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República em Migalhas
História Regional e Local
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Janaína Amado, Rosa Maria G, Silveira, Vera Alice C. Silva, Paulo


Henrique Martins, Sandra Jatahy Pcsavcnto, Maria de Lourdcs M. Janoui,
Maria Clara T. Machado, José Batista Neto, Ana Maria Burmcstcr,
Francisco Moracs Paz, Marionilde Dias B. Magalhães, Denise Monteiro
Takcya, Maria de Fátima Gomes Costa, .

Coordenação de Marcos A. da Silva

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930.23 R426m
DIRBt - UFU MON 03825/92

Editores: Maria José Silveira, Felipc José Lindoso, Márcio SOU7..a


Capa de MZ Produções \ \11\1\ \\1\\ 11\\\ 11\\\ 11\1\ \\1\11\\1\ \1\1\ \\1\11\\\1 \\1\ \11\
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Copyright 1990 by © ANPUII (Associação Nacional dos Professores Universitários de
História). Direitos para publicação adquiridos pela Editora Marco Zero, Rua Rodrigo
Cláudio, 180, Aclimação, São Paulo, SI' - CEP 01532 - Telefone: (01 I) 287 1935.

ISBN 85-279-0101-3

Editora Marco Zero


A primeira edição deste livro foi publicado em abril de 1990. em co-cdição com o
Programa Nacional do Centenário da República
e bi-Ccntcnário da Inconfidência Mineira
- MCT/C"NPq
Sumário

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pr escu tução
--=; História e região: reconhecendo e construindo espaços
Janaína Amado

Coleção Onde está a República? Perspectivas mctodológicns


Dirigida por Marcos A. da Silva

<, 17
Região e História: Questão de Método
Outros livros da Coleção:
Rosa Maria Godoy Silvcira
Caricata República de Marcos A. da Silva
Sob a Verdade Oficial de Silvana Goulart
Vitória da Razão de Maria Aruonicta Antonacci 43
Tramas e Fios de Heloisa P. Cardoso "'0Regionalismo: o enfoque mctodológico e a concepção histórica
Yoltolino, as Raizes do Modernismo de Ana Maria Ilelull.o Vera AIÍl'e Cardoso Silva
Os Trabalhadores em Serviços de lIeloisa de Faria Cruz
O Trem da llistôria de Maria do Rosário Peixoto
Uma República se Fazenda de Antonio Almeida 51
A Dornesticaçâo dos Trabalhadores nos Alias 30 de Zélia l.opcs d.1 Silva O Nordeste e a questão regional
.- ndo de Denise Bcnuzzi Santos' A nn a Paulo IIcnrique Martins
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERlANDIA
01"81- DIRETORIA DE BiBliOTECAS 67
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<, > História regional e transformação social
Sandra Jatahy Pcsavcnto

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~ Valor Cr$.•••..dZtQ..tfCl/2
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r Rsc. em__ •..../ 05'. ,,g~.NE /-_...__.. Estudos de caso
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N. F,acal~8 d'_LL Historiografia: uma questão regional?
Reg.J.l2 5 "..... Dataoo~.1:_L•...•.-I .._.•... Maria de Lourdcs Monacn Janotü
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Esta coletânea de textos foi proposta no Xiii Srmpósio da Associação Nacional
de Professores Universitários de lIistória, ANPUII (Curitiba, julho de 1(85), a partir
A pobreza urbama ótica do capital
de mesa-redonda então realizada sobre lIistória Regional. Sua organização se deu de Maria Clara Thomaz Machado
1985 a 1987, quando a ent idade foi presidida por Caio César Bosehi (U FMG) e teve a
Comissão de Publicações composta por Arma Maria Martincz Correa (UNESP/Assis),
Déa Ribeiro Fcnclon (PUC/SP), José Jobson A. Arruda (USP), Marcos Antonio da
Silva (USP) e Michacl MaeDonald Ilall (UNICA~IP).
~

\ 121
Apresentação
O estado visto pela lente regional
José Batista Neto
História e Região: Reconhecendo e
145 Construindo Espaços
O paranisrno em questão
Ana Maria Burmester, Francisco Morues Paz c Mar iunilde Ianaina Amado"
Dias n. Magalhães

161
A cultura do algodão no Rio Grande do Norte Este volume reúne ensaios, de autoria de historiadores brasileiros, que
Dcnis.e Mont eiru Tuk cya apresentam um tema em comum: História e Região. Alguns dos trabalhos
foram apresentados em Congressos e Simpósios (inclusive, no XIII
173
A luta pelo voto: o caso do Tanque Novo Sirnpósio Nacional da ANPUH, realizado em Curitiba, sobre a mesma
Mar ia de Fáí imu Gomes Costa tcmática); outros foram escritos especialmente para integrar este livro.
O fato de se estar publicando um volume inteiro dedicado ao assunto
"História e Região" revela o crescente interesse dos historiadores brasileiros
pela questão regional. Nesta coletânea, a questão é analisada sob os mais
diversos ângulos - do teórico ao documental, do historiográfico ao político,
ao econômico, do social ao ideológico -, por autores residentes em vários
Estados, seguidores de linhas de pensamentos e trabalhos diferentes e, em
alguns casos, até divergentes. Isto é ótimo pois faz deste volume um painel
expressivo das principais tendências e preocupações que atualmente nortciam
os estudos sobre História e Região no Brasil.

Histór la e região: o desafio teórico

Tinha que acontecer: à medida em que se multiplicam pelo país os


cursos de pós-graduação e os estudos históricos de caráter monográfico, a
questão regional se impõe naturalmente, como parte integrante das próprias
pesquisas. Como analisar, por exemplo, o processo de colonização do
Centro-Oeste ou de urbanização no Nordeste sem precisar o que se entende
por Centro-Oeste ou Nordeste, sem definir o conceito de região, suas
premissas e conseqüências? O estágio alcançado pelas pesquisas históricas
no país não permite mais contornar o problema, fugir ao desafio teórico. E
os historiadores compreenderam isto.

* Doutora em História Econômica pela FFLCIl/USP e professora da Graduação c Pós-


Graduação em lIistória pela UFGO. lendo sido Pró-Reitera de Pós-Graduação c Pesquisa na
UFGO. Publicou a Revolta dos Mucker, livros didáticos e ensaios. É bolsista de pesquisa no
Wilson Conter, Washington De.
Não por mero acaso, o encontro dos historiadores com a questão
regional coincide com o momento em que o conceito de "região" passa por Esta nova concepção tem a grande vantagem de atualizar o conceito de
profundas transformações, propostas principalmente pelos gcógrafos. Mui- região, livrando-o da influência de correntes de pensamento já anacrônicas,
tos gcógrafos têm abandonado a antiga e difundida utilização dctcrminista do como a do dctcrminismo naturalista, e de oferecer uma série de
conceito como sinônimo de "região natural", isto é, de um conjunto possibilidades novas e enriquecedoras de análise. Por outro lado, ao aliar
relativamente homogêneo de elementos naturais - tais como clima, relevo, espaço e tempo, as categorias fundamentais da Geografia e da História, o
vegetação, hidrografia etc -, cuja influência se sobrepõe li ação humana e até novo conceito oferece ainda a vantagem adicional de permitir e, de certa
mesmo a determina. forma, até de pressupor, uma colaboração estreita entre geógrafos e
Muitos geógrafos têm também rejeitado o uso do conceito para historiadores, o que é salutar.
designar um espaço composto por um conjunto de indicadores selecionados Apesar destes c de outros aspectos extremamente positivos, é preciso
previamente pelo pesquisador (tais como índices de produção agropccuãria e ter em mente duas coisas: a) o novo conceito de região ainda apresenta
industrial, níveis de renda etc. para configurar regiões econômicas; ou pontos obscuros; b) sua utilização, longe de representar uma questão
número de habitantes, taxa de natalidade e mortalidade ctc, para configurar resolvida, na realidade se constitui em um desafio para os estudiosos.
regiões demográficas). Por serem mcnsurávcis, estes índices, assim como as Entre os pontos ainda não suficientemente esclarecidos, estaria, a nosso
"regiões" que configuravam, foram durante algum tempo considerados não ver, a própria noção de "totalidade" que nortcia o conceito e da qual a região
só "confiávcis" como "neutros" e "objetivos", o que lhcs confcr ia também o é parte integrante. De qual "totalidade", afinal, se está falando? Os gcógrafos
status de "científicos". Atualmente, vários geógrafos já têm mostrado que a não são unânimes a respeito. Ao contrário: há os que privilegiam a articu-
seleção dos índices para compor a região ou é fortemente subjetiva, ou lação entre modos de produção, os que dão maior importância à conexão
responde a alguns interesses específicos, como, por exemplo, interesses da entre as classes sociais, os que ressaltam a ação do Estado ctc ... 2. É evidente
parte do Estado. Além do mais, afirmam, este conceito de rt'gino é incapaz que, dependendo da noção de "totalidade" adotada, se obterá diferentes regiões.
de apreender a historicidade e as contradições sociais que ill'lll\'gnam um De qualquer forma, todos estes conceitos se baseiam na teoria marxista
determinado espaço. e, de uma maneira ou de outra, se relacionam à idéia de "modo de produção",
A partir da chamada "geografia crítica" (que incorpora as premissas do que acaba envolvendo a todos. Exatamente nisto reside o grande desafio para
materialismo dialético e histórico), alguns gcógrafos têm proposto um novo os especialistas: o uso do novo conceito de "região" absorve absolutamente
conceito de região, capaz de apreender as diferenças e contradições geradas toda a polêmica que cerca o estudo dos modos de produção. E convenhamos:
pelas ações dos homens, ao longo da História, em um determinado espaço. trata-se de uma das mais acirrada" polêmicas da área das chamadas Ciências
Para estes geógrafos, a organização espacial sempre se constitui em uma J Iumanas (uma área conhecida justamente pela quantidade e profundidade dos
categoria social, fruto do trabalho humano e da forma dos homens se seus debates ... ), em especial, quando referida ao espaço americano, africano e

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relacionarem entre si e com a natureza. Partindo desse quadro teórico, asiático.
definem "região" como a categoria espacial que expressa uma cspccificidadc,

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uma singularidade, dentro de uma totalidade: assim, a região configura um AGB/S. Paulo, nOI, março 1982, MARKUSEN, Anne - "Região e Regionalismo: um Enfoque
espaço particular dentro de uma determinada organização social mais ampla, Marxista", in: Espaço e Debate, S. Paulo, Ed. Cortcz, Ano I, nO4, dezembro 1981; MASSEY,
com a qual se articula 1 . Dorcn - "Regionalismo: Alguns Problemas Atuais", in: Espaço e Debate, S. Paulo, Ed.
Cortcz, Ano I, n? 2, 1981; MORAES, Antônio Carlos R. - Geografia: Pequena llistária
Crítica, S. Paulo, Ed. IIucitcc, 19R1; MOREIRA, Ruy • O Que é Geografia, S. Paulo, Ed.
1 Para maiores infonnaçõcs sobre as transformações do conceito de "região" e o estado Brasiliense 1981; OLIVEIRA, Ariovaldo Umbclino de - "O Modo Capitalista de Pensar e
atual da questão, ver, entre outros, CANO, Wilson - Des eq uilibrios Regionais e Suas Soluções Descnvolvimentistas para os Desequilíbrios Regionais no Brasil: Rcflcxôcs
Concentração Industrial no Brasil (/930·1970), S. Paulo, Ed. Global, 1985; CORREA, Inieiais",ln: Revista do Departamento de Geografia, USP, nO Ill, 1984; SANTOS, Milton-
Robcrto Lobato - Região e Organização Espacial, S. Paulo, Ed. Ática, 1987 (2~ edição); Por uma Geografia Nova, S. Paulo, Ed. lIucitec, 1CJ78; ... Espaço e Sociedade, Pctrópolis,
DUARTE, Aluizio C. - "Rcgionalização: Considerações Metodológicas", in: Boletim de Ed. Vozes, 1979 ... - Espaço e Método, S. Paulo, Ed. Nobcl, 1985; SILVElRA, Rosa Maria
Geografia Teárica, Rio Claro, vol. X, n920, 1980; GOLDENSTEt~, l.éa e SEABRA, Godoy - O Regionalismo Nordestino, S. Paulo, Ed. Moderna, 1984; ... "Região e História:
Manocl - "Divisão Territorial de Trabalho e Nova Rcgicnalização", in: Revista do questão de método", incluído nesta coletânea.
Departamento de Geografia, USP, nOI, 1982; LECIONr, Sandra e CARLOS, Ana Fani A. - 2 Ver, por exemplo: LIPIETZ, Alain - Le Capital et Son Espace, Paris, Maspéro, 1977;
}
"Alguns Elementos para Discussão do Espaço Geográfico como Mercadoria", in: Borrador, PEET, Richard (org) - Radical Geography, Chicago, M. Prcss, 1977; CIlRISTOFOLETrI,
Antônio (org) - Perspectivas da Geografia, S. Paulo, Ed. Difcl, 1982.

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o íntimo relacionamento entre o novo conceito de região e os modos todos estes aspectos analisados interferem na configuração, transformação,
representação social ete, do espaço estudado.
de produção pode ser comprovado, por exemplo, pelo debate em torno da
hoje já clássica tese defendida por Francisco de Oliveira. Segundo este autor, No uso do novo conceito de região, não se pode desprezar, como vêm
o capital monopolista acaba subordinando todas as outras formas assumidas fazendo alguns autores, os conhecimentos acumulados sobre hidrografia, so-
pelo capital (agrária, mercantil ctc) e, por isto, onde ele predomina, tende a los, vegetação e todos os demais fatores ambicmais, bem como todos os es-
homogeneizar, a igualar os espaços em que penetra; conseqüentemente, a tudos realizados a respeito da questão do espaço. Insistir nesta atitude levaria
partir desta fase, o conceito de região tende a perder substância e a se tornar apenas ao empobrecimento do conceito e, com o passar do tempo, ao seu
inócuo-'. abandono, pois a História, a Sociologia, a Antropologia, a Ciência Política
Já outros autores têm um entendimento diverso a respeito do avanço do e a Economia dispõem de conceitos mais ricos e precisos para trabalharem
modo de produção capitalista e, em conscquência, apresentam conclusões os aspectos históricos, sócio-econômicos, políticos e ideológicos em foco.
diferentes sobre o conceito de região. É o caso, por exemplo, de Paulo O que confere interesse ao novo conceito de região e o distingue de todos os
Henrique Martins, no seu ensaio "O Nordeste e a Questão Regional: os outros é exatamente o fato de conter em seu núcleo a noção de espaço, uma
Equívocos do Debate", incluído nesta coletânea. Este autor sustenta que, a das mais antigas, permanentes e importantes da História da humanidade.
partir de meados do século, quando passa a predominar no Brasil o capital
monopolista, não há necessidade de ruptura entre a burguesia monopolista e
llistória e região: o desafio concreto
as classes dominantes regionais. O que existe é apenas UIlI rcordcnamcnto
desta relação, com a criação de novas alianças e a mudança do conteúdo das Nos últimos anos, especialmente a partir da década de 1970, tem
já existentes. Conseqüentemente, as regiões do pafs não tendem a desa- crescido muito o número de pesquisas e estudos de historiografia regional. O
parecer: elas sofrem uma mudança radical, que é preciso estudar e entender. fato se explica: a) pela própria mudança do conceito de região, como se viu;
Com estes exemplos, espero ter demonstrado também que o fato de b) pelo esgotamento das "rnacro-abordagcns", das grandes sínteses até então
incorporar a problemática relativa ao modo de produção não invalida a predominantes, as quais, embora necessárias e capazes de apontar
utilidade e a importância do novo conceito de região. Ao conuãrio, até o
parârnctros, mostravam-se claramente insuficientes quando cotejadas com
legitima, pois comprova que, ao invés de passar ao largo das grandes
estudos mais particularizados; c) pela instalação e desenvolvimento de cursos
questões contemporâneas, o conceito é parte integrante delas, podendo
de pós-graduação em todo o país, permitindo, pela primeira vez em algumas
inclusive ajudar a esclarecê-Ias. Tarefa sem dúvida difícil, como assinalei,
regiões, a formação de uma geração de pesquisadores dotada de cmbasamcnto
mas importante e útil. ~ científico e comprometida com temas locais; e d) pelas transformações
Para finalizar esta parte, somente um lembrete: a idéia de região, não
recentes da História brasileira, que modificaram profundamente a organização
importa qual o conteúdo lhe seja conferido, relaciona-se basicamente com a
espacial do país, chamando a atenção para regiões até então pouco
noção de espaço. O conceito de região surgiu da necessidade do llomcrrt conhecidas, como a Norte e a Centro-Oeste (porque até então apresentavam
entender e ordenar as diferenças constatadas no espaço terrestre e, desde então baixo grau de integração com o modo de produção dominante) e provocando
vem procurando dar conta, segundo os conhecimentos e a comprccnsã um reordenamento da relação entre todas as regiões brasileiras.
próprios de cada época histórica, exatamente da diversidade da organização E não é fácil realizar trabalhos de cunho regional. Se o problema do
espacial existente no planeta. mau estado de conservação e de desorganização dos documentos históricos é
A afirmação parece óbvia mas foi motivada pela existência de um sentido em todo o país, ainda mais agudo ele se apresenta na maioria das
desvio constatado no uso do novo conceito de região por parte de alguns instituições estaduais e municipais, principalmente as situadas nas regiões
autores que não são gcógrafos. Estes concentram seus estudos nos aspectos mais pobres.
históricos, sócio-econômicos, políticos ou ideológicos de uma região, sem Por outro lado, a documentação local, necessária às pesquisas geral-
entretanto, relacioná-Ios com a questão espacial, isto é, sem explicar como mente está em mãos de pessoas que se consideram "donas" e não querem
cedê-Ia. Isto talvez aconteça porque, em locais menores, onde predominam
relações de tipo pessoal e privado, haja mais dificuldade em identificar patri-
3 OIJVEIRA, Francisco de - Elegía' para uma re (li) gião, Rio, Ed. Paz c terra, 1977, 21 cd.
mônio histórico com patrimônio público. Mas acontece também porque,
I

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nestes lugares, muitos "donos" da documentação pertencem às oligarquias particular. A historiografia nacional ressalta as semelhanças, a regional lida
locais, estão habituados a mandar. E não hesitam em usar este poder contra com as diferenças, a multiplicidadc,
o pesquisador, principalmente quando desconfiam que o resultado da pesquisa A historiografia regional tem ainda a capacidade de apresentar o

1
poderá prejudicar seus interesses ou comprometer sua imagem. \ concreto e o cotidiano, o ser humano historicamente determinado, de fazer a
A este respeito, lembro-me de um episódio ocorrido durante uma ponte entre o individual e o social. Por isso, quando emerge das regiões
pesquisa em um cartório situado em Porangatu, interior de Goiãs. Temendo . cconõmicamcntc mais pobres, muitas vezes ela consegue também retratar a
que eu estivesse ali em busca de dados referentes a uma cnor me e recente História dos marginalizados, identificando-se com a chamada "História
grilagcrn de terras realizada (ao que se sabe, com colaboração dos popular" ou "História dos vencidos".
proprietários do Cartório), a encarregada não me permitiu, de modo algum, Por todas as razões expostas, a historiografia regional é também a
consultar a documentação (ela quase acertou: eu realmente pcsquisava um única capaz de testar a validade de teorias elaboradas a partir de parâmetros
processo de grilagem - triste e habitual prática no Brasil ,s6 que mais outros, via de regra, o país como um todo, ou uma outra região, em geral, a
antigo e envolvendo outras pessoas ... ). O impassc foi resolvido graças à hegemônica. Estas teoria'), quando confrontadas com realidades particulares
)
interferência do juiz local - novamente em ação a teia de poderes a quem, concretas, muitas vezes se mostram inadequadas ou incompletas.
sabe Deus como, consegui convencer de que, no Cunório, eu encontraria Apesar de toda esta riqueza de possibilidades, a historiografia regional
subsídios para comprovar a veracidade histórica da lenda da fundação de conhece algumas dificuldades específicas - que costumo chamar de
Porangatu, único assunto que ele considerava rclcvuutc para SCI pcsquisado "armadilhas" -, em grande parte decorrentes do tipo de relação mantido entre
por ali! Infelizmente, nem todos os episódios têm, como este, um final os centros hegemônicos do país, os pólos sócio-econômicos e culLurais, e as
feliz. Muitas vezes, o pesquisador, ao trabalhar com o rcgronul, t. obrigado a regiões periféricas, mais pobres, e de como as pessoas vivenciam e
interromper ou empobrecer sua pesquisa; porque o historiador, mesmo introjctam estas relações. Como este aspecto, apesar de importante,
quando pesquisa o passado, trabalha no presente. normalmente é pouco discutido - inclusive, pelos ensaios que integram esta
Somem-se aos fatores citados o pequeno apoio financeiro, pois as coletânea -talvez seja útil fazer algumas referências a ele.
fontes financiadoras de pesquisa tendem a investir em instituiçõc» c temas já Muitos intelectuais nascidos e criados em metrópoles, como São Paulo
scdimcntados; a carência de bibliografia básica eXCC«l lias regiões e Rio, demonstram um enorme desconhecimento a respeito das outras
cconôrnicamcntc desenvolvidas, o que obriga o estudioso a realizar regiões e da historiografia aí produzida (há exceções! há exceçõesl). Eu
numerosas e dcsgastantcs pesquisas paralelas; e a dificuldade em publicar os mesma, que cresci no Rio de Janeiro, recordo minha descomunal ignorância
trabalhos, já que muitas editoras, alegando falta de mercado. recusam-se a a rcpcito de tudo o que não fosse a zona sul carioca. Talvez por isso, hoje
publicar temas regionais: obtém-se assim o quadro em que milita o em dia, morando em Goiânia, encontre paciência para esclarecer muitos dos
historiador regional. amigos médicos, professores ou advogados de outras regiões: não, o
Apesar das dificuldades, e embora uma parcela da historiografia regional Pantanal não fica contíguo a Goiânia, mas a mil quilômetros de distância;
ainda seja do tipo tradicional, como assinala, referindo-se ao Rio Grande do não existe o Estado do Mato Grosso do Norte: não se "dá um pulo" de
Sul, Sandra Jatahy Pcsavcnto, em seu ensaio "História Regional e Goiânia a Cuiabá; Goiânia não faz parte do Estado do Tocantins ctc., ctc ...
Transformação Social", nesta coletânea, o fato é que parte da historiografia Como a ignorância provém de pessoas de uma camada social
mais recente também tem conseguido inovar e explorar as possibilidades normalmente bem informada, penso que, em muitos casos, ela revela
oferecidas pela História regional, como se comprova, por exemplo, pela descaso e desprezo, sendo a expressão de uma atitude ctnocêntrica, de quem
leitura deste volume. examina a realidade exclusivamente a partir dos dados e vivência ao seu
E que possibilidades são estas? Em primeiro lugar, o estudo regional alcance. Para estes, a produção historiográfica de outras regiões é sempre
oferece novas óticas de análise ao estudo de cunho nacional, podendo vista como sem importância, passando o regional a sinônimo de "menor".
apresentar todas as questões fundamentais da História (corno os movimentos Este tipo de visão iguala o "resto" (isto é, o que não pertence ao mundo
sociais, a ação do Estado, as atividades econômicas, a identidade cultural direto do observador) e, ao igualar, escamoteia diferenças e, conseqüente-
etc.) a partir de um ângulo de visão que faz aflorar o específico, o próprio, o mente, contradições. Os intelectuais que assim agen identificam-se, às vezes
s- inconscientemente, com idéias e práticas desenvolvidas por setores

12 13
dominantes, pois esta é uma das formas de dominação mais amigas e mais uma saída, um caminho de superação. Esta atitude bloqueia a criatividade e
profusamente utilizadas na história. não facilita o fortalecimento da historiografia regional.
Mas existe o reverso da medalha, representado pelo comportamento dos Uma atividade que pcrrncia todas as anteriores é a que expressa desco-
historiadores nascidos e criados nas regiões mais pobres. Muitos destes (há nhecimento e/ou desprezo pelas regiões não-hcgcmônicas, que se encontram
exceções! há exceçõcs!) introjetam o discurso dos "intelectuais dominantes", mais ou menos no mesmo estágio sócio-econômico daquela em que está o
mitificando e sacralizando pessoas e produções hlstoriogrãficas dos centros observador. Ao valorizar-se apenas os centros hcgcmõnicos, dcsqualificarn-se
maiores. É interessante observar como esta "mentalidade colonizada" as pessoas e produções historiográficas de regiões percebidas também como
provoca reações diversas, algumas aparentemente contraditórias entre si. "fracas" ou "pobres" e, dessa forma, desperdiça-se a possibilidade de uma
Vale a pena mencionar as mais conhecidas. A primeira, e talvez a mais 4t. convivência pessoal e intelectual certamente proveitosa.
difundida, revela insegurança e timidez extremadas, expressando .sc por uma Como se pôde perceber por esta breve exposição, o tema "História e
constante desvalorização das próprias pessoas e dos seus trcbathos, os quais Região" é não só importante, como extremamente interessante, podendo ser
nunca são apresentados em simpósios e revistas nacionais. Esws pessoas abordado por diversos ângulos. E os assuntos contidos nesta coletânea,
assumem a postura do dominado, manifestando verdadeira idolatria pelos como o leitor poderá comprovar, souberam explorar com eficiência as
intelectuais dos grandes centros, a quem tendem ti imitar, tanto em muitas possibilidades que a questão oferece.
comportamento quanto no tipo de produção.
Do outro lado, temos uma atitude aparentemente oposta, max no fundo
reveladora de idêntico conteúdo: a extrema agrcssividadc contra intelectuais
dos centros mais desenvolvidos, identificados como elementos cxógcnos,
"estrangeiros", portadores de obscuras e maléficas intenções, capazes até de
l
desestruturar o equilíbrio interno da região, do "pedaço".
Esse xenofobismo é sempre acompanhado do ufamsmo, da defesa
intransigente do regional, que se procura a todo custo, Igualar ao grande
centro nacional. Ao nível do senso comum, são estas pcssoax que reagem à
provocação: "É verdade que no Nordeste só há pobreza'!", COIIIrespostas do
tipo: "Imagine! O Nordeste, meu filho, está cheio de .\IWflflil/f.: renters,
discotecas, universidades, restaurantes finos, aviões ctc." COIll esta resposta,
a pessoa, na realidade, deseja igualar o Nordeste ao "sul maravilha" (na
expressão do saudoso Henfil) e mostrar que ambos são iguais o que
absolutamente não é verdade. Interessante observar que, por trás dCSLaatitude
ufanista, esconde-se a mesma ilusão de ótica que provoca a atitude
excessivamente tímida anteriormente descrita: ambas se baseiam na
mitificação do "estrangeiro", na supervalorização dos seus poderes;
exatamente por ser superpoderoso, ele só pode ser temido ou atacado. "
.. A um terceiro tipo de atitude existente denomino "discurso dos
coitadinhos". Expressa-se por uma constante queixa, onde se procuram
..
justificativas para as próprias fraquezas. Mais ou menos assim: "Somos
desta forma, tão fracos, porque carregamos o estigma de subdesenvolvidos,
todos nos espoliam, vivemos nas piores condições, somos marginalizados,
etc ... " Em que pese a verdade que tais palavras às vezes expressam, trata-se,
a nosso ver, de um discurso irnobilista e comodista, que busca no
reconhecimento da fragilidade uma justificativa para nela continuar e não

15
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Perspectivas Metodológicas

Região e História: Questão de Método"


Rosa Maria Godoy Silveira"'

Se parece óbvio que a relação História e região é a relação, em última


instância, entre temporal idade e espacialidadc, essa obvicdadc não é 1.<10, ou
quase nada, óbvia nos estudos históricos no Brasil. Nossa produção
historiográfica ignora completamente a problemática em termos de seu
tratamento teórico-metodológico. Praticamente, não existem reflexões
sistematizadas sobre as várias abordagens que se tem dado à relação Região-
Ilistâria nos trabalhos emplricos, e sobre as implicações epistemolágicas e
políticas de tais enfoques.
A estranheza que nos causa essa constatação deve-nos conduzir ao
entendimento das razões pelas quais tal [ato ocorre, tanto mais que se trata de
uma questão importante para o avanço de nossa ciência histórica ao nível da
pesquisa e do ensino. Basta lembrar que a pertinência dessa reflexão teórico-
metodológica se coloca quando o discurso oficial dos que dirigem os órgãos
de Educação e Cultura desse país vem acentuando, com maior ênfase desde
há 10 anos, a necessidade de regionalização dos currículos e de uma ótica de
cultura atenta às peculiaridades regionais.
A nosso ver, a nossa produção historiográlica é de tal maneira assente
em determinadas óticas de abordagem do que seja Região e, por extensão,
Espaço, que não se questiona sobre o seu conteúdo. De um lado, na relação
Região-História, o recorte regional, seja qual for a configuração que se lhe
tem dado, tem sido exatamente este: um dado,já aceito e acabado, um produ-
to. Não se atenta para o conceito de Região e de Espaço enquanto constru-
ção, processo histórico concreto, portanto, atravessado pela tcmporalidadc e
nesta interferente. Uma vez que os recortes espaciais já estão definidos a
priori, a relação Região-História não se constitui, pois, num problema em

* Texto-base da mesa-redonda "História e região", apresentada no XIII Simpósio da


ANl'UH (Curitiba, 1985).
** Mestra e Doutora em História Econômica pela FFLCII/USP. Leciona no Dcpto, de
História da UFPB. João Pessoa. Publicou Republicanismo e federalismo e O regionalismo
nordestino e artigos em diferentes periódicos. Participou da Comissão de Publicações da
Al'WUH, no biênio 1987/1989.
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si. Por outro lado, a multiplicidade de critérios de conccituação da Região entendimento do conceito se apresentam: espaço enquanto categoria do
acarreta que o "debate, que tem um sentido polltico estratégico inegável, entendimento, dcstitufda de existência empírica e, portanto, na medida em
transforma-se numa conversação de surdos, onde cada qual viabiliza seu que é um dado de toda forma de conhecimento, não se constituiria em objeto
próprio discurso particular, sem ser ouvido, sem ouvir os demais" I. específico dos gcógrafos: espaço enquanto atributo dos seres, também,
Partindo-se do pressuposto de que a Região é um "CO"Ii!" da espacial i- nesses termos, sem especificidade geográfica; e espaço enquanto ser
dade, utilizado na prospccção e representação do real, da mesma maneira com especifico do real. Finalmente, no que diz respeito às relações homem-meio,
que estrutura, conjuntura e "évcncmcnt" são "cones" ou delimitações da também o entendimento é variado: o caráter dctcrrninista do meio sobre o
temporal idade com o mesmo intuito, e levando-se em conta aqueles dois "ví- homem, em cuja História este é elemento passivo, tutelado pelas condições
cios" apontados acima sobre a problemática regional, se se quiser fazer avan- naturais; o caráter possibilista da relação, em que os fenômenos humanos
çar o debate científico a esse respeito, é necessário proceder a uma avaliação interferem na transformação das condições naturais, e a percepção da relação
das várias concepções de Espaço e de Região correntes na historiografia, para como o próprio objeto de estudo, em que homem e natureza interferem.
detectar seus fundamentos e o nível de alcance cxplicntivo que oferece ,1 para Se atentarmos para esse conjunto de definições, apesar de haver uma
o entendimento da realidade. nomenclatura específica na ciência geográfica para o estudo de região, este
conceito tem sido atravessado por toda a variedade e imprecisão daquelas
definições, que teriam como pontos de confluência: uma base empírica de
As concepções positivistas dc espaço c I"l'gi;io: a a nti-histúr ia cspacialidadc, encarada como meio físico, o que equivale dizer, a redução da
dos lugares realidade ao mundo dos sentidos - à exceção da concepção de espaço
enquanto questão filosófica -, mundo aquele passível de se demonstrar
A ciência histórica é pouco afeita (/O Ir{/I(/II/I'I//{)da problemática .. diretamente ao cientista observador; a transposição de métodos das ciências
espacial, conforme já acentuamos, e absorve rotineiramente conceitos naturais para fenômenos sociais, com o naturalismo implicando na
produzidos pela ciência geográfica, mais habituada a lidar com aquele objeto. submersão do homem na paisagem ou na superfície terrestre; e a
Mas a própria Geografia, até hoje, não se livrou de uma t'1l01l11econtrovérsia coexistência de certos princípios contraditórios: a superfície terrestre
a esse rcspci to. entrevista como totalidade x a particularização dos lugares; o dinamismo da
Para a Geografia Tradicional, seu campo de conhecimento tem variado natureza x sua fixação descritiva formal; a conexão dos elementos da
da descrição da Terra ao estudo da paisagem, da individualidade dos lugares, superfície terrestre x a contraposição das individualidades espaciais; a
do espaço, até às relações homem-meio. A concepção Io..alllianaencara a manifestação dos fenômenos numa porção variável do planeta x a sua
natureza como rcccptora dos fenômenos sociais que se deve descrever numa delimitação. No dizer de Antonio Carlos Robert Moraes,
visão abrangemo. A Geografia da paisagem se bifurca em uma vertente
morfológica, descritiva dos elementos presentes na paisagem e de suas "a atitude prineipista restringiu uma verdadeira discussão de metodologia,
dando margem para a diversidade de posições também nesse nível. A
formas; e uma vertente fisiológica, fundamentada na Biologia, que
generalidade dos princípios permitia que posicionamentos mctodológicos
naturaliza, pois, os elementos, atentando para o seu funcionamento. A antagônicos convivessem em aparente unidade."3
singularidade dos lugares ou de determinadas unidades espaciais procura
"abarcar todos os fenômenos que estão presentes numa dada área, tendo por E complementa que essa disparidade de propOSUISenseja dualismos do
meta compreender o caráter singular de cada porção do planeta. Este ramo da pensamento geográfico tradicional: Geografia Física-Geografia Humana,
ciência geográfica se denomina Geografia Regional, a região significando Geografia Geral-Geografia Regional, Geografia Sintética-Geografia Tópica e
uma individualizaçâo do espaço terrestre a partir de UIIlcaráter pr6prio" 2. Na Geografia Unitária-Geografias Espccializadas,
concepção da Geografia como estudo do espaço, três vertentes de A verdade é que esse leque de concepções tem repercutido sobre o
conhecimento da espacialidade de diferentes maneiras, de que a ciência
Icr. MARTINS, Paulo llcnriquc N. Estado, Espaço e Região: novos elementos histórica não escapa. O empirismo provocou uma produção descritiva da
metodologicos. Texto inédito e datilografado. p.1.
2Cr. MORAES, Antonio Carlos Robcrt. Geografia. Pequena lIistória Crítica. São Paulo,
ItUCITEC, 1981. pp. 15-16. 3Idem lbidem. p. 26.

18 19
natureza e uma produção de sistemas ctassificatários os mais dispares, (meio) na constituição da vida social, ou seja, como determinação desta
orientados por critérios bastante diversos. Sendo um dado a priori, o meio última. O elemento humano é componente da paisagem. Mesmo na Geogra-
físico é caracterizado por procedimentos mais ideológicos do que científicos, fia de Vidal de Ia Blache, que introduz o possibilismo na relação homem-
uma vez que o positivisrno joga com a prctcnsa neutralidade do observador natureza, refutando o determinismo de matriz ratzcliana, "o homem (interes-
diante da natureza, que lhe falaria como o documento ao historiador. Dessa sa) por suas obras e enquanto contingente numérico, presente numa porção
postura - "ora fazendo relações entre elementos de qualidade distinta, ora da superficie da Terra. A Geografia faia de população, de agrupamento, e
ignorando mediações e grandezas entre processos, ora formulando juizos nunca de sociedade; fala de estabelecimentos humanos, não de relações
genéricos apressados. E sempre concluindo com a elaboração de tipos sociais.fala das técnicas e dos instrumentos de trabalho, porém não de pro-
formais, a-históricos, e, enquanto tais, abstratos (sem correspondência com cesso de produção. Enfim, discute a relação homem-natureza, não abordando
os fatos concretost''í=, resultam recortes espaciais tomados, por exemplo, as relações entre os homens. É por esta razão que a carga naturalista é
pela configuração externa de cspacialidadc, suas fronteiras político- mantida, apesar do apelo à l llstária, contido em sua proposta" 5. Sabe-se que
administrativas visíveis, oficiais (país-cstado-rnuniclpio), dentro de cujos os frutos diretos do naturalismo, sobretudo de origem alemã, foram o
limites acontece o processo histórico, sem relação orgânica com aquela dctcrrninismo geográfico e a Gcopolítica, que se constituíram em suportes
cspacialidadc posta nesses termos, ou esta sem relação orgânica com aquele. prctcnsamcntc científicos para justificar o imperialismo. Essa causalidade
Trata-se de uma apreensão formal, do meio como continente do processo mccanicista do meio sobre o homem aparece na historiografia brasileira de
histórico. Outros critérios parciais da espacial idade são aqueles que recortam modo gritante, na caracterização das secas nordestinas ou da diferenciação
a base física segundo fenômenos climáticos região do Trópico Scmi- entre as áreas consideradas desenvolvidas - as de clima temperado, com imi-
Árido, por exemplo - ou características da morfologia vcgcuuiva região do gração estrangeira - e as subdesenvolvidas do país, de clima tropical, cuja
Brejo, do Sertão, do Litoral, do Agreste, do Cerrado ou da Floresta formação étnica, por sua vez, se fez na base de contingentes provenientes de
Amazônica - ou geológica: os continentes, essa divisão sendo muito áreas climáticas semelhantes: o nativo indígena ou o escravo africano. Ou
utilizada na organização dos currículos de História: l listórin da América, da ainda para diferenciar o homem brasileiro, ou latino, ou africano, indolente,
África, da Ásia. Esses critérios revelam o peso da COnl:('pI;ÔOnaturalista. cio mundo dos trópicos, portanto, et pour cause, subdesenvolvido, do ho-
Outro tipo de critério se delimita pela vida econômica: os recortes são mem europeu, cujo meio explicaria sua "atividade civilizatória". La Blachc,
definidos por serem base de produção de determinados produtos zona de quando caracteriza os "gêneros de vida", isto é, a relação população-recursos,
região canavieira, cafeeira, algodoeiro-pecuária ou mincradora. Ou pela fala de contactos entre tais "gêneros", aqueles romperiam os localismos e
distribuição dcmográfica, Ou, por influência da Sociologia Política norte- criariam "domínios de civilização'P, A conscquência prática dessa concepção
americana, pelos critérios culturais, étnicos e religiosos. Os critérios são foi criar um suporte justificativo da expansão européia sobre os "gêneros de
muitos e, em função deles, os recortes variam, as "fronteiras" entre os vida" africanos e asiáticos durante a corrida ncocolonialista.
mesmos se desdobram de acordo com a classificação utilizada, de modo que A Geografia lablachiana produziu de forma elaborada o conceito de
até hoje a controvérsia é muito grande em torno do que seja História região, considerada, então, em dupla accpção: unidade de análise geográfica
Regional, ora aplicável o termo a uma área polúica, ora a uma área (instrumento teórico de pesquisa) e forma de os homens organizarem o
climática, ou a uma área econômica etc. Se há um consenso genérico de que espaço terrestre (dado da realidade), cuja identificação e diferenciação seriam
Região seria a particularização dos lugares, a sua individualização, como realizadas pelo método indutivo. Tendo por matriz a Geografia Física ou,
delimitar essas particularidades, mesmo quando se ultrapassa a aparência e se mais precisamente, a Geologia, o conceito foi ampliado descritivamente das
aprofunda o seu conteúdo, é matéria polêmica. O que definiria essas bases físicas para as dcmográficas, incluindo-se o povoamento histórico e
particularidades? para as bases econômicas.
Quanto ao naturalismo que impregna essas concepções, teve como Essa amplitude deu margem a especialidades, entre as quais, a
efeito, embora estabelecendo mesmo a relação homem-natureza, escamotear Geografia Histórica, de que foi expoente Lucien Febvre, com a sua obra A
a relação dos homens entre si, pelo peso atribuído às condições naturais
5ldem ibidcm. p. 72.
6Ver a respeito a obra de Milton Santos. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a
4IdCJll ibidcm. p. 22. uma geografia crítica. São Paulo, IIUCITEC, 1978.

20 21
Terra e a evolução humana, e que tratava da organização do espaço no dimensão essencial -, aparece substituindo aquela ação, personificando-a,
tempo. Essa humanização do espaço gcogrãfico rnuhicaractcrizado mantinha, protagonizando-a. Descolando a História e seus agentes, naturalizando-a,
no entanto, a perspectiva de espaço como produto de ação humana, não essa representação do real faz do meio uma entidade em si, com vida própria,
(para) os processos sociais que (o) engendraram. Assim, uma Geografia cuja formação não se explica senão por fatores tautológicos (os próprios
Humana, não uma ciência social" 7. fatores naturais) ou por fatores extra-naturais (metafísicos). Converte o
Empirismo, naturalismo e mais os referidos princípios vastos e vagos meio, ainda, em totalidade homogênea, também produzida dessa mesma
do pensamento geográfico geraram, desse modo, certos vieses de apreensão forma. A historiografia é rica na incorporação dessa cntificação: é o caso das
da realidade até hoje bastante arraigados no pensamento social mais amplo a várias Histórias provinciais ou estaduais, que (a)parecem descoladas do
respeito das sociedades humanas: a a-historicidadc de percepção, a cntificação processo histórico brasileiro, isoladas da Formação Social que as envolve e
e a homogcncização do espaço. com a qual de fato interagem. Em fase posterior, estabelecem-se relações
Na medida que a configuração espacial é dada a priori, segundo critérios entre os espaços, mas a cntificação é reiterada. Assim, é produzida toda uma
os mais diversos de classificação, repassa-se a percepção desse recorte em um historiogra fia em que determinados eventos espaciais aparecem como mero
determinado momento, fixo, produto e não o seu movimento, o seu reflexo de recortes espaciais mais amplos ou no sentido de superfície ou no
processo constitutivo-constituinte. Oculta-se, dessa forma, a idéia de sentido político-administrativo: a História de um determinado Estado ou
transformação e, por conseguinte, a ação transformadora. Se kantianamente província repete os acontecimentos da história do Estado brasileiro ou o que
neutro, não se estabelece a relação entre cspacialidadc c tcmporalidadc, a se pensa que seja a História do Estado brasileiro, que se irradia de seus
espacial idade é externa à tcmporalidadc. Se dctcrrninista, o Espaço interfere centros de decisão. Nesta ótica, acham-se presentes alguns dos princípios do
na temporal idade, mas também em um dado momento, sem explicar as Sumario Geral do pensamento geográfico: totalidade x particularidade, com a
mudanças do processo histórico nem as suas próprias mudanças. Se idéia de que esta se acha contida naquela, e que a primeira determina a
possibilista, o Espaço inverte a unilatcralidadc de relação com a última.
tcmporalidadc: esta pesa sobre aquele mas, igualmente, não lhe explica as Na transição da Geografia Tradicional, positivista, para uma nova
mudanças, produz um Espaço fixo. As teorias descritivas do Espaço, que Geografia, nos primórdios do século XX, recupera-se concepção kantiana de
trabalham com resultados já produzidos na base espacial, veiculam espaço em novas bases. Procede-se a uma renovação metodológica,
claramente este esvaziamento de historicidadc enquanto uunsfounação. superando o estágio da descrição das diferenças espaciais para avançar-se nas
Por outro lado, o mascaramcnto da relação cspacialidadctcmporalidadc explicações, consubstanciadas nos conceitos de "área" e "irucgração".
se cornplcmcnta com a unilatcralidadc parcclária dos critérios utilizados para
a delimitação dos recortes espaciais. Se mais tradicionalmente geográficos, ••A área seria urna parcela da superfície terrestre, diferenciada pelo obser-
vador, que a delimita por seu caráter, isto é, a distingue das demais. Essa
na accpção de uma Geografia Física, porque lhes falta a transparência da ação
dei im itação é um procedimento de escolha do observador, que seleciona os
humana na configuração. Se mais próximos de uma metodologia da ciência fenômenos enfocados; dependendo dos dados selecionados, a delimitação
histórica, como é o caso dos critérios econômicos ou político administra- será deficiente (pois a abrangência destes varia regionalmente). Assim, na
tivos, porque lhes falta o inverso, a transparência da base física onde se au- verdade, a área é construída idealmente pelo pesquisador, a partir da
observação dos dados observados. A área seria um instrumento de análise
senta a ação humana, além, evidentemente, de os dois conjuntos de critérios
(semelhante ao tipo ideal de Max Weber), ao contrário da região ou do
não recuperarem a própria totalidade desta ação, nos seus vários níveis intcr- território, que eram vistos corno realidades objetivas exteriores ao
relacionados. observador. A área seria construída no processo de investigação •• .
g
Outra deformação perccptiva derivada de tais correntes é a
autonomização da natureza em relação ao sistema econômico-social-político, A integração dos fenômenos selecionados de uma área seria a sua
autonomização resultante do já referido isolamento entre espacial idade e configuração. A comparação de integrações permitiria a generalização da
tcmporalidadc e resultando no que podemos denominar de entificação do análise ou o que se denominou Geografia Nomotética (que)
espaço. Ou seja: este, dimensão essencial à ação humana no tempo - outra

7 Cf. MORAES, Antonio Carlos Robcn. op. cit. pp. 82-83. 8tdem ibidcrn, p. 88.

22 23
". .. possibilita a agilização do estudo regional, que ia ao encontro dos inte-
elaborados), para "corrigir os desvios" pois "o modelo já informa, de modo
resses do planejamento, pois abriu a perspectiva de trabalhar com um mais direto, o ato da escolha, dirige a opção, orienta a estratégia adotada" 10.
número bastante elevado de elementos, relacionando os de acordo com os Desse modo, em suas várias linhas - Geografia Quantitativa, Geografia
interesses do plano. Esta segunda perspectiva insrrumcntalizou os "diagnós- S istêrnica, Geografia da Percepção - a Geografia Pragmática mantém ou até
ticos", e deu possibilidade para o uso da quaruificação e da computação em
aprofunda o esvaziamento da historicidadc presente no espaço: primei-
GeograCia"9.
ramente, porque desloca-se da base concreta para cair em um abstracionismo
A partir da década de sessenta, mudanças históricas provocam um formal e genérico, rcducionista da questão espacial a relações matemáticas,
qucstionamcnto definitivo do positívisrno na Geografia: o intcrvcncionismo portanto, desumanizador das relações homem-natureza e rcducionista ainda
crescente do Estado, utilizando o planejamento econômico, entre cujos com- das singularidades destas últimas. Também porque as técnicas de planeja-
ponentes se inclui o planejamento tcrritorial; a mundialização da economia; mento tratam de processos presentes ou futuros, escamoteando os seus (dos
a renovação das ciências e do pensamento filosófico. Cobra-se das ciências processos e do próprio planejamento) agentes históricos, bem como os
humanas operncionalidade para o entendimento e transformação da realidade. produtos espaciais já estabelecidos, portanto, a carga do passado contida na
Desta "cobrança", no que tange à "questão regional", geram-se duas organização presente do espaço. Um efeito concreto e perverso dessa concep-
correntes: a Geografia Pragmática e a Geografia Crítica. ção, na medida que a generalização de modelos e a visão hierarquizada dos
A primeira vertente, influenciada pela economia ncoclássica, tem sido espaços, contida na visão sistêrnica, constituem apagadorcs da História,
caracterizada como a perspectiva conservadora da renovação dos estudos sobre portanto, das peculiaridades, das diferenciações - tem sido a exportação de
espaço, a julgar por duas características fundamentais: 1) o não procedimentos de análise, até válidos para países desenvolvidos, aos países
questionamento dos fundamentos filosóficos da análise espacial tradicional e denominados periféricos. Esse pressuposto de um equilíbrio ideal existente
nem as suas bases sociais. Critica-se apenas os seus métodos. 2) uma ótica na realidade, reitera o "modelo", os "desvios" devem voltar ao padrão
prospcctiva, que se volta para a produção do espaço, presente e/ou futuro, desejável.
em contraposição à ótica retrospectiva, que descrevia o espaço enquanto A teoria das regiões nodais, e dos lugares centrais, a teoria dos pólos de
produto. Da primeira alteração de postura "científica", geram-se procedi- crescimento e a teoria dos ccossistcmas cumprem essa função, ao concebe-
mentos metodológicos que substituem o cmpirismo positivista-ncutro da rem o espaço como um sistema hierarquizado, em que se estabelecem
observação direta pelo empirismo ncopositivista-tccnicista (nova capa da relações entre objetos espaciais em um determinado espaço ou entre espaços,
neutralidade científica) da abstração estatística e dos modelos matemáticos e em um sentido unilateral de dominação, com um espaço polarizador, A
sistêmicos (nova capa do ncutralismo) que medianizam ou padronizam os cspccificidadc dos espaços subordinados desaparece e eles são encarados de
fenômenos, cujas variáveis e respectivas irucr-rclaçõcs continuam a ser lora para dentro, como reflexo do espaço subordinante e do seu dinamismo.
sclccionadas aprioristicarncmc e que concebem o sistema como um todo Essa autonomização do espaço, portanto, descreve a dominação e a reitera
COl1l0 "natural" mas não a explica, aprofundando a velha postura da base
equilibrado. Segundo essa interpretação, a região seria um subsistcma do
sistema nacional. Desta interpretação, emerge a nomenclatura dos espacial ser encarada como um continente-demonstrativo de determinados
"dcsequilíbrios espaciais", para cuja superação recomenda-se a terapêutica do objetos e de relações entre os mesmos ou até de relações entre os homens e
planejamento. Relcmbramos o diagnóstico de Celso Furtado sobre o os objetos, mas não um conteúdo representativo das relações entre homens
em um certo meio. Daí, a pasteurização da natureza, a população como um
Nordeste, justificando a criação da Sudene. E mais do que isso: rclembramos
que esse é o discurso oficial vigente no país há mais de um século a respeito
.., lodo se relacionando com o conjunto de recursos ou equipamentos nela
da problemática regional, acentuado como progressivo intervencionismo do contidos, os recursos se relacionando entre si, os equipamentos idem. O viés
Estado em nossa organização tcrritorial, a partir de 1930. Isso comprova que sudcstocêntrico, com que tem sido produzida significativa parcela de análises
a sofisticação técnica da metodologia na Geografia Pragmática, na verdade, referentes ao nosso processo histórico, a generalização que incute de um
manteve os pressupostos filosóficos tradicionais. Criados os instrumentos espaço sobre outros espaços (Centro-Sul hegemônico sobre as demais
de análise, da segunda alteração, derivam-se as técnicas de intervenção no "regiões"), a homogeneização que repassa de cada um desses espaços
espaço, tomando por base os diagnósticos (os modelos ou sistemas
lOldem ibidcm. p. 107.
9Idem ibidem. p. 90.

24 25
lação de um dado território, como um todo homogêneo, sem atentar para a
regionais, se enquadra nessa visão hicrarquizada entre espaços entificados. A sua divisão em classes"!!.
concepção dualista da cspacialidadc brasileira, consubstancíada na formulação
dos "dois Brasis", é outro exemplo rnarcantc dessa deformação perceptiva: O livro clássico que consubstanciou essas críticas foi o de Yves
hoje já se dispõe de críticas para avaliar que um dos erros de perspectiva do Lacostc: A Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerral2, em que
GTDN, que serviu de fundamento à criação da SUDENE, portanto, a uma caracteriza duas práticas geográficas conectadas e ambas instrumentos de
prática política, foi a visão de um Nordeste autonomizado e cntificado, em dominação da burguesia: a "Geografia dos Professores" que mascara o
que a intervenção do Estado mediante o planejamento poderia operar grandes conhecimento geográfico como neutro, esvaziando o conteúdo polüico da
mudanças, sem se levar em conta a carga histórica assentada no interior do reflexão sobre o espaço. Lacostc admite "que os detentores do poder (seja o
que se delimitou como Recorte Regional nordestino, e muito menos sem Estado ou a grande empresa) sempre possuem uma visão integrada do
considerar os determinantes amplos da Formação Social Orasilcira. O espaço, dada pela intervenção articulada em vários lugares. Por outro lado, o
processo histórico, interferindo no projeto original de criação do órgão, cidadão comum tem uma visão fracionada do espaço, pois só concebe os
demonstrou, cabalmente, o equívoco de um espaço idcologizado, construido lugares abarcados por sua vivência cotidiana, e só esporadicamente possui
descolado da sua concrctudc. Além do que, o exemplo a ser alcançado foi o informações (e mesmo assim truncados) da realidade de outros lugares" 13.
Centro-Sul desenvolvido, urbano-industrial, como modelo para superar o Daí a necessidade de se "construir uma visão integrada do espaço, numa
dcscquilfbrio do subdesenvolvimento nordestino, da mesma maneira que o perspectiva popular, e socializar este saber, pois ele possui fundamental
padrão para o Brasil e os demais países subdesenvolvidos é aquele do valor estratégico nos embates políticos". Nesse sentido, "a Geografia é uma
desenvolvimento dos países hegemônicos. É a linguagem da "matriz prática social em relação à superfície terrestre" 14.
civilizatória" lablachiana rcvcstida de aparatos técnicos e linguagem mais Essa politização explícita do conteúdo geográfico emerge de uma ala da
contemporâneos - dos desequilíbrios regionais , mas na essência mantendo Geografia Regional francesa, em processo de abertura para a contribuição de
a concepção de um espaço idealizado. outras ciências, notadamcntc a Economia Política, a História não
Assim, a Geografia Pragmática cumpre sua função: não só manter mas pcsitivista, a Filosofia. Henri Lefevre, um filósofo, contribui com um livro
expandir o sistema dominante e as classes que o controlam. marcantc para a análise da problemática espacial: A questão urbana. Manuel
Castcls, um sociólogo, contribui igualmente com dois outros: A produção
do espaço e Espaço e Política. Os conceitos do materialismo histórico
A concepção histúrico-cstrutural de CSp:H;O c I'c!;iilO: história
penetram na análise espacial e se processa uma mudança qualitativa
devolvida aos lugares completa na ciência geográfica em termos de fundamentação teórica e de
A segunda vertente do movimento renovador dos estudos espaciais é a procedimentos metodológicos: elabora-se uma distinção conccitual entre
chamada Geografia Crítica, que recebe esta denominação pela contestação que meio e meio geográfico, o elemento humano passa a ser cnfocado como
empreende dos postulados filosóficos da Geografia Tradicional ou da preponderante sobre o elemento físico na construção do espaço, estabelecem-
Geografia Pragmática. Seus autores assumem o conteúdo político da sua se as correlações entre Modo de Produção e organização do espaço, assim
ciência e a encaram como um instrumento para a transformação da sociedade como as relações entre Estado-território-recursos, caracterizam-se as
e, em conseqüência, criticam o caráter classista das outras concepções de contradições sociais visíveis na organização do espaço, idenlifica-sc a sua
historicidadc, em termos dialétlcos, contrapõe-se a Geografia Ativa (Pierre
espaço:
Gcorge) à Geografia Aplicada. Em síntese: as formas espaciais passam a ser
" ... as vinculaçõcs entre as teorias geográficas c o imperialismo. a idéia de
progresso veiculando sempre uma apologia da expansão. Mostram o trabalho
dos ge6grafos, como articulado às razões: de Estado. Desmistificam a pscudo 11Idem ibidcrn. p. 113.
'objetividade' desse processo, especificando como o discurso geográfico es- 12Cr. LACOSTE. Yvcs. 1\ Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra.
camoteia as contradições sociais. Atingem assim seu caráter ideológico, que Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1977. O título a que nos referimos foi dado a uma edição
via a organização do espaço como harmônica: via a relação homem-natu- clandestina, no Brasil.
reza, numa ótica que acobcriava as relações entre os homens; via a popu- l3er. MORAES, Antonio Carlos Robcrt, 01'. cit. pp. 115·116.
141dem ibidem. 1'.116.

26 27
encaradas como processos SOCiaiS, assim como estes são processos Alain Lipictz encara o "espaço social" como fundamento do espaço empírico
espaciais, na expressão de David Ilarvey, um dos estudiosos que integra esse com O qual intcragc: "( ... ) o espaço sócio-econômico, segundo o autor, pode
movimento de sistematização da Geografia Crítica 15. . ser analisado em termos da articulação de espacialidades próprias às relações
Cingindo-nos mais especificamente à problemática da questão regional, definidas nas diferentes instâncias de diferentes modos de produção existentes
como fiea a sua conccituação após essa rcvisã« que se empreende no numa formação social. Essas espada/idades consistem na correspondência
pensamento geográfico? Como se trata, inclusive, da conccituação que entre presença/distância (no espaço) e participação/exclusão (na estrutura ou
assumimos em nossa prática profissional enquanto expressão, a nível mais relação considerada), o que pode ser melhor entendido pela distribuição de
amplo, de uma determinada concepção de mundo e de História, optamos, a lugares no espaço e na relação" 16.
partir desse momento do texto, por caractcrizã Ia em seus elementos Esses vários conceitos, sem dúvida se abcbcraram da visão marxista
fundamentais e, à medida em que o ri1erlllos, apontar a contribuição da clássica da segunda natureza, em que se distingue o espaço como ser pré-
Geografia Crítica e dos vários autores na elaboração do conceito. Essa existente à sociedade, do espaço como atributo dos seres, como construção
proposta se orientará por três questões atincntcs à relação lIistória-Região: social:
1) como o conceito aborda a relação entre espacial idade c ternporalidadc"; 2)
"O homem, porém, quanto mais se afasta da animal idade, tanto mais sua
como, em decorrência, encarar os vários planos ou nfveis de espacial idade influência sobre a natureza/ambiente adquire o caráter de uma ação
disponíveis hoje no arsenal teórico e, que, na verdade, correspondem, ainda prevista, que se desenvolve segundo um plano, dirigido no sentido de
que os distorccndo, aos vários planos ou níveis reais de espacialidade?; e 3) objetivos antecipadamente conhecidos e detenn inados.
quais os elementos que caracterizariam uma região e COlHO delimitar as
o animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo modificações somente
fronteiras entre um corte e outro? por sua presença; o homem a submete, pondo-a a serviço de seus fins
Retomando o que já dissemos introdutoriamcnte neste trabalho, na determinados, imprimindo-lhe as modificações que julga necessárias, isto é,
medida que região representa um corte da espacial idade, a identificação da domina a Natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o homem
primeira pressupõe uma clara conccituação da segunda. Nesse sentido, e os demais animais, c, por outro lado, é o trabalho que determina essa
diferença.
informado pela lógica dialética, que preside a renovação da análise
Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas
geográfica, o conceito de Espaço, enquanto realidade e enquanto categoria sobre a Natureza. A cada urna dessas vitórias, ela exerce a sua vingança.
passível de representar e explicar tal realidade, significa uma ruptura com a Cada urna delas, na verdade, produz, em primeiro lugar. certas
lógica formal presente no crnpirisrno positivista e veicula uma concepção do consequências com que podemos contar, mas, em segundo e terceiro lugares,
produz outras muito diferentes; não previstas, que quase sempre anulam
real enquanto totalidade.
Milton Santos, um dos geógrafos brasileiros que mais aprofundou, a essas primeiras consequências •.17.

nível teórico e prático, a vertente crítica, conccitua o Espaço como um fato


A decorrência dessa intcrrclação entre sociedade e natureza, assim vista,
social, produto da ação humana, uma natureza socializada que, por sua vez,
é a rcconccituação do que seja meio geográfico: de condição para o
interfere no processo social não apenas pela carga de hlstoricidadc passada,
desenvolvimento da sociedade humana, portanto, externa a esta última, a um
mas também pela carga inerente de historicidadc possível de ser construída,
complexo global de condições materiais do desenvolvimento social
na medida que é instância de determinação no movimento do real, de
(diríamos melhor: histórico) de que a sociedade humana como tal, com suas
transformação deste último, em outras palavras, de determinação na História
leis específicas, é eomponente.
a ser construída. Dois elementos fundamentais da História estão presentes nessa
Harvcy trabalha o conceito mais longe: distingue um espaço absoluto,
rcconccituação da problemática espacial: a ação humana e a idéia de
dotado de material idade própria, idéia que contém a concepção newtoniana de
movimento não no sentido linear, mas na accpção dialética. O espaço
espaço, de um espaço relativo, organizado pela relação entre os lugares e
ainda um espaço relacional que contém em si um conjunto de relações.
16Cr. A. Lll>IE'IZ, Alain. Le capital et son espace. Paris, Maspéro, 1977.
15Cf. IIARVEY, David. The Geography of Capitalist Accumulation; A Reconstruction of thc
Marxian Thcory. In Riehard Pcct (org.) Radical Geography; alternatlve viewpoints on 17 Cf. ENGELS, Fricdcrich. A dialética da natureza. 21 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1977. p. 222 e 223. Grifo do autor.
contemporary social issues, Chicago, Maroufa Prcss, 1977.

28 29
equivale à incorporação do trabalho humano na superfície terrestre e guarda
as contradições do tempo social: que cada período da História-periodicidade configurada a partir do Modo de
Produção que estrutura a sociedade - produza um espaço específico,
" ... 0 espaço construído, o tempo histórico que se transfonna em paisagem, expressão da sociedade que o organiza. Ademais, não sendo o tempo
incorporado ao espaço. As rugosidades nos oferecem, mesmo sem tradução histórico linear, mas encerrando contradições, o espaço que o exprime
imediata, restos de uma divisão do trabalho intemacionJJ, rl'Janifestado condcnsa o modo de produção determinado nos seus vários momentos ou
localmente por combinaçõcs particulares do capital, das técnicas do trabalho
utilizadas, condcnsa ainda modos de produção (processos produtivos) antcriorcs'v", É
Assim, o espaço, espaço-paisagem, é o testemunho de um modo de produção por isso que Milton Santos, utilizando o conceito de rugosidadcs, afirma:
. nestas suas manifestaçõcs concretas, o testemunho de um momento do
mundo.
"Em cada momento histórico as novas formas representam o modo usual de
produção. Mas é a formação sócio-econômica que Ihes dá sua significação
real-concreta dentro do sistema. ( ... ) Os modos de produção garantem a
o espaço, portanto, é um testemunho, ele testemunha um momento de um continuidade histórica, inclusive a continuidade histórica das fonnas.
modo de produção pela memória do espaço construído, das coisas fixadas na Mas é apenas dentro da formação sócio-econômica específica que as formas
paisagem ainda. Assim o espaço é uma Iorma, uma fonna durável, que não adquirem um papel social efetivo,,21
se desfaz paralelamente à mudança dos processos: ao contrário, alguns
processos se adaptam às formas pré-existentes enquanto que outros criam A partir dessa concepção aqui caracterizada de forma exígua, é que se
novas formas para se inserir dentro delas,,18.
reconceitua a Região: como a singularidade da totalidade, de que fala o
gcógrafo:
Essa noção de tempo, pois, é definida no contexto de um espaço
geográfico, como categoria objetiva:
"Os processos nada mais são do que uma expressão da total idade, do que
uma manifestação de sua energia na fonna de movimento; eles são
"O tempo não é absoluto, é relativo, não é o resultado da percepção instrumentos e o veículo da metamorfose de universalidade em singularidade
individual (subjetiva), é um tempo concreto; não é um corüinuurn; mas deve por que passa a totalidade. O conceito de totalidade constitui a base para a
ser dividido em sccçõcs, cada uma com suas características específicas.
interpretação de todos os objetos e forças"22.
Logo, devemos encontrar uma periodização haseada em parâmetros
mensuráveis, considerando-os não individualmente ou separadamente, mas
em suas inter-relaçõcs. Dessa forma encontramos verdadeiros sistemas de Desse espaço total, o estudioso infere que espaço regional é uma
tempo". questão de escala:

assim como "O espaço total c o espaço local são aspectos de uma úniea e mesma
realidade - a realidade total - à imagem do universal e dos particulares. A
"As relações entre períodos históricos c a organi7.ação espacial também sociedade global e o espaço global se transfonnam através do tempo, num
devem ser analisadas. Elas nos revelarão sistemas espaciais seguindo-se movimento que, embora interessando igualmente as diversas facções da
sucessivamente, não obstante os valores relativos dos lugares mudem através sociedade e do espaço, é o resultado da interação entre sociedade global e
da IIistória"19. espaço global e de suas diversas funções ( ... ) Lugares e áreas, regiões ou
subcspaço são, pois, áreas funcionais, cuja escala depende dos processos."

Na medida que a espacial idade tem sua configuração determinada


socialmente pelo modo com que os homens se relacionam com a natureza, pois,
infere-se que cada modo de produzir da sociedade produz simultaneamente
uma organização peculiar de espaço, que atenda ao sentido daquele Modo de
Produção. "A relação espaço-tempo (processo histórico) resulta, pois, em
20Cf. SILVElRA, Rosa Maria Godoy. O Regionalismo Nordestino: existência e consciência
18Cr. SANTOS, Milton. op. cit. p. 138. Grifos nossos. da desigualdade regional. São Paulo, Moderna, 1984. p. 49.
C
19 r. SANTOS, Milton. Relações espaço-Iemporais no mundo subdesenvolvido. São Paulo, 21 Cf. SANTOS, Milton. A totalidade do diabo. Contexto, nQ 4. São Paulo llUCITEC, novo
Associação dos Gcógrafos Brasileiros, dez. 1976. (Seleção de textos, I) p. 20. 1977. p. 41.
22[dem ibidem. p. 40.

30
31
"O espaço é o resultado de uma acumulação desigual de tempo"23. (criação de infra-cstruturas) e da mediação jurídica (regulamentação do direito
de propriedade e regras administrativas sobre a utilização do espaço social).
Com isso, o autor quer dizer que a divisão internacional do trabalho
No que diz respeito mais especificamente às configurações sociais regionais,
constitui um princípio ordcnador do espaço total com um sistema de tempo
em escala mundial, sendo externo e dando o significado a Lodos os outros "A cspccifidadc do quadro nacional único (em relação ao desenvolvimento
sistemas externo e interno de tempo, A noção de centro e periferia decorre desigual intemacional) diz respeito precisamente à unicidade do espaço
dessa afirmativa, pois os lugares expressam uma combinação desigual mas político: é sobre o conjunto do tcrritório que o Estado deve desempenhar seu
articulada de capital, trabalho, Lecnologia e trabalho morto que se soma à papel na manutenção da formação social sob a dominação do modo de
produção capitalista".
cultura e à organização social de uma dada sociedade, em outras palavras,
uma articulação de "variáveis assincrônicas funcionando sincronicamente", "Mas a intervenção unificadora do Estado não implica - muito ao contrário-
As diferenças de organização do espaço entre os países e as chamadas na unifonnização. Se, em últuma instância, a contradição principal da
"disparidadcs regionais" resultam dessa defasagem. Complementando seu sociedade (burguesia/proletariado) se regula ao nível do Estado nacional,
enquanto detentor do monopólio da força fazendo aplicar o direito da classe
pensamento, o autor considera que a unidade de análise geográfica deve ser o
dominante ( ... ), em contrapartida, o sistema hcgcmônico, que não somente
Estado nacional, que intermedia o tempo externo e o tempo interno, é o enquadra as nossas populações submetidas a formas de exploração variadas,
agente de organização espacial orientado pelo sentido do Modo de Produção mas ainda associa ao capital monopolista das classes dominantes, elas
dominante, mas levando em consideração o que denomina de forças internas. também variáveis segundo as regiões, o sistema de hcgcmonia, então, pode e
É o Estado - Nação que elege áreas, estabelece uma divisão tcrritorial do deve ser moldado segundo as regiões.
Uma configuração regional pode precisamente ser considerada como uma
trabalho, impõe uma hicrarquização dos lugares, pela dotação diferenciada
zona concreta ao nível da qual se regulam as contradições secundárias entre
dos equipamentos. as classes dominantes, sobre a base da fase atingida pela articulação dos
A concepção de MilLon Santos tem pontos de arroximação e de modos de produção e do estágio atingido pelo capital local,,25.
distinção com a de um outro estudioso, Alain Lipictz 4, cujo cerne de
análise é a dimensão política da espacial idade, as relações entre espaço e Apoiado na tcorização gramsciana, Lipictz procura conccituar o que
poder. Teorizando o espaço mais amplamente do que o geógrafo brasileiro, seja um bloco hegemônico regional: slstcma de exploração e de articulação
conforme pode ser entrevisto na citação referida neste texto, o que torna seu de modos de produção, forma e base das alianças entre as classes dominantes;
conceito, em Lese, aplicável à análise de outros modos de produção que não forma e campo da dominação ideológica sobre as classes dominadas. Ainda
apenas o capitalista, Lipietz enfoca o espaço como "um campo de ação por numa visão gramsciana, Lipictz aponta que o processo de articulação dos
excelência das forças políticas" e o Estado dotado de um duplo caráter: modos de produção no capital monopolista implica na transformação dos
abrangendo, reproduzindo, impondo ou transformando contradições explorados à maneira antiga, em exército de reserva para o capital
horizontais (as espaciais, como, por exemplo, entre campo e cidade, entre monopolista no lugar mesmo ou em outros lugares; e (implica) na reversão
comunidades locais) e contradições verticais (as sociais, de classes, entre dos compromissos com as classes dominantes locais (notáveis e intelectuais
dominantes e dominados). Enquanto, ao nível vertical, cabe à instância Lradicionais) e sua substituição por classes-apoios modcrnizantcs. Em
política assegurar condições de reprodução do modo de produção e intervir conscquência desse processo de transformação, pode se desencadear uma luta
para acelerar, incluir ou reverter o processo de articulação dos modos de de classes que opõe os detentores do "antigo espaço" ao "novo espaço", com
produção co-presentes na formação social, ao nível horizontal, da as classes dominantes locais envolvendo as classes trabalhadoras respectivas
espacial idade, cabe-lhe intervir para assegurar a espacial idade dos modos de numa luta que, em última instância, é a luta para preservar a organização
produção, ou seja, cuidar da organização tcrritorial bem como articular espacial. À ação modcrnizadora do Estado - rcgionalizadora -, o autor
cspacíalrncruc os modos de produção, ou seja, promover a ação regional contrapõe, assim, o regionalismo, ideologia de manutenção da antiga ordem
sobre a evolução das estruturas regionais. Sendo o Estado classista, trata-se espacial, e segundo a qual esta é representada como "natural", não
de uma apropriação privada do espaço social através da mediação técnica contraditória, comunitária. Esta luta assim configurada ainda tem por
agravante colocar trabalhadores da velha ordem espacial contra trabalhadores
23Cf. obras citadas nas notas 18 e 20.
24
Cf. op. cit. na nota 16.
25Cf. op. cit. pp. 142-143.

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33
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da nova ordem, quer situados no espaço regional, quer fora dele, sob a contribuições, compreender a distinção entre valor contido e valor criado no
máscara de uma luta de espaço contra espaço. O regionalismo nordestino espaço, o primeiro conceito equivalendo aos recursos disponíveis na natureza
exemplifica cristalinarncntc essa interpretação de Lipietz. (valor do espaço) e o segundo, ao valor agregado ao espaço pela ação
Embora informados - Milton Santos e Alain Lipictz - por uma con- humana (valor no espaço), o "tempo materializado" de que fala Milton
cepção de espaços articulados e diferenciados, e embora se refira à organiza- Santos e que interfere como capital fixo em novos processos de geração de
ção social de um dado lugar como interferindo na sua cstruturação em termos valor. Permite, igualmente, rcclimensionar alguns conceitos como Espaço,
espaciais, o gcógrafo brasileiro, talvez por sua própria formação, se concen- Território e Região: Espaço como categoria da lógica, que viabiliza o
trou muito mais no processo de difusão da variável tccnologia como elemen- entendimento do Território, categoria mais referente ao empírico, que, na
to difcrcnciador de espaços e na ação de intervenção do Estado-Nação como accpção marxista, é o processo de apropriação de determinadas porções do
intermediário desse processo; Lipictz, como se verifica, centra a análise no globo terrestre, resultante da dialética entre valor contido e valor criado. A
papel do Estado-Nação enquanto expressão de dominação de classe. Região seria um conceito para instrumcntalizar a diferenciação de formas no
A análise de Francisco de Oliveira sobre o Nordeste brasileiro, em processo. De qualquer modo, convém remarcar que a epistemologia do
Elegia para uma Re(li)gião26, que causou impacto sobre os estudos regio- materialismo histórico ainda se ressente de maior aprofundamcnto no tocante
nais no país, aproxima-se da elaborada pelo estudioso francês. Delimitando a à questão regional: a obra clássica a respeito é de Lênin, Formação do
validade do conceito de região para o sistema capitalista, o economista Capitalismo na Rússia28, em que o autor procura caracterizar a diferenciação
pcrnambucano igualmente cnfatiza a instância política sem, no entanto, do espaço russo a partir da desarticulação das antigas organizações espaciais e
aprofundar seu entendimento da base tcrritorial. sua rcarticulação na lógica do processo capital ista naquele país. Aponta
como a acumulação de capital nas mãos de uma classe ocorre paralelamente
Uma região a um processo de acumulação de recursos (valor criado) em uma determinada
área da Rússia. Essa obra lança fundamentos para a teoria do
" ... seria, em suma, o espaço onde sc imbricam dialeticamente urna forma desenvolvimento capitalista desigual e combinado, hoje largamente
especial de reprodução do capital e, por consequência, urna fonna especial
de luta de classes, onde o econômico e o político fusionam e assumem uma
difundida, notada mente entre os economistas e que nos permitiria conceituar
fonna especial de apareccr no produto social e nos pressupostos da a região da seguinte forma:
reposição ••27
" ... uma "região" só será plenamente caracterizada se for analisada no seu
complexo de imbricaçõcs e relações: na relação com a formação social, de
Sua caracterização do Nordeste, colocando em xeque a configuração que é um "corte" espacial delimitado histórica, portanto dinamicamente, o
oficial e mascaradora da região e ainda se cingindo aos Nordestes açucareiro e aspecto básico a ser vislumbrado é o nível de articulação das atividades
algodoeiro-pecuário, avança no mesmo sentido com que Lipictz avalia a produtivas da região ao modelo de acumulação dominante; na relação com
problemática regional na França, mas é taxativo ao referenciar a tendência à os demais cortes espaciais, cujas "Irontciras" estão em contínuo
homogcncização do espaço e ao conseqüente desaparecimento da região. reajustamento, o aspecto básico é a fonna específica de reprodução do
capital, portanto, a diferenciação e articulação entre os cortes; c, finalmente,
Estes autores, cujo pensamento aqui expusemos a vôo de pássaro, no âmbito interno à própria região, o aspecto básico é o nível de suas forças
representam hoje expressões primaciais na condução dos estudos que têm produtivas e suas relações dc produção ••29.
procurado rcdirncnsionar a questão espacial e regional no país. Uns mais,
outros menos, suas concepções têm em comum a matriz do materialismo Assim conceituada a região, pcrrnitir-sc-á caracterizar o sentido comum
histórico, que recuperou, para a análise espacial, a central idade do trabalho que a unifica, dado pelo sentido do Modo de Produção que domina a
humano na organização da superfície terrestre, refutando a naturalização das organização de seu espaço, ainda que não esteja plenamente implantado
concepções anteriores e, portanto, contestando a sua postura a-histórica, ou naquele determinado espaço; porque no caso do Modo de Produção
melhor, ami-histórica. A teoria do valor possibilita, entre outras

26Cf. OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para wna Re(li)gião. Sudene, Nordeste. 2RCr. EI desarrollo deI capitalismo en RUSSÜl; El processo de Ia [ormacion de un mercado
Planejamento e conflito de classes. Rio de Janeiro, Paz c Terra, 1977. interior para Ia gran industria. Barcelona, Aricl, c. 1974.
27rdem ihidcm. p. 29. 29Cf. SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. op. cit. p. 52.

34 35
Capitalista, o espaço se estrutura para realizar a acumulação. As várias reprodução do capital no controle das lutas sociais torna-se um
formas de reprodução do valor permitirão caracterizar as singularidades imperativo ••31.
espaciais, constituídas pela concretude das leis de reprodução do Modo de
Produção e mais a carga histórica passada incorporada ao espaço. E a Quanto aos recortes regionais, fariam também parte da estratégia do
identificação das forças produtivas e das relações de produção permitirá, em capital. Se o Estado-Nação coordena as espacial idades pelo e para o capital, a
suma, caracterizar a estrutura de classes singular ao corte regional mas região (e quem a comanda, é óbvio) coordena a viabilização de uma certa
articulada às estruturas de classes específicas aos demais cortes e à estrutura forma de reprodução do valor articulado pelo e para o sentido geral do Modo
de classes mais global do sistema. Muitos conceitos correIa tos precisavam de Produção Capitalista. De igual forma, as "fronteiras" dos recortes
ser aqui melhor dimcnsionados, mas as limitações deste texto nos impedem regionais não coincidem com as fronteiras políüco-administrativas de uma
de Iazê-lo: assim, a questão da Formação Social e do mercado externo- certa área, os recortes provinciais ou estaduais, por exemplo.
interno que com ela se imbrica. Deixamo-Ias referidas, para posteriores É preciso distinguir:
reflexões. a) cspacialização - isto é, ação intervencionista do Estado no sentido
Sem dúvida, foi a Questão Meridional gramsciana que permitiu o de organizar o território segundo interesses bem definidos e que,
avanço na elaboração do conceito de espaço regional ao nível da unificação portanto, é um fato social, dinâmico, em processo, em determinada
elas classes dominantes no sistema capitalista e de suas cspccificidadcs época; sinônimo de rcgionalização, ação de criar regiões,
espaciais ele acordo com as diferenças de formas de geração de valor, bem b) cspacialidadc - uma organização de território já produzida e
como ao nível de suas relações com as classes dominadas. Sua accpção do codificada sob a expressão de fronteiras legais que acabam sendo
Bloco Histórico desvenda a essência elo Estado-nação como instância rebaixadas pela sobrcdctcrminação do processo de espacialização.
mediadora entre o sentido necessário de imprimir-se à organização social e Sinônimo de região já criada.
territorial, ditado pela lógica do sistema capitalista no processo de sua Essa diferença, queremos crer, é fundamental para derrubar a idéia
reprodução e a organização social e territorial já posta historicamente, como sirnplificadora que opõe nacional e regional e permite pensar na
resultante ou de um Modo de Produção anterior ou de etapas anteriores do supcrposição de sistemas espaciais sobre o território, mas que guardam
capitalismo e cujos agentes (da organização social e tcrritorial) se simultaneamente pontos de articulação e pontos de cspecificidadcs.
posicionam, a partir do lugar social que ocupam, de diferenciadas maneiras Basta pensarmos na rcgionalização empreendida pelo Estado no
em relação ao novo processo que se pretende configurar. Rclcmbre-sc a Nordeste, através da SUDENE. A própria área delimitada para atuação
configuração da problemática, dada por LipieLz. Assim, os recortes nacionais rebaixa as fronteiras estaduais, inclui-se o norte de Minas Gerais e mesmo
se constituíram como componentes da estratégia do capital para expandir-se quando a linguagem é reducionista, homogeneizando espaços ao configurar
vertical e horizontalmente, viabilizando a constituição de um mercado estados como área de intervenção daquele órgão, O projeto tem uma direção
interno (na accpção de Lênin e de Rosa Luxcmburgojl'' distinto do mercado bastante nítida: são determinadas porções dos territórios estaduais que
externo, sem que haja - enfatize-se - rebatimento entre limites do mercado e interessam à ação do planejador.
tcrritorialidadc (fronteiras nacionais lixas, visíveis, dcrnarcadas). Explicando- Paulo Henrique Martins, em texto inédito, aponta para as dificuldades
se estas fronteiras, ainda segundo a concepção materialista da História. para demarcar as 'fronteiras internas" ao Estado nacional: sua importância
secundária em relação à fronteira nacional, a maior mobilidade histórica de
"No caso da nação os pontos de separação entre o "dentro" e o "fora" são seus limites e a multiplicidadc de limites fronteiriços regionais. Para o
mais claros: são dados pelas fronteiras modernas do Estado burguês. Essas
autor,
fronteiras não são criadas por condicionantes políticos propriamente ditos.
Esta necessidade política dc demarcação de "fronteiras modernas" nasce
quando a fixação das atividades produtivas gera uma divisão territorial de "As 'fronteiras internas' têm, no fundo, a mesma importância estrutural das
produção e divisão territorial do poder polú ico, até o ponto em que a criação 'fronteiras externas' para a sobrevivência do Estado burguês. Elas traçam
de um aparelho de Estado especialmente localizado e adaptado para gerir a limites que permitem ao Estado c1assista sustentar a divisão conflituosa das
classes sociais ao mesmo tempo que este Estado exerce um efeito
polarizador sobre o conjunto dessas classes sociais. Os limites das "fronteiras
30Cf. LE!'.1N, V.L. op. cit. e LUXEMBURG, Rosa. 1\ acumulação do capital. 21 cd, Rio de
Janeiro, Zahar, 1976.
31Cf. MARTINS, Paulo I1enrique N. op. cit. na nota I. p. 22.

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exter nas':, criando um território nacional, permite a organização de um que se submetem, pois, ao capital, mas em condições desiguais.
povo-nação, cuja existência real termina por montar um arco de O termo nacional deve ter a substância de articulação de relações
solidariedade entre indivíduos que são, na prática, socialmente diferenciados. e não de uniformização destas últimas" 33.
Do mesmo modo, os limites das 'fronteiras internas' - esse é o aspecto que
2') A segunda questão diz respeito à validade do conceito aplicado
chamamos particular atenção - são o suporte de territórios regionais, onde se
organizam povos - regiões, cujas existências reais também criam arcos de para outras temporal idades históricas que não aquela produzida
solidariedades que contribuem para mascarar a existência de indivíduos pelo Modo de Produção Capitalista. Ultrapassa, nestes termos,
socialmente diferenciados ••32. as dimensões propostas neste trabalho e as limitações da autora.
No entanto, consideramos que deva ser registrado como um
Embora pudéssemos comentar algumas discordâncias que temos em problema teórico de mais alta relevância.
relação a essa citação, consideramos mais importante apontar que a tentativa É inegável que a maior parte dos estudiosos da chamada "questão
de reconccituar-sc região, à luz do materialismo histórico, ainda não resolveu regional" concentrou suas análises e suas elaborações teóricas a partir do
a contento - pelo próprio fato de que é uma produção bastante recente - duas processo de constituição do capitalismo. Francisco de Oliveira é taxativo ao
questões fundamentais em termos epistemológicos: identificar região e geração de valor capitalista. De certa forma, em trabalho
l~) no interior do próprio conceito, a explicação para o processo de anterior, aceitamos essa caracterização.
homogeneização/heterogeneização do espaço, Francisco de Oli- Se refletirmos sobre o fato de que o conceito de região, hoje como
veira opta pela interpretação de que o capital monopolista tem ontem, é atravessado centralmente pela problemática das diferenças
por tendência homogeneizar o espaço e conduzir mesmo ao desa- consubstanciadas nas formas espaciais, c se utilizarmos o conceito histórico-
parecimento da região. Outros autores o repetem. Esse enfoque é estrutural do espaço, que, por sua vez, guarda uma determinada visão das
crucial para o historiador, na medida que, a ser verdadeiro, sua relações Homem-Natureza, acreditamos na sua aplicabilidadc para representar
conseqüência lógica última seria o qucstionamcnto ela noção de e explicar outras organizações espaciais produzidas ao longo do processo
singularidade. . histórico. A elaboração em Marx, do conceito de território como "processo
"Acreditamos que, de certo modo.falta a essa abordagem, talvez de apropriação de determinadas porções do globo terrestre" foi acompanhada
como sintoma de sua rejeição aos fundamentos geográficos de uma série de exemplos aplicados a outros períodos da História: "O que faz
tradicionais, contidos nos conceitos conservadores de região - o com que uma região da terra seja um território de caça é o fato de as tribos
conceito de espaço na acepção da própria geografia contemporâ- caçarem nela; o que transforma o solo num prolongamento do corpo do indi-
nea de vertente marxista. Espaço enquanto produçâo-produto da víduo é a agricultura. Tendo sido construida a cidade de Roma, e suas terras
relação natureza-sociedade. Espaço enquanto expressão de circunvizinhas cultivadas por seus cidadãos, as condições da comunidade
historicidades incorporadas na paisagem. diferiram das que haviam vigorado arueriormente'ú", Ai acha-se embutida a
Raciocinando a partir desse conceito, e na medida que, portanto, noção de valor criado no espaço, assim como ele enxerga as condições
os espaços são especificados por recursos naturais e por ações naturais da existência, o valor contido no espaço. E fica explícita a relação
humanas diferenciadas, gerando cargas históricas desiguais, mes- entre território, cuja produção significa o domínio e apropriação da natureza,
mo sob a ação do capital, como pensar que a ação homoge- e região, cuja raiz etimológica, inclusive, deriva de reger, comandar,
neizadora deste último passaria por cima dessas historicidades? governar. Região sendo, assim, porção do território de comando.
(. ..)
Consideramos ainda válido pensar os três níveis de caracterização de
... a homogeneização do espaço nacional não elimina as suas uma região para outros Modos de Produção, a relação corte-espacial (espaço
desigualdades internas, pois, caso contrário, se colocaria em das atividades produtivas) e o sentido geral da Formação Social e do espaço,
questionamento a própria concemraçâo de capitais. dado pelo Modo de Produção dominante; a relação entre os cortes-espaciais e
A homogeneizaçâo do espaço nacional, em nosso entender,
significa exatamente, em termos teóricos: a generalização das 33Cr. SILVEfRA, Rosa Maria Godoy. A Queslão Regional: gênese e evolução. João Pessoa,
relações capitalistas deforma articulada entre os vários espaços, mimeo., Texto apresentado no Seminário O Nordeste e a Questão Regional, dentro das
atividades do Encontro Paraibano de História, realizado de \O a 14 de junho de 1985.
32Idem ibidcrn, p. 23. 34Cf. MARX, K. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975.

38 39
as relações intra-cortc espacial (relações sociais de produção). A tenuidade das
articulações espaciais no Modo de Produção Feudal, com uma organização que asseguram a dominação espacial burguesa estão sendo utilizadas como
digamos fragmentada, não significa que não houvesse um Estado mediando a categorias pretensamente cxplicativas da realidade para manter a opacidade de
apropriação do território e ordenando-o para um sentido geral do sistema. Há compreensão dos processos sociais: assim tem sido a categoria região, que
uma articulação de instâncias e de espaços, diferente em intensidade do Modo desloca para um nível geográfico (físico) a determinação de um processo em
de Produção Capitalista, Outra diferença residiria na distinção qualitativa da outras esferas.
temporalidade. Dado que é o capitalismo que provoca, mediante a criação do A rcconccituação de região se toma neeessária para compreendermos e
mercado e sua mundialização, o aprofundamento das articulações extensivas explicarmos a realidade o mais aproximadamente possível do que ela é e,
(espaciais) e verticais (sociais), o espaço regional seria neste Modo de Produ- assim, nos instrumentalizarmos para ações políticas visando a sua mudança.
ção atravessado por várias temporalidades externas, no dizer de Milton San- Pensando no reexame do processo histórico brasileiro sob esta ótica, a
tos. Em outras palavras, a intensificação do valor de troca, caracteriza a matcrialização do uso do conceito seria um novo mapa do Brasil que apreen-
articulação espacial capitalista pela subordinação de outros Modos de desse melhor não só as fronteiras legais mas as várias, superpostas e cone-
Produção. Em etapas anteriores do processo histórico, a organização espacial xas espacial idades. Seria configurar um outro Nordeste que não esse somató-
seria determinada por uma temporalidade interna e o valor de uso do terri- rio oficial dos Estados, mas cujo espaço não seria contíguo mas incluiria
tório seria preponderante sobre o valor de troca. Em síntese: se as diferenças também o território paulista, por exemplo. Seria repensar o significado das
espaciais anteriores ao Modo de Produção Capitalista eram dadas pelas "ru- unidades político-administrativas estaduais não como regiões, mas atraves-
gosidades" específicas mais os usos desiguais, as diferenças espaciais sado por regiões, o que explicaria sua diferenciação interna, a articulação de
posteriores seriam dadas pelas "rugosidades" mais as trocas desiguais. A interesses de algumas de suas classes sociais com os interesses de classes
complexidade conceitual fez com que um outro gcógrafo, Armando Correa da sociais de outras unidades. Seria explicar porque o separatismo não se
Silva35, distinguisse região isolada, de região marginal da região concretiza em nosso processo histórico, apesar das tendências para 1lI1.
complementar, usando como referencial a circulação. É inegável que essa reconceituação tem profundas implicações para se
Não temos, ao menos no estágio de nossos estudos pessoais, ele- viabilizarem ações concretas em termos do ensino e da pesquisa da ciência da
mentos para responder com clareza a esta questão teórica da mais alta rele- 11istória. No ensino,
vância para o entendimento da correlação Região-História. Mas consi- "os critérios de recortar a realidade (cronológicas ou espaciais ou
deramos essencial cobrá-Ia à reflexão e submetê-Ia à contribuição em que o culturais), ao serem inseridas nos currículos, tacitamente já portam
debate público, sem dúvida, resulta. "cargas ideológicas" de consenso, homogeneizadoras de um real não
homogêneo, cujos dcterminantes são, desse modo, mascarados".

Conclusão ... Do mesmo modo que o fronteiramento nacionalista, o frontci-


ramento regional dos currículos pode estar viabilizando frontci-
Já vimos como a utilização do arsenal teórico posiuvísta e nco- ramentos regionalistas, que não permitirão apreender o real processo
positivista tem produzido sérias distorçõcs no entendimento da realidade e, histórico da região, pois as fronteiras regionais gcopoliticas ou
em conseqüência, nas práticas políticas. Assim, por exemplo, a geográficas não constituem a verdadeira fronteira da região, que só
naturalização da própria natureza tem retirado o Homem da História, em será coincidente com o real regional se no processo de conheci-
suma, tem produzido uma representação anti-histórica do real, ensejando o mento da mesma entrar a questão do trabalho, que é o elemento de
determinismo e camuflando quaisquer perspectivas de transformação social. definição da 11umanidade, portanto, da Ilistária.
A expressão última do dctcrminisrno, a Geopolítica, tem reiterado o
imperialismo. A cntificação do espaço, por sua vez, e sua interpretação ... Se a falta de Illstária Regional afasta o educando de seu coti-
autonomizada, tem como conseqüência os regionalismos reacionários e os diano e gera o equívoco de que ele pense esse cotidiano como se fos-
bairrismos de toda (ou sem) qualidade. Isto significa dizer que as mediações se o mesmo do resto do país, o simples fato de inverter a dosagem
curricular mas na base de recortes regionais tradicionais, poderá
35Cf. SILVA, Armando Corrca da. O Espaço fora do lugar. São Paulo, IIUClTEC, 1978. implicar na percepção fragmentada, isolada da llistória Regional,

40
41
destituída, por um processo de homogeneização geopolluca, de suas Regionalismo: o Enfoque Metodológico
diferenciações internas, de suas articulações externas no espaço e a Concepção Histórtca"
brasileiro efora dele" 36.
Na pesquisa, um dos efeitos que pode resultar dessa revisão teórico- Fera Alice Cardoso Silvo"'
metodológica da questão regional é uma estruturação de Centros de
Documentação e Pesquisa de História Regional, ao possibilitar elementos
para a caracterização e delimitação da área de abrangência de tais Centros, o
que, inclusive, forneceria indicações dos próprios temas e problemas a serem
documentados e pcsquisados. "-
Mas, se a problemática regional se constitui hoje tônica da ciência
histórica, tal ocorrência provém do fato que se constitui, primeiramente,
problema colocado no processo histórico atual, associado inequivocamente
às desigualdades espaciais e, por assim dizer, sociais. Restringindo-nos, à
guisa de exemplo, ao nosso processo histórico, questões essenciais de
âmbito espacial se colocam no debate político sobre o reordenamento da
sociedade brasileira ora em curso: no estágio atual do capit.alismo no Brasil,
que estratégia territorial será mais adequada para a manutenção do sentido de
acumulação do sistema? A propalada "recuperação do Federalismo" cuja
tendência de viabilizar-se está-se configurando através do "pacto dos governa-
dores" , até que ponto representa uma força dcmocratizantc, obstaculizando ou
Região, regionalismo e história regional
detendo a expansão do capital, conforme o discurso aparentemente faz crer?
Ou até que ponto, na verdade, representaria uma nova estratégia do capital O primeiro pOOlOrelevante é a própria definição de regionalismo. O
configurada espacialmente? Qual seria a estratégia tcrritorial mais adequada referencial analítico que dá sentido ao enfoque rcgionalista é a teoria de
para promover a transformação em sentido social dcmocratizarnc? sistemas. O conceito de sistema pressupõe integração de partes que
Tais indagações por si só demonstram a relevância do tema deste debate compõem uma unidade significativa de relações e movimento. Os limites de
e o sentido mais profundo de História que orientou a sua escolha. um sistema, ou seja, o número e natureza de suas partes componentes,
dependem, conseqüentemente, do tipo de unidade que se pretende estudar.
A região só se entende, então, metodologicamente falando, como parte
de um sistema de relações que ela integra. Deve, portanto, ser definida por
referência ao sistema que fornece seu princípio de identidade. Assim, pode-se
, falar tanto de uma região no sistema internacional, como de uma região
dentro do estado naeional ou dentro de uma das unidades de um sistema
político federativo. Pode-se falar, igualmente de uma região cujas froOleiras
não coincidam com fronteiras políticas juridicamente definida').

* Texto escrito especialmente para esta coletânea.

36Cf. SIL VEIRA, Rosa Maria Godoy. Nova Forma de Dominação: a Rcgionalização dos
** Defendeu Doutoramento em História na Universidade de lIlinois, Urbana-Champaign,
EEUU. (i professora Adjunta no Dcpto, de Ciência Política da(UFMQo. atuando em
Currículos. In Licenciatura de Il istôria: estudos e propostas, João Pessoa, junho de 1984.
graduação e pós-graduação. Publicou, em co-autoria com Lucilia de Al~. Delgado,
Trabalhos apresentados no II Encontro Estadual de Rcf onnulação dos Cursos de Formação
Tracredo Neves - A trajetária de um liberal.
do Educador. pp. 24-25.

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o que não se pode perder de vista, no entanto, é que a significação sistema de valores e interesses que dá forma a uma identidade coletiva capaz
analítica e a utilidade cxplicativa do conceito de região dependem de sua de gerar "atitudes de lealdade e apego por parte dos habitantes".
referência constante a um sistema global de relações do qual foi recortada. Definem regionalismo como um tipo de comportamento político, "ca-
-- Observa-se, deste modo, que o enfoque rcgionalista não pode limitar-se
à coleta de dados e à observação da dinâmica dos processos internos à região
racterizado, por um lado, pela aceitação de uma unidade política mais abran-
gente, mas por outro, pela busca de certo favoritismo e certa autonomia de
Jdelimitada para estudo. A interpretação compreensiva desta dinâmica depende
da análise de sua inserção do movimento global do sistema.
decisão (em matéria política ~ econômica), mesmo ao risco de pôr em perigo
a legitimidade do sistema político vigente. Assim, a ênfase não é posta na
Tome-se, a título de exemplo, a federação brasileira como unidade peculiaridade regional per se (folclore, maneiras de falar ctc.), mas nos
sistêrnica, dentro do qual os estados membros podem ser tomados como fatores que podem efetivamente afetar as relações políticas, econômicas e
regiões. sociais com as outras regiões e com a unidade maior do governo, no caso a
Esta opção de análise foi feita há alguns anos por três brasilianistas União":'.
norte-americanos, Joseph Love, Robert Levine e John Wirth. Os três A conveniência de se distinguir entre a dimensão mctodológica e a
utilizaram o mesmo referencial metodológico para estudar a evolução intcrprctativa do enfoque rcgionalista deriva justamente das dificuldades
econômica, social e política de São Paulo, Pernambuco e Minas Gerais, teóricas que decorrem da inclusão do elemento político na definição de
dentro da federação, do advento da República à implantação do Estado Novo. região, como fizeram os autores citados.
Na introdução comum aos três estudos 1 , esclarecem a opção pelo Esta inclusão pressupõe que os interesses que servem como pontos de
enfoque regionalista e a escolha dos três estados citados. Afirmam primeiro articulação da ação política das elites e de grupos populares têm base
que "o objetivo é escrever História comparativa de um ponto de vista essencialmente local e são assim percebidos. Nesta perspectiva, a política
regional, a saber, apontando semelhanças e diferenças entre os três estados nacional aparece como reflexo de movimentos e iniciativas que têm origem
principais, identificando ao mesmo tempo, modos de intcração no nível nas diferentes regiões componentes da União. Ou seja, o enfoque
nacional. [... ] (Busca-se explicar) o papel de São Paulo, localizado no rcgionalista aplicar-se-ia ao estudo de sistemas olíticos carac e Z' d r
Centro-Sul e bcneficiário maior do crescimento gerado pela exportação; [... ] algum grau e dcsccntralização econômica e administrativa. Mas, uco •/
(o papel de) Minas Gerais, estado politicamente poderoso e situado numa valor terIa nos casos dcrcgimes autorItanos, em sucedidos no cerceamento ~ l>
posição intermediária entre os estados do Sul e o Nordeste empobrecido; [... ] da autonomia decisória de elites locais. Nessa linha de inter reta ão o
(o papel de) Pernambuco, o mais importante estado do Nordeste [... ] caso en oque reglona ISta não teria muito com o que contribuir na compreensão
típico de decadência política e cconõmica'S. (to BraSil Dós-64. Dor exemnl()
Ao definirem região e regionalismo indicam a diferença entre o ImÍtação apontada decorre, naturalmente, da adoção do regionalismo
instrumento metodológico e a interpretação teórica, diferença que nos parece como enfoque interpretativo de relações políticas entre centros de poder
crucial na avaliação do sentido e utilidade da História regional. territorialmente delimitados.
Segundo os autores, região e regionalismo são definidos com referência Mas, se se retira o elemento político como elemento essencial da
ao problema em foco, que é o estudo de política e de suas bases econômicas definição de região, esta passa a ser um utilíssimo referencial analítico no
e sociais num período de várias décadas". Elementos essenciais da definição estudo da História.
de região são, em primeiro lugar, um território delimitado, passível de ser IAregião deve ser concebida como um território contínuo. Dentro deste,
concebido como decomponível em subregiões, e, em segundo lugar, um correm os processos de produção (de bens e serviços) e de reprodução de um
modelo determinado de convivência socialj Assim, a região pode coincidir
u não com fronteiras politicamente cstabclccidas, como são as fronteiras
\~ entre estados nacionais ou as fronteiras entre os estados membros de uma
1Lcvine, Robcrt. A velha usina: Pernambuco na Federação Brasileira, 1889-1937. Ed, Paz e
Terra, 1980; Wirth, John. O fiel da balança: Minas Gerais na Federação Brasileira, 1889-
federação.
1937. Ed, Paz e Terra, 1982; Love, Joseph. A locomotiva: São Paulo na Federação
Brasileira, 1889-1937: E:d...V.az eTerra, 1982. As referências foram retiradas da Introdução
reproduzida no livro de Joseph Love;7-15.
2Op. cit., p. 7: iti
44 45
Por outro lado, a divisão política que cria estados nacionais, dcparta- regional tem representado um dos mais eficazes instrumentos de teste de
mentes, províncias e municípios, representa uma das variáveis relevantes teorias cstabclccidas,
para a compreensão da dinâmica econômica e social de cada região que se Podemos lembrar, a título de exemplo, a recente polêmica em torno da
pode recortar como objeto de estudo. É relevante, por um lado, porque deli- natureza da escravidão moderna, levantada pelo artigo de Amilcar Martins
mita o espaço legal de ação política de elites, grupos de interesse e classes Filho e Roberto Borges Martins publicado na revista norte-americana llispa-
sociais. Por outro lado, é relevante porque, em muitos casos, a região como nic Amcrican llistorlcal Review', Estudando a escravidão em Minas Gerais,
unidade econômica e social é anterior à delimitação das fronteiras políticas durante o século XIX, os autores demonstraram um padrão de distribuição e
do Estado Nacional. O processo de integração nacional e de rcarticulação das de utilização deste tipo de trabalho que dificilmente se coaduna com a tese
relações econômicas ganha, então, feição diferente daquela situação em que a clássica e predominante que associa a escravidão moderna exclusivamente à
região decorre da fixação prévia de fronteiras políticas e sua dinâmica não produção para o mercado e à expansão do setor capitalista da economia. Os
colide, em pontos básicos, com a do estado nacional+, dados expostos evidenciaram, além do mais, que a distribuição da mão-de-
O espaço de ação das elites e grupos locais pode ser, naturalmente, am- obra escrava em Minas diferiu significativamente do padrão paulista, este

D
pliado ou restringido em resultado da própria ação política. Mas os recursos sim, bem conforme à tese corrente. Em Minas, os escravos distribuíam-se
de poder que elites, grupos de interesse e classes podem mobilizar e mani- por uma série de atividades pouco ou nada relacionadas com o setor
pular são em princípio, as potcncialidadcs da região. Estas potencialidades exportador, de resto aí muito menos dinâmico e moderno que o paulista.
podem ser naturais ou ali criadas. O exemplo serve para sugerir que a História regional talvez seja o
Assim é que as regiões se distinguem }ela dis onibilidade de recursos único método eficaz de test.ar o âmbito de validade de grandes teorias (ou de
econômicos, pelos atrativos que o erecem à sua ocupação produtiva, pela sua generalizações teóricas baseadas no que poderíamos chamar de "indução
complemenlaridade face aos sistemas de produção e de circulação de riqueza. incompleta", a saber, na consideração de um ou poucos casos tomados com
Distinguem-se pela qualidade de seus hablwntes e predisposição social~ paradigmns),
Cü1TiJrala modernlzaçao. Dlstmguem-se pelo grau de importância gcopolüica Por estudar a m
e até mesmo pela segurança física que oferecem a seus habitantes (não estão social) ao 16Jigo do tempo, a
as mudanças ccossistêmicas provocando terremotos e maremotos em regiões cºi1tliluidaJes eôescontmuldllacs-nos nroccssos fie muaanca cconomrca e
ricas, dantes consideradas muito seguras") SOCial.Deste modo lorneccos elementos de comparação que, a nosso ver,
A História regional não substitui a história de processos estruturais ou ~ ser os materiais a serem usados pelos cientistas sociais na construção
a histona de mudanças soCiãis e políticas. Nem deve ser visw como forne:=- e revisão de teorias.
cedora de subsídios que, somados, resultariam naturalmente numa "História (Indo um pouco mais longe, poder-se-ia até esperar que o conhecimento
íiãCTõnal" ou numa "Ffistória geral". Mas, a História regiOnal oferecej das diferenças, muito mais do que das semelhanças regionais, poderia
elementoslnsubstituíveis para estudos comearatiyos c c~t-a ~ão contribuir para aumentar o nível de racional idade das decisões políticas e
ãpenaS li jTI:ffi Iiea e !t lOi lia ilcccss,íria. melhorar a qualidade do planejamento público.)
O regionalismo, portanto, é útil como método de estudo de processos
econômicos, sociais e políticos que ocorrem em territórios determinados, ao
História regional e história comparada lon~o.do tempo. O pr?blcma teórico 9~e se coloca p~r~ o historiador é.? da
dellml~㺠d~s frootClfus.J!eS[eS...lemtonos. E..&~t.aJ.lcliJDlt.açãoqueesUI5Clccc
As grandes teorias sociais, econômicas e políticas representam arquéti- uma uníiliitle si rnificativ' de reh' de movimento, que tem sentido
pos que destacam os elementos essenciais nos processos de organização e c r com outras ema de cl.Q,mentos e seme ànça e de
dinâmica das instituições. A verificação da plausibiliclade e da força cxpli- '.1 erenÇi!
cativa de cada uma depende em última análise do teste histórico. A História
Ser. Martins Filho, Amilcar V. and Robcno Borgcs Martins, "Slavery in a noncxport
4Este ponto foi levantado de modo perspicaz por Antônio Mirre, "Espacio regional andino y economy: 19th ccntury Minas Gerais rcvisiicd". llispanic American llistorical Review, 93,
política en cI siglo XIX". Estudos Pecla, vol. I, n" 2, maio 1982 (Programa de Estudos Com- Auturnn 1983. O debate teve seqüência no número seguinte, Martins, Robcrto B. e Amilcar
parativos Latino-Americanos - Dcpio de Ciência Política, UFMG), especialmente 1'1'. 1-8. V. Martins Filho, "Slavcry in a noncxport economy: a Rcply". IIAIlR, 94, Wintcr 1984.

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o regionalismo assim concebido é um método de constituição de um
objeto de estudo histórico. Este objeto pode ser ainda mais especificado III upantcs das posições de decisão política, atuam, então, com rcfcrcnciais de
como ocorre nos casos em que se considera preferencialmente um dos 11I1l'fCSSede âmbito variado. Em alguns casos, o interesse é claramente
processos que articulam a vida da região, quer o econômico, quer o social em lI'glonal, sendo a confrontação vivida em termos tcrritoriais (o governo local
sentido amplo ou mais restrito, quer o político. uuura o governo central, o nordeste contra o sul, Minas Gerais contra São
Dada a natureza da dimensão política na articulação da ordem social, l'nulo ... ) Em outros casos, o referencial é o interesse de grupo ou de classe,
vale a pena refletir um pouco mais sobre sua importância na delimitação da ultrapassando fronteiras regionais.
região. O âmbito de poder de um centro político (governo nacional ou Disto pode-se concluir que o regionalismo como comportamento
metropolitano, por exemplo), fixa a fronteira legal entre as atividades político é um dos elementos da explicação histórica, válido para certos
públicas e as privadas. Isso significa dizer que a autonomia dos indivíduos e c ontcxtos e certas conjunturas. No livro já clássico de Simon Schwartzman
I/(/.\CS do autoritarismo brasilciroê, o autor chama atenção para o fato de que
dos grupos para produzir, negociar e intcragir, ou seja, para fixarem um
11,10 se pode ignorar o peso do regionalismo na evolução política de um país
espaço de atuação social e econômica, é politicamente definida. Nesse
sentido, a região pode ser vista como um espaço de ação cujos limites como o Brasil, dada a natureza limitada do controle do governo central sobre
contraem-se ou ampliam-se em função de iniciativas de indivíduos, grupos e o poder local durante um longo período de formação do estado nacional. A
governos que buscam formalizar o controle sobre os recursos disponíveis em própria dinâmica do federalismo brasileiro, rnarcada pela predominância de
territórios determinados. alguns estados na política nacional, aponta para a necessidade de se
IA contração ou ampliação da região é, então, basicamente, um distinguir as instâncias em que as elites atuam como classe e aquelas em que
fenômeno político. Novas formas de controle sobre a economia c as aluam como grupos regionais de interesse.
instituições sociais resultam do jogo de interesses que, no mundo moderno, A perspectiva histórica evidencia o tipo de tensões que caracteriza a
deram origem a impérios e, gradualmente ao sistema de estados nacionais. construção do estado nacional, nos casos em que governos locais gozavam
Em que medida os formatos políticos coincidem com os espaços de autonomia administrativa e comercial, perdendo-a gradualmente para
econômicos e sociais sobre os quais se impõem? É para estudar este tipo de centros nacionais de poder. .. Em tais circunstâncias os conflitos de classe
questão que a História regional apresenta-se como enfoque de análise aparecem intcrrncdiados pela confrontação entre o centro de poder e suas
insubstituível, pois seu objeto é sempre uma articulação complexa de periferias. A identidade regional e as lealdades que elites locais podem
relações econômicas, sociais e políticas, em espaços determinados e em arrcgimcntar desempenham, assim, importante papel na configuração das
tempos determinados. lutas políticas que têm marcado a formação dos estados modernos.
Não se quer concluir aqui que a história nacional deva ser o somatório
das Histórias regionais. Mas estas indicam as variáveis que são relevantes
Política regionalista e elites regionais para a compreensão do sistema global de relações, que é o estado nacional. A
nosso ver, podem também indicar além do mais, o grau de estabilidade e de
No mundo moderno a região tem sempre um substrato político, ou continuidade deste sistema.
seja, ela coincide plenamente, ou não, com fronteiras legalmente A História é um campo rico de investigação que justifica variados
estabelecidas (ou em disputa política). Aí dentro, cabendo nas fronteiras ou modos de acesso e de compreensão. Como método, o regionalismo
cxtrapolando-as, organizam-se os grupos políticos, cujos interesses podem configura o objeto da História regional, e assim oferece elementos essenciais
ter o local como referencial dominante. Mas, estes grupos podem ter outros para a História comparada. Como e interpretativo o regionalismo
referenciais, como é o caso dos interesses de classe ou dos interesses aponta ara a complexidade de focos de articulação da a ão co cuva, nem
nacionais. A política rcgionalista, tal como definida por Love, Levine e s~npre jntcirmncnte exp Icave por re crcncia as classes e à estratificação J
Wirth, passa a ser, então, um dos modos possíveis de relacionamento entre econômica das sociedades modema~.
o todo (nesse exemplo, o estado nacional) e as partes (os estados-membros
de uma federação).
As elites regionais definidas como grupos de indivíduos que se
destacam das classes e grupos de interesse como porta-vozes políticos, e 6Cf. Schwartzman, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. Ed, Universidade de Brasília,
192, especialmente os capítulos 3,4 e 5.

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