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M A RCOS B A GN O , t r adut or , escr it or e lingüist a, é Dout or em Filologia e

L íngua Por t uguesa pela Univer sidade de São Paulo (USP). Pr ofessor de
L ingüíst ica do I nst it ut o de L et r as da Univer sidade de Br asília, publicou A
língua dc Eulál ia: novel a soci oli ngüística (Ed. Cont ext o, 1997; em 13ª ed.);
Pr econcei to l i ngüísti co: o que é, como se faz (Ed. L oyola, 1999; em 15ª ed.);
Dr amáti ca da l íngua por tuguesa (Ed. L oyola, 2000; em 2ª ed.); Por tuguês ou
br asi l ei r o? Um convite à pesqui sa (Par ábola Ed., 2001; em 2ª ed.); L íngua
mater na: l etr amento, var i ação e ensino (Par ábola Ed., 2002). Além desses
t ít ulos, é aut or de duas dezenas de obr as lit er ár ias. Recebeu em 1988 o
Pr êmio Nest lé de L it er at ur a Br asileir a e, em 1989, o Pr êmio Car los
Dr ummond de Andr ade de Poesia, ent r e out r os. Selecionou e t r aduziu os
ar t igos r eunidos em Nor ma li ngüísti ca (Ed. L oyola, 2001). Tr aduziu Hi stór ia
conci sa da l ingüísti ca, de Bar bar a Weedwood (Par ábola Ed., 2002), além de
dezenas de obr as cient íficas, filosóficas e lit er ár ias de aut or es como Balzac,
Volt air e, H. G. Wells, Sar t r e, Oscar Wilde, et c. Vem se dedicando à
invest igação das implicações sociocult ur ais do conceit o de nor ma, sobr et udo
no que diz r espeit o ao ensino de por t uguês nas escolas br asileir as.

Ob r as d o Au t or :
A invenção das hor as (cont os), Ed. Scipione, 1988 (I V Pr êmio Bienal Nest lé
de L it er at ur a Br asileir a)
O papel r oxo da maçã (infant il), Ed. L ê, 1989 (Pr êmio “João de Bar r o” de
L it er at ur a I nfant il)
Um céu azul par a Clementi na (infant il), Ed. L ê, 1991
Fr evo, amor & gr avi ol a (juvenil), Ed. At ual, 1991
Amor , amor a (juvenil), Ed. Bagaço, 1992
Os nomes do amor (juvenil) (co-aut or ia com St ela M aris Rezende), Edit or a
M oder na, 1993
A vingança da cobr a (juvenil), Ed. Át ica, 1995
Dia de br anco (juvenil), Ed. L ê, 1995
M iguel, o cr avo & a r osa (infant il), Ed. L ê, 1995
Rua da Sol edade (cont os), Ed. L ê, 1995 (Pr êmio Est ado do Par aná 1989)
A bar ca de Zoé (infant il), Ed. For mat o, 1995
M ir abíli a (cont os), Edit or a Didát ica Paulist a, 1996
Uma vitór ia di fer ente (juvenil) Ed. L ê, 1997
Unhas de fer r o (juvenil), Ed. L ê, 1997
A L íngua de Eul áli a (novela sociolingüíst ica), Ed. Cont ext o, 1997
Pesquisa na escola — o que é, como se faz, Ed. L oyola, 1998
M achado de Assi s par a pr i nci pi antes, Ed. At ica, 1998
Pr econcei to l i nguísti co — o que é, como se faz, Ed. L oyola, 1999
M inimi r im e o pl aneta que encol heu (infant il), Ed. lcone, 2000
O Pr ocesso de I ndependênci a do Br asi l, Ed. At ica, 2000
Dr amáti ca da língua por tuguesa, Ed. L oyola, 2000
Por tuguês ou br asi leir o? Um convite à pesqui sa, Par ábola Edit orial, 2001
Nor ma li ngüísti ca, Ed. L oyola, 2001
L íngua mater na: l etr amento, var i ação e ensi no, Par ábola Edit orial, 2002
O espel ho dos nomes (juvenil) Át ica, 2002
M ar cos Bagno

Pr econ cei t o l i n gü í st i co
o q u e é, c o m o se f a z
C O N TR A C APA
Diz-se que o “brasileir o não sabe Por t uguês” e que “Por t uguês é
muit o difícil”. Est es são alguns dos mit os que compõem um
pr econceito muito pr esent e na cult ura br asileira: o lingüíst ico. Tudo
por causa da confusão que se faz ent r e língua e gr amát ica
nor mat iva (que não é a língua, mas só uma descrição par cial dela).
Separ e uma coisa da out ra com est e livr o, que é um achado.
Revist a Nova Escol a, maio de 1999.

“Eu gost ar ia que alguém já t ivesse escr ito um livr o como est e sobr e
a língua inglesa”.
Pr of. Gr egor y Guy, Uni ver si dade de Yor k (Canadá)

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E d i ções L oy ol a

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escr i ta da Editora.

I SBN: 85-15-01889-6

48ª e 49ª edição: junho de 2007

© EDI ÇÕES L OYOL A, São Paulo, Br asil, 1999


Sedul e curavi humanas actiones non r i der e,
non l uger e, neque detestar e, sed i ntel leger e.
SPI NOZA

(Tenho-me esfor çado por não r ir das ações humanas,


por não deplor á-las nem odiá-las, mas por ent endê-las)
Su m á r i o

P RI M EI RAS PAL AVR AS .................................................................... 9

I . A M I T OL OGI A D O PR ECON CEI TO L I N GÜ Í ST I CO ........................... 13


Mito n° 1
“A língua por t uguesa falada no Br asil apr esent a uma unidade
sur pr eendent e” ............................................................................. 15
Mito n° 2
“Br asileir o não sabe por t uguês” / “Só em Por t ugal se fala bem
por tuguês” ..................................................................................... 20
Mito n° 3
“Por t uguês é muit o difícil” ........................................................... 35
Mito n° 4
“As pessoas sem inst r ução falam tudo er r ado” ........................... 40
Mito n° 5
“O lugar onde melhor se fala por t uguês no Br asil é o M ar anhão”
........................................................................................................ 46
Mito n° 6
“O cert o é falar assim por que se escr eve assim” ......................... 52
Mito n° 7
“É preciso saber gramát ica par a falar e escrever bem” .............. 62
Mito n° 8
“O domínio da nor ma cult a é um instr ument o de ascensão social”
........................................................................................................ 69

I I . O CÍ RCU L O VI CI OSO D O PRECON CEI T O L I N GÜ Í ST I CO .............. 73


1. Os t r ês element os que são quat r o ............................................ 73
2. Sob o impér io de Napoleão ....................................................... 79
3. Um fest ival de asneir as ............................................................ 83
4. Beethoven não é dançado ......................................................... 94
I I I . A D ESCON ST RU ÇÃO D O PR ECON CEI T O L I N GÜ Í ST I CO ........... 105
1. Reconhecimento da cr ise ........................................................ 105
2. M udança de at itude ................................................................ 115
3. O que é ensinar por t uguês ..................................................... 118
4. O que é er r o ............................................................................ 122
5. Então vale tudo ....................................................................... 129
6. A paranóia or t ogr áfica ........................................................... 131
7. Subver t endo o preconceit o lingüíst ico ................................... 139

I V . O P R ECON CEI T O CON T RA A L I N GÜ Í ST I CA E OS L I N GÜ I ST AS


.................................................................................................................. 147
1. Uma “r eligião” mais velha que o cr ist ianismo ...................... 147
2. Por t uguês or t odoxo? Que língua é essa? ............................... 154
3. Devaneios de idiot as e ociosos ............................................... 157
4. A quem int eressa calar os lingüist as? ................................... 161

A N EXO — C AR T A D E M ARCOS B AGN O À R EVI ST A V EJ A ............. 167

R EF ERÊN CI AS ................................................................................. 185

Nota da digitalizadora: A n u m er ação de págin as aqu i r efere-se a edição or iginal, a


paginação or iginal, qu e encont r a-se in ser ida ent re colchetes no texto.
Entend e-se que o texto que está antes d a numeração entre colchetes é o que pertence aquela
página e o texto que está após a numeração pertence a página seguinte
.
Pr i m ei r a s pa l a vr a s

Existe uma regr a de our o da L ingüíst ica que diz: “só exist e
língua se houver ser es humanos que a falem”. E o velho e bom
Ar ist óteles nos ensina que o ser humano “é um animal polít ico”.
Usando essas duas afir mações como os t er mos de um silogismo
(mais um present e que ganhamos de Arist ót eles), chegamos à
conclusão de que “tr at ar da l íngua é t r at ar de um tema pol íti co”, já
que também é t r atar de seres humanos. Por isso, o leit or e a leit or a
não dever ão se espantar com o t om mar cadament e politizado de
muit as de minhas afir mações. É proposit al; aliás, é inevit ável.
Temos de fazer um gr ande esfor ço par a não incor r er no er r o milenar
dos gr amát icos t r adicionalist as de estudar a língua como uma coisa
mor t a, sem levar em consider ação as pessoas vivas que a falam.
O pr econceit o lingüíst ico está ligado, em boa medida, à
confusão que foi cr iada, no cur so da hist ór ia, ent re l íngua e
gr amáti ca nor mati va. Nossa tarefa mais ur gent e é desfazer essa
confusão. Uma receit a de bolo não é um bolo, o molde de um vest ido
não é um vest ido, um mapa-múndi não é o mundo... Também a
gr amát ica não é a língua.
A língua é um enor me i ceber g flut uando no mar do tempo, e a
gr amát ica nor mativa é a t ent ativa de descrever [ p g. 09] apenas
uma par cela mais visível dele, a chamada nor ma cul ta. Essa
descrição, é clar o, t em seu valor e seus mérit os, mas é par cial (no
sentido liter al e figur ado do t er mo) e não pode ser autor it ar iament e
aplicada a todo o resto da língua — afinal, a pont a do i ceber g que
emer ge r epresent a apenas um quinto do seu volume tot al. M as é
essa aplicação aut or it ár ia, int oler ante e r epressiva que impera na
ideologia gerador a do preconceito lingüístico.
Você sabe o que é um i gapó? Na Amazônia, i gapó é um t r echo
de mat a inundada, uma gr ande poça de água est agnada às mar gens
de um r io, sobret udo depois da cheia. Par ece-me uma boa imagem
par a a gr amática nor mativa. Enquanto a l íngua é um r io caudaloso,
longo e largo, que nunca se detém em seu cur so, a gr amáti ca
nor mativa é apenas um igapó, uma gr ande poça de água parada,
um char co, um brejo, um t er r eno alagadiço, à mar gem da língua.
Enquant o a água do rio/língua, por est ar em moviment o, se r enova
incessant emente, a água do igapó/gr amát ica nor mat iva envelhece e
só se r enovar á quando vier a pr óxima cheia. M eu objetivo
at ualment e, junto com muit os out ros lingüist as e pesquisadores, é
aceler ar ao máximo essa próxima cheia...
Este livr o t r az os pr imeiros result ados, sempre pr ovisór ios, das
r eflexões que venho fazendo sobre o t ema do preconceit o lingüíst ico.
Ele r eúne as principais conclusões a que cheguei, conclusões que
pude compar tilhar e discut ir com as pessoas que me ouvir am falar
nas diversas palest r as que dei ao longo de 1998.
Essas palest ras, e o livr o que delas nasceu, só foram possíveis
gr aças ao esfor ço e ao car inho das seguint es [ p g. 10] pessoas:
Ângela Paiva Dionísio, Ar iovaldo Guir eli, At aliba de Castilho,
Cláudia M aia Ricar do, Dor is da Cunha, Ésio M acedo Ribeir o,
I r andé Antunes, José L uís Falotico Cor rêa, Judit h H offnagel,
L our enço Chacon, L ucila Nogueir a, M ar çal Aquino, M ar cos
M ar cionilo M ar ia Amélia Almeida, M ar ia M ar t a Scher re, M ar ia da
Piedade Sá, M arígia Viana, Rosely Falotico Cor r êa e Sonia
Alexandre.
Est a segunda edição t r az mudanças bast ante significat ivas em
compar ação com a pr imeir a: alguns t r echos for am eliminados,
out ros foram acr escent ados, muit os sofr er am pr ofunda
r efor mulação. I sso se deve à minha vont ade de mant er o livr o
sempre at ualizado com a evolução de minha pr ópria maneir a de ver
as coisas e sint onizado com as cr ít icas, sugest ões e coment ár ios que
o t r abalho r ecebeu da par te de leit or es e leit or as at entos e dispost os
a colaborar na divulgação dest as idéias.
Agr adeço muito especialment e a M anoel L uiz Gonçalves
Cor r êa, que me ajudou a prepar ar esta r eedição, aler t ando-me par a
deter minadas inconsist ências teór icas e conceit uais, nascidas de
uma t entativa de simplificar (t alvez demais) os conceitos da
L ingüíst ica par a t or ná-los acessíveis a um público mais amplo. É
clar o que ainda sobr am falhas e imper feições — de minha int eir a
(ir)r esponsabilidade — e por isso convido os que desejar em
par ticipar dest a lut a que se engajem nela enviando-me suas
opiniões.
A capa dest e livr o t em uma hist ór ia que mer ece ser cont ada. As
pessoas ali fotogr afadas são minha sogra, Alice Fr ancisca, meu
sogro, José Alexandr e, e meu cunhado [ p g. 11] mais novo, Sóstenes,
cer ca de vint e anos at r ás. Como est e é um livr o que t r at a de
discr iminação e exclusão, decidi homenagear meus sogr os que são,
como cost umo dizer , um “pr at o cheio” par a alguns dos pr econceit os
mais vigor osos da nossa sociedade: negr os, nor destinos, pobres,
analfabet os. Alice Fr ancisca t ambém car r ega o est igma de ser
mulher numa cult ur a ent ranhadamente machist a. Apr ender a
amar est as pessoas pelo que elas são, deixando de lado t odos os
r ót ulos discr iminadores que tent am classificá-las em cat egor ias
supost amente infer iores às que eu e pessoas de minha ext r ação
social ocupamos, t em sido uma lição fundament al par a t oda a
minha vida pessoal e pr ofissional.
É com este amor que me defendo das acusações que às vezes
r ecebo de ser aut or de um livro “demagógico”. Não é demagogia: é
opção conscient e, polít ica, declar adament e parcial. Peço
simplesmente aos leit or es e leit or as que meditem sobr e est a
sit uação que t ant o me angust ia: homenagear com um livr o pessoas
que jamais poder ão lê-lo. I sso explica, decer t o, a grande dose de
indignação que em cer tos momentos passa à fr ent e da reflexão
cient ífica ser ena e me faz assumir o t om apaixonado de quem não
t oler a nenhum t ipo de int oler ância, pr incipalmente quando é fr ut o
de uma visão de mundo estr eit a, inspir ada em mit os e super st ições
que têm como único objetivo per pet uar os mecanismos de exclusão
social.

M ARCOS B AGNO
mbagno@t er r a.com.br
[ p g. 12]
I
A m i t ol ogi a
d o pr econ cei t o l i n gü í st i co

Par ece haver cada vez mais, nos dias de hoje, uma for t e
t endência a lut ar cont ra as mais var iadas for mas de preconceit o, a
most r ar que eles não t êm nenhum fundamento racional, nenhuma
just ificativa, e que são apenas o r esult ado da ignor ância, da
int oler ância ou da manipulação ideológica.
I nfelizment e, por ém, essa t endência não t em at ingido um t ipo
de preconceit o muit o comum na sociedade br asileir a: o pr econceito
l i ngüísti co. M uit o pelo cont r ár io, o que vemos é esse pr econceit o ser
aliment ado diar iament e em pr ogr amas de t elevisão e de r ádio, em
colunas de jor nal e r evista, em livros e manuais que pr et endem
ensinar o que é “cer to” e o que é “er r ado”, sem falar , é clar o, nos
inst r ument os t radicionais de ensino da língua: a gr amát ica
nor mat iva e os livros didát icos.
O pr econceito lingüístico fica bast ant e clar o numa série de
afir mações que já fazem par te da imagem (negat iva) que o
br asileir o t em de si mesmo e da língua falada por aqui. Out r as
afir mações são até bem-int encionadas, mas mesmo assim compõem
uma espécie de “pr econceito positivo”, que t ambém se afasta da
r ealidade. Vamos examinar [ p g. 13] algumas dessas afir mações
falaciosas e ver em que medida elas são, na ver dade, mit os e
fantasias que qualquer análise mais rigorosa não demor a a
der rubar .
Estou convidando você, a part ir de agor a, a fazer junto comigo
um pequeno passeio pela mitol ogi a do pr econcei to l ingüísti co.
Quando o passeio acabar , ist o é, quando t iver mos ter minado de
examinar os principais mitos, vamos t ent ar r efletir juntos par a
encont r ar os meios mais adequados de combat er esse pr econceit o no
nosso dia-a-dia, na nossa at ividade pedagógica de pr ofessor es em
geral e, par t icular mente, de pr ofessor es de língua por t uguesa. [ p g.
14]
M i t o n° 1
“ A l í n gu a por t u gu esa f a l a d a n o B r a si l
a p r esen t a u m a u n i d a d e su r pr een d en t e”

Este é o maior e o mais sér io dos mitos que compõem a


mit ologia do pr econceit o lingüístico no Brasil. Ele est á t ão
ar r aigado em nossa cult ur a que até mesmo int elect uais de renome,
pessoas de visão cr ítica e ger almente boas obser vador as dos
fenômenos sociais br asileir os, se deixam enganar por ele. É o caso,
por exemplo, de Dar cy Ribeiro, que em seu últ imo grande est udo
sobre o povo br asileir o escr eveu:

É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os


brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos lingüística e culturalmente e
também um dos mais integrados socialmente da Terra. Falam uma mesma língua,
sem dialetos [grifo meu, Folha de S. Paulo, 5/2/95].

Existe também t oda uma longa t r adição de est udos filológicos e


gr amat icais que se baseou, dur ant e muito t empo, nesse
(pr e)conceit o ir real da “unidade lingüíst ica do Br asil”.
Esse mito é muit o prejudicial à educação por que, ao não
r econhecer a ver dadeir a diver sidade do por t uguês falado no Br asil,
a escola t ent a impor sua nor ma lingüística como se ela fosse, de
fat o, a língua comum a todos os 160 milhões de br asileir os,
independent emente de sua idade, de sua or igem geogr áfica, de sua
sit uação socioeconômica, de seu gr au de escolar ização et c. [ p g. 15]
Or a, a ver dade é que no Br asil, embora a língua falada pela
gr ande maior ia da população seja o port uguês, esse por t uguês
apresent a um al to gr au de diver si dade e de var iabi li dade, não só
por causa da grande extensão t er r itor ial do país — que ger a as
difer enças r egionais, bast ant e conhecidas e t ambém vítimas,
algumas delas, de muit o pr econceit o —, mas pr incipalmente por
causa da tr ágica injust iça social que faz do Brasil o segundo país
com a pior dist ribuição de renda em t odo o mundo. São essas gr aves
difer enças de status social que explicam a existência, em nosso país,
de um ver dadeiro abismo lingüíst ico ent re os falantes das
variedades não-padr ão do port uguês br asileir o — que são a maior ia
de nossa população — e os falantes da (supost a) var iedade cult a, em
geral mal definida, que é a língua ensinada na escola.
Como a educação ainda é pr ivilégio de muit o pouca gent e em
nosso país, uma quant idade gigant esca de br asileiros per manece à
mar gem do domínio de uma nor ma cult a. Assim, da mesma for ma
como existem milhões de br asileir os sem t er r a, sem escola, sem
t et o, sem t rabalho, sem saúde, t ambém exist em milhões de
br asileir os sem língua. Afinal, se for mos acr edit ar no mit o da língua
única, existem milhões de pessoas nest e país que não têm acesso a
essa língua, que é a nor ma lit er ár ia, culta, empr egada pelos
escr it or es e jor nalist as, pelas inst it uições oficiais, pelos órgãos do
poder — são os sem l íngua. É clar o que eles t ambém falam
por tuguês, uma var iedade de por t uguês não-padrão, com sua
gr amát ica part icular , que no ent ant o não é reconhecida como
válida, que é despr estigiada, r idicular izada, [ p g. 16] alvo de
chacot a e de escár nio por par te dos falant es do por t uguês-padr ão ou
mesmo daqueles que, não falando o por t uguês-padr ão, o t omam
como r efer ência ideal — por isso podemos chamá-los de sem-língua.
O que muit os est udos empr eendidos por diver sos pesquisador es
t êm most r ado é que os falant es das var iedades lingüíst icas
despr est igiadas têm sér ias dificuldades em compr eender as
mensagens enviadas para eles pelo poder público, que se serve
exclusivament e da língua-padr ão. Como diz M aur izzio Gner r e1 em
seu livro L i nguagem, escr i ta e poder, a Constit uição afir ma que
t odos os indivíduos são iguais per ant e a lei, mas essa mesma lei é
r edigida numa língua que só uma par cela pequena de br asileir os
consegue entender . A discr iminação social começa, port ant o, já no
t ext o da Const it uição. É clar o que Gner re não est á querendo dizer
que a Constit uição dever ia ser escr it a em língua não-padr ão, mas
sim que todos os brasileir os a que ela se r efere deveriam t er acesso
mais amplo e democr át ico a essa espécie de língua oficial que,
r est r ingindo seu car át er veicular a uma par t e da população, exclui
necessar iamente uma out r a, t alvez a maior .
M uit as vezes, os falant es das var iedades despr est igiadas
deixam de usufr uir diver sos serviços a que têm dir eito
simplesmente por não compr eender em a linguagem empr egada
pelos órgãos públicos. Um estudo bastant e r evelador dessa sit uação
foi empr eendido por St ella M ar is Bor t oni-Ricar do na per ifer ia de
Br asília e publicado no [ p g. 17] ar tigo “Problemas de comunicação
int er dialet al”. Diant e do que descobriu, a aut ora pode afirmar :

A idéia de que somos um país privilegiado, pois do ponto de vista lingüístico tudo
nos une e nada nos separa, parece-me, contudo, ser apenas mais um dos grandes
mitos arraigados em nossa cultura. Um mito, por sinal, de conseqüências danosas,
pois na medida em que não se reconhecem os problemas de comunicação entre
falantes de diferentes variedades da língua, nada se faz também para resolvê-los.

A mesma aut or a aler t a par a que não se confunda a idéia de


“monolingüismo” com a de “homogeneidade lingüíst ica”. O fat o de
no Br asil o por t uguês ser a língua da imensa maioria da população

1
As referências bibliográficas completas de todas as obras citadas ao longo deste livro se encontram no
final do volume.
não implica, aut omat icamente, que esse por t uguês seja um bloco
compacto, coeso e homogêneo. Na ver dade, como cost umo dizer , o
que habit ualment e chamamos de por tuguês é um grande “balaio de
gatos”, onde há gat os dos mais diver sos t ipos: machos, fêmeas,
br ancos, pretos, malhados, gr andes, pequenos, adult os, idosos,
r ecém-nascidos, gor dos, magr os, bem-nut ridos, famintos et c. Cada
um desses “gatos” é uma var iedade do por tuguês br asileir o, com sua
gr amát ica específica, coer ent e, lógica e funcional.
É preciso, por t anto, que a escola e todas as demais inst ituições
volt adas par a a educação e a cult ur a abandonem esse mito da
“unidade” do port uguês no Br asil e passem a r econhecer a
ver dadei r a diver si dade l i ngüísti ca de nosso país par a melhor
planejar em suas políticas de ação junt o à população amplament e
mar ginalizada dos falant es das var iedades não-padr ão. O
r econheciment o da [ p g. 18] exist ência de muit as nor mas
lingüíst icas difer ent es é fundament al par a que o ensino em nossas
escolas seja conseqüent e com o fat o compr ovado de que a nor ma
lingüíst ica ensinada em sala de aula é, em muit as sit uações, uma
verdadeir a “língua est r angeir a” para o aluno que chega à escola
pr ovenient e de ambient es sociais onde a nor ma lingüíst ica
empregada no quotidiano é uma var iedade de por t uguês não-
padr ão.
Felizmente, essa r ealidade lingüística mar cada pela
di ver si dade já é reconhecida pelas instit uições oficiais encar r egadas
de planejar a educação no Br asil. Assim, nos Par âmetr os
cur r i cul ar es nacionai s, publicados pelo M inist ér io da Educação e do
Desport o em 1998, podemos ler que
A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela
sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa.
Assim, quando se fala em “Língua Portuguesa” está se falando de uma unidade
que se constitui de muitas variedades. [...] A imagem de uma língua única, mais
próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições
normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão
da mídia sobre “o que se deve e o que não se deve falar e escrever”, não se
sustenta na análise empírica dos usos da língua2.

São, de fat o, boas novas! Esper o que elas desçam das alt as
esfer as gover nament ais e se pr opaguem pelas salas de aula de t odo
o país! [ p g. 19]

2
Parâmetros curriculares nacionais, Língua Portuguesa, 5a a 8a séries, p. 29.
M i t o n° 2
“ B r a si l ei r o n ã o sa be por t u gu ês /
Só em Por t u ga l se f a l a bem por t u gu ês”

Essas duas opiniões t ão habit uais, corr iqueir as, comuns, e que
na r ealidade são duas faces de uma mesma moeda enfer r ujada,
r efletem o complexo de infer ior idade, o sent imento de ser mos at é
hoje uma colônia dependent e de um país mais antigo e mais
“civilizado”.
Podemos encont r ar essa concepção expressa no livr o L íngua
vi va, de Sér gio Nogueir a Duar t e, que é uma colet ânea de suas
colunas sobr e língua por tuguesa publicadas no J or nal do Br asi l . Ali
a gente lê, na página 65:

Sempre me perguntam onde se fala o melhor português. Só pode ser em Portugal!


Já viajei muito pelo Brasil e já estive em todas as regiões. Sinceramente, não sei
onde se fala melhor. Cada região tem suas qualidades e seus vícios de linguagem.
[grifo meu]

Por isso não consigo concordar com o tít ulo do livr o — que está
longe de analisar a ver dadeira l íngua vi va usada em nosso país —,
nem com o subtít ulo: “uma análise simples e bem-humor ada da
linguagem do br asileiro”. Seria mais acer t ado dizer que se t r ata de
uma análise “pr econceit uosa e desinfor mada” da língua falada e
escr it a por aqui. M as não podemos culpar o aut or , que é antes uma
vít ima do que propr iament e um r esponsável por esse pr econceito:
ele est á apenas expr imindo uma ideologia impr egnada em nossa
cult ura há muito t empo. [ p g. 20]
É a mesma concepção t or pe segundo a qual o Br asil é um país
subdesenvolvido por que sua população não é uma r aça “pur a”, mas
sim o r esult ado de uma mistur a — negat iva — de r aças, sendo que
duas delas, a negr a e a indígena, são “infer ior es” à do br anco
europeu, por isso nosso “povinho” só pode ser o que é. Or a, há muit o
t empo a ciência dest r uiu o mit o da r aça pur a, que é um conceit o
absur do, sem nenhuma possibilidade de verificação na r ealidade de
nenhum povo, por mais isolado que seja.
Assim, uma r aça que não é “pur a” não poder ia falar uma língua
“pur a”. Não é difícil encont rar int elect uais r enomados que
lamentem a “cor r upção” do por tuguês falado no Br asil, língua de
“mat utos”, de “caipir as infelizes”, ar r emedo tosco da língua de
Camões. É o que escr eve, por exemplo, Arnaldo Niskier , pr esidente
da Academia Brasileir a de L et r as, num ar t igo publicado na Folha
de S. Paul o (15/1/98):

[...] pode-se registrar o fato, facilmente comprovável, de que nunca se escreveu e


falou tão mal o idioma de Ruy Barbosa.
[...] A classe dita culta mostra-se displicente em relação à língua nacional, e a
indigência vocabular tomou conta da juventude e dos não tão jovens assim, quase
como se aqueles se orgulhassem de sua própria ignorância e estes quisessem voltar
atrás no tempo.

Par a most r ar o quant o declarações desse t ipo se baseiam mais


em post ur as preconceit uosas — per pet uadas ao longo dos séculos
pela desinfor mação ou má informação — do que em análises
cient íficas acur adas dos fatos lingüíst icos, vamos ler o seguinte
t r echo do filólogo Cândido de Figueiredo: [ p g. 21]

Quanto mais progressiva é a civilização de um povo, mais sujeita é a sua língua a


deturpações e vícios, sob a variada influência das relações internacionais, dos novos
inventos, das travancas da ignorância, e até dos caprichos da moda. [...] Sábios e
romancistas, poetas e prosadores, e nomeadamente a imprensa periódica, parece
haverem conspirado para dar curso às mais extraordinárias invenções e enxertos de
linguagem.

Or a, essas palavr as foram escr it as em 1903 num livro chamado


O que se não deve di zer (sim, o t ít ulo é esse mesmo!). É
sur pr eendent e como elas têm o mesmo t om de queixa e censura das
palavr as de Niskier , escr it as noventa e cinco anos depois! Niskier
t ambém faz, nest e ar t igo, uma r eferência queixosa ao “pouco apr eço
que devot amos ao gosto pela leit ur a. Nosso índice per capita mal
alcança dois livros por habitant e; na Fr ança, por exemplo, oscila em
t or no de oit o”, e passa a elogiar os hábitos cult ur ais dos fr anceses,
que valor izam mais a leit ur a do que os br asileir os. Esqueceu-se,
porém, de dizer que a Fr ança ocupa a 11ª posição no quadr o do I DH
(Í ndice de Desenvolviment o H umano), estabelecido pela ONU par a
avaliar a qualidade de vida nos 175 países do mundo. O Br asil, que
em 1996 ocupava a 58a posição, caiu, em 1999, par a a 79a, devido à
sensível pior a das condições sociais dos br asileiros como um t odo.
Diant e de t amanha difer ença, um índice per capi ta de dois livros
por ano, num país com 60 milhões de analfabet os plenos e
analfabet os funcionais (númer o igual ao da população total da
Fr ança), é mesmo espant oso...
E da mesma for ma como Nisk ier lamenta a “invasão” dos
anglicismos, Figueir edo diz que “o enxer to da fr ancesia [ p g. 22]
fr ut ificou com [...] exuber ância”, classificando de “malár ia” o uso de
palavr as est r angeir as. E se quiséssemos r ecuar ainda mais no
t empo, não t eríamos dificuldades em encont r ar outr os aut or es
vocifer ando cont r a a “r uína” da língua por t uguesa e pr ofet izando o
“fim” dela.
Felizmente, nenhuma dessas profecias se concr et izou. Os
galicismos, na passagem do século XI X par a o XX, e os anglicismos,
na vir ada do t er ceir o milênio, não t êm a for ça dest ruidor a t ão
t emida pelos pur istas e conser vador es. A língua por tuguesa, nesses
novent a e cinco anos, se mant eve muito bem, obrigada, falada e
escr it a por cada vez mais gent e, pr oduziu uma lit er atur a
r econhecida mundialment e, é propagada t ambém em nível
int er nacional pelo gr ande pr est ígio de que goza a música popular
br asileir a — ent r e t ant as outr as pr ovas de sua vit alidade. E a
avalanche (ai, um galicismo!) de palavr as est r angeir as tem de ser
analisada sob a per spect iva da dependência polít ico-econômica (e
conseqüent ement e cult ur al) do Brasil (e de Por t ugal) par a com os
cent ros mundiais de poder . Não adiant a bradar cont ra a “invasão”
de palavr as na língua por t uguesa sem analisar essa dependência. É
quer er eliminar os efeitos sem atacar as ver dadeir as causas.
E essa hist ór ia de dizer que “br asileir o não sabe por tuguês” e
que “só em Por t ugal se fala bem por t uguês”? Tr at a-se de uma
gr ande bobagem, infelizmente t r ansmit ida de ger ação a geração
pelo ensino t r adicional da gramát ica na escola.
O br asileir o sabe por t uguês, sim. O que acont ece é que nosso
por tuguês é difer ente do por t uguês falado em [ p g. 23] Por t ugal.
Quando dizemos que no Br asil se fal a por tuguês, usamos esse nome
simplesmente por comodidade e por uma r azão histór ica,
just ament e a de t er mos sido uma colônia de Por t ugal. Do pont o de
vist a lingüíst ico, por ém, a língua falada no Br asil já t em uma
gr amáti ca — ist o é, t em r egr as de funcionament o — que cada vez
mais se difer encia da gramát ica da língua falada em Por t ugal. Por
isso os lingüist as (os cient ist as da linguagem) pr efer em usar o
t er mo português br asi l ei ro, por ser mais clar o e mar car bem essa
difer ença.
Na língua falada, as difer enças ent r e o por t uguês de Por tugal e
o por t uguês do Br asil são t ão grandes que muit as vezes sur gem
dificuldades de compr eensão: no vocabulár io, nas const r uções
sint át icas, no uso de cer t as expressões, sem mencionar , é claro, as
t r emendas difer enças de pronúncia — no por t uguês de Por t ugal
exist em vogais e consoant es que nossos ouvidos br asileir os cust am a
r econhecer , por que não fazem par te de nosso sistema fonét ico3. E
muit os est udos t êm most r ado que os sistemas pr onominais do
por tuguês eur opeu e do por t uguês br asileiro são t otalment e
difer ent es.
Por exemplo, os pronomes o/ a, de const r uções como “eu o vi” e
“eu a conheço”, estão pr at icamente ext int os [ p g. 24] no por t uguês
falado no Br asil, ao passo que, no de Por t ugal, continuam fir mes e
for t es. Esses pr onomes nunca apar ecem na fala das cr ianças
br asileir as nem na dos br asileiros não-alfabetizados e têm baixa
ocor r ência na fala dos indivíduos cultos, o que demonst ra que são
exclusivos da língua ensinada na escola, sobret udo da língua
escr it a, não fazendo par t e, então, do r eper tório da l íngua mater na
dos br asileir os. Nossas cr ianças usam sem pr oblema me e te — “Ela
me bateu”, “Eu vou te pegar ” —, mas o/ a jamais, que são
subst it uídos por el e/ el a: “Eu vou pegar ele”, “Eu vi ela”. As for mas
l o e l a — pegá l o, vê l a —, ent ão, nem pensar . Se as crianças não
usam é por que não ouvem os adultos usar , e se os adult os não usam

3
Assistindo um dia desses a televisão portuguesa por cabo, ouvi os verbos uprar e dlibrar. Consegue
adivinhar o que é? Sim, operar e deliberar. Também é comum os portugueses evitarem hiatos como “a
água” introduzindo um [y] e pronunciando ayágua. Além disso, se uma palavra termina em s e a próxima
começa com c, os portugueses fundem essas duas consoantes numa só, pronunciada como o x de xixi:
“outros cinco” é pronunciado otruxincu. São realizações fonéticas totalmente estranhas à língua do
brasileiro.
é por que não precisam desses pr onomes. E mesmo na língua dos
adultos escolar izados, esses pronomes só apar ecem como um
r ecur so estilístico, em sit uações de uso mais for mais, quando o
falante quer deixar clar o que domina as r egr as impostas pela
gr amát ica escolar . A gr amát ica escolar , no entant o, desconhece essa
t r ansfor mação por que a língua est á passando e insist e em
consider ar “er r adas” const r uções como “Eu conheço ele”, “Você viu
ela chegar ” et c.
O único nível em que ainda é possível uma compr eensão quase
t ot al ent r e br asileir os e por tugueses é o da l íngua escr ita for mal ,
porque a or togr afia é praticament e a mesma, com poucas
difer enças. M as um mesmo t exto lido em voz alta por um br asileir o
e por um por t uguês vai soar completament e difer ente, ou melhor ,
di fr ent! Aliás, faça você mesmo a exper iência: t ente t irar a let ra de
uma música cant ada por um cant or ou uma cantor a da “t er r inha” e
veja [ p g. 25] como é difícil!4 E por incr ível que par eça, um dos
pr incipais obst áculos par a a difusão no Br asil do cinema feito em
Por t ugal é justament e... a língua — além das dificuldades de
dist r ibuição, ligadas ao quase monopólio do cinema amer icano.
Como os br asileir os t êm dificuldades em ent ender o por t uguês de
Por t ugal, e como ficar ia no mínimo est r anho colocar legendas em
filmes por t ugueses, o r esult ado é que pr at icamente nunca se vê
filme por t uguês nos cinemas daqui. Temos a impr essão de que
Por t ugal não produz cinema, o que é falso: há bons cineast as

4
Eu mesmo uma vez passei por uma situação embaraçosa: um amigo meu, francês, me enviou uma fita
cassete com músicas do compositor português José Afonso (por sinal, maravilhoso) e me pediu para tirar
a letra de uma delas, de que ele gostava muito. Depois de algumas tentativas, acabei desistindo, porque
havia muitas frases inteiras das quais eu não pescava simplesmente nada. Ele, espantado, me perguntou:
“Mas ele não canta em português?” Tive de explicar ao meu amigo que havia grandes diferenças entre o
português do Brasil e o de Portugal. Mas eu tive a minha vingança. Pedi a esse mesmo amigo, pouco
depois, que transcrevesse a letra de uma canção gravada por uma cantor canadense, e ele teve a mesma
dificuldade, porque o francês do Canadá às vezes pode ser incompreensível para um falante do francês da
França...
por tugueses, um dos quais, M anuel d'Oliveir a, é r econhecido
int er nacionalmente como um gr ande dir et or .
No que diz r espeito ao ensino do por t uguês no Brasil, o gr ande
pr oblema é que esse ensino at é hoje, depois de mais de cento e
set enta anos de independência polít ica, cont inua com os olhos
volt ados par a a nor ma lingüíst ica de Por t ugal. As r egr as
gr amat icais consider adas “cer t as” são aquelas usadas por lá, que
ser vem par a a língua falada lá, que r et r at am bem o funcionament o
da língua que os [p g. 26] por tugueses falam. É a concepção que
imper a, por exemplo, no livr o Não er r e mai s!, de L uiz Ant onio
Sacconi, que na página 64 explica:

A Lua é mais pequena que a Terra

Eis aí uma frase corretíssima, que muitos imaginam o contrário. Mais pequeno é
expressão legítima, usada por todos os portugueses, que usam menor quando se
trata de idéia de qualidade: poeta menor, escritor menor etc. [grifo meu]

Fica implícit o, ent ão, que para consider ar uma expr essão
“legít ima” bast a que ela seja “usada por t odos os por t ugueses”, como
se eles dit assem a nor ma lingüíst ica válida par a t odos os povos que
falam por t uguês. Or a, t odos sabemos que mai s pequeno não
funciona no Brasil, é uma expr essão r ejeit ada pela nor ma cult a
br asileir a, que usa menor em todas as cir cunst âncias em que há
compar ação.
O mesmo espír it o guiou a r evist a Época que, em sua edição de
14 de junho de 1999, est ampou uma gr ande r epor t agem sobre “A
ciência de escr ever bem”, acer ca da redação no vestibular . Ent r e as
melhores r edações apr esent adas naquele ano ao vest ibular da
Univer sidade de São Paulo est ava a de Henr ique Sugur i, 17 anos,
que em deter minado moment o assim se expr essou (p. 81):
O Brasil hoje não é europeu, africano, asiático, indígena. Nós somos a mistura
exata de tudo isso, completamente diferentes das nossas origens, únicos. E apesar
disso, estamos indiscutivelmente atrelados aos princípios da nossa matriz. Talvez
o ano 2000 possa servir para abrirmos os olhos e, em vez de comemorarmos os
nossos cinco séculos coloniais, enterrarmos o que sobrou deles. [pg. 27]

Essa belíssima declar ação de independência, essa consciência


da especificidade cult ur al do povo brasileir o, essa valor ização de
nossa ident idade nacional, única, par ece que não foi t otalment e
compreendida pelos aut or es da r eport agem. Pois estes, em vez de
aceit ar o convit e do jovem vest ibulando para ent er r ar o que sobr ou
dos cinco séculos de colonização, fizeram quest ão de compr ovar , ao
cont rár io, que ainda “est amos indiscut ivelment e at relados aos
pr incípios da nossa mat r iz”, incluindo aí, é claro, os pr incípios
lingüíst icos. Digo isso por que, na página 84 da mesma r epor t agem,
apar ece um quadro chamado “Como escrever bem”, que t em como
subt ít ulo:”Dicas que valem par a br asileiros de t odas as idades”.
Acont ece que a primeir íssima dest as dicas é a seguint e:

O uso do gerúndio empobrece o texto. Lembre que não existe gerúndio no


português falado em Portugal.

Or a, se são dicas par a br asi l ei ros que quer em escr ever bem, por
que mot ivos eles têm de se lembr ar do que exist e ou não exist e no
português de Por tugal ? A dica, além de deixar à most r a sua
inspir ação neocolonialist a, t ambém afir ma uma inver dade
lingüíst ica: no por t uguês de Por t ugal existe, sim, o ger úndio. A
t ít ulo de curiosidade, lembr o-me do “Fado do ciúme” — sucesso na
voz de Amália Rodrigues, uma das maior es cant or as por t uguesas de
t odos os t empos —, cuja let r a a cer t a alt ur a diz: “ant es prefir o
mor r er / do que cont igo viver / sabendo que gost as dela”. Esse
sabendo out ra coisa não é senão um ger úndio. (Aproveito par a
chamar atenção par a o antes [ p g. 28] pr efi r o...do que, indício de que
os por t ugueses t ambém “er r am” na hor a de usar o ver bo pr efer i r ...)
O que não exist e no por t uguês falado em Por t ugal é a
const rução do t ipo estou comendo, ela está tel efonando, Pedr o esteve
tr abal hando mui to — sit uações em que os por t ugueses usam a
pr eposição a seguida do ver bo no infinit ivo. I magine agora se algum
de nós, br asi l ei ros, disser por aí frases como “est ou a comer ”, “ela
est á a t elefonar ”,”Pedr o esteve a t r abalhar muit o”, que são uma das
car acteríst icas mais mar cant es do port uguês de Port ugal! Como não
me canso de r epet ir , são simplesment e difer enças de uso — e
difer ença não é deficiência nem infer ior idade. Quanto tempo ainda
t er emos de esper ar par a nos dar mos cont a, de uma vez por t odas, de
que somos “complet amente difer entes das nossas origens, únicos”,
como t ão br ilhantement e escr eveu H enr ique Sugur i em sua r edação
de vestibular ?
Por causa desse pr econceito é que somos obr igados a ensinar e
aprender que o “cer t o” é dizer e escrever Dê me um bei jo e não M e
dá um bei jo, e que é “er rado” dizer e escr ever Assi sti o fil me e
Aluga se casas, porque lá em Por t ugal não é assim que se faz.
O mit o de que “br asileir o não sabe por t uguês” t ambém afeta o
ensino de línguas est r angeiras. É muito comum ver ificar ent r e
pr ofessores de inglês, francês ou espanhol um gr ande desânimo
diante das dificuldades de ensinar o idioma estr angeir o. E é mais
comum ainda ouvi-los dizer : “Os alunos já não sabem por t uguês,
imagine se vão conseguir apr ender out r a língua”, fazendo a velha
confusão ent re [ p g. 29] língua e gr amáti ca nor mativa. É muito fácil
at r ibuir aos out ros a culpa do nosso própr io fr acasso. Assim, em vez
de buscar as causas da dificuldade de ensino na met odologia
empregada, nas difer enças de aptidão individual par a o
aprendizado de línguas ou na compet ência do pr óprio pr ofessor , é
muit o mais cômodo jogar a culpa no aluno ou na incompetência
lingüíst ica “inat a” do br asileiro.
É cur ioso como muitos br asileir os assumem esse mesmo
pr econceito negat ivo t ambém em r elação a out r as línguas,
defendendo sempre a língua da met r ópole cont r a a língua da ex-
colônia. É o nosso eter no t r auma de infer ioridade, nosso desejo de
nos apr oximar mos, o máximo possível, do cultuado padr ão “ideal”,
que é a Europa. Todo sant o dia t enho de ouvir alguém me dizer que
pr efer e o inglês br it ânico, porque acha o inglês americano “muit o
feio”. A essas pessoas eu dou sempr e a mesma r espost a: aprenda o
inglês brit ânico se quiser ler Shakespear e; mas se quiser dominar
uma língua de uso inter nacional, aceit a em t odos os cantos do
mundo como veículo de inter câmbio cult ural, comer cial,
diplomático, t ecnológico, cient ífico et c., apr enda o inglês amer icano.
Se algum de nós disser a um nor t e-amer icano que ele “não sabe
inglês” ou que o inglês falado nos Est ados Unidos é “er r ado” ou
“feio”, ele decer t o vai ficar chocado com nossa ignor ância. Afinal,
exist e um ar gument o mais do que convincent e para r ebater essa
acusação: o t amanho do país e a quant idade de falantes de inglês
que ali vivem, além da import ância dos Est ados Unidos no
panor ama mundial. [ p g. 30]
O mesmo ar gument o vale par a o por t uguês do Br asil. Nosso
país é 92 vezes e meia maior que Por t ugal, e nossa população é
quase 15 vezes super ior ! Quando se t r at a de língua, temos de levar
em conta a quant idade: só na cidade de São Paulo vivem mais
falantes de port uguês do que em toda a Eur opa! Além disso, o papel
do Brasil no cenár io polít ico-econômico mundial é, de longe, muit o
mais import ant e que o de Port ugal. Não t em sent ido nenhum,
por tant o, cont inuar aliment ando essa fant asia de que os
por tugueses são os verdadeir os “donos” da língua, enquant o nós a
ut ilizamos (e mal!) apenas por “emprést imo”.
Existe, embut ida nesse mit o, a ilusão de que os por tugueses
falam e escrevem “t udo cer t o” e que seguem rigor osament e as
r egras da gr amática ensinada na escola. A pr ofessor a I r andé
Ant unes, de quem t ive a honr a de ser aluno na Univer sidade
Feder al de Per nambuco, me cont ou que quando est ava par a
embar car par a Por t ugal, onde viver ia alguns anos pr epar ando seu
dout or ado, muit as pessoas no Br asil lhe disser am: “Você vai mor ar
em Por tugal? Então agor a suas filhas vão aprender a falar direito!”
Não é nada disso. Assim como nós aqui comet emos nossos
“pecados” cont r a a gr amática nor mativa, os por tugueses t ambém
comet em os deles, só que, mais uma vez, diferent es dos nossos. Em
Por t ugal, por exemplo, o plur al de tu não é vós, como quer em as
gr amát icas nor mat ivas. O plur al de tu é vocês. Pois bem, na hor a de
usar os possessivos, os por t ugueses usam vosso/ vossa, que,
t eor icamente, só poder iam ser usados com r efer ência a vós: “Vocês
t r ouxer am os vossos filhos?” E num livr o edit ado [ p g. 31] em
Por t ugal encont rei a seguint e per gunt a: “Não vos sucede senti r em
se por vezes um pouco indefinidos?” É a famosa “mist ur a de
t r at ament o”, que causa t ant o ar repio e dor de est ômago nos
gr amát icos conser vador es — “mist ur a” que, em ter mos científicos e
não-pr econceit uosos, deve ser analisada, de fato, como uma
r eor gani zação do sistema pronomi nal da língua, t ant o a de lá como
a de cá.
Ent ão, não há por que cont inuar difundindo essa idéia mais do
que absur da de que “br asileir o não sabe por t uguês”. O brasileir o
sabe o seu port uguês, o por t uguês do Br asi l , que é a língua mat er na
de t odos os que nascem e vivem aqui, enquanto os por t ugueses
sabem o por tuguês del es. Nenhum dos dois é mais cer to ou mais
er r ado, mais feio ou mais bonit o: são apenas di fer entes um do out r o
e atendem às necessidades lingüíst icas das comunidades que os
usam,necessidades que t ambém são... difer ent es!
Em seu livr o Emíl i a no País da Gr amáti ca, publicado em 1934,
M onteiro L obat o já chamava a at enção par a esse t ipo de pr econceit o
(que no ent ant o cont inua fir me e for t e no Br asil de hoje!). Numa
conver sa com as cr ianças do Sít io do Pica-pau Amar elo, a velha
Dona Et imologia lhes diz (pp. 100-101):

[...] Uma língua não pára nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. Há certos
gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto, e acham que é erro
dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos.
— Quem vem a ser clássicos? — perguntou a menina [Narizinho].
— Os entendidos chamam clássicos aos escritores antigos, como o padre
Antônio Vieira, Frei Luís de Sousa, o padre [pg. 32] Manuel Bernardes e outros.
Para os carranças, quem não escreve como eles está errado. Mas isso é curteza de
vistas. Esses homens foram bons escritores no seu tempo. Se aparecessem agora
seriam os primeiros a mudar, ou a adotar a língua de hoje, para serem entendidos.
A língua variou muito e sobretudo aqui na cidade nova [o Brasil]. Inúmeras
palavras que na cidade velha [Portugal] querem dizer uma coisa, aqui dizem outra.
[...] Também no modo de pronunciar as palavras existem muitas variações. Aqui,
todos dizem PEITO; lá, todos dizem PAITO, embora escrevam a palavra da mesma
maneira. Aqui se diz TENHO e lá se diz TANHO. Aqui se diz VERÃO e lá se diz
V'RÃO.

— Também eles dizem por lá VATATA, VACALHAU, BACA, VESOURO —


lembrou Pedrinho.
— Sim, o povo de lá troca muito o v pelo B e vice-versa.
— Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha
— concluiu Narizinho.
— Por quê? Ambas têm o direito de falar como quiserem, e portanto ambas
estão certas. O que sucede é que uma língua, sempre que muda de terra, começa a
variar muito mais depressa do que se não tivesse mudado. Os costumes são outros,
a natureza é outra — as necessidades de expressão tornam-se outras. Tudo junto
força a língua que emigra a adaptar-se à sua nova pátria.
A língua desta cidade [Brasil] está ficando um dialeto da língua velha. Com
o correr dos séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha como esta
ficou diferente do latim. Vocês vão ver.

M onteiro L obato, que mor r eu em 1948, estava muit o mais por


dent r o das noções da lingüística moder na do que muito aut or de
gr amát ica que está por aí hoje, “vivo e bulindo”, como se diz no
Nor deste... [ p g. 33]
É espant oso que a figur a do gr amático aut or it ár io e intoler ant e
— r idicular izado por L obat o na per sonagem do pr ofessor
Aldrovando Cantagalo, em seu delicioso cont o “O colocador de
pr onomes”, de 1924 (!) — t enha volt ado à cena nest e fim de século,
sob a roupagem enganosament e moder na da t elevisão, do
comput ador e da mult imídia. [ p g. 34]
M i t o n° 3
“ Por t u gu ês é m u i t o d i f í ci l ”

Essa afir mação pr econceituosa é pr ima-ir mã da idéia que


acabamos de der rubar , a de que “br asileiro não sabe por tuguês”.
Como o nosso ensino da língua sempr e se baseou na nor ma
gr amat ical de Por tugal, as r egras que apr endemos na escola em boa
par te não cor r espondem à língua que realment e falamos e
escr evemos no Br asil. Por isso achamos que “por t uguês é uma
língua difícil”: por que t emos de decor ar conceit os e fixar r egras que
não significam nada par a nós. No dia em que nosso ensino de
por tuguês se concent r ar no uso r eal , vi vo e ver dadei r o da l íngua
portuguesa do Brasi l é bem provável que ninguém mais continue a
r epetir essa bobagem.
Todo falant e nat ivo de uma língua sabe essa língua. Saber uma
língua, no sentido cient ífico do verbo saber , significa conhecer
int uit ivamente e empr egar com nat ur alidade as r egr as básicas de
funcionamento dela.
Est á pr ovado e compr ovado que uma cr iança ent re os 3 e 4
anos de idade já domina perfeit amente as r egras gr amaticais de sua
língua! O que ela não conhece são sut ilezas, sofist icações e
ir r egularidades no uso dessas r egr as, coisas que só a leit ur a e o
est udo podem lhe dar . M as nenhuma cr iança br asileira dessa idade
vai dizer , por exemplo: “Uma meni nos chegou aqui amanhã”. Um
est r angeir o, por ém, que esteja começando a aprender por tuguês,
poder á se confundir e falar assim. Por isso aquela piadinha que
muit a gente solt a quando vê uma cr iancinha est r angeira falando —
“Tão pequeno e já fala t ão bem [ p g. 35] inglês [ou out r a língua]” —
t em seu fundo de ver dade: muit o pouca gent e conseguir á falar uma
língua est r angeir a com t anta desenvolt ura quanto uma cr iança de
cinco anos que t em nela sua língua mat er na! Por quê? Por que t oda
e qualquer língua é “fácil” para quem nasceu e cr esceu rodeado por
ela! Se existisse língua “difícil”, ninguém no mundo falar ia húngaro,
chinês ou guar ani, e no ent ant o essas línguas são faladas por
milhões de pessoas, inclusive cr iancinhas analfabetas!
Se tant a gent e cont inua a r epet ir que “por t uguês é difícil” é
porque o ensino t r adicional da língua no Br asil não leva em cont a o
uso brasil ei r o do por t uguês. Um caso t ípico é o da r egência ver bal. O
pr ofessor pode mandar o aluno copiar quinhent as mil vezes a fr ase:
“Assist i ao filme”. Quando esse mesmo aluno puser o pé for a da sala
de aula, ele vai dizer ao colega: “Ainda não assisti o filme do Zor ro!”
Por que a gr amáti ca br asi l ei ra não sent e a necessidade daquela
pr eposição a, que er a exigida na nor ma clássica lit er ár ia, cem anos
at r ás, e que ainda est á em vigor no por t uguês falado em Por t ugal, a
dez mil quilômet r os daqui! É um esfor ço árduo e inút il, um
verdadeir o t r abalho de Sísifo, tent ar impor uma r egra que não
encont r a just ificat iva na gr amát ica int uit iva do falant e.
A pr ova mais visível disso é que aquelas mesmas pessoas que,
por causa da pr essão policialesca da escola e da gr amát ica
t r adicional, usam a pr eposição a depois do ver bo assi stir , t ambém
dizem que “o jogo foi assi stido por vint e mil pessoas”. Or a, se o
verbo assi sti r pede uma pr eposição é por que ele não é t r ansit ivo
dir et o, e só os ver bos t r ansit ivos diretos podem, segundo as
gr amát icas, assumir a voz passiva. Desse modo, quem diz “assisti
ao [ p g. 36] jogo” não poder ia, teor icamente, dizer “o jogo foi
assist ido”. Só que essa esquizofrenia gr amat ical acontece o tempo
t odo. Bast a ler jor nais como a Fol ha de S. Paul o e o Estado de S.
Paul o, cujos manuais de redação decret am que o ver bo assi sti r tem
que vir obrigatoriament e seguido da pr eposição a. Na voz at iva, a
pr eposição apar ece: “Vint e mil pagantes assistir am ao jogo”, por que
assim manda o manual da r edação. M as na hor a de usar a voz
passiva, a gr amát ica int uit iva brasileir a do redat or se manifest a, e
a gent e encont r a milhares de exemplos do tipo “o jogo foi assi sti do
por vinte mil pagant es”. Essas pessoas, ent ão, ficam em cima do
mur o: “acer t am” na voz at iva, por causa do pat rulhament o
lingüíst ico, mas “er r am” na passiva, porque se deixam levar pelo
uso nor mal do por t uguês br asileiro. Tudo isso por causa da
cobrança indevida, por par t e do ensino t r adicional, de uma nor ma
gr amat ical que não cor r esponde à r ealidade da língua falada no
Br asil. O professor Sir io Possent i, da U NI CAM P, em seu excelent e
livro Por que (não) ensi nar gr amáti ca na escol a, classifica a
r egência “assist ir a” como um ar caísmo, uma for ma sintát ica que já
caiu em desuso, mas cont inua sendo cobr ada injustificadament e
pelo ensino t r adicionalist a, que se r ecusa a admit ir a ext inção desse
e de muit os out r os dinossaur os lingüíst icos.
Por isso t antas pessoas ter minam seus est udos, depois de onze
anos de ensino fundamental e médio, sent indo-se incompetent es
par a r edigir o que quer que seja. E não é à t oa: se dur ant e t odos
esses anos os professor es tivessem chamado a at enção dos alunos
par a o que é r ealment e int er essant e e impor tant e, se t ivessem
desenvolvido [ p g. 37] as habilidades de expr essão dos alunos, em
vez de ent upir suas aulas com r egras ilógicas e nomenclatur as
incoerent es, as pessoas sent iriam muit o mais confiança e pr azer no
momento de usar os recur sos de seu idioma, que afinal é um
inst r ument o mar avilhoso e que per t ence a t odos! Falar emos disso
na t erceir a par te deste livr o.
Se t antas pessoas int eligent es e cult as continuam achando que
“não sabem port uguês” ou que “por t uguês é muito difícil” é porque
est a disciplina fascinante foi t ransfor mada numa “ciência
esot érica”, numa “dout rina cabalíst ica” que soment e alguns
“iluminados” (os gr amát icos t r adicionalist as!) conseguem dominar
complet ament e. Eles cont inuam insist indo em nos fazer decor ar
coisas que ninguém mais usa (fósseis gr amat icais!), e a nos
convencer de que só eles podem salvar a língua por t uguesa da
“decadência” e da “cor r upção”. Hoje em dia, aliás, alguns deles est ão
at é fazendo sucesso na t elevisão, no r ádio e em out r os meios de
comunicação, t r ansfor mando essa supost a “dificuldade” do
por tuguês num pr odut o com boa saída comer cial. Par a o já cit ado
Ar naldo Nisk ier , t r at a-se de uma “saudável epidemia que tomou
conta da impr ensa br asileira”. Que é epidemia, concor do, mas
quant o a ser “saudável”, t enho muit as e sér ias dúvidas... É livr o, é
cur so em vídeo-casset e, é CD -ROM , é “M anual de Redação do Jor nal
Tal”, é “consult ór io gr amat ical” por t elefone... Eles jur am que quem
não souber conjugar o ver bo apr opi nquar se vai direto para o
infer no! Na segunda par t e deste livro t r at ar ei de explicar por que
não consider o “saudável” essa “epidemia”. [ p g. 38]
No fundo, a idéia de que “por t uguês é muit o difícil” ser ve como
mais um dos inst r umentos de manut enção do status quo das classes
sociais pr ivilegiadas. Essa ent idade míst ica e sobr enat ur al
chamada “por t uguês” só se r evela aos poucos “iniciados”, aos que
sabem as palavras mágicas exat as par a fazê-la manifest ar -se. Tal
como na Í ndia ant iga, o conheciment o da “gr amática” é reser vado a
uma casta sacerdot al, encar r egada de preser vá-la “pur a” e
“int act a”, longe do cont at o infeccioso dos pár ias.
A propaganda da supost a “dificuldade” da língua é, como diz
Gner r e no livr o já cit ado,”o ar ame far pado mais poder oso par a
bloquear o acesso ao poder ” (p. 6). Sust ent ar que “por t uguês é muit o
difícil” é cavar uma pr ofunda t r incheir a ent r e os poucos que “sabem
a língua” e a massa enor me de “asnos” (t er mo usado por L uiz
Ant onio Sacconi em seu livr o Não er r e mai s!) que necessit am,
assim, do “auxílio” indispensável daqueles “mest r es” par a salt ar
com segurança por sobre o abismo da ignor ância.
Em t er mos mais br andos, a embalagem do CD -ROM Nossa
l íngua por tuguesa ofer ece o produt o como uma ajuda a evitar as
“ar madilhas” da língua. Or a, não é a “língua” que t em ar madilhas,
mas sim a gr amáti ca nor mativa tr adi ci onal , que as invent a
pr ecisament e par a just ificar sua exist ência e para nos convencer de
que ela é indispensável.
Não ser ia a hor a de acionar a L ei de Defesa do Consumidor
cont ra essa “r eserva de mer cado”? [ p g. 39]
M i t o n° 4
“As pessoas sem i nstr ução fal am tudo er r ado”

O preconceit o lingüístico se baseia na cr ença de que só exist e,


como vimos no M ito n° 1, uma úni ca l íngua por tuguesa di gna deste
nome e que ser ia a língua ensinada nas escolas, explicada nas
gr amát icas e cat alogada nos dicionár ios. Qualquer manifestação
lingüíst ica que escape desse t r iângulo escola-gramát ica-dicionár io é
consider ada, sob a ót ica do pr econceit o lingüístico, “er r ada, feia,
est r opiada, r udiment ar , deficient e”, e não é raro a gente ouvir que
“isso não é por t uguês”.
Um exemplo. Na visão preconceit uosa dos fenômenos da
língua, a t ransfor mação de I em R nos encont ros consonant ais como
em Cr áudia, chi cr ete, praca, br oco, pr anta é t r emendament e
est igmat izada e às vezes é consider ada at é como um sinal do
“at r aso mental” das pessoas que falam assim. Or a, est udando
cient ificament e a questão, é fácil descobrir que não estamos diante
de um t raço de “at r aso ment al” dos falantes “ignorant es” do
por tuguês, mas simplesmente de um fenômeno fonéti co que
cont ribuiu par a a for mação da pr ópr ia língua port uguesa padrão.
Bast a olhar mos para o seguint e quadr o: [ p g. 40]

PORTUGUÊS PADRÃO ETI M OL OGI A ORI GEM

br anco > blank ger mânico


br ando > blandu lat im
cr avo > clavu lat im
dobr o > duplu lat im
escr avo > sclavu lat im
fr aco > flaccu lat im
fr ouxo > fluxu lat im
gr ude > glut en lat im
obr igar > obligare lat im
pr aga > plaga lat im
pr ata > plat a pr ovençal
pr ega > plica lat im

Como é fácil not ar , t odas as palavr as do por t uguês--padr ão


listadas acima t inham, na sua or igem, um I bem nít ido que se
t r ansfor mou em R. E agora? Se fôssemos pensar que as pessoas que
dizem Cr áudi a, chi cr ete e pr anta t êm algum “defeit o” ou “at raso
mental”, ser íamos for çados a admit ir que t oda a população da
pr ovíncia romana da L usit ânia também t inha esse mesmo problema
na época em que a língua por t uguesa est ava se for mando. E que o
gr ande L uís de Camões t ambém sofr ia desse mesmo mal, já que ele
escr eveu i ngr ês, pubr i car , pr anta, frauta, fr echa na obr a que é
consider ada at é hoje o maior monumento lit er ário do por t uguês
clássico, o poema Os L usíadas. E isso, é “cr aro”, ser ia no mínimo
absur do.
Existem, evidentement e, falantes da nor ma cult a ur bana,
pessoas escolar izadas, que t êm problemas para [ p g. 41] pr onunciar
os encont r os consonant ais com L . Nesses casos, sim, t r at a-se
r ealmente de uma dificuldade física que pode ser r esolvida com uma
t er apia fonoaudiológica. Não é dessas pessoas que est amos t r at ando
aqui, mas dos br asileiros falantes das var iedades não-padr ão, em
cujo sist ema fonético simplesment e não exi ste encontr o consonantal
com L, independent emente de t er em ou não dificuldades
ar t iculat ór ias. Quando, na escola, se depar ar em com os encont r os
consonant ais com L , é pr eciso que o pr ofessor t enha consciência de
que se t rat a de um aspecto fonético “est r angeir o” par a eles, do
mesmo tipo dos que encont r amos, por exemplo, nos cur sos de inglês,
quando nos esfor çamos par a pr onunciar bem o TH de thr ow ou o I de
l ive. É preciso separ ar bem os dois aspect os do fenômeno.
Se dizer Cráudi a, pr aca, pr anta é consider ado “er r ado”, e, por
out ro lado, dizer fr ouxo, escravo, br anco, pr aga é consider ado
“cer t o”, isso se deve simplesmente a uma quest ão que não é
lingüíst ica, mas soci al e pol íti ca — as' pessoas que dizem Cr áudi a,
pr aca, pr anta per t encem a uma classe social despr estigiada,
mar ginalizada, que não t em acesso à educação for mal e aos bens
cult urais da elite, e por isso a língua que elas falam sofr e o mesmo
pr econceit o que pesa sobr e elas mesmas, ou seja, sua língua é
consider ada “feia”,”pobr e”,”car ent e”, quando na verdade é apenas
di fer ente da língua ensinada na escola.
Or a, do pont o de vist a exclusivament e l i ngüísti co, o fenômeno
que existe no por tuguês não-padr ão é o mesmo que acont eceu na
hist ór ia do por tuguês-padr ão, e [ p g. 42] t em at é um nome t écnico:
r otaci smo. O r ot acismo par ticipou da for mação da língua
por tuguesa padr ão, como já vimos em br anco, escr avo, pr aga, fraco
et c., mas ele cont inua vivo e at uante no por t uguês não-padr ão, como
em br oco, chi cr ete, pr anta, Cr áudia, por que essa var iedade não-
padr ão deixa que as t endências normais e iner entes à língua se
manifest em livr ement e. Assim, o pr oblema não est á naqui lo que se
fala, mas em quem fala o quê. Neste caso, o pr econceito lingüíst ico é
decor rência de um pr econceito social. Est e tipo específico de
pr econceito é o que abor dei em meu livr o A l íngua de Eul ál i a.
M inha heroína lit er ár ia pr edilet a, a boneca Emília, de
M onteiro L obat o, não quis saber desse tipo de pr econceit o. Ao
visit ar , no País da Gr amát ica, a pr isão onde Dona Sint axe
mant inha enjaulados os “vícios de linguagem”, r evolt ou-se ao ver
at r ás das gr ades o “Pr ovincianismo”, ist o é, os “vícios” da fala rur al,
do “caipir a” (p. 120):

Emília não achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre matuto. Alegou
que ele também estava trabalhando na evolução da língua e soltou-o.
— Vá passear, seu Jeca. Muita coisa que hoje esta senhora condena vai ser
lei um dia. Foi você quem inventou o VOCÊ em vez de TU, e só isso quanto não
vale? Estamos livres da complicação antiga do Tuturututu.

Como se vê, do mesmo modo como exist e o pr econceit o cont r a a


fala de det er minadas classes sociais, t ambém exist e o pr econceit o
cont ra a fala car act er íst ica de cer t as r egiões. É um verdadeir o
acint e aos direit os humanos, por exemplo, o modo como a fala
nor dest ina é r et r at ada [ p g. 43] nas novelas de t elevisão,
pr incipalment e da Rede Globo. Todo per sonagem de or igem
nor dest ina é, sem exceção, um tipo gr otesco, r úst ico, at r asado,
cr iado par a pr ovocar o r iso, o escár nio e o deboche dos demais
per sonagens e do espect ador . No plano lingüíst ico, at or es não-
nor dest inos expr essam-se num ar r emedo de língua que não é falada
em lugar nenhum do Br asil, muit o menos no Nor dest e. Cost umo
dizer que aquela deve ser a língua do Nor dest e de M ar t e! M as nós
sabemos muit o bem que essa at itude r epresent a uma for ma de
mar ginalização e exclusão.
Par a most r ar que a fala nor dest ina nada t em de “engr açada”
ou “r idícula”, vamos fazer uma pequena compar ação. Na pr onúncia
nor mal do Sudest e, a consoant e que escr evemos T é pr onunciada [t š]
(como em tcheco) t oda vez que é seguida de um [i]. Esse fenômeno
fonét ico se chama palatali zação. Por causa dele, nós, sudest inos,
pr onunciamos [t šitšia] a palavr a escrit a TI TI A . E t odo mundo acha
isso per feitament e nor mal, ninguém tem vont ade de r ir quando um
car ioca, mineiro ou capixaba fala assim.
Quando, por ém, um falant e do Sudeste ouve um falant e da
zona r ural nor dest ina pr onunciar a palavra escr it a OI TO como
[oyt šu], ele acha isso “muit o engr açado”, “r idículo” ou “err ado”. Or a,
do ponto de vista mer ament e lingüíst ico, o fenômeno é o mesmo —
palatal i zação —, só que o element o pr ovocador dessa palatalização,
o [y], est á ant es do [t ] e não depois dele.
Ent ão, se o fenômeno é o mesmo, por que na boca de um ele é
“nor mal” e na boca de out ro ele é “engr açado”, [ p g. 44] “feio” ou
“er r ado”? Por que o que est á em jogo aqui não é a língua, mas a
pessoa que fala essa língua e a r egi ão geogr áfi ca onde essa pessoa
vive. Se o Nordeste é “at r asado”, “pobr e”, “subdesenvolvido” ou (na
melhor das hipót eses) “pit or esco”, então, “nat ur alment e”, as pessoas
que lá nascer am e a língua que elas falam também devem ser
consider adas assim...
Or a, faça-me o favor , Rede Globo! [ p g. 45]
M i t o n°5
“ O l u ga r on d e m el h or se f a l a por t u gu ês
n o Br a si l é o M a r a n h ã o”

Não sei quem foi a pr imeir a pessoa que pr ofer iu essa gr ande
bobagem, mas a r ealidade é que at é hoje ela cont inua sendo
r epetida por muit a gent e por aí, inclusive gent e cult a, que não sabe
que isso é apenas um mit o sem nenhuma fundament ação científica.
De onde será que veio essa idéia? Esse mit o nasceu, mais uma vez,
da velha posição de subser viência em r elação ao por t uguês de
Por t ugal.
É sabido que no M ar anhão ainda se usa com gr ande
r egular idade o pr onome tu, seguido das for mas ver bais clássicas,
com a t er minação em -s car act er íst ica da segunda pessoa: tu vai s, tu
quer es, tu di zes, tu comi as, tu cantavas et c. Na maior par t e do
Br asil, como sabemos, devido à r eorgani zação do si stema
pr onomi nal de que já falei, o pr onome tu foi substit uído por você.
Aliás, nas palavr as da boneca Emília, “o tu já est á velho cor oco” e o
que ele deve fazer , na opinião dela, “é ir ar rumando a t r ouxa e
pondo-se ao fr esco”, e mudar -se de vez par a o “bair r o das palavr as
ar caicas”. De fat o, o pr onome tu est á em vias de ext inção na fala do
br asileir o, e quando ainda é usado, como por exemplo em alguns
falar es car act er íst icos de cer t as camadas sociais do Rio de Janeiro,
o ver bo assume a for ma da t er ceir a pessoa: tu vai , tu fi ca, tu quer ,
tu deixa di sso et c., que car act er iza t ambém a fala infor mal de
algumas out r as r egiões. Em Per nambuco, por [ p g. 46] exemplo, é
muit o comum a int er jeição int er r ogat iva “tu acha?” par a indicar
sur pr esa ou indignação.
Or a, soment e por esse ar caísmo, por essa conser vação de um
único aspect o da linguagem clássica liter ár ia, que coincide com a
língua falada em Por t ugal ainda hoje, é que se per pet ua o mit o de
que o M ar anhão é o lugar “onde melhor se fala o por t uguês” no
Br asil.
Acont ece, por ém, que os defensor es desse mit o não se dão cont a
de que, ao ut ilizar em o crit ér io pr escr it ivist a de cor reção para
sust ent á-lo, se esquecem de que os mesmos maranhenses que dizem
tu és, tu vai s, tu foste, tu qui seste, t ambém dizem: Esse é um bom
l ivr o par a t i l er , em vez da for ma “cor ret a”, Esse é um bom l ivro
par a t u l er es. Ou seja, eles at r ibuem ao pronome ti a mesma função
de sujeit o que em amplas regiões do Brasil, nas mais diver sas
camadas sociais (cult as inclusive), é at r ibuída ao pronome mi m
quando antecedido da pr eposição par a e seguido de verbo no
infinitivo: Para mim fazer i sso vou pr eci sar da sua ajuda — uma
const rução sint át ica que deixa t ant a gent e de cabelo em pé.
O que acont ece com o por t uguês do M ar anhão em relação ao
por tuguês do resto do país é o mesmo que acont ece com o por t uguês
de Por tugal em r elação ao por t uguês do Brasil: não existe nenhuma
variedade nacional, r egional ou local que seja int r insecament e
“melhor ”, “mais pur a”, “mais bonita”, “mais cor reta” que out ra.
Toda variedade lingüíst ica at ende às necessidades da comunidade
de ser es humanos que a empr egam. Quando deixar de at ender , ela
inevit avelment e sofr er á t ransfor mações par a [ p g. 47] se adequar às
novas necessidades. Toda var iedade lingüíst ica é também o
r esult ado de um pr ocesso hist ór ico própr io, com suas vicissit udes e
peripécias par t icular es. Se o por t uguês de São L uís do M ar anhão e
de Belém do Pará, assim como o de Florianópolis, conser vou o
pr onome tu com as conjugações ver bais lusit anas, é porque nessas
r egiões aconteceu, no per íodo colonial, uma for te imigr ação de
açorianos, cujo dialet o específico influenciou a var iedade de
por tuguês br asileiro falado naqueles locais. O mesmo acontece com
algumas car act er íst icas “it alianizant es” do por t uguês da cidade de
São Paulo, onde é gr ande a pr esença dos imigr antes it alianos e seus
descendentes, ou com castelhanismos evident es na fala dos
gaúchos, que mant êm est reitos contatos cult urais com seus vizinhos
ar gent inos e ur uguaios.
Numa ent revista à r evist a Veja (10/9/97), Pasquale Cipro Net o
disse que é “pur a lenda” a idéia de que o M ar anhão é o lugar do
Br asil onde melhor se fala por t uguês. Ponto para ele. I nfelizment e,
continuando a t r at ar do assunto, não hesit ou em afir mar que “no
cômput o ger al, o car ioca é o que se expressa melhor sob a ótica da
nor ma culta” e que

a São Paulo que fala 'dois pastel' e acabou as ficha' é um horror. Não acredito que
o fato de ser uma cidade com grande número de imigrantes seja uma explicação
suficiente para esse português esquisito dos paulistanos. Na verdade, é inexplicável.

Faltam ar gument os cient íficos rigorosos, por par te do


ent revistado, que nos expliquem como chegou ao “cômputo [ p g. 48]
geral” que lhe per mit iu at ribuir ao car ioca uma expr essão “melhor
sob a ót ica da nor ma cult a”, nem com que crit ér ios met odológicos
chegou à conclusão de que o port uguês paulist ano é “esquisit o”. O
uso de expr essões t ão gener alizadoras como “o car ioca” (de que
classe social, de que faixa et ár ia, com que nível de inst r ução?) ou “a
São Paulo que fala” (quase vint e milhões de habit antes, duas vezes
a população de Port ugal!) acaba r efor çando indir et amente (devido à
influência inegável de quem as for mulou como for mador de opinião)
a idéia de que o falar carioca é “melhor ” e digno de maior pr est ígio
que os demais falar es br asileir os — idéia que, no passado, levou até
a se quer er impor a pr onúncia car ioca como a oficial no t eat r o, no
canto lír ico e nas salas de aula do Br asil inteiro!
As pesquisas sociolingüíst icas — que se baseiam em colet a de
dados por meio de gr avações da fala espont ânea, viva, dos usuár ios
nat ivos da língua — confir mam uma suposição óbvia: as pessoas
das classes cultas de qualquer lugar dominam melhor a nor ma
cult a do que as pessoas das classes não-cult as de qualquer lugar .
Falant es cultos do Rio de Janeir o, do Recife, de Por t o Alegr e, de São
Paulo, de Catolé do Rocha ou de Guar at inguet á se expr essar ão
igualment e bem “sob a ót ica da nor ma cult a”. Bast a consult ar , por
exemplo, o enor me acervo de cent enas de hor as de gravação da fala
ur bana cult a recolhido pelos pesquisador es do Pr ojeto NU RC5 par a
confir mar que, [ p g. 49] apesar das inevit áveis var iações r egionais,
exist e uma nor ma ur bana cult a ger al br asileir a. M uitos aspectos
dessa nor ma ur bana cult a est ão descr itos nos seis volumes da
Gr amáti ca do por tuguês falado, uma gr ande obr a colet iva publicada
pela Editor a da U NI CAM P, r esultado do t r abalho de invest igação e
análise de dezenas de lingüist as das mais diver sas regiões do país.
De igual modo, fenômenos de concor dância do t ipo “dois pastel”
e “acabou as ficha” são facilment e encont r áveis na fala carioca,
como podemos ouvir nas fit as gr avadas do Pr ojeto CEN SO, que
5
O material do Projeto NURC pode ser consultado nos vários livros publicados com as transcrições das
fitas gravadas nas cincos diferentes cidades que compõem o projeto (Recife, Salvador, Rio de Janeiro,
São Paulo e Porto Alegre). Alguns desses livros são: CASTILHO & P RETI, A linguagem falada culta na
cidade de São Paulo (São Paulo, T. A. Queiroz/FAPESP, 1987 - vol. 1 - e 1988 - vol. 2); CALLOU &
LOPES, A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, UFRJ, 1992 - vol. 1 -,
1993 - vol. 2 - e 1994 - vol. 3); H ILGERT, A linguagem falada culta na cidade de Porto Alegre (UFRS,
1997, vol. 1); MOTA & ROLLEMBERG, A linguagem falada culta na cidade do Salvador (UFBA, 1994,
vol. 1); SÁ, CUNHA, LIMA & O LIVEIRA, A linguagem falada culta na cidade do Recife (UFPE, 1996).
investiga o uso da língua no Rio de Janeir o nas classes sociais não-
cult as (isto é, pessoas que não cur saram univer sidade)6. Além disso,
esse tipo de concordância se ver ifica de Nor t e a Sul do Br asil — e
t ambém em Port ugal, segundo pesquisas r ecentes da pr ofessora
M aria M art a Scher r e. Essa mesma pesquisador a defendeu, na
Univer sidade Feder al do Rio de Janeir o, uma t ese de dout or ado com
o t ít ulo Reanál i se da concor dânci a [ p g. 50] nomi nal em por tuguês,
com 555 páginas, que hoje é uma refer ência obr igatória par a quem
se avent ur ar a emit ir opiniões a r espeit o. Scher re most r a que, ao
cont r ár io do que pensa Cipr o, aqueles fenômenos de concor dância
são, na verdade, al tamente expl i cáveis. Por t ant o não r epr esent am
uma mera “esquisitice” dos paulist anos, muit o menos um “hor ror ”.
Convém salient ar que a deter minação das nor mas cult a e não-
cult a é uma questão de gr au de fr eqüência das var iant es (o que os
nor mat ivist as consider ar iam err os ou acert os). Por exemplo, coisas
como “os menino tudo” ou “houver am fat os” podem aparecer na fala
de brasileir os cultos.
É preciso abandonar essa ânsia de t ent ar at r ibuir a um único
local ou a uma única comunidade de falant es o “melhor ” ou o “pior”
por tuguês e passar a r espeit ar igualmente todas as var iedades da
língua, que const it uem um tesour o pr ecioso de nossa cultur a. Todas
elas t êm o seu valor , são veículos plenos e per feit os de comunicação
e de r elação ent re as pessoas que as falam. Se tiver mos de
incentivar o uso de uma nor ma cult a, não podemos fazê-lo de modo
absolut o, fonte do pr econceit o. Temos de levar em consideração a
pr esença de r egr as var iáveis em t odas as var iedades, a cult a
inclusive. [ p g. 51]
6
A análise de alguns fenômenos variáveis do português falado na cidade do Rio de Janeiro, com base no
acervo do Projeto CENSO, se encontra no livro organizado por SILVA & SCHERRE, Padrões
sociolingüísticos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro/UFRJ, 1996.
M i t o n° 6
“ O cer t o é f a l a r a ssi m
por qu e se escr eve a ssi m ”

Diant e de uma t abuleta escr it a COLÉGI O é pr ovável que um


per nambucano, lendo-a em voz alt a, diga CÒl égio, que um car ioca
diga CU l égio, que um paulist ano diga CÔl égio. E agor a? Quem est á
cer t o? Or a, todos est ão igualment e cer t os. O que acont ece é que em
t oda língua do mundo exist e um fenômeno chamado var i ação, isto é,
nenhuma língua é falada do mesmo jeit o em t odos os lugar es, assim
como nem t odas as pessoas falam a própr ia língua de modo idênt ico.
I nfelizment e, existe uma t endência (mais um preconceito!)
muit o fort e no ensino da língua de quer er obr igar o aluno a
pr onunciar “do jeito que se escr eve”, como se essa fosse a única
maneir a “cer t a” de falar port uguês. (I magine se alguém fosse falar
inglês ou fr ancês do jeit o que se escr eve!) M uit as gr amát icas e livr os
didáticos chegam ao cúmulo de aconselhar o professor a “cor rigir ”
quem fala mul eque, bêjo, mi ni no, bi sôr o, como se isso pudesse
anular o fenômeno da var iação, tão nat ur al e t ão antigo na hist ória
das línguas. Essa super valorização da língua escr ita combinada
com o despr ezo da língua falada é um pr econceito que dat a de ant es
de Cr isto!
É claro que é pr eciso ensinar a escr ever de acor do com a
or t ografia oficial, mas não se pode fazer isso tent ando cr iar uma
língua falada “ar t ificial” e r epr ovando como “er r adas” as pr onúncias
que são r esult ado nat ur al das [ p g. 52] for ças int er nas que
gover nam o idioma. Ser ia mais justo e democr át ico dizer ao aluno
que ele pode dizer BU ni to ou BOni to, mas que só pode escr ever
BONI TO, porque é necessár ia uma or togr afia única par a toda a
língua, par a que t odos possam ler e compr eender o que est á escrit o,
mas é pr eciso lembr ar que ela funciona como a par t itur a de uma
música: cada inst rumentist a vai int er pr etá-la de um modo todo seu,
par ticular !
O pint or belga René M agr it te (1898-1967) tem um quadr o
famoso, chamado A tr ai ção das i magens, no qual se vê a figura de
um cachimbo e embaixo dela a frase escr it a: “I sto não é um
cachimbo”.

Em que esse exemplo pode ser vir à nossa discussão? I sso não é
um cachimbo de ver dade, mas simplesment e a r epr esentação
gr áfi ca, pi ctór i ca de um cachimbo. O mesmo acont ece com a escr it a
alfabética, em sua r egulament ação or t ogr áfica oficial. Ela não é a
fala: é uma t ent at iva [ p g. 53] de r epr esent ação gr áfica, pict ór ica e
convencional da língua falada. (Falar ei mais det idament e da
par anói a or togr áfi ca na t er ceir a par te deste livr o.)
Quando digo que a escr it a é uma tentativa de r epr esent ação é
porque sabemos que não exist e nenhuma or t ogr afia em nenhuma
língua do mundo que consiga r eproduzir a fala com fidelidade.
Algumas or t ografias, como a do espanhol, t êm r egras mais
gener alizáveis, mais simples e mais coer ent es, que facilit am o at o
de ler e escrever . M esmo assim, no cast elha-no-padr ão da Espanha,
pode sempr e haver dúvidas: Z ou C? B ou V ? G ou J ?
Out r as línguas, como o inglês, t êm mais exceções do que
r egras, e é preciso apr ender a escrever (e a pr onunciar )
pr aticament e cada palavr a, pois a gener alização das r egr as
or t ográficas t em boa chance de falhar : par a um falant e de
por tuguês, é est r anho imaginar que as palavr as jai l e gaol t enham
a mesma pr onúncia! Out ras, ainda, como o chinês, não buscam
r eproduzir a língua falada, e opt am pela escrit a ideogr áfica.
Est a relação complicada ent r e língua falada e língua escr it a
pr ecisa ser pr ofundamente r eexaminada no ensino. Dur ante mais
de dois mil anos, os est udos gr amat icais se dedicar am
exclusivament e à língua escr it a lit er ár ia, for mal. Foi somente no
começo do século XX, com o nascimento da ciência lingüíst ica, que a
língua falada passou a ser considerada como o verdadeir o objeto de
est udo científico. Afinal, a língua falada é a língua tal como foi
aprendida pelo falant e em seu contat o com a família e com a
comunidade, [ p g. 54] logo nos pr imeiros anos de vida. É o
inst r ument o básico de sobrevivência. Um gr it o de socor ro tem muit o
mais eficácia do que essa mesma mensagem escr it a.
A língua escr it a, por seu lado, é tot alment e ar tificial, exige
t r einament o, memor ização, exer cício, e obedece a r egr as fixas, de
t endência conser vador a, além de ser uma repr esent ação não
exaust iva da língua falada.
Faça você mesmo o teste: pegue uma palavr a bem simples —
fogo, por exemplo — e pr onuncie-a com t odas as inflexões e t ons de
voz que conseguir : espanto, medo, alegr ia, t rist eza, saudade, ir a,
r emor so, hor ror , felicidade, hister ia, pavor ... Depois t ente
r eproduzir por escr it o essas mesmas inflexões e t ons de voz. É
impossível. O máximo que a língua escr it a oferece são os sinais de
exclamação e de int er r ogação! A mer a for ma escrit a não é capaz de
t r aduzir as inflexões e as int enções pr etendidas pelo falante. Por
isso, os aut or es de textos t eatr ais indicam, ent re parênt eses, a
emoção, sensação ou sentimento que o at or deve expr essar numa
dada fala.
A impor t ância da língua falada par a o est udo cient ífico est á
pr incipalment e no fato de ser nessa língua falada que ocor r em as
mudanças e as var iações que incessant ement e vão t r ansfor mando a
língua. Quem quiser , por exemplo, conhecer o est ado at ual da
língua por tuguesa do Brasil pr ecisar á invest igar empiricament e a
língua falada (como fazem os pesquisador es dos pr ojetos N U RC e
CENSO, que já cit ei, ent r e out r os). Afinal, a escola, as gr amát icas
nor mat ivas e os livr os didát icos at é hoje afirmam que os pr onomes-
sujeit os de segunda pessoa são [ p g. 55] tu e vós, que o pronome você
é simplesment e uma “for ma de t r at ament o”, que a mesóclise (dar
vo l o ei , di lo íamos, amar nos emos) ainda é uma “opção” par a a
colocação dos pronomes oblíquos, ou que o fut ur o do subjunt ivo do
verbo ver é “vir ”. Essa, por ém, já não é a realidade de boa part e da
língua escrit a no Br asil, que dir á da língua falada!
Do pont o de vist a da histór ia de cada indivíduo, o apr endizado
da língua falada sempr e pr ecede o apr endizado da língua escr it a,
quando ele acont ece. Basta cit ar os bilhões de pessoas que nascem,
cr escem, vivem e mor r em sem jamais aprender a ler e a escrever ! E
no ent anto ninguém pode negar que são falant es perfeit amente
competent es de suas línguas mat er nas.
Do ponto de vist a da histór ia da humanidade é a mesma coisa.
A espécie humana t em, pelo menos, um milhão de anos. Or a, as
pr imeir as for mas de escrit a, confor me a classificação t r adicional dos
hist or iadores, sur gir am há apenas nove mil anos. A humanidade,
por tant o, passou 990.000 anos apenas falando!
Quando o est udo da gramát ica sur giu, no ent anto, na
Ant igüidade clássica, seu objet ivo declar ado er a invest igar as
r egras da língua escr i ta par a poder preser var as for mas
consider adas mais “cor retas” e “elegant es” da língua li ter ár i a. Aliás,
a palavra gr amáti ca, em gr ego, significa exat amente “a ar t e de
escr ever ”.
I nfelizment e, essas mesmas regras da língua lit er ár ia
começar am a ser cobr adas da língua falada, o que é um dispar at e
cient ífico sem t amanho! [ p g. 56]
H á cient ist as que se dedicam especificamente a est udar as
difer enças, semelhanças, int er -r elações e int er ações que exist em
ent re as duas modalidades. O ensino t r adicional da língua, no
entant o, quer que as pessoas falem sempr e do mesmo modo como os
gr andes escr it ores escrever am suas obr as. A gr amática t r adicional
despr eza t ot almente os fenômenos da língua or al, e quer impor a
fer r o e fogo a língua lit erár ia como a única for ma legítima de falar e
escr ever , como a única manifest ação lingüíst ica que mer ece ser
est udada.
Veja-se, por exemplo, o caso da Nova gr amáti ca do por tuguês
contempor âneo, de Celso Cunha e L indley Cint r a. Ao definir em o
objet ivo de seu t r abalho, os autor es declar am, no pr efácio:

Trata-se de uma tentativa de descrição do português atual na sua forma culta, isto
é, da língua como a têm utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos
do Romantismo para cá. [grifo meu]

Essa obr a, por t anto, só pode ser consult ada por quem t iver
dúvidas no moment o de escr ever um t ext o l i terár io, já que, segundo
os pr óprios autores, não ser ão abor dados fenômenos caract er ísticos
de out r as nor mas escr it as, como a jor nalística ou a da pr odução
cient ífica, muit o menos os fenômenos t ípicos da língua falada.
A gr amática de Celso Cunha e L indley Cint r a é louvável pela
honest idade com que declar a seu objeto de est udo (embora, por
diver sas r azões que não cabe aqui enumer ar , eles não cumpr am o
que promet em no pr efácio [ p g. 57] e acabem t r at ando de fat os da
língua oral ao lado de fenômenos car act er íst icos da escrit a).
A maioria das out r as obras desse gêner o, porém, não faz assim:
seus aut ores assumem a nor ma literár ia como a única digna de ser
est udada, ensinada e pr aticada, e acham isso t ão “nat ur al” que nem
se dão ao t r abalho de defini-la como seu objet o de est udo. Fica
evident e que para eles só essa nor ma lit er ár ia conservador a mer ece
o t ítulo de “língua por t uguesa”. O que é dit o ali vale para t odas as
variedades do por t uguês, em qualquer lugar do mundo, em
qualquer momento hist ór ico, em qualquer classe social, em
qualquer faixa et ár ia. Por t ant o, não é uma gr amática, é uma
panacéia...
Essa ênfase no t ext o lit er ár io t em pr oduzido uma visão
r edut or a da língua, ident ificando-a freqüent ement e apenas com a
r egulament ação or togr áfica.
Como se não bastasse, os aut or es de compêndios gr amat icais,
inclusive os mais recent es, não fazem a dist inção básica, elementar ,
ent re ortografi a e fonéti ca, ist o é, ent r e as r egr as da língua escrit a e
os fenômenos da língua or al. Aliás, por mais incr ível que pareça,
muit os deles classificam a or t ogr afia como uma das subdivisões da
fonét ica! É o mesmo que querer incluir os ur sinhos de pelúcia na
classe dos mamífer os car nívoros!
Gr amát ico muito mais cr iterioso e atent o é o r inocer onte
Quindim — per sonagem do Sít io do Pica-pau Amar elo, de M ont eir o
L obat o —, que levando as cr ianças do sít io a passear pelo “País da
Gr amát ica”, insist iu muito para que seus “alunos” não
confundissem let r a e som (p. 6): [ p g. 58]

Trotou, trotou e, depois de muito trotar, deu com eles numa região onde o ar
chiava de modo estranho.
— Que zumbido será este? — indagou a menina [Narizinho]. — Parece que
andam voando por aqui milhões de vespas invisíveis.
— É que já entramos em terras do País da Gramática — explicou o
rinoceronte. — Estes zumbidos são os Sons Orais, que voam soltos no espaço.
— Não comece a falar difícil que nós ficamos na mesma — observou
Emília. — Sons Orais, que pedantismo é esse?
— Som Oral quer dizer som produzido pela boca. A, E, I, O, U são Sons
Orais, como dizem os senhores gramáticos.
— Pois diga logo que são letras! — gritou Emília.
— Mas não são letras! — protestou o rinoceronte. — Quando você diz A ou
O, você está produzindo um som, não está escrevendo uma letra. Letras são
sinaizinhos que os homens usam para representar esses sons. Primeiro há os Sons
Orais; depois é que aparecem as letras, para marcar esses sons orais. Entendeu?
O ar continuava num zunzum cada vez maior. Os meninos pararam, muito
atentos, a ouvir.
— Estou percebendo muitos sons que conheço — disse Pedrinho, com a mão
em concha ao ouvido.
— Todos os sons que andam zumbindo por aqui são velhos conhecidos seus,
Pedrinho.
— Querem ver que é o tal alfabeto? — lembrou Narizinho. — E é mesmo!...
Estou distinguindo todas as letras do alfabeto...
— Não, menina; você está apenas distinguindo todos os sons das letras do
alfabeto — corrigiu o rinoceronte com uma pachorra igual à de dona Benta. — Se
você escrever cada um desses sons, então, sim; então surgem as letras do alfabeto.
[pg. 59]

Esse livr o de M ont eir o L obat o foi publicado em 1934. M as as


lições do r inoceront e Quindim ainda precisam ser lembr adas e
r elembr adas, pois a lit er atur a gramat ical per petua at é hoje a
confusão ent r e l etr a e fonema.
É assim que pr ocedem, por exemplo, Pasquale Cipro Net o e
Ulisses I nfant e em sua Gr amáti ca da l íngua por tuguesa, publicada
no final de 1997. Por isso a gent e não deve se sur pr eender quando
esses aut or es explicam que a let r a x repr esenta o fonema /š/ depois
de um dit ongo, e dão como exemplo de palavr as “com dit ongo”:
amei xa, cai xa, peixe, ei xo, frouxo, tr ouxa, baixo, sem fazer a menor
menção ao fenômeno de monot ongação que já at ingiu essas palavr as
na língua falada no Br asil, inclusive em sua nor ma cult a urbana,
r esult ando nas pr onúncias “amêxa”, “caxa”, “pêxe”, “êxo”, “fr ôxo” e
“baxo”. O t er mo ditongo (“dois sons”), que se aplica a um fenômeno
fonéti co, não cabe nesses exemplos, que r et r at am simplesment e a
convenção or tográfi ca que ainda conser va, na escr i ta, as duas let r as
vogais ant es do X . O que acont ece é que esses “monotongos” podem
vir a se dit ongar em sit uações bem específicas, t al como a r edução
da velocidade da fala com finalidade de dar ênfase ao enunciado.
Pensemos, por exemplo, no uso das palavr as louco e l oucur a quando
usadas de modo afet ado par a indicar coisas surpreendent es ou
muit o boas: “Foi uma l ouuucur a!”
Os mesmos aut or es dizem que na palavr a QUAL exist e um
“dit ongo cr escent e”, quando qualquer br asileiro de ouvido mais
afinado vai r econhecer aí, na ver dade, um tr i tongo. É muit o
r est r it a, no por t uguês do Br asil, a pr onúncia [ p g. 60] /l/ ou /ł/ par a o
L que apar ece em final de sílaba. Na gr ande maior ia dos falar es
br asileir os, esse L se pronúncia como a semivogal /w/.
É o velho pr econceit o gr afocêntri co, ist o é, a análise de toda a
l íngua do pont o de vist a rest rit o da escr it a, que impede o
r econheciment o da verdadeir a r ealidade lingüíst ica.
Por isso, t emos de desconfiar desses livros que se
autodenominam “Gr amática da língua por tuguesa” sem especificar
seu objeto de est udo. A “língua por t uguesa” que eles abor dam é uma
vari edade específi ca, dent r e as muit as exist entes, que t em de ser
designada com todos os seus qualificat ivos: “Gr amática da língua
por tuguesa escr it a, literár ia, for mal, ant iga”. Todos os demais
fenômenos vivos da língua falada e de out ras modalidades da língua
escr it a são deixados de for a desses livros. [ p g. 61]
M i t o n° 7
“ É pr eci so sa ber gr a m á t i ca
pa r a f a l a r e escr ever bem ”

É difícil encont rar alguém que não concor de com a declar ação
acima. Ela vive na ponta da língua da grande maior ia dos
pr ofessores de por tuguês e est á for mulada em muitos compêndios
gr amat icais, como a já citada Gr amáti ca de Cipr o e I nfant e, cujas
pr imeir íssimas palavr as são: “A Gr amát ica é inst r ument o
fundamental par a o domínio do padr ão cult o da língua”.
É muito comum, t ambém, os pais de alunos cobr arem dos
pr ofessores o ensino dos “pontos” de gr amát ica t ais como eles
pr ópr ios os apr ender am em seu t empo de escola. E não faltam casos
de pais que protest ar am veement emente cont r a pr ofessor es e
escolas que, tent ando adotar uma pr át ica de ensino da língua
menos conservador a, não seguiam r igor osament e “o que est á nas
gr amát icas”. Conheço gent e que t irou seus filhos de uma escola
porque o livro didát ico ali adotado não ensinava coisas
“indispensáveis” como “ant ônimos”, “colet ivos” e “análise
sint át ica”...
Por que aquela declaração é um mito? Por que, como nos diz
M ário Per ini em Sofr endo a gr amáti ca (p. 50), “não exist e um grão
de evidência em favor disso; t oda a evidência disponível é em
cont rár io”. Afinal, se fosse assim, t odos os gr amáticos ser iam
gr andes escr itores (o que est á longe de ser ver dade), e os bons
escr it or es ser iam especialistas em gr amát ica. [ p g. 62]
Or a, os escr itores são os pr imeiros a dizer que gr amát ica não é
com eles! Rubem Br aga, indiscut ivelmente um dos grandes de nossa
literat ur a, escr eveu uma cr ônica deliciosa a esse r espeit o chamada
“Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim”.
Car los Dr ummond de Andrade (preciso de adjet ivos par a
qualificá-lo?), no poema “Aula de Por t uguês” também dá
t est emunho de sua per t urbação diante do “mist ér io” das “figur as de
gr amát ica, esquipát icas”, que compõem “o amazonas de minha
ignorância”. Dr ummond ignorant e?
E o que dizer de M achado de Assis que, ao abr ir a gr amát ica de
um sobrinho, se espant ou com sua pr ópria “ignor ância” por “não t er
entendido nada”? Esse e out r os casos são cit ados por Celso Pedr o
L uft em L íngua e l iberdade (pp. 23-25). E esse mesmo autor nos diz
(p. 21):

Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegurança


na linguagem, gera aversão ao estudo do idioma, medo à expressão livre e
autêntica de si mesmo.

M ário Per ini, no livro que cit amos acima, chama a at enção
par a a “pr opaganda enganosa” cont ida no mito de que é pr eciso
ensinar gramát ica par a aprimor ar o desempenho lingüístico dos
alunos:

Quando justificamos o ensino de gramática dizendo que é para que os alunos


venham a escrever (ou ler, ou falar) melhor, estamos prometendo uma mercadoria
que não podemos entregar. Os alunos percebem isso com bastante clareza, embora
talvez não o possam explicitar; e esse é um dos fatores do descrédito da disciplina
entre eles. [pg. 63]

E Sir io Possenti, já citado, lembr a-nos que as pr imeir as


gr amát icas do Ocident e, as gr egas, só for am elabor adas no século I I
a. C, mas que muit o antes disso já exist ir a na Gr écia uma lit er atur a
ampla e diver sificada, que exer ce influência até hoje em t oda a
cult ura ocident al. A I líada e a Odi sséi a já er am conhecidas no
século VI a. C, Plat ão escr eveu seus fascinant es Diálogos ent r e os
séculos V e I V a. C, na mesma época do gr ande dramat ur go Esquilo,
verdadeir o cr iador da t r agédia gr ega. Que gr amát ica eles
consult ar am? Nenhuma. Como puderam ent ão escrever e falar t ão
bem sua língua?
O que acont eceu, ao longo do t empo, foi uma i nver são da
r ealidade hist ór ica. As gr amát icas for am escr itas pr ecisamente
par a descr ever e fixar como “regr as” e “padrões” as manifest ações
lingüíst icas usadas espontaneament e pelos escrit or es consider ados
dignos de admiração, modelos a ser imit ados. Ou seja, a gr amáti ca
nor mativa é decor r ênci a da l íngua, é subor dinada a ela, dependente
dela. Como a gr amát ica, porém, passou a ser um i nstr umento de
poder e de contr ol e, sur giu essa concepção de que os falantes e
escr it or es da língua é que pr ecisam da gr amática, como se ela fosse
uma espécie de font e míst ica invisível da qual emana a língua
“bonita”, “corr eta” e “pura”. A língua passou a ser subor dinada e
dependent e da gramát ica. O que não est á na gr amát ica nor mat iva
“não é por t uguês”. E os compêndios gr amat icais se t r ansfor mar am
em livr os sagrados, cujos dogmas e cânones t êm de ser obedecidos à
r isca par a não se cometer nenhuma “her esia”. [ p g. 64]
O result ado dessa inver são dos fat os hist ór icos é visível, por
exemplo, na Gr amáti ca de Cipro e I nfant e que, na p. 16, afir ma:

A Gramática normativa estabelece a norma culta, ou seja, o padrão lingüístico que


socialmente é considerado modelar [...] As línguas que têm forma escrita, como é
o caso do português, necessitam da Gramática normativa para que se garanta a
existência de um padrão lingüístico uniforme [...].
Or a, não é a gramát ica nor mat iva que “est abelece” a nor ma
cult a. A nor ma cult a simplesmente exi ste como t al. A tar efa de uma
gr amát ica ser ia, isso sim, defi ni r , i dentifi car e local i zar os falant es
cult os, col etar a língua usada por eles e descr ever essa língua de
for ma clar a, objet iva e com cr it ér ios t eóricos e metodológicos
coer entes. Sem isso não podemos confiar em gr amát icas como a de
Domingos Paschoal Cegalla, que afir ma simplesment e:

Este livro pretende ser uma Gramática Normativa da Língua Portuguesa do Brasil,
conforme a falam e escrevem as pessoas cultas na época atual [Novíssima
gramática da língua portuguesa, p. xix].

M as quem são essas “pessoas cult as na época at ual”? Com que


cr itér ios o aut or as classificou de “cult as”? Com que met odologia
pr ecisa identificou o modo como elas “falam e escr evem”? Pois é
disso pr ecisamente que mais necessit amos hoje no Br asil: da
descrição detalhada e r ealist a da nor ma cult a objetiva, com base em
colet as confiáveis que se ut ilizem dos r ecur sos t ecnológicos mais
avançados, par a que ela sir va de base ao ensino/aprendizagem [ p g.
65] na escola, e não mais uma nor ma fictícia que se inspir a num
ideal lingüíst ico inat ingível, baseado no uso lit er ário, ar t íst ico,
par ticular e exclusivo dos gr andes escr it or es. Afinal, um inst r ut or
de aut o-escola quer for mar bons mot or ist as, e não campeões
int er nacionais de Fór mula 1. Um pr ofessor de por t uguês quer
for mar bons usuár ios da língua escr it a e falada, e não pr ováveis
candidat os ao Prêmio Nobel de lit er atur a!
Por out r o lado, não é a gr amática nor mat iva que vai “gar ant ir
a exist ência de um padr ão lingüíst ico unifor me”. Esse padr ão
lingüíst ico (que pode chegar a cer t o gr au de unifor midade, mas
nunca ser á t ot alment e unifor me, pois é usado por ser es humanos
que nunca hão de ser cr iatur as física, psicológica e socialment e
idênticas), como já dissemos, exist e na sociedade,
independent emente de haver ou não livr os que o descrevam.
As plant as só existem por que os livr os de botânica as
descrevem? É clar o que não. Os cont inent es só passar am a existir
depois que os primeir os cart ógr afos desenhar am seus mapas? Difícil
acr editar . A Ter ra só passou a ser esfér ica depois que as pr imeiras
fot ogr afias t ir adas do espaço most r ar am-na assim? Não. Sem os
livros de r eceit as não haver ia culinár ia? Eu sei muito bem que não:
a melhor cozinheira que conheço, capaz de pr epar ar centenas de
pr atos difer entes, os mais sofist icados, é uma per nambucana de
quase oitent a anos, cem por cent o analfabeta.
Esse mit o est á ligado à milenar confusão que se faz ent r e
l íngua e gr amáti ca nor mati va. M as é pr eciso desfazê-la. [ p g. 66]
Não há por que confundir o t odo com a par te. L embr a-se do que eu
falei na aber t ur a do livr o sobre a gr amát ica nor mativa ser um
i gapó? Acho que vale a pena r epet ir aqui. Na Amazônia, i gapó é
uma gr ande poça de água estagnada às mar gens de um r io,
sobret udo depois da cheia. Acho uma boa met áfor a par a a
gr amát ica nor mat iva. Como eu disse, enquant o a língua é um rio
caudaloso, longo e lar go, que nunca se detém em seu cur so, a
gr amát ica nor mat iva é apenas um igapó, uma gr ande poça de água
par ada, um char co, um br ejo, um t er r eno alagadiço, à mar gem da
língua. Enquant o a água do r io/língua, por estar em moviment o, se
r enova incessant ement e, a água do igapó/gramát ica nor mat iva
envelhece e só se r enovar á quando vier a pr óxima cheia.
É a mesma coisa que nos explica, em t er mos cient íficos, L uiz
Car los Cagliar i em Al fabeti zação & li ngüísti ca7:

A gramática normativa foi num primeiro momento uma gramática descritiva de


um dialeto de uma língua. Depois a sociedade fez dela um corpo de leis para reger
o uso da linguagem. Por sua própria natureza, uma gramática normativa está con-
denada ao fracasso, já que a linguagem é um fenômeno dinâmico e as línguas
mudam com o tempo; e, para continuar sendo a expressão do poder social
demonstrado por um dialeto, a gramática normativa deveria mudar.

Se não é o ensino/est udo da gr amát ica que vai garant ir a


for mação de bons usuários da língua, o que vai gar anti-la? Exist e
muit o debat e a respeito ent r e os lingüist as [ p g. 67] e os pedagogos.
O cer t o é que eles são pr aticament e unânimes em combat er aquele
mit o. H á lugar par a a gr amát ica na escola? Parece que sim. M as
t ambém parece ser . um lugar bast ant e diferent e do que lhe era
at r ibuído na prát ica t r adicional de ensino da língua. Na t er ceir a
par te deste livr o, t ent ar ei expor algumas opiniões a respeit o.
De todo modo, algumas pessoas muit o compet ent es já
explicaram t udo isso melhor do que eu ser ia capaz. Por isso, ao
leitor e à leit or a int er essados nesse t ema r ecomendo a leit ur a, ent r e
out ros, dos já cit ados Sofr endo a gr amáti ca, de M ár io Per ini, Por
que (não) ensi nar gr amáti ca na escol a, de Sír io Possenti, e L íngua e
l i ber dade, de Celso Pedro L uft , e t ambém L i nguagem, l íngua e fal a,
de Er nani Ter r a; Contradi ções no ensi no de por tuguês, de Rosa
Virgínia M at t os e Silva, e Gramáti ca na escol a, de M ar ia H elena de
M our a Neves. Esses livr os nos ajudam a compr eender melhor os
mecanismos de exclusão que agem por t r ás da imposição das
nor mas gramat icais conser vador as no ensino da língua e de que

7
Citado por Ernani Terra, Linguagem, língua e fala, p. 46.
modo poderíamos, em nossa pr ática pedagógica, tent ar desmont á-
los. [ p g. 68]
M i t o n°8
“ O d om í n i o d a n or m a cu l t a
é u m i n st r u m en t o d e a scen sã o soci a l ”

Este mit o, que vem fechar nosso cir cuit o mitológico, t em muit o
que ver com o pr imeir o, o mit o da unidade lingüíst ica do Br asil.
Esses dois mit os são apar entados por que ambos t ocam em sér ias
quest ões sociais. É muit o comum encont r ar pessoas muito bem-
int encionadas que dizem que a nor ma padr ão conser vador a,
t r adicional, liter ár ia, clássica é que t em de ser mesmo ensinada nas
escolas por que ela é um “inst r ument o de ascensão social”. Seria
então o caso de “dar uma língua” àqueles que eu chamei de “sem-
língua”?
Or a, se o domínio da nor ma cult a fosse realment e um
inst r ument o de ascensão na sociedade, os pr ofessor es de por tuguês
ocupar iam o t opo da pirâmide social, econômica e polít ica do país,
não é mesmo? Afinal, supost ament e, ninguém melhor do que eles
domina a nor ma cult a. Só que a ver dade est á muito longe disso
como bem sabemos nós, pr ofessor es, a quem são pagos alguns dos
salários mais obscenos de nossa sociedade. Por out r o lado, um
gr ande fazendeiro que t enha apenas alguns poucos anos de est udo
pr imário, mas que seja dono de milhares de cabeças de gado, de
indúst r ias agr ícolas e detent or de gr ande influência polít ica em sua
r egião vai poder falar à vont ade sua língua de “caipir a”, com todas
as for mas sint át icas consider adas “er radas” pela gr amát ica [ p g. 69]
t r adicional, porque ninguém vai se at r ever a cor r igir seu modo de
falar .
O que estou tent ando dizer é que o domínio da nor ma cult a de
nada vai adiant ar a uma pessoa que não t enha todos os dent es, que
não tenha casa decent e par a mor ar , água encanada, luz elét rica e
r ede de esgot o. O domínio da nor ma cult a de nada vai ser vir a uma
pessoa que não tenha acesso às tecnologias moder nas, aos avanços
da medicina, aos empr egos bem r emuner ados, à part icipação at iva e
consciente nas decisões políticas que afet am sua vida e a de seus
concidadãos. O domínio da nor ma cult a de nada vai adiant ar a uma
pessoa que não t enha seus dir eit os de cidadão r econhecidos
plenament e, a uma pessoa que viva numa zona r ur al onde um
punhado de senhor es feudais cont rolam extensões gigant escas de
t er r a fér t il, enquant o milhões de famílias de lavr ador es sem-t er r a
não têm o que comer .
Achar que bast a ensinar a nor ma cult a a uma cr iança pobr e
par a que ela “suba na vida” é o mesmo que achar que é pr eciso
aument ar o númer o de policiais na r ua e de vagas nas
penitenciár ias par a r esolver o pr oblema da violência ur bana.
A violência ur bana est á intimament e ligada a uma sit uação
social de profunda injust iça, que dá ao Br asil, como eu já disse, o
t r iste segundo lugar ent r e os países com a pior dist ribuição de
r enda de t odo o mundo, per dendo apenas par a Bot swana, um país
afr icano desér t ico, muito menor e muit o menos desenvolvido.
É preciso gar ant ir , sim, a t odos os br asileiros o reconhecimento
(sem o t r adicional julgament o de valor ) da [ p g. 70] var iação
lingüíst ica, por que o mer o domínio da nor ma cult a não é uma
fór mula mágica que, de um moment o par a out r o, vai r esolver t odos
os problemas de um indivíduo carent e. É preciso favor ecer esse
r econheciment o, mas t ambém gar ant ir o acesso à educação em seu
sentido mais amplo, aos bens cult ur ais, à saúde e à habitação, ao
t r anspor t e de boa qualidade, à vida digna de cidadão mer ecedor de
t odo r espeito.
Como é fácil per ceber , o que est á em jogo não é a simples
“t r ansfor mação” de um indivíduo, que vai deixar de ser um “sem-
língua padr ão” para t or nar -se um falant e da variedade cult a. O que
est á em jogo é a tr ansfor mação da soci edade como um todo, pois
enquant o viver mos numa est r utur a social cuja exist ência mesma
exi ge desigual dades soci ais pr ofundas, t oda tent at iva de pr omover a
“ascensão” social dos mar ginalizados é, senão hipócr it a e cínica,
pelo menos de uma boa int enção pat er nalist a e ingênua.
Por isso eu me pergunto: ser á que “doando” a língua padr ão a
um indivíduo das classes subalt er nas ele vai, aut omat icamente,
t or nar -se um patrão? Não é mer a coincidência etimológica o fato de
padr ão e patr ão ser em duas for mas divergent es de uma mesma
or igem comum: o lat im patronu , que t em t ambém a mesma r aiz de
pater nal i smo e patri ar cali smo.
Valer á mesmo a pena promover a “ascensão social” para que
alguém se enquadr e dentr o desta soci edade em que vi vemos, t al
como ela se apr esent a hoje? Basta pensar um pouco nos indivíduos
que det êm o poder no Br asil: não são (quando são) apenas falant es
da nor ma cult a, mas são sobr et udo, em sua gr ande maioria,
homens, [ p g. 71] br ancos, heterossexuai s, nasci dos/ cr i ados na
por ção Sul Sudeste do país ou oriundos das ol i gar qui as feudai s do
Nor deste.
Como eu já t inha avisado na aber t ura do livro, falar da língua é
falar de política, e em nenhum moment o est a r eflexão polít ica pode
est ar ausent e de nossas post ur as t eór icas e de nossas atit udes
pr áticas de cidadão, de pr ofessor e de cient ista. Do cont rár io,
est aremos apenas cont ribuindo para a manut enção do cír culo
vicioso do preconceito lingüíst ico e do ir mão gêmeo dele, o cír cul o
vi ci oso da i njusti ça soci al . [ p g. 72]
II
O cí r cu l o vi ci oso
d o pr econ cei t o l i n gü í st i co

1. Os tr ês el ementos que são quatr o


Os mit os que acabamos de examinar são t ransmit idos e
perpet uados em nossa sociedade, cada um deles em gr au maior ou
menor , por um mecanismo que podemos chamar de cír cul o vi ci oso
do pr econcei to li ngüísti co. Esse cír culo vicioso se for ma pela união
de t rês elementos que, sem desrespeit ar meus amigos t eólogos,
cost umo denominar “Santíssima Tr indade” do pr econceito
lingüíst ico. Esses t r ês element os são a gramáti ca tr adi ci onal , os
métodos tr adi ci onai s de ensi no e os l i vr os di dáti cos:

Como é que se for ma esse cír culo? Assim: a gr amát ica


t r adicional inspir a a pr át ica de ensino, que por sua [p g. 73] vez
pr ovoca o sur giment o da indúst r ia do livr o didát ico, cujos aut or es —
fechando o cír culo — r ecor r em à gr amát ica t r adicional como font e
de concepções e teor ias sobre a língua.
Á gr amática t radicional, em sua ver tent e normat ivo-
pr escrit ivist a, continua fir me e for t e, como é fácil verificar nos
compêndios gr amat icais mais r ecent es. As prát icas de ensino
variam muito de r egião par a r egião, de escola para escola, e até de
pr ofessor para pr ofessor , de acordo com as concepções pedagógicas
adot adas. A t endência at ual, mencionada no início dest e livro, à
cr ít ica dos preconceit os e ao exer cício da t oler ância tem t or nado o
ambient e escolar bast ante mais respir ável e democr ático do que,
por exemplo, na época em que est udei, em plena dit adur a milit ar .
Como já vimos, a mais alt a inst ância educacional do país, o
M inist ér io da Educação, tem feit o esfor ços louváveis par a provocar
uma r eflexão sobr e os t emas r elat ivos à ét ica e à cidadania plena do
indivíduo, par a est imular uma postur a menos dogmát ica e mais
flexível, por par te, pelo menos, das escolas públicas. Os já cit ados
Par âmetr os cur r i cul ar es naci onai s r econhecem que exist e

muito preconceito decorrente do valor atribuído às variedades padrão e ao estigma


associado às variedades não-padrão, consideradas inferiores ou erradas pela
gramática. Essas diferenças não são imediatamente reconhecidas e, quando são,
são objeto de avaliação negativa.
Para cumprir bem a função de ensinar a escrita e a língua padrão, a escola
precisa livrar-se de vários mitos: o de que [ p g. 74] existe uma forma “correta” de
falar, o de que a fala de uma região é melhor do que a de outras, o de que a fala
“correta” é a que se aproxima da língua escrita, o de que o brasileiro fala mal o
português, o de que o português é uma língua difícil, o de que é preciso
“consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado.
Essas crenças insustentáveis produziram uma prática de mutilação cultural
[...]1

1
Ministério da Educação e do Desporto (1998): Parâmetros curriculares nacionais, Língua Portuguesa,
5ª a 8a séries, p. 31.
Temos ainda de esper ar par a ver em que medida esses esfor ços
se r efletir ão na prát ica quot idiana, efet iva, dos pr ofessor es em sala
de aula. Acompanhando esse moviment o, muit as edit or as vêm
t entando pr oduzir um mat er ial didát ico mais compatível com as
novas concepções pedagógicas, e o sist ema oficial de avaliação dos
livros didát icos, apesar de muit o crit icado, t em cont r ibuído par a
uma r evisão das for mas t r adicionais de elaboração desse t ipo de
livro.
M as os pr econceitos, como bem sabemos, impr egnam-se de t al
maneir a na ment alidade das pessoas que as at it udes
pr econceit uosas se t or nam par t e int egr ante do nosso própr io modo
de ser e de est ar no mundo. É necessár io um t r abalho lent o,
contínuo e profundo de conscient ização par a que se comece a
desmascar ar os mecanismos perver sos que compõem a mit ologia do
pr econceito. E o t ipo mais t r ágico de pr econceit o não é aquele que é
exer cido por uma pessoa em r elação a out ra, mas o pr econceit o [ p g.
75] que uma pessoa exer ce cont r a si mesma. I nfelizment e, ainda
exist em muit as mulheres que se consider am “infer ior es” aos
homens; exist em negros que acr edit am que seu lugar é mesmo de
subser viência em r elação aos brancos; existem homossexuais
convict os de que sofrem de uma “doença” que pode, inclusive, ser
cur ada...
Do mesmo modo, muitos br asileir os acr edit am que “não sabem
por tuguês”, que “por t uguês é muito difícil” ou que a língua falada
aqui é “t oda er r ada”. E ao cont rár io dos demais preconceit os, que
vêm sendo at acados com algum sucesso com diver sos mét odos de
combate, o pr econceit o lingüíst ico pr ossegue sua mar cha. Se já
exist e uma mudança de at itude nos livr os didát icos e na pedagogia
oficial, por que o cír culo vicioso do preconceit o lingüíst ico cont inua
gir ando?
I nt r igado com isso, comecei a prestar at enção à minha volt a e
cheguei à conclusão de que o cír culo vicioso não est ava complet o.
Descobri que, assim como os Tr ês M osquetei ros de Alexandr e
Dumas são quat r o, t ambém existe um quar t o element o ocult o
dent r o daquele cír culo. Como est e quar to elemento não é t ão
compact amente inst it ucionalizado quant o os demais, a gent e deixa
de per cebê-lo.
M as, afinal, que quar t o elemento é esse? É aquilo que r esolvi
chamar de comandos par agr amati cai s. É t odo esse ar senal de
livros, manuais de r edação de empr esas jor nalíst icas, pr ogramas de
r ádio e de televisão, colunas de jor nal e de revist a, CD -ROM S,
“consultórios gr amat icais” [ p g. 76] por t elefone e por aí afor a... É a
“saudável epidemia” a que se r efer e Ar naldo Nisk ier no ar t igo que
citei ao falar do M it o n° 2, “epidemia” que, par a mim, nada tem de
“saudável”, e vou explicar por quê. O que os comandos
par agr amati cai s poder iam r epresent ar de ut ilidade par a quem t em
dúvidas na hor a de falar ou de escr ever acaba se perdendo por t rás
da espessa neblina de preconceit o que envolve essas manifestações
da (mult i)mídia. Assim, t udo o que elas fazem de concreto é
perpet uar as velhas noções de que “brasileir o não sabe por t uguês” e
de que “por t uguês é muit o difícil”.
É uma pena que seja assim. Todo esse for midável poder de
influência dos meios de comunicação e dos recur sos da infor mática
poder ia ser de grande utilidade se fosse usado pr ecisament e na
dir eção opost a: na dest ruição dos velhos mit os, na elevação da aut o-
est ima lingüíst ica dos brasileir os, na divulgação do que há de
r ealmente fascinant e no est udo da língua. M as não é assim. Toda
vez que alguém se põe a falar da sit uação lingüíst ica do Br asil, é
par a r epet ir as mesmas queixas e lamúr ias de cem anos at rás ou
mais.
Um exemplo. Na ent r evist a de Pasquale Cipr o Net o à r evist a
Veja, que citamos na pr imeir a part e dest e livro, o t ext o que
antecede a ent r evist a propr iamente dita r episa aqueles mesmos
chavões bolor entos:

[...] professor de português — um idioma que, de tão maltratado no dia-a-dia dos


brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhões que o têm como
língua materna. [pg. 77]

E a pr imeir a per gunt a, como er a de pr ever diante de uma


aber t ur a t ão pessimist a, só podia ser : “Por que o português é tão
mal fal ado e tão mal escri to no Br asi l?” E o ent revistado par te logo
par a a explicação das “causas visíveis” dessa sit uação, sem
contestar em momento algum a afirmação, fácil de negar , cont ida
na per gunt a. E da mesma for ma como Cândido de Figueir edo, em
1903, e Arnaldo Niskier , em 1998, ele invest e cont r a os
est r angeir ismos declarando que

o sujeito que usa um termo em inglês no lugar do equivalente em português é, na


minha opinião, um idiota.

Or a, se ele mesmo r econhece que o uso de est r angeirismos é “a


face mais ir r itant e de um país colonizado cult ur almente como o
nosso”, é injust o chamar de “idiot a” a pessoa que é, de fato, uma
víti ma dessa colonização cult ural. Se nosso comér cio está replet o de
nomes em inglês é por que os comer ciantes e os indust r iais sabem
que isso at r ai mais o público, que qualquer pr oduto com aparência
de est r angeir o tem maior aceit ação por par te do consumidor .
Quant o aos comandos par agr amati cai s, não faltam exemplos
do preconceit o lingüíst ico que os or ient a. Como o espaço de que
disponho nest e livro é muito pequeno, não ser á possível fazer um
exame por menorizado de muit as dessas manifest ações
pr econceit uosas, por isso me limit ar ei a algumas mais gr it ant es,
que mer ecem ser denunciadas. [ p g. 78]

2. Sob o i mpér io de Napol eão


O mais respeit ado e r enomado propagador do preconceit o
lingüíst ico por meio de comandos par agramati cai s no Br asil foi,
dur ant e longas décadas, o pr ofessor Napoleão M endes de Almeida,
at é falecer no começo de 1998, aos 87 anos. Ele nunca escondeu sua
int oler ância e seu aut or it ar ismo em suas colunas de jor nal, e é fácil
verificá-lo nas mais de 600 páginas de seu Di ci onári o de questões
ver nácul as. Como ele foi (e ainda é) aclamado por muitos como um
“defensor int ransigente da língua”, par ece-me oport uno most r ar de
que maneir a ele exer ceu essa sua defesa.
O ver bet e VERNÁCU LO do cit ado Di ci onár io começa assim:

Os delinqüentes da língua portuguesa fazem do princípio histórico “quem faz a


língua é o povo” verdadeiro moto para justificar o desprezo de seu estudo, de sua
gramática, de seu vocabulário, esquecidos de que a falta de escola é que ocasiona
a transformação, a deterioração, o apodrecimento de uma língua. Cozinheiras,
babás, engraxates, trombadinhas, vagabundos, criminosos é que devem figurar,
segundo esses derrotistas, como verdadeiros mestres de nossa sintaxe e legítimos
defensores do nosso vocabulário.

Bast a esse par ágr afo par a demonst r ar que, além do preconceit o
lingüíst ico, est á aí manifest ado um profundo pr econceito social. Em
out ras passagens do livro, ele fala novament e de “língua de
cozinheiras” e de “infelizes caipir as”. [ p g. 79]
Par a Napoleão M endes de Almeida, a lit er at ura br asileir a
mor r eu em 1908, junt o com M achado de Assis. Toda a vast a
pr odução do M odernismo e dos per íodos seguint es é merecedor a de
seu mais pr ofundo despr ezo:

Escritor é o que tem forma e conteúdo; aquela terá quem conhecer o idioma; este,
quem tiver erudição e, principalmente, cultura. Se somente a forma, temos o
frívolo; se somente o conteúdo, temos o técnico; se as duas coisas, temos o
escritor; se nenhuma delas, teremos o... modernista.

Recusa-se a escr ever o nome de Car los Dr ummond de Andr ade,


a quem nega o t ít ulo de poet a e escr itor por ter usado o ver bo ter no
lugar de haver no célebr e poema “No meio do caminho”, pecado
suficient e par a condená-lo ao infer no dos gramát icos!
As explicações de Napoleão se baseiam exclusivament e em
compar ações com o lat im e o gr ego, e fr eqüent emente at r ibuem a
or igem dos supostos “err os” da sint axe dos br asileiros à imit ação
ser vil do fr ancês ou do inglês, desconsider ando sist emat icamente
t odas as cont r ibuições da ciência lingüíst ica moder na. Aliás, no
verbete LI NGÜ Í STI CA , ele deixa t r anspar ecer sua desinfor mação
acer ca do que r ealmente é essa ciência:

A lingüística não estuda idioma nem gramática nenhuma, a lingüística estuda a


fala, explica fatos naturais de articulação, de formas de expressão oral do ser
humano; como estudo da estrutura das línguas em geral, não vai além da fonética.
Enganam-se os pais, enganam-se os filhos quando pensam estar a escola, a
faculdade ensinando gramática, ensinando a língua da terra porque no programa
consta “lingüística”. O objeto da lingüística [pg. 80] é a língua no sentido da fala,
de dom de expressar o homem por palavras o pensamento; é um estudo sem
utilidade específica para este ou aquele idioma. [...] É um dos grandes enganos de
certas faculdades de letras fazer alunos acreditar que estão a aprender a língua de
sua terra com explanações de estrutura da fala do homem. É a lingüística um dos
estorvos do aprendizado da língua portuguesa em escolas brasileiras.

Par a ele, est udar lingüística é “fixar inúteis, pr et ensiosas e


r idículas bizantinices”. Fica evident e por essas palavr as que o
pr ofessor Napoleão jamais pôs os pés numa boa univer sidade depois
que o ensino da lingüíst ica foi instit uído nos cur sos de let r as do
Br asil. E que t ampouco leu um único sequer dos muit íssimos livr os
int it ulados I ntr odução à l ingüísti ca par a saber qual é o ver dadeiro
objet o de est udo dessa ciência. Acr edit ar que a lingüística “não vai
além da fonét ica” é de uma ingenuidade imperdoável em alguém
que julgava ter aut oridade suficient e par a policiar a língua dos
jor nalist as e dos escr it or es, par a decr et ar o que é “cer to” e “er r ado”
no por tuguês brasileir o, par a afir mar , sem papas na língua, no
verbete VERN ÁCUL O, que

é português estropiado que no Brasil se fala, língua de gíria, língua sem peias
sintáticas, língua de flexão arbitrária, língua do 'deixô vê', do 'mande ele', do 'já te
disse que você', do não lhe conheço', do 'fiz ele estudar', do 'vi os meninos saírem'.

Esse seu t ot al desconheciment o da lingüíst ica é que lhe


per mit e fazer conject ur as sem nenhum fundamento cient ífico ou de
qualquer out ra nat ur eza como: [ p g. 81]

A gramática, no que diz respeito à função da palavra, é internacional. O que é


sujeito em português é sujeito em chinês; o que é objeto direto em nosso idioma é
objeto direto em qualquer outro, e o mesmo se diga de todas as funções sintáticas
e de todas as classes de palavras.

Essa gr amát ica “inter nacional” é pur a ficção, frut o da


ignorância lingüíst ica do autor . Par a compr ovar isso, e usando o
exemplo que ele mesmo suger iu — o chinês — basta um breve
exame da lit er at ura científica especializada:

[em chinês] não existe nenhuma morfologia de casos que assinale diferenças entre
relações gramaticais como sujeito, objeto direto ou objeto indireto, nem existe
qualquer “concordância” ou flexão verbal para indicar o que é sujeito e o que é
objeto. No chinês, de fato, há poucas razões gramaticais para se postular relações
gramaticais, embora haja, é claro, meios de distinguir quem fez o quê a quem, tal
como existem em todas as línguas2.

Além disso, o mesmo estudo diz que em chinês não há nada que
se possa classificar de “adjetivos”, desment indo, por t ant o, o que
Napoleão pensa acer ca da “inter nacionalidade” das “classes de
palavr as”.
No caso de Napoleão M endes de Almeida, a car ga de
pr econceito lingüíst ico já não é a “neblina espessa” a que me referi
mais acima: é uma ver dadeira par ede de r ocha imper meável e
int r ansponível, que impede o acesso a [ p g. 82] qualquer event ual
ut ilidade que suas explicações possam t er . Seu Di cionári o de
questões ver nácul as, da per spect iva da ét ica mais element ar ,
desrespeit a os direit os lingüíst icos dos cidadãos brasileir os.

3. Um festi val de asnei r as


Na mesma linha de conduta preconceit uosa se encont r a o livro
Não er r e mais!, de L uiz Antonio Sacconi. A edição que t enho é a 23a,
de 1998, o que most r a o amplo sucesso da obr a, um ver dadeiro best
sel l er . Tr ata-se, cont udo, de um pr at o cheio (420 páginas!) par a
quem desejar ver , em let r a impr essa, a per pet uação de t odos os
pr econceitos que examinamos na pr imeir a part e deste livr o.

2
LI, Charles & THOMPSON, Sandra. “Chinese”, in COMRIE, B. (ed.), The World's Major Languages,
London, Routledge, 1987, pp. 824-825.Tradução minha.
Quais são os problemas de Não er r e mai s!?. Par a começar , o
livro não t em o mais r emot o cr it ér io de organização: os supost os
“er r os” são encadeados caot icament e, um após o out r o, sem
nenhuma dist r ibuição baseada em tipos de “er r os” (or t ogr áficos,
fonét icos, sint át icos, mor fológicos) nem na mais element ar or dem
alfabética de assunt o.
Em seguida, t enta ensinar coisas per feit ament e inút eis, como a
pr onúncia “corr eta” do nome inglês do modelo de um car ro que, por
sinal, já deixou de ser fabr icado (M onza Cl assi c SE) e também das
siglas FNM e DK W (igualmente extint as), a gr afia “cor r et a” do
apelido da apr esent adora de televisão Xuxa (que, segundo ele,
dever ia se escr ever Chucha), ou a conjugação do verbo apr opi nquar
se, que ninguém em sã consciência usa no Br asil, a menos que
queira pr ovocar r isos ou passar por pedante... [ p g. 83]
Além disso, cor r ige “er ros” cometidos por uma única pessoa, em
deter minada ocasião, em deter minado momento, que não t êm,
por tant o, a fr eqüência de uma r egr a variável (o que os
pr escrit ivist as chamam de “er r o comum”), mas lapsos comet idos por
alguém, o que não just ifica sua inclusão num livr o desse t ipo.
M as o pior de t udo é a enxur r ada de expressões
pr econceit uosas que inundam o livr o de pont a a pont a. Apesar de
Sacconi at r ibuí-las à sua “índole espir it uosa” e dizer que isso “nada
t em que ver com despr ezo ou menospr ezo aos ignor ant es”, o uso
mesmo do ter mo “ignor ant es” já constit ui um sinal desse “desprezo
ou menospr ezo”. Por que, lendo o livr o, o leit or descobr e que todos os
br asileir os, com exceção do aut or , são “ignor antes” no que diz
r espeit o à língua: a cada página surge uma invect iva cont ra uma
entidade amorfa e indefinida chamada “povo”, cont r a os jor nalist as
em bloco, cont r a os aut or es de dicionár ios, cont r a a Academia
Br asileir a de L et r as, cont ra escr itores clássicos, cont r a out r os
gr amát icos, cont ra especialist as nas mais diver sas ciências e
t écnicas... Fica clar o, ent ão, que a “nor ma culta” é uma flor única,
que só ger mina no jar dim da casa dele. Afinal, se t odos os mapas e
livros de geogr afia t r azem a for ma Antár ti da, que aut or idade t em
Sacconi par a dizer que isso é “lament ável” e que a for ma “cer t a” é
“Ant ár t ica”?
Vamos examinar apenas as primeir as cem páginas de Não er r e
mai s! (ir além disso ser ia malt r at ar demais o est ômago do leit or ).
Nelas apar ecem doze palavras der ivadas [ p g. 84] de asno
(“asinino”,”asneir a”,”asnice”) par a se referir àqueles mesmos
“ignorant es” mencionados no text o de abert ur a do livr o. Sendo ao
t odo 420 páginas, podemos imaginar quant as mais não apar ecer ão!
(“L íngua de jacu” é out r a das expr essões favor it as dele.)
Sacconi se r evela, desse modo, um discípulo fiel e imit ador
perfeit o de Cândido de Figueir edo, que em O que se não deve di zer
(de 1903!) declara:

Em geral, os espíritos fortes... na asneira julgam microscópicas as questões de


letras, e até as questões de palavras (vol. 1, p. 17).

Os jor nalist as são o alvo preferido das t ir adas pr econceit uosas


do autor de Não er r e mai s!:

[...] essa mesma imprensa, para não fugir à sua regra maior, que é ignorar a
coerência, põe os pés pelas mãos (p. 30).

Essa gente que escreve em jornais é uma gracinha! (p. 40).

Alguns de nossos jornais e jornalistas se tornaram um problema a mais para todos


os professores de Português. Até quando? (p. 45).
[...] excrescências comuns na boca e na pena de certos jornalistas versados em
esporte. (p. 52).

Há jornalistas que, de fato, inventam a toda a hora, aprontam com todo o mundo...
(p. 54).

Os jornalistas usam: o aumento do funcionalismo, o aumento da gasolina, o


aumento da carne. É o mais puro aumento da incompetência... (p. 68). [ p g. 85]

Os brasileiros, por exemplo, vivem mal e parcamente num país onde os jornalistas
escrevem muito mal e parcamente... (p. 77).

Pra quem não sabe, redação de jornal é um lugar aonde só deveria ir gente que
conhecesse um pouquinho a língua. Só um pouquinho... (p. 78).

Essa gente ainda vai um dia inventar uma nova língua, inteligível só para si
mesmos (p. 82).

Não vamos aumentar o diapasão de críticas que temos feito a alguns jornalistas...
(p. 86).

A qualidade de nossos jornais piora (É preciso acrescentar ainda mais?) (p. 94)

Não bastasse esse at aque aos jor nalist as, Sacconi não hesit a
em ofender preconceit uosament e out ros segment os sociais. Par a ele,
a r egência namor ar com é “coisa de it alianos” (p. 7). Par a ele, a
for ma peãozada só pode exist ir na fala, pois o “cor r et o” na escr it a é
peonada, e aconselha os peões a “que t enham o bom-senso de t r ocar
essa for ma pela out r a quando escr evem. Se é que escr evem...” (p. 8),
most r ando que, na sua opinião, todo peão é necessar iament e
analfabet o. O mesmo acont ece em r elação aos “er r os” supost amente
comet idos por caminhoneir os: “Camioneir os, cont udo, incansáveis
t r abalhadores, mer ecem t odo o per dão dest e mundo...” (p. 21).
Seu ideár io polít ico t ambém fica manifesto em declar ações do
t ipo:
Hoje em dia existem pessoas que fazem curso superior em greves, formam-se no
assunto e mostram-se tão competentes [pg. 86] no ofício, que decidem em nome
de toda a classe que representam: pela continuidade da greve! (p. 10).

Recentemente, todavia, um comentarista de futebol, membro do PT, corintiano,


resolveu dizer, no ar, mais asneiras do que comumente diz sobre aquilo que diz
entender: futebol (p. 13).

H á declarações pr econceit uosas para quase todos os segmentos


da sociedade:

Costumo dizer que algarismo romano é como vizinho: devemos evitá-lo tanto
quanto possível (p. 65).

Leu-se, porém, num jornal: “Martins é quase um octogenário”. Certamente, quem


escreveu isso estaria bem para lá disso... (p. 68).

São os [dicionários] que já passam dos setecentos anos, senão a obra, o seu autor...
(p. 68).

Na Bahia, porém, na sempre formidável Bahia, as pessoas se acordam. O mais


interessante é que se acordam e vão direto à praia... (p. 73).

Sacconi aceit a a crença primit iva e ingênua de que a palavr a e


o objet o a que ela se refere são uma e a mesma coisa: se a for ma da
palavr a est á “er r ada”, o objet o não existe. Falando do nome
Antár ti da (p. 15) ele diz: “Eis aí uma r egião do globo que, em
verdade, não exist e”. Ao coment ar o deslize de um r epór ter de
t elevisão que pr onunciou “ibero” em lugar de “ibér o” ao r eferir -se a
um fest ival de r ock, Sacconi afir ma: “Esse fest ival, gar ant imos, não
exist iu”. E ao condenar o uso do ar t igo a diante do nome da cidade
de Franca (confor me t radição [ p g. 87] ant iga entr e os lá nascidos)
na fr ase M oro na Fr anca, ele r ebate: “Não mor a”.
Numa atit ude tot alment e opost a à de um cientist a da
linguagem — cuja t ar efa pr incipal ser ia a descrição dos fat os da
língua — ou à de um professor — que se esfor çar ia em just ificar ,
com explicações r azoáveis, a pr efer ência por esta ou aquela for ma
de uso da língua — ele, após decr etar o que é “cer t o” ou “er r ado”,
r eafir ma nosso M it o n° 3:

Não perca nenhum tempo em perguntar por quê, caro leitor: basta não esquecer
que estamos estudando a língua portuguesa. Com certeza... (p. 14).

Ou seja, a língua por tuguesa é “difícil” e cheia de “mist ér ios


inexplicáveis”, como r eza a mitologia do preconceit o lingüíst ico.
Do pont o de vist a das concepções lingüíst icas do autor , o livr o
t ambém é um desast r e. Condena usos que já est ão há muit o
consagr ados na nor ma cult a r eal (e não na fict ícia, que só ele
conhece), abonados nos mais diver sos dicionár ios e na obra de
muit os escr itor es de r econhecido t alent o. Tent a impor for mas
ar caicas, que causar iam est ranheza a qualquer falante bem
inst r uído, e abolir const r uções que são per feit amente aceit áveis,
r esult ant es das inevit áveis t r ansfor mações por que a língua passa.
Sua desinfor mação acer ca das noções básicas de lingüíst ica,
sobret udo de sociolingüística e de hist ór ia da língua, levam-no a
at r ibuir obsessivament e à “Bahia” e a uma supost a “influência
afr icana” uma sér ie de var iant es do [ p g. 88] por t uguês do Br asil
que se encont r am document adas nas mais diver sas r egiões do país,
inclusive naquelas em que a presença negr a foi ou é mínima. O que
ele diz a r espeit o das línguas indígenas carece igualment e de toda
fundament ação cient ífica:
Alguns preferem usar taio, no lugar de talho, transformando o lh em i, fato comum
em certas regiões do País, mormente naquelas que receberam influência do
elemento africano (p. 32).

Em algumas regiões do Brasil (na Bahia, principalmente), o d dos gerúndios não


soa. Dizem, então: correno, andano, caíno, em vez de correndo, andando, caindo.
Trata-se de um caso típico de influência africana, que a Bahia recebeu
enormemente. Também ao elemento negro devemos o fato de pronunciarmos
muitas vezes:
a) os infinitivos sem o r final (casá, vendê, menti);
b) apenas é o el tônico final (papé, ané, coroné);
c) tamém (em vez de também), fulô (em vez de flor), sinhô, sinhá (em vez de
senhor, senhora) fedô (em vez de fedor), etc.;
d) muié (em vez de mulher), paiaço (em vez de palhaço) (p. 38).

Ocorre que, nas regiões banhadas pelo legendário rio Tietê, utilizado pelos
bandeirantes, as pessoas realmente trocam o l pelo r (arto, iguar, tarco, etc.), por
influência da língua dos indígenas, que não conheciam o som lê, mas apenas o
som rê brando, de caro, barato. Os bandeirantes, preocupados em se aproximar
dos índios (e das suas riquezas), faziam o que podiam para serem compreensíveis,
para serem amáveis, gentis. Assim, toda palavra que tinha lê sofria a natural
modificação [...] Começou, então, dessa forma, o hábito de trocar o l por r,
fenômeno conhecido pelo nome de rotacismo, muito comum [pg. 89] nas cidades
paulistas de Tatuí, Piracicaba, Tietê, Laranjal, Porto Feliz, Itu, Salto, Capivari, etc.
(p. 98).

A vocalização do fonema / λ/ , que r epr esent amos graficament e


com o L H , é um fenômeno que se verificou na hist ór ia do fr ancês e
que est á amplament e repr esentado em difer entes var iedades do
cast elhano faladas na Espanha e em países da América Cent r al e do
Sul. Não me const a que essas línguas t enham r ecebido “influência
negr a” nem muito menos “baiana”. Além disso, esse fenômeno não
acont ece apenas em “cer t as regiões do País”: ele est á pr esente em
todas as var iedades não-padr ão do por t uguês br asileiro, do
Amazonas ao Rio Gr ande do Sul. Ele t em explicações fonét icas e
sociolingüíst icas muit o mais complexas do que a mera “influência
afr icana”.
Quant o à assimilação do t ipo nd > nn > n , sobr et udo nos
gerúndios, ela se ver ifica t ambém no dialet o napolitano, falado
numa região (o sul da I t ália) onde, at é que os histor iador es me
desmintam, não houve escr avidão de negros afr icanos nem
colonização baiana. Ela exist e amplamente document ada, mais uma
vez, em todas as var iedades não-padrão do por tuguês brasileir o e
at é mesmo na fala descont r aída de muit as pessoas das camadas
ur banas cult as. Tr at a-se, novamente, de um fenômeno fonét ico
muit o natur al, que um r ápido exame da histór ia da língua esclar ece
sem dificuldades.
Por seu t ur no, a explicação dada pelo aut or ao fenômeno do
r otaci smo é um ver dadeir o dispar at e cient ífico. Primeir o, porque os
bandeir antes simplesment e não fal avam [ p g. 90] português: a
língua que a gr ande maior ia deles empr egava er a o que então se
chamava l íngua ger al , l íngua br asíl i ca ou nheengatu, uma língua
de base t upi que funcionava como inst r ument o de comunicação
ent re as diferent es nações indígenas em t odo o lit or al br asileir o e
par te do int er ior . No século XVI I , em cada cinco habit ant es da
cidade de São Paulo, apenas dois conheciam o por t uguês. O
bandeir ante paulist a convocado par a dest r uir o quilombo de
Palmar es, Domingos Jorge Velho, foi descr it o pelo bispo de
Per nambuco como “um bárbar o que nem falar sabe”, e as
autor idades per nambucanas que o cont r at ar am t inham de usar um
int ér prete par a se comunicar com ele, que só falava a l íngua ger al .
Como nos explicam os histor iador es, os bandeir ant es, em sua
maior ia, eram mamelucos, isto é, filhos de pai por t uguês e mãe
índia, desconheciam t ot alment e a língua pater na e só falavam a
mat erna:

Nos primeiros dois séculos após a chegada de Cabral, o que se falava por estas
bandas era o tupi mesmo. O idioma dos colonizadores só conseguiu se impor no
litoral no século XVII e, no interior, no XVIII. Em São Paulo, até o começo do
século passado, era possível escutar alguns caipiras contando casos em língua
indígena. No Pará, os caboclos conversavam em nheengatu até os anos 40. [...] Era
o idioma do povo,enquanto o português ficava para os governantes e para os
negócios com a metrópole.
[...] Derivado do dialeto de São Vicente, o tupi de São Paulo se desenvolveu e se
espalhou no século XVIII, graças ao isolamento geográfico da cidade e à atividade
pouco cristã dos [pg. 91] mamelucos paulistas: as bandeiras, expedições ao sertão
em busca de escravos índios.3

Por isso, os bandeir antes não precisavam fazer “o que podiam


par a ser em compreensíveis, par a ser em amáveis, gent is”. M uit o
pelo cont r ár io, o que a hist ór ia nos conta é que os bandeir antes
er am de uma cr ueldade desumana par a com os índios, a quem
buscavam escr avizar a t oda for ça, despojando-os de suas t er ras, de
suas r iquezas e, muit as vezes, de suas vidas. Cont a-se de uma
expedição bandeir ante que capt urou, no ser tão, 500 índios par a
escr avizá-los, mas que desses só 50 chegar am a São Paulo, por
causa dos esfor ços dos bandeir ant es “par a serem amáveis, gent is”.
Segundo, o rotaci smo que se ver ifica em al to > ar to t ambém
acont eceu na língua por t uguesa padr ão, em seu per íodo de
for mação. Assim, do árabe AL -M AK H AZAN deriva o por t uguês
ar mazém. O que acontece, de fat o, é que as consoantes /l/ e /r / são,

3
Superinteressante, dezembro de 1998, pp. 82 e 84. Essa matéria da revista, muito bem
elaborada, apóia-se em depoimentos de alguns importantes conhecedores das línguas
indígenas brasileiras, inclusive aquele considerado o maior deles, o professor Aryon
Rodrigues, da Universidade de Brasília.
do pont o de vist a ar t iculatório, parent as muito pr óximas, o que faz
com que, na história de muit as línguas (e não só do port uguês das
“r egiões banhadas pelo legendár io r io Tiet ê”) elas se subst it uam
uma à out ra indiferent emente. São as chamadas consoantes
l íqui das, que t ambém têm muito par entesco com as vogais (o que
faz t ambém com que, em algumas var iedades, [ p g. 92] sejam
subst it uídas por vogais, como é o caso do L . de final de sílaba que
em quase todo o Br asil é pronunciado como um /w/).
Assim, o nome própr io Gui l her me nos veio de um germânico
WI L H EL M , enquanto nosso Ger al do veio do também ger mânico
GEH RH ARDT . Na língua cult a coexist em as for mas al uguel e al uguer ,
e nosso papel se or iginou do pr ovençal papér (e est e do grego
papyr os). No por t uguês medieval ao lado de fl or havia a for ma frol ,
cujo plur al, fr óes, sobr eviveu como nome de família. A cidade do
nor te da Áfr ica que em francês se chama Alger (do ár abe al jazi r d)
em por t uguês é Argel , donde o nome do país, Ar gél i a (em fr ancês,
Algéri e). E a nossa palavra por ão der iva do lat im pl anu : deve ter
ocor r ido pr imeiro o r ot acism pl > pr e depois a quebr a do gr upo
consonant al com a int r odução de uma vogai o, exat ament e como
acont ece na for ma dialet al br asileir a ful ô. E t udo isso uns bons
séculos antes da descober ta da Bahia!
A t roca de /r / por /l/ se chama l ambdaci smo. Ela ocor r e, no
por tuguês não-padr ão, em var iant es como cal vão, cel veja, gal fo. O
que as pesquisas dos sociolingüist as e dos fonet icist as nos explicam
é que tant o o r otaci smo quant o o l ambdaci smo ocor r em em ambien-
t es fonét icos específicos, isto é, diante de det er minadas consoant es
(quem diz cal vão, por exemplo, não diz cal ta, mas sim car ta) ou de
acordo com a posição do fonema na palavr a.
A vocalização do / λ/ , a assimilação nd > nn > n e o
r ot acismo são fenômenos que car act er izam as var iedades [ p g. 93]
não-padrão (sobretudo r ur ais) do port uguês do Brasil e que, por
isso, recebem uma for t e car ga de estigmat ização, isto é, sofrem um
gr ande preconceit o por par t e dos falant es das var iedades ur banas.
Tent ei explicá-los cient ificament e e (esper o) sem pr econceit os no
meu livr o A língua de Eul ál i a.
Como é fácil concluir , o livr o Não err e mai s! est á r eplet o de
er r os — er r os de descr ição dos fenômenos lingüísticos e, sobr etudo,
er r os de condut a: preconceit uosa e nada ét ica. Podemos dizer ,
por tant o, usando as palavras do próprio Sacconi (p. 63), que se t r at a
de “um verdadeir o fest ival de asneir as”.

4. Beethoven não é dançado!


Nossa últ ima invest igação da pr esença “epidêmica” (par a usar
de novo o t er mo pr oposto por Ar naldo Niskier ) do pr econceit o
lingüíst ico nos comandos paragr amati cai s usar á como mat er ial de
análise uma coluna de jor nal chamada “Dicas de Por t uguês”,
assinada por Dad Squarisi.
Vamos r epr oduzir o text o t al como publicado no Di ár i o de
Per nambuco de 15/11/98. Essa mesma coluna, por ém, já t inha sido
est ampada no Cor r ei o Br azi li ense algum t empo ant es (22/6/96),
época em que o pr esidente Fer nando H enr ique Car doso, numa
visit a a Por t ugal, acusou os br asileir os de ser em todos “caipir as”,
declaração infelicíssima e desast r osa (“caipir a” não pode ser usado
como ofensa), com a qual, todavia, Squar isi parece concor dar
plenament e, já que qualifica o pr esident e de “iluminado”. [ p g. 94]
A r epublicação da coluna mais de dois anos depois pr ova que se
t r at a de mat er ial dist r ibuído por agência de notícias, com
possibilidade de já t er sido ou de ainda vir a ser publicado em
out ros jor nais — uma per spect iva que, confesso, me dá arr epios. Por
quê? L eia você mesmo e descubr a:

Por t uguês ou Caipir ês?

Dad Squar i si

Fiat lux. E a luz se fez. Clareou est e mundão cheinho de jecas-


t at us. À direit a, à esquer da, à fr ent e, at r ás, só se vê uma paisagem.
Caipir as, caipir as e mais caipiras. Alguns deslumbr ados, out r os
desconfiados. Um — só um — iluminado. Pobre peixinho for a
d'água! Tão longe da Europa, mas t ão per t o de paulist as, car iocas,
baianos e mar anhenses.
Ant es t ar de do que nunca. A definição do caráter t upiniquim
lançou luz sobr e um quebr a-cabeça que ator ment a est e país capiau
desde o século passado. Que língua falamos? A r espost a veio das
t er r as lusit anas.
Falamos o caipir ês. Sem nenhum compromisso com a
gr amát ica por t uguesa. Vale t udo: eu er a, t u er a, nós era, eles er a.
Por isso não fazemos concor dância em fr ases como “Não se ataca as
causas” ou “Vende-se car r os”.
Na língua de Camões, o ver bo est á enquadr ado na lei da
concor dância. Sujeit o no plural? O ver bo vai at rás. Sem choro nem
vela. Os sujeit os causas e car r os est ão no plur al. O ver bo, vaquinha
de pr esépio, dever ia acompanhá-los. M as se faz de mor to. O mat ut o,
ingênuo, passa bat ido. Sabe por quê?
O sujeit o pode ser at ivo ou passivo. At ivo, pr atica a ação
expressa pelo ver bo: Os caipiras (sujeit o) desconhecem (ação) [ p g.
95] o out r o lado. Passivo, sofr e a ação: O out r o lado (sujeito) é
desconhecido (ação) pelos caipir as. Repar ou? O sujeito — o out r o
lado — não pr at ica a ação.
H á duas for mas de const r uir a voz passiva:
a. com o ver bo ser (passiva analít ica): A cult ura caipir a é
est udada por ensaíst as. Os car r os são vendidos pela concessionár ia.
b. com o pr onome se (passiva sintética): estuda-se a cult ur a
caipir a. Vendem-se car r os. No caso, não aparece o agent e. M as o
sujeit o est á lá. Passivo, mas fir me.
Dica: use o t r uque dos t abaréus cuidadosos: t r oque a passiva
sint ét ica pela analít ica. E faça a concor dância com o sujeit o. Vende-
se casas ou vendem-se casas? Casas são vendidas (logo: Vendem-se
casas). Não se at aca ou não se atacam as causas? As causas não são
at acadas (não se at acam as causas). Fez-se ou fizer am-se a luz? A
luz foi feita (fez-se a luz). Fir mou-se ou fir mar am-se acor dos?
Acor dos for am fir mados (fir mar am-se acor dos).
Na dúvida, não bobeie. Recor r a ao t r uque. Só assim você chega
lá e ganha o passapor te par a o mundo. Adeus, Caipirolândia.

O que mais me impr essionou nesse t ext o foi seu poder de


sínt ese: em poucos par ágr afos, a autora conseguiu r eunir
pr aticament e todos os chavões r ançosos que compõem o pr econceit o
lingüíst ico. Os pr econceit os sociais e étnicos também for am
contemplados.
O pr econceito se manifesta já no t ít ulo: “Por t uguês ou
caipir ês?” A par tir daí, como milho de pipoca em óleo quente,
pululam as palavr as de cont eúdo semânt ico for t ement e
pr econceit uoso: “mundão”, “jecas-t at us”, “caipir as, caipiras e mais
caipir as”, “deslumbr ados”, “t upiniquim”, [ p g. 96] “capiau”,
“caipir ês”, “mat ut o”, “t abar éus”, “Caipirolândia”. É ou não é um
poder oso t r abalho de síntese? Dispensa comentár ios.
I sso quant o à for ma. Quanto ao cont eúdo gramat ical abor dado
pela autor a, encont r amos, mais uma vez, a atit ude preconceit uosa
da pessoa que, conhecendo uma úni ca var i edade da l íngua, se
ar r oga o direito de ofender , desprezar e ridicularizar os falantes das
out ras dezenas (senão centenas) de var iedades. M as já sabemos que
o pr econceit o é fr ut o da ignor ância, e o que Squar isi faz quest ão de
afir mar em seu t ext o é seu absolut o desconheciment o da
complexidade dos fenômenos lingüísticos. Temer osa de se avent ur ar
na cor r ent e ver tiginosa do r io que é a língua, ela pr efere cont inuar
pr esa à água est agnada e malcheirosa de seu igapó...
A quest ão da par tícula se em enunciados do t ipo Vende se casas
vem sendo investigada há muit o t empo nos est udos gr amat icais e
lingüíst icos brasileir os. O que todos os est udiosos concluem é que,
na língua falada no Br asil, no por tuguês br asi l ei r o, ocor r eu uma
r eanál i se si ntáti ca nesse t ipo de enunciado, ist o é, o falant e
br asileir o não consider a mais esses enunciados como or ações
passivas si ntéti cas.
O que a gr amática nor mativa insist e em classificar como
sujei to a gr amát ica int uitiva do br asileiro int er pr et a como objeto
di r eto. Respeit ados filólogos e lingüist as da pr imeir a met ade do
século XX, como M anuel Said Ali, Ant enor Nascentes e Joaquim
M att oso Camar a Jr ., r econhecer am o fenômeno. M uit as pesquisas
cient íficas, baseadas [ p g. 97] em colet a de dados da língua r eal, em
levant amentos est at íst icos r igor osos e em t eor ias lingüíst icas
consist ent es, most ram que a imensa maior ia dos br asileiros — de
t odas as classes sociais, cult os ou não, na língua falada e na língua
escr it a — usam verbos no si ngul ar nos enunciados em que aparece o
se com um verbo tr ansit ivo e um subst antivo no plur al: Vende se
casas, Al uga se salas, J oga se búzi os, Avi a se r ecei tas...
M as não é por que somos “caipiras”, “jecas-t at us”, “mat utos” ou
“t abar éus”. É porque a língua muda com o tempo, segue seu cur so,
t r ansfor ma-se. Afinal, se não fosse desse modo, ainda est aríamos
falando latim... Na ver dade, falamos lat im, um lat im que sofreu
t antas t r ansfor mações que deixou de ser l ati m e passou a ser
português. Da mesma for ma, o port uguês do Br asil — queir am os
gr amát icos ou não — t ambém est á se t r ansfor mando, e um dia,
daqui a alguns séculos, ser á uma língua difer ente da falada em
Por t ugal — mai s diferent e do que já é...
Em meu livro A l íngua de Eul ál i a, t r at ei com bast ant e det alhe
das questões r elat ivas às assim chamadas orações passivas
si ntéti cas (que na minha opinião e na de muit os lingüist as
simplesmente não exist em). Me ocupar ei aqui apenas do
esfar r apado “t r uque”, com o qual a aut or a da coluna “Por t uguês ou
caipir ês?” acr edit a, ingenuamente, r esolver t odos os pr oblemas da
fala dos “caipir as, caipir as e mais caipir as”.
Falar é const r uir um t exto, num dado momento, num
deter minado lugar , dentr o de um cont ext o de fala definido, visando
um det er minado efeit o. Quando o falant e usa [ p g. 98] uma frase
com a par t ícula se, ele quer se valer dos r ecursos que esse t ipo de
const rução sint át ica lhe ofer ece par a chegar ao efeito que visa
pr ovocar naquele deter minado contexto. Tr ocar essa fr ase por out ra
é t rocar , t ambém, ao mesmo t empo, o efeito visado.
H á situações em que só as or ações com se funcionam. I magine
um car ro em cujo vidr o t r aseir o lemos um car t az escr it o: Vende se.
Se fôssemos aplicar o “t ruque” suger ido pelas gr amát icas
nor mat ivas t eríamos: É vendido. Que efeit o pode t er uma fr ase
assim, afixada num car r o? Como disse M anuel Said Ali, ela só
ser vir á par a fazer o leit or duvidar da sanidade ment al de quem a
escr eveu.
Em out r as ocasiões, apenas as or ações na voz passiva atingem
o efeito desejado: Ani mais mor tos for am tr azidos com a enchente.
Aplicando o “t r uque”: Ani mai s mor tos se tr ouxeram com a
enchente... Alguém diz isso assim?
Podemos t ambém per guntar por que Vende se esta casa é
“igual” a Esta casa é vendi da e soment e a isso? Por que não dizer
que t ambém é igual a Estão vendendo esta casa, Al guém está
vendendo esta casa et c.?
Além disso, a “subst it uição” é de mão única: Al ugam se sal as é
“igual” a Sal as são al ugadas, mas a subst it uição no sent ido
cont rár io não funciona: De que são fei tos esses doces? pode ser
subst it uído por De que se fazem esses doces? ou por De que esses
doces se fazem? — ser ão essas const r uções nat urais, espont âneas,
car acter íst icas da língua por t uguesa? M e par ece que não. [ p g. 99]
Se na capa de uma r evista sobr e t elenovelas est á escr it o
H enr i que é pr eso isso “equivale” a H enr i que se pr ende?
Uma r eport agem int it ulada O que fazer quando se tem
pr obl emas com o vi zi nho também poderia chamar-se O que fazer
quando são ti dos probl emas com o vi zinho?
Onde est á, por t anto, a alegada “equivalência”?
Um dia desses, meu filho de 9 anos chegou em casa r evolt ado
porque a pr ofessor a queria que, numa fest a da escola, as meninas
dançassem uma música de Beethoven. Sua r eação foi dizer : Não se
dança Beethoven! Na mesma hor a pensei em como ficaria essa fr ase
“substit uída” por sua “equivalent e” na voz passiva “analít ica”:
Beethoven não é dançado! Faz algum sent ido par a você? Par a mim
t ambém não, mas t alvez nós sejamos demasiado “capiaus” para
at ingir o nível de “iluminação” a que só a professor a Squar isi e o
pr esident e Fer nando H enrique Cardoso t êm acesso.
O “t r uque” t ambém falha por que, na obtenção do efeit o
desejado, a col ocação dos ter mos na oração é impor t ant íssima:

(1) Com este método, mistura-se a água com a areia.


(2) Com este método, a água mistura-se com a areia.

Est á claro que em (1) temos uma or ação na voz ativa em que o
sujeit o é indet er minado e o objeto de M I STURA --SE é ÁGUA . Já em (2)
o sujeito passa a ser ÁGU A e a par t ícula se indica que se t r at a de um
verbo r efl exi vo. [ p g. 100]
A posição dos elementos no enunciado, quando alter ada, alt er a
t ambém a interpr et ação de seu significado, desviando-se do efeit o
pr etendido pelo falant e. É o que acontece com

(3) Não se encontra João no prédio.


(4) João não se encontra no prédio.

Em (3) JOÃO é o objeto do ver bo EN CONTRA , ao passo que em (4)


JOÃO é o sujei to.

Compare-se ainda esses t rês enunciados:

(5) Muita gente demitiu-se da Ford.


(6) Demitiu-se muita gente da Ford.
(7) Muita gente foi demitida da Ford.

Em (5) est á claro que a demissão foi voluntár ia por que o sujei to
evident e da or ação é M U I TA GEN TE . Em (6) o sujeito é
i ndeter mi nado, e essa indeter minação est á indicada pela par t ícula
se, sendo M UI TA GEN TE O objeto da demissão. As or ações (5) e (6)
podem ser per feit ament e classificadas de ati vas. Já em (7) temos,
sim, uma ver dadeir a or ação na voz passi va em que o sujei to, M U I TA
GENTE , sofr e a ação pr aticada: demi ti r . Se no lugar de M U I TA GENTE
t ivéssemos M UI TOS OPERÁRI OS e quiséssemos fazer a mesma
análise, obt er íamos:

(8) Muitos operários demitiram-se da Ford.


(9) Demitiu-se muitos operários da Ford.
(10) Muitos operários foram demitidos da Ford.

A frase (9) não ter ia o mesmo efeit o se o ver bo estivesse no


plural: Demi ti r am se mui tos oper ár i os da For d [ p g. 101] ser ia
simplesmente a mesma fr ase (8) com o sujei to colocado depois do
verbo, ao cont r ár io da or dem natural do por t uguês, que é a do
sujeit o antes do ver bo. Se a int enção do falant e é dizer que muit os
oper ár ios per der am, a cont r agosto, seus empregos, o ver bo tem de
ser conjugado no si ngul ar por que os oper ár ios, nest e caso, são o
objeto da demissão, sofr eram com essa ação, não a pr at icar am.
M inhas explicações levam em conta, como é fácil per ceber , t r ês
cr itér ios de análise dos enunciados lingüíst icos:

1) o sintático — a colocação dos termos na oração;


2) o semântico — o significado que cada tipo de enunciado assume segundo a
posição ocupada pelos termos na oração;
3) o pragmático — o efeito visado pelo falante ao escolher enunciar uma oração
na voz ativa, passiva ou reflexiva.

A análise de Dad Squarisi é bem mais pobr e, pois só leva em


conta o cr itér io si ntáti co, r eduzindo-o a um jogo de supost as
equivalências. É a at itude comum do gr amát ico t r adicionalist a, que
encar a a língua como um objeto descont extualizado, iner te,
congelado, mort o, for a do tempo, for a do espaço, independent e das
pessoas que a falam. Par a ela e par a out ros membr os dos comandos
par a gr amati cai s, defensor es int ransigent es da “nor ma ocult a”, não
há diferença nenhuma ent re Não se dança Beethoven e Beethoven
não é dançado, difer ença que uma cr iança de 9 anos — conhecedora,
como t odas as cr ianças de sua idade, das r egr as const it utivas de sua
língua mat er na — [ p g. 102] soube reconhecer int uit ivamente no
momento de enunciar sua reação, alcançando em cheio o efeit o
desejado.
A aut or a da coluna diz que não t emos “nenhum compromisso
com a gr amát ica por t uguesa”. Talvez ela não saiba — e se soubesse
decer to ficaria muit o t rist e —, mas nem mesmo os por t ugueses t êm
esse compr omisso. L endo anúncios publicados no jor nal lisboet a
Di ár io de Notíci as de 22/07/97, a lingüist a M ar ia M art a Scher r e4
verificou que ali havia alter nância ent re verbos no plur al e no
singular , embora t odos os subst ant ivos est ivessem no plural:

Vendem-se lotes de prédios c/ licenças a pagamento


Vende-se magníficas instalações loja com armazém
Vendem-se andares novos
Vende-se lotes de terreno
Vende-se andares no lumiar
Aluga-se escritórios Laranjeiras
Compra-se dois espaços de garagem
Procura-se áreas até 150 m2

Teremos de incluir Por t ugal ent r e as pr ovíncias da


“Caipirolândia”?
Por fim, Dad Squar isi apóia-se no nome glor ioso de Camões (e é
glor ioso mesmo!) par a justificar seus at aques [ p g. 103] gr osseir os

4
A professora Scherre analisou detalhadamente o preconceito contido nessa e em outras colunas
assinadas por Dad Squarisi no texto “Preconceito lingüístico: doa-se lindos filhotes de poodle”, a ser
publicado brevemente em obra coletiva organizada pelo professor Dermeval da Hora, da Universidade
Federal da Paraíba. Agradeço a ela a gentileza de ter-me possibilitado ler seu excelente ensaio antes de
entregá-lo à publicação.
cont ra quem não se “enquadr a” na “lei da concor dância”. Or a, n'Os
L usíadas encontr a se os seguint es ver sos:

E como por toda África se soa, / lhe diz, os grandes feitos que fizeram (canto II,
103).

Seria o caso de incluir Camões ent r e os “jecas-tat us”? Afinal,


pelas regr as sint át icas da língua da professora Squar isi, os
GRANDES FEI TOS é o “sujeito” de SE SOA , e por isso o ver bo dever ia
est ar no plural... Só que não est á.
Par ece incr ível que, depois de t anto tempo em vigor na língua
falada no Br asil, est a regr a de uso do pr onome SE ainda seja
r ejeit ada pelos gramát icos pr escr it ivist as. Eles cont inuam agindo
como o professor Aldrovando Cant agalo, do conto “O colocador de
pr onomes” de M ont eir o L obat o, publicado em 1924. Ao ver uma
placa com os dizeres “Fer r a-se cavalos”, o hist ér ico gr amático t entou
explicar ao fer reiro que o verbo dever ia est ar no plur al por que o
“sujeit o” da fr ase er a “cavalos”. E foi obrigado a r eceber est a aula
perfeit a de sint axe br asileir a:

— V. Sa. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou
plural. Aquele SE da tabuleta refere-se cá a este seu criado.

Alguém já viu um cavalo pôr fer radur a em si mesmo? Talvez o


pr ofessor Aldr ovando Cant agalo em seus delír ios nor mat ivist as, que
ainda acomet em muit a gente hoje em dia! [ p g. 104]
III
A d escon st r u çã o
d o pr econ cei t o l i n gü í st i co

1. Reconheci mento da cr i se
De que modo poderemos r omper o cír culo vicioso do pr econceit o
lingüíst ico? Como conseguir emos escapar do igapó est agnado e
mer gulhar nas águas dinâmicas e vivificantes do gr ande r io da
língua?
Uma coisa não podemos deixar de r econhecer : existe
at ualment e uma cr ise no ensino da língua por t uguesa. M uit os
pr ofessores, aler t ados em debat es e confer ências ou pela leitur a de
bons t ext os cient íficos, já não r ecor r em t ão exclusivament e à
gr amát ica nor mat iva como única font e de explicação par a os
fenômenos lingüíst icos. Por out r o lado, sent em falt a de out r os
inst r ument os didát icos que possam, senão substit uir , ao menos
complement ar cr it icament e os compêndios gr amat icais t r adicionais.
M uit a gent e acr edit a e defende que é a nor ma cul ta que deve
constit uir o objeto de ensino/aprendizagem em sala de aula. M as o
que é e onde est á essa nor ma cul ta?
Não é difícil per ceber que a nor ma cult a — por diversas r azões
de or dem polít ica, econômica, social, cult ural — é algo reser vado a
poucas pessoas no Br asil. Vimos isso no M it o n° 1 e no nº 8. É o
mesmo que acontece com a aliment ação, [ p g. 105] a saúde, a
educação, a habit ação, o t r anspor t e, o acesso às novas t ecnologias
et c. Uns poucos privilegiados se locomovem em car r os impor t ados,
enquant o a gr ande maioria usa um t r anspor t e público deficient e,
pr ecár io e, se não bast asse, car o demais — conheço pessoas
humildes que vão a pé par a o t r abalho, desper t ando no meio da
madr ugada e caminhando dur ant e hor as da per ifer ia até os bair r os
cent rais, por que seu salár io não lhes per mite t omar ônibus, t r em
nem met r ô.
Podemos identificar t r ês pr oblemas básicos a esse respeito.
Pr i mei r o, e mais óbvio, a quant idade injustificável de
analfabet os que exist e neste país. Est at íst icas oficiais, do I BGE,
falam de 18 a 20 milhões de analfabetos com mais de 15 anos de
idade — duas vezes a população de Port ugal! Some-se a isso os
milhões de cr ianças em idade escolar que não fr eqüentam nenhuma
escola. Temos t ambém um alto índice de anal fabetos funci onais, ist o
é, pessoas que fr eqüent aram a escola por um per íodo insuficient e
par a desenvolver plenamente as habilidades de leitur a e r edação. A
média nacional de educação da for ça de t r abalho é de 3,9 anos de
escola: ser iam, no t ot al, 45 milhões de analfabetos funcionais ou
semi-analfabetos. Analfabetos plenos e analfabetos funcionais
ser iam, ao t odo, mais de 60 milhões de br asileiros: duas vezes a
população da Ar gent ina!
Numa list a de 175 países elabor ada pela ONU, o Br asil ocupa o
93° lugar em índice de escolar ização, ficando at r ás at é mesmo de
países como a Et iópia e a Í ndia, exemplos clássicos de
subdesenvolviment o cr ônico. Só que o Br asil [ p g. 106] é uma das
dez maior es economias do planet a! Ocupamos t ambém o 80° lugar
em invest iment os na educação. E ninguém pode alegar que isso se
deve ao tamanho do país ou da população: a China, bem maior que o
Br asil e com uma população de 1,2 bilhão de habit ant es, t em 6 % de
analfabet os, enquanto o Br asil t em 18,4 %, segundo o Banco
M undial. E na China esses analfabetos vivem em ár eas muit o
r emot as, nas montanhas ou nos deser t os, enquant o os nossos est ão
na per ifer ia das gr andes cidades e at é mesmo t r abalhando dent ro
de nossas casas. Tudo isso num país cuja Constit uição diz que a
educação é “dever do Est ado”.
A nor ma cult a, como vimos, está t r adicionalment e muit o
vinculada à nor ma lit er ár ia, à língua escr ita. Com t ant os
analfabet os, lament ar a “decadência” ou a “cor r upção” da nor ma
cult a no Br asil é, no mínimo, uma at itude cínica.
Segundo, por r azões hist óricas e cult urais, a maior ia das
pessoas plenament e alfabet izadas não cult ivam nem desenvolvem
suas habilidades lingüíst icas no nível da nor ma cult a. L er e,
sobret udo, escrever não fazem part e da cult ur a das nossas classes
sociais alfabet izadas. I sso se pr ende aos velhos pr econceit os de que
“br asileir o não sabe por t uguês” e de que “por t uguês é difícil”,
veiculados pelas pr át icas t radicionais de ensino. Esse ensino
t r adicional, como eu já disse, em vez de incent ivar o uso das
habilidades lingüíst icas do indivíduo, deixando-o expressar -se
livrement e par a soment e depois cor r igir sua fala ou sua escr it a, age
exat ament e ao contr ár io: inter rompe o fluxo nat ur al da expr essão e
da comunicação com a atit ude cor retiva (e muit as vezes punit iva),
cuja conseqüência [ p g. 107] inevit ável é a cr iação de um sentimento
de incapacidade, de incompet ência.
Em minha exper iência de t r adutor pr ofissional, já me depar ei
algumas vezes com sit uações que poder íamos classificar de
sur r ealist as. Pessoas que fizeram doutor ado no exter ior me
pr ocur am par a que eu t r aduza para o por tuguês t eses escr itas
or iginalmente em inglês ou fr ancês. Quando pergunto à pessoa por
que ela mesma não faz a t r adução, a r espost a que eu r ecebo é
chocant e: “É por que eu não sei por t uguês”. Como é possível? Uma
pessoa que escreveu uma t ese de 500 ou 600 páginas num idioma
est r angeir o, e que obteve assim o seu gr au de doutor , de Ph.D., em
sua especialidade cient ífica, t em receios de escrever em sua própr ia
língua mat er na? Exist e algum pr oblema aí, e eu não posso aceit ar a
explicação dada por t ant os pr ofessores de que os alunos é que são
pr eguiçosos e não conseguem aprender , ou, pior ainda, que
“port uguês é muit o difícil”. O problema cer t amente está no modo
como se ensina por t uguês e naqui l o que é ensinado sob o r ót ulo de
l íngua por tuguesa.
Ter cei r o, o dilema r elat ivo à nor ma cul ta se pr ende ao fat o de
que esse ter mo é usado pela t r adição gr amat ical conser vador a par a
designar uma modalidade de língua que, como já vimos na primeir a
par te dest e livr o, não cor r esponde à língua efet ivament e usada
pelas pessoas cult as do Br asil nos dias de hoje, mas sim a um i deal
lingüíst ico inspir ado no por t uguês de Port ugal, nas opções
est ilíst icas dos gr andes escrit or es do passado, nas r egr as sint áticas
que mais se apr oximem dos modelos da gr amát ica lat ina, ou
simplesmente no gost o pessoal do gr amát ico [ p g. 108] — par a
Napoleão M endes de Almeida, por exemplo, o “cer to” é dizer eu odio
e não EU ODEI O...1
Dent r o desse conceito de “nor ma cult a”, a pr oibição de começar
um per íodo com pr onome oblíquo (M e empr este seu li vro) é
just ificada com a afir mação de que em Por t ugal (!) ninguém fala
assim. De igual modo, a r ecusa dos gr amát icos conservador es em
aceit ar que em fr ases como Vende se casas o pronome se

1
Outros termos empregados indistintamente pelos prescritivistas são: norma padrão, língua padrão,
língua culta, padrão culto. Todos eles, porém, carecem de uma definição teórica rigorosa, sendo usados
basicamente como um sinônimo geral de “bom português”, em contraste com tudo o que “não é
português”.
desempenha uma função semelhant e à de sujeito se baseia no fato
de que, em latim (!!), o pr onome se nunca exer cia essa função. Dizer
ou escr ever eu pr efi r o mai s X do que Y é um “pecado”, na opinião
deles, por que o pr efixo pr ae em latim (!!!) funcionava par a for mar
super lat ivos analíticos, contendo em si mesmo a idéia de “muito” ou
“mais do que”... Além disso, é “err ado” dizer outr a al ter nati va
porque al ter em lat im (!!!!) já significava “out r o”. M as desde quando
nós falamos lat im no Br asil?
A dist ância ent r e nor ma culta r eal e nor ma cult a i deal pode ser
medida em afir mações como esta, de Rocha L ima, em sua
Gr amáti ca nor mati va da l íngua por tuguesa (p. 15):

Em extensas faixas do Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, a consoante /l/,


quando em final de sílaba, apresenta uma pronúncia “relaxada”, que a aproxima da
semivogal /w/. Este [pg. 109] fato faz que desapareçam oposições como as de mal
e mau, alto e auto, servil e serviu — oposições que a língua culta procura
cuidadosamente observar [grifo meu].

Bast a ouvir os locutores de r ádio, os apr esentador es de


t elejor nal e os pr ofessor es univer sitár ios — t rês profissões que
exigem educação de nível super ior e, por t ant o, domínio da nor ma
cult a — para ver ificar que a afir mação de Rocha L ima não se baseia
na r ealidade empir icamente analisável. É provável que nenhum
falante da língua cult a se pr eocupe, hoje em dia, em fazer a
dist inção ent r e as palavr as por ele cit adas. No acer vo de gr avações
da língua ur bana culta colet ado pelo Pr ojeto NURC, a que já me
r efer i no M it o n° 5, não se per cebe essa supost a “pr eocupação” em
dist inguir as duas pr onúncias. A pronúncia do L como / l / e não
como / w/ só se ver ifica na fala de pessoas bast ant e idosas ou de
falantes de variedades bem específicas de por t uguês, como a gaúcha
(e, mesmo assim, não de modo ger al).
Essa mesma idealização da nor ma cul ta como um padr ão
lingüíst ico 100% “pur o” — como uma pedr a pr eciosa sem nenhuma
jaça, como uma pepit a de our o livr e de t oda ganga — se ver ifica, por
exemplo, num text o publicado por Pasquale Cipr o Neto em sua
página na r evist a Cul t (n° 11, junho de 1998, p. 44). Par a ele, os
usos não-nor mativos de onde constit uem uma “pr aga”. E o uso feit o
por Chico Buar que, numa canção, de onde no lugar de quando
indica que o poet a-composit or “caiu na espar rela”.
L emos no t exto de Cipr o que “a difer ença ent re onde e aonde
t ambém deixa muit a gent e de cabelo em pé”. [ p g. 110] Depois de
explicar o uso “corr eto” de cada uma das duas for mas, ele diz que
“mesmo em escr itor es renomados se vê o empr ego de onde e aonde
sem cr it ér io”, e cit a o exemplo do poema “A onda” de M anuel
Bandeira, que escr eveu: “Aonde anda a onda”. E chama a at enção
par a o fato de que “em t er mos de língua cult a, para cada 99
ocor r ências cor r et as de onde, há uma de aonde”. Diant e dessa
est at íst ica (que ele cit a sem indicar a font e de seus dados nem a
met odologia empregada par a colet á-los), a lógica nos leva a concluir
que o problema ent ão não está na falt a de “cr it ério” dos falant es da
nor ma culta, mas sim na concepção que o aut or do t ext o t em de
“língua cult a”. Afinal, se Chico Buar que, M anuel Bandeir a e
M achado de Assis (que no poema “Niâni”, part e I I I , est r ofe 2,
escr eveu:”M as aonde te vais agora, / Onde vais, esposo meu?”) não
ser vem como exemplos de usuários da “língua cult a”, quem ser vir á?
Em seu livr o Com todas as l etr as (que t em o sugest ivo subt ít ulo
de “o por t uguês simplificado”, que nos r emet e logo ao M it o 3), o
jor nalist a Eduar do M ar t ins tent a ensinar o uso “cor r et o” do ver bo
pedi r . Depois de ler as explicações dadas ali, na página 16, passei a
aplicar um t est e par a cont r olar se o que ele chama de “nor ma cult a”
r ealmente mer ece esse nome. Assim, t oda vez que vou dar uma
palest ra em congressos e seminários ou conver sar com pr ofessor es
de por tuguês, escr evo o seguint e enunciado na lousa e pergunt o o
que há de er r ado com ele:

João está doente, por isso me pediu para vir aqui no lugar dele. [pg. 111]

Deixo que as pessoas r eflit am e dêem suas opiniões. Cada uma


ar r isca uma hipót ese, mas ninguém detect a o “er ro” denunciado por
M art ins em seu livr o. E você, já descobr iu qual é? Pois saiba, car o
leitor , car a leit ora, que a const r ução pedi r par a “só pode ser
empregada quando o sent ido é o de pedir per missão, licença ou
autor ização”. Segundo o aut or de Com todas as l etr as, se a idéia de
per missão ou licença não est iver implícit a ou subent endida, o
“cer t o” é usar pedi r que + subjunti vo: “J oão est á doent e, por isso me
pediu que vi esse aqui no lugar dele”. E ele abr e suas explicações
afir mando:

A locução pedir para é um dos melhores exemplos do abismo existente entre a


linguagem coloquial e a norma culta do idioma.

E eu me vejo obrigado a reagir dizendo: “Nada disso, senhor


jor nalist a! “A locução pedir par a é um exemplo do abismo que
exist e, sim, mas ent re a ver dadei ra nor ma cul ta usada pelas
pessoas cult as do Br asil e aquilo que ele e out r os não-especialist as
em lingüíst ica, que se baseiam exclusivamente na nor ma
gr amat ical mais conser vador a e pr escr it iva, chamam de “nor ma
cult a”. O que M ar t ins r ot ula de “linguagem coloquial” (ter mo, aliás,
que quase sempr e é empr egado com sent ido pejor at ivo) é, na
verdade, uma manifest ação da nor ma cult a objetiva, r eal,
empir icamente colet ável e analisável. E a pr ova maior disso é que
os falant es cult os (pr ofessores de por t uguês!) a quem ofer eço meu
“t est e” reconhecem t r anqüilamente a gr amaticalidade, a
aceit abilidade de const r uções como a do enunciado que escrevo na
lousa. Como é possível, [ p g. 112] então, falar de “er r o” se a
const rução não causa est ranheza a falant es cultos e é perfeit ament e
assimilada do pont o de vist a semânt ico e pr agmático, se não há
nenhuma ambigüidade em sua interpr et ação (que é o ar gument o
quase sempre apr esent ado pelos pr escr it ivist as, que nor malmente
analisam a língua sem levar em conta o context o da enunciação)?
De onde vem esse abismo ent r e o conceit o sociolingüístico de
nor ma cul ta e a noção vaga (e pr econceit uosa) de “língua culta”
exibida pelos comandos par agr amati cai s? Como t antos especialist as
de ver dade vêm insist indo em most rar, esse abismo nasce da r ecusa
dos defensor es da gr amát ica t r adicional de acompanhar os avanços
da ciência da linguagem. Consult ando, por exemplo, a bibliogr afia
do livro Com todas as l etr as, de Eduardo M ar t ins, lançado no início
de 1999, ver ifica-se que dos 26 t ít ulos consult ados por ele nenhum é
de obr a cient ífica especializada: 10 são comandos paragr amati cai s
em for ma de livr os que list am não-sei-quantos-mil “er ros de
por tuguês” (ent re os quais o M anual de Redação e Estil o do jor nal O
Estado de S. Paul o, de autor ia do mesmo M ar t ins); 11 são
dicionários de língua e/ou de r egências ver bais e nominais (obras
escr it as à moda ant iga e não segundo os cr itér ios da lexicogr afia
contempor ânea), e 5 são gr amát icas nor mativas. Como t odo
comando par a gr amati cal digno do nome, est e t ambém se
car acteriza por sua inflexível endogami a: par a conser var a “pur eza”
de sua língua, só aceit a mant er relações com indivíduos de sua
pr ópr ia cast a. [ p g. 113]
Como reconhece o pr óprio M inistér io da Educação, no
document o já cit ado,

não se pode mais insistir na idéia de que o modelo de correção estabelecido pela
gramática tradicional seja o nível padrão de língua ou que corresponda à variedade
lingüística de prestígio (p. 31).

Par a separ ar o i deal do r eal , como eu já disse, é necessár io


empreender a i dentifi cação e a descr i ção da ver dadei r a língua
fal ada e escr ita pel as cl asses cultas do Br asi l . É uma t ar efa que t em
de ser feit a, e que est á sendo feita. I nfelizmente, os result ados já
obtidos na execução dessa t ar efa são de acesso difícil à maior ia das
pessoas por que se encont ram expost os em livr os e t eses escr it os em
linguagem ext r emament e t écnica — como de fato exige o rigor
cient ífico —, e r ecor r em, em suas análises e interpret ações, a
difer ent es modelos t eór icos, todos eles muito sofist icados e de difícil
compreensão par a o leit or comum não familiarizado com eles.
É pr eciso escr ever uma gramáti ca da nor ma cul ta brasi l ei r a
em ter mos simples (mas não simplist as), clar os e pr ecisos, com um
objet ivo declar adament e didát ico--pedagógico, que sir va de
fer r ament a út il e pr ática par a pr ofessor es, alunos e falant es em
geral. Sem essa gr amática que nos descr eva e explique a língua
efeti vamente falada pelas classes cult as, cont inuar emos à mer cê das
gr amát icas nor mativas t r adicionais, que chamam er radamente de
norma cul ta uma modalidade de língua que não é cul ta, mas sim
cul tuada: não a nor ma cult a como ela é, mas a nor ma [ p g. 114]
cult a como dever i a ser , segundo as concepções antiquadas dos
perpet uador es do cír culo vicioso do pr econceit o lingüístico.
2. M udança de ati tude
Enquant o essa gr amática não chega, t emos de combat er o
pr econceito lingüíst ico com as ar mas de que dispomos. E a pr imeir a
campanha a ser feit a, por t odos na sociedade, é a favor da mudança
de ati tude. Cada um de nós, pr ofessor ou não, pr ecisa elevar o gr au
da própr ia auto esti ma li ngüísti ca: r ecusar com veemência os velhos
ar gument os que visem menospr ezar o saber lingüístico individual
de cada um de nós. Temos de nos impor como falant es competent es
de nossa língua mat er na. Parar de acr editar que “br asileiro não
sabe port uguês”, que “por tuguês é muit o difícil”, que os habit ant es
da zona rur al ou das classes sociais mais baixas “falam t udo
er r ado”. Acionar nosso senso cr ít ico toda vez que nos depar ar mos
com um comando par agr amati cal e saber filt r ar as infor mações
r ealmente út eis, deixando de lado (e denunciando, de pr efer ência)
as afir mações pr econceit uosas, aut orit ár ias e int oler ant es.
Da par te do professor em ger al, e do pr ofessor de língua em
par ticular , essa mudança de atit ude deve r eflet ir -se na não-
aceit ação de dogmas, na adoção de uma nova post ur a (cr ít ica) em
r elação a seu própr io objeto de t r abalho: a nor ma cul ta.
Do pont o de vist a teóri co, est a nova post ura pode ser
simbolizada numa simples t roca de sílaba. Em vez de RE PE TI R
alguma coisa, o professor deveria RE FL E TI R sobre [ p g. 115] ela.
Diant e da velha dout rina gr amat ical nor mativa, o professor não
dever ia limit ar-se a t r ansmit i-la tal e qual ela se encont r a
compendiada nos manuais gramat icais ou nos livros didát icos.
É necessár io lançar dúvidas sobr e o que est á dit o ali,
quest ionar a validade daquelas explicações, filt r á-las, t omando
inclusive como base seu pr ópr io saber lingüíst ico, devidament e
valorizado: “Eu não falo assim, não escr evo assim; meus colegas
t ambém não; escr it or es que t enho lido não seguem essa r egr a —
ser á que ela per tence de fato à nor ma culta?”
Post a a dúvida, passa-se à invest igação, ao levant ament o de
hipóteses, à busca de explicações que esclar eçam o fenômeno que
pr ovocou o quest ionamento. Se milhões de br asileiros de nort e a sul,
de lest e a oeste, em t odas as regiões e em t odas as classes sociais
falam e escr evem Al uga se sal as ou se há flut uação no uso de onde e
aonde, o pr oblema, evident emente, não est á nesses milhões de
pessoas, mas na explicação insuficient e (er r ada, até, nesses casos)
dada a esses fenômenos pela gr amát ica t r adicional.
Nessa nova postura de r eflexão, é indispensável que o professor
pr ocur e, t anto quant o possível, est ar sempre a par dos avanços das
ciências da linguagem e da educação: lendo lit er at ura científica
at ualizada, assinando revist as especializadas, filiando-se a
associações pr ofissionais, fr eqüent ando cur sos em univer sidades,
ader indo a pr ojet os de pesquisa, par t icipando de congr essos,
levant ando suas dúvidas e inquietações em debat es e mesas-
r edondas... [ p g. 116]
Do pont o de vist a pr áti co, a nova postur a pode ser
r epresent ada na eliminação de uma única sílaba t ambém. Em vez
de RE PRODU ZI R a t r adição gr amat ical, o pr ofessor deve PRODUZI R
seu própr io conheciment o da gr amát ica, t ransfor mando-se num
pesquisador em tempo int egr al, num or ient ador de pesquisas a
ser em empr eendidas em sala de aula, junto com seus alunos. Par ar
de quer er ent r egar r egras (mal descr it as) já pront as, e começar a
descobr ir mét odos inteligent es e prazer osos par a que os pr óprios
aprendizes deduzam essas r egr as em t extos vivos, coerent es, bem
const ruídos, int er essant es, t ant o de língua escr it a como de língua
falada. Tentei dar uma cont ribuição inicial a esse pr ocesso na
segunda par t e do meu livro Pesqui sa na escol a: o que é, como se faz.
A gramát ica t radicional t ent a nos most r ar a língua como um
pacote fechado, um embr ulho pr ont o e acabado. M as não é assim. A
língua é viva, dinâmica, est á em const ante movimento — t oda
língua viva é uma l íngua em decomposi ção e em r ecomposi ção, em
per manente tr ansfor mação. É uma fênix que de t empos em t empos
r enasce das pr ópr ias cinzas. É uma r oseira que, quant o mais a
gente vai podando, flor es mais bonit as vai dando. E o pr ofessor
t ambém deve pr efer ir ser uma “met amor fose ambulante, do que t er
aquela velha opinião for mada sobr e t udo”, como cant ava Raul
Seixas (cont r ar iando, nesses mesmos ver sos, a “velha opinião
for mada” de que o ver bo pr efer i r não pode ser usado com a
const rução do que...).
Tudo muda no univer so, e a língua também. A compar ação da
língua a um r io me faz lembrar do filósofo grego [ p g. 117] H er áclit o
que disse que “ninguém se banha duas vezes no mesmo r io”: na
segunda vez, já não é a mesma pessoa, já não é o mesmo rio.
Não pr ecisamos t er medo disso quando for mos dar aula de
por tuguês. Um pr ofessor de química, física, biologia ou hist ória sabe
perfeit amente que muito do que ele est á ensinando hoje pode vir a
ser r efor mulado ou até negado amanhã por alguma nova
descober t a, por algum novo avanço t ecnológico que per mit ir á ver
coisas que ant es não se via. Toda ciência, par a mer ecer esse nome,
t em que ser , como se diz em inglês, “wor k i n pr ogr ess”, um t r abalho
em andament o, uma const r ução ininter r upt a, uma “obr a aber t a”. E
a lingüíst ica (dentr o da qual se inclui a gramát ica) é uma ciência
assim. Por isso,
não há razão para que o professor de gramática seja dispensado da formação
científica que se exige de um professor de biologia ou de psicologia. [...] É
definitivamente necessário começar a conceber a gramática como uma disciplina
viva, em revisão e elaboração constante.

Essas palavr as de M ário Per ini em sua Gr amáti ca descr i ti va


do por tuguês (pp. 16 e 17) sintet izam o que eu disse mais acima a
r espeit o de uma nova post ur a teór i ca e pr áti ca por par t e do
pr ofessor de língua por t uguesa.

3. O que é ensi nar por tuguês?


Par a r omper o cír culo vicioso do pr econceit o lingüíst ico no
pont o em que temos mais poder par a at acá-lo — a pr át ica de ensino
—, pr ecisamos r ever t oda uma série [ p g. 118] de “velhas opiniões
for madas” que ainda dominam nossa maneira de ver nosso própr io
t r abalho.
L ogo de início, convém fazer a per gunt a: o que é ensinar
por tuguês? Que objet ivo pr et endemos alcançar com nossa pr át ica
em sala de aula?
Os métodos t r adicionais de ensino da língua no Br asil visam,
por incr ível que par eça, a for mação de pr ofessor es de por tuguês! O
ensino da gramát ica nor mat iva mais est r it a, a obsessão
t er minológica, a par anóia classificatória, o apego à nomenclat ur a —
nada disso ser ve par a for mar um bom usuár io da língua em sua
modalidade culta. Esfor çar -se par a que o aluno conheça de cor o
nome de t odas as classes de palavr as, saiba ident ificar os t er mos da
or ação, classifique as or ações segundo seus tipos, decor e as
definições t r adicionais de sujei to, objeto, ver bo, conjunção et c. —
nada disso é gar ant ia de que esse aluno se t or nará um usuár io
competent e da língua cult a.
Quando alguém se mat r icula numa aut o-escola, esper a que o
inst r ut or lhe ensine t udo o que for necessár io para se tor nar um
bom mot or ist a, não é? I magine, por ém, se o instr utor passar onze
anos abrindo a t ampa do motor e explicando o nome de cada peça,
de cada par afuso, de cada cor r eia, de cada fio; explicando de que
modo uma par t e se encaixa na out r a, o lugar que cada uma deve
ocupar dent r o do compart imento do mot or par a per mit ir o
funcionamento do car r o e assim por diant e... Esse aluno t em
alguma chance de se t or nar um bom motorist a? Acho difícil.
Quando muito, est ar á se candidat ando a um empr ego de mecânico
de aut omóveis... M as quantas pessoas exist em por aí, dir igindo
t r anqüilamente seus [ p g. 119] car ros, t ir ando o máximo pr oveit o
deles, sem t er a menor idéia do que acont ece dent ro do mot or ?
H oje em dia, cada vez mais pessoas est ão usando um
comput ador . A r et umbant e maior ia delas consegue fazer um bom
uso de sua máquina conhecendo apenas os pr ogr amas, os softwar es.
O har dwar e, isto é, a par t e mecânica do comput ador , a est r ut ura
física das placas, dos chi ps, das conexões et c., fica par a os
especialist as, os t écnicos.
E ent ão? O que pr etendemos for mar com nosso ensino:
mot or ist as da língua ou mecânicos da gr amát ica? Devemos insist ir
nos componentes har d ou devemos dar pr efer ência ao bom manejo
dos soft?2
Nós, sim, pr ofessor es, t emos que conhecer pr ofundamente o
har dwar e da língua, a mecânica do idioma, porque nós somos os
inst r ut ores, os especialist as, os técnicos. M as não os nossos alunos.
Pr ecisamos, por t ant o, redirecionar todos os nossos esfor ços, volt á-

2
Hard em inglês significa “duro, rígido”, enquanto soft significa “macio, maleável”. Qual dessas duas
opções de ensino você acha que nossos alunos escolheriam se tivessem chance?
los par a a descobert a de novas maneir as que nos per mit am fazer de
nossos alunos bons motorist as da língua, bons usuários de seus
pr ogr amas.
Por isso é que Sír io Possent i, depois de exibir ar gument os com
os quais concor do int egr almente, diz nas páginas 53-54 de Por que
(não) ensi nar gramáti ca na escola:

Todas as sugestões feitas nos textos anteriores só farão sentido se os professores


estiverem convencidos — ou puderem ser convencidos — de que o domínio
efetivo e ativo de uma língua [pg. 120] dispensa o domínio de uma
metalinguagem técnica. Em outras palavras, se ficar claro que conhecer uma
língua é uma coisa e conhecer sua gramática é outra. Que saber uma língua é uma
coisa e saber analisá-la é outra. Que saber usar suas regras é uma coisa e saber
explicitamente quais são as regras é outra. Que se pode falar e escrever numa
língua sem saber nada “sobre” ela, por um lado, e que, por outro lado, é
perfeitamente possível saber muito “sobre” uma língua sem saber dizer uma frase
nessa língua em situações reais.

Quando digo coisas assim em público, algumas pessoas


levant am a objeção de que o ensino da nomenclatur a t r adicional,
das definições, das classificações, da análise sint ática é necessár io
porque são essas coisas que ser ão cobradas ao aluno no momento de
fazer um concur so ou de prestar o vest ibular . Se é assim, cabe a
nós, professor es, pr essionar pelos meios de que dispomos —
associações pr ofissionais, sindicat os, car t as à imprensa — par a que
as pr ovas de concur sos sejam elabor adas de out ra maneira,
t r ocando as velhas concepções de língua por novas. Não t emos de
nos confor mar passivament e com uma sit uação absurda e
pr osseguir na r epr odução dos velhos vícios gramat iqueir os
simplesmente por que haver á uma cobr ança fut ura ao aluno.
Quant o ao vest ibular — Deus seja mil vezes louvado! —, ele
est á desapar ecendo. Diver sas universidades públicas e pr ivadas
est ão encont r ando novos meios de seleção e admissão de alunos aos
cur sos super iores. Afinal, poucas inst it uições houve no Br asil t ão
obtusas, nefast as, injust as, antidemocr át icas e per niciosas quant o o
vestibular . Nunca consegui ent ender por que uma pessoa [ p g. 121]
que quer est udar Direit o pr ecisa fazer prova de física, química,
biologia e mat emát ica, se o que ela apr endeu dessas mat ér ias já foi
avaliado na conclusão do 2° gr au.
Com o fim do vest ibular , desaparecer á também — assim
esper amos ar dent ement e — t oda a indúst r ia que se for mou em
t or no dele: os nefandos “cur sinhos” onde ninguém aprende nada,
onde não há nenhuma produção de conheciment o mas apenas
r eprodução de infor mações desconexas, onde cent enas de alunos se
apinham numa sala, onde t udo o que se faz é ent upir a cabeça do
aluno com “t ruques” e “macetes” que em nada cont r ibuem par a a
sua ver dadeira for mação intelect ual e humaníst ica.

4. O que é er r o?
Out r o modo int er essante de romper com o cír culo vicioso do
pr econceito lingüíst ico é r eavaliar a noção de er ro. A noção
t r adicional (eu dir ia até fol cl ór i ca) de er r o é que per mit e que pessoas
como Sacconi escrevam livros absur dos como Não er re mai s! e
vendam milhar es de exemplares deles.
Como vimos na pr imeir a par t e do livr o, o M it o 6 expr essa a
pr ática milenar de confundir língua em ger al com escri ta e, mais
r eduzidamente ainda, com ortogr afi a ofi ci al . A t al ponto que uma
elevada por cent agem do que se r ot ula de “er r o de por t uguês” é, na
verdade, mero desvio da or t ografia oficial. O vigor desse mit o se
depr eende, por exemplo, num exer cício de pesquisa suger ido por um
livro didático de publicação r ecente (Car valho & Ribeiro, 1998: 125).
Após apr esent ar o poema [ p g. 122] “Er r o de por t uguês”, de Oswald
de Andrade, os autor es pedem ao aluno:

1. Procure localizar erros de português em cartazes, placas, ou até mesmo na fala


de pessoas que você conhece. Transcreva-os em seu caderno.

Or a, em car tazes e placas não apar ecem “er r os de por t uguês” e,


sim, “er r os” de or t ografia. Escrever , digamos, LOGI N H A DE
ARTEZAN ATO onde a lei obr iga a escrever L OJI NH A DE ARTESANATO
em nada vai pr ejudicar a int enção do aut or da placa: infor mar que
ali se vende objet os de ar t esanat o. Neste caso, nem mesmo a
r ealização fonét ica da placa “cer ta” e da placa “er r ada” vai
apresent ar difer ença. O fat o t ambém de haver “er r o” na placa não
significa de for ma nenhuma que os objet os ali vendidos sejam de
qualidade infer ior , “er r ados” ou “feios”.
Se mais acima escrevi “lei” é por que se t rat a exat ament e disso.
A or t ogr afia oficial é fr ut o de um gest o político, é determinada por
decreto, é result ado de negociações e pressões de toda or dem
(geopolít icas, econômicas, ideológicas). No início do século XX o
“cer t o” er a escr ever: EM N I CTH EROY EL LE POUDE ESTU DAR SCI ENCI AS
NATURAES, CH I M I CA E PH YSI CA . Se hoje o “cer t o” é escr ever : EM
NI TERÓI ELE PÔDE ESTU DAR CI ÊN CI AS N ATU RAI S, QUÍ M I CA E FÍ SI CA ,

isso não alt er a a sint axe nem a semânt ica do enunciado: o que
mudou foi só a or t ogr afia.
O exer cício pr opost o por Car valho & Ribeir o, além de confundir
português com or togr afi a do por tuguês, t ambém admite
implicit ament e a existência de “er ros” na [ p g. 123] “fala de pessoas
que você conhece”. O problema aqui é ainda mais gr ave por que, do
pont o de vist a cient ífico, simplesment e não exi ste er r o de por tuguês.
Todo falant e nat ivo de uma língua é um falant e plenament e
competent e dessa língua, capaz de discer nir int uitivament e a
gr amati cali dade ou agr amati cal i dade de um enunciado, ist o é, se
um enunciado obedece ou não às regr as de funcionamento da
língua.
Ninguém comete er r os ao falar sua pr ópr ia língua mat er na,
assim como ninguém comete er r os ao andar ou ao respir ar . Só se
er r a naquilo que é apr endido, naquilo que constit ui um saber
secundário, obtido por meio de t reinamento, pr át ica e memor ização:
er r a-se ao t ocar piano, er r a-se ao dar um comando ao comput ador ,
er r a-se ao falar /escr ever uma língua est r angeir a. A língua mater na
não é um saber desse t ipo: ela é adqui r i da pela cr iança desde o
út ero, é absor vida junt o com o leit e mater no. Por isso qualquer
cr iança ent re os 3 e 4 anos de idade (se não menos) já domina
plenament e a gr amát ica de sua língua. O r esultado disso é, como
diz Per ini (1997:11), que “nosso conheciment o da língua é ao mesmo
t empo alt amente complexo, incr ivelment e exat o e ext r emament e
segur o”.
E o mesmo autor prossegue, afir mando (p. 13) que

qualquer falante de português possui um conhecimento implícito altamente


elaborado da língua, muito embora não seja capaz de explicitar esse
conhecimento. E [...] esse conhecimento não é fruto de instrução recebida na
escola, mas foi adquirido de maneira tão natural e espontânea quanto a nossa
habilidade de andar. Mesmo pessoas que nunca estudaram [pg. 124] gramática
chegam a um conhecimento implícito perfeitamente adequado da língua. São
como pessoas que não conhecem a anatomia e a fisiologia das pernas, mas que
andam, dançam, nadam e pedalam sem problemas.
Assim, podemos at é dizer que exist em “er r os de port uguês”, só
que nenhum falant e nat ivo da língua os comet e! Por exemplo,
ser iam “er r ados” os enunciados abaixo (o ast erisco indica const r ução
agr amat ical):

(1) *Aquela garoto me xingou


(2) *Eu nos vimos ontem na escola
(3) *Júlia chegou semana que vem
(4) *Não duvido que ele não queira não vir aqui
(5) *Que o livro que a moça que Luís que trabalha comigo me apresentou
escreveu é bom não nego.

Esses enunciados, pr ecisament e por ser em agr amati cai s, ist o é,


por não r espeit ar em as regr as de funcionament o da nossa língua,
não apar ecem na fala espontânea e nat ur al de falant es nat ivos do
por tuguês do Br asil, mesmo que sejam cr ianças pequenas que ainda
não fr eqüentam escola ou adult os t ot alment e ilet r ados.
O que est á em jogo aqui, evident emente, é a noção de er ro e seu
est r eit o vínculo com o que tr adicionalment e é chamado de
português. Como já most rei, existe, no nível da língua escr ita, a
confusão ent r e por tuguês e ortogr afia ofi cial da língua por t uguesa.
No nível da língua falada, os t er mos que se confundem, ou que são
t omados como equivalentes, são por tuguês, gr amática nor mati va e
vari edade padr ão. [ p g. 125]
Em relação à língua escr ita, seria pedagogicament e proveit oso
subst it uir a noção de er r o pela de tentati va de acer to. Afinal, a
língua escr it a é uma t entativa de anal i sar a língua falada, e essa
análise será feit a, pelo usuário da escr it a no moment o de gr afar sua
mensagem, de acor do com seu per fil sociolingüíst ico. Uma pessoa
com poucos anos de escolar ização, pouco habit uada à pr ática da
leit ur a e da escr it a, t endo como quadr o de r eferência apenas uma
supost a equivalência unívoca ent r e som e let r a, far á uma análise
dotada de reduzido inst r ument al t eór ico, empr egando como
fer r ament a básica a anal ogi a. Assim, quem escr eveu CH Í CARA em
vez de XÍ CARA não fez isso por que quis er r ar , mas sim por que quis
acert ar . Se existe CH I NEL O, CH I COTE , CH I QUEI RO, CH I CLETE , por
analogia se chega à possibilidade de t ambém haver CH Í CARA . É
impor t ante not ar que os “err os” de or t ogr afia são const ant es: t roca
de J por G, de S por Z, de CH por X e assim por diante — just ament e
por serem casos em que é necessário fazer uma análise da r elação
fala-escr it a que ult r apassa os limit es t eór icos da supost a
equivalência som-let r a. Dificilment e alguém vai t entar escrever
XÍ CARA usando um J , um G, um S no lugar do X oficial, porque
falt am dados de exper iência par a uma analogia r azoável. Por out r o
lado, uma pessoa que tenha fr eqüent ado a escola por muit os anos,
que leia e escreva assiduamente, que se t enha familiarizado com o
uso do dicionár io, que tenha sido desper t ada para a exist ência das
r egular idades e irr egular idades da língua escr it a, saber á que a
simples anal ogi a não será suficient e como guia no momento de
escr ever — out ros quadr os de referência t er ão de ser acessados: a
cult ura [ p g. 126] er udita, a etimologia das palavr as, as r efor mas
or t ográficas, os cr it ér ios de nor mativização da or togr afia et c.
Quant o à língua falada, fica óbvio que o r ót ulo de er r o é
aplicado a toda e qualquer manifest ação lingüística (fonética,
mor fológica e sint át ica, principalment e) que se difer encie das r egr as
pr escrit as pela gr amát ica nor mat iva, que se apr esent a como
codificação da “língua cult a”, embor a na verdade seja a codificação
de um padr ão idealizado, que não coincide com a verdadeir a
variedade cult a objetiva. Dent r o dessa conceit uação, são igualment e
“er r ados” os enunciados abaixo
(6) A Joana é uma menina que ela sabe o que faz
(7) *A Joana que ela sabe é uma menina o que faz,

muit o embor a (6) seja per feitament e inteligível, decodificável,


int er pretável e, por t anto, gr amati cal , aceit ável, enquanto (7) é
clar ament e agr amati cal e, por conseguint e, não ocor r e na fal a
nor mal de nenhum br asi l ei ro. No ent ant o, (6) é consider ado t ão
“er r ado” quant o (7) por que nenhum dos dois enunciados se
enquadr a nas pr escr ições da gr amát ica nor mat iva (e de seus
autopr oclamados defensores, os comandos par agramati cai s). O
enunciado (6), porém, t em uma sint axe, uma semânt ica e uma
pr agmát ica que qual quer fal ante nativo do por tuguês do Br asi l (sem
pr eocupações nor mat ivist as) acei ta com t r anqüilidade, e a pr ova
disso é que enunciados desse tipo são pr ofer idos aos milhões
diariament e em todos os cant os do país, por pessoas de t odas as
classes sociais, inclusive as consider adas cult as. (É cer to que
const ruções [ p g. 127] desse tipo não aparecem em t ext os cult os
escr i tos, mas é pr eciso dist inguir as var iedades cult as faladas das
variedades cult as escr it as, coisa que os prescr itivist as em ger al não
fazem.) Tr at a-se, aqui, de uma r egr amati cal i zação do pr onome que,
de toda uma complexa per da de casos gr amati cai s, fenômeno que
vem sendo est udado há bast ant e t empo, t endo sido já t ema de
muit os ensaios, disser t ações e teses cient íficas. M as a pr ova
ofer ecida pelo uso intenso de const r uções sintáticas como a de (6)
não convence os defensor es da gr amát ica nor mat iva e os membr os
dos comandos par agr amati cai s, que não conseguir iam sobr eviver
sem a noção de er r o.
É pr eciso ter sempr e em mente que t udo aquilo que é
consider ado er ro ou desvi o pela gramát ica t r adicional t em uma
explicação lógica, cient ífica, perfeit amente demonst r ável. Só por
isso é que os agent es dos comandos par agramati cai s podem falar de
“er r os comuns”. Os gr amáticos conser vador es não se dão cont a de
que o pr ópr io adjet ivo “comum” usado por eles most ra que se t r at a
de um fenômeno amplo de variação, de uma t r ansfor mação que está
se pr ocessando nos mecanismos de funcionament o ger al da língua.
Em sua cegueir a dogmática, eles falam de “vício comum”, “er r o
vulgar ”, “pr aga”, “cor r upção muito difundida”, sem perceber que
est ão, na ver dade, r econhecendo que aquilo que eles consider am
“cer t o” é que deve apresent ar algum pr oblema, alguma disfunção,
alguma impossibilidade de uso que impede que a maior ia das
pessoas obedeça àquela r egr a. A única explicação inaceit ável
(embora seja a pr eferida dos conser vadores) é a de que essas
pessoas são “asnos”, “ignor antes” ou “idiot as”. [ p g. 128]
A nova post ur a t eór ica e pr át ica consist e em procur ar conhecer
as r egr as que est ão levando os falant es da língua a usar X onde se
esper ar ia Y, ident ificar essas regras, descr evê-las, pesquisar
explicações cient íficas par a elas, e, se possível, apresent á-las a seus
alunos. Foi o que t entei fazer em meu livr o A l íngua de Eul ál i a, e
foi também o que fiz nest e livro ao cont estar a explicação paleozóica
de Dad Squar isi par a a alt a freqüência de Vende se casas em lugar
de Vendem se casas.
O bom pr ofessor age como o filósofo Spinoza, que escreveu:

Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-
las, mas por entendê-las.

Pessoas como Napoleão M endes de Almeida, L uiz Ant onio


Sacconi e Dad Squar isi agem exatament e ao cont r ár io de Spinoza.
Sacconi, ao recor rer a um humor de gost o duvidoso, chega mesmo a
escr ever , preto no br anco:”Eu, por ém, odei o gent e que só diz
asneir as...” (p. 43). De um ver dadeiro professor devemos sempre
esper ar compai xão, sol idar i edade, empati a, nunca o ódio — muit o
menos o r iso deplor ador .

5. Então val e tudo?


Algumas pessoas me dizem que a eliminação da noção de er r o
dar á a entender que, em t er mos de língua, val e tudo. Não é bem
assim. Na verdade, em t er mos de língua, tudo val e alguma coisa,
mas esse valor vai depender de uma sér ie de fat or es. Falar gír ia
vale? Claro que [ p g. 129] vale: no lugar cer t o, no cont exto
adequado, com as pessoas cer t as. E usar palavr ão? A mesma coisa.
Uma das pr incipais t arefas do pr ofessor de língua é
conscient izar seu aluno de que a língua é como um grande guar da-
r oupa, onde é possível encont r ar t odo t ipo de vest iment a. Ninguém
vai só de maiô fazer compr as num shoppi ng center , nem vai ent r ar
na pr aia, num dia de sol quente, usando t er no de lã, chapéu de
felt ro e luvas...
Usar a língua, t ant o na modalidade or al como na escr it a, é
encont r ar o pont o de equilíbrio ent r e dois eixos: o da
adequabi li dade e o da acei tabil i dade.
Quando falamos (ou escrevemos), t endemos a nos adequar à
sit uação de uso da língua em que nos encont r amos: se é uma
sit uação for mal, t ent aremos usar uma linguagem for mal; se é uma
sit uação descont r aída, uma linguagem descont r aída, e assim por
diante. Essa nossa t ent at iva de adequação se baseia naquilo que
consider amos ser o gr au de acei tabi l idade do que est amos dizendo
por par te de nosso int erlocutor ou int er locut ores. Podemos
r epresent ar t udo isso gr aficamente mais ou menos assim:
É tot alment e inadequado, por exemplo, fazer uma palestr a
num congresso cient ífico usando gír ia, expr essões [ p g. 130]
mar cadamente r egionais, palavr ões et c. A platéia dificilment e
aceit ar á isso. É clar o que se o objet ivo do palest r ant e for
pr ecisament e chocar seus ouvint es, aquela linguagem ser á muit o
adequada... Não é adequado que um agr ônomo se dir ija a um
lavr ador analfabet o usando uma terminologia alt ament e técnica e
especializada, a menos que queir a não se fazer entender . Como
sempre, t udo vai depender de quem di z o quê, a quem, como,
quando, onde, por quê e vi sando que efei to...

6. A paranói a or togr áfi ca


A at it ude t r adicional do pr ofessor de por t uguês, ao r eceber um
t ext o produzido por um aluno, é pr ocur ar imediat amente os “er ros”,
dir ecionar toda a sua atenção par a a localização e er r adicação do
que está “incorr et o”. É uma pr eocupação quase exclusiva com a
for ma, pouco impor t ando o que haja ali de conteúdo. É sobret udo
aquilo que chamo de par anói a or togr áfi ca: uma obsessão neur ót ica
par a que todas as palavr as t r agam o acent o gr áfico, que t odos os Ç
t enham sua cedilha, que t odos os J e G est ejam nos lugar es cer t os...
e assim por diant e. Aliás, uma por cent agem enor me do que t odo
mundo chama de “er ro de port uguês” diz r espeit o a meras
incor r eções or t ográficas.
Or a, saber or t ogr afia não t em nada a ver com saber a língua.
São dois t ipos diferent es de conhecimento. A or togr afia não faz
par te da gramáti ca da língua, ist o é, das regr as de funcionament o
da língua. Como vimos no M ito n° 6, muit as pessoas nascem,
cr escem, vivem e mor r em sem jamais aprender a ler e a escr ever ,
sendo, no entant o, conhecedor es per feit os da gr amáti ca de sua
língua. [ p g. 131]
A or togr afia oficial é fr ut o de um decr et o, de um at o
inst it ucional por par t e do gover no, e fica muitas vezes sujeit a aos
gostos pessoais ou às int er pret ações dos fenômenos lingüíst icos por
par te dos filólogos que ajudam a est abelecê-la. Por isso, na virada
do século XI X par a o XX se escrevia EL LE ; na pr imeira met ade do
século XX se escr eveu ÊLE e agor a, no limiar do século XXI , se
escr eve EL E .
Por isso, a lei nos manda escr ever H UM O OU H ÚM U S, mas ÚM I DO
e U M I DADE , embora sejam t odas palavr as da mesma família (em
Por t ugal todas essas palavr as t êm H ).
Por isso também t emos de escrever ESTRAN H O e ESTRAN GEI RO,
com s, embora sejam palavras for madas com base no pr efixo EXTRA -
, pr esent e em EXTRAORDI NÁRI O, EXTRAVAGANTE , EXTRAPOLAR et c.
(em espanhol se escr eve EXTRÁNEO e EXTRAN JERO).
Por isso o adjet ivo EXTENSO e o subst ant ivo EXTENSÃO
apresent am um x, mas o ver bo ESTENDER (vá lá saber por quê!) se
escr eve com um s. E o adjetivo M ACI ÇO se escreve com c embor a seja
derivado de M ASSA , com SS.
Se os legisladores da língua podem ser t ão incoer ent es no
momento de definir a or togr afia oficial, não há por que est r anhar
(ou extr anhar ) que as pessoas em ger al t ambém se confundam. M as
não é o que pensam Pasquale Cipro Neto e Ulisses I nfant e, que na
p. 33 de sua Gr amáti ca, escr evem:

Não é admissível que com um alfabeto tão restrito (apenas 23 letras!) se cometam
tantos erros ortográficos pelo Brasil afora. Estude com cuidado este capítulo para
integrar o grupo de cidadãos que sabem grafar corretamente as palavras da língua
portuguesa. [pg. 132]

Essa Gr amáti ca filia-se à t r adição que at r ibui ao domínio da


escr it a um element o de di sti nção soci al , que é na ver dade um
elemento de domi nação por par t e dos let r ados sobre os ilet r ados.
Existe um mito ingênuo de que a linguagem humana t em a
finalidade de “comunicar ”, de “t r ansmit ir idéias” — mito que as
moder nas cor r entes da lingüíst ica vêm t r at ando de demolir ,
pr ovando que a linguagem é muit as vezes um poderoso inst r ument o
de ocultação da ver dade, de mani pulação do outro, de control e, de
i nti midação, de opr essão, de emudeci mento. Ao lado dele, t ambém
exist e o mit o de que a escrit a t em o objet ivo de “difundir as idéias”.
No ent ant o, uma simples invest igação hist ór ica most ra que, em
muit os casos, a escr it a funcionou, e ainda funciona, com a
finalidade opost a: ocult ar o saber , r eservá-lo a uns poucos para
gar ant ir o poder àqueles que a ela t êm acesso.
Como nos infor ma L eda Tfouni em seu livr o Adultos não
al fabeti zados: o avesso do avesso, a escrit a na Í ndia esteve
pr ofundament e ligada aos t ext os sagr ados, a que só t inham acesso
os sacer dot es, os “iniciados”, os que passavam por um longo
pr ocesso de “pr epar ação”: no fundo, a gar antia de que poderiam ler
aqueles text os guar dando-os em segredo. De fato, a célebr e
gr amát ica de Panini (século V a. C), que esmiuça t oda a est r ut ura
da língua sânscrit a clássica, t inha um objet ivo específico: per mit ir a
leit ur a “cor r et a” e a int erpret ação “exat a” dos t extos sagr ados. Er a,
por tant o, a filologia a ser viço da cast a sacer dot al. Convém lembr ar
que foi necessár ia a Refor ma pr ot est ant e, no século [ p g. 133] XVI ,
par a que a I greja cat ólica romana per mit isse a “popular ização” da
Bíblia, tolerando que as Escr it ur as fossem lidas e est udadas em
out ras línguas vivas e não somente em lat im. A pr imeir a t r adução
da Bíblia para o por t uguês, por exemplo, só acont eceu em 1719, por
obra de um pr ot estant e, João Fer reira de Almeida.
Na China, o sistema ideográfico de escr it a exer ceu dur ant e
séculos a função de assegur ar o poder aos bur ocr at as e aos
r eligiosos. Realment e, a gr ande quantidade de ideogr amas,
junt ament e com o alto gr au de sofisticação de seus desenhos, er am
obstáculos para que as pessoas do povo pudessem apr ender a ler e
escr ever . Pesquisador es cit ados por Tfouni r elat am que apesar de os
chineses conhecer em a escr it a alfabét ica desde o século I I d.C, eles
se r ecusar am a aceit á-la at é a época at ual, pr ovavelment e por que
seu código ant igo, mais complexo e pouquíssimo pr át ico, há séculos
se est abelecer a como o meio de expr essão de uma vast a pr odução
literár ia, “al ém de estar inextr i cavelmente l igado às i nsti tui ções
r el igiosas e de ser acei to como mar ca di sti nti va das cl asses
educadas” (gr ifos de Tfouni).
A mesma aut ora (p. 12) at ribui à int rodução da escr it a
alfabética na Grécia, no século V-VI a.C, t odo um pr ocesso de
r adicais t r ansfor mações cult ur ais, polít icas e sociais:
O aparecimento, entre outras coisas, do pensamento lógico-empírico e filosófico, a
formalização da História e da Lógica enquanto disciplinas intelectuais, e a própria
democracia grega têm íntima relação com a expansão e solidificação da escrita
fonética na Grécia e na Jônia. [pg. 134]

Por quê? Por que, ao cont rário de out ras civilizações suas
contempor âneas, a gr ega não tem uma casta sacerdot al
monopolizador a dos livr os sagrados. A própr ia escr it a não é um
segredo dos governantes e escr ibas, mas é de domínio público e
comum, possibilit ando, agor a sim, a ampla difusão e discussão de
idéias.
Assim, se por um lado a escrit a pode ser apont ada como uma
das causas fundament ais do sur giment o de civilizações moder nas e
do desenvolviment o científico, t ecnológico e psicossocial das
sociedades em que foi adot ada, por out r o, não convém negligenciar
fat or es como as r elações de poder e dominação que governam a
ut ilização r est r ita ou generalizada de um código escr ito.
Ao convidar o leitor a fazer par t e do “gr upo de cidadãos que
sabem gr afar cor ret ament e as palavr as da língua por t uguesa”,
Cipro e I nfant e afir mam, implicit amente, que esse conheciment o
não é amplo e gener alizado (nem poderia ser : 60 milhões de
analfabet os!), mas sim r est rit o a um “gr upo de cidadãos”.
Out r a idéia ingênua dos autores é achar “inadmissível” o
númer o de er ros de or t ografia comet idos “pelo Br asil afor a” já que
nosso alfabet o tem apenas 23 let ras! Or a, o alfabeto t em 23 let r as,
sim, mas elas podem se junt ar em cent enas (senão milhares) de
combinações difer ent es, cr iando a r iqueza inumerável das palavr as
da língua por tuguesa. E essas combinações possíveis nada t êm de
coer entes: nosso sist ema or togr áfico, como explica M iriam L emle, é,
ao mesmo t empo, um sist ema de r epr esentação fonêmica, um
sist ema de r epr esent ação [ p g. 135] mor fofonêmica, um sist ema com
memória et imológica e um sistema que pr ivilegia uma var iedade
dialet al em det r iment o de out r a3.
Par a t er mos uma idéia das complexas combinações possíveis
ent re as let r as de nosso alfabet o e os sons que elas podem
r epresent ar , vamos ver as r elações que exist em ent re os fonemas
[k], [s], [š] (est e é o som da let r a x em xi xi) e [z] e suas possíveis
r epresent ações or t ogr áficas4

[ p g. 136]

3
Ver o interessante prefácio de Miriam Lemle ao livro Leitura, ortografia e fonologia, de Myrian
Barbosa da Silva.
4
Este quadro inspira-se no da p. 32 do livro de Myrian Barbosa da Silva, com pequenas alterações.
Cont ando o númer o de flechas, ident ificamos ao t odo 21
r elações ent re r ealização fonét ica e r epresent ação gráfica. M as se
fôssemos levar em cont a t oda as diver sidades de pr onúncia que
exist em no univer so da língua por t uguesa, no Brasil e for a dele,
cer t ament e encont r ar íamos muit as mais5. Vamos dar exemplos só
das 21 relações do nosso esquema:

1. QU → [ku]: obliqúe
2. QU → [kw]: quase
3. QU → [k]: quero
4. C → [k]: casa
5. C → [s]: céu
6. S → [s]: sol
7. S → [š]: festa (na pronúncia carioca, paraense, lisboeta, entre outras)
8. S → [z]: rosa
9. Z → [z]: azul
10. Z → [š]: raiz (nas mesmas pronúncias citadas em 7)
11. X → [s]: próximo
12. X → [ks]: fixo [pg. 137]
13. X → [z]: exame
14. X → [š]: xícara
15. Ç → [s]: aço
16. SS → [s]: osso
17. XC → [s]: exceto
18. XS → [s]: exsudar
19. SC → [s]: descer
20. SÇ → [s]: cresça

5
Gosto de propor o seguinte desafio às pessoas que ainda se iludem com o mito de que “o certo é
escrever assim porque se fala assim”: você sabia que a letra s pode representar o som do J em já? Depois
de alguns momentos de reflexão, dou a resposta: na pronúncia do Rio de Janeiro, de Belém ou de Lisboa,
numa palavra como MESMO O S tem “som de J”, e o próprio nome de Lisboa na fala de seus nativos se
pronuncia lijboa. Nessas pronúncias, uma frase como AS MESMAS BOAS GAROTAS soa aj mejmaj boaj
garotax, por causa de características fonéticas típicas do português (culto inclusive) falado nesses locais.
Além disso, na fala não-culta do Rio de Janeiro é comum a pronúncia mermo ou me'mo para o que se
escreve MESMO. A complexidade da relação letra-som, como se vê, é muito maior do que as pessoas em
geral pensam, sobretudo quando se leva em conta todas as variedades nacionais, regionais, sociais,
estilísticas etc. da língua.
21. CH → [š]: chave

Par ece complicado? E é! Diant e de uma sit uação dessas, que é


apenas uma das muit as sér ies de int er -r elações ent r e let r a e som
que exist em na língua por t uguesa, não nos par ece nem um pouco
“inadmissível” a exist ência de dúvidas e hesit ações por par t e dos
br asileir os, inclusive dos bem alfabetizados, no moment o de
escr ever .
Vamos abandonar , por t ant o, a idéia (preconceit uosa) de que
quem escreve “t udo er r ado” é um “ignor ant e” da língua. O
aprendizado da or t ogr afia se faz pelo contato ínt imo e freqüent e
com t ext os bem escr it os, e não com regr as mal elabor adas ou com
exer cícios pouco esclarecedor es.
Ao receber mos um t ext o escr ito por alguém (ou ao ouvir alguém
falar ), vamos procur ar ver , ant es de t udo, o que ele/ela est á
quer endo comunicar , par a só depois nos pr eocupar mos com os
detalhes de como ele/ela está se comunicando. Vamos fazer a nós
mesmos as seguintes per gunt as:

— Esse texto (ou esse discurso) é coerente?


— Traz idéias originais? [pg. 138]
— Ofende algum princípio ético?
— É preconceituoso?
— Reproduz idéias autoritárias ou intolerantes?
— Mostra um espírito crítico e/ou criativo?
— Demonstra um senso estético?
— Comunica que sentimentos?
— Ensina-me alguma coisa?
— Desperta minhas emoções? Quais?
— ...

E assim por diante. I sso é que é educar : dar voz ao out r o,


r econhecer seu dir eito à palavr a, encorajá-lo a manifest ar -se... Sem
isso, não é de admir ar que a atividade de redação seja t ão
pr oblemát ica na escola.
Eu confesso que sint o muito maior pr azer ao ler (ou ouvir ) um
t ext o cheio de “er r os de por t uguês” — mas com idéias or iginais,
inovador as, coerent es, bem expr essas —, um t exto isent o de
pr econceitos e de idéias r ançosas, do que ao ler um t exto com todas
as vír gulas no lugar , com t odas as r egências cult as respeit adas,
t odas as concor dâncias ver bais e nominais, mas r eplet o de int ole-
r ância, de deboche, de sar casmo, de concepções degr adantes e por aí
afor a.

7. Subver tendo o pr econcei to li ngüísti co


Por mais que isso nos entr ist eça ou ir r ite, é preciso r econhecer
que o pr econceito lingüíst ico está aí, fir me e for te. Não podemos t er
a ilusão de querer acabar com ele de uma hor a para out r a, por que
isso só ser á possível [ p g. 139] quando houver uma t r ansfor mação
r adical do t ipo de sociedade em que est amos inseridos, que é uma
sociedade que, par a exist ir , pr ecisa da discriminação de t udo o que é
difer ent e, da exclusão da maior ia em benefício de uma pequena
minor ia, da existência de mecanismos de cont r ole, dominação e
mar ginalização. Apesar disso, acredito t ambém que podemos
pr aticar alguns pequenos atos subver sivos, uma pequena guer r ilha
cont ra o pr econceit o, sobr et udo por que nós, pr ofessor es, somos
muit o import ant es como for mador es de opinião. E quais são est es
pequenos atos de sabot agem cont r a o pr econceit o?
Pr i mei r o, for mando-nos e infor mando-nos. Não me canso de
insist ir : é preciso que cada pr ofessor de língua assuma uma posição
de cienti sta e i nvesti gador , de pr odutor de seu pr ópr i o conheci mento
l i ngüísti co teóri co e pr áti co, e abandone a velha atit ude r epetidor a e
r epr odutor a de uma dout r ina gr amat ical cont raditór ia e incoerent e.
Segundo, fazendo a cr ít ica at iva da nossa pr át ica diár ia em
sala de aula. Por questão de sobr evivência (às vezes at é
sobrevivência física mesmo!), t alvez tenhamos de cont inuar
ensinando aquelas coisas que nos são cobradas pela sociedade, pela
dir eção das escolas, pelos pais dos nossos alunos. M as podemos
ensinar essas coisas cr iticando-as ao mesmo t empo e deixando bem
clar o que aquilo ali não é tudo o que se pode saber a r espeit o da
língua, que há um milhão de out r as coisas muit o mais [ p g. 140]
int er essant es e gost osas par a descobr ir no univer so da linguagem.
Ter cei r o, diant e das cobr anças de pais, dir et or es ou donos de
escola, most rar que as ciências todas evoluem, e que a ciência da
linguagem t ambém evolui. Que as ment alidades mudam, que as
postur as do pr ópr io M inist ér io da Educação hoje são out ras. Não se
pode negar que os Par âmetr os Cur r i cul ar es Nacionai s r epresent am
um gr ande avanço par a a r enovação do ensino da língua
por tuguesa. Vamos t ent ar adquir ir , copiar , t er sempre à mão esses
Par âmet r os par a nos defender das pessoas que nos cobram um
ensino à moda ant iga: “Olha aqui, ó, o M inist ér io da Educação t á
dizendo que a gent e deve ensinar de uma maneir a diferent e, nova,
at ualizada. Ou você quer que seu filho cont inue apr endendo coisas
que não ser vem mais par a nada?”.
H á algumas boas compar ações que nos ajudam a argumentar
melhor . Quando eu est ava na escola, o cer to em ast ronomia er a que
somente o planet a Sat ur no tinha anéis. Hoje, gr aças às inovações
t ecnológicas, já sabemos que Ur ano e Netuno t ambém têm anéis. A
cada ano são descober t as dezenas de espécies novas de animais e
plant as (no mesmo r it mo, infelizmente, das que são ext int as par a
sempre). Recentement e, encont r ou-se o fóssil de um dinossauro
car nívoro maior e mais for te que o t ir anossauro, consider ado
dur ant e muit o t empo o maior pr edador que jamais exist iu. Os
achados dos ar queólogos a t odo moment o nos fazem r ever e
r efor mular nossas idéias sobr e [ p g. 141] a histór ia dos povos
ant igos. Os mapas com as divisões polít icas da Eur opa de dez anos
at r ás já não t êm nenhuma ut ilidade pr át ica hoje em dia, a não ser
par a o pesquisador invest igar o que mudou de lá par a cá. Se t ant as
mudanças acont ecem nas out r as ár eas do conheciment o,
decor rent es das t ransfor mações do univer so, da nat ur eza e da
sociedade, sendo acolhidas como nat urais e inevitáveis, por que só o
est udo-ensino da língua estar ia isento de cr ít ica e r efor mulação?
Quarto, assumir uma nova post ur a, usando como matér ia de
r eflexão as seguintes noções, que chamei de DEZ CI SÕES, por que
r epresent am de fat o uma ci são, um cor te do cordão umbilical que
sempre nos prendeu às velhas dout r inas gramat icais (o símbolo de
infinito no final da list a é um convit e a quem quiser acr escent ar
out ras cisões):

DEZ CI SÕES
par a um ensino de língua
não (ou menos) preconceit uoso

1) Conscientizar-se de que t odo falante nativo de uma língua é


um usuário compet ente dessa língua, por isso ele SABE essa língua.
Ent r e os 3 e 4 anos de idade, uma cr iança já domina integr alment e
a gr amát ica de sua língua. Sendo assim,
2) aceit ar a idéia de que não exi ste er r o de português. Exist em
di fer enças de uso ou alter nativas de uso em relação à r egra única
pr opost a pela gr amát ica nor mativa. [ p g. 142]

3) Não confundir er r o de por t uguês (que, afinal, não exist e) com


simples er r o de or tografi a. A or togr afia é ar t ificial, ao cont r ár io da
língua, que é nat ural. A ort ogr afia é uma decisão polít ica, é impost a
por decr et o, por isso ela pode mudar , e muda, de uma época par a
out ra. Em 1899 as pessoas est udavam psychologi a e histór ia do
Egypto; em 1999 elas est udam psi col ogi a e história do Egito.
L ínguas que não t êm escr it a nem por isso deixam de t er sua
gr amát ica.

4) Reconhecer que t udo o que a Gr amát ica Tradicional chama


de er r o é na ver dade um fenômeno que t em uma explicação
cient ífica per feitament e demonst r ável. Se milhões de pessoas
(cult as inclusive) est ão opt ando por um uso que difer e da regr a
pr escrit a nas gr amát icas nor mat ivas é porque há alguma r egra
nova sobr epondo-se à ant iga. Assim, o pr oblema est á com a regr a
t r adicional, e não com as pessoas, que são falantes nat ivos e
perfeit amente compet ent es de sua língua. Nada é por acaso.

5) Conscient izar -se de que toda língua muda e vari a. O que


hoje é vist o como “cer t o” já foi “er r o” no passado. O que hoje é
consider ado “err o” pode vir a ser perfeit amente aceito como “cer to”
no fut ur o da língua. Um exemplo: no por t uguês medieval existia um
verbo l eixar (que apar ece at é na Car ta de Per o Vaz de Caminha ao
r ei D. M anuel I ). Com o tempo, esse verbo foi sendo pr onunciado
dei xar , por que [d] e [l] são consoant es apar ent adas, o que per mit iu
a t roca de uma pela out r a. H oje quem pr onunciar l ei xar vai est ar
comet endo um “er r o” (vai ser acusado de desl ei xo), muit o embor a
essa for ma seja mais pr óxima da origem [ p g. 143] lat ina, l axare
(compare-se, por exemplo, o fr ancês l ai sser e o it aliano l asci ar e). Por
isso é bom evit ar classificar algum fenômeno gr amat ical de “er ro”:
ele pode ser , na ver dade, um indício do que ser á a língua no fut uro.

6) Dar -se conta de que a língua por t uguesa não vai nem bem,
nem mal. Ela simplesmente VAI , ist o é, segue seu rumo, pr ossegue
em sua evolução, em sua t r ansfor mação, que não pode ser det ida (a
não ser com a eliminação física de t odos os seus falantes).

7) Respeit ar a var iedade lingüística de t oda e qualquer pessoa,


pois isso equivale a r espeit ar a int egr idade física e espirit ual dessa
pessoa como ser humano, porque

8) a língua per meia tudo, ela nos constit ui enquanto ser es


humanos Nós somos a língua que falamos. A língua que falamos
molda nosso modo de ver o mundo e nosso modo de ver o mundo
molda a língua que falamos. Par a os falantes de por t uguês, por
exemplo, a difer ença ent re ser e estar é fundament al: eu estou i nfel i z
é r adicalment e difer ente, para nós, de eu sou i nfel i z. Or a, línguas
como o inglês, o fr ancês e o alemão t êm um único ver bo par a
expr imir as duas coisas. Out ras, como o r usso, não t êm verbo
nenhum, dizendo algo assim como: Eu - i nfel i z (o r usso, na escr it a,
usa mesmo um t r avessão onde nós inser imos um ver bo de ligação).
Assim,

9) uma vez que a língua est á em t udo e t udo est á na língua, o


pr ofessor de port uguês é pr ofessor de TUDO. (Alguém já me disse
que t alvez por isso o pr ofessor de por t uguês devesse r eceber um
salário igual à soma dos salár ios de t odos os out r os pr ofessor es!)
[ p g. 144]

10) Ensinar bem é ensinar par a o bem. Ensinar par a o bem


significa r espeitar o conhecimento int uit ivo do aluno, valor izar o
que ele já sabe do mundo, da vida, reconhecer na língua que ele fala
a sua própr ia ident idade como ser humano. Ensinar para o bem é
acr escent ar e não supr imir , é elevar e não rebaixar a aut o-est ima do
indivíduo. Soment e assim, no início de cada ano let ivo est e
indivíduo poder á comemor ar a vol ta às aul as, em vez de lament ar a
vol ta às jaul as!


[ p g. 145]
IV
O pr econ cei t o con t r a a l i n gü í st i ca
e os l i n gü i st a s

1. Uma “r el i gi ão” mai s vel ha que o cr i sti ani smo


O ensino de língua na escola é a única disciplina em que exist e
uma disput a ent r e duas per spect ivas dist int as, dois modos
difer ent es de encar ar o fenômeno da linguagem: a dout rina
gr amat ical t radicional, sur gida no mundo heleníst ico no século I I I
a.C, e a lingüística moder na, que se fir mou como ciência aut ônoma
no final do século XI X e início do XX. Qualquer pessoa bem
infor mada achar ia no mínimo est r anho se um pr ofessor de biologia
ensinasse a seus alunos que as moscas nascem da car ne podre, ou
se um pr ofessor de ciências dissesse que a Ter r a é plana e o Sol gir a
em tor no dela, ou ainda se um pr ofessor de química afirmasse que a
mist ur a dos “quat r o element os” (ar , água, ter r a e fogo) pode
r esult ar em our o! São idéias mais do que ult r apassadas e que
começar am a ser subst it uídas por novas concepções mais
verossímeis a part ir do per íodo da hist ória do conhecimento
ocident al conhecido como o nascimento da ciência moder na (século
XVI em diante). Ninguém se espanta, por ém, quando um pr ofessor
de língua ensina que os subst ant ivos [ p g. 147] são “palavr as que
r epresent am os ser es em geral”, ou que sujeit o é “o ser do qual se
diz alguma coisa”, ou que verbo é “a palavr a que expr ime ação ou
movimento”. São afir mações t ão imprecisas e incoer entes (par a não
dizer fr ancament e falsas) quanto a de que as avest r uzes ent err am a
cabeça na ar eia ou que apont ar para as est r elas faz nascer ver r uga
nos dedos! E no ent anto elas cont inuam sendo est ampadas nos
manuais de gr amát ica, nos livr os didáticos, nas apost ilas, e
cobradas em testes, exames e provas de vest ibular !
A dout r ina gr amatical t r adicional, mais velha que a r eligião
cr ist ã, passou incólume pela gr ande revolução científica que abalou
os fundament os do conhecimento e do pensamento ocident al a
par tir do século XVI . Bast a examinar o que acont ece na escola. É
muit o comum o ensino das out r as disciplinas fazer uma abor dagem
cr ít ica dos saber es do passado, most r ando de que maneir a a
evolução da sociedade, da ciência e da t ecnologia levou o ser
humano a abandonar velhas cr enças e super st ições. Em livros
didáticos de biologia, física, química, hist ór ia, geogr afia et c., é
fr eqüent e encont rar afir mações do t ipo: “Dur ante muit o tempo se
acr editou que [...], mas os avanços da pesquisa e do conhecimento
r evelaram que [...]”. Quem não se lembr a de algum pr ofessor
contando a hist ór ia de Copér nico, Galileu, Newt on, Darwin, Past eur
e out r os que r evolucionar am o conhecimento humano? I sso só não
acont ece nas aulas de língua! Os termos e conceit os da Gr amát ica
Tr adicional — est abelecidos há mais de 2.300 anos! — continuam a
ser r epassados pr at icamente [ p g. 148] intactos de uma ger ação de
alunos par a out ra, como se desde aquela época remot a não t ivesse
acont ecido nada na ciência da linguagem. O ensino t r adicional
oper a assim uma imobilização do t empo, um apagament o das
condições sociais e hist ór icas que per mit ir am o sur giment o e a
per manência da Gr amática Tr adicional.
A Gr amát ica Tr adicional per manece viva e for t e por que, ao
longo da história, ela deixou de ser apenas uma t ent ativa de
explicação filosófica para os fenômenos da linguagem humana e foi
t r ansfor mada em mais um dos muit os element os de dominação de
uma parcela da sociedade sobre as demais. Assim como, no cur so do
t empo, tem se falado da Família, da Pát r ia, da L ei, da Fé et c. como
entidades sacr ossant as, como valor es per enes e imut áveis, t ambém
a “L íngua” foi elevada a essa cat egor ia abst r at a, devendo, por t ant o,
ser “pr eser vada” em sua “pur eza”, “defendida” dos at aques dos
“barbar ismos”, “conservada” como um “pat r imônio” que não pode
sofr er “r uína” e “cor r upção”. Nessa concepção nada cient ífica, língua
não é toda e qualquer manifest ação oral e/ou escr it a de qualquer ser
humano, de qualquer falante nat ivo do idioma: “a L íngua”, com
ar t igo definido e inicial maiúscula, é soment e aquele ideal de
pur eza e vir tude, falado e escrit o, é clar o, pelos “puros” e “vir t uosos”
que est ão no topo da pir âmide social e que, por isso, merecem
exer cer seu domínio sobr e as demais camadas da população. A
língua deixou de ser fat o concreto par a se t r ansfor mar em valor
abst r at o.
Quer er cobrar , hoje em dia, a obser vância dos mesmos padr ões
lingüíst icos do passado é querer pr eser var , [ p g. 149] ao mesmo
t empo, i déi as, mental i dades e estr utur as sociai s do passado. A
Gr amát ica Tr adicional, funcionando como uma i deol ogi a
l i ngüísti ca, foi e ainda é, como toda ideologia, o lugar das cer t ezas,
uma dout rina sólida e compact a, com uma única respost a cor reta
par a todas as dúvidas. Por isso, o que não est á abonado na
gr amát ica nor mat iva é “er ro” ou simplesmente “não é por t uguês”, e
se alguma palavra não se encont r a no dicionár io é por que
simplesmente ela “não existe”! A lingüística moder na, ao encar ar a
língua como um objet o passível de ser analisado e int er pr et ado
segundo métodos e cr itér ios científicos, devolveu a língua ao seu
lugar de fato soci al , abalando as noções antigas que apresentavam a
língua como um val or i deológi co. Assim, a lingüíst ica, como t oda
ciência, é o lugar das sur pr esas, das descober t as, do novo, da
subst it uição de par adigmas, da r efor mulação cr ítica das t eor ias.
Or a, o novo assust a, o novo subver t e as cer tezas, compromet e
as est r ut ur as de poder e dominação há muit o vigentes. Não é por
acaso que, mesmo ent re pr ofissionais que dever iam t er a lingüística
como seu cor po t eór ico e prát ico de r efer ência, a dout r ina
gr amat ical t radicional ainda encont r e um apoio e uma defesa quase
ir r acionais. É o que se vê, hoje em dia, na imprensa e na mídia
br asileir a, com os comandos par agr amati cai s analisados nest e livro,
essa enxur r ada de pr ogramas de t elevisão e de r ádio, colunas de
jor nal e r evist a que t ent am preser var as noções mais conser vador as
do “cer to” e do “err ado”, despr ezando o saber acumulado por mais
de um século [ p g. 150] de ciência lingüíst ica moder na, que t em no
Br asil cent ros de pesquisa de excelência r econhecida
int er nacionalment e. I sso par a não falar t ambém dos gr upos de
pessoas que dizem pr omover r idículos “moviment os de defesa da
língua por tuguesa”, como se fosse necessár io defender a língua de
seus própr ios falant es nat ivos, a quem ela per t ence de fat o e de
dir eit o. A mat ér ia de capa da revista Veja de 7/11/2001 (“Falar e
escr ever bem”) e a est r éia de Pasquale Cipr o Net o no pr ograma
Fantásti co da Rede Globo no mesmo ano são exemplos per feit os do
obscur antismo ant icient ífico que envolve, nos meios de
comunicação, t udo o que diz r espeit o à língua e ao ensino da língua.
A par t icipação de Pasquale no Fantásti co faz regredir em pelo
menos 25 anos os gr andes avanços já obtidos pela L ingüíst ica na
r enovação do ensino de língua na escola br asileir a.
O grande pr oblema est á na confusão que r eina na ment alidade
das pessoas que atr ibuem uma “crise” à língua, quando, de fat o, a
cr i se exi ste é na escol a, é no sist ema educacional br asileir o,
classificado ent r e os pior es do mundo, apesar de nosso país ser o
mais r ico e indust r ializado do H emisfér io Sul, além de ser a décima
economia capit alist a do planet a. A l íngua não está em cr i se, muit o
pelo cont r ário: nunca em t oda a sua história o por t uguês foi t ão
falado, t ão escr it o, t ão impresso e t ão difundido mundo afora pelos
mais difer ent es meios de comunicação. E a par ticipação do Brasil,
com seus 170 milhões de falant es nat ivos, é de longe a mais
r elevant e [ p g. 151] e a mais impor t ant e. Cr ise existe, sim, na
escola pública br asileir a, de t odos os níveis, desde o pr é-pr imár io
at é a univer sidade, sobr et udo depois que o duplo gover no pr esidido
por Fer nando Henr ique Car doso passou a empregar t odos os
esfor ços possíveis par a demolir , sist emat icament e, o já cambaleant e
e sucat eado sist ema de ensino público do Br asil (como t em feito,
aliás, com todo o pat r imônio público dos br asileir os). É essa escola
ar r uinada, com pr ofessores despr epar ados e pessimament e
r emuner ados, que não ofer ece aos alunos as mínimas condições de
let r amento necessár ias par a o pleno exer cício da cidadania. Tent ar
at r ibuir as deficiências dos br asileir os no uso mais for mal da língua
aos pr ópr ios br asileiros que não têm “amor ao idioma” ou, pior
ainda, ao própr io idioma, é não querer ver a realidade, é lançar a
culpa sobr e quem, de fato, é a vítima maior dest e pr ocesso per ver so.
Desse modo, achar que a língua est á em “cr ise” e que par a
super ar essa “crise” é necessário sustent ar a dout r ina gr amatical
sem submet ê-la a uma cr ítica serena e bem-fundada é, a meu ver ,
uma at itude que só pode t er duas explicações: a i gnor ânci a
ci entífi ca (a pessoa nunca ouviu falar de lingüística) ou a
desonestidade i ntel ectual (t endo ent r ado em contato com a ciência
lingüíst ica, finge que não a conhece) — pior ainda é quando essa
at it ude se sustenta num indisfar çado e indisfar çável pr econcei to
soci al . Não podemos aceit ar nenhuma dessas explicações para
just ificar o t r abalho daqueles que se pr oclamam “especialist as” em
quest ões de linguagem. Que um leigo continue a r epetir os mit os
pr econceit uosos e as idéias [ p g. 152] infundadas que cir culam na
sociedade sobr e língua e linguagem é algo que podemos
compreender e explicar com base numa análise sociológica e
hist ór ica. M as que assim pr oceda um aut oproclamado especialista
que, ainda por cima, se at r ibui o papel de julgar e condenar o
compor tament o lingüíst ico de seus semelhantes... é algo que não
podemos aceit ar e que devemos, sim, denunciar e combat er .
Pelas mesmas razões que levar am à t r ansfor mação da
Gr amát ica Tr adicional num inst r umento de dominação e exclusão
social é que a at ividade dos lingüist as brasileir os vem sofrendo
at aques grosseiros por par t e de aut o-int itulados “filósofos” que
r epresent am, na ver dade, a reação mais conser vador a (e muit as
vezes com acentos clar ament e fascist as) cont ra qualquer t entativa
de democr at ização do saber e da sociedade. É a mesma ir a que leva
os fundamentalist as (pseudo)cr ist ãos a quer er impedir o ensino da
t eor ia evolucionist a de Dar win em escolas nor te-amer icanas. Assim
como esses fundamentalist as, par a defender seu ponto de vista
obscur antist a, acusam Dar win de afir mar que “o homem descende
do macaco” (coisa que ele jamais escr eveu em nenhuma de suas
obras: sua t eoria é a de que os humanos e os demais pr imat as
descendem de um ancest r al comum), t ambém os atuais det r at or es
da ciência lingüíst ica acusam os est udiosos da linguagem de
defender em o não-ensino das for mas padronizadas do por tuguês,
numa t ent ativa de t r ansfor mar t oda uma ar gument ação det alhada
e sofist icada em duas ou t rês afir mações toscas e pr opositadament e
detur padas. [ p g. 153]

2. Por tuguês or todoxo? Que língua é essa?


É fácil most r ar de que modo essa oposição à ciência lingüíst ica
est á viva e at iva no Br asil nos dias de hoje. Par a começar , vamos
invocar novament e o espect r o daquele que se t or nou uma espécie de
ar quét ipo folclórico do gr amático autor itár io, conser vador e
int oler ante: Napoleão M endes de Almeida. Tudo o que ele escreveu
constit ui um material suculent o e abundant e par a diver sos tipos de
investigação sobre idéias não-cient íficas: como já vimos na segunda
par te deste livro, dos t ext os de Napoleão got ejam pr econceit os
sociais, r aciais, lingüíst icos ent r e out r os; ao mesmo t empo, pululam
neles as afir mações mais est apafúrdias possíveis sobr e língua,
gr amát ica e ensino. Vamos repet ir aqui o que ele escr eveu no
Di ci onár i o de Questões Ver nácul as, no verbete “lingüística”:

Para fixar inúteis, pretensiosas e ridículas bizantinices, perde o estudante o tempo


que deveria dedicar ao conhecimento efetivo da língua. [...] Que adorno cultural
representa um diploma de lingüística a quem escreve, ou deixa meia dúzia de
vezes passar num mesmo artigo de jornal, os mais tolos erros de gramática?
[...] Enganam-se os pais, enganam-se os filhos quando pensam estar a escola, a
faculdade ensinando gramática, ensinando a língua da terra porque no programa
consta 'lingüística'. O objeto da lingüística é a língua no sentido da fala, de dom de
expressar o homem por palavras o pensamento; é um estudo sem utilidade
específica para este ou aquele idioma. [...] É a lingüística um dos estorvos do
aprendizado da língua portuguesa em escolas brasileiras. [pg. 154]

Como já coment ei esse t ext o mais at r ás (pp. 80-81), vou apenas


chamar a at enção par a o seguint e fat o: Napoleão M endes de
Almeida mor r eu em 1998 (aos 87 anos). Se t ivesse escr ito esse
verbete at é 1930, seria mais fácil ent ender sua post ur a
ant icientífica, analisando-a dent r o do cont ext o das idéias e das
concepções de língua e linguagem que vigor avam naquela época, em
que a ciência lingüística ainda não t inha se instalado
definit ivament e nos gr andes cent ros de ensino e de pesquisa. M as,
em 1998, muit a água já tinha passado debaixo da pont e cient ífica,
os est udos da linguagem já tinham enfr entado diver sas r evoluções
epist emológicas, amplament e divulgadas nos meios acadêmicos e
at é nas escolas fundamental e média. Não há nada que possa
just ificar esse conceit o t ão mesquinho e t acanho, essa idéia t ola de
que a lingüística só est uda os sons da fala...
Volto a falar de Napoleão M endes de Almeida por que sua
mor t e mer eceu um ar t igo assinado por Pasquale Cipr o Neto na
Folha de S. Paul o, jor nal onde Pasquale é “consult or de por t uguês”.
Nesse ar t igo, depois de falar do est ilo r ebuscado e bar r oco de
Napoleão, Pasquale escr eveu o seguint e (27/4/1998):

Talvez por isso, os lingüistas autoproclamados de vanguarda o têm como


conservador e consideram inútil o estudo de sua obra. Meticuloso, Napoleão era
essencialmente gramático e como tal deve ser encarado. Muita gente o admira e
respeita, sobretudo por seu curso de português e latim por correspondência. [pg.
155]

E conclui o ar t igo com estas palavr as:

Uma coisa, porém, é incontestável: quem quiser estudar o português ortodoxo —


para prestar concurso público, advogar, exercer a magistratura ou carreira
diplomática — certamente precisará consultar a obra de Napoleão.

É muit o int eressant e aqui o uso da expressão “por tuguês


or t odoxo”. Como se sabe, a noção de ortodoxi a foi invent ada —
pouco depois da inst it uição do cr istianismo como r eligião oficial do
impér io r omano — par a definir os dogmas oficiais da I gr eja, as
únicas maneir as cer t as e admissíveis de acr edit ar em Deus, em
Cr ist o, na Vir gem M ar ia, na Sant íssima Tr indade et c. Quem se des-
viasse desses dogmas era acusado de her esi a e condenado às mais
diver sas punições, como o exílio, a pr isão, a t or t ura e a mor te na
fogueir a. O conceit o de or todoxi a se r elaciona com uma sér ie de
out ras noções do mesmo campo semânt ico: dogma, intol er ânci a,
i nfl exibil i dade, pecado, peni tênci a, casti go, excomunhão e out r as
apar ent adas. Ao “er r o” do herético cor r esponde a “infalibilidade” do
or t odoxo. Se é possível falar em “por t uguês or t odoxo” é porque
cer t ament e t ambém deve exist ir , na ment alidade de seus
defensor es e em oposição a ele, um “por tuguês herético”, um
“port uguês pecador ”, que mer ece cast igo e excomunhão... E nós
sabemos que é pr ecisament e essa ment alidade de per seguição,
acusação e condenação que est á por t r ás, at é hoje, da ação dos
defensor es int r ansigentes dessa nebulosa “ort odoxia” gr amat ical.
[ p g. 156]

3. Devanei os de idiotas e oci osos


M as o que ser á, afinal, o “por t uguês or t odoxo” de Pasquale
Cipro Neto? Não é muit o difícil descobr ir , bast a ler com at enção as
coisas que ele escr eve. Analisando, por exemplo, a fala do polít ico
Fr ancisco Rossi, candidat o ao governo de São Paulo em 1998,
Pasquale escreveu, na mesma Folha de S. Paul o (21/8/1998):

Referindo-se a Gilson Menezes, Rossi disse que o prefeito de Diadema “foi um


dos que levantou bandeira”. Alguns lingüistas perdem seu precioso tempo em
devaneios com que tentam explicar por que o falante brasileiro prefere o singular
nesses casos. Dizem que essa opção ocorre porque o que se quer é colocar em
evidência o elemento de que se fala. Balela. Por que não se aceita que se diga “Ela
é uma das moças bonita da sala”, ou “Ele é um dos deputados inscrito para falar”?
Porque não se quer dizer que ela é a única moça bonita, nem que o deputado é o
único inscrito. Das moças bonitas, ela é uma. Dos deputados inscritos para falar,
ele é um. Dos que levantaram bandeira, Gilson é um. Então Gilson foi um dos que
levantaram bandeira.

Temos aqui uma das muitas ocasiões em que Pasquale,


sist emat icamente, só menciona os lingüist as par a lançar sobre eles
as mais diver sas acusações. Nesse t ext o, t emos a associação de
l i ngüi stas com devanei os e bal ela. M as é sempre assim. Quem
consult ar , por exemplo, o cd-rom que r eúne t odas as edições do
jor nal Fol ha de S. Paul o ent re os anos de 1994 e 2000, vai ver que
nas colunas assinadas por Pasquale, a palavr a li ngüi sta vem
sempre [ p g. 157] acompanhada de alguma nota depr eciat iva.
Também na r evist a Cul t, onde escreve r egular ment e, Pasquale já
chamou os lingüistas de “deslumbr ados”.
Sobr e o fat o gr amat ical que ele analisa, det ect ando “er r o
comum” na fala de Fr ancisco Rossi, é muit o inst r ut ivo ler o que o
filólogo e gr amát ico Evanildo Bechara afir mou numa ent r evist a ao
jor nal UERJ em questão (n° 72, fever eir o/abril de 2001). Par a
just ificar a suposta necessidade de elaboração de uma gr amát ica
nor mat iva com a chancela da Academia Br asileira de L etr as,
Bechara declarou:

Vejamos um exemplo: a expressão “um dos que”. A língua permite que você diga:
“Carlos é um dos alunos que trabalha”; ou “um dos alunos que trabalham”. Há
professores que consideram mais lógica a concordância do verbo no plural. Outros
acham que a concordância deve ser no singular. Mas a língua admite as duas
possibilidades. O que não se pode fazer é optar por uma forma e considerar a outra
errada, como muitas vezes fazem as bancas examinadoras.
Evanildo Bechara é, sem a menor possibilidade de dúvida, o
mais impor t ant e gr amático br asileir o vivo. Apesar de sua inegável
competência como est udioso da língua, suas post uras polít icas e
pedagógicas não têm nada de r evolucionár ias, e o simples fat o de
per tencer à Academia Br asileir a de L et r as é exemplo de sua filiação
a um ideár io conser vador e elit ist a — ele já declarou, por exemplo,
que a função da escola é levar os alunos a falar “melhor e com os
melhores” porque na sua opinião exist e uma “necessidade da
vigência da hierar quização e da [ p g. 158] normat ividade”,
esquecendo-se de que a hierar quização só pode par ecer “necessár ia”
par a os que ocupam, evident ement e, o topo da hierar quia e se
consider am, nat ur almente, “os melhor es”...1 Or a, Pasquale Cipr o
Net o consegue ser mais conser vador e elit ist a ainda do que
Bechara. Par a o gr amát ico pr ofissional, “a língua admit e as duas
possibilidades”. Par a o colunist a da Fol ha, a admissão dessas
possibilidades repr esent a “devaneios” e “balela”. Agor a fica mais
fácil ent ender o que Pasquale chama de “por t uguês or todoxo”: é um
conceit o de língua cer ta que é mais cer t a ainda do que a língua dos
gr amát icos profissionais, da própr ia Academia Br asileir a de L et r as.
Em out r a coluna (28/5/1998) ele fala de “lingüistas defensores
do vale-t udo”, numa absoluta dist or ção do ver dadeiro papel do
lingüist a como invest igador de t odos os fenômenos da língua, e não
só como caçador de “err os” e juiz do uso.
Vejamos um últ imo exemplo dessa concepção obscur antist a que
Pasquale Cipr o Net o divulga da lingüíst ica e dos lingüist as, e que
em nada difer e da opinião de Napoleão M endes de Almeida. A única
difer ença ent r e os dois é que Napoleão nunca escondeu suas

1
Evanildo Bechara, “A sobrevivência da língua culta”, in Academia Brasileira de Letras na Imprensa
1999, Rio de Janeiro, ABL, 1999, pp. 63-70.
posições r et r ógr adas, t endo-as assumido com t oda fr anqueza e
nit idez ao longo de sua vida, ao passo que Cipr o Net o t enta dar
verniz “moder no” à sua at ividade, posando de pr ogr essist a. O
abismo ent re seu discur so e sua pr át ica, no [ p g. 159] entant o, é
amplo, lar go e fundo. Numa coluna publicada em 20/11/1997,
coment ando a fala de r epr esentant es do gover no numa ent r evist a
na t elevisão, Pasquale escreveu:

Quem assistiu à entrevista coletiva concedida pela equipe econômica no último dia
10 deve ter tido congestão de “de que”. Um dos membros da equipe, cujo nome é
melhor não citar, abusou do direito de usar a bendita expressão: “O governo
considera de que”; “Não nos parece de que esse caso”; “Penso de que não será”
etc.
Santo Deus! De onde o homem, graduadíssimo, professor, tirou tanto de? Os
verbos considerar, pensar e parecer pedem a preposição de? É óbvio que não.
Alguém pensa algo, alguém considera algo, algo parece a alguém. Onde está o de?
Perguntem ao homem.
Nada de “de que”: “Não nos parece que”, “Penso que”, “O governo considera
que”.

E agor a, ao at aque:

Alguns lingüistas (alguns), idiotas, dirão que a língua falada não merece reparo,
que a fala é sempre boa etc. Esses ociosos não conseguem perceber que os homens
não estavam na mesa de um boteco, batendo papo. Estavam falando para o país,
sobre um assunto técnico, usando linguagem teoricamente culta. Quem assiste a
esse tipo de transmissão normalmente acredita nessas pessoas, tem-nas como
modelo. Adolescentes que vão fazer vestibular ouvem o cidadão dizendo “de que,
de que, de que” e acham que isso é o máximo. A Fuvest faz uma questão a
respeito, como já fez há dois ou três anos. E muitos, ingenuamente, erram. E
alguns idiotas, ociosos, dizem que a fala é sempre boa, que isso e aquilo. [pg. 160]

Esse t ipo de afirmação é tão chocant e, é r evelador a de um


t amanho desconheciment o, de uma ignor ância t ão manifest a, que
leva mesmo a pensar que Pasquale não acredita no que escr eve.
Que deve haver alguma r azão secr et a par a ele publicar coisas que
depõem t ão aber tament e cont r a sua pr ópr ia int eligência! Afinal, o
fenômeno do dequeísmo já tem merecido, nos últimos quinze anos
pelo menos, a atenção de diver sos pesquisador es, já foi t ema de
disser t ações e de teses, de ar t igos publicados em livr os e revistas
cient íficas... (além disso, t ambém ocor r e no espanhol cult o falado na
Amér ica L at ina, não sendo, por t ant o, invenção de br asileir o
“bur ro”...). Ser á que cust ava t anto assim ele procur ar ler , infor mar -
se sobre o fenômeno? E quem são afinal esses “lingüist as idiot as e
ociosos” que dizem que a língua falada não mer ece repar o, que a
fala é sempre boa et c.? Pasquale nunca dá nome aos bois. Por isso,
apesar de sempr e escr ever “alguns lingüist as”, ele nunca diz quem,
onde e quando. Assim, fica fácil deduzir que esse “alguns” é um
mer o disfar ce par a seu preconceit o cont r a todos os lingüist as.

4. A quem i nter essa cal ar os l i ngüi stas?


Finalment e, vamos ver um caso int er essant e de preconceito
cont ra os lingüist as, não por discriminação explícit a, como no caso
de Pasquale Cipr o Net o, mas por absolut a desconsider ação, por
omissão.
Em seu t ão debat ido pr ojet o de lei (de 1999) sobr e “a promoção,
a pr ot eção, a defesa e o uso da língua por t uguesa”, [ p g. 161] o
deput ado Aldo Rebelo (PCdoB/SP), embor a t r at ando de assunt os
que dizem r espeit o ao campo de investigação da lingüíst ica t eórica e
aplicada, em nenhum moment o faz r eferência aos cient istas da
linguagem, às pessoas que se dedicam profissionalment e ao est udo
da língua. Dos pouquíssimos aut ores cit ados na just ificativa do
pr ojet o, nenhum é lingüist a. Um é M achado de Assis — por sinal,
numa cit ação que o deput ado, par ece, não soube ler corr et ament e,
porque nela M achado desmente, em poucas linhas, cada uma das
idéias cont idas no pr ojet o. Dois out r os são jor nalist as que
publicar am, na época da redação do pr ojet o, ar t igos em que se
queixavam do atual estado de “cr ise” da língua.
E a Academia Br asileir a de L et r as? Seu espír ito elit ista,
conser vador e feudal o deput ado não cr it ica: muito pelo cont rár io,
Aldo Rebelo escreve que “à Academia Br asileir a de L et r as
continuar á cabendo o seu t radicional papel de cent r o maior de
cult ivo da língua por t uguesa no Br asil” e que “à Academia
Br asileir a de L et r as incumbe, por t r adição, o papel de guar diã dos
elementos const it ut ivos da língua por t uguesa usada no Br asil” —
afir mações que não significam r igorosamente coisa nenhuma,
fazendo a gent e at é se perguntar se esse pr ojet o de lei é mesmo
par a ser levado a sér io ou se não passa de uma peça de pr osa
sur r ealist a... A Academia Brasileir a de L et r as nem de longe pode
ser chamada de “cent r o maior de cult ivo da língua por t uguesa no
Br asil”: afinal, por que at r ibuir essa qualidade a um reduzido gr upo
de 40 indivíduos (dos quais, para pior ar , soment e um número
ínfimo é composto de [ p g. 162] ver dadeiros escr it or es), quando o
por tuguês do Br asil é falado (ou seja, é de fato cul ti vado) por mais
de 170 milhões de pessoas? Além disso, os “element os const it ut ivos
de uma língua” per tencem ao gr upo social que fala essa língua,
per tencem a seus falantes nativos, e não pr ecisam de guar diães...
aliás, novament e, os númer os volt am a gr it ar : podem 40 senhores e
senhor as “defender ” a língua cont r a o suposto “ataque” de seus 170
milhões de falantes? Soment e uma ideologia ult r aconservadora,
colonialist a e elit ist a ao ext remo é que pode justificar a pr etensão
de defender o por t uguês cont r a os ser es humanos que têm ele como
sua própr ia língua mat erna!
O único aut or cit ado no pr ojeto de Aldo Rebelo que tem alguma
coisa a ver com o est udo e o ensino da língua é, novamente,
Napoleão M endes de Almeida. No ent anto, é muit o diver t ido ver
que, no t ext o, Napoleão é apr esent ado como “um dos nossos maior es
lingüist as”. Or a, conhecendo a opinião de Napoleão sobre a lingüís-
t ica, só podemos r ir da piada (involunt ár ia?) do deput ado. Chamar
Napoleão de lingüist a é um desr espeit o à sua memór ia, uma vez
que par a ele a lingüíst ica er a um “est or vo” e uma coleção de
“bizantinices”.
Fechamos assim mais um cír culo pr econceit uoso que começa
em Napoleão, com seus at aques cont r a a lingüíst ica, passa por
Pasquale Cipr o Net o, que elogia Napoleão e segue suas concepções
obscur antist as sobr e a ciência da linguagem, e t er mina com Aldo
Rebelo, que novament e r ecor r e a Napoleão par a just ificar seu
pr ojet o insust ent ável de uma lei impr at icável. [ p g. 163]
É muit o cur iosa a sit uação desse projeto de lei do deput ado
Aldo Rebelo. A r et umbant e maior ia dos lingüist as t em se
manifest ado nas mais diver sas ocasiões contr a o projet o,
denunciando seus equívocos lingüíst icos, polít icos, histór icos,
sociológicos et c. A indignação dos lingüist as profissionais se
concretizou até na for ma de um livro colet ivo — Estr angei r i smos:
guer r as em torno da l íngua (São Paulo, Par ábola Editor ial, 2001),
or ganizado por Car los Albert o Far aco. M as ninguém dá ouvido aos
lingüist as. O pr ojet o continua sua mar cha vit or iosa pelo Congr esso
Nacional, e t udo indica que vir á a ser aprovado par a se t or nar mais
uma lei que ninguém vai cumpr ir , até por que seu cumpr imento é
inviável.
É o caso de per gunt ar : se um deput ado sem for mação em
medicina invent asse um pr ojet o de lei que t ivesse r elação com a
pr ática cir úr gica e se todos os médicos do país se manifest assem
cont ra o pr ojet o, ser á que ele conseguir ia ser apr ovado? Por que
t oda e qualquer pessoa se acha no dir eito de dar palpites
infundados e preconceit uosos sobr e as questões que dizem r espeito
à língua? Por que os profissionais de out r as ár eas conseguem se
fazer ouvir , mas os lingüistas per manecem não ouvidos? Ser á que
os lingüist as, apesar de se dedicarem ao est udo da língua, não
falam? Será que não se dão cont a de seu papel social e político, ou,
mesmo conscient es desse papel, há out r as for ças que não nos
deixam falar ? A quem inter essa mant er calados os est udiosos da
linguagem? Por que o discur so gr amatical t r adicional, já t ão
amplament e cr iticado pelos cientist as da linguagem com base em
t eor ias [ p g. 164] e métodos consist ent es e coer entes, ainda t em
t anto vigor e obtém t anta defesa? Que ameaça ao tipo de sociedade
em que vivemos repr esenta a democr at ização do saber lingüíst ico, a
divulgação ampla das descober t as deste campo científico, a
liber ação da voz de t ant os milhões de pessoas condenadas ao
silêncio por “não saber por t uguês” ou por “falar t udo er r ado”? A
quem interessa defender o “por t uguês or todoxo” de uns
pouquíssimos “melhor es” cont r a a suposta “her esia gr amat ical” de
muit os milhões de out r os?
Esper o que a discussão feit a neste livr o ajude você a encont r ar
suas pr ópr ias r espost as par a pergunt as t ão inquiet ant es. [ p g. 165]
AN EXO
Ca r t a d e M a r cos B a gn o
à r evi st a Vej a

Em seu númer o 1725 (novembr o de 2001), a r evi sta Veja publ i cou
uma extensa r epor tagem, anunci ada na capa, com o títul o “Fal ar e
escr ever bem, ei s a questão”. O texto, assi nado por J oão Gabr i el de
L i ma, dei xou a comuni dade dos educador es e l i ngüi stas estar r eci da
por causa da quanti dade de absur dos, di stor ções e acusações
gr ossei r as que conti nha. Em r eação a i sso, M ar cos Bagno escr eveu e
envi ou uma l onga car ta ao edi tor da r evi sta, não par a ser
publ i cada, mas par a mar car a posi ção dos pesqui sadores
compr ometi dos com o avanço da ciênci a br asi l ei r a di ante de
atitudes tão assumidamente obscur anti stas e r etr ógradas.

São Paulo, 4 de novembr o de 2001.


Sr . Edit or ,
Em 1990, o lingüist a e educador br it ânico M ichael St ubbs
escr evia que “toda a ár ea da língua na educação está i mpr egnada
de super sti ções, mi tos e ester eótipos, mui tos dos quais têm per si sti do
por sécul os e, às vezes, com di stor ções del i ber adas dos fatos
l i ngüísti cos e pedagógi cos por par te da mídia”. É t rist e const at ar
que essas palavr as, publicadas há mais de uma década, se [ p g. 167]
aplicam com pr ecisão impr essionant e ao que ainda ocorr e hoje em
dia no Br asil. Afinal, de que out r o modo qualificar a r epor t agem de
capa do número 1725 de V EJA senão como uma série de “dist or ções
deliber adas dos fat os lingüíst icos e pedagógicos por par te da
mídia”?
O t exto assinado pelo Sr . João Gabriel de L ima demonst r a o
quant o nossos meios de comunicação de massa se encont r am,
perdoe-me o lugar -comum, na cont ramão da H ist ór ia quando o
assunt o é língua. H á um absolut o despr epar o de jor nalist as e
comunicador es para t r at ar do tema (um exemplo gr it ant e disso veio
a público em out r a edição r ecent e de V EJA , a de númer o 1710, com a
r eport agem “Todo mundo fala assim”).
Se falo de contramão é por que — passados mais de cem anos de
sur giment o, crescimento e afir mação da L ingüística moder na como
ciência autônoma —, a mídia cont inua a dar as cost as à
investigação cient ífica da linguagem, pr efer indo consagr ar-se à
divulgação e sustent ação das “supersti ções, mi tos e ester eóti pos” que
cir culam na sociedade ocidental há mais de dois mil anos. I sso é
ainda mais sur pr eendente quando se ver ifica que, na abordagem de
out ros campos cient íficos, os meios de comunicação se most r am
muit o mais cuidadosos e atenciosos par a com os especialistas da
ár ea. Quando o assunt o é língua, por ém, o espaço maior é
invar iavelment e ocupado por alguns opor t unist as que, apoder ando-
se int eligentement e dessas “super st ições, mit os e estereót ipos”,
conseguem t r ansfor mar esse folclor e lingüíst ico em bens de
consumo que lhes r endem muit o lucr o financeir o, além [ p g. 168] de
fama e dest aque na mídia. Bast a compar ar o espaço dedicado, no
últ imo númer o de V EJA , ao Pr of. L uiz Ant ônio M ar cuschi
(r econhecido hoje no Br asil como um dos nomes mais impor tant es
da ciência lingüíst ica ent r e nós) e aos at uais pregadores da t r adição
gr amat ical que infest am o cot idiano dos br asileiros com suas
quinquilharias mult imidiát icas sobre o que é “cer to” e “er r ado” na
língua.
Seria espantoso ver uma matér ia de V EJA em que apar ecessem
zoólogos falando mal da Biologia, ou engenheir os cr it icando a
Física, ou cir ur giões maldizendo da M edicina. No ent anto, ninguém
se espant a (e muit os at é aplaudem) quando o Sr . João Gabriel de
L ima, fazendo eco aos det rat or es da L ingüística (como o Sr .
Pasquale Cipro Neto), fala da exist ência de “cer ta cor r ente
r el ativi sta” e escreve absur dos como “tr ata se de um r aci ocíni o tor to,
baseado num esquer di smo de mei a pataca, que i deali za tudo o que é
popul ar — i ncl usi ve a i gnor ância, como se el a fosse atr i buto, e não
pr obl ema, do povo'. O que esses acadêmi cos pr econi zam é que os
i gnorantes conti nuem a sê l o”. Ser ia muito fácil r et r ucar que
est amos aqui diante de um “di r ei ti smo de mei a pataca” que acr edit a
na exist ência de uma “i gnor ância popul ar ”, mas, como cient ist a,
pr efir o r ecor r er a out ro tipo de ar gument o, baseado na r eflexão
t eór ica ser ena e na exper iência conjunt a de muit as pessoas que há
anos se dedicam ao est udo e ao ensino da língua por t uguesa no
Br asil.
Segundo a repor t agem, as cr ít icas que o Sr . Pasquale Cipro
Net o recebe dessa “cor rent e relativist a” deixam-no [ p g. 169]
“ir r it ado”. Or a, o que parece r ealment e ir r it ar o Sr . Pasquale é o
fat o de que, apesar de obter t anto sucesso ent re os leigos, nada do
que ele diz ou escr eve é levado a sér io nos cent r os de pesquisa
cient ífica sobre a linguagem, sediados nas mais impor t antes
univer sidades do Br asil — cent r os de pesquisa lingüíst ica, diga-se
de passagem, reconhecidos inter nacionalment e como ent r e alguns
dos melhor es do mundo. M uito pelo cont r ár io, se o nome do Sr .
Pasquale é mencionado nas nossas univer sidades, é sempr e como
exemplo de uma at it ude ant icientífica dogmática e at é
obscur antist a no que diz respeit o à língua e seu ensino (em vár ios
de seus art igos em jor nais e r evist as ele já chamou os lingüist as de
“idiot as”,”ociosos”, “defensores do vale-t udo” e “deslumbr ados”).
Se o Sr . Pasquale se ir r it a com os cient ist as da linguagem, é
porque sabe que não tem como r esponder às cr ít icas que r ecebe por
par te dos pesquisadores, dos teór icos e dos educador es empenhados
num conhecimento maior e melhor da r ealidade lingüística do nosso
país. Digo isso com base na exper iência de já ter par ticipado de t r ês
debat es junto com o Sr . Pasquale e ter conhecido sua est r at égia de
nunca r esponder com ar gument os consist entes às cr ít icas a ele
dir igidas, preferindo sempr e r et r ucar com ar rogância, prepot ência,
gr osserias e at aques pessoais (chamando os lingüist as de
“or t odoxos” — seja isso lá o que for — e de “bichos-gr ilos”) ou
fazendo-se de vítima de alguma per seguição (num desses encont r os
ele declar ou sentir -se como um “boi de pir anha”). [ p g. 170]
A razão par a essa falta de ar gument os consist entes é muito
simples: o Sr . Pasquale não t em for mação científica par a t r at ar dos
assunt os de que t r at a. Suas opiniões se baseiam exclusivament e na
ar caica dout r ina gr amatical nor mativo-prescrit iva, cuja
inconsist ência t eór ica e cujos pr oblemas epist emológicos gr aves vêm
sendo demonst r ados e cr it icados pela L ingüíst ica moder na desde
pelo menos o final do século XI X. As concepções do Sr . Pasquale de
“cer t o” e de “er rado” est ão em fr anca oposição, não só com as t eor ias
cient íficas mais at uais, mas até mesmo com a post ura invest igat iva
dos gr amáticos pr ofissionais de sólida for mação filológica (coisa que
ele definit ivamente não é), par a não mencionar as diret rizes
pedagógicas das inst âncias super iores da Educação nacional. O
document o do M inist ér io da Educação chamado Par âmetr os
Cur r i cul ar es Naci onai s, por exemplo, é bem explícit o em seu
volume dedicado ao ensino da língua por t uguesa:

A imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da


linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos
manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre 'o que se deve e o que
não se deve falar e escrever', não se sustenta na análise empírica dos usos da
língua.

E este mesmo documento é enfático ao afir mar que:

há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos


diferentes modos de falar: é muito comum se considerarem as variedades
lingüísticas de menor prestígio [pg. 171] como inferiores ou erradas. O problema
do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser
enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de
educação para o respeito à diferença. Para isso, e também para poder ensinar
Língua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma
única forma 'certa' de falar — a que se parece com a escrita — e o de que a escrita
é o espelho da fala — e, sendo assim, seria preciso 'consertar' a fala do aluno para
evitar que ele escreva errado. Essas duas crenças produziram uma prática de
mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando
sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de
que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus
dialetos, por mais prestígio que um deles tenha em um dado momento histórico.

É pr ovável, no entant o, que o Sr . Pasquale Cipr o Neto e o Sr .


João Gabriel de L ima acreditem que os Par âmetr os Cur r i cul ar es
Naci onai s sejam obr a de membr os daquela “cor rent e r elat ivist a”
que conseguir am se infilt r ar no M inist ér io da Educação e se
apoder ar da r edação do document o oficial. Vamos, ent ão, deixar de
lado as propost as oficiais de ensino e lançar um olhar sobr e a
pr ópr ia pr át ica nor mat ivo-pr escr it iva de pessoas como o Sr .
Pasquale — assim ficar á mais fácil descobrir por que ele não
encont r a ar gument os par a r eagir às cr ít icas bem-fundadas dos
lingüist as e educador es sér ios e por que só consegue fazer sucesso
ent re os leigos e os que se recusam (cer t ament e por mot ivações
ideológicas) a aceitar uma concepção de língua mais democr ática.
[ p g. 172]
Consult ando a gr amát ica que Pasquale Cipr o Neto assina em
par cer ia com Ulisses I nfant e (Gr amáti ca da L íngua Por tuguesa,
Editor a Scipione, São Paulo, 1998), encont ra-se, às pp. 521-522, a
seguint e explicação para o uso supost ament e “cor reto” do verbo
custar :

Custar, no sentido de “ser custoso”, “ser penoso”, “ser difícil” tem como sujeito
uma oração subordinada substantiva reduzida. Observe:
Ainda me custa aceitar sua ausência.
Custou-nos encontrar sua casa.
Custou-lhe entender a regência do verbo custar.
No Brasil, na linguagem cotidiana, são comuns construções como “Zico custou a
chutar” ou “Custei para entender o problema” [...]
Na língua culta, essas construções em que custar apresenta um sujeito indicativo
de pessoa são rejeitadas. Em seu lugar, devem-se utilizar construções em que surja
objeto indireto de pessoa: “Custou a Zico chutar” (= Custou-lhe chutar”).

Quer o chamar a atenção, aqui, par a a seguinte afir mação dos


autor es: “Na língua culta, essas const r uções [...] são rejeit adas”.
Aqui est á um exemplo claro e nít ido de uma concepção abst r ata da
língua, t r at ada como uma espécie de ent idade viva, de sujeit o
animado, capaz de “r ejeit ar ” alguma coisa. Ora, que língua cult a é
essa que supostament e rejeit a essas const r uções? Ser á a língua dos
nossos gr andes escr it or es, que sempre ser viu de mat er ial par a o
t r abalho dos gr amát icos nor mat ivist as? Bast a invest igar par a
descobr ir que não é, por que os exemplos de [ p g. 173] uso do ver bo
custar com sujeit o são mais do que abundant es na nossa melhor
literat ur a:

(1) “Seixas cust ou a conter -se” (José de Alencar )


(2) “... as moças cust avam a se separ ar ” (Clar ice L ispect or )
(3) “Renato custou a acor dar” (Carlos Dr ummond de Andr ade)
(4) “Felicidade, cust as a vir e, quando vens, não te demor as”
(Cecília M eir eles)

Ser á que Alencar , Clar ice L ispect or , Dr ummond e Cecília


M eir eles não são bons exemplos de usuár ios da “língua cult a”? Se
não é na liter at ur a, quem sabe, ent ão, se recor rer mos à imprensa
contempor ânea? Ser á que é lá que mor a a famosa “língua cult a” que
r ejeit a essas const r uções? Or a, consult ando o jor nal onde o própr io
Pasquale Cipr o Net o escr eve (Fol ha de S. Paul o) e onde presta
ser viços de “consult or de por t uguês” (seja isso lá o que for),
encont r amos:
(5) Quem foi ao show de M ar ia Bet hânia, ant eont em à noit e,
depois de assist ir o sóbr io concer t o de João Gilber to, custou
a cr er que estivesse na mesma cidade (22/6/1998, pp. 5-10).
(6) O t écnico colombiano, H er nán Dar ío Gómez, [...] custou a
admi ti r a super ior idade r ival (16/6/ 1998, pp. 4-14).
(7) O nome K ubit schek er a complicado de pr onunciar , custou a
ser assi mi l ado pela fonética eleit or al (21/11/1997, pp. 4-3).
[ p g. 174]

Se lembr ar mos que José de Alencar mor reu em 1877, fica


muit íssimo clar o que essa const r ução est á viva e pr esente na nossa
língua há muito mais de um século! Os aut or es da gr amát ica estão
pr ofer indo uma inver dade ao dizer que essa constr ução é t ípica do
“Br asil quot idiano”. Os Sr s. Pasquale e Ulisses, em vez de se cur var
à r ealidade concr et a dos fatos, t entam nos convencer de que a opção
que eles pr efer em, só por que é a t r adicional, é que deve ser
consider ada “a melhor ”. É uma at it ude essencialmente dogmát ica,
que se r ecusa a empr eender a pesquisa empír ica mínima necessária
par a afir mações sobr e o que exist e e o que não existe na língua.
Além disso, essa at it ude é ainda mais conser vador a do que a
posição assumida por gr amát icos de ger ações ant er iores à deles,
como Celso Pedr o L uft e Domingos Paschoal Cegalla, que
r econhecem a vitór ia da const r ução “eu cust o a cr er que”...
Esse é apenas um pequeno exemplo de como é fácil, para um
pesquisador munido de inst r umental t eór ico consist ente e de
met odologia cient ífica adequada, desaut or izar uma a uma, e de
modo convincente, as afir mações pr esentes no t r abalho do Sr .
Pasquale Cipro Neto e de out r os at uais defensor es da dout r ina
gr amat ical t r adicional mais nor mat iva e mais prescr it iva possível.
Por causa de t udo isso é que a est r éia do Sr . Pasquale no pr ogr ama
Fantásti co da Rede Globo r epr esent a, par a a grande maior ia dos
cient ist as da linguagem e dos educador es conscient es, mais um
exemplo de como o nosso t r abalho ainda está no começo, apesar de
t udo o que já t emos dit o e feito. O quadro do Sr . Pasquale no
Fantásti co faz r egr edir [ p g. 175] em pelo menos 25 anos os gr andes
avanços já obt idos pela L ingüíst ica na r enovação do ensino de
língua na escola br asileir a. Não consigo, port ant o, deixar de r epet ir
o chavão: ele se encont ra na cont r amão da Hist ór ia.
Como já enfatizei acima, pessoas como o Sr . Pasquale só
conseguem fazer sucesso ent re os leigos, por que dizem exat amente o
que as pessoas desejam ouvir : os mit os, as super st ições e as cr enças
infundadas que, há mais de dois mil anos, guiam o senso comum
ocident al no que diz r espeit o à língua. Refiro-me ao senso comum
ocident al por que essa situação de embat e ent re uma ciência
lingüíst ica moder na e uma dout rina gr amat ical ar caica t ambém se
verifica em outr os países — basta ler os livr os L anguage M yths,
publicado na I nglater r a sob or ganização de L . Bauer e P. Tr udgill, e
o Catal ogue des idées r eçues sur l e l angage, publicado na Fr ança por
M arina Yaguello. É por isso que escr evi, acima, que nossa lut a
ainda est á no começo. É uma pena que não possamos cont ar com a
ajuda dos meios de comunicação para dissipar todos esses mitos e
pr econceitos, que impedem a for mação, no Br asil em par t icular , de
uma aut o-est ima lingüíst ica, uma vez que t udo o que os br asileir os
ouvem e lêem são os mesmos chavões, r epet idos há séculos, de que
“br asileir o não sabe port uguês” e que a língua que falamos é
“port uguês est r opiado”. (O pesquisador canadense Chr istophe
H opper localizou lamúr ias e queixas sobr e a “r uína” e a
“decadência” do francês em t extos publicados em 1933, 1905, 1730 e
1689, o que pr ova a [ p g. 176] ant iguidade desse discur so alar mist a
e pr econceit uoso sobr e o fenômeno da mudança das línguas ao longo
do t empo!)
Out r o fat o lament ável, na r epor t agem de V EJA , é que seu aut or
não tenha prestado o gr ande favor à sociedade de ident ificar quem
são os membros dessa “cer t a cor rent e r elat ivist a”, para que t odos,
público leitor em geral e lingüist as pr ofissionais em par ticular ,
pudéssemos nos pr ecaver cont ra o suposto “r aci ocíni o tor to” de um
“esquer di smo de mei a pataca” dos que acr edit am que ensinar a
nor ma-padrão não ser ia út il par a as classes sociais desfavor ecidas.
M inha cur iosidade ficou especialment e aguçada porque, como
pesquisador dedicado há muitos anos ao estudo das r elações ent r e
língua, ensino de língua e fenômenos sociais, at é hoje não encont r ei
uma única obr a — assinada por lingüista de for mação ou por
educador profissional — que negasse a import ância do ensino da
nor ma-padrão na escola br asileir a, que pr egasse a idéia t or pe de
que não se deve ensinar as for mas pr estigiosas da língua, ou que
“pr econizam que os ignor antes cont inuem a sê-lo”, par a cit ar as
palavr as infelizes da r epor t agem de V EJA .
Ent r e os membros da comunidade acadêmico-cient ífica que não
se int imidam diant e da pr essão esmagador a das “super stições,
mit os e est er eót ipos” sobr e a língua podemos citar a Pr ofa. M agda
Soar es (r econhecida como uma das mais impor tant es educador as
br asileir as de todos os t empos) e o Pr of. Sír io Possenti (que nunca
t eve papas na língua par a denunciar e demolir cient ificament e os
absur dos pr ofer idos por gent e como Pasquale Cipr o [ p g. 177] Net o).
Or a, já em 1986, M agda Soar es, em seu livro (um clássico da
educação brasileir a) L i nguagem e Escol a (Edit or a Át ica), escr evia,
sem hesit ação (p. 78):

Um ensino de língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades


sociais e econômicas reconhece, no quadro dessas relações entre a escola e a
sociedade, o direito que têm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de
prestígio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas a
dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade que divide e
discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a parti-
cipação política e a luta contra as desigualdades sociais.

Também em seu muit o divulgado livr o Por que (não) ensi nar
gr amáti ca na escol a (Ed. M er cado de L et r as, 1996), Sírio Possent i
faz questão de enfat izar (pp. 17-18):
O PAPEL DA ESCOLA É ENSINAR LÍNGUA PADRÃO

[...] adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da
escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar
condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco
político e ideológico.

E eu mesmo, que não t enho hesitado em combater aber t amente


a manut enção das concepções ar caicas e preconceit uosas de língua,
escr evi em meu mais r ecente livr o publicado (Por tuguês ou
Br asi l ei r o? Um convite à pesqui sa, Parábola Editorial, 2001):

[...] como responder a pergunta (invariavelmente presente na fala dos professores


de língua): qual o objeto de ensino nas [pg. 178] aulas de português? O que
devemos ensinar a nossos alunos em sala de aula?
Uma resposta concisa e rápida seria: devemos ensinar a norma-padrão. Já que só
se pode ensinar algo que o aprendiz ainda não conhece, cabe à escola ensinar a
norma-padrão, que não é língua materna de ninguém, que nem sequer é língua,
nem dialeto, nem variedade, como enfatizei acima. Ensinar o padrão se justificaria
pelo fato dele ter valores que não podem ser negados — em sua estreita associação
com a escrita, ele é o repositório dos conhecimentos acumulados ao longo da
história. Esses conhecimentos, assim armazenados, constituiriam a cultura mais
valorizada e prestigiada, de que todos os falantes devem se apoderar para se
integrar de pleno direito na produção/condução/transformação da sociedade de que
fazem parte.

Tenho, por t anto, a consciência muito t r anqüila (como decer t o


t ambém a t êm M agda Soar es, Sír io Possent i e, de fat o, a maior ia
dos lingüist as e educadores br asileiros compr omet idos com a
democr at ização de nossa sociedade) de não fazer par t e daquela
“cor r ente r elativist a” e de não poder ser acusado de t er um
“r aciocínio t ort o”. Por isso, volto a lamentar que o Sr . João Gabr iel
de L ima não tenha dado nome aos bois, par a que, junt os,
pudéssemos combat er esse supost o “esquerdismo de meia-pat aca”.
Não nomear seus adver sár ios no plano intelectual, no entant o, é
pr ática cor r ent e de pessoas como Pasquale Cipr o Net o que, embora
alegando r efer ir -se a “alguns” lingüist as, nunca se dá ao tr abalho de
dizer quem são os “idiotas”, “ociosos” e “deslumbr ados” a que se
r efer e. [ p g. 179]
A gr ande difer ença ent re os lingüist as e educadores que
defendem o ensino da nor ma-padrão e os apregoa-dores da dout r ina
gr amat ical ar caica est á no fat o de que já se sabe hoje em dia que,
par a aprender as for mas mais padr onizadas e prest igiosas da
língua, não é necessário conhecer a nomenclat ur a gr amat ical
t r adicional, as definições t r adicionais, nem pr at icar a velha e
mecânica análise lexical e muito menos a t ort urant e análise
sint át ica. Em seu depoimento a V EJA , O Sr . Pasquale Cipr o Net o
lamenta que ninguém mais saiba difer enciar “sujeit o” de
“pr edicado”, nem mesmo os professor es. Or a, t odo um longo
t r abalho de invest igação t eór ica e de pesquisa em sala de aula — no
Br asil e no r est o do mundo —, t r abalho que se faz há pelo menos
t r int a anos, já deixou muit o clar o que não é decor ando as páginas
da gramát ica nor mat iva que uma pessoa ser á capaz de falar , ler e
escr ever adequadamente às diver sas sit uações. O já cit ado M .
St ubbs escr evia, em 1987, que

Muita gente lamenta o fim do ensino da gramática formal (análise sintática e


coisas assim), alegando que ele ajudava as crianças a escrever melhor, com mais
precisão e assim por diante. [...] é duvidoso que aquele ensino jamais tenha
ajudado muita gente a escrever melhor, e é nítido que ele afugentou um grande
número de pessoas. A relação entre análise e compreensão, e entre compreensão
consciente e produção de linguagem efetiva, é difícil de demonstrar.

E o pedagogo canadense Gilles Gagné, em 1983, já dizia:

“O uso da língua procede da intenção para a convenção” [...] ao passo que a escola
procede infelizmente ao contrário, isto [pg. 180] é, das convenções lingüísticas
para as intenções de comunicação; intenções, além disso, quase sempre artificiais
e impostas ou sugeridas pelo mestre.
E aquele que é consider ado hoje, inclusive int er nacionalmente,
como o nome mais impor t ante da pesquisa cient ífica sobr e o
por tuguês br asileir o cont empor âneo — o Pr of. Ataliba T. de
Cast ilho, da USP, at ual pr esident e da Associação de L ingüíst ica e
Filologia da Amér ica L at ina e coor denador do gr ande Pr ojet o da
Gr amát ica do Por tuguês Falado (projet o apresent ado de maneira
dist or cida e pr econceit uosa no númer o 1710 de V EJA ) — escr eve
com t oda clar eza em seu livro A língua fal ada e o ensi no de
português (Ed. Cont ext o, 1998):

[...] os recortes lingüísticos devem ilustrar as variedades socioculturais da Língua


Portuguesa, sem discriminações contra a fala vernácula do aluno, isto é, de sua
fala familiar. A escola é o primeiro contato do cidadão com o Estado, e seria bom
que ela não se assemelhasse a um “bicho estranho”, a um lugar onde se cuida de
coisas fora da realidade cotidiana. Com o tempo o aluno entenderá que para cada
situação se requer uma variedade lingüística, e será assim iniciado no padrão
culto, caso já não o tenha trazido de casa.

Desse modo, pr ossegue o aut or ,

a gramática deixará de ser vista pelos alunos como a disciplina do certo e do


errado, reassumindo sua verdadeira dimensão, que é a de esquadrinhar através dos
materiais lingüísticos o funcionamento da mente humana. [pg. 181]

Afinal, o que acont eceu, ao longo dos séculos, segundo Cast ilho,
foi que

a gramática, que não era uma disciplina autônoma, assumiu na escola uma vida
própria, desgarrada de suas origens, e concentrada apenas na sentença, na palavra
e no som, obscurecendo-se sua argumentação e empobrecendo-se seu alcance.

Se exist e, porém, uma gr ande r esist ência cont r a o


r edimensionamento do lugar do ensino da gr amática na escola é
porque t odos sabemos que, ao longo do t empo, o conheciment o
mecânico da dout r ina gr amat ical se t r ansfor mou num inst r ument o
de discriminação e de exclusão social. “Saber por t uguês”, na
verdade, sempr e significou “saber gr amát ica”, ist o é, ser capaz de
identificar — por meio de uma t er minologia falha e incoer ente — o
“sujeit o” e o “pr edicado” de uma frase, pouco impor t ando o que essa
fr ase queria dizer , os efeit os de sent ido que podia pr ovocar et c.
Tr ansfor mada num saber esotérico, r eser vado a uns poucos
“iluminados”, a “gr amát ica” passou a ser rever enciada como algo
mist er ioso e inacessível — daí sur giu a necessidade de “mest res” e
“guias”, capazes de levar o “ignorant e” a at r avessar o abismo que
separ a os que sabem dos que não sabem por t uguês...
Em conclusão, Sr . Editor , gost ar ia de lhe pedir que, uma vez
que t ão amplo espaço foi concedido aos defensor es da idéia medieval
de que “os br asileir os não sabem falar bem”, caber ia agor a a V EJA
conceder igual espaço aos ver dadeir os especialist as, às pessoas que
dedicam t oda sua energia, toda sua inteligência, toda sua vida,
enfim, ao [ p g. 182] est udo dos fenômenos da linguagem humana e à
pr oposição de novos métodos de ensino, capazes de dar voz aos que,
por for ça de tant as est r ut ur as sociais injust as, sempr e for am
mant idos no silêncio. Talvez assim V EJA possa se livr ar do r isco de
ser acusada de pr omover “di stor ções del iber adas dos fatos
l i ngüísti cos e pedagógi cos”.

At enciosament e,

M ARCOS BAGNO
[ p g. 183]
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