Sei sulla pagina 1di 95

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ARISTÓTELES DE ALMEIDA LACERDA NETO

DOM QUIXOTE E FOGO MORTO:


UM ESTUDO COMPARADO

João Pessoa
2006
ARISTÓTELES DE ALMEIDA LACERDA NETO

DOM QUIXOTE E FOGO MORTO:


UM ESTUDO COMPARADO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras, da Universidade Federal da
Paraíba, como requisito para obtenção do título
de Mestre na Área de Literatura e Cultura.

Orientador: Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo

João Pessoa
2006
RESUMO

O presente trabalho constitui-se numa tentativa de leitura comparatista dos romances

Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, e Fogo morto, de José Lins do

Rego. Baseando-nos na categoria do herói problemático, formulada por Georg Lukács,

procuramos investigar a relação estabelecida entre os protagonistas de ambas as

narrativas com o universo plasmado nelas, considerando, primeiramente, Dom Quixote,

para então aprofundarmos a verificação acerca de capitão Vitorino. Após o estudo

desses heróis, traçamos um paralelo, a fim de mostrar as ressonâncias quixotescas no

cavaleiro nordestino, através de uma análise que revela as aproximações e os contrastes.

Concluímos que a aplicação da teoria lukacsiana do idealismo abstrato ao romance de

José Lins do Rego, mormente ao personagem capitão Vitorino, é perfeitamente possível.

Ademais, o quixotismo – engendrado na configuração de Vitorino – ganha contornos

peculiares em função da contextualização.

Palavras-chave: romance, herói, idealismo abstrato, literatura comparada, Miguel de

Cervantes, José Lins do Rego.


ABSTRACT

The present research constitutes an attempt to carry out a comparative analysis of the

novels Dom Quixote de la Mancha, by Miguel de Cervantes, and Fogo morto, by José

Lins do Rego. Based on the theoretical concept of the problematic hero, formulated by

Georg Lukács, we examined the relationship established by the protagonists in both

narratives with the universe shaped in them, considering, in a first moment, Dom Quixote,

so as to deepen the investigation about captain Vitorino, in a second moment. After the

study of these heroes, a parallel between them was traced, in order to reveal the Quixote-

like resonances in the Brazilian northeastern knight, through an analysis that conveys

similarities and contrasts. The conclusion indicates that the application of Lukács’ theory

on abstract idealism to José Lins do Rego’s novel, mainly as it concerns captain Vitorino, is

perfectly possible. In addition to that, Quixote-like issues – reflected in Vitorino’s

configuration – are peculiarly enriched due to the contextualization.

Key words: novel, hero, abstract idealism, comparative literature, Miguel de Cervantes,

José Lins do Rego.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 1

1 A NATUREZA DO HERÓI PROBLEMÁTICO .............................................................. 3

1.1 Herói épico, trágico e romanesco ........................................................................................ 3


1.1.1 O herói épico ............................................................................................................... 5
1.1.2 O herói trágico ............................................................................................................. 10
1.1.3 O herói romanesco ................................................................................................... 14

1.2 A tipologia lukacsiana ....................................................................................................... 16

1.3 O idealismo abstrato .......................................................................................................18

2. DOM QUIXOTE (DES)ENCANTADO .......................................................................... 22

2.1 A invenção da realidade .................................................................................................... 22

2.2 O (des)encantamento do mundo ....................................................................................... 37

3. OS PARADOXOS DE CAPITÃO VITORINO ............................................................. 46

3.1 A recriação da realidade .................................................................................................... 46

4. O DIÁLOGO TEXTUAL ................................................................................................. 69

4.1 O cavaleiro do Pilar e o cavaleiro da Mancha: heróis em conflito ................................... 69

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 83

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 86


INTRODUÇÃO

Georg Lukács, em A teoria do romance, estabelece uma tipologia romanesca

com fulcro na ação dos personagens. Partindo da epopéia grega, em que o herói e o mundo

estão em consonância, e ambos estão entrelaçados pela presença das divindades, Lukács

chega ao romance (a epopéia burguesa), que se caracteriza justamente pela ruptura entre o

herói e o mundo. Tal ruptura é determinante para a denominação do herói romanesco. Com

base nesse entendimento, ele distingue três espécies de heróis problemáticos que pautam a sua

classificação para o romance ocidental. Um deles é o romance do idealismo abstrato.

O personagem do idealismo abstrato é um herói que estabelece uma relação

recíproca com o mundo de forma conflituosa: a consciência estreita diante da complexidade

do mundo faz com que esteja em atividade constante. A categoria do idealismo abstrato,

identificada primordialmente por Lukács em Dom Quixote, já possui toda uma tradição

consolidada na literatura ocidental.

De acordo com a crítica, destacamos aquela feita por Antonio Candido, bem

como a de José Maurício Gomes de Almeida: o romance Fogo morto, de José Lins do Rego,

apresenta um personagem que se assemelha a Dom Quixote por, dentre outras questões,

estabelecer, assim como o herói cervantino, uma ligação conflitante com a sua realidade. Tal

personagem chama-se capitão Vitorino Carneiro da Cunha.

Antes de ser explicitado o liame entre capitão Vitorino e Dom Quixote, será

realizado um estudo sobre o herói, partindo da epopéia grega até o romance, com a finalidade

de situar o herói do idealismo abstrato nesse quadro. Na seqüência, faremos as apreciações,

com suporte em Lukács, acerca de Quixote e, depois, de Vitorino. Por fim, proporemos uma

leitura comparatista entre o romance Fogo morto e Dom Quixote.


2

Ressaltamos que o estudo desenvolvido preencherá uma lacuna deixada pelos

estudiosos de Fogo morto, que apenas mencionam o caráter quixotesco de Vitorino, sem

determinar os aspectos precisos dessa aproximação.

Esperamos, com esse trabalho, contribuir com as pesquisas literárias que

estabelecem um diálogo entre literatura e sociedade e oferecer subsídios para o entendimento

do idealismo abstrato e, por extensão, do herói e sua importância dentro da narrativa,

particularmente no romance.
1. A NATUREZA DO HERÓI PROBLEMÁTICO

1.1 Herói épico, trágico e romanesco

O primeiro teórico a fazer uma reflexão sobre a categoria do personagem foi

Aristóteles. Em sua Poética1, o filósofo grego apresenta uma tipologia de personagens com

base na ação. Segundo essa classificação existem três possibilidades de imitação de pessoas:

elevadas ou superiores (que são os heróis da epopéia e da tragédia, sobre os quais

discorreremos neste estudo); inferiores (as que pertencem à comédia); e iguais aos da

atualidade2. Note-se que o objeto da imitação, utilizando os termos do próprio pensador,

constitui-se como um critério distintivo entre os gêneros literários (espécies de poesia)3. Na

Política4, o Estagirita ratifica o caráter superlativo e prototípico do herói em face do homem

grego, ao caracterizá-lo como fisicamente e espiritualmente superior.

Em face do exposto, compreendamos qual seja a razão e a configuração dessa

superioridade.

Etimologicamente, o vocábulo herói – héros – significa guardião, defensor, o

que nasceu para servir. Os heróis são marcados essencialmente por duas virtudes: a timé, que

é honorabilidade pessoal, e a areté, ou excelência, que os habilitam para enfrentar os

obstáculos sobre-humanos inerentes à sua formação. Aliados a essas qualidades, encontram-se

em tais seres outros atributos, que terminam por se mostrar contraditórios, a priori: são

1
ARISTÓTELES. Poética. In: _________; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. 7. ed. Trad. Jaime
Bruna. São Paulo: Cultrix, 1997. p.19-52.
2
Quanto a estes últimos, o Estagirita alude provavelmente ao homem grego. É interessante notar que as
referências às obras e ao próprio gênero que tratam de tal tipo de personagem não estão presentes no texto
aristotélico.
3
Além do objeto, Aristóteles considera como distintivos para a imitação os meios (ritmo, melodia, metro) e a
maneira ou o modo (narração/representação).
4
Cf. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. v. 3. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 52.
4

vítimas de polifagia, sexualmente anormais, violentos, homicidas, sanguinários, sacrílegos,

loucos, criminosos. Do ponto de vista físico, podem ter uma beleza resplandecente, ou serem

feios, possuírem baixa estatura, ou serem gigantes, coxos, cegos. Em suma, as características

acima denotam a complexio oppositorum desses seres “divinamente monstruosos”. Em

decorrência dessa natureza ambivalente, eles são os responsáveis pela redenção do seu povo,

através de feitos grandiosos, mas, também, podem ser a fonte e a causa da desgraça dos seus,

por atitudes vis, independentemente da consciência, que implicam na transgressão do métron,

isto é, dos limites impostos pelos deuses.

A despeito da antinomia ontológica do herói, consoante com a tese de Arturo

Gouveia5, apresentamos o Mito das Raças, contido nOs trabalhos e os dias6, de Hesíodo,

como uma explicação plausível para a propalada supremacia do herói, que se revela

notadamente na classificação aristotélica para os personagens. Em tal texto encontramos uma

hierarquia rígida de raças, vinculada às idades (ouro, prata, bronze, heróis, ferro). Esta última

é a que os seres humanos pertencem. Os heróis ultrapassam os homens em qualquer hipótese,

pois se encontram num patamar superior e têm relação direta com os deuses. Ademais,

possuem origem divina e são denominados de semideuses. A justiça, a coragem, o combate e

a glória são traços indeléveis dessa raça, de acordo com o texto mítico.

Objetivando reforçar essa compreensão, evocamos o ensinamento de Mircea

Eliade:

Todos esses traços ambivalentes e monstruosos, esses


comportamentos aberrantes, evocam a fluidez do tempo
das “origens”, quando o “mundo dos homens” ainda não
havia sido criado. Nessa época primordial, as
irregularidades e os abusos de toda espécie (isto é, tudo
aquilo que será denunciado mais tarde como

5
GOUVEIA, Arturo. A epopéia negativa do século XX. In:_________; MELO, Anaína Clara de. Dois ensaios
frankfurtianos. João Pessoa: Idéia, 2004. p. 58.
6
Note-se, ainda, que as raças são denominadas por metais, exceto a dos heróis. Com o passar do tempo,
percebemos o processo de degradação de um metal para outro. O ferro, que designa a última fase, está sujeito à
ferrugem, ao perecimento.
5

monstruosidade, pecado ou crime) suscitam, direta ou


indiretamente, a obra criadora. No entanto, é em
conseqüência das suas criações – instituições, leis,
técnicas, artes – que surge o “mundo dos homens”, o
tempo criador, o illud tempus dos mitos, está
definitivamente encerrado.7

Deflui-se desse fragmento que se constituiria em um anacronismo cobrar do

herói um comportamento e uma aparência unívocos. Afinal, a sua existência data de uma

outra época – diga-se muito distante da nossa – , o que reverbera, conseqüentemente, na

afirmação de que a idéia de culpa, pecado, aberração, responsabilidade, individualidade, nos

moldes como as concebemos, não condizem com aquela realidade. Portanto, esta realidade é

impassível de mensuração, o que se explica pelo distanciamento mítico, que obscurece

qualquer juízo de valor mais preciso sobre este cosmos. Entretanto, partindo dessa limitação e

considerando-a, é possível compreender a grandiosidade e o tom supremo desses seres que

habitaram o “passado absoluto”8, especialmente no que se refere às suas ações, bem como às

suas relações com os deuses.

1.1.1 O herói épico

Na epopéia, deparamo-nos, segundo Georg Lukács, com uma forma que reflete

uma era em que

(...) não há ainda nenhuma interioridade, pois ainda não


há nenhum exterior, nenhuma alteridade para a alma. Ao
sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma
desconhece o real tormento da procura e o real perigo
da descoberta, e jamais põe a si mesma em jogo; ela

7
apud BRANDÃO, op. cit., p. 67.
8
Mikhail Bakhtin, com o intuito de demonstrar as diferenças existentes entre a epopéia e o romance, apresenta a
categoria do cronotopo como aspecto contrastivo entre os aludidos gêneros. Sob tal prisma, a epopéia plasma o
passado absoluto, um locus acabado e mítico; já o romance ganha o cotidiano.
6

ainda não sabe que pode perder-se e nunca imagina que


terá de buscar-se. 9

Continuando o painel do mundo épico, o filósofo húngaro afirma:

Quando a alma ainda não conhece em si nenhum abismo


que possa atrair à queda ou a impelir a alturas ínvias,
quando a divindade que preside o mundo e distribui as
dádivas desconhecidas e injustas do destino posta-se
junto aos homens, incompreendida mas conhecida, como
o pai diante do filho pequeno, então toda a ação é
somente um traje bem-talhado da alma. Ser e destino,
aventura e perfeição, vida e essência são conceitos
idênticos. 10

Dos fragmentos acima, podemos extrair um quadro bastante preciso sobre a

épica e sua matéria, apesar dos exageros da idealização lukacsiana, o que é uma herança

romântico-hegeliana. No que concerne ao locus, é notável a correspondência com o

transcendente, ou seja, a marcante presença divina. Habitam este mundo, portanto, heróis e

divindades. Entre ambos existe uma conexão. O destino constitui-se num preceito/presente

divino para o homem, que não o contesta, apenas o cumpre. Além do mais, este ser está

integrado ao seu cosmos. A ação e o caráter aventureiro são-lhe inerentes, sem contar com o

fato de que estão amparados pelas divindades, ratificando a certeza da teleologia heróica.

Sendo assim, a dúvida e a insegurança inexistem. Por último, gostaríamos de tratar da

ausência de interioridade e, por extensão, de individualidade. Tal ausência explica-se

precisamente pela simbiose entre sujeito-divindade-mundo.

Ampliando essa questão, temos que o herói, pelo fato de não ter uma vontade

particular, uma consciência reflexiva, graças à referida interveniência divina na sua ação, não

age por si, de per si e para si (pelo menos não exclusivamente). Isto é, a eticidade do sujeito

épico constitui-se de modo objetivo, pois o referido visa cumprir seu destino em obediência
9
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São
Paulo: Duas cidades; 34, 2000. p. 26.
10
LUKÁCS, op. cit., p. 26-27.
7

aos valores do seu povo (mimetizados pela interferência das deidades), valores estes

vigorosamente incorporados à sua vida como se inteiramente seus. Em conseqüência disso, o

destino de um herói acaba repercutindo no do seu povo. É o que se denomina de

representatividade do herói.

Para ilustrar esse aspecto da representatividade, verifiquemos um episódio

contido no Canto I da Ilíada11. Aquiles afasta-se da guerra, depois de ter tido sua “honra”

ferida por Agamémnone. Ante tal fato, Tétis, compadecida com seu filho, o Pelida, pede a

Zeus, que se mostrara até então neutro no tocante à guerra, que conceda aos Troianos o

máximo de apoio, até que de novo a “honra” de seu filho seja restabelecida, bem como a sua

proeminência fosse reconhecida pelos gregos. Como conseqüência dessa saída de Aquiles,

portanto, os gregos começam a perder batalhas, a ponto de se verem acuados em seus próprios

navios, face ao avanço de Heitor e das tropas troianas. Cumpre esclarecer que isto não se dá

apenas porque os gregos perdem simplesmente o seu maior guerreiro (sem contar com a

retirada daqueles que se encontram sob o seu comando), mas se deve sobretudo à interferência

divina em favor dos Troianos, especialmente de Zeus, ao atender o pedido da divindade

marinha.

Corroborando com o exposto anteriormente, destacamos mais uma outra

passagem da Ilíada, dentre inúmeras, que veicula a integração, implementada pelo destino,

entre as duas esferas da ação, que caracteriza a própria epopéia: a ação dos heróis e a dos

deuses. Depois da reconciliação com Agamémnone, Aquiles parte na direção de Tróia,

arrasando os seus inimigos. A construção da glória deste herói funda-se no apoio dos deuses.

Com o intermédio das divindades, Aquiles não só consegue novas armas, mas também a força

e o impulso necessários para cumprir o seu destino, que é o de liderar a vitória grega,

instaurada principalmente com o assassinato de Heitor, herói supremo do lado troiano. Para se

11
HOMERO. Ilíada. 2. ed. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 72.
8

ter uma idéia do suporte divino, Aquiles, com medo de morrer de maneira indigna, pede a

Zeus que o ajude a ultrapassar os rios rumo à cidade inimiga. Assim, Posido e Palas Atena são

enviados para inspirar vigor, o que não é suficiente para enfrentar a cólera das águas. Por isso,

Hera envia seu filho Hefesto para defender Aquiles, com suas chamas. O deus ferreiro

consegue aplacar Xanto, o que viabiliza o avanço de Aquiles, a consolidação da sua glória, a

partir das derrotas arrasadoras impostas aos inimigos12.

A respeito ainda da ação, Lukács capta a sua primazia com os termos a seguir:

“Na ação da Ilíada – sem começo e sem fim – floresce um cosmos fechado numa vida que

tudo abarca”13. De fato, a infinidade de combates singulares dos heróis (andromaquia) é

reforçada pelo embate entre os próprios deuses (teomaquia). Porém, o essencial nestas

palavras diz respeito à totalidade, sinal de convergência entre interioridade e exterioridade14.

Como contraponto da totalidade grega, verifiquemos o episódio da tentativa de

insurreição de Tersites, contido no Canto II da Ilíada15. Este guerreiro é caracterizado pelo

narrador no momento anterior ao seu discurso como “o mais feio de quantos no cerco de

Tróia se achavam”. Em sua fala, aos gritos, insulta Agamémnone questionando sobre a

divisão desigual dos bens e das escravas entre os Aquivos, e que beneficia especialmente os

reis; também o insurgente põe em xeque a própria continuidade da guerra, por conta das

desgraças advindas dela, pregando a volta para casa; por fim, desrespeita Aquiles, chamando-

o de indolente, ao passo que fere o chefe dos guerreiros por “acatar” o ultraje do Pelida.

Analisando este episódio, poderemos afirmar que se trata de um momento isolado. Na

verdade, uma contingência, pois logo o falastrão é rechaçado por Odisseu, que além de

aplicar-lhe uma lição moral, com um forte discurso, golpeia-o com o cetro, deixando-o

12
Idem, p.470-472.
13
LUKÁCS, op. cit., p. 54.
14
Em outras palavras: O homem e a natureza coexistindo no universo numa relação harmônica, o que
corresponde à “concepção homérica da realidade”, calcada claramente na idéia de organicidade (Cf. JAEGER,
Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.78).
15
Cf. HOMERO, op. cit., p.83-89.
9

humilhado. Isso tudo é causa de riso para os demais combatentes, que endossam a

reprimenda, a ponto de muitos deles afirmarem que esta ação de Odisseu supera todas as

anteriores. Dois aspectos ainda precisam ser esclarecidos. Primeiramente, o instante da

“revolta” de Tersites. Ela situa-se logo após o afastamento de Aquiles e, por conseguinte, dos

seus comandados da guerra de Tróia, o que causa um certo estremecimento no brio dos

demais gregos. Em segundo lugar, já há nove anos a guerra acontece. Então, do ponto de vista

da história, faz-se mister a ocorrência de um momento que fizesse reacender o ânimo

combalido dos heróis, e que funcionasse como um reforço da ordem e do pacto vigentes em

desfavor dos Teucros, e este momento é precisamente iniciado com o silenciamento de

Tersites, já que o processo é coroado com a descrição, por parte do narrador, do catálogo das

naus, em que é notória a superioridade grega em detrimento da troiana16.

O conflito vivido pelo herói épico é de cunho impessoal. O confronto existente

na epopéia pauta-se em uma oposição coletiva. Aprioristicamente, numa apreciação do

diálogo travado entre Andrômaca17 e Heitor, na sexta rapsódia da Ilíada18, poder-se-ia

imaginar uma possível lamentação, uma expressão da dor de ambos. O sofrimento de

Andrômaca diz respeito à possibilidade da derrota do marido, o que a deixaria viúva. Mas o

argumento principal levantado para que seu marido não retornasse para batalha, seria deixar o

filho – Escamândrio19 – órfão. Por seu turno, o lamento de Heitor segue a mesma linha de

raciocínio da esposa: preocupado com a derrota, o fim de Tróia, teme a escravidão que

atingirá a sua mulher, de toda forma renega a idéia de se afastar da luta, o que feriria o seu

compromisso de herói, devotado às causas da coletividade. Desse modo, entendemos que há

16
Ver nessa tônica: GOUVEIA, op. cit., p. 64-66. Encontra-se aí uma exposição contundente sobre a
importância da descrição do catálogo das naus para a ação.
17
Analisando a etimologia deste nome, identificamos a aproximação com o vocábulo andromaquia (“andro” =
homem + “maquia” = guerra, combate). Destarte, podemos inferir que o diálogo de Heitor com sua esposa, é
simbolicamente um combate que trava contra si.
18
Cf. HOMERO, op. cit., p. 175-177.
19
Este nome foi o escolhido pelo próprio Heitor. Mas para as demais pessoas, o filho do herói troiano chamava-
se Astianacte (Idem, p. 175) .
10

uma aparência de subjetividade nas lamentações acima, porque a expressividade desse

sofrimento baseia-se em um fato objetivo: a queda de Tróia já traçada pelo destino.

1.1.2 O herói trágico

Na epopéia, a vida e a essência são coincidentes. Posteriormente, com a perda

da imanência da essência, essa coincidência rompe-se. Assim, uma nova forma é engendrada:

a tragédia. Tal forma está fincada em um “subsolo problemático”20, pois somente a partir

desse gênero é instaurado o conflito interior. Esboça-se aí uma subjetividade, o que implica

em questionamento, numa tentativa de mudar o curso do destino. A verdade aparenta não ser

mais única.

“O herói da tragédia sucede ao homem vivo de Homero, e o explica e o

transfigura justamente pelo fato de tomar-lhe a tocha bruxuleante e inflamá-la com brilho

renovado” 21. Essa relação feita por Lukács a respeito do herói trágico e do épico denota uma

proximidade entre os dois, o que dialeticamente torna-se afastamento. Tal aproximação

baseia-se notadamente no aspecto mítico, ou melhor, no locus marcado pela imanência,

comum a ambos. Contudo, esse âmbito mítico entranha-se agora com questões novas. No

drama, os heróis e os deuses ainda estão interligados, todavia não mais como na epopéia. Por

outro lado, o destino já não tem a mesma significação, afinal a ação do herói tenciona romper

com a essência, a substância, a predeterminação.

Corroborando com tal percepção e aprofundando-a, evocamos Jean-Pierre

Vernant22. Ele afirma que a forma dramática, ao reler o universo mítico, inquire também o

mundo da pólis, contrastando-os. O herói trágico como integrante do mundo ambivalente

20
Cf. LUKÁCS, op. cit., p. 32.
21
Idem, p. 33.
22
VERNANT, Jean-Pierre. Tensões e ambigüidades na tragédia grega. In: _________; VIDAL-NAQUET,
Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 7-24.
11

também incorporará essa dualidade: num momento, trará à tona o seu poder lendário,

superlativo; outrora, comportar-se-á como um cidadão. Passado e presente convivem e se

chocam na alma desse herói, situado no limiar de duas posições antagônicas coexistentes. Daí,

o perfil do herói trágico abarcar simultaneamente o êthos (caráter humano) e o daímōn

(manifestação de potência divina)23. Por isso, a sua ação, que almeja libertar-se do espectro da

intervenção das deidades, não pode desprezá-lo inteiramente, porque sua força é alimentada e

revigorada na divina. Esse personagem vê-se numa situação aporética, na qual se apresenta

uma possível alternativa para o destino. Diante dela, ele toma uma decisão. No entanto, a

escolha feita consiste em um arabesco de vontade autônoma.

Seguindo o raciocínio de Vernant24, um contraponto configura-se claramente

entre os gêneros épico e trágico, e, por conseguinte, entre os heróis que aí são representados.

Baseando-se na categoria da ação e reforçando a sua argumentação ao retomar Aristóteles

(que conceitua a tragédia como imitação de uma ação) e trazendo a etimologia de tal categoria

em grego (práttein), o teórico francês diz que não se pode falar propriamente na existência de

uma ação na epopéia, pois o homem que se desenha nela não é encarado como um agente,

diferentemente do que ocorre na tragédia, tendo em vista que aí os indivíduos são

apresentados em “situação de agir” (entenda-se o agir do herói trágico em um duplo aspecto:

reflexão, previsibilidade; de outro, penetração na incerteza do jogo sobrenatural).

Essa consideração de Vernant, no que atine à categoria da ação, parece-nos

confusa. Na poesia épica, o herói está em atividade contínua, principalmente a que se

relaciona com a guerra. É notório que, sendo o herói épico um instrumento das divindades,

um modelo para a coletividade, a sua interioridade é suprimida pela objetividade. Em


23
“A mesma personagem trágica aparece ora projetada num longínquo passado mítico, herói de uma outra
época, carregado de um poder religioso terrível, encarnando todo o descomedimento dos antigos reis da lenda –
ora falando, pensando vivendo na própria época da cidade, como um burguês de “Atenas” no meio de seus
concidadãos” (Idem, p. 13).
24
“A tragédia, nota Aristóteles, é a imitação de uma ação, mímesis práxeōs. Representa personagens em ação,
práttontes. E a palavra drama provém do dórico drân, correspondente ao ático práttein, agir. De fato, ao
contrário da epopéia e da poesia lírica, onde não se desenha a categoria da ação, já que aí o homem nunca é
encarado como agente, a tragédia apresenta indivíduos em situação de agir (...)” (Idem, p.21).
12

decorrência disso, suas ações não têm uma origem propriamente autônoma, elas são

essencialmente heterônomas, o que não impede que o herói execute uma ação, mesmo que

esta seja dependente da colaboração divina. De toda forma, faz-se mister relembrarmos o

substrato que permeia a narrativa épica: nela vida e essência não se distinguem.

Quanto à tragédia, a rigor se levarmos em consideração a categoria da

autonomia da vontade, a ação também inexistiria nesse gênero. Não obstante, partindo do

contexto plasmado nela, compreendemos que se revela visível uma mudança na perspectiva

da ação quando a cotejamos com a implementada pela epopéia. A explicação reside no

processo de deslocamento do conflito para o interior do herói, que agora pode mensurar suas

atitudes. Tal mudança deve-se à incorporação de duas realidades antagônicas que já foram

devidamente apontadas acima. Em virtude disso, o personagem trágico começa a questionar

as forças que o impelem para o destino e essa atitude significa, em termos estruturais, um

herói que pensa em dirigir sua vida, que deseja libertar-se das amarras do fatum, das

imposições dos deuses.

Como exemplo, citamos o caso de Édipo25. Na vã tentativa de esquivar-se do

fim que lhe fora previsto, Édipo abandona o seu reino. No caminho, assassina um homem e

parte em direção à cidade que vai reinar – Tebas, graças ao seu ato em benefício da

comunidade, afastando o mal que aflige a todos. Pelo seu gesto, casa-se com a rainha e com

ela tem muitos filhos. Até que vem a peste. Ela é atribuída à presença de um parricida que

habita no reino edipiano. A catástrofe, nos termos aristotélicos, dá-se quando Édipo descobre

que ele é o “responsável” por toda a desgraça que assola seu reino, pois o assassino a quem

procura é ele próprio (reconhecimento). Apreciando a fábula sofocliana, identificamos que a

ação de Édipo submete-se a uma força que domestica qualquer indício de vontade,

praticamente anulando-a. Todavia, para o próprio Édipo a “culpa” advém da sua ação, por

25
SÓFOCLES. Édipo Rei. In: _________. A trilogia tebana. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002. p.17-100.
13

isso ele pune a si, cegando-se. Como aí não podemos falar em individualidade, Édipo

propriamente não tem responsabilidade. Sendo assim, ele paga pela maldição que recai sobre

sua raça, enfim pelos laços de consangüinidade. Na procura de si, realiza inconscientemente o

fatum que lhe havia sido predeterminado; mas, fundamentalmente, voltamos a frisar, o que

ocorre é uma aceitação do destino como fruto do seu ato, isso tudo sob o prisma do herói

trágico26.

Aproveitando ainda o drama edipiano, fazemos nossas as palavras de Jean-

Pierre Vernant a respeito da grandiosidade de Édipo (quando da sua autopunição), que, por

extensão, assinalamos aos demais heróis trágicos:

(...) o próprio peso dessa falta que deve assumir sem tê-
la cometido intencionalmente, a dureza de um castigo
que suporta serenamente sem tê-lo merecido, o elevam
acima da condição humana, ao mesmo tempo que o
separam da sociedade dos homens.”27

Esse excerto refuta qualquer dúvida quanto à superioridade de Édipo, na

tragédia de Sófocles, apesar de toda degradação por que passa esse personagem.

Em síntese, o herói trágico deixa a passividade reinante na epopéia. Assim,

transforma-se em problema para si e para a alteridade, afastando definitivamente o caráter

modelar28.

26
É relevante salientar que os sofrimentos são oriundos de uma cadeia de consangüinidade, o que anula qualquer
possibilidade de individualidade. Esta é uma conquista histórica recente, viabilizada com a ascensão da
burguesia.
27
VERNANT, Jean-Pierre. Esboços da vontade na tragédia grega. In: _________; VIDAL-NAQUET, Pierre.
Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 50.
28
Cf. VERNANT, Jean-Pierre. O momento histórico da tragédia na Grécia: algumas condições sociais e
psicológicas. In: _________; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo:
Perspectiva, 2002. p. 2.
14

1.1.3 O herói romanesco

Lukács afirma que o romance é “a epopéia de uma era para a qual a totalidade

extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à

vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”29. Como

percebemos, o seu ponto de partida para a conceituação da nova forma é a epopéia grega. Já

pudemos verificar que nela o herói e o mundo estão em consonância, e ambos estão

interligados pela presença das divindades. Tal harmonia é reveladora da totalidade. Por

oposição, o que caracteriza justamente o romance é a ruptura entre o herói e o mundo, mas

essa cisão não extingue a totalidade integralmente. Ela ainda vai existir implicada na

estrutura, portanto, vigorando de modo implícito, abstrato. É exatamente com essa inclinação

que se estabelece o liame entre ambos os gêneros.

Vale salientar, que em outro ensaio30, o mesmo filósofo avança quanto à

Teoria do Romance, no que respeita ao processo evolutivo da forma romanesca, ao não mais

vinculá-la apenas à epopéia clássica. Essa relação aparece agora mediatizada pela narrativa

medieval: “a forma do romance surge da dissolução da narrativa como produto de sua

transformação plebéia e burguesa.”

No locus da nova forma, em que não há mais deuses povoando-o, o ser

humano é entregue à sua própria sorte, o que ocasiona uma inadequação entre o ideal e o real.

Lukács agudiza essa questão e a apresenta como estrutural.

No romance, duas naturezas estão em dissonância, em caráter de

descontinuidade. A primeira é concernente ao indivíduo. A segunda é a própria sociedade, o

29
LUKÁCS, op. cit. p. 55. O autor entende que a forma romanesca constitui-se como a epopéia do mundo
burguês, chegando a essa formulação, baseando-se em Hegel. Este afirma o seguinte: “[...]Dá-se precisamente o
mesmo com o romance, essa epopeia burguesa moderna” (HEGEL, G. W. F. Estética. Trad. Álvaro Ribeiro e
Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores,1993. p. 597).
30
LUKÁCS, Georg. O romance como epopéia burguesa. In: Revista Ensaios Ad Hominem. n. 1. tomo II. Trad.
Letizia Zini Antunes. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem , 1999. p. 88.
15

mundo e o seu conjunto de valores. Com a hostilidade desta natureza em relação à outra,

temos como resultado um processo de alheamento do herói com relação à exterioridade. O

mundo já não é mais considerado um lar, e sim um cárcere. O homem, preso a ele, enxerga a

sua imperfeição e almeja ver-se livre dele, confinando-se em sua interioridade. Esse conflito é

a essência do herói romanesco, que é para Lukács intitulado de herói problemático.

Para compreendermos melhor o herói problemático, faz-se imperioso

apresentar a noção de demonismo:

O abandono do mundo por Deus revela-se na


inadequação entre alma e obra, entre interioridade e
aventura, na ausência de correspondência transcendental
para os esforços humanos31 .

Em outros termos, demonismo seria o desejo do homem, que é imperfeito e

limitado, de realizar seu ideal, num mundo decadente, em que não há mais espaço para a

intervenção divina. Nesse mundo, os homens podem fazer o que bem entenderem; todos

possuem a mesma potencialidade para tentarem realizar as suas metas “divinas”, os seus

projetos, porém seus atos serão mera contingência, não havendo, portanto, um caráter de

superioridade, o que pode levar a um encolhimento da alma ou a ampliação dela em face do

mundo.

A configuração desse herói demoníaco é basilar para entendermos outra

característica intrínseca ao romance: a ironia32. A batalha travada pelo herói contra a

realidade, objetivando reconstruir o seu sentido oculto, que é o cerne da liberdade da alma,

consiste numa luta inglória, fútil – afinal, a realidade sempre é vitoriosa. Diante disso, o

fracasso é a tônica dessa materialização da problemática inerente ao herói, que de princípio

sabe da sua incapacidade de moldar, mas mesmo assim persiste e insiste no seu ideal.

31
LUKÁCS, 2000, p. 99.
32
Cf. ARAUJO, Arturo Gouveia de. A ironia estrutural no romance. Revista do CCHLA, João Pessoa, 12 dez.
2000. p. 9-14.
16

Traçando um paralelo entre este herói e os que foram estudados acima (épico e

trágico), percebemos um processo de degradação, instaurado pela gradual desmitificação do

personagem, imbricada com a diminuição da esfera da ação. O resultado disso é perda de

representatividade, o que implica na solidão, e no desamparo desse novo herói, repercutindo

na sua derrota, fruto da inatingibilidade da meta. Desse modo, o herói que povoa a narrativa

da era burguesa, só pode receber o título de anti-herói.

1. 2 A tipologia lukacsiana

Lukács estabelece uma taxionomia romanesca fulcrada na ação dos

personagens. A ação vai estar vinculada diretamente ao grau de inadequação entre o herói e o

mundo, ou seja, entre a primeira natureza e a segunda natureza.

Com base nesse entendimento, ele distingue três espécies do romance ocidental

até o século XIX: o idealismo abstrato, o romantismo da desilusão e o romance de educação

(da maturidade viril).

O primeiro tipo, que será estudado no próximo item mais detalhadamente,

caracteriza-se pela ação contínua a que o herói se entrega, tipicamente fruto do demonismo do

estreitamento da alma. Essa ação que se reveste de um caráter épico, mas que não encontra

respaldo no contexto em que ocorre, mostra o abismo das naturezas integrantes do romance.

O segundo, no qual o parâmetro é o romance Educação sentimental33, de

Flaubert, constatamos uma inversão do anterior no concernente à ação. Nesta narrativa a

tônica é a passividade, materializada na penetração da interioridade do herói, na proeminência

das suas preocupações. Essa acentuação do interior, da psicologia, denota o alargamento da

alma em detrimento da intervenção no mundo.

33
FLAUBERT, Gustave. Educação sentimental. Rio de Janeiro: Ediouro, [199-?].
17

O último tipo, conforme a classificação lukacsiana, consiste numa

possibilidade de síntese dos anteriores, logo, as características dos mesmos são admitidas e

superadas na seqüência, consoante a lógica dialética. Os anos de aprendizagem de Wilhelm

Meister 34, de Goethe, é o paradigma dessa última estrutura. Em comum com a descrita antes,

esta apresenta a centralidade casual do protagonista. Nisso diferem do idealismo abstrato, que

exige um herói como cerne da narrativa.

Além desses tipos esquemáticos, o filósofo húngaro esboça a configuração de

uma forma que extrapolaria a burguesa, que tenderia para um retorno à epopéia. No início

desse desenvolvimento, ele menciona Tolstói e depois Dostoiévski, que seria o ápice dessa

evolução. Neste ponto, apresentamos nossa crítica a essa possibilidade ventilada de modo

impreciso pelo autor da Teoria do romance. Para tanto, baseamo-nos na sua própria

argumentação, qual seja: as formas estão condicionadas a um substrato histórico-filosófico. A

forma épica da burguesia não oferece mais solo para a totalidade, pois definitivamente a

problematicidade impregnou-se nela. Lukács mostra-se vítima da nostalgia; suas

considerações finais não passam de uma utopia35.

Outrossim, apontamos mais um limite de Lukács, em sua teorização sobre a

epopéia burguesa, que é o de ter se restringindo aos romances que vão do século XVII ao

XIX. No entanto, o seu estudo permite uma possibilidade de leitura para os criados no século

XX, pois prevê, muito embora não esteja desenvolvida, a mutabilidade a que a forma

romanesca está submetida, ao afirmar que o romance é um gênero permanentemente em

causa. Tomando como premissa esse atributo, aliando-o à dialética entre as naturezas do herói

romanesco e do mundo, faz-se viável a aplicação das categorias lukacsianas de personagem

em muitos textos desse último século.

34
GOETHE, Johann W. Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister. Trad. Nicolino Simone Neto. São
Paulo: Ensaio, 1994.
35
Nesse mesmo sentido ver GOUVEIA, op. cit., p. 117.
18

1.3 O idealismo abstrato

Dom Quixote36 é, segundo o próprio Lukács, a grande objetivação desse

primeiro tipo de romance, pois conta com um herói problemático.

O herói do idealismo abstrato é aquele, precisamente, que se caracteriza pelo

demonismo do estreitamento da alma, isto é:

(...) a mentalidade que tem de tomar o caminho reto e


direto para a realização do ideal; que, em
deslumbramento demoníaco, esquece toda a distância
entre ideal e idéia, entre psique e alma; que, com a
crença mais autêntica e inabalável, deduz do dever-ser
da idéia a sua existência necessária e enxerga a falta de
correspondência da realidade e essa exigência a priori
como um resultado de um feitiço nela operado por maus
demônios, feitiço que pode ser exorcizado e redimido
pela descoberta da palavra mágica ou pela batalha
intrépida contra os poderes sobrenaturais37.

(...) a alma é algo que repousa, para além dos problemas,


na existência transcendente por ela atingida; nenhuma
dúvida, nenhuma busca, nenhum desespero pode nela
surgir a fim de arrancá-la para fora de si e pô-la em
movimento, e os combates inutilmente grotescos por sua
realização no mundo exterior tampouco podem afetá-la:
em sua certeza nada a pode abalar, mas isso somente
porque ela está enclausurada nesse mundo seguro,
porque é incapaz de vivenciar seja lá o que for. A
absoluta ausência de uma problemática internamente
vivida transforma a alma em pura atividade (...) A vida
de semelhante homem, portanto, tem de tornar-se uma
série ininterrupta de aventuras escolhidas por ele
próprio38.

(...) o máximo de sentido alcançado em vida [pela


alma] torna-se o máximo de ausência de sentido: a
sublimidade torna-se loucura, monomania39.

36
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Trad. Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo:
Nova Cultural, 2003.
37
LUKÁCS, op.cit., p.100.
38
Idem, p. 102.
39
Idem, p. 103.
19

Essas passagens sublinham os traços que dão forma ao personagem do

idealismo abstrato. Este é um ser fissurado, pois revela uma inadequação patente entre

interioridade e objetividade. É um herói que estabelece uma relação de conflito com o mundo.

A sua consciência torna-se estreita em oposição à complexidade do mundo e, assim, suas

idéias tornam-se fixas, não conseguindo avaliar criticamente seus atos, nem aprender com a

experiência. Essa falta de ponderação faz desse tipo um herói que predominantemente age;

logo, em contrapartida, pouco pensa. Como ele próprio cria uma realidade e projeta nela seus

pensamentos, fechando-se neles, institui uma atmosfera segura que contribui diretamente para

que esteja permanentemente em atividade, constituindo-se num aventureiro insaciável, sempre

em busca de situações, que acabam se tornando grotescamente cômicas, devido à falta de

planejamento, reflexão. Em síntese, esse herói apresenta indícios de loucura.

Os traços citados acima de fato correspondem à caracterização de Dom

Quixote, conforme observamos no trecho a seguir:

– Olhe bem Vossa Mercê – disse o escudeiro –, que


aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e o que
parecem braços não são senão as velas, que tocadas do
vento fazem trabalhar as mós.
– Bem se vê – respondeu Dom Quixote – que não
andas corrente nisto das aventuras; são gigantes, são; e,
se tens medo, tira-te daí, e põe-te em oração enquanto eu
vou entrar com eles em fera e desigual batalha40.

O fragmento acima faz parte de uma das aventuras mais conhecidas do

cavaleiro manchego, a batalha contra os moinhos de vento, inserida na segunda saída de Dom

Quixote. Nesse embate, temos claramente o alerta de Sancho Pança (o escudeiro) ao seu amo.

Porém, este, convicto de que sua visão é a correta, parte para o combate. O resultado é

desastroso: a sua lança esfacelada e o cavaleiro e sua montaria “foram rodando pelo campo

40
CERVANTES, op. cit., p. 59.
20

fora”41. Em face do exposto, identificamos em Dom Quixote uma inadequação entre a sua

idéia e a realidade.

Apesar da situação adversa, Dom Quixote continua imune à dureza do ocorrido

e certo de que a batalha se dera contra gigantes, pois afirma que

(...) as coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a


contínuas mudanças; o que eu mais creio, e deve ser
verdade, é que aquele sábio Frestão, que me roubou o
aposento e os livros, transformou estes gigantes em
moinhos, para me falsear a glória de os vencer, tamanha
é a inimizade que me tem; mas ao cabo das contas,
pouco lhe hão de valer as suas más artes contra a
bondade da minha espada42.

À luz dessas palavras quixotescas, extrai-se que a responsabilidade pela derrota

é fruto do encantamento de Frestão, o próprio que, no entendimento de Quixote, é o

responsável pela queima dos seus livros43. Destarte, na ótica do cavaleiro, os gigantes é que

são transformados em moinhos de vento, e não o contrário. A ilusão é realidade. A alma

repousa incólume; diante disso, Dom Quixote não pára e anseia por mais ação, afinal, nada o

abala. Não é à toa que se vê metido em uma outra aventura, desta feita a dos biscainhos.

Verifiquemos mais um trecho:

(...) o que digo, senhor bacharel [Sansão Carrasco], é


que [Dom Quixote] quer sair outra vez, e com esta
será a terceira, a procurar por esse mundo o que ele
chama aventuras, que não sei como lhes pode dar
semelhante nome. Da primeira vez trouxeram-no
para casa atravessado em cima de uma carreta,
moído de pauladas; da segunda veio num carro de
bois, metido dentro de uma gaiola, onde ele dizia que
estava encantado; e o triste do homem vinha de tal
maneira, que não o conheceria a mãe que o pariu:
fraco, amarelo, com os olhos encovados nas
profundas da cara; e para o fazer tornar a ser o que
era, gastei mais de seiscentos ovos, como sabem Deus

41
Idem, p.59.
42
Idem, p. 60.
43
A queima da biblioteca de Dom Quixote está inserida na primeira parte do romance cervantino,
especificamente no capítulo VI.
21

e todo o mundo, e as minhas galinhas, que me não


deixarão mentir44 (grifo nosso).

Esse trecho apresenta-nos a preocupação da ama de Dom Quixote, relatada ao

bacharel acerca da iminente saída do cavaleiro andante. É de se observar que a ama faz uma

retrospectiva das duas saídas do seu senhor, apontando os problemas daí decorrentes. Tais

referências denotam, na verdade, uma incompreensão acerca da postura de Dom Quixote.

Aqui, fica explícito o caráter ativo do personagem, que, mal convalescera, já quer voltar às

andanças, às aventuras, ou melhor, às desventuras. O supracitado caráter é delineado

claramente por Lukács como um aspecto do herói do idealismo abstrato.

A categoria do idealismo abstrato aplica-se perfeitamente ao herói cervantino,

se verificarmos a totalidade da obra. Inobstante a isso, demonstraremos com mais vagar, no

capítulo a seguir, que, no decorrer da fábula e principalmente tendo em vista a segunda parte,

as idéias fixas sofrem alguns abalos, verbi gratia, o instante emblemático da sua morte.

44
Idem, p. 378.
2. DOM QUIXOTE (DES)ENCANTADO

2.1 A invenção da realidade

Um dos maiores clássicos da literatura universal, Dom Quixote de la Mancha,

romance do escritor espanhol Miguel de Cervantes, apresenta a saga de um fidalgo pobre,

com aproximadamente cinqüenta anos, de compleição rija, seco de carnes, rosto enxuto,

madrugador, amigo da caça, morador de um povoado da Mancha, e que, pela leitura

excessiva de romances de cavalaria, acaba enlouquecendo. Seu desígnio, a partir de então, é

restaurar a Idade de Ouro, época dos cavaleiros andantes, “desfazendo todo o gênero de

desagravos, e pondo-se em ocasiões e perigos, donde, levando-se a cabo, cobrasse perpétuo

nome e fama45”.

Crendo piamente que é um deles, considera que a matéria tratada nos livros de

sua predileção constitui-se em verdade histórica, irrefutável. Vale observar aqui que a missão

de Quixote revela-se impossível, pois não há mais respaldo na realidade para a efetivação de

seu plano. Entretanto, esta inviabilidade não é enxergada pelo cavaleiro que sai em busca de

aventuras. Sendo assim, fica configurado um descompasso entre o sentimento e o destino.

Sob a ótica de Ian Watt: “há (...) uma contínua dialética entre a mente do

Quixote e as realidades com as quais ele vai se confrontando; uma dialética geradora de

infinita variedade e complexidade46”. Ora, essa afirmação está em consonância com a

conceituação apresentada por Lukács de herói problemático, sob a face do demonismo do

estreitamento da alma, que é o idealismo abstrato, em última instância.

45
CERVANTES, op. cit., p. 32.
46
WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson Crusoe. Trad.
Mario Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 64.
23

Para evidenciar isso, basta que recordemos o momento em que o fidalgo

prepara-se para o fiel cumprimento do seu desiderato. Num primeiro instante, o pretenso

cavaleiro ressuscita as velhas armas47 de seus bisavós, que há séculos estavam relegadas ao

esquecimento e que se encontravam enferrujadas, limpando-as e fazendo nelas os reparos

necessários. Providenciadas as armas, o herói batiza o seu rocim48, na verdade um cavalo

doente e magro (indício da penúria em que vivia o seu dono). Afinal, tal providência era

imperiosa, pois “não era razão que um cavalo de tão famoso cavaleiro, e ele mesmo de si tão

bom, ficasse sem nome aparatoso49”. Para tanto, levou quatro dias, denominando-o,

finalmente, de Rocinante, “nome, em seu conceito, alto, sonoro e significativo do que havia

sido quando não passava de rocim, antes do que ao presente era, como quem dissera que era o

primeiro de todos os rocins do mundo50”.

Escolhido o nome para a sua montaria, faltava-lhe o principal, ou seja, atribuir

a si uma nova denominação51, tendo como modelo o famoso Amadis de Gaula. Foi então que,

após mais de oito dias pensando, resolveu chamar-se Dom Quixote de la Mancha, “com o

que, a seu parecer, declarava muito ao vivo sua linhagem e pátria, a quem dava honra com

tomar dela o sobrenome52”. Por último, restava-lhe buscar uma dama de quem se enamorasse,

para torná-la senhora dos seus pensamentos53. Assim, pensou numa lavradora chamada

Aldonça Lourenço, já que ela havia sido no passado alvo de seu sentimento, rebatizando-a de

47
Note-se que as armas do fidalgo, diversamente das do herói épico, não têm uma origem divina. Ademais,
cumpre observar as péssimas condições em que se encontravam as armas do cavaleiro, isto é, enferrujadas e
necessitando de reparos.
48
O cavalo “não é um animal como os outros. Ele é montaria, veículo, nave, e seu destino, portanto, é
inseparável do destino do homem” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 203). Fica patente nesta acepção a
importância deste animal na configuração do herói.
49
Ibid., p.33.
50
Idem.
51
Luís da C. Cascudo (apud BRANDÃO, op. cit., p.31-2) comenta que: “O nome é a essência da coisa, do
objeto denominado. Sua exclusão extingue a coisa. Nada pode existir sem nome, porque o nome é a forma e a
substância vital (...).”
52
CERVANTES, op. cit., p.33.
53
A escolha de uma dama por parte de um cavaleiro é pertinente ao código do amor cortês. Todo cavaleiro
devota-se a uma senhora, sofrendo e lutando por ela (cf. WATT, op. cit., p. 67-8).
24

Dulcinéia del Toboso. O sobrenome – assim como o dele – é uma referência ao lugar de

origem.

Conforme depreendemos de tal quadro, Dom Quixote segue as lições tiradas

dos livros de cavalaria, a fim de tornar-se um cavaleiro. No entanto, ele o faz de modo

artificial. Prova cabal disso é o fato de que saiu em silêncio, pela porta dos fundos, sem que

ninguém desse conta.

Ademais, lembrou-se que seria necessário ser armado cavaleiro. Para suprir

suas necessidades físicas e espirituais, após andar o dia inteiro, ele procura um lugar onde

pudesse abrigar-se. Ao longe, Dom Quixote avistou uma venda que “como ao nosso

aventureiro tudo quanto pensava, via, ou imaginava, lhe parecia real, e conforme ao que tinha

lido, logo que viu (...) se lhe representou ser um castelo com suas quatro torres54”. As duas

moças (prostitutas), que estavam à porta da venda, pareciam-lhe duas donzelas. O vendeiro

transformou-se em um castelão. A comida e a bebida servidas, de simples passaram a de um

banquete especial.

O mais interessante nesta cena diz respeito, na verdade, à cerimônia de

sagração de Dom Quixote como cavaleiro andante, para que assim ele pudesse

definitivamente “buscar aventuras em proveito dos necessitados55”. Conforme a tradição

revelada pela literatura cavalheiresca, as armas devem ser veladas durante uma noite pelo

novel cavaleiro numa capela. Contudo, na inexistência deste local sagrado, a solução

encontrada pelo “castelão”, e logo aceita por Dom Quixote, foi a de velá-las no pátio grande

anexo à venda. Este colocou as armas em uma pia localizada ao pé de um poço, iniciando

assim o ritual. O dono da venda já havia alertado aos hóspedes acerca da loucura daquela

estranha figura. Mesmo assim, dois arrieiros afrontaram-no, ao retirarem as armas da

famigerada pia para que seus animais pudessem saciar a sede. O resultado disso foi uma

54
CERVANTES, op. cit., p. 36.
55
Ibid., p. 41.
25

confusão completa: Dom Quixote, vendo-se desrespeitado, desfere sua lança contra os agentes

de tamanho vilipêndio, recolocando em seguida as suas armas na pia; os companheiros dos

feridos, por sua vez, vislumbrando tal situação, começam a apedrejar o cavaleiro, “o qual, o

melhor que podia, se ia delas anteparando com a sua adarga, e não ousava apartar-se da pia,

para não desamparar as suas armas56”. Plenamente convicto, alteou a voz e infundiu medo ao

ameaçar os algozes. Esta atitude (aliada às alegações do dono da venda) fez com que o ataque

de pedras cessasse. Diante desse cenário, o “castelão”, com o objetivo de evitar o surgimento

de outras situações conflituosas, envolvendo o hóspede desvairado, resolveu antecipar a

ordenação cavalheiresca. Este prontamente aceitou a determinação, pois ansiava por

aventuras.

Regozijado, Dom Quixote decidiu voltar para casa com a finalidade de atender

aos conselhos do seu padrinho (prover-se de dinheiro, camisas, ungüentos, gazes e, ainda,

conseguir um escudeiro para lhe acompanhar). No caminho, porém, ele ouviu gritos e

imaginando que alguém estivesse a carecer de ajuda, dirigiu-se até lá. Eis aí a primeira

aventura de Dom Quixote: a do ovelheiro André. Este moço estava sendo açoitado pelo seu

amo, João Haldudo, o rico, vizinho de Quintanar. Dom Quixote, indignado com a violência

praticada pelo lavrador, exige que ele solte o jovem e que se comprometa a pagar a André o

que lhe deve.

Tranqüilizando o ovelheiro, que estava descrente do cumprimento da promessa

feita pelo seu patrão, Dom Quixote assevera: “basta que eu mande , para ele me catar respeito.

Jure-mo ele pela lei da cavalaria que recebi, deixá-lo-ei ir livre, e dou-te o pagamento por

seguro57”.

56
Ibid., p. 41.
57
Ibid., p. 44.
26

“– Veja Vossa Mercê, senhor, o que diz – replicou o rapazito –: que este meu

amo não é cavaleiro, nem recebeu ordem nenhuma de cavalarias58”. O receio do moço tinha

razão de ser. Inobstante a promessa feita, mal o cavaleiro os deixara, o amo tornou a prender o

seu servo, aplicando-lhe uma surra ainda maior.

Neste episódio, é perceptível a ingenuidade de Dom Quixote, a sua

incapacidade de julgar criticamente a situação. Isto se explica graças a sua fé nos princípios

vigentes no mundo cavalheiresco que imagina também vigorarem no contexto em questão. Ou

seja, a palavra empenhada, enfim, o juramento realizado, concretamente, constituía-se numa

obrigação do indivíduo. Tendo em vista a época ser outra, e o esfacelamento dos valores

consoantes com o código cavalheiresco, a honra já não é mais a regra e, sim, a exceção.

Diante disso, somente na cabeça de Dom Quixote é que o mal foi desfeito. Efetivamente o

que ocorreu foi: a completa humilhação de André; a zombaria do amo; e a ilusão do cavaleiro.

Situada na segunda saída59 do cavaleiro manchego, fazemos agora menção à

aventura da libertação dos galeotes60, que se constitui num esboço de intervenção na

realidade, no que tange à ordem jurídica. Depois de escutar a história de alguns, o herói, em

tom magistral, exige dos guardas a libertação dos condenados às galés pelos crimes que

cometeram. Acompanhemos as razões do libertador:

(...) dura coisa me parece o fazerem-se escravos


indivíduos que Deus e a natureza fizeram livres, quanto
mais, senhores guardas – acrescentou Dom Quixote – ,
que estes pobres nada fizeram contra vós outros; cada
qual lá se avenha com o seu pecado. Lá em cima está
Deus, que se não descuida de castigar ao mau e premiar
ao bom; e não é bem que os homens honrados se façam
verdugos dos seus semelhantes, demais sem proveito.
Digo isto com tamanha mansidão e sossego, para vos

58
Idem.
59
Nesta nova investida de Dom Quixote, ele dá cumprimento aos conselhos do “castelão” que lhe ordenara
cavaleiro.Sublinhamos, aqui, que agora o cavaleiro não mais está sozinho, pois o acompanha Sancho Pança, seu
escudeiro.
60
Segundo MADARIAGA, Salvador de. Guia del lector del Quijote. Madrid: Espasa, 2005. p. 173, “Este
episodio, pues, viene a ser prefiguración de una de las creaciones más características de Europa – la
democracia liberal.”
27

poder agradecer, caso me cumprais o pedido; e quando


à boamente o não façais, esta lança e esta espada com o
valor do meu braço farão que por força o executeis.61

Diante da negativa do comissário, Dom Quixote investe contra os guardas.

Estes reagem. Aproveitando-se do tumulto provocado pelo cavaleiro, os condenados

enxergam a ocasião de alcançarem a liberdade novamente. É o que se sucede. Ao cabo de tal

aventura, Dom Quixote pede aos beneficiados com esta sua ação que procurem em El Toboso,

Dulcinéia, com o intuito de homenageá-la, declarando-lhe quem possibilitou a eles a liberdade

tão almejada. A resposta à solicitação de Dom Quixote foi dada por Ginés de Pasamonte (um

dos libertos), através de burlas. Como sinal de gratidão, jogaram pedras nos benfeitores –

Dom Quixote e Sancho Pança.

Numa análise detida deste episódio, podemos perceber que Dom Quixote está

em relação de ruptura com o mundo em que vive, já que se ocupa em demanda de valores

autênticos, mais especificamente aqui, buscando restabelecer o natural estado de liberdade

intrínseco ao homem, mesmo para os que, aos olhos da lei, são considerados criminosos.

Afinal, como fica claro em seu discurso, só Deus tem o poder de julgar os seres humanos, e, o

que é mais relevante, Deus criou-os para a liberdade. É por isso que, indo de encontro à

norma e à própria autoridade do rei (inclusive ao próprio bom senso), exige a soltura dos

galeotes.

O gesto de Dom Quixote imbui-se de uma grandiosidade, de uma misericórdia,

ao mesmo tempo em que se reveste de uma certa pureza: a idéia de liberdade que ele traz

consigo é absoluta, universal. A partir dela, engendra-se a sua concepção de justiça. Para

efetivá-la, aprioristicamente, usa a força de seus argumentos, do discurso. Entretanto, essa

força não faz eco num cosmos degradado. Então, parte para o enfrentamento com suas armas.

Mesmo assim, o reconhecimento desse ato de generosidade é a burla, o apedrejamento, a

61
CERVANTES, p. 138-9.
28

desfeita. Concluindo, o herói é vítima do próprio movimento das relações sociais existentes e

do seu próprio ideal. A inadaptação de Dom Quixote ao mundo faz-se notória.

No que toca ao aspecto físico do herói cervantino, evocamos a situação em que

Sancho, ao contemplar a feição do rosto do seu amo, que fica iluminado pela chama de uma

tocha, decide chamá-lo de “o Cavaleiro da Triste Figura”. Isso acontece na aventura dos

“encamisados” que trasladam um corpo para Segóvia. Nessa “desaventura”, o herói dirige-se

contra a estranha procissão, imaginando que esses homens que acompanham o corpo tratam-

se de “satanases do inferno”62. Em sua incursão, provoca a queda do bacharel Alonso López

de sua montaria, que vem a quebrar a perna, que rendido solicita a ajuda de Dom Quixote,

para que tire a mula que está sobre ele. Note-se que Dom Quixote, apesar da solicitude, não

sente culpa, inexistindo em sua consciência qualquer conflito trágico ou seriedade sombria, o

que se justifica pela convicção de que age consoante com as regras da cavalaria63. Quixote

delega a tarefa de ajudar o bacharel ao seu escudeiro, que, além disso, põe o ferido sobre a

mula, devolvendo-lhe a tocha.

A explicação de Sancho para essa nova denominação encontra-se no cansaço

deste combate ou na falta dos dentes queixais64, que acentua a visão da pior figura já vista

pelo escudeiro: a compleição combalida de Quixote. Tal nome e insígnia, Dom Quixote aceita

prontamente65.

Segundo Junito de Souza Brandão66, a mudança de nome é um fato muito

importante na iniciação heróica e histórica. Dentre os heróis que recebem um novo nome,

62
CERVANTES, p. 116.
63
Cf. AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1976. p. 310.
64
Os queixais e outros dentes, Dom Quixote perde-os após a chuva de pedras promovida pelos pastores de
carneiros e ovelhas. O cavaleiro imagina que estes são dois exércitos, entranhando-se no meio do tropel de
ovelhas (DQ, I, Cap. 28).
65
A justificativa para esse pronto consentimento deve-se ao fato de que era uma prática antiga dos cavaleiros
andantes, que modificavam o nome quando lhes conviesse.
66
BRANDÃO, op. cit., p. 31.
29

temos: Jasão, Aquiles, Teseu, Héracles. A diferença fundamental entre o rito iniciático desses

heróis e o de Dom Quixote é concernente ao motivo e à origem.

No rito daqueles, após os ensinamentos, o mestre coroa o seu discípulo com

um novo nome (Jasão e Aquiles), ou este batismo é o resultado de uma vitória sobre um

obstáculo praticamente invencível (caso de Héracles que, antes de realizar os Doze Trabalhos,

chamava-se Alcides), ou, ainda, quando há o reconhecimento pelo pai (situação na qual se

enquadra Teseu).

Na hipótese do protagonista do romance de Cervantes, em um primeiro

momento, o motivo é a aspiração, impulsionada pela confusão literatura-realidade. Como se

percebe aqui, Dom Quixote é quem se autonomeia. Já no episódio que ora estamos

abordando, Sancho Pança é quem atribui uma nova alcunha para o cavaleiro. Isso é feito, não

porque seu amo venceu uma grande batalha, muito pelo contrário, é fruto das desventuras que

sofrera. Além do mais, Sancho não é o seu mestre. O aspecto físico associado à própria

configuração do herói, com suas armas e paramentos improvisados, e ideais sublimes,

refletem o contraste de sua presença, de seu discurso e de sua ação no mundo. As

conseqüências disso são as desventuras em que se envolve.

Como sabemos, nada parece abalar a confiança de Dom Quixote. Por isso, ele

continua a buscar mais e mais aventuras, não temendo o porvir. Exemplificando, citamos o

episódio dos leões, situado na terceira saída do herói. Aqui, o Cavaleiro da Triste Figura,

desprezando os conselhos do Cavaleiro do Verde Gabão e de Sancho Pança, aspira enfrentar

os leões. Decidido, fala: “Apeai-vos, bom homem, e, visto que sois guarda, abri essas jaulas e

largai-me estas feras, que, no meio deste campo, lhes mostrarei quem é Dom Quixote de la

Mancha, a despeito e apesar dos nigromantes que mos enviam67”. Notando o guarda a

disposição de Dom Quixote em prosseguir com o disparate a qualquer custo, abre a primeira

67
CERVANTES, p. 421.
30

jaula onde está o macho. O herói que se encontra a pé espera o ataque do leão, que inclusive

não está alimentado. Porém, a fera tem uma reação inesperada: espreguiça-se, boceja e volta

“os quartos traseiros para Dom Quixote, e com grande fleuma e remanso torna a deitar-se na

jaula68”. O ânimo de enfrentar a fera, conforme o guarda, “é o mais que se pode dizer em

gênero de valentia”. Pensamento ratificado pelo autor da façanha e pelos que o cercam. Por

praticar este feito, Dom Quixote muda sua denominação de Cavaleiro da Triste Figura para

Cavaleiro dos Leões.

A leitura que Cesare Segre faz acerca deste episódio mostra-se bastante

elucidativa:

Talvez seja a aventura dos leões a que melhor sombreia


a dimensão trágica de Dom Quixote (...). [Este] e os
tremebundos espectadores falarão de vitória moral; mas
o malogrado combate com o leão simboliza a
impossibilidade de um contato dinâmico, o fechar-se
do mundo às solicitações do infortunado cavaleiro. A
quem desde já é negado, mesmo antes do sucesso, o
processo pelo qual poderia consegui-lo (grifo
69
nosso).

Tomando como fundamento a interpretação do estudioso italiano, bem como

verificando detalhadamente o episódio em tela e relacionando-o com os poucos sucessos de

Dom Quixote, como, por exemplo, o de sua “vitória” no combate singular contra o Cavaleiro

do Bosque ou dos Espelhos (bacharel Sansão Carrasco)70, que apenas é possível graças ao

embaraço desse homem com seu cavalo e por sua falta de trato com a lança, constatamos que

68
Ibid., p. 423.
69
SEGRE, Cesare. As estruturas e o tempo. Trad. Silvia Mazza e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1986.
p. 222-3.
70
“Dom Quixote, que imaginou que o inimigo vinha por aí fora voando, enterrou com alma as esporas nos
magros ilhais de Rocinante, e de tal maneira o espicaçou, que diz a história que foi esta a única vez que ele
galopou em toda a sua vida, porque o mais que dava era um trote declarado. Com esta nunca vista fúria, chegou
ao sítio onde estava o dos Espelhos cravando no seu cavalo as esporas todas, sem conseguir ainda assim,
arrancá-lo do sítio em que estacara. Nesta excelente conjuntura achou Dom Quixote o seu contrário (...). [Então]
a são e salvo esbarrou no dos Espelhos, com tão estranha força, que o atirou do cavalo abaixo pelas ancas, dando
tal queda, que ficou estendido sem mover mão nem pé, e dando todos os sinais de que morrera” (DQ, II, cap. 14,
p. 411).
31

a luta de Dom Quixote está, no fundo, marcada pelo fracasso, porquanto, ele não tem plena

consciência que sua demanda está perdida, que seu projeto não obterá êxito71. O mundo é

hostil a sua individualidade: até os animais não correspondem a sua atitude digna de um herói

épico. A vitória ou o fracasso de Dom Quixote terminam equivalendo-se quanto aos efeitos na

realidade, afinal não melhora ou ajuda em nada.

Lukács, a propósito da dimensão épica do romance de Cervantes, teoriza:

O idealismo abstrato e sua íntima relação com a pátria


transcendente, situada para além do tempo, tornam
necessária essa espécie de configuração. Eis por que a
maior obra desse tipo, o Dom Quixote, avança com
tanto mais força rumo à epopéia – e isso segundo os
seus fundamentos formais e histórico-filosóficos. Os
acontecimentos do Dom Quixote são quase atemporais,
uma série variegada de aventuras isoladas e perfeitas
em si mesmas, e embora o final dê perfeição ao todo no
tocante ao princípio e ao problema, apenas o todo é
coroado, não a totalidade concreta das partes.72

Observa-se, no trecho acima, que o romance do idealismo abstrato, em

especial, o paradigma dessa tipologia – Dom Quixote, vincula-se à épica (fundamentalmente,

a cavalheiresca), não se confundindo com ela, obviamente. O argumento apontado pelo

teórico refere-se às aventuras e sua relação com o tempo. Em outras palavras, os fatos nesta

narrativa ocorrem num tempo transcendente, não obstante, essa transcendência, ou melhor,

aparente atemporalidade, ser conseqüência da tensão individualidade x mundo, isto é, da cisão

entre a primeira natureza e a segunda. A atemporalidade dos acontecimentos está sedimentada

na inadequação entre o ideal e a idéia, na problematicidade do herói.

71
A contrario sensu, Foucault assinala acerca de Dom Quixote: “Sua aventura será uma decifração: um percurso
minucioso para recolher em toda a superfície da terra as figuras que mostram que os livros dizem a verdade. A
façanha deve ser prova: consiste não em triunfar realmente – é por isso que a vitória não importa no fundo – ,
mas em transformar a realidade em signo” (Cf. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma
Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 64).
Discordamos, em parte, com esta afirmação de Foucault, apoiando-nos na contínua preocupação que Dom
Quixote apresenta com a fama.
72
LUKÁCS, op. cit., 137.
32

É possível identificar um tom épico no romance de Cervantes, por exemplo,

apresentamos a aventura da Cova de Montesinos. Aqui, Dom Quixote relata a experiência que

tem nas entranhas desse lugar. A aventura teria se passado em três dias “naquelas partes

remotas e escondidas à vista humana73”.

Ele revela, então, que há um suntuoso palácio de cristal numa concavidade

situada no interior da caverna, onde é recebido por um ancião chamado Montesinos. Este

informa ao cavaleiro manchego que todos que ali se encontram encantados já o estavam

esperando para que desse ciência ao mundo acerca do que vira. Segundo o cavaleiro

Montesinos afirma a Dom Quixote: “façanha só guardada para ser cometida por teu

invencível coração e por teu ânimo estupendo74”. Montesinos, dentro do mundo

cavalheiresco, foi o incumbido de realizar a entrega do coração do enamorado cavaleiro

Durandarte (seu amigo) à Senhora Belerma. Conduzindo Dom Quixote pelo palácio,

Montesinos mostra-lhe o sepulcro de Durandarte, falando que os que se encontram na cova

(cavaleiros e donzelas) estão ali presos por encantamento de Merlim, nigromante francês,

conhecido como filho do diabo. Dom Quixote, ainda conforme Montesinos, possui

capacidade para libertá-los do feitiço.

Dom Quixote vislumbra ainda a imagem de uma procissão de damas, que de

acordo com Montesinos, ocorre em memória de Durandarte, seu amado. Nessa oportunidade,

o guia do alcáçar faz uma comparação entre Belerma e Dulcinéia, não aceita pelo herói: “a

sem-par Dulcinéia é quem é, e a Senhora Belerma é quem é e quem foi, e fiquemos por

aqui75”.

O ancião apresenta a Dom Quixote três damas que brincam no campo. Este as

reconhece: uma era a “incomparável Dulcinéia” e as outras eram as duas lavradoras que a

acompanhavam quando do encontro que tiveram na saída de El Toboso. Uma dessas

73
Idem.
74
DQ, II, cap. 23, p. 452.
75
Ibid., p.454.
33

lavradoras veio ao encontro do Cavaleiro dos Leões, para solicitar, em nome de Dulcinéia,

seis reais. Dom Quixote, após ouvir o parecer de Montesinos, oferece o que tem, ou seja,

quatro reais.

O significado do episódio de Montesinos, para alguns estudiosos, tem se

mostrado bastante controverso. Ian Watt, ao empreender uma leitura acerca dessa aventura,

emite um juízo que demonstra uma certa incompreensão, pois afirma que a visão que o herói

tem na caverna é uma visão poética, ridícula e infinitamente problemática76”. Como um

primeiro problema, o crítico levanta a questão da realidade ou não do relato. Claramente,

neste tópico, Watt pauta-se nas condições em que Dom Quixote retorna da cova, isto é, com

os olhos fechados, bem como no tempo em que Sancho e um primo do Cavaleiro do Verde

Gabão gastam para puxar a corda que o traz – aproximadamente uma hora. Outro aspecto

duvidoso mencionado por ele é o relativo à interseção entre o mundo exterior e o mundo

interior, como no caso da visão de Dulcinéia e suas duas acompanhantes, num locus de

cavaleiros, rainhas e damas.

Quanto ao primeiro aspecto, gostaríamos de esclarecer que a aventura na Cova

de Montesinos revela o caráter inerente ao herói de Cervantes, que é o de criar, construir a

realidade consoante as suas convicções. A presença de Quixote em meio a cavaleiros

grandiosos e damas formosas, ambos de um “passado mítico”, acentuam a heroicidade e

magnitude do cavaleiro. Para corroborar com isso, citamos o comentário de Montesinos a

Durandarte acerca de Dom Quixote:

Sabei que tendes aqui, na vossa presença (...), aquele


grande cavaleiro, de quem tantas coisas profetizou o
sábio Merlim, aquele Dom Quixote de la Mancha, que
de novo, e com maiores vantagens que nos passados
séculos, ressuscitou a já olvidada cavalaria andante, por
cujo meio e favor poderia ser que nós outros fôssemos
desencantados; que as grandes façanhas para os grandes
homens estão guardadas.77

76
WATT, op. cit., p. 94-5.
77
Ibid., p. 453.
34

Desse excerto, percebemos que Dom Quixote é encarado como um grande

homem, capaz de grandes feitos, inclusive o de desencantar os que estavam na condição de

encantados. Além disso, o pensamento de Montesinos reforça o sentido da luta de Dom

Quixote em reavivar os valores cavalheirescos. Observa-se, ainda, que a presença de Dom

Quixote na Cova já havia sido profetizada pelo feiticeiro Merlim, o que simboliza a ligação

entre o passado e o futuro que se presentifica.

Tencionando traduzir a questão do tempo, destacamos que ela tem ligação com

a superposição das realidades idealizadas por Dom Quixote. Este, na aventura, experimenta o

universo encantado por Merlim, repleto de cavalheiros e damas, incluindo nele a sua amada

Dulcinéia del Toboso e as outras duas lavradoras. A justaposição de eras (ciclo carolíngio e o

ciclo quixotesco) e a conseqüente ampliação do tempo indicam a mitificação da ação de

Quixote e a tentativa de transcendência. Entendendo assim, o fato de Dulcinéia encontrar-se

também nesta aventura explica-se pelo encantamento ao qual está submetida, que antes não

cria78.

Ian Watt encara ainda Dom Quixote como um herói que recebe os influxos das

novelas de cavalaria, especialmente no que concerne à honra, à idealização do amor, às armas,

ao nome, à necessidade de fama, o que já constatamos.

Todavia, é relevante dizer que, ao estabelecer esse paralelo, o crítico toca num

ponto crucial, que é o de associar a ação individual ao cavaleiro andante. Em face disso, Dom

Quixote79 e, por conseguinte, o herói romanesco – que por essência não é modelar – são tipos

de heróis que não representam uma coletividade (diferentemente dos da epopéia e da tragédia,

afinal, o que acontece com eles repercute sobre a comunidade).

78
Na ocasião em que Sancho Pança engana o amo, utilizando-se do argumento que o aspecto grosseiro de
Dulcinéia e das suas acompanhantes é fruto de encantamento (cf. DQ, pp. 389 ss).
79
Dom Quixote é o primeiro grande herói solitário da modernidade, do universo do individualismo burguês. Por
isso, o romance homônimo também surge como a primeira epopéia burguesa, consoante com a constatação de
Lukács.
35

Para ilustrar isso, ponderemos acerca do seguinte fragmento do texto:

Ao sair de Barcelona, voltou Dom Quixote os olhos


para o sítio onde caíra e disse:
– Aqui foi Tróia, aqui a minha desgraça, e não a minha
covardia, me tirou as glórias que eu alcançara; aqui
usou a fortuna comigo das suas voltas; aqui se
escureceram as minhas façanhas; aqui, enfim, caiu a
minha ventura, para nunca mais se levantar 80.

Aqui, temos a cena em que Dom Quixote está deixando Barcelona, após ter

sido derrotado pelo Cavaleiro da Branca Lua (Sansão Carrasco), que o faz jurar que durante

um ano não pegaria em armas. A fala do cavaleiro da Mancha é bastante esclarecedora no que

se refere a sua não representatividade de uma comunidade. Basta fazermos um apanhado dos

pronomes que integram a sua lamentação, que em sua grande maioria são de primeira pessoa

(minha, me, eu), indicando o âmbito restrito dos efeitos da adversidade, ou seja, o raio de

alcance é o próprio Dom Quixote.

Ao passo que o protagonista do romance espanhol afasta-se do herói clássico

nesse tópico, ele não deixa de manter um liame, o de estabelecer um vínculo quase

indissolúvel com suas armas, já que elas são um símbolo do caráter belicoso do guerreiro.

Nas epopéias, os heróis estabelecem um elo indiscutível com suas armas, pois

elas são capitais para a sua configuração. Isto fica nítido, por exemplo, no momento em que

um herói, depois de vencer o inimigo, procura, de imediato, despojá-lo de sua armadura

(considerando aqui o conjunto: elmo, espada, escudo, etc.), exibindo-a como um verdadeiro

prêmio que demonstra sua força, sua superioridade. Verbi gratia, o caso de Heitor que manda

as armas de Pátroclo para Ílio, “como alto sinal de triunfo”; outrossim, a ocasião em que o

mesmo Heitor veste a armadura de Aquiles:

(...) Dando gritos de júbilo, vai para o meio

80
DQ, II, cap. 66, p. 646.
36

dos companheiros ilustres, aos olhos dos quais parecia


na fulgurante armadura, o magnânimo Aquiles Peleio.
Corre as fileiras do exército e os sócios ilustres incita81.

Para o derrotado, normalmente, ter suas armas retiradas significa a vergonha de

sua nudez, que transcende o mero aspecto da exposição do corpo: afinal, a arma termina por

se constituir como parte integrante da honra, enfim, da alma do herói. Não é à toa que muitas

vezes trava-se uma nova luta, pois o combatente, para concretizar plenamente sua vitória,

tomando as armas inimigas, necessita enfrentar os companheiros do morto. Corroborando

com tudo isso, ilustramos com a passagem em que Sarpédone, atingido por Pátroclo, pede a

Glauco que o defenda do ultraje pretendido pelo seu algoz:

Glauco querido, guerreiro famoso entre os homens, agora


deves mostrar-se invencível, vibrando galhardo a hasta longa.
Se és denodado, somente prazer pode a guerra causar-te.
Os condutores dos Lícios, primeiro, de todos os lados
chama e os exorta a que venham lutar ao redor de Sarpédone;
com tua lança de bronze, depois, corre em minha defesa.
Causa de grande desonra e de opróbrio ser-te-ei para sempre,
Constantemente, se, acaso, ao cair junto às naus, em combate,
da reluzente armadura me vierem privar os Aquivos.
Firme, portanto, peleja, e os demais, como cumpre, estimula82.

Essa relevância das armas, para o herói, revela a marca característica do

mesmo: a luta, o combate, a guerra. Sem as armas não é possível guerrear. Para ilustrar isso,

transcrevemos a seguir um pequeno trecho em que Aquiles conversa com Íris: “Como é

possível lutar? Minhas armas as têm os Troianos” 83.

Ao longo do texto cervantino, percebemos igualmente a importância das armas

para o cavaleiro. Mas, é no final que essa indissolubilidade ganha contornos mais precisos.

81
Ilíada, XVII, v.212-215.
82
Ilíada, XVI, v. 492-501.
83
Ilíada, XVIII, v. 188.
37

Sem elas, Dom Quixote, humilhado e pisoteado literalmente (episódio dos porcos84),

renunciando à condição de cavaleiro andante, vai sucumbir à realidade e constatar que a

verdade literária não é a verdade histórica: os romances de cavalaria não passam de ficção.

A partir do que expusemos, acreditamos que o nosso aparato crítico converge

com o teórico, pelo fato de ambos acentuarem como características em Dom Quixote: a busca

pelos valores autênticos (e.g, justiça: libertação dos presos); a inadequação com o mundo

(loucura), a luta destemida contra a realidade.

2.2 O (des)encantamento do mundo

Como sabemos, o contexto grotesco é resultante do choque entre a idéia fixa

do herói e o quotidiano no qual está mergulhado, que em princípio não implica abatimento, ou

qualquer sentimento de dúvida, afinal a interioridade encontra-se encapsulada pela

monomania; o indivíduo, então, envolto nesta atmosfera, age freneticamente, demandando por

aventuras, que se moldam ao seu ideal, ao talante da sua vontade. No caso de Dom Quixote, a

ótica dos fatos, das pessoas, das coisas, dos acontecimentos, limita-se às lentes dos princípios

da cavalaria andante. As aventuras criadas e empreendidas pelo Cavaleiro da Triste Figura (ou

dos Leões) tornam-se cômicas, por intermédio da não correspondência de sentido.

Ora, a busca de valores autênticos consiste na tentativa de Dom Quixote recriar

a sua idealidade, por meio da ação. Contrapondo-se ao desejo de instauração de uma outra

84
“A bulha provinha de mais de seiscentos porcos que uns homens levavam a vender a uma feira; e era tal o
barulho dos seus passos, o grunhir e o bufar, que ensurdeceram Dom Quixote e Sancho, os quais nem
imaginaram o que podia ser. Chegou de tropel o extenso e grunhidor batalhão, e sem respeitar a autorizada
presença de Dom Quixote e de Sancho, desfez as trincheiras que este último erguera e derribou não só Dom
Quixote, mas atirou também de pernas ao ar Rocinante. O tropear, o grunhir, a rapidez com que chegaram os
animais imundos, puseram em confusão no meio da relva, a albarda, as armas, o ruço, Rocinante, Sancho e Dom
Quixote. Levantou-se Sancho o melhor que pôde e pediu a seu amo a espada, dizendo que queria matar meia
dúzia daqueles senhores e descomedidos porcos, que já conhecera que o eram. Dom Quixote disse-lhe:
– Deixa-os ir, amigo; esta afronta é pena do meu pecado e justo castigo do céu, que a um cavaleiro vencido
o comam as raposas, o piquem as vespas e o pisem aos pés os porcos” (DQ, II, cap. 68, p. 654).
38

realidade, a degenerescência do meio social e a opressão vigente exercem sobre o herói uma

contínua degradação, reverberada numa tensão estrutural que permeia o romance. Essa

degradação do herói intensifica-se na segunda parte da narrativa, que coincide com a terceira

saída de Dom Quixote. A fé antes inabalável começa a ruir. As aventuras, que antes eram

reflexo exclusivo de sua compreensão e operadas por sua vontade, perdem essa exclusividade.

Erich Auerbach no seu célebre estudo sobre o capítulo X da segunda parte do

Dom Quixote, capta o instante em que o herói vê-se surpreendido, em que a incredulidade

ameaça-o. Aqui, há uma verdadeira inversão dos papéis: o cavaleiro mostra-se cético diante

da visão da sua amada; já Sancho apresenta-se crédulo, pois depende dessa firmeza para

convencer seu amo, a fim de envolvê-lo plenamente no seu plano, qual seja, o de fazer com

que Dom Quixote acredite que dentre as três aldeãs com as quais eles se encontram, Dulcinéia

del Toboso está no meio delas. Trata-se de um momento crucial da narrativa, que vai marcar

profundamente o cavaleiro tanto do ponto de vista da ação como da sua caracterização:

Em primeiro lugar porque se trata da própria Dulcinéia,


a ideal e incomparável senhora do seu coração; é o auge
da sua ilusão e da sua desilusão, e, mesmo que também
neste caso encontre uma saída para salvar a ilusão, esta
saída (Dulcinéia está encantada) é tão dificilmente
suportável que dali em diante todos os seus
pensamentos estão dirigidos para a meta da sua
salvação e da quebra do encantamento (...). Depois, esta
cena distingue-se pelo fato de que nela, pela primeira
vez, os papéis estão trocados (...); Sancho improvisa
uma cena de romance, enquanto que a capacidade de
Dom Quixote de transformar os acontecimentos
segundo a sua ilusão falha diante da crua vulgaridade
85
do aspecto das lavradoras .

O embate travado entre a ilusão (Dulcinéia formosa) e a realidade quotidiana

(Dulcinéia vulgar) delineia um espetáculo em que a consecução de seu projeto é duramente

testada, que pode ser tomado como um mau presságio quanto a sua plausibilidade. A operação

de invenção da realidade foge ao seu comando, pelo menos temporariamente. Questionado


85
AUERBACH, op. cit., p. 303.
39

sobre um dos principais pilares da sua vida de cavaleiro, Dom Quixote, por necessidade,

acosta-se no argumento do encantamento, assegurando a sua fé. Agora, fiando-se nesse

artifício, enxerga a sua amada, efetivamente bela, só que momentaneamente desfigurada por

força de um feitiço.

Salvador de Madariaga, centrando-se numa leitura aprofundada da psicologia

de Dom Quixote e Sancho Pança ao longo da narrativa, chama atenção para a complexidade

da construção desses personagens, apontando que há um processo de evolução. O primeiro

declina da ilusão à realidade (“sanchificação”); enquanto que o segundo sofre o processo

reverso: ascende da realidade à ilusão (“quixotização”)86.

Ian Watt endossa essa tese ao manifestar que, no decorrer do livro, o

pensamento de Sancho é gradualmente dominado pelo exercício da função de escudeiro, que

lhe trouxe a satisfação da realização de seu objetivo (governar uma ilha). Conquanto,

relativamente ao cavaleiro, Watt manifesta certa reserva: “(...) a mudança em Dom Quixote é

mais ambígua; ele deve-a menos a Sancho e mais ao rumo pelo qual suas crescentes dúvidas

acerca de si mesmo são reforçadas pelas derrotas”87.

Detendo-nos na análise de Dom Quixote, evidenciamos que Madariaga aponta

a diferença entre o Quixote da primeira parte e o da segunda. Nesta, o cavaleiro mostra-se de

certa forma passivo e um tanto inseguro, distintamente de outrora, em que o destemor e a

atividade são suas marcas, um verdadeiro paladino dos ideais cavalheirescos. A credulidade

nos ideais e na ação, pautados pelos preceitos da cavalaria andante, passa a receber os

influxos da dúvida, pondo em xeque a realidade quimérica que o herói tenta viabilizar no seu

cosmos88.

86
MADARIAGA, op. cit., p.116-7.
87
WATT, op. cit. p.89.
88
MADARIAGA, op. cit., p.120ss.
40

Nessa perspectiva, é paradigmático o caso em que Dom Quixote questiona

Sancho acerca das visões que este tivera na viagem que fizeram sobre Clavilenho89. Antes,

faz-se mister acompanharmos a explicação de Sancho Pança, acompanhada das suas

impressões:

(...) como voávamos por encantamento, por


encantamento podia eu ver a terra toda, e todos os
homens, olhasse lá como olhasse; (...) vi-me tão perto
do céu, que não estava à distância de mais de palmo e
meio, e o que posso jurar (...) é que é imenso; e sucedeu
caminharmos pelo sítio onde estão as sete cabrinhas, e
eu, como em terra quando era pequeno fui cabreiro,
assim que as vi me deu logo vontade de brincar com
elas um pedaço, e se não satisfizesse essa vontade,
parece-me que rebentava. E vai eu que faço, sem dizer
nada a ninguém, nem mesmo a meu amo? apeio-me de
manso de Clavilenho, e estive-me entretendo com as
cabras, que são mesmo umas flores, quase três quartos
de hora, e Clavilenho não se arredou nem um passo90.

Aqui, deparamo-nos com as imagens que Sancho afirma ter visto (a terra, os

homens, o próprio céu, as estrelas) durante a viagem feita em cima do cavalo de madeira,

através do céu. O devaneio intensifica-se quando ele afirma ter brincado com as sete

cabrinhas – constelação das Plêiades – por um tempo considerável, sem que seu amo

percebesse sua saída. Assim como no encontro que promoveu de Dulcinéia com Dom

Quixote, o escudeiro inventa a sua verdade, usando como argumento o encantamento.

Por sua vez, Dom Quixote expõe o que se passou – na sua concepção – durante

a viagem, contrapondo-se a Sancho:

Como todas estas coisas e estes sucessos estão fora da


ordem natural – observou Dom Quixote – , não admira
que Sancho diga o que diz; agora eu de mim só o que
sei dizer é que não destapei os olhos nem por cima nem
por baixo: nem vi o céu, nem a terra, nem o mar, nem as
areias. É verdade que senti que passava pela região do

89
Cumpre anotar que esta viagem ocorre no fim da aventura da Condessa Trifaldi (II, cap. XXXVI e ss.). Esta é
mais uma das aventuras teatrais, orquestradas pelos duques.
90
DQ, pp. 532-3.
41

ar, e até que tocava na do fogo; mas que passássemos de


ali para diante, não o posso crer, pois, estando a região
do fogo entre o céu da Lua e a última região do ar, não
podíamos chegar ao céu onde estão as sete cabrinhas
que Sancho diz sem nos abrasarmos, e, como nos não
abrasamos, ou Sancho mente, ou Sancho sonha91.

Nessa exposição, Dom Quixote refuta os acontecimentos narrados por seu

escudeiro. No argumento inicial – que as coisas e os acontecimentos estão fora da ordem

natural – , há uma tendência de que o cavaleiro possa julgar possível a visão “sanchesca”. No

entanto, com o desdobramento do raciocínio, Quixote afirma não ter visto nada e ainda

desmonta a idéia de que Sancho entreteve-se com as sete cabrinhas. O desfecho de sua

explanação é sintomático do seu crescente ceticismo: o que Sancho disse é mentira ou um

sonho.

O Cavaleiro dos Leões, porém, após colocar em dúvida a versão de Sancho,

tergiversa:

“– Se quereis, Sancho, que acredite no que vistes no


céu, haveis de acreditar no que vi na cova de
Montesinos; e não vos digo mais nada.”

Em outros termos, o cavaleiro afirma que só dará crédito às visões do

escudeiro, caso ele revisse o seu posicionamento sobre a existência da aventura da Cova de

Montesinos92. É notório nesse momento que o cavaleiro demonstra uma certa dúvida sobre a

sua própria aventura na caverna, ao necessitar da confirmação da veracidade por Sancho. A

proposta de Dom Quixote a Sancho é um forte indício do enfraquecimento de sua crença, ao

mesmo tempo em que denota o incremento da capacidade criadora de Sancho e da sua

credulidade nos motivos da cavalaria: acontecimentos e coisas que se encantam.

91
DQ, p. 533.
92
DQ, II, cap. 41.
42

Consideremos, por fim, o episódio da morte de Dom Quixote93.

Primeiramente, é válido remontarmos ao combate que ele trava com o Cavaleiro da Branca

Lua, analisando-o94. As condições do duelo são as seguintes: na hipótese de vitória do

Cavaleiro da Branca Lua, o vencido teria que se retirar por um ano, sem poder exercitar as

armas, e ainda teria que proclamar que a dama do oponente, seja quem fosse, seria

incomparavelmente mais formosa do que Dulcinéia del Toboso; sendo o vencedor Dom

Quixote, o derrotado colocaria à disposição sua cabeça, bem como as armas e os cavalos

estariam ao dispor como despojos. Do combate, o Cavaleiro dos Leões sai-se como perdedor.

Todavia,

Dom Quixote, moído e atordoado, sem levantar a


viseira e como se falasse de dentro de um túmulo, com
voz debilitada e enferma, disse:
– Dulcinéia del Toboso é a mais formosa mulher do
mundo e eu o mais desditoso cavaleiro da terra, e a
minha fraqueza não pode nem deve defraudar esta
verdade: carrega, cavaleiro, a lança, e tira-me a vida, já
que me tiraste a honra.
– Isso não faço eu – disse o da Branca Lua –; viva na
sua inteireza a fama da formosura da Senhora Dulcinéia
del Toboso, e satisfaço-me retirando-se o grande Dom
Quixote para sua terra, por espaço dum ano (...), como
combinamos antes de entrar em batalha.

Do fragmento, destacamos a firmeza de Dom Quixote em proclamar a beleza

de sua senhora. Mesmo estando derrotado, prefere a morte a ter que reconhecer que outra

dama é a mais formosa de todas. Uma das condições, por conseguinte, foi quebrada.

Entretanto, o carrasco de Quixote releva isso, exigindo apenas o cumprimento da outra

imposição, ou seja, que ele retorne para sua terra e não pegue em armas pelo período acertado.

Esta é, de fato, a intenção do Cavaleiro da Branca Lua, na verdade, o bacharel Sansão

Carrasco, que assume a missão de demover Dom Quixote de sua loucura. Percebendo que este

não seria detido de uma outra maneira que não fosse seguindo um rito cavalheiresco, o

bacharel penetra definitivamente no mundo quixotesco (sabendo que Dom Quixote era fiel

93
DQ, II, cap. 74.
94
DQ, II, cap. 64.
43

aos valores da cavalaria e que não se furtaria em se submeter à vontade do vitorioso), torna-se

cavaleiro, buscando ocasião para lutar com o referido, a fim de fazê-lo recuperar o juízo.

Primeiro, como o dos Espelhos, não logra êxito, sendo vencido. Segundo, como o da Branca

Lua, finalmente impõe uma derrota ao cavaleiro. Neste ponto, acreditamos que a morte

começa a rondar-lhe.

Vítima da tristeza, motivada pela derrota para o Cavaleiro da Branca Lua

(Sansão Carrasco), que o obriga a se afastar da cavalaria, Dom Quixote renega toda a sua

experiência anterior dizendo aos que se encontram em seu leito:

(...) fui louco e estou hoje em meu juízo; fui Dom


Quixote de la Mancha, e sou agora, como disse, Alonso
Quijano, o Bom; possam o meu arrependimento e a
minha verdade restituir-me a estima em que Vossas
Mercês me tinham[.]95

Um aspecto relevante dessa transformação refere-se à mudança de nome.

Dom Quixote volta a se nomear Alonso Quijano96, “abandonando”, assim, o vínculo que

possui com o mundo da cavalaria andante. Como sua loucura está intrinsecamente ligada a

isso, o fidalgo mostra sinais de arrependimento e de que deseja ser visto daí em diante

como uma pessoa de bom juízo. Ademais, os que lhe são mais próximos imaginam, a

priori, que seria uma nova loucura. No entanto, repelindo com vigor qualquer elucubração

neste sentido (a prova maior é que não se sensibiliza quando Sansão Carrasco noticia que

Dulcinéia encontra-se desencantada, nem tampouco quando o mesmo bacharel confirma

os preparativos para a vida pastoril, à qual se entregariam), confessa-se com o cura e faz o

seu testamento, para, em seguida, entregar-se nos braços da morte.

95
DQ, p. 676.
96
Concernentemente a essa modificação, vale dizer que no Cap.I da primeira parte, paira uma imprecisão quanto
ao verdadeiro sobrenome do fidalgo, que deseja ser cavaleiro, sendo escrito assim: Quijada, ou Quesada. No
final do livro, o sobrenome originário do cavaleiro assume a forma definitiva de Quijano, o que se repete por
várias vezes.
44

Para Junito de Souza Brandão, a morte é a derradeira agonía, a última aventura

do herói, personagem especial, que deve estar sempre pronto para a luta, para os sofrimentos e

para a solidão e até mesmo para as perigosas catábases à outra vida. A morte constitui-se no

apogeu do pathos desse personagem, transformando-o no protetor de sua cidade e do seu

povo97.

A vida de Dom Quixote igualmente se caracteriza pelas lutas, pelas viagens,

pelos padecimentos, pelas provas. A morte é indubitavelmente a sua última aventura. Mas, é

preciso examiná-la como um processo desencadeado, mormente pela derrota para o Cavaleiro

da Branca Lua. Como é que o Cavaleiro dos Leões poderia envolver-se em outra aventura,

sem poder utilizar as suas armas, e, desse modo, exercer o seu mister? Humilhado, regressa

para casa e procura um novo propósito: dedicar-se à vida pastoril. Entretanto, a sua essência é

de herói. Atado ao compromisso assumido com o seu verdugo, e como um cavaleiro atento

aos valores que norteiam tal vida, desobedecer ao imperativo resultaria, propriamente, em

desobedecer a sua honra, por mais que estivesse maculada pela derrota. Por isso, não lhe resta

outra alternativa que não seja a de abandonar o projeto de pastor, e se resignar. Só que a

resignação também foge ao espírito dinâmico de Quixote.

Estas considerações visam a sugerir que, impossibilitado de agir e,

conseqüentemente, de envolver-se em aventuras, o sentido de sua pátria esvazia-se. Com

efeito, Cesare Segre diz: “A insensatez é portanto uma ilusão confortante: a maior derrota de

Dom Quixote está no fato de ter recobrado a razão98.” A tomada de consciência99 institui-se

como resultante do esmagamento da individualidade pela força opressiva da realidade. Sem

poder engendrar o mundo transcendente, ao qual está imbricado, a certeza íntima esvai-se: a

97
BRANDÃO, op. cit., p. 51 e p.63.
98
SEGRE, op. cit., p. 238.
99
“A conversão final de Dom Quixote ou de Julien Sorel não é, como acredita Girard, o acesso à autenticidade, à
transcendência vertical, mas, simplesmente, a tomada de consciência da vaidade, do caráter degradado, não só da
busca anterior, mas também de toda a esperança, de toda a busca perdida” (GOLDMANN, Lucien. A sociologia
do romance. Trad. Álvaro Cabral. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 13-4).
45

loucura deve ceder novamente à razão. Em tese, esta é a mais fatal derrota. O herói não

suporta a força degradada do quotidiano; então, como resistência, como verdadeira negação

da vitória da segunda natureza (do mundo), a alma doa-se à morte, aventura derradeira,

advinda da ruptura insuperável.

Acreditamos que o fim de Dom Quixote reveste-se de uma ambigüidade. Por

isso, relativizamos a leitura de Cesare Segre acerca da retomada da razão e a subseqüente

morte do herói. Até que ponto Quixote recobre o juízo?

A dialética instaurada entre a valorização do mundo de aventuras e o

impedimento causado pela derrota redimensiona o significado da morte do cavaleiro.

Destarte, ela pode ser vista como um reflexo da sua idéia fixa: o herói, um ser caracterizado

pela ação, busca a extrema aventura e a encontra.


3. OS PARADOXOS DE CAPITÃO VITORINO

3.1 A recriação da realidade

Fogo morto é considerado a obra-prima de José Lins do Rego, este um dos

maiores representantes do regionalismo no romance brasileiro do século vinte. Esse livro, que

se enquadra no “Ciclo da Cana-de-açúcar”, destaca-se por sua construção tripartida, cada uma

com fulcro em um personagem marcante e com traços do idealismo abstrato: a primeira,

denominada “O mestre José Amaro”, apresenta o seleiro; a segunda, intitulada de “O engenho

de Seu Lula”, ressalta o senhor de engenho decadente, coronel Lula de Holanda; já a última,

“O capitão Vitorino”, sublinha os conflitos do capitão Vitorino Carneiro da Cunha,

vulgarmente chamado de Papa-Rabo. É sobre esse último personagem que incidiremos nossa

análise, trabalhando o conceito de idealismo abstrato, por ser o que mais se aproxima dessa

tipologia de herói.

Recapitulando: o herói do idealismo abstrato é aquele que empreende uma

busca degradada de valores autênticos num mundo “desdivinizado” e mergulhado no

conformismo. Como conseqüência dessa demanda inautêntica, é instaurado um conflito, uma

ruptura insuperável entre o ser e a sociedade na qual está vinculado. A alma encolhida não

abre espaço para a reflexão, o que desencadeia um processo constante de ação, dinamismo e

mobilidade. As ações desenvolvidas por esse herói apresentam-se dissonantes com a

realidade, criando situações tragicômicas. Não obstante, ele não se intimida, pois a idéia fixa

funciona como uma blindagem, possibilitando, assim, que continue, mesmo que inocuamente,

lutando para a concretização do seu projeto. A loucura, que é o motor dessa busca, faz com
47

que o herói recrie o seu mundo, impulsionando-o ainda mais a chocar-se com a realidade

efetiva.

A caracterização feita por Georg Lukács do idealismo abstrato pode ser

verificada indubitavelmente no romance, sobretudo no personagem capitão Vitorino.

Para uma melhor compreensão de Vitorino, iniciamos a abordagem pelo seu

aspecto físico. Identificamos, num primeiro momento, que tem a cara larga (de cera), toda

raspada, os seus cabelos são brancos, indicativos de sua velhice, e saem por debaixo do

chapéu de pano, conferindo-lhe “um ar de palhaço sem graça”100. A cor da sua pele é branca e

seus olhos são azuis101. Como complemento da sua configuração exterior, mencionamos a

égua rudada, a tabica, o punhal e o fraque.

A mobilidade é uma marca do capitão Vitorino, por isso a montaria é de capital

importância, já que lhe serve como meio de transporte para suas andanças, dando-lhe um tom

de cavaleiro. Ainda referentemente à égua, vale dizer que Vitorino demonstra uma feição

especial: “Tenho estimação pelo diabo desta égua. Não troco ela por muito cavalo de fama

que anda por aí. Ela tem um baixo, compadre, que parece de seda.102” Por outro lado, as

condições precárias da égua, que “mostrava os ossos, a sela velha, roída, a manta furada, os

freios de corda103”, bem como, ainda por cima, “vazava água por um dos olhos” e tinha a

brida arrebentada que lhe “enterrava de boca adentro”104, são reveladoras do estado de

decadência e evidenciam a figura risível do seu dono. Ela tem relação direta com a alcunha

pejorativa do capitão – Papa-Rabo105.

100
FM, p. 67.
101
FM, pp. 96-97.
102
FM, p. 110.
103
FM, p. 67.
104
FM, p. 67.
105
Vale dizer que posteriormente, capitão Vitorino troca definitivamente a sua égua por uma burra. Nesse
interregno, ele utiliza – apenas por uma vez – a burra escura do coronel Anísio do Recreio: “(...) O dia
começava a esquentar quando apareceu o velho Vitorino numa burra escura.
– Muito bom dia, meu compadre [– disse Vitorino].
– Bom dia [– respondeu o mestre José Amaro]. Montaria nova?
48

No tocante à tabica, na verdade, uma espécie de chicote, Vitorino usa-a quando

afrontado. A manipulação desse chicote significa uma resposta ao achincalhe feito pelas

pessoas, quando, por exemplo, chamam-no de Papa-Rabo.

Exemplificando, temos:

Um moleque escondido atrás duma moita de cabreira


apareceu de repente na frente do animal para espantá-lo.
– Papa-Rabo, Papa-Rabo!
Vitorino sacudiu a tabica que golpeou o vento com
toda a força.
– Papa-Rabo é a mãe, filho da puta.
E o moleque a gritar, quase que nas pernas do velho
enfurecido. Vitorino queria que a égua tivesse força
para atropelar o atrevido; fincava as esporas, e nada; era
aquele passo preguiçoso, aquele se arrastar de ossos
velhos. Lá mais para longe gritou outro moleque:
– O rabicho caiu.
A figura de Vitorino era toda de indignação, de um
desespero terrível.
– Cambada de cachorros. Eu sou Vitorino Carneiro da
Cunha, homem branco, de respeito.
Falava só, gesticulava como se mantivesse um diálogo
com um inimigo. Sacudia a tabica com uma fúria de
louco106 (grifo nosso).

Notamos nesse texto a reação indignada de capitão Vitorino após a afronta dos

dois moleques. Ficam em relevo a vociferação e a maneira como o capitão manuseia o seu

chicote, ou seja, ele atinge furiosamente o ar, golpeando o vento, o vazio. Como fica

perceptível, o alvo não é atingido (os moleques), afinal o vazio é quem “sofre” com as

chicotadas. Esses golpes têm uma conotação de agressividade, porém são o símbolo da

gratuidade de suas ações107, sem contar que revelam a sua ingenuidade. A respeito da

tentativa do capitão Vitorino em atropelar um dos “algozes”, assinalamos a dificuldade da

– Nada. Isto é do coronel Anísio do Recreio. Cheguei lá ontem de madrugada, depois de uma viagem puxada, e
a minha égua não agüentou. E o homem me ofereceu este animal para acabar a viagem. Fiquei com uma pena
danada de deixar a égua por lá. Mas era o jeito. Tinha que tratar com o doutor Samuel de um assunto sério. E ele
estava de viagem para Goiana. Cheguei a tempo. O diabo desta burra me machucou todo. Tem uma pisada de
pedra” (FM, p. 137).
106
FM, p. 68.
107
Cf. FERREIRA, Edda Arzúa. Integração de perspectivas: contribuição para uma análise das personagens de
ficção. Rio de Janeiro: Cátedra, 1975. p. 64.
49

égua em corresponder às intenções do seu dono, reforçando o caráter degradado do herói

romanesco.

No entanto, nem sempre a tabica de Vitorino é golpeada contra o vazio. Ela é a

arma desferida – com êxito – contra o delegado José Medeiros:

(...) Eu estava em conversa com o doutor Samuel


quando me passa pela calçada o José Medeiros. Eu nada
tinha que ver com malquerença de ninguém. Passou por
mim e não falou. Aí fui a ele: “Então, seu José
Medeiros, por que não me cumprimenta?” E o bicho
achou de me responder como não devia. “Comigo não,
José Medeiros. Primeiro vá lavar as ceroulas que sujou
com a visita dos cangaceiros.” Ele veio para mim de
mão aberta e eu me fiz na tabica. Dei-lhe na cara. Lá
isto dei (grifo nosso).

O chicote é uma insígnia do poder judiciário e representa o direito de infligir

castigos108. A reação de Vitorino à desídia do major José Medeiros é proporcional ao seu

orgulho e está congruente com a sua idéia de justiça. Como um homem de patente, merecedor

de respeito, ele cumprimenta educadamente o delegado. Porém, este não lhe dá ouvidos.

Querendo compreender o fato, Vitorino pergunta para José Medeiros o motivo pelo qual não

merece sua atenção. Ao responder com despeito, o major recebe do capitão uma tabicada

desferida em sua cara, uma forma de repelir o “crime”. A chicoteada é o castigo para aquele

que fere a honra e não respeita o homem de sua envergadura, mesmo que seja contra uma

autoridade constituída, como no caso em tela.

A origem da fúria de Vitorino, muitas vezes, reside no apelido de Papa-Rabo.

Essa alcunha vai de encontro ao seu orgulho. Ele se auto-apresenta como capitão Vitorino

Carneiro da Cunha, fazendo questão de reforçar seus laços familiares, seu berço, sua tez

branca. Como temos ciência, ele é o primo pobre do Coronel José Paulino, dono do Engenho

Santa Rosa e mandatário do poder local. A patente também é enfatizada. Mesmo ela tendo

108
Cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, op. cit., p. 233.
50

sido comprada, Vitorino utiliza-a como critério distintivo para sua pessoa109. O orgulho do

parentesco contraria, em parte, a aspiração de Vitorino em acabar com a oligarquia, através de

sua militância política.

Vitorino, na concepção dos seus conterrâneos e parentes, é tratado como um

menino, um vagabundo, um velho bobo, um doido. Isso se dá em decorrência das suas

andanças contínuas e aparentemente sem sentido, da sua mania de coragem, honra, orgulho,

da graça de suas ações, palavras e da sua própria fisionomia. Por isso, “todos que o viam lá

vinham com deboche110”.

A síntese da real situação de Vitorino está nas constatações de sua mulher,

sinhá Adriana:

(...) E Vitorino? Ficou com medo. Quando o marido


dava para implicar com uma criatura ficava uma coisa
impossível. Fora assim com o capitão José Medeiros, e
deu no que deu. O capitão enraivecido partira para
Vitorino como uma fera, só não tendo feito uma
desgraça porque pegaram o homem. Agora estava com
o major Quinca Napoleão. Admirava-se que houvesse
gente que desse ouvido às tolices de Vitorino. Tivera
mais de uma vez de se valer do povo do Santa Rosa,
para tirar Vitorino de embrulhadas. Quando ele brigara
com um moleque do Engenho Recreio e quebrou a
cabeça do infeliz com uma pedra, o juiz de direito
botara processo para prender Vitorino. Não deu certo
porque ela saiu de engenho a engenho, pedindo pelo
marido. O dr. juiz fizera o diabo. Só porque oVitorino
andava dizendo besteiras sobre a vida dele, fazendo
aquelas graças bobas111.

A preocupação de sinhá Adriana está na segurança de seu marido. Apesar de o

capitão Vitorino não lhe prestar o reconhecimento devido, tratando-a mal, ela atua como

109
“(...) não era homem para debiques. Era o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, de gente muito boa da Várzea
da Paraíba. Tivera um primo barão no governo da província (...), era homem branco, o pai fora filho dum
marinheiro de Goiana” (FM, p. 69).
“[Uma mulher cumprimentou Vitorino:] – Bom dia, seu Vitorino.
– Dobre a língua, não sou de sua laia. Capitão Vitorino. Paguei patente foi para isto[ – respondeu o capitão]”
(FM, pp.68-69).
110
FM, p. 69.
111
FM, p. 95.
51

suporte financeiro/emocional e como sua “protetora”, muitas vezes cuidando até de seus

ferimentos, de suas dores. Enquanto o marido ocupa-se de andar sem rumo, ela provê o

sustento da casa. À medida que Vitorino envolve-se em confusões, dizendo impropérios e

fazendo tolices, sua esposa tenta interceder por ele, como fica patente no fragmento acima, em

que roga ao coronel José Paulino, parente do seu esposo, pessoa muito influente e poderosa da

região, para intervir no caso do processo, evitando a sua instauração, e, por conseguinte,

livrando Vitorino de um litígio. Interessante notar que Adriana reconhece que o seu marido é

ingênuo e age sem maldade, portanto, não compreendendo o fato de as pessoas levarem-no a

sério, maltratando-o.

Já na perspectiva do Mestre José Amaro, o capitão Vitorino a priori não

desfruta de um bom conceito, é um maluco, tem cabeça de doido. Complementando a sua

concepção sobre o compadre, vejamos a passagem que se segue : “– Nesta casa mando eu.

Quem bate sola o dia inteiro, quem está amarelo de cheirar sola, de amansar couro cru? Isto

aqui não é casa de Vitorino Papa-Rabo. Isto é casa de homem112.” A alusão à figura de

Vitorino é visivelmente pejorativa: ao prenome ele acrescenta o cognome depreciativo –

Papa-Rabo –, suprimindo o patronímico. O mestre José Amaro quer na comparação

demonstrar o seu vigor, refutando a reprimenda de sua mulher, dona Sinhá, acerca do seu

comentário sobre Marta. Para tanto, rebaixa o seu compadre, ao afirmar que ele não tem

pulso, não é homem, por não dar as diretrizes em casa pelo fato de não trabalhar para garantir

a sobrevivência da família, diferentemente do que ocorre em seu lar. Esse ponto de vista do

seleiro encontra-se em consonância com os resquícios do patriarcado que está plasmado no

contexto.

112
FM, p. 52.
52

No entanto, ao longo da romance, o mestre (assim como outros: Adriana, José

Passarinho, cego Torquato etc.) vai modificando a sua visão com relação a Vitorino,

conforme verificamos na passagem a seguir:

Aquele velho era como se fosse uma criança grande, um


menino levado dos diabos. No fundo, naquele instante,
ele admirava Vitorino. Vitorino dizia tudo o que ele
desejava dizer. Tudo que lhe ia na alma sobre os
grandes da terra era o que aquele velho desbocado
gritava aos quatro ventos, na cara dos poderosos113.

Aqui, para o mestre, Vitorino é um referencial de destemor, pois o mesmo não

se rebaixa frente aos poderosos da terra. Enxergando sob este novo prisma, o seleiro altera,

desse modo, o juízo que fazia dele, já que eleva o compadre à posição de admiração, por sua

postura. Vale salientar, neste momento, o contexto social e político. Pilar é uma cidade da

Várzea, estado da Paraíba, cuja atividade principal é a produção de açúcar. O poder político

está concentrado nas mãos dos senhores de engenho, dos que detêm dinheiro. Quando da

ocasião dessa consciência pelo seleiro, Vitorino havia sofrido uma agressão por atacar com

palavras o major Quinca Napoleão. O ato do capitão que busca a correção da injustiça (ideal

de justiça), afronta o poder estabelecido, numa verdadeira inadequação a sua realidade.

Destarte, aproxima-se bastante do que Lukács demonstra.

A propósito da mudança de concepção acerca de Vitorino, convém delinear o

episódio em que ele se veste como um causídico, assumindo esse mister. Na sua nova

posição, Vitorino arruma-se a caráter, encarnando definitivamente esse papel, que é

consentâneo com os ideais que crê:

Vinha na égua magra, com a cabeça ao tempo, toda


raspada. Saltou para uma conversa e estava vestido
como um doutor, de fraque cinzento, com uma fita
verde e amarela na lapela. O mestre José Amaro olhou
espantado para a vestimenta esquisita.

113
FM, pp.107-8.
53

– Estou chegando, compadre, do Itambé. O doutor


Eduardo tinha um réu para defender e me mandou
chamar no Gameleira para ajudá-lo. Lourenço, o meu
primo desembargador, me disse: “Olhe, Vitorino, você
para ir à barra do tribunal do júri precisa desse fraque.”
E me deu este. É roupa feita do Mascarenhas, de Recife.
Botei o bicho. Então o primo Raul me chamou para um
canto para dizer que eu precisava cortar os cabelos. O
desgraçado do barbeiro da Lapa tosquiou-me a
cabeleira, o jeito que tive foi de raspar tudo. Raul
passou-me a navalha na cabeça. Me disseram que era
moda no Recife para advogado. Quando cheguei no
Itambé o júri já tinha se acabado. O doutor Eduardo
ficou muito triste, mas me deu duas causas para
defender no Pilar. Ele mesmo me disse: “Vitorino, você
fala melhor que Manuel Ferreira.” Eu disse a ele: “Não
é vantagem. O Manuel Ferreira é mais burro que o
doutor Pedro de Miriri.” Pois é isto, meu compadre,
estou com estas vestes de doutor. Querendo os meus
serviços é só mandar me chamar. O doutor Samuel me
prometeu umas causas. O que eu posso lhe dizer é:
papel de Manuel Ferreira, eu não faço114.

Extrai-se desse excerto o desejo incontido do capitão Vitorino de defender uma

causa, que é, no fundo, o seu ideal de justiça. Incorporando as vestimentas e o jeito de

advogado, acalenta a sua face megalomaníaca, mas, fundamentalmente, acredita que está,

dessa maneira, dando a impressão de mais confiabilidade na sua capacidade de interceder

pelos necessitados, imbuído do poder de agir como um doutor. Todavia, como percebemos no

espanto do mestre, a sua fisionomia acaba tornando-se ainda mais grotesca, o que aponta para

a sua inadequação ao meio.

O fraque, para Vitorino, analogamente tem a função da armadura para o herói

épico e até mesmo o cavaleiro medieval. Ou seja, é o traje que revela a sua disposição para o

combate. Na hipótese do paladino nordestino, a luta que almeja é contra a brutalidade do

meio, do autoritarismo. A fita, que tem um ar patriótico, notadamente conferido pelas cores,

como componente dessa vestimenta, reveste-se de um outro simbolismo. Em conformidade

com a conceituação de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant115, ela é um signo do desabrochar,

que se orienta para a manifestação de um triunfo. É ainda a marca de um ato de coragem, de

114
FM, p. 179.
115
Op. cit., pp.432-3.
54

uma ação generosa, que se avizinha da heróica. Na situação relatada ao compadre pelo

advogado ad hoc, a sua primeira demanda jurídica foi perdida porque chegara atrasado.

Contudo, sabemos que alcançará (pelo menos na sua compreensão) seus objetivos, cobrindo-

se de vitórias efetivadas plenamente apenas em sua mente.

No que concerne ao cabelo, mais precisamente ao ato de raspá-lo, mostra-se

oportuno evocarmos o ensinamento de Van Gennep116, que o entende como um rito de

passagem do herói, já que o ato simboliza a cisão de uma vida para uma outra, o início de uma

nova vida para o neófito, que mergulha no sagrado. Esse rito de separação em Fogo morto

para o capitão Vitorino ganha um relevo rebaixado e até cômico117, pois, diferentemente do

que ocorre com o herói mítico, há uma profanação do ritual: Vitorino é orientado a cortar o

cabelo a fim de contribuir para a composição do papel assumido, porém acaba tendo que ter a

cabeça raspada com a navalha, o que segundo diziam estava dentro da moda em Recife. Por

outro lado, a cabeça raspada compõe juntamente com o fraque e a fita uma simbologia da

reviravolta que o personagem vai experimentar.

Solidificando a transfiguração de Vitorino, apontamos a troca da sua égua

rudada por uma jumenta:

A burra velha batia o rabo com as moscas que lhe


cobriam a anca em ferida.
– É um animal de primeira ordem. Apanhei na feira de
Itabaiana. Um cigano pensou que me enganava. Dei-lhe
a minha égua e ele em troca passou-me esta burra.Tem
baixo, e é animal de fôlego duro. Não troco por muito
cavalo que anda por aí com fama de bom. O diabo do
cigano levou uma tabacada dos diabos. Meu compadre,
Vitorino Carneiro da Cunha tem quengo118.

116
“Os ritos de separação compreendem em geral todos aqueles nos quais se corta alguma coisa,principalmente o
primeiro corte de cabelos, o ato de raspar a cabeça (...)” (apud BRANDÃO, op. cit., p. 30).
117
“As abas do fraque caíram no chão, a fita da lapela mexia com o vento. A cara grande de Vitorino, com a
cabeça raspada, parecia de cômico envelhecido, de palhaço cansado” (FM, p.181).
118
FM, p. 314.
55

As condições do animal são deploráveis, ele mal suporta o peso do seu dono.

Além disso, a burra, de fato, está praticamente no mesmo patamar de degradação da égua: os

dois animais são velhos e lentos. Mas, no pensamento de Vitorino, consoante com o expresso

na explanação ao mestre José Amaro, a jumenta é um bicho de primeira (“tem baixo” e

“fôlego duro”), superior a muito cavalo afamado. Por isso, a troca realizada foi vantajosa, um

ato de inteligência, de quem tem “quengo”. É relevante dizer que há a conservação do vínculo

entre o herói e sua montaria, apenas, aprioristicamente, havendo uma substituição do animal,

não do elo. Ou seja, Vitorino mantém-se em contínuo deslocamento.

Aprofundando a investigação, identificamos que tal mudança transcende a essa

significação:

A jumenta (..) é símbolo de paz, de pobreza, de


humildade, de paciência e de coragem e, em geral, é
apresentada sob uma luz favorável na Bíblia: Samuel
parte em busca de jumentas extraviadas; Balaão é
instruído por sua jumenta, que o adverte da presença de
um anjo de Jeová; José leva Maria e Jesus no lombo de
uma jumenta para o Egito, a fim de fugir às
perseguições de Herodes; antes da Paixão, o Cristo
faz sua entrada triunfal em Jerusalém montado
numa jumenta119 (grifo nosso).

Com fundamento nessa simbologia, é possível fazermos uma leitura

messiânica do capitão Vitorino120, que toma para si a proteção dos marginalizados, enfim, dos

injustiçados, defendendo e lutando por eles. Assim, a jumentinha de Vitorino representa a

pobreza em que vive, a sua coragem em enfrentar os poderosos, bem como é um índice da

humildade (disponibilidade para a causa do outro) que vivencia.

119
CHEVALIER; GHEERBRANT, op. cit., p. 95.
120
“O seu messianismo torna-se então, realmente efetivo, concreto; realiza-se no aqui e agora, em favor dos
pequenos, injustiçados por uma estrutura social obsoleta e desumana” (FERREIRA, op. cit., p. 74).
56

Ratificando esse entendimento, rememoramos a ocasião em que Vitorino é

preso pela primeira vez por ordem do tenente Maurício, chefe da força policial, encarregada

de capturar os cangaceiros liderados pelo capitão Antônio Silvino:

A tropa saiu com o capitão Vitorino Carneiro da Cunha


todo amarrado de corda, montado na burra velha que os
soldados chicoteavam sem pena. Corria sangue da testa
ferida do capitão. A luz vermelha da madrugada
banhava o canavial que o vento brando tocava de leve.
Marchava o capitão na frente da tropa, como uma fera
perigosa que tivessem domado com tremendo esforço.
Os moradores vinham olhar e os homens se espantavam
de ver o velho que todos sabiam ta manso, amarrado
daquele jeito. Vitorino falava alto:
– Estes bandidos me pagam.
Os meninos que gritavam para ele aquele ‘Papa-Rabo’,
não podiam imaginar o que fosse aquilo tudo121.

Essa caminhada para o capitão Vitorino rumo à prisão do Pilar, em que vem

atado à sua burra, lembra a entrada de Jesus Cristo em Jerusalém, antes de cumprir a sua

missão – salvar os injustiçados. O olhar de espanto é a tônica dos que acompanham tal

périplo; até as crianças que brincam com Vitorino ficam surpresas. Destemidamente, capitão

Vitorino rejeita a injustiça que o aflige. A posição destacada à frente da tropa, ainda mais nos

moldes em que ocorre (amarrado como bandido indomável e perigoso), aponta para o seu

triunfo, o que remete para a glória de Cristo (vitória sobre o pecado, através da sua paixão e

ressurreição). No que respeita à causa dos condenados pela sociedade, Vitorino, assim como

Jesus, doa-se para que haja justiça, salvação: “Era homem para morrer pelos seus

constituintes122.” A diferença é que o primeiro oferece resistência (esbravejando, gritando,

dando tabicada, ameaçando com o punhal); o segundo oferece a outra face, relevando as

ofensas e a violência.

Ainda quanto a essa prisão, salientamos os desdobramentos atinentes.

Protestando contra a violência policial, pois “todos queriam bem ao velho desbocado, mas

121
FM, pp. 324-5.
122
FM, p. 382.
57

cheio de tanta bondade”, o juiz municipal, dr. Samuel, o coronel José Paulino, dr. Juca e

outros senhores de engenho, tentam livrar o capitão Vitorino da cadeia. Irredutível, o tenente

resiste. O cativo é remetido para a capital do Estado, atendendo à solicitação do chefe de

polícia. Por seu turno, visando demonstrar a sua força, a polícia espalha o pavor pelas “ruas

pobres” do Pilar, somente deixando-as aliviadas no outro dia, quando se dirige para os

arredores de Itabaiana. A arbitrariedade policial cometida contra Vitorino é objeto de uma

matéria jornalística:

Saíra um artigo no Norte com queixa contra o tenente.


O capitão Vitorino Carneiro da Cunha era apontado
como um cidadão pacato que levara uma surra da força
volante. No outro dia apareceu uma retificação. Era
Vitorino que procurava o redator para contar tudo como
se passara. Não levara surra nenhuma. Em luta com o
tenente, que procurava humilhá-lo, fora ferido. Reagira
à prisão. Toda esta perseguição só podia atribuir às suas
atitudes políticas. Estava contra o governo. Era
correligionário da candidatura Rego Barros. Pois ficasse
o governo certo de que não havia força humana que o
arredasse do seu caminho. Ele e todo o seu eleitorado
iriam às urnas para salvar a Paraíba dos oligarcas123.

Capitão Vitorino, colocando-se como homem de oposição, já que não comunga

com os desmandos praticados pelos políticos da sua terra, milita em prol de mudanças,

criticando os mandatários, incluindo parentes seus, como, por exemplo, o coronel José

Paulino, por suas práticas de corrupção, exploração dos desfavorecidos e favorecimento dos

mais ricos, através da sonegação fiscal. A sua vontade de “afastar” a oligarquia, expressada

pelo périplo que desenvolve, tencionando convencer o eleitorado com os seus argumentos e

seus gestos, são os assomos da sua obsessão. Devido a ela, qualquer acontecimento assume a

feição de perseguição por motivação político-eleitoral. É o caso de sua prisão. A origem dela

está na atitude de Vitorino de não se submeter às ordens e aos caprichos do tenente Maurício,

desacatando-o. Desrespeitado, o policial não tem alternativa, sob pena de ver a sua autoridade

123
FM, pp. 328-9.
58

abalada. Então, prende e mantém o capitão nessa condição, apesar dos protestos e da

interveniência de pessoas influentes.

Digna de nota é a repercussão do caso nos jornais. Seja na capital, espalhando-

se pelo Estado, ou seja, em Recife:

(...) A resposta de Vitorino foi lida no Pilar, como mais


uma do velho. Mas pelo estado correu a notícia da
violência. Os jornais de Recife falaram no caso. Um
homem de bem, proprietário na Paraíba, fora agredido
pela força pública porque se mantinha contra a situação.
Era tudo o que Vitorino mais queria na vida. Voltava
assim da capital como um chefe. Agora falava por cima
dos ombros. O coronel Rego Barros passara-lhe um
telegrama do Rio com palavras de aplausos à sua
atitude corajosa. Seria recompensado com a vitória da
causa. Vitorino cabalava por toda parte. Pelos engenhos
era recebido com gargalhadas. Todos lhe davam o seu
voto. Pelos seus cálculos, o município era todo seu. Até
o Juca do Santa Rosa estava com a sua chapa124.

A matéria e a conseqüente retificação realizada por Vitorino (“Não levara

surra nenhuma. Em luta com o tenente, que procurava humilhá-lo, fora ferido. Reagira à

prisão”) são o mote para a sua megalomania. Sua versão para o fato está revestida de uma

conotação de verdade, já que realmente ele dá margem para a ação enérgica do tenente

Maurício. Contudo, o capitão dá uma outra interpretação (“Toda esta perseguição só podia

atribuir às suas atitudes políticas. Estava contra o governo”), que corresponde apenas a sua

obsessão eleitoral, desprovida de respaldo concreto. O disparate cristaliza-se quando Vitorino

deslumbra-se com a “fama” e a “vitória” alcançadas pelo episódio. Estas se revertem, de

acordo com sua lógica, em dividendos eleitorais (“Todos lhe davam o seu voto. Pelos seus

cálculos, o município era todo seu”). Ao devaneio opõe-se notoriamente a gargalhada com

que é recebido nos engenhos, o que implica que os apoios políticos arregimentados por ele

124
FM, p. 329.
59

são distorções fáticas, desenhadas e construídas pela imaginação. Mas, na mente do herói de

Fogo morto, constituem-se em verdade incontestável.

Como percebemos, seus objetivos ficam mais evidentes: o democrático, eleger

o coronel Rego Barros, e o de cavaleiro da justiça, em favor dos oprimidos, enfrentando os

opressores, os poderosos. Tais ideais estão intrinsecamente unidos. O voto é para Vitorino o

instrumento da mudança, a possibilidade de os pequenos darem uma resposta aos grandes.

Acompanhemos a explicação do que é o voto, com a indicação do seu valor, dada pelo

próprio capitão Vitorino ao mestre José Amaro:

– Um voto é uma opinião. É uma ordem que o senhor


dá aos que estão de cima. O senhor está na sua tenda e
está mandando num deputado, num governador.
– Compadre Vitorino, eu só quero mandar na minha
família.
– É por isto que esta terra não vai para diante. É por
isto. É porque um homem como o meu compadre José
Amaro não quer dar valor ao que tem125.

A consciência política do capitão é bastante sensata e está calcada no ideal

democrata de que a participação do povo é o verdadeiro motor da política. Os destinos do

povo e de uma localidade são tidos como um reflexo da escolha realizada nas eleições. Esta

noção está muito distante da realidade modelada no texto de José Lins do Rego, tendo em

vista a influência do coronelismo e das oligarquias. O ceticismo do mestre com relação ao

voto, por sua vez, reflete a descrença nas instituições, até porque as condições de opressão

não possibilitam a reversão desse quadro desolador, que entrava qualquer esboço de

esperança.

No decorrer do romance, sobretudo na terceira parte, as alusões ao capitão

Vitorino passam a ser, em sua maioria, elogiosas, positivas. Ele passa a ser admirado e ganha

o respeito das pessoas mais simples. As brincadeiras e o apelido de Papa-Rabo praticamente

125
FM, p.111.
60

desaparecem. Corroboram com isso as suas ações. Relativamente ao seleiro, mencionamos,

ainda na primeira parte, a solidariedade do capitão no caso de Marta. Ele ajuda a levá-la para

o Recife, a fim de que pudesse receber o tratamento para a sua enfermidade126. Além do mais,

Vitorino assume as dores do mestre e assevera que vai procurar o coronel Lula, com o

desiderato de garantir a permanência do seu compadre nas terras do Santa Fé. É interessante

dizer que, para o caçador Manuel de Úrsula, Vitorino afirma que o mestre é quem o tomara

para advogado127.

Cumprindo a promessa, capitão Vitorino vai ao encontro do coronel Lula e

trata de política. Como o senhor de engenho tem aversão a este assunto, em face de um

comentário Vitorino sente-se ofendido, desfeiteado. O entrevero complica-se no momento em

que o capitão anuncia o outro motivo de sua visita: a defesa de um morador do Santa Fé. Num

arroubo de prepotência, Lula apóia-se no seu poder de senhor de engenho para continuar com

a intenção de expulsar o seleiro das terras que eram de sua propriedade. Como Vitorino não

aceita desaforo começa a gritar. Em resposta o coronel manda Vitorino embora, que só sai

sem cometer uma violência, graças à presença de D. Amélia, esposa do senhor de engenho,

que respeita.

Sublinhamos que, na mente de Vitorino, a sua figura, o seu valor, é quem

afiança a continuidade do seu compadre nas terras do coronel Lula. Entretanto, sabemos que

ela se pauta no bilhete em termos de ordem enviado pelo capitão Antônio Silvino a Lula. O

recado é claro: “(...) o mestre José Amaro tinha que ficar no sítio, até quando ele [capitão

Antônio Silvino] bem quisesse.128”

126
“[O mestre] quando viu o compadre alegrou-se. Agora as visitas de Vitorino faziam-lhe bem. Desde aquele
dia em que vira o compadre sair com a filha para o Recife, fazendo tudo com tão boa vontade, que Vitorino não
lhe era mais o homem infeliz, o pobre bobo, o sem-vergonha, o vagabundo que tanto lhe desagradava” (FM,
p.310).
127
FM, p. 316.
128
FM, p. 318.
61

A luta pelo oprimido independe do seu status e muito menos da posição

política. A dependência vai habitar na necessidade. Com base nisso, Vitorino assume também

a defesa do coronel Lula de Holanda (que é para ele um inimigo político), num sinal de

desprendimento, que chega às raias da misericórdia129.

Imputando como injusta a invasão feita pelo capitão Antônio Silvino no Santa

Fé, capitão Vitorino, sem medir as conseqüências do seu ato (afinal ia lutar sozinho contra o

bando mais temido do Nordeste), não se abate e, buscando desfazer o agravo, decide afrontar

o capitão Antônio Silvino. Chegando próximo à casa de Lula de Holanda, Vitorino pede para

falar com o capitão. O diálogo parece amistoso, no princípio. Impondo-se, na seqüência,

capitão Vitorino exige do chefe do bando que respeite os homens de bem, pois o que está

fazendo com o coronel Lula de Holanda é uma miséria. Mostrando-se indiferente ao desejo e

as bravatas de Vitorino, que reverberam a sua valentia, o cangaceiro enfim ameaça-o. Acuado

ele tenciona puxar o punhal, contudo, leva uma coronhada de rifle na cabeça. Em seguida é

levado para fora. Entrementes, dentro da casa, os cangaceiros suspeitam que o piano é o local

onde o senhor de engenho guarda o ouro. O capitão solicita que D. Amélia toque uma música.

Nervosa ela dedilha uma valsa triste. Paralelamente ao som do piano, o velho Vitorino não

pára de gritar. Cobra Verde, aquele que outrora havia dado a coronhada no herói, é incumbido

de aplacá-lo. Ao invés dos gritos de Vitorino, apenas sobram os gemidos. Depois, nem isso;

só o silêncio do herói.

Nesse ínterim, aparece o coronel José Paulino que oferece dinheiro para os

cangaceiros, que já haviam destruído a casa quase por inteiro, objetivando localizar o ouro.

Vitorino – não se dando por vencido – ressurge com a cabeça branca sangrando na porta,

vociferando: “– Estes bandidos me pagam.” Capitão Antônio Silvino, diante da insistência de

Vitorino, dá o comando para que, mais uma vez, Cobra Verde aplique-lhe um corretivo. O

129
Cf. FM, pp. 360-5.
62

coronel José Paulino intervém em favor de Vitorino, dizendo que este não é homem de

regular.

O repúdio de Vitorino é veemente: “– Não regula, coisa nenhuma. Vocês dão

proteção a estes bandidos e é isto o que eles fazem com os homens de bem.” Nestas palavras,

exsurge uma crítica aos senhores de engenho e os cangaceiros, mais exatamente às relações

escusas existentes entre eles. Arrastando-se Capitão Vitorino avizinha-se do capitão Antônio

Silvino e o atinge com o seu verbo afiado e insolente, dizendo: “– (...), o senhor sempre foi da

estima do povo. Mas deste jeito se desgraça. Atacar um engenho como este do coronel Lula, é

mesmo que dar num cego.” Apesar da ordem para que se calasse, o velho desobedece:

“ – Esta [boca] que está aqui só se cala com a morte.”

A atuação de Vitorino no episódio da invasão do engenho Santa Fé realça o

seu modo de ser. Ou seja, a crença inabalável no seu senso de justiça e na sua honra oferece

uma atmosfera de segurança e determinação que norteiam seus gestos, por isso enfrenta os

inimigos, falando, gritando, retrucando, dando tabicadas ou ameaçando utilizar o seu punhal.

Por falar nessa arma, salientamos a sua relevância na composição da

personalidade do velho Vitorino. Acompanhemos as seguintes passagens:

[Vitorino] trôpego, com o andar de quem não podia


caminhar, dirigiu-se para a calçada. Segurou-se na porta
e pálido, como um fardo, caiu sem sentidos. A mulher e
o coronel José Paulino, ajudado por um soldado do
destacamento, levaram o velho para a casa do escrivão
Serafim que ficava defronte da cadeia. E quando voltou
a si, olhou para os quatro cantos da sala, fixou em cada
pessoa os seus olhos miúdos e apalpando-se, com a voz
sumida:
– E o meu punhal?

(...)

[O juiz fala:] – Capitão, eu vim também aqui para tomar


as providências para o inquérito. Já que a polícia não se
mexe, vou eu mesmo cuidar disto. Precisamos quanto
antes de um corpo de delito muito bem-feito.
– Corpo de delito? Em quem, doutor Samuel?
– No senhor.
63

– Em mim? Está muito enganado. Capitão Vitorino


Carneiro da Cunha não é homem para corpo de delito.
Eu só quero que me devolvam o meu punhal. Foi
uma arma que me deu o velho doutor Joaquim Lins
do Pau Amarelo. É de muita estimação130(grifo
nosso).

Segundo Chevalier e Gheerbrant131, a faca tem ligação com a idéia de

execução, no sentido judiciário. Aplicando esse simbolismo por extensão ao punhal de

Vitorino, podemos afirmar que ela é um instrumento de efetivação e proteção dos seus

princípios, bem como da sua honra. Em outros termos, é um elemento de justiça. Sendo

assim, Vitorino quase sempre quando afrontado recorre a ele132.

Todavia, como preservar a sua integridade, como executar a justiça, se o

punhal não estava em seu poder? Os fragmentos acima corroboram com essa noção. Após ser

violentamente torturado pela polícia, Vitorino é liberado, por intermédio do coronel José

Paulino. A sova é tão grande que ele não resiste e desmaia. A primeira preocupação, quando

da recuperação de seus sentidos, remonta ao destino da sua arma. Mais adiante, ele insiste

nessa indagação ao passo que refuta a possibilidade de realizar o exame de corpo de delito. A

origem do punhal é explicitada: consiste em um presente do doutor Joaquim Lins do Pau

Amarelo. Duas observações fazem-se necessárias.

A arma é para o herói mítico integrante da sua natureza. Ademais, em sendo

uma dádiva divina, a arma clarifica a relação com os deuses133. Para o caso do protagonista de

Fogo morto, identificamos resíduos desses aspectos. Obviamente, no mundo romanesco a

ligação com a divindade está rompida, destarte a arma só pode ser um presente de um ser

130
FM, pp. 387-389.
131
Op. cit., p. 414.
132
Como vimos, a tabica também é utilizada como meio de garantir a honra, restabelecendo a justiça.
133
Como exemplo, citamos o caso de Enéias. O herói troiano, na iminência de uma guerra com Turno, preocupa-
se com o fato de não estar devidamente preparado, pois se encontra sem suas armas (elas foram deixadas em
Cartago). Percebendo a sua preocupação, Vênus procura Vulcano, o deus artífice, com o desiderato de que este
forje novas armas para o fundador da nova Tróia – Roma. O trecho que se segue é um comentário do herói da
epopéia romana, que atesta a ascendência divina de suas armas: “(...) A deusa que me pôs no mundo me
anunciou que me enviaria este sinal através dos ares para me testemunhar sua ajuda, as armas de Vulcano ...”
(VERGÍLIO. Eneida. Trad. Tassilo Orpheu Spalding. São Paulo: Cultrix, 1999. p. 168).
64

humano. Mas, como o próprio Vitorino acentua, o punhal (assim como ele mesmo) tem uma

descendência de prestígio, pelo menos na sua concepção, provém de um velho doutor. No que

tange à integração herói-arma, não resta dúvida quanto à semelhança. Porém, neste tópico é

apropriado emendar que a luta experimentada pelo herói problemático tem um cunho

eminentemente pessoal.

Sob o ângulo de execução da justiça, com sentido de vingança, como uma

maneira de restabelecer a ordem, podemos associar ao punhal a figura do filho de Vitorino:

“(...)Tenho um filho na Marinha, e tenho este punhal para furar barriga de cabra safado.134”

Os argumentos do capitão Vitorino são utilizados para ratificar a sua retidão em contraposição

à falta de escrúpulos do major Quinca Napoleão, que, de acordo com o capitão, apropria-se de

terras. Objetivando impor-se na contenda contra o major, Vitorino renega a lei, colocando no

mesmo plano o filho e o punhal. Assim sendo, apresenta ambos como suas armas. O orgulho

do protagonista ancora-se no fato de ter um filho varão. Na inter-relação de circunstâncias do

universo em que vive, isso representa uma segurança, um escudo contra a desfeita alheia135.

Em se tratando de um filho militar, detentor de uma patente, há uma potencialização dessa

imagem. É a glória encarnada. O trunfo de Vitorino contra a injustiça.

Edda Arzúa Ferreira136 atesta que capitão Vitorino é caracterizado por sua

contínua ação, sua constante movimentação. Verifiquemos o trecho abaixo:

“– Minha velha, amanhã tenho que ganhar os


campos. Não sou marica para ficar dentro de casa.
As eleições estão aí e nestes últimos dias nada tenho
feito. Vou dar uma queda no José Paulino que vai ser
um estouro.

134
FM, p.107.
135
Como ilustração desse pensamento, apresentamos as impressões de Adriana, esposa de Vitorino, ao
contemplar o estado de Vitorino, marcado pela violência, depois de sua segunda prisão: “(...) Uma dormência de
sono dominou a energia gasta [de Vitorino]. Se Luís estivesse ali, ninguém ousaria tocar no pai que era a
bondade em pessoa. Na porta parava gente para ver o capitão Vitorino. (...) O padre Severino chegou à janela e
chamou a mulher para conversar. Todos se mostravam consternados com o acontecido. A velha Adriana só
pensava no filho. Ele, que gostava tanto de ouvir nas gabolices, nas histórias de valentia, lá de longe nada
poderia fazer por ele, espancado, esmurrado como um cão sem dono” (FM, p. 389; grifo nosso).
136
FERREIRA, op. cit., p. 71.
65

– Vitorino, eu te acho muito machucado.


– Não tenho mais nada. Você não viu o compadre e o
cego como estavam andando? Apanharam muito e não
ficaram de papo pro ar numa rede como mulher parida.
Um homem que se preza não deve se entregar. Vou
para a cabala, amanhã, na feira de Serrinha. Quero
olhar para a cara de Manuel Ferreira. Este cachorro
vive na Serrinha roubando o povo com parte de que é
deputado. É outra safadeza de José Paulino, deixar que
vá para a Assembléia do estado um tipo como Manuel
Ferreira. Boto abaixo tudo isto137” (grifo nosso).

Esse fragmento mostra-nos o diálogo entre o capitão Vitorino e sua esposa

Adriana, que ocorre após o último incidente daquele com a força policial. Fica patente,

principalmente, na parte grifada, o caráter ativo do personagem, que, ainda em recuperação, já

quer voltar às andanças, às atividades políticas. O caráter ativo é delineado claramente pelo

teórico húngaro como um aspecto do herói do idealismo abstrato.

O crítico José Maurício Gomes de Almeida destaca que capitão Vitorino é,

“em sua meia-loucura generosa de perpétuo andarilho [...], uma espécie de D.Quixote

sertanejo sempre em busca de agravos a desfazer, de injustiças a corrigir”138. Tal

caracterização está em consonância com a conceituação de idealismo abstrato apresentada por

Lukács. Este, no seu ensaio sobre o idealismo abstrato, toma como referência, para configurar

a categoria, justamente Dom Quixote, personagem do livro homônimo, de Miguel de

Cervantes, indicando-o como paradigma dessa tipologia. Os trechos citados anteriormente,

bem como as considerações traçadas, vêm a confirmar a relação entre os heróis: capitão

Vitorino, o cavaleiro do Pilar, e Dom Quixote, o cavaleiro da Mancha.

137
FM, p. 400.
138
ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro. Rio de Janeiro:
Achiamé, 1981. p. 200.
66

Para ficar mais explícito, ponderemos acerca dos seguintes fragmentos do

texto:

“(...) Vitorino, em pé, ao lado dos presos, não dava uma


palavra. Todos olhavam para a sua figura. Era um
grande dia de sua vida. Estava ali, na defesa dos seus
homens. Teria que haver justiça para a causa que
defendia. Quando o juiz leu a petição do habeas-corpus,
e que pronunciou o seu nome, olhou para a assistência
basbaque. Todos estavam sabendo que ele não era um
qualquer. O tenente Maurício encontrava homem pela
frente.” (FM, p.380).

“(...) Duas horas depois, o delegado Medeiros era


procurado pelo oficial de Justiça com o alvará de
soltura para os presos. Vitorino comprara fogos do ar e
estava na porta do juiz soltando-os, aos gritos. O
estampido das bombas arrastou a soldadesca para ver o
que era. Quando viram o velho no meio da rua com o
tição na mão, em regozijo pela vitória, foram a ele.139”

Neles, temos a cena em que Vitorino patrocina a causa do cego Torquato, do

Mestre José Amaro e do negro José Passarinho, presos e torturados pela polícia de forma

arbitrária. O capitão, então, impetra um habeas-corpus para restaurar a liberdade dos

apenados. O juiz concede a soltura, e Vitorino comemora sua vitória pessoal e parcial, já que

não será acatada a ordem judicial.

O capitão Vitorino choca-se com o aparelho repressor do Estado, numa época

em que os desmandos são comuns, sem temê-lo. Assim, lutando por justiça e, claro, pelos

amigos, comete uma aparente loucura, máxime quando o opositor é um dos homens mais

temidos, o tenente Maurício.

Corroborando com a concreção da ruptura processada entre o herói e o mundo,

trazemos à tona a epifania vivenciada por capitão Vitorino, expressa no final do romance140.

Sentindo-se o dono do mundo, mesmo não possuindo nada (ou seja, bens e dinheiro), o

capitão edifica o mundo que deseja, espelho das suas aspirações. Ele se vê no dia do seu êxito

139
FM, p.381.
140
FM, p. 395 ss.
67

pleno, isto é, no momento em que passa a dirigir os destinos do seu município. O clima

festivo de sua posse seria embalado pela música, pelo discurso do dr. Samuel; haveria

também dança. “Era o chefe, era o mais homem da terra”, em sendo assim na sua

administração não haveria tolerância com a corrupção e os desmandos administrativos, que

castigam o povo. A equipe de seu governo possuiria um perfil balizado pelos padrões éticos

que norteiam a sua conduta. Por exemplo, para delegado precisaria de um homem corajoso,

que não permitisse arruaça de tenente Maurício ou de qualquer outro indivíduo. Este homem

seria Augusto do Oiteiro (“rapaz enérgico, e merecia confiança”). Com a finalidade precípua

de deixar o Pilar “um brinco”, exigiria primordialmente de Quinca Napoleão uma prestação

de contas minuciosa. Outrossim, seria imprescindível encontrar um tesoureiro honesto, para

gerir o dinheiro da municipalidade. “Chico Xavier era homem para isto”, independentemente

de ter mantido vínculo com José Paulino, pois o que importava “era correção, cumprimento

do dever”. Como tabelião escolheria o Rózeo de São Miguel – homem de família, de boa

letra, com estudos, no lugar de Manuel Viana – sujeito com língua de cobra. No que respeita

aos fiscais de feira, colocaria na cadeia a “súcia do Quinca Napoleão”. Os ricos não estariam

imunes ao pagamento de tributos. Muito pelo contrário, ele e os seus fiscais cobrariam com

rigor o dízimo de homens como José Paulino. Obras em benefício da população seriam

erguidas, realizadas. Com o novo chefe político do Pilar, não tinha a história dos grandes

mandando em pequenos; a lei seria cumprida, se preciso até com o uso do punhal. “Ele de

cima quebraria a goga dos parentes que pensavam que a vila fosse bagaceira de engenho.”

A utopia de capitão Vitorino não cessa, pois “continuou a fazer e a desfazer as

coisas, a comprar, a levantar, a destruir com as suas mãos trêmulas, com o seu coração puro”.

Senhor dos seus pensamentos, desconhecendo os limites de sua loucura libertadora e agindo

livremente (oniricamente ou não), reformula o mundo. Entretanto, a essência do mundo

exterior permanece incólume. A ação posta em execução pela subjetividade está em


68

descontinuidade com a objetividade. Daí a não correspondência entre os mundos (o recriado e

o dado) e o descompasso grotesco dos fatos e seus significados.

Do exposto, realçamos que há uma convergência do nosso aparato crítico com

o teórico, já que evidenciam: a busca pelos valores autênticos (a efetivação da justiça: “Teria

que haver justiça para a causa que defendia” e “Duas horas depois, o delegado Medeiros

era procurado pelo oficial de Justiça com o alvará de soltura para os presos”); o caráter

dinâmico; a inadequação (loucura), expressada pela oposição ao poder (policial, político e

paralelo, isto é, do cangaço), sem temer retaliação, e ainda com direito à comemoração –

“Vitorino comprara fogos do ar e estava na porta do juiz soltando-os, aos gritos”.


4. O DIÁLOGO TEXTUAL

4.1 O cavaleiro do Pilar e o cavaleiro da Mancha: heróis em conflito

A plausibilidade da aplicação do conceito de idealismo abstrato no estudo do

herói capitão Vitorino, um dos protagonistas de Fogo morto, de José Lins do Rego, viabiliza

a comparação com o protagonista do texto cervantino Dom Quixote de la Mancha, ou seja,

Dom Quixote, haja vista que este é o parâmetro da tipologia lukacsiana. Na base dessa

incursão comparatista encontra-se o engendramento da problematicidade que caracteriza os

romances em questão. Ambos os textos desnudam a situação do indivíduo perante a sociedade

e o conflito que se instaura a partir dessa relação.

A inadequação do herói cervantino com o seu mundo processa-se através da

tentativa de implantar em seu meio os valores plasmados nos romances cavalheirescos,

confundindo assim realidade e fantasia. Para efetivar o seu ideal, assume a condição de

cavaleiro andante. O anacronismo de Dom Quixote está materializado fundamentalmente na

armadura e nas armas. Complementando essa imagem destoante, apontamos a sua montaria e

o nome que incorpora. Os ecos de tal configuração redundam em gestos e discursos também

dissonantes, já que são robustecidos pelas reminiscências dos heróis que povoam o universo

da literatura de cavalaria, causando espanto e graça, simultaneamente.

O protótipo do cavaleiro, como é sabido, realiza-se na ação, que está alicerçada

em um ideal grandioso. Dom Quixote abraça a sua causa (pelo menos em sua ótica,

meritória), e lança-se no mundo em busca de aventuras. Castelos, cavaleiros, damas, gigantes

e seres encantados são inverossímeis, isto é, não reúnem condições de existência na realidade

efetiva da Mancha, região das mais pobres e secas da Espanha. Os obstáculos que espera
70

encontrar, a fim de mostrar o seu valor, não estão a sua altura. Então se depara com um

quadro impróprio para sua empreitada. A batalha intrépida contra inimigos grandiosos e a

correção de injustiças têm que se submeter à reformulação de sua mente, para que possam

acontecer. Como cavaleiro do irrealismo, erige seu mundo. Desse modo, a alma estreita,

incapaz de apreender os fatos como ocorrem, por conta da inflexível mentalidade voltada para

a concretização do ideal, e, por extensão, inapta para aprender com a experiência concreta,

gera situações inusitadas. Daí a ação resultante, apesar de pautada em princípios elevados,

atingir somente a cópia distorcida da realidade. Mesmo assim, a coragem, o destemor, a

certeza da verdade e a justeza de seu proceder incitam-no a continuamente envolver-se em

aventuras.

A caracterização do quixotismo – delineada acima – ressoa na estruturação do

personagem de José Lins do Rego: capitão Vitorino. Antonio Candido afirma que o capitão

Vitorino é uma perfeita transposição do herói cervantino141. Seguindo o mesmo pensamento,

encontramos José Maurício Gomes de Almeida, que, como já vimos, concebe o herói de Fogo

morto como uma espécie de Dom Quixote sertanejo. Outrossim, Eduardo F. Coutinho

vislumbra Vitorino como um personagem quixotesco. A exemplo dos críticos acima citados,

identificamos também outros que não aprofundam a questão, deixando “indeterminado” o

vínculo existente ente capitão Vitorino e Dom Quixote. Visando preencher esta lacuna,

passamos a determinar esse elo.

O cavaleiro da Várzea, assim como o da Triste Figura, desencadeia uma

demanda obsessiva e essencialmente utópica. Com a montaria e os seus paramentos (fraque

ou paletó, tabica e punhal), aliados à patente e ao orgulho do nome, que simbolizam a

concreção de sua inadaptação ao meio em que vive, imprime ações e se envolve em aventuras

141
“Disse o Sr. Èdison Carneiro que ele é um “D. Quixote rural”. Com efeito o capitão é uma perfeita
transposição do herói de Cervantes” (CANDIDO, Antonio. Um romancista em decadência. In: COUTINHO,
Eduardo; CASTRO, Ângela Bezerra (org.). José Lins do Rego. Rio de Janeiro; João Pessoa: Civilização
Brasileira; FUNESC,1991. (Col. Fortuna Crítica). p. 395.
71

que expressam o seu inconformismo contra a opressão exercida pelos poderosos. Embora

pareça paradoxal – afinal, orgulha-se da patente e do nome de família, maltrata a mulher

(chamando-a de vaca velha), e considera que o negro é inferior (e. g. o tratamento que

invariavelmente confere a negro Passarinho142) –, sua atitude corajosa é espelho da vontade de

todos que são oprimidos, mas que estão presos às amarras quer seja por conta do medo, quer

seja pela completa asfixia em que vivem, o que impede o protesto, a revolta, deixando-os

indefesos e praticamente sem opção e imóveis, assim resignando-se ou torcendo para que

alguém se lance contra o sistema. Capitão Vitorino, movido pela obsessão democrática e

convicto de que a mudança é possível, entra em rota de colisão com a realidade através da

militância política e da atuação como cavaleiro da verdade e da justiça, advogando a causa

dos necessitados.

À medida que capitão Vitorino expõe as vicissitudes impostas pela degradação

do seu cosmos, mais precisamente pela situação de opressão infligida aos indivíduos, com a

denúncia por intermédio de bravatas, de gritos, enfim, da sua ação, transmuta a opinião dos

que o cercam, mormente os que sofrem. Desvelado o condicionamento dialético do mundo

degradado, as ações reflexamente degradadas de Vitorino padecem de respaldo lógico, o que

implica uma interpretação predominantemente cômica pelos demais personagens. A

incompreensão da postura “quixotesco-vitorinina” oblitera a grandiosidade da busca

pretendida e empreendida, especialmente na perspectiva dos coronéis, dos senhores de

engenho. Evidentemente, a atmosfera sustida pelo herói filtra o olhar alheio, não sofrendo

abalo. A zombaria feita por crianças e adultos (“Vitorino cabalava por toda parte. Pelos

engenhos era recebido com gargalhadas”), manifestada sobretudo na chacota da figura de

Vitorino, pela denominação de Papa-Rabo, por exemplo, constitui-se em uma prova disso:

142
Em conversa com o mestre Amaro, Vitorino fica sabendo que o negro Passarinho está morando com o seu
compadre e emite o seguinte juízo de valor: “– Como é que se tem um negro deste dentro de casa, meu
compadre? É mesmo que morar com um porco” (FM , p. 310).
72

Pela estrada passava um moleque, a cavalo, e quando


viu o velho Vitorino, parou e largou a boca no mundo:
– Papa-Rabo, Papa-Rabo.
Vitorino levantou-se com o corpo mole, pegou de uma
pedra e saiu correndo atrás:
– Papa-Rabo é a mãe.
E correu com tanto ímpeto que tropeçou nas raízes da
pitombeira e foi ao chão como um jenipapo maduro143.

Concernentemente ao riso como sinal da inadequação do herói ao seu universo,

que se confirma na passagem transcrita acima e perpassa a narrativa de José Lins, destacamos

que isto ocorre de forma semelhante no texto de Miguel de Cervantes. Acompanhemos a

ocasião em que Dom Quixote envolve-se em mais uma desventura, pensando em libertar uma

dama principal, vai ao encontro de alguns penitentes que rogam para a providência divina o

envio de chuvas. Vale salientar que a dama enxergada é de fato uma imagem da Virgem

Imaculada, coberta de luto:

Os primeiros que se detiveram foram os que levavam a


imagem, e um dos quatro clérigos que cantavam as
ladainhas, vendo a estranha figura de Dom Quixote, a
magreza de Rocinante e outras circunstâncias que
descobriu no cavaleiro, e que moviam a riso, respondeu
[à inquirição de Dom Quixote] dizendo:
– Irmão e senhor, se nos quer dizer alguma coisa diga-a
depressa (...).
– Dir-la-ei numa só [palavra] – replicou Dom Quixote –
e, é a seguinte: que deixeis livre imediatamente essa
formosa senhora, cujas lágrimas e triste semblante dão
claras mostras de que a levais contra sua vontade (...) e
eu, que vim ao mundo para desfazer semelhantes
agravos, não consentirei que avanceis nem mais um
passo, sem lhe dardes a desejada liberdade que merece.
Por estas razões, entenderam todos os que as ouviram
que Dom Quixote havia de ser louco, e desataram a rir
com vontade. Esse riso foi o mesmo que deitar pólvora
na cólera de Dom Quixote, porque, sem dizer mais
palavra, arrancando da espada, arremeteu ao andor.

Esta passagem oferece-nos uma amostra da loucura do herói e a falta de

conexão entre a sua idéia e a exterioridade. O julgamento das pessoas é expresso com o riso,

com a galhofa. Dom Quixote frente ao achincalhe inflama-se e parte para o confronto. No

143
FM, p. 72.
73

entanto, o resultado é geralmente adverso. Como desfecho, o nocaute do anti-herói. Note-se

que Vitorino sofre dentro do seu contexto algo parecido: na tentativa de responder à chacota,

acaba tropeçando e tomba ao chão.

Reforçando os laços existentes entre capitão Vitorino e Dom Quixote,

remontamos ao caso em que o cavaleiro manchego é alvo da graça das crianças:

... dois garotos, travessos e atrevidos, meteram-se por


meio de toda gente e, levantando um deles o rabo do
ruço e outro o de Rocinante, ataram-lhes um molho de
cardos. Sentiram os pobres animais essas esporas de
novo gênero e, apertando as caudas, ainda aumentavam
a dor; de modo que, aos escorvos e aos coices, deram
com seus donos em terra144.

A brincadeira das crianças explicita ainda mais a figura ridícula do herói e seu

escudeiro. A despeito da celebração promovida com a chegada anunciada do verdadeiro e

famoso Dom Quixote de la Mancha, não o apócrifo, a Barcelona, temos este espetáculo da sua

degradação.

A mania persecutória marca sobremaneira os heróis do idealismo abstrato.

Vitorino atribui a qualquer acontecimento desfavorável uma conotação política. Defendendo a

candidatura do coronel Rego Barros, homem que não está no poder, logo, situado na esfera da

oposição, e na condição de seu partidário, considera-se igualmente como homem de oposição.

A interpretação, e. g. para a chacota dos moleques, dada pela mente do capitão, está fincada

justamente na tese de perseguição política. Como sabemos, é mais uma posição utópica:

(...) O mestre José Amaro levantou-se para ampará-lo.


O velho quase que não podia falar. Estava branco como
algodão, de corpo mole. Depois que se refez com o
copo d’água que bebeu, disse com a voz ofegante:
– É isto que o senhor vê, meu compadre. Me perseguem
deste jeito.
Chegara gente da casa para animá-lo.

144
DQ, p. 626.
74

– Caí com o corpo todo. Muito obrigado. Estes cabras


me pagam. Isto é coisa do Juca do Santa Rosa. Estas
desgraças me pagam. Corto a cara do safado de
rebenque.
O mestre Amaro falou manso para o compadre:
– Compadre Vitorino, eu não quero dizer nada, mas o
senhor é culpado de tudo isto.
– Culpado de quê? Não está vendo que isto é
perseguição política? Estão com medo do meu
eleitorado. Cabras safados. Vou mostrar a todos quem é
este velho Vitorino Carneiro da Cunha. Não enjeito
briga. Se querem no pau, vamos no pau145.

Tal fragmento situa-se imediatamente na seqüência da queda de Vitorino, ao

correr atrás do moleque que o chama de Papa-Rabo. Neste episódio do desaforo do moleque e

que resulta no padecimento do capitão Vitorino, faz-se notória a improcedência da sua

argumentação diante da contundência fática. O mestre José Amaro emite um parecer bastante

coerente, contrapondo-se ao compadre. Afinal, o acontecimento está desprovido de uma

significação político-eleitoral: Vitorino é motivo de gozação pelo seu aspecto ridículo e não

aceita a afronta originada seja de quem for. Em resposta ao desaforo, corre alucinado no

encalço do algoz. Todavia, depara-se com um obstáculo (as raízes da pitombeira) e vem a

tombar. A insistência do cavaleiro do Pilar na argumentação política, por seu turno, está

consoante com as suas convicções. Os fatos ganham os contornos que seu deslumbramento

demoníaco pincelam.

A distorção desenhada pela consciência exagerada de que é um homem que

pelo seu posicionamento político, ou seja, como opositor e crítico dos atuais mandatários do

Pilar e da Paraíba, que chega no limiar do delírio, tem seu ápice na prisão por desacato à

autoridade – leia-se tenente Maurício. Vitorino é remetido à Capital na qualidade de

prisioneiro. Tal fato repercute na imprensa e o capitão faz publicar a sua versão do incidente.

A fama alcançada com a matéria jornalística potencializa a sua ação e militância em terras da

Várzea.

145
FM, p. 72.
75

A perseguição política para o capitão Vitorino está para a perseguição dos

seres encantados que obstaculizam a ação de Dom Quixote: os nigromantes. São a eles que o

Cavaleiro dos Leões imputa a responsabilidade pelo sumiço da sua biblioteca, por exemplo.

A insurreição contra os poderes estabelecidos e a conseqüente dominação,

prepotência, exploração e corrupção advindas desse exercício de mando, traduzida na força

exercida pelos coronéis (e, por conseguinte, na posse de terras e bens), a brutalidade do

aparelho repressor do Estado, sob os auspícios dos proprietários de terra e a presença

marcante do poder paralelo a cabo do cangaço, sintetizada na pessoa do capitão Antônio

Silvino, são uma prova inquestionável da ruptura que o cavaleiro do Pilar maquina, escudada

na coragem que o impele. Esse é um retrato da realidade flagrada no romance: o universo de

decadência sócio-econômica, sustentada nos vestígios do patriarcalismo e de práticas

mercantis atrasadas face ao avanço de uma nova ordem capitalista, calcada na emergência dos

valores burgueses146. Os inimigos que Vitorino cria, pois os “oponentes” encaram-no

verdadeiramente como um bobo, um bufão, um ser em doidice inocente e pueril, representam

“moinhos de granito”, de estruturas sólidas, inabaláveis147. Ademais, os homens com quem

peleja são gigantes, dotados de poderes temporais, e contra os quais não sente qualquer medo.

A sua figura avulta diante do oponente. Entretanto, da mesma maneira que Dom Quixote

enfrenta, verbi gratia, os moinhos de vento, tomando-os por gigantes, em batalha desigual,

não logra êxito pleno, porquanto atinge unicamente o mundo reformulado e não o cerne do

mundo exterior.

Para ilustrar a comparação, fazemos menção ao episódio do cabreiro. Só para

recordar, nele Dom Quixote tenta convencer o patrão a suspender a sova que aplica em seu

empregado. Fazendo-o jurar com base nos valores em que acredita, Dom Quixote imagina ter

146
Cf. COUTINHO, Eduardo F. A relação arte/realidade em Fogo Morto. In: COUTINHO, Eduardo; CASTRO,
Ângela Bezerra (org.). José Lins do Rego. Rio de Janeiro; João Pessoa: Civilização Brasileira; FUNESC,1991.
(Col. Fortuna Crítica). p. 432.
147
Cf. FERREIRA, op. cit., p. 85.
76

resolvido o imbróglio. Porém, o homem rico, logo que o cavaleiro satisfeito com o papel

desempenhado deixa a cena do açoite, descumpre a promessa e castiga com mais furor o

cabreiro.

No que respeita a Vitorino, inúmeras, também, são as situações em que a

atitude reverbera exclusivamente na subjetividade. Mencionamos aqui a embaixada do capitão

junto ao coronel Lula de Holanda, objetivando garantir a permanência do compadre nas terras

do Santa Fé. A defesa do causídico apenas tem sucesso em sua idéia: o sustentáculo da

permanência do seleiro está sediada na ameaça do capitão Antônio Silvino.

Capitão Vitorino e Dom Quixote atuam ancorados em um ideal de justiça. A

concepção que possuem confronta-se com a estabelecida. Os dois heróis lutam pela libertação

de condenados. O embate do qual participam é a expressão da transgressão à ordem vigente.

Destarte, uma faceta da loucura.

Quixote visualiza um conjunto de doze homens algemados (cadeia de

galeotes). Na sua ótica tais desditados são levados contra a vontade, portanto, estão sendo

compelidos a tanto, o que constitui uma violência. Ante tal situação de opressão, o Cavaleiro

dos Leões exige a liberdade para os acorrentados. Como não é ouvido e, ainda por cima,

vilipendiado, arremete contra os dos guardas do rei, gerando uma confusão que redunda com

a consecução do desejo: os condenados ficam livres.

Por sua vez, Vitorino depara-se com a prisão de seu compadre, mestre José

Amaro, do cego Torquato e do negro Passarinho. Os protestos do capitão culminam com o

requerimento que faz ao juiz através de uma ordem de habeas-corpus, com a finalidade de

reverter a arbitrariedade impingida aos três homens: “E na sala do juiz, com a sua letra

trêmula, devagar, parando de quando em vez, como se estivesse numa caminhada de léguas,

escrevia o capitão Vitorino as palavras que pediam liberdade para os pobres”148. O meio para

148
FM, p. 379.
77

a efetivação da justiça, usado pelo defensor dos oprimidos, revela-se estéril. Vitorino acaba

também na cadeia. Apenas sendo solto mais tarde (bastante ferido), juntamente com os seus

constituintes, em decorrência da intervenção do coronel José Paulino – muito embora credite

a libertação deles ao habeas-corpus que impetrara.

As condutas dos heróis identificam-se com um sentimento de justiça absoluto.

Para a concreção de tal sentimento são capazes de desafiar a razão, conflitando-se com o

poder de polícia. Os remédios jurídicos (a força, para o primeiro, e a petição, para o segundo)

divergem. Os fins, porém, são os mesmos: promover a liberdade e restabelecer, assim, a

própria justiça. As conseqüências dessa ação libertadora são muito próximas. Dom Quixote

só não chega a ser preso, o que ocorre graças à intercessão do cura que convence a Santa

Irmandade de que o “delinqüente” trata-se de um desajuizado149.

Em contraposição, contudo, está o balanço das ações:

Vendo-se Dom Quixote tão mal, disse para o escudeiro:


– Sempre, Sancho, ouvi dizer que fazer bem a vilões é
deitar água no mar. Se eu tivesse estado pelo que me
disseste, evitava-se o presente desgosto; mas o que está
feito feito está; já agora paciência; ficar-me-á de
emenda para o futuro150.

Este trecho é deveras contundente: o fidalgo avalia a libertação dos galeotes

como decepcionante. De tal aventura, Quixote sai ultrajado, apedrejado e roubado por aqueles

149
“É, pois, o caso, que os quadrilheiros sossegaram, por ter entreouvido a qualidade dos que com eles se tinham
batido, e retiraram-se da pendência, por lhes parecer que sempre haviam de levar o pior na batalha; mas um
deles, que fora desancado e pisado aos pés por Dom Fernando, lembrou-se de súbito de que entre alguns
mandados que trazia para prender alguns delinqüentes, vinha um contra Dom Quixote, que a Santa Irmandade
mandara prender pela liberdade que dera aos galeotes, e como Sancho, com muita razão, temera. Lembrando-se,
pois, disto, quis certificar-se e diziam bem com as feições de Dom Quixote os sinais que lhe tinham dado, e,
tirando do seio um pergaminho, sucedeu ser esse logo o que procurava, e pondo-se a lê-lo com todo o vagar (...),
a cada palavra que lia punha os olhos em Dom Quixote, e ia cotejando os sinais com as feições do seu rosto, e
viu que sem dúvida alguma era a ele que o mandado se referia. E, apenas se certificou, dobrou logo o
pergaminho, e, pondo o mandado na mão esquerda, com a mão direita agarrou a Dom Quixote pelo pescoço, que
nem o deixava respirar, e com grandes brados dizia:
– Auxílio à Santa Irmandade, e, para que se veja que deveras e com razão o peço, leia-se este pergaminho onde
se ordena que se prenda este salteador de estradas” (DQ, p. 305).
150
DQ, p. 141.
78

que ajudara a libertar. Malgrado o (in)sucesso dessa ação, Dom Quixote coloca-se de

prontidão, esperando encontrar alguma aventura estranha.

Para o capitão Vitorino a causa assumida é fonte de orgulho. No episódio, além

de mostrar a sua coragem, recebe o reconhecimento e o agradecimento dos pobres pela defesa

feita. Por isso: “Ninguém no mundo poderia com ele151”. “Que lhe importava a violência do

tenente Maurício? O que valia era a petição que, com a sua letra, com a sua assinatura, botara

para a rua três homens inocentes152”. Cumpre ressaltar que o êxito do “advogado” carece

totalmente de amparo na realidade, restringindo-se somente ao seu entendimento.

Como corolário de tais ponderações, podemos asseverar que a vitória, o

triunfo, tem um caráter de impossibilidade para esses heróis do idealismo abstrato. No

máximo o que conseguem são uma falsa sensação de triunfo, o que diversamente ocorre na

epopéia153. Nela, os heróis são guiados para a vitória, tendo em vista a proteção e a ampliação

de forças que lhes são dadas pelas divindades. Sem esse amparo, aqueles ficam indefesos e

impotentes face aos inimigos “superiores”.

O anátema do personagem romanesco está justamente na perda do sentido de

distância, impulsionada pela ausência de problemática interna. Sem contar que a inexistência

do apoio dos deuses deixa-o em desvantagem diante dos óbices que se lhes apresentam.

Desamparado e irrefletidamente agindo, sem ter a noção precisa de sua inferioridade (diante

de gigantes que são moinhos de vento ou de granito), e buscando expugnar os inimigos, o

herói extático torna mais estreito o mundo do que é realmente. Daí as contendas inutilmente

grotescas realizadas no substrato de suas ações revelarem-se engraçadas. Figurativizando,

aludimos ao episódio dos odres de vinho. Em tal oportunidade, Dom Quixote encontra-se em

combate onírico, travado com algum gigante:

151
FM, p. 393.
152
FM, pp. 395-6.
153
Cf. LUKÁCS, op. cit., p. 100.
79

Tão intensa havia sido a apreensão da aventura que ia


acabar, que o fez sonhar achar-se já no reino de
Micomicão e a braços com o seu adversário; e tantas
cutiladas tinha assentado nos odres, supondo
descarregá-las no gigante, que todo o quarto era um
lugar de vinho154.

Já “desperto”, Quixote supõe ter liquidado o gigante (na verdade, cortando os

odres de vinho tinto com sua espada). Assim, devolve a paz para a Princesa Micomicona155,

cumprindo o seu mister.

Referentemente a Vitorino, consideramos novamente a sua “vitória” nas barras

dos tribunais, em que utiliza o habeas-corpus. A ilusão do triunfo do cavaleiro da justiça está

na idéia de que o uso desse instrumento, pelos trâmites legais, é um meio eficaz para a

libertação dos presos.

O desacordo das ações de Quixote e de Vitorino traz conseqüências diretas só

para os heróis (no caso do romance de Cervantes, inclui-se aí, por vezes, Sancho Pança, o

escudeiro), o que denota a sua falta de representatividade. Em face disso, as aventuras eleitas

encontram sentido e substância apenas em sua alma.

As aventuras perdem relativamente o significado heróico, já que perdem a

espontaneidade e a dimensão épica, isto é, a tônica da consubstancialidade inextrincável do

representante do povo e sua comunidade. Elas têm que ser escolhidas (ou forjadas) pelo anti-

herói, afinal a sua vida “só pode ser o mesmo que fazer frente a aventuras156”.

Por outro lado, a contínua maquinação demoníaca do idealismo abstrato é

típica da alma aventureira. Então, no primeiro sinal de inércia, o herói agita-se, almejando

livrar-se do imobilismo. O caráter dinâmico é, portanto, um traço peculiar. Exemplificando,

fazemos menção ao desgaste da saúde de Dom Quixote antes de sua última saída, de acordo

154
DQ, p. 237.
155
Trata-se de Dorotéia, que assume tal papel para tirar Dom Quixote da Serra Morena, local onde o cavaleiro
está realizando uma penitência, nos mesmos moldes de Amadis de Gaula. O artifício do cura e do barbeiro,
amigos do fidalgo, tem como fim fazer com que o ensandecido retorne para a sua casa.
156
LUKÁCS, op. cit., p. 102.
80

com a avaliação de sua ama: “o triste do homem vinha de tal maneira, que não o conheceria a

mãe que o pariu: fraco, amarelo, com os olhos encovados nas profundas da cara”157. A

despeito dessa situação, o herói mantém a vontade de ganhar o mundo. A insistência em sair,

é sinalizada com o “planejamento” da nova investida. Bastante fragilizado, volta a se

aventurar. Em Fogo morto, lembramos a situação de Vitorino, após a segunda prisão. O vigor

dado pela monomania impressiona, pois ainda em convalescença afirma: “– Minha velha,

amanhã tenho que ganhar os campos. Não sou marica para ficar dentro de casa. As eleições

estão aí e nestes últimos dias nada tenho feito.158”

Inobstante a tudo isso, gostaríamos de apresentar uma ressalva quanto à

designação de Dom Quixote aventada pela crítica em relação ao capitão Vitorino. Dom

Quixote, como sabemos, tem em comum com o capitão Vitorino a inadequação com as

convenções da realidade, o espírito aventureiro e idealista; entretanto, o primeiro é nostálgico,

espera reimplantar a Idade de Ouro159, enquanto que o segundo possui um projeto político

para Pilar, em que não haveria “tolerância para com sujeitos safados, que só queriam comer

no cocho da municipalidade”, “não haveria ladrões, fiscais de feira roubando o povo”, “Tudo

andaria na correta, na decência”, “não haveria tenente Maurício que fizesse arruaça”, “Todos

pagariam impostos”, “a vila do Pilar teria calçamento, cemitério novo, jardim, tudo que

Itabaiana tinha com o novo prefeito”160. Para Vitorino, a oligarquia cederia lugar à

democracia. O retrocesso daria lugar ao avanço.

Metonimicamente, indicando a nostalgia do primeiro, fazemos referência ao

elmo. O capacete que o cavaleiro aspira é uma reluzente bacia de barbeiro. Todavia, ele

acredita ser o famoso elmo dourado, que pertenceu ao rei mulçumano chamado Mambrino.

Este o utilizou em lides importantes, até perdê-lo para o seu algoz. O elmo consiste em um

157
DQ, p. 378.
158
FM, p. 400.
159
Tal período corresponde ao que concebemos atualmente como Idade Média.
160
FM, pp. 397-8.
81

prêmio conquistado pela vitória na lide. A antecedência grandiosa do elmo inflama a vontade

de Dom Quixote de possuir e também usar a relíquia161.

Já para as aspirações prospectivas do segundo, evidenciamos como símbolo o

gramofone: “A casa de Vitorino criara vida nova. O filho trouxera muitas novidades. Um

gramofone tirava dobrados, valsas, cantorias. Vinha gente de longe para ouvir a máquina
162
se esgoelando na paz do sítio” (grifo nosso). O presente do filho é um reflexo da

dissonância do próprio capitão na realidade atrasada em que vive. É interessante perceber que

os vocábulos “nova” e “novidade” corroboram com o perfil reformista de Vitorino. Outro

tópico importante diz respeito à identificação de Vitorino com a máquina: ambos emitem um

som estridente e são um atrativo, um espetáculo para as pessoas simples do Pilar,

notadamente para os meninos163.

Aparentemente, os desenlaces das narrativas Fogo morto e Dom Quixote de

la Mancha demonstram aspectos contrastantes. No primeiro, o herói, em detrimento do

aniquilamento dos outros protagonistas (afinal o mestre José Amaro suicida-se e o coronel

Lula de Holanda simbolicamente está de fogo morto, assim como o Santa Fé, engenho de sua

propriedade), projeta seus pensamentos na realidade, assenhoreando-se do mundo e

vislumbrando a sua glória. Já no segundo, o cavaleiro participa de sua última aventura, ou

seja, a morte.

Contudo, o contraste, sob o ângulo da configuração dos personagens, desfaz-

se, pois na essência os heróis cumprem o seu destino, sendo fiéis aos princípios que norteiam

suas vidas. Por isso, o Capitão Vitorino, ao construir o mundo através das projeções da sua

mente, age conforme a sua idéia fixa. Por seu turno, Dom Quixote, com a sua morte, procede

161
Cf. VIDAL, César. Enciclopedia del Quijote. Planeta, 1999. p. 347.
162
FM, p. 340.
163
“A tarde bonita, de vento brando, de cajazeiras cheirosas, cobria a casa do capitão Vitorino de uma paz de
remanso. O gramofone na sala, com os meninos em redor, cantava com voz estridente” (FM, p. 350).
82

de acordo com os ditames do seu ideal cavalheiresco, já que, impedido de pegar em armas,

envolve-se no desafio derradeiro.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

As possibilidades de comparação entre as narrativas em foco são muito

grandes, o que se explica pela magnitude da elaboração estética que encontramos nelas. Por

isso a investigação que desenvolvemos não tenciona esgotar o assunto. Não obstante,

procuramos eleger algumas situações, cenas e aspectos que fossem os mais significativos. Daí

a nossa leitura ser apenas a semente de um outro trabalho que pretendemos desenvolver no

futuro.

Abordamos neste estudo a categoria do herói. Para tanto, recorremos aos

postulados teóricos de Georg Lukács sobre o romance. Na tentativa de compreender o

personagem romanesco, refizemos o percurso lukacsiano, verificando o processo de

degradação do indivíduo, instaurado no decurso do tempo e materializado no surgimento de

uma forma artística.

Começando pela epopéia, constatamos que o herói estabelece um elo com as

divindades, o que denota a coincidência entre a vida e essência. As ações de tal ser

reverberam na coletividade, pois representam as aspirações e os princípios de seu povo.

Já na tragédia, percebemos que ainda há uma relação transcendental. No

entanto, a ação do herói tenciona romper com a essência, numa tentativa de mudar o destino.

Temos nesse gênero o esboço da subjetividade.

No que concerne ao romance, o mundo já não está mais povoado por deuses. O

que caracteriza essa forma é precisamente a ruptura entre o herói e o mundo, que, diga-se de

passagem, não desintegra a totalidade, que passa a existir na estrutura. Almejando a

totalidade implícita e, por conseguinte, inalcançável, o ser entra em conflito com o mundo,

numa expectativa vã de reencontrá-la. Apesar da busca inexeqüível, insiste nela. É a


84

configuração da ironia estrutural. Na epopéia burguesa, duas naturezas estão em

descompasso. A primeira refere-se ao indivíduo. A outra diz respeito à sociedade, ao mundo.

A relação de hostilidade mútua entre as naturezas é o cerne das tensões do herói romanesco,

que recebe a denominação de herói problemático. O esforço humano resulta em ações

reveladoras do demonismo. Ou seja, como não há mais correspondência com a divindade, os

atos são meramente contingentes.

O herói problemático, tendo em vista os da epopéia e da tragédia, sofre uma

gradual desmitificação, o que reduz a esfera e o reflexo da sua ação no mundo. Como

corolário disso, temos a perda da representatividade. Então, o indivíduo do romance –

solitário e fadado ao fracasso – constitui-se em um verdadeiro anti-herói.

Lukács classifica os romances com fundamento no nível de inadequação do

herói com o mundo. Assim, ele distingue três espécies do romance ocidental até o século

XIX: o idealismo abstrato, no qual o herói age continuamente e pouco reflete (estreitamento

da alma), cujo parâmetro é Dom Quixote; o romantismo da desilusão (Educação

sentimental), em que a há uma inversão em relação ao anterior – o herói pensa mais do que

age; e o romance de educação (ou da maturidade viril), em que a ação e a reflexão estão em

relação de equilíbrio. Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister é o paradigma dessa

estrutura.

Detendo-nos ao idealismo abstrato e centrando-nos no herói, analisamos Dom

Quixote e constatamos que a tese lukacsiana é bastante pertinente.

À luz dessa proposição tipológica, passamos ao estudo de capitão Vitorino.

Notamos que a caracterização feita por Georg Lukács do idealismo abstrato aplica-se

indubitavelmente ao romance, mormente ao personagem capitão Vitorino.

Infere-se do exposto que o aspecto datado da tipologia lukacsiana (os

romances que a compõem do século XVII ao XIX) é passível de revisão, porquanto o seu
85

estudo permite uma possibilidade de análise para além desse período. Destarte, faz-se viável a

aplicação das categorias lukacsianas de personagem em muitos textos desse último século. É

o caso do romance de José Lins do Rego.

Apoiando-nos na pertinência da aplicação do conceito do idealismo abstrato

aos heróis e considerando que os romances plasmam um mundo degradado em que a

interioridade está em relação dialética com a exterioridade, estabelecemos o vínculo existente

entre ambos. A partir disso, apresentamos a estruturação do “quixotismo vitorinino”.

A tonalidade da loucura dos heróis configura-se de forma consentânea com o

contexto esculpido no universo particular de cada romance. No entanto, a incompatibilidade

dos indivíduos expressa pela ação reveste-se de semelhanças (espírito aventureiro,

“irreflexibilidade”, coragem, feição cômica, “irrepresentatividade”). Portanto, constatamos

que em ambos há um herói que se insurge contra o mundo, recriando-o.

Se tentássemos redefinir o herói do idealismo abstrato, diríamos que esse herói

empreende uma busca de valores autênticos num mundo degradado e mergulhado no

conformismo. Conseqüentemente, essa demanda inautêntica e solitária concretiza-se num

conflito intransponível entre o indivíduo e a sociedade à qual está vinculado. A alma

encolhida não reflete, o que gera uma contínua atividade. As suas ações, reforçadas pelas suas

feições e paramentos, colidem com a realidade, resultando em situações tragicômicas.

Entretanto, corajosamente enfrenta os obstáculos criados, pois a idéia fixa funciona como uma

blindagem, possibilitando, assim, que continue, mesmo que inocuamente e a despeito da

perseguição dos inimigos (encantados ou sólidos), lutando para efetivar o seu projeto. A

loucura, que tem como inspiração, quer seja elementos do passado e/ou do futuro, faz com

que o herói recrie o seu mundo, impulsionando-o ainda mais a chocar-se com a exterioridade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes primárias

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Trad. Viscondes de Castilho e


Azevedo. São Paulo: Nova Cultural, 2003.

_____. Don Quijote de la Mancha. Barcelona: RBA, 1994. 2 v.

REGO, José Lins do. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987. 2 v.

_____. Fogo morto. 57. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

_____. O cravo de Mozart é eterno [crônicas e ensaios]. Rio de Janeiro: José Olympio,
2004.

SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. Novelas exemplares. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural,
1971.

Fontes secundárias

ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas
Cidades; 34, 2003.

ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro. Rio
de Janeiro: Achiamé, 1981.

ARISTÓTELES. Poética. In: _________; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. 7. ed.


Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1997. p.19-52.
87

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 4. ed. São


Paulo: Perspectiva, 2002.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 2. ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

_____. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

_____. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni


Bernadini et al. 5. ed. São Paulo: Anna Blume; Hucitec, 2002.

BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Trad. Marcos


Santarrita. 3. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 1999.

BRAIT, Beth. A personagem. 4. ed. São Paulo: Ática, 1990.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 10. ed. v. 3. Petrópolis: Vozes, 2003.

BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

CANDIDO, A.; ROSENFELD, A.; PRADO, Décio de A.; GOMES, Paulo E. S. A


personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987.

_____. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paulo: T.A.
Queiroz, 2002.

_____. A educação pela noite e outros ensaios. 3. ed. São Paulo: Ática, 2003.

CARVALHAL, Tania F. Literatura comparada. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa


Silva et al. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
88

COUTINHO, Eduardo F.; CASTRO, Ângela B. de. (org.). José Lins do Rego. Rio de
Janeiro; João Pessoa: Civilização Brasileira; FUNESC,1991. (Col. Fortuna Crítica).

____; CARVALHAL, Tânia F. (org.). Literatura comparada: textos fundadores. Rio de


Janeiro: Rocco, 1994.

FERREIRA, Edda Arzúa. Integração de perspectivas: contribuição para uma análise das
personagens de ficção. Rio de Janeiro: Cátedra, 1975.

FLAUBERT, Gustave. Educação sentimental. Rio de Janeiro: Ediouro, [199-?].

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad.
Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FORSTER, E. M. Aspectos do romance. Trad. Maria Helena Martins. Porto Alegre: Globo,
1969.

FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo:
Cultrix, 1973.

GOETHE, Johann W. Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister. Trad. Nicolino


Simone Neto. São Paulo: Ensaio, 1994.

GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. Trad. Álvaro Cabral. 3. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1990.

GOMES, Heloisa Toller. O poder rural na ficção. São Paulo: Ática,1981.

GONZÁLES, Mario M. A saga do anti-herói. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

GOUVEIA, Arturo ____. A ironia estrutural no romance. Revista do CCHLA, João Pessoa,
12 dez. 2000. p. 9-14.

____. As angústias do outono: uma proposta de análise crítica de Fogo morto, de José Lins
do Rego. João Pessoa: Manufatura, 2004.

____; MELO, Anaína Clara de. Dois ensaios frankfurtianos. João Pessoa: Idéia, 2004.
89

GRANATO, Fernando. Nas trilhas de Quixote: uma viagem pelos caminhos do cavaleiro
andante. Rio de Janeiro: Record, 2005.

HEGEL, G. W. F. Estética. Trad. Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães


Editores,1993.

HESÍODO. Os trabalhos e os dias. 4. ed. São Paulo: Iluminuras, 2002.

HOMERO. Odisséia. Trad. Carlos Alberto Nunes. 5. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

_____. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

KOTHE, Flávio R. O herói. São Paulo: Ática, 1985.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.

_____. O texto do romance: estudo semiológico de uma estrutura discursiva


transformacional. Lisboa: Livros Horizonte, 1984.

LUKÁCS, Georg. O romance como epopéia burguesa. In: Revista Ensaios Ad Hominem.
n. 1. tomo II. Trad. Letizia Zini Antunes. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem , 1999.

_____. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica.


Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; 34, 2000.

MADARIAGA, Salvador de. Guia del lector del Quijote. Madrid: Espasa, 2005.

MARQUES JR., Milton; MARINHEIRO, Elizabeth. O ser e o fazer na obra ficcional de


Lins do Rego (Dicionário de personagens). João Pessoa: FUNESC, 1990.

MELO, Marilene Carlos do Vale. Do trágico e do lírico em Fogo morto e Pureza. 90 p.


Dissertação (Mestrado em Letras) – CCHLA/UFPB, João Pessoa, 1979.
90

NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. 2. ed. São Paulo: EDUSP,
2000.

PAES, José Paulo. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.

SEGRE, Cesare. As estruturas e o tempo. Trad. Silvia Mazza e J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 1986.

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1979.

SÓFOCLES. A trilogia tebana. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002.

VERGÍLIO. Eneida. Trad. Tassilo Orpheu Spalding. São Paulo: Cultrix, 1999.

VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São


Paulo: Perspectiva, 2002.

VIDAL, César. Enciclopedia del Quijote. Barcelona: Planeta, 1999.

WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson
Crusoe. Trad. Mario Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

Potrebbero piacerti anche