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João Pessoa
2006
ARISTÓTELES DE ALMEIDA LACERDA NETO
João Pessoa
2006
RESUMO
The present research constitutes an attempt to carry out a comparative analysis of the
novels Dom Quixote de la Mancha, by Miguel de Cervantes, and Fogo morto, by José
Lins do Rego. Based on the theoretical concept of the problematic hero, formulated by
narratives with the universe shaped in them, considering, in a first moment, Dom Quixote,
so as to deepen the investigation about captain Vitorino, in a second moment. After the
study of these heroes, a parallel between them was traced, in order to reveal the Quixote-
like resonances in the Brazilian northeastern knight, through an analysis that conveys
similarities and contrasts. The conclusion indicates that the application of Lukács’ theory
on abstract idealism to José Lins do Rego’s novel, mainly as it concerns captain Vitorino, is
Key words: novel, hero, abstract idealism, comparative literature, Miguel de Cervantes,
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 1
com fulcro na ação dos personagens. Partindo da epopéia grega, em que o herói e o mundo
estão em consonância, e ambos estão entrelaçados pela presença das divindades, Lukács
chega ao romance (a epopéia burguesa), que se caracteriza justamente pela ruptura entre o
herói e o mundo. Tal ruptura é determinante para a denominação do herói romanesco. Com
base nesse entendimento, ele distingue três espécies de heróis problemáticos que pautam a sua
do mundo faz com que esteja em atividade constante. A categoria do idealismo abstrato,
identificada primordialmente por Lukács em Dom Quixote, já possui toda uma tradição
De acordo com a crítica, destacamos aquela feita por Antonio Candido, bem
como a de José Maurício Gomes de Almeida: o romance Fogo morto, de José Lins do Rego,
apresenta um personagem que se assemelha a Dom Quixote por, dentre outras questões,
estabelecer, assim como o herói cervantino, uma ligação conflitante com a sua realidade. Tal
Antes de ser explicitado o liame entre capitão Vitorino e Dom Quixote, será
realizado um estudo sobre o herói, partindo da epopéia grega até o romance, com a finalidade
com suporte em Lukács, acerca de Quixote e, depois, de Vitorino. Por fim, proporemos uma
estudiosos de Fogo morto, que apenas mencionam o caráter quixotesco de Vitorino, sem
particularmente no romance.
1. A NATUREZA DO HERÓI PROBLEMÁTICO
Aristóteles. Em sua Poética1, o filósofo grego apresenta uma tipologia de personagens com
base na ação. Segundo essa classificação existem três possibilidades de imitação de pessoas:
discorreremos neste estudo); inferiores (as que pertencem à comédia); e iguais aos da
superioridade.
que nasceu para servir. Os heróis são marcados essencialmente por duas virtudes: a timé, que
em tais seres outros atributos, que terminam por se mostrar contraditórios, a priori: são
1
ARISTÓTELES. Poética. In: _________; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. 7. ed. Trad. Jaime
Bruna. São Paulo: Cultrix, 1997. p.19-52.
2
Quanto a estes últimos, o Estagirita alude provavelmente ao homem grego. É interessante notar que as
referências às obras e ao próprio gênero que tratam de tal tipo de personagem não estão presentes no texto
aristotélico.
3
Além do objeto, Aristóteles considera como distintivos para a imitação os meios (ritmo, melodia, metro) e a
maneira ou o modo (narração/representação).
4
Cf. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. v. 3. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 52.
4
loucos, criminosos. Do ponto de vista físico, podem ter uma beleza resplandecente, ou serem
feios, possuírem baixa estatura, ou serem gigantes, coxos, cegos. Em suma, as características
decorrência dessa natureza ambivalente, eles são os responsáveis pela redenção do seu povo,
através de feitos grandiosos, mas, também, podem ser a fonte e a causa da desgraça dos seus,
Gouveia5, apresentamos o Mito das Raças, contido nOs trabalhos e os dias6, de Hesíodo,
como uma explicação plausível para a propalada supremacia do herói, que se revela
hierarquia rígida de raças, vinculada às idades (ouro, prata, bronze, heróis, ferro). Esta última
pois se encontram num patamar superior e têm relação direta com os deuses. Ademais,
a glória são traços indeléveis dessa raça, de acordo com o texto mítico.
Eliade:
5
GOUVEIA, Arturo. A epopéia negativa do século XX. In:_________; MELO, Anaína Clara de. Dois ensaios
frankfurtianos. João Pessoa: Idéia, 2004. p. 58.
6
Note-se, ainda, que as raças são denominadas por metais, exceto a dos heróis. Com o passar do tempo,
percebemos o processo de degradação de um metal para outro. O ferro, que designa a última fase, está sujeito à
ferrugem, ao perecimento.
5
herói um comportamento e uma aparência unívocos. Afinal, a sua existência data de uma
moldes como as concebemos, não condizem com aquela realidade. Portanto, esta realidade é
qualquer juízo de valor mais preciso sobre este cosmos. Entretanto, partindo dessa limitação e
habitaram o “passado absoluto”8, especialmente no que se refere às suas ações, bem como às
Na epopéia, deparamo-nos, segundo Georg Lukács, com uma forma que reflete
7
apud BRANDÃO, op. cit., p. 67.
8
Mikhail Bakhtin, com o intuito de demonstrar as diferenças existentes entre a epopéia e o romance, apresenta a
categoria do cronotopo como aspecto contrastivo entre os aludidos gêneros. Sob tal prisma, a epopéia plasma o
passado absoluto, um locus acabado e mítico; já o romance ganha o cotidiano.
6
épica e sua matéria, apesar dos exageros da idealização lukacsiana, o que é uma herança
transcendente, ou seja, a marcante presença divina. Habitam este mundo, portanto, heróis e
divindades. Entre ambos existe uma conexão. O destino constitui-se num preceito/presente
divino para o homem, que não o contesta, apenas o cumpre. Além do mais, este ser está
integrado ao seu cosmos. A ação e o caráter aventureiro são-lhe inerentes, sem contar com o
fato de que estão amparados pelas divindades, ratificando a certeza da teleologia heróica.
Ampliando essa questão, temos que o herói, pelo fato de não ter uma vontade
particular, uma consciência reflexiva, graças à referida interveniência divina na sua ação, não
age por si, de per si e para si (pelo menos não exclusivamente). Isto é, a eticidade do sujeito
épico constitui-se de modo objetivo, pois o referido visa cumprir seu destino em obediência
9
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São
Paulo: Duas cidades; 34, 2000. p. 26.
10
LUKÁCS, op. cit., p. 26-27.
7
aos valores do seu povo (mimetizados pela interferência das deidades), valores estes
representatividade do herói.
contido no Canto I da Ilíada11. Aquiles afasta-se da guerra, depois de ter tido sua “honra”
ferida por Agamémnone. Ante tal fato, Tétis, compadecida com seu filho, o Pelida, pede a
Zeus, que se mostrara até então neutro no tocante à guerra, que conceda aos Troianos o
máximo de apoio, até que de novo a “honra” de seu filho seja restabelecida, bem como a sua
proeminência fosse reconhecida pelos gregos. Como conseqüência dessa saída de Aquiles,
portanto, os gregos começam a perder batalhas, a ponto de se verem acuados em seus próprios
navios, face ao avanço de Heitor e das tropas troianas. Cumpre esclarecer que isto não se dá
apenas porque os gregos perdem simplesmente o seu maior guerreiro (sem contar com a
retirada daqueles que se encontram sob o seu comando), mas se deve sobretudo à interferência
marinha.
passagem da Ilíada, dentre inúmeras, que veicula a integração, implementada pelo destino,
entre as duas esferas da ação, que caracteriza a própria epopéia: a ação dos heróis e a dos
arrasando os seus inimigos. A construção da glória deste herói funda-se no apoio dos deuses.
Com o intermédio das divindades, Aquiles não só consegue novas armas, mas também a força
e o impulso necessários para cumprir o seu destino, que é o de liderar a vitória grega,
instaurada principalmente com o assassinato de Heitor, herói supremo do lado troiano. Para se
11
HOMERO. Ilíada. 2. ed. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 72.
8
ter uma idéia do suporte divino, Aquiles, com medo de morrer de maneira indigna, pede a
Zeus que o ajude a ultrapassar os rios rumo à cidade inimiga. Assim, Posido e Palas Atena são
enviados para inspirar vigor, o que não é suficiente para enfrentar a cólera das águas. Por isso,
Hera envia seu filho Hefesto para defender Aquiles, com suas chamas. O deus ferreiro
consegue aplacar Xanto, o que viabiliza o avanço de Aquiles, a consolidação da sua glória, a
A respeito ainda da ação, Lukács capta a sua primazia com os termos a seguir:
“Na ação da Ilíada – sem começo e sem fim – floresce um cosmos fechado numa vida que
reforçada pelo embate entre os próprios deuses (teomaquia). Porém, o essencial nestas
narrador no momento anterior ao seu discurso como “o mais feio de quantos no cerco de
Tróia se achavam”. Em sua fala, aos gritos, insulta Agamémnone questionando sobre a
divisão desigual dos bens e das escravas entre os Aquivos, e que beneficia especialmente os
reis; também o insurgente põe em xeque a própria continuidade da guerra, por conta das
desgraças advindas dela, pregando a volta para casa; por fim, desrespeita Aquiles, chamando-
o de indolente, ao passo que fere o chefe dos guerreiros por “acatar” o ultraje do Pelida.
verdade, uma contingência, pois logo o falastrão é rechaçado por Odisseu, que além de
aplicar-lhe uma lição moral, com um forte discurso, golpeia-o com o cetro, deixando-o
12
Idem, p.470-472.
13
LUKÁCS, op. cit., p. 54.
14
Em outras palavras: O homem e a natureza coexistindo no universo numa relação harmônica, o que
corresponde à “concepção homérica da realidade”, calcada claramente na idéia de organicidade (Cf. JAEGER,
Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.78).
15
Cf. HOMERO, op. cit., p.83-89.
9
humilhado. Isso tudo é causa de riso para os demais combatentes, que endossam a
reprimenda, a ponto de muitos deles afirmarem que esta ação de Odisseu supera todas as
“revolta” de Tersites. Ela situa-se logo após o afastamento de Aquiles e, por conseguinte, dos
seus comandados da guerra de Tróia, o que causa um certo estremecimento no brio dos
demais gregos. Em segundo lugar, já há nove anos a guerra acontece. Então, do ponto de vista
combalido dos heróis, e que funcionasse como um reforço da ordem e do pacto vigentes em
Tersites, já que o processo é coroado com a descrição, por parte do narrador, do catálogo das
Andrômaca diz respeito à possibilidade da derrota do marido, o que a deixaria viúva. Mas o
argumento principal levantado para que seu marido não retornasse para batalha, seria deixar o
filho – Escamândrio19 – órfão. Por seu turno, o lamento de Heitor segue a mesma linha de
raciocínio da esposa: preocupado com a derrota, o fim de Tróia, teme a escravidão que
atingirá a sua mulher, de toda forma renega a idéia de se afastar da luta, o que feriria o seu
16
Ver nessa tônica: GOUVEIA, op. cit., p. 64-66. Encontra-se aí uma exposição contundente sobre a
importância da descrição do catálogo das naus para a ação.
17
Analisando a etimologia deste nome, identificamos a aproximação com o vocábulo andromaquia (“andro” =
homem + “maquia” = guerra, combate). Destarte, podemos inferir que o diálogo de Heitor com sua esposa, é
simbolicamente um combate que trava contra si.
18
Cf. HOMERO, op. cit., p. 175-177.
19
Este nome foi o escolhido pelo próprio Heitor. Mas para as demais pessoas, o filho do herói troiano chamava-
se Astianacte (Idem, p. 175) .
10
da imanência da essência, essa coincidência rompe-se. Assim, uma nova forma é engendrada:
a tragédia. Tal forma está fincada em um “subsolo problemático”20, pois somente a partir
desse gênero é instaurado o conflito interior. Esboça-se aí uma subjetividade, o que implica
em questionamento, numa tentativa de mudar o curso do destino. A verdade aparenta não ser
mais única.
transfigura justamente pelo fato de tomar-lhe a tocha bruxuleante e inflamá-la com brilho
renovado” 21. Essa relação feita por Lukács a respeito do herói trágico e do épico denota uma
comum a ambos. Contudo, esse âmbito mítico entranha-se agora com questões novas. No
drama, os heróis e os deuses ainda estão interligados, todavia não mais como na epopéia. Por
outro lado, o destino já não tem a mesma significação, afinal a ação do herói tenciona romper
Vernant22. Ele afirma que a forma dramática, ao reler o universo mítico, inquire também o
20
Cf. LUKÁCS, op. cit., p. 32.
21
Idem, p. 33.
22
VERNANT, Jean-Pierre. Tensões e ambigüidades na tragédia grega. In: _________; VIDAL-NAQUET,
Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 7-24.
11
também incorporará essa dualidade: num momento, trará à tona o seu poder lendário,
chocam na alma desse herói, situado no limiar de duas posições antagônicas coexistentes. Daí,
(manifestação de potência divina)23. Por isso, a sua ação, que almeja libertar-se do espectro da
intervenção das deidades, não pode desprezá-lo inteiramente, porque sua força é alimentada e
revigorada na divina. Esse personagem vê-se numa situação aporética, na qual se apresenta
uma possível alternativa para o destino. Diante dela, ele toma uma decisão. No entanto, a
entre os gêneros épico e trágico, e, por conseguinte, entre os heróis que aí são representados.
(que conceitua a tragédia como imitação de uma ação) e trazendo a etimologia de tal categoria
em grego (práttein), o teórico francês diz que não se pode falar propriamente na existência de
uma ação na epopéia, pois o homem que se desenha nela não é encarado como um agente,
relaciona com a guerra. É notório que, sendo o herói épico um instrumento das divindades,
decorrência disso, suas ações não têm uma origem propriamente autônoma, elas são
essencialmente heterônomas, o que não impede que o herói execute uma ação, mesmo que
esta seja dependente da colaboração divina. De toda forma, faz-se mister relembrarmos o
substrato que permeia a narrativa épica: nela vida e essência não se distinguem.
autonomia da vontade, a ação também inexistiria nesse gênero. Não obstante, partindo do
contexto plasmado nela, compreendemos que se revela visível uma mudança na perspectiva
processo de deslocamento do conflito para o interior do herói, que agora pode mensurar suas
atitudes. Tal mudança deve-se à incorporação de duas realidades antagônicas que já foram
as forças que o impelem para o destino e essa atitude significa, em termos estruturais, um
herói que pensa em dirigir sua vida, que deseja libertar-se das amarras do fatum, das
fim que lhe fora previsto, Édipo abandona o seu reino. No caminho, assassina um homem e
parte em direção à cidade que vai reinar – Tebas, graças ao seu ato em benefício da
comunidade, afastando o mal que aflige a todos. Pelo seu gesto, casa-se com a rainha e com
ela tem muitos filhos. Até que vem a peste. Ela é atribuída à presença de um parricida que
habita no reino edipiano. A catástrofe, nos termos aristotélicos, dá-se quando Édipo descobre
que ele é o “responsável” por toda a desgraça que assola seu reino, pois o assassino a quem
ação de Édipo submete-se a uma força que domestica qualquer indício de vontade,
praticamente anulando-a. Todavia, para o próprio Édipo a “culpa” advém da sua ação, por
25
SÓFOCLES. Édipo Rei. In: _________. A trilogia tebana. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002. p.17-100.
13
isso ele pune a si, cegando-se. Como aí não podemos falar em individualidade, Édipo
propriamente não tem responsabilidade. Sendo assim, ele paga pela maldição que recai sobre
sua raça, enfim pelos laços de consangüinidade. Na procura de si, realiza inconscientemente o
fatum que lhe havia sido predeterminado; mas, fundamentalmente, voltamos a frisar, o que
ocorre é uma aceitação do destino como fruto do seu ato, isso tudo sob o prisma do herói
trágico26.
Pierre Vernant a respeito da grandiosidade de Édipo (quando da sua autopunição), que, por
(...) o próprio peso dessa falta que deve assumir sem tê-
la cometido intencionalmente, a dureza de um castigo
que suporta serenamente sem tê-lo merecido, o elevam
acima da condição humana, ao mesmo tempo que o
separam da sociedade dos homens.”27
tragédia de Sófocles, apesar de toda degradação por que passa esse personagem.
modelar28.
26
É relevante salientar que os sofrimentos são oriundos de uma cadeia de consangüinidade, o que anula qualquer
possibilidade de individualidade. Esta é uma conquista histórica recente, viabilizada com a ascensão da
burguesia.
27
VERNANT, Jean-Pierre. Esboços da vontade na tragédia grega. In: _________; VIDAL-NAQUET, Pierre.
Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 50.
28
Cf. VERNANT, Jean-Pierre. O momento histórico da tragédia na Grécia: algumas condições sociais e
psicológicas. In: _________; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo:
Perspectiva, 2002. p. 2.
14
Lukács afirma que o romance é “a epopéia de uma era para a qual a totalidade
extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à
vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”29. Como
percebemos, o seu ponto de partida para a conceituação da nova forma é a epopéia grega. Já
pudemos verificar que nela o herói e o mundo estão em consonância, e ambos estão
interligados pela presença das divindades. Tal harmonia é reveladora da totalidade. Por
oposição, o que caracteriza justamente o romance é a ruptura entre o herói e o mundo, mas
essa cisão não extingue a totalidade integralmente. Ela ainda vai existir implicada na
estrutura, portanto, vigorando de modo implícito, abstrato. É exatamente com essa inclinação
Teoria do Romance, no que respeita ao processo evolutivo da forma romanesca, ao não mais
vinculá-la apenas à epopéia clássica. Essa relação aparece agora mediatizada pela narrativa
humano é entregue à sua própria sorte, o que ocasiona uma inadequação entre o ideal e o real.
29
LUKÁCS, op. cit. p. 55. O autor entende que a forma romanesca constitui-se como a epopéia do mundo
burguês, chegando a essa formulação, baseando-se em Hegel. Este afirma o seguinte: “[...]Dá-se precisamente o
mesmo com o romance, essa epopeia burguesa moderna” (HEGEL, G. W. F. Estética. Trad. Álvaro Ribeiro e
Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores,1993. p. 597).
30
LUKÁCS, Georg. O romance como epopéia burguesa. In: Revista Ensaios Ad Hominem. n. 1. tomo II. Trad.
Letizia Zini Antunes. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem , 1999. p. 88.
15
mundo e o seu conjunto de valores. Com a hostilidade desta natureza em relação à outra,
mundo já não é mais considerado um lar, e sim um cárcere. O homem, preso a ele, enxerga a
sua imperfeição e almeja ver-se livre dele, confinando-se em sua interioridade. Esse conflito é
limitado, de realizar seu ideal, num mundo decadente, em que não há mais espaço para a
intervenção divina. Nesse mundo, os homens podem fazer o que bem entenderem; todos
possuem a mesma potencialidade para tentarem realizar as suas metas “divinas”, os seus
projetos, porém seus atos serão mera contingência, não havendo, portanto, um caráter de
mundo.
realidade, objetivando reconstruir o seu sentido oculto, que é o cerne da liberdade da alma,
consiste numa luta inglória, fútil – afinal, a realidade sempre é vitoriosa. Diante disso, o
sabe da sua incapacidade de moldar, mas mesmo assim persiste e insiste no seu ideal.
31
LUKÁCS, 2000, p. 99.
32
Cf. ARAUJO, Arturo Gouveia de. A ironia estrutural no romance. Revista do CCHLA, João Pessoa, 12 dez.
2000. p. 9-14.
16
Traçando um paralelo entre este herói e os que foram estudados acima (épico e
na sua derrota, fruto da inatingibilidade da meta. Desse modo, o herói que povoa a narrativa
1. 2 A tipologia lukacsiana
personagens. A ação vai estar vinculada diretamente ao grau de inadequação entre o herói e o
Com base nesse entendimento, ele distingue três espécies do romance ocidental
caracteriza-se pela ação contínua a que o herói se entrega, tipicamente fruto do demonismo do
estreitamento da alma. Essa ação que se reveste de um caráter épico, mas que não encontra
respaldo no contexto em que ocorre, mostra o abismo das naturezas integrantes do romance.
33
FLAUBERT, Gustave. Educação sentimental. Rio de Janeiro: Ediouro, [199-?].
17
possibilidade de síntese dos anteriores, logo, as características dos mesmos são admitidas e
Meister 34, de Goethe, é o paradigma dessa última estrutura. Em comum com a descrita antes,
esta apresenta a centralidade casual do protagonista. Nisso diferem do idealismo abstrato, que
uma forma que extrapolaria a burguesa, que tenderia para um retorno à epopéia. No início
desse desenvolvimento, ele menciona Tolstói e depois Dostoiévski, que seria o ápice dessa
evolução. Neste ponto, apresentamos nossa crítica a essa possibilidade ventilada de modo
impreciso pelo autor da Teoria do romance. Para tanto, baseamo-nos na sua própria
forma épica da burguesia não oferece mais solo para a totalidade, pois definitivamente a
epopéia burguesa, que é o de ter se restringindo aos romances que vão do século XVII ao
XIX. No entanto, o seu estudo permite uma possibilidade de leitura para os criados no século
XX, pois prevê, muito embora não esteja desenvolvida, a mutabilidade a que a forma
causa. Tomando como premissa esse atributo, aliando-o à dialética entre as naturezas do herói
34
GOETHE, Johann W. Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister. Trad. Nicolino Simone Neto. São
Paulo: Ensaio, 1994.
35
Nesse mesmo sentido ver GOUVEIA, op. cit., p. 117.
18
36
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Trad. Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo:
Nova Cultural, 2003.
37
LUKÁCS, op.cit., p.100.
38
Idem, p. 102.
39
Idem, p. 103.
19
idealismo abstrato. Este é um ser fissurado, pois revela uma inadequação patente entre
interioridade e objetividade. É um herói que estabelece uma relação de conflito com o mundo.
idéias tornam-se fixas, não conseguindo avaliar criticamente seus atos, nem aprender com a
experiência. Essa falta de ponderação faz desse tipo um herói que predominantemente age;
logo, em contrapartida, pouco pensa. Como ele próprio cria uma realidade e projeta nela seus
pensamentos, fechando-se neles, institui uma atmosfera segura que contribui diretamente para
cavaleiro manchego, a batalha contra os moinhos de vento, inserida na segunda saída de Dom
Quixote. Nesse embate, temos claramente o alerta de Sancho Pança (o escudeiro) ao seu amo.
Porém, este, convicto de que sua visão é a correta, parte para o combate. O resultado é
desastroso: a sua lança esfacelada e o cavaleiro e sua montaria “foram rodando pelo campo
40
CERVANTES, op. cit., p. 59.
20
fora”41. Em face do exposto, identificamos em Dom Quixote uma inadequação entre a sua
idéia e a realidade.
responsável pela queima dos seus livros43. Destarte, na ótica do cavaleiro, os gigantes é que
repousa incólume; diante disso, Dom Quixote não pára e anseia por mais ação, afinal, nada o
abala. Não é à toa que se vê metido em uma outra aventura, desta feita a dos biscainhos.
41
Idem, p.59.
42
Idem, p. 60.
43
A queima da biblioteca de Dom Quixote está inserida na primeira parte do romance cervantino,
especificamente no capítulo VI.
21
bacharel acerca da iminente saída do cavaleiro andante. É de se observar que a ama faz uma
retrospectiva das duas saídas do seu senhor, apontando os problemas daí decorrentes. Tais
Aqui, fica explícito o caráter ativo do personagem, que, mal convalescera, já quer voltar às
capítulo a seguir, que, no decorrer da fábula e principalmente tendo em vista a segunda parte,
as idéias fixas sofrem alguns abalos, verbi gratia, o instante emblemático da sua morte.
44
Idem, p. 378.
2. DOM QUIXOTE (DES)ENCANTADO
com aproximadamente cinqüenta anos, de compleição rija, seco de carnes, rosto enxuto,
restaurar a Idade de Ouro, época dos cavaleiros andantes, “desfazendo todo o gênero de
nome e fama45”.
Crendo piamente que é um deles, considera que a matéria tratada nos livros de
sua predileção constitui-se em verdade histórica, irrefutável. Vale observar aqui que a missão
de Quixote revela-se impossível, pois não há mais respaldo na realidade para a efetivação de
seu plano. Entretanto, esta inviabilidade não é enxergada pelo cavaleiro que sai em busca de
Sob a ótica de Ian Watt: “há (...) uma contínua dialética entre a mente do
Quixote e as realidades com as quais ele vai se confrontando; uma dialética geradora de
45
CERVANTES, op. cit., p. 32.
46
WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson Crusoe. Trad.
Mario Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 64.
23
prepara-se para o fiel cumprimento do seu desiderato. Num primeiro instante, o pretenso
cavaleiro ressuscita as velhas armas47 de seus bisavós, que há séculos estavam relegadas ao
doente e magro (indício da penúria em que vivia o seu dono). Afinal, tal providência era
imperiosa, pois “não era razão que um cavalo de tão famoso cavaleiro, e ele mesmo de si tão
bom, ficasse sem nome aparatoso49”. Para tanto, levou quatro dias, denominando-o,
finalmente, de Rocinante, “nome, em seu conceito, alto, sonoro e significativo do que havia
sido quando não passava de rocim, antes do que ao presente era, como quem dissera que era o
a si uma nova denominação51, tendo como modelo o famoso Amadis de Gaula. Foi então que,
após mais de oito dias pensando, resolveu chamar-se Dom Quixote de la Mancha, “com o
que, a seu parecer, declarava muito ao vivo sua linhagem e pátria, a quem dava honra com
tomar dela o sobrenome52”. Por último, restava-lhe buscar uma dama de quem se enamorasse,
para torná-la senhora dos seus pensamentos53. Assim, pensou numa lavradora chamada
Aldonça Lourenço, já que ela havia sido no passado alvo de seu sentimento, rebatizando-a de
47
Note-se que as armas do fidalgo, diversamente das do herói épico, não têm uma origem divina. Ademais,
cumpre observar as péssimas condições em que se encontravam as armas do cavaleiro, isto é, enferrujadas e
necessitando de reparos.
48
O cavalo “não é um animal como os outros. Ele é montaria, veículo, nave, e seu destino, portanto, é
inseparável do destino do homem” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 203). Fica patente nesta acepção a
importância deste animal na configuração do herói.
49
Ibid., p.33.
50
Idem.
51
Luís da C. Cascudo (apud BRANDÃO, op. cit., p.31-2) comenta que: “O nome é a essência da coisa, do
objeto denominado. Sua exclusão extingue a coisa. Nada pode existir sem nome, porque o nome é a forma e a
substância vital (...).”
52
CERVANTES, op. cit., p.33.
53
A escolha de uma dama por parte de um cavaleiro é pertinente ao código do amor cortês. Todo cavaleiro
devota-se a uma senhora, sofrendo e lutando por ela (cf. WATT, op. cit., p. 67-8).
24
Dulcinéia del Toboso. O sobrenome – assim como o dele – é uma referência ao lugar de
origem.
dos livros de cavalaria, a fim de tornar-se um cavaleiro. No entanto, ele o faz de modo
artificial. Prova cabal disso é o fato de que saiu em silêncio, pela porta dos fundos, sem que
Ademais, lembrou-se que seria necessário ser armado cavaleiro. Para suprir
suas necessidades físicas e espirituais, após andar o dia inteiro, ele procura um lugar onde
pudesse abrigar-se. Ao longe, Dom Quixote avistou uma venda que “como ao nosso
aventureiro tudo quanto pensava, via, ou imaginava, lhe parecia real, e conforme ao que tinha
lido, logo que viu (...) se lhe representou ser um castelo com suas quatro torres54”. As duas
moças (prostitutas), que estavam à porta da venda, pareciam-lhe duas donzelas. O vendeiro
banquete especial.
sagração de Dom Quixote como cavaleiro andante, para que assim ele pudesse
revelada pela literatura cavalheiresca, as armas devem ser veladas durante uma noite pelo
novel cavaleiro numa capela. Contudo, na inexistência deste local sagrado, a solução
encontrada pelo “castelão”, e logo aceita por Dom Quixote, foi a de velá-las no pátio grande
anexo à venda. Este colocou as armas em uma pia localizada ao pé de um poço, iniciando
assim o ritual. O dono da venda já havia alertado aos hóspedes acerca da loucura daquela
famigerada pia para que seus animais pudessem saciar a sede. O resultado disso foi uma
54
CERVANTES, op. cit., p. 36.
55
Ibid., p. 41.
25
confusão completa: Dom Quixote, vendo-se desrespeitado, desfere sua lança contra os agentes
feridos, por sua vez, vislumbrando tal situação, começam a apedrejar o cavaleiro, “o qual, o
melhor que podia, se ia delas anteparando com a sua adarga, e não ousava apartar-se da pia,
para não desamparar as suas armas56”. Plenamente convicto, alteou a voz e infundiu medo ao
ameaçar os algozes. Esta atitude (aliada às alegações do dono da venda) fez com que o ataque
de pedras cessasse. Diante desse cenário, o “castelão”, com o objetivo de evitar o surgimento
aventuras.
Regozijado, Dom Quixote decidiu voltar para casa com a finalidade de atender
aos conselhos do seu padrinho (prover-se de dinheiro, camisas, ungüentos, gazes e, ainda,
conseguir um escudeiro para lhe acompanhar). No caminho, porém, ele ouviu gritos e
imaginando que alguém estivesse a carecer de ajuda, dirigiu-se até lá. Eis aí a primeira
aventura de Dom Quixote: a do ovelheiro André. Este moço estava sendo açoitado pelo seu
amo, João Haldudo, o rico, vizinho de Quintanar. Dom Quixote, indignado com a violência
praticada pelo lavrador, exige que ele solte o jovem e que se comprometa a pagar a André o
feita pelo seu patrão, Dom Quixote assevera: “basta que eu mande , para ele me catar respeito.
Jure-mo ele pela lei da cavalaria que recebi, deixá-lo-ei ir livre, e dou-te o pagamento por
seguro57”.
56
Ibid., p. 41.
57
Ibid., p. 44.
26
“– Veja Vossa Mercê, senhor, o que diz – replicou o rapazito –: que este meu
amo não é cavaleiro, nem recebeu ordem nenhuma de cavalarias58”. O receio do moço tinha
razão de ser. Inobstante a promessa feita, mal o cavaleiro os deixara, o amo tornou a prender o
incapacidade de julgar criticamente a situação. Isto se explica graças a sua fé nos princípios
obrigação do indivíduo. Tendo em vista a época ser outra, e o esfacelamento dos valores
consoantes com o código cavalheiresco, a honra já não é mais a regra e, sim, a exceção.
Diante disso, somente na cabeça de Dom Quixote é que o mal foi desfeito. Efetivamente o
que ocorreu foi: a completa humilhação de André; a zombaria do amo; e a ilusão do cavaleiro.
realidade, no que tange à ordem jurídica. Depois de escutar a história de alguns, o herói, em
tom magistral, exige dos guardas a libertação dos condenados às galés pelos crimes que
58
Idem.
59
Nesta nova investida de Dom Quixote, ele dá cumprimento aos conselhos do “castelão” que lhe ordenara
cavaleiro.Sublinhamos, aqui, que agora o cavaleiro não mais está sozinho, pois o acompanha Sancho Pança, seu
escudeiro.
60
Segundo MADARIAGA, Salvador de. Guia del lector del Quijote. Madrid: Espasa, 2005. p. 173, “Este
episodio, pues, viene a ser prefiguración de una de las creaciones más características de Europa – la
democracia liberal.”
27
aventura, Dom Quixote pede aos beneficiados com esta sua ação que procurem em El Toboso,
tão almejada. A resposta à solicitação de Dom Quixote foi dada por Ginés de Pasamonte (um
dos libertos), através de burlas. Como sinal de gratidão, jogaram pedras nos benfeitores –
Numa análise detida deste episódio, podemos perceber que Dom Quixote está
em relação de ruptura com o mundo em que vive, já que se ocupa em demanda de valores
intrínseco ao homem, mesmo para os que, aos olhos da lei, são considerados criminosos.
Afinal, como fica claro em seu discurso, só Deus tem o poder de julgar os seres humanos, e, o
que é mais relevante, Deus criou-os para a liberdade. É por isso que, indo de encontro à
norma e à própria autoridade do rei (inclusive ao próprio bom senso), exige a soltura dos
galeotes.
ao mesmo tempo em que se reveste de uma certa pureza: a idéia de liberdade que ele traz
consigo é absoluta, universal. A partir dela, engendra-se a sua concepção de justiça. Para
força não faz eco num cosmos degradado. Então, parte para o enfrentamento com suas armas.
61
CERVANTES, p. 138-9.
28
desfeita. Concluindo, o herói é vítima do próprio movimento das relações sociais existentes e
Sancho, ao contemplar a feição do rosto do seu amo, que fica iluminado pela chama de uma
tocha, decide chamá-lo de “o Cavaleiro da Triste Figura”. Isso acontece na aventura dos
“encamisados” que trasladam um corpo para Segóvia. Nessa “desaventura”, o herói dirige-se
contra a estranha procissão, imaginando que esses homens que acompanham o corpo tratam-
de sua montaria, que vem a quebrar a perna, que rendido solicita a ajuda de Dom Quixote,
para que tire a mula que está sobre ele. Note-se que Dom Quixote, apesar da solicitude, não
sente culpa, inexistindo em sua consciência qualquer conflito trágico ou seriedade sombria, o
que se justifica pela convicção de que age consoante com as regras da cavalaria63. Quixote
delega a tarefa de ajudar o bacharel ao seu escudeiro, que, além disso, põe o ferido sobre a
deste combate ou na falta dos dentes queixais64, que acentua a visão da pior figura já vista
pelo escudeiro: a compleição combalida de Quixote. Tal nome e insígnia, Dom Quixote aceita
prontamente65.
importante na iniciação heróica e histórica. Dentre os heróis que recebem um novo nome,
62
CERVANTES, p. 116.
63
Cf. AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1976. p. 310.
64
Os queixais e outros dentes, Dom Quixote perde-os após a chuva de pedras promovida pelos pastores de
carneiros e ovelhas. O cavaleiro imagina que estes são dois exércitos, entranhando-se no meio do tropel de
ovelhas (DQ, I, Cap. 28).
65
A justificativa para esse pronto consentimento deve-se ao fato de que era uma prática antiga dos cavaleiros
andantes, que modificavam o nome quando lhes conviesse.
66
BRANDÃO, op. cit., p. 31.
29
temos: Jasão, Aquiles, Teseu, Héracles. A diferença fundamental entre o rito iniciático desses
um novo nome (Jasão e Aquiles), ou este batismo é o resultado de uma vitória sobre um
obstáculo praticamente invencível (caso de Héracles que, antes de realizar os Doze Trabalhos,
chamava-se Alcides), ou, ainda, quando há o reconhecimento pelo pai (situação na qual se
enquadra Teseu).
percebe aqui, Dom Quixote é quem se autonomeia. Já no episódio que ora estamos
abordando, Sancho Pança é quem atribui uma nova alcunha para o cavaleiro. Isso é feito, não
porque seu amo venceu uma grande batalha, muito pelo contrário, é fruto das desventuras que
sofrera. Além do mais, Sancho não é o seu mestre. O aspecto físico associado à própria
Como sabemos, nada parece abalar a confiança de Dom Quixote. Por isso, ele
continua a buscar mais e mais aventuras, não temendo o porvir. Exemplificando, citamos o
episódio dos leões, situado na terceira saída do herói. Aqui, o Cavaleiro da Triste Figura,
os leões. Decidido, fala: “Apeai-vos, bom homem, e, visto que sois guarda, abri essas jaulas e
largai-me estas feras, que, no meio deste campo, lhes mostrarei quem é Dom Quixote de la
Mancha, a despeito e apesar dos nigromantes que mos enviam67”. Notando o guarda a
disposição de Dom Quixote em prosseguir com o disparate a qualquer custo, abre a primeira
67
CERVANTES, p. 421.
30
jaula onde está o macho. O herói que se encontra a pé espera o ataque do leão, que inclusive
não está alimentado. Porém, a fera tem uma reação inesperada: espreguiça-se, boceja e volta
“os quartos traseiros para Dom Quixote, e com grande fleuma e remanso torna a deitar-se na
jaula68”. O ânimo de enfrentar a fera, conforme o guarda, “é o mais que se pode dizer em
gênero de valentia”. Pensamento ratificado pelo autor da façanha e pelos que o cercam. Por
praticar este feito, Dom Quixote muda sua denominação de Cavaleiro da Triste Figura para
A leitura que Cesare Segre faz acerca deste episódio mostra-se bastante
elucidativa:
Dom Quixote, como, por exemplo, o de sua “vitória” no combate singular contra o Cavaleiro
do Bosque ou dos Espelhos (bacharel Sansão Carrasco)70, que apenas é possível graças ao
embaraço desse homem com seu cavalo e por sua falta de trato com a lança, constatamos que
68
Ibid., p. 423.
69
SEGRE, Cesare. As estruturas e o tempo. Trad. Silvia Mazza e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1986.
p. 222-3.
70
“Dom Quixote, que imaginou que o inimigo vinha por aí fora voando, enterrou com alma as esporas nos
magros ilhais de Rocinante, e de tal maneira o espicaçou, que diz a história que foi esta a única vez que ele
galopou em toda a sua vida, porque o mais que dava era um trote declarado. Com esta nunca vista fúria, chegou
ao sítio onde estava o dos Espelhos cravando no seu cavalo as esporas todas, sem conseguir ainda assim,
arrancá-lo do sítio em que estacara. Nesta excelente conjuntura achou Dom Quixote o seu contrário (...). [Então]
a são e salvo esbarrou no dos Espelhos, com tão estranha força, que o atirou do cavalo abaixo pelas ancas, dando
tal queda, que ficou estendido sem mover mão nem pé, e dando todos os sinais de que morrera” (DQ, II, cap. 14,
p. 411).
31
a luta de Dom Quixote está, no fundo, marcada pelo fracasso, porquanto, ele não tem plena
consciência que sua demanda está perdida, que seu projeto não obterá êxito71. O mundo é
hostil a sua individualidade: até os animais não correspondem a sua atitude digna de um herói
épico. A vitória ou o fracasso de Dom Quixote terminam equivalendo-se quanto aos efeitos na
teórico refere-se às aventuras e sua relação com o tempo. Em outras palavras, os fatos nesta
narrativa ocorrem num tempo transcendente, não obstante, essa transcendência, ou melhor,
71
A contrario sensu, Foucault assinala acerca de Dom Quixote: “Sua aventura será uma decifração: um percurso
minucioso para recolher em toda a superfície da terra as figuras que mostram que os livros dizem a verdade. A
façanha deve ser prova: consiste não em triunfar realmente – é por isso que a vitória não importa no fundo – ,
mas em transformar a realidade em signo” (Cf. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma
Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 64).
Discordamos, em parte, com esta afirmação de Foucault, apoiando-nos na contínua preocupação que Dom
Quixote apresenta com a fama.
72
LUKÁCS, op. cit., 137.
32
apresentamos a aventura da Cova de Montesinos. Aqui, Dom Quixote relata a experiência que
tem nas entranhas desse lugar. A aventura teria se passado em três dias “naquelas partes
situada no interior da caverna, onde é recebido por um ancião chamado Montesinos. Este
informa ao cavaleiro manchego que todos que ali se encontram encantados já o estavam
esperando para que desse ciência ao mundo acerca do que vira. Segundo o cavaleiro
Montesinos afirma a Dom Quixote: “façanha só guardada para ser cometida por teu
Durandarte (seu amigo) à Senhora Belerma. Conduzindo Dom Quixote pelo palácio,
(cavaleiros e donzelas) estão ali presos por encantamento de Merlim, nigromante francês,
conhecido como filho do diabo. Dom Quixote, ainda conforme Montesinos, possui
acordo com Montesinos, ocorre em memória de Durandarte, seu amado. Nessa oportunidade,
o guia do alcáçar faz uma comparação entre Belerma e Dulcinéia, não aceita pelo herói: “a
sem-par Dulcinéia é quem é, e a Senhora Belerma é quem é e quem foi, e fiquemos por
aqui75”.
O ancião apresenta a Dom Quixote três damas que brincam no campo. Este as
reconhece: uma era a “incomparável Dulcinéia” e as outras eram as duas lavradoras que a
73
Idem.
74
DQ, II, cap. 23, p. 452.
75
Ibid., p.454.
33
lavradoras veio ao encontro do Cavaleiro dos Leões, para solicitar, em nome de Dulcinéia,
seis reais. Dom Quixote, após ouvir o parecer de Montesinos, oferece o que tem, ou seja,
quatro reais.
mostrado bastante controverso. Ian Watt, ao empreender uma leitura acerca dessa aventura,
emite um juízo que demonstra uma certa incompreensão, pois afirma que a visão que o herói
neste tópico, Watt pauta-se nas condições em que Dom Quixote retorna da cova, isto é, com
os olhos fechados, bem como no tempo em que Sancho e um primo do Cavaleiro do Verde
Gabão gastam para puxar a corda que o traz – aproximadamente uma hora. Outro aspecto
duvidoso mencionado por ele é o relativo à interseção entre o mundo exterior e o mundo
interior, como no caso da visão de Dulcinéia e suas duas acompanhantes, num locus de
76
WATT, op. cit., p. 94-5.
77
Ibid., p. 453.
34
Quixote na Cova já havia sido profetizada pelo feiticeiro Merlim, o que simboliza a ligação
Tencionando traduzir a questão do tempo, destacamos que ela tem ligação com
a superposição das realidades idealizadas por Dom Quixote. Este, na aventura, experimenta o
universo encantado por Merlim, repleto de cavalheiros e damas, incluindo nele a sua amada
Dulcinéia del Toboso e as outras duas lavradoras. A justaposição de eras (ciclo carolíngio e o
também nesta aventura explica-se pelo encantamento ao qual está submetida, que antes não
cria78.
Ian Watt encara ainda Dom Quixote como um herói que recebe os influxos das
Todavia, é relevante dizer que, ao estabelecer esse paralelo, o crítico toca num
ponto crucial, que é o de associar a ação individual ao cavaleiro andante. Em face disso, Dom
Quixote79 e, por conseguinte, o herói romanesco – que por essência não é modelar – são tipos
de heróis que não representam uma coletividade (diferentemente dos da epopéia e da tragédia,
78
Na ocasião em que Sancho Pança engana o amo, utilizando-se do argumento que o aspecto grosseiro de
Dulcinéia e das suas acompanhantes é fruto de encantamento (cf. DQ, pp. 389 ss).
79
Dom Quixote é o primeiro grande herói solitário da modernidade, do universo do individualismo burguês. Por
isso, o romance homônimo também surge como a primeira epopéia burguesa, consoante com a constatação de
Lukács.
35
Aqui, temos a cena em que Dom Quixote está deixando Barcelona, após ter
sido derrotado pelo Cavaleiro da Branca Lua (Sansão Carrasco), que o faz jurar que durante
um ano não pegaria em armas. A fala do cavaleiro da Mancha é bastante esclarecedora no que
se refere a sua não representatividade de uma comunidade. Basta fazermos um apanhado dos
pronomes que integram a sua lamentação, que em sua grande maioria são de primeira pessoa
(minha, me, eu), indicando o âmbito restrito dos efeitos da adversidade, ou seja, o raio de
nesse tópico, ele não deixa de manter um liame, o de estabelecer um vínculo quase
indissolúvel com suas armas, já que elas são um símbolo do caráter belicoso do guerreiro.
Nas epopéias, os heróis estabelecem um elo indiscutível com suas armas, pois
elas são capitais para a sua configuração. Isto fica nítido, por exemplo, no momento em que
(considerando aqui o conjunto: elmo, espada, escudo, etc.), exibindo-a como um verdadeiro
prêmio que demonstra sua força, sua superioridade. Verbi gratia, o caso de Heitor que manda
as armas de Pátroclo para Ílio, “como alto sinal de triunfo”; outrossim, a ocasião em que o
80
DQ, II, cap. 66, p. 646.
36
sua nudez, que transcende o mero aspecto da exposição do corpo: afinal, a arma termina por
se constituir como parte integrante da honra, enfim, da alma do herói. Não é à toa que muitas
vezes trava-se uma nova luta, pois o combatente, para concretizar plenamente sua vitória,
com tudo isso, ilustramos com a passagem em que Sarpédone, atingido por Pátroclo, pede a
mesmo: a luta, o combate, a guerra. Sem as armas não é possível guerrear. Para ilustrar isso,
transcrevemos a seguir um pequeno trecho em que Aquiles conversa com Íris: “Como é
para o cavaleiro. Mas, é no final que essa indissolubilidade ganha contornos mais precisos.
81
Ilíada, XVII, v.212-215.
82
Ilíada, XVI, v. 492-501.
83
Ilíada, XVIII, v. 188.
37
Sem elas, Dom Quixote, humilhado e pisoteado literalmente (episódio dos porcos84),
verdade literária não é a verdade histórica: os romances de cavalaria não passam de ficção.
com o teórico, pelo fato de ambos acentuarem como características em Dom Quixote: a busca
pelos valores autênticos (e.g, justiça: libertação dos presos); a inadequação com o mundo
do herói e o quotidiano no qual está mergulhado, que em princípio não implica abatimento, ou
monomania; o indivíduo, então, envolto nesta atmosfera, age freneticamente, demandando por
aventuras, que se moldam ao seu ideal, ao talante da sua vontade. No caso de Dom Quixote, a
ótica dos fatos, das pessoas, das coisas, dos acontecimentos, limita-se às lentes dos princípios
da cavalaria andante. As aventuras criadas e empreendidas pelo Cavaleiro da Triste Figura (ou
a sua idealidade, por meio da ação. Contrapondo-se ao desejo de instauração de uma outra
84
“A bulha provinha de mais de seiscentos porcos que uns homens levavam a vender a uma feira; e era tal o
barulho dos seus passos, o grunhir e o bufar, que ensurdeceram Dom Quixote e Sancho, os quais nem
imaginaram o que podia ser. Chegou de tropel o extenso e grunhidor batalhão, e sem respeitar a autorizada
presença de Dom Quixote e de Sancho, desfez as trincheiras que este último erguera e derribou não só Dom
Quixote, mas atirou também de pernas ao ar Rocinante. O tropear, o grunhir, a rapidez com que chegaram os
animais imundos, puseram em confusão no meio da relva, a albarda, as armas, o ruço, Rocinante, Sancho e Dom
Quixote. Levantou-se Sancho o melhor que pôde e pediu a seu amo a espada, dizendo que queria matar meia
dúzia daqueles senhores e descomedidos porcos, que já conhecera que o eram. Dom Quixote disse-lhe:
– Deixa-os ir, amigo; esta afronta é pena do meu pecado e justo castigo do céu, que a um cavaleiro vencido
o comam as raposas, o piquem as vespas e o pisem aos pés os porcos” (DQ, II, cap. 68, p. 654).
38
realidade, a degenerescência do meio social e a opressão vigente exercem sobre o herói uma
contínua degradação, reverberada numa tensão estrutural que permeia o romance. Essa
degradação do herói intensifica-se na segunda parte da narrativa, que coincide com a terceira
saída de Dom Quixote. A fé antes inabalável começa a ruir. As aventuras, que antes eram
reflexo exclusivo de sua compreensão e operadas por sua vontade, perdem essa exclusividade.
Dom Quixote, capta o instante em que o herói vê-se surpreendido, em que a incredulidade
ameaça-o. Aqui, há uma verdadeira inversão dos papéis: o cavaleiro mostra-se cético diante
da visão da sua amada; já Sancho apresenta-se crédulo, pois depende dessa firmeza para
convencer seu amo, a fim de envolvê-lo plenamente no seu plano, qual seja, o de fazer com
que Dom Quixote acredite que dentre as três aldeãs com as quais eles se encontram, Dulcinéia
del Toboso está no meio delas. Trata-se de um momento crucial da narrativa, que vai marcar
testada, que pode ser tomado como um mau presságio quanto a sua plausibilidade. A operação
sobre um dos principais pilares da sua vida de cavaleiro, Dom Quixote, por necessidade,
artifício, enxerga a sua amada, efetivamente bela, só que momentaneamente desfigurada por
força de um feitiço.
de Dom Quixote e Sancho Pança ao longo da narrativa, chama atenção para a complexidade
lhe trouxe a satisfação da realização de seu objetivo (governar uma ilha). Conquanto,
relativamente ao cavaleiro, Watt manifesta certa reserva: “(...) a mudança em Dom Quixote é
mais ambígua; ele deve-a menos a Sancho e mais ao rumo pelo qual suas crescentes dúvidas
atividade são suas marcas, um verdadeiro paladino dos ideais cavalheirescos. A credulidade
nos ideais e na ação, pautados pelos preceitos da cavalaria andante, passa a receber os
influxos da dúvida, pondo em xeque a realidade quimérica que o herói tenta viabilizar no seu
cosmos88.
86
MADARIAGA, op. cit., p.116-7.
87
WATT, op. cit. p.89.
88
MADARIAGA, op. cit., p.120ss.
40
Sancho acerca das visões que este tivera na viagem que fizeram sobre Clavilenho89. Antes,
impressões:
Aqui, deparamo-nos com as imagens que Sancho afirma ter visto (a terra, os
homens, o próprio céu, as estrelas) durante a viagem feita em cima do cavalo de madeira,
através do céu. O devaneio intensifica-se quando ele afirma ter brincado com as sete
cabrinhas – constelação das Plêiades – por um tempo considerável, sem que seu amo
percebesse sua saída. Assim como no encontro que promoveu de Dulcinéia com Dom
Por sua vez, Dom Quixote expõe o que se passou – na sua concepção – durante
89
Cumpre anotar que esta viagem ocorre no fim da aventura da Condessa Trifaldi (II, cap. XXXVI e ss.). Esta é
mais uma das aventuras teatrais, orquestradas pelos duques.
90
DQ, pp. 532-3.
41
natural – , há uma tendência de que o cavaleiro possa julgar possível a visão “sanchesca”. No
entanto, com o desdobramento do raciocínio, Quixote afirma não ter visto nada e ainda
desmonta a idéia de que Sancho entreteve-se com as sete cabrinhas. O desfecho de sua
sonho.
tergiversa:
escudeiro, caso ele revisse o seu posicionamento sobre a existência da aventura da Cova de
Montesinos92. É notório nesse momento que o cavaleiro demonstra uma certa dúvida sobre a
91
DQ, p. 533.
92
DQ, II, cap. 41.
42
Primeiramente, é válido remontarmos ao combate que ele trava com o Cavaleiro da Branca
Cavaleiro da Branca Lua, o vencido teria que se retirar por um ano, sem poder exercitar as
armas, e ainda teria que proclamar que a dama do oponente, seja quem fosse, seria
incomparavelmente mais formosa do que Dulcinéia del Toboso; sendo o vencedor Dom
Quixote, o derrotado colocaria à disposição sua cabeça, bem como as armas e os cavalos
estariam ao dispor como despojos. Do combate, o Cavaleiro dos Leões sai-se como perdedor.
Todavia,
de sua senhora. Mesmo estando derrotado, prefere a morte a ter que reconhecer que outra
dama é a mais formosa de todas. Uma das condições, por conseguinte, foi quebrada.
imposição, ou seja, que ele retorne para sua terra e não pegue em armas pelo período acertado.
Carrasco, que assume a missão de demover Dom Quixote de sua loucura. Percebendo que este
não seria detido de uma outra maneira que não fosse seguindo um rito cavalheiresco, o
bacharel penetra definitivamente no mundo quixotesco (sabendo que Dom Quixote era fiel
93
DQ, II, cap. 74.
94
DQ, II, cap. 64.
43
aos valores da cavalaria e que não se furtaria em se submeter à vontade do vitorioso), torna-se
cavaleiro, buscando ocasião para lutar com o referido, a fim de fazê-lo recuperar o juízo.
Primeiro, como o dos Espelhos, não logra êxito, sendo vencido. Segundo, como o da Branca
Lua, finalmente impõe uma derrota ao cavaleiro. Neste ponto, acreditamos que a morte
começa a rondar-lhe.
(Sansão Carrasco), que o obriga a se afastar da cavalaria, Dom Quixote renega toda a sua
Dom Quixote volta a se nomear Alonso Quijano96, “abandonando”, assim, o vínculo que
possui com o mundo da cavalaria andante. Como sua loucura está intrinsecamente ligada a
isso, o fidalgo mostra sinais de arrependimento e de que deseja ser visto daí em diante
como uma pessoa de bom juízo. Ademais, os que lhe são mais próximos imaginam, a
priori, que seria uma nova loucura. No entanto, repelindo com vigor qualquer elucubração
neste sentido (a prova maior é que não se sensibiliza quando Sansão Carrasco noticia que
os preparativos para a vida pastoril, à qual se entregariam), confessa-se com o cura e faz o
95
DQ, p. 676.
96
Concernentemente a essa modificação, vale dizer que no Cap.I da primeira parte, paira uma imprecisão quanto
ao verdadeiro sobrenome do fidalgo, que deseja ser cavaleiro, sendo escrito assim: Quijada, ou Quesada. No
final do livro, o sobrenome originário do cavaleiro assume a forma definitiva de Quijano, o que se repete por
várias vezes.
44
do herói, personagem especial, que deve estar sempre pronto para a luta, para os sofrimentos e
para a solidão e até mesmo para as perigosas catábases à outra vida. A morte constitui-se no
povo97.
pelos padecimentos, pelas provas. A morte é indubitavelmente a sua última aventura. Mas, é
preciso examiná-la como um processo desencadeado, mormente pela derrota para o Cavaleiro
da Branca Lua. Como é que o Cavaleiro dos Leões poderia envolver-se em outra aventura,
sem poder utilizar as suas armas, e, desse modo, exercer o seu mister? Humilhado, regressa
para casa e procura um novo propósito: dedicar-se à vida pastoril. Entretanto, a sua essência é
de herói. Atado ao compromisso assumido com o seu verdugo, e como um cavaleiro atento
aos valores que norteiam tal vida, desobedecer ao imperativo resultaria, propriamente, em
desobedecer a sua honra, por mais que estivesse maculada pela derrota. Por isso, não lhe resta
outra alternativa que não seja a de abandonar o projeto de pastor, e se resignar. Só que a
efeito, Cesare Segre diz: “A insensatez é portanto uma ilusão confortante: a maior derrota de
Dom Quixote está no fato de ter recobrado a razão98.” A tomada de consciência99 institui-se
poder engendrar o mundo transcendente, ao qual está imbricado, a certeza íntima esvai-se: a
97
BRANDÃO, op. cit., p. 51 e p.63.
98
SEGRE, op. cit., p. 238.
99
“A conversão final de Dom Quixote ou de Julien Sorel não é, como acredita Girard, o acesso à autenticidade, à
transcendência vertical, mas, simplesmente, a tomada de consciência da vaidade, do caráter degradado, não só da
busca anterior, mas também de toda a esperança, de toda a busca perdida” (GOLDMANN, Lucien. A sociologia
do romance. Trad. Álvaro Cabral. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 13-4).
45
loucura deve ceder novamente à razão. Em tese, esta é a mais fatal derrota. O herói não
suporta a força degradada do quotidiano; então, como resistência, como verdadeira negação
da vitória da segunda natureza (do mundo), a alma doa-se à morte, aventura derradeira,
Destarte, ela pode ser vista como um reflexo da sua idéia fixa: o herói, um ser caracterizado
maiores representantes do regionalismo no romance brasileiro do século vinte. Esse livro, que
se enquadra no “Ciclo da Cana-de-açúcar”, destaca-se por sua construção tripartida, cada uma
de Seu Lula”, ressalta o senhor de engenho decadente, coronel Lula de Holanda; já a última,
vulgarmente chamado de Papa-Rabo. É sobre esse último personagem que incidiremos nossa
análise, trabalhando o conceito de idealismo abstrato, por ser o que mais se aproxima dessa
tipologia de herói.
ruptura insuperável entre o ser e a sociedade na qual está vinculado. A alma encolhida não
abre espaço para a reflexão, o que desencadeia um processo constante de ação, dinamismo e
realidade, criando situações tragicômicas. Não obstante, ele não se intimida, pois a idéia fixa
funciona como uma blindagem, possibilitando, assim, que continue, mesmo que inocuamente,
lutando para a concretização do seu projeto. A loucura, que é o motor dessa busca, faz com
47
que o herói recrie o seu mundo, impulsionando-o ainda mais a chocar-se com a realidade
efetiva.
aspecto físico. Identificamos, num primeiro momento, que tem a cara larga (de cera), toda
raspada, os seus cabelos são brancos, indicativos de sua velhice, e saem por debaixo do
chapéu de pano, conferindo-lhe “um ar de palhaço sem graça”100. A cor da sua pele é branca e
seus olhos são azuis101. Como complemento da sua configuração exterior, mencionamos a
importância, já que lhe serve como meio de transporte para suas andanças, dando-lhe um tom
de cavaleiro. Ainda referentemente à égua, vale dizer que Vitorino demonstra uma feição
especial: “Tenho estimação pelo diabo desta égua. Não troco ela por muito cavalo de fama
que anda por aí. Ela tem um baixo, compadre, que parece de seda.102” Por outro lado, as
condições precárias da égua, que “mostrava os ossos, a sela velha, roída, a manta furada, os
freios de corda103”, bem como, ainda por cima, “vazava água por um dos olhos” e tinha a
brida arrebentada que lhe “enterrava de boca adentro”104, são reveladoras do estado de
decadência e evidenciam a figura risível do seu dono. Ela tem relação direta com a alcunha
100
FM, p. 67.
101
FM, pp. 96-97.
102
FM, p. 110.
103
FM, p. 67.
104
FM, p. 67.
105
Vale dizer que posteriormente, capitão Vitorino troca definitivamente a sua égua por uma burra. Nesse
interregno, ele utiliza – apenas por uma vez – a burra escura do coronel Anísio do Recreio: “(...) O dia
começava a esquentar quando apareceu o velho Vitorino numa burra escura.
– Muito bom dia, meu compadre [– disse Vitorino].
– Bom dia [– respondeu o mestre José Amaro]. Montaria nova?
48
afrontado. A manipulação desse chicote significa uma resposta ao achincalhe feito pelas
Exemplificando, temos:
Notamos nesse texto a reação indignada de capitão Vitorino após a afronta dos
dois moleques. Ficam em relevo a vociferação e a maneira como o capitão manuseia o seu
chicote, ou seja, ele atinge furiosamente o ar, golpeando o vento, o vazio. Como fica
perceptível, o alvo não é atingido (os moleques), afinal o vazio é quem “sofre” com as
chicotadas. Esses golpes têm uma conotação de agressividade, porém são o símbolo da
gratuidade de suas ações107, sem contar que revelam a sua ingenuidade. A respeito da
– Nada. Isto é do coronel Anísio do Recreio. Cheguei lá ontem de madrugada, depois de uma viagem puxada, e
a minha égua não agüentou. E o homem me ofereceu este animal para acabar a viagem. Fiquei com uma pena
danada de deixar a égua por lá. Mas era o jeito. Tinha que tratar com o doutor Samuel de um assunto sério. E ele
estava de viagem para Goiana. Cheguei a tempo. O diabo desta burra me machucou todo. Tem uma pisada de
pedra” (FM, p. 137).
106
FM, p. 68.
107
Cf. FERREIRA, Edda Arzúa. Integração de perspectivas: contribuição para uma análise das personagens de
ficção. Rio de Janeiro: Cátedra, 1975. p. 64.
49
romanesco.
orgulho e está congruente com a sua idéia de justiça. Como um homem de patente, merecedor
de respeito, ele cumprimenta educadamente o delegado. Porém, este não lhe dá ouvidos.
Querendo compreender o fato, Vitorino pergunta para José Medeiros o motivo pelo qual não
merece sua atenção. Ao responder com despeito, o major recebe do capitão uma tabicada
desferida em sua cara, uma forma de repelir o “crime”. A chicoteada é o castigo para aquele
que fere a honra e não respeita o homem de sua envergadura, mesmo que seja contra uma
Essa alcunha vai de encontro ao seu orgulho. Ele se auto-apresenta como capitão Vitorino
Carneiro da Cunha, fazendo questão de reforçar seus laços familiares, seu berço, sua tez
branca. Como temos ciência, ele é o primo pobre do Coronel José Paulino, dono do Engenho
Santa Rosa e mandatário do poder local. A patente também é enfatizada. Mesmo ela tendo
108
Cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, op. cit., p. 233.
50
sido comprada, Vitorino utiliza-a como critério distintivo para sua pessoa109. O orgulho do
andanças contínuas e aparentemente sem sentido, da sua mania de coragem, honra, orgulho,
da graça de suas ações, palavras e da sua própria fisionomia. Por isso, “todos que o viam lá
sinhá Adriana:
capitão Vitorino não lhe prestar o reconhecimento devido, tratando-a mal, ela atua como
109
“(...) não era homem para debiques. Era o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, de gente muito boa da Várzea
da Paraíba. Tivera um primo barão no governo da província (...), era homem branco, o pai fora filho dum
marinheiro de Goiana” (FM, p. 69).
“[Uma mulher cumprimentou Vitorino:] – Bom dia, seu Vitorino.
– Dobre a língua, não sou de sua laia. Capitão Vitorino. Paguei patente foi para isto[ – respondeu o capitão]”
(FM, pp.68-69).
110
FM, p. 69.
111
FM, p. 95.
51
suporte financeiro/emocional e como sua “protetora”, muitas vezes cuidando até de seus
ferimentos, de suas dores. Enquanto o marido ocupa-se de andar sem rumo, ela provê o
fazendo tolices, sua esposa tenta interceder por ele, como fica patente no fragmento acima, em
que roga ao coronel José Paulino, parente do seu esposo, pessoa muito influente e poderosa da
região, para intervir no caso do processo, evitando a sua instauração, e, por conseguinte,
livrando Vitorino de um litígio. Interessante notar que Adriana reconhece que o seu marido é
ingênuo e age sem maldade, portanto, não compreendendo o fato de as pessoas levarem-no a
sério, maltratando-o.
concepção sobre o compadre, vejamos a passagem que se segue : “– Nesta casa mando eu.
Quem bate sola o dia inteiro, quem está amarelo de cheirar sola, de amansar couro cru? Isto
aqui não é casa de Vitorino Papa-Rabo. Isto é casa de homem112.” A alusão à figura de
demonstrar o seu vigor, refutando a reprimenda de sua mulher, dona Sinhá, acerca do seu
comentário sobre Marta. Para tanto, rebaixa o seu compadre, ao afirmar que ele não tem
pulso, não é homem, por não dar as diretrizes em casa pelo fato de não trabalhar para garantir
a sobrevivência da família, diferentemente do que ocorre em seu lar. Esse ponto de vista do
contexto.
112
FM, p. 52.
52
Passarinho, cego Torquato etc.) vai modificando a sua visão com relação a Vitorino,
se rebaixa frente aos poderosos da terra. Enxergando sob este novo prisma, o seleiro altera,
desse modo, o juízo que fazia dele, já que eleva o compadre à posição de admiração, por sua
postura. Vale salientar, neste momento, o contexto social e político. Pilar é uma cidade da
Várzea, estado da Paraíba, cuja atividade principal é a produção de açúcar. O poder político
está concentrado nas mãos dos senhores de engenho, dos que detêm dinheiro. Quando da
ocasião dessa consciência pelo seleiro, Vitorino havia sofrido uma agressão por atacar com
palavras o major Quinca Napoleão. O ato do capitão que busca a correção da injustiça (ideal
episódio em que ele se veste como um causídico, assumindo esse mister. Na sua nova
113
FM, pp.107-8.
53
advogado, acalenta a sua face megalomaníaca, mas, fundamentalmente, acredita que está,
pelos necessitados, imbuído do poder de agir como um doutor. Todavia, como percebemos no
espanto do mestre, a sua fisionomia acaba tornando-se ainda mais grotesca, o que aponta para
épico e até mesmo o cavaleiro medieval. Ou seja, é o traje que revela a sua disposição para o
meio, do autoritarismo. A fita, que tem um ar patriótico, notadamente conferido pelas cores,
114
FM, p. 179.
115
Op. cit., pp.432-3.
54
uma ação generosa, que se avizinha da heróica. Na situação relatada ao compadre pelo
advogado ad hoc, a sua primeira demanda jurídica foi perdida porque chegara atrasado.
Contudo, sabemos que alcançará (pelo menos na sua compreensão) seus objetivos, cobrindo-
passagem do herói, já que o ato simboliza a cisão de uma vida para uma outra, o início de uma
nova vida para o neófito, que mergulha no sagrado. Esse rito de separação em Fogo morto
para o capitão Vitorino ganha um relevo rebaixado e até cômico117, pois, diferentemente do
que ocorre com o herói mítico, há uma profanação do ritual: Vitorino é orientado a cortar o
cabelo a fim de contribuir para a composição do papel assumido, porém acaba tendo que ter a
cabeça raspada com a navalha, o que segundo diziam estava dentro da moda em Recife. Por
outro lado, a cabeça raspada compõe juntamente com o fraque e a fita uma simbologia da
116
“Os ritos de separação compreendem em geral todos aqueles nos quais se corta alguma coisa,principalmente o
primeiro corte de cabelos, o ato de raspar a cabeça (...)” (apud BRANDÃO, op. cit., p. 30).
117
“As abas do fraque caíram no chão, a fita da lapela mexia com o vento. A cara grande de Vitorino, com a
cabeça raspada, parecia de cômico envelhecido, de palhaço cansado” (FM, p.181).
118
FM, p. 314.
55
As condições do animal são deploráveis, ele mal suporta o peso do seu dono.
Além disso, a burra, de fato, está praticamente no mesmo patamar de degradação da égua: os
dois animais são velhos e lentos. Mas, no pensamento de Vitorino, consoante com o expresso
“fôlego duro”), superior a muito cavalo afamado. Por isso, a troca realizada foi vantajosa, um
ato de inteligência, de quem tem “quengo”. É relevante dizer que há a conservação do vínculo
entre o herói e sua montaria, apenas, aprioristicamente, havendo uma substituição do animal,
significação:
messiânica do capitão Vitorino120, que toma para si a proteção dos marginalizados, enfim, dos
pobreza em que vive, a sua coragem em enfrentar os poderosos, bem como é um índice da
119
CHEVALIER; GHEERBRANT, op. cit., p. 95.
120
“O seu messianismo torna-se então, realmente efetivo, concreto; realiza-se no aqui e agora, em favor dos
pequenos, injustiçados por uma estrutura social obsoleta e desumana” (FERREIRA, op. cit., p. 74).
56
preso pela primeira vez por ordem do tenente Maurício, chefe da força policial, encarregada
Essa caminhada para o capitão Vitorino rumo à prisão do Pilar, em que vem
atado à sua burra, lembra a entrada de Jesus Cristo em Jerusalém, antes de cumprir a sua
missão – salvar os injustiçados. O olhar de espanto é a tônica dos que acompanham tal
périplo; até as crianças que brincam com Vitorino ficam surpresas. Destemidamente, capitão
Vitorino rejeita a injustiça que o aflige. A posição destacada à frente da tropa, ainda mais nos
moldes em que ocorre (amarrado como bandido indomável e perigoso), aponta para o seu
triunfo, o que remete para a glória de Cristo (vitória sobre o pecado, através da sua paixão e
ressurreição). No que respeita à causa dos condenados pela sociedade, Vitorino, assim como
Jesus, doa-se para que haja justiça, salvação: “Era homem para morrer pelos seus
dando tabicada, ameaçando com o punhal); o segundo oferece a outra face, relevando as
ofensas e a violência.
Protestando contra a violência policial, pois “todos queriam bem ao velho desbocado, mas
121
FM, pp. 324-5.
122
FM, p. 382.
57
cheio de tanta bondade”, o juiz municipal, dr. Samuel, o coronel José Paulino, dr. Juca e
outros senhores de engenho, tentam livrar o capitão Vitorino da cadeia. Irredutível, o tenente
polícia. Por seu turno, visando demonstrar a sua força, a polícia espalha o pavor pelas “ruas
pobres” do Pilar, somente deixando-as aliviadas no outro dia, quando se dirige para os
matéria jornalística:
com os desmandos praticados pelos políticos da sua terra, milita em prol de mudanças,
criticando os mandatários, incluindo parentes seus, como, por exemplo, o coronel José
Paulino, por suas práticas de corrupção, exploração dos desfavorecidos e favorecimento dos
mais ricos, através da sonegação fiscal. A sua vontade de “afastar” a oligarquia, expressada
pelo périplo que desenvolve, tencionando convencer o eleitorado com os seus argumentos e
seus gestos, são os assomos da sua obsessão. Devido a ela, qualquer acontecimento assume a
feição de perseguição por motivação político-eleitoral. É o caso de sua prisão. A origem dela
está na atitude de Vitorino de não se submeter às ordens e aos caprichos do tenente Maurício,
desacatando-o. Desrespeitado, o policial não tem alternativa, sob pena de ver a sua autoridade
123
FM, pp. 328-9.
58
abalada. Então, prende e mantém o capitão nessa condição, apesar dos protestos e da
surra nenhuma. Em luta com o tenente, que procurava humilhá-lo, fora ferido. Reagira à
prisão”) são o mote para a sua megalomania. Sua versão para o fato está revestida de uma
conotação de verdade, já que realmente ele dá margem para a ação enérgica do tenente
Maurício. Contudo, o capitão dá uma outra interpretação (“Toda esta perseguição só podia
atribuir às suas atitudes políticas. Estava contra o governo”), que corresponde apenas a sua
acordo com sua lógica, em dividendos eleitorais (“Todos lhe davam o seu voto. Pelos seus
cálculos, o município era todo seu”). Ao devaneio opõe-se notoriamente a gargalhada com
que é recebido nos engenhos, o que implica que os apoios políticos arregimentados por ele
124
FM, p. 329.
59
são distorções fáticas, desenhadas e construídas pela imaginação. Mas, na mente do herói de
opressores, os poderosos. Tais ideais estão intrinsecamente unidos. O voto é para Vitorino o
Acompanhemos a explicação do que é o voto, com a indicação do seu valor, dada pelo
povo e de uma localidade são tidos como um reflexo da escolha realizada nas eleições. Esta
noção está muito distante da realidade modelada no texto de José Lins do Rego, tendo em
voto, por sua vez, reflete a descrença nas instituições, até porque as condições de opressão
não possibilitam a reversão desse quadro desolador, que entrava qualquer esboço de
esperança.
Vitorino passam a ser, em sua maioria, elogiosas, positivas. Ele passa a ser admirado e ganha
125
FM, p.111.
60
ainda na primeira parte, a solidariedade do capitão no caso de Marta. Ele ajuda a levá-la para
o Recife, a fim de que pudesse receber o tratamento para a sua enfermidade126. Além do mais,
Vitorino assume as dores do mestre e assevera que vai procurar o coronel Lula, com o
desiderato de garantir a permanência do seu compadre nas terras do Santa Fé. É interessante
dizer que, para o caçador Manuel de Úrsula, Vitorino afirma que o mestre é quem o tomara
para advogado127.
trata de política. Como o senhor de engenho tem aversão a este assunto, em face de um
que o capitão anuncia o outro motivo de sua visita: a defesa de um morador do Santa Fé. Num
arroubo de prepotência, Lula apóia-se no seu poder de senhor de engenho para continuar com
a intenção de expulsar o seleiro das terras que eram de sua propriedade. Como Vitorino não
aceita desaforo começa a gritar. Em resposta o coronel manda Vitorino embora, que só sai
sem cometer uma violência, graças à presença de D. Amélia, esposa do senhor de engenho,
que respeita.
afiança a continuidade do seu compadre nas terras do coronel Lula. Entretanto, sabemos que
ela se pauta no bilhete em termos de ordem enviado pelo capitão Antônio Silvino a Lula. O
recado é claro: “(...) o mestre José Amaro tinha que ficar no sítio, até quando ele [capitão
126
“[O mestre] quando viu o compadre alegrou-se. Agora as visitas de Vitorino faziam-lhe bem. Desde aquele
dia em que vira o compadre sair com a filha para o Recife, fazendo tudo com tão boa vontade, que Vitorino não
lhe era mais o homem infeliz, o pobre bobo, o sem-vergonha, o vagabundo que tanto lhe desagradava” (FM,
p.310).
127
FM, p. 316.
128
FM, p. 318.
61
política. A dependência vai habitar na necessidade. Com base nisso, Vitorino assume também
a defesa do coronel Lula de Holanda (que é para ele um inimigo político), num sinal de
Imputando como injusta a invasão feita pelo capitão Antônio Silvino no Santa
Fé, capitão Vitorino, sem medir as conseqüências do seu ato (afinal ia lutar sozinho contra o
bando mais temido do Nordeste), não se abate e, buscando desfazer o agravo, decide afrontar
o capitão Antônio Silvino. Chegando próximo à casa de Lula de Holanda, Vitorino pede para
capitão Vitorino exige do chefe do bando que respeite os homens de bem, pois o que está
fazendo com o coronel Lula de Holanda é uma miséria. Mostrando-se indiferente ao desejo e
as bravatas de Vitorino, que reverberam a sua valentia, o cangaceiro enfim ameaça-o. Acuado
ele tenciona puxar o punhal, contudo, leva uma coronhada de rifle na cabeça. Em seguida é
levado para fora. Entrementes, dentro da casa, os cangaceiros suspeitam que o piano é o local
onde o senhor de engenho guarda o ouro. O capitão solicita que D. Amélia toque uma música.
Nervosa ela dedilha uma valsa triste. Paralelamente ao som do piano, o velho Vitorino não
pára de gritar. Cobra Verde, aquele que outrora havia dado a coronhada no herói, é incumbido
de aplacá-lo. Ao invés dos gritos de Vitorino, apenas sobram os gemidos. Depois, nem isso;
só o silêncio do herói.
Nesse ínterim, aparece o coronel José Paulino que oferece dinheiro para os
cangaceiros, que já haviam destruído a casa quase por inteiro, objetivando localizar o ouro.
Vitorino – não se dando por vencido – ressurge com a cabeça branca sangrando na porta,
Vitorino, dá o comando para que, mais uma vez, Cobra Verde aplique-lhe um corretivo. O
129
Cf. FM, pp. 360-5.
62
coronel José Paulino intervém em favor de Vitorino, dizendo que este não é homem de
regular.
proteção a estes bandidos e é isto o que eles fazem com os homens de bem.” Nestas palavras,
exsurge uma crítica aos senhores de engenho e os cangaceiros, mais exatamente às relações
escusas existentes entre eles. Arrastando-se Capitão Vitorino avizinha-se do capitão Antônio
Silvino e o atinge com o seu verbo afiado e insolente, dizendo: “– (...), o senhor sempre foi da
estima do povo. Mas deste jeito se desgraça. Atacar um engenho como este do coronel Lula, é
mesmo que dar num cego.” Apesar da ordem para que se calasse, o velho desobedece:
seu modo de ser. Ou seja, a crença inabalável no seu senso de justiça e na sua honra oferece
uma atmosfera de segurança e determinação que norteiam seus gestos, por isso enfrenta os
inimigos, falando, gritando, retrucando, dando tabicadas ou ameaçando utilizar o seu punhal.
(...)
Vitorino, podemos afirmar que ela é um instrumento de efetivação e proteção dos seus
princípios, bem como da sua honra. Em outros termos, é um elemento de justiça. Sendo
punhal não estava em seu poder? Os fragmentos acima corroboram com essa noção. Após ser
violentamente torturado pela polícia, Vitorino é liberado, por intermédio do coronel José
Paulino. A sova é tão grande que ele não resiste e desmaia. A primeira preocupação, quando
da recuperação de seus sentidos, remonta ao destino da sua arma. Mais adiante, ele insiste
nessa indagação ao passo que refuta a possibilidade de realizar o exame de corpo de delito. A
uma dádiva divina, a arma clarifica a relação com os deuses133. Para o caso do protagonista de
ligação com a divindade está rompida, destarte a arma só pode ser um presente de um ser
130
FM, pp. 387-389.
131
Op. cit., p. 414.
132
Como vimos, a tabica também é utilizada como meio de garantir a honra, restabelecendo a justiça.
133
Como exemplo, citamos o caso de Enéias. O herói troiano, na iminência de uma guerra com Turno, preocupa-
se com o fato de não estar devidamente preparado, pois se encontra sem suas armas (elas foram deixadas em
Cartago). Percebendo a sua preocupação, Vênus procura Vulcano, o deus artífice, com o desiderato de que este
forje novas armas para o fundador da nova Tróia – Roma. O trecho que se segue é um comentário do herói da
epopéia romana, que atesta a ascendência divina de suas armas: “(...) A deusa que me pôs no mundo me
anunciou que me enviaria este sinal através dos ares para me testemunhar sua ajuda, as armas de Vulcano ...”
(VERGÍLIO. Eneida. Trad. Tassilo Orpheu Spalding. São Paulo: Cultrix, 1999. p. 168).
64
humano. Mas, como o próprio Vitorino acentua, o punhal (assim como ele mesmo) tem uma
descendência de prestígio, pelo menos na sua concepção, provém de um velho doutor. No que
tange à integração herói-arma, não resta dúvida quanto à semelhança. Porém, neste tópico é
apropriado emendar que a luta experimentada pelo herói problemático tem um cunho
eminentemente pessoal.
“(...)Tenho um filho na Marinha, e tenho este punhal para furar barriga de cabra safado.134”
Os argumentos do capitão Vitorino são utilizados para ratificar a sua retidão em contraposição
à falta de escrúpulos do major Quinca Napoleão, que, de acordo com o capitão, apropria-se de
terras. Objetivando impor-se na contenda contra o major, Vitorino renega a lei, colocando no
mesmo plano o filho e o punhal. Assim sendo, apresenta ambos como suas armas. O orgulho
universo em que vive, isso representa uma segurança, um escudo contra a desfeita alheia135.
Edda Arzúa Ferreira136 atesta que capitão Vitorino é caracterizado por sua
134
FM, p.107.
135
Como ilustração desse pensamento, apresentamos as impressões de Adriana, esposa de Vitorino, ao
contemplar o estado de Vitorino, marcado pela violência, depois de sua segunda prisão: “(...) Uma dormência de
sono dominou a energia gasta [de Vitorino]. Se Luís estivesse ali, ninguém ousaria tocar no pai que era a
bondade em pessoa. Na porta parava gente para ver o capitão Vitorino. (...) O padre Severino chegou à janela e
chamou a mulher para conversar. Todos se mostravam consternados com o acontecido. A velha Adriana só
pensava no filho. Ele, que gostava tanto de ouvir nas gabolices, nas histórias de valentia, lá de longe nada
poderia fazer por ele, espancado, esmurrado como um cão sem dono” (FM, p. 389; grifo nosso).
136
FERREIRA, op. cit., p. 71.
65
Adriana, que ocorre após o último incidente daquele com a força policial. Fica patente,
quer voltar às andanças, às atividades políticas. O caráter ativo é delineado claramente pelo
“em sua meia-loucura generosa de perpétuo andarilho [...], uma espécie de D.Quixote
Lukács. Este, no seu ensaio sobre o idealismo abstrato, toma como referência, para configurar
bem como as considerações traçadas, vêm a confirmar a relação entre os heróis: capitão
137
FM, p. 400.
138
ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro. Rio de Janeiro:
Achiamé, 1981. p. 200.
66
texto:
Mestre José Amaro e do negro José Passarinho, presos e torturados pela polícia de forma
apenados. O juiz concede a soltura, e Vitorino comemora sua vitória pessoal e parcial, já que
em que os desmandos são comuns, sem temê-lo. Assim, lutando por justiça e, claro, pelos
amigos, comete uma aparente loucura, máxime quando o opositor é um dos homens mais
trazemos à tona a epifania vivenciada por capitão Vitorino, expressa no final do romance140.
Sentindo-se o dono do mundo, mesmo não possuindo nada (ou seja, bens e dinheiro), o
capitão edifica o mundo que deseja, espelho das suas aspirações. Ele se vê no dia do seu êxito
139
FM, p.381.
140
FM, p. 395 ss.
67
pleno, isto é, no momento em que passa a dirigir os destinos do seu município. O clima
festivo de sua posse seria embalado pela música, pelo discurso do dr. Samuel; haveria
também dança. “Era o chefe, era o mais homem da terra”, em sendo assim na sua
castigam o povo. A equipe de seu governo possuiria um perfil balizado pelos padrões éticos
que norteiam a sua conduta. Por exemplo, para delegado precisaria de um homem corajoso,
que não permitisse arruaça de tenente Maurício ou de qualquer outro indivíduo. Este homem
seria Augusto do Oiteiro (“rapaz enérgico, e merecia confiança”). Com a finalidade precípua
de deixar o Pilar “um brinco”, exigiria primordialmente de Quinca Napoleão uma prestação
gerir o dinheiro da municipalidade. “Chico Xavier era homem para isto”, independentemente
de ter mantido vínculo com José Paulino, pois o que importava “era correção, cumprimento
do dever”. Como tabelião escolheria o Rózeo de São Miguel – homem de família, de boa
letra, com estudos, no lugar de Manuel Viana – sujeito com língua de cobra. No que respeita
aos fiscais de feira, colocaria na cadeia a “súcia do Quinca Napoleão”. Os ricos não estariam
imunes ao pagamento de tributos. Muito pelo contrário, ele e os seus fiscais cobrariam com
rigor o dízimo de homens como José Paulino. Obras em benefício da população seriam
erguidas, realizadas. Com o novo chefe político do Pilar, não tinha a história dos grandes
mandando em pequenos; a lei seria cumprida, se preciso até com o uso do punhal. “Ele de
cima quebraria a goga dos parentes que pensavam que a vila fosse bagaceira de engenho.”
coisas, a comprar, a levantar, a destruir com as suas mãos trêmulas, com o seu coração puro”.
Senhor dos seus pensamentos, desconhecendo os limites de sua loucura libertadora e agindo
o teórico, já que evidenciam: a busca pelos valores autênticos (a efetivação da justiça: “Teria
que haver justiça para a causa que defendia” e “Duas horas depois, o delegado Medeiros
era procurado pelo oficial de Justiça com o alvará de soltura para os presos”); o caráter
paralelo, isto é, do cangaço), sem temer retaliação, e ainda com direito à comemoração –
herói capitão Vitorino, um dos protagonistas de Fogo morto, de José Lins do Rego, viabiliza
Dom Quixote, haja vista que este é o parâmetro da tipologia lukacsiana. Na base dessa
confundindo assim realidade e fantasia. Para efetivar o seu ideal, assume a condição de
armadura e nas armas. Complementando essa imagem destoante, apontamos a sua montaria e
o nome que incorpora. Os ecos de tal configuração redundam em gestos e discursos também
dissonantes, já que são robustecidos pelas reminiscências dos heróis que povoam o universo
em um ideal grandioso. Dom Quixote abraça a sua causa (pelo menos em sua ótica,
e seres encantados são inverossímeis, isto é, não reúnem condições de existência na realidade
efetiva da Mancha, região das mais pobres e secas da Espanha. Os obstáculos que espera
70
encontrar, a fim de mostrar o seu valor, não estão a sua altura. Então se depara com um
quadro impróprio para sua empreitada. A batalha intrépida contra inimigos grandiosos e a
correção de injustiças têm que se submeter à reformulação de sua mente, para que possam
acontecer. Como cavaleiro do irrealismo, erige seu mundo. Desse modo, a alma estreita,
incapaz de apreender os fatos como ocorrem, por conta da inflexível mentalidade voltada para
a concretização do ideal, e, por extensão, inapta para aprender com a experiência concreta,
gera situações inusitadas. Daí a ação resultante, apesar de pautada em princípios elevados,
aventuras.
personagem de José Lins do Rego: capitão Vitorino. Antonio Candido afirma que o capitão
encontramos José Maurício Gomes de Almeida, que, como já vimos, concebe o herói de Fogo
morto como uma espécie de Dom Quixote sertanejo. Outrossim, Eduardo F. Coutinho
vislumbra Vitorino como um personagem quixotesco. A exemplo dos críticos acima citados,
vínculo existente ente capitão Vitorino e Dom Quixote. Visando preencher esta lacuna,
concreção de sua inadaptação ao meio em que vive, imprime ações e se envolve em aventuras
141
“Disse o Sr. Èdison Carneiro que ele é um “D. Quixote rural”. Com efeito o capitão é uma perfeita
transposição do herói de Cervantes” (CANDIDO, Antonio. Um romancista em decadência. In: COUTINHO,
Eduardo; CASTRO, Ângela Bezerra (org.). José Lins do Rego. Rio de Janeiro; João Pessoa: Civilização
Brasileira; FUNESC,1991. (Col. Fortuna Crítica). p. 395.
71
que expressam o seu inconformismo contra a opressão exercida pelos poderosos. Embora
(chamando-a de vaca velha), e considera que o negro é inferior (e. g. o tratamento que
todos que são oprimidos, mas que estão presos às amarras quer seja por conta do medo, quer
seja pela completa asfixia em que vivem, o que impede o protesto, a revolta, deixando-os
indefesos e praticamente sem opção e imóveis, assim resignando-se ou torcendo para que
alguém se lance contra o sistema. Capitão Vitorino, movido pela obsessão democrática e
convicto de que a mudança é possível, entra em rota de colisão com a realidade através da
dos necessitados.
do seu cosmos, mais precisamente pela situação de opressão infligida aos indivíduos, com a
denúncia por intermédio de bravatas, de gritos, enfim, da sua ação, transmuta a opinião dos
engenho. Evidentemente, a atmosfera sustida pelo herói filtra o olhar alheio, não sofrendo
abalo. A zombaria feita por crianças e adultos (“Vitorino cabalava por toda parte. Pelos
Vitorino, pela denominação de Papa-Rabo, por exemplo, constitui-se em uma prova disso:
142
Em conversa com o mestre Amaro, Vitorino fica sabendo que o negro Passarinho está morando com o seu
compadre e emite o seguinte juízo de valor: “– Como é que se tem um negro deste dentro de casa, meu
compadre? É mesmo que morar com um porco” (FM , p. 310).
72
que se confirma na passagem transcrita acima e perpassa a narrativa de José Lins, destacamos
ocasião em que Dom Quixote envolve-se em mais uma desventura, pensando em libertar uma
dama principal, vai ao encontro de alguns penitentes que rogam para a providência divina o
envio de chuvas. Vale salientar que a dama enxergada é de fato uma imagem da Virgem
conexão entre a sua idéia e a exterioridade. O julgamento das pessoas é expresso com o riso,
com a galhofa. Dom Quixote frente ao achincalhe inflama-se e parte para o confronto. No
143
FM, p. 72.
73
que Vitorino sofre dentro do seu contexto algo parecido: na tentativa de responder à chacota,
A brincadeira das crianças explicita ainda mais a figura ridícula do herói e seu
famoso Dom Quixote de la Mancha, não o apócrifo, a Barcelona, temos este espetáculo da sua
degradação.
candidatura do coronel Rego Barros, homem que não está no poder, logo, situado na esfera da
A interpretação, e. g. para a chacota dos moleques, dada pela mente do capitão, está fincada
justamente na tese de perseguição política. Como sabemos, é mais uma posição utópica:
144
DQ, p. 626.
74
correr atrás do moleque que o chama de Papa-Rabo. Neste episódio do desaforo do moleque e
argumentação diante da contundência fática. O mestre José Amaro emite um parecer bastante
significação político-eleitoral: Vitorino é motivo de gozação pelo seu aspecto ridículo e não
aceita a afronta originada seja de quem for. Em resposta ao desaforo, corre alucinado no
encalço do algoz. Todavia, depara-se com um obstáculo (as raízes da pitombeira) e vem a
tombar. A insistência do cavaleiro do Pilar na argumentação política, por seu turno, está
consoante com as suas convicções. Os fatos ganham os contornos que seu deslumbramento
demoníaco pincelam.
pelo seu posicionamento político, ou seja, como opositor e crítico dos atuais mandatários do
Pilar e da Paraíba, que chega no limiar do delírio, tem seu ápice na prisão por desacato à
prisioneiro. Tal fato repercute na imprensa e o capitão faz publicar a sua versão do incidente.
A fama alcançada com a matéria jornalística potencializa a sua ação e militância em terras da
Várzea.
145
FM, p. 72.
75
seres encantados que obstaculizam a ação de Dom Quixote: os nigromantes. São a eles que o
Cavaleiro dos Leões imputa a responsabilidade pelo sumiço da sua biblioteca, por exemplo.
exercida pelos coronéis (e, por conseguinte, na posse de terras e bens), a brutalidade do
Silvino, são uma prova inquestionável da ruptura que o cavaleiro do Pilar maquina, escudada
mercantis atrasadas face ao avanço de uma nova ordem capitalista, calcada na emergência dos
peleja são gigantes, dotados de poderes temporais, e contra os quais não sente qualquer medo.
A sua figura avulta diante do oponente. Entretanto, da mesma maneira que Dom Quixote
enfrenta, verbi gratia, os moinhos de vento, tomando-os por gigantes, em batalha desigual,
não logra êxito pleno, porquanto atinge unicamente o mundo reformulado e não o cerne do
mundo exterior.
recordar, nele Dom Quixote tenta convencer o patrão a suspender a sova que aplica em seu
empregado. Fazendo-o jurar com base nos valores em que acredita, Dom Quixote imagina ter
146
Cf. COUTINHO, Eduardo F. A relação arte/realidade em Fogo Morto. In: COUTINHO, Eduardo; CASTRO,
Ângela Bezerra (org.). José Lins do Rego. Rio de Janeiro; João Pessoa: Civilização Brasileira; FUNESC,1991.
(Col. Fortuna Crítica). p. 432.
147
Cf. FERREIRA, op. cit., p. 85.
76
resolvido o imbróglio. Porém, o homem rico, logo que o cavaleiro satisfeito com o papel
desempenhado deixa a cena do açoite, descumpre a promessa e castiga com mais furor o
cabreiro.
junto ao coronel Lula de Holanda, objetivando garantir a permanência do compadre nas terras
do Santa Fé. A defesa do causídico apenas tem sucesso em sua idéia: o sustentáculo da
concepção que possuem confronta-se com a estabelecida. Os dois heróis lutam pela libertação
galeotes). Na sua ótica tais desditados são levados contra a vontade, portanto, estão sendo
compelidos a tanto, o que constitui uma violência. Ante tal situação de opressão, o Cavaleiro
dos Leões exige a liberdade para os acorrentados. Como não é ouvido e, ainda por cima,
vilipendiado, arremete contra os dos guardas do rei, gerando uma confusão que redunda com
Por sua vez, Vitorino depara-se com a prisão de seu compadre, mestre José
requerimento que faz ao juiz através de uma ordem de habeas-corpus, com a finalidade de
reverter a arbitrariedade impingida aos três homens: “E na sala do juiz, com a sua letra
trêmula, devagar, parando de quando em vez, como se estivesse numa caminhada de léguas,
escrevia o capitão Vitorino as palavras que pediam liberdade para os pobres”148. O meio para
148
FM, p. 379.
77
a efetivação da justiça, usado pelo defensor dos oprimidos, revela-se estéril. Vitorino acaba
também na cadeia. Apenas sendo solto mais tarde (bastante ferido), juntamente com os seus
Para a concreção de tal sentimento são capazes de desafiar a razão, conflitando-se com o
poder de polícia. Os remédios jurídicos (a força, para o primeiro, e a petição, para o segundo)
própria justiça. As conseqüências dessa ação libertadora são muito próximas. Dom Quixote
só não chega a ser preso, o que ocorre graças à intercessão do cura que convence a Santa
como decepcionante. De tal aventura, Quixote sai ultrajado, apedrejado e roubado por aqueles
149
“É, pois, o caso, que os quadrilheiros sossegaram, por ter entreouvido a qualidade dos que com eles se tinham
batido, e retiraram-se da pendência, por lhes parecer que sempre haviam de levar o pior na batalha; mas um
deles, que fora desancado e pisado aos pés por Dom Fernando, lembrou-se de súbito de que entre alguns
mandados que trazia para prender alguns delinqüentes, vinha um contra Dom Quixote, que a Santa Irmandade
mandara prender pela liberdade que dera aos galeotes, e como Sancho, com muita razão, temera. Lembrando-se,
pois, disto, quis certificar-se e diziam bem com as feições de Dom Quixote os sinais que lhe tinham dado, e,
tirando do seio um pergaminho, sucedeu ser esse logo o que procurava, e pondo-se a lê-lo com todo o vagar (...),
a cada palavra que lia punha os olhos em Dom Quixote, e ia cotejando os sinais com as feições do seu rosto, e
viu que sem dúvida alguma era a ele que o mandado se referia. E, apenas se certificou, dobrou logo o
pergaminho, e, pondo o mandado na mão esquerda, com a mão direita agarrou a Dom Quixote pelo pescoço, que
nem o deixava respirar, e com grandes brados dizia:
– Auxílio à Santa Irmandade, e, para que se veja que deveras e com razão o peço, leia-se este pergaminho onde
se ordena que se prenda este salteador de estradas” (DQ, p. 305).
150
DQ, p. 141.
78
que ajudara a libertar. Malgrado o (in)sucesso dessa ação, Dom Quixote coloca-se de
de mostrar a sua coragem, recebe o reconhecimento e o agradecimento dos pobres pela defesa
feita. Por isso: “Ninguém no mundo poderia com ele151”. “Que lhe importava a violência do
tenente Maurício? O que valia era a petição que, com a sua letra, com a sua assinatura, botara
para a rua três homens inocentes152”. Cumpre ressaltar que o êxito do “advogado” carece
máximo o que conseguem são uma falsa sensação de triunfo, o que diversamente ocorre na
epopéia153. Nela, os heróis são guiados para a vitória, tendo em vista a proteção e a ampliação
de forças que lhes são dadas pelas divindades. Sem esse amparo, aqueles ficam indefesos e
distância, impulsionada pela ausência de problemática interna. Sem contar que a inexistência
do apoio dos deuses deixa-o em desvantagem diante dos óbices que se lhes apresentam.
Desamparado e irrefletidamente agindo, sem ter a noção precisa de sua inferioridade (diante
herói extático torna mais estreito o mundo do que é realmente. Daí as contendas inutilmente
aludimos ao episódio dos odres de vinho. Em tal oportunidade, Dom Quixote encontra-se em
151
FM, p. 393.
152
FM, pp. 395-6.
153
Cf. LUKÁCS, op. cit., p. 100.
79
odres de vinho tinto com sua espada). Assim, devolve a paz para a Princesa Micomicona155,
dos tribunais, em que utiliza o habeas-corpus. A ilusão do triunfo do cavaleiro da justiça está
na idéia de que o uso desse instrumento, pelos trâmites legais, é um meio eficaz para a
para os heróis (no caso do romance de Cervantes, inclui-se aí, por vezes, Sancho Pança, o
escudeiro), o que denota a sua falta de representatividade. Em face disso, as aventuras eleitas
representante do povo e sua comunidade. Elas têm que ser escolhidas (ou forjadas) pelo anti-
herói, afinal a sua vida “só pode ser o mesmo que fazer frente a aventuras156”.
típica da alma aventureira. Então, no primeiro sinal de inércia, o herói agita-se, almejando
fazemos menção ao desgaste da saúde de Dom Quixote antes de sua última saída, de acordo
154
DQ, p. 237.
155
Trata-se de Dorotéia, que assume tal papel para tirar Dom Quixote da Serra Morena, local onde o cavaleiro
está realizando uma penitência, nos mesmos moldes de Amadis de Gaula. O artifício do cura e do barbeiro,
amigos do fidalgo, tem como fim fazer com que o ensandecido retorne para a sua casa.
156
LUKÁCS, op. cit., p. 102.
80
com a avaliação de sua ama: “o triste do homem vinha de tal maneira, que não o conheceria a
mãe que o pariu: fraco, amarelo, com os olhos encovados nas profundas da cara”157. A
despeito dessa situação, o herói mantém a vontade de ganhar o mundo. A insistência em sair,
aventurar. Em Fogo morto, lembramos a situação de Vitorino, após a segunda prisão. O vigor
dado pela monomania impressiona, pois ainda em convalescença afirma: “– Minha velha,
amanhã tenho que ganhar os campos. Não sou marica para ficar dentro de casa. As eleições
designação de Dom Quixote aventada pela crítica em relação ao capitão Vitorino. Dom
Quixote, como sabemos, tem em comum com o capitão Vitorino a inadequação com as
espera reimplantar a Idade de Ouro159, enquanto que o segundo possui um projeto político
para Pilar, em que não haveria “tolerância para com sujeitos safados, que só queriam comer
no cocho da municipalidade”, “não haveria ladrões, fiscais de feira roubando o povo”, “Tudo
andaria na correta, na decência”, “não haveria tenente Maurício que fizesse arruaça”, “Todos
pagariam impostos”, “a vila do Pilar teria calçamento, cemitério novo, jardim, tudo que
Itabaiana tinha com o novo prefeito”160. Para Vitorino, a oligarquia cederia lugar à
elmo. O capacete que o cavaleiro aspira é uma reluzente bacia de barbeiro. Todavia, ele
acredita ser o famoso elmo dourado, que pertenceu ao rei mulçumano chamado Mambrino.
Este o utilizou em lides importantes, até perdê-lo para o seu algoz. O elmo consiste em um
157
DQ, p. 378.
158
FM, p. 400.
159
Tal período corresponde ao que concebemos atualmente como Idade Média.
160
FM, pp. 397-8.
81
prêmio conquistado pela vitória na lide. A antecedência grandiosa do elmo inflama a vontade
gramofone: “A casa de Vitorino criara vida nova. O filho trouxera muitas novidades. Um
gramofone tirava dobrados, valsas, cantorias. Vinha gente de longe para ouvir a máquina
162
se esgoelando na paz do sítio” (grifo nosso). O presente do filho é um reflexo da
dissonância do próprio capitão na realidade atrasada em que vive. É interessante perceber que
tópico importante diz respeito à identificação de Vitorino com a máquina: ambos emitem um
aniquilamento dos outros protagonistas (afinal o mestre José Amaro suicida-se e o coronel
Lula de Holanda simbolicamente está de fogo morto, assim como o Santa Fé, engenho de sua
seja, a morte.
se, pois na essência os heróis cumprem o seu destino, sendo fiéis aos princípios que norteiam
suas vidas. Por isso, o Capitão Vitorino, ao construir o mundo através das projeções da sua
mente, age conforme a sua idéia fixa. Por seu turno, Dom Quixote, com a sua morte, procede
161
Cf. VIDAL, César. Enciclopedia del Quijote. Planeta, 1999. p. 347.
162
FM, p. 340.
163
“A tarde bonita, de vento brando, de cajazeiras cheirosas, cobria a casa do capitão Vitorino de uma paz de
remanso. O gramofone na sala, com os meninos em redor, cantava com voz estridente” (FM, p. 350).
82
de acordo com os ditames do seu ideal cavalheiresco, já que, impedido de pegar em armas,
grandes, o que se explica pela magnitude da elaboração estética que encontramos nelas. Por
isso a investigação que desenvolvemos não tenciona esgotar o assunto. Não obstante,
procuramos eleger algumas situações, cenas e aspectos que fossem os mais significativos. Daí
a nossa leitura ser apenas a semente de um outro trabalho que pretendemos desenvolver no
futuro.
divindades, o que denota a coincidência entre a vida e essência. As ações de tal ser
entanto, a ação do herói tenciona romper com a essência, numa tentativa de mudar o destino.
No que concerne ao romance, o mundo já não está mais povoado por deuses. O
que caracteriza essa forma é precisamente a ruptura entre o herói e o mundo, que, diga-se de
totalidade implícita e, por conseguinte, inalcançável, o ser entra em conflito com o mundo,
A relação de hostilidade mútua entre as naturezas é o cerne das tensões do herói romanesco,
gradual desmitificação, o que reduz a esfera e o reflexo da sua ação no mundo. Como
herói com o mundo. Assim, ele distingue três espécies do romance ocidental até o século
XIX: o idealismo abstrato, no qual o herói age continuamente e pouco reflete (estreitamento
sentimental), em que a há uma inversão em relação ao anterior – o herói pensa mais do que
age; e o romance de educação (ou da maturidade viril), em que a ação e a reflexão estão em
estrutura.
Notamos que a caracterização feita por Georg Lukács do idealismo abstrato aplica-se
romances que a compõem do século XVII ao XIX) é passível de revisão, porquanto o seu
85
estudo permite uma possibilidade de análise para além desse período. Destarte, faz-se viável a
aplicação das categorias lukacsianas de personagem em muitos textos desse último século. É
encolhida não reflete, o que gera uma contínua atividade. As suas ações, reforçadas pelas suas
Entretanto, corajosamente enfrenta os obstáculos criados, pois a idéia fixa funciona como uma
perseguição dos inimigos (encantados ou sólidos), lutando para efetivar o seu projeto. A
loucura, que tem como inspiração, quer seja elementos do passado e/ou do futuro, faz com
que o herói recrie o seu mundo, impulsionando-o ainda mais a chocar-se com a exterioridade.
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