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DIREITOS E DEVERES

FUNDAMENTAIS
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ELDA COELHO DE AZEVEDO BUSSINGUER
Organizadora

DIREITOS E DEVERES
FUNDAMENTAIS

EDITORA LUMEN JURIS


Rio de Janeiro
2012
Copyright © 2012 by Elda Coelho de Azevedo Bussinguer

Categoria: Direito Público

PRODUÇÃO EDITORIAL
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

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Impresso no Brasil
Printed in Brazil

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D598 Direitos e deveres fundamentais/ Organizadora Elda Coelho de


Azevedo Bussinguer — Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2012.
260p. ; 16x23cm. –
Inclui Bibliografia
ISBN 978-85-375-2248-6

1. Direitos humanos - Brasil. 2. Direitos fundamentais. 3. Deveres fundamen-


tais. 4. Pesquisa jurídica. I. Bussinguer, Elda Coelho de Azevedo.

CDU 342.7

Ficha catalográfica elaborada por Altiva Corrêa da Silva – CRB 6/102


APRESENTAÇÃO

A pesquisa na Área do Direito tem se intensificado no Brasil com a ampliação


dos cursos de pós-graduação stricto senso (mestrado e doutorado). Essa profusão de
geração de conhecimento vem permitindo uma verdadeira revolução no modo de
se conceber os fenômenos jurídicos que surgem das relações humanas no contex-
to político, econômico, social etc. Buscando acompanhar uma realidade cada vez
mais complexa e mutante, o labor científico é cada vez mais exigido em dar respos-
tas rápidas sem perder a confiabilidade que se extrai a partir do rigor metodológico.
O modo de se fazer pesquisa também se transformou. A imagem caricata do
cientista desligado do mundo e imerso em seu objeto de estudo de forma solitária
é algo que fica para o passado. As pesquisas no mundo contemporâneo aconte-
cem de forma nucleada e em redes multidisciplinares. Tais transformações vêm
em razão da necessidade de responder às demandas da sociedade. Nesse sentido,
profissionais dotados de competência se organizam em grupos de pesquisas com a
finalidade de produzir conhecimento de forma compartilhada.
O Programa de Pós-Graduação stricto senso da Faculdade de Direito de Vi-
tória (FDV) em consonância com esse novo tempo científico, primordialmente
para a Área do Direito, vem trilhando nesse caminho a pouco mais de uma dé-
cada. Conta hoje com 08 GPs, quais sejam: Efetivação de Direitos Fundamen-
tais pelo Estado; Acesso à Justiça na Perspectiva dos Direitos Humanos; Retórica
na História das Ideias Jurídicas no Brasil; Estado, Democracia Constitucional e
Direitos Fundamentais; Hermenêutica Jurídica e Jurisdição Constitucional; Invi-
sibilidade Social e Energias Emancipatórias em Direitos Humanos; Direito, So-
ciedade e Cultura; Políticas Públicas, Direito à Saúde e Bioética. Todos os GPs
encontram-se devidamente registrados no Diretório de Grupos do CNPq.
Vários projetos foram desenvolvidos ao longo desses anos e, vários estão em
fase de execução. A presente publicação é resultado de estudos desenvolvidos no
âmbito dos GPs do PPGD-FDV, que reúne Professores doutores, doutorandos,
mestrandos e graduandos, além de pesquisadores externos ligados a outras IES.
A Área de conhecimento que o PPGD-FDV elegeu para o aprofundamento
de estudos em nível stricto senso é a de Direitos e Garantias Fundamentais. O
constitucionalismo brasileiro pós-88 promoveu a emancipação do direito cons-
titucional em nosso meio, emplacando em definitivo o princípio da supremacia
constitucional. Do texto constitucional emerge o conteúdo normativo de prote-
ção da pessoa humana na qualidade de fator limitador do poderio estatal. O Es-
tado está limitado, ao Estado é conferido deveres. Não é diferente para com o ci-
dadão. Cidadania se expressa ao se exercitar direitos. Todavia o cidadão somente
é cidadão na completude quando cumpre com os seus deveres, que também são
estabelecidos constitucionalmente como fundamentais. O Capítulo I do Título
II da CRFB de 1988 estabelece “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”.
Deveres são substrato para o exercício pleno dos direitos. Deveres tangenciam e
se inter-relacionam com as obrigações.
Não apenas no referido Título, mas em todo o sistema constitucional
adotado a partir de 1988 vamos encontrar direitos e deveres fundamentais em
espécies. Nesse sentido, abre-se um campo de pesquisa extraordinário na pers-
pectiva dos direitos e deveres fundamentais.
Várias indagações surgem a partir da necessidade de se construir uma
teoria geral dos deveres fundamentais; visualizar formas e instrumentos de efe-
tivação dos mesmos. Diretos e deveres seriam faces de uma mesma moeda? Para
responder a essa indagação, não basta o sortilégio do cara e coroa, é preciso
investigar para se chegar a um resultado que seja metodologicamente seguro.
Em suma, essa é a proposta da presente obra; proporcionar ao leitor algumas
conclusões acerca dos temas acima mencionados, com o fito de provocar o diálogo
e ao mesmo tempo contribuir com o avanço do debate científico no campo jurídico.

Daury Cesar Fabriz


Prof. Dr. Em Direito Constitucional pela FD/UFMG
Coordenador do PPGD-FDV (mestrado e doutorado)
Presidente da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH)
SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................. v
Daury Cesar Fabriz

A redução das alíquotas do IPI Incidente na Comercialização


de Veículos Automotores: Uma (in)justificável relativização
do dever fundamental de contribuir com os gastos públicos .............. 1
Álvaro Augusto Lauff Machado e Adriano Sant’Ana Pedra

Os Deveres Fundamentais e a Solidariedade nas Relações Privadas .......... 13


Bruna Lyra Duque e Adriano Sant’Ana Pedra

Obrigações tributárias acessórias na perspectiva do


dever fundamental de contribuir com os gastos públicos:
uma reflexão acerca dos critérios para sua instituição ......................... 25
Henrique da Cunha Tavares e Adriano Sant’Ana Pedra

A Alienação Parental e o dever fundamental de proteção


integral à criança e ao adolescente .......................................................... 37
Nayanne Neves Spessimilli e Adriano Sant’Ana Pedra

O rol de deveres fundamentais na Constituição


como Numerus Apertus ............................................................................ 45
Pedro Gallo Vieira e Adriano Sant’Ana Pedra

O Direito Fundamental à segurança pública e a sociedade


aberta dos intérpretes da Constituição ................................................... 55
Ronaldo Louzada Bernardo Segundo e Adriano Sant’Ana Pedra

Dever fundamental de pagar tributos, omissão


Legislativa Inconstitucional e deslocamento provisório
da Competência Legislativa .................................................................... 67
Anderson Sant’Ana Pedra e Adriano Sant’Ana Pedra
Dos deveres fundamentais:
Notas preparatórias para uma Survey – a questão taxonômica ........... 79
Julio Pinheiro Faro e Daury Cesar Fabriz

Breves considerações sobre deveres com sanção e deveres


sem sanção no direito brasileiro ............................................................. 89
Fabiano Lepre Marques e Daury Cesar Fabriz

A família e o afeto:
o dever fundamental dos pais em dar afeto aos filhos como
mecanismo de proteção ao desenvolvimento da personalidade
e concretização da dignidade humana ................................................... 99
Heleno Florindo da Silva e Daury César Fabriz

A medida do binômio necessidade-possibilidade no dever


fundamental dos descendentes de proverem os ascendentes ................ 111
Luísa Cortat Simonetti Gonçalves e Daury César Fabriz

O dever fundamental de recuperação, manutenção e proteção


das matas ciliares e das nascentes à luz do princípio da
proibição do retrocesso: uma análise do código florestal brasileiro ..... 121
Ivy de Souza Abreu e Daury César Fabriz

A teoria geral da prestação do dever fundamental, pautado


na alteridade, sob a ótica de Lévinas ...................................................... 133
Jorge Abikair Filho e Daury Cesar Fabriz

ADI 3510/DF: pesquisas com células-tronco embrionárias vs.


o principio da dignidade humana e o direito à vida (digna) ................ 147
Flaviana Röpke da Silva, Jorge Abikair Filho e Daury Fabriz

O Contexto Biopolítico do Prolongamento Artificial da Vida


de Pacientes Terminais à Luz da Perspectiva de Giorgio Agamben ....... 163
Elda Coelho de Azevedo Bussinguer e Shayene Machado Salles

A Morte de Ivan Ilitch:


Uma Reflexão “Ético-Filosófica” Sobre a Morte e os
Cuidados no Final da Vida........................................................................ 179
Juliana Matias e Elda Coelho de Azevedo Bussinguer
O conteúdo discriminatório da liberdade de associação:
uma análise, dialogada com Paul Ricoeur, do julgamento
do RESP 650.373 ..................................................................................... 191
Nelson Camatta Moreira e Breno Maifrede Campanha

Os tratados internacionais de direitos humanos e a sua


afirmação à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ......... 205
Nelson Camatta Moreira
e Lara Santos Zangerolame Taroco

A Ilha do Dr. Moreau, a Cidadania


e o Neoconstitucionalismo no Brasil:
brevíssimas considerações entre a ficção e a realidade social .............. 223
Nelson Camatta Moreira e Robson Louzada Lopes

A Administração Pública
e as Leis Inconstitucionais ...................................................................... 233
Christiano Dias Lopes Neto, Carolina Bonadiman Esteves
e Samuel Meira Brasil Junior

A aplicação da técnica de interpretação conforme a


Constituição pela administração pública ............................................... 243
Cláudio de Oliveira Santos Colnago, Carolina Bonadiman Esteves
e Samuel Meira Brasil Jr.
OS DEVERES FUNDAMENTAIS E A
SOLIDARIEDADE NAS RELAÇÕES PRIVADAS1
Bruna Lyra Duque2
Adriano Sant’Ana Pedra3

INTRODUÇÃO
O estudo avaliará questões relacionadas ao individualismo versus solida-
rismo, nas relações privadas, sob o enfoque da vinculação dos particulares aos
deveres fundamentais, a partir da premissa de que um sujeito de direito é um ser
livre e, ainda, um titular não só de direitos, mas também de deveres.
A solidariedade é, na verdade, o outro lado de uma mesma moeda no jogo
dos direitos e deveres, uma vez que ratifica a incidência de direitos fundamen-
tais abrangidos pela norma constitucional, podendo ser compreendida a partir

1 Artigo desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisa “Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fun-
damentais”, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado e Doutorado em Direitos e
Garantias Fundamentais, sob a coordenação do Professor Adriano Sant’Ana Pedra.
2 Doutoranda e Mestre do Programa de Pós-Graduação em Direitos e Garantias Fundamentais da
Faculdade de Direito de Vitória (FDV); especialista em Direito Empresarial pela FDV; professora de
Direito Civil da Graduação e da Especialização da FDV; advogada.
3 Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc/SP); mes-
tre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); professor do
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado e Doutorado – em Direitos e Garantias Funda-
mentais da FDV; procurador federal.

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Os Deveres Fundamentais
e a Solidariedade nas Relações Privadas

de uma relação de reciprocidade: se existem direitos, em contrapartida, existe o


dever de prestar solidariedade.
Não obstante, no campo contratual, a autonomia privada é uma ferramen-
ta que permite a livre atuação dos particulares, autorizada pelo próprio ordena-
mento jurídico, para a realização de seus interesses, com funções econômicas e
sociais diversas. Assim, cada indivíduo determina os rumos da sua existência,
de acordo com as suas preferências subjetivas e materiais, respeitando-se a sua
liberdade de escolha.
No Estado Democrático de Direito, projetado pelos traços do neoliberalis-
mo, a diminuição da atuação estatal acarreta o aumento da autonomia e serve
para corrigir o déficit de participação e legitimidade do Estado (SILVA, 1987).
No plano da solidariedade, a autonomia privada, em face das novas realidades
sociais e econômicas, precisa adaptar-se e ganhar nova roupagem: a realização
da justiça e o equilíbrio nas relações. Por outro lado, no que tange à liberdade/
poder dos indivíduos, quanto mais os poderes dos indivíduos (na esfera econômi-
ca) aumentam, tanto mais diminuem as suas liberdades (BOBBIO, 1992, p. 22).
A Constituição da República Federativa do Brasil não apresenta apenas
normas que conferem direitos4, mas apresenta diversos deveres dos sujeitos
como membros do Estado. Tem-se, assim, que os deveres fundamentais são recí-
procos aos direitos fundamentais (ou direitos da liberdade), pois se limitam por
estes e se prestam ao mesmo tempo como garantia para o exercício da liberdade.
Um Estado, portanto, não é concebido apenas de direitos.
Dessa maneira, a temática dos deveres fundamentais diante da autonomia
privada será considerada a partir da tese da simetria entre direitos e deveres
fundamentais. Nesse ponto, busca-se compreender como o reconhecimento de
uma relação sinalagmática entre particulares enfraquece a autonomia privada
e pode gerar conflitos de interesses quando se aplica sem critérios e de forma
absoluta o dirigismo contratual.
Compreender-se-á os deveres fundamentais no tocante à sua natureza de
direitos conexos. Em seguida, será analisada a questão do dever de solidariedade
– dever fundamental inerente ao princípio da solidariedade –, nas relações pri-

4 Sobre a necessidade da sociedade organizar-se com direitos e deveres, Carlos Alberto Gabriel Maino
adverte: “pensadores han advertido que no es posible organizar humanamente a la sociedad alrededor
del concepto de derechos exclusivamente”. O mesmo autor, citando Danilo Castellano, esclarece que
“ha puesto el acento en que los derechos humanos son en realidad el ejercicio de los deberes del hombre,
o derechos derivados de los deberes de otros, o aún derivados de la utilización de bienes que son fruto
de actividades personales como, por ejemplo, el trabajo o la propiedad”. Cf. MAINO, Carlos Alberto
Gabriel. Derechos fundamentales y la necesidad de recuperar los deberes: aproximación a la luz del
pensamiento de Francisco Puy. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang; CARBONELL,
Miguel (Coord.). Direitos, deveres e garantias fundamentais. Salvador: Juspodium, 2011. p. 36.

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Bruna Lyra Duque
Adriano Sant’Ana Pedra

vadas, para, só assim, adentrar-se na problematização que se pretende enfrentar


quanto à relação entre os deveres fundamentais e o espaço da liberdade dos
particulares no exercício da autonomia privada.

A CONCEPÇÃO DOS DEVERES FUNDAMENTAIS


É indiscutível que os operadores do direito concentram suas pesquisas em
torno dos direitos fundamentais. A doutrina, no mesmo sentido, ocupa-se de-
masiadamente com o plano dos direitos fundamentais, o que resulta na ênfase
dos direitos e na ausência de tratativa dos temas ligados aos deveres fundamen-
tais. Dimoulis e Martins (2011, p. 325-326) explicam o entendimento de Carl
Schmitt, que, ao analisar a Constituição de Weimar, expôs o desinteresse sobre
os deveres fundamentais em quatro pontos, a saber:

a) o Estado capitalista-liberal não pode estabelecer deve-


res fundamentais que teriam a mesma estrutura dos direi-
tos fundamentais, já que sua finalidade é garantir espaços
de livre atuação dos indivíduos, limitando o Estado; b) A
Constituição de Weimar limitou-se a estabelecer deveres
aos órgãos estatais, o único dever explícito dos cidadãos era
o serviço militar; c) As referências abstratas a deveres só
podem ser implementadas mediante lei que os concretizar;
d) O dever de cumprir as leis é uma determinação vazia
de conteúdo, pois o conteúdo das obrigações não depende
da Constituição, mas das variações da legislação ordinária.

O conceito de dever tem sido decisivo com a identificação do direito com


a lei para a formação do direito moderno (PECES-BARBA, 1987, p. 329-341).
José Casalta Nabais (1998, p. 64) também reforça a importância da coexistência
entre direitos e deveres na sociedade.
Os deveres fundamentais são qualificados, pela maioria da doutrina, como
aqueles vinculados à dimensão objetiva dos direitos fundamentais, pois concen-
tram os valores da comunidade em relação ao poder público, já que a concepção
dos direitos fundamentais como poderes individuais contra o Estado exprime a
relação entre poder público e cidadãos.
Dimoulis e Martins (2011, p. 75) defendem que os deveres fundamentais
são deveres de ação ou omissão, insculpidos na Constituição, cujos sujeitos ati-
vos e passivos são proclamados em cada norma ou podem ser deduzidos me-
diante interpretação. Além disso, para os autores, a titularidade e os sujeitos

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 15 |


Os Deveres Fundamentais
e a Solidariedade nas Relações Privadas

passivos, frequentemente, são difusos e o conteúdo do dever só pode resultar de


concretização infraconstitucional.
Carlos Alberto Gabriel Maino (2011, p. 42) esclarece que devemos recu-
perar o horizonte dos deveres fundamentais tanto do ponto de vista social e
político, como do ponto de vista jurídico. Essa ideia permite compreender e
reconhecer o outro em sua alteridade.
Assim, reconhecer o outro, nas relações privadas, passa a ser o desafio
na compreensão dos deveres fundamentais e a sua aplicabilidade. Os deveres
fundamentais traduzem-se tanto na noção de abstenção, quando ao sujeito do
dever é vedado fazer algo, como na imposição de um comportamento positivo.
Dessa maneira, os deveres fundamentais podem ser concebidos como de-
veres jurídicos da pessoa, tanto física quanto jurídica, que, por determinarem a
posição fundamental do indivíduo, apresentam um significado para determina-
do grupo ou sociedade e, assim, podem ser exigidos numa perspectiva pública,
privada, política, econômica e social.

A SOLIDARIEDADE NAS RELAÇÕES PRIVADAS


Compreender a solidariedade não é tarefa fácil. Intuitivamente, parece
que a noção do “ser solidário” oferece aquela ideia automática do dever moral.
Outrossim, do ponto de vista jurídico, a solidariedade está relacionada com a
ampliação da visão horizontal da tratativa entre duas pessoas, “para apreender
as relações verticais que apresenta com o resto da sociedade. Trata-se de ampliar
o fundamento de fato, de forma que relacione os conflitos individuais com as
tensões estruturais sistemáticas da vida social” (LORENZETTI, 1996, p. 237).
O dever de solidariedade está previsto no artigo 3º da Constituição bra-
sileira como um objetivo da República Federativa, apresentando-se como uma
finalidade de edificação de uma sociedade livre e justa. Nesse contexto, tem-
-se que em todas as relações privadas tal princípio deverá ser considerado. A
função essencial de tais deveres está relacionada aos anseios comunitários, nos
quais se situam as pessoas humanas.
Tais objetivos destacados no Texto Constitucional, no Título I, como “Dos
Princípios Fundamentais”, enaltecem a qualidade do que é essencial, fazendo
“com que desfrutem de preeminência, seja na realização pelos Poderes Públicos e
demais destinatários do ditado constitucional, seja na tarefa de interpretá-los e,
à sua luz, interpretar todo o ordenamento jurídico nacional” (MORAES, 2008).
O papel do dever de solidariedade, portanto, passa pela ideia de que o
estudo do direito não pode ser afastado da análise da sociedade, de forma a
permitir a individualização do papel e do fenômeno social. O direito tem como

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Bruna Lyra Duque
Adriano Sant’Ana Pedra

ponto de referência o homem na sua evolução psicofísica, “existencial”, que se


torna história na sua relação com os outros homens. “A complexidade da vida
social implica que a determinação da relevância e do significado da existência
deve ser efetuada como existência no âmbito social, ou seja, como ‘coexistên-
cia’” (PERLINGIERI, 2002, p. 1).
Sobre os deveres fundamentais nas relações privadas, Dimitri Dimoulis e
Leonardo Martins (2011, p. 328) apresentam as seguintes situações: “o particu-
lar A pode impedir totalmente o exercício da liberdade de expressão de B sem
violá-la, tendo em vista uma cláusula contratual ou exercício de outro direito
fundamental”. Uma associação, então, teria o dever fundamental de não excluir
um membro ideologicamente inoportuno? Um problema de fundo, portanto, se
apresenta nesta perspectiva: as limitações à autonomia privada, assim, podem
ocorrer sob o pretexto por si só de tutelar o titular do direito?
A solidariedade, neste cenário, ratifica a incidência de diversos direitos
fundamentais abrangidos pela norma constitucional. Em outras palavras, a soli-
dariedade pode ser compreendida como uma verdadeira relação de reciprocida-
de: se existem direitos, em contrapartida, existe o dever de prestar solidariedade.
Há, então, uma estreita relação entre deveres e restrições aos direitos. É
tênue a relação entre os deveres fundamentais, os limites e as restrições aos
direitos fundamentais, pois tais restrições podem ser justificadas a partir dos
deveres fundamentais, em prol dos interesses da sociedade.
A tese aqui desenvolvida passa pela ideia de restrição, mas não uma restri-
ção isolada, pelo contrário, trata-se de uma restrição voltada para a perspectiva
do solidarismo nas relações privadas, e, para isso, optou-se pela aplicação da
teoria do diálogo das fontes sustentada por Erik Jayme (2003, p. 114), na qual
não se pretende retirar do sistema qualquer uma de suas fontes, mas agregá-las
por meio do diálogo. Partindo da ideia de que dada realidade jurídica mostra-
-se sobre “recíproca influência entre os aspectos sociais, econômicos, políticos
e aqueles normativo-jurídicos, a transformação de um aspecto econômico,
político, ético, incide – às vezes profundamente – sobre a ordem normativa e
vice-versa” (PERLINGIERI, 2002, p. 2).
Quanto ao caráter econômico da temática aqui desenvolvida, utiliza-se
parâmetros da economia para avaliar os limites/critérios do avanço ou freio
na estipulação de deveres fundamentais voltados ao particular diante de um
conflito de interesses. Parte-se da premissa de que a economia exerce forte in-
fluência nas questões contratuais.
Na economia globalizada, em vista disso, há o enfraquecimento dos Esta-
dos e o fortalecimento dos mercados, propiciando a fusão de grandes empresas
que concentram o poder econômico. Nessa relação entre o direito e a econo-

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 17 |


Os Deveres Fundamentais
e a Solidariedade nas Relações Privadas

mia5, a teoria da agência admite a dificuldade na estipulação dos deveres entre


sujeitos, a partir da premissa de que os contratos são criados para serem incom-
pletos, e apresenta questões problemáticas como a assimetria de informação, a
transação e o oportunismo presente nos conceitos econômicos.
Os contratos definidos entre os agentes econômicos são efetivamente in-
completos, segundo Rachel Sztajn (2005. p. 74), uma vez que não existe a ca-
pacidade para antecipar todas as contingências futuras, mesmo levando-se em
conta que nenhum dos contratantes tornar-se-á inadimplente durante ou após a
contratação. E qual a relação dessa temática com os deveres fundamentais? É o
que se pretende responder com a ideia de harmonização proposta neste estudo.

OS DEVERES FUNDAMENTAIS RESTRINGEM A LIBERDADE


DOS PARTICULARES NO EXERCÍCIO DA AUTONOMIA PRIVADA?

Os deveres fundamentais erroneamente empregados acabam por restringir


a liberdade dos particulares. O direito não tem o condão de impor condutas
ao psiquismo humano e não pode obrigar o indivíduo a pensar, agir ou nutrir
sentimentos dessa ou daquela maneira; mas pode corrigir distorções, exageros
nas relações jurídicas e vincular os atores sociais ao respeito à norma jurídica.
No campo das relações entre particulares, a autonomia retrata um aspecto
ativo e positivo da personalidade, no âmbito de atuação das pessoas que podem
atuar como ser autônomo e responsável. Assim, na tentativa de relacionar a au-
tonomia com os deveres, no que diz respeito aos deveres fundamentais, pode-se
identificar no constitucionalismo uma ideia simples, a saber: quem possui di-
reitos deve também possuir deveres (DIMOULIS & MARTINS, 2011, p. 339).
Tal contraprestação ocorre, por exemplo, no caso do indivíduo que tem a sua
intimidade preservada, nas redes sociais, e igualmente respeita a intimidade de
outrem no mesmo universo virtual.
Em razão da solidariedade, coloca-se à “disposição dos vulneráveis re-
cursos que permitam o exercício dos direitos fundamentais de maneira satis-
fatória, reforçando a coesão social” (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 339).
Neste ponto, os deveres fundamentais são “instrumentos que auxiliam a vida
em comunidade, facilitando a sua organização e, por si só, devem ser respei-
tados e cumpridos” (RUSCHEL, 2007, p. 231-266). Não obstante, a aplicação

5 Sobre a relação estabelecida entre direito e economia, movimento criado nos Estados Unidos e denomi-
nado de “Law and Economics” na Escola de Chicago, Rachel Sztajn ensina (2005, p. 75) que é imensa a
contribuição que o diálogo entre Direito e Economia pode oferecer ao propor solução para questões atuais.

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Bruna Lyra Duque
Adriano Sant’Ana Pedra

da instrumentalização proposta pela autora absolutamente pode enfraquecer


a autonomia privada.
Mas há critério para o exercício e a implementação desses instrumentos
que buscam a solidariedade? Dito de outra forma, como se dá a harmonização
entre os deveres de solidariedade e o espaço da liberdade dos particulares no
exercício da autonomia privada?
Como se sabe, nos conflitos de interesses, torna-se papel do legislador6 editar
normas que imponham aos agentes privados certos deveres sociais e econômicos.
Nesse sentido, justifica-se a gratuidade de transportes para idosos, a imposição
de regras de reajustes em planos de saúde para determinados grupos e a imposi-
ção de regras para instituição financeira destinar parcela dos recursos obtidos em
programas de financiamento de habitação popular (SARMENTO, 2004. p. 340).
A partir dessa ótica, pode-se indagar v.g. se existe um dever (fundamental) da
empresa de seguro saúde que a obriga a realizar tratamentos médicos inovadores e
com custos exorbitantes em benefício dos seus segurados, ainda que haja expressa
vedação contratual, o que tem sido muito discutido nos tribunais brasileiros.
Entende-se que o responsável primário pela garantia das prestações so-
ciais é o Estado. Assim, a sobrecarga dos atores privados com tais prestações,
sem existência de lei e com viés de dever fundamental, enseja a ocorrência de
um comprometimento da dinâmica dos subsistemas econômicos e sociais. A
necessidade de aplicação dos deveres fundamentais aos particulares em suas
relações (horizontalidade dos deveres fundamentais), sobretudo pautando-se na
solidariedade, não pode descuidar do respeito à autonomia privada a partir de
fundamentos mais básicos da economia.
O particular tem dever fundamental implícito de respeito ao outro no ce-
nário contratual, o que é chamado pela doutrina civilista de deveres anexos.
Todavia, a autonomia privada não pode ser freada pelo Judiciário, por meio do
dirigismo contratual sem critérios e de forma absoluta, para impor aos indiví-
duos e empresas alguns deveres tipicamente estatais, como é o que ocorre em
alguns casos da interferência exagerada nos planos de saúde. Por outro lado,
quando o juiz interpreta o caso para exigir o cumprimento do dever anexo de
solidariedade, pautado em critérios objetivos de violação a deveres de condutas,
cabe relativizar a autonomia privada.
Como adverte Adriano Sant’Ana Pedra (2010, p. 7-36), “a natureza di-
nâmica da Constituição, como organismo vivo que é, permite que ela possa
acompanhar a evolução das circunstâncias sociais”. Assim sendo, a instituição
ou não de deveres fundamentais repousa na soberania do Estado enquanto co-

6 Vieira de Andrade (2004, p. 170) entende que “os deveres fundamentais não são imediatamente
aplicáveis, dependendo da intervenção do legislador para regulamentá-los”.

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 19 |


Os Deveres Fundamentais
e a Solidariedade nas Relações Privadas

munidade organizada, soberania que não pode, todavia, fazer tábua rasa da
dignidade humana, ou seja, da ideia da pessoa humana como princípio e fim da
sociedade e do Estado (NABAIS, 1998, p. 60).
O que se observa, hodiernamente, nas áreas de empréstimos bancários,
seguros, educação e moradia, é que os tribunais têm se manifestado a partir da
premissa absoluta de proteção aos vulneráveis e de forma dissociada às questões
econômicas, repassando ao particular (empresas, planos de saúde, instituições
financeiras, etc.) um dever que seria do Estado, qual seja, programas de saúde,
acesso à educação, fomento da atividade econômica, etc. Contudo, repassar
prestações estatais aos particulares, no exercício de suas atividades econômicas,
de forma a criar condições objetivas que possibilitem o acesso a serviços ou pro-
dutos no cumprimento do dever de solidariedade, pode gerar um desequilíbrio
ainda maior na relação particular versus particular.
O solidarismo pode ser encontrado nas relações privadas de modo geral
(obrigações, contratos, responsabilidade civil, relações empresariais, etc.). Já
no direito das famílias cogita-se a prevalência do melhor interesse da criança,
como expressão da solidariedade no âmbito familiar, ou, ainda, o controle dos
meios de adoção. Maria Celina Bodin de Moraes (2008) esclarece, por exemplo,
que a família não se acha mais fundada em hierarquizações, preocupadas com a
preservação do patrimônio familiar, para se revelar como o espaço de realização
pessoal dos que a compõem.
A teoria do diálogo das fontes sustentada pelo jurista alemão Erik Jayme
(2003, p. 114) auxilia na compreensão do solidarismo nas relações privadas, já
que é um instrumento utilizado para superar antinomias e buscar soluções coe-
rentes em diversas áreas do direito, numa visão sistemática de interpretação das
normas. Tal teoria pode ser utilizada como uma solução “sistemática e tópica
ao mesmo tempo, pois deve ser mais fluida, mais flexível, a permitir maior mo-
bilidade e fineza de distinções”, podendo ser aplicada à questão dos deveres
fundamentais, autonomia privada e direito econômico (MARQUES, 2004).
Neste aspecto, a investigação dos deveres anexos tratados por alguns ci-
vilistas na interpretação das relações entre particulares pode ser aplicada aos
casos concretos que, face ao dirigismo contratual do magistrado, têm imposto
essa transferência da obrigação estatal para o particular.
Defende-se, por exemplo, a aplicação do dever do particular de indenizar o
outro indivíduo que suportou um dano material ou moral, no caso de violação
positiva de uma obrigação, como uma indenização em caráter pedagógico. O
dever fundamental de solidariedade se ajusta à preocupação contemporânea de
releitura dos princípios civis à luz da Constituição da República. Nesse mesmo
sentido, adverte Maria Celina Bodin de Moraes (2006, p. 108) que qualquer

| 20 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Bruna Lyra Duque
Adriano Sant’Ana Pedra

“situação subjetiva recebe a tutela do ordenamento se e enquanto estiver não


apenas em conformidade com o poder de vontade do titular, mas também em
sintonia com o interesse social”.
Na mesma linha, sustenta-se que a normatividade dos princípios e a sua
repercussão nas relações contratuais é uma maneira de fomentar a aplicação
dos deveres fundamentais, bem como submeter as relações privadas ao crivo das
normas constitucionais, especialmente, a solidariedade.
Cita-se, ainda, como dever fundamental, sob o viés do cumprimento da
função social do contrato, a mitigação da relativização dos efeitos dos contratos
para a sua aplicação no contexto social, como é o caso da vedação da concor-
rência desleal e a imposição de indenização pelo segurador ao segurado em caso
de ocorrência de sinistro.
Assim sendo, o contrato não se sustenta de forma isolada. É um meio que
impulsiona as vontades humanas. Mesmo quando existe o conflito de interesses
entre os contratantes, o Judiciário utiliza o caso concreto para melhor aplicar o
direito. Nos negócios nos quais a função social é mais evidente (financiamento,
contratos bancários de modo geral, seguros, questões familiares, etc.), os fenô-
menos econômico e social são ainda mais perceptíveis. O juiz, consequente-
mente, na análise do caso concreto, deve se preocupar com o contingente social
que igualmente será alcançado, pois aqui está o reflexo da aplicação da harmo-
nização dos deveres de solidariedade e do espaço da liberdade dos particulares.

À GUISA DE CONCLUSÃO: UMA PROPOSTA PARA


A APLICAÇÃO DA SOLIDARIEDADE NAS RELAÇÕES PRIVADAS

Constatou-se, neste estudo, que nas relações privadas existem deveres fun-
damentais dos particulares inerentes à solidariedade, mas, ao mesmo tempo,
a autonomia privada precisa ser resguardada em alguns cenários contratuais,
especialmente diante da repercussão econômica que uma interferência judicial
pode causar nas contratações futuras.
Assim, se determinados ônus estatais são repassados aos particulares, no
exercício de suas atividades econômicas, de forma a criar condições objetivas
que possibilitem o acesso a serviços ou produtos no cumprimento do dever de
solidariedade, tal cenário poderá gerar, em determinadas situações, um dese-
quilíbrio maior na relação particular versus particular.
É tênue, portanto, a relação entre os deveres fundamentais, os limites e as
restrições aos direitos fundamentais, pois tais restrições podem ser justificadas
a partir dos deveres fundamentais, em prol dos interesses da sociedade, não
significando ainda a prevalência do interesse público sobre o privado.

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 21 |


Os Deveres Fundamentais
e a Solidariedade nas Relações Privadas

Conclui-se que o alcance do dever fundamental do particular no cenário


da autonomia privada, e o modo como se dá a harmonização entre os deveres
de solidariedade e o espaço da liberdade dos particulares no exercício da auto-
nomia privada, devem observar os deveres anexos do negócio, mas a autonomia
privada não pode ser freada pelo Poder Judiciário (subjetivismo do magistrado),
por meio do dirigismo contratual sem critérios, de forma absoluta e suposta-
mente pautada em direitos fundamentais para impor aos indivíduos e empresas
alguns deveres tipicamente estatais.
A proposta central deste estudo, portanto, reside na noção de que a auto-
nomia privada só poderá ser relativizada, em observância ao dever fundamental
de solidariedade, quando pautada em critérios principiológicos e utilizando-se
do diálogo das fontes.

REFERÊNCIAS
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tuição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2004.
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recuperar los deberes: aproximación a la luz del pensamiento de Francisco
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| 22 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


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Adriano Sant’Ana Pedra

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MARQUES, Cláudia Lima. Sobre a necessidade de “ações afirmativas” em
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SZTAJN, Rachel. Law and economics: direito & economia. Análise econômi-
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DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 23 |


DOS DEVERES FUNDAMENTAIS: NOTAS
PREPARATÓRIAS PARA UMA SURVEY –
A QUESTÃO TAXONÔMICA1

Julio Pinheiro Faro2


Daury Cesar Fabriz3

INTRODUÇÃO: A IMPORTÂNCIA DAS CLASSIFICAÇÕES


Há uma tirada de Ronald Dworkin que aqui cai como luva: “todo mundo
gosta de categorias, filósofos do Direito as adoram. Assim, nós gastamos um
bom tempo, nem sempre proveitosamente, etiquetando nós mesmos e as teorias

1 Artigo desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisa “Estado, Democracia Constitucional e Direitos


Fundamentais” do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado/Doutorado) da Faculdade de
Direito de Vitória (FDV), sob a coordenação do Professor Daury Cesar Fabriz.
2 Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Professor
de Introdução ao Estudo do Direito, Direito Financeiro, Tributário e Processual Tributário na Estácio
de Sá (Vitória/ES); Professor-Coordenador do Grupo de Estudos em Políticas Públicas e Desigual-
dades Sociais na Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Diretor Secretário-Geral da Academia
Brasileira de Direitos Humanos (ABDH); Pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu da Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Advogado e Consultor Jurídico.
3 Doutor e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG); Coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito de
Vitória (FDV); Professor do doutorado, mestrado e da graduação na Faculdade de Direito de Vitória
(FDV); Professor Associado do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo
(Ufes); Sociólogo e Advogado.

| 79 |
Dos deveres fundamentais:
Notas preparatórias para uma Survey – a questão taxonômica

que defendemos4”. De fato, o jurista que nunca tentou classificar alguma coisa
que atire a primeira pedra. Rotular é muito fácil. No entanto, etiquetar de uma
maneira útil e proveitosa já é um pouco mais complicado.
Em geral, as classificações partem de consensos, e os consensos normal-
mente são casos de generalização, algo como um marco que é estabelecido como
um ponto de partida ou como um ponto de chegada, dependendo do referencial
adotado. O fato é que por vezes um marco pode ser falho, e geralmente falha
por ser imposto por uma comunidade científica, a qual considerou determina-
das condições espácio-temporais para firmá-lo. Daí que, com a evolução tec-
nológica e cultural, com as novas descobertas e com os novos estudos sociais,
filosóficos, jurídicos e de outros tipos, algumas fissuras vão sendo formadas nes-
ses consensos até que se abram rombos e o paradigma seja alterado. Assim, as
classificações só têm importância se houver consenso sobre sua utilidade; ainda
que a utilidade seja duvidosa – se houver consenso sobre a dúvida de sua utili-
dade, aí uma classificação perde sua importância.
Mas qual a importância de fazer classificações? A taxonomia, literalmen-
te, é um método de arranjo; agrupando, assim, coisas ou seres vivos em grupos
com base em características em comum, elaborando-se, a partir disso, conceitos
e nomenclaturas. A taxonomia tem utilidade e importância vinculadas, prin-
cipalmente, ao agrupamento e aos nomes dados às coisas e aos seres vivos. Nas
chamadas ciências naturais, a taxonomia é imprescindível, também, embora
não só, em virtude da comunicabilidade de resultados de estudos realizados
e da possibilidade de se realizar pesquisas. A utilidade da taxonomia pode ser
representada, por exemplo, no caso de cogumelos, em que há aqueles que são
comestíveis e aqueles que são mortais, do que a nomenclatura é de elevada
importância, bem como saber distingui-los, um exemplo em que a confusão
quanto ao tipo de cogumelo que pode ser mortal é entre a espécie Amanita
phalloides, conhecida como cicuta verde, e que é mortal, e a espécie Volvariella
volvacea ou, ainda, Amanita virgata, que é conhecida como cogumelo straw, e
que é comestível5. Veja-se, aí, a importância e a utilidade da taxonomia para
evitar mortes por intoxicação.
Por seu lado, a taxonomia jurídica é, em tese, uma técnica, e não disci-
plina jurídica, que classifica institutos e instituições jurídicos a fim de facilitar,
a princípio, o entendimento ou o estudo. Entretanto, muitas das classificações,
das nomenclaturas e dos conceitos jurídicos, muitas vezes mais confundem que

4 DWORKIN, Ronald M. “Natural” law revisited. University of Florida Law Review, v. 34, n. 2, 1982, p. 165.
5 Ver os verbetes em Wikipedia, para Amanita phalloides: <http://en.wikipedia.org/wiki/Amanita_
phalloides> e para Volvariella volvacea: <http://en.wikipedia.org/wiki/Volvariella_volvacea>. Aces-
so, a ambas, em 26 set. 2012.

| 80 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Julio Pinheiro Faro
Daury Cesar Fabriz

facilitam, já que cada jurista gosta de ter a sua classificação ou pelo menos de
lhe dar o nome que crê mais apropriado, sem falar nas divergências existen-
tes sobre quais institutos ou instituições devem ser encaixados em cada grupo.
Além disso, existem as famosas classificações de sofá, que só têm importância
e utilidade teórica, sendo desprezíveis na prática – o que, aliás, acontece com a
maioria das classificações jurídicas.
A proposta aqui é rever tanto a importância quanto a utilidade prática de
classificar os deveres fundamentais, utilizando-se, para isso, uma reavaliação do
método cartesiano, bem como das classificações de alguns autores preocupados
com o estudo do tema, a fim de que se possa pesquisar o campo para a elabora-
ção de um survey sobre os deveres fundamentais.

A TAXONOMIA DOS DEVERES FUNDAMENTAIS


Dentre os trabalhos previamente identificados6, podem ser encontrados
diversos tipos de classificações sobre o instituto dos deveres, do que se pode lis-

6 ALEGRE MARTÍNEZ, Miguel Ángel. Los deberes en la constitución española: esencialidad y pro-
blemática. Teoría y Realidad Constitucional, n. 23, 2009; ASIS ROIG, Rafael de. Deberes y obligaciones
en la Constitución. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991; BAYÓN MOHINO, Juan
Carlos. Los deberes positivos generales y la determinación de sus límites (observaciones al artículo
de Ernesto Garzón Valdés). Doxa, n. 3, 1986; BUSCH VENTHUR, Tania. Deberes constitucionales.
Revista de la Facultad de Ciencias Jurídicas de la Universidad Católica de Salta, n. 1, 2011; CASALTA
NABAIS, José. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucio-
nal do Estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009; DÍAZ REVORIO, Francisco Javier.
Derechos humanos y deberes fundamentales. Sobre el concepto de deber constitucional y los deberes
en la Constitución Española de 1978. IUS – Revista del Instituto de Ciencias Jurídicas de Puebla, vol. 5,
n. 28, 2011; ENGEL, Salo; SÁENZ, Gonzalo. Los derechos y deberes fundamentales de los Estados:
algunas observaciones. Foro Internacional, vol. 13, n. 1 (49), 1972; GARZÓN VALDÉS, Ernesto.
Algunos comentarios críticos a las críticas de Juan Carlos Bayón y Francisco Laporta. Doxa, vol. 3,
1986; GARZÓN VALDÉS, Ernesto. Los deberes positives generales y su fundamentación. Doxa, vol.
3, 1986; GONZÁLEZ LAGIER, Daniel; RÓDENAS, Ángeles. Los deberes positivos generales y el
concepto de “causa”. Doxa, vol. 30, 2007; LANCHESTER, Fulco. Los deberes constitucionales en el
derecho comparado. Revista de Derecho Constitucional Europeo, vol. 7, n. 13, 2010; LAPORTA, Fran-
cisco J. Algunos problemas de los deberes positivos generales (observaciones a un artículo de Ernesto
Garzón Valdés). Doxa, n. 3, 1986; NAVAS B., Sara. Observaciones a algunas normas del capitulo III
“de los derechos y deberes constitucionales” del proyecto de nueva constitución. Revista Chilena de
Derecho, vol. 6, 1979; PALOMBELLA, Gianluigi. De los derechos y de su relación con los deberes y
los fines. Derechos y Libertades, n. 17, 2007; PARRA, Dario. Deberes constitucionales. Boletín de la
Academia de Ciencias Políticas y Sociales, vol. 31, n. 34, 1966; PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio.
Los deberes fundamentales. Doxa, n. 4, 1987; PINHEIRO FARO, Julio. Deveres como condição para
a concretização de direitos. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 79, 2012;
RAWLS, John. Obrigação jurídica e o dever de agir com equidade (fair play). Estudos Jurídicos, vol. 40,
n. 1, 2007; REDONDO, María Cristina. El carácter práctico de los deberes jurídicos. Doxa, n. 21-II,
1998; ROCA, Victoria. ¿De qué hablamos cuando hablamos de deberes jurídicos? Doxa, n. 25, 2002;

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 81 |


Dos deveres fundamentais:
Notas preparatórias para uma Survey – a questão taxonômica

tar, apenas a título ilustrativo: deveres fundamentais e deveres constitucionais;


deveres correlatos ou conexos a direitos ou específicos e deveres autônomos ou
genéricos; deveres positivos ou de prestação e deveres negativos ou de defesa;
deveres expressos e deveres implícitos; deveres constitucionais e deveres inter-
nacionais; deveres fundamentais e deveres humanos; deveres sociais e deveres
estatais; deveres individuais e deveres coletivos; deveres morais e deveres jurídi-
cos; deveres cívicos e deveres jurídicos; deveres e obrigações, etc. A seguir serão
tratadas algumas dessas classificações, tecendo-se breves considerações sobre
sua utilidade e importância práticas, já que discussões abstratas que não têm
aplicabilidade concreta não têm qualquer serventia, a não ser teórica.
Distinguir os deveres em deveres constitucionais e deveres fundamentais (como
fazem alguns autores, por exemplo: Alegre Martínez, Busch Venthur, Casalta
Nabais, Díaz Revorio, Lanchester, Navas B., Parra, Varela Díaz) só é útil e tem
importância na teoria, na prática, não. Na verdade, a distinção se dá entre de-
veres previstos no ordenamento infraconstitucional e deveres previstos no texto
constitucional, sendo, por isso, denominados deveres constitucionais os primeiros
e deveres fundamentais os segundos. Há que se observar aí que, independente de
onde eles estiverem previstos, se sua existência for legítima do ponto de vista ju-
rídico é despicienda a classificação, já que eles são aplicados e exigidos da mesma
maneira, isto é, de acordo com o procedimento previamente estabelecido.
Essa classificação conduz à classificação que distingue entre deveres expres-
sos e deveres implícitos (Sarlet). Trata-se de tipologia relacionada com a facilidade
de identificação nos enunciados prescritivos do ordenamento jurídico de deve-
res legítimos. Essa classificação não é útil nem tem importância, seja prática seja
teórica, já que o que incide sobre os fatos e atos concretos é a norma jurídica,
que não existe formatada (Se A, então B) dentro do ordenamento jurídico, de-
vendo o operador do Direito formulá-la a partir dos enunciados prescritivos ou
normativos que tem à sua disposição. Assim, não há a distinção entre deveres
expressos e implícitos, até porque o seu cumprimento depende do estabeleci-
mento prévio de procedimento para que um indivíduo possa adimpli-lo, senão
não há como exigir o seu cumprimento. Além disso, falar-se em deveres implí-
citos é contrariar a segurança jurídica, podendo-se surpreender a pessoa com a
descoberta de um novo dever que ela deve observar.
Também não tem qualquer utilidade ou importância prática, no máxi-
mo teórica, distinguir deveres constitucionais e deveres internacionais (ver, por

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos funda-
mentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009; VARELA
DÍAZ, Santiago. La idea de deber constitucional. Revista Española de Derecho Constitucional, n. 4,
1982; VERNENGO, Roberto J. Deberes prescriptivos y deberes descriptivos. Anuario de Filosofía del
Derecho (Nueva Época), n. 10, 1993.

| 82 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Julio Pinheiro Faro
Daury Cesar Fabriz

exemplo: Engel e Sáenz, Lanchester) já que se trata apenas de uma questão


de nomenclatura e de reconhecimento pela ordem jurídica interna ou pela
ordem jurídica externa (internacional). Trata-se de uma classificação inútil
e desimportante tanto quanto a distinção (ver, por exemplo: Busch Venthur)
entre deveres fundamentais e deveres humanos, relacionando-se os primeiros aos
deveres constitucionais, reconhecidos na ordem interna pelo texto constitu-
cional, e os segundos aos deveres internacionais, reconhecidos externamente
por documentos jurídicos internacionais.
Classificação que também não possui utilidade nem importância práticas,
mas no máximo teóricas, é a que distingue deveres legais e deveres judiciais ou
doutrinários, cujo critério é a previsão ou não no ordenamento jurídico, bem
como a sua fonte de criação, se mediante um processo legislativo ou se por meio
de jurisprudência ou doutrina.
Vários autores (por exemplo: Alegre Martínez, Casalta Nabais, Díaz Revo-
rio, Lanchester, Palombella, Sarlet, Varela Díaz) adotam a distinção entre deveres
correlatos e deveres autônomos, que se baseia no argumento de que um dever nem
sempre vai se referir, direta ou indiretamente, a um direito, ou seja, de que nem
sempre há uma correlação entre deveres e direitos, podendo os deveres ser au-
tônomos em relação aos direitos, assim como estes podem existir independente
daqueles. Não se pode afirmar que há necessariamente uma relação de recipro-
cidade, ou seja, que o dever de um indivíduo corresponda ao direito de outrem;
a não ser que se considerem contratuais todas as relações intersubjetivas, em que
o dever de pagar se correlaciona com o direito de receber – o que seria uma visão
individualista, já que o devedor sempre poderia exigir a realização de um direito
seu. Os deveres autônomos podem ser chamados também de deveres genéricos
e os deveres correlatos ou conexos a direitos também podem ser denominados
deveres específicos. Cabe prestar atenção à diferença entre a correlação entre
deveres e direitos e os efeitos decorrentes do cumprimento de deveres.
Não se podem confundir efeitos, ou seja, consequências, com a relação
correlacional. Isso porque a correlação perfaz uma relação de implicação: de-
veres geram direitos, direitos geram deveres – ou, ainda, se a todo dever corres-
ponde um direito, seja de maneira direta ou indireta, também direta ou indi-
retamente a todo direito corresponde um dever; enquanto os efeitos decorrem
de uma relação de causalidade: o descumprimento de um dever gera a baixa
concretização de direitos, ou, no outro sentido, a baixa concretização dos direi-
tos decorre do descumprimento de deveres. A maioria dos deveres são, assim,
deveres autônomos cujos efeitos podem beneficiar ou prejudicar a concretização
de direitos, mas não determinar a existência de direitos, uma vez que para esses
existirem é bastante que sejam declarados ou reconhecidos formalmente.

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 83 |


Dos deveres fundamentais:
Notas preparatórias para uma Survey – a questão taxonômica

Outra tipologia distingue deveres sociais de deveres estatais (ver, por exemplo:
Palombella, Parra) embora fosse melhor distinguir entre os deveres autointeressa-
dos e os deveres heterointeressados, ou seja, deveres que uma pessoa cumpre para
satisfazer os seus próprios interesses (como o dever de filiação a um partido polí-
tico para poder se candidatar) e deveres que uma pessoa cumpre para satisfazer
interesses de uma sociedade (como o dever de financiar os custos públicos, o
de concretizar direitos e o de proteger o meio ambiente), respectivamente. Essa
classificação é útil para saber de quem se pode exigir o cumprimento de um de-
terminado dever, bem como para saber quem deverá ser responsabilizado pelo
respectivo descumprimento e sancionado por isso. Assim, entre os deveres autoin-
teressados estão os deveres do indivíduo para consigo próprio e entre os deveres
heterointeressados estão os deveres das pessoas em relação às outras e à sociedade,
bem como delas e da sociedade em relação ao Estado, e deste em relação a ambas,
tanto em nível interno (relações domésticas) quanto em nível externo (relações
internacionais). Pode-se incluir dentre os deveres autointeressados os deveres indi-
viduais e entre os heterointeressados os deveres coletivos, isto é, deveres individuais
e estatais com reflexos coletivos e deveres coletivos propriamente ditos.
Ligada a essas duas últimas classificações está uma distinção (adotada por
alguns autores como Bayón Mohino, Casalta Nabais, Garzón Valdés, González
Lagier e Ródenas, Laporta, Sarlet) entre os deveres positivos ou de prestação e os
deveres negativos ou de defesa, podendo ambos os tipos ser tanto pessoais (exigíveis
dos indivíduos) quanto sociais (exigíveis da coletividade) e mesmo estatais (exi-
gíveis do Estado), representando, no caso dos deveres positivos, sempre um fazer,
um dar ou um pagar, e, no caso dos deveres negativos, sempre uma abstenção,
um dever de tolerar, de suportar ou mesmo de aceitar. Essa classificação é útil
e importante porque permite identificar que tipo de exigência pode ser feita em
relação ao cumprimento ou não do dever e em relação a quem ela deve ser feita.
Há também classificações que vão além da questão jurídica, adentrando
na filosofia, por exemplo, quando são separados deveres morais e deveres jurí-
dicos (ver, por exemplo: Palombella, Peces-Barba Martínez, Redondo, Roca)
ou ainda deveres cívicos e deveres jurídicos. Essas distinções têm relação direta
com a diferenciação proposta por alguns autores entre deveres e obrigações (ver,
por exemplo: Asis Roig, Díaz Revorio, Rawls) argumentando-se que é juridica-
mente apropriado falar-se em obrigações jurídicas e em deveres morais, não se
devendo, portanto, assinar a existência de deveres jurídicos. No entanto, tais
observações não geram um consenso, mesmo porque a teoria geral do Direito
se utiliza a muito tempo da expressão deveres prescritivos (ver, dentre outros:
Vernengo, Redondo) para tratar sobre a estrutura das normas jurídicas e os
respectivos modais deônticos. Além disso, há uma grande proximidade entre

| 84 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Julio Pinheiro Faro
Daury Cesar Fabriz

Direito e Moral no que diz respeito aos deveres fundamentais, o que parece ser
determinante para indicar que os estudos sobre deveres fundamentais devam
seguir um viés menos jurídico, adotando uma análise baseada na moralidade do
direito (ou conforme o ponto de vista: na juridicidade da moral), retomando-se,
pois, o debate sobre a separação entre Direito e Moral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante dessas considerações preliminares sobre a taxonomia dos deveres
fundamentais, vê-se que a maioria das classificações não tem utilidade prática,
sendo desimportantes. É preciso, retomando, de certa maneira, Descartes, evitar
as convicções baseadas no hábito inculcado7, ou, de uma forma mais próxima ao
que se anotou aqui, evitar aquilo que Dworkin chamaria de habito de classificar,
tão presente entre os juristas. Convém, assim, para depurar melhor o tema dos
deveres fundamentais, refletir detidamente sobre, dentre outros aspectos de uma
possível teoria geral, a taxonomia, evitando-se a criação de rótulos que vão mais
dificultar que facilitar o entendimento e o desenvolvimento da questão.
Afasta-se, assim, em certa medida, da proposta cartesiana de dividir o
objeto em análise para obter uma solução adequada8, o que equivaleria a criar
classificações para agrupar os deveres de acordo com uma suposta característica
em comum, ainda que não seja útil na prática fazer a distinção. Logo, as frag-
mentações indevidas devem ser evitadas, para não se incorrer em más-compre-
ensões sobre o tema analisado.
Diante da falta de importância prática de determinadas classificações, o
que gera inutilidade para a compreensão dos deveres fundamentais, entende-se
que melhor que classificar, talvez seja identificar quais os deveres fundamentais
e como eles devem ser desenvolvidos, tanto no que pertine ao seu cumprimen-
to, sanções aplicáveis pelo descumprimento e responsabilidade do indivíduo
inadimplente, bem como em relação aos efeitos que o seu descumprimento pode
gerar em relação à concretização dos direitos fundamentais. Diante disso, as
classificações que têm utilidade e importância práticas devem ser consideradas
tanto na formação de um conceito de deveres fundamentais quanto na indica-
ção de uma lista de deveres fundamentais no ordenamento jurídico nacional,
bem como, se for o caso, para a proposta de uma nova nomenclatura.

7 DESCARTES, René. The method, meditations and philosophy. Trans. John Veitch. London: M.
Walter Dunne, 1901. p. 155.
8 DESCARTES, René. Obra citada, 1901, p. 161.

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 85 |


Dos deveres fundamentais:
Notas preparatórias para uma Survey – a questão taxonômica

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DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 87 |


O CONTEÚDO DISCRIMINATÓRIO DA LIBERDADE
DE ASSOCIAÇÃO: UMA ANÁLISE, DIALOGADA
COM PAUL R ICOEUR, DO JULGAMENTO
DO RESP 650.3731

Nelson Camatta Moreira2


Breno Maifrede Campanha3

INTRODUÇÃO
Percebe-se na experiência jurídica uma grande dificuldade em se estabe-
lecer os exatos contornos da liberdade. A temática se desenvolveu ao longo da

1 Artigo desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisa Hermenêutica Jurídica e Jurisdição Constitucional,


do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), sob a coor-
denação do Professor Nelson Camatta Moreira.
2 Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), com estágio de doutora-
mento na Universidade de Coimbra; professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV); diretor da Escola Superior de Advocacia
(ESA-OAB/ES); advogado.
3 Mestrando em Direitos e Garantias fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); pesqui-
sador bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES); membro do Grupo de
Pesquisa Hermenêutica Jurídica e Jurisdição Constitucional; Membro do Grupo de Estudos, Pesquisa e
Extensão em Saúde, Políticas Públicas e Bioética (Biogepe); professor-coordenador do Grupo de Estudos
Liberdades Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV); especialista em Direito Processual
Civil e em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade Anhanguera-Uniderp; advogado.

| 191 |
O conteúdo discriminatório da liberdade de associação: uma análise,
dialogada com Paul Ricoeur, do julgamento do RESP 650.373

história sob variados aspectos, conforme as particularidades próprias de cada


época. De maneira muito diversa se concebe a liberdade entre os antigos, os
medievais, os modernos e os contemporâneos. Podemos extrair, a partir dos
medievais, o sentido de liberdade como a possibilidade do exercício da vontade.
Nessa ótica o homem é livre, quando lhe é possibilitado desempenhar suas es-
colhas. Trata-se da liberdade como expressão do arbítrio humano.
A liberdade de associação, tutelada na Constituição Federal de 1988 nos
incisos XVII, XVIII e XIX do art. 5º, compreende o exercício da vontade humana
sob quatro circunstâncias distintas. À luz da garantia, a referida vontade deve
determinar se o indivíduo irá se associar ou permanecer associado. Além dessas
hipóteses, materializa-se a vontade na autonomia de organização e funcionamen-
to da associação (TAVARES, 2007, p. 562). A dificuldade, que não é exclusiva da
aludida espécie de liberdade, não está em reconhecer a abrangência do seu con-
teúdo nas duas primeiras circunstâncias apontadas, mas em estabelecer os exatos
contornos que determinam onde começa e onde termina o direito na definição
das duas últimas, e o quanto pode o poder público interferir nessa seara.
Retrata bem a problemática a discussão levada ao Superior Tribunal de
Justiça, por meio do Resp. 650.373, na qual membros da Sociedade Brasilei-
ra de Defesa da Tradição, Família e Propriedade - TFP, símbolo histórico do
pensamento conservador no Brasil, rivalizaram acerca de cláusulas estatutárias
determinantes à composição da liderança da instituição. As referidas cláusulas,
firmadas no ato de fundação da organização, assegurava apenas aos membros
fundadores a possibilidade de integrarem a alta cúpula administrativa. Enquan-
to ala dos dissidentes entendia que o estatuto, nos termos retratados, se mostra-
va indevidamente discriminatório a outra concebia a proposta do instrumento
inerente e indissociável à perspectiva ideológica da instituição.
Percebe-se que o fundamento da preservação da liberdade associativa e
da ideologia pode ser utilizado por ambos os grupos litigantes apontados. Os
primeiros poderiam justificar que as cláusulas questionadas não possibilitam a
autonomia da organização e funcionamento porque a torna refém de determi-
nações assumidas por homens de um passado remoto em um contexto histórico,
econômico, social, cultural totalmente distinto e alheio ao vivenciado hodier-
namente contrariando ao que integra a associação ideologicamente na sua es-
sência. Em outra feita, o grupo adverso poderia sustentar que a preservação do
estatuto, nos termos originários, representa a observância à liberdade de asso-
ciação uma vez que a autonomia da TFP tem condições de perpetuar segundo
os seus escopos se não houver interferência, de particulares ou do próprio poder
público, ao que já foi definido como essencial à sua organização, funcionamento
e existência respeitando assim sua gênese ideológica.

| 192 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Nelson Camatta Moreira
Breno Maifrede Campanha

Sob um exercício dialético, confrontaremos posicionamentos adotados no


julgamento do aludido Resp. 650.373 recorrendo ainda à fenomenologia ricoeu-
riana para trabalhar algumas categorias filosóficas como a noção de ideologia,
corriqueiramente invocada nos votos do julgamento objeto de análise do pre-
sente estudo, e as funções a ela atribuíveis.
Nesta feita questiona-se: Até que ponto o exercício da liberdade associati-
va, no que pesa a autonomia de organização e funcionamento das associações,
pode se dar sem que recaia em determinações indevidamente discriminató-
rias? À luz da obra Interpretação e Ideologias do filósofo francês Paul Ricoeur,
trabalharemos a temática, buscando identificar a repercussão ideológica nos
fundamentos abordados, além dos critérios hermenêuticos observáveis no en-
frentamento da questão no julgamento do Resp. 650.373.

A LIBERDADE ASSOCIATIVA
E O SEU CONTEÚDO DISCRIMINATÓRIO

A reflexão crítica da problemática descrita permite vislumbrar, em nosso


contexto jurídico hodierno, alternativas diretivas ao exercício da liberdade de asso-
ciação, relacionadas à autonomia organizacional e de funcionamento, no que pesa
os limites ao seu potencial discriminatório. Para transitar por tal reflexão, cumpre
antes conceber determinados elementos incutidos na realidade trabalhada.
Premissa básica da ideia de liberdade associativa é a não interferência do
poder público, ou de particulares estranhos à relação, na formulação estatutária.
Tal proposta propicia a “livre” escolha de regulamentação das diretrizes a serem
adotadas e exercidas no bojo da organização associativa. Nessa ótica, possibilita-
-se, a autonomia em/de dispor regras, por exemplo, referentes: à integração, ma-
nutenção e exclusão de membros; às obrigações e prerrogativas desses membros;
à estrutura hierárquica da associação: à sua composição administrativa: aos seus
objetivos e finalidades; aos fundamentos que justificam sua própria existência; ao
reconhecimento de determinada natureza ideológica; e ao desenvolvimento de
atividades, ou ações, sob a égide da sua proposta de funcionamento.
Jean Rivero sistematiza essa noção reconhecendo os seguintes elementos
necessariamente integrados à matéria:

Como a maior parte das outras liberdades, a de associação


engloba, sob uma forma única, vários elementos distintos:
- a liberdade, para os particulares, de criar associações,
ou de a elas aderir, sem que o poder possa pôr obstáculo à

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 193 |


O conteúdo discriminatório da liberdade de associação: uma análise,
dialogada com Paul Ricoeur, do julgamento do RESP 650.373

iniciativa deles: é, como vimos, uma liberdade individu-


al exercendo-se coletivamente; - liberdade, para as asso-
ciações uma vez criadas, de desenvolver suas atividades
e aumentar seus recursos: é, propriamente falando, não
uma liberdade da pessoa, mas uma liberdade do grupo; - a
liberdade dos indivíduos, no seio da associação, e quan-
do necessário contra ela: é um problema que se vincula
aos conflitos de liberdades entre pessoas privadas: aqui,
a pessoa física dos associados e a pessoa jurídica que a
associação é. (RIVERO, 2006, p. 660).

“Podemos afirmar que vivemos, desde 1988, uma democracia e essa repre-
senta uma forma de liberdade consagrada” (CAMPANHA, 2012, p. 9034). No
entanto, hodiernamente a realidade vivenciada possui nuances que repercutem no
próprio reconhecimento concebível de liberdade, democracia, modernidade, e/ou
democracia moderna. É importante destacar que ao tratarmos da questão parti-
mos de um contexto específico, não formatado de maneira unívoca e invariante.4
Destaca Peter Haberle a liberdade associativa como “un elemento irrenun-
ciable de la democracia pluralista” (HABERLE, 1998, p. 79). Trata-se, à luz do
autor alemão, de direito inerente à expressão de um regime democrático que
reconhece a importância da manutenção e incentivo da diversidade cultural e
política. A impropriedade das diretrizes norteadoras dessa liberdade atenta, por-
tanto, contra a própria concepção de democracia invocada à realidade brasileira.
Qualquer circunstância que ofereça risco a estabilidade democrática exi-
ge um enfrentamento científico criterioso e preciso. Com a questão retratada
não é diferente. Deve a liberdade ser exercida de tal maneira que atenda aos
fundamentos justificadores da sua tutela diferenciada, conforme a espécie de
liberdade em tela. No caso da liberdade associativa, o conteúdo discriminatório
não pode ultrapassar os limites que a integra, sob o risco de constituir ofensa
aos próprios fundamentos que justificam a sua existência.
Sustenta Leandro Martins Zanitelli que a interpretação de limites “deve
considerar a importância da liberdade [...] bem como o seu potencial discri-
minatório”. Assevera que ”as associações frequentemente pressupõem alguma
afinidade entre seus membros, o que as torna discriminatórias, inacessíveis
a pessoas às quais falte certa característica, posição ou gosto” (ZANITELLI,
2008, p.154), mas que o não pressupõe exigências incompatíveis com a finalida-
de ideológica incutida na organização.

4 A “instituição permanente” da democracia é fruto de um substrato básico da cidadania extraído das con-
dições de modernidade, desenvolvidas no rastro expansionista do capitalismo (MOREIRA, 2010, p. 26).

| 194 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Nelson Camatta Moreira
Breno Maifrede Campanha

Dessa forma, conforme destaca Miguel Carbonell, por meio das associa-
ções poderá se conceber às pessoas “un elemento importante a su convivencia
y pueden expandir su horizonte vital, participando con otras personas en la
consecución de ciertos fines”. A participação associativa, dentro de um contex-
to democrático realizável, incrementa nos cidadãos um sentimento cívico, na
medida em que possibilita a participação nas decisões mais importantes da sua
comunidade (CARBONELL, 2010, p.14).

O JULGAMENTO DO RESP. 650.373


Conforme já apontado anteriormente, o caso do Resp. 650.373 representa
bem a problemática enfrentada no presente estudo. Foi objeto de debate no
julgamento em tela a prevalência ou não de determinadas cláusulas estatutárias
formuladas no ato de fundação da “Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade – TFP” em 1960. As referidas cláusulas definiam quem
teria poder de voto e de integrar a cúpula administrativa da aludida associação.
No caso, a previsão restringia apenas aos sócios fundadores essa possibilidade,
discriminando todo o quantitativo restante e majoritário de membros.
Para não trabalhar a temática recaindo em aparente e/ou eventual inge-
nuidade teórica, vale destacar uma circunstância específica da demanda judi-
cial em análise. Na prática, o resultado do julgamento seria (e foi) determinante
para definir qual grupo “político” de dentro da instituição tomaria/permane-
ceria a/na liderança administrativa. Não há dúvidas que incutido ao enfren-
tamento litigioso, desde a primeira instância, sempre esteve em evidência uma
disputa de forças e por poderes. Os artifícios utilizáveis nesse tipo de confronto
transcendem a pretensão da presente pesquisa. Importa-nos apenas os funda-
mentos trazidos pelas partes, assim como aqueles adotados pelos ministros para
justificar os seus votos, no que se refere à interferência no conteúdo discrimi-
natório da liberdade associativa, especificamente no exercício da autonomia de
regulamentação organizativa e de funcionamento.
Considerando o exposto, podemos delimitar a discussão em dois aspectos.
A liberdade de associação, dentro da proposta descrita, permite que se formule
um estatuto no sentido de preservar e incentivar a perspectiva ideológica que
impulsionou a sua criação, além de disseminá-la na comunidade em que sub-
siste. No entanto, a liberdade de associação permite ainda a livre disposição
estatutária ao alvedrio dos seus membros, conforme a ideologia compartilhada.
A dificuldade desponta quando a primeira premissa não corrobora com a se-
gunda, ou a segunda não corrobora com a primeira, caracterizando uma espécie

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 195 |


O conteúdo discriminatório da liberdade de associação: uma análise,
dialogada com Paul Ricoeur, do julgamento do RESP 650.373

de antagonismo diferentemente justificável, diante dos múltiplos interesses em


jogo e argumentos praticáveis.
Historicamente a TFP é conservadora. Tem como fundamento de criação
e atuação ideais de natureza conservadora, pautados, como o próprio nome de-
nota, na tradição, na concepção clássica de família, e na “livre” propriedade.
Por exemplo, teve significativa participação contra o movimento de esquerda no
período ditatorial de 1964 até à constituinte 1987/1988. Sem dúvidas é uma or-
ganização não apenas religiosa ou social, mas preponderantemente ideológica. O
tratamento do conteúdo discriminatório da liberdade associativa deve, portanto,
fatalmente considerar essa sua natureza ideológica, de raiz conservadora.
O relator, ministro João Otávio de Noronha, do Resp. 650.373 manifestou
o seguinte entendimento no seu voto:

[...] a interferência dos poderes públicos nas associações de


fins ideológicos deve ser o mais restrita possível e não vejo
razão jurídica para negar-lhes a liberdade de estipular os di-
reitos e deveres de associados na forma que melhor atenda
aos fins ideológicos que perseguem, facultando ao estatuto
estabelecer vantagens especiais para alguns dos seus mem-
bros e mesmo classe ou classes de associados sem direito a
voto. (REsp 650.373, 2004/0031470-2, 25/04/2102, p. 70).

Portanto, não concebeu o ministro qualquer irregularidade na disposição


estatutária que restringia à classe de associados fundadores a possibilidade de
voto por tratar-se a TFP de organização com fins ideológicos. Segundo o seu
entendimento, seria dessa forma

[...] razoável supor que, em uma entidade dessa natureza,


substancialmente interessa a persecução dos fins ideológicos
concebidos pelos seus fundadores — cuja vontade se mate-
rializa quando da sua criação — e que é de vital importância
assegurar o atingimento daqueles objetivos, razão primeira e
última da existência do ente associativo. Daí, revela-se juri-
dicamente válida a adoção de mecanismos para a preserva-
ção da incolumidade daquele objetivo, entre os quais a limi-
tação do direito de voto à classe dos associados fundadores.
(REsp 650.373, 2004/0031470-2, 25/04/2102, p. 70).

Corroborando dessa mesma perspectiva, posicionou-se a ministra Isabel Ga-


lotti alertando que a interferência no aludido objeto de discussão impulsionaria
drásticas mudanças na natureza da TFP, afetando assim a sua proposta ideológica:

| 196 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Nelson Camatta Moreira
Breno Maifrede Campanha

Essa sociedade não será mais a mesma, será outra, melhor


ou pior ideologicamente não nos cabe decidir, mas, com
certeza, completamente diferente do que era segundo seus
atos constitutivos, após essa decisão do Tribunal de ori-
gem, se prevalecer. Passará a ser sociedade completamen-
te distinta, podendo, em tese, até mesmo atuar em sen-
tido oposto aos ideais que levaram a sua criação. (REsp
650.373, 2004/0031470-2, 25/04/2102, p. 114).

Destaca que a ala dissidente poderia, no exercício da liberdade associativa,


se desvincular da TFP e constituir uma nova associação nos termos em que
achar mais conveniente. Mas, para preservar os ideais que moveram/movem a
organização desde a sua gênese deveriam as cláusulas originárias permanecer
da mesma maneira ainda que isso represente a remanescência apenas dos sócios
fundadores na associação.
Compuseram os votos divergentes, integrando o percentual majoritário no
aludido julgamento, os ministros Luis Felipe Salomão, Raul Araújo e Antonio
Carlos Ferreira.
Entendeu o primeiro que as cláusulas estatutárias em questão eram nulas
de pleno direito e ofensivas à ordem jurídica. Para o ministro, entre os princí-
pios básicos de qualquer sociedade civil, violados ao alvedrio do autoritarismo
da classe de associados fundadores, estava a necessária condição de igualdade e
boa convivência, exigível nas circunstâncias identificada no caso.
Quanto ao voto do ministro Antonio Carlos Ferreira, vale destacar os
seguintes trechos.

A Constituição da República assegura em favor das ins-


tituições de direito privado, como a TFP, a prerrogativa
de autonomia quanto à sua organização e funcionamento.
Nada obstante, esse poder de auto-organização não é ab-
soluto e está condicionado a limites traçados pelo Estado
por meio de normas de direito civil, nas quais se inclui a
norma do art. 1.394 do CC/1916, que, a meu ver, disci-
plinou, de forma cogente, um dos requisitos básicos para
a constituição de associações sem fins econômicos, com
o objetivo de viabilizar o respeito à vontade majoritária
dos associados. [...] Nessa perspectiva, na linha de prece-
dentes do STF mencionados no próprio voto do eminente
relator tenho como possível a intervenção jurisdicional vi-
sando a alterar regras contidas nos estatutos da TFP. Não
se trata de uma mera associação ideológica ou religiosa,

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 197 |


O conteúdo discriminatório da liberdade de associação: uma análise,
dialogada com Paul Ricoeur, do julgamento do RESP 650.373

mas de uma associação onde existe grande dedicação por


parte de seus associados, que deságua em sensível depen-
dência econômica - o que permite, se o caso, a modifica-
ção das regras estatutárias pelo Judiciário. (REsp 650.373,
2004/0031470-2, 25/04/2102, p. 124-125)

Destaca o julgador que constitucionalmente o exercício da liberdade asso-


ciativa exige limites, devendo ser considerados segundo a ordem jurídica posta.
Destaca ainda que a extensão econômica social da natureza da TFP justificaria
essa interferência pelo Judiciário na medida em que o desequilíbrio contratual
imposto pelo estatuto repercuta diretamente na realidade econômica e social de
grande parte dos membros da associação.

UMA ANÁLISE DIALOGADA COM PAUL RICOEUR: A FUNÇÃO


GERAL DA IDEOLOGIA E O RESP. 650.373

Sob o escopo de formular/constituir uma teoria da interpretação do ser, o


filósofo francês Paul Ricoeur, em sua obra “Interpretação e Ideologias”5, parte
de uma análise rigorosa da vontade humana, sob uma ótica fenomenológica.
Poderíamos questionar à luz do autor: Como essa vontade, também concebí-
vel como liberdade/autonomia, deve ser estudada? Ou, quais elementos devem
ser identificados para se caracterizar o voluntário e o involuntário? Entretanto,
conforme alertou Hilton Japiassú na apresentação da aludida obra, a vontade
“não pode ser analisada apenas pelo método que se funda no estudo dos atos
objetivantes da percepção e do saber, nem tampouco pelo que reduz suas aná-
lises a um modelo único: a existência vivida”, mas precisa ser analisada em si
mesma, correlacionando o voluntário e o involuntário oriundos de componen-
tes essenciais à vontade (RICOEUR, p. 02, 1990).
A problemática, objeto de estudo da pesquisa desenvolvida, incide na
possibilidade ou não de interferência no potencial discriminatório da liberdade
de associação. Conforme já explicitado, essa liberdade leva em consideração o
exercício da vontade nas escolhas em se associar e/ou manter-se associado, e
na prática regulamentadora de organização e funcionamento da associação. É
nessa última hipótese que o conteúdo discriminatório é perceptível.
A possibilidade de discriminar sem recair em qualquer ofensa à Constitui-
ção, ou ao ordenamento jurídico, existe e está integrada ao exercício da liber-

5 RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.

| 198 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Nelson Camatta Moreira
Breno Maifrede Campanha

dade associativa. O problema está em identificar com precisão os limites a essa


prática no caso concreto. Se pensarmos em associações de caráter explicita-
mente ideológico, ou seja, que visam, entre outros objetivos, promover determi-
nados ideais, a interferência na autonomia discutida se mostra ainda mais grave
e complexa. A própria noção de ideologia revela-se por si só complexa diante
das variadas/variáveis perspectivas que se tem da matéria. A diversidade funcio-
nal atribuível à ideia prospera em uma gama multifacetada de (pré)concepções.
Trata-se de um fator a mais que atribui complexidade à análise. No presente
estudo recorremos à perspectiva ricoeuriana dessas funções, considerando-a sa-
tisfatória para trabalhar o caso concreto em tela (Resp. 650.373).
Paul Ricoeur concebe essa diversidade funcional sob variadas classifica-
ções, entre as quais podemos destacar: a função de conferir imagem de si a um
grupo social; a função de dinamismo, ou seja, de atribuir razão ao grupo que
a detém e a professa; a função simplificadora e esquemática, materializada na
possibilidade de transformar ideias em opiniões; a função operatória, aquela que
nos leva muito mais a pensar por meio da ideologia ao invés de pensar sobre ela;
a função de dissimulação, aquela leva a adequação conformada com a realidade
vivenciada por determinado grupo; e a própria função de dominação e autori-
dade. (RICOEUR, 1990, p. 68-71)
Sustenta Ricoeur que o fenômeno ideológico se inicia demasiadamente
cedo. Segundo o autor “porque, com a domesticação, pela lembrança, começa o
consenso” e também a consequente convenção e a racionalização (RICOEUR,
1990, p. 68). A princípio a ideologia se revela mobilizadora e depois passa a ser jus-
tificadora. Essa premissa retrata bem a pretensão incutida na determinação inicial
das cláusulas estatutárias da TFP que restringia a possibilidade de voto e com-
posição da cúpula administrativa da organização apenas aos sócios fundadores.
Para Ricoeur

A ideologia é função da distância que separa a memória


social de um acontecimento que, no entanto, trata-se de
repetir. Seu papel não é somente o de difundir a convicção
para além do círculo dos pais fundadores, para convertê-la
num credo de todo o grupo, mas também o de perpetuar
sua energia inicial para além do período de efervescência.
(RICOEUR, 1990, p. 68)

Quanto ao dinamismo (função de dinamismo) a discussão ganha rele-


vância porque ambas as partes litigantes, sob a pretensão de fazer prevalecer a
própria perspectiva ideológica buscam/buscaram professar a razão de ser o que
são, e de posicionar como se posicionaram.

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 199 |


O conteúdo discriminatório da liberdade de associação: uma análise,
dialogada com Paul Ricoeur, do julgamento do RESP 650.373

Ambas as partes buscam/buscaram ainda prevalecer suas próprias con-


cepções ideológicas consagrando suas/seus ideias/ideais em opiniões da parcela
majoritária da associação. Trata-se da função simplificadora e esquemática des-
crita por Ricoeur. Para o autor a ética, a religião e a filosofia são oriundas de
uma consagração ideológica equivalente a essa proposta.
Mas o fato é que a ideologia mais integra o homem do que o homem a
integra. De uma maneira muito natural e espontânea o homem insere-se em
um contexto ideológico e dele carrega um olhar próprio e formatado. A ideo-
logia “opera atrás de nós, mais do que a possuímos como um tema diante de
nossos olhos. É a partir dela que pensamos, mais do que podemos pensar sobre
ela” (RICOEUR, 1990, p. 70). A maneira como concebemos o mundo, desve-
lamos o dia-a-dia, analisamos criticamente (ou não) determinado fenômeno,
é significativamente influenciada pela ideologia que vivemos e habitamos. Ou
melhor, que vive e habita em nós. A definição de limites ao conteúdo dis-
criminatório da liberdade associativa revela-se diferenciadamente conforme a
influência ideológica exercida/sentida.
Demonstra-se a perspectiva ricoeuriana da função ideológica de dissimu-
lação a mais rica e proveitosa, entre as anteriores, ao debate extraído do Resp.
650.373. Destaca o filósofo francês que “o novo só pode ser recebido a partir do
típico, também oriundo da sedimentação da experiência social. Aqui pode ser
inserida a função de dissimulação”. Assevera que a “intolerância começa quan-
do a novidade ameaça gravemente a possibilidade, para o grupo, de reconhecer-
-se, de reencontrar-se” (RICOEUR, 1990, p. 70). A adequação a uma realidade
posta, a superação de uma perspectiva anterior, a necessária consagração do
novo diante do contexto vivido, refletem a reafirmação ideológica que pode
ser invocada no sentido de interferir no conteúdo discriminatório expresso nas
cláusulas estatutárias que impediam uma administração distinta da delimitada
no ato de fundação da TFP. Não restam dúvidas que o contexto hoje vivido é
bem distinto de cinquenta anos atrás. Se a ideologia incorporada/vivida na/pela
porção majoritária dos membros indicam uma drástica mudança isso não afeta
a ideologia da associação, mas demonstra uma adequação necessária às circuns-
tâncias que gravitam em torno dos atores envolvidos no caso. A novidade no
caso ameaça apenas um percentual minoritário dos membros. Não há ameaça
suficiente para impedir o reconhecimento ou o reencontro desses atores, mas,
muito pelo contrário, vislumbra justamente a possibilidade de reencontrar e de
se reconhecer novamente, com uma liderança que de fato represente os ideais
incorporados na associação, segundo a realidade hodierna vivenciada.
A discussão perde o valor se recai exclusivamente na mera justificação de
autoridade. Sob as palavras de Ricoeur

| 200 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Nelson Camatta Moreira
Breno Maifrede Campanha

Toda autoridade, observa, procura legitimar-se, e os sis-


temas políticos se distinguem segundo seu tipo de legiti-
mação. Ora, parece que, se toda pretensão à legitimida-
de é correlativa a uma crença, por parte dos indivíduos,
nessa legitimidade, a relação entre a pretensão emitida
pela autoridade e a crença que a ela responde é essen-
cialmente dissimétrica. Direi que há sempre mais na pre-
tensão que vem da autoridade do que na crença que vai
à autoridade. (RICOEUR, 1990, p. 72)

Assevera o autor que todo ato fundador “de um grupo, que se representa
ideologicamente, é político em sua essência” (RICOEUR, 1990, p. 72). No caso
da TFP não foi diferente. Portanto, querer perpetuar uma cláusula de cunho
meramente político, sob o argumento de preservação ideológica, conformada
com uma legítima manifestação do potencial discriminatório da liberdade as-
sociativa, não se coaduna, segundo a ótica trabalhada, com a realidade jurídica
hodierna vivenciada/praticada/concebida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A constituição como “expressão imediata dos valores jurídicos básicos
acolhidos ou dominantes na comunidade política” (MIRANDA, 2002, p. 352)
traduz o reconhecimento dos anseios prevalecentes, ou triunfantes, no ideário
geral da população. Não diferente podemos vislumbrar a mesma constatação
entre as liberdades constitucionalmente tuteladas no texto da Magna Carta
de 1988. Não foi ao acaso a previsão da garantia em múltiplas especificações.
A subordinação a uma forma de governo antidemocrática, vivenciada de 1964
até o período da constituinte (1987/88), com todas as suas práticas repressivas
e autoritárias, propiciou no Brasil um ambiente favorável ao desenvolvimento
do debate que impulsionaria gradativamente uma reação em cadeia em prol
da liberdade. A partir do sofrimento provocado pelo regime militar, o ideário
coletivo passou a vislumbrar cada vez mais a necessidade de se instituir uma
democracia em nosso meio. A pretensão transformadora pautava-se em valores
devidamente compartilhados além de um sentimento pulsante em comum. Tal
fenômeno promoveu a inserção de um vasto rol de liberdades no texto consti-
tucional de 1988, merecedoras de uma tutela diferenciada. Entre essas podemos
citar: a liberdade de consciência (art. 5º, VI); a liberdade de expressão (art. 5º,
IV e IX); a liberdade de locomoção (art. 5º, XV); a liberdade profissional (art. 5,
XIII, art. 170); a liberdade política (art. 17); a liberdade religiosa (art. 5º, VI); a

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 201 |


O conteúdo discriminatório da liberdade de associação: uma análise,
dialogada com Paul Ricoeur, do julgamento do RESP 650.373

liberdade de cátedra (art. 206, II, art. 5º, IX); a liberdade jornalística (art. 220,
§1º); a liberdade artística (art. 220, §2º, art. 5º, IX); a liberdade de reunião (art.
5, XVI); e a liberdade de associação (art. 5º, XVII).
Concentrou-se o objeto de estudo na última espécie apontada, definida
como liberdade de associação, especificamente no aspecto da autonomia de
organização e funcionamento das associações. Buscou, portanto, a aludida pro-
posta, identificar até que ponto o exercício dessa autonomia pode ser praticado
sem revelar-se indevidamente discriminatório. Para o enfrentamento da temá-
tica, foi tomada por base a análise do julgamento do Resp. 650.373 em que se
discutiu a liberdade de estipulação estatutária da Sociedade Brasileira de Defesa
da Tradição, Família e Propriedade, também chamada de TFP, com relação às
cláusulas que asseguravam a exclusividade de composição dos cargos de lide-
rança da entidade, e o direito de voto, aos membros fundadores.
Entenderam majoritariamente os ministros do Superior Tribunal de Jus-
tiça que de fato não deveria perdurar a referida determinação por não com-
preender liberalidade própria da garantia em tela, dentro do contexto traçado.
Os critérios adotados para a composição da decisão se deram à luz da reflexão
filosófica de Paul Ricoeur, com ênfase nas funções da(s) ideologia(s).
Revela-se a questão ideológica um fator significativo na construção dos ar-
gumentos integrados a lide. Ambos os polos litigantes suscitaram a relevância do
teor ideológico na postura adotada. A associação em tela é reconhecidamente um
símbolo histórico do pensamento conservador no Brasil. Não há como desconsi-
derar o conteúdo aludido na definição das regras que irão ditar as suas diretrizes
de organização e atuação. No entanto, os riscos de recair em discursos vazios de
critérios emancipatórios e voltados preponderantemente à autoridade da tradição
se mostram uma realidade usual, não restrito apenas ao caso retratado.
Conforme destaca Paul Ricoeur,

[...] o fenômeno ideológico começa demasiado cedo:


porque, com a domesticação pela lembrança, começa o
consenso, mas também se iniciam a convenção e a ra-
cionalização. Neste momento, a ideologia deixou de ser
mobilizadora para tornar-se justificadora; ou antes, só
continua sendo mobilizadora com a condição de ser justi-
ficadora (RICOEUR, 1990, p. 68).

Precisar os limites de interferência da ação estatal na esfera privada se


mostra um desafio exaustivo, sem a segurança de um satisfatório resultado para
o enfrentamento das particularidades decorrentes da problemática. Retratando
a dificuldade aludida, observa Simone Goyard-Fabre que no humanismo mo-

| 202 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Nelson Camatta Moreira
Breno Maifrede Campanha

derno o “grande problema a que deve responder o direito político é tornar o


sistema das regras e das normas governamentais compatível com os direitos e as
liberdades dos cidadãos” (GOYARD-FABRE, 1999, p. 209). A democracia exi-
ge esse equilíbrio. A livre vontade devidamente propiciada possibilita o desen-
volvimento da liberdade política assim como essa satisfaz a livre vontade quan-
do devidamente desempenhada. Conforme destaca Daniel Sarmento, “sem um
ambiente político em que as liberdades individuais estejam efetivamente garan-
tidas, com opinião pública livre, tolerância e direito à diferença, a democracia
não passará de um simulacro” (SARMENTO, 2004, p. 179). Assevera Fábio
Konder Comparato que a liberdade política sem as liberdades individuais “não
passa de engodo demagógico de Estados autoritários ou totalitários” e as liber-
dades individuais sem a liberdade política “escondem a dominação oligárquica
dos mais ricos” (COMPARATO, 1999, p. 51).

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do
Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 18 out. de 2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 650.373 (2004/0031470-2). Dis-
ponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSe
q=1002434&sReg=200400314702&sData=20120425&formato=PDF>. Aces-
so em: 18 out. 2012.
CAMPANHA, Breno Maifrede. As liberdades constitucionais à luz da teoria
pettiana do controle discursivo. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPE-
DI: Sistema Jurídico e Direitos Fundamentais Individuais e Coletivos, IX., 2012,
Uberlândia. Anais... Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. p. 9015-9036.
CARBONELL, Miguel. La libertad de asociación en el constitucionalismo de
América latina. Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, n. 12, p. 13-
24, jul./set. 2010.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.
São Paulo: Saraiva, 1999.
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político mo-
derno. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
HABERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad: 1789 como historia, actua-
lidad y futuro del Estado constitucional. Madrid: Trotta, 1998.

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 203 |


O conteúdo discriminatório da liberdade de associação: uma análise,
dialogada com Paul Ricoeur, do julgamento do RESP 650.373

MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Fo-


rense, 2002.
MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma teoria da Constituição
dirigente. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010.
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades públicas. São Paulo: Mar-
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SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Ja-
neiro: Lumen Juris, 2004.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Sarai-
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ZANITELLI, Leandro Martins. Igualitarismo e direito privado. Revista Tri-
mestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 36, p.143-156, out./dez. 2008.

| 204 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


A APLICAÇÃO DA TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO
CONFORME A CONSTITUIÇÃO
PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA1

Cláudio de Oliveira Santos Colnago2


Carolina Bonadiman Esteves3
Samuel Meira Brasil Jr.4

INTRODUÇÃO
Buscou-se, com o presente artigo, analisar a possibilidade de a Adminis-
tração Pública utilizar a técnica da interpretação conforme a Constituição no
contexto do vigente Estado Democrático de Direito. Para tanto, partiu-se de

1 Artigo desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisa de “Efetivação de Direitos Fundamentais pelo Esta-
do”, da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), sob a coordenação da Professora Carolina Bonadiman
Esteves e do Professor Samuel Meira Brasil Júnior.
2 Doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV. Mestre em Direitos e Garantias Funda-
mentais pela FDV. Membro do Grupo de Pesquisa “Efetivação de Direitos Fundamentais pelo Estado”,
vinculado à FDV. Professor da FDV. Advogado.
3 Doutora e Mestra em Direito Processual pela USP. Procuradora do Estado do Espírito Santo. Líder do Grupo
de Pesquisa “Efetivação de Direitos Fundamentais pelo Estado”, vinculado à FDV. Professora da FDV.
4 Doutor e Mestre em Direito Processual pela USP. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado
do Espírito Santo. Líder do Grupo de Pesquisa “Efetivação de Direitos Fundamentais pelo Estado”,
vinculado à FDV. Professor da FDV.

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A aplicação da técnica de interpretação
conforme a Constituição pela administração pública

um conceito específico de “interpretação conforme a Constituição”, analisan-


do-o frente à dinâmica da Separação de Poderes prevista na Constituição de
1988, contrastada com a necessidade de concretização de suas disposições.

INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO:


DELIMITAÇÃO CONCEITUAL

Um aspecto pouco observado pela doutrina consiste no fato de que não há


uniformidade doutrinária e jurisprudêncial acerca do que venha a ser a técnica
de interpretação conforme à Constituição. Embora tratada doutrinariamente
como o “outro lado da moeda” da inconstitucionalidade parcial sem redução de
texto, a práxis jurisprudêncial do STF terminou por mesclar ambas as técnicas,
de forma que atualmente a expressão “interpretação conforme a Constituição”
tem sido utilizada quase como sinônimo de “decisão interpretativa”. O que seria
espécie (uma forma específica de decisão interpretativa, ao lado de outras for-
mas, como a decisão aditiva e a decisão substitutiva), pois, passou a ser tratado
jurisprudêncialmente como gênero.
Assim, da mesma forma que não há uma única definição de neoconstitu-
cionalismo, como apontado por Carbonell5, há que se reconhecer que não exis-
te uma única definição de “interpretação conforme a Constituição”. Podemos
identificar, pois, ao menos duas conceituações a ela aplicáveis (sem descartar
outras formulações), a saber, uma concepção restritiva e uma concepção am-
pliativa. Enquanto a primeira buscar conceber a interpretação conforme como
interpretação que ajuste o sentido da norma com vistas à preservação da cons-
titucionalidade da lei, a segunda a identifica com qualquer decisão interpreta-
tiva, assim entendidas as decisões que “...não atuam sobre o texto normativo,
atingindo tão-somente o significado dele decorrente”6.
Nos termos de estudo empreendido no âmbito do mestrado em Direitos
e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória7, partiremos de
uma conceituação restritiva da interpretação conforme a Constituição8, que

5 CARBONELL, Miguel. (coord.) Neoconstitucionalismo(s). 4. Ed. Madrid: Editorial Trotta, 2009, p. 9.


6 COLNAGO, Cláudio de Oliveira Santos. Interpretação conforme a Constituição: decisões inter-
pretativas em sede de controle de constitucionalidade. São Paulo: Método, 2007, p. 65.
7 COLNAGO, Cláudio de Oliveira Santos. As decisões interpretativas do Supremo Tribunal Federal no
controle abstrato de constitucionalidade. (Dissertação). Vitória: Mestrado em Direitos e Garantias Fun-
damentais. 2006. Referida dissertação foi posteriormente publicada com pequenos acréscimos como o
livro acima referenciado:COLNAGO, Cláudio de Oliveira Santos. Interpretação conforme a Consti-
tuição: decisões interpretativas em sede de controle de constitucionalidade. São Paulo: Método, 2007.
8 A ampliação do conceito de “intepretação conforme a Constituição” para significar toda e qualquer

| 244 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Cláudio de Oliveira Santos Colnago
Carolina Bonadiman Esteves; Samuel Meira Brasil Junior

embora no âmbito jurisdicional possa ser considerada tanto uma técnica de


interpretação quanto uma técnica decisória, será aqui abordada predominan-
temente sob o primeiro prisma, sobretudo em razão dos problemas teóricos que
precisam ser equacionados para a admissão da possibilidade do controle de
constitucionalidade pela Administração Pública9. Com efeito, considerando a
necessidade de interpretação para qualquer aplicação do Direito (seja aquela
empreendida pelo juiz, seja a realizada pelo administrador e pelo legislador), a
utilização da técnica de interpretação conforme pelos agentes públicos em geral
pode ser admitida independentemente do (problemático) reconhecimento da
competência para o exercício do controle de constitucionalidade.
Assim, a interpretação conforme será aqui abordada como uma técnica
de interpretação das leis que, partindo do pressuposto das múltiplas signi-
ficações inerentes ao produto legislativo interpretado, busque restringir tal
plurissignificação de forma a encontrar resultados que sejam, em sua substân-
cia, compatíveis com o texto constitucional e, em especial, com os direitos
fundamentais.

decisão interpretativa não é necessariamente errado, podendo ser considerada uma saudável ino-
vação da parte da jurisdição constitucional brasileira. Todavia, quando aplicada à Administração
Pública, vemos sérias dificuldades teóricas em admitir que o Executivo se utilize de algumas técnicas
interpretativas contidas no amplíssimo conceito de decisões interpretativas, como a decisão substi-
tutiva, em que um critério estabelecido pelo Legislador é substituído por outro. Vide, sobre o tema, a
classificação de Revorio, que diferencia as decisões interpretativas de constitucionalidade daquelas
de inconstitucionalidade (na qual insere as espécies de decisões redutoras, aditivas e substitutivas).
(REVORIO, Francisco Javier Díaz. Las sentencias interpretativas del tribunal constitucional.
Valladolid: Editorial Lex Nova, 2001, pp. 136-158)
9 Muito embora se possa perquirir doutrinariamente acerca da possibilidade do controle de constitu-
cionalidade das leis pela Administração Pública, a questão apresenta algumas dificuldades teóricas
decorrente da repartição de competências plasmada no texto constitucional. Alguns pontos rele-
vantes que tal questão provoca são os seguintes: a) inexistência de previsão expressa de controle a
posteriori pelo Executivo, limitando-se a Constituição a prever o controle prévio, mediante o instituto
do veto; b) previsão expressa de legitimação dos Chefes do Executivo Estadual e Federal para provocar
o controle abstrato de constitucionalidade; c) inexistência de imparcialidade como critério orientador
da Administração Pública, que por vezes se pauta em uma concepção unilateral de “interesse públi-
co”; d) possibilidade de utilização de instrumentos de controle concreto de constitucionalidade com
efeitoerga omnes equivalente às ações diretas, como a ação popular e a ação civil pública, nas quais é
admissível o afastamento da norma inconstitucional mediante declaração incidental; e) dificuldades
de compatibilização de tal tese com o Estado Democrático de Direito, no qual se preza pela preserva-
ção de direitos fundamentais e por uma legitimação substancial do Poder Público; f) inexistência de
justificativa que impeça o cidadão comum de realizar o controle de constitucionalidade das leis, caso
admitida tal possibilidade à Administração Pública.

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 245 |


A aplicação da técnica de interpretação
conforme a Constituição pela administração pública

VINCULAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA À


CONSTITUIÇÃO E À LEI: CONCRETIZAÇÃO DA
CONSTITUIÇÃO COMO FUNÇÃO COMPARTILHÁVEL
ENTRE LEGISLATIVO E EXECUTIVO

Considerando que a interpretação conforme pode ser entendida como


uma técnica interpretativa utilizável quando da interpretação da lei, buscando
reduzir sua plurissignificação com a finalidade de se obter um resultado consti-
tucionalmente admissível, há que se considerar sua admissibilidade quando se
trate de aplicação da lei e da Constituição pela Administração Pública10.
Verifica-se que no paradigma do Estado Democrático de Direito, a Admi-
nistração Pública não se vincula somente à lei, mas também diretamente à Cons-
tituição, sobretudo em razão da necessidade de uma atuação mais proativa na
tutela e na implementação dos direitos fundamentais. Não há, todavia, uma “car-
ta branca” à desconsideração do papel atribuído pela Constituição ao Legislador
democraticamente escolhido. Deve haver, sim, uma cooperação entre as diferen-
tes funções do Poder, sem qualquer sobreposição. Interpretações que venham a
agigantar a posição da Administração Pública (e mesmo do Judiciário) em relação
ao Legislador, levando ao total enfraquecimento deste último, não são melhores
do que aquelas tidas por “conservadoras”, que defendem uma exclusividade do
Poder Legislativo na implementação dos mandamentos constitucionais.
De fato, a atual complexidade social busca rejeita qualquer solução jurídica
simplista no que toca à implementação e concretização da Constituição e, pois,
dos direitos fundamentais. Deve-se admitir a necessidade de uma “democracia
cooperativa”11, na qual cada um dos Poderes possa colaborar na implementação
da vontade constituinte, sem sobreposição excessiva de um sobre os demais.
Em um contexto como o citado, a quem cabe a concretização das normas
constitucionais? Se é certo que a resposta pela exclusividade do Legislador não
seria a mais adequada, tampouco seria correto advogar uma preponderância do
Executivo em tal tarefa. Pensamos que uma solução intermediária seria a for-
mulação de um sistema de funções compartilháveis entre ambos, no qual a ini-
ciativa deve pertencer ao Legislador democraticamente eleito, com a possibili-
dade de atuação supletiva da Administração Pública em casos de concretização

10 Contrário ao uso da interpretação conforme pela Administração, mas utilizando argumentos de con-
trariedade ao controle de constitucionalidade pelo Executivo, Cf. LAURENTIIS, Lucas Catib de. Inter-
pretação conforme a Constituição: conceito, técnicas e efeitos. São Paulo: Malheiros, 2012, 153-160.
11 SOUZA NETO, Claudio Pereira. Constitucionalismo Democrático e Governo das Razões. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 7.

| 246 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Cláudio de Oliveira Santos Colnago
Carolina Bonadiman Esteves; Samuel Meira Brasil Junior

insuficiente ou insatisfatória.Trata-se de aplicação parcial do que Rothenburg


denomina de “troca de sujeito”12:
A tese que proponho (...) consiste numa alternativa simples: verificada a
omissão (total ou parcial) indevida por parte do sujeito (autoridade ou órgão) a
quem a Constituição atribui competência para realizar as determinações, seja
então autorizado ou mesmo indicado outro sujeito para efetivar (temporária ou
definitivamente) o que a Constituição determina.
Neste contexto, a interpretação conforme pode ser utilizada como impor-
tante instrumento orientador da atuação da Administração Pública, em duas
situações-chave: a) omissão parcial do legislador quanto à concretização de dis-
posições constitucionais de sua alçada e b) delegação indireta ao Executivo,
mediante formulações sintáticas que admitam múltiplas aplicações distintas,
algumas compatíveis e outras não compatíveis com a Constituição.

HIPÓTESES DE TRABALHO PARA A UTILIZAÇÃO


DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

As hipóteses aventadas anteriormente em seu aspecto teórico serão de-


monstradas a seguir, com alguns exemplos extraídos do próprio sistema jurídico
brasileiro. Com elas pretendemos demonstrar a aplicabilidade prática do quanto
sustentado anteriormente acerca das possibilidades de utilização da interpreta-
ção conforme a Constituição pela Administração Pública.
Um dos exemplos que ilustram a aplicação do quanto aqui proposto con-
siste no caso envolvendo a transferência de saldos credores de créditos escritu-
rais de ICMS acumulados com as operações dos contribuintes exportadores,
que envolve a interpretação do artigo 25, § 1º, inciso II da Lei Complementar
87/96, a seguir transcrito:

Art. 25. Para efeito de aplicação do disposto no art. 24,


os débitos e créditos devem ser apurados em cada estabe-
lecimento, compensando-se os saldos credores e devedo-
res entre os estabelecimentos do mesmo sujeito passivo
localizados no Estado.

12 ROTHENBURG, Walter Claudius. Omissão inconstitucional e troca de sujeito. In: TAVARES, An-
dré Ramos (Coord.). Justiça Constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Hori-
zonte: Fórum, 2007, pp. 301-317.

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 247 |


A aplicação da técnica de interpretação
conforme a Constituição pela administração pública

§ 1º Saldos credores acumulados a partir da data de publi-


cação desta Lei Complementar por estabelecimentos que
realizem operações e prestações de que tratam o inciso II
do art. 3º e seu parágrafo único podem ser, na proporção
que estas saídas representem do total das saídas realizadas
pelo estabelecimento:

I - imputados pelo sujeito passivo a qualquer estabeleci-


mento seu no Estado;

II - havendo saldo remanescente, transferidos pelo sujeito


passivo a outros contribuintes do mesmo Estado, median-
te a emissão pela autoridade competente de documen-
to que reconheça o crédito.

A interpretação do inciso II acima pode levar a duas interpretações semanti-


camente plausíveis: a) a de que a emissão de documento que reconheça o crédito
é uma faculdade da Administração, que poderá, mesmo em se verificando a ocor-
rência de saldo remanescente, emiti-lo ou não e b) a de que o ato de emitir o cita-
do documento reconhecedor do crédito é um dever administrativo, que não pode
escolher entre emiti-lo ou não uma vez verificada a existência de saldos credores.
Muito embora ambos os sentidos sejam possíveis da análise isolada do
texto, a verificação do seu fundamento de validade material aponta no sentido
de uma das duas interpretações. Vejamos.
O texto constitucional regula o imposto conhecido como ICMS a partir
do artigo 155, inciso II. O parágrafo segundo de tal artigo contém uma série
de regras a serem observadas quando da sua concretização infraconstitucional.
Dentre elas, encontra-se a previsão do seu inciso X, “a” pelo qual o ICMS “não
incidirá (...)sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem so-
bre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e
o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações
anteriores”. (grifos nossos)
Logo, considerando que a Constituição estabelece que é direito assegurado
do contribuinte tanto a manutenção quanto o aproveitamento do montante do
CIMS cobrado nas operações e prestações anteriores, a aplicação da técnica de
interpretação conforme a Constituição leva à conclusão de que a interpretação
pela qual a emissão do documento reconhecedor do crédito é faculdade da Ad-
ministração Pública não é compatível com o regime constitucional do ICMS, de-
vendo ser rejeitada quando da aplicação concreta do enunciado legal destacado.
Há ainda outra hipótese de aplicação da interpretação conforme a Consti-
tuição, que envolve as chamadas omissões inconstitucionais parciais, nas quais

| 248 | DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS


Cláudio de Oliveira Santos Colnago
Carolina Bonadiman Esteves; Samuel Meira Brasil Junior

o Legislador não cumpre satisfatoriamente com o seu dever de legislador, ao


fazê-lo de forma a contemplar somente algumas das situações previstas no texto
constitucional. Trata-se da exigência de ICMS sobre serviços essenciais (como
o de energia elétrica) prestados a entidades religiosas.
Como bem se sabe, a Constituição trata de imunizar referidas entidades da
exigência de impostos, consoante previsão do artigo 150, VI, “b”, relativamente
ao que seja relacionado a seu patrimônio, renda e serviços vinculados às fina-
lidades essenciais das entidades religiosas. Ocorre que a prestação do serviço
de energia elétrica é onerada com a exigência do citado imposto mediante a
técnica de substituição tributária, pela qual o tributo é cobrado do prestador
(na condição de responsável, oposta à de contribuinte), que repassa o encargo
econômico aos seus consumidores.
O Legislador, ao regular a referida imunidade no artigo 9º, inciso IV, “b”
do Código Tributário Nacional (“Art. 9º É vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios: (...) IV - cobrar imposto sobre: (...) b) templos
de qualquer culto”), não esclareceu se a regulamentação também seria aplicável
aos impostos indiretos, limitando-se a utilizar a expressão “imposto”.
Em face de tal questionamento (aplicação ou não da imunidade tributária
dos templos de qualquer culto a impostos indiretos), o agente administrativo
pode vislumbrar duas interpretações do artigo 9º, IV, “b” do CTN: a) a de que a
imunidade não abrange impostos indiretos, em razão do que dispõe o artigo 111,
II do CTN13 e b) a de que os impostos indiretos são abarcados pela imunidade,
impedindo assim a exigência do imposto, ainda que indiretamente.
No caso, a técnica de interpretação conforme a Constituição deve orien-
tar o agente administrativo pela utilização da segunda interpretação, já que o
artigo 111, inciso II do CTN versa sobre isenção (e não sobre imunidade, que é
categoria jurídica diversa) e também pelo fato de que o objetivo da imunidade
em questão é garantir o livre exercício da liberdade religiosa, impedindo exigên-
cias fiscais de recaírem, direta ou indiretamente, sobre o patrimônio vinculado
às suas finalidades essenciais.

CONCLUSÕES
Com base no quanto exposto, verifica-se que a interpretação conforme a
Constituição pode servir como importante instrumento de concretização de
direitos fundamentais pela Administração Pública, independentemente de pro-

13 “Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: (...) II - outorga de isenção”.

DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS | 249 |


A aplicação da técnica de interpretação
conforme a Constituição pela administração pública

vocação judicial. Em todos os casos exemplificados, a atuação da função Exe-


cutiva não se deu inovando no Ordenamento, mas simplesmente concretizando
interpretações possíveis já decorrentes do produto legislativo, “filtrando-o” de
forma a buscar o resultado mais compatível com os objetivos constitucionais,
sem que fosse necessário a eles acrescer significados não decorrentes dos enun-
ciados legais. Imagina-se que os pequenos apontamentos aqui lançados possam
ser aproveitados em várias outras questões que, diuturnamente, envolvem a re-
lação entre os Poderes da República para fins de implementação das mudanças
preconizadas pelo Constituinte de 1988. De todo o exposto, buscamos deixar
consignadas duas conclusões: a) a concretização da Constituição e dos direi-
tos fundamentais por ela consagrados não é missão exclusiva de somente um
dos Poderes (seja o Legislativo, o Executivo ou o Judiciário), devendo ocorrer
mediante atuação cooperativa e complementar entre as diversas funções e b)
não é necessário esvaziar por completo o papel institucional de um dos Po-
deres para se atingir resultados constitucionalmente ideais, materializando-se
a interpretação conforme a Constituição (enquanto técnica de interpretação)
em uma das formas que podem ser utilizadas pela Administração Pública com
fins de concretização cooperativa dos direitos fundamentais, sem a necessidade
de afastamento por completo do produto legislativo (o que seria uma anulação
total do papel do Legislador e, como tal, presumidamente desproporcional).

REFERÊNCIAS
CARBONELL, Miguel. (coord.) Neoconstitucionalismo(s). 4. Ed. Madrid:
Editorial Trotta, 2009.
COLNAGO, Cláudio de Oliveira Santos. Interpretação conforme a Cons-
tituição: decisões interpretativas em sede de controle de constitucionalidade.
São Paulo: Método, 2007.
LAURENTIIS, Lucas Catib de. Interpretação conforme a Constituição: con-
ceito, técnicas e efeitos. São Paulo: Malheiros, 2012.
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