des, segundo o qual “todo mundo começa Rimbaud e acaba
Olegário Mariano”. Divirto-me porque sei que essa coisa é
Disciplina: “Técnicas de Redação e Interpretação”
Turma: 2ª. Série do Ensino Médio
Responsável: Prof. Adriano Tarra Betassa Tovani Cardeal
Tema redacional 03: Causas e efeitos sociais do analfabe-
tismo funcional na contemporaneidade brasileira.
Analfabético. adj. (a1899) 1 que não tem alfabeto (diz-se
de língua) 2 relativo a analfabeto ETIM analfabeto + –ico.
(HOUAISS, Antônio et al. Dicionário Houaiss da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 124)
Analfabetismo. s.m. (1899) estado ou condição de analfa-
beto; falta de instrução, sobretudo da elementar (ler e escre-
ver) ETIM analfabeto + -ismo ANT alfabetismo, instrução.
(HOUAISS, Antônio et al. Dicionário Houaiss da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 124)
Analfabeto. adj. s.m. (a1710) 1 que ou aquele que desco-
nhece o alfabeto; que ou aquele que não sabe ler nem escre-
ver 2 que ou aquele que não tem instrução primária 3 p.ext.
que ou o que é muito ignorante, bronco, de raciocínio difícil
4 p.ext. B que ou aquele que desconhece ou conhece muito
mal determinado assunto ou matéria <ser (um) a. em políti-
ca, em matemática> a. de pai e mãe pessoa totalmente anal-
fabeta • a. funcional indivíduo cujas habilidades de leitura
e escrita são insuficientes para atender às necessidades prá-
ticas do dia a dia e para promover o seu desenvolvimento
pessoal e profissional ETIM lat. tar. analphabetus,a,um, do
gr. analphábétos,os,on “que não conhece o alfabeto”, de
a(n)- + alphábétos,ou.
(HOUAISS, Antônio et al. Dicionário Houaiss da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 124-125)
Da fala ao grunhido
Ferreira Gullar
Desconfio de que, depois de desfrutar, durante quase
toda a vida, da fama de rebelde, estou sendo tido, por certa
gente, como conservador e reacionário. Não ligo para isso e
até me divirto, lembrando a célebre frase de Millôr Fernan-
1
mais complicada do que parece e, fiel ao que sempre fui,
não aceito nada sem antes pesar e examinar. Hoje é comum
ser a favor de tudo o que, ontem, era contestado. Por exem-
plo, quando ser “de esquerda” dava cadeia, só alguns poucos
assumiam essa posição; já agora, quando dá até emprego,
todo mundo se diz “de esquerda”. De minha parte, pouco se
me dá se o que afirmo merece essa ou aquela qualificação,
pois o que me importa é se é correto e verdadeiro. Posso es-
tar errado ou certo, claro, mas não por conveniência. Está,
portanto, implícito que não me considero dono da verdade,
que nem sempre tenho razão, porque há questões complexas
demais para meu entendimento. Por isso, às vezes, se não
concordo, fico em dúvida, a me perguntar se estou certo ou
não. Cito um exemplo. Outro dia, ouvi um professor de Por-
tuguês afirmar que, em matéria de idioma, não existe certo
nem errado, ou seja, tudo está certo: tanto faz dizer “nós va-
mos” como “nós vai”. Ouço isso e penso: que sujeito baca-
na, tão modesto que é capaz de sugerir que seu saber de nada
vale. Mas logo me indago: será que ele pensa isso mesmo
ou está posando de bacana, de avançadinho? E se faço essa
pergunta é porque me parece incongruente alguém, cuja
profissão é ensinar o idioma, afirmar que não há erros. Se
está certo dizer “dois mais dois é quatro”, então a regra gra-
matical, que determina a concordância do verbo com o su-
jeito, não vale. E, se não vale essa nem nenhuma outra – u-
ma vez que tudo está certo –, não há por que ensinar a lín-
gua. A conclusão inevitável é de que o professor deveria
mudar de profissão, porque, se acredita que as regras não
valem, não há o que ensinar. Mas esse vale-tudo é só no
campo do idioma, não se adota nos demais campos do co-
nhecimento. Não vejo um professor de medicina afirmando
que a tuberculose não é doença, mas um modo diferente de
saúde, e que o melhor para o pulmão é fumar charutos. É
verdade que ninguém morre por falar errado, mas, certa-
mente, dizendo “nós vai” e desconhecendo as normas da lín-
gua, nunca entrará para a universidade, como entrou o nosso
professor. Devo concluir que gente pobre tem mesmo que
falar errado, não estudar, não conhecer ciência e literatura?
Ou isso é uma espécie de democratismo que confunde opini-
ão crítica com preconceito? As minorias, que eram injusta-
mente discriminadas no passado, agora estão acima do bem
e do mal. Discordar disso é preconceituoso e reacionário. E,
assim como para essa gente avançada não existe certo nem
errado, não posso estranhar que a locutora da televisão diga
“as milhares de pessoas” ou “estudou sobre as questões” ou
“debateu sobre as alternativas” em vez de “os milhares de
pessoas”, “estudou as questões” e “debateu as alternativas”.
A palavra “sobre” virou uma mania dos locutores de televi-
são, que a usam como regência de todos os verbos e em to-
das as ocasiões imagináveis. Sei muito bem que a língua
muda com o passar do tempo e que por isso mesmo o portu-
guês de hoje não é igual ao de Camões e nem mesmo ao de
Machado de Assis, bem mais próximo de nós. Uma coisa,
porém, é usar certas palavras com significados diferentes,
construir frases de outro modo ou mudar a regência de cer-
tos verbos. Coisa muito distinta é falar contra a lógica na-
tural do idioma ou, simplesmente, cometer erros gramati-
cais primários. Mas a impressão que tenho é de que estou
malhando em ferro frio. De que adianta escrever essas coi-
sas que escrevo aqui se a televisão continuará a difundir a
fala errada cem vezes por hora para milhões de telespecta-
dores? Pode o leitor alegar que a época é outra, mais dinâmi-
ca, e que a globalização tende a misturar as línguas como
nunca ocorreu antes. Isso de falar correto é coisa velha, e o
que importa é que as pessoas se entendam, ainda que apenas
grunhindo.
(Folha de S. Paulo, “Ilustrada”, 25.03.2012)
Verdade e preconceito
Ferreira Gullar
Tenho comentado aqui o fato de que, para alguns lin-
guistas, nunca há erro no uso do idioma: tanto faz dizer
“problema” como “pobrema”, que está certo. Confesso que,
na minha modesta condição de escritor e jornalista, surpre-
endo-me, eu que, ao suspeitar de que poderia me tornar poe-
ta, passei dois anos só lendo gramáticas. E sabem por quê?
Porque acreditava que escritor não pode escrever errado. E
agora descubro que ninguém escreve errado nunca, pois to-
do modo de escrever e falar é correto! Perdi meu tempo?
Mas alguma coisa em mim se nega a concordar com os lin-
guistas: se em todo campo do conhecimento e da ação hu-
mana se cometem erros, por que só no uso da língua não? É
difícil de engolir. Essa questão veio de novo à baila com a
notícia de um livro, adotado pelo Ministério da Educação e
distribuído às escolas, em que a autora ensina que dizer “os
livro” está correto. Estabeleceu-se uma discussão pública do
assunto, ficando claro que, fora os linguistas, ninguém acei-
ta que falar errado esteja certo. Mas não é tão simples assim.
Falar não é o mesmo que escrever e, por isso, falando, muita
vez cometemos erros que, ao escrever, não cometemos. E,
às vezes, usamos expressões deliberadamente “erradas”, ou
para fazer graça, ou por ironia. Mas, em tudo isso, está im-
plícito que há um modo correto de dizer as coisas, pois a lín-
gua tem normas. O leitor já deve ter ouvido falar de “entro-
pia”, uma lei da Física que constata a tendência de sistemas
físicos para a desordem. Essa tendência parece presente em
todos os sistemas, inclusive nos idiomas, que são também
sistemas. Devemos observar que as línguas, como organis-
mos vivos que são, mudam, transformam-se, como se pode
verificar comparando textos escritos em épocas diferentes.
Há, ainda, as variações do falar regional, que guarda inevitá-
veis peculiaridades que constituem riqueza do idioma. Mas
isso não é a mesma coisa que entropia. Já violar as normas
gramaticais é, sim, caminhar para a desordem. Se isso é na-
tural e inevitável, é também natural o esforço para manter a
ordem linguística, que não foi inventada pelos gramáticos,
mas formulada e sistematizada por eles: nasceu naturalmen-
te, porque, sem ela, seria impossível as pessoas se entende-
rem. Nesta minha condição de “especialista em ideias ge-
rais” (Otto Lara Resende), verifico que, atualmente, não só
na Linguística, tende-se a admitir que tudo está certo. Se al-
guém discorda dessa generosa abertura, passa a ser tido co-
mo superado e preconceituoso. Agora mesmo, durante a dis-
cussão em torno do livro, os defensores da tese linguística
afirmaram que quem dela discordava era por preconceito.
Um dos secretários do ministro da Educação decla-rou que
aquele ministério não se julgava “dono da verdade” e que,
por isso mesmo, não poderia impedir que o livro fosse com-
prado e distribuído às escolas. Uma declaração surpreen-
dente, já que ninguém estava pedindo ao ministro que afir-
masse ou negasse a existência de Deus, mas, tão somente,
decidisse sobre uma questão pertinente à sua função minis-
terial. Não é ele o ministro da Educação? Não é ele respon-
sável pelo rumo que se imprima à educação pública no país?
Se isso não é de sua competência, é de quem? De fato, o que
2
estava por trás daquela afirmação do secretário não era bem
isso, e sim que a crítica ao livro em discussão não tinha ne-
nhum fundamento: era mero preconceito. Ou seja, simples
pretensão de quem se julga dono da verdade que, qual se sa-
be, não existe. Tal relativismo, bastante conveniente quando
se quer fugir à responsabilidade, tornou-se a maneira mais
fácil de escapar à discussão dos problemas. Certamente, não
se trata de afirmar que as normas e princípios que regem o
idioma ou a vida social estejam acima de qualquer crítica,
mas, pelo contrário, devem ser questionados e discutidos.
Considerar que todo e qualquer reparo a este ou aquele prin-
cípio é mero preconceito, isso sim, é pretender que há verda-
des intocáveis. Não li o livro, não quero julgá-lo a priori.
Creio, porém, que quem fala errado vai à escola para apren-
der a falar certo, mas, se para o professor o errado está certo,
não há o que aprender.
(Folha de S. Paulo, “Ilustrada”, 29.05.2011)
Palavras da “geração sem palavras”
Segismundo Spina
Nós não vivemos apenas numa época de mitos vazi-
os de sentido, de aburguesamento da mentalidade, de des-
respeito às autoridades e às instituições, de carência de ho-
mens públicos, de câmbio negro oficializado e de inflação
desenfreada; atravessamos, sobretudo, uma fase em que o
maior instrumento da inteligência está em bancarrota: a pa-
lavra, ou melhor, a língua de que nos servimos. Há dois a-
nos, numa solenidade universitária, tivemos o ensejo de a-
bordar o problema perante uma turma de novos licenciados
em Letras, destinados que estavam ao magistério da língua
portuguesa. Dizíamos que 75 por cento dos candidatos a
vestibulares, nos cursos de Letras da Faculdade de Filosofia,
são reprovados pelo desconhecimento do idioma. Todos sa-
bemos as condições precaríssimas com que se apresentam
esses candidatos ao vestíbulo das escolas superiores, inteira-
mente desprovidos de conhecimentos de língua e de literatu-
ra, incapazes para uma redação sobre tema qualquer, inca-
pazes de ligar duas ideias em coerência, incapazes de en-
frentar a discussão de um problema, ou de fazer uma exposi-
ção oral sobre determinado assunto. E essa geração foi – co-
mo todos sabem – denominada “geração sem palavras”. De
fato, ninguém mais lê. A característica intelectual mais evi-
dente da nova geração são incapacidade de exprimir-se, po-
breza de vocabulário e apego à linguagem gírica como tábua
de salvação. Hoje, a linguagem perdeu a capacidade de clas-
sificar socialmente os indivíduos, porque as próprias pesso-
as da alta sociedade servem-se da linguagem dos desclassi-
ficados – que são a gíria e suas derivações. E o que leem?
Quando saem da literatura de quadrinhos (e alguns não con-
seguem ultrapassar essa esfera de leitura), ingressam nou-
tras formas perniciosas de ilustrações, quase todas criações
norte-americanas: os clubes de livro ou as publicações peri-
ódicas tipo Seleções, que criminosamente oferecem ao leitor
moderno o resumo das obras literárias ou das grandes cria-
ções do espírito. O editor, a preço módico, oferece ao leitor
o seu livro mensal ou a sua revista de literatura; nada mais
desastroso para o espírito crítico, pois o próprio editor se in-
cumbe de selecionar as leituras do leitor de hoje. E isso sem
falar da estratégia comercial dessas instituições, do envene-
namento psicológico da juventude e do deplorável sentido
de homogeneização, de padronização da cultura intelectual.
Essa é a leitura a que se entregam nossos escolares, quando
o fazem. É notória, aliás, a miséria dos meios expressivos
do estudante de hoje, fruto da falta de leitura, da perda de
contato com os genuínos textos literários; já não dizemos da
perda de contato com os clássicos – que isso seria espantar
os espíritos desapercebidos; mas do divórcio em que está a
mocidade de nossos dias com uma das verdadeiras fontes da
vida: a literatura. E por que não se lê nas escolas secundári-
as? Simplesmente, porque ou os professores não sabem ori-
entar a leitura de um texto, no sentido de extrair dele uma
lição de vida e um aprimoramento de nossa sensibilidade
linguística, ou, então, o professor abandonou o regime de
leitura porque o seu espírito está escravizado àquela mística
do programa teórico a cumprir. A quase totalidade dos pro-
fessores do vernáculo julga que lecionar a língua é ensinar
gramática. Esquecem-se de que é lendo e escrevendo que se
aprende a língua, que se disciplina o pensamento e se apri-
moram as nossas qualidades expressivas. Nessa desvitaliza-
ção da cultura, é, particularmente, sensível a perniciosa in-
fluência educativa do cinema e da televisão. “A ação dramá-
tica em si é, praticamente, toda expressa no exteriormente
visível, enquanto a palavra falada é relegada a um plano se-
cundário. A arte de ver passou a ser mera destreza na com-
preensão e apercepção rápida das imagens visuais em contí-
nua mudança”, diz Johan Huizinga. É o que se verifica tam-
bém com as histórias em quadrinhos, em que o processo ci-
nemático substitui, até certo ponto, a palavra. A nova gera-
ção adquiriu essa percepção cinemática em grau espantoso.
Tal tendência mecânica da compreensão só pode significar
atrofia de uma série completa de funções intelectuais. Entre
elas, a capacidade de julgar. Como todos sabem, as propa-
gandas comercial e política estão baseadas nessa suscetibili-
dade do homem médio à sugestão pictórica ou imagética. A
impressionabilidade rápida, que o anúncio provoca, sugere
o pensamento de satisfazer-se um desejo rapidamente, inde-
pendentemente de reflexão. A palavra, ao contrário, exige
meditação, obriga o exercício reflexivo da inteligência. Daí
o seu desprestígio, e daí o declínio do espírito crítico, o obs-
curecimento da capacidade de julgar, uma das maiores en-
fermidades de nossa geração. Da incapacidade de julgar ad-
vém, consequentemente, o desprezo pela verdade, que hoje
atingiu o seu ponto culminante na “declarada advocacia da
mentira política”. Procure-se observar essa incapacidade de
nossa juventude – já não direi para julgar – para a definição
das coisas e dos fatos. Acostumados a não penetrar a essên-
cia da realidade – porque isso exige elaboração intelectual
–, os jovens escolares, diante de um problema de definição,
limitam-se a dizer: “Bem, isto é quando...”. Não dizem, ob-
jetivamente: “Isto é isto”, porque não sabem definir: carac-
terizam a realidade pela circunstância, não pela essência da-
quela. E o que é pior: conhecem a realidade exemplificando-
-a, não como fruto de reflexão, como resultado de elabora-
ção mental. O regresso, pois, do educando à leitura é parte
da terapêutica das enfermidades mentais de que padece a
nossa geração. A nossa vida social patenteia uma multidão
de sintomas alarmantes que mais bem se podem agrupar sob
a designação de “enfraquecimento da capacidade de julgar”
– conclui o grande ensaísta Johan Huizinga, em sua obra
Nas sombras do amanhã, em que tenta um diagnóstico sere-
no da enfermidade espiritual do nosso tempo. A culpa desse
estado de coisas não reside, propriamente, na nossa juventu-
de; as causas são inúmeras, complexas (algumas, até inevi-
táveis), e a terapêutica deve merecer, por parte de pedago-
gos especializados, um estudo sério porque se trata de cala-
midade. Há quase cinco anos, vimos acumulando os teste-
munhos positivos disso que hoje rotulamos “calamidade”.
3
Em 1955, participamos, como presidente de uma banca exa-
minadora de Português, num concurso de ingresso ao ma-
gistério secundário. No Relatório do Concurso, lido quando
da proclamação pública das notas, no salão nobre da Facul-
dade de Filosofia da Universidade de São Paulo, expusemos
o doloroso balanço das condições intelectuais e morais com
que os 78 candidatos se apresentaram. Não é, hoje, ocasião
oportuna para uma transcrição desse depoimento público,
senão apenas para lembrar que a Comissão Examinadora
pusera em relevo o fato de que os elementos formados pelas
Faculdades de Filosofia, na quase maioria, demonstraram,
naquele Concurso, prova de incapacidade, acontecimento
que constituía uma séria advertência aos departamentos de
Letras desses institutos universitários. Para não falarmos
das monstruosidades no domínio da cultura geral dos candi-
datos, invoquemos apenas alguns exemplos de ortografia,
ou melhor, de cacografia: “ritimo”, “ipotético”, “diverças”,
“intensão”, “uzada”, “realse”, “talvês”, “hibérica”, “fixão”
(por “ficção”), “heruditas”, “faicha”, “hera cristã”, “Ome-
ro”, “tássito”, “alcansar”, “françes”, “luzitania”, “ouve”
(verbo “haver”), “líame”; e expressões pleonásticas, como
“medida métrica”, “origens etimológicas”, “terminologia
do vocabulário”, “lirismo singelo e simples” etc.
E o que é de lastimar: o nível tende a piorar. Nos ves-
tibulares do ano passado, para o curso de Pedagogia da Fa-
culdade de Filosofia da USP, apresentaram-se candidatos
que constituem um testemunho evidente do descalabro em
que anda o ensino da língua portuguesa e da crise mental em
que se debate uma boa porção da nossa mocidade. Pedimos
permissão para transcrever, a título de exemplo, as redações
de duas provas de Português, em que, para dissertação, pro-
pusemos este tema: “Discutir a seguinte afirmação: ‘Em um
livro, o que importa é a ideia; a forma é indiferente’”. Pois
bem; eis o texto de uma, na íntegra:
A ideia externada no fruir constante do expô-la, tem, obvi-
amente no seu conteudo a importancia-mater. No encadear dos
proteiformes conceitos que cada pessoa vivencia no interpretar
da cultura, emanam novidades nas linhas de seu argumentar. O
escritor fará jorrar a cada leitor o seu assimilar e cada leitor terá
uma interpretação propria. Os livros são idealizados a um imensu-
ravel numero de leitores e isto obriga o escritor apresentar o mais
requintado expor de seu idear. Os varios tipos de livros impõe ao
escritor o seu campo de possibilidades possibilitantes no explicar
do seu recondito. A eidética de cala livro é a sua essencia mas
estigmatizar a sua forma como um simples envolucro de coisas e
ir ao extremo da indiferença do expressar. O estilo é uno, e nem
todos tem felicidade de simbolizar: o que sentem, o que sabem, o
que podem, com clareza, precisão e concatenação. Evidentemen-
te, todos os livros estão subjuldos (“subjugados”?) às suas ideias,
pois é facil sofisticar com palavras bem entrosadas no devanear
do querer persuadir, se persuadindo. Mas a ideia só surgi (digo i-
deia verdadeira) através de pesquisas incansaveis e no fluir do
manancial de conhecimentos. A ideia é a celula-mater de todo ex-
por, mas a forma a ela está ligada como causa de seu proveito.
No amplo campo do bivaquês da nossa Literatura encontramos
escritores que tendem aos varios as formas – formando um estilo
perseguido pela arte de escrever, enquanto outros procuram sem
burilar os laivos de seus sentimentos. A forma é a que primeiro
impressiona e daí espalha-se essencia do livro – a ideia.
Quem lê uma prova dessas, julga imediatamente tra-
tar-se de alienação mental. Percebe-se, logo, que o espírito
do examinando, inteiramente vazio de conteúdo, fora atra-
vessado por algum professor de Filosofia, desses (e não são
poucos) que conduzem ao seu magistério apenas o arcabou-
ço da matéria, tão evidente no vocabulário pseudo-filosófi-
co que informa a presente redação. Um ligeiro exame esti-
lístico denuncia, imediatamente, as condições intelectuais e
patológicas do candidato: o excesso de infinitivos denota a
incapacidade de articulação dos pensamentos, visão quase
amorfa da realidade. A superfetação filosófica, que se mani-
festa num vocabulário como “proteiforme”, “vivenciar”,
“intuir”, “eidética”, “sofisticar” etc., é o retrato vivo de uma
época que vive de símbolos vazios – como dissemos. Fala-
-se duma “geração sem palavras”; diria que a nossa geração
se classifica em dois tipos: “geração sem palavras” e “gera-
ção com excesso de palavras”. A prova acima transcrita ins-
tala-se na segunda categoria. Ambos os tipos caracterizam-
-se, no entanto, pelo niilismo das ideias. A Folha da tarde,
na segunda edição, de 31 de março de 1959, reproduzia, ao
alto da página, excerto de discurso, pronunciado pelo verea-
dor Antônio Bichara, por ocasião da solenidade de instala-
ção da legislatura na Câmara Municipal de Salvador. Dizia
o edil: “Aqui, ficaremos estáticos na defesa do povo, que,
ante o custo da vida, fica como o oceano que se lança ante
as ondas revoltas do mar. Estaremos na defesa dos brios
transcendentes da população”. O espírito é o mesmo; a for-
ma ainda se salva porque a pontuação do discurso se deve,
naturalmente, ao articulista que a publicou. Passemos, pois,
à transcrição da outra prova, que, se enfastia o leitor por a-
longar o artigo, diverte-o pelo pinturesco do conteúdo:
No estudo da percepção, podemos constatar, que o con-
junto das imagens é denominado ideia. Mas para que haja uma
manifestação clara de uma ideia, é preciso que haja claresa na
forma de quem a externa. A linguagem nos coloca em contato
com o mundo subjetivo de indivíduos que nos cercam, não poden-
do portanto ser de forma confusa. Se a ideia fosse o premordial,
haveria muita facilidade na interpretação na obra de Camões, o
que infelizmente não sucede. Qualquer criança a entenderia, sem
haver necessidade de interpretação, e estudos sobre ela. Certos
autores, empregaram uma figura de retorica, o eufemismo; como
exemplo temos: “Fulano foi levado ao reino escuro”. É muito boni-
to esta disposição das palavras, mas carece de objetividade. Seri-
a muito mais digo, logico se escrevesse: “Fulano morreu”. Existem
livros cansativos, contendo ideias notaveis, mas escritos de tal
forma que muitas vezes não chegamos a terminá-los. A logica tem
por finalidade o pensamento, a linguagem é a sua forma de ser
externada, se a forma não é concisa, o pensamento esta mal ex-
posto. A forma pode ser dubia, mas a ideia pode ser unica no mes-
mo caso, o que nos acarreta um estado de confusão. O gongoris-
mo, é uma forma de expressão que obteve grande sucesso, mas
foi logo abandonado por tornar muito longa a manifestação de u-
ma ideia, por meio da linguagem [...].
Hoje, é normal apresentarem-se, nos vestibulares aos
cursos de Letras da Faculdade, candidatos que jamais leram
uma obra literária integralmente. Quando, há quinze anos,
podíamos perguntar ao examinando, na prova oral: “Que o-
bra de Eça de Queirós o senhor não leu?”, hoje, apenas nos
limitamos a indagar se leu alguma coisa deste ou daquele
escritor, pois não tarda a cínica resposta: “Eu li, mas há mui-
to tempo, um trecho numa antologia...” (nem dizem “tre-
cho” ou “passagem” de livro – dizem “pedaço”). Em dois
ou três números de A gazeta, de 1957, um professor diag-
nosticava, a propósito dos vestibulares da Faculdade de Fi-
losofia, os males no ensino da língua portuguesa, e chamava
especialmente atenção para o magistério da língua nos gru-
pos escolares. A propósito ainda, há alguns dias, retirei mi-
4
nha filha de uma escola primária recentemente instalada na
capital paulista, que se orgulha de funcionar de acordo com
os mais modernos padrões pedagógicos, desde as instala-
ções até ao corpo docente especializado. A professora da
menina, numa incontida indignação, escreveu-nos uma car-
ta sobre a atitude tomada. O aspecto subjetivo, aqui, nada
importa, mas sim a carta em si, a redação em que está vaza-
da, mais um testemunho da desmoralização a que chegou a
formosa língua portuguesa. Façamos vista grossa aos crimes
cometidos contra o regime ortográfico – tais como “consci-
encia”, “tôdas”, “êsse”, “vêzes”, “voce”, “tira-la” –, bem
como às monstruosidades da pontuação, que danificam in-
teiramente a carta. Mas erros como “mãis”, “ofencivo”, “as
vezes”, “brada os ceus!”, “nunca mimosiei-a” “chamava na
lousa” e outras teratologias que causam pena – mas causam,
principalmente, apreensões angustiantes aos pais que têm
pela frente o drama da educação dos filhos. Erros dessa na-
tureza, dizíamos, são de bradar aos céus, inexplicáveis nu-
ma professora, que não dispõe do mínimo exigível para leci-
onar numa escola de roça, quanto mais numa escola ultra-
moderna da nossa capital. Se tivéssemos que fazer um ba-
lanço esquemático das causas mais evidentes desse doloro-
so estado de coisas, começaríamos pelo ensino primário, em
que o problema existe em função de substitutas incompeten-
tes, do regime de promoção ligado à contagem de pontos
pelo índice de aprovação conseguido pela professora, da fal-
ta de cursos intensivos de língua portuguesa nas Escolas
Normais, da redução do período letivo (às vezes, de nem du-
as horas...), de professoras que deixam de sê-lo fora da esco-
la (pois acham que levar trabalhos para corrigirem em casa
constitui “serviço extraordinário” que o governo não paga),
enfim, de não poucas Escolas Normais inescrupulosas, que
escapam à vigilância das autoridades, espeluncas transfor-
madas em fábricas de mestres incapazes. Depois envereda-
ríamos pelo secundário, em que o ministério da língua está
em crise, explicável em parte por aquelas causas anteriores,
em parte pela mística dos programas teóricos a cumprir, e
agravada por um mal que nos parece insuperável: a remo-
ção, essa roleta que põe a perder o ensino em geral, pois o
aluno, hoje, nem chega a saber o nome de seus mestres, tal
o número de professores que veio a conhecer em cada disci-
plina, nos seus 4 ou 7 anos de segundo ciclo. Mas falham
também as escolas superiores, onde se estudam cursos espe-
cializados de fonética, de história da língua, mas não se es-
tuda o idioma como é. Aliás, o ensino de Filologia nos cur-
sos superiores deveria estar dividido em duas seções: “ensi-
no do vernáculo”, com seus fundamentos históricos – para
os que se destinem ao magistério secundário; “ensino espe-
cializado do idioma” (com os cursos de fonética, semântica,
estilística, história da língua, leituras paleográficas, prepara-
ção de edições críticas, ecdótica etc.) – para os que se desti-
nem à pesquisa. Outras causas há, mas que a nossa posição
profissional impede de abordar publicamente. Não nos im-
pede, porém, assinalar as que formam a moldura e sombra
do melancólico panorama esboçado: televisão, cinema, his-
tórias em quadrinhos, literatura dirigida (livros do mês, Se-
leções etc.) e luta pela vida. Um balanço judicioso, desses
que só o bom senso do verdadeiro educador pode realizar,
fê-lo Paulo Rónai, recentemente, em Anhembi (número 109,
dezembro de 1959), num artigo intitulado “Reflexões de um
professor secundário”. A experiência das escolas húngaras
– onde se formou –; das francesas – onde ministrou cursos
–; das nossas – em que milita com devoção desinteressada
– permitiu-lhe perceber certos ângulos da crise pedagógica
por que passamos no ensino secundário; levantando peque-
nas estatísticas do exercício e da produção escolares num
regime de programas teóricos bizantinos astronômicos, de
pletora de exames parciais, de períodos longos e mal distri-
buídos de inatividade escolar (férias), de sufocação burocrá-
tica e divórcio entre o mestre e o aprendizando, Paulo Rónai
esboçou uma dolorosa radiografia do Ensino Médio brasi-
leiro. Se nos perguntassem como salvar a língua portuguesa
dessa decadência, a nossa experiência poderia apontar uma
série de roteiros didáticos, de expedientes possíveis de recu-
peração parcial, de modificações na estrutura do ensino do
vernáculo, mas todas sugestões empíricas, por certo. Aos
órgãos competentes do governo, sob a direção de pedagogos
especializados, é que deveria ser entregue esse problema,
cuja solução nos parece mais importante do que a do proble-
ma da carne ou do feijão.
(SPINA, Segismundo. “Palavras da geração sem palavras”.
In: _______. Da Idade Média e outras idades. São Paulo:
Conselho Estadual de Cultura, 1964, p. 39-47).
Geração “só a cabecinha”
Beatriz Granja
Outro dia, vi um estudo que diz que 25% das músi-
cas do Spotify são puladas após 5 segundos, e que metade
dos usuários avança a música antes do seu final. Enquanto
isso, no YouTube, a média de tempo assistindo a vídeos não
passa dos 90 segundos. O mais chocante desses dois dados
é que o uso do Spotify e do YouTube, em geral, está focado
no lazer, no entretenimento, ou seja, se não temos paciência
para ficar mais de 90 segundos focado em uma atividade
que nos dá prazer, o que acontece com o resto das coisas?
Você ficou sabendo da entrada do ator Selton Mello no se-
riado Game of Thrones? Saiu em vários grandes portais
brasileiros e a galera na internet compartilhou loucamente
a notícia. Tudo muito bacana, não fosse a notícia um hoax,
boato inventado por um empresário brasileiro apenas pra
zoar e ver até onde a história poderia chegar. Bem, ela foi
longe: mais de 500 “tuítes” com o link, mais de 3 mil com-
partilhamentos no Facebook, mais de 13 mil curtidas, ma-
téria em vários sites. Quem não tem paciência de ouvir cin-
co segundos de uma música, tem menos paciência ainda
para ler uma notícia inteira. Pesquisas já mostraram que a
maioria das pessoas compartilha reportagens sem ler. Vira-
mos a “geração ‘só a cabecinha’”, um amontoado de pesso-
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as que vive com pressa, ansiosas demais para se aprofundar
nas coisas. Somos a geração que lê o título, comenta, com-
partilha, mas não vai ao fim do texto. Não precisa, porque
ninguém lê! Nunca achei que a internet alienasse as pesso-
as ou nos deixasse mais burros, pois sei que a web é o que
fazemos dela. Ela é sempre um reflexo do nosso eu, para o
bem e para o mal. Mas é verdade que as redes sociais causa-
ram, sim, um efeito esquisito nas pessoas. A timeline corre
24 horas por dia, 7 dias da semana, e é veloz. Daí que muita
gente acaba reagindo aos conteúdos com a mesma rapidez
com que eles chegam. Nas redes sociais, um link dura, em
média, três horas. Esse é o tempo entre ser divulgado, espa-
lhar-se e morrer completamente. Se for uma notícia, o ciclo
de vida será ainda menor: 5 minutos. Cinco minutos! Não
podemos nos dar o luxo de ficar de fora do assunto do mo-
mento, certo? Então, é melhor emitir logo qualquer opinião
ou dar aquele compartilhar maroto só para mostrar que es-
tamos por dentro. Não precisa aprofundar; daqui a pouco,
virá outro assunto mesmo. Por outro lado... quem lê tanta
notícia? Se Caetano Veloso já achava que tinha muita notí-
cia nos anos 1960, o que dizer de hoje? Ao mesmo tempo
em que essa atitude é condenável, também é compreensí-
vel. Todo mundo é criador de conteúdo; queremos acompa-
nhar tudo, mas não conseguimos. Resta-nos apenas respirar
fundo, tentar manter a calma e assimilar a maior quantidade
de informações que pudermos sem clicar em nada. Será que
conseguiremos?
(Revista Galileu, 16.07.2014)
Analfabetismo funcional
Thomaz Wood Júnior
A condição de analfabeto funcional aplica-se a indi-
víduos que, mesmo capazes de identificar letras e números,
não conseguem interpretar textos e realizar operações mate-
máticas mais elaboradas. Tal condição limita severamente o
desenvolvimento pessoal e profissional. O quadro brasileiro
é preocupante, embora alguns indicadores mostrem uma e-
volução nos últimos anos. Uma variação do analfabetismo
funcional parece estar presente no topo da pirâmide corpo-
rativa e na academia. Em uma longa série de entrevistas rea-
lizadas por este escriba, nos últimos cinco anos, com direto-
res de grandes empresas locais, uma queixa revelou-se roti-
neira: falta a muitos profissionais da média gerência a capa-
cidade de interpretar de forma sistemática situações de tra-
balho, relacionar devidamente causas e efeitos, encontrar
soluções e comunicá-las de forma estruturada. Não se trata
apenas de usar corretamente o vernáculo, mas de saber tratar
informações e dados de maneira lógica e expressar ideias e
proposições de forma inteligível, com começo, meio e fim.
Na academia, o cenário não é menos preocupante. Colegas
professores, com atuação em administração de empresas,
frequentemente reclamam de pupilos incapazes de criar pa-
rágrafos coerentes e expressar suas ideias com clareza. A di-
ficuldade afeta alunos de MBA, Mestrado e Doutorado. Edi-
tores de periódicos científicos da mesma área frequente-
mente deploram a enorme quantidade de manuscritos vazi-
os, herméticos e incoerentes recebidos para publicação. E,
frequentemente, seus autores são pós-doutores! O problema
não é exclusivamente tropical. Michael Skapinker registrou,
recentemente, em sua coluna no jornal inglês Financial Ti-
mes, a história de um professor de uma renomada universi-
dade norte-americana. O tal mestre acreditava que escrever
com clareza constitui habilidade relevante para seus alunos,
futuros administradores e advogados. Concedia-lhes, sema-
nalmente, a tarefa de escrever um texto curto, o qual corrigi-
a, avaliando a capacidade analítica dos autores. A atividade
causou tal revolta que o diretor da instituição solicitou ao
professor torná-la facultativa. Os alunos parecem acreditar
que, em um mundo no qual a comunicação se dá por men-
sagens eletrônicas e tuítes, escrever com clareza não é mais
importante. O mesmo Skapinker lembra uma emblemática
matéria de capa da revista norte-americana Newsweek, inti-
tulada “Why Johnny can’t write”. Merrill Sheils, autora do
texto, revelou à época um quadro preocupante do declínio
da linguagem escrita nos Estados Unidos. Para Sheils, o sis-
tema educacional, da escola fundamental à faculdade, deso-
vava na sociedade uma geração de semianalfabetos. Com o
tempo, explicou a autora, as habilidades de leitura pioraram,
as aptidões verbais se deterioraram e os norte-americanos
tornaram-se capazes de usar apenas as mais simples estrutu-
ras e o mais rudimentar vocabulário ao escrever, próprios da
televisão. Entre as diversas faixas etárias, os adolescentes e-
ram os que mais sofriam para produzir texto minimamente
coerente e organizado. E o mundo corporativo também acu-
sou o golpe pois parte de sua comunicação formal exige pre-
cisão e clareza, características cada vez mais difíceis de en-
contrar. Educadores mencionados no artigo observaram: um
estudante que não consegue ler e compreender textos jamais
será capaz de escrever bem. Importante: a matéria da News-
week é de 1975! Quase 40 anos depois, os iletrados trópicos
parecem sofrer do mesmo flagelo. Por aqui, vivemos uma
situação curiosa: de um lado, cresce a demanda por análises
e raciocínios sofisticados e complexos. E, de outro, faltam
competências básicas relacionadas ao pensamento analítico
e à articulação das ideias. O resultado é ora constrangedor,
ora cômico. Nas empresas, muitos profissionais parecem
tentar tapar o sol com uma peneira de powerpoints abarrota-
dos de informação e vazios de sentido. Na academia, multi-
plicam-se textos caudalosos, impenetráveis, ocos. Se apren-
der a escrever é aprender a pensar, e escrever for mesmo u-
ma atividade em declínio, então talvez estejamos rumando
céleres à condição de “invertebrados intelectuais”.
(Carta Capital, “Sociedade”, 24.07.2013)
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Ler sem entender
A notícia de que 23,5% dos acompanhantes de paci-
entes do Hospital das Clínicas de São Paulo que declararam
saber ler e escrever são incapazes de compreender instru-
ções simples relativas ao uso de um medicamento preocupa,
mas não chega a surpreender. Foi justamente a constatação
de que a alfabetização formal significa muito pouco para a
vida prática que levou a Unesco a criar e depois reformular
o conceito de analfabetismo funcional. Desde 1978, o braço
da ONU para a educação considera funcionalmente alfabeti-
zado o indivíduo inserido de forma adequada em seu meio
e que é capaz de desempenhar tarefas em que a leitura, a es-
crita e o cálculo são usados para o seu próprio desenvolvi-
mento e de sua comunidade. No papel faz sentido, mas com-
putar esse tipo de situação, especialmente em censos, não é
trivial. A solução foi utilizar substitutos mais objetivos, co-
mo os anos de instrução formal. É uma aproximação gros-
seira, mas que tende a funcionar com grandes populações.
O IBGE, por exemplo, considera analfabetos funcionais os
brasileiros maiores de 15 anos que tenham menos de quatro
anos de estudo. Por esse critério, nosso índice chega a 21%.
O problema surge quando se utilizam tais números em com-
parações a outros países. Como a definição de alfabetismo
funcional pressupõe a boa integração da pessoa a seu meio,
e essa varia de acordo com nacionalidade, classe social etc.,
não se estabeleceu nenhum critério uniforme. O Canadá, por
exemplo, só considera funcionalmente alfabetizado quem
tenha mais de nove anos de escolaridade. Mais do que isso,
as nações desenvolvidas já começam a substituir a noção de
alfabetismo funcional pelo desempenho de amostras da po-
pulação em provas que avaliam as habilidades em áreas es-
pecíficas e comportam gradações. Nessas condições, 48%
da população do Canadá estariam em nível de conhecimento
abaixo do adequado. Essas considerações dão bem a medida
do fosso que o Brasil ainda precisa transpor.
(Folha de S. Paulo, “Editorial”, 28.07.2010)
Assassinos da inteligência
Olavo de Carvalho
Pensar até um burro pensa. O que distingue a espécie
humana é a sua capacidade de confrontar o pensado ao con-
junto dos conhecimentos disponíveis e regular o curso do
pensamento pela escala de credibilidade que vai do possível
ao verossímil, ao provável ou razoável e, em certos casos, à
certeza. Aristóteles já ensinava isso. Infelizmente, no Brasil,
raros opinadores têm o senso dessas distinções. A maioria
imagina que, para pensar com proveito, basta um pouco de
lógica formal e algum domínio dos chavões mais caros ao
coraçãozinho da plateia. Em debate recente, o professor Igor
Fuser, uma estrela do cast universitário esquerdista, assegu-
rou que “não se pode julgar um regime pelo número das suas
vítimas”. Dez minutos depois, desmentia-se fragorosamente
ao alegar que a ditadura brasileira “perseguiu milhares de
pessoas” e que o número de cristãos assassinados no mundo
está bem abaixo de 100 mil por ano, subentendendo, portan-
to, que a ditadura foi um horror e que os matadores de cris-
tãos nos países islâmicos e comunistas não são tão maus co-
mo se diz. Mas o pior não é isso. Mesmo sem esses autodes-
mentidos grotescos, a afirmativa geral que os antecedeu – a
mais comumente alegada por devotos comunistas empenha-
dos em salvar a honra dos governos mais assassinos que o
mundo já conheceu – é perfeitamente desprovida de sentido.
Para perceber isso, basta medi-la com a escala de credibili-
dade. Em política, admite-se universalmente, as certezas ab-
solutas são raras ou inexistentes. O meramente possível re-
flete a liberdade da fantasia, o verossímil é apenas questão
de opinião, gosto, preferência. Não servem de argumentos.
Resta a probabilidade razoável. Quem quer que argumente
seriamente em política, procura nos convencer de que a ra-
zão, com altíssima probabilidade, está do seu lado. Aconte-
ce, para a tristeza dos tagarelas, que todo argumento de pro-
babilidade depende, eminentemente, do elemento quantita-
tivo que o fundamenta explícita ou implicitamente. Se digo
que o candidato X vai vencer as próximas eleições com uma
probabilidade de zero a cem por cento, não disse – absoluta-
mente – nada. Tanto vale dizer que um governo é igualmen-
te malvado se não matou ninguém ou se matou milhões de
pessoas. Quando um comunista esperneia contra o que cha-
ma de “contabilidade macabra”, tem, é claro, uma boa razão
para fazê-lo. Contados os cadáveres, é impossível negar que
o comunismo foi o flagelo mais mortífero que já se abateu
sobre a humanidade. Diante disso, só resta apegar-se ao sub-
terfúgio insano de que o macabro não reside em fazer cadá-
veres e sim em contá-los. Somando à insanidade o fingi-
mento, a proibição de contar tem de ser suspensa quando se
fala de regimes “de direita”, do que se nota que os 400 terro-
ristas mortos no regime militar – a maioria de armas na mão
– são um placar muito mais hediondo e revoltante do que os
100 milhões de civis desarmados que os heróis do comunis-
mo assassinaram na URSS, na China, na Hungria, em Cuba
etc. O senso de quantidades e proporções é a exigência mais
básica e incontornável não só da conduta honesta, mas da
racionalidade geral. Dissolvendo-o pouco a pouco na platei-
a, os fúseres da vida destroem não só a moralidade pública,
mas as próprias condições elementares do funcionamento
normal da inteligência humana. Se, nas universidades brasi-
leiras, há quota de 40% a 50% de alunos analfabetos funcio-
nais, isso não se deve só a uma genérica “má qualidade do
ensino”, mas ao fato de que há décadas o discurso comunista
e pró-comunista onipresente espalha, nas mentes dos estu-
dantes, doses maciças de estimulação contraditória e obstá-
culos cognitivos estupefacientes.
(Folha de S. Paulo, “Tendências e debates”, 17.06.2014)
Cresce o analfabetismo
Depois da universalização das matrículas no Ensino
Fundamental, que foi uma das principais conquistas do país
das décadas de 1990 e 2000, era de esperar uma significativa
melhoria na qualidade das escolas nos últimos anos. Mas,
em vez do desenvolvimento natural rumo a uma educação
básica mais eficiente, capaz de assegurar ao país a formação
de capital humano de que necessita para poder crescer e pas-
sar para níveis mais sofisticados de produção, o Brasil está
retrocedendo. Essa é uma das mais importantes ─ e preocu-
pantes ─ conclusões que podem ser extraídas da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2012, divul-
gada pelo IBGE. A pesquisa é realizada desde 1967 e traz
informações sobre população, migração, trabalho, rendi-
mento e domicílios, além de educação. A partir de 2004, ela
passou a cobrir todo o país. Para realizar a Pnad de 2012, os
técnicos do IBGE consultaram 147 mil domicílios. Segundo
os indicadores da Pnad na área de educação, o analfabetis-
mo ─ que vinha em queda constante desde 1998 ─ voltou a
crescer no ano passado. Os técnicos do IBGE identificaram
13,163 milhões de pessoas que não sabiam ler nem escrever
─ o equivalente a 8,7% da população com 15 anos ou mais.
Em 2011, o número de analfabetos era de 12,866 milhões.
Em termos absolutos, o aumento foi de 297 mil analfabetos
e se concentrou no Nordeste ─ especialmente nos Estados
da Paraíba, Pernambuco, Bahia e Alagoas. A taxa de analfa-
betismo na região passou de 16,9%, em 2011, para 17,4%,
em 2012. O Nordeste concentra 54% do total de analfabetos
do País. Ou seja, um em cada dois analfabetos é nordestino.
No Centro-Oeste, a taxa de analfabetismo passou de 6,3%,
em 2011, para 6,7%, em 2012. Na Região Norte, ela foi de
10%, no ano passado. As menores taxas foram registradas
nas regiões mais desenvolvidas. No Sul, a taxa de analfabe-
tismo foi de 4,4% da população com 15 anos ou mais. No
Sudeste, ela chegou a 4,8%. Santa Catarina é o Estado com
a menor taxa de analfabetismo do País, com 3,1%. Os núme-
ros da Pnad também mostram como o analfabetismo incide
sobre a população mais velha. Entre os que têm 60 anos ou
mais de idade, 24,4% não sabem ler ou escrever. Na faixa
dos 49 aos 59 anos, a proporção é de 9,8% do total. Já na
faixa dos 30 aos 39 anos, 5,1% são analfabetos. As menores
taxas ─ de 2,8% e 1,2% ─ estão nas faixas de 25 a 29 anos
e 15 a 19 anos, respectivamente. Os técnicos do IBGE tam-
bém constataram melhora na taxa de analfabetismo funcio-
nal, que passou de 20,4%, em 2011, para 18,3%, em 2012
─ queda de 2,1 pontos porcentuais. Em termos absolutos,
isso significa que o país tinha, no ano passado, 27,8 milhões
de pessoas de 15 anos ou mais de idade com menos de 4 a-
nos de escolaridade ─ um número muito alto de brasileiros
incapazes de ler e compreender um simples manual de ins-
trução de equipamentos. O levantamento do IBGE mostra
ainda que 11,9% da população com 25 anos ou mais de ida-
de não têm qualquer instrução ou têm menos de um ano de
estudo. Em 2011, a proporção era de 15,1%. Os números da
Pnad mostram, no entanto, que, em vez de aumentar o nú-
mero de pessoas preparadas para enfrentar o ambiente com-
petitivo de um mercado de trabalho cada vez mais sofistica-
do em termos tecnológicos, a educação brasileira está no ca-
minho inverso. E, com isso, o Brasil permanece com um im-
portante segmento da população à margem do processo eco-
nômico, por falta de instrução, o que agrava a desigualdade.
Esse é o atestado do fracasso da política educacional adota-
da nos últimos anos. Ela agitou bandeiras politicamente vis-
tosas, como adoção do sistema de cotas raciais, democrati-
zação do Ensino Superior e criação de universidades mas se
revelou incapaz de alfabetizar e preparar milhões de brasi-
leiros para o mercado de trabalho, negando-lhes com isso as
condições para que possam se emancipar econômica e soci-
almente.
(O Estado de S. Paulo, “Opinião”, 01.10.2013)