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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

CONVERSAÇÕES COM RENÉ GIRARD

SILVIA MARIA CARBONE

SÃO PAULO

2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

CONVERSAÇÕES COM RENÉ GIRARD

SILVIA MARIA CARBONE

Tese apresentada à banca


examinadora, como parte das
exigências necessárias para
obtenção do título de doutora em
Ciências Sociais - Antropologia,
pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Dr. Edgard
Assis Carvalho

SÃO PAULO

2014
Conversações com René Girard
Banca examinadora

__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
Para

Jackson Passos, Luis Henrique Costa

e Emilio Carbone

Sonhar mais um sonho impossível


Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo
Cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão.

(Sonho Impossível – Chico Buarque de Holanda)


Agradecimentos

Páginas em branco, ansiedade,


prazos. Escrever uma tese é
sempre solitário. A solidão da
escrita é cotidianamente
compensada pelos dias e noites
repletas de amigos.

Agradeço todos que participaram de minha vida ao longo dos anos


exigidos para a elaboração da tese.

Ao querido mestre desaninhador de mentes Prof. Dr. Edgard Assis


Carvalho. Pelas reuniões do grupo, conversas, café, pela vivência,
orientação e companhia.

A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, ao Programa de


Estudos em Pós-graduação em Ciências Sociais, pela bolsa,
financiando parte desse trabalho.

Agradeço a Jackson Passos, Luis Henrique Costa por terem


acompanhado cada passo, cada página escrita. Por todos os dias e
noites, pelos bons momentos, pela amizade. Os agradecimentos à
vocês não caberiam nessas páginas. Aos meus meninos Dhemétrius
Costa Passos e Richard Costa Passos, que o conhecimento sirva de
inspiração ao mundo que se descortina.

Agradeço aos meus pais Emílio Carbone Neto e Dorothi Carbone, pelo
apoio e incentivo. A minha família.
A Luiz Eduardo Takenouchi Goulart pela convivência e parceria
cotidiana.

A Claudio Bastos, eterno amigo, sempre presente. Obrigada pelas


conversas, conselhos e boas risadas.

Ao meu querido amigo Abel Menezes, que o tempo ouça a música.

Aos colegas do Núcleo de Estudos da Complexidade, Jane Pinheiro,


Harald Sá, Oziel Gheirart, Júlio Moreira, Sydney Cincotto e Edimilson
Felipe. Agradeço a Marcos Giacomo pelas infinitas leituras e pela
presença no exame de qualificação. A Benedito Carlos Araújo, que
nossa amizade permaneça.

A Miriam Shaw que sempre ouviu minhas ansiedades, escreveu o


Abstract da tese, participou do exame de qualificação e compartilhou
comigo o cotidiano.

A Profª Dra. Márcia Regina da Costa, pelos anos de convivência.

As amigos que partilharam minhas ausências, Telma Ivanise, Camila


Garcia, Alejandra Breda e família, Deborah Vinha e família, Arnaldo e
Márcia Crippa.

Aos novos colegas de trabalho, que permitiram a finalização da tese,


Mara Yáskara e Claudio Osiris.

Aos demais colegas da PUC/SP que compartilharam durante as aulas,


mais que conhecimento.
Resumo

Silvia Maria Carbone

Conversações com René Girard

Conversações com René Girard propõe o entendimento da obra de


Girard em toda sua complexidade.

A tese concentra a análise sobre a teoria do desejo mimético, a


relação da violência com o sagrado e a necessidade do bode
expiatório. Três temas entrelaçados, uníssonos que circundam toda a
obra de Girard, explicitados pela primeira vez em A violência e o
Sagrado, ensaio considerado como um dos pilares do pensamento
girardiano.

Para Girard, a violência é intrínseca à humanidade, é o controle do


desejo de violência que estabelece a passagem do estado de natureza
para o estado de cultura. A canalização da violência é vital para a
existência das sociedades – arcaicas e modernas. Girard nos mostra
que a forma de controle da violência só é possível pela instituição do
sagrado, que o faz por meio dos sacrifícios da vítima expiatória. Para
o autor, o desejo é sempre mimético, desejamos aquilo que é
desejado por outro sujeito, o que suscita a rivalidade e,
consequentemente, a violência que precisa ser contida.

Palavras-chave: desejo mimético – violência - sagrado


Abstract

Silvia Maria Carbone

Conversations with René Girard

Conversations with René Girard proposes understanding of the work


of Girard in all its complexity.

The thesis focuses on analyzing the theory of mimetic desire, the


relationship between violence and the sacred, and the need for a
scapegoat. Three interwoven, united themes surround all the work of
Girard, explained for the first time in the “Violence and the Sacred”
essay considered as one of the pillars of Girardian thought.

According to Girard, violence intrinsic to humanity, is the desire to


control the violence that establishes the passage of the state of
nature to the state of culture. The channeling of violence is vital to
the existence of societies - archaic and modern. Girard shows us that
the way to control violence is possible only by the institution of the
sacred, that is through the atoning sacrifice of the victim. For the
author, the desire is always mimetic desire : what is desired by the
other subject, which raises the rivalry and consequently the violence
that needs to be contained.

Keywords : mimetic desire - violence - sacred


Todo aquele que manipular a violência será finalmente manipulado
por ela (GIRARD, 2008: 32)

No fundo, são misturas. Misturam-se as almas nas coisas; misturam-


se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas e eis como as pessoas
e as coisas misturadas saem, cada uma, das suas esferas e se
misturam: o que é precisamente o contrato de troca.
(MAUSS, 2008: 90)
12

Sumário

ABERTURA .............................................................................13

PARTE I .................................................................................19

A EXISTÊNCIA .......................................................................20

A OBRA ..................................................................................45

PARTE 2 .................................................................................54

A VIOLÊNCIA ESTÁ NO SAGRADO ..........................................55

O SACRIFÍCIO E A VIOLÊNCIA ...............................................64

A VIOLÊNCIA E O DESEJO MIMÉTICO.....................................81

PARTE 3 .................................................................................90

A CONVERSA COM O MUNDO..................................................91

A CONVERSAÇÃO E O SILÊNCIO ...........................................103

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................109

ANEXOS ...............................................................................115

ANEXO 1 ..............................................................................116

ANEXO 2 ..............................................................................145
13

ABERTURA

http://www.ravenfoundation.org/about-us/our-people/
14

Dois mil e quatrocentos e cinquenta dias aproximadamente,


desde o início do doutorado. Como, em cinco anos, abarcar a obra de
um autor, construída em mais de cinquenta anos? Como ler tudo que
foi lido, analisar tudo que foi criticado, pensar o que foi pensado e
depois rever o que não foi dito?

Quando o assunto é René Girard, há ainda maior complexidade.


Nascido em 1923, o autor recusa-se a participar de escolas
acadêmicas pré-determinadas; segundo ele, determinadas por
alguém que não se sabe bem ao certo quem foi. Avesso às
convenções e ao tradicionalismo acadêmico, Girard tece críticas
severas aos intelectuais de sua época, sem preocupação em
fundamentá-las. Posso dizer que esse é o charme do intelectual, que
assume ser outsider, mas com pertencimento, cutucada direta aos
colegas que usam para si a mesma definição, para aproveitar um
suposto modismo.

As obras de René Girard propõem a reflexão de uma nova


teoria: o desejo mimético. Em busca de aprofundar e comprovar sua
importância nas sociedades modernas, o autor se debruça em fontes
primordiais, literatura, mitos, antropologia, filosofia e psicanálise.
Com todas, estabelece diálogos diretos e francos, muitas vezes
sinceros demais para os padrões acadêmicos. Com ousadia,
característica que sempre o acompanhou, Girard mexe nas estruturas
conceituais e remexe em teorias já consolidadas. O resultado é um
autor pouco lido no Brasil, respeitado por muitos e, certamente,
odiado por outros tantos.

Se a obra de um autor é o retrato de sua vida, René Girard não


tem preocupação em tornar essa relação explícita. Por isso, a
primeira parte desta tese reflete sobre a vida e a obra do autor, com
15

citações de Girard extraídas do livro Um longo Argumento do Princípio


ao Fim e análises que percorrem a obra, cuja proposta é mostrar
como a construção da teoria está imbricada nas decisões da vida, ou
ao contrário. Há ainda a síntese dos livros considerados mais
importantes pelo próprio autor.

Na segunda parte, há a reflexão sobre a teoria do desejo


mimético, a violência e o Sagrado. A análise central da tese é o livro
A Violência e o Sagrado, cuja escolha, como centro de reflexão para
a tese, não foi tarefa fácil, já que o conjunto de publicações do autor
é extenso e compreende alguns títulos instigantes.

Com as leituras realizadas, a flecha apontou nitidamente para A


Violência e o Sagrado. Considero a obra mais complexa e completa
de Girard. Todo o cerne de seu pensamento está contido nas páginas
que propiciam a instigante leitura sobre os temas propostos pelo
autor.

Acredito que a tese apresenta uma característica peculiar, a


importância não está do desvendar de uma reflexão, mas e,
sobretudo, na compreensão de um autor ainda pouco lido e
certamente mal-interpretado.

No rol de autores que citam Girard, há uma recorrência similar,


a interpretação da obra sob a luz de uma teoria determinada, ou no
descarte da análise da obra sob a condição de que não há reflexão
teórica suficiente para interpretação.

No antagonismo desse debate, há também uma série de textos


introdutórios às obras de Girard que caminham para a compreensão
da leitura, porém não explicam ao leitor as definições teóricas
abarcadas por Girard.
16

A leitura e compreensão da teoria girardiana é tarefa de fôlego.


A forma da escrita e a displicência com que Girard trata a academia e
as normas acadêmicas saltam aos olhos. Para compreender Girard, é
necessário compreender a complexidade de seu pensamento e sua
trajetória intelectual. Como poucos autores, Girard mantém a
coerência entre a vida e a obra.

Conversações com René Girard não tem a pretensão de debater


com outros autores, mas de compreender a proposta de Girard, a
reflexão de sua teoria, para que seja um convite à leitura e ao
entendimento do autor e de sua obra.

Não há sentido em preencher as páginas desta tese com


reflexões não aprofundadas sobre temas debatidos por Girard com
alguns autores como Freud, Frazer, Lévi-Strauss, Mauss. O próprio
Girard não promove esse debate, ele o lança, mas não há
ressonância nesse movimento.

A tese denuda a teoria do desejo mimético, a relação da


violência com o Sagrado e a necessidade do bode expiatório. Três
temas entrelaçados que são uníssonos. São esses temas que
circundam toda a obra de Girard e que estão explicitados pela
primeira vez em A violência e o Sagrado. Todas as vezes que Girard
se refere ao desejo mimético, ou à violência e ao Sagrado, ou ao
bode expiatório, cita a obra A violência e o Sagrado como referência.

Acredito que A violência e o Sagrado é a obra central de Girard,


e esta tese pretende elucidar a teoria girardiana para que possa
haver a compreensão do autor.

No decorrer da tese, não há debates entre autores e a obra de


Girard. A razão para tal feito é o não debate estabelecido, de fato,
17

por Girard e os autores que ele menciona. Girard passa pelos autores,
tece críticas importantes, mas não aprofunda ou justifica tais críticas.
Outra razão é a trajetória da obra que tem críticas contundentes que
vão desde a classificação de Girard como positivista até a ideia de
que a reflexão da obra é teológica, minimizando o debate. Por outro
lado, há uma série de comentaristas que debatem com Girard, mas
em nenhum deles há a definição dos conceitos retratados na teoria
girardiana.

Para que esse trabalho fosse mais amplo, seria necessária a


produção de mais teses que desvendassem os debates presentes em
A violência e o Sagrado: Girard e Freud, Girard e Mauss, Girard e
Frazer.

A leitura para tese está na obra de Girard. Toda a literatura


comentada (lida) recai sobre o mesmo problema: tentar enquadrar a
obra e o autor numa corrente de pensamento. Essa pretensa
tentativa desqualifica e demonstra a não compreensão de sua obra,
já que durante todo o percurso do intelectual o que mais fica claro é
o não pertencimento a esse universo.

Durante a carreira, Girard lecionou em diferentes Universidades


e em diferentes departamentos. As escolhas das Universidades
alteram entre o clima da cidade e as condições de trabalho,
raramente foram escolhas acadêmicas.

A terceira parte da tese será a reflexão sobre o mundo. Como


Girard conversa com os autores citados? Quais são as reflexões
possíveis para a teoria girardiana nos tempos de violência nas
sociedades modernas?
18

A reflexão sobre os autores que Girard cita ao longo dos livros


está proposta na parte final da tese. A ideia não é promover o debate
ou o contraponto, pois Girard não o faz. A ideia é justamente mostrar
como é a relação de Girard com outros autores, como é a conversa
com o mundo? Como analisar as sociedades contemporâneas sob a
luz do pensamento girardiano?
19

PARTE I

http://juicyecumenism.com/2013/05/06/rene-girard-who-is-this-guy-anyway/
20

A EXISTÊNCIA

http://www.paper-pills.com/2008/09/02/rene-girard/
21

Polêmico, desafiador,
instigante. Filósofo, literata,
antropólogo, psicanalista,
mitólogo. Analisar a obra de
René Girard requer muito
fôlego. Mais que debruçar sobre
a obra, compreender a
trajetória da vida e as ideias é
essencial para interpretar o

René Girard, em 1947


autor, longe dos holofotes
preconcebidos de teorias e
ideias.

Há poucos livros que retratam a obra de René Girard, todos os


estudados recaem sobre o mesmo erro, analisam o autor com
concepções pré-estabelecidas e o enquadram nas escolas existentes.
Para alguns, René Girard é conservador; para outros, inovador e
revolucionário. Não pode. Não é possível analisar uma obra com a
proposta contrária a do autor. Não é possível pensar em enquadrar
um autor que passou a vida provando que os enquadramentos são
um atraso para a academia.

O livro de Gabriel Andrade, René Girard: um retrato intelectual,


parece não compreender a dimensão da obra de Girard. A proposta
do livro é analisar a obra do autor, com a preocupação de entender
as escolas e períodos vividos. É justamente essa condição que Girard
abomina, não está interessado em enquadramentos, não por
ausência de pertencimento, ao contrário, por opção.
22

Mas ficava claro que Girard emergia como um pensador


conservador que via com preocupação os movimentos
revolucionários que desenhavam o mundo moderno.
(ANDRADE, 2011: 111)

Não é esse o entendimento. Para compreender a obra, é


necessário debruçar sobre a vida, entrelaçar as relações humanas,
dialogar e refletir. Compreender que, nem sempre, para Girard, a
academia rege suas escolhas e, o mais importante, compreender que
ser outsider é pertencer ao mundo acadêmico, conseguir manter seus
princípios, resistir à tentação do comodismo intelectual e jamais
pertencer aos grupos políticos teóricos que encouraçam o
pensamento.

Diferentemente da obra citada, em Um longo Argumento do


Principio ao fim, René Girard se propõe ao diálogo da obra
entrelaçando sua vida. Em uma série de entrevistas com João César
de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello1, o autor descreve fatos
importantes de sua juventude, que o influenciaram na carreira
acadêmica e nas escolhas pessoais. Com o mesmo tom, presente em
toda obra, a reflexão sobre a vida é acompanhada de muita crítica e
sinceridade. É nesse contexto que a obra será usada em
Conversações com René Girard, capítulo de abertura da tese que
pretende resvalar entre a vida e a obra do autor, seguindo
fidedignamente as falas de Girard, acompanhadas pela pesquisa
bibliográfica.

1
Entrevistas realizadas entre 1995 e 1999, inicialmente na Universidade de Stanford, na ocasião do
Seminário sobre a obra de Willian Shakespeare, último curso ministrado por René Girard. As reuniões
se sucederam na casa de René Girard. João César de Castro Rocha é professor de literatura comparada
da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e Pierpaolo Antonello é professor de Literatura
Italiana na Universidade de Cambrige (Inglaterra).
23

René Noël Théophile Girard nasce em 25 de dezembro de 1923,


na cidade de Avignon, França. Filho de pais intelectuais, mãe católica
de origem conservadora e pai anticlerical, representante do
socialismo radical, tradicional no partido de esquerda. Apesar da
religiosidade da mãe, não era obrigado a conviver com a Igreja. O
catolicismo com atitudes liberais da mãe levaram René Girard a
assistir a aulas de catecismo por opção, na escola pública Lycée2 e a
frequentar a Igreja até por volta dos 13 anos.

O pai, arquivista, responsável pela Biblioteca, Museu da cidade


e palácio Papal é uma grande influência, contribuindo diretamente
nas escolhas futuras do jovem Girard. Passa a infância em Avignon,
cidade natal, com mais quatro irmãos. Na adolescência, foi expulso
do colégio por mau comportamento, sempre avesso às regras e
padrões, considera-se uma peste!

Na infância, leu Cervantes, na adolescência, Proust, literatura


que não ensinavam na escola, aliás, Girard assegura que nunca
aprendeu nas escolas e Universidades. Todo seu conhecimento é
autodidata. Afirma ser um outsider, mas não no sentido clássico:

Por um lado, não pertenço a nenhum meio; por outro,


não posso considerar-me um outsider no sentido
clássico, por que tive, quando criança, o forte
sentimento de pertencer a um meio, sentimento que
ainda conservo. Tive uma infância muito feliz, apesar das
adversidades relacionadas à guerra. E sempre procurei
cercar-me de coisas ligadas a minha infância, coisas bem
simples como, por exemplo, a comida que costumava
servir-me, o café da manhã típico, os livros que li, como
a edição abreviada de Dom Quixote (GIRARD, s/d: 37)

2
Não há a descrição do Lycée estudado, a literatura diz que René Girard frequentou um Lycée.
24

Em Avignon, durante os estudos no Lycée, conheceu a


literatura e diferentes obras literárias que corroboraram na
construção do senso crítico e posição aguçada. Teve contato direto
com poetas de expressão do surrealismo francês como René Char3.

A proximidade com o poeta, mesmo assumindo nunca ter


apreciado suas poesias, proporcionou uma série de ligações
importantes na formação de René Girard. A ligação de René Char
com Yonne Zervos4 levou Girard (e um amigo) a Paris. A estada em
Paris foi deslumbrante, os Zervos eram amigos de Picasso, Matisse e
outros grandes artistas da época. Os jovens amigos foram
apresentados às obras de arte e aos artistas.

O interesse em Girard estava na possibilidade de exporem as


obras de arte em Avignon. O pai de Girard era responsável pela
conservação do Palácio Papal, e o pai de seu amigo responsável pela
promoção e arte em Avignon. Além do interesse nos jovens
promissores – o amigo era poeta, discípulo de René Char -, havia a
relação de possível apoio dos pais, se houvesse participação nos
projetos de exposição das obras de arte em Avignon.

Eu e meu amigo ficamos o tempo inteiro numa


verdadeira embriaguez mimética, por tomarmos parte
em eventos culturais tão significativos. Recordo termos
ido ao ateliê de Picasso no Quai des Grands Augustins, e
ajudado na escolha de doze telas, que levamos numa
caminhonete até Avignon. A única preocupação de
Picasso era que Matisse tivesse tantos quadros quanto
ele em exposição, quadros esses cuja importância da

3
René Char (1907-1988) poeta francês, muito conhecido no período, sobretudo pela influência do
surrealismo
4
René Char foi amante de Yonne Zervos, esposa de Christian Zervos, intelectual e Marchand de renome
na França.
25

obra fosse semelhante. Lembro-me tão bem de não ter


tido o cuidado necessário no transporte das telas de
Matisse, e o resultado foi um indisfarçável furo em uma
das Blouses roumaines, que logo foi restaurada.
(GIRARD, s/d: 29)

O projeto, como foi chamado, rendeu frutos. O primeiro festival


de Avignon levou à cidade personalidades ainda desconhecidas como
Jeanne Moreau e o próprio Picasso que, sem dinheiro, propôs pintar o
retrato do porteiro do Palácio Papal em troca de cinco francos.
Proposta recusada!

Mesmo com a efervescência do projeto, René Girard não estava


satisfeito. Enquanto os amigos de juventude se debruçavam sobre os
surrealistas, ele lia Proust. Na época, a leitura de Proust era
considerada ultrapassada. A leitura das obras surrealistas não
agradava ao jovem Girard que, mesmo condenado pelos amigos,
manteve sua preferência literária, abandonando o projeto.

Eles cultivavam interesses conflitantes com meu


interesse mais profundo, que eu não discernia na época.
O primeiro livro eu realmente li foi Em busca do tempo
Perdido. Fiquei fascinado, mas meus amigos que
rezavam pelo credo surrealista na ocasião, tinham certo
desprezo pelo livro. Só havia uma incompatibilidade ente
nós. A perspectiva surrealista concentra-se
exclusivamente em incongruências estéticas, o que
terminei achando tedioso. A min interessava “analisar”,
só não sabia disso ainda. Ao ler Proust, fiquei
impressionado com sua habilidade para expressar
determinados aspectos de nossa vida interior. (GIRARD,
s/d: 30)

O senso crítico afiado, acompanhado de opiniões ousadas e


demasiadamente honestas, leva René Girard a querer estudar
26

humanidades, em Paris, na École Normale Supérieure5. Era 1941, em


meio a Segunda Guerra Mundial, com parte do território francês
ocupado pelos alemães desde maio de 1940. Foi a Lyon se preparar
para o ingresso na Universidade, acompanhando o irmão que
estudava medicina. As dificuldades eram imensas, a recessão
provocada pela guerra frustrou os planos de Girard que volta para
Avignon.

Após um ano, decide, sob a influência do pai, estudar na École


des Chartes6, em Paris. Apesar da tentadora oferta de ser como o
pai, arquivista do Palácio Papal, o que realmente atraía Girard era um
intuito não muito intelectual7:

Há ao menos um dado maravilhoso em ser arquivista lá:


você tem o direito de morar no único apartamento
particular do Palácio Papal. É um apartamento fantástico,
com vista para ponte, o famoso Pont d’Avignon. Desse
apartamento, vê-se o rio que circunda a cidade e todo o
cenário pós-medieval de ambos os lados do Ródano.
(GIRARD, s/d: 30)

5
École Normale Supérieure, fundada em 1794, é considerada a grande escola de formação da elite
intelectual francesa. http://www.ens.fr/?lang=fr
6
http://www.enc.sorbonne.fr/ A École des Chartes é reconhecida por formar arquivistas e
pesquisadores sobre a história da França, sobretudo, do período medieval.
7
Segundo o site: http://www.gnoticia.com.br/: Avignon é uma cidade monumental, tem a classificação
de Patrimônio da Humanidade desde 1995 e o Palácio Papal é o mais eminente símbolo dessa
monumentalidade contemplada pela Unesco. Residência dos papas na Idade Média, Avignon guardou a
marca deste destino grandioso: o palácio dos Papas, a ponte, as muralhas, as igrejas e capelas .
27

Vista da ponte para o palácio papal

http://www.gnoticia.com.br/capa/lenoticia.asp?id=9650

Não era o que queria, não era do que gostava. Odiava a escola,
os estudos e a vida intelectual. Estudar documentos antigos e passar
a vida entre documentos medievais não era uma boa opção. Mesmo
contrariado, estudou temas medievais. Defende a tese La Vie Privée à
Avignon dans la Seconde Moitié du XVme Siècle. Não podia mais
voltar para Avignon, por causa da guerra, não havia como sair de
Paris. Ironicamente diz que, por causa dos alemães, terminou seus
estudos em Paris.

Não estava satisfeito naquela escola, cujo método era


muito positivista. Tínhamos a incumbência de realizar
pesquisas, editar manuscritos, etc. As condições de vida
eram péssimas para alguém longe da família e sem
ligação com o campo. (...) sentia-me insatisfeito, mas
não me dava conta do quanto desgostava da École des
Chartes, pois não dispunha de nenhum padrão de
comparação. A maioria dos cursos era extremamente
factual e árida. Tinha a impressão de não me adequar à
vida intelectual, mas não me atrevia a considerar a
possibilidade de tentar outra coisa (...) (GIRARD, s/d:
27).
28

O término dos estudos proporcionou, de fato, a Girard a


possibilidade de assumir as mesmas funções do pai. Em Avignon,
seria arquivista da Biblioteca, Museu e Palácio Papal. Apesar do
apartamento deslumbrante, não era o que queria. A ideia de passar a
vida em meio aos documentos medievais desassossegava-o.

Uma inquietude constante é o que lhe acompanhava. Estava


insatisfeito com o mundo a sua volta, não gostava das produções de
grandes autores e incomodava-se com os estardalhaços feitos em
publicações que julgava simplória. Vê a vida acadêmica de forma
enfadonha e demasiadamente positivista. Detestava. Não gostava de
sua formação, não queria viver como arquivista.

Mesmo com a precoce insatisfação da vida acadêmica, decide


lecionar. Candidata-se a uma vaga de emprego em Nova Iorque. Não
estava interessado em dar aulas, mas era a única possibilidade de
fugir dos arquivos de Avignon!

Se por um lado a guerra trouxe o conflito para dentro da


França, inibindo o crescimento acadêmico; por outro, promoveu a
saída de muitos intelectuais que buscam trabalho e reconhecimento
de suas obras. Como diz Girard, o sonho americano bate à porta.

Com posicionamento político de esquerda, mais influenciado


pelos amigos e pais, Girard assume não ter consciência política na
juventude. Na América, como professor, não via alternativa a não ser
assumir posição de esquerda. Considera-se outsider também na
política. Para Girard, os padrões estabelecidos, tanto na política como
na academia, não lhe diziam muito. Quando o debate sobre seu
posicionamento aquecia os participantes, gostava de provocar
29

dizendo ser politicamente de centro, tanto faz ser direita ou


esquerda.

Assumidamente aventureiro, sem preocupação com produções


e grandes reflexões, vai dar aulas nos Estados Unidos. Assume as
aulas no Schenectady College8, faculdade particular, em Nova Iorque.
Sem o pagamento de salários, Girard protesta e troca a faculdade
pela Universidade de Indiana9.

Em Indiana, doutora-se em História Contemporânea (1947),


um péssimo doutorado, segundo Girard. A tese sobre a opinião que a
América tinha da França entre 1940 e 1943 não lhe rendeu grandes
reflexões, a exceção do uso da biblioteca que proporcionou a leitura
dos poetas franceses, resultando em sua primeira publicação, um
ensaio sobre Saint-John-Perse, publicado pelo próprio poeta em sua
ontologia.

(...) fiz o doutorado na Universidade de Indiana, um


péssimo doutorado por sinal. No entanto, para minha
felicidade, havia lá uma respeitável biblioteca (...)
(GIRARD, s/d: 34).

Quando conclui o doutorado, toma uma importante decisão:


comprar um carro usado e viajar pela costa americana. Interessa-se
mais por carros que pelos livros. Após a viagem, compra um carro
zero quilômetro. Afirma várias vezes que a dedicação ao carro era
maior que à carreira como professor.

(...)interessava-me por carros mais que por livros!


Comprei um carro usado e, durante o verão percorri os
estados Unidos com dois amigos franceses e um
8
http://www.sunysccc.edu/
9
http://www.indiana.edu/
30

americano. Justificado pela idade avançada, o carro não


se cansou de pregar-nos peças, foi uma experiência
infernal. Depois disso, comprei um Ford 49 zero
quilometro. Estava bem mais interessado nesse carro do
que no trabalho como professor! (...) (GIRARD, s/d:36)

Não tinha interesse na Universidade, não via necessidade de


aprimorar-se ou envolver-se com o mundo acadêmico. A academia
não era o lugar que lhe promovia as inquietações cotidianas,
considera-na como espaço das não reflexões e da não criatividade.
Diz frequentemente que nunca aprendeu nada em escolas. Ainda em
Indiana, como professor doutor, começou a dar aulas sobre
literatura/romances.

Para as aulas, começa a ler Stendhal, autor que o surpreendeu,


dada a semelhança com Proust e a ligação com Flaubert e Cervantes
que pareciam óbvias. É o princípio do que seria a teoria mimética.

(...)quando comecei a ler Stendhal e a dar aulas sobre a


ficção dele, uma semelhança chamou-me a atenção: a
vaidade em Stendhal era algo muito próximo do
esnobismo em Proust, e havia, em Flaubert, um meio
termo entre ambos. Por fim, notei o mesmo em
Cervantes. Ou seja, principiava esboçar a teoria
mimética.” (GIRARG s/d: 36)

A pouca importância dada à Universidade é trocada pela euforia


dos cursos sobre romances franceses, O Vermelho e O Negro,
Madame Bovary, lidos pela primeira vez; a releitura de Dostoievski,
somado às leituras de Shakespeare, Cervantes e Proust desenharam
mais que uma possibilidade, o insight do que parecia não ter sentido,
pelas diferenças das obras sob a perspectiva formal, estética e
linguística estava no argumento dos textos. Todos os argumentos
remetiam ao desejo, e as relações desses desejos eram
intrinsecamente postas, não havia como negar. Os desejos expressos
31

nos livros estavam também no cotidiano da Universidade, nas


relações próximas. O desejo mimético é que move o ser humano.
Girard criara com os romances a sua teoria: o desejo mimético. Para
ele, o desejo está no desejo do outro, o homem deseja aquilo que é
desejado por alguém, por isso é mimético.

Com a teoria do desejo mimético em processo de consolidação,


casa-se em 1951 com uma aluna de Indiana, tem três filhos: Martin,
Daniel e Mary. A relação com os filhos e o casamento é o grande
impeditivo para voltar à França, como professor. Martha, sua esposa,
terá ao longo da carreira de Girard um papel fundamental, será o elo
entre a terra natal e os Estados Unidos, situação sentida também
pelos amigos franceses, como Michel Serres que a homenageia em
discurso10:

Sem a senhora, sem sua presença inimitável, poucas


pessoas o sabem, que o saibam hoje, a grande obra, que
hoje eu tenho a enorme responsabilidade de louvar, sem
dúvida não teria surgido. (...) A Senhora nos liga pelo
afeto que tenho pelo seu marido e pela senhora; a
senhora liga também nossos dois países, cuja amizade
infinitamente celebro. (SERRES & GIRARD, 2007: 69).

10
Discurso de recepção à René Girard proferido por Michel Serres em 15 de dezembro de 2005 em
cerimônia da Academia Francesa. Anexo a tese
32

René Girard e Martha

http://bookhaven.stanford.edu/2010/09/rene-girard-meet-terry-jones-andrew-sullivan-
christopher-hitchens-and-the-gang/

A falta de publicações torna-se um problema para a carreira


docente, em Indiana. A Universidade ambicionava subir no ranking
americano das Universidades e a produção era essencial. O único
defeito de Girard até então era a compra do carro novo. É demitido
de Indiana.

Trabalhou na Universidade de Duke11, e logo em seguida vai


para Bryan Mawr12, como professor de língua e literatura francesa,
com menos aulas e ambiente mais acolhedor permanece por quatro
anos na Universidade. Aprendeu a lição, começa a publicar artigos.

11
http://duke.edu/
12
http://www.brynmawr.edu/academics/
33

Nas publicações, a maioria sobre literatura e crítica literária, já há


elementos da teoria que seria apresentada em 1961.

O envolvimento com a Universidade e vida acadêmica começa,


de fato, em 1957, na Johns Hopkins13. Nos dez anos na
Universidade, promoveu eventos, seminários importantes e publicou
artigos reconhecidos. É também nesse período, em 1961, que
publicou seu primeiro livro: Mentira Romântica e Verdade
Romanesca, elaborado entre 1955 e 1960.

Foi um período gratificante para mim, pois a escrita de


Mentira romântica e verdade romanesca constitui uma
das experiências intelectuais mais intensas – realmente
acreditava no que estava fazendo, na eficácia da teoria
mimética. (GIRARD, s/d: 44).

O ambiente da Johns Hopkins era muito mais acadêmico e


criativo que o das outras Universidades. Criada no modelo germânico
apontava como uma das maiores Universidades de pós-graduação
norte-americana.

Nessa Universidade, era integrante do departamento de línguas


Românicas, o que promovia intensa interação com vários colegas de
diferentes áreas de formação. Como nunca gostou de ter
predefinições sobre sua teoria ou opinião política, estar no
departamento, significava ter certa liberdade de expressar-se.

13
http://www.jhu.edu/
34

Ainda em John Hopkins, junto com outros colegas, organizaria


em 1966, um importante colóquio Internacional 14, com a presença de
Lucien Goldmann, Roland Barthes, Jacques Derrida, Jacques Lacan.
Analisado como um evento de primeira grandeza, foi considerado
responsável pela introdução do estruturalismo na América. Todos os
grandes intelectuais da época estavam presentes à exceção de Lévi-
Strauss.

Lacan foi um convidado divertidíssimo, ficou brincando


com todos de forma extremamente calculada e
hilariante. Tudo foi muito divertido, houve incidentes
inacreditáveis. As pessoas faziam perguntas em francês,
apesar de não saberem a língua, e Lacan falou em
inglês, apesar de não saber a língua. Era um autentico
showman e estava em plena forma; queria atrair toda a
atenção para si. (GIRARD, s/d: 51).

O evento foi considerado fundador. Um divisor de águas do


pós-guerra para as Universidades. Além do estruturalismo, a
desconstrução (mais apropriada pelos linguistas e psicanalistas)
promovia certa revolução nas Universidades. Em pouco tempo,
tornar-se-ia moda entre os acadêmicos, o que incomodou e muito a
René Girard.

Quando Freud veio para aos Estados Unidos, disse ao se


aproximar de Nova Iorque: “estou trazendo-lhes uma
praga”. Mas estava enganado, os americanos facilmente
digeriram e americanizaram a psicanálise. Nós é que
trouxemos a praga com Lacan e a desconstrução, ao
menos para as Universidades. (GIRARD, s/d: 51).

14
Colóquio internacional: The languages of Criticism and the Sciences of Man (A linguagem crítica e a
ciência do homem) a proposta do colóquio era refletir sobre a proposição teórica desconstrução.
35

Um ano após o colóquio, a sensação de alienação e


desconforto, tal como em Avignon, tomara conta de Girard, o
modismo acadêmico, sobretudo, desconstrucionista, avançou sobre
os muros da Universidade. Em 1968, foi para Universidade de
Buffalo15. Aceitou trabalhar em Buffalo pelas excelentes condições de
salário e trabalho, daria aulas uma vez por semana, com um
assistente em tempo integral. Mas o melhor era a possibilidade de
poder pertencer a qualquer departamento. Optou pelo departamento
de Inglês pelas características mais acolhedoras dos colegas.

Durante a estada em Buffalo, Girard se aproxima de Michel


Serres, também professor da universidade. Além dos debates, a
aproximação dos autores renderia a amizade e admiração mútua.

O interessante nos textos de Serres é que a origem do


conhecimento é também a origem da ordem, numa
forma de classificação simbólica. A existência de um
símbolo implica a existência de uma totalidade, e esta é
impossível sem a religião, pois só passa a existir graças
ao mecanismo do bode expiatório. Não há outro modo de
obtê-la, modo, aliás, bem natural, uma vez que o
primeiro símbolo constitui a fonte da totalidade. Tudo
então se organiza em torno desse primeiro símbolo.
Depois, mediante o rito, ou seja, mediante a repetição
que este supõe, o mecanismo expiatório se converte
num processo de aprendizagem. Não repetimos para
aprender, repetimos para evitar a violência, o que em
última análise, dá no mesmo. Trata-se de um processo
de aprendizagem também no sentido experimental
(GIRARD, s/d:60)

15
http://www.buffalo.edu/
36

Em 1975, volta para John Hopkins. O retorno acontece pela


proposta de independência acadêmica, reduzida carga de aulas e
período sabático. Admitira que, com a chegada dos
desconstrucionistas, a Universidade nunca mais foi a mesma e ainda
sim é a única que faz pesquisa. Em 1980, aceitou trabalhar na
Universidade de Stanford, no departamento de Francês.

Sobre o movimento de 1968, além de não participar, acredita


ser a instalação de uma espécie de tirania totalitária, o que
fatalmente contribuiria para a ação destrutiva, sobretudo, dos centros
de pesquisas.

Foi sua estada em Buffalo que proporcionou, em 1972, a


publicação de A Violência e o Sagrado. As leituras antropológicas
começaram muito antes da publicação do livro. O que incitou Girard
foi a leitura de Psychologie de l’art de Malraux, na fase das
publicações de artigos sobre literatura, logo após a saída da
Universidade de Indiana e da publicação de Mentira Romântica e
Verdade Romanesca. A descrição do mundo arcaico despertara mais
uma inquietação, que acompanhava as reflexões sobre o sacrifício,
fascínio da morte e da arte primitiva.

Quando passei da literatura à antropologia, fiz isso por


conta própria. Transcorreram muitos anos entre o
primeiro e o segundo livro que publiquei, pois foi esse o
tempo necessário para uma formação autodidata em
antropologia. Durante essa educação antropológica, li
mais do que em qualquer outro período da vida, ainda
que muitas vezes não lesse livros inteiros, por só me
interessarem a parte religiosa e os elementos sacrificiais
(...) (GIRARD, s/d: 51).
37

As leituras antropológicas acompanhavam paralelamente o


trabalho do professor de literatura. Buscou na antropologia inglesa 16
o desejo mimético e encontrou em Frazer17 o que considerou sua
experiência intelectual mais intensa. A ideia era ampliar a teoria do
desejo mimético, já esboçada em Mentira Romântica e Verdade
Romanesca. A mesma inquietação que o levou às leituras
antropológicas conduziu-o aos mitos e tragédias gregas. As Bacantes
18 19
e Édipo Rei foram essenciais na construção da teoria do desejo
mimético, corroborando para o processo de formulação da ideia do
assassinato fundador, desfecho da reflexão do desejo mimético,
sacrifício, violência e bode expiatório.

Havia em Girard a preocupação em mudar o eixo de reflexão do


primeiro livro sobre literatura para a compreensão da violência em A
Violência e o Sagrado. O desejo mimético, apontado na primeira
publicação, não poderia iniciar o novo livro, para não ser
compreendido pela critica como uma continuação. Afinal, segundo
ele, os críticos leem apenas as 15 primeiras páginas e alguns
parágrafos para elaborarem seus argumentos. Essa preocupação
ainda o acompanhava durante o período da escrita de A Violência e o
Sagrado, livro de difícil conclusão. Então, resolveu mudar o formato,
deixou o desejo mimético para o capítulo do meio e iniciou com o
sacrifício, tema principal, transversal da obra.

16
Principalmente Radcliffe-Brown, Bronislaw Malinowski
17
James Frazer (1954-1941). Antropólogo escocês. Dentre as publicações do autor, no Brasil foi
publicado umresumo da mais conhecida: O Ramo de Ouro (1890), obra em 12 volumes, produzida ao
longo de mais de 20 anos, que descreve a relação dos mitos, religião e ciência.
18
As Bacantes (405 a.C.). Tragédia grega, escrita por Eurípedes (480 – 406 a.C.)
19
Édipo rei (427ª.c.). tragédia grega, escrita por Sófocles (497 – 406 a.c.)
38

Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo foi escrito, em


1971, com o desdobramento de A Violência e o Sagrado. Concebidos
no mesmo período, ainda na Universidade de Buffalo, as duas obras
propõem o debate sobre o desejo mimético, começando pela
discussão do Sagrado até a reflexão sobre o Cristianismo. Havia a
necessidade de Girard romper com as reflexões estabelecidas em
Mentira Romântica e Verdade Romanesca, obra que inaugura a
reflexão sobre a teoria do desejo mimético, mas que não aprofunda
os estudos sobre a cultura.

A recepção de A Violência e o Sagrado foi péssima. Os críticos


não compreenderam a obra, os antropólogos não a aceitaram e os
linguistas não a entenderam. Como esperado por Girard, a
Universidade não estava preparada para aceitar as mudanças e o não
convencional. Essa não aceitação da academia provocou, no autor, o
esperado: nada.

... nos círculos literários, não sabiam o que pensar do


livro, o que fazer com ele. “o que é isso? É uma
completa mudança de campo de estudos!”, exclamavam.
De certo modo, pus a ênfase na tragédia grega, porque
precisava dar ao livro algum conteúdo literário. Sem
dúvida, desconcertei a colegas e leitores. (...) Quanto
aos antropólogos, ou não manifestaram qualquer reação,
ou reagiram de forma inteiramente negativa. (GIRARD,
s/d: 56).

Negando qualquer comentário que o fizesse parar de produzir,


Girard continuou a desenvolver a teoria proposta já em Mentira
Romântica e Verdade Romanesca. Para ele, o projeto precisaria de
maior aprofundamento na reflexão conceitual, na intersecção do
desejo mimético e rivalidade com o Cristianismo e na condução do
bode expiatório.
39

A publicação de Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo


acaba por ser o resultado de mais uma inovação. Conclui o livro e o
publica em forma de entrevista. Não há novidade em publicações
nesse formato, mas há de fato uma inovação, quando as entrevistas
são usadas para apresentar uma teoria em desenvolvimento e
quando o autor escolhe utilizar-se das entrevistas como estratégia de
elaboração teórica.

O fato de outras pessoas também assinarem Des Choses


cachées diminuiu meus escrúpulos, dispus-me a incluir
nele todo tipo de coisa, sobretudo por não me sentir
responsável pelo que se dizia em certas partes! E assim
foi feito. Compor esse diálogo permitiu dar ao livro uma
conclusão, dividindo em perguntas e respostas o
material já redigido por mim. (GIRARD, s/d: 63).

Jean-Michel Oughourlian20 e Guy Lefort21 participaram das


entrevistas para o livro, entrevistando Girard sobre o material já
produzido. O livro foi publicado em 1977 e encaminhado para
Grasset, sem revisão. A recusa da editora abre as portas para
publicação midiática, transformando o livro em best-seller.

Então Françoise Verny o leu e resolveu publicá-lo. Foi


responsável por torná-lo um best-seller, o único livro
meu a entrar para essa categoria, graças a ela. Muitos
dos que compraram com certeza jamais o leram.
(GIRARD, s/d: 64).

A repercussão, na academia, do lançamento de Coisas Ocultas


desde a Fundação do Mundo não poderia ser outra. Parte dos
intelectuais rechaçou o livro, entoando na crítica a exposição

20
Neuropsiquiatria e psicólogo
21
Médico psiquiatra
40

midiática, outra parte silenciou. Para Girard, a reação era esperada,


afinal quanto mais desejamos a mesma coisa, ter reconhecimento,
mais criamos inimigos.

A consolidação da carreira como intelectual levou Girard, em


1980, para Universidade de Stanford. As publicações de A Violência e
o Sagrado e Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo
proporcionam ao autor destaque em meio aos críticos acadêmicos
mais tradicionais. A crítica apontava o que os incomodava. A
originalidade da obra de Girard proporcionaria a necessidade de uma
série de novas reflexões. Obviamente, as paredes acadêmicas se
incomodaram com a cobrança teórica e a necessidade de
posicionamento. Frente ao desafio, a maioria dos colegas acadêmicos
contemporâneos a Girard fizeram o esperado; não leram e não
aceitaram a teoria girardiana.

A estada em Stanford até 1995, ano de sua aposentadoria,


proporcionou a René Girard uma série de reflexões, publicações e
seminários. Foi condecorado como doutor honoris causa, em 1985, na
Frije Universiteit de Amsterdã; em1988, na Innsbruck, Áustria; em
1995, na Universidade de Antuérpia, Bélgica; em 2001, na
Universidade de Pádua, Itália; em 2004, na Universidade de
Montreal, Canadá; em 2006, na University College London,
Inglaterra; e, em 2008, na Universidade de St Andrews, Escócia.

A carreira consolidada e o reconhecimento acadêmico, fora dos


Estados Unidos e França, comprovam que a teoria girardiana
incomodava. As duas grandes escolas antropológicas se recusavam a
aceitar a teoria girardiana como uma proposta de reflexão
antropológica. Na França, Lévi-Strauss afirmava ser um absurdo
41

chamar René Girard de antropólogo; nos Estados Unidos, o


culturalismo não propunha debate com o autor.

Os reflexos da teoria mimética e seus desdobramentos não


poderiam ser diferentes. Não teríamos a obra de Girard se não
houvesse a contraposição dos colegas, reconhecidos
academicamente. O autor é avesso aos ditames institucionais, sua
obra não poderia refletir outra situação senão a do confronto. A obra
condiz com sua vida, numa rara situação vivenciada nas
universidades.

O reconhecimento veio em 17 de março de 2005 com a eleição


de René Girard para a academia francesa. Girard torna-se imortal,
ocupando a cadeira 37 de seu antecessor, Reverendo Padre
Ambroise-Marie Carré, assento ocupado pela primeira vez em 1635-
1671 por Daniel Hay Chastelet du Chambon. Em 15 de dezembro do
mesmo ano, em seu discurso de posse Girard profere:

Para todo novo acadêmico, falar sob a Cúpula pela


primeira vez implica um dilema temeroso. Os
sentimentos que o dominam são intensos, mas tão
banais que ele se pergunta se não seria melhor silenciá-
los em vez de expressá-los. No meu caso, porém, o
silêncio seria injusto para com a Academia. Minha dívida
em relação a ela é excepcional. O primeiro dos meus
livros que ela coroou também é o primeiro livro que
publiquei.

Essa antiga consideração acrescentaram-se muitas


outras ao longo de minha carreira e finalmente um
prêmio magnífico da fundação Gal. E o primeiro mais
magnífico de todos é, evidentemente, a minha eleição à
Academia.

Posso dizer, sem exagero, que, durante meio século, a


única instituição francesa que me convenceu de que eu
não fora esquecido na França, no meu próprio país,
enquanto pesquisador e pensador, foi a Academia
Francesa.
42

Como toda carreira de acadêmico, a minha começa


justamente hoje, com este discurso cuja tradição tanto
sábia quanto venerável me dita o tema e inclusive, até
certo ponto, a forma de tratá-lo. (GIRARD & SERRES,
2011:19)

Girard paramentado no dia da posse na Academia Francesa

http://www.academie-francaise.fr/les-immortels/rene-girard?fauteuil=37&election=17-03-2005

Não havia mais como negar a influência da teoria girardiana. A


Academia francesa rende-se à importância da teoria e do intelectual.
Girard rende-se à academia, uma conciliação necessária do filho
pródigo que volta para casa, agora imortalizado.

Michel Serres, membro da Academia desde 1990, faz o


discurso22 de recepção ao amigo:

...nós, banindo ou elegendo um candidato, inscrevendo


seu nome em pedaços de argila, lembrança esquecida
dessas pedras de lapidação; nós, designamos um chefe
para nossos sufrágios, esquecendo que essa palavra
fractal significa ainda os mesmos fragmentos, jogados
22
Os discursos de Michel Serres e de René Girard estão publicados na íntegra no livro O trágico e a
piedade – ver bibliografia
43

no candidato eleito; com essas pedras assassinas,


construímos nossas cidades, nossas casas, nossos
monumentos, nossa cúpula; nós, designamos rei ou
vítima, entre nossos furores temporariamente
canalizados por esse próprio sufrágio; nós, seus colegas,
que, dos nossos sufrágios, o elegemos; nós,
tranquilamente sentados ao seu redor, em pé,
discorrendo sobre nosso padre Carré, morto. Graças ao
senhor, vejo pela primeira vez o sentido arcaicamente
selvagem dessa cerimônia, os círculos concêntricos dos
assentos, fixos no chão, imobilizados, separados; ouço o
silêncio do público, acalmado pelo fascínio, ouvindo o
senhor, eleito, em pé; descubro também pela primeira
vez esta capela redonda ao redor do túmulo de Mazarin
os dois efeitos das pedras de uma lapidação fria,
reproduzindo, como num modelo reduzido, as pirâmides
do Egito, resultado, estas também, sem dúvida entre as
primeiras de uma longa lapidação, a do corpo do Faraó,
assolado, sob essas montanhas. As instituições erguem
necrópoles e metrópoles a partir desse suplício primitivo?
Nossa cúpula ainda se forma segundo esse ritual
esquecido?

(...) o senhor nos revelou como o desejo pessoal e a


cultura humana ampliam um dos segredos da vida, do
nascimento, da natureza. (...) aqui temos outro
mimetismo escondido: adequando-se ao corpo, as
técnicas acabam entrando no seu segredo e se
reproduzem a sua semelhança. Elas se reduzem a
biotecnologias. Tendo saído do corpo, os aparelhos, bem
nomeados, ressurgem nele hoje. Sua história conta
como todos os objetos que fabricamos exploram os
desempenhos da vida. Chamei isso de exodarwinismo
das técnicas; graças ao senhor, compreendo que ele
continua, que ele imita, culturalmente, o darwinismo
natural. Eu o chamo agora de “novo Darwin das ciências
humanas”.

(...) senhora secretária perpétua, peço agora sua


permissão, mudando o protocolo para deixar de lado,
nestas últimas palavras, o tratamento formal cerimonial.
Nesta reunião de iguais, estou orgulhoso de agora ter
você entre nós, meu irmão. (GIRARD & SERRES, 2011:
45-73)23

23
Anexo: Discurso na íntegra, da academia francesa (em francês) e em cópia digitalizada em português.
44

Se há na obra de Girard uns cem números de comentários


contrários às suas ideias, certamente há um ponto em comum,
dentre seus comentaristas mais críticos e os entusiastas e
colaboradores. Toda a reflexão da teoria girardiana está presente nas
obras Mentira Romântica e Verdade Romanesca, A Violência e o
Sagrado, e Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo. Toda a
reflexão resultante do desdobramento das três obras está dividida em
publicações, que variam entre autoria e coautoria de Girard com
colegas da academia. Curiosamente, as parcerias ocorrem com
médicos, psiquiatras e jornalistas. Pouco há de diálogo de Girard com
colegas literatas e antropólogos. A carreira acadêmica nos corredores
dos departamentos de literatura das universidades em que Girard
trabalhou lhe trouxe autonomia e independência no pensar, escrever
e publicar. A generosidade da escrita está na fidelidade com que trata
a sua obra e jamais nas relações políticas que por ventura pudessem
existir.

HTTP://WWW.CORBISIMAGES.COM/STOCK-PHOTO/RIGHTS-MANAGED/0000217067-001/FRENCH-
ANTHROPOLOGIST-RENE-GIRARD
45

A OBRA
46

René Girard constitui ao longo de sua acarreira uma obra de


fôlego. São mais de 20 obras que expõem a teoria do desejo
mimético e a relação com a violência, para Girad, cerne da cultura.
No entanto, há algumas peculiaridades na obra de Girard. Parte dos
livros são construídos em forma de diálogo. Essa construção parece
comum, mas não o é para a proposta girardiana. Os livros, em forma
de entrevista, não são resultados de diálogos ou seminários. A
proposta é a escritura do livro com esse formato, os diálogos variam
entre a espontaneidade e a necessiade de aprofundamento de uma
questão. Para Girard, o debate começa com a própria ideia a ser
debatida e os diálogos são a melhor forma de interpretar as reflexões
propostas. Outro ponto importante, como já mencionado: toda obra
do autor é circundada por três obras originais. É a partir da
interpretação, exposta nas primeiras obras, que Girard desenvolverá
toda sua reflexão, aprofundando ideias, propondo novos debates.

É extremamente importante ressaltar que não há a divisão


entre a vida e a obra de Girard. A divisão é apenas para elucidar e
facilitar a leitura. Não se trata de separação ou oposição.

Refletir sobre a obra do autor é necessariamente compreendê-


la em seu contexto. A primera publicação Mentira Romântica e
Verdade Romanesca está inserida na necessidade de publicação e na
vivência cotidiana do autor com a literatura. É, possivelmente, a obra
mais expressiva e também a menos lida. Menos lida, pois a rejeição
do livro, na acadêmia, abrandou a importância da obra e mais
expressiva, pois é o embrião da teoria do desejo mimético, expressa
nas reflexões sobre os romances analisados e, sobretudo, sobre seus
autores.
47

Mentira Romântica e Verdade Romanesca é a primeira obra de


René Girard, publicada em 1961. A publicação do livro reflete o
processo de envolvimento do autor com a literatura. Stendhal,
Dostoievski, Cervantes, Flaubert, Shakespeare e Proust exibem em
suas obras personagens reais ou fictícios que, independentemente da
época ou realidade descritas, convergissem ao mesmo centro: o
desejo mimético.

A percepção das obras é a triangulação presente em todas as


narrativas. Para Girard, existem duas possibilidades de triangulação:
as externas e as internas. Todos os romances trazem a relação de
dois protagonistas e um terceiro elemento que promove os conflitos
necessários para o desenvolvimento da história. Essa é a triangulação
analisada por Girard.

A triangulação é essencial para o entendimento das obras


literárias estudadas por Girard, o pano de fundo não é o romance,
mas o desejo mimético que permeia as relações. É o desejo
triangular que movimenta as narrativas.

Nas obras, os personagens desejam seus pares, mas, para


Girard, esse desejo só acontece porque é mimético. Só há o desejo
porque há um rival na disputa pelo amor, paixão ou poder. É essa a
triangulação: os personagens desejam apenas quem é desejado por
alguém, é o que mantém a narrativa. A disputa dos rivais promove o
acesso ao desejo entre os personagens.

O desejo mimético ocorre quando o personagem deseja o que é


desejado por outro personagem. Nesse momento, há uma relação de
proximidade entre os personagens, pois possuem o mesmo desejo.
Na medida em que um dos personagens conquista o objeto de
48

desejo, o outro passa a ser o seu duplo rival. Duplo, pois é o espelho
de seu próprio desejo e rival, porque disputará o mesmo objeto
desejado. O rival é, portanto, o mediador dos conflitos.

Em todas as obras analisadas em Mentira Romântica e Verdade


Romanesca, a triangulação está presente, o que difere é a forma com
que o desejo é disputado. Nas triangulações internas, o mediador
está ao lado, próximo, enquanto que nas triangulações externas o
mediador está ausente ou distante.

Para Girard, os romances são narrativas mentirosas, não há a


triangulação. O mediador não é revelado, inibindo a presença do
desejo mimético. A verdade está nas narrativas romanescas, quando
há a triangulação explícita dos mediadores, expondo seus desejos,
portanto, os conflitos. São as obras romanescas, analisadas por
Girard.

O impacto de Mentira Romântica e Verdade Romanesca é


avassalador. O círculo literário se dividia em compreender a análise
das obras contidas no livro e rechaçar as reflexões propostas. A
crítica apontava a impertinência de Girard ao descrever as obras
intercruzando os autores, diziam ser mesquinho. Foram cinco anos de
estudos para a publicação da obra; muitos colegas participaram das
leituras preliminares, poucos o apoiavam. Ocorre que o fato de a
publicação tratar de obras literárias acabou corroborando para os
debates de literatura da época. A maioria dos leitores acadêmicos não
compreendia que a reflexão estava muito além do transcrever das
obras. A intersecção dos personagens das obras está no desejo
mediado interna ou externamente. O desejo mimético está presente
nas relações humanas e, portanto, nas Universidades; talvez seja
49

esse o espelho que tenha provocado tanto descompasso entre os


colegas de Girard.

A importância da obra está tanto na crítica quanto no alvoroço


que provocou. O despertar da reflexão teórica sobre o desejo
mimético levaria a publicação de outra obra ainda mais polêmica: A
Violência e o Sagrado. Se os colegas de departamento rechaçaram
Mentira Romântica e Verdade Romanesca, a receptividade de A
Violência e o Sagrado fora ainda mais grave. Girard ousou não
escrever sobre literatura, sendo professor de literatura francesa e
inglesa.

A permanência nos departamentos de literatura se estenderá


até a aposentadoria, e é justamente com Mentira Romântica e
Verdade Romanesca que Girard desperta o interesse da Academia
francesa.

Para Girard, a literatura bem como a tragédia grega e a


mitologia formam em seu conjunto a obra mais interessante
produzida pelo homem.

A proposta que se desdobrará na obra do autor é oriunda do


desejo mimético encontrado na literatura que corroborará com a ideia
de que o desejo mimético é o desejo da violência. Se desejo apenas o
desejo do outro, esse outro é meu rival e, por desejar o meu desejo,
preciso ou devo matá-lo. O desejo mimético revela o desejo da
violência, debate central da teoria girardiana.

O conceito de desejo mimético e violência será amplamente


explicado em duas obras: A violência e o Sagrado e Coisas Ocultas
desde a Fundação do Mundo. Duas obras que poderiam ser uma.
50

Segundo Girard, os livros foram pensados simultaneamente e


separados apenas pelo tempo e para as publicações.

Nos anos subsequentes à publicação de Mentira Romântica e


Verdade Romanesca, Girard aprofunda seus estudos em mitologia
grega, sobretudo no mito de Édipo e em alguns estudos etnográficos.
O resultado que seria publicado, em 1972, não poderia ser outro:
crítica severa aos estudos etnográficos sobre religião e desejo, na
concepção analisada por Freud. Da literatura para a antropologia foi
um passo.

A inquietação com as novas leituras era pulsante. Havia algo de


errado com as explicações etnográficas e antropológicas. Há uma
discrepância entre os mitos e as teorias. O pensamento sobre o
desejo mimético aprofundado e acrescido das reflexões sobre a
vítima expiatória. A publicação de A violência e o Sagrado traz ainda
outra provocação, para Girard, o que funda a cultura é o controle ou
canalização da violência e não a interdição do incesto.

Enquanto a relação do desejo mimético em Mentira Romântica


e Verdade Romanesca aparece nas triangulações romanescas, em A
violência e o Sagrado a triangulação está na condição humana, mais
ainda, na relação com a violência.

Para Girard, a passagem do estado de natureza para cultura


está no controle da violência. A violência intestina é instintiva e
precisa ser controlada. Há apenas uma forma de controle: a
canalização da violência.

Para o autor, o sacrifício é o único mecanismo eficiente de


controle da violência intestina, desde que a vítima imolada – ou
sacrificial – represente a culpa.
51

Há um ciclo que precisa ser entendido: só existe controle da


violência na iminência de destruição do indivíduo ou da sociedade. A
violência, quando ocorre, dispara o desejo de violência entre os
outros indivíduos que pode contaminar a sociedade. Uma vez a
sociedade contaminada, não há o que fazer, a violência intestina é
avassaladora e destruirá a sociedade.

Não bastaria, então, repreender o culpado? Para Girard, a


violência intestina tem ainda outro elemento, a vingança. Repreender
o culpado significa instituir o ciclo da vingança, que remete
novamente ao despertar da violência intestina.

A única forma de conter a violência é imolando uma vítima que


não pode ser a culpada para não incitar a vingança. A vítima imolada
é o bode expiatório, representa toda a violência, mas não é o seu
agente direto. Além de conter as agressões instintivas, a vítima
expiatória controla a vingança.

O desejo mimético está no sacrifício. Todos são culpados, pois


todos poderiam ter cometido o mesmo crime, já que a violência é
intrínseca. No momento do sacrifício, há uma imediata empatia
catártica em que os culpados se veem representados na imolação,
morte violenta da vítima. Há uma transposição da violência intestina
para uma violência controlada. A triangulação está completa, o
culpado, a vítima expiatória e a violência como mediadora externa, já
que é a ameaça real ao sistema.

O controle da violência só pode ser religioso. Não há outro


mecanismo de controle eficiente que não o da religião. Para Girard,
essa triangulação está presente na Bíblia que também confirma a
52

necessidade do Sagrado para o controle da violência. Os mitos


bíblicos e gregos demostram essa relação.

A violência está controlada, enquanto esse mecanismo


funcionar. A crise das sociedades arcaicas leva também à crise do
controle da violência. A ineficácia ocorre na mudança da triangulação,
quando a vítima imolada deixa de ser culpada, para ser a inocente.

O Cristianismo inaugura essa nova triangulação, representa o


final do processo de crise sacrificial, como chama Girard. Ao sacrificar
Cristo, a mediação se inverte. Cristo é inocente, não canaliza a culpa
tampouco a vingança. Não há vingança a ser controlada, quando não
há crime. Como conter a violência intestina se a vítima expiatória não
representa essa violência?

O desejo mimético deixa de ter a violência como mediadora;


agora, a mediação está na não violência, na negação da violência
intestina. A mediação passa de externa para interna. O controle da
violência não é mais por meio do sacrifício que canaliza as violências
intestinas, a mediação interna deixa, a cada triangulação, a resolução
de seu conflito, negando a violência. Um vulcão prestes a explodir,
segundo Girard. Não há como negar que a violência é intestina e,
sem a canalização, as sociedades modernas correm o risco da
extinção ou de viverem o caos.

O início dos estudos de Coisas Ocultas desde a Fundação do


Mundo ocorre antes da publicação de A violência e o Sagrado. Pensar
as duas obras com continuidade, como um uno. Se em A Violência e
o Sagrado, a discussão está no mito fundador, em Coisas Ocultas
desde a Fundação do Mundo, o debate centra no Cristianismo.
53

A obra inaugura uma série de publicações do autor, que


marcará a forma de condução dos textos. Girard decide transformar o
texto já elaborado em diálogo com Jean-Michel Oughourlian.

Com a proposta de continuar o debate, iniciado em A Violência


e o Sagrado, Girard começa o livro, provocando o leitor. Afirma que
tanto os mitos como os evangelhos lançam a comunidade à busca do
culpado pela violência instituída.

Com um discurso acirrado e ainda menos preocupado com as


consequências, a obra submerge aos mitos e a citações bíblicas.

O que está oculto desde a fundação do mundo não


é nada além da própria fundação. O sempre oculto
era o assassinato fundador, o resultado do
mecanismo vitimário, e é Jesus que torna tudo
isso visível sofrendo essa violência muito
visivelmente injusta em sua crucificação, expondo-
a aos olhos de todos nos quatro relatos da Paixão,
privando-a assim de sua potência fundadora.
(GIRARD, 1978: 15).

Girard apropria-se da ideia de que a fundação do mundo está


no controle da violência e que o Cristianismo não é apenas uma
religião, mas uma nova cultura que marcará definitivamente a
humanidade: a passagem da imolação da vítima, culpada das
sociedades arcaicas, para o sacrifício da vítima inocente, como
consagra o Cristianismo. Essa mudança é estrutural e não pode ser
ignorada, segundo o autor. O Cristianismo não pode ser pensado
como uma manifestação religiosa, simbólica ou ritualística; é
essencial refletir sobre a cultura. Para Girard, a ausência de reflexão
sobre o Cristianismo, como fenômeno de transformação cultural,
implica os erros cometidos pelos colegas acadêmicos que insistem na
visão cartesiana linear que, decididamente, deixa a desejar.
54

PARTE 2

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,obra-discute-o-sacrificio-ritual-
moderno,767361,0.htm
55

A VIOLÊNCIA ESTÁ NO SAGRADO24

24
Telas: Caim e Abel de Tintoretto e O sacrifício de Abraão de Caravaggio
56

Somente uma transcendência qualquer, que faça


acreditar numa diferença entre o sacrifício e a
vingança, ou entre o sistema judiciário e a
vingança, pode enganar duramente a violência
(GIRARD, 2008: 39).

A citação acima descreve o pensamento de Girard sobre


violência e religião. A relação é intrínseca. A violência é o cerne da
cultura e o controle está no Sagrado.

Girard é um autor polêmico, como já dito. A polêmica


girardiana, porém, é fundamentada em argumentos que deixam a
tradição acadêmica enfurecida. O autor devolve a religião à
humanidade, sem a mácula do pecado. O cenário acadêmico
certamente não está preparado para essa revolução. A religião desde
o antropocentrismo foi banida dos grupos intelectuais, mantendo-se
forte na população menos conhecedora e alienada, reforçando,
inclusive, a diferença entre classes. A ousadia do autor está na teoria
e no cenário em que ela é construída. Muito além dos teólogos,
Girard traz a religião não com explicação do fenômeno da fé, mas da
necessidade humana de controle das sociedades, sobretudo da
violência e, principalmente, reflete que o Cristianismo não é uma
religião, transcende a essa condição; para o autor, é uma nova
cultura.

Não se trata de conversão ao Cristianismo, como muitos


pensam. A reflexão de Girard não está baseada em sua fé. Ao
contrário, a vida católica é em função do que acredita ser a única
forma de controle social. Sim, no caso de Girard até a fé é resultado
de sua teoria, não ao contrário. Isso é essencial.
57

Obviamente essas ideias incomodaram e ainda incomodam


muitos acadêmicos. O debate acerca da religião, somado às reflexões
literárias e mitológicas, é relativamente comum nas salas de aulas
acadêmicas, mas Girard inverte o papel desses debates. Para o autor,
a religião, os mitos e a literatura dizem muito mais que as extensas
obras teóricas. A crítica ácida aos colegas a acadêmicos é
contundente, Girard observa que o problema da academia está na
permanente arrogância teórica:

[...] o cientistas têm uma tendência ainda maior


para considerar a obra literária como uma má
companhia, pois sua vontade de rigor é mais
teórica. (...) É preciso dissipar de uma vez por
todas a ideia de que recorrer à tragédia grega
representa um prejuízo para pesquisa, uma
maneira “estética” de ver as coisas. E,
reciprocamente, é preciso dissipar o preconceito
dos literatos segundo o qual relacionar uma obra
literária e uma disciplina científica, qualquer que
ela seja, leva necessariamente a uma “redução”
fácil, a uma escamoteação daquilo que constitui o
interesse da obra. O pretenso conflito entre a
literatura e a ciência da cultura repousa sobre o
mesmo fracasso e sobre uma mesma cumplicidade
negativa, tanto dos críticos literários quanto dos
especialistas em ciências religiosas. Nenhum deles
consegue identificar o princípio sobre o qual se
baseiam seus objetos respetivos. A inspiração
trágica trabalha em vão tentando tornar manifesto
este princípio. Ela obtém um resultado parcial, e
seu semi-sucesso dica sempre obliterado por
outras literaturas diferenciadas que os exegetas
enforcam-se por impor. (GIRARD, 2008: 76)

Além de opositores às suas ideias, A obra de Girard possui


admiradores. Michel Serres, Paul Ricɶur, Jean-Christophe Goddard,
Jean-Claude Guillebaud, Jean-Michel Oughourlian que, somados a
58

outros intelectuais contemporâneos, elaboraram o L’Herne Girard25 .


Publicação francesa que reúne coletânea de textos do autor e de
comentaristas, corroborando para o debate acadêmico. L’Herne é
uma publicação tradicional, um tributo aos grandes intelectuais.

Diferentemente dos colegas contemporâneos que debatem a


passagem do estado de natureza para cultura na interdição do
incesto, em Girard, a passagem está no controle da violência
intestina. A violência intestina, ou violência primeira, só pode ser
contida se canalizada. Sob o domínio da religião, sacrifício é o único
mecanismo eficaz de canalização da violência. Para o autor, a
violência é o cerne da cultura.

O ciclo destrutivo, provocado pelas violências intestinas, pode


levar à destruição da comunidade. Para Girard, a vingança é o efeito
primeiro da violência não canalizada. Os ciclos de vingança não têm
fim e, por isso, devem ser contidos. Só há uma forma de conter a
vingança, rompendo seu ciclo com uma violência ainda maior: o
sacrifico.

O mecanismo da violência coletiva pode ser


descrito como um círculo vicioso; uma vez que a
comunidade aí penetra, é impossível sair. Este
círculo pode ser definido em termos de vingança e
represálias ou suscitar várias descrições
psicológicas. Enquanto houver, no seio da
comunidade, um capital de ódio e de desconfiança
acumulados, os homens continuarão a se servir
dele, fazendo-o frutificar. Cada um se prepara
contra a provável agressão do vizinho, e interpreta
seus preparativos como a confirmação de suas
tendências agressivas. De forma mais geral, é
necessário reconhecer na violência uma natureza
mimética tão intensa que ela não consegue morrer

25
ANSPACH, Mark R. L’Hern Girard. Paris: Éditions L’Hern, 2008. Sem tradução para o português.
59

por si própria, uma vez que tenha se instalado na


comunidade. (GIRARD, 2008:107)

O sacrifício canaliza as violências intestinas apaziguando a


comunidade. A vítima escolhida para a imolação deve, de alguma
forma, pertencer à comunidade, simulando a culpa da violência
primeira, sem ser a culpada. O sacrifício representa a violência
culpada, não pode ser a violência vingada. Se a vítima imolada for
culpada, não haveria a canalização da violência e sim a instituição da
vingança. Como afirma Girard, a vítima só é sagrada porque é
imolada, é o ciclo da violência.

O sacrifício é a morte ou imolação de uma vítima humana ou


animal considerada culpada, mas que não está no rol dos possíveis
responsáveis pelo problema ou pela incitação da violência. Quando a
vítima culpabilizada é inocente, ela é preparada para o sacrifício e
não condenada ao sacrifício.

Para Girard, o controle da violência está no Sagrado, pois é o


que representa a violência maior, originária. Os rituais de sacrifício
são a representação do assassinato fundador e possuem dupla
função: apaziguar a violência e sacralizar a origem fundadora da
sociedade. Dionísio, Édipo, Caim e Abel, mitos gregos e bíblicos que
revelam a relação do sacrifício com o assassinato fundador.

O Sagrado é o conjunto dos postulados aos quais


o espírito humano é conduzido pelas
transferências coletivas sobre as vítimas
reconciliadoras, no termo das crises miméticas.
Longe de constituir um abandono ao irracional, o
Sagrado constitui uma única hipótese possível,
para os homens, enquanto essas transferências
60

subsistirem em sua integridade. (GIRARD 2009:


65)

O controle da violência pelo Sagrado é uma ação coletiva,


podendo ser representada pelos linchamentos, apedrejamentos,
espancamentos. Em condição catártica, a participação da imolação,
de forma simbólica – assistindo aos rituais, ou de fato – na
contribuição com o assassinato, conduz a canalização das violências
intestinas.

Para compreender a cultura humana é preciso


admitir que apenas o represamento das forças
miméticas pelos interditos, sua canalização nas
direções rituais, pode estender e perpetuar o
efeito reconciliador da vítima expiatória. O
religioso não é nada além desse imenso esforço
para se manter em paz. O Sagrado é a violência,
mas se o religioso adora a violência. É porque
considera que ela traz a paz; o religioso é
inteiramente orientado para a paz, mas os meios
dessa paz não são desprovidos de violência
sacrificial (...) (GIRARD 2009: 54)

Se esses fenômenos fossem idênticos aos que


produziram o religioso, é ainda o religioso que eles
produziriam e não poderiam identificá-los
objetivamente melhor do que os homens que
vivem no religioso primitivo. (...) Falamos de
“bode expiatório” Não somente no sentido ritual
do Levítico (16, 5-10) e dos ritos análogos. Mas no
sentido de mecanismo psicológico espontâneo.
Nenhuma outra sociedade jamais foi capaz,
acredito, de tal percepção. Seria preciso refletir a
respeito dessa estranha aptidão. É essa, a meu
ver, a tarefa essencial da etnologia, uma tarefa da
qual ela sempre se esquivou. Emprego a
expressão vítima expiatória apenas para o
mecanismo espontâneo (GIRARD , 2009: 55)
61

A institucionalização da violência pelo Sagrado é característica


das sociedades arcaicas. Para Girard, o mecanismo criado é o mais
eficiente no controle da violência intestina, mantendo a ordem social.
A crise sacrificial leva à mudança no sistema de controle da violência,
promovendo o caos, característica das sociedades modernas.

A crise sacrificial ocorre na inversão da forma de controle da


violência intestina. A vítima imolada, ou o bode expiatório, deixa de
ser culpada para ser inocente, instaurando novamente o ciclo da
vingança.

A vítima inocente inaugura outra fase na relação do Sagrado e


da violência. A religião passa a não mais controlar a violência
intestina com os sacrifícios; para Girard, a religião perde sua função
original.

A era Cristã traz a vítima inocente ao sacrificar Jesus em nome


de todos os homens, inclusive, dos que não cometeram crimes. O
sacrifício de Jesus emerge outra realidade: não há como canalizar a
violência intestina, numa vítima que não representa a culpa. Essa
transferência de valores é, para Girard, a crise sacrificial que nos leva
à falência das instituições sociais, pois perde-se o domínio do controle
da violência.

Portanto o Cristianismo não é, apenas, uma religião: é uma


nova cultura. Essa condição ocorre com a canalização da violência por
meio da imolação da vítima representativamente inocente, essa
mudança implica a alteração do referencial de desejo e do modelo
seguido/copiado/imitado.

A violência controlada pela violência religiosa promove também


a ação do desejo em sua triangulação. Para Girard, toda a
62

humanidade é vítima do desejo mimético. O meu desejo é desejo


desejado do outro, essa triangulação é também transformada com o
Cristianismo.

Nas sociedades arcaicas, o desejo controlado está na


culpabilização da vítima inocente. A empatia é muito mais próxima.
Todos sabem que a vítima imolada é a sacrificial, essa condição
mantém a triangulação no âmbito do controle da violência. O desejo
da violência, presente na vítima original, não pode ser efetivado, pois
o sacrifício não pune o assassino. O desejo está em controlar e não
em cometer a violência, com a garantia da canalização coletiva do
sacrifício.

No Cristianismo, essa triangulação é invertida. O desejo pela


violência existe, mas é negado. A vítima imolada não representa a
culpa, mas a inocência. O desejo da violência não pode ser
canalizado, pois deixa de existir. Não há mais quem deseja a
violência para que o outro possa também desejar.

Mas, a violência é intestina, intrínseca à condição humana,


então, no Cristianismo, o desejo da violência é negado e, com isso, a
religião perde sua principal função: controlar os desejos de violência.

Esse é o ponto nevrálgico da teoria girardiana. O Cristianismo


não é uma religião é uma cultura. A mudança do referencial do
desejo e do controle da violência sempre passou despercebida pela
academia, um erro sério para o autor. Após o Cristianismo, a
violência é punida com violência e a vítima é culpada. Uma completa
inversão de significados.

Mesmo no período da Santa Inquisição, as fogueiras que


levavam ao movimento catártico da população não representavam a
63

imolação da vítima, mas a punição pelo crime de fé. A ação é política


e assim será a partir do Cristianismo.

Para Girard, o mecanismo mimético é a base das culturas


humanas. O ser humano só deseja por mimésis, ou imitação. Só há o
desejo, não pela espontaneidade, mas pelo desejo do outro. O desejo
é o desejo do outro. Logo que a escolha do outro é feita e o desejo
demarcado, aquele que compartilhava o mesmo desejo, pela sua
proximidade, torna-se rival. É necessário destruir o outro para a
manutenção do desejo.
64

O SACRIFÍCIO E A VIOLÊNCIA

“O SACRIFÍCIO DE IFIGÊNIA”, ÓLEO SOBRE TELA POR FRANÇOIS PERRIER (1590-1650, FRANCE)
65

Para Girard, a violência é intrínseca ao ser humano. Essa


afirmação é essencial para a construção do pensamento girardiano,
pois determina que o ser humano é violento e não o oposto, como é
comum encontrarmos nas definições. Essa característica nos leva à
reflexão sobre a essencialidade da violência e obviamente do seu
controle. Mesmo a ideia de que somos pacifistas, descrita em Freud 26
e também contradita por Girard, o oposto de sermos violentos não é
sermos pacifistas, é aceitarmos o controle da violência e a
canalizarmos de forma menos agressiva. A passividade é o controle e
não a ausência da violência.

Somos violentos, pois desejamos, há prazer na violência. Não


raro as sessões de filmes violentos ganham as maiores bilheterias,
uma forma de canalização da agressividade humana, diria Girard.

Essa condição de violência humana é que traz a transição para


a cultura, não a violência, mas o controle da violência intestina. Há
de se ter o controle sob pena de não termos a humanidade.

Para Girard, a sociedade pode ser entendida em dois


momentos: sociedades arcaicas e sociedades pós-Cristianismo27.

Nas sociedades arcaicas, o controle da violência será pela


instituição do Sagrado. No Cristianismo, também! Então, por que há
a divisão?

26
FREUD, S. EINSTEIN, A. Porquê a Guerra? Reflexões sobre o destino do mundo. Tradução de Artur
Morão. Lisboa: Edições 70. s/d
27
Não é característica da obra do autor definir períodos ou estabelecer divisões. Essa divisão em dois
períodos é dada por mim, para que tenhamos um melhor entendimento da teoria proposta. Não se
trata, portanto de uma divisão linear, dada historicamente.
66

A diferença está no sacrifício, diria Girard. Nas sociedades


arcaicas, a religião institui o controle do sacrifício pela imolação da
vítima culpada, com morte ritualística (linchamentos,
apedrejamentos, etc.). No Cristianismo, a imolação é da vítima
inocente e, após o sacrifício de Cristo, a imolação passa a ser
simbólica (sobretudo no catolicismo)28

As sociedades arcaicas são as que dão o primeiro passo para o


controle da violência. Considerando a violência inata, intestina, do ser
humano29, é necessário que haja alguma forma de controle, também
intrínseco ao sistema social, condição primeira para a existência
humana. O controle pelo Sagrado é também o controle do
desconhecido por meio do Sagrado.

A institucionalização do Sagrado promove o controle da


violência como uso da violência. A ideia de controle já é uma
proposta de violência, se pensarmos que a necessidade de controlar
vai à direção contrária dos desejos de quem precisa ser controlado.

O controle da violência pela violência ocorre, pois, além da


relação intrínseca, a violência também causa desejo. “é impossível
não usar a violência, quando se quer liquidá-la” (GIRARD, 2008:40)

Para Girard, esse é o ponto central. A passagem do estado de


natureza para o de cultura está no controle da violência e, sobretudo

28
Algumas religiões de matriz Afro mantém o ritual do sacrifício com animais. Não há reflexão do autor
sobre essas práticas, porém podemos refletir que as religiões de matriz afro são anteriores ao
cristianismo.

29
A ideia de violência intestina se repetirá nesse texto, dada a sua importância.
67

na manutenção da violência, atendendo aos desejos também


intrínsecos aos seres humanos.

Essa espiral de violência e desejos faz com que a teoria


girardiana entre numa ceara de reflexões ainda não debatidas
suficientemente.

Os efeitos dos rituais das sociedades arcaicas não são


simbólicos, são imbricados nos desejos humanos e a violência é o
desejo primeiro. Para Girard, a violência primeira é a única
espontânea.

... O jogo do Sagrado e o jogo da violência são apenas


um. (...) A identificação da violência fundadora conduz a
uma definição extremamente simples e esta definição
não é ilusória; ela revela a anuidade sem escamotear a
complexidade, permitindo organizar todos os elementos
do Sagrado numa totalidade inteligível. (...) Os homens
não adoram a violência enquanto tal: eles não praticam
o “culto da violência” no sentido da cultura
contemporânea, mas adoram a violência porque esta
lhes confere a única paz da qual um dia usufruíram.
Portanto, pela adoração da violência que os aterroriza, é
a não violência a que a adoração dos fieis sempre visa. A
não-violência aparece como um dom gratuito da
violência, e esta aparência não é sem razão, pois os
homens só são capazes de se reconciliar a custa de um
terceiro. O que os homens podem fazer de melhor na
ordem da não violência, é a unanimidade menos um da
vítima expiatória. (GIRARD, 2008: 323)

Girard lança mão dos textos bíblicos para demonstrar a relação


de violência e desejo. No antigo testamento, Caim e Abel simbolizam
o primeiro assassinato, ou o assassinato fundador. A violência do
assassinato é também a violência do desejo. Caim mata Abel, por não
ser desejado por Deus. O assassinato não é pela violência, mas pelo
ciúme do irmão, mais querido ou desejado:
68

Só é possível ludibriar a violência fornecendo-lhe


uma válvula de escape, algo para devorar. Talvez
seja este, entre outros, o significado da história de
Caim e Abel. O texto bíblico oferece uma única
precisão sobre os dois irmãos. Caim cultiva a terra
e oferece a Deus os frutos de sua colheita. Abel é
um pastor e sacrifica os primogênitos de seu
rebanho. Um dos irmãos mata o outro, justamente
o que não dispõe deste artifício contra a violência,
o sacrifício animal. Esta diferença entre o culto
sacrificial e o culto não sacrificial é na verdade
inseparável do julgamento de Deus em favor de
Abel. Dizer que deus acolhe favoravelmente os
sacrifícios de Abel, o que não ocorre com as
oferendas de Caim, redizer em uma outra
linguagem, a do divino, que Caim mata seu irmão,
ao passo que Abel não o mata. (GIRARD,
2008:15)

A citação acima, incita a ideia de que o assassinato de Abel é o


sacrifício dado por Caim a Deus, já que suas oferendas não eram
dignas do ritual. Se pensarmos nesse contexto, o assassinato de Abel
é a relação direta com a necessidade da vítima expiatória e o controle
da violência. Conforme aponta Girard, na tradição muçulmana, o
carneiro enviado a Abraão para substituir o sacrifício de Isaac é o
mesmo sacrificado por Abel, antes do assassinato.

Girard aprofunda sua reflexão, estendendo a relação da


violência bíblica para Abraão que, nos mesmos moldes de Caim e
Abel, também se vê frente à violência. A devoção em Deus é
suficientemente grande para que Abraão sacrifique seu único filho,
apenas para satisfazer ao desejo do Senhor.

O assassinato fundador é então a imolação de uma vítima, para


a canalização da violência do irmão. Como em muitos mitos, os
69

irmãos, não raro, se constituem como rivais. A triangulação do


desejo, mais uma vez é explícita. Deus, Caim e Abel. A morte de
Caim é o assassinato do duplo rival de Abel. Os irmãos desejavam o
mesmo: agradar ao Pai. Se desejavam o desejo do outro,
imediatamente tornam-se inimigos ou rivais. A morte é a maneira de
sacralizar essa triangulação. Mata-se o inimigo para ter o objeto de
desejo.

O desejo, sem a triangulação, deixa de existir, é necessário


desejar o que o outro deseja. Caim é banido, mas Deus reconfigura a
triangulação, substituindo Abel pelo carneiro e o envia para Abraão,
em troca do não assassinato do filho Isaac. Deus coloca Abraão à
prova, deseja o sacrifício do filho, mas substitui a vítima imolada,
para que haja a triangulação entre Isaac e o carneiro, Abraão e Deus.
Para que não haja mais a ruptura do desejo e, obviamente, da
devoção.

O pensamento religioso é, assim, levado a fazer


da vítima o veículo e o transformador de um
Sagrado – a mimésis - que só é conflitante e
indiferenciado na medida em que se alastrou pela
comunidade; sua imantação sobre a vítima faz
dela uma força pacificadora e reguladora, a boa
mimésis ritual. (GIRARD, 1978 :71)

Em outra passagem bíblica, Girard aprofunda-se ainda mais.


Para o autor, Jó é a referência de sacrifício das sociedades arcaicas,
sendo possivelmente a representação da passagem para a sociedade
cristã.

Jó é também a representação do desejo mimético da vítima


culpada e da vítima inocente. A condição é, para Girard, a mais
significativa. Para Deus, Jó é inocente e está à prova de sua devoção.
70

Para os três amigos, Jó é culpado e também está à prova de sua


devoção, essa dualidade promove em Jó a relação do divino com o
Sagrado pela violência e força com que Deus emana seu poder.

Ora, o livro de Jó impõe que se opte entre a análise


moral e metafísica do problema do mal, a partir da
leitura do prólogo de um lado, e do reconhecimento
dessa temível equivalência ente a violência e o Sagrado,
não conscientemente afirmada pelos amigos, mas
conscientemente repudiada pelo bode expiatório, de
outro. A hipótese vitimária faz emergir os textos do
silêncio que os envolve libertando-os da armadilha
metafísica e moral que impede a compreensão. O
“reducionismo” é aqui libertador, na medida em que
combate precisamente essa armadilha: o princípio de
ordem a que submeto essa considerável massa de dados
faz com que estes estejam legíveis com independência
do sistema limitador em que permaneciam submersos.
(GIRARD 2009:38/39)

Para além dos livros de teoria, é com o mito de Jó que René


Girard se apropria e consolida a relação entre o desejo mimético, a
violência e o Sagrado.

O Sagrado é tudo que domina o homem, e com


tanta mais certeza quanto mais o homem
considera-se capaz de dominá-lo. Inclui, portanto,
entre outras coisas, embora secundariamente, as
tempestades, os incêndios das florestas e as
epidemias que aniquilam a população. Mas é
também, e principalmente, ainda que de forma
mais oculta, as violência dos próprios homens, a
violência vista como exterior ao homem e
confundida, desde então, com todas as forças que
pesam de fora sobre ele. É a violência que
constitui o verdadeiro coração e a alma secreta do
Sagrado. (GIRARD 2008: 46)
71

Para Girard, a função do sacrifício é real e não simbólica, como


aponta alguns colegas contemporâneos. O sacrifício tem a função de
proteger a comunidade da violência, gerada por ela mesma. A vítima
imolada canaliza todas as desavenças da comunidade, dando-lhe a
saciedade parcial desse mal. Girard afirma que a função dos sacríficos
é reforçar a unidade da nação.

A vítima imolada, ou o bode expiatório, exerce função central


no controle das sociedades arcaicas. Ela pode ser representada por
uma série de divindades e/ou animais, mas no ímpeto de exercer sua
função, a vítima não é conhecida da comunidade. Essa relação de
aproximação e distanciamento é necessária para que não haja a
suscitação dos ciclos de vingança.

Para a vítima exercer a função de canalizadora, é necessário


que a comunidade enxergue algo de familiar, próximo. É preciso que
haja empatia, relação de aproximação. Mas se a vítima for alguém da
comunidade, teríamos de admitir o assassinato interno, coletivo na
maioria dos rituais, de um membro próximo ao grupo, que
certamente levantaria discórdia. O jogo é complexo, a vítima precisa
suscitar a proximidade, ser próxima, sem pertencer30.

Para Girard (2008), todas as vítimas devem assemelhar-se


àquelas que substituem independentemente se a imolação for de um
animal ou de um humano. Essa é a condição que mantém a função
sacrificial. Não há, para o autor, diferença significativa entre o
sacrifício humano e animal, sobretudo nas comunidades em que os
animais possuem função social como os humanos:

30
Não há necessidade de debatermos a definição de pertencimento, aqui a expressão é usada em seu
sentido estrito e não conceitual.
72

Essa divisão do sacrifício em duas grandes


categorias – humano e animal – possui um sentido
estritamente ritual, um caráter sacrificial; de fato,
ela se baseia em um julgamento de valor, na ideia
de que certas vítimas – os homens – seriam
particularmente inadequados ao sacrifício,
enquanto outras – os animais – seriam
eminentemente sacrificáveis. Sobrevive aqui um
resquício sacrificial, que perpetua o
desconhecimento da instituição. Não se trata de
renunciar ao julgamento de valor no qual este
desconhecimento se funda, mas sim de colocá-lo
entre parênteses, de reconhecer sua
arbitrariedade, não em si mesmo, mas no plano
da instituição sacrificial considerada globalmente.
É preciso eliminar as divisões explícitas ou
implícitas, e colocar as vítimas humanas e animais
no mesmo plano, para apreender – caso elas
existam – os critérios segundo aos quais se
processa a seleção de qualquer vítima, extraindo-
se assim – caso ele exista – um princípio de
seleção universal. (GIRARD, 2008: 23)

Característica da obra girardiana, as grandes definições


universais são desconsideradas. Em alguns casos, há o empenho em
desconstruí-las, como no caso do complexo de Édipo; noutros, não há
a preocupação do autor em mostrar os motivos da desconstrução,
como a citação acima.

A relação da vítima com a comunidade, portanto, deve ser de


aproximação, mas sem pertencimento. Para Girard, a necessidade de
controle da violência é tão essencial quanto a escolha da vítima para
imolação. A vítima, então, deve ser escolhida pelo paradoxo: ter a
simbologia do pertencimento sem pertencer.

Além dessa relação paradoxal, a vítima tem a função de saciar


a crise. Só há a necessidade de imolação, se a iminência da violência
está a ponto de destruir a comunidade. A crise que será apaziguada,
73

com o assassinato, suscita o perigo do desejo da violência, desperta o


duplo simétrico entre a verossimilhança do desejo instintivo e a
exacerbação da violência. Girard afirma que à medida que a crise se
agrava, todos os membros da comunidade tornam-se gêmeos da
violência, tornam-se duplos uns dos outros.

A universalização dos duplos e o desaparecimento


completo das diferenças, que exacerba os ódios,
mas torna-os perfeitamente intercambiáveis,
constitui a condição necessária e suficiente para a
unanimidade violenta. Para que a ordem possa
renascer, é preciso inicialmente que a desordem
chegue ao extremo; para que os mitos possam se
recompor, é preciso inicialmente que sejam
inteiramente decompostos.

Ali, onde alguns instantes antes, havia mil


conflitos particulares, mil pares de irmãos inimigos
isolados uns aos outros, novamente existe uma
comunidade completamente uma no ódio que lhe
é inspirado por um só de seus membros. Todos os
rancores disseminados em mil indivíduos
diferentes e todos os ódios divergentes vão
convergir, de agora em diante, até um indivíduo
único a vítima expiatória. (GIRARD, 2008: 105)

A vítima que atende ao paradoxo é a vítima expiatória. Girard


lança mão da expressão bode expiatório, para simbolizar a
importância que a vítima exerce dos movimentos catárticos de
imolação e canalização à violência. O bode expiatório é aquele que,
apesar de não ter relação com o problema, é sacrificado para que o
grupo possa sobreviver. Para Girard, a noção de substituição do bode
expiatório e a vítima imolada é a mesma.
74

A relação da vítima imolada com a vítima ou bode expiatório,


porém, tem um elemento a mais: a semelhança e falsa proximidade
com a comunidade.

Podemos pensar que a condição de a vítima expiatória ser


escolhida não, necessariamente, requer algum critério prévio. Nos
tempos atuais, é comum usarmos a expressão, mas sem a
preocupação com a origem ou significado da vítima.

A direção geral da presente hipótese parece clara.


Qualquer comunidade às voltas com a violência,
ou oprimida por uma desgraça qualquer, irá se
lançar, de bom grado, em uma caça cega ao “bode
expiatório”. Os homens querem se convencer de
que todos os seus males provêm de um único
responsável, do qual será fácil livrar-se. (GIRARD,
2008: 105)

A ideia de que a vítima expiatória pode ser qualquer pessoa é


também rechaçada por Girard. Não se trata de uma escolha simples,
casual. A vítima imolada, por isso expiatória, é necessariamente
alguém que vivencia o cotidiano da comunidade e, em hipótese
alguma, possui relações com os membros do grupo.

Girard aponta que os bodes expiatórios são, na sua maioria, os


Pharmakós31. Para o ritual ter eficácia, o Pharmakós, é rodeado de
cuidados: comida, relações sexuais, danças, pinturas. A eficácia do
ritual depende da relação da vítima imolada com a comunidade. A
vítima deve ser preparada pela comunidade e jamais pertencer a ela.

31
Para Girard, Pharmakós aparece como escravos ou prisioneiros de guerra. Aqueles que possuem
características necessárias para o sacrifício. Na literatura, a definição é contraditória, podendo ser
também o feiticeiro que escolhe a vítima.
75

A necessidade de preparo da vítima, para a imolação, é descrita


como a única forma de controlar o contágio da violência. Para Girard,
a vingança é a dissipação da violência não controlada ou canalizada
e, por isso, pode destruir a comunidade.

Girard deixa claro que o sacrifício é uma representação


simbólica de controle da violência, mas não teme em afirmar que a
imolação é um ato de assassinato. Isso implica escolher uma vítima
para matá-la. Uma pessoa com laços afetivos não pode ser escolhida.
Não pode haver o risco de um membro da família sentir-se ferido com
a escolha e exigir vingança. Se assim o for, a eficácia do ritual de
imolação da vítima perde seu sentido.

O desejo de violência é dirigido aos próximos; mas


como ele não poderia ser saciado à sua custa sem
causar inúmeros conflitos, é necessário desviá-lo
para a vingança sacrificial, a única que pode ser
abatida sem perigo, pois ninguém irá desposar sua
causa. (GIRARD 2008: 26)

A vingança é inata da violência, destarte um perigo iminente.


Ao controlar a violência, controla-se também a vingança, o não
contágio da própria violência. Esse ciclo violência – vingança –
contágio, pertence a um mesmo propósito: manter afastado o perigo
de extermínio da comunidade.

Para Girard, é impossível não usar a violência quando se quer


eliminá-la.

A reflexão girardiana que atenta à condição na condição


violenta da humanidade, sobretudo das sociedades arcaicas, não
inclui o autor no rol dos intelectuais que entendem a violência como
76

necessária. Ao contrário, Girard afirma que a violência deve ser


dominada e o mecanismo de contenção é a religião, pois exerce o
domínio sobre o Sagrado.

A proposta do autor inverte as concepções estabelecidas. A


religião tem, nas sociedades arcaicas, função social ligada às práticas
culturais e não religiosas. A religião não controla a fúria de deuses,
ou o que o valha, mas a fúria humana em autodestruir e destruir a
própria comunidade, atendendo ao instinto agressivo, comprovando
que não somos apenas seres culturais.

No bojo desse debate, a vingança aparece com a noção de


contágio. É o perigo da violência que o assassinato da vítima deve
conter, sem esquecer o perigo do contágio da vingança.

A escolha da vítima é essencial para determinar que a


comunidade não será contagiada, que não haverá vingança,
tampouco contaminação.

A vingança suscitada pode levar ao descontrole da violência e


ao ciclo infinito da vingança:

Por que, em qualquer lugar onde grassa, a


vingança do sangue constitui uma ameaça
intolerável? Face ao sangue derramado, a única
vingança satisfatória é o derramamento do sangue
do criminoso. Não há diferença nítida entre o ato
que a vingança pune e a própria vingança. Ela é
concebida como uma represália, e cada represália
invoca uma outra. Muito raramente o crime punido
pela vingança é visto como o primeiro: ele é
considerado como a vingança de um crime mais
original.

A vingança constitui, portanto, um processo


infinito, interminável. Quando a violência surge em
77

um ponto qualquer da comunidade, tende a se


alastrar e a ganhar a totalidade do corpo social,
ameaçando desencadear uma verdadeira reação
em cadeia, com consequências rapidamente fatais
em uma sociedade de dimensões reduzidas. A
multiplicação das represálias coloca em jogo a
própria existência da sociedade. Por este motivo,
onde quer que se encontre, a vingança é
estritamente proibida. (GIRARD, 2008: 27)

O controle da violência é complexo. Se a violência é inata, as


sociedades arcaicas buscam a eficácia do controle da violência
intestina com a imolação da vítima sacrificial, vítima expiatória. Por
sua vez, as sociedades pós-Cristianismo buscam o controle com o
sistema judiciário. Para Girard, é um erro dizer que o sistema
judiciário substitui o sistema sacrificial. Só pode substituir aquilo que
existe, as sociedades arcaicas não possuem sistema judiciário. A
relação do sacrifício com o sistema judiciário não é reta, nem direta.
São duas práticas distintas, que se confluem apenas no propósito de
controle da violência.

Como subestimamos o perigo da vingança, somos


incapazes de reconhecer com clareza a função do
sacrifício; nunca perguntamos de que forma as
sociedades desprovidas de penalidade judiciária
controlam uma violência que não mais
presenciamos. Nossa ignorância forma um sistema
fechado. Nada consegue desmenti-la. Não
sentimos necessidade do religioso para resolver
um problema cuja própria existência nos escapa.
O religioso passa a ser algo sem sentido algum. A
solução dissimula o problema e o desaparecimento
do problema dissimula o religioso enquanto
solução. (GIRARD, 2008: 31)
78

Para Girard, a crise das sociedades arcaicas e o fim do sistema


sacrificial é que determinam a necessidades de uma nova forma de
controle, o sistema judiciário.

Há um circulo vicioso da vingança, e é difícil


imaginar seu peso nas sociedades primitivas. Para
nós esse círculo não existe. Qual a razão desse
privilégio? Uma resposta categórica para tal
questão surge no plano das instituições: é o
sistema judiciário que afasta a ameaça da
vingança. Ele não a suprime, mas limita-a
efetivamente a uma represália única, cujo
exercício é confiado a uma autoridade soberana e
especializada em seu domínio. As decisões da
autoridade judiciária afirma-se sempre como a
última palavra da vingança. (GIRARD, 2008: 28)

A crise sacrifical, como é denominada por Girard, ocorre quando


os rituais de sacrifício não mais conseguem apaziguar os desejos da
violência intestina. As vítimas imoladas não mais representam as
violências coletivas e corroboram para promover a violência e/ou a
vingança.

O sacrifício é um ato social; as consequências de


seu desregramento não podem limitar-se a um ou
outro personagem marcado pelo “destino”. Os
historiadores concordam em situar a tragédia
grega em um período de transição entre uma
ordem religiosa arcaica e uma ordem mais
“moderna”, estatal e judiciária, que vai sucedê-la.
Antes de entrar em decadência, a ordem arcaica
experimentou uma certa estabilidade. Esta
estabilidade só poderia repousar na dimensão
religiosa, ou seja, sobre o rito sacrificial. (GIRARD,
2009: 59)
79

A violência para Girard nunca é pura, à exceção da original, o


sacrifício pode conter a violência purificadora, prova que os
sacrificadores comumente são submetidos aos rituais de purificação
após a imolação da vítima.

Girard lança mão da mitologia, para exemplificar como os


sacrifícios podem ser convertidos em catástrofes. Para o autor, a
tragédia e a Bíblia muito se assemelham em A loucura de Hércules,
de Eurípedes32 (2008):

O sacrifício projetado pelo herói só fez que a


violência se polarizasse excessivamente sobre si.
Ela é simultaneamente abundante demais,
virulenta demais. (...) O sacrifício, não é mais
capaz de cumprir sua tarefa; ele aumenta a
torrente de violência impura que não consegue
mais canalizar. O mecanismo das substituições
enlouquece, e as criaturas que deveriam ser
protegidas pelo sacrifício tornam-se suas vítimas.
(GIRARD, 2008:57)

A crise sacrificial ocorre, quando a eficácia do assassinato da


vítima deixa de existir. A diferença entre o ritual e o crime aparece
sobre o mesmo eixo da balança, com poucas inclinações. Para o autor
(2008), “a crise trágica é sempre analisada do ponto de vista da
ordem que está nascendo e nunca do ponto de vista da ordem que
desmorona”.

A violência catastrófica está no afrouxamento das relações de


controle da violência. Essa situação acontece nas comunidades em
que a violência, pura ritualística, cede espaço para a violência impura
vingativa. Quando o sangue derramado não mais representa a

32
Eurípedes (480-406 a.C.)
80

violência coletiva, os rituais de sacrifício perdem o sentido,


concomitantemente com o significado religioso.

A crise sacrificial, ou seja, a perda do sacrifício é a


perda da diferença entre a violência impura e a
violência purificadora. Quando se perde essa
diferença, não há mais purificação possível e a
violência impura, contagiosa, ou seja, recíproca,
alastra-se pela comunidade. A diferença sacrificial,
a diferença entre o puro e o impuro, não pode ser
apagada sem que com ela sejam apagadas todas
as outras diferenças. Ocorre então em único
processo de invasão pela reciprocidade violenta. A
crise sacrificial deve ser definida como uma crise
das diferenças, ou seja, da ordem cultural em seu
conjunto. De fato, esta ordem cultural não é senão
um sistema organizado de diferenças; são os
desvios diferenciais que dão aos indivíduos sua
“identidade”, permitindo que eles se situem uns
em relação aos outros. (...) quando a dimensão
religiosa se decompõe não é apenas a segurança
física que se encontra imediatamente ameaçada,
mas a própria ordem cultural. (GIRARD, 2008: 67)

É para a relação entre os sacrifícios das sociedades arcaicas, a


escritura bíblica e as tragédias gregas, que Girard chama a atenção
dos colegas contemporâneos. Não é possível compreender a
humanidade senão à luz desses princípios. O grande equívoco
intelectual reside em analisar as sociedades arcaicas como passados
equidistantes sem ligação direta com o presente, ou sociedade
moderna. Como aponta Girard (2009), faz-se necessário entender o
recurso privilegiado de desmistificação que a bíblia colocou em nossas
mãos. Talvez tenhamos, em segredo, que ele nos cause enormes
estragos.
81

A VIOLÊNCIA E O DESEJO MIMÉTICO

Juízo Final - Michelangelo


82

... A VIOLÊNCIA É AO MESMO TEMPO O INSTRUMENTO,


O OBJETO E O SUJEITO UNIVERSAL DE TODOS OS
DESEJOS. É SEM DÚVIDA POR ESTA RAZÃO QUE
QUALQUER EXISTÊNCIA SOCIAL SERIA IMPOSSÍVEL
ONDE NÃO HOUVESSE A VÍTIMA EXPIATÓRIA, E SE,
PARA ALÉM DE UM CERTO PAROXISMO, A VIOLÊNCIA
NÃO SE RESOLVESSE EM ORDEM CULTURAL. O CÍRCULO
VICIOSO RECÍPROCO, TOTALMENTE DESTRUTIVO, É
ENTÃO SUBSTITUÍDO PELO CÍRCULO VICIOSO RITUAL,
CRIATIVO E PROTETOR. (GIRARD, 2008: 183)

Ao longo de sua obra, René Girard afirma e reafirma que a


violência é o condicionamento humano que move a cultura. Mas, a
violência não é um instinto desprovido de sensações; para o autor, a
violência é essencial na conduta humana, porque é desejada. É o
desejo pela violência que move as sociedades e paradoxalmente o
desejo da não violência é também o que move os seres humanos.
Como afirma Girard (2008), é a violência que valoriza os objetos do
violento.

Ao retomarmos a ideia de que o desejo é mimético: deseja-se o


que o outro deseja, o ciclo de desejo e violência ganha contornos
nítidos.

(...) o rival deseja o mesmo objeto que o sujeito.


Renunciar a primazia do objeto e do sujeito para afirmar
a do rival só pode significar uma coisa. A rivalidade não
é fruto da convergência acidental de dois desejos para o
mesmo objeto. O sujeito deseja o objeto porque o
próprio rival o deseja. Desejando tal ou tal objeto, o rival
designa-o ao sujeito com o desejável. O rival é o modelo
do sujeito, não tanto no plano superficial das maneiras
de ser, das ideias, etc., quanto no plano mais essencial
do desejo.

(...) o desejo é essencialmente mimético, ele imita


exatamente um desejo modelo; ele elege o mesmo
objeto que este modelo. (GIRARD, 2008: 185)

O desejo liga-se à violência triunfante; ele se esforça


desesperadamente para dominar e encarnar esta
83

violência irresistível. E se o desejo segue a violência


como sombra, é porque ela significa o ser e a divindade.
(GIRARD, 2008: 190)

A violência intestina é a fundadora da cultura humana, com o


assassinato original. Essa violência não causa repulsa, ao contrário,
ela é dissipada em forma de prazer. O prazer pela violência de certo
modo é maior que a própria violência, os rituais apaziguam a
violência, proporcionando, por meio da imolação, a sensação de
prazer, que só a violência pode proporcionar.

A busca pelo desejo - desejado pelo outro - é a busca pelo


prazer que só pode ser encontrado na triangulação do desejo
mimético. A violência está explicitamente colocada. Não desejo o que
gosto, mas sim o que o outro quer; assim, o sujeito consegue
estabelecer a relação de rivalidade e, portanto, o mecanismo da
violência.

Uma vez estabelecido esse mecanismo, cabe ao sujeito destruí-


lo, para saciar o desejo. Para que não haja a destruição de todos por
todos na busca pelo prazer, o mecanismo do bode expiatório é
essencial.

Dois desejos que convergem para o mesmo objeto


constituem um obstáculo recíproco. Qualquer mimese
relacionada ao desejo conduz necessariamente ao
conflito. Os homens são sempre parcialmente cegos para
esta causa da rivalidade. O mesmo, o semelhante, nas
relações humanas, evoca uma ideia de harmonia: temos
os mesmos gostos, apreciamos as mesmas coisas, fomos
feitos para nos entender. O que acontecerá se tivermos
realmente os mesmos desejos?

(...) Os desejos e os homens são feitos de tal maneira


que lhes enviam perpetuamente uns aos outros sinais
contraditórios, cada um ainda menos consciente de estar
preparando uma armadilha para o outro, pelo fato de
84

estar ele próprio, caindo numa armadilha análoga.


(GIRARD, 2008: 185/186)

A triangulação está presente, não viveríamos em sociedade sem


a presença do bode expiatório. Se todos destruíssem seus rivais
desejados, a presença do Sagrado e dos rituais de imolação seria
desnecessária. Sem a presença do Sagrado, não haveria o controle
da violência, logo não teríamos sociedade. Esse é o axioma, retratado
por Girard, deixando claro que desejo mimético, violência e bode
expiatório formam o tripé da cultura humana.

Este desejo mimético coincide com o contágio impuro;


motor da crise sacrificial, ele destruiria toda a
comunidade se não houvesse a vítima expiatória para
detê-lo e a mimese ritual para impedi-lo de se
desencadear. (GIRARD, 2008: 187)

No mecanismo descrito, a relação com o duplo parece


inevitável. O duplo aparece presente quando os sujeitos desejam a
mesma coisa; são parecidos – gêmeos no desejo. Ao mesmo tempo
em que a similaridade aponta, a oposição se destaca. A rivalidade se
apresenta, quando os sujeitos do desejo passam a disputar o objeto
desejado, os iguais tornam-se rivais. O duplo do desejo é ao mesmo
tempo o duplo rival. Os rivais precisam se destruir para que um
predomine, a única saída é, mais uma vez, o bode expiatório.

A universalização dos duplos e o desaparecimento


completo das diferenças, que exacerba os ódios, mas
torna-os perfeitamente intercambiáveis, constitui a
condição necessária e suficiente para a unanimidade
violenta. Para que a ordem possa renascer, é preciso
inicialmente que a desordem chegue ao extremo; para
85

que os mitos possam se recompor, é preciso inicialmente


que eles sejam inteiramente decompostos.

Ali onde, alguns instantes antes havia mil conflitos,


particulares, mil pares de irmãos, inimigos isolados uns
dos outros, novamente existe uma comunidade
completamente uma no ódio que lhe é inspirado por um
só de seus membros. Todos os rancores disseminados
em mil indivíduos diferentes e todos os ódios divergentes
vão convergir, de agora em diante, para um indivíduo
único, a vítima expiatória. (GIRARD, 2008: 105)

Na reflexão girardiana sobre o sacrifício, o duplo violento


aparece nas mitologias e nos rituais de imolação. Para o autor, as
duas cenas são semelhantes, pois propõem a leitura de uma mesma
realidade. A realidade violenta, abarcada pelos mitos e pela história,
narra a necessidade de construção de uma realidade que aceite a
violência como parte central da construção social e não como nas
sociedades modernas que negam a necessidade de violência.

Se a violência uniformiza realmente os homens, se cada


um se torna o duplo ou “gêmeo” de seu antagonista, se
todos os duplos são os mesmos, então qualquer um
deles pode se transformar, em qualquer momento, no
duplo de todos os outros, ou seja, no objeto de uma
fascinação e de um ódio universais. Uma única vítima
pode substituir todas as vítimas em potenciais, todos os
irmãos inimigos que cada um tenta expulsar, ou seja,
todos os homens sem exceção, no seio da comunidade.
Para que a suspeita de todos contra todos torne-se a
convicção de todos contra um único, nada ou quase nada
é necessário. O índice mais derrisório, a presunção mais
ínfima vai se transmitir a uma velocidade vertiginosa,
transformando-se quase instantaneamente em prova
refutável. A convicção aumenta como uma bola de neve,
cada qual reduzindo a sua própria a partir da dos outros,
sob o efeito de uma mimese quase instantânea. A firme
crença de todos não exige outra verificação além da
86

unanimidade irresistível de seu próprio desatino.


(GIRARD, 2008: 105)

A noção de duplo aparece no debate da crise sacrificial. Para


Girard, os duplos são essenciais na construção das sociedades
arcaicas e modernas e, somado ao bode expiatório, compõem a
triangulação do desejo mimético e a violência sacrificial.

A ideia de sujeitos duplos ou gêmeos é absolutamente real,


mesmo com a insistente definição da psiquiatria moderna em
designar o termo como imaginário. Girard coloca a relação com o
duplo no centro do turbilhão dos desejos de violência.

Os duplos estabelecem nas sociedades arcaicas a


essencialidade da diferença. A diferença estabelecida se torna
unificadora com a necessidade do bode expiatório e
consequentemente o apaziguamento das agressividades intestinas.
Para Girard, apenas o pensamento religioso coloca todas as
diferenças no mesmo plano, é o único capaz de assimilar as
diferenças familiares e culturais às diferenças naturais.

(...) Para que a ordem possa renascer, é preciso


inicialmente que a desordem chegue ai extremo; para
que os mitos possam se recompor, é preciso inicialmente
que eles sejam inteiramente decompostos. (GIRARD,
2008: 105)

Nas sociedades modernas, os duplos se apresentam como


iguais, provendo a perda do sentido da violência unificadora e da
necessidade do sacrifício.
87

Essa mudança é considerada por Girard significativa ao ponto


de ser um dos elementos que levam à crise sacrificial. Para Girard,
tal crise ocorre quando a eficácia real do sacrifício deixa de cumprir
sua função e a violência intestina não é mais controlada pela
imolação da vítima expiatória.

A triangulação não deixa de existir; com a crise sacrificial, a


vítima imolada não é mais a representação da culpa de todos para a
uniformização da violência. A imolação da vítima que concebe o
perdão estabelece uma nova forma de canalização da violência, com
a imolação da vítima expiatória sem a canalização da violência,
estabelecendo o término desse ciclo.

Para Girard, com o fim dos sacrifícios de imolação de vítimas


culpadas para a canalização da violência, o Sagrado perde sentido, e
a religião deixa de ter função apaziguadora. É importante pensar que
essa ponderação não determina o fim da violência, ao contrário, a
violência deixa de ter sua representação, para ser escamoteada em
agressividades extremas, como nas sociedades modernas, violências
sem controle. A substituição do sacrifício pelo sistema judicial pune o
culpado, incita o ciclo da vingança e não apazigua as violências
intestinas.

(...) É sem dúvida por esta razão que qualquer


existência social seria impossível onde não houvesse a
vítima expiatória, e se, para além de um certo
paroxismo, a violência não se revolvesse em ordem
cultural.

(...) o fato de que, na crise sacrificial, o desejo não


tendo outro objeto além da violência, e que, de uma
maneira ou de outra, a violência esteja sempre
misturada ao desejo, este fato enigmático e massacrante
não recebe qualquer esclarecimento suplementar, muito
pelo contrário, se afirmarmos que o homem é presa de
um “instinto de violência”. (GIRARD, 2008: 183)
88

As sociedades modernas, diferentemente das arcaicas, não


admitem que a violência seja intrinsecamente humana. A instituição
do Sagrado apaziguou as violências intestinas, recriando o rito do
assassinato fundador em todos os momentos que a harmonia social
se via ameaçada. Com a violência do assassinato da vítima
expiatória, as violências eram contidas e as agressividades
controladas.

Temos desde já sérias razões para pensar que a


violência contra a vítima expiatória poderá ser
radicalmente fundadora, pois, ao acabar com o círculo
vicioso da violência, ela ao mesmo tempo inicia outro
círculo vicioso, o do rito sacrificial, que talvez seja o da
totalidade da cultura.

Se isto é verdadeiro, a violência fundadora constitui


realmente a origem de todo o que os homens possuem
de mais precioso e que preservam como maior cuidado.
É exatamente isto o que afirmam, sob uma forma
velada, transfigurada, todos os mitos de origem que se
referem ao assassinato de uma criatura mítica por outras
criaturas míticas. Este acontecimento é percebido como
fundador de uma ordem cultural. Da divindade morta
provêm não somente os ritos, mas as regras
matrimoniais, as proibições, todas as formas culturais
que conferem aos homens sua humanidade. (GIRARD,
2008: 122)

Girard deixa nítido que a relação da violência com o Sagrado e


da violência com o desejo são intrínsecas umas as outras e com o ser
humano. Essa é a condição de nos tornarmos culturais e para que as
sociedades arcaicas estabeleçam seus ritos e imolações.

O que confere aos homens sua humanidade são os ritos e


proibições oriundas da necessidade de controle da violência. Não há
dúvidadas de que, com essa premissa, Girard inaugura uma nova
89

forma de conduzir o conhecimento da humanidade. A instituição do e


a volta do Sagrado para os bancos acadêmicos promove, nos mais
fieis acadêmicos, arrepios de desconforto. A segurança da academia,
como ciência dura, e as certezas relativas, em fim, estão ameaçadas,
se os acadêmicos são humanos, sentem desejo e desejam a
violência. Negam essa com condição em prol de um processo
histórico que nos levou às ciências. São quatro séculos de ciências e
todos os outros milênios de controle da violência pelo Sagrado.

Girard abala essa estrutura academicista. Não se preocupa ao


afirmar ser católico. Não se preocupa em não pertencer ao grupo
padrão etno-antropo-mito-filo-psico-social. A fé dos colegas
acadêmicos nas ciências e nas predeterminações não preocupa
Girard.
90

PARTE 3

http://labirintosdoser.blogspot.com.br/2009/10/rene-girard-e-o-mecanismo-mimetico.html
91

A CONVERSA COM O MUNDO

http://www.swiss-jazz.ch/rene-girard.htm
92

Os debates travados por Girard são sempre ousados, há um rol


de autores que conversam com Girard nas páginas de seus livros.
Alguns são apenas citados, de fato, têm o nome mencionado,
raramente acompanhado pela obra. Outros, a referência ganha um
pouco mais de espaço, um parágrafo ou até uma página, se a crítica
for mais contundente. Em todas as situações, não há referência da
obra citada, dados do autor ou contexto histórico. A crítica de Girard
salta aos olhos dos leitores mais conservadores e agrada aos sujeitos
miméticos. Não raro lemos trechos em que Girard profere sobre um
determinado autor: ”não serve”, “está errado”, “não sabe o que diz”.

Essa é a conversa com o mundo que Girard trava ao longo de


sua obra e que certamente incomoda aos colegas contemporâneos.
Não há a preocupação acadêmica de citar fontes de referência, ou
explicações pormenorizadas da crítica apresentada.

Em A violência e o Sagrado, no capítulo sobre A Gênese dos


mitos e dos Rituais, Girard comenta:

Não somente Hubert e Mauss, nada dizem sobre a


origem dos sacrifícios, como também não têm quase
nada a dizer nem sobre sua “natureza”, nem sobre sua
“função”, embora essas duas palavras figurem no título
da obra.

A insuficiência de Hubert e Mauss no plano da gênese e


da função torna ainda mais notável sua descrição
sistemática da operação sacrificial. Não poderíamos
atribuir este caráter sistemático a uma ideia a priori que
teria colorido as análises, pois o sistema do sacrifício
ainda espera por sua interpretação.

Atualmente em todas as ciências sociais, a tendência já


prefigurada por Hubert e Mauss domina completamente.
(GIRARD, 2008: 118/119)
93

A citação que na íntegra ocupa pouco mais de uma página faz


referência ao Livro de Marcel Mauss e Henri Hubert, com o titulo
“Sobre o sacrifício”33.

Quando, no mesmo capítulo, dedica três parágrafos para


criticar as ciências modernas, lança a frase: “O relativo fracasso dos
Frazer, dos Freud, dos Robertson Smith não deve nos convencer que
seu enorme apetite de compreensão é algo obsoleto (...)” (GIRARD,
2008: 119)

Na breve discussão sobre a cultura e vida indígena, citando a


relação do ato sexual e o parto, faz referência a Malinowski 34 e
muitos etnólogos e, em apenas um parágrafo, discorda dos autores e
não volta mais ao tema:

Talvez isto se dê, mas o ceticismo em questão, apesar


de visar ostensivamente reabilitar as faculdades
intelectuais dos primitivos, poderia também ser derivado
de uma outra forma de etnocentrismo, mais insidioso.
De fato, em tal domínio, o apelo ao senso comum, por
mais discreto que seja, sempre toma formas um tanto
demagógicas. Que absurdo! Vocês não podem acreditar
que existam homens tão estúpidos a ponto de ignorar a
relação entre o ato sexual e o parto. Eis a imagem que
nosso provincianismo cultural faz dos homens que
diferem, por menos que seja, dele próprio! (GIRARD,
2008: 281)

33
No Brasil, publicado pela editora Casc Naify, em 2013.
34
Possivelmente referência a MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem.
Publicado, em 2013, pela Editora Vozes.
94

Após a citação, Girard volta com o tema do Sagrado e não mais


faz referência aos etnólogos. Em outro capítulo, ainda de A Violência
e o Sagrado, Girard retoma o tema da violência fundadora e do
desejo da violência canalizado pelos rituais de sacrifício com a
imolação da vítima expiatória. Essa é também uma característica do
livro, há um vai-e-vem de informações que se repetem à exaustão.

Na retomada do tema sobre a violência fundadora, Girard cita o


contrato social, que se supõe ser uma crítica a Rousseau35.
Obviamente Girard discorda da ideia do contrato social, a violência
jamais deve ser escamoteada, independentemente da finalidade.

(...) O mundo ocidental e moderno escapou até agora


das formas mais imediatamente restritivas da violência
essencial, ou seja, da violência que pode aniquilá-lo
completamente. Este privilégio não tem nada a ver com
uma dessas “superações” que apetecem aos filósofos
idealistas, pois o pensamento moderno não reconhece
nem sua natureza nem sua razão. Ele ignora até mesmo
sua existência; situa sempre a sociedade em um
“contrato social”, explícito ou implícito, enraizado na
“razão”, no “bom senso”, na “benevolência mutua”, no
“interesse bem compreendido” etc. Este pensamento é,
portanto, incapaz de identificar a essência do religioso e
de atribuir-lhe uma função real. Esta incapacidade é de
ordem mítica. Prolonga a incapacidade religiosa, ou seja,
o escamoteamento da violência humana, o
desconhecimento da ameaça que esta faz pesar sobre
qualquer sociedade humana. (GIRARD, 2008: 324)

Com a mesma entoação que tece criticas ao contrato social,


Girard retoma o assunto da violência intestina. A passagem citada,
nada mais é que uma passagem.

35
Provavelmente citação de ROUSEAU, Jean-Jacques. Contrato Social, publicado pela Editora Martin
Claret, em 2013.
95

No livro Um longo argumento do princípio ao fim, as citações


são ainda mais esparsas e contundentes. O livro é elaborado com
entrevistas a João Cesar Rocha e Pierpaolo Antonello36. Na primeira
parte do livro, Girard conversa com seus interlocutores sobre sua
trajetória. Enquanto fala sobre sua vida, fala da importância de
alguns autores, como Sartre que detesta, mas que o fez ler
fenomenologia que o encantou ao conhecer a obra de Merleau-Ponty.

(...) jamais gostei de seus romances, chegando a


detestar sua obra literária, à exceção de As palavras.
Achei A Náusea medíocre. (...) De Sartre passei a
Merleau-Ponty e a todos os autores ligados à
fenomenologia. E foi tal meu fascínio por essa corrente
filosófica, que, durante um tempo, quis escrever num
estilo fenomenológico. (GIRARD, s/d:35)

Além de Sartre, Durkheim, Tarde, Gans, Lorenz, Freud, Lévi-


Strauss aparecem no decorrer das páginas dos livros de Girard, como
passagens.

Dos autores mencionados, há de se fazer uma ressalva: Freud e


Lévi-Strauss possuem assegurado um pouco mais de atenção ao
longo da obra de Girard. Mas, o estilo é o mesmo: sem referências ou
citações diretas que possam direcionar o leitor ao cotejamento das
obras e a formar uma opinião.

Em uma passagem da entrevista de Um longo argumento do


princípio ao fim, Girard admite que, na trajetória acadêmica, houve
pouco interesse em ouvir ou debater com os colegas.

36
A referência do livro está na primeira parte da tese
96

Adoro conversar com as pessoas. Naquele tempo 37,


contudo, não sabia ouvir os outros, era muito centrado
em minha própria teoria – agora38 já consigo escutar
melhor. Estava pronto a responder e discutir, mas era
incapaz de esforçar-me para compreender outros
enfoques, pensar segundo outras perspectivas. Estava
muito absorto no meu próprio sistema, na minha própria
perspectiva (...). (GIRARD, s/d: 73)

Ao ler o índice de A violência e o Sagrado, veem-se dois


capítulos que não contradizem o que aqui foi escrito: Freud e o
complexo de Édipo e Lévi-Strauss, o estruturalismo e as regras de
casamento.

Os dois capítulos tratam das referências dos autores, sem,


contudo, as utilizar. Não há debate. Há a exposição da teoria ou de
parte da teoria dos autores e a negação, feita de forma peculiar por
Girard.

Com Lévi-Strauss, a contraposição foi grande; depois da


publicação de As coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo, Girard
afirma que os antropológicos “ou não manifestaram reação alguma,
ou reagiram de forma inteiramente negativa, como foi o caso de
Claude Lévi-Strauss.” (GIRARD, s/d: 56).

Em conversa com um colega e antropólogo japonês, Girard


soube que Lévi-Strauss proferira: “sabe quem é o antropólogo de que
estão falando agora em Paris? Girard! É inacreditável. O que esse
sujeito tem haver com a antropologia?” (GIRARD, s/d: 57)

37
1983
38
Provavelmente em 1999/2000
97

No capítulo sobre Lévi-Strauss, Girard inicia com uma citação


de Antropologia estrutural39 e começa a discorrer sobre o sistema de
parentesco. A ideia que percorre o capítulo é mostrar que Lévi-
Strauss ignorou a importância da violência em detrimento da
interdição do incesto. Tema que parece incomodar Girard, pois em
todos os capítulos do livro faz questão de afirmar que o controle da
violência pela institucionalização do Sagrado é que determina a
passagem do estado de natureza para cultura.

Outra conversa que aparece no decorrer do capítulo é a relação


da biologia com a cultura e da ciência e não ciência.

O dualismo da ciência e da não ciência data na verdade


do início da era científica e tomou formas bem variadas.
Ele se exacerba à medida que nos aproximamos de
qualquer cultura sem conseguirmos nos apoderar dela. É
ele que inspira Lévi-Strauss a expressar-se com espanto
moderado ante a ideia de que mesmo os mais artificiais
sistemas de parentesco levam cuidadosamente em conta
a verdade biológica. (...) Constatamos assim, em Lévi-
Strauss, uma tendência quase inevitável para colocar as
verdades à parte reservando-as seja à “natureza”, seja
“aos engenheiros” do pensamento, seja ainda a uma
combinação imprecisa de ambas, (...) por essa razão, a
etnologia estrutural tem algo de temporário e
transicional; ela é apenas um itinerário por meio do
pensamento simbólico e que, em suma, lhe toma
emprestado suas próprias armas para melhor dissolvê-
lo, fazendo que de alguma forma desapareça o sonho
mau de nossa cultura, e permitindo a união entre
natureza e cultura. (...) A passagem da natureza à
cultura enraíza-se “nos dados permanentes da natureza
humana”; não cabe se interrogar sobre ela. Este só seria
um falso problema, do qual a verdadeira ciência se
afasta. São os mitos que marcam esta passagem, de um
acontecimento monstruoso, de uma catástrofe
gigantesca e quimérica nos quais não devemos nos
deter. (GIRARD, 2008: 289)

39
Lévi-Strauss. Antropologia estrutural. Publicado, no Brasil, pela Cosac Naify, em, 1958.
98

Para Girard, o pensamento simbólico tem origem no mecanismo


da vítima expiatória e a imolação da vítima origina-se na necessidade
de controle da violência. O Sagrado é a forma de controle que, para
Girard, os autores contemporâneos simplesmente ignoram em nome
da ciência.

O que parece incomodar Girard é que mesmo os autores que


propõem romper a dualidade entre natureza e cultura e entre ciência
e Sagrado/religião não o fazem de fato, caindo na armadilha da
cientificidade suprema.

Pode-se citar aqui dez, vinte declarações perfeitamente


explícitas e a menor delas – mesmo sem analisar o
conteúdo da obra – já bastaria para provar que, longe de
ser marcada pela “paixão do incesto”, a obra de Lévi-
Strauss é notável pela sua maneira de retirar a paixão
do problema (...). O estruturalismo faz com que o
Sagrado desapareça. (...) Graças a ele, torna-se possível
articular a finitude do sentido, da estrutura, sobre o
infinito do Sagrado, reservatório inesgotável onde
recaem e de onde provêm todas as diferenças.

Sabemos agora que o Sagrado reina sozinho ali onde a


ordem cultural nunca funcionou, onde não começou a
funcionar ou deixou de funcionar. Também reina sobre a
estrutura: ele a engendra, ordena, vigia perpetua ou, ao
contrário, desarranja-a, decompõe, metamorfoseia ou
destrói segundo seus menores caprichos; mas ele não
está presente na estrutura, no sentido em que se
encontram presentes todas as outras partes.

(...) Censura-se o estruturalismo por sua “monotonia”,


como se os sistemas culturais existissem para a
distração dos estetas, como se eles fossem espécies de
guitarras, cujo registro não pudesse se limitar às duas
cordas que o estruturalismo sempre pinça. O
estruturalismo é acusado de tocar mal a guitarra
cultural. E ele não consegue responder, pois não
consegue explicar a diferença entre os sistemas culturais
e as guitarras. (GIRARD, 2008: 302/303)
99

Girard encerra o capítulo e também o assunto: estruturalismo e


Lévi-Strauss. Em alguns momentos esparsos, há pequenas
referências que não levam o leitor à curiosidade ou à necessidade de
cotejamento.

Com Freud, a indelicadeza é mais explícita e parece mais


agressiva. Girard critica severamente a teoria freudiana, à exceção de
Totem40 e Tabu, livro mais criticado de Freud.

Sobre a interdição do incesto, como regra universal, Girard faz


a Freud a mesma crítica feita a Lévi-Strauss:

O fundamento oculto dos mitos não é a sexualidade. A


sexualidade não é verdadeiro fundamento, pois é
revelada. A sexualidade faz parte do fundamento que
compartilha algo com a violência, fornecendo-lhe mil
ocasiões para se desencadear. (GIRARD, 2008: 151)

Fiel ao clima de irrealidades que triunfa tanto no estudo


das doenças mentais quando no da experiência religiosa,
psicanalistas e mitólogos perpetuam os mitos,
declarando que o conjunto dos fenômenos alucinatórios
é mera completamente imaginário, recusando, em
outros termos, identificar a emergência de simetrias
reais sob a fantasmagoria delirante. (...) A
incompreensão completa do religioso tomou entre nós o
lugar do próprio religioso, desempenhando às mil
maravilhas a função outrora reservada para ele.
(GIRARD, 2008: 201).

O que de fato incomoda Girard é o dogma criado ao entorno da


interdição do incesto. As verdades absolutas tendem a ser não muito
exatas e a interdição não só se tornou regra universal, como fundou

40
FREUD, S. Totem e tabu (obras completas volume 11). Cia das letras. 2012.
100

escolas e criou adeptos universais. Girard propõe a ruptura de um


paradigma criado há pouco mais de um século.

A ausência quase absoluta do tema do incesto na cultura


ocidental no fim do século XIX sugeriu a Freud que toda
cultura humana estaria curvada sob o peso do desejo
universal e universalmente recalcado de cometer o
incesto materno. A presença do incesto na mitologia
primitiva e nos rituais é interpretada como uma fulgante
confirmação desta hipótese. Mas a psicanálise nunca
conseguiu demostrar como e por que a ausência de
incesto numa cultura determinada significaria
exatamente a mesma coisa que sua presença em mil
outras. Freud estava sem dúvida errado, mas
frequentemente ele tinha razão quando errava, ao passo
que aqueles que proclamam seu erro estão
frequentemente errados ao ter razão. (GIRARD, 2008:
150)

Não pretendemos de forma alguma fazer que Freud diga


o que nunca disse. Afirmamos, pelo contrário, que a via
do desejo mimético abre-se diante de Freud e que Freud
recusa-se a engajar-se nela. (GIRARD, 2008: 214)

A referência ou conversa om Freud está pulverizada em mais de


um capítulo de A violência e o Sagrado. Sempre atendendo ao
mesmo padrão, Girard fala de Freud sem referência direta da obra ou
citação que norteie o leitor. No capítulo Freud e o complexo de Édipo,
é que, possivelmente, encontraríamos as direções da crítica que
Girard tece a Freud. As direções são lançadas aos quarto cantos da
teoria freudiana. Para Girard, o erro de Freud foi não ter percebido o
desejo mimético.

Sabemos que os “dados clínicos” têm costas largas, mas


sua complacência tem limites. Não se pode esperar que
eles testemunhem a favor de uma consciência, por mais
breve que seja, do desejo do parricídio e de incesto. E é
justamente porque esta consciência não é observável em
lugar algum, que Freud, para rapidamente desfazer dela,
101

tem de recorrer a noções tão incômodas e suspeitas


como as de inconsciente e recalque.

(...) o que há de mais notável neste momento da


consciência clara sobre o qual Freud pretende fundar
toda a vida psíquica, é que ele é completamente inútil;
(...) não se pode duvidar que a concepção radicalmente
mimética do desejo abre à teoria psiquiátrica uma
terceira via, tão afastada do inconsciente -receptáculo do
freudismo- quanto de qualquer filosofia da consciência
fantasiada de psicanálise existencial. (GIRARD, 2008:
220/221)

A conversa com Girard e Freud e Girard e Lévi-Strauss merece


a elaboração de uma ou mais teses. O cotejamento das obras, das
falas e o debate são imprescindíveis. Girard aponta como uma via
não estabelecida pela academia, como ele afirma, uma terceira via.
Não há presunção de Girard em se afirmar como a saída para uma
possível terceira via de definições dogmáticas, isso seria contrário a
sua teoria. Girard expõe que a teoria do desejo mimético é sim a
terceira via, possível para interpretarmos a sociedade sob a luz da
violência, mas não de forma dogmática como se tem observado nas
grandes ideias universais.

Retomar o passado, compreendê-lo sob uma nova perspectiva,


pode nos dar respostas para o presente e futuro. Compreender que o
Sagrado, nas sociedades arcaicas, teve função real de controle da
violência pode nos dar indícios de que uma sociedade é muito mais
complexa do que as estruturas armadas dos sistemas modernos.

Girard não é muito adepto dos debates sobre a modernidade,


sobretudo, dos proféticos que compõem a mesa com intelectuais,
para que possam resolver os problemas do mundo moderno.
102

Girard aponta para a necessidade da crise sacrificial e do


Cristianismo como condução da humanidade sob a perspectiva
cultural e não religiosa ou de fé. O Cristianismo, segundo o autor,
determina o fim da imolação das vítimas expiatórias e com isso dos
assassinatos. Torna simbólica a representação do Sagrado e deixa de
ser responsável pelo controle da violência. O controle da violência
com a ausência do Sagrado pertence ao sistema judiciário que
nitidamente não consegue efetivar sua função.

René Girard aponta ainda o problema dos totalitarismos


religiosos que não compreendem a secularização e a necessidade de
laicização como forças de destruição da ordem religiosa tradicional.
“A violência mascarada de religioso que os extremistas islâmicos
perpetuam já é na verdade o sinal de um princípio de decomposição
desse mesmo religioso” (GIRARD, 2010: 19).

O nexo entre religião e violência, tão gritante hoje,


não nasce do fato de as religiões serem
intrinsecamente violentas, mas precisamente
porque a religião é antes de tudo um conhecimento
sobre a violência dos homens (GIRARD, 2010: 8).
103

A CONVERSAÇÃO E O SILÊNCIO

http://shangrilaedicionesblog.blogspot.com.br/2011/03/dostoievski-shangrila-derivas-y.html
104

O silêncio do texto é um paradoxo. O texto começa e


termina com o silêncio. O silêncio final é um momento
de relaxamento, de aconchego, de saborear o dever
cumprido e o prazer sentido, de meditar, parar o interior
diálogo, silenciar. (Menezes, Abel)

Escrever sobre René Girard não é uma tarefa simples. Além das
proposições que exigem uma tese, a obra do autor requereria uma
sequência de teses. A cada capítulo, de cada livro é possível
desenvolver uma nova obra.

Se escrever sobre o autor é uma tarefa difícil, então, conversar


é a saída. Conversações é a proposta que mais se aproxima da
própria ideia que Girard expressa sobre a academia e sobre sua obra.

Não é por acaso que Girard é um autor pouco lido. A obra tem
muita complexidade conceitual e uma forma de escrita que exige
fôlego e bagagem do leitor.

Todos os autores lidos, para o debate com Girard, caminham


para uma direção, mesmo que por estradas diferentes. Girard não
segue a direção comum dos autores de obras sobre antropologia,
mito, psicanálise, filosofia, ciências. Tem seu próprio caminho, sua
trajetória.

Durante a pesquisa, não raro deparei com literatura que citava


Girard como positivista, ou teólogo. Não é nenhum dos dois, ou
outras definições que se queira dar. Talvez ele tenha inaugurado sua
própria escola. Os debates com outros autores estão presentes em
sua obra de e como ele afirma, não contribuem muito com sua
reflexão sobre a teoria mimética.
105

O fascínio que causa a leitura de Girard é abismal. O


desprendimento com a escrita e com a teoria, mantida pelas regras
acadêmicas, é tamanho que tais regras ficam de lado, como sequer
existissem. O padrão usado comumente em trabalhos acadêmicos,
como citar fontes ou referências, não está no rol de preocupações do
autor. Freud, Marx, Sartre, Lévi-Strauss aparecem e desaparecem do
texto como meros interlocutores, absolutamente de forma
displicente. Uma rebeldia de Girard, talvez. Provavelmente, uma
atitude que condiga com o que fala, escreve e pensa. Girard não se
preocupou, durante a vida acadêmica, em agradar alguém. A teoria
do desejo mimético é a descoberta do século e se o século não der
importância, outro século provavelmente o fará. Assim como foi com
tantos outros autores geniais, não reconhecidos em seu tempo.

Aos amigos, como Michel Serres, cabem os elogios públicos,


mas não há muitas publicações com debates entre as ideias dos dois
autores, quiçá uma forma de preservação.

A tese propôs uma reflexão sobre a obra de Girard. Uma


reflexão que aprofunda as ideias expostas em A Violência e o
Sagrado, que considerei mais importante. Toda a obra de Girard
circunda a tese, escamoteada, como ele mesmo fez nos capítulos de
A Violência e o Sagrado. Apesar da vasta obra, tudo está contido
nesse ensaio complexo e transdisciplinar. O mecanismo mimético, a
violência, o Sagrado, o sacrifício e o desejo. O desmembramento de
cada parte resultou em textos e livros publicados, em alguns casos
com os mesmos títulos já elaborados em A Violência e o Sagrado.

A tese não tem a pretensão de debater com os autores que o


próprio Girard diz não haver conversa. Para esse debate, serão
necessárias mais algumas teses, uma para debater com Freud, outra
106

com Lévi-Strauss, Sartre, Frazer, Mauss. Quem sabe, a universidade


descobre Girard, quem sabe teremos a bibliografia do autor nas
leituras dos alunos de graduação, como introdução à antropologia.
Quem sabe?

De certo tem-se que Conversações com René Girard, com


alguma ousadia apreendida com o autor, propõe introduzir o debate
sobre as ideias apresentadas no livro A Violência e o Sagrado.

A escolha do livro também não foi simples. Mas o fascínio


presente nas linhas e, sobretudo, nas entrelinhas não permitiram
muitas escolhas.

Durante os anos de elaboração da tese, a empatia foi


construída no limiar da raiva e da admiração. A raiva vinha com as
difíceis leituras, e certa displicência com autores reconhecidos. Na
obra, raramente há uma nota de rodapé, ou referência à obra
citada/criticada. Encontrar as referências usadas nem sempre foi
possível, o que contribuía com a sensação de incapacidade de
compreender Girard. Como não compreender Girard? O fascínio
aconteceu, quando percebi que não conseguiria ler Girard com a
mesma postura que há anos leio todos os textos acadêmicos. Era
necessário entender como o pensamento do autor se concretizava.
Num momento de sagração, como diria Girard, como quem sai da
caverna, a leitura fez sentido e a compreensão da obra pareceu-me
óbvia. As não citações deixaram de incomodar e o texto ganhou
leveza.

Compreender que a religião deve fazer parte do debate


acadêmico e que a própria histórica tratou de esconder sua
necessidade foi essencial para fugir do estigma teológico. O
107

pensamento complexo ajudou a compreender as diferentes faces de


Girard que decididamente não fragmenta saberes, mesmo que não
haja nada publicado sobre isso.

A compreensão do desejo mimético é ainda mais instigante.


Não é possível ver a realidade sem pensar na triangulação e na
violência implícita, por vezes explícita, presente nas relações entre
sujeito e bode expiatório.

A proposta dessa tese é a compreensão de três elementos


básicos presentes na obra de Girard: desejo mimético, bode
expiatório ou vítima expiatória e violência. Com o domínio desses
operadores cognitivos, é possível compreender a obra do autor. Há
algumas introduções de livros e pequenos textos sobre Girard, mas
não há em nenhum deles a explicação dos conceitos.

A explicação dos conceitos de Girard está obviamente presente


na obra, mas não está explicitamente exposta. Enfim, a tessitura
dessa tese contribui com a leitura da obra de René Girard e suas
ressonâncias possíveis e, múltiplas áreas do conhecimento.

Assim como o autor estudado, acredito pouco na academia.


Essa crença vem diminuindo com o cotidiano vivenciado nas
universidades privadas, com a desqualificação do conhecimento que
me é tão caro. Acredito no ser humano e como Prigogine41 sou uma
otimista incorrigível. A crença na academia está mantida com as
pequenas lutas cotidianas que podem a qualquer momento ceder com
o cansaço solitário dos que batalham.

41
Ilya Prigogine. Ciência razão e paixão
108

Como Girard, aos quarenta anos, termino o doutorado. Como


ele, talvez compre um carro. Talvez a teoria girardiana ganhe
reconhecimento nas universidades e tenhamos o ensino da
antropologia menos cartesiano, menos preocupado em compreender
a violência sem entender que a violência é intrínseca ao ser humano.
Quem sabe tenhamos uma universidade que admita que o ser
humano é natureza e cultura. Quem sabe o desejo seja mimético?
Quem sabe?

Todo aquele que manipular a violência será


finalmente manipulado por ela (GIRARD, 2008:326)
109

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O HOMEN DE LA MANCHA. Direção: Arthur Hiller. Produtora e


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HOMENS E DEUSES. Direção Xavier Beauvois. Produtora e


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http://www.swiss-jazz.ch/rene-girard.htm

https://news.stanford.edu/thedish/?p=24393

http://www.paper-pills.com/2008/09/02/rene-girard/

http://shangrilaedicionesblog.blogspot.com.br/2011/03/dostoievski-
shangrila-derivas-y.html

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,obra-discute-o-
sacrificio-ritual-moderno,767361,0.htm

http://labirintosdoser.blogspot.com.br/2009/10/rene-girard-e-o-
mecanismo-mimetico.html
115

ANEXOS42

http://projetophronesis.com/category/filosofia-contemporanea/rene-girard-filosofia-
contemporanea/

42
Anexo 1: Discurso de Mihael Serres proferido durante a posse de René Girard na cadeira nº37 da
Academia Francesa http://www.academie-francaise.fr/reponse-au-discours-de-reception-de-m-rene-
girard A versão em português está traduzida em O trágio e a Piedade, que acompanha também o
discurso de Girard (anexo 2)
116

ANEXO 1

Réponse au discours de réception de M. René Girard

Le 15 décembre 2005
Michel SERRES
Réception de M. René Girard

Des lambeaux pleins de sang et cet attelage emballé, en ce


des membres affreux noeud de vipères, en ces bêtes
Que des chiens dévorants se acharnées, la violence
disputaient entre eux abominable de nos sociétés ;
d’avoir révélé, enfin, en ces
D’où parviennent jusqu’ici ces
corps déchiquetés, les victimes
aboiements ? Reconnaissons-
innocentes des lynchages que
nous, de même, dans le récit
nous perpétrons.
de Théramène, les chevaux
emportés qui traînent le Tiré de Racine, ce bestiaire
cadavre d’Hippolyte sur la hominien eût pu s’échapper,
plage, écartelé ? Qui sont ces furieux, de l’Antiquité grecque,
serpents qui sifflent sur vos où des femmes thraces
têtes ? dépècent Orphée, de la
Renaissance anglaise ou de
Merci, Monsieur, de nous avoir
notre xviie siècle classique, où
fait entendre, en ces abois, ces
chaque tragédie porte en elle,
hennissements, ces hurlements
imagée ou réelle, une trace
d’animaux enragés, nos propres
immanquable de cette mise à
vociférations ; d’avoir dévoilé,
mort. Les Imprécations de
en cette meute sanglante, en
117

Camille, chez Corneille, Romulus en morceaux, et, la


réunissent contre Rome tous les clarté revenue, fuyant,
peuples issus du fond de honteux, chacun dissimulant,
l’univers et dans Shakespeare, dans le pli de sa toge, un
les sénateurs, assemblés, membre du roi de Rome dépecé
plantent leurs couteaux croisés ; nous, soldats romains,
dans le thorax de César. pressés autour de Tarpeia,
L’origine de la tragédie, que jetant nos bracelets, nos
Nietzsche chercha sans la boucliers sur le corps virginal
trouver, vous l’avez découverte de la vestale chaste ; nous,
; elle gisait, tout offerte, en la lapidateurs de la femme
racine hellénique du terme lui- adultère ; nous, persécuteurs,
même : tragos signifie, en lançant pierre après pierre sur
effet, le bouc, ce bouc le diacre Étienne, dont l’agonie
émissaire que des foules prêtes voit les cieux ouverts…
à la boucherie expulsent en le
… nous, bannissant ou élisant
chargeant des péchés du
tel candidat en inscrivant son
monde, les leurs propres, et
nom sur des tessons de terre
dont l’Agneau de Dieu inverse
cuite, souvenir oublié de ces
l’image. Merci d’avoir porté la
pierres de lapidation ; nous,
lumière dans la boîte noire que
désignant un chef par nos
nous cachons parmi nous.
suffrages, sans nous
Nous.
remémorer que ce mot fractal
Nous, patriciens, au marais de signifie encore les mêmes
la Chèvre, assemblés en cercles fragments, jetés sur l’élu ; de
concentriques autour du roi de ces pierres assassines, nous
Rome ; nous, parmi les bâtissons nos villes, nos
ténèbres d’un orage parcouru maisons, nos monuments,
d’éclairs ; nous, découpant notre Coupole ; nous, désignant
118

roi ou victime, parmi nos couché sous ce monceau. Les


fureurs temporairement institutions élèvent-elles
canalisées par ce suffrage nécropoles et métropoles à
même ; nous, vos confrères, partir de ce supplice primitif ?
qui, de nos suffrages, vous La Coupole en dessine-t-elle
avons élu ; nous, sagement encore le schéma oublié ?
assis autour de vous, debout,
Que signifie le sujet que nous
discourant de notre Père Carré,
appelons toi ou moi ? Sub-
mort.
jectus, celui qui, couché, jeté
Grâce à vous, je vois pour la dessous, jeté sous les pierres,
première fois le sens meurt sous les boucliers, sous
archaïquement sauvage de les suffrages, sous nos
cette cérémonie, les cercles acclamations. Et quelle
concentriques des sièges, fixés abominable glu colle les
au sol, immobilisés, séparés ; collectifs en ce sujet pluriel que
j’entends le silence du public, nous nommons nous ? Ce
apaisé de fascination, vous ciment se compose de la
écoutant, vous, élu, debout ; je somme de nos haines, de nos
découvre aussi pour la première rivalités, de nos ressentiments.
fois cette chapelle ronde autour Sans cesse renée, mère
du tombeau de Mazarin, tous mimétique de soi-même,
deux faits des pierres d’une marâtre des groupes, la
lapidation gelée, reproduisant, violence, molécule de mort
comme en modèle réduit, les aussi implacablement repliquée,
pyramides d’Égypte, résultats imitée, reprise, reproduite que
elles aussi, elles sans doute les molécules de la vie, voilà le
parmi les premières, d’une moteur immobile de l’histoire.
lapidation longue, celle du Profonde leçon de grammaire
corps de Pharaon, accablé élémentaire et de sociologie
119

politique :vous, sous la boîte pouvoirs ? Pourquoi nous


noire des pierres, voici le bouc prosternons-nous devant les
émissaire ; nous, dans la boîte grandeurs d’établissement,
noire de la nuit, voilà, sans dont la cérémonie d’aujourd’hui
qu’ils le sachent, d’anciens donne un si parfait exemple ?
persécuteurs. Leçon
Vous avez découvert, aussi,
d’anthropologie et
cette autre et première glu dont
d’hominisation, j’y reviendrai.
l’adhérence fait une bonne part
D’où provient cette violence ? du lien social et personnel : le
mime, dont les gestes et 3
Observez nos habits verts.
conduites, les paroles, les
Pourquoi un groupe parade-t-il
pensées nous rapprochent de
ainsi, en uniforme ? Pourquoi
nos cousins les singes,
femmes et hommes suivent-ils
chimpanzés ou bonobos, sur
une mode vestimentaire,
lesquels, Aristoteles dixit, nous
intellectuelle, parleuse ?
l’emportons en imitation.
Pourquoi ne désirons-nous
Combien de fois, observant,
passer pour d’exceptionnelles
dans un ministère, une
singularités qu’à la condition de
réception officielle, ou, dans un
faire comme tout le monde ?
hôpital, la visite d’un professeur
Pourquoi ladite correction
de médecine au chevet d’un
politique exerce-t-elle tant de
malade, n’ai-je pas vu, de mes
ravages sur la liberté de pensée
yeux vu, de grands
? Pourquoi faut-il tant de
anthropoïdes se livrant aux
courage pour dire ce qui ne se
jeux dérisoires de la hiérarchie,
dit pas, penser ce qui ne se
où le mâle dominant parade
pense pas, faire ce qui ne se
face aux dominés ou à ses
fait pas ? Pourquoi l’obéissance
femelles soumises ? L’imitation
volontaire fonde-t-elle les
produit la dominance plus ou
120

moins féroce que nous Haineux, que vous dessinez


exerçons ou subissons. avec le pinceau du mime.

Anthropologique et tragique, le Mieux encore, ce mimétisme


modèle que vous proposez à jaillit du corps, du système
notre méditation, en illuminant nerveux comprenant ces
notre expérience, part du mime neurones miroirs, découverts
et du désir qui en découle. Tel récemment par des
aime la maîtresse de son ami cognitivistes italiens et dont
ou l’ami de sa maîtresse ; tel nous savons aujourd’hui qu’ils
autre jalouse la place de son s’excitent aussi bien lorsque
proche voisin ; quel enfant ne nous faisons un geste qu’au
s’écrie « moi aussi » dès que moment où nous voyons un
frère ou soeur reçoivent un autre le faire, comme si la
cadeau, et quel adulte peut se représentation équivalait à
défendre d’un même réflexe ? l’acte. Ainsi le mime devient-il
L’état d’égaux crée une rivalité l’un des formats universels de
qui, en retour, nous transforme nos conduites. Nous imitons,
en jumeaux, réattisant à la fois nous reproduisons, nous
la haine et l’attirance. Le répétons. La replication
paysage entier des sentiments propage et diffuse le désir
violents, des émotions de base, individuel et les cultures
divers et coloré en apparence, collectives comme les gènes de
jaillit de cette gémellité l’ADN reproduisent et
uniforme et pourtant disséminent la vie : étrange
productive. Nous désirons le dynamisme de l’identique dont
même, le désir nous fait l’automatisme redondant,
mêmes, le même fait le désir, repliqué indéfiniment, va se
qui se reproduit, monotone, sur répétant.
la double carte de Tendre et de
121

Vous avez mis la main sur l’un processus de reproduction de


des grands secrets de la culture l’ADN vivant.
humaine, spécialement de celle
Les objets qui nous entourent
que nous connaissons
désormais, voitures, avions,
aujourd’hui, dont les codes
appareils ménagers, habits,
envahissent le monde
affiches, livres et ordinateurs…
exponentiellement plus vite que
tous proposés à nos désirs,
ceux de la vie – trois milliards
comment les nommer, sinon
huit cent millions d’années pour
des reproductions d’un modèle,
l’une, quelques millénaires à
à peu de variations près. Que
peine pour l’autre – parce que
dire, aussi, de ce que l’inculture
ses grandes révolutions – tailles
de nos élites appelle
de la pierre au paléolithique,
management, pour les
écriture dans l’Antiquité,
entreprises privées, ou de
imprimerie à la Renaissance,
l’administration, pour les
industrie de chaînes et de
services publics, sinon que
séries depuis quelques siècles,
l’effroyable lourdeur de leur
nouvelles technologies, plus
organisation a pour but de
récemment - inventèrent
rendre homogène et
toutes, sans exception, des
reproductible toute activité
replicateurs, codes ou
humaine et de donner ainsi le
opérations de codage dont la
pouvoir à ceux qui n’en ont
surabondance envahissante
aucune pratique singulière ? Et
caractérise notre société de
que dire des marques, partout
communication et de publicité.
propagées, dont nous
Ces replicateurs, dont la
connaissons l’origine : les
similitude excite et reproduit le
traces de pas que laissaient en
mimétisme de nos désirs,
marchant, imprimées sur le
semblent imiter, à leur tour, le
sable des plages, les putains
122

d’Alexandrie, révélant ainsi leur publicité, le commerce et les


nom et la direction de leur lit ? jeux répètent, au contraire :
Le long de leur marche imitez-moi, devenez les
dupliquée, ne revenons-nous véhicules automatiques de la
pas au désir ? Quel président répétition de nos marques, pour
d’une grande marque, que votre corps et vos gestes
aujourd’hui partout repliquée, répétés multiplient en les
se sait, - s’il ne le sait pas, je répétant nos succès
jouis de le lui apprendre – se commerciaux ; timide et quasi
sait, dis-je, fils de ces putains sans voix face à ces potentats,
d’Alexandrie ? Nous avons créé l’éducation leur souffle :
un environnement où le succès n’imitez personne que vous-
lui-même, où la création elle- mêmes, devenez votre liberté.
même, dépendent désormais de Devenue pédagogique, notre
la reproduction plus que de société a donc rendu l’éducation
l’inimitable. contradictoire. La crise de la
création, la voici enfin : dans
Le danger majeur que courent
un univers de replicateurs, de
nos enfants, le voilà : les fils de
modes et codes reproducteurs,
putains, à qui je viens de
de clones bientôt, l’oeuvre
rappeler leur digne lignée, les
inimitable reste cachée jusqu’à
plongent dans un univers de
la fondation d’un nouveau
codes repliqués ; nous les
monde. Ainsi nous avez-vous
écrasons de redondance. La
révélé comment le désir
crise de leur éducation, la voici
personnel et la culture humaine
: fondé naturellement sur
amplifient l’un des secrets de la
l’imitation, l’apprentissage
vie, de la naissance, de la
enseigne à devenir des
nature.
singularités inimitables.
Tonitruants, les médias, la
123

Aveuglés par la monotonie du reproduire pareillement. Elles


même, nous voyons mal la se ramènent donc à des bio-
répétition. Comprenons-nous, technologies. Partis du corps,
par exemple, comment les les appareils, bien nommés, y
techniques, sorties du corps, reviennent aujourd’hui. Leur
reproduisent, d’abord, les histoire raconte comment les
fonctions simples de nos objets que nous fabriquons
organes : le marteau frappe explorent, les unes après les
comme le poing ; la roue autres, les performances de la
tourne comme les articulations vie. J’ai appelé cela, jadis,
des genoux et des chevilles ; le l’exo-darwinisme des
nouveau-né tète au biberon techniques ; grâce à vous, je
comme au sein… imitent, comprends qu’il continue, qu’il
ensuite, les systèmes : les imite, culturellement, le
machines à feu miment la darwinisme naturel. Je vous
thermodynamique de nomme désormais le nouveau
l’organisme ; télescopes, Darwin des sciences humaines.
microscopes, miment les
Je veux, par deux aveux,
systèmes sensoriels… miment,
compléter le tableau du
ensuite, certains tissus : les
mimétisme tel que vous le
réseaux de voies ferrées,
décrivez : le premier concerne
maritimes, aériennes,
nos psychologies. Si, d’exercice
électroniques imitent le tissu
ou de nécessité, nous
nerveux… miment, enfin,
cherchions, le plus loyalement
l’imitation même de l’ADN… ?
du monde, ce que nous
Voilà un autre mimétisme caché désirons vraiment, ou ici et
: appareillées du corps, les maintenant, ou globalement
techniques finissent par entrer pour notre vie entière,
dans son secret de se n’entrerions-nous point, pour
124

longtemps, dans une autre vouloir ou ce que des normes


boîte noire, intime, où nous féroces m’imposent.
nous égarerions, sans trouver,
Deuxième aveu, plus logique à
en ce fond sombre de nous-
la fois et plus personnel : il ne
mêmes, le plus petit élément
se présente pas de cas, dit Karl
de réponse à cette exigence,
Popper quelque part, où
immédiate ou large, de plaisir
certaines théories, le marxisme
ou de bonheur ? Face à
et la psychanalyse par exemple,
l’inquiétude induite par un tel
se trouvent en défaut. Voilà des
égarement, nous nous
théories qui ont toujours raison
précipitons vers l’imitation
; mauvais signe, car, exact ou
parce que nous ne pouvons pas
rigoureux, le savoir se
ne pas combler, au plus vite, un
reconnaît à ce qu’il connaît
vide aussi angoissant.
toujours des lieux où il défaille.
Aussi difficile que se présente, Il n’y a donc de science que
d’autre part, la morale la plus falsifiable. Or, çà et là, nous
austère, ne constitue-t-elle pas, entendons dire que votre
elle aussi, un substitut facile à modèle, trop universel, tombe
la même absence ? Évidence sous ce couperet. Il n’y aurait,
plus que paradoxe : la route dit-on, aucune exception à
malaisée de la morale, comme votre théorie du double et de la
le chemin aisé du mime, rivalité mimétique. On ne
semblent des voies d’accès plus pourrait que la vérifier ; or, je
accessibles que la quête le répète, pour qu’elle puisse
inaccessible de l’authentique entrer en science, il faudrait la
plaisir. Puisque je ne sais pas falsifier.
ce que je veux, autant désirer
Aussitôt, je m’y emploie. Voici
ce que les autres paraissent
déjà presque trente ans que,
125

me prétendant votre ami, je Avignon, expression qui


reçois de vous des marques m’induit, et voilà l’exception, en
d’amicale réciprocité. En public, rivalité mimétique ; car issu,
ce soir, je puis jurer les dieux moi aussi, moi toujours votre
devant les autels du monde, et double, d’une ville dont le nom
sans risque de parjure, que je commence par un A, je ne
n’ai jamais ressenti ombre de bénéficie pas, comme vous et
jalousie ni de ressentiment à certain de nos amis né, par
votre égard, quelque chance, en Haïti, de la
admiration que je vous porte. préposition en dont l’euphonie
Veuillez donc me considérer évite à vos compatriotes
comme un monstre, comme un l’hiatus dont l’horreur haïssable
double sans rivalité, donc hante qui habita à Agen. Je me
falsificateur de votre modèle ; laisse brûler, là, par les feux de
de la sorte, nous pouvons l’envie. Mais si, vous
l’admettre dans l’exactitude avantageant et me punissant,
rigoureuse du savoir. Quoi de ce point de grammaire nous
plus réjouissant, vous en sépare, deux ponts, comme il
conviendrez, qu’un ami vrai se doit, nous rassemblent :
joue assez au faux ami pour alors que vous dansez sur celui
pouvoir démontrer, en la d’Avignon, nous nous
falsifiant, la vérité décrite par enorgueillissons de notre Pont-
son ami ? Canal.

Et puisqu’il s’agit là de vous et Quasi jumeaux, nous naquîmes


de moi, pourquoi ne pas donc sous la même latitude,
avouer, en entrant plus avant mais seuls les Parisiens, gens
dans les confidences, que, de peu d’oreille, croient que
cependant, je vous jalouse sur nous parlons, avec le même
un point ? Vous naquîtes en accent, une même langue d’Oc.
126

Alors qu’ils croient la France fus, des folies criminelles de


coupée seulement en Nord et nations européennes. Pour
Sud, ils ne la voient pas, mieux la penser, sans doute,
comme nous, séparée aussi en vous mettiez, instinctivement,
Est et Ouest : nous, Celtes et de la distance entre votre corps
même Celtes-Ibères et, vous, et cette mortelle violence. Et,
Gaulois latinisés d’Arles ou de de même que je parle avec une
Milan, promis au saint Empire certaine émotion de la France
romain-germanique ; nous, rurale d’avant la coupure du
atlantiques, versés vers un conflit, vous parlez souvent
océan ouvert, vous, avec la même nostalgie des
continentaux d’une mer États-Unis que vous connûtes
intérieure ; nous, de la barre alors, pays, comme le nôtre, à
pyrénéenne, vous de l’arc alpin culture rurale et chrétienne,
; nous aquitains, gallois ou avant qu’il ne s’américanise. En
bretons, humides et doux, cherchant la paix, vous
vous, méditerranéens venteux, deveniez, parmi les tout
piquants et secs ; nous, premiers, ce que nous devons
Basques ou Gascons, cousins tous devenir désormais : métis
des Écossais, Irlandais, de culture et citoyens du
Portugais ; vous, Provençaux, monde.
voisins rhodaniens du Rhin et
Je ne vous rejoignis que vingt
du Pô ; vous, Zola, Daudet,
ans après. Vous souvenez-vous
Giono ; nous, Montaigne ; vous,
des paquebots, de ces
Cézanne ; nous, Fauré.
traversées bénies dont la durée
Si l’espace nous sépare, il nous ne coûtait au corps aucun
a unis aussi. À la fin de la décalage horaire ? En le
dernière guerre, vous avez perdant, l’on gagnait du temps,
émigré, terrifié, comme je le alors que nous en perdons,
127

maintenant, en croyant le votre vie traversa lentement cet


gagner, entassés dans des immense continent. Vous en
aéronefs. De ce moment, j’ai en connaissez l’espace, vous en
partie partagé votre errance de savez, mieux que personne, les
campus en campus et d’Est en moeurs, les vertus, les excès,
Ouest. Vous souvenez-vous des la grandeur, les émotions, les
blizzards de Buffalo, des hivers religions, la politique, la
où nous cassions la glace sur la culture. Jour après jour, j’ai
route où les congères, appris les États-Unis en vous
accumulées par la neige des écoutant et je souhaite souvent
Grands Lacs, nous interdisaient qu’à la suite d’Alexis de
parfois de sortir de nos maisons Tocqueville, dont j’occupe le
? Vous souvenez-vous des fauteuil, vous écriviez demain
automnes lumineux de une suite, contemporaine et
Baltimore, d’étés indiens où les magnifique selon ce que
rouges du feuillage renvoient j’entendis, de la Démocratie en
au ciel une clarté que son azur Amérique. Les souvenirs de
ne connaît pas ? Vous votre vie nous doivent ce
souvenez-vous des chaleurs dernier ouvrage-là.
humides du Texas, des forêts
Vous avez traversé la mer pour
de Caroline ? Avec quelle
vous évader de la violence ;
tristesse, la vieillesse venue,
vous, principalement, et moi,
devrai-je bientôt me passer de
votre double dans l’ombre, n’en
vous retrouver, comme depuis
parlons pas pour rien, en effet.
plus de vingt ans, sur les bords
Dès 1936, nous avions tous
du Pacifique, entre la baie de
deux autour de dix ans, je n’en
San Francisco et l’Océan ?
perdrai jamais la souvenance,
De même que votre pensée nous autres, enfants rares issus
connecte plusieurs disciplines, des rescapés de la première
128

guerre mondiale, recevions déjà profondes propres à notre


les réfugiés d’Espagne, rouges génération nous donnèrent un
et blancs, jumeaux échappés corps de violence et de mort.
des atrocités d’une guerre civile Vos pages émanent de vos os,
qui annonçait la reprise des vos idées de votre sang ; chez
horreurs subies par nos vous la théorie jaillit de la chair.
parents. Souvenez-vous, alors, Voilà pourquoi, Monsieur, vous
de la suite en cataracte, et moi, mêlée à notre corps de
souvenez-vous des réfugiés du guerre, avons reçu dès cet âge
Nord, poussés par la Blitzkrieg une âme de paix.
de 39, souvenez-vous des
Un jour les historiens viendront
bombardements, des camps de
vous demander d’expliquer
la mort et de l’Holocauste, des
l’inexplicable : cette formidable
luttes civiles entre Résistants et
vague qui submergea notre
Miliciens, de la Libération,
Occident pendant le xxe siècle,
joyeuse mais abominable de
dont la violence sacrifia, non
ressentiment sanglant,
seulement des millions de
souvenez-vous d’Hiroshima et
jeunes gens, pendant la
de Nagasaki, catastrophes pour
première guerre mondiale, puis
la raison et le monde. Ainsi
des dizaines de millions autour
formée par ces atrocités, notre
de la seconde - selon la seule
génération dut, en plus, porter
définition de la guerre qui
les armes dans les guerres
tienne et selon laquelle des
coloniales, comme en Algérie.
vieillards sanguinaires, de part
Nous partageâmes une enfance
et d’autre d’une frontière, se
de guerre, une adolescence de
mettent d’accord pour que les
guerre, une jeunesse de
fils des uns veuillent bien
guerre, suivant une paternité
mettre à mort les fils des
de guerre. Les émotions
autres, au cours d’un sacrifice
129

humain collectif que règlent, délivrer. Ces abominations


comme les grands prêtres d’un dépassent largement les
culte infernal, ces pères capacités de l’explication
enragés que l’histoire appelle historique ; pour tenter de
chefs d’états - et qui, pour comprendre cet
couronner ces abominations incompréhensible-là, il faut une
d’un pic d’atrocité, sacrifia, dis- anthropologie tragique à la
je, non seulement ses enfants, dimension de la vôtre. Nous
mais, par un retournement sans comprendrons un jour que ce
exemple, sacrifia aussi ses siècle a élargi, à une échelle
ancêtres, les enfants de nos inhumaine et mondiale, votre
ancêtres les plus saints, je veux modèle sociétaire et individuel.
dire le peuple religieux par Derechef, d’où vient cette
excellence, le peuple à qui violence ? Du mime, disiez-
l’Occident doit, sous la figure vous. Il pleut du même dans les
d’Abraham, la promesse de champs du désir, de l’argent,
cesser le sacrifice humain. En de la puissance et de la gloire,
l’atroce fumée sortie des camps peu d’amour. Il pleut du mime
de la mort et qui nous étouffa comme il pleuvait jadis, dans le
tous deux en même temps que vide, du même, atomes,
l’atmosphère occidentale, vous paroles ou lettres, pour la
nous avez appris à reconnaître fondation du monde.
celle qui sortait des sacrifices
Or quand tous désirent le
humains perpétrés par la
même, s’allume la guerre de
sauvagerie polythéiste de
tous contre tous. Nous n’avons
l’Antiquité, celle, tout
encore rien à raconter que cette
justement, dont le message
jalousie haineuse du même qui
juif, puis chrétien, tenta
oppose doubles et jumeaux en
désespérément de nous
frères ennemis. Quasi
130

divinement performative, et de meurtre que


l’envie produit, devant elle, communément l’on appelle
indéfiniment, ses propres l’histoire. Il n’y a rien à
images, à sa ressemblance. Les raconter parce que, aveugles
trois Horaces ressemblent aux ou hypocrites, nous cachions,
Curiaces triples ; les Montaigus sous les mille circonstances
imitent les Capulets ; saint multicolores de l’histoire - le
Georges et saint Michel miment verbe historier signifie ce
le Dragon ; l’axe du Bien agit bariolage enjolivé d’un décor de
symétriquement, selon l’image, racontars - cette uniformité
à peine inversée, de l’axe du d’un message sans aucune
Mal. Ainsi généralisé, couvrant information. Du kaléidoscope
tout l’espace par l’imitation, le de ses fureurs, de ses oripeaux
conflit risque de supprimer les d’arlequins, l’histoire couvre
guerriers jusqu’au dernier. son vide d’information, issu de
Épouvantés de cette possible la monotonie repliquée de la
éradication de l’espèce par elle- violence.
même, tous les belligérants se
Alors, mais alors seulement
retournent, parmi cette crise,
commence le récit : celui que
contre un seul. Des humains en
racontent à la fois le Livre des
foule tuent l’humain unique, en
Juges (XI, 34-40) ou la tragédie
un geste d’autant plus répété
grecque et qu’à mon tour,
que les meurtriers ne savent ce
enfin, je puis relater. Si je
qu’ils font.
gagne cette guerre, supplie
Jusqu’ici, nous n’avons rien à Jephté, général des armées,
raconter parce que le récit, j’offrirai au Seigneur en
redondant, répète toujours la holocauste la première
même ritournelle, ce personne que je rencontrerai.
cauchemar monotone de mime Si les vents se lèvent à
131

nouveau pour virer mes voiles au hasard ces premières


vers Troie, prie Agamemnon, venues. Le dieu Baal et le
amiral de la flotte, je sacrifierai, Minotaure terré au labyrinthe
sur les autels de Neptune, le de Crète dévorent les premiers
premier qui viendra vers moi. nés des notables de Carthage
Une bonne brise enfle la voilure ou d’Athènes. Les fils et les
des vaisseaux de guerre grecs filles, toujours les enfants. La
et ce père, roi des rois, voit victime de la violence paraît se
venir vers soi sa propre fille tirer à la courte paille, mais,
Iphigénie. L’armée juive écrase toujours, le sort tombe sur le
les fils d’Ammon et, dansant et plus jeune, sur le mousse…
jouant du tambourin pour fêter voilant ainsi le secret, que
la victoire, sort de sa maison, à j’avais deviné, de la guerre : le
Miçpa, la fille de Jephté soi- meurtre de la descendance,
même courant, joyeuse, vers dont l’organisation, par ces
son père triomphant, mais pères ignobles, se cache sous
déchirant ses vêtements. Dans l’aléa.
les plaines mornes des batailles
En cette deuxième monotonie
et chamailles des mêmes contre
du sacrifice humain, désormais
les mêmes, tous deux désirant
sans cesse repris, la première
le même, sans nouvelles donc
vraie nouvelle vint d’Abraham,
et sans information, montent,
notre ancêtre, au moins
alors, et jusqu’au ciel, le plus
adoptif, qui, appelé par l’ange
improbable des messages, le
du Seigneur (Genèse, XXII, 10-
comble de l’horreur et de la
13), arrêta son poing au
cruauté. Les plus nobles des
moment où il allait égorger
pères deviennent les pires.
Isaac, son fils. Cela montre,
La vie, le temps, les mieux encore, qu’Agamemnon
circonstances et l’histoire tirent et Jephté avaient sacrifié leur
132

fille de gaieté de coeur et victime, l’horreur du sacrifice et


cachaient cette abomination le dessillement des bourreaux
sous le prétexte du hasard et aveugles. La troisième vient de
du premier venu, comme vous, qui dévoilez cette vérité,
d’autres ailleurs, le à nos yeux comme aux leurs
dissimulaient dans la nuit, à cachée.
l’occasion d’un orage. La pitié,
Moins connue à ce jour,
la piété monothéistes
quoique assourdissante, la
consistent, nouvellement, en
quatrième exigerait de longs
l’arrêt du sacrifice humain,
développements. Par l’imprimé,
remplacé par la vicariance
la parole et les images, les
d’une victime animale. L’éclair
médias d’aujourd’hui,
de la violence bifurque et,
reprennent le sacrifice humain,
miséricordieusement, épargne
le représentent et le multiplient
l’enfant. Au passage, pour venir
avec une frénésie telle que ces
en aide à votre idée sur la
répétitions recouvrent notre
domestication des animaux,
civilisation de barbarie
aviez-vous remarqué
mélancolique et lui font subir
l’enchevêtrement des cornes du
une immense régression en
bélier dans le buisson ? Cette
terme d’hominisation. Les
attache veut-elle dire que la
technologies les plus avancées
bête avait quitté déjà la
font reculer nos cultures aux
sauvagerie ?
ères archaïques du polythéisme
La deuxième vint de la Passion sacrificiel.
de Jésus-Christ ; à l’agonie,
Vous dites aussi que le
celui-ci dit : Père, pardonnez-
dévoilement du mécanisme
leur, car ils ne savent ce qu’ils
victimaire en a usé le remède.
font. Ici, la bonne nouvelle
De fait, nous ne disposons plus
porte sur l’innocence de la
133

de rituels pour tuer des Bruno ; avons-nous vu les


hommes. Sauf sur nos écrans, révoltés en question ne brûler,
tous les jours ; sauf sur nos par mimétisme, que des
routes, souvent ; sauf dans nos automobiles ; avons-nous
stades et nos rings de boxe, observé la police, postée
quelquefois. Mais, j’y pense, devant eux, épargner aussi les
cette loi souveraine qui nous fit vies humaines ? Je vois ici une
passer du meurtre à la suite immanquable de votre
boucherie, cette loi, dis-je, qui anthropologie, où la violence
dérive notre fureur de la collective passa, jadis, de
victime humaine à la bête, l’homme à l’animal et,
notre violence ne la dérive-t- maintenant, de la bête, absente
elle pas, aujourd’hui, sur ces de nos villes, à des objets
objets dont je viens de dire techniques. Parmi ces révoltes
qu’ils sortent, justement, de fument des chevaux-vapeur.
nos corps, par un processus
Comme un revenant, le
copié de votre mimétisme ?
sacrificiel ne cesse donc de
Voici quelques semaines, nous
nous hanter. Pourquoi ?
connûmes en France, pour la
Enfants, l’on nous enseignait à
seconde fois, des révoltes sans
l’école que Zeus, Artémis et
morts, des violences
Apollon peuplaient le panthéon
déchaînées sans victimes
des religions antiques. Fausses,
humaines. Avons-nous vu,
ces appellations font oublier
nous, vieillards, témoins des
qu’aux yeux des anciens
horreurs de la guerre et à qui
existaient seulement les
l’histoire enseigna, contre le
divinités spécifiques des villes.
message d’Abraham et de
Couverte de seins, l’Artémis
Jésus, le bûcher de Jeanne
d’Éphèse se distinguait de
d’Arc ou celui de Giordano
l’amazone chasseresse d’une
134

autre cité ; Apollon régnait à mal du monde. Des conflits


Delphes et Athéna sur la perpétuels entre villes et
communauté exclusive des empires éradiquèrent la Grèce,
athéniens ; ces noms propres l’Égypte et Rome et, en trois
unifiaient un collectif local. guerres successives, les
nationalismes d’Occident
Ces ancêtres croyaient-ils aux
faillirent s’en suicider. Par
déités ainsi nommées ? Non.
bonheur, notre génération
Aucun verbe, dans leur langue,
inventa une Europe qui, pour la
ne désignait une foi. Ils y
première fois de l’histoire
croyaient, certes, mais
occidentale, vit en paix depuis
seulement au sens où certains,
soixante ans. Votre polythéisme
moi compris, participons parfois
meurtrier du sacré, je le
avec chaleur aux exploits de
généralise en religions
notre équipe régionale ou
belliqueuses et militantes de
nationale de rugby, au sens où
l’appartenance. La Foi les
un concitoyen confesse sa
délaisse, usées.
confiance en la République.
Cette créance transit Les polythéismes et les mythes
l’appartenance. À l’ombre du associés collent les collectifs
Parthénon, Athéna symbolise avec une efficacité sanglante,
un territoire éponyme comme mais cette solution, toujours
une équipe de football ou temporaire et donc à
autres partis désignent d’autres recommencer sans cesse, s’use,
niches. Il arrive que l’on y pendant que ces sociétés en
brandisse un étendard sanglant périssent. L’Antiquité mourut de
devant de féroces soldats, dont ses religions. Quand le judéo-
des paroles racistes disent christianisme parut, il enracina
encore le sang impur. De ces peu à peu la Foi dans les
appartenances découle tout le individus. Avant saint Augustin
135

et Descartes, saint Paul invente Pour n’avoir aucune place dans


l’ego universel. le monde, la nouvelle religion
fonde sa sainteté dans l’intime
Il y a deux sortes de religions :
de l’intérieur.
les anthropologies et les
sociologues épuisent le sens de Cependant, elle fonde aussi une
celles qui fondent Église, qui s’enferme, d’abord,
l’appartenance, où règnent la dans les catacombes, à côté
violence et le sacré. des tombes, non pas seulement
Inversement, pour celles de la pour échapper aux persécutions
personne, les expressions « de Rome, mais pour se cacher
sociologie, politique des d’une société violente usée
religions » sentent l’oxymore. jusqu’à la corde, pour tenter de
La distinction monothéisme- constituer un collectif nouveau,
polythéisme ne se réduit point laissant l’appartenance sacrée
à la croyance en un ou pour la communion des saints.
plusieurs dieux, mais désigne Je vois les premier chrétiens,
une séparation plus radicale dames patriciennes, esclaves,
entre croyance et foi, entre étrangers de Palestine ou
social et individuel. Quand d’Ionie, sans distinction de
l’Évangile recommande la sexe, de classe ni de langue, ne
dissociation entre Dieu et cessant de focaliser leur regard
César, il distingue la personne et leur attention fervente sur
de son collectif. L’Empereur l’image de la victime innocente,
maîtrise le nous ; Dieu en partageant une hostie
s’adresse au moi, source symbolique plutôt que les
ponctuelle sans espace de ma membres épars d’un lynchage.
Foi en Lui. Je dois l’impôt à la Si nous comprenions ce geste,
société dominée par le pouvoir ne changerions-nous pas de
impérial ; je sauve mon âme. société ?
136

Que l’Église ait réussi ou non un mille qui avouât tuer pour sa
tel pari, l’histoire, trop brève, Foi. La violence revient toujours
peut-elle en juger ? Je sais parmi nous et aussi bien parmi
seulement que toute société, le divin. Nous vivons,
celle-là autant que les autres, aujourd’hui encore, le retour de
se trouve, aussitôt que née, ces revenants.
empêtrée dans la nécessité de
Considérer la religion comme
gérer sa violence inévitable.
un fait de société ou d’histoire,
Aucun collectif n’échappe à
loin de caractériser une
cette loi d’airain, pas même
approche scientifique, fait, au
celui des théologiens,
contraire, partie de la
philosophes, scientifiques,
régression contemporaine vers
historiens, académiciens… aussi
les religions sacrificielles de
persécuteur que n’importe quel
l’Antiquité. Le savoir, là,
groupe en fusion. La puissance
s’adonne au même
sociétaire de la violence et du
aveuglement que les médias ;
sacré l’emporte sur les vertus
dans les deux cas, Dieu mort,
douces des individus et dévaste
nos conduites reviennent aux
vite la communion des saints.
religions archaïques ; depuis
Peut-elle échapper au
que le monothéisme se tait,
mimétisme, à la rivalité, aux
nous errons, redevenus
mécanismes aveugles du bouc
polythéistes, parmi les
émissaire ? Ceux qui
revenants du sacrifice humain.
prétendent se battre pour Dieu
tombent alors et n’assassinent Pourquoi tous les jours, à midi

que pour un fantôme de César. et le soir, la télévision

Au milieu des guerres de représente-t-elle avec tant de

religion, Montaigne notait qu’il complaisance cadavres, guerres

ne trouvait pas un furieux sur et attentats ? Parce que le


137

public se coagule par la vue du insupportable, le monothéisme


sang versé. Rats pour les porte la critique la plus
autres hommes, nous autres, dévastatrice des polythéismes
hommes, béons devant la courants, sans cesse revenants
violence et ses revenants. Le dans leur fatalité. Le saint
polythéisme sacrificiel colle si critique le sacré, comme le
bien le collectif que je monothéisme l’idolâtrie.
l’appellerais volontiers le «
Vous décollez la foi des crimes
naturel du culturel ». Les
de l’histoire, y compris de ceux
prophètes écrivains d’Israël
perpétrés au nom du divin, non
connaissaient bien ce retour
pas pour justifier la religion,
fatal du sacrifice, dans une
mais pour rétablir la vérité,
société qui n’arrive point à vivre
dont voici le critère : ne jamais
la difficulté d’un monothéisme
verser le sang.
qui l’en prive.
Méditant ainsi, vous portez la
Comme aux temps bibliques,
raison en des matières de
cela nous arrive aujourd’hui. Un
violence qui semblaient
prophète seul peut le rappeler ;
l’exclure. Elle n’appartient, de
nous devons vous écouter.
droit, à personne, à aucun
Il y a deux sortes de religions. savoir, à nulle institution, mais
Presque naturellement, les se conquiert seulement
cultures engendrent celles du d’exercice. Il paraît, certes, aisé
sacré, qui se distinguent de de la pratiquer dans les
celles que ces collectifs mêmes sciences exactes ; or vous
peuvent à peine tolérer parce l’introduisez dans des domaines
que, saintes, elles interdisent le autrement difficiles. On entend
meurtre. Rare et difficile à vivre souvent, aujourd’hui, réduire la
par son exception religion à un fidéisme fade et
138

irrationnel en dehors de tout mouvements de foule, les


rationalisme ; comme si, venue révolutions ; mais nous
d’un coeur au douceâtre quittons un exercice qui, fermé
écoeurant, la foi tournait le dos sur soi, resterait vain, pour
à la raison. Vous renouez, au mieux comprendre, grâce à
contraire, avec la plus haute de vous, l’horreur de notre
nos traditions où l’une cherche xxe siècle ; elle a renouvelé, de
l’autre en les réconciliant. même, la psychologie : si le
triangle à la française rafraîchit
Vous le faites, de plus, en
la lecture des romans du
suivant un chemin d’une
xviiie et du xixe siècles et leurs
longueur peu commune. Je
mensonges romantiques, nous
mesure l’importance de votre
quittons aussitôt un exercice
hypothèse avec l’extension de
qui, fermé sur soi, resterait
son rayonnement ; elle a
vain, car votre mimétisme
renouvelé, en effetla critique
permet de mieux interpréter le
littéraire : j’ai tenté de faire
narcissisme, les relations
entendre, en commençant, que
amoureuses, l’homosexualité,
nous lisons désormais
de relire même la psychanalyse
autrement la tragédie, grecque,
; de mieux comprendre aussi
renaissante et classique ; mais
les mécanismes du désir et de
nous quittons un exercice qui,
la concurrence qui
fermé sur soi, resterait vain,
modèlent notre économie ;nous
pour mieux penser, grâce à
entrons plus avant, grâce à
vous, les tragédies que nous
vous, dans l’anthropologie,
vivons ; elle a
l’histoire des religions et la
renouvelé l’histoire : nous
théologie, en redonnant son
interprétons désormais
importance au sacrifice, en
autrement la fondation de
resituant les religions juive et
Rome, les conflits, les
139

chrétienne par rapport aux chrétienne, la dernière des


divers polythéismes ; mais grandes mystiques, l’ultime
nous quittons aussitôt un philosophe pour qui l’héroïsme
exercice qui, fermé sur soi, et la spiritualité avait autant,
resterait vain, pour mieux saisir sinon plus de densité que la vie
enfin les monotones même. Je me souviens de
nouveautés de l’âge réunions, en Californie, entre
contemporain. Pour Allemands et Français, ennemis
comprendre notre temps, nous en des temps effacés de nos
disposons non seulement du mémoires, devenus amis
nouveau Darwin de la culture, depuis, qui avouaient de
mais aussi d’un docteur de concert avoir commencé à
l’Église. méditer sous l’égide douce de
Votre pensée, décidément, me cette héroïne qui voua son
ramène toujours aux temps existence à la sainteté.
présents. J’ai hâte de les
De fait, pourrions-nous vivre,
rejoindre.
écrire et penser seuls, nous
Je disais tantôt que l’espace autres faibles mâles, sans
nous sépare et nous unit ; mais d’autres saintes femmes ?
le temps aussi nous rassemble Votre oeuvre, Monsieur,
; nous naquîmes tous deux à la convertit qui la lit à la certitude
pensée par celle d’une femme du péché originel, dont la
dont je veux évoquer la vie et constante traînée dans
le visage par reconnaissante l’histoire, nous oblige sans
piété ; sensiblement au même cesse à gérer parmi nous une
âge, nous lûmes Simone Weil ; violence irrépressible. Face à ce
son génie et les atrocités de la modèle dur, votre vie
guerre firent de cette femme s’accompagna d’une deuxième
inspirée, juive à la fois et image féminine, plus douce,
140

plus aimable, irremplaçable. la fidélité, la constance et la


Outre ses douze apôtres mâles, force, le conseil, la justesse de
Jésus-Christ lui-même eut jugement, la finesse dans
besoin de saintes femmes, et, l’appréhension des sentiments
parmi elles, d’une Marie- d’autrui, le dévouement, le
Madeleine, pour répandre sur ressaut vif après l’épreuve, le
lui le parfum, et d’une Marthe dynamisme et la lucidité devant
pour le quotidien des jours. les choses de la vie. Sans vous,
Voilà deux figures de sans votre présence inimitable,
l’inspiratrice nécessaire à qui se peu de gens le savent, qu’ils
jette, assoiffé, par le désert de l’apprennent aujourd’hui, les
l’oeuvre. La verseuse du nard grandes pensées que j’ai la
précieux, accapareuse de la lourde charge de louer ce soir,
meilleure part, reçut, dans n’auraient sûrement pas vu le
l’histoire sainte, assez d’éloges jour. Avec vos enfants et vos
et fit le modèle d’assez de petits-enfants, dont je vois en
représentations profanes pour ce moment les visages amis,
que je la passe sous silence au vous incarnez, de plus, le lien
profit, enfin, de la seconde, entre ce qui se passa naguère
dont nul ne dit mot. Toujours à dans le Moyen Ouest de votre
la peine, jamais à l’honneur. Nouveau Monde et ce qui se dit
aujourd’hui, à Paris, en des
Je la vois américaine, porteuse
habits antiques. Voici : un
d’une tradition chrétienne aussi
citoyen français, professeur à
ancienne que l’immigration,
Stanford University, reçoit sous
solide, loyale, généreuse et
la Coupole, l’une des plus
douce, retirée. Vous incarnez,
anciennes institutions de
Madame, les vertus que nous
France, un citoyen américain,
admirons, depuis des siècles,
français de naissance,
dans la culture de votre pays :
141

professeur lui-même dans la s’ouvre sur cette musique


même université. Il ne s’agirait métisse, multipliant les
que d’un double, si vous chanterelles et les passerelles
n’assistiez point à la séance et entre les cultures. Madame,
complétiez le triangle, pour une j’entends depuis longtemps le
nouvelle et miraculeuse fois pont de votre voix.
sans mimétisme ni rivalité.
Monsieur, je reviens vers vous,
Vous liez nos deux personnes,
qui avez inventé l’hypothèse la
par l’affection que je porte à
plus féconde du siècle. J’ai pris
votre mari et à vous-même ;
un temps de repos en ces
vous liez aussi nos deux pays,
confidences parce que j’avais
dont je célèbre l’infiniment
du mal à soutenir l’élévation
précieuse amitié. Qu’elle ait
vers la grandeur des choses
connu l’épreuve de nuages
que vous dites. À retenir une
passagers, la plus serrée des
seule des leçons que j’en tire,
relations le dirait d’elle-même.
voici celle sur laquelle je
Sur vos épaules repose le pont voudrais finir.
du monde. La paix règnera,
Des « lambeaux pleins de sang
l’humanité se construira,
et des membres affreux » dont
mêlée, moins à l’aide des
j’agitais l’horreur en mon
traités entre nations, moins par
commencement, vous avez
la politique, le droit ou les
généralisé les actions
échanges commerciaux que par
sacrificielles auxquelles
d’humbles liens amoureux
s’adonnent les cultures
tissés par les femmes aux
connues. L’hémoglobine
mariages sans frontières. Alors,
dégouline du corps des victimes
dans leur foyer sonnent, ô
humaines et animales, bref de
merveille, deux langues
ces meurtres collectifs dont
maternelles. L’harmonie à venir
142

vous nous dégoûtez découle la morale. Rationalisme


irrémédiablement. Or, en sublime.
jugeant la victime coupable et
Du coup, vous m’avez appris
en innocentant les assassins,
ceci, qui a changé ma vie, de
les fables qui les relatent
distinguer le saint du sacré, ni
mentent. Vous nous enseignez
plus ni moins que le faux du
donc que la fausseté
vrai. Théologie, éthique,
accompagne le crime et le
épistémologie parlent, en trois
mensonge l’homicide, l’un
disciplines, d’une seule voix.
suivant l’autre comme son
ombre. Du sang versé naissent Écoutez la circonstance qui

des dieux, antiques ou m’advint voici quelque quinze

contemporains, toujours faux. ans, et qui, à mes yeux, passa

Jumeaux, l’erreur et le meurtre pour une expérience quasi

demeurent inséparables. cruciale du bien fondé de votre

Sublime rationalisme. hypothèse. Jamais je n’eus


devant moi des étudiants
Inversement, innocenter la
comparables aux prisonniers de
victime amène à ne pas tuer en
Fresnes ou de la Santé ;
dévoilant la vérité. Cherches-tu
contrairement aux élèves
le vrai ? Tu ne tueras point ! La
ordinaires, ils disposent de
révélation d’innocence
temps et donc forcent de
équivaut, alors, à une
mutisme et d’attention. À l’aise
généalogie de la vérité, à qui
en ces lieux, j’avais en commun
l’Occident, par le monothéisme
avec eux d’avoir vécu, de
juif, la géométrie grecque et le
longues années d’adolescence,
christianisme judéo-grec, tous
pensionnaire en des lycées aux
trois critiques des mythes, doit
architectures pareilles à leur
sa maîtrise unique des raisons
enfermement. Ils me
et des choses. De la vérité
143

demandèrent, un jour, de Le saint se distingue du sacré.


parler du sacré. L’un d’eux Le sacré tue, le saint pacifie.
protestait, prétendant que, Non violente, la sainteté
rouleau d’écriture, ciboire, s’arrache à l’envie, aux
pierre noire… il se réduisait à jalousies, aux ambitions vers
une simple convention. les grandeurs d’établissements,
Arbitraire ou non, c’était la asiles du mimétisme et ainsi
question. Fidèle à une méthode nous délivre des rivalités dont
dont l’exigence refuse le cours l’exaspération conduit vers les
magistral, je leur demandai de violences du sacré. Le sacrifice
se préparer à y répondre en dévaste, la sainteté enfante.
méditant sur la mort quelques
Vitale, collective, personnelle,
instants, à part. Me reprenant
cette distinction, recouvre celle,
vite, je rectifiai ma proposition,
cognitive, du faux et du vrai. Le
ajoutant : non seulement la
sacré unit violence et
mort que vous et moi allons
mensonge, meurtre et fausseté
subir, de toute nécessité, mais
; ses dieux, modelés par le
aussi celle que l’on peut
collectif en furie, suent le
donner, par accident ou de
fabriqué. Inversement, le saint
volonté. Alors, trois d’entre eux
accorde amour et vérité.
se levèrent soudain, comme
Surnaturelle généalogie du vrai
piqués d’un aspic : « Moi, moi,
dont la modernité ne se doutait
je sais le sacré ! ». Il s’agissait
pas : nous ne disons vrai que
des condamnés pour meurtre.
d’innocemment aimer ; nous ne
Jamais je n’obtins un silence
découvrirons, nous ne
aussi contemplatif, extatique et
produirons rien qu’à devenir
prolongé devant l’évidence. Les
des saints.
faux dieux nous visitaient.
144

Au cours de réunions où je vous dites dans vos livres est


regrettais que vous n’assistiez vrai ; ce que vous dites fait
pas, notre compagnie hésita, vivre.
récemment, à définir le mot
Le sacrifice épuisé, nous ne
religion. Vous en dites deux
nous battrons plus que contre
familles : celles qui unissent les
un ennemi : l’état où nous
foules forcenées autour de rites
désirions réduire l’ennemi
violents et sacrés, générateurs
lorsque, jadis, nous nous
de dieux multiples, faux,
battions. Alors, seul adversaire
nécessaires ; celle qui, révélant
en ce nouveau combat, la mort,
le mensonge des premières,
vaincue, laisse place à la
arrête tout sacrifice pour jeter
résurrection ; à l’immortalité.
l’humanité dans l’aventure
contingente et libre de la Madame la Secrétaire

sainteté, pour lancer l’humanité perpétuelle, permettez-moi

dans l’aventure contingente et maintenant, comme entorse au

sainte de la liberté. règlement, de quitter, sur le


mot terminal, le vouvoiement
Je veux finir par ce que sans
cérémoniel. En notre
doute peu de gens peuvent ouïr
compagnie, fière de te compter
de leur vivant ; que je n’ai
parmi nous, entre, maintenant,
encore prononcé devant
mon frère.
personne : Monsieur, ce que
145

ANEXO 2
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