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RAZÃO E EMOÇÃO
Ensaios em Ética Normativa, Metaética e Ética Aplicada.
Santa Maria
FACOS-UFSM
2016
RAZÃO E EMOÇÃO: ensaios em ética normativa, metaética e ética aplicada
Razão e Emoção:
Ensaios em Ética Normativa,
Metaética e Ética Aplicada.
Santa Maria
FACOS-UFSM
2016
ISBN: 978-85-8384-033-6
FICHA TÉCNICA
APRESENTAÇÃO................................................................................................ 09
Flavio Williges,
Prof. do Departamento de Filosofia da UFSM e
Organizador do V Colóquio de Ética e Ética Aplicada
Referências
Flavio Williges
(UFSM)
1 Introdução
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Flavio Williges & Frank Thomas Sautter
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Nancy Sherman apresenta ainda outros aspectos mais sutis em que as emoções contribuem para a
moralidade. Ela menciona Aristóteles na discussão de ações hediondas e a tonalidade afetiva que deve
acompanhar nossas ações em diferentes casos (1993, p. 152 e ss).
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4 As emoções na modernidade
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Embora, sempre é bom destacar, Hume reconheça uma função especial para a razão na moralidade,
afirmando que as duas (razão e paixão) são “complementares e inseparáveis” (T 3.2.2).
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tem de consultar a moralidade antes de salvar a sua esposa, se ele tem que se perguntar primeiro se ele
é obrigado ou autorizado a dar preferência a sua esposa, então, de acordo com Williams, ele tem que
“pensar demais”. Do ponto de vista ético, há algo estranho com esse marido; consideraríamos mais
apropriado um marido fazer alguma coisa imediatamente para salvar a sua esposa por amor, ao invés
de salvar o estranho. Os kantianos não têm um modo de acomodar esta conclusão ou esta intuição,
e essa é uma das razões pelas quais os sentimentalistas morais (e especialmente os adeptos da ética
do cuidado), consideram o racionalismo kantiano pouco atraente e inaceitável como uma funda-
mentação da (boa) motivação moral. A amorosidade (por parte dos agentes morais) desempenha um
importante papel moral que os kantianos não conseguem ou não podem admitir[...]”.Para uma defesa
rica da emoções na ética kantiana, ver Sherman (1993).
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Aqui, como noutras partes, Schopenhauer parece estar aceitando uma máxima de análise geral de
orientação que consiste em admitir que a filosofia deve repousar num tipo de relação empírica ou
vivida com a realidade: “Assim como a arte e a poesia, ela [a filosofia] tem que ter a sua fonte na
apreensão intuitiva do mundo. E embora a cabeça deva ficar em cima, não se deve proceder na filo-
sofia com tanto sangue frio, de tal modo que no final o homem todo, com o coração e a cabeça, não
viesse à ação e não fosse inteiramente abalado. Filosofia não é nenhum exemplo de álgebra. Por isso
disse Vauvenargues: “les grandes pensées viennent du coeur”. (Schopenhauer. 2010, §9).
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Scheler foi influenciado por Brentano em sua abordagem moral. Brentano sustentou que, enquanto
o verdadeiro e o falso são regulados pela via racional, o bom e o mau são estabelecidos mediante uma
via emocional.
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cional feita por Price (2015). Suponha que você tenha falado uma tremen-
da bobagem na frente de um grande grupo de pessoas. Você está coberto
de vergonha, se sente suando e corando. A atenção está fixa na sua gafe:
pensamentos embaraçosos pululam por sua mente. Você pode lembrar de
outros momentos que passou vergonha. Talvez você pense no que o pú-
blico está pensando e quase certamente você está querendo ir embora.
Uma resposta emocional não é, como se pode deduzir do exemplo, um
sentimento de certo tipo, mas uma experiência complexa. Na formulação
de Price, “ela envolve pensar, querer, lembrar e imaginar; pode envolver
mudanças em seu corpo e comportamento”. (Price, 2015, p. 5%). Além da
complexidade própria das emoções, parte das dificuldades impostas às
teorias gerais das emoções deriva da variação interna existente entre tipos
diferentes de emoções. Há geralmente três classes de emoções: emoções
morais (indignação, culpa, ressentimento), intelectuais (interesse, surpre-
sa) e pessoais (alegria, tristeza, alívio). Emoções também tem diferentes
formas e tamanhos. Existem reações que são momentâneas (o medo de
uma cobra), episódios emocionais profundos (vergonha ou medo) e atitu-
des emocionais duradouras. Em cada um desses casos, as respostas emo-
cionais são diferentes e geradoras de embaraços em teorias pouco per-
meáveis às particularidades. Um exemplo instrutivo do tipo de problema
envolvendo abordagens redutivistas pode ser encontrado nas críticas que
Stocker lançou a abordagem do ciúme de Jerome Neu. Neu sustenta que
o ciúme não é uma sensação, uma dor de cabeça; é, em essência, um con-
junto de pensamentos e questões, dúvidas e medos” (Neu apud Stocker,
2002, p. 71). Esse tipo de abordagem, segundo Stocker, erra precisamente
por descartar o afeto (2002, p. 71). Podemos fazer o julgamento “fui traído”
ou a pergunta “fui traído?, mas nos importarmos ou estarmos preocupados
com a traição, pois não amamos ou não nos importamos com o objeto do
ciúme, mas somos ciosos de nossa auto-imagem, por orgulho ou vaidade.
Reduzir o ciúme a um conjunto de juízos ou questões falha justamente por
não capturar aspectos afetivos que fazem essa emoção diferir do orgulho,
da vaidade e de outros estados mentais.
Com respeito ao segundo ponto, da contribuição das emoções para a
moralidade, é importante indicar que, apesar de muitos teóricos racionalis-
tas considerarem ainda hoje as emoções ameaças à moralidade, as tendên-
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regras e deveres que são impostos aos agentes, mas a partir do modo
como respondemos ao sofrimento e as necessidades dos outros. O de-
senvolvimento dessa abordagem abrangente de Slote, em especial, tem
como ponto de apoio as pesquisas em psicologia moral desenvolvidas
por Martin Hoffmann e resultou num sentimentalismo que toma uma
emoção pró-social da empatia como núcleo fundamental de análise. Para
finalizar essa introdução ao sentimentalismo, analisaremos as emoções
particulares da empatia e do amor, enfatizando seu papel na moralidade.
A consideração do fenômeno da empatia como a base não só da
ação moral, mas também do entendimento do que fazemos quando fa-
zemos juízos morais é o elemento, por assim dizer, central no sentimen-
talismo de Slote e Hoffmann. Em vista disso, uma importante versão
do sentimentalismo contemporâneo tem se articulado em torno de duas
perguntas: o que é e como funciona a empatia?
Os desdobramentos da resposta dessas duas perguntas estão lon-
ge de serem triviais. Com efeito, existem argumentos contundentes que
procuram mostrar que diferentes espécies de empatia são responsáveis
pelo desenvolvimento de motivação genuinamente altruísta, voltada
para o cuidado e a justiça. Além da empatia, outras emoções que desem-
penham papel de disparadores de comportamentos morais (altruístas)
também têm chamado a atenção, especialmente as chamadas emoções
positivas (alegria, contentamento), emoções de satisfação e bem-estar in-
terior (felicidade), o amor e a compaixão.
A empatia tem sido estudada como parte da psicologia do compor-
tamento moral. A psicologia moral reforçada pelos estudos da empatia
não é aquela que vê o comportamento moral a partir de uma teoria da
vontade racional, mas como uma teoria moral que toma como base fun-
damental os mecanismos emocionais que atuam no comportamento mo-
ral efetivo. As pesquisas em torno da empatia revelam que pessoas com
preocupações morais deixam-se guiar por estímulos vinculados à aflição
empática pelo sofrimento dos outros e por seu cuidado. Se admitirmos,
portanto, uma conversão no foco de atenção na moralidade buscando
compreender o que impele as pessoas a deixarem de fazer algo que que-
rem fazer, simplesmente por causar sofrimento a alguém ou o que faz
as pessoas se sentirem mal consigo mesmas quando percebem que suas
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mas oferecem uma indicação instrutiva, quer nos parecer, dos horizontes
de investigação que começam a ser trilhados e que revelam com clareza à
importância das emoções na vida humana e, em particular, na moralidade.
6 Referências
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Parte I
Ética Normativa
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Hume e Hutcheson:
a “dissecção” filosófica do senso moral
Lisa Broussois
UFMG / Université de Lausanne
1 Introdução
1
Uma folha de figo. Jean-Pierre Cléro explica : « que, déjà chez Hume, dès le livre III du Traité de la
nature humaine, la notion ne soit plus qu’une fig-leaf recouvrant des processus qui n’ont rien à voir
avec la façon dont on imagine les vivre. » (“que, já em Hume, desde o livro III do Tratado da natureza
humana, a noção não seja mais do que uma fig-leaf recobrindo processos que nada têm a ver com o
modo como imaginamos vivê-los.”) (CLERO, J-P. Le sens moral chez Hume, Smith et Bentham. In:
JAFFRO, L. (coord.). Le sens moral Une histoire de la philosophie morale de Locke à Kant. Paris : PUF,
2000, tradução minha).
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2 Retrospectiva
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3 O anatomista
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único objetivo servir à pintura: uma anatomia bem laborada teria como
consequência, entre outros, servir a pintura. Não queremos embarcar
na polêmica e defender uma interpretação em particular, mas somente
refletir sobre como o senso moral foi usado para marcar, ainda mais, essa
distinção entre anatomista e pintor. Com efeito, o senso moral é um con-
ceito comum à filosofia de Hutcheson e à filosofia de Hume no Tratado.
Não obstante, Hume deixa claro que não pretende seguir o caminho de
Hutcheson, posto que Hume faz essa distinção entre o anatomista e o
pintor. Na carta a Hutcheson, Hume se posiciona como anatomista. No
Tratado, pode-se defender que foi também o caso: Hume quer ser anato-
mista e Hutcheson passa a ser, assim, um exemplo de pintor. A alusão à
comparação do anatomista e do pintor na conclusão do Tratado (HUME,
D., 2007, p. 660) faz, claramente, referência à correspondência entre os
dois filósofos e mostra, mais uma vez, um Hume que busca descobrir os
princípios e segredos da mente, a qualquer preço.
Nada obstante, é possível conjecturar que anatomia e pintura
foram duas formas de filosofia humeana. Isso ocorre, unicamente, se
consideramos essas duas formas de maneira separada: Hume pode ser
anatomista numa obra e pintor em outra. O pintor e o anatomista não
coabitam na mesma obra, pois as visões são dificilmente conciliáveis. No
Tratado, como Hume opta por ser um anatomista, torna-se para ele na-
tural deixar o papel do pintor para outrem. No caso da análise do senso
moral, é evidente que Hutcheson se torna o pintor.
Hume quer cortar a “pele” do senso moral para revelar o que está es-
condido por detrás. Ele almeja examinar o mecanismo interno do funciona-
mento da mente humana e do seu senso da moralidade. O risco é exibir a
verdade de maneira menos graciosa e atraente. Sem embargo, o senso moral
não pode ficar como uma “qualidade oculta”, segundo as próprias palavras
de Hutcheson na sua Investigação sobre a origem de nossas ideias da beleza e da
virtude em dois tratados, II, 7 (HUTCHESON, F., 2008, p. 179). Ademais, o
fato de se descobrir os princípios da virtude pode também servir, de certo
modo, à própria causa da virtude: mostrar que somente há boas coisas na
origem da virtude é recomendável para se defender a virtude.
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4
Uma dessas figuras (Mondino de Liuzzi) disponível em: <http://old.enciclopedia.com.pt/images/
medicowwwww.jpg>. Acesso em: 28 de julho de 2012.
5
“There is no part of philosophy of more importance, than a just knowledge of human nature, and its var-
ious powers and dispositions. […] We generally acknowledge, that the importance of any truth is nothing
else than its moment, or efficacy to make men happy, or to give them the greatest and most lasting pleasure;
and wisdom denotes only a capacity of pursuing this end by the best means.”
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“Moral distinctions deriv’d from a moral sense”. Todas as citações seguintes de Hume em inglês
provem da edição Norton & Norton (HUME, D., 2007).
7
It has been observ’d, that nothing is ever present to the mind but its perceptions; and that all the ac-
tions of seeing, hearing, judging, loving, hating, and thinking, fall under this denomination. The mind
can never exert itself in any action, which we may not comprehend under the term of perception; and
consequently that term is no less applicable to those judgments, by which we distinguish moral good
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Contudo, o senso moral pode ser dissecado até que possamos che-
gar à origem de seu funcionamento. O senso moral de Hutcheson impli-
ca numa percepção involuntária e imediata: tão rápida que não nos dá
tempo para pensar no momento da percepção. Para Hume, essa rapidez,
esse caráter imediato e involuntário, não significam a ausência de um
mecanismo artificial de elaboração por detrás. Pode provir da própria
tendência do ser humano a incorporar seus modos de reação e de ação
através do hábito. O ser humano é suscetível de criar reflexos para pen-
sar e agir de maneira imediata. A questão não é de se afirmar que o senso
moral não seja algo natural. Sobretudo porque o artificial e o natural
nem sempre se excluem na filosofia de Hume. Hume busca simplesmente
entender como o senso moral funciona: quais são seus princípios. A dis-
secção do senso moral acaba por produzir, ao final, um novo conceito: a
and evil, than to every other operation of the mind. To approve of one character, to condemn another,
are only so many different perceptions.”.
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“Morals excite passions, and produce or prevent actions. Reason of itself is utterly impotent in this
particular. The rules of morality, therefore, are not conclusions of our reason.”
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outros é ainda mais forte. Interpreto as ações de uma pessoa como indi-
cações que me fazem entender que o outro está sentindo prazer ou dor.
Dependendo do contexto, uma pessoa chorando pode fazer-me pensar
que está sofrendo. A partir de sinais, chegamos a imaginar ou reflexionar
sobre as emoções de outrem de maneira viva, por força de nossas rela-
ções com cada ser humano. Perceber os efeitos de uma paixão me con-
duz à causa: a paixão mesma. A ideia da paixão é tão viva que se torna
uma impressão. Estendida por regras gerais, segundo Hume, a simpatia
se torna um senso moral a partir do momento que seu mecanismo seja
acobertado. O senso moral é imediato e involuntário devido à força do
hábito. O hábito, por exemplo, de se interpretar os sinais das paixões, o
hábito de se adotar um ponto de vista desinteressado e imparcial, dei-
xam o mecanismo mais rápido e inconsciente na prática. O senso moral
é constituído como o reflexo de um mecanismo integrado, que é um
mecanismo de simpatia corrigida por regras gerais.
6 Conclusão
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Referências
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1 Introdução
por ter sido ele educado por Locke, de quem herda uma parcela do empi-
rismo e por manter, ao mesmo tempo, uma forte tendência neo-platônica, o
que o torna uma espécie de moralista neo-clássico. Não se trata, no entanto,
de inseri-lo no empirismo tal como este é hoje, em retrospectiva, entendido.
No final do século XVII (Shaftesbury nasce em 1671 e vive até 1713), o em-
pirismo está em plena formação e a relação com a metafísica estava presente
mesmo na fundamentação empirista de Newton. Havia uma combinação de
empirismo e princípios metafísicos em várias teorias. Assim como essa es-
tranha junção de neoplatonismo e empirismo depende do contexto histórico
para ser entendida, o que Shaftesbury dizia sobre o gosto e o desinteresse
não pode igualmente ser deslocado do contexto de sua teoria.
vidual, mas há, como dissemos, o interesse público que não é negativo; e,
além do interesse público e privado, há o verdadeiro desinteresse. Todos
os três são referidos à natureza e ao belo – ambos relacionados a uma
ordem na qual o eu se descobre.
Pelo exposto, podemos entender que não há, em geral, uma sepa-
ração entre estética e moral, ou do contrário poderíamos concluir que
se o interesse é uma categoria pertencente à moral, a estética deveria
ser igualmente interessada. Há diferenças que reforçam o aspecto moral,
como sentido interno que comporta a verdade da natureza e rege as ma-
nifestações externas do gosto e da expressão da beleza.
5
Dabney Townsend (“Lockean Aesthetics”, The Journal of Aesthetics and Art Criticism, 49:4 Fall
1991, p. 349) comenta a indiferença de Locke à questão da beleza ou das artes, mas diz ser impossível
não notar a contribuição de sua epistemologia para o surgimento da Estética, tanto em Shaftesbury,
seu aluno, quanto em Hutcheson.
Artigo 8. O único prazer sensível que alguns de nossos filósofos parecem
considerar é aquele vinculado às ideias simples de sensação. Mas há pra-
zeres muito maiores nas ideias complexas de objetos ditos harmoniosos,
belos ou regulares. Ninguém poderia negar que um lindo rosto ou um
quadro excelente são mais deleitosos do que uma cor qualquer, por mais
forte e viva que seja, ou que sente mais prazer ao ver o sol erguer-se entre
as nuvens, colorindo suas bordas como um halo luminoso, ou ao con-
templar uma bela paisagem ou um edifício regular, do que à vista do céu
azul claro, do mar sereno ou uma vasta planície deserta, sem bosques,
montanhas, rios ou edificações. Estes últimos não são tão simples quan-
to parecem. Igualmente na música, o prazer de uma bela composição é
incomparavelmente maior que o de uma nota isolada, por mais doce,
plena e ressonante que seja (HUTCHESON, 2011, p.152).
dade, ou semelhança entre elas’. Essas [ideias] são consideradas pelas per-
cepções do sentido interno” (HUTCHESON apud MICHAEL, 1884, p.243).
4 Conclusão
Esta questão encaminha nossa breve conclusão que nos remete à as-
sociação e separação entre moral e estética nos autores estudados. Se em
Shaftesbury há uma identidade objetiva entre o bom e o belo, em Hut-
cheson, há que se considerar a função da analogia entre os dois sentidos,
Referências PRIMÁRIAS
Referências secundárias
Felicidade e virtude:
o confronto crítico entre a ética aristotélica
e a filosofia prática kantiana
1 Introdução
1
O imperativo categórico pode ser definido como a forma segundo a qual a lei moral se apresenta
ao homem. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, ele está apresentado em diferentes for-
mulações. Enquanto princípio fundamental da moralidade ele é apresentado, pelo menos em três
formas, a saber, a fórmula da lei universal: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne lei universal” (FMC, BA 52). Logo depois, Kant afirma que esse mesmo
“imperativo universal” também pode ser expresso com as seguintes palavras: “Age como se máxima de
tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” (FMC, BA 52). Essa fórmula é
considerada como uma variante da primeira. Mais adiante, Kant apresenta a sua verdadeira fórmula, a
saber, a da humanidade: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa
de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (FMC, BA 66-
67). A terceira fórmula, a da autonomia, é expressa por Kant como “a idéia da vontade de todo o ser
racional concebida como vontade legisladora universal” (FMC, BA 70). No mesmo sentido, Kant tam-
bém apresenta a formulação referente ao suposto reino dos fins: “Age segundo máximas de um mem-
bro universalmente legislador em ordem a um reino dos fins somente possível” (FMC, BA 84). Essa
fórmula pode ser considerada uma variante da fórmula da autonomia (WOOD, 1999, p.p. 17-20).
não poderia ser desconsiderada; uma vez que, ser feliz é a tendência geral
de todo o ser humano (sensível e dotado de razão). Porém, também não
pode ser pensada como algo capaz de dar sentido ao agir moral.
3 Felicidade e Virtude
Sem sombra de dúvida esses dois conceitos estão entre aqueles que
mais se prestam ao objetivo de confrontar as concepções éticas de Aris-
tóteles e Kant. Não obstante, deve-se reconhecer “a dificuldade da tarefa,
dada a diferença de significação que esses dois conceitos assumem nas
duas concepções”. O sentido que os gregos usavam o conceito de areté
não tinha, em princípio, um significado ético, mas cobria um campo
semântico bastante amplo, indicando em geral qualidade, perfeição ou
excelência. O termo areté era válido tanto para o homem quanto aos
animais, assim como, para todas as coisas de um modo geral. Segue-se,
que é com Aristóteles, necessariamente, que o termo ganha “um sentido
especificamente ético ao referi-lo à práxis, ou seja, à ação propriamente
moral” (NOGUEIRA, 1993, p. 33). Em Aristóteles, a virtude ou excelên-
cia moral, no homem, consiste em uma disposição de caráter que o torna
bom, que “o leva a desempenhar bem a sua função” (EN II, 6, 1106a).
A partir de tal disposição, por princípio, que homem deve buscar guiar
seu agir e fazer tudo conforme a reta escolha, que nada mais é do que a
escolha mais correta. Ademais, em Aristóteles, a virtude é um dos ele-
mentos constitutivos da eudaimonia. Entre elas intercorre uma relação
de reciprocidade: uma não pode existir sem a outra (NOGUEIRA, 1993,
p. 34). De acordo com a visão grega, para Aristóteles a felicidade é o
ponto culminante da realização humana, ou seja, uma atividade da alma
conforme a melhor e mais perfeita virtude.
No decorrer da obra kantiana também é possível perceber uma
profunda análise referente à relação entre felicidade e virtude. No en-
tanto, “enquanto Aristóteles mantém uma estreita conexão entre os dois
conceitos, Kant os considera não só claramente distintos como até mes-
mo em manifesta contraposição” (NOGUEIRA, 1993, p. 35). A felicida-
de, segundo consta na Fundamentação da metafísica dos costumes, é um
mero ideal da imaginação, não é senão uma representação que consiste
2
A sabedoria prática ou discernimento, segundo a afirmação de Aristóteles, na Ética a Nicômacos,
“relaciona-se com as ações humanas e coisas acerca das quais é possível deliberar; de fato, dizemos
que deliberar bem é acima de tudo a função das pessoas de discernimento, mas ninguém delibera
a respeito de coisas invariáveis ou de coisas cuja finalidade não seja um bem que possamos atingir
mediante a ação” (EN VI, 7, 1141a).
5 CONCLUSÃO
Referências
1 Introdução
dever são aquelas que ocorrem sob a motivação da lei moral no sentido
de que não se pede necessariamente por uma exclusão da influência das
inclinações, a qual, com efeito, pode deter duas significações: primeira,
as inclinações podem coincidir com o mandamento da moralidade e,
portanto, ajudar a conceder valor moral à ação; segunda, a lei moral e as
inclinações atuam como “vetores de força”, em que ambas atuam como
conteúdo motivacional, diferenciando-se apenas relativamente ao vigor
ou valor de importância.
Da primeira, pode-se dizer que, ações movidas primordialmente
por inclinações podem vir a fundar atos conforme o dever, isto é, que
coincidam com o mandamento da moralidade. Ocorre, contudo, que o
autêntico valor moral não pede tão somente que as ações coincidam com
o dever, mas que sejam desejadas em vista do dever. Ademais, ações mo-
vidas primordialmente por inclinações que ocorrem conforme o dever
detém essa própria conformidade (que por si só não é genuinamente
moral) por um mero acaso. Allison justifica tal casualidade nos termos
de que “uma inclinação é pressuposta como uma condição sob a qual
um fim é desejável pelo agente; de maneira que separado da presença
da inclinação, o agente não teria razão para escolher o fim”5(ALLISON,
1996, p.162). Ademais (complementando o seu comentário) uma vez que
a inclinação é o móbil da ação, o que dela advém se impõe irresistivel-
mente “sem restrições de adesão”, de maneira que o contrário ao dever
seria assumido nos mesmos termos do conforme ao dever. Quer dizer,
sendo o foco a satisfação da inclinação, tudo o que advém no ato como
consequência dessa satisfação, tem um valor cujo caráter não foi preesta-
belecido ou desejado por si mesmo, mas apenas em vista da satisfação da
inclinação, de forma que a sua coincidência ou não com o mandamento
da moralidade, resulta em um mero acaso.
Essas ações, portanto, não detém valor moral, permanecendo a
premissa de que as ações por dever são aquelas ocorridas sob a influência
da lei, sem que se possa delinear ainda claramente qual a intrínseca rela-
ção entre lei moral e inclinações como princípios de motivação humana.
O que até então resta evidente é que as ações movidas pelas inclinações,
5
“an inclination is presupposed as a condition under which the end is desirable to the agent would
have no reason to choose the end”.
mesmo que coincidam com o dever, não são ações morais. O que não é
unânime no discurso kantiano é se ações por dever, isto é, motivadas
pela lei moral, também comportam (em algum grau) a influência das in-
clinações. Daí a nossa proposta de argumentação dos “vetores de força”,
retirada da seguinte passagem do escrito sobre a religião:
a diferença de se o homem é bom ou mau não tem que residir na diferen-
ça dos móbiles que ele acolhe na sua máxima (não na sua matéria), mas,
sim, na subordinação (forma da máxima): de qual dos dois móbiles ele
faz a condição do outro6 (KANT, Rel: AA VI: 36).
até então no discurso kantiano: não se fala mais, no sentido geral, em de-
ver ou inclinação como móbil para a conduta, mas em qual dessas duas
fontes de motivação é mais forte no ânimo humano. Sob esse prisma, a
declaração de que ação por dever é aquela que ocorre sob a influência
da lei da moralidade, é mais precisa quando dita nos seguintes termos:
a ação por dever é aquela em que ocorre sob a influência suprema da lei
da moralidade como móbil. Assumida nesses termos, a definição da ação
por dever mantém o substancial que é caro a Kant (a saber, a supremacia
da lei moral e da influência incondicional do dever) e simultaneamente
é destituída de qualquer ambiguidade quanto à atuação das inclinações
no processo de motivação moral. Em contrapartida, porém, esse tipo
de perspectiva de interpretação (que aqui denominamos livremente de
“vetores de força”) gera certo desconforto no que tange ao status ou valor
por Kant atribuído às inclinações.
homem. Tal ocorre porque ele reconhece que as inclinações são necessárias
para a existência de tais obstáculos e, às vezes, fala como se as próprias incli-
nações fossem inimigas da moralidade8(WOOD, 1970, pp.108-109)
Não cabe tão-somente afirmar que Kant mudou a sua visão acerca
das inclinações sem apontar uma justificativa para tanto e, na medida
em que a buscamos, se verifica que o mais sensato é dizer que, em vista
do contexto argumentativo, ele enfatizou pontos diferentes (não neces-
sariamente excludentes) no que tange a esses impulsos. Nas obras de
fundamentação da moralidade, Kant tinha como primordial preocupa-
8
Kant's does not always seem to be of one mind concerning to role played by inclination in the constitu-
tion of obstacles to man's moral perfection. Because he recognizes that inclinations are necessary for the
existence of such obstacles, he sometimes speaks as if inclinations themselves were the enemies of morality.
9
“Consideradas em si mesmas, as inclinações naturais são boas, isto é, não são condenáveis [un-
verwerflich], e querer exterminá-las [sie ausrotten] não só é inútil, mas seria também prejudicial e
censurável. É preciso somente dominá-las, para que não se destruam reciprocamente, mas possam
ser levadas à concordância num todo denominado felicidade” (KANT, Rel: AA VI 58). “Natürliche
Neigung sind, na sich selbst betrachtet, gut, d.i. unverwerflich, und es ist nicht allein vergleblich,
sondern es wäre auch schädlich und tadelhaft, sie ausrotten zu wollen; man muβ sie vielmehr nur
bezähnen, damit sie sich untereinander nicht selbst aufreiben, sondern zur Zusammenstimmung in
einem Ganzen, Glückseligkeit genannt, gebracht werden können”.
12
“die Freiheit der Willkür ist von der ganz eigenthümlichen Beschaffenheit, daβ sie durch keine Triebfeder zu
einer Handlung bestimmt werden kann, als nur sofern der Mensch sie in seine Maxime aufgenommen hat...”
13
Nosso poder de escolha, através de sua máxima, determina tanto o conteúdo dos nossos desejos
naturais (como se opondo às exigências da razão) ou a sua força motivacional como incentivos (quan-
do lhes damos prioridade subjetiva sobre os incentivos racionalmente mais fortes da moralidade)
(WOOD, 1999, p.285). Our power of choice, through its maxim, determines either the content of
our natural desires (as opposing the demands of reason) or their motivational strength as incentives
(when we give them subjective priority over the rationally stronger incentives of morality).
segunda parte do texto sobre a religião, Von dem Kampf des guten Princips
mit dem bösen um die Herrschaft über den Menschen (Da luta do princípio
bom com o mau pelo domínio sobre o homem), Kant, aliás menciona o
equívoco dos estóicos em situar a fonte do mal nas inclinações (equívoco
que ele considera não compartilhar), asseverando que as inclinações não
detém vinculo direto com o mal moral.
Mas aqueles homens honrados desconheceram o seu inimigo [Feind], o
qual não se deve ser procurado nas inclinações naturais, apenas indisci-
plinadas, as quais se apresentam francas e descobertas à consciência de
todos, mas é como que um inimigo invisível, que se oculta por detrás da
razão e é, portanto, mais perigoso14 (KANT, Rel: AA VI: 57).
Kant pretende chamar atenção para o fato de que o bem e o mal moral se
impõem a partir de um exercício do arbítrio e, portanto, a sua causa é interna
ao homem e não está fora dele. Mesmo que fosse externa, porém, careceria
de anuência ou aceitação, de modo que, em última instância, é no âmbito
do arbítrio que se impõe a qualificação moral do homem. As inclinações se
constituem apenas na matéria ou objeto que é erroneamente manipulada pelo
humano, de modo que quando se fala em reabilitação moral, não se trata de
lutar contra as inclinações (aliás, essa luta seria vã), mas em subordiná-las ou
dominá-las enquanto impulsos supremos vinculados ao agir moral. O princí-
pio norteador do progresso segundo esses pressupostos é aquele do domínio e
da disciplina da receptividade do homem perante os impulsos sensíveis.
16
Cf. KANT, KpV: AA V: 150-151.
17
“Tugend ist die Stärke der Maxime des Menschen in Befolgung seiner Plicht. - Alle Stärke wird nur
durch Hindernisse erkannt, die sie überwältigen kann; bei der Tugend aber sind diese die Naturnei-
gungen, welche mit dem sittlichen Vorsatz in Streit kommen können...”
charme ou beleza. Nesse sentido, ele se refere e cita Albrecht von Haller18:
um poeta filósofo [philosophischer Dichter] atribui ao homem, na medida
em que ele tem de combater em si uma propensão para o mal e, desde
que saiba dominá-la, um grau superior na escala moral dos seres em
relação aos próprios habitantes do céu, que, devido a santidade da sua
natureza, estão imunes a toda a tentação possível. (O mundo com todas
as suas deficiências é melhor do que o reino de anjos sem vontade. Hal-
ler)19 (KANT, Rel: AA VI: 64, nota).
18
Haller era suíço e nasceu em outubro de 1708, vindo a falecer em 1777. Dedicou-se a várias ativi-
dades, dentre elas a medicina, a botânica e a poesia. Aliás, no que tange as suas atividades de botânico,
é reconhecido como um dos cientistas mais importantes da história da Suíça, criador da fisiologia
experimental. Considerado um dos expoentes do Iluminismo, consagrou a sua fama em 1732 com a
obra Ensaio de poemas suíços e depois com Os alpes, tornando-se, nos 20 anos que se sucederam, um
dos poetas mais lidos na Alemanha. “Ele tratou o problema do mal no mundo menos facilmente do
que os contemporâneos otimistas. (...) Os Alpes não exaltava a beleza da natureza, mas antes a razoab-
ilidade, conveniência e ordenação dessa apresentação caótica do mundo da montanha [Bergwelt] (...).
Simultaneamente é colocada a compreensão da natureza e da vida moral pura do montanhês em con-
traposição ao urbano degenerado e desnaturado” (FRICKE, SCHREIBER, 1974, p.93). “Er vermochte
mit dem Problem des Übels in der Welt weniger leicht fertig zu werden als seine optimischeren Zeit-
genossen. (...)“Die Alpen nicht die Schönheit der Natur preist, sondern das Sinnvolle, Zweckmäβige
und Geordnete dieser zunächst chaotisch erscheinenden Bergwelt (...). Zugleich stellt es das naturna-
he und sittenreine Leben der Bergwohner städtischer Entartung und Unnatur gegenüber”.
19
“So legt ein philosophischer Dichter dem Menschen, so fern er einen Hang zum Bösen in sich zu
bekämpfen hat, selbst darum, wenn er ihn nur zu überwältigen weiß, einen höhern Rang auf der mor-
alischen Stufenleiter der Wesen bei, als selbst den Himmelsbewohnern, die vermöge der Heiligkeit
ihrer Natur über alle mögliche Verleitung weggesetzt sind (die Welt mit ihren Mängeln ist besser als
ein Reich von willenlosen Engeln. Haller)”.
“a capacidade moral do homem não seria virtude caso não fosse produ-
zida pela força dos propósitos em conflito com poderosas inclinações
antagônicas”20( KANT, MS: AA VI: 477). Kant não pode conceber a vir-
tude como algo inato, justamente por representá-la nos termos de uma
luta ou resolução deliberada contra as inclinações. Em tal luta o que está
em jogo é o quanto todos e cada um valorizam e perseguem a conduta
moralmente boa. O homem não nasce virtuoso, ele se faz virtuoso. O
que é inato ao homem são as condições para se fazer virtuoso, isto é, ele
detém os elementos necessários para que se constitua a virtude, quais
sejam: a consciência de um dever incondicional e a fragilidade em a ele
aderir espontaneamente. A virtude, em suma, não é inata, mas algo que
se adquire, porque representa um “sim”, uma decisão deliberada em prol
do dever. Nesse sentido, Kant afirma que a virtude “é um produto da
razão prática pura, na medida em que essa última, com consciência de
sua superioridade (pela liberdade), obtém poder supremo [Obermacht]
sobre as inclinações”21 (KANT, MS: AA VI: 477). É mediante a percepção
(ou consciência) de que há uma supremacia da razão prática por sobre as
inclinações que o homem está aberto à aquisição da virtude.
22
“a natural inclination to that which accords with duty (e.g. to benevolence) can greatly facilitate the
effectiveness of the moral maxim, although by itself it can produce no such maxim”.
dos os seus escritos Kant atribui grande valor para inclinações de bom
coração, que considera ser a sua principal função de contrabalançar as
más-inclinações e assim dar o motivo do dever uma melhor chance para
determinar a ação23 (PATON, 1970, p.57, grifo nosso).
23
“since we have a duty to act benevolently, we have an indirect duty to cultivate natural sympathy
as a means to this end. (…) In all his writings Kant attaches great value to good-hearted inclinations
and regards it as their chief function to counterbalance bad-inclinations and so to give the motive of
duty a better chance to determine action.
24
Até esse seu sentimento de compaixão e de meiga participação, se precede a reflexão do que é o
dever e torna-se fundamento determinante, é penoso mesmo a pessoas bem pensantes, confunde suas
refletivas máximas e provoca o desejo de livrar-se dele e de submeter unicamente à razão legislativa
(KANT, KpV: AA V: 213, grifo meu).
da lei, o que ocorria era apenas uma coincidência casual entre o dever e
a inclinação do sujeito. Daí a necessidade de o agente ter pleno controle
e consciência da hierarquia a partir da qual incentivos são organizados.
O fato é que, e esse é o ponto por Kant mais enfatizado a propósi-
to da noção de móbil supremo, lei moral e inclinações podem coexistir
como impulsos de uma mesma ação reconhecida como moralmente boa,
desde que a lei desempenhe a função de móbil supremo ou decisivo. Sen-
do assim, mesmo no caso em que a inclinação pedisse por uma conduta
diferenciada, tal agente, porque acolheu na determinação do arbítrio a
influência suprema do dever, agiria moralmente em desfavor da inclina-
ção. Daí que o valor moral da ação não é definido em função da matéria
ou conteúdo do impulso (lei moral ou inclinações), mas na forma a partir
da qual esses incentivos foram adotados pelo arbítrio no que tange à
ordem moral a que esses móbiles estão submetidos, qual é o principal,
supremo e condição, e qual é o secundário e condicionado.
REFERÊNCIAS
1
Doravante primeira Crítica, ou KrV.
2
Doravante segunda Crítica, ou KpV.
3
Doravante terceira Crítica, ou KU.
5
O segundo prefácio da KrV escrito para sua reedição em 1787 conta com uma reflexão de Kant não
somente sobre os resultados de sua própria investigação crítica, mas também com uma reflexão acerca
dos comentários de alguns poucos intelectuais da época que se dispuseram à leitura de sua primeira
Crítica. Este fato não deve de forma alguma tornar dispensável a leitura do primeiro prefácio, de 1781.
A escolha aqui, por passagens do segundo prefácio, apenas refletem o fato de que, o segundo prefácio
parece tornar mais clara a argumentação de Kant em relação às pretensões críticas na KrV, contando
com o devido distanciamento necessário entre a primeira e a segunda edição da obra para a elaboração
de uma escrita mais acurada.
propósito final (Endabsicht) (KrV, B 828 / A798). Estes não são mais que
transcendentes para a razão em seu uso especulativo, porém, Kant escla-
rece, “... contudo são instantaneamente recomendadas pela nossa razão,
a sua importância deverá propriamente dizer respeito apenas à ordem
prática” (KrV, B 828, A 800). Kant não pretende aqui desmerecer tais
figuras, apenas esclarecer que nenhuma ampliação no domínio teórico
é possível em relação às mesmas. Aliás, é possível afirmar a importância
destas ideias pela compreensão de que são exatamente elas as responsá-
veis por colocar o pensamento em movimento, e, em vistas da restrição
em relação ao seu conhecimento, levam a razão a buscar a fonte da ilu-
são, e estabelecer necessariamente seus limites, algo que o próprio Kant
aceita como sendo derivado de um “benfazejo extravio” da razão. Em
vistas de seu uso prático, e levando em conta a afirmação de Kant, de que
“Prático é tudo aquilo que é possível através da liberdade” (KrV, B 828,
A 800), tais figuras são tidas como produtos da razão, e únicas para as
quais é permitido um cânone, porém, o alcance da razão para com tais,
somente poderá ser possível no domínio de uma esfera prática.
A ideia de que a liberdade deve ser o fundamento do domínio prá-
tico do uso da razão se corrobora pela afirmação de Kant de que “...o
conceito de liberdade, na medida em que sua realidade é provada por
uma lei apodídica da razão prática, constitui o fecho de abóbada de todo
o edifício de um sistema da razão pura...” (KpV, A 4), ainda, “mesmo
da razão especulativa” (KpV, A 4), sendo que os conceitos de Deus e
de imortalidade “...obtêm com ele [conceito de liberdade] e através dele
consistência e realidade objetiva, isto é, a possibilidade dos mesmos é
provada pelo fato de que a liberdade efetivamente existe; pois, esta ideia
manifesta-se pela lei moral” (KpV, A 4).
Vê-se que a liberdade consiste num conceito6 importantíssimo e
fundamental para o encerramento de um sistema da razão. O recurso de
Kant no uso da figura de um fecho de abóbada (Schlußstein) remete dire-
tamente à ideia de um acabamento final para uma construção finamente
acabada, onde a abóbada sustenta arquitetonicamente as partes constitu-
tivas de sua estrutura. Somente a partir da liberdade, os outros conceitos
6
Para esclarecer de que maneira se deve compreender o termo conceito aqui, remeto a passagem KpV,
A9 – “... embora como conceito prático, só para uso prático...” (...obgleich als praktischem Begriffe auch
nur zum praktischen Gebrauche...) (KpV, A 9).
felicidade proporcional à virtude (ou seja, com o mérito de ser feliz) (KrV,
B 839, A 811), não pode ser meramente uma vinculação analítica, já que
se trata de algo que é realizável praticamente, portanto, deve poder ser
pensada de forma sintética, nas palavras de Kant, “...em verdade, como
conexão da causa com o efeito” (KpV, A 204).
Eis que surge um conflito aparentemente ameaçador para a arqui-
tetura da filosofia moral kantiana, e este diz respeito ao fato de que, se
a vinculação deve ser pensada como uma causalidade que necessaria-
mente deve resultar num efeito, “...ou o apetite de felicidade tem de ser a
causa motriz de máximas da virtude, ou a máxima da virtude tem de ser
a causa eficiente da felicidade” (KpV, A 204). O conflito se dá exatamente
pela necessidade que há de se respeitar a arquitetura da fundamentação
moral empreendida por Kant até este momento. Segundo nos aponta a
investigação kantiana acerca da fundamentação moral, e especificamen-
te a Analítica da segunda Crítica com mais propriedade, uma máxima
que estivesse alicerçada apenas na aspiração à felicidade não poderia
jamais fundamentar nenhuma virtude, bem como, a conexão entre uma
ação tida como virtuosa e os resultados que derivam da mesma não con-
ferem, pois, felicidade não depende de disposições moralmente justificá-
veis, senão, a partir da consecução de leis naturais às quais a faculdade
física se adequa para o alcance de tal finalidade.
Para Kant, a Antinomia da Dialética da razão pura em seu uso prá-
tico mantém semelhanças para com a Dialética da razão pura em seu uso
especulativo. Esta última mostrou que se trata apenas de um aparente
conflito (Widerstreit) que é facilmente contornável pela consideração de
que se trata de um e mesmo agente que necessariamente tem de lidar com
sua capacidade (capacidade de uma e mesma razão que se desdobra em
dois usos) de lidar com os objetos do mundo sensório, determinados por
leis causais mecânicas, e ao mesmo tempo também com sua capacidade
de auto-legislar-se a parte de toda a determinação do mundo material,
a saber, como causalidade livre no mundo. É importante perceber que,
este um e mesmo agente é livre no mundo, não deixa de ser membro deste
quanto age moralmente, é ao mesmo tempo afetado, mas nem por isso
determinado necessariamente pelas leis mecânicas que regem o mundo
empírico, domínio das leis da sensibilidade. Por isso, não é contraditório, e
10
Cf. Beck – “It is the concept of the summum bonum as the final purpose of the world with its corol-
lary concept of God that finally bridges the gap between nature and morals. Through these concepts
Kant believes that he is enable to approach most nearly the goal of a single system of philosophy”
(BECK, 1984, p.278).
11
Doravante Preisschrift.
(Preisschrift, A 69). Mais tarde, nos seus Träume eines Geistersehers, eräu-
tert durch Träume der Metaphysik de 176612, não escondeu ser a metafísica
seu próprio “destino” (Schicksal) (Träume, A 115). Em algumas obras bem
tardias, Kant voltou a reforçar a ideia de que sua a investigação crítica
acerca da metafísica, promoveu avanços consideráveis em relação aos
principais sistemas metafísicos modernos, o que resultou, certamente,
numa nova perspectiva acerca da metafísica e seus objetos propriamente.
Na obra escrita em decorrência da Preisfrage da Academia Real de Ciên-
cias de Berlin, no ano de 1791, Welches sind die wirklichen Fortschritte, die
die Metaphysik seit Leibnitzens und Wollf (1793)13, Kant ao reiterar seu sis-
tema crítico, reconstrói sua argumentação, lembrando que para o uso te-
órico, estas ideias da razão são não mais que “...conceitos factícios...” (ge-
machten Begriffe) (Preisfrage, A 105) ou ainda “...ideias transcendentes...”
(transzendenter Ideen) (Preisfrage, A 105) e ainda as classifica respecti-
vamente como: “...o supra sensível em nós, por cima de nós e depois de
nós” (Preisfrage, A 105)14. As três figuras assumem posições bem distintas
neste momento, ainda que não possam ser dadas por um conhecimento
teórico 15. eu como momento singular dentro da modernidade, inclusi-
ve, na obra Logik, ein Handbuch zu Vorlesungen de 180016, chegando a afir-
mar que “...a Metafísica é a autêntica, a verdadeira filosofia” (Logik, A 39).
Como nos aponta Jean Lacroix, “A crítica kantiana é um esforço para res-
tituir toda a sua força à antiga metafísica teísta e reabilita-la do descrédito
em que tinha caído no século XVIII” (LACROIX, 1979, p.10). Inclusive,
tal tarefa torna-se bastante visível na própria crítica que Kant empreen-
12
Doravante Träume.
13
Doravante Preisfrage.
14
das Übersinnliche nämlich, ins uns, über uns und nach uns“.
15
Cf. Kant – “1) A liberdade (Freiheit), pela qual há que começar, visto que deste supra-sensível dos
seres mundanos só sabemos as leis, sob o nome de leis morais, e a priori, portanto, dogmaticamente, e
apenas com um propósito prático, segundo o qual unicamente é possível o fim último; segundo essas
[leis], portanto, a autonomia da razão pura prática reconhece-se ao mesmo tempo como autocracia,
isto é, como poder de atingir ainda aqui na vida terrestre o que concerne à condição formal do mesmo
[poder], a moralidade, apesar de todos os impedimentos que sobre nós, enquanto seres sensíveis e, no
entanto, também simultaneamente seres inteligíveis, possam exercer as influências da natureza, isto
é, a fé na virtude, como princípio em nós de alcançar o soberano bem” (Preisfrage, A 106); “2) Deus
(Gott), o princípio suficiente do soberano bem por cima de nós, que enquanto autor moral do mundo
supre a nossa impotência mesmo em relação à condição material do fim último de uma felicidade no
mundo, adequada à moralidade”; “3) A imortalidade (Unsterblichkeit), isto é, a continuação da nossa
existência depois de nós, enquanto filhos da terra, com a prossecução até ao infinito das consequên-
cias morais e físicas, que são conformes ao seu comportamento moral” (Preisfrage, A 107).
16
Doravante Logik.
6 ConCLUSÃO
REFERÊNCIAS
1 Introdução
1
Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever,e, há além disso muitas almas de disposição tão compassiva
que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à
sua volta e se podem alegrar com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo porém
que neste caso uma tal ação,por conforme o dever,por amável que ela seja, não tem contudo nenhum
verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com certas inclinações,por exemplo o amor das honras que,
quando por feliz acaso toma aquilo que efetivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequen-
temente honroso e merece louvor e estímulo, mas não estima:pois à sua máxima falta o conteúdo moral
que manda que tais ações pratiquem não por inclinação,mas por dever. (KANT, 2010,p.87)
2
“Combinações artificiais de conceitos de qualquer espécie não podem nunca, quando se leva a sério
o assunto, conter o verdadeiro impulso para a justiça e a caridade” (SCHOPENHAUER, 2001, p.108)
3
CACCIOLA, 1994, p.156.
2 O sistema schopenhaueriano
mesma como a mais séria de todas, pois concerne às ações do homem, objeto que afeta de maneira imediata
cada um de nós e a ninguém pode ser algo alheio ou indiferente. (SCHOPENHAUER, 2005 p.353)
6
A essência íntima do mundo, a coisa-em-si, é a vontade, a vontade de viver e esta, enquanto tal,
conta com três propriedades metafísicas: a unidade, a infundamentabilidade, e a incognoscibilidade”
(SCHOPENHAUER,2001, p.117).
7
O duplo conhecimento, dado de dois modos por completo heterogêneos e elevados à nitidez, que temos
da essência e fazer efeito de nosso corpo, será em seguida usado como uma chave para a essência de todo
o fenômeno da natureza. Assim, todos os objetos que não são o nosso corpo, portanto não são dados
de modo duplo, mas apenas como representações na consciência, serão julgados exatamente conforme
analogia com aquele corpo. Por conseguinte, serão tomados, precisamente como ele, de um lado como
representação e, portanto, nesse aspecto, iguais a ela; mas de outro, caso se ponha de lado a sua existência
.A VONTADE como representação do sujeito, o que resta, conforme a sua essência íntima, tem de ser o
mesmo que aquilo a denominarmos em nós VONTADE. (SCHOPENHAUER, 2005, p.162;163).
8
Schopenhauer defende a existência, no interior do corpo, de um sentimento não captável pelo
princípio de razão, escapando às suas regras, e que fornece, por intuição imediata e direta, na au-
toconsciência, a chave para a compreensão não só da nossa essência, mas também, por analogia, da
essência dos demais objetos (BARBOZA, 1997, 47).
11
“Se, porém, minha ação só deve acontecer por causa de outro, então o seu bem- estar e o seu mal
estar têm de ser imediatamente o meu motivo, do mesmo modo que em todas as outras ações o meu
motivo é o meu bem- estar e meu mal- estar”. (SCHOPENHAUER, 2001, p.135)
6 ConCLUSÃO
Referências
1 Introdução
1
Esse texto é uma das mais recentes publicações dos escritos de Schopenhauer, o qual resulta da re-
constituição da eudemonologia, segundo o plano original traçado pelo pensador alemão, a partir dos
escritos dispersos entre seus espólios. Trabalho realizado pelo filósofo italiano Franco Volpi; publica-
do na Alemanha no ano 2000, e no Brasil no ano seguinte, pela editora Martins Fontes.
apresenta uma breve reflexão sobre o tema da arte prudencial. Aliás, seu in-
teresse por essas questões são inclusive anteriores a essa ocasião, pois como
observa Volpi, quatro anos antes disso o filósofo escreve a seguinte observa-
ção: “O princípio de Aristóteles de seguir em todas as coisas a via mediana
se adapta mal ao princípio moral para o qual o formulou: mas poderia ser
facilmente a melhor regra geral de sabedoria, o melhor caminho para ser
feliz.” (SCHOPENHAUER apud VOLPI, 2001, p. XI).
Todavia, seja pelo rótulo de pessimista ou qualquer outra razão, o
fato é que os escritos de Schopenhauer que tem como tema a arte da pru-
dência e da vida feliz têm sido deixados em segundo plano pelos seus leito-
res. Entretanto, nosso intuito no presente trabalho é não somente chamar
atenção para sua presença, mas mostrar sua contribuição dentro de uma
discussão sobre o caráter e abrangência da investigação ética. Nesse caso,
mais especificamente, como uma contraposição ao intelectualismo ético e
como uma propostas alternativa às éticas centradas na ação correta.
Portanto, nesse artigo mostraremos que a noção schopenhaueriana
de arte de ser feliz, ou eudemonologia, está relacionada com o conceito
de razão prática; conceito que na modernidade está comprometido com
o sentido atribuído a ele por Kant, que o relaciona com sua investiga-
ção sobre a conduta moral. Explicaremos que Schopenhauer questiona
aquela concepção kantiana, para mostrar a noção de razão prática estaria
vinculada ao agir prudencial, contestando a relação que Kant teria esta-
belecido entre o agir racional e o agir moral. Contestação que apresenta-
remos por meio da investigação genealógica proposta por Schopenhauer
do conceito kantiano de razão pura prática, por meio da qual ele se pro-
põe a demonstrar a vinculação entre razão prática e a conduta moral
proposta por Kant se deve a influência de uma tradição racionalista que
ele próprio questionou.
Mostraremos em seguida que Schopenhauer situa sua eudemonologia
em um âmbito mais amplo do que aquele que se propõe investigar o signifi-
cado moral da conduta, mas que ainda assim permanece coerente com seu
sistema ético metafísico. Além disso, mostraremos que ao analisar o agir
racional como forma de arte prudencial ele nos apresenta um ponto de vis-
ta complementar aquela proposta mais estrita, voltada para investigação do
significado moral da conduta, sugerindo assim um alargamento da ética,
que desse ponto de vista se ocupa não somente com o agir correto ou moral,
mas também com questões pessoais voltadas para o bem-estar individual.
Por fim, analisaremos algumas questões referentes ao caráter da
proposta de arte prudencial schopenhaueriana, mostrando que por meio
da discussão da noção de razão prática, Schopenhauer se aproxima bas-
tante da concepção proposta pela tradição filosófica antiga, o que sugere
um resgate do sentido original daquele conceito, proposto nos clássicos
gregos e latinos, sobretudo de estoicos, segundo ele, os maiores mes-
tres naquela arte. Veremos dessa forma, que à quase dois séculos atrás
o filósofo alemão nos chama atenção para importância da proposta de
uma discussão alternativa à concepção metafísica da ética, voltada para
valorização das virtudes prudenciais, importância que só recentemente
ganha força novamente no meio acadêmico.
ela nos possibilita direcionar nossas as ações a, indicando assim que ele
não a vincula de um modo especial ao significado moral do agir, o que
sugere também que Schopenhauer concebe o conceito de razão prática
em uma acepção diferente da tradição pós-kantiana que lhe é contempo-
rânea, assim como prenuncia uma crítica àquela tradição.
Entretanto, a postura do filósofo de Frankfurt se dirige mais especifi-
camente àquele que seria o principal arquiteto da elaboração do conceito de
razão prática enquanto noção inerente ao agir moral. Pois, sua posição é de-
claradamente uma contestação à concepção de razão pura prática de Kant.
Para fazer valer a concepção de que a capacidade de agir racional-
mente não é uma condição necessária ao agir moral, e assim abrir espaço
para a proposta de uma eudemonologia desvinculada da investigação so-
bre o significado moral da conduta, Schopenhauer precisa destituir a vali-
dade da proposta ética kantiana, que de certa forma limita a análise sobre a
capacidade de agir a partir de máximas abstratas àquele âmbito restrito de
investigação. Assim, uma vez que é por meio do conceito de razão prática
que Kant faz tal aproximação entre o agir racional e o agir moral, é nele
que deve se concentrar uma análise que pretende cindi-los, para que se
possa ampliar o domínio da investigação sobre o tema do agir racional.
Segundo Schopenhauer, para que se possa compreender a noção de
razão pura prática kantiana enquanto elemento básico de sua proposta
ética se faz necessário empreender uma genealogia2 desse conceito. Tal
investigação genealógica nos revelaria que a noção de razão pratica kan-
tiana – e consequentemente, conceitos como “imperativo categórico” e
“autonomia da vontade”, que ela se relacionam –, se originam de pressu-
postos de uma tradição racionalista que o próprio Kant, enquanto autor
da filosofia crítica, questionou profundamente e as refutou.
Segundo a alegação de Schopenhauer o conceito kantiano apresenta
como ancestral mais remoto o dogma de alma imaterial proposto por Platão,
que, grosso modo, consiste na concepção de alma imaterial como parte de sua
concepção antropológica, segundo a qual o homem seria composto de duas
substâncias heterogêneas, que por sua vez consistiria em um corpo material e
uma alma imaterial. Ainda de acordo com a descrição schopenhaueriana da
psicologia racional platônica, a alma seria “um ser originaria e essencialmen-
2
Cf. Schopenhauer, 2001, p. 63.
O que foi exposto até aqui já se torna possível perceber de forma mais
definida um delineamento da concepção schopenhaueriana de razão prática
e do papel que ele a concede em sua ética. O que nos mostra que sua reflexão
sobre o tema extrapola o âmbito da investigação sobre o significado moral da
conduta, propondo, portanto, uma ampliação da discussão dessas questões.
Podemos perceber, também por meio desse delineamento, que essas
noções guardam muitas semelhanças com proposta aristotélica e dos clás-
sicos gregos e latinos de maneira geral, mencionada por Schopenhauer. Em
que razão prática assim se denomina em função de seu uso técnico. A pro-
pósito desse fato, lembremos de que também a ética de Aristóteles – na qual
ele lida com o conceito de razão prática –, é, sobretudo, um eudemonismo.
Essas semelhanças não são meras coincidências, mas, como veremos nos
próximos tópicos desse artigo, Schopenhauer não as apresenta como uma
novidade, mas podemos dizer que ele se propõe mais exatamente a resgatar
o sentido que nos foi apresentada pelos clássicos antigos, nos quais que a
razão se apresenta, sobretudo, como instrumento da arte de ser feliz.
5
Cf. Schopenhauer O mundo como vontade e representação, tomo I: § XVI, tomo II: § XVI; Parergas e
paralipomena (Aforismos...); Crítica da filosofia kantiana p. 639-655.
6
Cf. VOLPI, 2001, p. XVII-XVII.
7
Cf. Lefranc, 2005, p. 36.
ção racional, dadas as condições de vida precárias em que muitas vezes encon-
tramos os seres humanos. Entretanto, é exatamente o fato de que a nossa afeição
à vida derivar-se de um impulso completamente irracional e a reiteração de que
nossa existência se encontra muitas vezes em situações adversas, que exige que
desenvolvamos os artifícios necessários para conduzi-la da melhor maneira pos-
sível, ou dito de forma diferente, aprender uma arte de ser feliz.
O que deve ser enfatizado nesse caso é, sobretudo, o empenho de
Schopenhauer para aproximar a reflexão filosófica das questões existen-
ciais e de nossa vivência ordinária, quando isso se torna possível. Algo
com o que ele estava familiarizado a partir de suas leituras dos grandes
clássicos gregos e latinos. Assim, se há por um lado a convicção de que o
filósofo deve esforçar-se para apresentar uma visão imparcial da realidade,
que dê conta de uma visão geral de nossa condição existencial e de nossa
conduta e do significado moral dessas questões; há de se considerar por
outro lado o fato de que, via de regra, não mantemos esse mesmo ponto
de vista frio e racional exigido em uma investigação metafísica em relação
à maioria das questões que dizem respeito nossa existência individual.
No entanto, a filosofia deve considerar seriamente esse fato e com cer-
teza tem algo a nos dizer também nesse âmbito, quando os nossos interesses
se voltam para questões mais imediatas, voltadas para a existência individual,
enquanto esta se encontra inserida no cotidiano. Então, nesse caso, temos que
nos deter nessa perspectiva e considerar a reflexão filosófica, a partir da clareza
com que as questões existências foram pensadas pelos grandes mestres dessa
arte, para nosso uso pessoal, como quem recorre a uma caixa de ferramentas
com o intuito de adaptá-las e usá-las segundo sua utilidade específica.
Sobre esse fato, ponderemos a recomendação do filósofo retirada
dos Aforismos, e também presente em A arte de ser feliz8:
Quem é alegre tem sempre razão de sê-lo, ou seja, justamente esta, a de
ser alegre. Nada pode substituir tão perfeitamente qualquer outro bem
quanto essa qualidade, enquanto ela mesma não é substituível por nada.
(...) Por esse motivo, devemos abrir portas e janelas à jovialidade, sempre
que ela aparecer, pois ela nunca chega em má hora, em vez de hesitar,
como muitas vezes o fazemos, em permitir sua entrada, só porque que-
remos saber primeiro, em todos os sentidos, se temos razão para estar
contentes. (SCHOPENHAUER, 2006, P. 16-17)
8
Cf. Schopenhauer, 2001, p. 43.
11
Tomamos essa frase emprestada de Jarlee Oliveira Silva Salviano, que a apresenta em sua dissertação O
niilisto de Schopenhauer.
5 ConCLUSÃO
Referências
1 Introdução
Diríamos que esse foi o papel assumido pela moral ordinária, e não
pela moral reflexiva, que é a moral propriamente dita. Defendemos que os
novos papéis que o estudo da moral passa a ter são: primeiramente, o de ga-
rantir a liberdade individual, e em segundo lugar, o de emitir juízos apenas
quando existir conflitos significativos de interesses entre dois ou mais indi-
víduos de forma não relativista, ou seja, assume um papel de imparcialidade
nas decisões. Primeiramente, ao garantir a liberdade individual, o estudo da
moral consequentemente protege a diversificação de atitudes e revela a falta
de racionalidade de alguns padrões dominantes de comportamento. Nesse
sentido, ela assume um papel emancipatório. Há uma desvinculação en-
tre comportamento e moral, pois muitos comportamentos são considerados
amorais, uma vez que nem todo comportamento deve ser julgado.
Observe que Barroco utiliza a denominação de “forma moralista” no mes-
mo sentido que é utilizada a denominação “moral ordinária” neste trabalho:
[...] nem todas as ações têm implicações morais: muitas escolhas não têm con-
sequências para os outros, pois são opções pessoais, por exemplo, o modo de
se vestir, a opção religiosa, a orientação sexual, entre outras. Se, no entanto,
são vistas como tais é porque estão sendo julgadas de forma moralista. Por aí se
pode observar o papel ativo da consciência no juízo de valor acerca das ações
humanas, assim como o papel ideológico desempenhado pelos preconceitos
morais na preservação dos costumes (BARROCO, 2008, p. 58).
re quando temos dois princípios diferentes com o mesmo peso. Por exem-
plo, temos o caso em que se o médico falar a verdade ao paciente sobre sua
doença incurável, o paciente corre o risco de ter um ataque cardíaco. Aqui
ocorre o choque entre o princípio da verdade e o princípio do bem-estar.
O terceiro tipo de dilema – o dilema de correntes – ocorre quando temos
análises diversas a partir de teorias éticas diferentes. Por exemplo, o con-
flito de solução do utilitarismo, representado por Mill, e da deontologia,
representado por Kant sobre o caso de transplantes para salvar vidas. Se
temos uma pessoa no hospital que chega em estado de coma e existem
cinco pacientes internados que precisam de órgãos diferentes, a partir do
utilitarismo poderíamos deduzir que o médico não deveria tentar salvar
a vida do paciente que chega em coma, pois sua morte beneficiaria cinco
outras pessoas e causaria felicidade maior (maior número de prazer), ao
passo que a partir de uma análise deontológica, o médico deveria cumprir
o seu dever de salvar a vida do paciente que chega em coma sem analisar
as consequências, simplesmente por ser seu dever.
Entretanto, independentemente do tipo de dilema, as discussões
filosóficas para resolver dilemas práticos ocorrem normalmente sobre
fatos. No caso do dilema de Sofia, ela precisou analisar as características
dos filhos para tomar sua decisão. No caso do dilema de princípio do mé-
dico, a dúvida está sobre a exata reação física do paciente ao tomar conta-
to com a verdade. E, sobre as vidas possíveis de serem preservadas, não
se tem um conhecimento preciso sobre o sucesso dos transplantes, ou
sobre o interesse da vida da pessoa que está em coma pela humanidade.
Outro exemplo que mostra como é observável a modificação de
atitudes relacionadas à moral, a partir do aumento de informação, é o
fato de que pessoas deixam de comer carne vermelha quando entram
em contato e aumentam seus conhecimentos sobre os fatores sociais,
políticos, ambientais, medicinais, conceituais e biológicos relacionados
a essa problemática. Explicitamente, o fator social de que a produção de
grãos para a alimentação do gado suíno e bovino é suficiente para acabar
com a fome do mundo, o fator político de que os rebanhos bovinos e
suínos são uma das principais atividades responsáveis pelos lucros dos
latifundiários, o fator ambiental sobre o efeito estufa, agravado pelo gás
metano liberado pelo gado, o fator de que a alimentação excessiva de car-
2 INFORMAÇÃO E VALOR
3 CONCLUSÃO
1
Em Hare, a superveniência é a relação entre valores e fatos, que garante que as escolhas morais de-
vem ser as mesmas, quando existem os mesmos elementos fatuais. Essa característica é o fundamento
da universalizabilidade.
2
“... we can define a naturalist as one who claims that the inferece from a factual statemente to a value
judgment is ‘due solely to the meaning of the words in it’” (SEN, 1966, p. 77)
Hare, diz que cometeu um erro, pois não havia contemplado ante-
riormente a possibilidade da exceção. Por esse motivo, se questiona de
forma mais severa, se poderia realmente ser considerado um descritivista.
O argumento de Sen fez com que Hare admitisse ser um descritivista,
que era exatamente aquilo que ele criticava em teorias éticas. Isso é equi-
vocado. Para o descritivismo (especificamente, para o naturalismo) não há
possibilidade de mudanças com o aumento de informações, pois os juízos
morais são interpretados como algo natural, de acordo com a convenção
lingüística. Sendo assim, alguém que diz algo contrário à convenção, seria
um mero desconhecedor dela. Por verificarem o valor verdade dos juízos de
acordo com as convenções, os naturalistas não conseguem atingir a impar-
cialidade, que é também tão importante para Hare: “o efeito da universali-
zabilidade é nos obrigar a encontrar princípios que imparcialmente maxi-
mizem a satisfação dessas preferências”4. A convenção de uma cultura pode
ser diferente de uma outra, e, se juízos são julgados a partir delas, então eles
também podem ser diferentes. E Hare critica veemente o relativismo.
Hare também admite quebrar a “Lei de Hume”, mas isso também é
um equívoco que pode ser desvelado ao considerar a escolha prévia de
Hare pela universalização para a elaboração de um juízo de valor. Defen-
demos que essa escolha prévia é particular a cada pessoa e é anterior ao
estudo do que é universalizável.
Essa possibilidade de escolha é explicada e deduzida de uma forma
fenomenológica de concepção do homem e da consciência. Ou seja, a
partir da ontologia proposta pela fenomenologia é possível entender as
mudanças de atitudes das pessoas que optaram pela moral a partir de
novas informações, sem que ocorra a quebra na Lei de Hume.
Quando entendemos a condição fundamental de liberdade do ho-
mem, a partir dos conceitos da fenomenologia, deixamos de aceitar uma
moral essencialmente constituída, ou deduzida de imperativos. Ou me-
lhor, os imperativos criados a partir dos juízos não podem simplesmente
ser aplicados sem que haja uma escolha anterior pelos mesmos.
A noção de essência é substituída pelo conceito de fenômeno em
Sartre, que é a relação entre consciência e objeto. Diferentemente do fenô-
4
“The effect of universalizability is to compel us to find principes which impartially maximize the
satisfaction of these preferences [...]” (HARE, 1992, p. 226)
são mais eficazes, para que aqueles que optaram pela saúde e pelo corpo
possam se orientar de forma adequada. Paralelamente, é preciso investi-
gar sobre quais fatos são mais relevantes para se atingir a finalidade de
identificar objetivamente quais ações são mais universalizáveis, no intuito
de que os que optaram pela moral possam agir de forma adequada. Da
mesma forma que existem homens que escolhem que suas condutas sejam
orientadas pelo que é moral, existem aqueles que optam pela imoralidade.
Mas, nem por isso, a investigação sobre o que é mais universalizável deixa
de ter, talvez, a maior importância para a humanidade.
REFERÊNCIAS
1 Introdução
2 O conceito de Razão
causa. Isso pode ser formalizado como “Que B é (foi) uma (a) razão porque
A (A razão porque A foi que B)”. B, deste modo, é uma explicação para A.
As razões justificativas, por seu turno, podem ter um caráter de rela-
tivização à pessoa e aceitam apenas a facticidade com respeito à A. Tal tipo
de razão esconde um verbo psicológico como “pensar”, “querer”, “decidir”
ou pode especificar uma ação. Sua forma é “Que B é (foi) (uma) razão (para
X) fazer A” e, como exemplo, podemos ter uma sentença como “O fato que
eles estiverem lá um dia antes é uma razão para pensar que a ponte caiu”.
Nestes casos B é uma justificação para pensar, fazer, querer A.
O último tipo de razão investigado por Grice, são as razões justifi-
cativo-explicativas ou razões pessoais. Nesse caso existe uma facticidade
para A e uma facticidade ou não facticidade para B. O diferencial das
razões pessoais é o fato da demanda de uma relativização à pessoa. As
razões pessoais contêm elementos dos dois tipos anteriores de razão e
tem, portanto, uma natureza híbrida. Elas são casos especiais das razões
explicativas, pois elas explicam, mas o que elas explicam são ações e cer-
tas atitudes psicológicas do sujeito. A forma deste terceiro tipo de razão
é “A razão(es) de X para A-ndo foi (era) que B (para B)”. Como exemplo
temos a sentença “A razão de John para estar pensando que Samantha era
uma bruxa foi que ele foi, inesperadamente, transformado em uma rã”.
Toda essa discussão e essas distinções propostas por Grice tem
como meta a clarificação de seu programa. A faculdade da razão somente
pode ser devidamente determinada se forem esclarecidas as conexões
que ela possui, sendo que ela está diretamente ligada com a noção de
raciocínio e com a noção de razões. As razões justificativas são, conclui
Grice, as mais importantes, posto que elas estão contidas tanto em ra-
zões explicativas bem como em razões pessoais. Elas encontram-se no
coração das outras variedades de razão3. Além disso, as razões justificati-
vas são as peças essenciais dos quais são constituídos os raciocínios. Mas
o ponto que as torna realmente especiais consiste no fato de elas serem
divisíveis em razões práticas e não-práticas (razões aléticas). Se conjec-
turarmos a existência de uma barreira que divide um âmbito teórico de
um âmbito prático teremos, claramente, a constatação de que, em ambos
os lados desta barreira, certas palavras comuns, denominadas por Grice
3
Cf. Grice, 2001a, p. 67.
(1’) Acc + +r
(2’) Acc + ! + r
5 CONCLUSÃO
Referências
Rafael Chiminte
(UFSM)
1 Introdução
2 A formulação de Quinn
meus fins[...] Posso usar alguém como meio para meus fins, se ele por sua
vez pode concordar com a ação[...]”(TUGENDHAT, 2002, p. 146)
condição que é proposta por Quinn é a de uma pessoa não ser morta ao
fazer parte de um plano ao qual ela não concorda, e esse seu direito e
irrevogável. Quinn ainda complementa dizendo: “É também muito com-
patível com a minha visão de DDE que violar alguns direitos é absoluta-
mente proibido. Eu acho que isso deve ser verdade para certos castigos
cruéis e atos de tortura.”(QUINN1991 p. 513, tradução nossa)
Em resumo, o cárater inviolável da doutrina de Quinn é que uma
pessoa não pode ser utilizada como meio quando não estiver de acordo
com plano, embora, como já vimos, isso não signifique que ela seja tra-
tada como fim. O filósofo insiste que existe um desrepeito peculiar nas
ações diretas, e que essas são mais difíceis de se justificar que as ações
indiretas. Entretanto, Quinn não consegue justificar essa sua afirmação
sem fazer um apelo a intuição de que as pessoas não deveriam ser trata-
das como meio. Ele apenas coloca que tal intuição deveria ser incorpora-
da por parecer ser mais plausível que assim trataremos as pessoas como
um fim em si mesmas. Essa solução se torna um pouco estranha, pois
ele tenta escapar de um apelo à intuição na definição pela DDE dos casos
em que existe ou não intenção do agente, mas também não consegue
fundamentar sua posição sem apelar para a intuição.
3 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
AQUINO, Tomas de. Suma Teológica. Vol. VI: São Paulo:Loyola, 2005.
[IIª seção da IIª parte questões 57-122.]
BOYLE, J. Who is Entitled to Double Effect? : Journal of Medicine and
Philosophy , v.16, 1991, p. 475-494
BYRNE, P. Duplo Efeito. In: CANTO-SPERBER, M. (org.). Dicionário de
ética e filosofia moral. São Leopoldo: Unisinos, v. 1, 2005. p.
448-491
FOOT, Philippa. The Problem of Abortion and the Doctrine Double Ef-
fect. In:______. Virtues and Vices and Other Essays in Moral
Philosophy. New York: Oxford University Press, 2002, p. 19-62
HART, L .A. H. Intention and Punishment.In____. Punishment and
Responsibility: Essays in the Philosophy of Law. New York: Ox-
ford University Press, 2008, p.113-135
KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes: Trad. Leopoldo
Holzbach São Paulo: Martin Claret, 2005
LOURENÇO M. G. Pedro. Pretender o Mal: Um Estudo Sobre a Doutri-
na do Duplo Efeito. Lisboa. Dissertação (Mestrado em Filosofia
da Linguagem) Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
2002.
QUINN, S. W. Actions, intentions and consequences: The doctrine of
double effect. Philosophy and Public Affairs V.18, 1989, p.334-
351.
QUINN, S. W. Reply to Boyle’s Who Is Entitled to Double Effect? Philo-
sophy and Public Affairs V.16, 1991, p.511-514.
TUGHENDHAT, Ernest. Lições Sobre Ética: Trad. grupo de doutorado
do curso de pós-graduação em Filosofia da Universidade do Rio
Grande do Sul: revisão e organização Ernildo Stein e Ronai Ro-
cha. – Petrópolis: Vozes, 1996, p. 106-172.
1 Introdução
2 Formulação do problema
1
Para facilitar a compreensão, o princípio responsabilidade, propriamente dito, será abreviado pelas
iniciais minúsculas (pr) e o título homônimo da obra será abreviado pelas iniciais maiúsculas (PR).
2
Como é o caso, por exemplo, da célebre ética kantiana.
3
Expressos por imperativos pragmáticos ou hipotéticos do tipo: “se queres viver bem, zele por tua
saúde.” Distinção encontrada na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) de Kant.
b) Fundamentação metafísica:
5
“the so-called “applied ethics” model of moral reasoning, in which exemplars of high theory (e.g.,
consequentialist utilitarianism, Kantian deontology, rights-based theories, natural law, etc.) are direct-
ly “applied” to practical problems.” Fonte: http://plato.stanford.edu/entries/theory-bioethics/
6
PIZZI, Jovino. Ética e Éticas Aplicadas: A reconfiguração do âmbito moral. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2006. p. 10.
5 conclusão
Referências
7
A. Cortina & E. Martinez. ÉTICA. 2005.
Silvestre Grzibowski
(UFSM)
1 Introdução
puede ir más lejos que el oyente. Se han añadido notas. Bajo su forma actual, este texto ha sufrido
nuevas modificaciones” (LEVINAS, 2003, p. 163, nota 1).
4
No caso de Hiroshima
5
Não irei entrar na discussão sobre este tema, porque não é o objetivo, mas lembro que a literatura sobre
isso é vasta, menciono, apenas um dos grandes pensadores deste período, que era conhecido como o
anunciador do fogo, me refiro a Franz Rosenzweig, sobretudo tudo na sua obra A Estrela da Redenção.
3 Recorrência
6
Aqui digo que Levinas se distancia, para não cair no rótulo de que Levinas rompe claro que há um
rompimento como já utilizei este vocábulo neste texto, no entanto, quero dizer que Levinas segue
sendo fenomenólogo e que de um certo modo ele extrapola/transborda a fenomenologia husserliana.
do outro e mais ninguém’. Ou seja, quem matou Abel (seu irmão) foi Caim e por mais que ele negue
é o responsável. Lévinas traduz esta situação do eu diante do outro com uma frase de Dostoievsky:
“Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros” (1988, p. 87) E
se somos todos culpados, também somos todos responsáveis.
9
Grifo nosso.
10
Grifo do autor.
11
Aqui é importante recordar ao leitor que deve ter presente a categoria de “Bem”. Essa categoria serve
como uma espécie de fundo para a filosofia levinasiana. Levinas a utiliza, e dirá que nós somos eleitos
por ela antes de termos a escolhido. “Cette antériorité de la responsabilité par rapport à la liberté, signifi-
erait la Bonté du Bien: la nécessité pour Le Bien de m’élire Le premier avant que jê sois à même de l’élire,
c’est-à-dire, d’accueillir son choix” (LEVINAS, 2002, p. 157). “A análise desta situação leva em conta um
atraso absoluto que destrona a autoridade do presente ou da apresentação anamnésica, que limita a liber-
dade mas não a responsabilidade do sujeito moral (Job, por exemplo, que pode ser responsável de um
mal que ele não tinha jamais querido), e que suspende toda esta lógica do refém à incondicionalidade
de um sim mais antigo do que a espontaneidade infantil ou pré-crítica, de um sim enquanto exposição
crítica” (DERRIDA, 2008, p. 79, nota 3). Cf. ainda meu estudo em (GRZIBOWSKI, 2010, PP. 42-46).
dade, eleição do refém parece não apenas mais originária (na verdade, como
sempre, mais originária que a origem), mais violenta, na verdade traumati-
zante, mais que não o deixa sentir talvez o léxico por vezes apaziguador do
acolhimento e da hospitalidade do hospedeiro (2008, p. 78).
Por fim, a grande questão aqui exposta por Levinas e que talvez respon-
da a muitos críticos é que não trata mais o eu constituído face a face, ou seja,
face ao outro e o outro face ao mesmo, mas de um sujeito que se estrutura
já contendo o outro em si, o outro no mesmo. O Si (Soi), afirma Levinas, é
não-indiferença aos outros, signo dado aos outros. Todo discurso, mesmo pro-
ferido interiormente, está na proximidade e não envolve a totalidade. “Baixo a
acusação de todos, a responsabilidade para com todos chega até a substituição.
O sujeito é refém” (LEVINAS, 2002, p. 180). Ou seja, dizer que o sujeito é
refém, sujeito como refém, ou ser refém do outro significa ser responsável para
com o outro antes mesmo de ter assumido um compromisso prévio.
Referências
1 Introdução
Trata-se aqui, ainda que brevemente, dos estudos sete, oito e nove de O si
mesmo como um outro (1991), nos quais Paul Ricoeur apresenta três momentos
de sua proposta ética, que ele chamou de “minha pequena ética” (mon petit
éthique), e que se utilizou de uma filosofia guiada pelo método hermenêutico,
aplicado à narrativa, com a finalidade de demonstrar como a ética resulta deste
vínculo (Cf. COSTA, 2008, p. 99). Nestes estudos, apresenta três momentos
básicos, a saber: a perspectiva ética, a norma moral e a sabedoria prática.
De acordo com a tradição teleológica, Ricoeur conserva o termo
“ética” para significar a vida realizada ou concluída de acordo com a ação
estimada como “boa”. E o termo “moral”, por outro lado, remete ao que
se impõe como “obrigatório”, segundo a visão deontológica, que indica
mais precisamente o dever ou a obrigação moral.
Neste sentido, Ricoeur frisa que não está apenas se valendo da dis-
tinção etimológica entre ética (do grego éthos) e moral (do latim mores),
pois ambos os termos remetem igualmente a costumes. E, ainda acresce
que, por convenção, fará dois usos diferenciados dos vocábulos: ética diz
respeito ao que é estimado como bom; e, moral, por sua vez, designa o
que se impõe como obrigatório (Cf. ROSSATTO, 2010, p. 46).
De acordo com Ricoeur, a sabedoria prática ou o juízo prudencial é um
momento que não se soma aos demais: é basicamente a compreensão de um
agente moral autônomo que inventa um comportamento adequado à singula-
ridade de cada caso, de cada situação existencial, em cada contexto de ação, se-
guindo de perto o sentido já proposto pela phronesis aristotélica ou a prudentia
latina. Assim, percebe-se que a noção de autonomia tem de ser enfraquecida,
já não podendo mais ser vista enquanto uma autonomia auto-suficiente, como
aquela pensada por Kant. A autonomia terá de ser situada e, neste sentido, li-
mitada pelas reais condições da existência singular (RICOEUR, 1991, p. 321).
Portanto, as formulações ricoeurianas nos mostram o lugar ocupado
em seu projeto pelas tradições aristotélica e kantiana, em tese opostas, e, a
busca de uma possível articulação entre ambas. Num primeiro momento,
Ricoeur estabelece a primazia da ética sobre a moral, remarcando desde
o início a antecedência da perspectiva teleológica da vida boa com respei-
to ao que se impõe como obrigatório. Contudo, isso não deve ofuscar a
dialética implicada nos dois passos seguintes, referentes à necessidade de
que a perspectiva ética passe pelo crivo da norma e, inversamente, que as
normas morais, frente a impasses, dilemas e situações novas, se orientem
pelo horizonte ético (Cf. ROSSATTO, 2008, p. 28). Desta forma:
A perspectiva ética terá de ser articulada em normas com a pretensão de
validade universal e com efeito de constrangimento e obrigatoriedade;
e as decisões morais, com base em valores recebidos do passado ou em
Após analisar o que escreve Ricoeur sobre isso e vê-lo testar esses
dois aspectos com base na oposição amigo-inimigo, conclui-se que a sa-
bedoria trágica deixa duas lições principais, a saber: i) Esta não é ética.
Consiste em ensinar que a tragédia não foi escrita para dar uma lição
de moral. Pelo contrário, ela conduz a um impasse ainda maior que tem
como ápice um desenlace ameaçador: ou você decide bem ou sofrerá as
mais terríveis consequências (Cf. RICOEUR, 1991, p. 290). A ameaça,
sim, esta exige uma resposta ética. Portanto, a solução ao impasse não
poderá vir da sabedoria trágica, esta apenas nos deixa diante de uma
“aporia ético-prática”. E, é daí que vem a segunda lição. ii) Um convite a
reorientar a ação. Como coloca o próprio Ricoeur: “após ter desorientado
o olhar, condena o homem da práxis a orientar de novo a ação com seus
próprios riscos e custos, no sentido de uma sabedoria prática em situa-
ção que responda melhor à sabedoria trágica” (RICOEUR, 1991, p. 290).
O que Ricoeur propõe para resolver os impasses morais é desenvolver
uma sabedoria prática em situação, que se constrói na diferenciação com a
proposta de Hegel de análise do trágico. E, neste sentido, com relação ao filó-
sofo alemão, dois deslocamentos são notáveis: Um diz respeito ao tipo de re-
conciliação; o outro, ao lugar do conflito no processo da aprendizagem moral.
De acordo com Ricoeur, a reconciliação hegeliana só ocorre depois
que os personagens envolvidos no conflito renunciarem em definitivo seus
próprios pontos de vista. O conflito só poderá ser resolvido assim, com a
abdicação das certezas individuais, em nome de um Saber Absoluto (Cf.
RICOEUR, 1991, p. 57). No entanto, a ideia defendida por Ricoeur é de um
processo ético-pedagógico capaz de acompanhar toda a extensão da ação.
A segunda correção ao hegelianismo, proposta por Ricoeur, im-
plicará no deslocamento do “lugar inevitável do conflito na vida moral”
(RICOEUR, 1991, p. 290). Se primeiramente o conflito estava situado no
início do processo dialético, necessitando de ser em seguida abandonado
por uma síntese superior, agora, necessariamente, ele terá de acompa-
nhar todo o percurso da ação (Cf. RICOEUR, 1991, p. 291). Diversamen-
te de Hegel, Ricoeur coloca: o conflito “não está somente à procura da
aurora da vida ética, mas se situa no decorrer do caminho que conduz
da regra ao julgamento moral em situação” (Cf. RICOEUR, 1991, p. 292).
Em complementaridade a este deslocamento, Ricoeur acrescenta,
da bondade, exige que não se faça sofrer mais alguém que já sofre muito.
Por fim, ainda acerca deste caso, Ricoeur faz algumas ponderações
na intenção de ajudar a superar esse dilema. Uma delas é no sentido de
que talvez se deva ter compaixão por aquelas pessoas que não estão em
condições físicas e morais para entender a verdade. Outra propõe que,
talvez, seja necessário saber dosar a comunicação da verdade, de acordo
com Ricoeur, há uma diferença entre enunciar a doença, indicar seu grau
de gravidade e proferir a verdade clínica como uma sentença de morte. E,
ainda, pondera Ricoeur, em muitos casos é possível que a verdade possa
chegar a um nível de troca que a relação entre dar e receber possa levar
à aceitação da morte, cumprindo assim com a difícil tarefa de equilibrar
o respeito à regra (ou à lei) e o respeito ao outro (solicitude). É, ainda,
importante destacar a referência que Ricoeur faz ao “justo meio” como
um bom conselho, sem ter valor de princípio universal, na resolução de
dilemas tais como o da vida começando e da vida acabando.
5 Conclusão
Referências
Gabriel Goldmeier
(UCL)
1
O fundamento dessa ideia está, em primeiro lugar, na crença na Bíblia: “A Bíblia é a palavra de Deus e
é a verdade” (Pedro 1:20; João 17:17 apud. Bioética e espiritualidade, GOLDIM, José Roberto, p.248.).
Mas também está na interpretação de que algumas de suas passagens, que fazem as Testemunhas de
Jeová acreditar que a Bíblia proíbe o consumo de sangue. Segundo Goldim, essas passagens são: "Todo
animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos
dou tudo. Somente a carne com sua alma - seu sangue - não deveis comer." (Gênesis 9:3-4); "Quanto
qualquer homem da casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer
qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e deveras o
deceparei dentre seu povo." (Levítico 17:10) e em uma citação nos Atos dos Apóstolos 15:19-21. (Dis-
ponível em: < http://www.bioetica.ufrgs.br/transfus.htm>. Acesso em 7 de junho de 2012)
como um ser humano livre. Logo, existe ou não o dever do Estado de res-
peitar a liberdade de escolha dessa pessoa? E se ela estiver inconsciente?
E se for uma criança?
O segundo dilema diz respeito à distribuição dos recursos de saúde.
Os recursos estatais são limitados e podemos supor que, ainda que, em
centros mais desenvolvidos, tratamentos alternativos sejam possíveis,
esses, às vezes, são mais caros do que as transfusões de sangue. Sendo
assim, se esses tratamentos alternativos forem oferecidos às Testemunhas
de Jeová, então menos recursos públicos sobrarão para o atendimento de
outras demandas; se não forem oferecidos a eles, então suas crenças não
estarão sendo respeitadas. Logo, existe ou não um dever do Estado de
promover tais tratamentos alternativos às Testemunhas de Jeová?
Atualmente, teóricos da política têm dialogado com o intuito de
desenvolver uma teoria da justiça que seja capaz de dar conta justamente
dos problemas relacionados ao reconhecimento de diferentes culturas, à dis-
tribuição de recursos e à garantia da liberdade de escolha. Assim, esse ensaio
procurará identificar, no debate político contemporâneo sobre o respeito
a diferentes culturas no interior de uma sociedade, os fundamentos para
as respostas aos dilemas propostos. (É importante marcar que esse texto
pretende apresentar o problema a partir de uma perspectiva da Filosofia
Moral e Política. Assim, pensaremos aqui apenas sobre os fundamentos
anteriores às ponderações legais com o intuito de auxiliar legisladores e ju-
ízes a elaborar e aplicar as leis de forma a melhor promoverem a justiça.)
cos - temas de interesse desse artigo - surgem no caso de nem sempre ser
possível recorrer a elas. Trabalharemos então com a hipótese de que, ao
menos em algumas situações, seria mais caro3 e, em outras, menos seguro,
ou mesmo impossível4, aplicar procedimentos alternativos às transfusões.
(Se essa hipótese for falsa, é claro, todo o restante do texto deve ser des-
considerado.) Nesses casos, a questão que se coloca é: ainda assim, a
vontade dos pacientes deve ser respeitada?
Refletiremos a seguir, em dois momentos distintos, sobre como
deve se comportar o Estado nessas duas diferentes situações. Antes, con-
tudo, observemos como o debate contemporâneo sobre a ideia de justiça
pode servir para iluminar a reflexão sobre essas questões.
artigos científicos que apresentam procedimentos alternativos à transfusão de sangue. São eles: João
Manoel Silva Junior e outros, “Transfusão sangüínea no intra-operatório, complicações e prognósti-
co”; Sandeep Chauhan e outros, “Redução do uso de sangue em cirurgia cardíaca pediátrica”; Roberto
L. Silva e outro, “Transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas sem uso de hemocompo-
nentes”; Maria Helena L. Souza e outro, “Cirurgia e perfusão sem transfusões de sangue”; Helmgton
José Brito de Souza e outro, “Estratégias para redução de uso de hemoderivados em cirurgia cardio-
vascular”; Pedro Paulo Tanaka e outro, “Substâncias carregadoras de oxigênio à base de hemoglobina:
situação atual e perspectivas”; Rodolfo D. Cançado, “Mieloma múltiplo e anemia”; Marcia Cristina Z.
Novaretti “Importância dos carregadores de oxigênio livre de células”.
3
Há casos em que, no mínimo, o deslocamento do paciente para uma outra localidade tornaria o custo
mais caro para o Estado. Um exemplo é o de um cidadão "que ajuizou na 3ª Vara da Fazenda Pública
da Comarca de Cuiabá (MT) ação cominatória para cumprimento de ação de fazer contra o Estado do
Mato Grosso, visando compelir o ente estatal a lhe custear cirurgia cardíaca (sem uso de transfusão
de sangue) no Hospital Beneficência Portuguesa, na cidade de São Paulo/SP. Tal procedimento poderia
ser realizado no Estado do Mato Grosso, mas somente mediante transfusão de sangue, o que ia de
encontro às convicções religiosas do paciente." (Disponível em: < http://jusvi.com/artigos/39291>.
Acesso em 10 de junho de 2012)
4
Há situações em que um paciente, em choque hemorrágico, perde muito sangue e precisa de rápida
reposição do mesmo para se manter vivo. Nesses casos, segundo a maioria dos médicos, a transfusão
se mostra a melhor alternativa para manter o paciente vivo.
5
Esse ponto deve ser desenvolvido.
pública, em que as crianças eram desde cedo tiradas de casa e criadas pelo
Estado. Defensores sensatos dessa posição tomam como algo necessário
a relação de troca familiar, só tentam regulá-la ao máximo para proteger
as crianças de pais eventualmente pouco interessados no futuro delas ou
incapazes de promover-lhes boas condições de vida.)
Referências
Mateus Stein
(UFSM)
1 INTRODUÇÃO
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
1 Introdução
1
As traduções dos textos de Francione e Regan apresentadas no decorrer deste ensaio foram realizadas
livremente pelo autor.
dos mesmos serem utilizados para fins que jamais poderiam ser conside-
rados como necessários em qualquer sentido significativo.
A confusão mental referente à visão dos seres humanos acerca dos
não humanos tem origem na condição de propriedade em que os últimos se
encontram. Francione (2008, p.71) assevera que qualquer proposta ético-
filosófica que busque abarcar os animais não humanos dentro do círculo
de atuação humano acaba enfrentando a dificuldade de contrapor o valor
moral dado aos não humanos com o valor que lhes é atribuído dentro
de uma perspectiva jurídico-filosófico-econômica. Em outras palavras, no
que concerne às relações legais entre animais e seres humanos, os primei-
ros possuem valor apenas como simples mercadorias, ou seja, não dife-
rem significativamente de brinquedos, eletrodomésticos, motocicletas, etc.
Tendo isso em vista, Francione ressalta:
O aspecto de propriedade dos animais é quase sempre o componente
principal na resolução de conflitos entre humanos e animais, pois ainda
que o status de propriedade não esteja explicitado, em quase todos os
casos nos quais interesses de humanos e de animais conflitam, é um
ser humano que almeja exercer domínio sobre sua propriedade. O ven-
cedor da disputa está predeterminado pela maneira como o conflito é
abordado desde o início. Assim, no que diz respeito à lei, é como se
estivéssemos resolvendo o conflito entre uma pessoa e uma lâmpada, ou
qualquer outro tipo de propriedade pessoal. (FRANCIONE, 1995, p. 24)
3
Acerca disso, Francione pontua: “O interesse humano em considerar animais como propriedade é tão
intenso que mesmo quando as pessoas não desejam considerar certos animais como mera “propriedade”
e, ao invés disso, almejam concebê-los como sendo membros de sua família (como no caso de cães, gatos
ou quaisquer outros companheiros animais), a lei geralmente se recusa a reconhecer esse tipo de relação.
Por exemplo, se uma pessoa mata o cão de outra por negligência, a maioria dos tribunais se recusa a
reconhecer o status do animal como membro da família, e limita ao proprietário a mesma indenização
que seria concedida se a propriedade fosse inanimada”. (FRANCIONE, 1995, p. 24).
4
No que concerne ao valor de mercado dos animais não humanos, Francione afirma que “em abso-
lutamente quase todos os sistemas políticos e econômicos modernos, animais são considerados ex-
plicitamente como sendo mercadorias que não possuem nenhum valor além daquele que lhes é dado
por seus proprietários – sejam indivíduos, corporações ou governos.” (FRANCIONE, 2000, p. 50).
Por sua vez, Regan não discute abertamente em seus escritos a condi-
ção de propriedade dos não humanos, optando por se concentrar no estatuto
moral em que se encontram. Ainda assim, Regan (2003, p. 40) observa que,
para as perspectivas ético-filosóficas de cunho contratualista 5, os animais
não são membros da comunidade moral humana, porquanto são incapazes
de tomar parte em acordos ou pactos, haja vista que alegadamente não de-
monstram as habilidades mentais necessárias para fazê-lo. Nesse sentido,
seus interesses não são moralmente relevantes, estando esses sempre sob o
jugo dos participantes do contrato. Dessa forma, por exemplo, não é permi-
tido ferir o cão de outra pessoa apenas devido aos interesses do seu proprie-
tário, o qual pode ter apreço pelo seu companheiro não humano, ou porque
tal ato consiste em uma violação dos direitos de propriedade para com o
dono do cão, ou simplesmente por que maltratar animais pode ser danoso às
relações morais humanas (REGAN, 1997, p. 84). Contudo, nenhuma dessas
justificativas envolve o interesse do cão em não sofrer, ele somente é alvo de
deveres indiretos por parte dos seres humanos.
Ao problematizar indiretamente a questão do estatuto dos animais
como propriedade, trabalhando-a apenas em contextos e situações espe-
cíficas, Regan acaba por ignorar as múltiplas estruturas de ordem legal,
econômica e cultural que possibilitam a perpetuação da desconsideração
moral para com os não humanos. Por conseguinte, para que seja alcan-
çada uma verdadeira e ampla compreensão das relações morais estabe-
5
As objeções levantadas por Regan às teorias morais contratualistas não serão alvo de análise no
presente ensaio.
6
No que diz respeito à noção de “direito” apresentada por Francione, este afirma: “um direito é uma
fórmula específica de proteger interesses. Dizer que um interesse é protegido por um direito é dizer
que esse interesse está protegido contra ser ignorado ou violado simplesmente porque isso irá benefi-
ciar alguém.” (FRANCIONE, 2000, p. 26).
8
Uma das múltiplas formulações pode ser encontrada na réplica feita por Regan às críticas realizadas por
Peter Singer aos seus escritos, publicada no The New York Review of Books, em 1985: <http://www.nybooks.
com/articles/archives/1985/apr/25/the-dog-in-the-lifeboat-an-exchange/>. Acessado em: 01/08/2012.
9
A tradução utilizada da nomenclatura dos referidos princípios foi apresentada originalmente em:
(NACONECY, 2006, p. 184).
tos dos animais, assim como para a sua proposta de abolição da explora-
ção não humana institucionalizada. Além disso, para Francione (2008,
p. 228), as tentativas de identificar pontos de convergência e divergência
cognitiva entre humanos e não humanos, como é o caso da pressuposi-
ção reganiana de que a morte é um dano maior para humanos do que
para animais, não apenas acabam revelando-se altamente problemáti-
cas, como evidenciado a partir da discussão acerca do dilema do bote
salva-vidas, mas também culminam em uma alarmante hierarquização
de valores morais entre as espécies. De modo que a igual consideração
moral acaba sendo substituída por um desigual tratamento e avaliação
dos interesses dos membros de espécies distintas.
Para Francione, em face da escolha de sacrificar o cão ou não, o
que deveria ser feito? Para responder satisfatoriamente essa indagação
alguns dos tópicos previamente debatidos precisam ser retomados. Pri-
meiro, afirma-se que os não humanos são portadores de interesses mo-
ralmente relevantes e os seres humanos possuem o dever de não lhes
infligir sofrimento desnecessário. Contudo, devido ao fato de os animais
serem propriedade, seus interesses não serão reconhecidos com a mesma
intensidade que as preferências humanas. Com efeito, para que os não
humanos sencientes sejam considerados como eticamente significativos,
sua condição de propriedade deve ser extirpada.
Em segundo lugar, outra intuição compositiva do pensamento moral
humano acerca dos animais concerne ao fato de que, em situações de conflito,
dever-se-ia escolher o humano em detrimento do animal. Ou seja, quando
deparado com a decisão iminente de sacrificar o cachorro, um indivíduo ig-
noraria completamente todas as suas perspectivas morais prévias referentes
ao sofrimento animal para amparar os humanos. Em suma, mais uma vez a
concessão do direito básico a não ser tratado como propriedade seria vetada
aos não humanos e seus interesses considerados moralmente insignificantes.
Entretanto, de acordo com Francione (2000, p. 165), uma abordagem
distinta poderia resultar no fim de cenários como o do bote salva-vidas. Se
os seres humanos reconhecerem que os não humanos possuem o direito
básico de não ser tratados como propriedade e, por conseguinte, abolirem
as instituições que regulamentam e fomentam a exploração animal, então
finalmente seria possível avaliar de modo justo os interesses animais.
6 ConCLUSÃO
Referências