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Caro Eduardo,
Para o meu texto, a que o Augusto Joaquim, chama orgânico, não estão. Não
cheguei a essa conclusão, deduzindo premissas, mas experimentando,
nomeadamente, participando em actos como os que me propõe, aceitando a
tradução de livros meus, deixando-me fotografar e entrevistar, conversando para
públicos anónimos. Cheguei mesmo a dar autógrafos.
Nas experiências que fiz, no meio literário, não encontrei qualquer caminho para o
meu texto. A falta de humanidade é de regra, ninguém sabe por que escreve, a
minha obra é apresentada como um meteoro desconhecido, nunca ninguém pediu a
quem sabe um pouco mais sobre ela para a apresentar, eu própria estou, desde
sempre catalogada como inacessível, nunca encontrei ninguém que estivesse
minimamente interessado em escutar os problemas que me punha a obra que
nascia de mim e à qual eu sempre estive firmemente disposta a dar corpo.
Mas o mais grave é a situação em que sempre fui colocada. Eu que sou frontal,
gosto de conversar e rir, adoro facécias, antes mesmo de abrir a boca, já a minha
palavra estava inscrita numa rede de total incompreensão. Ninguém imagina o
esforço físico que me foi pedido. Gostaria de ver o Eduardo a pregar o seu
materialismo ao papa. Talvez compreendesse. E se preparava cuidadosamente as
minhas intervenções era para poder situar a minha palavra, noutro lugar que não
fosse o da afasia. Nunca imaginará o combate que tive de travar para que nem uma
sombra de ressentimento (e de moral) entrasse na minha escrita, tal era a
desumanidade e a imbecilidade a que tive de assistir. Sinto uma alegria profunda, ao
pensar que nas centenas de páginas que publiquei não há traço de ressentimento,
nem de esperança vã, nem de moral grandiloquente.
No quadro da literatura «nacional», serei sempre a esotérica de serviço. A minha
literatura e a dos que escrevem no campo em que me situo será sempre marginal,
intemática, incompreensível. Somos quatro ou cinco, ao lado de todos os outros,
que têm por si o essencial dos meios de comunicação, as cadeiras universitárias, o
establishment institucional e cultural, os ícones publicitários, os dinheiros do Estado
e do mercado (fazendo as contas por alto, devo ter ganho quinhentos escudos por
dia, nestes quarenta anos, ao serviço da literatura). Esta cultura pura e
simplesmente não quer a minha obra, não sabe o que fazer dela, excepto em
termos privados. O número de pessoas “cultas” da nossa praça que a lêem
(algumas citaram-me páginas inteiras de cor), e são incapazes de a nomear no
espaço público é propriamente aterrador. E, mesmo em privado, procuram silenciar
o pensamento que ela veicula. Ou seja, eles próprios, no sistema da dupla cultura,
colocam aquele texto na esfera do privado, não abrindo espaço para que eu possa
intervir, não como marginal, mas como ser humano que criou uma perspectiva que,
em privado, lhes é útil.
Mas essa não-aceitação vai mais longe: não houve prémio que recebesse (o último
vai para 10 anos), convite que tenha aceite que, posteriormente, quando não no
próprio momento, não tivesse sido objecto de declarações de «encapotada
rejeição». Uns queixam-se de que tiveram de lutar muito para que me fosse dado X
prémio, outro acha que não era evidente que eu devesse ser convidada, aqueloutro
entende que me foram dadas linhas a mais no dicionário. Ou seja, queixam-se à
posteriori do trabalho que lhes dera, como se não fosse sua obrigação estrita bater-
se, a meu lado, ombro a ombro, por uma obra que nos ajudava a viver melhor e com
menos impostura.
Estou a fazer setenta anos. Com recta intenção, fiz o meu trajecto pela floresta de
enganos da literatura. Nem sempre consegui certamente a melhor postura. Seja
como for, saí incólume, mas sem nada deixar de meu nesse espaço. Porque para
deixar seria preciso que os outros me quisessem receber. É, pois, território a que
não voltarei. Continuarei a escrever e a encontrar-me com legentes. Está quase tudo
por fazer. Sinto que é preciso pegar nas coisas simples (porque se conta, porque vai
o homem para onde a escrita for, porque cria a linguagem estética caminhos
transitáveis, etc…), e começá-las pelo seu começo. Creio que os outros escritores
«do meu ramo» já conhecidos ou ainda no começo, aqui e no Brasil, vão ter de
pensar no modo como criar um espaço de vida, que não seja marginal a nada, mas
um lugar real de escrita e de leitura.
Caro Eduardo,
espero que compreenda que só lhe pude dirigir esta carta pela muita amizade que
lhe tenho e porque toda ela transpira comunicação aberta com o interlocutor.