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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT

Corpo escravizado: diferentes olhares e discursos médicos.

Iamara da Silva Viana

O corpo escravizado fora objeto de diferentes usos por agentes sociais e políticos
diversos, evidenciando os múltiplos olhares acerca do mesmo. Neste trabalho,
apresentamos uma reflexão sobre a questão tendo por base as proposições do médico
francês Jean-Baptiste Alban Imbert e do médico brasileiro David Gomes Jardim, na
primeira metade do século XIX. Objetivamos discorrer sobre suas proposições relativas
ao corpo e doença, repensar o termo raça e o modo como o mesmo era aplicado a partir
das visões médicas, estrangeira e brasileira. Para tanto, utilizaremos o Manual do
Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as enfermidades dos Negros escrito em 1839
por Imbert, e a tese defendida por Jardim na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
em 1847, intitulada Algumas Considerações sobre a Hygiene dos escravos.

Nesse sentido, cabe-nos mencionar que na primeira metade dos oitocentos, os


corpos escravizados foram utilizados no espaço urbano como escravo ao ganho,
carregadores, marceneiros, pedreiros, vendedores. No rural, trabalhadores domésticos,
como cozinheiros, lavadeiras, engomadeiras, rendeiras, amas de leite e, principalmente,
como agricultores. A demanda pelo café, principalmente pelos Estados Unidos a partir
de 1830, alavancou a produção no Vale do Paraíba Fluminense possibilitando aumento
considerável do número de escravizados nas fazendas. Contudo, a partir de 7 de
novembro de 1831 a entrada destes trabalhadores passou a ser considerada ilegal se
realizada entre continentes, como mencionado no artigo 1º. da lei: “todos os escravos,
que entrarem no territorio ou portos do Brazil, vindos de fora, ficam livres” (BRASIL,
1831).
A crescente necessidade por mão de obra escravizada nas fazendas que
aumentavam sua produção para atender a demanda externa, criou diferentes formas de
burlar a lei. Afinal, nas duas décadas que seguiram a sua promulgação,
aproximadamente mais de 750 mil negros “foram introduzidos no território nacional por
contrabando, permanecendo ilegalmente escravizados, assim como seus descentes


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro / UERJ.

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(CHALHOUB, 2012: 30). Ainda que inicialmente a questão pudesse ser satisfatória, um
problema pretérito ainda se fazia presente, qual fosse, o alto índice de mortalidade
escrava. Fatores diversos causavam o óbito precoce desses trabalhadores tais como,
alimentação inadequada, vestuários, higiene, trabalho à exaustão. Segundo Jacques Le
Goff o corpo tem uma história, diferentes histórias, posto que um mesmo corpo interage
e transita em diferentes espaços. E qual seria a história destes corpos escravizados na
primeira metade do século XIX?
Em se tratando dos escravizados, a preocupação com seus corpos iniciava-se
ainda na África continuando na chegada ao porto até o cotidiano das fazendas. Muitos
morriam ainda em alto mar, outros tantos adoeciam. Para o fim a que se destinavam
deveriam apresentar-se sadios e propícios para o trabalho. A apreensão com as inúmeras
perdas tinha por fundamento o alto índice de mortalidade e moléstias desenvolvidas.
Somente no Rio de Janeiro morreram quase dois mil e oitocentos escravizados entre os
anos de 1840 e 1849 (KARASCH, 2000: 144). Jean-Baptiste Alban Imbert defendia tão
alto número posto que o negro destinado a viver nos trópicos e a suportar seu clima
quente “vê seu corpo submettido a toda sua influencia, e he por isso mais exposto ás
enfermidades (...)” (IMBERT, 1839: 18-19). Na concepção de Imbert a origem do negro
e do clima do antigo território favorecia o desenvolvimento de moléstias, definia assim,
uma das diferenças entre estes e os nascidos no Continente Europeu de clima mais
temperado.
Em pesquisa realizada no município de Vassouras entre os anos 1840 e 1880
contabilizamos 6.722 mortos no livro de Óbitos desta Freguesia. Destes, 3.562 eram
livres, sendo 3.412 nascidos livres (95,78%) e 150 libertos e forros (4,22%). O livro
paroquial de óbitos de escravos teve como registro o quantitativo de 3.1601. Vulneráveis
as condições do clima como indica Imbert, a pouca vestimenta, alimentação inadequada,
pouca higiene, facilmente eram levados ao óbito prematuro. As doenças que acometiam
os escravizados eram variadas, entretanto, as que correspondiam ao grupo das infecto-
parasitárias respondiam pelo maior quantitativo de falecimentos como aponta a tabela 1.

Tabela 1 - Doenças de escravos listadas nos Registros Religiosos e nos Inventários de proprietários.

1
Dados obtidos na pesquisa de Mestrado realizada em Vassouras no Centro de Documentação
Histórica. Foram analisados os livros de óbito de livres/libertos e de escravos.

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Grupo de Moléstias Livros de Óbitos %* Inventários %*


Infecto-parasitárias 60 21.51 50 2.44
Sistema Circulatório 31 11.11 12 0.58
Sistema Digestivo 12 4.30 9 0.44
Sistema Nervoso 22 7.89 2 0.10
Sistema Respiratório 24 8.60 43 2.10
Osteomuscular 4 1.44 51 2.48
Causas Violentas / Defeitos diversos 14 5.01 963 46.97
Fonte: Registros de Óbitos de escravos e Inventários post mortem, 1840-1880. CDH.
*Percentuais calculados com base nos totais de cada fonte para cada grupo de doenças.

A tabela acima demonstra questão relevante posto que, nos Registros de Óbito
paroquiais, as doenças infecto-parasitárias foram as mais significativas, todavia, nos
Inventários de proprietários são as Causas Violentas que apresentam número elevado:
quase metade do total dos escravizados arrolados. Provavelmente, muitos cativos
morriam destas, mas nem sempre ocorria o devido registro. Contudo, no caso dos bens
inventariados, tais causas correspondiam à diminuição do patrimônio, tendo em vista a
diminuição do valor da propriedade escrava. Da mesma forma, incidia na redução da
mão de obra na produção do café.

Sendo mais propício à enfermidades e com a sua possível extinção, o corpo


escravizado parece receber maior atenção após 1831. Mais do que burlar a lei era
necessário garantir maior sobrevida aos mesmos. E aqui, os discursos médicos ganham
espaço, bem como a tentativa de fazendeiros em proporcionar atendimento aos doentes.
De forma que, nos foi possível localizar nos inventários post mortem de proprietários
em Vassouras referência a 5 barbeiros escravos na década de 1840. Nenhuma escrava
teve ofício referente a tratamento de doenças ou cura relacionado a seus nomes. Para os
anos entre 1850 e 1880 verificamos a existência de 11 barbeiros, 8 enfermeiros e 1
servente de enfermaria. Entre as escravas para o mesmo período, identificamos 3
enfermeiras e 2 parteiras (VIANA, 2009: 44-46). Provavelmente as fontes indiquem que
o discurso médico científico postulado a partir de 1830 sobre imperativa urgência de
melhores cuidados com os escravizados, tenha de fato sido interiorizado pelos
proprietários rurais nas décadas seguintes.

A medicina no início do século XIX utilizava esse mesmo corpo para ampliar
conhecimentos por meio do estudo de enfermidades e principalmente por meio das
necropsias, mencionadas nos Anais do Semanário de Medicina do Rio de Janeiro e nas
teses médicas defendidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Na visão dos
médicos do Semanário, “O saber he pois essencial, e indispensavel no bom Medico, e
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melhor Medico se reputa aquelle que he mais instruído, quer pelo estudo, quer pela
experiência” (SEMANÁRIO, 1831). Experiência construída com a prática garantida a
partir do estudo do corpo doente e do cadáver como no caso de “Felippa Maria do
Nascimento, preta forra de idade de cincoenta annos pouco mais ou menos, de huma
constituição assaz deteriorada a bebidas alcoholisadas”, que estando doente há oito dias
foi levada a presença do Senhor José Antonio de Carvalho cirurgião assistente. Felipa
diagnosticada com “Febre Intermitente Perniciosa Cerebral” falece e o estudo de seu
corpo foi descrito em ricos detalhes pelo médico em questão, registrado em 15 de junho
de 1829 e publicado em 21 de outubro de 1830 (SEMANÁRIO, 1830: 10).

Dessemelhante do corpo branco e europeu, o corpo escravizado e africano ou


crioulo fazia jus a cuidados especiais. Conhecê-lo tornar-se fundamental para boa
compra, esta entendida como vida útil dilatada e, principalmente, sem o
desenvolvimento de doenças. Reconhecer traços físicos e defeitos possibilitava não
errar, adquirir escravos que garantiriam mão de obra e lucros.

As grandes fazendas do Vale do Paraíba Fluminense utilizavam em ampla escala


tal força de trabalho exaurindo ao máximo o lucro esperado. E a partir da lei que punha
fim ao tráfico transatlântico, o aumento do preço do cativo incidiu diretamente na forma
do tratamento dado aqueles trabalhadores. No caso da medicina, alguns médicos
tentavam “instruir” fazendeiros a cuidar de seu plantel, de sua propriedade, pois dela
dependia para permanecer no seu status quo. Instruir significava demonstrar aspectos do
corpo humano e de como intervir em casos de fraturas, sangramentos, febres, dentre
outros males. Nesse sentido, apresentamos uma reflexão sobre tais questões a partir da
visão de dois médicos: um estrangeiro, outro brasileiro.

Os médicos: Jean-Baptiste Alban Imbert e David Gomes Jardim.

Jean-Baptiste Alban Imbert, já mencionado acima, chegou ao Império do Brasil


no ano de 1831, o mesmo em que a Lei de sete de novembro pôs fim ao Tráfico
Transatlântico. Doutor em Medicina pela Faculdade de Montpellier na França teve seu
diploma reconhecido e confirmado pela Academia de Medicina do Rio de Janeiro, por
meio da lei de 03 de outubro de 1832. Fora aceito como membro titular pela Academia
Brasileira de Medicina em 15 de outubro de 1835, com o nome abrasileirado de João

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Baptista Albano Imbert. Da mesma forma, foi membro honorário da Sociedade Real de
Medicina de Marseille e membro efetivo das Sociedades Auxiliadoras da Indústria
Nacional, e literatura do Rio de Janeiro e Cirurgião Ajudante Maior da Marinha
Imperial Francesa (IMBERT, 1839: 16).

Teve publicadas as obras: Ensaio higiênico sobre o clima do Rio de Janeiro


(1837); O Charlatanismo: uma palavra sobre o charlatanismo e os charlatães (1837) e
o Guia médico das mães de família ou A infância considerada na sua hygiene, suas
moléstias e tratamentos (1843). Para esta reflexão utilizamos a segunda edição do
Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as Enfermidades dos Negros,
generalizado às necessidades médicas de todas as classes. Edição aumentada em um
volume, publicada em 1839 pela Tipografia Nacional do Rio de Janeiro. Este, composto
por uma introdução, dez títulos e quarenta capítulos, todos organizados por seções ou
classes, totalizando 688 páginas. Para Imbert, o escravizado era vítima de alto número
de doenças por que:

Pelo que temos dito he facil conceber-se, que homens sem vínculos sociaes
na terra, mal nutridos, mal vestidos, expostos a todas as injurias do ar,
sujeitos a hum trabalho quasi continuo, entregues demasiadamente á
inclinação de prazeres grosseiros, e de licores fortes, não podem conservar
sua saúde. Por isso nota-se que elles não resistem longo tempo; molestias os
assaltão, e hum tratamento, quasi sempre mal entendido, dão cabo de seus
dias (IMBERT, 1839: XXI).

Esse corpo africano ou crioulo, preto ou pardo, escravo ou liberto não era visto
como igual. A sociedade escravista imperial criava, na medida em que a miscigenação
se desenvolvia, diferentes formas de hierarquização. Existiam duas raças: a branca e a
negra segundo Imbert (1839: XVIV), e o olhar da medicina utiliza tal fator para
entender as diferentes moléstias que causavam mortes prematuras. Como apontado na
citação acima, as causas para uma vida tão curta era o “estado da atmosfera”; a má
alimentação, causa de “indigestões, saburras, languidez na assimilação, e todas as
enfermidades da pobreza”; o uso da cachaça que “produz gastro-interites, ou irritações
do tubo digestivo, scirros no estomago” e privação das “poucas faculdades intellectuaes
que possue”; a libertinagem e a preguiça, determinante nas “enfermidades
condemnando os orgãos á inacção” (IMBERT, 1839: XX-XXI). E condição precípua
para este médico no tratamento de qualquer doença era conhecer o corpo.

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Observar o corpo escravizado no momento da compra ofereceria garantias de


cativos saudáveis, que não desenvolvessem doenças futuras. Imbert ensinava que,
tendo o cativo tumores, “mormente sob a queixada”, era sinal de “afecção escrofulosa”,
fatores que poderiam indicar o desenvolvimento de tísica, ou tuberculose, como era
mais conhecida. No caso das hérnias, atentar “que o baixo ventre não seja saliente, nem
o embigo mui volumoso (...)”. Se a preocupação fosse adquirir bons trabalhadores
instruía: “os negros da Costa do Ouro são reputados os melhores escravos, e são, á
excepção dos Minas, estatura regular, fortes, bons trabalhadores, sobrios, e orgulhosos:
o Mina he alto, bem conformado, e de aspecto altivo” (IMBERT: 1839: 2). Preocupou-
se o médico em descrever minuciosamente a anatomia humana, embora soubesse da
dificuldade da tarefa a qual se dispunha. Escrevera assim, de forma didática
viabilizando um conhecimento básico sobre o corpo, o moral, principais doenças e
tratamentos viáveis para cuidar dos escravizados. Segundo ele:

(...) por huma instrucção propria a dirigir os Proprietarios distantes de todo


o soccorro, no tratamento das enfermidades dos negros, de seus
estabelecimentos. Havemos percebido, que para alcançar o fim a que nos
propomos, era preciso clareza nos princípios, simplicidade nos meios, e
pormo-nos ao alcance das pessoas, para quem mais particularmente
escrevemos. A nossa linguagem será por tanto, o mais que nos fôr possivel ,
clara e precisa; limitar-nos-hemos a percorrer a classe das enfermidades, a
que os negros são mais especialmente expostos. Se conseguirmos
desempenhar convenientemente a nossa tarefa, cuja difficuldade assas
conhecemos, ser-nos-ha permittido entregar-nos á satisfação de nosso
coração, como primeira recompensa de hum util trabalho (IMBERT, 1839:
3-4).

Indicou tratamentos com plantas locais, ensinou como limpar uma ferida
adequadamente, estancar o sangue em caso de cortes profundos e até mesmo como
produzir corretamente um cataplasma, muito utilizado à época. Tudo isso utilizando
“clareza nos princípios” e “simplicidade nos meios”, afinal não escrevia para seus pares,
mas para homens que cotidianamente cuidavam de fazendas e de um significativo
número de escravizados.

Seu discurso disputava naquelas primeiras décadas do século XIX espaço com
outros atores da arte de curar: curandeiros, boticários, feiticeiros e barbeiros. Diferentes
poderes pleiteavam garantir para si lugar de destaque. Afinal, o poder pode ser
entendido “como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia.
Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado

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como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede” (FOUCAULT,


1979: 183). Nesse sentido, o discurso de Jean-Baptiste Alban Imbert buscava sustar
práticas de cura e de controle de corpos, tendo entrado em conflito com muitas outras.
Ele e seu manual materializaram estratégias desse discurso médico que se quer mais
atuante e presente na sociedade escravista brasileira do oitocentos.

Natural da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, David Gomes Jardim


apresenta à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 13 de dezembro do ano de
1847, a tese Algumas Considerações sobre A Hygiene dos Escravos, uma das poucas
que trazem no título a designação escravo. Expõe seus motivos na introdução
mencionando a escolha do tema: “o homem, qualquer que seja sua posição na
sociedade, pobre ou rico, escravo ou senhor, tem direito a demandar os cuidados do
medico todas as vezes que as alterações de sua saude os exijam” (JARDIM, 1847:1).
Isso porque segundo Jardim, concordando com questões levantadas por Imbert,

a mudança de clima, a differença de tratamento, um trabalho continuo e


desmedido, e até a fome, raríssimas vezes interrompida, de envolta com a
triste consideração de seu penoso estado, são outras tantas causas de
singulares e gravissimas enfermidades: merecem pois serios e reflectidos
cuidados (JARDIM, 1847:1).

David Jardim aponta que a mortandade de escravizados independia do clima do


país. Segundo ele, “em todo o lugar em que a agricultura está entregue a mãos de
escravos, observam-se os mesmos effeitos, as mesmas affecções, que se tornam mais
graves em razão do numero e do concurso das outras causas morbificas communs á
generalidade dos homens” (JARDIM, 1847: 6). Buscando explicações para os
resultados pessimistas na insalubridade do clima nas relações escritas e na memória dos
habitantes, não conseguira grandes esclarecimentos. Então, com um olhar voltado para
as minúcias das causas de tantos efeitos, chegou à conclusão de que todas vinham “da
omissão das mais simples leis de hygiene, e da incerteza das bases do tratamento das
molestias desta classe de homens” (JARDIM, 1847: 6). Sublinha a diferença entre
brancos e negros, posto que formassem classes distintas.

Algumas causas se encontram como as proferidas por Imbert uma década antes,
sendo elas:

a alimentação, a qual não sendo variada, constando unicamente de


substancias feculentas, em pequena quantidade, e mal preparada, não póde

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subministrar a reparação necessaria: o uso tão excessivo que fazem os


negros das bebidas alcoholicas; a falta quasi completa de vestuario,
mórmente no Rio de Janeiro, onde a atmosphera está sujeita a variações tão
freqüentes e rapidas, que não se póde soffer sua influencia sem grande
detrimento de saude; um trabalho excessivo, muitas vezes além de suas
forças; a falta de repouso preciso ao corpo e os domicilios sem as condições
convenientes, e, mais que tudo, a incuria com que são pensados em suas
doenças (JARDIM, 1847: 6).

Outro ponto comum entre os médicos era o uso que os negros faziam das
bebidas alcoólicas, um vicio para o doutor Jardim. Para provar sua proposição narra o
seguinte fato:

um preto, que tinha de idade noventa e tantos annos, e que se achava já


acurvado sob o peso da velhice, sahia todas as noites, e ia a uma freguezia
que distava uma legua do lugar de sua residencia, com o fim de comprar
aguardente, para satisfazer a impetuosidade de seu desejo;” (JARDIM,
1847: 8-9).

Para Jardim,

as bebidas alcoholicas tomadas em quantidade tão excessiva devem


irremissivelmente produzir effeitos funestos. O definhamento geral da
sensibilidade, as inflammações chronicas de intestinos e fígado, são
resultados do abuso destas bebidas, o qual todos os auctores concordam em
dar como uma das causas das enfermidades que affligem a espécie humana
(JARDIM, 1847: 9).

No que tange ao uso inadequado de cachaça, ensinava: “as bebidas alcoholicas


tomadas em quantidade tão escessiva devem irremissivelmente produzir effeitos
funestos” (JARDIM, 1847: 9). Sendo estes, o definhamento geral da sensibilidade, as
inflamações crônicas do intestino e do fígado. Muitos autores apontavam de fato o uso
imoderado de bebidas alcóolicas como uma das causas das enfermidades que assolavam
os negros. Todavia, ensinava Jardim que as mesmas deveriam somente ser servidas
quando “as necessidades exigirem”, ou seja, “sempre que tiverem sido molhados, ou
então em dias festivos, para regozija-los” (JARDIM, 1847: 9).

No Artigo Segundo, David Jardim, reflete sobre a importância da roupa no


desenvolvimento de moléstias, posto que o homem é “sensível ao ultimo ponto á
influencia atmospherica” (JARDIM, 1847: 10), encontrando nas vestimentas uma forma
de preservar o corpo das mudanças do clima. A pele é o primeiro órgão a sofrer

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influencia da temperatura climática, reagindo “secundariamente sobre os pulmões e


outros órgãos”. Contudo, o “vestuario dos negros nas fazendas não offerece uma
garantia segura contra as intemperies; porquanto, cada um tem por anno um termo de
roupa, isto é, uma camisa e uma calça!” (JARDIM, 1847: 10). Estando constantemente
exposto as mudanças climáticas, chuva e calor, seria difícil para o escravizado manter
uma boa saúde. Sendo assim, o vestuário para o médico é tão importante quanto o
alimento na preservação do corpo saudável. A solução quanto ao vestuário seria,

aconselhamos que os escravos tenham a roupa necessaria, a qual seja


sempre lavada, para se não impregnar de materias nocivas; porquanto, si
houver vestidos de sobrecellente, não serão tão continuadas as repercussões,
que bem funestas são em suas conseqüências; aconselhamos mais que elles
sejam de linho ou de lãa, conforme a estação; e que se tenha a maior cautela
em preservar a cabeça dos raios do sol ou da humidade, o que se póde
realisar com o uso de Barretos (JARDIM, 1847: 11).

O Artigo Terceiro privilegia as tarefas cotidianas informando que “si a


ociosidade é perniciosa, o abuso do trabalho ainda é mais” (JARDIM, 1847: 11). Jardim
se diz convencido de que um terço dos escravizados que falecem no Brasil tem como
causa o trabalho excessivo. Criticando o modo como o serviço é distribuído entre
negros de “constituição débil” e os de “constituição robusta”, assinala ser este um fato
comum. Para este médico, a utilização da mão de obra escravizada de modo imoderado,
durante muitas horas de trabalho, sob forte sol ou chuva provocava o desenvolvimento
de febres de insolação, dores de cabeça, apoplexias. O trabalho noturno causava
“ophthalmias” que poderia levar a cegueira. Instruía pois, “regulai os trabalhos dos
vossos escravos segundo as forças de cada um; daí-lhes a conveniente folga; e sabereis
então que a observância de uma simples lei de hygiene torna-se muitas vezes um agente
poderoso para a conservação da saude” (JARDIM, 1847: 12).

Considerações Finais:

Ensinar fazendeiros tão distantes dos conhecimentos científicos não era tarefa
fácil. Mas, Jean-Baptiste Alban Imbert e David Gomes Jardim demonstraram grande
esforço utilizando uma pedagogia médica para atender as necessidades do momento.
Observadas as peculiaridades dos documentos analisados - Imbert escreve um manual
para fazendeiros, David Jardim uma tese para obter o grau de doutor em medicina - e a

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distância de uma década que os separava, percebemos a preocupação em poupar a mão


de obra escravizada a partir do fim do Tráfico Transatlântico.

A entrada clandestina desses indivíduos provocou um aumento significativo de


escravizados no Império do Brasil, especificamente para atender a demanda das
fazendas de café do Vale do Paraíba Fluminense. Modificações no modo de tratar ou
olhar o escravizado fora alterado devido à nova conjuntura, afinal até quando o
comércio clandestino se manteria? Nesse sentido, os médicos como membros
importantes da construção desse Império contribuíram por um lado com seus diferentes
saberes para minimizar as perdas de patrimônio e de mão de obra, e por outro,
garantindo a maximização da produção cafeeira para atender a demanda da economia
crescente.

Ambos concordavam que a atuação de indivíduos que não fossem capacitados


nas artes de curar era um dos grandes males que acometiam de morte os escravizados.
Enquanto David Jardim identifica a higiene como o maior problema das causas mortis
entre escravos, podendo ser identificada na manutenção de alimentos, no seu preparo ou
na conservação das roupas, Jean-Baptiste Alban Imbert tem no conhecimento do corpo
o seu principal argumento. Ambos apresentam ideias similares, mesmo escrevendo em
períodos diferentes. Tentavam assim demonstrar que, para além das ações de agentes
públicos, traficantes e senhores de escravos para burlar a lei que pusera fim ao tráfico
transatlântico, a medicina poderia contribuir para a preservação daquela mão de obra.

Fontes:

Anais do Semanário de saúde Publica pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro.


Biblioteca Nacional, 1831-1834.

BRASIL. Lei de sete de novembro de 1831. Disponível em:


http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-14/Legimp-
14_3.pdf. Acesso em 23 mai 2104.

IMBERT, J.B.A. Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as


enfermidades dos Negros. Typographia Nacional, 1839.

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JARDIM, David Gomes. Algumas Considerações sobre a hygiene dos escravos.


Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1847.

Bibliografia:

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oitocentista. 1ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Org. e Trad. Roberto Machado. Rio de


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Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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In: Chalhoub, Sidney et al. (org). Artes e Ofícios de Curar no Brasil: capítulos de
história social. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. p. 342-343.
Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9
Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT

Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG


08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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