L íngua Por t uguesa pela Univer sidade de São Paulo (USP). Pr ofessor de
L ingüíst ica do I nst it ut o de L et r as da Univer sidade de Br asília, publicou A
língua dc Eulál ia: novel a soci oli ngüística (Ed. Cont ext o, 1997; em 13ª ed.);
Pr econcei to l i ngüísti co: o que é, como se faz (Ed. L oyola, 1999; em 15ª ed.);
Dr amáti ca da l íngua por tuguesa (Ed. L oyola, 2000; em 2ª ed.); Por tuguês ou
br asi l ei r o? Um convite à pesqui sa (Par ábola Ed., 2001; em 2ª ed.); L íngua
mater na: l etr amento, var i ação e ensino (Par ábola Ed., 2002). Além desses
t ít ulos, é aut or de duas dezenas de obr as lit er ár ias. Recebeu em 1988 o
Pr êmio Nest lé de L it er at ur a Br asileir a e, em 1989, o Pr êmio Car los
Dr ummond de Andr ade de Poesia, ent r e out r os. Selecionou e t r aduziu os
ar t igos r eunidos em Nor ma li ngüísti ca (Ed. L oyola, 2001). Tr aduziu Hi stór ia
conci sa da l ingüísti ca, de Bar bar a Weedwood (Par ábola Ed., 2002), além de
dezenas de obr as cient íficas, filosóficas e lit er ár ias de aut or es como Balzac,
Volt air e, H. G. Wells, Sar t r e, Oscar Wilde, et c. Vem se dedicando à
invest igação das implicações sociocult ur ais do conceit o de nor ma, sobr et udo
no que diz r espeit o ao ensino de por t uguês nas escolas br asileir as.
Ob r as d o Au t or :
A invenção das hor as (cont os), Ed. Scipione, 1988 (I V Pr êmio Bienal Nest lé
de L it er at ur a Br asileir a)
O papel r oxo da maçã (infant il), Ed. L ê, 1989 (Pr êmio “João de Bar r o” de
L it er at ur a I nfant il)
Um céu azul par a Clementi na (infant il), Ed. L ê, 1991
Fr evo, amor & gr avi ol a (juvenil), Ed. At ual, 1991
Amor , amor a (juvenil), Ed. Bagaço, 1992
Os nomes do amor (juvenil) (co-aut or ia com St ela M aris Rezende), Edit or a
M oder na, 1993
A vingança da cobr a (juvenil), Ed. Át ica, 1995
Dia de br anco (juvenil), Ed. L ê, 1995
M iguel, o cr avo & a r osa (infant il), Ed. L ê, 1995
Rua da Sol edade (cont os), Ed. L ê, 1995 (Pr êmio Est ado do Par aná 1989)
A bar ca de Zoé (infant il), Ed. For mat o, 1995
M ir abíli a (cont os), Edit or a Didát ica Paulist a, 1996
Uma vitór ia di fer ente (juvenil) Ed. L ê, 1997
Unhas de fer r o (juvenil), Ed. L ê, 1997
A L íngua de Eul áli a (novela sociolingüíst ica), Ed. Cont ext o, 1997
Pesquisa na escola — o que é, como se faz, Ed. L oyola, 1998
M achado de Assi s par a pr i nci pi antes, Ed. At ica, 1998
Pr econcei to l i nguísti co — o que é, como se faz, Ed. L oyola, 1999
M inimi r im e o pl aneta que encol heu (infant il), Ed. lcone, 2000
O Pr ocesso de I ndependênci a do Br asi l, Ed. At ica, 2000
Dr amáti ca da língua por tuguesa, Ed. L oyola, 2000
Por tuguês ou br asi leir o? Um convite à pesqui sa, Par ábola Edit orial, 2001
Nor ma li ngüísti ca, Ed. L oyola, 2001
L íngua mater na: l etr amento, var i ação e ensi no, Par ábola Edit orial, 2002
O espel ho dos nomes (juvenil) Át ica, 2002
M ar cos Bagno
Pr econ cei t o l i n gü í st i co
o q u e é, c o m o se f a z
C O N TR A C APA
Diz-se que o “brasileir o não sabe Por t uguês” e que “Por t uguês é
muit o difícil”. Est es são alguns dos mit os que compõem um
pr econceito muito pr esent e na cult ura br asileira: o lingüíst ico. Tudo
por causa da confusão que se faz ent r e língua e gr amát ica
nor mat iva (que não é a língua, mas só uma descrição par cial dela).
Separ e uma coisa da out ra com est e livr o, que é um achado.
Revist a Nova Escol a, maio de 1999.
“Eu gost ar ia que alguém já t ivesse escr ito um livr o como est e sobr e
a língua inglesa”.
Pr of. Gr egor y Guy, Uni ver si dade de Yor k (Canadá)
Todos os di r ei tos r eser vados. Nenhuma par te desta obr a pode ser
r epr oduzi da ou tr ansmi ti da por qual quer for ma e/ ou quai squer
mei os (el etrôni co ou mecâni co, i ncl ui ndo fotocópi a e gravação) ou
ar qui vada em qualquer si stema ou banco de dados sem per mi ssão
escr i ta da Editora.
I SBN: 85-15-01889-6
Existe uma regr a de our o da L ingüíst ica que diz: “só exist e
língua se houver ser es humanos que a falem”. E o velho e bom
Ar ist óteles nos ensina que o ser humano “é um animal polít ico”.
Usando essas duas afir mações como os t er mos de um silogismo
(mais um present e que ganhamos de Arist ót eles), chegamos à
conclusão de que “tr at ar da l íngua é t r at ar de um tema pol íti co”, já
que também é t r atar de seres humanos. Por isso, o leit or e a leit or a
não dever ão se espantar com o t om mar cadament e politizado de
muit as de minhas afir mações. É proposit al; aliás, é inevit ável.
Temos de fazer um gr ande esfor ço par a não incor r er no er r o milenar
dos gr amát icos t r adicionalist as de estudar a língua como uma coisa
mor t a, sem levar em consider ação as pessoas vivas que a falam.
O pr econceit o lingüíst ico está ligado, em boa medida, à
confusão que foi cr iada, no cur so da hist ór ia, ent re l íngua e
gr amáti ca nor mati va. Nossa tarefa mais ur gent e é desfazer essa
confusão. Uma receit a de bolo não é um bolo, o molde de um vest ido
não é um vest ido, um mapa-múndi não é o mundo... Também a
gr amát ica não é a língua.
A língua é um enor me i ceber g flut uando no mar do tempo, e a
gr amát ica nor mativa é a t ent ativa de descrever [ p g. 09] apenas
uma par cela mais visível dele, a chamada nor ma cul ta. Essa
descrição, é clar o, t em seu valor e seus mérit os, mas é par cial (no
sentido liter al e figur ado do t er mo) e não pode ser autor it ar iament e
aplicada a todo o resto da língua — afinal, a pont a do i ceber g que
emer ge r epresent a apenas um quinto do seu volume tot al. M as é
essa aplicação aut or it ár ia, int oler ante e r epressiva que impera na
ideologia gerador a do preconceito lingüístico.
Você sabe o que é um i gapó? Na Amazônia, i gapó é um t r echo
de mat a inundada, uma gr ande poça de água est agnada às mar gens
de um r io, sobret udo depois da cheia. Par ece-me uma boa imagem
par a a gr amática nor mativa. Enquanto a l íngua é um r io caudaloso,
longo e largo, que nunca se detém em seu cur so, a gr amáti ca
nor mativa é apenas um igapó, uma gr ande poça de água parada,
um char co, um brejo, um t er r eno alagadiço, à mar gem da língua.
Enquant o a água do rio/língua, por est ar em moviment o, se r enova
incessant emente, a água do igapó/gr amát ica nor mat iva envelhece e
só se r enovar á quando vier a pr óxima cheia. M eu objetivo
at ualment e, junto com muit os out ros lingüist as e pesquisadores, é
aceler ar ao máximo essa próxima cheia...
Este livr o t r az os pr imeiros result ados, sempre pr ovisór ios, das
r eflexões que venho fazendo sobre o t ema do preconceit o lingüíst ico.
Ele r eúne as principais conclusões a que cheguei, conclusões que
pude compar tilhar e discut ir com as pessoas que me ouvir am falar
nas diversas palest r as que dei ao longo de 1998.
Essas palest ras, e o livr o que delas nasceu, só foram possíveis
gr aças ao esfor ço e ao car inho das seguint es [ p g. 10] pessoas:
Ângela Paiva Dionísio, Ar iovaldo Guir eli, At aliba de Castilho,
Cláudia M aia Ricar do, Dor is da Cunha, Ésio M acedo Ribeir o,
I r andé Antunes, José L uís Falotico Cor rêa, Judit h H offnagel,
L our enço Chacon, L ucila Nogueir a, M ar çal Aquino, M ar cos
M ar cionilo M ar ia Amélia Almeida, M ar ia M ar t a Scher re, M ar ia da
Piedade Sá, M arígia Viana, Rosely Falotico Cor r êa e Sonia
Alexandre.
Est a segunda edição t r az mudanças bast ante significat ivas em
compar ação com a pr imeir a: alguns t r echos for am eliminados,
out ros foram acr escent ados, muit os sofr er am pr ofunda
r efor mulação. I sso se deve à minha vont ade de mant er o livr o
sempre at ualizado com a evolução de minha pr ópria maneir a de ver
as coisas e sint onizado com as cr ít icas, sugest ões e coment ár ios que
o t r abalho r ecebeu da par te de leit or es e leit or as at entos e dispost os
a colaborar na divulgação dest as idéias.
Agr adeço muito especialment e a M anoel L uiz Gonçalves
Cor r êa, que me ajudou a prepar ar esta r eedição, aler t ando-me par a
deter minadas inconsist ências teór icas e conceit uais, nascidas de
uma t entativa de simplificar (t alvez demais) os conceitos da
L ingüíst ica par a t or ná-los acessíveis a um público mais amplo. É
clar o que ainda sobr am falhas e imper feições — de minha int eir a
(ir)r esponsabilidade — e por isso convido os que desejar em
par ticipar dest a lut a que se engajem nela enviando-me suas
opiniões.
A capa dest e livr o t em uma hist ór ia que mer ece ser cont ada. As
pessoas ali fotogr afadas são minha sogra, Alice Fr ancisca, meu
sogro, José Alexandr e, e meu cunhado [ p g. 11] mais novo, Sóstenes,
cer ca de vint e anos at r ás. Como est e é um livr o que t r at a de
discr iminação e exclusão, decidi homenagear meus sogr os que são,
como cost umo dizer , um “pr at o cheio” par a alguns dos pr econceit os
mais vigor osos da nossa sociedade: negr os, nor destinos, pobres,
analfabet os. Alice Fr ancisca t ambém car r ega o est igma de ser
mulher numa cult ur a ent ranhadamente machist a. Apr ender a
amar est as pessoas pelo que elas são, deixando de lado t odos os
r ót ulos discr iminadores que tent am classificá-las em cat egor ias
supost amente infer iores às que eu e pessoas de minha ext r ação
social ocupamos, t em sido uma lição fundament al par a t oda a
minha vida pessoal e pr ofissional.
É com este amor que me defendo das acusações que às vezes
r ecebo de ser aut or de um livro “demagógico”. Não é demagogia: é
opção conscient e, polít ica, declar adament e parcial. Peço
simplesmente aos leit or es e leit or as que meditem sobr e est a
sit uação que t ant o me angust ia: homenagear com um livr o pessoas
que jamais poder ão lê-lo. I sso explica, decer t o, a grande dose de
indignação que em cer tos momentos passa à fr ent e da reflexão
cient ífica ser ena e me faz assumir o t om apaixonado de quem não
t oler a nenhum t ipo de int oler ância, pr incipalmente quando é fr ut o
de uma visão de mundo estr eit a, inspir ada em mit os e super st ições
que têm como único objetivo per pet uar os mecanismos de exclusão
social.
M ARCOS B AGNO
mbagno@t er r a.com.br
[ p g. 12]
I
A m i t ol ogi a
d o pr econ cei t o l i n gü í st i co
Par ece haver cada vez mais, nos dias de hoje, uma for t e
t endência a lut ar cont ra as mais var iadas for mas de preconceit o, a
most r ar que eles não t êm nenhum fundamento racional, nenhuma
just ificativa, e que são apenas o r esult ado da ignor ância, da
int oler ância ou da manipulação ideológica.
I nfelizment e, por ém, essa t endência não t em at ingido um t ipo
de preconceit o muit o comum na sociedade br asileir a: o pr econceito
l i ngüísti co. M uit o pelo cont r ár io, o que vemos é esse pr econceit o ser
aliment ado diar iament e em pr ogr amas de t elevisão e de r ádio, em
colunas de jor nal e r evista, em livros e manuais que pr et endem
ensinar o que é “cer to” e o que é “er r ado”, sem falar , é clar o, nos
inst r ument os t radicionais de ensino da língua: a gr amát ica
nor mat iva e os livros didát icos.
O pr econceito lingüístico fica bast ant e clar o numa série de
afir mações que já fazem par te da imagem (negat iva) que o
br asileir o t em de si mesmo e da língua falada por aqui. Out r as
afir mações são até bem-int encionadas, mas mesmo assim compõem
uma espécie de “pr econceito positivo”, que t ambém se afasta da
r ealidade. Vamos examinar [ p g. 13] algumas dessas afir mações
falaciosas e ver em que medida elas são, na ver dade, mit os e
fantasias que qualquer análise mais rigorosa não demor a a
der rubar .
Estou convidando você, a part ir de agor a, a fazer junto comigo
um pequeno passeio pela mitol ogi a do pr econcei to l ingüísti co.
Quando o passeio acabar , ist o é, quando t iver mos ter minado de
examinar os principais mitos, vamos t ent ar r efletir juntos par a
encont r ar os meios mais adequados de combat er esse pr econceit o no
nosso dia-a-dia, na nossa at ividade pedagógica de pr ofessor es em
geral e, par t icular mente, de pr ofessor es de língua por t uguesa. [ p g.
14]
M i t o n° 1
“ A l í n gu a por t u gu esa f a l a d a n o B r a si l
a p r esen t a u m a u n i d a d e su r pr een d en t e”
A idéia de que somos um país privilegiado, pois do ponto de vista lingüístico tudo
nos une e nada nos separa, parece-me, contudo, ser apenas mais um dos grandes
mitos arraigados em nossa cultura. Um mito, por sinal, de conseqüências danosas,
pois na medida em que não se reconhecem os problemas de comunicação entre
falantes de diferentes variedades da língua, nada se faz também para resolvê-los.
1
As referências bibliográficas completas de todas as obras citadas ao longo deste livro se encontram no
final do volume.
não implica, aut omat icamente, que esse por t uguês seja um bloco
compacto, coeso e homogêneo. Na ver dade, como cost umo dizer , o
que habit ualment e chamamos de por tuguês é um grande “balaio de
gatos”, onde há gat os dos mais diver sos t ipos: machos, fêmeas,
br ancos, pretos, malhados, gr andes, pequenos, adult os, idosos,
r ecém-nascidos, gor dos, magr os, bem-nut ridos, famintos et c. Cada
um desses “gatos” é uma var iedade do por tuguês br asileir o, com sua
gr amát ica específica, coer ent e, lógica e funcional.
É preciso, por t anto, que a escola e todas as demais inst ituições
volt adas par a a educação e a cult ur a abandonem esse mito da
“unidade” do port uguês no Br asil e passem a r econhecer a
ver dadei r a diver si dade l i ngüísti ca de nosso país par a melhor
planejar em suas políticas de ação junt o à população amplament e
mar ginalizada dos falant es das var iedades não-padr ão. O
r econheciment o da [ p g. 18] exist ência de muit as nor mas
lingüíst icas difer ent es é fundament al par a que o ensino em nossas
escolas seja conseqüent e com o fat o compr ovado de que a nor ma
lingüíst ica ensinada em sala de aula é, em muit as sit uações, uma
verdadeir a “língua est r angeir a” para o aluno que chega à escola
pr ovenient e de ambient es sociais onde a nor ma lingüíst ica
empregada no quotidiano é uma var iedade de por t uguês não-
padr ão.
Felizmente, essa r ealidade lingüística mar cada pela
di ver si dade já é reconhecida pelas instit uições oficiais encar r egadas
de planejar a educação no Br asil. Assim, nos Par âmetr os
cur r i cul ar es nacionai s, publicados pelo M inist ér io da Educação e do
Desport o em 1998, podemos ler que
A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela
sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa.
Assim, quando se fala em “Língua Portuguesa” está se falando de uma unidade
que se constitui de muitas variedades. [...] A imagem de uma língua única, mais
próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições
normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão
da mídia sobre “o que se deve e o que não se deve falar e escrever”, não se
sustenta na análise empírica dos usos da língua2.
São, de fat o, boas novas! Esper o que elas desçam das alt as
esfer as gover nament ais e se pr opaguem pelas salas de aula de t odo
o país! [ p g. 19]
2
Parâmetros curriculares nacionais, Língua Portuguesa, 5a a 8a séries, p. 29.
M i t o n° 2
“ B r a si l ei r o n ã o sa be por t u gu ês /
Só em Por t u ga l se f a l a bem por t u gu ês”
Essas duas opiniões t ão habit uais, corr iqueir as, comuns, e que
na r ealidade são duas faces de uma mesma moeda enfer r ujada,
r efletem o complexo de infer ior idade, o sent imento de ser mos at é
hoje uma colônia dependent e de um país mais antigo e mais
“civilizado”.
Podemos encont r ar essa concepção expressa no livr o L íngua
vi va, de Sér gio Nogueir a Duar t e, que é uma colet ânea de suas
colunas sobr e língua por tuguesa publicadas no J or nal do Br asi l . Ali
a gente lê, na página 65:
Por isso não consigo concordar com o tít ulo do livr o — que está
longe de analisar a ver dadeira l íngua vi va usada em nosso país —,
nem com o subtít ulo: “uma análise simples e bem-humor ada da
linguagem do br asileiro”. Seria mais acer t ado dizer que se t r ata de
uma análise “pr econceit uosa e desinfor mada” da língua falada e
escr it a por aqui. M as não podemos culpar o aut or , que é antes uma
vít ima do que propr iament e um r esponsável por esse pr econceito:
ele est á apenas expr imindo uma ideologia impr egnada em nossa
cult ura há muito t empo. [ p g. 20]
É a mesma concepção t or pe segundo a qual o Br asil é um país
subdesenvolvido por que sua população não é uma r aça “pur a”, mas
sim o r esult ado de uma mistur a — negat iva — de r aças, sendo que
duas delas, a negr a e a indígena, são “infer ior es” à do br anco
europeu, por isso nosso “povinho” só pode ser o que é. Or a, há muit o
t empo a ciência dest r uiu o mit o da r aça pur a, que é um conceit o
absur do, sem nenhuma possibilidade de verificação na r ealidade de
nenhum povo, por mais isolado que seja.
Assim, uma r aça que não é “pur a” não poder ia falar uma língua
“pur a”. Não é difícil encont rar int elect uais r enomados que
lamentem a “cor r upção” do por tuguês falado no Br asil, língua de
“mat utos”, de “caipir as infelizes”, ar r emedo tosco da língua de
Camões. É o que escr eve, por exemplo, Arnaldo Niskier , pr esidente
da Academia Brasileir a de L et r as, num ar t igo publicado na Folha
de S. Paul o (15/1/98):
3
Assistindo um dia desses a televisão portuguesa por cabo, ouvi os verbos uprar e dlibrar. Consegue
adivinhar o que é? Sim, operar e deliberar. Também é comum os portugueses evitarem hiatos como “a
água” introduzindo um [y] e pronunciando ayágua. Além disso, se uma palavra termina em s e a próxima
começa com c, os portugueses fundem essas duas consoantes numa só, pronunciada como o x de xixi:
“outros cinco” é pronunciado otruxincu. São realizações fonéticas totalmente estranhas à língua do
brasileiro.
é por que não precisam desses pr onomes. E mesmo na língua dos
adultos escolar izados, esses pronomes só apar ecem como um
r ecur so estilístico, em sit uações de uso mais for mais, quando o
falante quer deixar clar o que domina as r egr as impostas pela
gr amát ica escolar . A gr amát ica escolar , no entant o, desconhece essa
t r ansfor mação por que a língua est á passando e insist e em
consider ar “er r adas” const r uções como “Eu conheço ele”, “Você viu
ela chegar ” et c.
O único nível em que ainda é possível uma compr eensão quase
t ot al ent r e br asileir os e por tugueses é o da l íngua escr ita for mal ,
porque a or togr afia é praticament e a mesma, com poucas
difer enças. M as um mesmo t exto lido em voz alta por um br asileir o
e por um por t uguês vai soar completament e difer ente, ou melhor ,
di fr ent! Aliás, faça você mesmo a exper iência: t ente t irar a let ra de
uma música cant ada por um cant or ou uma cantor a da “t er r inha” e
veja [ p g. 25] como é difícil!4 E por incr ível que par eça, um dos
pr incipais obst áculos par a a difusão no Br asil do cinema feito em
Por t ugal é justament e... a língua — além das dificuldades de
dist r ibuição, ligadas ao quase monopólio do cinema amer icano.
Como os br asileir os t êm dificuldades em ent ender o por t uguês de
Por t ugal, e como ficar ia no mínimo est r anho colocar legendas em
filmes por t ugueses, o r esult ado é que pr at icamente nunca se vê
filme por t uguês nos cinemas daqui. Temos a impr essão de que
Por t ugal não produz cinema, o que é falso: há bons cineast as
4
Eu mesmo uma vez passei por uma situação embaraçosa: um amigo meu, francês, me enviou uma fita
cassete com músicas do compositor português José Afonso (por sinal, maravilhoso) e me pediu para tirar
a letra de uma delas, de que ele gostava muito. Depois de algumas tentativas, acabei desistindo, porque
havia muitas frases inteiras das quais eu não pescava simplesmente nada. Ele, espantado, me perguntou:
“Mas ele não canta em português?” Tive de explicar ao meu amigo que havia grandes diferenças entre o
português do Brasil e o de Portugal. Mas eu tive a minha vingança. Pedi a esse mesmo amigo, pouco
depois, que transcrevesse a letra de uma canção gravada por uma cantor canadense, e ele teve a mesma
dificuldade, porque o francês do Canadá às vezes pode ser incompreensível para um falante do francês da
França...
por tugueses, um dos quais, M anuel d'Oliveir a, é r econhecido
int er nacionalmente como um gr ande dir et or .
No que diz r espeito ao ensino do por t uguês no Brasil, o gr ande
pr oblema é que esse ensino at é hoje, depois de mais de cento e
set enta anos de independência polít ica, cont inua com os olhos
volt ados par a a nor ma lingüíst ica de Por t ugal. As r egr as
gr amat icais consider adas “cer t as” são aquelas usadas por lá, que
ser vem par a a língua falada lá, que r et r at am bem o funcionament o
da língua que os [p g. 26] por tugueses falam. É a concepção que
imper a, por exemplo, no livr o Não er r e mai s!, de L uiz Ant onio
Sacconi, que na página 64 explica:
Eis aí uma frase corretíssima, que muitos imaginam o contrário. Mais pequeno é
expressão legítima, usada por todos os portugueses, que usam menor quando se
trata de idéia de qualidade: poeta menor, escritor menor etc. [grifo meu]
Fica implícit o, ent ão, que para consider ar uma expr essão
“legít ima” bast a que ela seja “usada por t odos os por t ugueses”, como
se eles dit assem a nor ma lingüíst ica válida par a t odos os povos que
falam por t uguês. Or a, t odos sabemos que mai s pequeno não
funciona no Brasil, é uma expr essão r ejeit ada pela nor ma cult a
br asileir a, que usa menor em todas as cir cunst âncias em que há
compar ação.
O mesmo espír it o guiou a r evist a Época que, em sua edição de
14 de junho de 1999, est ampou uma gr ande r epor t agem sobre “A
ciência de escr ever bem”, acer ca da redação no vestibular . Ent r e as
melhores r edações apr esent adas naquele ano ao vest ibular da
Univer sidade de São Paulo est ava a de Henr ique Sugur i, 17 anos,
que em deter minado moment o assim se expr essou (p. 81):
O Brasil hoje não é europeu, africano, asiático, indígena. Nós somos a mistura
exata de tudo isso, completamente diferentes das nossas origens, únicos. E apesar
disso, estamos indiscutivelmente atrelados aos princípios da nossa matriz. Talvez
o ano 2000 possa servir para abrirmos os olhos e, em vez de comemorarmos os
nossos cinco séculos coloniais, enterrarmos o que sobrou deles. [pg. 27]
Or a, se são dicas par a br asi l ei ros que quer em escr ever bem, por
que mot ivos eles têm de se lembr ar do que exist e ou não exist e no
português de Por tugal ? A dica, além de deixar à most r a sua
inspir ação neocolonialist a, t ambém afir ma uma inver dade
lingüíst ica: no por t uguês de Por t ugal existe, sim, o ger úndio. A
t ít ulo de curiosidade, lembr o-me do “Fado do ciúme” — sucesso na
voz de Amália Rodrigues, uma das maior es cant or as por t uguesas de
t odos os t empos —, cuja let r a a cer t a alt ur a diz: “ant es prefir o
mor r er / do que cont igo viver / sabendo que gost as dela”. Esse
sabendo out ra coisa não é senão um ger úndio. (Aproveito par a
chamar atenção par a o antes [ p g. 28] pr efi r o...do que, indício de que
os por t ugueses t ambém “er r am” na hor a de usar o ver bo pr efer i r ...)
O que não exist e no por t uguês falado em Por t ugal é a
const rução do t ipo estou comendo, ela está tel efonando, Pedr o esteve
tr abal hando mui to — sit uações em que os por t ugueses usam a
pr eposição a seguida do ver bo no infinit ivo. I magine agora se algum
de nós, br asi l ei ros, disser por aí frases como “est ou a comer ”, “ela
est á a t elefonar ”,”Pedr o esteve a t r abalhar muit o”, que são uma das
car acteríst icas mais mar cant es do port uguês de Port ugal! Como não
me canso de r epet ir , são simplesment e difer enças de uso — e
difer ença não é deficiência nem infer ior idade. Quanto tempo ainda
t er emos de esper ar par a nos dar mos cont a, de uma vez por t odas, de
que somos “complet amente difer entes das nossas origens, únicos”,
como t ão br ilhantement e escr eveu H enr ique Sugur i em sua r edação
de vestibular ?
Por causa desse pr econceito é que somos obr igados a ensinar e
aprender que o “cer t o” é dizer e escrever Dê me um bei jo e não M e
dá um bei jo, e que é “er rado” dizer e escr ever Assi sti o fil me e
Aluga se casas, porque lá em Por t ugal não é assim que se faz.
O mit o de que “br asileir o não sabe por t uguês” t ambém afeta o
ensino de línguas est r angeiras. É muito comum ver ificar ent r e
pr ofessores de inglês, francês ou espanhol um gr ande desânimo
diante das dificuldades de ensinar o idioma estr angeir o. E é mais
comum ainda ouvi-los dizer : “Os alunos já não sabem por t uguês,
imagine se vão conseguir apr ender out r a língua”, fazendo a velha
confusão ent re [ p g. 29] língua e gr amáti ca nor mativa. É muito fácil
at r ibuir aos out ros a culpa do nosso própr io fr acasso. Assim, em vez
de buscar as causas da dificuldade de ensino na met odologia
empregada, nas difer enças de aptidão individual par a o
aprendizado de línguas ou na compet ência do pr óprio pr ofessor , é
muit o mais cômodo jogar a culpa no aluno ou na incompetência
lingüíst ica “inat a” do br asileiro.
É cur ioso como muitos br asileir os assumem esse mesmo
pr econceito negat ivo t ambém em r elação a out r as línguas,
defendendo sempre a língua da met r ópole cont r a a língua da ex-
colônia. É o nosso eter no t r auma de infer ioridade, nosso desejo de
nos apr oximar mos, o máximo possível, do cultuado padr ão “ideal”,
que é a Europa. Todo sant o dia t enho de ouvir alguém me dizer que
pr efer e o inglês br it ânico, porque acha o inglês americano “muit o
feio”. A essas pessoas eu dou sempr e a mesma r espost a: aprenda o
inglês brit ânico se quiser ler Shakespear e; mas se quiser dominar
uma língua de uso inter nacional, aceit a em t odos os cantos do
mundo como veículo de inter câmbio cult ural, comer cial,
diplomático, t ecnológico, cient ífico et c., apr enda o inglês amer icano.
Se algum de nós disser a um nor t e-amer icano que ele “não sabe
inglês” ou que o inglês falado nos Est ados Unidos é “er r ado” ou
“feio”, ele decer t o vai ficar chocado com nossa ignor ância. Afinal,
exist e um ar gument o mais do que convincent e para r ebater essa
acusação: o t amanho do país e a quant idade de falantes de inglês
que ali vivem, além da import ância dos Est ados Unidos no
panor ama mundial. [ p g. 30]
O mesmo ar gument o vale par a o por t uguês do Br asil. Nosso
país é 92 vezes e meia maior que Por t ugal, e nossa população é
quase 15 vezes super ior ! Quando se t r at a de língua, temos de levar
em conta a quant idade: só na cidade de São Paulo vivem mais
falantes de port uguês do que em toda a Eur opa! Além disso, o papel
do Brasil no cenár io polít ico-econômico mundial é, de longe, muit o
mais import ant e que o de Port ugal. Não t em sent ido nenhum,
por tant o, cont inuar aliment ando essa fant asia de que os
por tugueses são os verdadeir os “donos” da língua, enquant o nós a
ut ilizamos (e mal!) apenas por “emprést imo”.
Existe, embut ida nesse mit o, a ilusão de que os por tugueses
falam e escrevem “t udo cer t o” e que seguem rigor osament e as
r egras da gr amática ensinada na escola. A pr ofessor a I r andé
Ant unes, de quem t ive a honr a de ser aluno na Univer sidade
Feder al de Per nambuco, me cont ou que quando est ava par a
embar car par a Por t ugal, onde viver ia alguns anos pr epar ando seu
dout or ado, muit as pessoas no Br asil lhe disser am: “Você vai mor ar
em Por tugal? Então agor a suas filhas vão aprender a falar direito!”
Não é nada disso. Assim como nós aqui comet emos nossos
“pecados” cont r a a gr amática nor mativa, os por tugueses t ambém
comet em os deles, só que, mais uma vez, diferent es dos nossos. Em
Por t ugal, por exemplo, o plur al de tu não é vós, como quer em as
gr amát icas nor mat ivas. O plur al de tu é vocês. Pois bem, na hor a de
usar os possessivos, os por t ugueses usam vosso/ vossa, que,
t eor icamente, só poder iam ser usados com r efer ência a vós: “Vocês
t r ouxer am os vossos filhos?” E num livr o edit ado [ p g. 31] em
Por t ugal encont rei a seguint e per gunt a: “Não vos sucede senti r em
se por vezes um pouco indefinidos?” É a famosa “mist ur a de
t r at ament o”, que causa t ant o ar repio e dor de est ômago nos
gr amát icos conser vador es — “mist ur a” que, em ter mos científicos e
não-pr econceit uosos, deve ser analisada, de fato, como uma
r eor gani zação do sistema pronomi nal da língua, t ant o a de lá como
a de cá.
Ent ão, não há por que cont inuar difundindo essa idéia mais do
que absur da de que “br asileir o não sabe por t uguês”. O brasileir o
sabe o seu port uguês, o por t uguês do Br asi l , que é a língua mat er na
de t odos os que nascem e vivem aqui, enquanto os por t ugueses
sabem o por tuguês del es. Nenhum dos dois é mais cer to ou mais
er r ado, mais feio ou mais bonit o: são apenas di fer entes um do out r o
e atendem às necessidades lingüíst icas das comunidades que os
usam,necessidades que t ambém são... difer ent es!
Em seu livr o Emíl i a no País da Gr amáti ca, publicado em 1934,
M onteiro L obat o já chamava a at enção par a esse t ipo de pr econceit o
(que no ent ant o cont inua fir me e for t e no Br asil de hoje!). Numa
conver sa com as cr ianças do Sít io do Pica-pau Amar elo, a velha
Dona Et imologia lhes diz (pp. 100-101):
[...] Uma língua não pára nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. Há certos
gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto, e acham que é erro
dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos.
— Quem vem a ser clássicos? — perguntou a menina [Narizinho].
— Os entendidos chamam clássicos aos escritores antigos, como o padre
Antônio Vieira, Frei Luís de Sousa, o padre [pg. 32] Manuel Bernardes e outros.
Para os carranças, quem não escreve como eles está errado. Mas isso é curteza de
vistas. Esses homens foram bons escritores no seu tempo. Se aparecessem agora
seriam os primeiros a mudar, ou a adotar a língua de hoje, para serem entendidos.
A língua variou muito e sobretudo aqui na cidade nova [o Brasil]. Inúmeras
palavras que na cidade velha [Portugal] querem dizer uma coisa, aqui dizem outra.
[...] Também no modo de pronunciar as palavras existem muitas variações. Aqui,
todos dizem PEITO; lá, todos dizem PAITO, embora escrevam a palavra da mesma
maneira. Aqui se diz TENHO e lá se diz TANHO. Aqui se diz VERÃO e lá se diz
V'RÃO.
Emília não achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre matuto. Alegou
que ele também estava trabalhando na evolução da língua e soltou-o.
— Vá passear, seu Jeca. Muita coisa que hoje esta senhora condena vai ser
lei um dia. Foi você quem inventou o VOCÊ em vez de TU, e só isso quanto não
vale? Estamos livres da complicação antiga do Tuturututu.
Não sei quem foi a pr imeir a pessoa que pr ofer iu essa gr ande
bobagem, mas a r ealidade é que at é hoje ela cont inua sendo
r epetida por muit a gent e por aí, inclusive gent e cult a, que não sabe
que isso é apenas um mit o sem nenhuma fundament ação científica.
De onde será que veio essa idéia? Esse mit o nasceu, mais uma vez,
da velha posição de subser viência em r elação ao por t uguês de
Por t ugal.
É sabido que no M ar anhão ainda se usa com gr ande
r egular idade o pr onome tu, seguido das for mas ver bais clássicas,
com a t er minação em -s car act er íst ica da segunda pessoa: tu vai s, tu
quer es, tu di zes, tu comi as, tu cantavas et c. Na maior par t e do
Br asil, como sabemos, devido à r eorgani zação do si stema
pr onomi nal de que já falei, o pr onome tu foi substit uído por você.
Aliás, nas palavr as da boneca Emília, “o tu já est á velho cor oco” e o
que ele deve fazer , na opinião dela, “é ir ar rumando a t r ouxa e
pondo-se ao fr esco”, e mudar -se de vez par a o “bair r o das palavr as
ar caicas”. De fat o, o pr onome tu est á em vias de ext inção na fala do
br asileir o, e quando ainda é usado, como por exemplo em alguns
falar es car act er íst icos de cer t as camadas sociais do Rio de Janeiro,
o ver bo assume a for ma da t er ceir a pessoa: tu vai , tu fi ca, tu quer ,
tu deixa di sso et c., que car act er iza t ambém a fala infor mal de
algumas out r as r egiões. Em Per nambuco, por [ p g. 46] exemplo, é
muit o comum a int er jeição int er r ogat iva “tu acha?” par a indicar
sur pr esa ou indignação.
Or a, soment e por esse ar caísmo, por essa conser vação de um
único aspect o da linguagem clássica liter ár ia, que coincide com a
língua falada em Por t ugal ainda hoje, é que se per pet ua o mit o de
que o M ar anhão é o lugar “onde melhor se fala o por t uguês” no
Br asil.
Acont ece, por ém, que os defensor es desse mit o não se dão cont a
de que, ao ut ilizar em o crit ér io pr escr it ivist a de cor reção para
sust ent á-lo, se esquecem de que os mesmos maranhenses que dizem
tu és, tu vai s, tu foste, tu qui seste, t ambém dizem: Esse é um bom
l ivr o par a t i l er , em vez da for ma “cor ret a”, Esse é um bom l ivro
par a t u l er es. Ou seja, eles at r ibuem ao pronome ti a mesma função
de sujeit o que em amplas regiões do Brasil, nas mais diver sas
camadas sociais (cult as inclusive), é at r ibuída ao pronome mi m
quando antecedido da pr eposição par a e seguido de verbo no
infinitivo: Para mim fazer i sso vou pr eci sar da sua ajuda — uma
const rução sint át ica que deixa t ant a gent e de cabelo em pé.
O que acont ece com o por t uguês do M ar anhão em relação ao
por tuguês do resto do país é o mesmo que acont ece com o por t uguês
de Por tugal em r elação ao por t uguês do Brasil: não existe nenhuma
variedade nacional, r egional ou local que seja int r insecament e
“melhor ”, “mais pur a”, “mais bonita”, “mais cor reta” que out ra.
Toda variedade lingüíst ica at ende às necessidades da comunidade
de ser es humanos que a empr egam. Quando deixar de at ender , ela
inevit avelment e sofr er á t ransfor mações par a [ p g. 47] se adequar às
novas necessidades. Toda var iedade lingüíst ica é também o
r esult ado de um pr ocesso hist ór ico própr io, com suas vicissit udes e
peripécias par t icular es. Se o por t uguês de São L uís do M ar anhão e
de Belém do Pará, assim como o de Florianópolis, conser vou o
pr onome tu com as conjugações ver bais lusit anas, é porque nessas
r egiões aconteceu, no per íodo colonial, uma for te imigr ação de
açorianos, cujo dialet o específico influenciou a var iedade de
por tuguês br asileiro falado naqueles locais. O mesmo acontece com
algumas car act er íst icas “it alianizant es” do por t uguês da cidade de
São Paulo, onde é gr ande a pr esença dos imigr antes it alianos e seus
descendentes, ou com castelhanismos evident es na fala dos
gaúchos, que mant êm est reitos contatos cult urais com seus vizinhos
ar gent inos e ur uguaios.
Numa ent revista à r evist a Veja (10/9/97), Pasquale Cipro Net o
disse que é “pur a lenda” a idéia de que o M ar anhão é o lugar do
Br asil onde melhor se fala por t uguês. Ponto para ele. I nfelizment e,
continuando a t r at ar do assunto, não hesit ou em afir mar que “no
cômput o ger al, o car ioca é o que se expressa melhor sob a ótica da
nor ma culta” e que
a São Paulo que fala 'dois pastel' e acabou as ficha' é um horror. Não acredito que
o fato de ser uma cidade com grande número de imigrantes seja uma explicação
suficiente para esse português esquisito dos paulistanos. Na verdade, é inexplicável.
Em que esse exemplo pode ser vir à nossa discussão? I sso não é
um cachimbo de ver dade, mas simplesment e a r epr esentação
gr áfi ca, pi ctór i ca de um cachimbo. O mesmo acont ece com a escr it a
alfabética, em sua r egulament ação or t ogr áfica oficial. Ela não é a
fala: é uma t ent at iva [ p g. 53] de r epr esent ação gr áfica, pict ór ica e
convencional da língua falada. (Falar ei mais det idament e da
par anói a or togr áfi ca na t er ceir a par te deste livr o.)
Quando digo que a escr it a é uma tentativa de r epr esent ação é
porque sabemos que não exist e nenhuma or t ogr afia em nenhuma
língua do mundo que consiga r eproduzir a fala com fidelidade.
Algumas or t ografias, como a do espanhol, t êm r egras mais
gener alizáveis, mais simples e mais coer ent es, que facilit am o at o
de ler e escrever . M esmo assim, no cast elha-no-padr ão da Espanha,
pode sempr e haver dúvidas: Z ou C? B ou V ? G ou J ?
Out r as línguas, como o inglês, t êm mais exceções do que
r egras, e é preciso apr ender a escrever (e a pr onunciar )
pr aticament e cada palavr a, pois a gener alização das r egr as
or t ográficas t em boa chance de falhar : par a um falant e de
por tuguês, é est r anho imaginar que as palavr as jai l e gaol t enham
a mesma pr onúncia! Out ras, ainda, como o chinês, não buscam
r eproduzir a língua falada, e opt am pela escrit a ideogr áfica.
Est a relação complicada ent r e língua falada e língua escr it a
pr ecisa ser pr ofundamente r eexaminada no ensino. Dur ante mais
de dois mil anos, os est udos gr amat icais se dedicar am
exclusivament e à língua escr it a lit er ár ia, for mal. Foi somente no
começo do século XX, com o nascimento da ciência lingüíst ica, que a
língua falada passou a ser considerada como o verdadeir o objeto de
est udo científico. Afinal, a língua falada é a língua tal como foi
aprendida pelo falant e em seu contat o com a família e com a
comunidade, [ p g. 54] logo nos pr imeiros anos de vida. É o
inst r ument o básico de sobrevivência. Um gr it o de socor ro tem muit o
mais eficácia do que essa mesma mensagem escr it a.
A língua escr it a, por seu lado, é tot alment e ar tificial, exige
t r einament o, memor ização, exer cício, e obedece a r egr as fixas, de
t endência conser vador a, além de ser uma repr esent ação não
exaust iva da língua falada.
Faça você mesmo o teste: pegue uma palavr a bem simples —
fogo, por exemplo — e pr onuncie-a com t odas as inflexões e t ons de
voz que conseguir : espanto, medo, alegr ia, t rist eza, saudade, ir a,
r emor so, hor ror , felicidade, hister ia, pavor ... Depois t ente
r eproduzir por escr it o essas mesmas inflexões e t ons de voz. É
impossível. O máximo que a língua escr it a oferece são os sinais de
exclamação e de int er r ogação! A mer a for ma escrit a não é capaz de
t r aduzir as inflexões e as int enções pr etendidas pelo falante. Por
isso, os aut or es de textos t eatr ais indicam, ent re parênt eses, a
emoção, sensação ou sentimento que o at or deve expr essar numa
dada fala.
A impor t ância da língua falada par a o est udo cient ífico est á
pr incipalment e no fato de ser nessa língua falada que ocor r em as
mudanças e as var iações que incessant ement e vão t r ansfor mando a
língua. Quem quiser , por exemplo, conhecer o est ado at ual da
língua por tuguesa do Brasil pr ecisar á invest igar empiricament e a
língua falada (como fazem os pesquisador es dos pr ojetos N U RC e
CENSO, que já cit ei, ent r e out r os). Afinal, a escola, as gr amát icas
nor mat ivas e os livr os didát icos at é hoje afirmam que os pr onomes-
sujeit os de segunda pessoa são [ p g. 55] tu e vós, que o pronome você
é simplesment e uma “for ma de t r at ament o”, que a mesóclise (dar
vo l o ei , di lo íamos, amar nos emos) ainda é uma “opção” par a a
colocação dos pronomes oblíquos, ou que o fut ur o do subjunt ivo do
verbo ver é “vir ”. Essa, por ém, já não é a realidade de boa part e da
língua escrit a no Br asil, que dir á da língua falada!
Do pont o de vist a da histór ia de cada indivíduo, o apr endizado
da língua falada sempr e pr ecede o apr endizado da língua escr it a,
quando ele acont ece. Basta cit ar os bilhões de pessoas que nascem,
cr escem, vivem e mor r em sem jamais aprender a ler e a escrever ! E
no ent anto ninguém pode negar que são falant es perfeit amente
competent es de suas línguas mat er nas.
Do ponto de vist a da histór ia da humanidade é a mesma coisa.
A espécie humana t em, pelo menos, um milhão de anos. Or a, as
pr imeir as for mas de escrit a, confor me a classificação t r adicional dos
hist or iadores, sur gir am há apenas nove mil anos. A humanidade,
por tant o, passou 990.000 anos apenas falando!
Quando o est udo da gramát ica sur giu, no ent anto, na
Ant igüidade clássica, seu objet ivo declar ado er a invest igar as
r egras da língua escr i ta par a poder preser var as for mas
consider adas mais “cor retas” e “elegant es” da língua li ter ár i a. Aliás,
a palavra gr amáti ca, em gr ego, significa exat amente “a ar t e de
escr ever ”.
I nfelizment e, essas mesmas regras da língua lit er ár ia
começar am a ser cobr adas da língua falada, o que é um dispar at e
cient ífico sem t amanho! [ p g. 56]
H á cient ist as que se dedicam especificamente a est udar as
difer enças, semelhanças, int er -r elações e int er ações que exist em
ent re as duas modalidades. O ensino t r adicional da língua, no
entant o, quer que as pessoas falem sempr e do mesmo modo como os
gr andes escr it ores escrever am suas obr as. A gr amática t r adicional
despr eza t ot almente os fenômenos da língua or al, e quer impor a
fer r o e fogo a língua lit erár ia como a única for ma legítima de falar e
escr ever , como a única manifest ação lingüíst ica que mer ece ser
est udada.
Veja-se, por exemplo, o caso da Nova gr amáti ca do por tuguês
contempor âneo, de Celso Cunha e L indley Cint r a. Ao definir em o
objet ivo de seu t r abalho, os autor es declar am, no pr efácio:
Trata-se de uma tentativa de descrição do português atual na sua forma culta, isto
é, da língua como a têm utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos
do Romantismo para cá. [grifo meu]
Essa obr a, por t anto, só pode ser consult ada por quem t iver
dúvidas no moment o de escr ever um t ext o l i terár io, já que, segundo
os pr óprios autores, não ser ão abor dados fenômenos caract er ísticos
de out r as nor mas escr it as, como a jor nalística ou a da pr odução
cient ífica, muit o menos os fenômenos t ípicos da língua falada.
A gr amática de Celso Cunha e L indley Cint r a é louvável pela
honest idade com que declar a seu objeto de est udo (embora, por
diver sas r azões que não cabe aqui enumer ar , eles não cumpr am o
que promet em no pr efácio [ p g. 57] e acabem t r at ando de fat os da
língua oral ao lado de fenômenos car act er íst icos da escrit a).
A maioria das out r as obras desse gêner o, porém, não faz assim:
seus aut ores assumem a nor ma literár ia como a única digna de ser
est udada, ensinada e pr aticada, e acham isso t ão “nat ur al” que nem
se dão ao t r abalho de defini-la como seu objet o de est udo. Fica
evident e que para eles só essa nor ma lit er ár ia conservador a mer ece
o t ítulo de “língua por t uguesa”. O que é dit o ali vale para t odas as
variedades do por t uguês, em qualquer lugar do mundo, em
qualquer momento hist ór ico, em qualquer classe social, em
qualquer faixa et ár ia. Por t ant o, não é uma gr amática, é uma
panacéia...
Essa ênfase no t ext o lit er ár io t em pr oduzido uma visão
r edut or a da língua, ident ificando-a freqüent ement e apenas com a
r egulament ação or togr áfica.
Como se não bastasse, os aut or es de compêndios gr amat icais,
inclusive os mais recent es, não fazem a dist inção básica, elementar ,
ent re ortografi a e fonéti ca, ist o é, ent r e as r egr as da língua escrit a e
os fenômenos da língua or al. Aliás, por mais incr ível que pareça,
muit os deles classificam a or t ogr afia como uma das subdivisões da
fonét ica! É o mesmo que querer incluir os ur sinhos de pelúcia na
classe dos mamífer os car nívoros!
Gr amát ico muito mais cr iterioso e atent o é o r inocer onte
Quindim — per sonagem do Sít io do Pica-pau Amar elo, de M ont eir o
L obat o —, que levando as cr ianças do sít io a passear pelo “País da
Gr amát ica”, insist iu muito para que seus “alunos” não
confundissem let r a e som (p. 6): [ p g. 58]
Trotou, trotou e, depois de muito trotar, deu com eles numa região onde o ar
chiava de modo estranho.
— Que zumbido será este? — indagou a menina [Narizinho]. — Parece que
andam voando por aqui milhões de vespas invisíveis.
— É que já entramos em terras do País da Gramática — explicou o
rinoceronte. — Estes zumbidos são os Sons Orais, que voam soltos no espaço.
— Não comece a falar difícil que nós ficamos na mesma — observou
Emília. — Sons Orais, que pedantismo é esse?
— Som Oral quer dizer som produzido pela boca. A, E, I, O, U são Sons
Orais, como dizem os senhores gramáticos.
— Pois diga logo que são letras! — gritou Emília.
— Mas não são letras! — protestou o rinoceronte. — Quando você diz A ou
O, você está produzindo um som, não está escrevendo uma letra. Letras são
sinaizinhos que os homens usam para representar esses sons. Primeiro há os Sons
Orais; depois é que aparecem as letras, para marcar esses sons orais. Entendeu?
O ar continuava num zunzum cada vez maior. Os meninos pararam, muito
atentos, a ouvir.
— Estou percebendo muitos sons que conheço — disse Pedrinho, com a mão
em concha ao ouvido.
— Todos os sons que andam zumbindo por aqui são velhos conhecidos seus,
Pedrinho.
— Querem ver que é o tal alfabeto? — lembrou Narizinho. — E é mesmo!...
Estou distinguindo todas as letras do alfabeto...
— Não, menina; você está apenas distinguindo todos os sons das letras do
alfabeto — corrigiu o rinoceronte com uma pachorra igual à de dona Benta. — Se
você escrever cada um desses sons, então, sim; então surgem as letras do alfabeto.
[pg. 59]
É difícil encont rar alguém que não concor de com a declar ação
acima. Ela vive na ponta da língua da grande maior ia dos
pr ofessores de por tuguês e est á for mulada em muitos compêndios
gr amat icais, como a já citada Gr amáti ca de Cipr o e I nfant e, cujas
pr imeir íssimas palavr as são: “A Gr amát ica é inst r ument o
fundamental par a o domínio do padr ão cult o da língua”.
É muito comum, t ambém, os pais de alunos cobr arem dos
pr ofessores o ensino dos “pontos” de gr amát ica t ais como eles
pr ópr ios os apr ender am em seu t empo de escola. E não faltam casos
de pais que protest ar am veement emente cont r a pr ofessor es e
escolas que, tent ando adotar uma pr át ica de ensino da língua
menos conservador a, não seguiam r igor osament e “o que est á nas
gr amát icas”. Conheço gent e que t irou seus filhos de uma escola
porque o livro didát ico ali adotado não ensinava coisas
“indispensáveis” como “ant ônimos”, “colet ivos” e “análise
sint át ica”...
Por que aquela declaração é um mito? Por que, como nos diz
M ário Per ini em Sofr endo a gr amáti ca (p. 50), “não exist e um grão
de evidência em favor disso; t oda a evidência disponível é em
cont rár io”. Afinal, se fosse assim, t odos os gr amáticos ser iam
gr andes escr itores (o que est á longe de ser ver dade), e os bons
escr it or es ser iam especialistas em gr amát ica. [ p g. 62]
Or a, os escr itores são os pr imeiros a dizer que gr amát ica não é
com eles! Rubem Br aga, indiscut ivelmente um dos grandes de nossa
literat ur a, escr eveu uma cr ônica deliciosa a esse r espeit o chamada
“Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim”.
Car los Dr ummond de Andrade (preciso de adjet ivos par a
qualificá-lo?), no poema “Aula de Por t uguês” também dá
t est emunho de sua per t urbação diante do “mist ér io” das “figur as de
gr amát ica, esquipát icas”, que compõem “o amazonas de minha
ignorância”. Dr ummond ignorant e?
E o que dizer de M achado de Assis que, ao abr ir a gr amát ica de
um sobrinho, se espant ou com sua pr ópria “ignor ância” por “não t er
entendido nada”? Esse e out r os casos são cit ados por Celso Pedr o
L uft em L íngua e l iberdade (pp. 23-25). E esse mesmo autor nos diz
(p. 21):
M ário Per ini, no livro que cit amos acima, chama a at enção
par a a “pr opaganda enganosa” cont ida no mito de que é pr eciso
ensinar gramát ica par a aprimor ar o desempenho lingüístico dos
alunos:
Este livro pretende ser uma Gramática Normativa da Língua Portuguesa do Brasil,
conforme a falam e escrevem as pessoas cultas na época atual [Novíssima
gramática da língua portuguesa, p. xix].
7
Citado por Ernani Terra, Linguagem, língua e fala, p. 46.
modo poderíamos, em nossa pr ática pedagógica, tent ar desmont á-
los. [ p g. 68]
M i t o n°8
“ O d om í n i o d a n or m a cu l t a
é u m i n st r u m en t o d e a scen sã o soci a l ”
Este mit o, que vem fechar nosso cir cuit o mitológico, t em muit o
que ver com o pr imeir o, o mit o da unidade lingüíst ica do Br asil.
Esses dois mit os são apar entados por que ambos t ocam em sér ias
quest ões sociais. É muit o comum encont r ar pessoas muito bem-
int encionadas que dizem que a nor ma padr ão conser vador a,
t r adicional, liter ár ia, clássica é que t em de ser mesmo ensinada nas
escolas por que ela é um “inst r ument o de ascensão social”. Seria
então o caso de “dar uma língua” àqueles que eu chamei de “sem-
língua”?
Or a, se o domínio da nor ma cult a fosse realment e um
inst r ument o de ascensão na sociedade, os pr ofessor es de por tuguês
ocupar iam o t opo da pirâmide social, econômica e polít ica do país,
não é mesmo? Afinal, supost ament e, ninguém melhor do que eles
domina a nor ma cult a. Só que a ver dade est á muito longe disso
como bem sabemos nós, pr ofessor es, a quem são pagos alguns dos
salários mais obscenos de nossa sociedade. Por out r o lado, um
gr ande fazendeiro que t enha apenas alguns poucos anos de est udo
pr imário, mas que seja dono de milhares de cabeças de gado, de
indúst r ias agr ícolas e detent or de gr ande influência polít ica em sua
r egião vai poder falar à vont ade sua língua de “caipir a”, com todas
as for mas sint át icas consider adas “er radas” pela gr amát ica [ p g. 69]
t r adicional, porque ninguém vai se at r ever a cor r igir seu modo de
falar .
O que estou tent ando dizer é que o domínio da nor ma cult a de
nada vai adiant ar a uma pessoa que não t enha todos os dent es, que
não tenha casa decent e par a mor ar , água encanada, luz elét rica e
r ede de esgot o. O domínio da nor ma cult a de nada vai ser vir a uma
pessoa que não tenha acesso às tecnologias moder nas, aos avanços
da medicina, aos empr egos bem r emuner ados, à part icipação at iva e
consciente nas decisões políticas que afet am sua vida e a de seus
concidadãos. O domínio da nor ma cult a de nada vai adiant ar a uma
pessoa que não t enha seus dir eit os de cidadão r econhecidos
plenament e, a uma pessoa que viva numa zona r ur al onde um
punhado de senhor es feudais cont rolam extensões gigant escas de
t er r a fér t il, enquant o milhões de famílias de lavr ador es sem-t er r a
não têm o que comer .
Achar que bast a ensinar a nor ma cult a a uma cr iança pobr e
par a que ela “suba na vida” é o mesmo que achar que é pr eciso
aument ar o númer o de policiais na r ua e de vagas nas
penitenciár ias par a r esolver o pr oblema da violência ur bana.
A violência ur bana est á intimament e ligada a uma sit uação
social de profunda injust iça, que dá ao Br asil, como eu já disse, o
t r iste segundo lugar ent r e os países com a pior dist ribuição de
r enda de t odo o mundo, per dendo apenas par a Bot swana, um país
afr icano desér t ico, muito menor e muit o menos desenvolvido.
É preciso gar ant ir , sim, a t odos os br asileiros o reconhecimento
(sem o t r adicional julgament o de valor ) da [ p g. 70] var iação
lingüíst ica, por que o mer o domínio da nor ma cult a não é uma
fór mula mágica que, de um moment o par a out r o, vai r esolver t odos
os problemas de um indivíduo carent e. É preciso favor ecer esse
r econheciment o, mas t ambém gar ant ir o acesso à educação em seu
sentido mais amplo, aos bens cult ur ais, à saúde e à habitação, ao
t r anspor t e de boa qualidade, à vida digna de cidadão mer ecedor de
t odo r espeito.
Como é fácil per ceber , o que est á em jogo não é a simples
“t r ansfor mação” de um indivíduo, que vai deixar de ser um “sem-
língua padr ão” para t or nar -se um falant e da variedade cult a. O que
est á em jogo é a tr ansfor mação da soci edade como um todo, pois
enquant o viver mos numa est r utur a social cuja exist ência mesma
exi ge desigual dades soci ais pr ofundas, t oda tent at iva de pr omover a
“ascensão” social dos mar ginalizados é, senão hipócr it a e cínica,
pelo menos de uma boa int enção pat er nalist a e ingênua.
Por isso eu me pergunto: ser á que “doando” a língua padr ão a
um indivíduo das classes subalt er nas ele vai, aut omat icamente,
t or nar -se um patrão? Não é mer a coincidência etimológica o fato de
padr ão e patr ão ser em duas for mas divergent es de uma mesma
or igem comum: o lat im patronu , que t em t ambém a mesma r aiz de
pater nal i smo e patri ar cali smo.
Valer á mesmo a pena promover a “ascensão social” para que
alguém se enquadr e dentr o desta soci edade em que vi vemos, t al
como ela se apr esent a hoje? Basta pensar um pouco nos indivíduos
que det êm o poder no Br asil: não são (quando são) apenas falant es
da nor ma cult a, mas são sobr et udo, em sua gr ande maioria,
homens, [ p g. 71] br ancos, heterossexuai s, nasci dos/ cr i ados na
por ção Sul Sudeste do país ou oriundos das ol i gar qui as feudai s do
Nor deste.
Como eu já t inha avisado na aber t ura do livro, falar da língua é
falar de política, e em nenhum moment o est a r eflexão polít ica pode
est ar ausent e de nossas post ur as t eór icas e de nossas atit udes
pr áticas de cidadão, de pr ofessor e de cient ista. Do cont rár io,
est aremos apenas cont ribuindo para a manut enção do cír culo
vicioso do preconceito lingüíst ico e do ir mão gêmeo dele, o cír cul o
vi ci oso da i njusti ça soci al . [ p g. 72]
II
O cí r cu l o vi ci oso
d o pr econ cei t o l i n gü í st i co
1
Ministério da Educação e do Desporto (1998): Parâmetros curriculares nacionais, Língua Portuguesa,
5ª a 8a séries, p. 31.
Temos ainda de esper ar par a ver em que medida esses esfor ços
se r efletir ão na prát ica quot idiana, efet iva, dos pr ofessor es em sala
de aula. Acompanhando esse moviment o, muit as edit or as vêm
t entando pr oduzir um mat er ial didát ico mais compatível com as
novas concepções pedagógicas, e o sist ema oficial de avaliação dos
livros didát icos, apesar de muit o crit icado, t em cont r ibuído par a
uma r evisão das for mas t r adicionais de elaboração desse t ipo de
livro.
M as os pr econceitos, como bem sabemos, impr egnam-se de t al
maneir a na ment alidade das pessoas que as at it udes
pr econceit uosas se t or nam par t e int egr ante do nosso própr io modo
de ser e de est ar no mundo. É necessár io um t r abalho lent o,
contínuo e profundo de conscient ização par a que se comece a
desmascar ar os mecanismos perver sos que compõem a mit ologia do
pr econceito. E o t ipo mais t r ágico de pr econceit o não é aquele que é
exer cido por uma pessoa em r elação a out ra, mas o pr econceit o [ p g.
75] que uma pessoa exer ce cont r a si mesma. I nfelizment e, ainda
exist em muit as mulheres que se consider am “infer ior es” aos
homens; exist em negros que acr edit am que seu lugar é mesmo de
subser viência em r elação aos brancos; existem homossexuais
convict os de que sofrem de uma “doença” que pode, inclusive, ser
cur ada...
Do mesmo modo, muitos br asileir os acr edit am que “não sabem
por tuguês”, que “por t uguês é muito difícil” ou que a língua falada
aqui é “t oda er r ada”. E ao cont rár io dos demais preconceit os, que
vêm sendo at acados com algum sucesso com diver sos mét odos de
combate, o pr econceit o lingüíst ico pr ossegue sua mar cha. Se já
exist e uma mudança de at itude nos livr os didát icos e na pedagogia
oficial, por que o cír culo vicioso do preconceit o lingüíst ico cont inua
gir ando?
I nt r igado com isso, comecei a prestar at enção à minha volt a e
cheguei à conclusão de que o cír culo vicioso não est ava complet o.
Descobri que, assim como os Tr ês M osquetei ros de Alexandr e
Dumas são quat r o, t ambém existe um quar t o element o ocult o
dent r o daquele cír culo. Como est e quar to elemento não é t ão
compact amente inst it ucionalizado quant o os demais, a gent e deixa
de per cebê-lo.
M as, afinal, que quar t o elemento é esse? É aquilo que r esolvi
chamar de comandos par agr amati cai s. É t odo esse ar senal de
livros, manuais de r edação de empr esas jor nalíst icas, pr ogramas de
r ádio e de televisão, colunas de jor nal e de revist a, CD -ROM S,
“consultórios gr amat icais” [ p g. 76] por t elefone e por aí afor a... É a
“saudável epidemia” a que se r efer e Ar naldo Nisk ier no ar t igo que
citei ao falar do M it o n° 2, “epidemia” que, par a mim, nada tem de
“saudável”, e vou explicar por quê. O que os comandos
par agr amati cai s poder iam r epresent ar de ut ilidade par a quem t em
dúvidas na hor a de falar ou de escr ever acaba se perdendo por t rás
da espessa neblina de preconceit o que envolve essas manifestações
da (mult i)mídia. Assim, t udo o que elas fazem de concreto é
perpet uar as velhas noções de que “brasileir o não sabe por t uguês” e
de que “por t uguês é muit o difícil”.
É uma pena que seja assim. Todo esse for midável poder de
influência dos meios de comunicação e dos recur sos da infor mática
poder ia ser de grande utilidade se fosse usado pr ecisament e na
dir eção opost a: na dest ruição dos velhos mit os, na elevação da aut o-
est ima lingüíst ica dos brasileir os, na divulgação do que há de
r ealmente fascinant e no est udo da língua. M as não é assim. Toda
vez que alguém se põe a falar da sit uação lingüíst ica do Br asil, é
par a r epet ir as mesmas queixas e lamúr ias de cem anos at rás ou
mais.
Um exemplo. Na ent r evist a de Pasquale Cipr o Net o à r evist a
Veja, que citamos na pr imeir a part e dest e livro, o t ext o que
antecede a ent r evist a propr iamente dita r episa aqueles mesmos
chavões bolor entos:
Bast a esse par ágr afo par a demonst r ar que, além do preconceit o
lingüíst ico, est á aí manifest ado um profundo pr econceito social. Em
out ras passagens do livro, ele fala novament e de “língua de
cozinheiras” e de “infelizes caipir as”. [ p g. 79]
Par a Napoleão M endes de Almeida, a lit er at ura br asileir a
mor r eu em 1908, junt o com M achado de Assis. Toda a vast a
pr odução do M odernismo e dos per íodos seguint es é merecedor a de
seu mais pr ofundo despr ezo:
Escritor é o que tem forma e conteúdo; aquela terá quem conhecer o idioma; este,
quem tiver erudição e, principalmente, cultura. Se somente a forma, temos o
frívolo; se somente o conteúdo, temos o técnico; se as duas coisas, temos o
escritor; se nenhuma delas, teremos o... modernista.
é português estropiado que no Brasil se fala, língua de gíria, língua sem peias
sintáticas, língua de flexão arbitrária, língua do 'deixô vê', do 'mande ele', do 'já te
disse que você', do não lhe conheço', do 'fiz ele estudar', do 'vi os meninos saírem'.
[em chinês] não existe nenhuma morfologia de casos que assinale diferenças entre
relações gramaticais como sujeito, objeto direto ou objeto indireto, nem existe
qualquer “concordância” ou flexão verbal para indicar o que é sujeito e o que é
objeto. No chinês, de fato, há poucas razões gramaticais para se postular relações
gramaticais, embora haja, é claro, meios de distinguir quem fez o quê a quem, tal
como existem em todas as línguas2.
Além disso, o mesmo estudo diz que em chinês não há nada que
se possa classificar de “adjetivos”, desment indo, por t ant o, o que
Napoleão pensa acer ca da “inter nacionalidade” das “classes de
palavr as”.
No caso de Napoleão M endes de Almeida, a car ga de
pr econceito lingüíst ico já não é a “neblina espessa” a que me referi
mais acima: é uma ver dadeira par ede de r ocha imper meável e
int r ansponível, que impede o acesso a [ p g. 82] qualquer event ual
ut ilidade que suas explicações possam t er . Seu Di cionári o de
questões ver nácul as, da per spect iva da ét ica mais element ar ,
desrespeit a os direit os lingüíst icos dos cidadãos brasileir os.
2
LI, Charles & THOMPSON, Sandra. “Chinese”, in COMRIE, B. (ed.), The World's Major Languages,
London, Routledge, 1987, pp. 824-825.Tradução minha.
Quais são os problemas de Não er r e mai s!?. Par a começar , o
livro não t em o mais r emot o cr it ér io de organização: os supost os
“er r os” são encadeados caot icament e, um após o out r o, sem
nenhuma dist r ibuição baseada em tipos de “er r os” (or t ogr áficos,
fonét icos, sint át icos, mor fológicos) nem na mais element ar or dem
alfabética de assunt o.
Em seguida, t enta ensinar coisas per feit ament e inút eis, como a
pr onúncia “corr eta” do nome inglês do modelo de um car ro que, por
sinal, já deixou de ser fabr icado (M onza Cl assi c SE) e também das
siglas FNM e DK W (igualmente extint as), a gr afia “cor r et a” do
apelido da apr esent adora de televisão Xuxa (que, segundo ele,
dever ia se escr ever Chucha), ou a conjugação do verbo apr opi nquar
se, que ninguém em sã consciência usa no Br asil, a menos que
queira pr ovocar r isos ou passar por pedante... [ p g. 83]
Além disso, cor r ige “er ros” cometidos por uma única pessoa, em
deter minada ocasião, em deter minado momento, que não t êm,
por tant o, a fr eqüência de uma r egr a variável (o que os
pr escrit ivist as chamam de “er r o comum”), mas lapsos comet idos por
alguém, o que não just ifica sua inclusão num livr o desse t ipo.
M as o pior de t udo é a enxur r ada de expressões
pr econceit uosas que inundam o livr o de pont a a pont a. Apesar de
Sacconi at r ibuí-las à sua “índole espir it uosa” e dizer que isso “nada
t em que ver com despr ezo ou menospr ezo aos ignor ant es”, o uso
mesmo do ter mo “ignor ant es” já constit ui um sinal desse “desprezo
ou menospr ezo”. Por que, lendo o livr o, o leit or descobr e que todos os
br asileir os, com exceção do aut or , são “ignor antes” no que diz
r espeit o à língua: a cada página surge uma invect iva cont ra uma
entidade amorfa e indefinida chamada “povo”, cont r a os jor nalist as
em bloco, cont r a os aut or es de dicionár ios, cont r a a Academia
Br asileir a de L et r as, cont ra escr itores clássicos, cont r a out r os
gr amát icos, cont ra especialist as nas mais diver sas ciências e
t écnicas... Fica clar o, ent ão, que a “nor ma culta” é uma flor única,
que só ger mina no jar dim da casa dele. Afinal, se t odos os mapas e
livros de geogr afia t r azem a for ma Antár ti da, que aut or idade t em
Sacconi par a dizer que isso é “lament ável” e que a for ma “cer t a” é
“Ant ár t ica”?
Vamos examinar apenas as primeir as cem páginas de Não er r e
mai s! (ir além disso ser ia malt r at ar demais o est ômago do leit or ).
Nelas apar ecem doze palavras der ivadas [ p g. 84] de asno
(“asinino”,”asneir a”,”asnice”) par a se referir àqueles mesmos
“ignorant es” mencionados no text o de abert ur a do livr o. Sendo ao
t odo 420 páginas, podemos imaginar quant as mais não apar ecer ão!
(“L íngua de jacu” é out r a das expr essões favor it as dele.)
Sacconi se r evela, desse modo, um discípulo fiel e imit ador
perfeit o de Cândido de Figueir edo, que em O que se não deve di zer
(de 1903!) declara:
[...] essa mesma imprensa, para não fugir à sua regra maior, que é ignorar a
coerência, põe os pés pelas mãos (p. 30).
Há jornalistas que, de fato, inventam a toda a hora, aprontam com todo o mundo...
(p. 54).
Os brasileiros, por exemplo, vivem mal e parcamente num país onde os jornalistas
escrevem muito mal e parcamente... (p. 77).
Pra quem não sabe, redação de jornal é um lugar aonde só deveria ir gente que
conhecesse um pouquinho a língua. Só um pouquinho... (p. 78).
Essa gente ainda vai um dia inventar uma nova língua, inteligível só para si
mesmos (p. 82).
Não vamos aumentar o diapasão de críticas que temos feito a alguns jornalistas...
(p. 86).
A qualidade de nossos jornais piora (É preciso acrescentar ainda mais?) (p. 94)
Não bastasse esse at aque aos jor nalist as, Sacconi não hesit a
em ofender preconceit uosament e out ros segment os sociais. Par a ele,
a r egência namor ar com é “coisa de it alianos” (p. 7). Par a ele, a
for ma peãozada só pode exist ir na fala, pois o “cor r et o” na escr it a é
peonada, e aconselha os peões a “que t enham o bom-senso de t r ocar
essa for ma pela out r a quando escr evem. Se é que escr evem...” (p. 8),
most r ando que, na sua opinião, todo peão é necessar iament e
analfabet o. O mesmo acont ece em r elação aos “er r os” supost amente
comet idos por caminhoneir os: “Camioneir os, cont udo, incansáveis
t r abalhadores, mer ecem t odo o per dão dest e mundo...” (p. 21).
Seu ideár io polít ico t ambém fica manifesto em declar ações do
t ipo:
Hoje em dia existem pessoas que fazem curso superior em greves, formam-se no
assunto e mostram-se tão competentes [pg. 86] no ofício, que decidem em nome
de toda a classe que representam: pela continuidade da greve! (p. 10).
Costumo dizer que algarismo romano é como vizinho: devemos evitá-lo tanto
quanto possível (p. 65).
São os [dicionários] que já passam dos setecentos anos, senão a obra, o seu autor...
(p. 68).
Não perca nenhum tempo em perguntar por quê, caro leitor: basta não esquecer
que estamos estudando a língua portuguesa. Com certeza... (p. 14).
Ocorre que, nas regiões banhadas pelo legendário rio Tietê, utilizado pelos
bandeirantes, as pessoas realmente trocam o l pelo r (arto, iguar, tarco, etc.), por
influência da língua dos indígenas, que não conheciam o som lê, mas apenas o
som rê brando, de caro, barato. Os bandeirantes, preocupados em se aproximar
dos índios (e das suas riquezas), faziam o que podiam para serem compreensíveis,
para serem amáveis, gentis. Assim, toda palavra que tinha lê sofria a natural
modificação [...] Começou, então, dessa forma, o hábito de trocar o l por r,
fenômeno conhecido pelo nome de rotacismo, muito comum [pg. 89] nas cidades
paulistas de Tatuí, Piracicaba, Tietê, Laranjal, Porto Feliz, Itu, Salto, Capivari, etc.
(p. 98).
Nos primeiros dois séculos após a chegada de Cabral, o que se falava por estas
bandas era o tupi mesmo. O idioma dos colonizadores só conseguiu se impor no
litoral no século XVII e, no interior, no XVIII. Em São Paulo, até o começo do
século passado, era possível escutar alguns caipiras contando casos em língua
indígena. No Pará, os caboclos conversavam em nheengatu até os anos 40. [...] Era
o idioma do povo,enquanto o português ficava para os governantes e para os
negócios com a metrópole.
[...] Derivado do dialeto de São Vicente, o tupi de São Paulo se desenvolveu e se
espalhou no século XVIII, graças ao isolamento geográfico da cidade e à atividade
pouco cristã dos [pg. 91] mamelucos paulistas: as bandeiras, expedições ao sertão
em busca de escravos índios.3
3
Superinteressante, dezembro de 1998, pp. 82 e 84. Essa matéria da revista, muito bem
elaborada, apóia-se em depoimentos de alguns importantes conhecedores das línguas
indígenas brasileiras, inclusive aquele considerado o maior deles, o professor Aryon
Rodrigues, da Universidade de Brasília.
do pont o de vist a ar t iculatório, parent as muito pr óximas, o que faz
com que, na história de muit as línguas (e não só do port uguês das
“r egiões banhadas pelo legendár io r io Tiet ê”) elas se subst it uam
uma à out ra indiferent emente. São as chamadas consoantes
l íqui das, que t ambém têm muito par entesco com as vogais (o que
faz t ambém com que, em algumas var iedades, [ p g. 92] sejam
subst it uídas por vogais, como é o caso do L . de final de sílaba que
em quase todo o Br asil é pronunciado como um /w/).
Assim, o nome própr io Gui l her me nos veio de um germânico
WI L H EL M , enquanto nosso Ger al do veio do também ger mânico
GEH RH ARDT . Na língua cult a coexist em as for mas al uguel e al uguer ,
e nosso papel se or iginou do pr ovençal papér (e est e do grego
papyr os). No por t uguês medieval ao lado de fl or havia a for ma frol ,
cujo plur al, fr óes, sobr eviveu como nome de família. A cidade do
nor te da Áfr ica que em francês se chama Alger (do ár abe al jazi r d)
em por t uguês é Argel , donde o nome do país, Ar gél i a (em fr ancês,
Algéri e). E a nossa palavra por ão der iva do lat im pl anu : deve ter
ocor r ido pr imeiro o r ot acism pl > pr e depois a quebr a do gr upo
consonant al com a int r odução de uma vogai o, exat ament e como
acont ece na for ma dialet al br asileir a ful ô. E t udo isso uns bons
séculos antes da descober ta da Bahia!
A t roca de /r / por /l/ se chama l ambdaci smo. Ela ocor r e, no
por tuguês não-padr ão, em var iant es como cal vão, cel veja, gal fo. O
que as pesquisas dos sociolingüist as e dos fonet icist as nos explicam
é que tant o o r otaci smo quant o o l ambdaci smo ocor r em em ambien-
t es fonét icos específicos, isto é, diante de det er minadas consoant es
(quem diz cal vão, por exemplo, não diz cal ta, mas sim car ta) ou de
acordo com a posição do fonema na palavr a.
A vocalização do / λ/ , a assimilação nd > nn > n e o
r ot acismo são fenômenos que car act er izam as var iedades [ p g. 93]
não-padrão (sobretudo r ur ais) do port uguês do Brasil e que, por
isso, recebem uma for t e car ga de estigmat ização, isto é, sofrem um
gr ande preconceit o por par t e dos falant es das var iedades ur banas.
Tent ei explicá-los cient ificament e e (esper o) sem pr econceit os no
meu livr o A língua de Eul ál i a.
Como é fácil concluir , o livr o Não err e mai s! est á r eplet o de
er r os — er r os de descr ição dos fenômenos lingüísticos e, sobr etudo,
er r os de condut a: preconceit uosa e nada ét ica. Podemos dizer ,
por tant o, usando as palavras do próprio Sacconi (p. 63), que se t r at a
de “um verdadeir o fest ival de asneir as”.
Dad Squar i si
Est á claro que em (1) temos uma or ação na voz ativa em que o
sujeit o é indet er minado e o objeto de M I STURA --SE é ÁGUA . Já em (2)
o sujeito passa a ser ÁGU A e a par t ícula se indica que se t r at a de um
verbo r efl exi vo. [ p g. 100]
A posição dos elementos no enunciado, quando alter ada, alt er a
t ambém a interpr et ação de seu significado, desviando-se do efeit o
pr etendido pelo falant e. É o que acontece com
Em (5) est á claro que a demissão foi voluntár ia por que o sujei to
evident e da or ação é M U I TA GEN TE . Em (6) o sujeito é
i ndeter mi nado, e essa indeter minação est á indicada pela par t ícula
se, sendo M UI TA GEN TE O objeto da demissão. As or ações (5) e (6)
podem ser per feit ament e classificadas de ati vas. Já em (7) temos,
sim, uma ver dadeir a or ação na voz passi va em que o sujei to, M U I TA
GENTE , sofr e a ação pr aticada: demi ti r . Se no lugar de M U I TA GENTE
t ivéssemos M UI TOS OPERÁRI OS e quiséssemos fazer a mesma
análise, obt er íamos:
4
A professora Scherre analisou detalhadamente o preconceito contido nessa e em outras colunas
assinadas por Dad Squarisi no texto “Preconceito lingüístico: doa-se lindos filhotes de poodle”, a ser
publicado brevemente em obra coletiva organizada pelo professor Dermeval da Hora, da Universidade
Federal da Paraíba. Agradeço a ela a gentileza de ter-me possibilitado ler seu excelente ensaio antes de
entregá-lo à publicação.
cont ra quem não se “enquadr a” na “lei da concor dância”. Or a, n'Os
L usíadas encontr a se os seguint es ver sos:
E como por toda África se soa, / lhe diz, os grandes feitos que fizeram (canto II,
103).
— V. Sa. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou
plural. Aquele SE da tabuleta refere-se cá a este seu criado.
1. Reconheci mento da cr i se
De que modo poderemos r omper o cír culo vicioso do pr econceit o
lingüíst ico? Como conseguir emos escapar do igapó est agnado e
mer gulhar nas águas dinâmicas e vivificantes do gr ande r io da
língua?
Uma coisa não podemos deixar de r econhecer : existe
at ualment e uma cr ise no ensino da língua por t uguesa. M uit os
pr ofessores, aler t ados em debat es e confer ências ou pela leitur a de
bons t ext os cient íficos, já não r ecor r em t ão exclusivament e à
gr amát ica nor mat iva como única font e de explicação par a os
fenômenos lingüíst icos. Por out r o lado, sent em falt a de out r os
inst r ument os didát icos que possam, senão substit uir , ao menos
complement ar cr it icament e os compêndios gr amat icais t r adicionais.
M uit a gent e acr edit a e defende que é a nor ma cul ta que deve
constit uir o objeto de ensino/aprendizagem em sala de aula. M as o
que é e onde est á essa nor ma cul ta?
Não é difícil per ceber que a nor ma cult a — por diversas r azões
de or dem polít ica, econômica, social, cult ural — é algo reser vado a
poucas pessoas no Br asil. Vimos isso no M it o n° 1 e no nº 8. É o
mesmo que acontece com a aliment ação, [ p g. 105] a saúde, a
educação, a habit ação, o t r anspor t e, o acesso às novas t ecnologias
et c. Uns poucos privilegiados se locomovem em car r os impor t ados,
enquant o a gr ande maioria usa um t r anspor t e público deficient e,
pr ecár io e, se não bast asse, car o demais — conheço pessoas
humildes que vão a pé par a o t r abalho, desper t ando no meio da
madr ugada e caminhando dur ant e hor as da per ifer ia até os bair r os
cent rais, por que seu salár io não lhes per mite t omar ônibus, t r em
nem met r ô.
Podemos identificar t r ês pr oblemas básicos a esse respeito.
Pr i mei r o, e mais óbvio, a quant idade injustificável de
analfabet os que exist e neste país. Est at íst icas oficiais, do I BGE,
falam de 18 a 20 milhões de analfabetos com mais de 15 anos de
idade — duas vezes a população de Port ugal! Some-se a isso os
milhões de cr ianças em idade escolar que não fr eqüentam nenhuma
escola. Temos t ambém um alto índice de anal fabetos funci onais, ist o
é, pessoas que fr eqüent aram a escola por um per íodo insuficient e
par a desenvolver plenamente as habilidades de leitur a e r edação. A
média nacional de educação da for ça de t r abalho é de 3,9 anos de
escola: ser iam, no t ot al, 45 milhões de analfabetos funcionais ou
semi-analfabetos. Analfabetos plenos e analfabetos funcionais
ser iam, ao t odo, mais de 60 milhões de br asileiros: duas vezes a
população da Ar gent ina!
Numa list a de 175 países elabor ada pela ONU, o Br asil ocupa o
93° lugar em índice de escolar ização, ficando at r ás at é mesmo de
países como a Et iópia e a Í ndia, exemplos clássicos de
subdesenvolviment o cr ônico. Só que o Br asil [ p g. 106] é uma das
dez maior es economias do planet a! Ocupamos t ambém o 80° lugar
em invest iment os na educação. E ninguém pode alegar que isso se
deve ao tamanho do país ou da população: a China, bem maior que o
Br asil e com uma população de 1,2 bilhão de habit ant es, t em 6 % de
analfabet os, enquanto o Br asil t em 18,4 %, segundo o Banco
M undial. E na China esses analfabetos vivem em ár eas muit o
r emot as, nas montanhas ou nos deser t os, enquant o os nossos est ão
na per ifer ia das gr andes cidades e at é mesmo t r abalhando dent ro
de nossas casas. Tudo isso num país cuja Constit uição diz que a
educação é “dever do Est ado”.
A nor ma cult a, como vimos, está t r adicionalment e muit o
vinculada à nor ma lit er ár ia, à língua escr ita. Com t ant os
analfabet os, lament ar a “decadência” ou a “cor r upção” da nor ma
cult a no Br asil é, no mínimo, uma at itude cínica.
Segundo, por r azões hist óricas e cult urais, a maior ia das
pessoas plenament e alfabet izadas não cult ivam nem desenvolvem
suas habilidades lingüíst icas no nível da nor ma cult a. L er e,
sobret udo, escrever não fazem part e da cult ur a das nossas classes
sociais alfabet izadas. I sso se pr ende aos velhos pr econceit os de que
“br asileir o não sabe por t uguês” e de que “por t uguês é difícil”,
veiculados pelas pr át icas t radicionais de ensino. Esse ensino
t r adicional, como eu já disse, em vez de incent ivar o uso das
habilidades lingüíst icas do indivíduo, deixando-o expressar -se
livrement e par a soment e depois cor r igir sua fala ou sua escr it a, age
exat ament e ao contr ár io: inter rompe o fluxo nat ur al da expr essão e
da comunicação com a atit ude cor retiva (e muit as vezes punit iva),
cuja conseqüência [ p g. 107] inevit ável é a cr iação de um sentimento
de incapacidade, de incompet ência.
Em minha exper iência de t r adutor pr ofissional, já me depar ei
algumas vezes com sit uações que poder íamos classificar de
sur r ealist as. Pessoas que fizeram doutor ado no exter ior me
pr ocur am par a que eu t r aduza para o por tuguês t eses escr itas
or iginalmente em inglês ou fr ancês. Quando pergunto à pessoa por
que ela mesma não faz a t r adução, a r espost a que eu r ecebo é
chocant e: “É por que eu não sei por t uguês”. Como é possível? Uma
pessoa que escreveu uma t ese de 500 ou 600 páginas num idioma
est r angeir o, e que obteve assim o seu gr au de doutor , de Ph.D., em
sua especialidade cient ífica, t em receios de escrever em sua própr ia
língua mat er na? Exist e algum pr oblema aí, e eu não posso aceit ar a
explicação dada por t ant os pr ofessores de que os alunos é que são
pr eguiçosos e não conseguem aprender , ou, pior ainda, que
“port uguês é muit o difícil”. O problema cer t amente está no modo
como se ensina por t uguês e naqui l o que é ensinado sob o r ót ulo de
l íngua por tuguesa.
Ter cei r o, o dilema r elat ivo à nor ma cul ta se pr ende ao fat o de
que esse ter mo é usado pela t r adição gr amat ical conser vador a par a
designar uma modalidade de língua que, como já vimos na primeir a
par te dest e livr o, não cor r esponde à língua efet ivament e usada
pelas pessoas cult as do Br asil nos dias de hoje, mas sim a um i deal
lingüíst ico inspir ado no por t uguês de Port ugal, nas opções
est ilíst icas dos gr andes escrit or es do passado, nas r egr as sint áticas
que mais se apr oximem dos modelos da gr amát ica lat ina, ou
simplesmente no gost o pessoal do gr amát ico [ p g. 108] — par a
Napoleão M endes de Almeida, por exemplo, o “cer to” é dizer eu odio
e não EU ODEI O...1
Dent r o desse conceito de “nor ma cult a”, a pr oibição de começar
um per íodo com pr onome oblíquo (M e empr este seu li vro) é
just ificada com a afir mação de que em Por t ugal (!) ninguém fala
assim. De igual modo, a r ecusa dos gr amát icos conservador es em
aceit ar que em fr ases como Vende se casas o pronome se
1
Outros termos empregados indistintamente pelos prescritivistas são: norma padrão, língua padrão,
língua culta, padrão culto. Todos eles, porém, carecem de uma definição teórica rigorosa, sendo usados
basicamente como um sinônimo geral de “bom português”, em contraste com tudo o que “não é
português”.
desempenha uma função semelhant e à de sujeito se baseia no fato
de que, em latim (!!), o pr onome se nunca exer cia essa função. Dizer
ou escr ever eu pr efi r o mai s X do que Y é um “pecado”, na opinião
deles, por que o pr efixo pr ae em latim (!!!) funcionava par a for mar
super lat ivos analíticos, contendo em si mesmo a idéia de “muito” ou
“mais do que”... Além disso, é “err ado” dizer outr a al ter nati va
porque al ter em lat im (!!!!) já significava “out r o”. M as desde quando
nós falamos lat im no Br asil?
A dist ância ent r e nor ma culta r eal e nor ma cult a i deal pode ser
medida em afir mações como esta, de Rocha L ima, em sua
Gr amáti ca nor mati va da l íngua por tuguesa (p. 15):
João está doente, por isso me pediu para vir aqui no lugar dele. [pg. 111]
não se pode mais insistir na idéia de que o modelo de correção estabelecido pela
gramática tradicional seja o nível padrão de língua ou que corresponda à variedade
lingüística de prestígio (p. 31).
2
Hard em inglês significa “duro, rígido”, enquanto soft significa “macio, maleável”. Qual dessas duas
opções de ensino você acha que nossos alunos escolheriam se tivessem chance?
los par a a descobert a de novas maneir as que nos per mit am fazer de
nossos alunos bons motorist as da língua, bons usuários de seus
pr ogr amas.
Por isso é que Sír io Possent i, depois de exibir ar gument os com
os quais concor do int egr almente, diz nas páginas 53-54 de Por que
(não) ensi nar gramáti ca na escola:
4. O que é er r o?
Out r o modo int er essante de romper com o cír culo vicioso do
pr econceito lingüíst ico é r eavaliar a noção de er ro. A noção
t r adicional (eu dir ia até fol cl ór i ca) de er r o é que per mit e que pessoas
como Sacconi escrevam livros absur dos como Não er re mai s! e
vendam milhar es de exemplares deles.
Como vimos na pr imeir a par t e do livr o, o M it o 6 expr essa a
pr ática milenar de confundir língua em ger al com escri ta e, mais
r eduzidamente ainda, com ortogr afi a ofi ci al . A t al ponto que uma
elevada por cent agem do que se r ot ula de “er r o de por t uguês” é, na
verdade, mero desvio da or t ografia oficial. O vigor desse mit o se
depr eende, por exemplo, num exer cício de pesquisa suger ido por um
livro didático de publicação r ecente (Car valho & Ribeiro, 1998: 125).
Após apr esent ar o poema [ p g. 122] “Er r o de por t uguês”, de Oswald
de Andrade, os autor es pedem ao aluno:
isso não alt er a a sint axe nem a semânt ica do enunciado: o que
mudou foi só a or t ogr afia.
O exer cício pr opost o por Car valho & Ribeir o, além de confundir
português com or togr afi a do por tuguês, t ambém admite
implicit ament e a existência de “er ros” na [ p g. 123] “fala de pessoas
que você conhece”. O problema aqui é ainda mais gr ave por que, do
pont o de vist a cient ífico, simplesment e não exi ste er r o de por tuguês.
Todo falant e nat ivo de uma língua é um falant e plenament e
competent e dessa língua, capaz de discer nir int uitivament e a
gr amati cali dade ou agr amati cal i dade de um enunciado, ist o é, se
um enunciado obedece ou não às regr as de funcionamento da
língua.
Ninguém comete er r os ao falar sua pr ópr ia língua mat er na,
assim como ninguém comete er r os ao andar ou ao respir ar . Só se
er r a naquilo que é apr endido, naquilo que constit ui um saber
secundário, obtido por meio de t reinamento, pr át ica e memor ização:
er r a-se ao t ocar piano, er r a-se ao dar um comando ao comput ador ,
er r a-se ao falar /escr ever uma língua est r angeir a. A língua mater na
não é um saber desse t ipo: ela é adqui r i da pela cr iança desde o
út ero, é absor vida junt o com o leit e mater no. Por isso qualquer
cr iança ent re os 3 e 4 anos de idade (se não menos) já domina
plenament e a gr amát ica de sua língua. O r esultado disso é, como
diz Per ini (1997:11), que “nosso conheciment o da língua é ao mesmo
t empo alt amente complexo, incr ivelment e exat o e ext r emament e
segur o”.
E o mesmo autor prossegue, afir mando (p. 13) que
Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-
las, mas por entendê-las.
Não é admissível que com um alfabeto tão restrito (apenas 23 letras!) se cometam
tantos erros ortográficos pelo Brasil afora. Estude com cuidado este capítulo para
integrar o grupo de cidadãos que sabem grafar corretamente as palavras da língua
portuguesa. [pg. 132]
Por quê? Por que, ao cont rário de out ras civilizações suas
contempor âneas, a gr ega não tem uma casta sacerdot al
monopolizador a dos livr os sagrados. A própr ia escr it a não é um
segredo dos governantes e escr ibas, mas é de domínio público e
comum, possibilit ando, agor a sim, a ampla difusão e discussão de
idéias.
Assim, se por um lado a escrit a pode ser apont ada como uma
das causas fundament ais do sur giment o de civilizações moder nas e
do desenvolviment o científico, t ecnológico e psicossocial das
sociedades em que foi adot ada, por out r o, não convém negligenciar
fat or es como as r elações de poder e dominação que governam a
ut ilização r est r ita ou generalizada de um código escr ito.
Ao convidar o leitor a fazer par t e do “gr upo de cidadãos que
sabem gr afar cor ret ament e as palavr as da língua por t uguesa”,
Cipro e I nfant e afir mam, implicit amente, que esse conheciment o
não é amplo e gener alizado (nem poderia ser : 60 milhões de
analfabet os!), mas sim r est rit o a um “gr upo de cidadãos”.
Out r a idéia ingênua dos autores é achar “inadmissível” o
númer o de er ros de or t ografia comet idos “pelo Br asil afor a” já que
nosso alfabet o tem apenas 23 let ras! Or a, o alfabeto t em 23 let r as,
sim, mas elas podem se junt ar em cent enas (senão milhares) de
combinações difer ent es, cr iando a r iqueza inumerável das palavr as
da língua por tuguesa. E essas combinações possíveis nada t êm de
coer entes: nosso sist ema or togr áfico, como explica M iriam L emle, é,
ao mesmo t empo, um sist ema de r epr esentação fonêmica, um
sist ema de r epr esent ação [ p g. 135] mor fofonêmica, um sist ema com
memória et imológica e um sistema que pr ivilegia uma var iedade
dialet al em det r iment o de out r a3.
Par a t er mos uma idéia das complexas combinações possíveis
ent re as let r as de nosso alfabet o e os sons que elas podem
r epresent ar , vamos ver as r elações que exist em ent re os fonemas
[k], [s], [š] (est e é o som da let r a x em xi xi) e [z] e suas possíveis
r epresent ações or t ogr áficas4
[ p g. 136]
3
Ver o interessante prefácio de Miriam Lemle ao livro Leitura, ortografia e fonologia, de Myrian
Barbosa da Silva.
4
Este quadro inspira-se no da p. 32 do livro de Myrian Barbosa da Silva, com pequenas alterações.
Cont ando o númer o de flechas, ident ificamos ao t odo 21
r elações ent re r ealização fonét ica e r epresent ação gráfica. M as se
fôssemos levar em cont a t oda as diver sidades de pr onúncia que
exist em no univer so da língua por t uguesa, no Brasil e for a dele,
cer t ament e encont r ar íamos muit as mais5. Vamos dar exemplos só
das 21 relações do nosso esquema:
1. QU → [ku]: obliqúe
2. QU → [kw]: quase
3. QU → [k]: quero
4. C → [k]: casa
5. C → [s]: céu
6. S → [s]: sol
7. S → [š]: festa (na pronúncia carioca, paraense, lisboeta, entre outras)
8. S → [z]: rosa
9. Z → [z]: azul
10. Z → [š]: raiz (nas mesmas pronúncias citadas em 7)
11. X → [s]: próximo
12. X → [ks]: fixo [pg. 137]
13. X → [z]: exame
14. X → [š]: xícara
15. Ç → [s]: aço
16. SS → [s]: osso
17. XC → [s]: exceto
18. XS → [s]: exsudar
19. SC → [s]: descer
20. SÇ → [s]: cresça
5
Gosto de propor o seguinte desafio às pessoas que ainda se iludem com o mito de que “o certo é
escrever assim porque se fala assim”: você sabia que a letra s pode representar o som do J em já? Depois
de alguns momentos de reflexão, dou a resposta: na pronúncia do Rio de Janeiro, de Belém ou de Lisboa,
numa palavra como MESMO O S tem “som de J”, e o próprio nome de Lisboa na fala de seus nativos se
pronuncia lijboa. Nessas pronúncias, uma frase como AS MESMAS BOAS GAROTAS soa aj mejmaj boaj
garotax, por causa de características fonéticas típicas do português (culto inclusive) falado nesses locais.
Além disso, na fala não-culta do Rio de Janeiro é comum a pronúncia mermo ou me'mo para o que se
escreve MESMO. A complexidade da relação letra-som, como se vê, é muito maior do que as pessoas em
geral pensam, sobretudo quando se leva em conta todas as variedades nacionais, regionais, sociais,
estilísticas etc. da língua.
21. CH → [š]: chave
DEZ CI SÕES
par a um ensino de língua
não (ou menos) preconceit uoso
6) Dar -se conta de que a língua por t uguesa não vai nem bem,
nem mal. Ela simplesmente VAI , ist o é, segue seu rumo, pr ossegue
em sua evolução, em sua t r ansfor mação, que não pode ser det ida (a
não ser com a eliminação física de t odos os seus falantes).
∞
[ p g. 145]
IV
O pr econ cei t o con t r a a l i n gü í st i ca
e os l i n gü i st a s
Vejamos um exemplo: a expressão “um dos que”. A língua permite que você diga:
“Carlos é um dos alunos que trabalha”; ou “um dos alunos que trabalham”. Há
professores que consideram mais lógica a concordância do verbo no plural. Outros
acham que a concordância deve ser no singular. Mas a língua admite as duas
possibilidades. O que não se pode fazer é optar por uma forma e considerar a outra
errada, como muitas vezes fazem as bancas examinadoras.
Evanildo Bechara é, sem a menor possibilidade de dúvida, o
mais impor t ant e gr amático br asileir o vivo. Apesar de sua inegável
competência como est udioso da língua, suas post uras polít icas e
pedagógicas não têm nada de r evolucionár ias, e o simples fat o de
per tencer à Academia Br asileir a de L et r as é exemplo de sua filiação
a um ideár io conser vador e elit ist a — ele já declarou, por exemplo,
que a função da escola é levar os alunos a falar “melhor e com os
melhores” porque na sua opinião exist e uma “necessidade da
vigência da hierar quização e da [ p g. 158] normat ividade”,
esquecendo-se de que a hierar quização só pode par ecer “necessár ia”
par a os que ocupam, evident ement e, o topo da hierar quia e se
consider am, nat ur almente, “os melhor es”...1 Or a, Pasquale Cipr o
Net o consegue ser mais conser vador e elit ist a ainda do que
Bechara. Par a o gr amát ico pr ofissional, “a língua admit e as duas
possibilidades”. Par a o colunist a da Fol ha, a admissão dessas
possibilidades repr esent a “devaneios” e “balela”. Agor a fica mais
fácil ent ender o que Pasquale chama de “por t uguês or todoxo”: é um
conceit o de língua cer ta que é mais cer t a ainda do que a língua dos
gr amát icos profissionais, da própr ia Academia Br asileir a de L et r as.
Em out r a coluna (28/5/1998) ele fala de “lingüistas defensores
do vale-t udo”, numa absoluta dist or ção do ver dadeiro papel do
lingüist a como invest igador de t odos os fenômenos da língua, e não
só como caçador de “err os” e juiz do uso.
Vejamos um últ imo exemplo dessa concepção obscur antist a que
Pasquale Cipr o Net o divulga da lingüíst ica e dos lingüist as, e que
em nada difer e da opinião de Napoleão M endes de Almeida. A única
difer ença ent r e os dois é que Napoleão nunca escondeu suas
1
Evanildo Bechara, “A sobrevivência da língua culta”, in Academia Brasileira de Letras na Imprensa
1999, Rio de Janeiro, ABL, 1999, pp. 63-70.
posições r et r ógr adas, t endo-as assumido com t oda fr anqueza e
nit idez ao longo de sua vida, ao passo que Cipr o Net o t enta dar
verniz “moder no” à sua at ividade, posando de pr ogr essist a. O
abismo ent re seu discur so e sua pr át ica, no [ p g. 159] entant o, é
amplo, lar go e fundo. Numa coluna publicada em 20/11/1997,
coment ando a fala de r epr esentant es do gover no numa ent r evist a
na t elevisão, Pasquale escreveu:
Quem assistiu à entrevista coletiva concedida pela equipe econômica no último dia
10 deve ter tido congestão de “de que”. Um dos membros da equipe, cujo nome é
melhor não citar, abusou do direito de usar a bendita expressão: “O governo
considera de que”; “Não nos parece de que esse caso”; “Penso de que não será”
etc.
Santo Deus! De onde o homem, graduadíssimo, professor, tirou tanto de? Os
verbos considerar, pensar e parecer pedem a preposição de? É óbvio que não.
Alguém pensa algo, alguém considera algo, algo parece a alguém. Onde está o de?
Perguntem ao homem.
Nada de “de que”: “Não nos parece que”, “Penso que”, “O governo considera
que”.
E agor a, ao at aque:
Alguns lingüistas (alguns), idiotas, dirão que a língua falada não merece reparo,
que a fala é sempre boa etc. Esses ociosos não conseguem perceber que os homens
não estavam na mesa de um boteco, batendo papo. Estavam falando para o país,
sobre um assunto técnico, usando linguagem teoricamente culta. Quem assiste a
esse tipo de transmissão normalmente acredita nessas pessoas, tem-nas como
modelo. Adolescentes que vão fazer vestibular ouvem o cidadão dizendo “de que,
de que, de que” e acham que isso é o máximo. A Fuvest faz uma questão a
respeito, como já fez há dois ou três anos. E muitos, ingenuamente, erram. E
alguns idiotas, ociosos, dizem que a fala é sempre boa, que isso e aquilo. [pg. 160]
Em seu númer o 1725 (novembr o de 2001), a r evi sta Veja publ i cou
uma extensa r epor tagem, anunci ada na capa, com o títul o “Fal ar e
escr ever bem, ei s a questão”. O texto, assi nado por J oão Gabr i el de
L i ma, dei xou a comuni dade dos educador es e l i ngüi stas estar r eci da
por causa da quanti dade de absur dos, di stor ções e acusações
gr ossei r as que conti nha. Em r eação a i sso, M ar cos Bagno escr eveu e
envi ou uma l onga car ta ao edi tor da r evi sta, não par a ser
publ i cada, mas par a mar car a posi ção dos pesqui sadores
compr ometi dos com o avanço da ciênci a br asi l ei r a di ante de
atitudes tão assumidamente obscur anti stas e r etr ógradas.
Custar, no sentido de “ser custoso”, “ser penoso”, “ser difícil” tem como sujeito
uma oração subordinada substantiva reduzida. Observe:
Ainda me custa aceitar sua ausência.
Custou-nos encontrar sua casa.
Custou-lhe entender a regência do verbo custar.
No Brasil, na linguagem cotidiana, são comuns construções como “Zico custou a
chutar” ou “Custei para entender o problema” [...]
Na língua culta, essas construções em que custar apresenta um sujeito indicativo
de pessoa são rejeitadas. Em seu lugar, devem-se utilizar construções em que surja
objeto indireto de pessoa: “Custou a Zico chutar” (= Custou-lhe chutar”).
Também em seu muit o divulgado livr o Por que (não) ensi nar
gr amáti ca na escol a (Ed. M er cado de L et r as, 1996), Sírio Possent i
faz questão de enfat izar (pp. 17-18):
O PAPEL DA ESCOLA É ENSINAR LÍNGUA PADRÃO
[...] adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da
escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar
condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco
político e ideológico.
“O uso da língua procede da intenção para a convenção” [...] ao passo que a escola
procede infelizmente ao contrário, isto [pg. 180] é, das convenções lingüísticas
para as intenções de comunicação; intenções, além disso, quase sempre artificiais
e impostas ou sugeridas pelo mestre.
E aquele que é consider ado hoje, inclusive int er nacionalmente,
como o nome mais impor t ante da pesquisa cient ífica sobr e o
por tuguês br asileir o cont empor âneo — o Pr of. Ataliba T. de
Cast ilho, da USP, at ual pr esident e da Associação de L ingüíst ica e
Filologia da Amér ica L at ina e coor denador do gr ande Pr ojet o da
Gr amát ica do Por tuguês Falado (projet o apresent ado de maneira
dist or cida e pr econceit uosa no númer o 1710 de V EJA ) — escr eve
com t oda clar eza em seu livro A língua fal ada e o ensi no de
português (Ed. Cont ext o, 1998):
Afinal, o que acont eceu, ao longo dos séculos, segundo Cast ilho,
foi que
a gramática, que não era uma disciplina autônoma, assumiu na escola uma vida
própria, desgarrada de suas origens, e concentrada apenas na sentença, na palavra
e no som, obscurecendo-se sua argumentação e empobrecendo-se seu alcance.
At enciosament e,
M ARCOS BAGNO
[ p g. 183]
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