de temas livres relacionados às áreas citadas. Os textos temáticos deverão ser encami-
nhados dentro do prazo estabelecido e deverão atender aos requisitos exigidos na chamada; os textos
livres terão fluxo contínuo de recebimento.
Os artigos apresentados serão publicados no idioma original.

AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS


Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação dos
membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos rece-
berão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos autores
quanto dos pareceristas.
Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados
para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clare-
za de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema.

COMUNICAÇÃO COM OS AUTORES


Os autores serão comunicados por e-mail da decisão final, e a revista não se compromete a
devolver os originais não publicados.

OS DIREITOS DO AUTOR
A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 687-690, maio/ago 2017
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3914
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS
Os trabalhos devem conter, nesta ordem:
• título, em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês;
• resumo/abstract de, no máximo, 120 (cento e vinte) palavras em português, ou na língua em
que o artigo foi escrito, e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave em português, ou
na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês;
• texto, digitado em Word, espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, com 20 a 25
páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras, referências bibliográficas; as imagens devem ser em for-
mato JPG, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm;
• referências bibliográficas, conforme instruções solicitadas pelo periódico.
Os trabalhos submetidos à Cadernos Metrópole devem ser enviados pelo sistema, da seguinte
maneira: (1) se o/s autor/es não possuir/em cadastro ainda, favor clicar aqui; (2) no cadastro, preencher
principalmente os seguintes campos: nome, e-mail, instituição (vínculo), e no campo “Resumo da Bio-
grafia” definir sua titulação mais alta, lugar de trabalho e função de cada um; (3) depois de cadastra-
do, o autor deve acessar o sistema clicando aqui.

Importante:
• A autoria NÃO DEVE constar no documento. As informações a seguir devem ser preenchidas
no passo 3 da submissão (Inclusão de Metadados): nome do autor, formação básica, instituição de
formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, unidade e departa-
mento, cidade, estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspondência.
• É imprescindível o envio do Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Au-
torais, datado e assinado pelo(s) autor(es). O documento deve ser transferido no passo 4 da submissão
(Transferência de Documentos Suplementares). Em caso de dúvida, consulte o Manual de Submissão
pelo Autor.
• A revista não publica trabalhos de graduandos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
As referências bibliográficas, que seguem as normas da ABNT adaptadas pela Educ, deverão ser
colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções:
Livros
AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

Capítulos de livros
AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR
(org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em
Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar.
Artigos de periódicos
AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do
periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo.
Exemplo:
TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos
Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28.

Trabalhos apresentados em eventos científicos


AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, local de
realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final.
Exemplo:
SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle
social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL
ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília,
MPAS/ SAS, pp. 193-207.

Teses, dissertações e monografias


AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição.
Exemplo:
FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de
gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de
mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.

Textos retirados de Internet


AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso.
Exemplo:
FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Dis-
ponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em: 8 set 2005.
Rede Observatório das Metrópoles

Estado Instituição Coordenador

Baixada Santista Universidade Federal de São Paulo Marinez Villela Macedo Brandão

Belém Universidade Federal do Pará Juliano Ximenes Pamplona

Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Alexandre Magno Alves Diniz

Brasília Universidade de Brasília Rômulo José da C. Ribeiro

Curitiba Universidade Federal do Paraná Olga Lucia C. de Freitas Firkowski

Fortaleza Universidade Federal do Ceará Maria Clélia Lustosa Costa

Goiânia Universidade Federal de Goiás Celene Cunha Monteiro A. Barreira

Maringá Universidade Estadual de Maringá Ana Lucia Rodrigues

Natal Universidade Federal do Rio Grande do Norte Maria do Livramento M. Clementino

Porto Alegre Universidade Federal do Rio Grande do Sul Paulo Roberto Rodrigues Soares

Recife Universidade Federal de Pernambuco Maria Angela de Almeida Souza

Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Marcelo Gomes Ribeiro

Salvador Universidade Federal da Bahia Inaiá Maria Moreira Carvalho

São Paulo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Lucia Maria Machado Bógus

Vitória Instituto Jones dos Santos Neves Pablo Silva Lira


Cadernos Metrópole

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