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Celsofavaretto modernoPosModernoContemporaneo PDF
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São Paulo
2004
Assim, eis-me aqui, na metade do caminho, [...]
Tentando aprender como empregar as palavras, e cada tentativa
É sempre um novo começar, e uma diversa espécie de fracasso
Porque apenas se aprendeu a escolher o melhor das palavras
Para o que não há mais a dizer, ou o meio pelo qual
Não mais se está disposto a dizê-lo [...]
Abertura.................................................................................................................5
Infortúnios da unidade.......................................................................................102
Modernidade e nacionalismo.............................................................................119
A estética do desvario .......................................................................................133
Modernidade, vanguarda, participação ..............................................................139
Das novas figurações à arte conceitual ..............................................................168
O espaço de Lygia Clark ...................................................................................175
[ANEXO] Sobre PanAmérica ..............................................................................181
Por que Hélio Oiticica? .....................................................................................187
Inconformismo estético, inconformismo social, Hélio Oiticica ..........................194
Transformar a arte, mudar a vida.......................................................................200
A música nos labirintos de Hélio Oiticica..........................................................206
Hélio Oiticica e a música tropicalista.................................................................220
Tropicália, cultura e política..............................................................................225
Tropicália revisitada..........................................................................................232
Sobre Caetano Veloso .......................................................................................235
Arte e cultura nos anos 70: o pós-tropicalismo ..................................................242
O tropicalismo, a contracultura, os alternativos .................................................252
[ANEXO] Imagens do migrante na música popular brasileira ..............................258
Aberturas ...............................................................................................................285
Bibliografia.............................................................................................................296
5
Abertura
6
1
Tropicália: alegoria, alegria. FFLCH-USP, Departamento de Filosofia, 1978. Publicado em 1979 pela
editora. Kairós. 3. ed., Ateliê Editorial, 2000.
8
2
A invenção de Hélio Oiticica. Idem, 1988. Publicado pela Edusp, 1992; 2. ed. 2000.
9
3
Reiterando o que já foi assinalado, pode-se imediatamente notar que os textos sobre a questão do pós-
moderno na educação e na arte apresentam repetidamente a mesma discussão, embora alterada em função
de cada ambiente ou situação em que circulou, dentro ou fora da universidade. Adição ou supressão de
passagens indiciam a proliferação de uma posição crítica pensada para ser lida em blocos de textos, cada
um configurando uma discussão, ora na educação, ora na arte. Por vicissitudes diversas, vários textos
nunca foram publicados. Em relação aos já publicados, é bom observar que as notas de rodapé foram
praticamente mantidas como estavam nas versões originais. em certos casos, houve pequenas alterações
na formatação de referências bibliográficas, mas não houve normalização. A bibliografia geral ao final
deste volume traz todas as referências de maneira normalizada.
10
***
4
Referência à expressão “modernidade líquida” de Zygmunt Bauman. Cf. entrevista do autor a Maria
Lúcia G. Pallares-Burke, “A sociedade líquida”. Folha de S.Paulo, Mais!, 19/10/ 2003, p. 5 e ss.
12
***
***
14
5
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. bras. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.143. Grifos
nossos.
6
LEBRUN, G. “Por que ler Nietzsche, hoje ?”. In: Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 33 e
ss.
15
humanas. Monta microdispositivos que lhe permitem formular um discurso sobre o não
discursivo: estratégia pela qual trata o heterogêneo com relações heterogêneas; ou seja,
passa diretamente da heterogeneidade das práticas à interpretação sem homogeneizar o
diverso7.
Ainda na metáfora do caçador, M. de Certeau diz que Foucault agencia “uma
arte do suspense, das citações, da elipse, da metonímia; uma arte da conjuntura (a
atualidade, o público) e das ocasiões (epistemológicas, políticas); em suma, uma arte de
fazer ‘golpes’, ‘lances’, com ficções de histórias”. Assim, ressalta que não é apenas a
prodigiosa erudição que dá tanta eficácia a Foucault, mas esta arte de dizer, de pensar,
de fazer história. Articulando procedimentos retóricos, esboçando quadros históricos
exemplares e distinções teóricas, ele desloca os campos em que se insinua. Por essa arte
da narração, Foucault, “dançarino disfarçado em arquivista”, modifica a lei da
historiografia atribuindo-lhe um novo arranjo. Nela, percebe-se claramente que “o riso
de Nietzsche perpassa o texto do historiador”8.
Portanto, o que se quer ressaltar em Foucault é a sua “estratégia de
interpretação”. Se Nietzsche não é para ele um sistema, mas um “instrumento de
trabalho”, que lhe permite fazer ranger, gritar (a verdade, o poder, instituições), ele
mesmo se propõe também assim. Ele pensa com Nietzsche; pensa-se com Foucault9. É
nesta transversal, em que Foucault intercepta Nietzsche, que outras referências são aqui
estrategicamente associadas, também deformadas, para se pensar o incomensurável da
experiência contemporânea. Lyotard e Habermas entram na cena, interceptam-se, são
interceptados, para fazer ranger “o moderno”. No pensamento, na enunciação, na
sensibilidade acontece algo muito virulento, que se propaga viralmente: a crise da idéia
de história, da concepção de história como processo de emancipação progressiva do
homem.
Sabe-se que Foucault muito contribuiu para o esclarecimento dessa questão. Em
suas pesquisas – sobre a reelaboração da teoria do sujeito e sobre a análise dos discursos
–, aparece o tema da “deslegitimação” dos sistemas totalizadores (éticos, estéticos,
epistemológicos, políticos), suportes de práticas institucionais (filosóficas, artísticas,
judiciárias, políticas, educacionais). O tema magnetizou o debate sobre o pós-moderno,
pelo menos na emblemática polêmica entre Habermas e Lyotard. Aí, conexões podem
7
DE CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano I – Artes de Fazer. Trad. bras. Petrópolis: Vozes, 1994, p.
131 e ss.
8
Id. ib., p. 154
9
LEBRUN, G.. Op. cit., p. 37
16
ser estabelecidas entre proposições de Lyotard e Foucault, embora uma não possa ser
assimilada à outra. Já Habermas é crítico dos dois, inclusive arrolando-os, com Deleuze,
Derrida, Baudrillard e outros, no rol do que ele denomina “neonietzschianismo francês”,
ou “pós-modernismo neo-conservador”.
Tentativas de projetar o debate sobre manifestações e discursos artísticos e
educacionais utilizando uma determinada constelação de referências, esta modalidade
de pensamento estendeu-se sobre uma diversidade de problemas, aqui reunidos em
blocos temáticos: teoria da educação, ensino de filosofia e de arte, ensino e pesquisa na
universidade, arte brasileira contemporânea, uma teoria do contemporâneo são os temas
problematizados nos textos. Em todos, a tentativa de pensar a reorientação das
experiências depois de torpedeadas muitas das crenças, esperanças e ilusões modernas.
***
10
Referência ao tema de uma mesa redonda no Seminário de Pesquisa organizado pela Comissão de
Ensino e Pesquisa da FFLCH-USP, em 1994, da qual participei como comentador do texto do Prof.
Carlos Franchi, “A formação do pesquisador na área de humanidades na universidade
brasileira”.Publicado em JANCSÒ, István (org.). Humanidades, Pesquisa, Universidade. São Paulo:
FFLCH-USP, 1996, p.40-43.
17
pesquisas. Importa muito assinalar que estes trabalhos não são evidenciados, devido, em
grande parte, à limitação constrangedora das publicações , e de toda sorte de meios de
fazer a produção circular, em que pesem os avanços obtidos nos últimos anos pela
produção editorial universitária. Se a produção de saber na universidade brasileira é
relevante, não o é o seu consumo, isto é, a veiculação e a utilização da produção – por
razões diversas, políticas, econômicas, sociais, e não apenas pela ineficácia da estrutura
universitária. Importa, ainda, considerar que as exigências de exploração de domínios
conexos de saber, das intersecções e da interdisciplinaridade, embora continuamente
alegadas, não encontram na universidade possibilidades de fluxo e mobilidade. Rigidez
curricular na graduação, escolarização de programas de pós-graduação, burocratização
das carreiras e desprestígio profissional advindo dos baixos salários conduzem
freqüentemente o trabalho universitário para o campo do esforço e da persistência
individuais.
A dificuldade e mesmo a impossibilidade de articulação de grandes projetos
culturais propõe, necessariamente, a reorganização dos sistemas, para que a queda das
utopias não redunde simplesmente na perda do desejo de transformação. Por isso, o
cinismo não pode ser a resposta a tais dificuldades; pois o cinismo, que encobre a
insatisfação e o imobilismo, recobre as dificuldades com atividades supletivas. Como
responder a estes impasses? Pode-se aventar que, na ausência de sistemas e grandes
idéias, cumpre ativar e sempre reativar o trabalho de análise – em sentido semelhante ao
da psicanálise freudiana, conforme a sugestão de Lyotard – sobre os pressupostos e
subentendidos dos projetos e sistematizações do saber e da experiência, associando os
elementos, aparentemente inconsistentes, do presente a situações passadas, não para
retornar a uma origem, julgada segura, mas para abrir o campo dos possíveis, fechado
ou excessivamente delimitado por motivos e motivações diversos. Se, a rigor, os
pressupostos modernos ainda não se realizaram suficientmente no Brasil, não se trata,
entretanto, de reatualizar os projetos, pois eles não ficaram inacabados: são datados.
***
para uma comunicação em um congresso11, não se conhecia nenhum texto nesta direção.
Propor uma concepção de educação que pudesse informar práticas de ensino e pesquisa,
questionando conceitos e concepções consagradas, como a idéia de formação e o
processo de totalização do saber e da experiência, implicava riscos, como o de incidir na
ingenuidade teórica caudatária das modas que circulavam no setor educativo-
pedagógico. Não se pretendia, contudo, apenas provocar um debate, mas destacar e
mesmo decifrar um fato inerente a várias experimentações educacionais em curso há
várias décadas no Brasil: a inadequação da aposta irrestrita na novidade das
experimentações, tanto quanto na esdrúxula conjugação de novidade e efeitos
regressivos, evidenciada sobretudo nas incongruências entre as práticas educativas e os
discursos que as legitimavam.
Tendo em vista o processo de dessubstancialização da cultura e os problemas
surgidos das alterações na forma e na destinação das pesquisas e do ensino – detonadas
tanto pela explosão das demandas quanto pela incidência das novas tecnologias de
informação e comunicação nos processos educativos –, ressaltava-se a importância da
busca de modos de pensar as conseqüências da dispersão dos saberes. Na educação, e
nas ciências humanas, constatava-se que um dos efeitos dos problemas acentuados é a
emergência de novas práticas discursivas, advindas da flexibilização epistemológica e
do enfraquecimento da ênfase nas metodologias. Considerava-se também que, ao se
questionar as imagens de saber, estaria posta em jogo toda a sistematização cultural
moderna, de raiz iluminista, pois a proliferação de teorias dificulta a fundamentação e a
articulação das práticas – o que é requerido para, no mínimo, suprir uma necessidade:
estabelecer as regras de funcionamento da sociedade.
De Certeau acentua12 que as dificuldades da formação provêm em grande parte
da quase extinção do que se entendia por “cultura” – pois cultura, atualmente, remete
aos processsos de consumo, ao entretenimento e ao lazer –, e da incapacidade da escola
em assimilar produtivamente as mudanças do imaginário cultural em que os jovens se
movem, dada a resistência que, em princípio, opõem às demandas de integração no
sistema produtivo. Assim, como contemplar todas estas variáveis se, para eles, não há
nem mesmo uma linguagem que lhes permita transitar da experiência ao saber? Pois não
se pode esquecer, acentua o autor, que a cultura dos jovens – destes jovens assimilados
11
Simpósio “Epistemologia e Educação”, no I Congresso Estadual Paulista sobre Formação de
Educadores, promovido pela UNESP. Águas de São Pedro, SP, 20/05/1990.
12
cf. A Cultura no Plural. Trad. bras. Campinas: Papirus, 1995, p.101 e ss.
21
13
Cf. COSSUTTA, F. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. Trad. bras., São Paulo: Martins
Fontes, 1994, p. 12.
23
***
14
BRITO, Ronaldo. “O moderno e o contemporâneo (o novo e o outro novo)”. In: Arte Brasileira
Contemporânea. Caderno de Textos 1. Rio de Janeiro: FUNARTE 1980, p.6-7.
15
Idem, ib., 8-9.
24
16
Id. ib., p. 7
17
BRITO, R.. “Pós, pré, quase, ou anti?”. Folha de S.Paulo, Folhetim, 02/10/1983.
25
***
18
cf. “Brasília, a cidade nova” (1959). In: PEDROSA, Mário. Dos murais de Portinari aos projetos de
Brasília. Org. Aracy Amaral. São Paulo: Perspectiva,1981 p.347 (col. Debates 170).
26
(Entre estes textos há, contudo, aquele sobre o Quincas Borba de Machado de
Assis, que à primeira vista não se inclui no movimento assinalado de elaboração da
modernidade brasileira. Entretanto, ele aqui comparece porque propõe a interpretação
de que o romance de Machado apreende já no final do século XIX os sinais da
19
OITICICA, Hélio. “Brasil Diarréia’. In: GULLAR, Ferreira (org). Arte Brasileira hoje . Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1973, p. 152.
27
***
***
educação artística, mais do que uma educação para a arte, em termos de participação em
uma ação educativa, é requerida pelas transformações efetuadas no conceito, nos
processos e na historicidade das práticas artísticas, cujos ideais foram comprometidos
pela queda das muitas ilusões modernas sobre o poder transformador da arte. Apesar
dessas considerações sobre o redimensionamento contemporâneo do trabalho artístico e
da experiência estética, a sondagem sobre as possibilidades educativas da arte e através
da arte é ainda relevante, por reforçar a crença moderna sobre o poder da arte de
modelar a experiência.
Referentes, na maioria, às artes plásticas, mas sugerindo extensões das
proposições à música, ao teatro e mesmo à literatura, estes textos pensam a arte
integrada aos dispositivos culturais em que aparece constitucionalmente ou em que é
evidenciada. Tendo em vista o perfil dos espaços a ela dedicados, a ênfase das reflexões
está posta nos museus e instituições aparentadas, como institutos e centros culturais. A
questão principal aí implicada é a do uso público da cultura. E, pensando-se a integração
do processo educativo da escola com o daquelas agências culturais, cumpre perguntar
sobre a modalidade de ação educativa apropriada para cada um dos espaços. Assim,
desidealiza-se o valor da arte e valoriza-se o trabalho de conferir significação às práticas
artísticas pela conjugação da especificidade de cada prática, esteticamente configurada,
a projetos culturais e educativos. Evidentemente, parte-se do princípio de que estas
instituições, de sentido público, têm algo relevante a oferecer, tendo em vista aquilo que
é requerido pelos usuários e o que é prometido pela arte – o que implica pensar as
condições necessárias para efetivar a mediação entre estas instâncias.
Tome-se como exemplo o museu, particularmente um museu de arte moderna ou
de arte contemporânea, que enfatize o caráter experimental da atividade artística, os
processos e procedimentos, a participação e a pesquisa. Pode-se perguntar: o que é
requerido dele, supondo-se que a demanda é diversificada – de escolares dos três níveis,
de adultos variados, de pessoas idosas, de crianças, jovens e adultos de variada
proveniência social? Que disponibilize conhecimentos ou experiências? E, se for o caso,
quais são os conhecimentos e experiências esperadas, quando já se sabe que o público
majoritário que freqüenta exposições e outras atividades de museus é constituído de
visitantes-consumidores, que chegam ao museu através das informações e chamadas dos
jornais, revistas e televisão, e cuja expectativa é, geralmente, encontrar uma experiência
estética comunicativa, semelhante à facultada por aqueles sistemas?
31
***
O último texto da coletânea não pretende apresentar uma síntese das discussões,
nem mesmo uma conclusão formal deste trabalho; pretende indicar que as discussões
sobre o moderno e o pós-moderno parecem deslocadas, pois, se os problemas a que se
referem ainda continuam em aberto, a análise e a interpretação pedem por novas
aberturas. Escrito como comunicação na mesa redonda “A cena contemporânea: criação
e resistência” para o simpósio “A vida em cena – teatro e subjetividade”, que integrava
a programação do evento “Porto Alegre em cena”20, o texto mantém as marcas da
oralidade, e a elocução um tanto coloquial retém o signo de um pensamento ainda em
estado bruto, intencionalmente determinado por impactos também brutais. O vínculo
entre representação e horror surgiu, provavelmente, como uma conseqüência do
questionamento da interpretação de que a crítica da modernidade implicaria a queda no
vazio. Vazio e horror; o horror do vazio. Pois o horror refere-se à experiência do que
não é possível representar, por que não há linguagem que dela dê conta. O horror é o
inominável, portanto, o irrepresentável. Na arte e na vida. Mas não se pode
20
Porto Alegre, 12-28/09/2003, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura com a colaboração da
UFRGS.
32
21
BAUDRILLARD, Jean. De um fragmento ao outro. Trad. Bras., São Paulo, ZOUK, 2003, p. 36.
33
***
22
LIPOVETSKY, Gilles, “O caos organizado”. Entrevista, Folha de S.Paulo – Mais!, 14/3/2004, p.5-7.
23
BAUDRILLARD, Jean . Id. ib., p. 16.
24
Cf. para esta reflexão, em muitos pontos, LYOTARD, J.-F.. Peregrinações: lei, forma, acontecimento.
trad. bras., São Paulo, Estação Liberdade, 2000, p. 18 e ss.
34
Pós-Moderno na Educação?*
*
Revista da Faculdade de Educação. v.17, nº. 1/2, São Paulo: FEUSP, jan-dez. 1991, p. 121-127.
Também em: SERBINO, R.V. & BERNARDO, M.V.C. Educadores para o século XXI. São Paulo: Ed.
Unesp, 1992, p. 81-85.
1
Cf. LYOTARD, J-F. O pós-moderno. Trad. bras. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1986, p. 4-5 e L’inhumain,
Paris: Galilée, 1988, p. 12-14.
36
7
Cf. HABERMAS, J. Art. cit., p. 86 e J.-F. Lyotard, Le postmoderne expliqué..., p. 120 e L’inhumain, p.
36.
8
Cf. GUATTARI, F. Art. cit.
9
Cf. LYOTARD, J.-F. L’inhumain, p. 36.
38
10
Id. ib., p. 35.
11
Cf. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC-RJ, Cadernos da PUC,
Série Letras e Artes, 06/74, p. 10, ss. Cf. também KOSSOVITCH, L. Signos e poderes em Nietzsche. São
Paulo: Ática, 1979, p. 30-32, 58 e ss.
39
aos outros, e em que a repetição se forma ao mesmo tempo em que disfarça”12 . Emitir
signos a serem desenvolvidos no heterogêneo é o que pode fazer toda educação;
apoderar-se violentamente desses signos, dominar situações, dar forma, estruturar,
impor determinadas relações de força, situar aquele que se educa. Educar-se, conhecer,
aprender: arte da multiplicação do sentido e da modificação da natureza dos signos que,
por estabelecerem relações entre um ocultado e uma superfície, manifestam-se como
sintomas. Toda educação processa-se ao nível dos sintomas, para situar o intérprete na
atividade de valoração: quanto vale uma força, esta força?
O perspectivismo do conhecimento pode ser aventado como traço do saber pós-
moderno, adequado às reflexões pedagógicas – sobre o estatuto da pedagogia, sobre os
modos de construção do conhecimento, sobre o ensinar e o aprender. Talvez o discurso
pedagógico seja, ainda, um tanto frouxo, principalmente face à instabilidade e
indeterminação contemporâneas do saber, das práticas, dos valores etc. Devido ao
finalismo que tradicionalmente o domina, é muito difícil trabalhar sem regras já
estabelecidas, sem a priori; é complicado aceitar-se na educação que as regras se
estabelecem a partir do que é feito, no que é feito. Propondo-se como um saber que
subentende a arte de ensinar, fundando-se no pressuposto de que há um desejo de saber,
como a pedagogia pode se justificar numa situação (pós-moderna) em que o próprio
saber, e o ensinar estão envolvidos no jogo das simulações? Embora afirmando
reiteradamente a indissolubilidade dos processos de ensinar e aprender (como ensinar,
como aprender), na educação a compulsão de ensinar acaba preponderando, pois o
ensino é a prática consagrada na instituição, e o aprender, como bem se sabe, pode
subverter os jogos de poder.
Nesta situação, embora permaneça como forma privilegiada de gestão do social,
a educação é quase uma impossibilidade. A vivência do mal-estar na educação propõe
ao entusiasmo pedagógico a tarefa de transformar a impossibilidade em necessidade:
exercício instigante, que exige a desmontagem dos mecanismos dos discursos e das
práticas educacionais, abrindo o espaço da indeterminação e ativando o imaginário
pedagógico contemporâneo. O pós-moderno, diz Lyotard, “aguça nossa sensibilidade
para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável”13.
12
Cf. DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. bras. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 54-5.
13
Cf. LYOTARD, J.-F. O pós-moderno. Op. cit. nota 1.
40
*
Este texto recorta e modifica o que foi publicado, sob o título “Educar e avaliar: uma perspectiva
contemporânea” no caderno Educação e Avaliação, publicado pelo Grupo Paidéia, coordenado
pelo Prof. Alfredo Bosi. Instituto de Estudos Avançados da USP, Col. Documentos, série
Educação para a Cidadania, nº 8, dez. 1993, p. 3-9; republicado em Argumento. São Paulo:
Secretaria da Educação/CENP, 1994, p. 98-103.
41
1
cf. HABERMAS, J. “Modernidade – um Projeto Inacabado”. Trad. bras. em ARANTES, Otília &
ARANTES, Paulo. Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense,
1992. Cf. também LYOTARD, J-F. O Pós-Moderno (La Condition Postmoderne). Trad. bras., Rio de
Janeiro: J. Olympio, 1986.
2
HABERMAS, J. op. cit. p.108-9.
3
cf. GUATTARI, F. “Impasse pós-moderno e transição pós-mídia”. Folha de S.Paulo, Folhetim,
23/4/86,p.4.
42
4
cf. DELEUZE, G. Proust e os Signos. Trad. bras., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p.22 e
122.
43
5
cf. GUATTARI, F.. Art. cit.
6
cf. PRADO COELHO, Eduardo. “Para comer a sopa até o fim”. In: Jornal do Brasil, Idéias/Ensaios,
3/3/91, p.4.
7
LYOTARD, J-F. Le Postmoderne Expliqué aux Enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 33.
8
DELEUZE, G. Lógica do Sentido (trad. bras. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 152) e Diferença e
Repetição, (trad. Bras. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.54).
44
das relações que os produziram, não pelo fato de serem simplesmente passados. É
preciso, sim, reiterar e recodificar, retomar e analisar, não com intuitos restaurativos,
mas para evidenciar um trabalho que, ao realizar-se segundo as condições do seu
presente, secretou também a sua parte de transitório, não apenas a parte de eterno.
Rememorar, pois, não se confunde com a atitude redentora; esta mantém compromissos
com a idealização, esquecendo que na sua origem todo processo de formação não exclui
constrangimentos, desregramento e mesmo terror9.
O campo pedagógico, por ser exemplar tanto quanto o da arte, debate-se com a
indeterminação, manifestando, apesar das experimentações variadas, do
redirecionamento teórico e dos projetos de reorganização dos sistemas, grande
dificuldade em adequar discursos modernizantes a práticas que assumam a
heterogeneidade. O desejo de atualidade, aliado à paixão pedagógica, continuam
validando o pressuposto de que a educação visa a realizar um programa de reunificação
da experiência e do saber, exigido pelo dever de formação e necessidade de produção de
resultados consensuais. Embora sabendo os educadores que a ação pedagógica procede
hoje da interseção de teorias e pesquisas de procedência diversa, que é inadequado tratar
as novas tecnologias, especialmente a telemática e a informática, apenas como novos
meios de comunicação – pois seus procedimentos são determinantes para o processo de
dissolução dos pontos de vista centralizadores da consciência, sensibilidade, afetos e
linguagem -, parece que eles, os educadores, ainda sonham com uma espécie de unidade
em que “todos os elementos da vida cotidiana e do pensamento encontrariam um lugar
como em um todo orgânico”10, tendo em vista a formação integral dos educandos.
Pode-se perguntar se a idéia de formação legitimada nos discursos pedagógicos
não manteria ainda vínculos com a idéia de natureza homogênea, com o finalismo da
razão e com a auto-consciência do sujeito, – e não com a idéia que implica a educação
como efetuação dos possíveis do espírito. Muito se valoriza hoje a experiência das
crianças e dos jovens; a efemeridade dos afetos, a labilidade dos valores, a força do
cotidiano e a diversidade cultural; mas sabe-se que é defrontando-se com o heterogêneo,
o estranho e o desconhecido que eles podem dar forma à insatisfação que mobiliza a
aprendizagem. Mas não é convertendo o heterogêneo em homogêneo, por uma suposta
continuidade de experiência e conhecimento que se pode acolher o múltiplo e salvar a
unidade. As possibilidades de uma educação contemporânea derivam das condições
9
cf. LYOTARD, J-F. L'Inhumain. Paris: Galilée, p.12.
10
LYOTARD, J-F. Le Postmoderne Expliqué aux Enfants, p.16.
45
geradas para que as crianças e jovens possam apoderar-se dos signos fortes da
experiência para dominar situações, modificar relações vigentes nos signos instituídos, a
se acreditar em que “aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, como se
emitissem signos a serem decifrados, interpretados”11.
Assim, como pensar uma racionalidade sistemática, nesta situação em que a
indissociabilidade de saber e formação é posta em questão? De um lado há o esforço em
restabelecer um plano de formulações universalizáveis; uma racionalidade apta para
definir regras universais do bom e do justo. De outro, uma tendência que restringe a
validade universal das regras em nome da pluraridade e heterogeneidade das
experiências. Para Habermas, devido às novas mediações da razão comunicativa, tratar-
se-ia de sondar as possibilidades teóricas e práticas de um reacoplamento entre razão e
emancipação na cultura da modernidade tardia, na busca de normas “de validade
intersubjetiva que conectam expectativas recíprocas de comportamento e que validam
pelo discurso”12. A sua proposição de uma ética discursiva, baseada no consenso, visa
ao estabelecimento de uma espécie de “comunidade argumentativa universal”, efetivada
pelas categorias e processos da razão comunicativa.
Lyotard, entretanto, não acredita nas possibilidades desta validação
intersubjetiva, nem mesmo na possibilidade de se fundar racionalmente uma ética nos
quadros da sociedade pós-industrial. A tecno-ciência, diz ele, incidiu sobre a linguagem,
modificando as condições dos enunciados aceitos como conhecimento, de modo que o
critério de validade do conhecimento passa a ser o da eficácia, de “capacidade
discriminante”. Utilizando-se da teoria dos jogos de linguagem, observa que “nestes as
regras não são legítimas em si mesmas, mas resultantes de um contrato explícito; uma
modificação mínima de uma regra modifica a natureza do jogo. Todo enunciado deve
ser considerado como um 'lance'. Isto significa que todo ato de fala é um ato de
combate, no sentido de jogo, e que os atos de linguagem revelam uma 'agonística
geral'.”13. Assim a questão da validade e da eficácia do discurso de saber implica a
análise das formas de discurso, “pois como saber se um discurso sobre a realidade não é
alienado, isto é, não é uma ideologia, a não ser mediando-o por um outro discurso
suposto verdadeiro?” 14.
11
DELEUZE, G. Proust e os Signos, p.4.
12
MACHADO, Carlos E.J. “O conceito de racionalidade em Habermas: a guinada da Teoria Crítica”. In:
Trans/Form/Ação. São Paulo, v.11, 1988, p.38.
13
Id. ib., p.35.
14
LYOTARD, J-F. Entrevista ao Jornal da Tarde. São Paulo, 20/1/79, p.4.
46
Estas posições conflitantes são expressivas das repercussões deste debate nas
teorias e práticas institucionalizada e instituídas de ensino e de pesquisa, principalmente
nas tentativas recentes de conferir significação a um domínio cultural marcado
fortemente pelos ardis da comunicação e pelos desígnios da racionalidade econômico-
administrativa.
47
*
Este texto é uma outra variante do texto publicado no caderno Educação e Avaliação, do IEA-USP, em
1993. Provém de uma mesa redonda na PUC-SP em 1993. In: MARTINELLI, M.L. et al. (org.). O uno e
o múltiplo nas relações entre as áreas do saber. São Paulo: Cortez/EDUC, 1995, p. 29-44.
48
1
GUATTARI, F. “Impasse pós-moderno e transição pós-mídia”. Folha de S. Paulo. 23/4/1986, Folhetim,
p.4.
2
LYOTARD, J-F. La condition postmoderne. Paris: Minuit, 1979.
49
através do próprio desastre, nessa perda dos astros reguladores que todo desastre é, [que] alguma
coisa se move [e] que, se nos incitarmos a seguir o fio tênue desse movimento, nos poderá
conceder um pouco de alegria e deslumbramento – o enigmático sorriso de um virar de século.
Poder-se-á suspeitar que, quando se fala em “vazio de Idéias”, o que se lamenta é
fundamentalmente isto: não existem hoje idéias que salvem, nem idéias que fundamentem. Por
outras palavras: nenhuma idéia nos assegura a salvação, nenhuma idéia é portadora de uma
verdade que salve, nenhuma idéia nos dispensa de sermos nós próprios a criarmos o nosso
modelo e itinerário de salvação. E ainda: nenhuma idéia é suficientemente forte para
fundamentar uma prática, para funcionar como ciência rigorosa da práxis. Sem astros que nos
guiem, sem uma ciência da navegação que apenas seja preciso aplicar, avançamos agora num
mar de surpresas e incertezas. [...] Contudo, o panorama das idéias contemporâneas é feito de
3
DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, pp. 22 e 122.
4
GUATTARI, F. “Impasse pós-moderno e transição pós-mídia”. Folha de S. Paulo. 23/04/1986,
Folhetim, p. 4.
50
5
COELHO, E. P. “Para comer a sopa até o fim”. Jornal do Brasil. 03/03/1991, Idéias/Ensaios, p. 4.
6
DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 152 e Diferença e repetição. Rio de
Janeiro: Graal, 1988, p. 54.
51
atitude redentora, pois esta mantém compromisso com a origem, cifra de um destino
hoje desapropriado7.
Observe-se, por exemplo, como tal atitude manifesta-se no campo educacional.
Apesar das experimentações e iniciativas – teóricas, técnicas, de organização de
sistemas –, é um campo que ainda mantém uma distância acentuada entre discursos
modernizantes e práticas modernizadoras, entre desejos de atualidade e persistência de
modelos que esquecem a heterogeneidade cultural. No fundo, continua a valer o
pressuposto de que a educação visa a realizar um programa de reunificação da
experiência, por exigência do dever de formação e necessidade de cumprir objetivos e
produzir ações com o mínimo de consenso. Embora saibam os educadores que a prática
pedagógica exige hoje a coexistência de múltiplas referências teóricas, que é impossível
fechar-se os olhos para as transformações, na consciência, na sensibilidade, nos afetos,
trazidas pela tecnociência, parece que ainda sonham com uma espécie de unidade:
aquela, sócio-cultural moderna, na qual “todos os elementos da vida cotidiana e do
pensamento encontrariam um lugar como em um todo orgânico”8, tendo em vista a
“formação integral” dos educandos.
O campo educacional, apesar de toda a grande experimentação em curso há
bastante tempo, resiste, por sua pretensão totalizadora, a tomar estas experimentações
como sua própria realidade, pois está sempre em busca de grandes discursos de
legitimação, ou seja, de fundamentação e organização unitárias. Não seria porque a
idéia de formação mantém vínculos profundos com a idéia de natureza homogênea,
autoconsistente, com a de perfectibilidade? Pois não é visível que, na educação,
enquanto multiplicam-se discursos e ações que enfatizam a experiência mutável dos
jovens, o caráter efêmero das vivências cotidianas, a labilidade dos valores, ao mesmo
tempo insiste-se na necessidade do consenso para a formação? E, assim, não estaria
havendo um reforço das homogeneidades para validar-se uma identidade institucional?
Sabe-se muito bem hoje que é defrontando-se com o heterogêneo, com o
estranho, com o desconhecido, que os jovens podem dar vazão à insatisfação,
fundamento de qualquer aprendizagem. Mas, não é passando apressadamente do
heterogêneo ao homogêneo, por uma suposta continuidade de experiência e
conhecimento, que eles podem acolher o múltiplo e salvar o uno. Todo o problema está
na possibilidade e nas maneiras de eles se apoderarem dos signos da experiência para
7
LYOTARD, J.F. L’inhumain. Paris: Galilée, 1988, p. 36 e ss.
8
LYOTARD, J.F. Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 16.
52
9
DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 4.
10
COELHO, E.P. “Para comer a sopa até o fim”. Jornal do Brasil. 03/03/1991, Idéias/Ensaios, p. 4.
11
JEUDY, H.P. Ardis da comunicação. Rio de Janeiro: Imago, s/d.
53
ANEXO
*
Estudos Lingüísticos XVIII – Anais de Seminários do Gel. Lorena: Grupo de Estudos Lingüísticos do
Estado de São Paulo, 1989, pp. 58-64.
1
FOUCAULT, M. “Os jogos do poder”. In: GRISONI, D. (org.). Políticas da filosofia. Trad. port.,
Lisboa: Moraes, 1977, p. 141; LEBRUN, G. Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 38.
2
NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Seleção de G. Lebrun. Trad. de Rubens R. Torres Filho. Coleção
Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 53.
3
NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal. § 3. Trad. port. Lisboa: Guimarães, 1967, p. 13.
54
O que significa conhecer? – Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere! – Diz
Espinosa, simples e sublime, como é o seu modo. Entretanto: o que é esse intelligere, no último
fundamento senão a forma em que justamente os três primeiros se fazem sentir a nós de uma só
vez? uma resultante dos impulsos, diferentes e contrários entre si, do querer-ir, lamentar,
execrar? Antes que seja possível um conhecer, é preciso que cada um desses impulsos tenha
apresentado seu ponto de vista unilateral sobre a coisa ou acontecimento; posteriormente surge o
combate dessas unilateralidades e dele às vezes um meio-termo, um apaziguamento, um dar-
razão a todos os três lados, uma espécie de justiça e contrato: pois graças à justiça do contrato
podem todos esses impulsos afirmar-se na existência e ter razão todos juntos. Nós, que só temos
consciência das últimas cenas de reconciliação e cômputos finais desse longo processo,
pensamos portanto que intelligere seja algo conciliador, justo, bom, algo essencialmente oposto
aos impulsos; enquanto é somente uma certa proporção dos impulsos entre si7.
4
KOSSOVITCH, L. Signos e poderes em Nietzsche. São Paulo: Ática, 1979, p. 62.
5
MARTON, S. “Por uma genealogia da verdade”. Discurso, n° 9. São Paulo: Departamento de Filosofia,
FFLCH-USP, 1978, p. 63.
6
FOUCAULT, M. “A verdade e as formas jurídicas”. Cadernos da PUC-RJ, n° 16. Rio de Janeiro: PUC-
RJ, 1979, pp. 10-4.
7
NIETZSCHE, F. “Gaia ciência”. § 333. Obras incompletas, p. 213-4.
55
8
KOSSOVITCH, L. Op. cit., pp. 30-2.
9
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas, p. 19.
10
FOUCAULT, M. Apud S. Marton, art. cit., p. 41.
11
NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal. § 108. Ed. cit., p. 82; também FOUCAULT, M.
Nietzsche, Freud e Marx. Trad. port. Porto: Rés, 1975, p. 14 e MACHADO, R. Nietzsche e a verdade.
Rio de Janeiro: Rocco, 1984, pp. 107-8.
12
FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Marx, p. 18.
56
sua arbitrariedade, abrindo-se para uma teoria da significação em que cada significado é
relativo a uma perspectiva de força. Assim, interpretar é produzir signos e sentidos; mas
por ser ilimitada esta operação exige a determinação do modo de produção. É o valor
que determina as diferenças, isto é, as atualizações de sentido, pois os valores são
significações relativas, uma perspectiva (interpretação) imposta às coisas13.
Essa produção das forças, que avaliando (interpretando) produz signos, toma a
forma de sintoma. Os sintomas estabelecem a relação entre o mais profundo (o oculto,
freqüentemente mascarado) e a superfície (o explícito), constituindo constelações de
intensidades, de sentidos múltiplos. Os sintomas expressam relações dos signos com os
instintos, afetos, paixões, desejos, compondo um campo em que a interpretação se
propõe como ressonância entre as duas séries. A interpretação estabelece-se como um
conjunto de atos diferenciados, pelos quais o intérprete se apodera violentamente dos
signos, domina situações, dá forma, estrutura, impõe determinadas relações de forças.
Esta relação estratégica situa o intérprete e define o conhecimento como efeito. A arte
de interpretar é, portanto, a arte da multiplicação dos sentidos de um sintoma e de
modificação de sua natureza; pois o que permite a interpretação não é a semelhança, que
é limitada, mas a diferenciação, que é infinita14.
13
KOSSOVITCH, L. Op. cit., p. 58 e ss.
14
Id. ib., p. 69 e ss.
57
*
Revista da Faculdade de Educação, v. 19, n. 1 , São Paulo, FEUSP, jan-jun. 1993, p.97-102. Rep. em
MUCHAIL, Salma T. (org.). A Filosofia e seu ensino. Petrópolis: Vozes; São Paulo: EDUC, 1995, p. 77-
85.
1
MAUGÜÉ, J. “O ensino da filosofia: suas diretrizes”. Revista Brasileira de Filosofia, v. V, fase. IV, n°
20, out/dez, 1955, p. 643. Sobre as idéias de Maugüé, cf. o ensaio de ARANTES, P.E., “Certidão de
nascimento”. Novos Estudos Cebrap, n° 23, São Paulo, 1989.
59
Nunca acreditei que um estudante pudesse orientar-se para a filosofia porque tivesse sede da
verdade: a fórmula é vazia. É de outra coisa que o jovem tem necessidade: falar uma língua da
segurança, instalar-se num vocabulário que se ajuste ao máximo às “dificuldades” (no sentido
cartesiano), munir-se de um repertório de topoi, em suma, possuir uma retórica que lhe permitirá
a todo instante denunciar a “ingenuidade” do “cientista” ou a “ideologia” de quem não pensa
como ele. Qual melhor recurso se lhe apresenta senão tomar emprestado um discurso filosófico?
atividade que lhes possibilita desenvolver o gosto em identificar o sentido das palavras,
em descobrir “essências” e estruturas. Porque, continua, “até mesmo as crianças, (como)
dizia Hegel, gostam de encontrar um encadeamento e uma conclusão nos contos.
Descrever a filosofia como uma retórica consiste pois somente em comentar o ideal de
inteligibilidade que ela difunde. Insistir na necessidade retórica a que responde para o
adolescente ocidental não significa desprezá-la (...). Filosofar consiste principalmente
em expulsar o acaso, decifrar a todo custo uma legalidade sob o fortuito que se dá na
superfície. Especificamente filosófico é o problema de compreender o funcionamento
de uma configuração a partir de uma lei que lhe é infusa (é preciso que haja uma),
conforme à ordem que se exprime nela (é preciso que haja uma) – quer se trate de
compreender a possibilidade do juízo a partir da afinidade dos materiais sintáticos ou,
de maneira mais desembaraçada, a sociedade feudal a partir dos moinhos de vento...
Cada vez que a ‘physis’ da coisa contenha uma unificação a priori ou um encadeamento
‘lógico’, o filósofo triunfa”2.
2
LEBRUN, G. “Por que filósofo?”. Estudos Cebrap, n° 15, jan/mar, 1976, pp. 148-53.
61
doutrinas. O que interessa é o foco do trabalho com os alunos: o que é preciso fazer para
o desenvolvimento das condições de inteligibilidade?
5. Qualquer que seja o programa escolhido, não se pode esquecer que a leitura
filosófica retém o essencial da atividade filosófica. É preciso acentuar, entretanto, que
uma leitura não é filosófica apenas porque os textos são filosóficos; pode-se ler textos
filosóficos sem filosofar e ler textos artísticos, políticos, jornalísticos etc.
filosoficamente. A leitura filosófica não se esgota na simples aplicações de
metodologias de leitura; ela é um “exercício de escuta” (no sentido psicanalítico). O
texto fala a partir da relação que se estabelece com ele: o que há nele, a linguagem nele
articulada, não se manifesta senão quando a leitura funciona como elaboração,
desdobrando os pressupostos e subentendidos do texto. Esse exercício (de paciência)
permite que o leitor se transforme na leitura, pois interfere nos modos habituais da
recepção3. A leitura como compreensão (e interpretação) é uma atividade produtiva que
“reconstrói um imaginário oculto, sob a literalidade do texto”4.
3
LYOTARD, J.F. “Le cours philosophique”. In: VV.AA. La grève des philosophes. Paris: Osiris, 1986,
pp. 35-6. O texto integra também o livro do autor, Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée,
1986, cap. 10.
4
GRANGER, G.G. Por um conhecimento filosófico. Campinas: Papirus, 1989, p. 220.
62
7. Ainda, embora seja ocioso dizer: a filosofia deve ser considerada no 2° grau
como uma disciplina, ao nível das demais. Como “disciplina”, é um conjunto específico
de conhecimentos, com características próprias sobre ensino, formação etc. Não é,
entretanto, como diz o sentido latino da palavra disciplina “a instrução que o aluno
recebe do mestre”; não guarda mais o sentido de “ginástica intelectual”, de
disciplinamento da inteligência; diz respeito, hoje, mais a idéia de “exercício
intelectual”, mesmo que isto seja um tanto restritivo. Mas, como disciplina do currículo
escolar, ela mescla conteúdo cultural, formação e exercício intelectual a partir de seus
materiais, mecanismos e métodos, como qualquer outra disciplina. Não há razão, pois,
para ser tratada como uma atividade fora das contingências do currículo.
5
CARRILHO, M.M. Razão e transmissão da filosofia. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987,
p. 11 e ss.
63
6
CHAUÍ, M. “A reforma e o ensino”. Discurso, n° 8, 1973, pp. 152-4.
7
GRANGER, G.G., op. cit., p. 213.
64
pensamento, o que mais importa é que os alunos se apoderem dos signos fortes para
dominar situações, estruturar e modificar a relação dos signos instituídos. O ensino
torna-se, assim, processo de constituição do espaço de encontro dos signos,
possibilitando que o aprender se desenvolva pela exploração do atrito da linguagem na
experiência8.
Se o ensino vive da ilusão de que é possível transmitir um corpo de
conhecimentos sobre um determinado domínio, de certa forma expressando um real
unificado, a aprendizagem vive da produção da inteligibilidade, da elaboração das leis
de funcionamento de uma configuração, da ordem que se exprime nela. Face à
multiplicidade e heterogeneidade dos signos, tal configuração nasce do embate das
forças que agem no campo, e o conhecimento resulta da ruptura da força preponderante
no interior das relações fixadas. Evidentemente, a experiência é importante neste
processo, porque nela o aprendiz expõe-se nas questões que desenvolve, nas dúvidas
que explicita, nas inferências que realiza. A experiência é o seu espaço de repetição,
através do qual articula pontos relevantes, impõe relações, inscreve signos que propõem
o trânsito entre experiência individual e representação social.
11. “Eis por que é tão difícil dizer como alguém aprende: há uma familiaridade
prática, inata ou adquirida, com os signos, que faz de toda educação alguma coisa
amorosa, mas também mortal. Nada aprendemos com aquele que nos diz: faça como eu.
Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem faça comigo e que, em vez de nos
propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no
heterogêneo”9. Nisto se reconhece a ação da Filosofia no ensino de 2° grau (e em outros
lugares); não apresentar objetos para aprender, mas contribuir para que o espírito
possível, à espera desde a infância, se realize assumindo a nossa prematuridade10. Não
radicaria aí o valor formativo da Filosofia?
8
FERRARA, Lucrécia D’A. “Paris, Rue de Tournon, n° 6”. Folhetim 16/9/1984, p. 9; DELEUZE, G.
Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 54.
9
DELEUZE, G. Op. cit., loc. cit.
10
LYOTARD, J.F. Op. cit., p. 34.
65
*
Este texto retoma e modifica a prova escrita do Concurso de Efetivação na disciplina de Metodologia do
Ensino de Filosofia, do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da FEUSP,
realizada em 01/12/1998.
1
cf. LYOTARD, J-F. , “Le cours philosophique”. In: DERRIDA, J. et al. La grève des philosophes. Paris:
Osiris,1986, p.34 e ss.
66
Uma proposição como esta resiste e encontra resistência na, assim chamada,
“realidade”. A proliferação de teorias e discursos, de teses e conhecimentos, de técnicas,
instrumentos e comportamentos, enfim, o domínio do múltiplo e do heterogêneo,
dificultam o próprio trabalho filosófico, que provém da paciência e da sistematização.
Se assim é no trabalho filosófico, quanto se trata de pensar a Filosofia como disciplina
escolar do ensino médio não ocorre coisa diversa.
Situar a Filosofia enquanto disciplina escolar no horizonte dos problemas
contemporâneos – científicos, tecnológicos, ético-políticos, artísticos, culturais –
implica perguntar por sua contribuição específica ao lado das demais disciplinas ou dos
dispositivos que fornecem, ou pretendem fornecer, referências e significados para a vida
pessoal e social. Em resumo, pergunta-se como a Filosofia situa-se na produção cultural
como modo de produção de sistemas de significação. Mais do que agência fornecedora
de informações e significados, a Filosofia “em ato” constitui-se em modalidade
enunciativa que, pela sua especificidade, tematiza e elabora as dificuldades da produção
de sentido.
Um trabalho de Filosofia no ensino médio pode ser significativo quando resulta
da conjugação de um repertório de conhecimentos, que funcionam como referências
para discussões, julgamentos, justificações, com os procedimentos básicos da produção
filosófica: elaboração de conceitos, argumentação e problematização. Tomando posse
deste repertório e dos requisitos da enunciação filosófica, os alunos podem ingressar em
uma experiência reflexiva relevante: a passagem do heterogêneo ao homogêneo, do
disperso ao uno, da variedade dos fatos, acontecimentos e opiniões a uma ordem de
pensamento, lei ou estrutura que lhes permita a produção da inteligibilidade2.
No vasto e diversificado mundo da cultura, particularmente da cultura de
consumo, hoje hegemônica, a contribuição da formação que vem do trabalho filosófico
cifra-se na elaboração de “diretrizes conceituais” e de “estilos de interrogação” que
permitem aos alunos adquirir meios de “orientar-se no pensamento”. Pois descobrir uma
estrutura, organização ou configuração onde os fatos diversos se amontoam, repetem-se,
substituem-se, reciclam-se é, por si só, uma afirmação do ideal de inteligibilidade. E,
para isto, o mais importante é a compreensão do funcionamento dessas configurações3.
A partir de uma sugestão de Deleuze, pode-se conceber o processo de
aprendizagem comparando-o com o de um “egiptólogo”: um decifrador de signos.
2
cf. LEBRUN, G. “Por que filósofo?”. Estudos CEBRAP. nº 15, jan/fev/mar 1976, p. 148 e ss.
3
Id. ib.
67
Aprender, diz ele, “é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se
emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja
um ‘egiptólogo’de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível
aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. A vocação
é sempre uma predestinação com relação a signos. Tudo que nos ensina alguma coisa
emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos”4. A
descoberta das configurações do pensamento, da lei que subjaz a uma matéria, a um
acontecimento, é uma interpretação que só é possível pela faculdade que esta matéria ou
acontecimento tem de emitir signos. A aprendizagem se dá, uma configuração de
pensamento se monta, quando é instaurado um espaço de encontro com os signos,
“espaço em que os pontos relevantes se retomam uns nos outros e em que a repetição se
forma ao mesmo tempo em que se disfarça”5. Mas é preciso acentuar que a cultura de
consumo constitui-se de um acúmulo de signos, manifestando-se como imagerie em que
a significação é, contudo, limitada, contida pelas expectativas de comunicação. Assim,
imagina-se que os jovens, munidos de sistemas de referência e estilos de interrogação,
tenham condições de liberar os signos dos seus usos seqüestrados pelo imaginário e pela
estrutura do consumo, deslocando-os das significações culturais cadastradas pelos
consumo e legitimados pela forma mercadoria.
Contra a tendência natural dos jovens de tudo criticar de imediato, supostamente
traduzindo com isto a força do desejo, o ensino de Filosofia pode contribuir para gerar
as condições da criticidade. A crítica surge da capacidade de formular questões e
objeções de modo organizado, sistematicamente. Mas a crítica não surge da organização
ou da sistematização do imediato, dos fatos da experiência da, assim chamada,
realidade, por uma passagem contínua da experiência, dos fatos e acontecimentos, ao
saber. A crítica não se coaduna com a pressa, com a velocidade, o sucesso, a
prospecção, o prazer; com o “ganhar tempo”, com a eficiência, com tudo isto que nos
fala e em que freqüentemente nos afundamos. A crítica, sabe-se, “suspende” a realidade,
para melhor vê-la. A crítica é uma intervenção na realidade; pelo menos neste domínio
que nos diz respeito aqui e agora, na relação de educação e cultura.
Eis, então, uma posição quanto à idéia de formação pela Filosofia: a Filosofia
gera condições, indiretas é claro, de intervenção na realidade, nos modos dos jovens se
situarem face à multiplicidade e heterogeneidade dos problemas, fatos, acontecimentos
4
DELEUZE, G. Proust e os signos.Trad. bras. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987, p. 4.
5
Idem., Diferença e repetição. Trad. bras. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 54.
68
com que estão envolvidos. Intervir, aqui, significa então descobrir o funcionamento e o
sentido das configurações (ideológicas, míticas, religiosas, científicas, tecnológicas,
artísticas); significa interrogar, formular questões e objeções. Para isto, reafirmando, os
jovens utilizam os sistemas de referência constituídos no curso de Filosofia como uma
experiência (acima de tudo, no que diz respeito aos processos enunciativos) que articula
uma diversidade significativa de trabalhos filosóficos.
Intervir reflexivamente, hoje, significa fazer a crítica dos imaginários da cultura
e do imaginário individual – da re-individualização consumista, de bens, sentimentos,
doutrinas etc. Trata-se de produzir distinção entre “formas” e valores, entre
“modelação” e formação, explorando o atrito da linguagem e do pensamento na
experiência6. O exercício da dúvida e a produção de inferências, possibilitados pelos
sistemas de referência constituídos com os alunos, exploram este atrito com recursos
tanto da oralidade quanto da escrita, sempre articulando os processos do trabalho
filosófico: elaboração conceitual, procedimentos argumentativos e problematização, isto
é, análise das noções, justificação de um ponto de vista e discussão.
Se, a princípio, os interesses dos alunos estão fixados, dada a homogeneização
efetuada na cultura, o trabalho educativo de emancipação que se espera da Filosofia está
em inscrever, pragmaticamente, na sala de aula – acima de tudo na sala de aula –, tais
processos fundamentais do processamento filosófico7. Visa-se, a partir disso, algo mais,
se possível: inscrever a enunciação filosófica como um trabalho de elaboração do
pensamento sobre o seu próprio sentido. Este sentido, contudo, é histórico e vivencial,
pois, como diz Lyotard, quando interrogamos algum assunto, alguma matéria, algum
objeto, somos por ele interrogados, pois em Filosofia não é possível expor uma questão
sem nela se expor. Cultural, histórico, vivencial é o próprio pensamento, especialmente
daquele que ensina, pois só aprendemos com aqueles que sabem emitir signos, propor
gestos a serem desenvolvidos no heterogêneo8. A aprendizagem, no caso da Filosofia,
mas não só neste caso, é a passagem viva de um ao outro, uma experiência que só é
possível quando se instaura e determina um espaço de circulação dos signos: dos
conhecimentos e dos afetos; das relações de força e da alteridade.
6
cf. FERRARA, Lucrécia D’Alessio. “Sala de aula: espaço de uma experiência”. Margem 2, São Paulo:
PUC-SP, nov. 1993, p.124
7
cf. LYOTARD, J.-F., op. cit.
8
cf. DELEUZE, G. Diferença e repetição.Trad. bras. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 54.
69
*
Este texto resultou de uma colaboração para a discussão prévia à formulação da proposta da disciplina
Filosofia dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio na área de Filosofia, por solicitação
da coordenação do Projeto PNUD (MEC/UNESCO), 1997/98.
70
O que poderia ser hoje a arte, a estética, depois das operações e do trabalho de
negatividade efetuados pela modernidade? E esse prefixo “pós”, atribuído a atividades
contemporâneas alude a quê? A um “depois da arte moderna”, sugerindo que a
modernidade cumpriu o seu curso, que agora assiste-se à abertura de um novo período
histórico? Ou, então, não seria nada disso: o pós-moderno seria uma continuação da arte
moderna ou, ainda, a reativação dos seus pressupostos, virtualidades e imperativos? A
pós-modernidade, não seria, assim, mais uma atmosfera, uma atitude, que entre a
inquietação e a indiferença, vagando pelo precário e o disperso, pressiona o espaço
simbólico liberado pelas operações modernas, ansiando por um preenchimento (uma
Estética, uma Arte, uma Totalidade)? E, no entanto, marcados pela indeterminação,
esses tempos pós-modernos não estariam indicando que não existe, nesta situação
cultural, uma linguagem com poder de fixar o estado atual das coisas (da arte, da
cultura, do saber)?1
A controvérsia que anima a postulação do pós-moderno nas artes, na cultura, nos
comportamentos, no saber, evidencia o desejo de articular (e mesmo conciliar) o
cinismo e a razão crítica. Lança mão, simultaneamente, do acervo cultural (inclusive
sob a forma de documentação), das grades de comunicação e da análise dos efeitos
dessas integrações. Nessa situação, em que se multiplicam efeitos de aparência
(simulação), a imaginação retoma seu ímpeto interpretativo: elabora o mal-estar.
Curvando-se sobre o caráter intempestivo da arte moderna – retomando sua potência ao
simulacro –, esta interpretação tem caráter perspectivo: resulta da tensão de forças
múltiplas e opostas num campo de efetuações. Neste, ativa-se em determinar a posição
de cada força (qual prepondera?), pois o perspectivismo é função da variação intensiva
das forças, da relação estratégica que preside ao campo. Além disso, a interpretação é
sintomática: estabelece relações entre um profundo (oculto) e uma superfície (explícito):
expressa relações dos signos produzidos na interpretação com as forças, os instintos, os
desejos, compondo um campo de ressonâncias. A interpretação é, assim, um efeito: arte
*
in PACHECO, Elza D.(org.). Comunicação, Educação e Arte na Cultura Infanto-Juvenil. São Paulo:
Loyola, 1991, p. 57-66.
1
BAUDRILLARD, J. Entrevista à Folha de S. Paulo, 23/12/1987.
76
***
2
KOSSOVITCH, L. Signos e poderes em Nietzsche. São Paulo: Ática, 1979, p. 30 e ss.
3
LYOTARD, J.F. Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 46.
77
tradição de ruptura, realizada na própria vanguarda, está hoje abandonada. Para ser
atual, hoje, não é preciso que se aposte no inusitado, pois a volatização do estético e sua
generalização, provocadas pela atividade vanguardista, estendeu as operações e
processos especificamente artísticos para outros domínios do cotidiano e da produção.
O longo e obstinado trabalho das vanguardas desenvolveu operações que
atingiram a imagem da arte, a atitude dos artistas, a situação social da arte, produzindo
alterações significativas na recepção. Enfatizando os projetos de ruptura do sistema das
belas-artes, apostando na superação do que julgavam ser a concepção idealizada de arte,
as vanguardas efetivaram um trabalho altamente responsável de desconstrução da arte
do passado: fixando processos, procedimentos e atitudes experimentais, valorizando a
invenção, a produção do novo, visavam a corporificar os pressupostos modernos de
progresso da racionalidade e da liberdade. Requeria-se, para isso, a renovação das
formas, da percepção, dos comportamentos; no mínimo tratava-se de proscrever a
“obra” em favor do ato e da atividade: no limite, fundir arte e vida. Utópica, heróica e
crítica, a arte dita moderna queria contribuir para o projeto de emancipação social e
individual pela reinvenção da vida.
***
4
OLIVA, A.B. “A arte e o sistema da arte”. Malasartes, n° 2, dez/jan/fev, 1975, p. 24; BRITO, R. “O
moderno e o contemporâneo”. Arte Brasileira Contemporânea. Caderno de Textos, n° 1, Rio de Janeiro:
Funarte, 1980, p. 5.
5
MARCHAN, S. Del arte objetual al arte de concepto. Madrid: A. Corazon, 1974, p. 7.
6
DEXEUS, V.C. La poética de lo neutro. Barcelona: Anagrama, 1975, pp. 15-6.
79
7
OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto, p. 25; RIEU, A.M. “La machinerie hyperréaliste”. Voir,
Entendre (Revue d’Esthétique, 1976/4). Paris: UGS, Coll. 10/18, 1976, pp. 26-8; GREENBERG, C. “A
pintura moderna”. A nova arte. Trad. bras. São Paulo: Perspectiva, 1975 (Col. Debates, 73), pp. 95-106;
Idem, “Depois do expressionismo abstrato”. Gávea, n° 3, PUC-RJ, 1986, pp. 99-119.
80
***
Depois das apostas e dos jogos das vanguardas – notáveis pelo sentido de
abertura, pelo empenho em realizar a autoconsciência da arte sobre seu próprio sentido
–, observa-se um desinteresse pela questão moderna por excelência: o que é a arte?
Livres dos projetos e imperativos empenhados no combate pelo novo, os artistas tentam
cingir-se à imediaticidade do trabalho. Além das simples rearticulações de despojos
vanguardistas, reivindicados por tentativas nostálgicas, ou oportunistas, de revalidação
do novo, flagra-se uma sensibilidade aguçada para as diferenças que elabora o
incomensurável aberto pelas experiências modernas. Lançados no indeterminado, esses
artistas sabem que não estão garantidos por qualquer a priori. Seu trabalho, cada
trabalho, impõe-se pela singularidade, especificando a produção: agindo num campo de
investimentos variados, o trabalho contemporâneo atravessa as pesquisas modernas,
viaja pelo imaginário das formas, das cores, dos processos, dos temas fixados pela
tradição; captura descontinuidades, sinais e referências, condensando, reatualizando,
8
LYOTARD, J.-F. “Reponse a la question: qu’est-ce que le postmoderne?” Critique, n° 419, abril, 1982.
Trad. bras. Arte em Revista, n° 7, 1983, pp. 95-6. Incluído em Le postmoderne expliqué aux enfants.
Todo este fragmento pode ser encontrado em nossa Tese de Doutorado, A Invenção de Hélio Oiticica,
FFLCH-USP, 1988, p. 9-14. Nota: publicado pela EDUSP em 1992.
81
deformando, citando, acima de tudo utilizando, o que está à disposição como estoque
cultural. Muitas vezes os trabalhos não vão além do virtuosismo (de formas, de gestos,
de pesquisas etc.) ou então em manobras estilísticas; nos artistas mais interessantes,
entretanto, inscrevem-se como elaboração interpretativa, em que a imaginação associa
livremente elementos indefinidos, fluxos do presente e referências históricas.
Esse trabalho contemporâneo é sintomático: compõe um campo de ressonâncias
que modifica as relações fixadas num passado. Reiterando procedimentos já
experimentados, intensificando os materiais, jogando com a indeterminação do sentido e
com a imanência da expressão, a atividade artística contemporânea libera os signos de
uma atividade sem fim. Mas a tendência à reiteração expõe as dificuldades desses
trabalhos: reatualizando, repetindo, citando, utilizando o que foi liberado pelas
pesquisas anteriores eles mostram a quase impossibilidade de articular imagens, formas
e processos que indiquem a emergência de alguma coisa depois da arte moderna. Essa
dificuldade complica a posição do artista, pois a criação está sempre referida a uma
série já determinada, e a do receptor, que é compelido ao esforço de se render à
objetividade daquilo que está à sua frente, abandonando a compulsão de preencher o
vazio, deixado pela ausência do novo, com um outro novo, agora inexistente. No fundo,
artista e receptor estão às voltas com a dificuldade produzida pelo desaparecimento do
objeto da arte.
Assim, os trabalhos contemporâneos mais interessantes são os que nada
prometem; inscrevem-se como atividade interpretativa a partir e sobre as rupturas
modernas, despojadas, entretanto, de seu significado histórico, exatamente para elucidá-
las9. E porque esses trabalhos são táticos e reflexivos, Lyotard diz que “um artista, um
escritor pós-moderno está na situação de um filósofo: o texto que ele escreve, a obra que
ele realiza não são em princípio governados por regras já estabelecidas, e não podem ser
julgados por meio de um juízo determinante, pela aplicação de categorias conhecidas a
esse texto, a essa obra. Tais regras ou categorias são o que a obra ou o texto procuram.
O artista e o escritor trabalham, pois, sem regras, para estabelecer regras do que terá
sido feito. Daí que a obra e o texto tenham propriedade de acontecimento (...)”.10
Pode-se perguntar: onde está esta arte contemporânea? Em todo lugar,
desenvolvendo-se desde as operações Pop, passando, principalmente, pelas proposições
conceituais e minimalistas. Está onde se percebe a aderência ao que restou da arte, de
9
BRITO, R. “O moderno e o contemporâneo”, loc. cit.
10
LYOTARD, J.F., loc. cit.
82
A situação das artes plásticas no Brasil não se distingue daquela dos demais
centros produtores, mesmo tendo-se em conta que a atividade cultural aqui é
absolutamente irrisória. Seus impasses estéticos, e as significações que mobilizam, são
caudatários dos problemas provocados pela exaustão dos projetos vanguardistas. Ao
atingirem os limites expressivos, as diversas tendências, após a radicalização conceitual
e minimalista, não conseguiram levar adiante o desejo de articular (ou conciliar) o
cinismo e a razão crítica: a inevitabilidade do mercado enquanto instância objetiva da
produção e da recepção – com suas exigências de comunicação –, e o incomensurável
da experiência estética – que valoriza o indeterminado, o imprevisível, o incerto, o
incomunicável.
A modernidade artística apostou na autonomização do processo estético e na
negatividade (crítica cultural), erigidos em princípios e justificativas de suas
intensidades. A postulação de uma contemporaneidade tem em vista, freqüentemente,
designar uma situação (identificada acriticamente a uma suposta pós-modernidade) que
reteria as conquistas e virtualidades dessa modernidade, desenvolvendo-as na direção de
possibilidades ainda não efetivadas. Mesmo cessadas as condições históricas que
permitem aos artistas jogar com a ruptura do sistema da arte e com o ímpeto de
transformação social, postula-se ainda o ideal de eventuar. Entretanto, nessa situação,
em que o novo não mais opera e na qual o experimentalismo agencia, geralmente,
reatualizações o que poderia ser denominado “contemporâneo” no sentido de um além
do moderno?
Embora a discussão sobre a contemporaneidade artística não permita o
estabelecimento de um conceito (o contemporâneo), nem de uma época ou tendência
que substituíssem as modernas, pode-se falar na existência de um campo de efetuações
aberto às singularidades. Esta reflexão sobre o agora da arte, atenta a transformações
presentes (qualquer coisa que não se inscreva apenas na demanda contínua por
comunicação, longe entretanto de qualquer ruptura) procede da consideração da
*
AJZENBERG, Elza (org.). Comunicações e Artes em Tempo de Mudança(1966-1991). São Paulo,
SESC/ECA-USP, 1992, p. 113-115.
84
1
LYOTARD, J.F. Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 46.
2
Idem, ibidem, p. 125.
3
Idem, ibidem, p. 27.
85
4
AMEY, C. “Experiência estética e agir comunicativo”. Novos Estudos Cebrap, n° 29, março, 1991, p.
143.
5
BRITO, R. “O moderno e o contemporâneo”. Arte brasileira contemporânea. Caderno de Textos 1. Rio
de Janeiro: Funarte, 1980, pp. 6-7, n° 350, 2/10/1983, p. 6.
86
produção moderna para fazer ver que alguma coisa no já feito foi recalcada, inclusive
pela força dos projetos; inscrevem-se, portanto, como análise interpretativa. Reiterar
não é reatualizar formas, processos, temas e materiais; nem apenas rememorar – porque
seria preciso “reparar, e identificar os crimes, os pecados, as calamidades engendradas
pelo dispositivo moderno, e finalmente revelar o destino que um oráculo, no início da
modernidade, teria preparado e realizado em nossa história”6. A reiteração, nesses
trabalhos contemporâneos, refere-se às rupturas modernas exatamente para elucidá-las:
desidealizando-as7.
Os trabalhos contemporâneos são fundamentalmente reflexivos; referindo-se à
história da arte moderna, compõem um campo de ressonâncias que atuam sobre os
significados fixados para, de certa forma, evidenciar que alguma coisa de impensado
existe no já pensado. Reiterando procedimentos, intensificando materiais, jogando com
a indeterminação do sentido e com a imanência da expressão, flagra-se neles uma
abertura para as conexões entre o presente e a tradição. Esta, entretanto, não é visada
enquanto processo de formação, devedor de uma concepção da História como
totalidade, mas como transformação que provém da descontinuidade e da não-teleologia
dos sistemas artísticos, – com que desarma a visão moderna de processo na arte.
Esta perspectiva de análise expõe as dificuldades dos trabalhos contemporâneos.
Reiterando, reatualizando, repetindo, citando, eles mostram a quase impossibilidade de
articular imagens. Compreende-se, então, que a maioria dos artistas preencham o vazio
deixado pela ausência de novo com o excesso (de imagens catalogadas, de matéria, de
procedimentos) ou com retóricas. Neles, o horror do vazio recai na falta de imaginação
e na imagerie. O desafio enfrentado por alguns artistas, que vivem a tensão do instante
através de uma imaginação e uma reflexividade que retomam seu ímpeto interpretativo,
é o de especificar a produção. Tendendo à sobriedade construtiva, à valorização da
técnica requintada, ou mesmo ao excesso, estes artistas protegem-se de validar seus
trabalhos apenas pelo uso descontextualizado dos recursos modernos. Agindo contra os
recursos fáceis e o virtuosismo, evitam a recaída, sempre solicitada pelas modas e pela
razão comunicativa, no ideário das belas-artes ou na reconciliação com o trabalho
tradicional8.
6
LYOTARD, J.-F. L’inhumain. Paris: Galilée, 1988, p. 36.
7
BRITO, R. Op. cit.
8
NAVES, R. “A arte comedida e as dificuldades da alquimia”. Folha de S. Paulo, 19/11/1989, p. F-9.
87
*
BARBOSA, Ana Mae et al.(org.). O Ensino das Artes na Universidade. São Paulo: EDUSP, 1993, p.
45-49.
1
JEUDY, H.P. Ardis da comunicação. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 17.
2
AMEY, C. “Experiência estética e agir comunicativo”. Novos Estudos Cebrap, n° 29, mar, 1991, p. 143.
89
3
JEUDY, H.P. Op. cit., p. 126.
4
BURGER, P. “O declínio da era moderna”. Novos Estudos Cebrap, n° 29, mar, 1988, p. 95.
5
LYOTARD, J.F. L’inhumain. Paris: Galilée, 1988, p. 36.
90
6
LYOTARD, J.F. Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 46.
91
7
Idem, ibidem, p. 121.
8
AMEY, C. Op., cit., p. 143; COELHO, Teixeira. “A negatividade na cultura ocidental”. O Estado de S.
Paulo, Cultura, 28/12/1991, p. 2.
9
BRITO, R. “O moderno e o contemporâneo”. Arte Brasileira Contemporânea, Caderno de Textos 1, Rio
de Janeiro: Funarte, 1980, pp. 6-7; “Pós-moderno: pós, pré, quase ou anti”? Folha de S. Paulo, Folhetim,
n° 350, 2/10/1983, p. 6.
10
Idem, ibidem.
92
reflexivos que jogam com a indeterminação do sentido; não operam regras e categorias
já estabelecidas, tentam estabelecer as regras e categorias daquilo que foi feito11.
Agindo contra os recursos fáceis e o virtuosismo (visíveis nas reatualizações, citações,
no uso descontextualizado dos recursos modernos), evitam as retóricas do excesso ou da
técnica requintada, expondo a quase impossibilidade de articular imagens. Protegem-se,
assim, da reconciliação com o trabalho tradicional, solicitado continuamente pela moda
e pela razão comunicativa, paradoxalmente ainda tributários do ideário das belas-artes12.
As dificuldades dessa arte são imensas; tendo em vista a dessubstancialização da
cultura, não sabe como articular sua significação cultural, pois a experiência estética
contemporânea está remetida preponderantemente ao imaginário, dada a evanescência
da inscrição simbólica13.
11
LYOTARD, J.-F. Op. cit., p. 33.
12
NAVES, R. “A arte comedida e as dificuldades da alquimia”. Folha de S. Paulo, 19/11/1989, p. 9.
13
A última parte deste texto reelabora aspectos de uma comunicação feita no seminário promovido pela
ECA-USP (1991) em comemoração aos seus 25 anos. Nota: conferir texto “Impasses da arte
contemporânea”.
93
*
Revista Sexta Feira 5 [Tempo]. São Paulo, 2000, p. 110-117.
1
BRITO, R. “Pós-moderno: pós, pré, quase ou anti”? Folhetim, n° 350, 2/10/1983, p. 6.
2
LYOTARD, J.F. Moralidades pós-modernas. Trad. bras. Campinas: Papirus, 1996, p. 29 e ss.
94
nada a ver com a categoria moderna de participação, que surge com a desestetização,
pela crítica das categorias tradicionais da obra de arte, implicando práticas artísticas e
experiências estéticas reflexivas.
Assim, os trabalhos artísticos convertem-se em instâncias de comunicação, o que
resulta na perda do valor que se pretende atribuir ao evento: o de lugar de exploração de
signos de resistência cultural, de explicitação da angústia provocada pela perda do
objeto da arte, dado o aprisionamento do desejo pelo consumo. A estetização
generalizada é simultaneamente fruto da abertura moderna, ou seja, da desestetização, e
perda das tensões entre sensível e racional, construtividade e vivência, patentes em
todas as tendências e experiências modernas.
Como o estatuto da arte contemporânea parece inteiramente determinado por
uma condição extrínseca – o caráter institucional do lugar em que aparece – e como o
meio de arte age em consonância com as instâncias institucionais e vice-versa, é preciso
dar a devida atenção ao evento como maneira privilegiada de enunciar experimentações
que pretendem ser transformadoras do ambiente cultural e educadoras da sensibilidade.
Eventos são intervenções, regradas ou extemporâneas, que num lugar preciso
permitem a intersecção de falas, tempos e ações. Simultâneos e descontínuos, estes
elementos desdobram e reiteram gestos e atitudes que exploram o instante da
apresentação. Nas artes plásticas, por exemplo, acentuam a temporalização do espaço,
tornando espesso o fugaz.
O evento não propicia imediatamente a fruição dos trabalhos artísticos, mas a
presença em um acontecimento. A passagem da simples presença à presentificação de
uma experiência significativa, de que proviria o efeito estético da participação, supõe
que os gestos efetivados nos comportamentos derivem do valor exemplar dos signos
produzidos na experiência das obras ou proposições artísticas. Os eventos tiram toda a
sua eficácia do poder simbólico do espetáculo; daí o seu interesse: são lugares ou
ocasiões onde o tempo é intercambiável e consumível – um tempo pseudo-crítico.
Entretanto, quando as proposições artísticas abrem um espaço no interior das estratégias
consagradas, mesmo que muitos recentes, o tempo do evento pode ser crítico. De modo
geral, os eventos são ocasiões em que se produzem e consomem imagens – um modo de
dominar a fuga do instante e do prazer. Dramatizando espetacularmente a sucessão dos
atos em que algo se dá a ver, os que vivem o tempo do evento rendem-se ao encanto (e
também ao cansaço) dos mecanismos de repetição. Lugar onde presumivelmente a
95
3
LYOTARD, J.F. O pós-moderno explicado às crianças. Trad. port. Lisboa: Dom Quixote, 1987, p. 26;
DELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. bras. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, pp. 17 e 96.
96
que não é mais “obra de arte”, uma proposição, uma idéia, uma ação. Os trabalhos
contemporâneos são, assim, táticos, diferentemente dos modernos, estratégicos.
As táticas, diz Certeau, são ações calculadas que pretendem determinar um lugar
de ações e um tempo de intervenções. Não tendo poder de totalização, visam a “captar
no vôo as possibilidades oferecidas por um instante”. É a arte da caça, do senso de
ocasião, da ausência de poder; modos hábeis de “utilização do tempo”4. Assim é a arte
contemporânea: ela não vive das intenções emancipatórias do processo e do projeto
modernos; é um pensamento sobre as estratégias modernas, rigorosamente centrado na
exploração do lugar e do tempo em que aparece, mesmo que seja eventualmente,
mesmo que seja para ser consumida, imediatamente ou não. Sua força está na quebra do
ilusionismo da forma e na fuga dos conteúdos que os tempos modernos elegeram. Mas,
de que vive esta arte, depois de afastadas as veleidades do novo? Freqüentemente do
não-dito da arte moderna; daquilo que nela permaneceu oculto ou incluso, sem
desenvolvimentos, e cuja manifestação é possibilitada apenas pelos novos tempos. É
uma arte reflexivamente rica, às vezes paródia do saber configurado nas propostas
modernas. Daí a sensação que temos de que as obras recaem no lugar-comum, no
clichê, numa espécie de “retórica da banalidade”5. Isso provém, principalmente, do fato
– já mencionado – de a arte contemporânea ser fortemente institucionalizada, o que
equivale a dizer codificada, pois não pode mais tirar partido dos efeitos de ruptura, de
choque, mas, ao contrário, da tentativa de suprir a brecha aberta pela arte de vanguarda
entre o que quer significar e o que é concretamente entendido pelo público.
O tempo da arte contemporânea é o tempo do paradoxo e da repetição. Não é,
como o moderno, tempo da invenção ou, como o cíclico, tempo da conservação: é o
tempo das transformações, da dualidade e das ambivalências. Na repetição se dá a
diferença, uma espécie de simultaneidade de ritmos que ora homogenizam as
disparidades, gerando séries, ora exploram a dispersão, gerando singularidades. Os
trabalhos contemporâneos se efetivam através da história ainda viva e pulsante da arte
moderna, reativando e refletindo os seus princípios, tensionando suas questões,
desativando, entretanto, os seus projetos emancipatórios6. A arte contemporânea perde,
assim, o seu aspecto de representação, tornando-se irrepresentável. Por isso lhe é
4
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano – artes de fazer. Trad. bras. Petrópolis: Vozes, 1994, pp.
46-47.
5
HUCHET, S. “Instalação, alegoria, discurso”. Trilhas, n° 6, Campinas: Unicamp, 1997, p. 70 e ss.
6
BRITO, R. “O moderno e o contemporâneo”. In: BRITO, R; VENÂNCIO FILHO, P. O moderno e o
contemporâneo (O novo e o outro novo). Rio de Janeiro: Funarte, 1980, pp. 7-9.
97
7
Idem, ibidem.
98
*
Texto inédito. Escrito a partir de intervenção em mesa redonda integrante do Programa Rumos Artes
Visuais, do Instituto Itaú Cultural. São Paulo, 2001.
99
1
FAVARETTO, C.F. “Por que Oiticica”. In: BOUSSO, V.D. et al. Por que Duchamp? São Paulo: Itaú
Cultural; Paço das Artes, 1999, p. 80.
100
mais imediata, ou seja, como instância de mercado e lazer, como um “exercício superior
da fantasia”2. Daí a necessidade, como já foi aludido, de se atentar para o caráter
institucional das experiências e obras, pois o lugar de aparição é por si só um critério
distintivo do valor das proposições: se admitem categorias estéticas ou se são apenas
“interessantes”, ou seja, maneiras ditadas pela moda. Singularizadas esteticamente ou
indiferenciadas como objetos comuns, as obras, experiências ou propostas
contemporâneas participam do mesmo processo extensivo de generalização da arte na
cultura das metrópoles. O que as diferencia é a intensidade com que tensionam o
ambiente com proposições e ações que ora enfatizam as relações entre o sensível e o
racional, ora entre construtividade e vivência, ora entre enunciação e pensamento.
Este largo traçado da atitude contemporânea, com todas as diferenciações que
são necessárias para contemplar a variedade e riqueza da produção em
desenvolvimento, quer evidenciar que os trabalhos dos artistas são sintomáticos.
Exatamente porque, na continuidade da atitude duchampiana, operam a partir do
conhecimento das regras de funcionamento das instituições artísticas, tomadas como
instância de diálogos e jogos, os trabalhos tensionam os limites do trabalho moderno,
seus pressupostos e suas questões. O sintoma pós-moderno, diz Ronaldo Brito, é “o
desejo de atravessar a arte moderna ou, simplesmente, utilizá-la. Isto é, parodiá-la cética
ou furiosamente, ou então consumi-la”3. Esta travessia pode ser entendida como um
trabalho semelhante ao da anamnese psicanalítica, “como uma perlaboração
(Durcharbeitung) efetuada pela modernidade sobre seu próprio sentido”4. Associando
livremente a perturbação presente com situações passadas, o artista contemporâneo,
como um paciente, elaborando descobre nos dispositivos modernos sentidos ocultos,
esquecidos ou recalcados. Assim, desidealizado, o trabalho dos artistas enfatiza a atitude
reflexiva, compondo um campo de ressonâncias que elucida as proposições modernas –
desenvolvendo-as, diferenciando-as ou negando-as, liberando, assim, os seus implícitos.
2
BRITO, R. “Pós, pré, quase ou anti”? Folha de S. Paulo, Folhetim, 2/10/1983, p. 6.
3
Idem, ibidem.
4
LYOTARD, J-F. O pós-moderno explicado às crianças. Trad. port. Lisboa: Dom Quixote, 1987, p. 97;
L’inhumain. Paris: Galilée, 1988, p. 35.
101
Infortúnios da unidade*
*
Texto apresentado no Simpósio Internacional “Machado de Assis: Reflexions, Refractions, Realities”.
University of Texas at Austin, EUA, 27-28/10/1995. Uma versão reduzida foi publicada sob o título “The
misadventures of Unity”, como posfácio à traduçào norte-americana do romance Quincas Borba de
Machado de Assis (New York/Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 273-290).
1
Machado de Assis, Quincas Borba. 12ª ed., São Paulo: Ática, 1993, c. XV, p. 27.
2
QB, c. XLIX, p. 61.
103
megalomania e ao delírio. Vaga, sem prazer, pelos salões, pelas ruas, pela Câmara dos
Deputados; passeia os sonhos e busca o “repouso do espírito” em sua casa de “luxo
rutilante”, ocupado em ler romances que falam de “uma sociedade fidalga e régia”, com
“seus nobres espadachins e aventureiros, as condessas e os duques de Feuillet, metidos
em estufas ricas, todos eles com palavras mui compostas, polidas, altivas ou graciosas”,
que lhe faziam “passar o tempo às carreiras”3. Falto de idéias, compensa pela
imaginação, como Bovary, a fuga do real, reconstituindo a perda da consciência. Sendo
dois, vivendo os “extremos do coração e do espírito”4, alterna cenas de delírio com
alguma lucidez; perde a unidade da experiência. Abandonado pelos que o assediavam
com protestos de amizade, Rubião é agora a imagem rediviva de Quincas Borba, de sua
esquisitice e seu legado de loucuras; confirmação da filosofia do Humanitismo
inventada pelo filósofo. Por fim, desaparece do Rio de Janeiro e retorna, maltrapilho,
doente, acompanhado pelo cão, a Barbacena, onde morre enlouquecido, cingindo
imaginariamente uma coroa como o Napoleão de seus delírios: “ele pegou em nada,
levantou nada e cingiu nada”. Do nada ao nada, cumpre a irrisão do destino, que encena
“os risos e as lágrimas dos homens”5.
Sucintamente, aí estão o enredo e a temática de Quincas Borba, que é, também,
uma continuação do romance anterior de Machado de Assis, Memórias Póstumas de
Brás Cubas, em que o filósofo Quincas Borba é personagem. Compõe uma sátira social,
política e filosófica; mais propriamente, uma alegoria da modernização burguesa do
final do século XIX no Brasil. Imediatamente, é um romance comum à época, tratando
dos temas do amor, da família, da vida em sociedade e da política, com as intrigas
costumeiras. No modo de compor , desloca os lugares- comuns em que aparecem nas
narrativas romanescas, o que implica crítica da literatura, do naturalismo e do romance
imperantes. E, enquanto alegoria, é inventário terrível das assincronias da integração
dos costumes e dispositivos modernos.
Quincas Borba, assim como a vida, “compõe-se rigorosamente de quatro ou
cinco situações, que as circunstâncias variam e multiplicam aos olhos”6. A trama é
simples; o que vale é o nuançamento das situações, das circunstâncias advindas “do
abismo que há entre o espírito e o coração”7, dos interesses individuais, da concorrência
3
QB, c. LXXX, p. 99.
4
QB, c. XL, p. 49.
5
QB, c. CCI, p. 214.
6
QB, c. CLXXXVII, p. 205.
7
QB, c. II, p. 13.
104
social, da política e dos negócios. São as circunstâncias que tecem a assim chamada
vida interior, a aliança do amor e do dinheiro, as vicissitudes do poder. O lucro, valor
preponderante da “vida moderna”, disfarçado nas aparências da amizade, do amor, do
progresso, da solidariedade social, expõe a irrisão dos valores universais, a facticidade
do moderno e as ilusões da nova intimidade.
***
8
CORÇÃO, Gustavo. Machado de Assis-Romance. Rio de Janeiro: Agir, 1959, p. 13 (Nossos Clássicos,
37).
9
QB, c. XXVIII, p. 37.
10
DELEUZE, Gilles. Logique du Sens. Paris: Minuit, 1969. Trad. bras. Lógica do Sentido. São Paulo,
Perspectiva, 1974, p. 26-27 (Estudos, 35).
106
***
11
DELEUZE, Gilles. Différence et Répétition. Paris: PUF, 1968. Trad. Bras. Diferença e Repetição. Rio
de Janeiro: Graal, 1988, p. 27; Lógica do Sentido, p. 143.
12
QB, c. CXXXVIII, p. 158.
13
cf. GLEDSON, John. Machado de Assis: Impostura e Realismo. São Paulo: Companhia das Letras,
1991, p. 102.
14
Conferir, a respeito desta questão: SCHWARZ, Roberto. “As idéias fora do lugar”. Estudos CEBRAP
nº 3. São Paulo: jan. 1973, p.143 e s., incluído em Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades,
1977. Confereir ainda CARVALHO FRANCO, Maria Sylvia de. “As idéias estão no lugar”. Cadernos de
Debate 1. São Paulo: Brasiliense, 1976, p. 61 e ss.
107
15
cf. “Machado de Assis: Um debate. Conversa com Roberto Schwarz”. Novos Estudos CEBRAP, nº 29,
São Paulo, mar. 1991, p.68-69, a propósito do livro de RS, Um mestre na periferia do capitalismo –
Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades,1990.
16
Idem, p. 67 e 71.
17
cf. GLEDSON, John. Machado de Assis: Ficção e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 113.
108
18
QB, c. XVIII, p. 30.
19
QB, c. CIX, p. 128.
109
20
QB, c. XXVIII, p. 37.
21
QB, c. CXII, p. 131.
22
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição, p. 54; Lógica do Sentido, p. 152.
110
***
23
QB, c. XXVIII, p. 37.
24
QB, c. XVIII, p. 30.
25
QB, c. LV, p. 70.
111
pelo prestígio pessoal assegurado pelo clientelismo que por projetos. Apesar das crises
sucessivas, advindas da disputa de hegemonia entre as Províncias do Norte e as do Sul;
do descontentamento dos militares; dos arrufos entre Igreja e Estado; do deslocamento
do pólo econômico da cana de açúcar nordestina para o cafeeiro do Vale do Paraíba, as
mudanças institucionais eram reformistas. As leis de extinção do tráfico de escravos
(1850) e a Lei do Ventre Livre (1871) provocavam resistências na economia rural em
dificuldades: uma de suas conseqüências foi o início da substituição da mão-de-obra
escrava por imigrantes.
A situação era complexa. A modernização impulsionada pelo vento das idéias e
práticas liberais, que chegavam da Europa e da América do Norte, promovia mudanças
na fisionomia do país, com as estradas de ferro, com a liberação dos capitais
empenhados no tráfico de escravos e agora injetados na especulação e nos negócios,
mas não transformava essencialmente as relações de poder. Traduzia, ainda, a ideologia
do favor, os privilégios da proximidade da Corte, a desigualdade. Entretanto, algo
estava em marcha, eram iminentes a Abolição e a República. Dois poderes se
manifestam decisivamente: o Exército, fortalecido com a Guerra do Paraguai, e a
Imprensa, arena das idéias liberais.
Machado dissemina signos disso tudo, surpreendendo o quadro das ambições,
vaidades, interesses, e, não menos, o horror da escravidão, a irrisão das medidas
políticas, as representações abstratas da racionalidade que as validava. A consonância
entre o que se passava nas relações domésticas e nos salões, nas conversas políticas e
negociatas, provinha da indiferenciação entre ética das aparências e idealização.
Passava-se de um esfera a outra sem conflitos; estes eram simplesmente suprimidos ou
vividos sem ambigüidade, relegados, nos dois casos, à intimidade e suas tiranias. Assim,
a paisagem figurada por Machado nega a positividade da razão ilustrada que, devendo
expressar-se nas esferas autônomas da religião, da ciência, da moral e da arte, não
produzia no Brasil qualquer fratura propriamente moderna. As elites compunham, por
acomodação, uma imagem de felicidade. A crença na ciência e o entusiasmo pelo
progresso que deveriam levar ao domínio da natureza e à justiça das instituições são
denunciados por Machado como idealização. O otimismo das elites é satirizado porque
a ação objetiva desmente os ideais abstratos: as relações de propriedade fundadas no
trabalho escravo tornam irrisórias as belas idéias, recheio da consciência aliviada,
patente nas motivações bovaristas e arrivistas dos personagens. Na chave dos
112
***
26
Cf. “Conversa com Roberto Schwarz”, loc. cit, p. 66 .
27
MURICY, Kátia. “Machado de Assis, um Intempestivo?”. Gávea 10, Rio de Janeiro: PUC-RJ, mar.
1993, p. 13 e ss.
28
QB, c. CXIII, p. 131-132.
113
29
QB, c. CVI, p. 124.
30
QB, c. LXXX, p. 98.
114
31
. Cf. a canção “Na asa do vento”, de Luiz Vieira/João do Vale, cantada por Caetano Veloso, LP Jóia,
Philips, 1975.
32
QB, c. VI, p. 20.
115
à primeira vista”, “atentando bem, por mais opostos que fossem os matizes, lá se achava
a unidade moral da pessoa”33. Se a unidade aspirada por Rubião é transcendente, a de
Palha é transcendental, ou seja, a do lucro.
A narrativa de Quincas Borba é descontínua, obrigando o leitor a puxar-lhe os
fios, desenleá-los como a aranha, esperto como o gato, para articular as relações de
forças que a tensionam como um “espaço em que os pontos relevantes se retomam uns
nos outros e em que a repetição se forma ao mesmo tempo em que se disfarça”34. Signos
heterogêneos implicam heterogeneidade nas relações, de modo que a compreensão vem
sempre depois. Machado incita o leitor a reconstruir os signos disseminados e,
decifrando-os e interpretando-os, a passar dos fenômenos narrados à possível
significação de uma totalidade apenas sugerida.
Agenciando dualidade e inacabamento, Machado traça a paisagem moral e a
história como relações de força, figurando um mundo que se dissolve enquanto outro se
constitui. A paisagem é de ruínas. Como se diz de Freitas que, ostentando embora uma
“máscara risonha”, diz-se um triste, “um arquiteto de ruínas”35. Quincas Borba
apresenta o mal-estar de uma situação de crise em que se justapõem as ruínas ainda
ativas do passado e as de um presente inconsistente, que ressaltam a modernização
predatória. O implacável processo de destruição de Rubião é a figuração dessa coalizão
do tempo que morre e do que nasce. Também na narrativa é o que acontece. O tempo da
narrativa vai-se acelerando à medida que o delírio toma conta de Rubião. O
arruinamento da personagem é rapidamente arrematado por cortes abruptos, compondo
a alegoria das batatas, de que a trajetória de Rubião é a demonstração.
***
O autor põe um fim no livro, mas a narrativa não se conclui à maneira dos
romances. Machado reconduz Rubião doente e maltrapilho a Barbacena,
acompanhando-o do cão, repetindo a mesma situação do filósofo. Delirante, Rubião
entende a alegoria das batatas – pelo menos “o sentido vago da luta e da vitória”36.
Concretiza, assim, no destino do personagem, a filosofia do Humanitismo, remetendo o
leitor novamente ao início do texto. No último capítulo, anunciando a morte do cão,
33
QB, LV, p. 70.
34
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição, p. 45-46.
35
QB, c. XXX, p. 40.
36
QB, c. VIII, p. 21.
116
abre a obra com a dúvida sobre o título do livro, “questão prenhe de questões, que nos
levariam longe”. A questão e as questões dizem respeito à verdade da ficção e à
possibilidade de o romance figurar a realidade. Mais propriamente, confundindo o leitor
quanto ao título do livro, que nomeia personagens conceituais e não a ação narrada,
Machado lança desconfiança sobre as formas de narrar constituídas no seu tempo:
aquelas que pretendem “discernir os risos e as lágrimas dos homens”, descrever e cifrar
a condição humana, na construção épica da experiência. Machado indicia a crise da
narrativa e a crise do romance como gênero marcado pelas idéias de unidade e
completude. Quincas Borba, ao contrário, finge o romance. Lembre-se a advertência
“ao leitor” em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “a gente grave achará no livro umas
aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance
usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são a duas
colunas máximas da opinião”.
O romance de Machado já é aquele, moderno, em que os personagens não são
construídos como símbolo de uma totalidade; trata do indivíduo em sua solidão,
fragmentado, disperso. Trata da mudança estrutural da experiência, dos indivíduos que
vivem ao acaso dos acontecimentos, não mais traduzindo a aventura espiritual do
homem no mundo, mas os efeitos derrisórios da perda da unidade que o faz estranho a si
mesmo. A fragmentação do indivíduo é encenada na fragmentação da narrativa, no
emprego de procedimentos do distanciamento deceptivo. Uma das táticas de Machado é
o deslocamento do leitor, tanto o “sério” como o “frívolo”, pela dissolução das
expectativas universalizantes. Alegórico, Quincas Borba compõe as “quatro ou cinco
situações” logo nos primeiros capítulos; surpreende Rubião em devaneios de grandeza e
partido (“que abismo há entre o espírito e o coração!”); no flash back, introduz o
Humanitismo, de que o romance é a efetivação; delineia a personalidade de Rubião
como fraco, sem opinião e ressentido; contrapõe-lhe a fraqueza à dissimulação de Sofia
e ao calculismo de Palha; enfim, monta o painel histórico dos operadores da estratégia
narrativa.
Machado toma partido da alegoria em contraposição ao símbolo, pois não
constitui uma imagem totalizadora que subordinasse as particularidades ao universal,
não promove a identidade no todo, não busca o infinito no finito. Nesta alegoria, o
particular apenas significa o universal , não é o seu representante37. A sabedoria
37
TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. “O simbólico em Schelling”. Almanaque 7. São Paulo:
Brasiliense, 1978, p. 86 e ss.
117
38
Cf. BENJAMIN, Walter. “O Narrador”; “A Crise do Romance”. Obras Escolhidas, v. 1, São Paulo:
Brasiliense, 1985.
39
Cf. “Conversa com Roberto Schwarz”, loc. cit., p. 66
40
QB, c. XI, p. 25.
118
41
Cf. MURICY, Katia. A Razão Cética – Machado de Assis e as Questões de seu Tempo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 35; ARANTES, Paulo Eduardo. “O positivismo no Brasil”. Novos
Estudos CEBRAP 21. São Paulo, jul. 1988, p. 186.
42
QB, c. VI, p. 19.
119
Modernidade e nacionalismo*
Em 1913 chega a São Paulo o jovem pintor Lasar Segall, judeu-lituano de Vilna.
Introduzido na elite paulistana a que pertencia sua irmã, é convidado a expor em São
Paulo e, depois, em Campinas – cidade próxima da capital, importante centro
econômico, político e cultural. Em São Paulo, expõe em março num salão improvisado
no centro da cidade, certamente à falta de museus e galerias de arte; em Campinas, no
Centro de Ciências, Letras e Artes, em junho do mesmo ano.
Segall trazia a São Paulo quadros de suas experiências anteriores na Europa.
Iniciado, por volta de 1907, nos cânones estéticos naturalistas da Imperial Academia
Superior de Belas Artes de Berlim expõe, dois anos depois, convidado por Max
Liebermann, na Freie Sezession. Viaja e trabalha na Holanda, depois em Dresden, em
cuja Academia é aluno do impressionista Gottard Kühl, onde entra em contato com os
artistas do Die Brücke, realizando neste período quadros de um expressionismo
atenuado. Ao chegar ao Brasil pela primeira vez, Segall traz quadros impressionistas e
moderadamente expressionistas, inclusive porque tinha sido advertido do
“provincianismo” reinante na São Paulo da época. As suas exposições foram recebidas
apenas cordialmente. As repercussões reduziram-se a alguns artigos de jornal, de teor
informativo, sendo que apenas em Campinas apareceu um artigo mais consistente.
Entretanto, a exposição de São Paulo foi visitada pela quase totalidade dos artistas
ativos, como atesta o livro de assinaturas, e algumas obras foram vendidas. Assim, a
primeira exposição de arte moderna no Brasil não teve repercussão. Segall voltaria ao
Brasil definitivamente em 1923, tornando-se então um dos artistas modernistas
destacados do país, inclusive por sua contribuição para a formulação na pintura do tema
da “brasilidade modernista”.
Em 1913, Anita Malfatti, filha de um engenheiro italiano naturalizado brasileiro,
depois de um período de aprendizado na Escola de Belas Artes de Berlim, orientada por
Lowis Corynth e Bishoff Culm, volta ao Brasil. Interessada sobretudo pelo que chamou
de “festa da cor”, fruto do convívio nos museus da Alemanha e Paris com as obras de
*
Texto da conferência “Modernité et nationalisme: l’art moderne au Brésil”, no Colóquio “Ruptures: de
la discontinuité dans la vie artistique”. Service Culturel du Musée du Louvre. Publicado em: GALARD,
Jean (org.). Ruptures. De la discontinuité dans la vie artistique. Paris: École Nationale des Beux-
Arts/Musée du Louvre, 2002, p. 243-268.
120
Cézanne, Gauguin, Van Gogh e de toda a arte moderna, dedica-se, então, ao “segredo
da composição das cores”. Em São Paulo, faz uma exposição, com retratos e algumas
paisagens, em que as cores explodem, mas sem indicação significativas de deformação,
contorção e contraste de cores – o que seria plausível de se esperar, pois estivera na
Alemanha no tempo da Secessão e da Die Brücke. A exposição não mereceu atenção
especial da crítica e do público. No ano seguinte parte para N. York, tornando-se aluna
de Homer Boss, que estimula a liberdade de experiências de seus alunos, com ênfase na
pintura ao ar livre. Anita encontra aí a possibilidade de prosseguir nos
desenvolvimentos dos jogos de cores, mas agora como “festa da forma e da cor”1. Anita
Malfatti une a experiência trazida da Alemanha expressionista com o colorido brilhante
da natureza – da ventania, do sol, da chuva e da neblina – da costa leste da Nova
Inglaterra, para onde Boss levava seus alunos.
Quando Anita Malfatti volta a São Paulo em 1916 traz consigo quadros,
especialmente retratos, muito coloridos, muito fauves, com zonas assimétricas de cor e
angulações de forma, mais do que propriamente deformações. Com alternância de
verdes, vermelhos e amarelos, compõe massas bastante estruturadas, em que a
assimetria acentuava a dramaticidade dos retratos, paisagens e nus. Vejam-se, por
exemplo, os quadros “A boba”, “O homem amarelo”, “A Estudante”2. Entusiasmada
com suas conquistas artísticas, interessa-se pelo que se faz em São Paulo, especialmente
pela demanda por inovações temáticas, pelos motivos e cores brasileiras que delineiam
uma preocupação nacionalista. Participa em 1917 de um concurso sobre a figura do
“saci”, lendário ser da mata brasileira, uma espécie de identificador de nacionalidade. A
tela de Anita choca muita gente, sendo criticada por Monteiro Lobato. Ficando
conhecida de jornalistas e do pintor Di Cavalcanti, Anita é convencida, apesar de
receosa, a expor os quadros trazidos dos Estados Unidos e outros pintados recentemente
no Brasil. A exposição, de 12 de dezembro de 1917 a 10 de janeiro de 1918, provocou
mais uma crítica, agora agressiva, de Monteiro Lobato que, embora destacando o
“talento vigoroso” da artista, julga-o desnaturado por força da “sedução da arte
moderna”. O seu artigo Paranóia ou mistificação? arrasou a artista. Embora defendida
por Oswald e Mário de Andrade, a pintora, chocada, recolhe-se e guarda os quadros.
Continua a pintar, mas nunca mais retorna àquela ousadia, preferindo ficar no “debate
1
BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte
Moderna. 5. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p.40 e ss.
2
Catálogo Anita Malfatti, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo / Instituto de
Estudos Brasileiros da USP, 1977, p.9 e ss.
121
consigo mesma”3. Esta foi a primeira manifestação explícita de arte moderna no Brasil,
prenúncio da ruptura modernista que eclodiria em 1922 com uma Semana de Arte
Moderna.
No início de 1920 os jovens modernistas, já então denominados genericamente
“futuristas”, descobrem o escultor Victor Brecheret que, depois de um período de
estudos na Escola de Belas Artes de Roma, de 1916 a 1919, trabalhava incógnito em
São Paulo. Os modernistas deslumbram-se com as enormes e estranhas esculturas de
Brecheret, que lhes pareciam modernas como nada que se conhecia até então no Brasil.
Brecheret formaria então com Anita Malfatti a dupla inicial do modernismo brasileiro.
Ele é erigido em escultor moderno, tanto pelos temas (considerados nacionais), como
pelas características plásticas, embora estas traduzissem inicialmente uma estilização
naturalista, decorativa ou simbolista. Para os modernistas, que fazem a fama do arredio
escultor, a descoberta é decisiva, reativando o estado de espírito provocado pela
exposição de Anita Malfatti e instigando os desejos de ruptura com a arte do passado.
Mesmo o escritor e crítico Monteiro Lobato, que havia destratado Anita Malfatti,
derrama-se em elogios a Brecheret – certamente porque via nele um elo com seu gosto
estético naturalista. Para os modernistas, Brecheret era o Rodin brasileiro4.
Os fatos elencados até agora querem sugerir que a Semana de 22 não foi um
acontecimento abrupto. É, sem dúvida, o marco divisor que inaugura a modernidade
artística no Brasil – e, como tal, uma ruptura com a arte do passado. Foi um
acontecimento ruidoso, com as características das ações vanguardistas, que
escandalizaram o meio intelectual, artístico e social de São Paulo, repercutindo em
outras capitais e mesmo em cidades de província. Eram, entretanto, resultado de um
processo que vinha se desenvolvendo lentamente, tendo como horizonte a crítica da arte
do passado e uma vaga imagem de modernidade, atrelada à questão de criação de uma
arte nacional. De qualquer maneira, a semana de 11 a 18 de fevereiro de 1922, ano em
que se comemorava o centenário da independência do país, virou emblema do
modernismo brasileiro. Entretanto, é somente depois de 22 que a arte moderna se
realizaria no Brasil, com a obra de Tarsila do Amaral, Rego Monteiro, Cícero Dias, Di
Cavalcanti e outros, na conjunção de forma moderna e significação nacional.
O que se quer sugerir, enfim, é que “a questão moderna é um dado fundamental
na produção cultural dos primeiros anos do nosso século e não uma súbita descoberta do
3
Id. ib.
4
BRITO, Mário da Silva. Op cit., p.109.
122
grupo de São Paulo por volta da década de 1920”5. Trata-se de “avaliar o grau de
inovação que a sociedade estava em condições de absorver (...). A arte brasileira não é
moderna no sentido europeu, por não ter criado uma nova noção de espaço e por não ter
abdicado do referente, mas é considerada localmente moderna pela erosão que vai
promovendo da disciplina acadêmica e pelo grau de deformação que vai incorporando
ao seu léxico”6. Pode-se falar, certamente, de uma “vontade de ruptura” e, por volta dos
anos 20, do aparecimento de um imperativo moderno que iria mobilizar até
recentemente a atividade artística e os projetos culturais no Brasil. Os índices de
modernidade estavam mais nos conteúdos (brasileiros) que na forma, sem que na
pintura e na escultura de Anita Malfatti e de Brecheret fossem propostas verdadeiras
rupturas de códigos e de convenções7. Apesar desta timidez, os jovens futuristas
realmente produziram a inovação da atividade artística no Brasil; foram os propositores
do espírito novo nas artes e defensores de uma cultura nacional – o que permitiu a
Mário de Andrade bradar na abertura do momento modernista de 22: “somos os
primitivos de uma nova era”.
Em 1942, em conferência comemorativa dos 20 anos da Semana de Arte
Moderna, Mário de Andrade caracterizou o modernismo brasileiro como um trabalho de
“reverificação da inteligência nacional”, resultante da “fusão de três princípios
fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência
artística brasileira, e a estabilização de uma consciência criadora nacional (...). A
novidade fundamental, imposta pelo movimento, foi a conjugação dessas três normas
num todo orgânico da consciência coletiva”8. Como se vê, esta atitude implicava, de um
lado, a abertura experimental, com a ruptura dos códigos de representação e de
sensibilidade vigentes; de outro, a reinterpretação criativa e crítica do passado, a
articulação de inovação e tradição. A consciência coletiva de que fala Mário de Andrade
valoriza o sentido de projeto que anima os modernistas, não apenas o aspecto coletivo
das atividades de vanguarda. E este projeto vinculava ética, estética e política,
modernidade e nacionalismo – vinculação que acompanharia os desdobramentos do
modernismo nas décadas seguintes, até os anos 60, com ênfase diferenciada em cada
5
FABRIS, Annateresa. “Modernidade e vanguarda: o caso brasileiro”. In: Modernidade e Modernismo no
Brasil. Campinas: Mercado de Letras, 1994, p.18.
6
FABRIS, A. “Modernismo: nacionalismo e engajamento”. In: Catálogo Bienal Brasil Século XX, 1984,
p.82.
7
Id. ib., p.73.
8
ANDRADE, Mario de. “O movimento modernista”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo:
Martins, s/d, p.242.
123
9
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. “Prefácio”. Mário Pedrosa – Acadêmicos e Modernos – Textos
Escolhidos III. São Paulo: EDUSP, 1998, p.15.
10
ANDRADE, Oswald de. “Manifesto da poesia pau-brasil”. In Obras Completas – 6. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1972, p.5 e ss.
124
11
BRITO, Ronaldo. “A Semana de 22: o trauma do moderno”. In: Sete Ensaios sobre o modernismo. Rio
de Janeiro: FUNARTE, 1983. Caderno de Textos nº 3, p.17.
125
moderna brasileira”. Aquilo que pareceria uma limitação, dela e de Anita Malfatti – o
primado do tema – era, na verdade um modo de “projetar o Brasil”12.
Assim, o moderno é um problema, pelo menos nos desenvolvimentos que vão
das presenças inaugurais de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Lasar Segall até a
fixação da pintura de Cândido Portinari e Di Cavalcanti como emblemas de
modernidade artística brasileira nos anos 30-40, época do segundo modernismo13.
Enquanto Tarsila “submete a recém conquistada espacialidade cubista ao teste de
realidade da cultura local” para “armar o ponto de vista brasileiro”, pela “intrusão
cândida e insolente do elemento afetivo e intimista da paisagem brasileira na dinâmica
impessoal da superfície cubista”, em Portinari e Di Cavalcanti o que se vê é a
“continuidade e adaptação” de elementos fragmentários da pintura moderna,
assimilados no ambiente parisiense dos anos 2014. Na pintura de Tarsila o nacional “era
uma questão interna do trabalho, movendo-se nele como um processo reflexivo, de
auto-comprensão de uma cultura que queria se atualizar no estrangeiro, mas segundo
critérios próprios, e a partir de uma consciência cultural própria”15. O cubismo
aprendido com Gleizes, Lhote e Léger serve-lhe para lançar um novo olhar sobre o
Brasil. Percebe-se em seus quadros “a presença de elementos brasileiros – luz direta,
cores rudes, linhas duras, volumes pesados, uma pintura verdadeiramente nossa”16.
Entre 22 e 28 o modernismo produziu uma descontinuidade na produção, na
crítica e no ambiente cultural, culminando com a antropofagia de Oswald de Andrade, a
pintura de Tarsila e o romance-rapsódia de Mário de Andrade, Macunaíma, em que
notam-se tentativas radicais de ajustar a experiência brasileira da vida com a tradição
herdada. Encontra-se afirmada nessas produções uma idéia de ruptura artístico-cultural
que não estava clara nos inícios do modernismo, a não ser como aspiração de liberdade
de criação e de atualização estética amalgamados ao desejo de ter, de inventar, uma
cultura e uma arte nacionais.
Oswald de Andrade, nos manifestos Pau-Brasil (1924) e Antropófago (1928),
enfatiza uma espécie de “força primitiva de resistência à doutrinação promovida pelo
colonizador”. Assim, o “primitivismo da forma pura” é um princípio de sua poesia, de
seus romances-invenção e da pintura de Tarsila que deriva da assimilação produtiva da
12
Id. ib., p.14 e 16.
13
SALZSTEIN, Sônia. “O moderno como problema”. Jornal de Resenhas 29. Discurso
Editorial/USP/Unesp/Folha de S.Paulo, 9/8/97, p.8.
14
Idem. “Uma tensa celebração da brasilidade”. Folha de S.Paulo, 7/9/97, Suplemento MAIS!, p.8.
15
Idem. “O moderno como problema”, loc.cit.
16
Apud. FABRIS, A. “Modernismo: nacionalismo e engajamento”. loc. cit., p.76.
126
diferença – “só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. O
primitivismo é um princípio ativo da vida intelectual brasileira17. Primitivo não é, pois,
algo como uma utopia rousseauista, uma entidade primitiva, uma origem. Oswald de
Andrade fala de um traço cultural, e não de um traço étnico. Essa capacidade de
resistência “é identificada apenas pelo modo como opera; pelo canibalismo simbólico”.
Neste, o ajustamento cultural implica o conflito, pois a inclusão do “estrangeiro” pelo
“primitivo” não elimina nem um nem outro; antes, o “valor prévio permanece e
continua a circular em um novo corpo”18. Neste sentido, a antropofagia oswaldiana
funcionou como ruptura no processo brasileiro de internalização dos valores ocidentais;
de atualização artística e elaboração cultural. O conflito entre vanguarda européia e
modernismo brasileiro não se resolve pela redução de um ao outro, nem por uma
pseudo-dialética: tratava-se de sustentar as tensões entre a capacidade local de
canibalizar as informações da cultura européia sem sublimação dos antagonismos – ou
seja, das descontinuidades entre os valores da sociedade brasileira e os valores
ocidentais. A antropofagia explora o mal-estar na cultura, evidenciando aquilo que isto
implica de conflito, tensão, luta. A “transformação permanente do tabu em totem”,
conforme se lê no Manifesto Antropófago, deve ser entendida como transformação do
interdito em ritual de incorporação, “metamorfose do símbolo de excludente em
includente”19.
A questão da dívida da antropofagia de Oswald de Andrade para com o
canibalismo europeu é controversa. É certo que o brasileiro conheceu de perto as
discussões em torno do canibalismo que se manifestavam em torno da revista Au Sans
Pareil, que editara seu livro de poesias, Pau-Brasil, graças à interferência de Blaise
Cendrars, Léger, Gleises, Valéry-Larbaud, Picasso, Cocteau que, em 1923,
frequentavam o ateliê de Tarsila do Amaral, então mulher de Oswald. O Manifesto,
assim como a sua produção poética ficcional, está visivelmente impregnado de
reminiscências cubistas, dadaístas e futuristas. Mas, certamente, o exotismo etnográfico
dos canibalistas europeus não afetou a teoria oswaldiana. Oswald devorou-o. Tratando
desse problema, Antonio Candido disse que as experiências modernistas eram
“congeniais” àquelas da vanguarda francesa, reafirmando o que Oswald de Andrade
17
NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.28.
18
COSTA LIMA, Luiz. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p.27 e ss.
19
NUNES, Benedito. “Antropofagia ao alcance de todos”. In: Obras Completas de O. de Andrade – 6, p.
XXX-XXXI.
127
20
ANDRADE, Oswald de. “O caminho percorrido”. In: Obras Completas – 5. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1972, p.96.
21
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 3.ed., São Paulo: Editora Nacional, 1973, p.121.
128
22
FABRIS, A, “Modernismo: nacionalismo e engajamento”, loc. cit., p.80.
129
redistribuição estética provocada em toda parte pela pop art, como é tentativa de
encontrar soluções formais e expressivas para as exigências do processo de
transformação da realidade brasileira. A crise das vanguardas construtivas, que antecede
o golpe militar de 1964, ocorreu tanto pelo acirramento das posições estéticas dos
grupos divergentes, como pela pressão do momento histórico, que estava propondo aos
artistas a necessidade de repensar e repropor as conexões entre modernidade e
nacionalismo. Atividades diversas disseminam as várias tendências em ebulição:
happening, novas figurações, realismo mágico, arte popular, arte popular
revolucionária, novo realismo, além do prosseguimento de experiências concretas-
neoconcretas. Inaugurava-se um período de férteis e variadas experimenteções e, ao
mesmo tempo, de intenções nitidamente sociais. Isto, evidentemente, no campo
delimitado pela vanguarda brasileira, já que fora dele artistas singulares, como Volpi,
Flexor, Iberê Camargo, Yolanda Mohaly, Mira Schendel, Flávio Shiró e outros, embora
denotando as marcas das experiências modernas das últimas décadas, desenvolviam
seus trabalhos em direções que não se referiam aos projetos estéticos e culturais da
vanguarda.
É nesse período, posterior ao golpe militar de 1964, especialmente nos anos de
1967-68 – até, portanto, a promulgação do Ato Institucional nº 5, que limita a livre
manifestação crítica e criativa no país –, que se especificam as experimentações de
artistas singulares como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Rubens Gerchman, Antonio Dias,
Carlos Vergara, Wesley Duke Lee e Roberto Magalhães, que definem poéticas
singulares conectadas com os rumos da arte contemporânea e, em alguns casos, com as
linguagens das comunicações de massa e a crítica social. Foi um tempo de explosão
criativa, de rupturas artísticas e proposições radicais de articulação entre arte e política,
cuja melhor expressão foi configurada pelo tropicalismo – na música popular, no teatro
e nas artes plásticas. Nesta proposta fundiram-se os desenvolvimentos construtivos, a
antropofagia oswaldiana dos anos 20, reatualizada, neo-figurações, arte concreta e
neoconcreta, proposições ambientais, antiarte, etc. Movida pelo impulso de renovação
estética e por um sentido ético-político, a experimentação tropicalista mobilizou a
participação como condição necessária para dissolver as categorias da arte, mesmo as
modernas. Simultaneamente, deslocou as relações consagradas entre arte e política, por
meio de procedimentos que em, vez de de remeter a produção às tradicionais relações
entre arte e realidade, situou-a no horizonte de uma atividade imaginativa que
evidenciava as ambigüidades do processo artístico de vanguarda, pondo em questão
132
23
FAVARETTO, C.F.. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1992, p.34 e ss.
133
A estética do desvario*
*
Texto inédito, reelaborado, de uma comunicação na mesa redonda com o mesmo título, integrante do
seminário “Paulicéia Desvairada: 110 anos de Mário de Andrade”. São Paulo, Programa de Estudos Pós-
Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, 07/10/2003.
1
“O movimento modernista”. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, s.d. (Obras
Completas de Mário de Andrade, X)
134
Oswald de Andrade, em 1933 no prefácio do seu romance Serafim Ponte Grande, que
interpretando a sua virada do esteticismo à politização, interpretava a plataforma da
geração modernista. Burgueses brincando de modernidade, esteticistas boêmios que
ignoravam o surgimento das massas proletárias e de uma cultura proletária. O contrário
do burguês não era o proletário, era o boêmio, disse com sarcasmo Oswald de Andrade.
E Mário de Andrade, embora com outras palavras e num outro tom, sério e lamentativo,
não deixaria de apontar na conferência de 1942 o que considerou a falha dos
modernistas: a despolitização.
A expressão “estética do desvario” pode enganar porque a poética de Mário de
Andrade, que surge no texto-manifesto “Prefácio interessantíssimo” de Paulicéia
desvairada (1921), que aliás refere-se a uma produção poética que só alusivamente
pode ser considerada “desvairada”, é na verdade uma poética “séria”, como tudo que
procede do autor. Sério aqui quer dizer “construtivo”, entendendo-se com isso não
apenas a vontade e o esforço de mudar, mas o modo atualizado, vanguardista, inventivo
que se constata na produção que se estende de 22 a 28 – período em que os modernistas
viveram, segundo Mário de Andrade, “na maior orgia intelectual que a história artística
do país registra”2. Construtivo, também como resposta ao imperativo de inventar o
Brasil, emblematizado nas imagens de brasilidade, poéticas, plásticas, musicais, assim
como fixado pela pesquisa desencadeada pelos modernistas de nossas características
culturais, com que Mário de Andrade, especialmente, construtor por vocação e por auto-
imposição, se torna “professor de Brasil”. Além disso, é preciso ressaltar que no
“Prefácio interessantíssimo” apresenta claramente a proposição do característico
“construtivismo primitivista” – modalidade de elaboração artística e intelectual que vai
alia os processos, procedimentos e linguagens das vanguardas européias, de que se
embebiam os modernistas, aos gerados na experiência cultural brasileira, constituindo
uma espécie de princípio ativo da inteligência nacional. “Somos os primitivos duma
nova era”, bradou Mário de Andrade, como que em parte justificando a qualificação de
“futuristas”, meio correta meio sarcástica, com que a imprensa da época identificava os
irrequietos modernistas, mas ao mesmo tempo assumindo a posição de quem se sente
investido da missão de começar de novo alguma coisa.
Quando Oswald de Andrade, premonitoriamente, saudou Mário de Andrade
como “o meu poeta futurista”, não laborava em erro; ao contrário acertava em cheio.
2
Cf. “O movimento modernista”, p. 238.
135
Pois o futurismo daqui, se rebatido nos manifestos dos italianos, de que eles se
apropriaram para liberar a linguagem poética dos resíduos parnasianos e simbolistas,
permitia essa identificação de rótulos, validada pela aderência ao novo dos processos
modernos: a ênfase na forma construtivista, na atualidade científica e industrial; a crítica
do passadismo e, sobretudo, a pesquisa da figuração adequada à expressão das
manifestações de um homem novo, da era da máquina, surgido da razão e das
revoluções modernas.
Não sou futurista de Marinetti bradava contudo Mário de Andrade no seu
manifesto. Claro, ele e os modernistas todos nada tinham a ver com aquele futurismo
esteticista que via beleza na guerra, nos estrondos e clarões das bombas, nem com o que
confundia antipassadismo com ódio à tradição, postulando a derrubada dos museus e a
queima das bibliotecas como condição para a existência da novidade moderna e muito
menos com aquele que faz o elogio entusiasmado do selvagem, primitivo,
transformados em motivos exóticos, supostamente portador da força, da virilidade, da
vitalidade perdida na cultura européia. Tal era, como se sabe, uma rubrica cultural
gravada pelos futuristas italianos e pelo grupo canibalista canibalistas que circulavam
em Paris em torno da livraria Au Sens Pareil, onde, aliás, Oswald. de Andrade pescou,
no mare nostrum das novidades do esprit nouveau a sua metáfora antropofágica,
contudo em chave original3. O primitivismo de Mário de Andrade, o seu futurismo,
vinha da apropriação das experimentações futuristas sem os resquícios fascistas e as
ilusões redentoras de seus discursos. “Éramos uns puros.Mesmo cercados de repulsa
quotidiana, a saúde mental de quase todos nós nos impedia qualquer cultivo da dor.
Nisso talvez as teorias futuristas tivessem uma influência única e benéfica sobre nós.
Ninguém pensava em sacrifício, ninguém bancava o incompreendido, nenhum se
imaginava precursor nem mártir: éramos uma arrancada de heróis convencidos. E muito
saudáveis”4, disse Mário. Daí também a divisa de Oswald de Andrade no Manifesto
pau-brasil, comum a todos os modernistas: ver com olhos livres.
Na conferência, “O movimento modernista”, Mário de Andrade refere-se ao
período heróico do modernista da seguinte maneira: “durante essa meia-dúzia de anos
fomos realmente puros e livres, desinteressados, vivendo numa união iluminada e
sentimental das mais sublimes”. Sabemos, pelo que diz na mesma conferência, que mais
tarde lamentaria esse desinteresse. Diz: “nós, os participantes do período milhormente
3
Cf. NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 13 (Elos, 26).
4
Id. ib., p. 238.
136
chamado ‘modernista’, fomos, com algumas exceções nada convincentes (...) si tudo
mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude interessada diante
da vida contemporânea”(...).Apesar de nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da
nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não
participamos: o amilhoramento político-social do homem”5.
Freqüentando as proposições do Prefácio interessantíssimo e rebatendo-as na
poesia emocionada de Paulicéia Desvairada (“São Paulo! Comoção de minha vida. /
Minha Londres das neblinas finas”), vemos como o tom comovido e a expressão
arlequinal nem sempre correspondem à seriedade teórica tingida de galhofa. A teoria
poética aí entranhada, e confirmada em seguida no ensaio “A escrava que não é
Isaura”6, mostra que a estética do desvario é tudo, menos desvairada, se por desvario se
entender desatino, delírio e alucinação. É, ao contrário, uma estética das concordâncias,
entre a tradição e a modernidade, encarnando muito bem a idéia baudelairiana de
modernidade, que tentando entender a beleza e o heroísmo da vida moderna, diz que a
modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra
metade o eterno e o imutável. O desvairismo de Mário, e dos modernistas, provém da
adesão apaixonada do heroísmo da vida moderna. A crença de que a grande tradição se
perdeu, que a inteligentzia bordejante do academicismo burguês devia ser destruída. Os
poetas parnasianos só davam tiros entre rimas disse Oswald de Andrade. O heroísmo
modernista, carnavalizante, arlequinal, alegre, sadio, risonho, debochado, cheio de
humor, encena o lado épico da vida, como só se veria no Brasil anos depois, nos idos de
60.
Então, futurismo quer dizer: heroísmo, arrebatamento, alegria da destruição.
Como Mário disse na conferência de 42: “Todo esse tempo destruidor do movimento
modernista foi para nós tempo de festa, de cultivo imoderado do prazer” e expressão de
“um sentimento de arrebentação”. Esta “convulsão profundíssima”, como disse,
caracterizou-se pela fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à
pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; a estabilização de
uma consciência criadora nacional.7
A estética de Mário de Andrade configura-se, em suas linhas principais, já no
início dos anos 20, em três lugares: na série de artigos sobre “Mestres do passado”, no
5
Id. Ib. p. 252, 255.
6
In: Obra Imatura. São Paulo: Martins, s/d (Obras Completas de Mário de Andrade, I)
7
Op. cit. p. 241, 242.
137
8
Seguimos aqui algumas idéias do livro: MORAES, Eduardo Jardim de. Limites do Moderno – o
pensamento estético de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. cf. p. 29, 32-33, 44-45,
53.
9
Op. cit., p.69 e ss.
138
10
Cf. CANDIDO, Antonio. “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”. In: Literatura e Sociedade. 3. ed., São
Paulo: Nacional, 1973, p. 119-123.
139
Do início dos anos 50 até o final dos 60, as artes plásticas, resguardadas as
especificidades e devidas mediações, responderam aos desafios e imperativos da
modernização, manifestadas em todos os campos, nas artes e na cultura, na política, na
economia e na sociedade. Mário Pedrosa, com muita propriedade, na ocasião
caracterizou o Brasil como país condenado ao moderno. As repercussões das atividades
artísticas evidentemente não foram as mesmas, embora semelhantes, dada a
singularidade de linguagem, expressão, público e mercado em cada área. Todas,
entretanto, responderam ao seu modo e a seu tempo às exigências de renovação artística
e crítica cultural.
Para se evidenciar a situação delas no contexto das transformações em
desenvolvimento no período recortado, principalmente para se reconstruir os modos
singulares de produzirem a significação social em que se empenharam, é necessário
surpreender como adequaram, ou conciliaram, a significação básica de modernidade aos
processos de modernização; isto é, verificar-se como os elementos “externos”(o social,
1
o político, o desenvolvimentismo) tornaram-se ou não “internos” (estrutura, forma) .
Embora se trate aqui apenas de um recorte, pois o impulso e o trabalho de modernização
vinha de longe, da época do modernismo, é preciso acentuar-se que o período é
privilegiado para o entendimento da integração do moderno no Brasil, pois não só a
situação nacional e internacional da arte aí sofreram inflexões contundentes, como o
contexto social e político do pós-guerra propiciou as condições históricas que tornaram
possível a realização da modernidade no país.
Entre as primeiras iniciativas desta modernização, final dos anos 40 e início dos
50, e a radicalização dos 60, houve mudanças significativas na posição das artes,
implicando a sua concepção, a imagem de artista, o circuito, o público e sua
significação social. Se inicialmente, por exemplo nas artes plásticas e na poesia, os
interesses se fixaram nos aspectos formais, isto não excluía a visada politizadora, ainda
que esta estivesse apenas indiciada em discursos universalizantes. Já, no ponto de
*
Texto inédito. Apresentado em Seminário do projeto “História social da arte no Brasil, século XX”,
coordenado por Sérgio Miceli. São Paulo, IDESP, 1993. O texto recontextualiza aspectos do livro A
invenção de Hélio Oiticica tendo em vista a discussão proposta no seminário.
1
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 3. ed. rev., São Paulo: Nacional, 1973, p. 4-5.
140
***
2
“PEDROSA, Mário. Mundo, Homem, Arte em Crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 254.
3
COCCHIARALE, F. & GEIGER, A. B. Abstracionismo: Geométrico e Informal. A vanguarda
brasileira nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: FUNARTE/INAP, 1987, p. 11-12.
141
4
Cf. GALLERANI, Maria A. C. Concretismo e Neoconcretismo nas Artes Plásticas. Dissertação de
Mestrado – Filosofia. PUC-SP, 1991, p. 19.
142
5
PEDROSA, Mário. Op. cit., p.254.
6
Manifesto Ruptura. In: AMARAL, Aracy A. (Org.). Projeto Construtivo na Arte: 1950-1962. Rio de
Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977, no. 69
7
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro. Rio de Janeiro:
FUNARTE/ INAP, 1985, p. 36-37
8
Cf. FERREIRA GUILAR, “Arte Concreta”. In: AMARAL, Aracy, op. cit., p. 106.
144
13
Cf. FERREIRA GULLAR. Etapas da Arte Contemporânea. São Paulo: Nobel, 1985., p. 38-39 e
OITICICA, Hélio. “Cor, Tempo, Estrutura”. In: Aspiro ao Grande Labirinto. Org. Luciano Figueiredo,
Lygia Pape, Waly Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, pp. 44 e ss.
146
14
de entusiasmo pelo novo e pelo progresso . Tratava-se de superar o
subdesenvolvimento. A renovação da pintura, se não pensava diretamente, ou melhor,
instrumentalmente, a inserção social, de alguma forma – isto é, pretendendo pela
renovação formal assumir a complexidade da realidade moderna – respondeu às
exigências de se deslocar a função social da arte. Ambos os projetos situaram-se com
radicalidade na questão.
Os concretistas paulistas aliaram o empenho em afirmar a mais pura e radical
concepção da modernidade artística e a consideração da arte na sociedade industrial. Os
princípios, que a forma segue a função e que ela não é expressão mas produto,
implicavam a integração ao sistema produtivo, restando entretanto determinar o modo
dessa inserção. Com isso, a significação, humana e social, do trabalho de arte tinha
muito daquela positividade moderno-construtivista baseada na crença no progresso
contínuo da razão e da história. Entretanto, internamente, o grupo concreto abrigou
posições divergentes quanto à articulação entre a “visão industrial” e a tomada de
posição ideológica, marxista, que comporia a “objetividade” da arte concreta. Entre uma
posição alinhada ao PC, de um realismo socialista como o de Vilanova Artigas, e a
gramsciana de Waldemar Cordeiro e Décio Pignatari, desenvolvia-se a tentativa de
15
politizar a arte . Pensando a dimensão contemporânea da arte pela positivação da
ciência, da técnica e da industrialização; sintonizando-se com os centros internacionais
produtores de arte; afirmando os princípios característicos das ideologias construtivas –
racionalização, ordem, utilidade social -, conectados às aspirações de reforma e
modernização do desenvolvimentismo, os concretos investiam uma vontade de saber
que punha em xeque a teoria e prática da arte institucionalizada. Seu procedimento era
estratégico: atacando o idealismo que envolvia a arte, principalmente o mito da criação
original, deslocando a sua função social, pretendiam transformá-la em instrumento
social mais eficaz. Além desse mérito, cabe ressaltar nos concretistas a compreensão
que tiveram do mercado; como instância incontornável da realidade da arte na sociedade
e como modo concreto de politizá-la, enquanto expõe a posição dos produtos e do
16
artista na sociedade . A aposta concretista só desatará suas aporias internas no início
dos anos 60, quando premidos pelas pressões do surto populista, projetam o “salto
semântico-conteudístico-participante”.
14
Cf. LAFER, Celso. “Os Anos JK: seu impacto e significado”. In: Saudades do Brasil: A Era JK
(catálogo). CPDOC-FGV, 21/4–10/5/92, p. 11 e ss.
15
PIGNATARI, Décio. Entrevista in COCCHIARALE, F. & GEIGER, A.B., op. cit. p. 72-3.
16
cf. BRITO, R., op. cit., p.54-60.
147
***
20
Cf. GALLERANI, M.A.C.. Op. cit., p. 91.
149
de Pierre Restany, Antonio Dias faz a exposição “Da torre de marfim à Torre de Babel”;
e no mesmo ano, Waldemar Cordeiro apresenta os Pop-cretos na Galeria Atrium em
São Paulo. São manifestações isoladas, sem a força dos grupos e projetos construtivos,
que, ora voltados para a retomada da figuração, ou para a busca de um “novo realismo”,
propondo “concreções semânticas”, encaminham-se para a inclusão do social,
delineando, através de sátiras, a linha de crítica social. Enquanto o neoconcretismo se
dissolvia, com a adesão de Ferreira Gullar ao CPC, os concretos tentam o “salto
participante” que, contrariamente à “arte popular revolucionária” das propostas dos
CPCs, articula uma vanguarda também engajada, como “nacionalismo crítico”.
A contribuição dos artistas para com a transformação da realidade torna-se um
imperativo geral, pois como declarou Ferreira Gullar, naquele tempo “a realidade
21
rompia as formas, pondo à mostra o caráter político, interessado, dos valores sociais” .
Enquanto no plano internacional os impasses das vanguardas (da abstração construtiva e
informal) iam se resolvendo através das variantes do Pop americano, no Brasil, apesar
da penetração do Pop, sentia-se a necessidade de desenvolver “um trabalho de crítica
sobre as idéias estéticas em vigor, seguido de debate e de pesquisa em torno das
22
possibilidades efetivas de uma arte ligada à nossa cultura e às nossa necessidade” .
Buscava-se uma arte de intenções nitidamente sociais.
As contradições ideológicas daquele momento histórico refletem-se nas artes, na
tentativa de articularem o inconformismo estético ao inconformismo social por uma arte
participante, engajada. A linha da arte popular revolucionária, do CPC da UNE, do
MCP do Recife, com suas expressões militantes no teatro, na canção, no cinema e na
poesia, desenvolve um programa “nacionalista” adequado às propostas populistas. Ele
encontra a sua forma objetiva numa arte diretamente voltada para os problemas
nacionais imediatos, usando uma linguagem julgada acessível ao povo. Denúncia e
exortação eram as técnicas empregadas, na ilusão de que a “conscientização” do povo (
da dominação imperialista e da burguesia nacional como causas da miséria, do
analfabetismo, etc.), através das atividades artísticas e culturais, era a condição para a
transformação da sociedade. Esta crença, e este desejo, no poder da ação eram tanto
onipotentes quanto generosos. Tratava-se de falar do país através de gêneros e
linguagens “autenticamente nacionais”, sem estabelecer distância entre a intenção social
21
Visão, 11/03/74. “Da ilusão do poder a uma nova esperança”. p. 139
22
FERREIRA GULLAR. “Porque parou a arte brasileira”. Revista Civilização Brasileira, ano I no. 1,
março 1965, p. 222-28.
150
23
CORDEIRO, W. “Novas Tendências e Nova Figuração”. Habitat, no. 77, 1964. In: PECCININI, Daisy
(coord.). Objeto na arte: Brasil, anos 60. São Paulo: FAAP, 1978, p. 53.
151
***
24
OITICICA, Hélio. “Instâncias do Problema do Objeto”. GAM. nº 15, Rio de Janeiro, 1968, Rep. em
PECCINICI, D., op. cit. p. 97-98.
152
25
finalmente, à violentação . A produção artística responde então ao que se apresentava
como necessidade: articular a atividade cultural em termos de inconformismo e
desmistificação; vincular a experimentação às possibilidades de uma arte participante;
reagir à repressão do regime. Experimentação e participação agenciam uma outra ordem
do simbólico, a do comportamento, visando a instaurar uma imagem de arte como
atividade em que não mais se distinguem os modos de efetivar programas estéticos e
exigências ético-políticas.
O período que vai de dezembro de 64 (quando é lançado o show Opinião)até
dezembro de 68 (edição do AI-5), é de intensa mobilização e de transformações nas
artes. Heterogênea, sem constituir-se propriamente num movimento com unidade de
pensamento, a atividade artística definiu, entretanto, uma “posição específica” da
vanguarda brasileira, considerada por Hélio Oiticica como “um fenômeno novo no
26
panorama internacional” . A especificidade e o novo referem-se ao modo como a
redistribuição estética produzida pela Pop-Art foi aqui transfigurada pela politização nas
artes, pois além de veicularem toda sorte de inovações, as manifestações artísticas
articularam a crítica da arte, do artista e do sistema aos imperativos sócio-políticos.
Disto surgiram inúmeras propostas, às vezes divergentes no modo da articulação, mas
que, segundo Sérgio Ferro, definiram uma “unidade de ação”.
No catálogo do seminário Propostas 65 (exposição e debates sobre “o realismo
atual no Brasil”, FAAP- São Paulo, dez. 65), Sérgio Ferro diz que “a pintura nova, no
Brasil, é fundamentalmente, o restabelecimento de relações mais próximas com a
realidade”, devido, provavelmente, “à historização do processo brasileiro, ao
aguçamento de seus desencontros, à conscientização política, à radicalização das
posições”. Em decorrência, “os problemas que a pintura nova examina são os do
subdesenvolvimento, imperialismo, o choque direita-esquerda, o (bom) comportamento
burguês, seus padrões, a alienação, a 'má-fé', a hipocrisia social, a angústia generalizada,
etc”. e as respostas artísticas “oscilam entre a desesperança niilista, as utopias e o
engajamento crítico”. Para isso, “a nova pintura arma-se com todos os instrumentos
disponíveis. Recorre, para responder às suas necessidades, a quaisquer veículos úteis: ao
academismo, a maneirismos de mil espécies, a artifícios mais ou menos elaborados;
importa, empresta, rouba e cria seu vocabulário com a liberdade indispensável para o
25
“As marcas da inocência perdida”. Visão, 1/3/68. p. 46
26
OITICICA, Hélio. “Situação da Vanguarda no Brasil”. Seminário Propostas 66, reprod. em Arte em
Revista, Ano I, no. 2, p. 31 e em Aspiro ao Grande Labirinto, p. 110.
153
27
FERRO, Sérgio. “Vale Tudo”. Propostas 65. In: Artes, Ano I, no. 3, jan./66 e reprod. em Arte em
Revista, no. 2, p. 26.
28
ARANTES, Otília B.F. – “Depois das Vanguardas”. Arte em Revista, Ano V, no. 7, ago, 1973, p. 26.
Também Novos Estudos, CEBRAP, n. 15, 1986, “De Opinião 65 à XVIII Bienal”, p. 69.
29
OITICICA, Hélio; “Esquema Geral da Nova Objetividade”. Catálogo da exp. Nova Objetividade
Brasileira, MAM-RJ, abr. 1967. Reprod. em Aspiro ao Grande Labirinto, p. 98.
154
que dá a marca dessas atividades heterogêneas; tanto o coletivo que significa o trabalho
de grupos de artistas (agrupados em tendências ou pela “unidade de ação”), como o
coletivo que significa o que é visado socialmente.
As atividades desenvolvidas desde 1965, assim como a indicação das
contribuições internacionais, que chegavam, por exemplo através das Bienais, permitem
o entendimento desse formidável período que liberou os signos da criatividade coletiva.
Vejam-se algumas das principais:
1965: mostra Opinião 65 (12 de agosto/12 de setembro), idealizada por Jean
Boghici da Galeria Relevo e pela crítica de arte Ceres Franco, reunindo artistas da
Escola de Paris (Nova Figuração e Figuração Narrativa) e brasileiros, que procuravam
explorar uma tendência internacional de volta à figuração, como reação, ainda que
diferenciada ao informalismo e ao concretismo/neoconcretismo. Dela participaram:
Antônio Dias, Pedro Escosteguy, José Roberto Aguilar, Waldemar Cordeiro, Ângelo de
Aquino, Roberto Magalhães, Carlos Vergara, Hélio Oiticica (apresentando o Parangolé
e a sua teoria “Bases fundamentais para a definição do Parangolé”), Rubens Gerchman,
Adriano D'Aquino, Flávio Império, Ivan Serpa, Ivan Freitas, Gastão Manoel Henrique,
Tomoshige Kusuno, Vilma Pasqualini e Wesley Duke Lee. Neste mesmo ano, em
setembro, Antônio Dias e Roberto Magalhães são premiados na IV Bienal de Paris e no
mesmo mês, Nelson Leirner e Geraldo de Barros fazem exposição de quadros, objetos e
colagens na Galeria Atrium em São Paulo. Em dezembro, Propostas 65, exposição
organizada por Waldemar Cordeiro, com debates centrados no tema “Aspectos do
Realismo no Brasil”, reuni trabalhos de Opinião 65, artistas abstratos, primitivos e
concretistas: Antônio Dias, Gerchamn, Sérgio Ferro, Geraldo de Barros, Maurício
Nogueira Lima, Nelson Leirner, Ubirajara Ribeiro, Tomoshige Kusuno, Wesley Duke
Kee, dentre outros.
1966: Em março, exposição de Pintura de Vanguarda no MAM-RJ; em abril,
inauguração da Galeria G-4 no Rio, com a exposição “PARE” , de Antônio Dias, Pedro
Escosteguy, Rubens Gerchman, Roberto Magalhães e Carlos Vergara, com grande
repercussão e afluxo de público. Em junho o Grupo Rex inicia em São Paulo suas
atividades na Rex Gallery & Sons, com exposição de Nelson Leirner, Geraldo de
Barros, Wesley Duke Lee, Carlos Fajardo, Frederico Nassar, José Resende e outros,
inclusive com o lançamento do primeiro número do jornal Rex Time (é “time” mesmo e
não “taime”). Em julho/agosto, exposição “Vanguarda Brasileira” na Reitoria da
Universidade Federal de Minas Gerais com a presença de Hélio Oiticica, Gerchman,
155
30
cf. PECCININI, D.-Op. cit, p. 41-44.
157
Rosenquist, George Segal, Andy Warhol, Tom Wesselmann, etc. E dos brasileiros,
Marcelo Nitsche, Wesley Duke Lee, Nelson Leirner, Vergara, Claudio Tozzi, dentre
outros.
Se Opinião 65 foi o evento determinante desse afluxo de atividades, a Nova
Objetividade Brasileira foi a culminação do processo. A busca de uma linguagem mais
ampla para a expressão da complexidade humana e histórica, a ênfase na participação
do (até então) espectador, a concepção de obra como objeto, a idéia de vivência
assimilada a propostas sensoriais, a tomada de posição política, as proposições
coletivas, a integração da Pop-Art realizaram-se no período (que se estende até inícios
dos 70) e estiveram representadas e refletidas naquele acontecimento. No texto,
“Esquema Geral da Nova Objetividade”, escrito para o catálogo, Hélio Oiticica faz um
ensaio de globalização da vanguarda brasileira, no desejo de formular um diagnóstico
31
da situação e os princípios da atuação coletiva A análise de Oiticica elabora o tumulto
desse momento de fratura da modernidade, associando os elementos presentes aos
pressupostos da vanguarda brasileira. Para ele, os princípios que regem a posição crítica
e criativa dessa vanguarda são o resultado dos desenvolvimentos construtivos no Brasil:
antropofagia oswaldiana, arquitetura moderna, arte concreta e neoconcreta, a
experiência de Lygia Clark e a sua. Assim, a estratégia adequada ao momento é a
tendência à “antiarte”, pois ela vincula a experimentação às “exigências ético-
individuais e sociais”. Dirigida “por uma necessidade construtiva característica nossa”,
diz Oiticica, a antiarte permite aos artistas enfrentar a questão: “como, num país
subdesenvolvido, explicar o aparecimento de uma vanguarda e justificá-la, não como
32
uma alienação sintomática, mas como um fator decisivo no seu progresso coletivo?” .
Embora a posição crítica de Oiticica esteja sempre referenciada à sua produção e
às suas idéias, o texto explicita adequadamente aquela “Unidade de ação” da vanguarda
brasileira. De fato, entendendo como básico realizar a ampliação do “imaginativo do
indivíduo” e a “solidificação cultural” da arte de vanguarda, acredita que, naquele
momento, tratava-se de perguntar “quais as preposições, promoções e medidas a que se
deve recorrer para criar uma condição ampla de participação popular nessas proposições
abertas”, para que elas pudessem efetivar os objetivos da vanguarda brasileira:
31
OITICICA, Hélio. op. cit., p. 84-89.
32
Idem, ib., p. 97. Cf. também sobre a “Nova Objetividade”, FAVARETTO, C.F. A Invenção de Hélio
Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1992, p. 151 e ss.
158
“1. vontade construtiva geral; 2. tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de
cavalete; 3. participação do espectador (corporal, táctil, visual, semântica, etc.); 4. abordagem e
tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos; 5. tendência para
proposições coletivas e conseqüente abolição dos 'ismos' característicos da metade do século na
arte de hoje (...); 6. ressurgimento e novas formulações do conceito de antiarte”.
33
Cf. “Declaração de Princípios Básicos da Vanguarda”. In: PECCININI, D. Op, cit., p. 73.
159
34
CF. SCHENBERG, Mário. “Um novo realismo”. Catálogo Propostas 65, reprod. em PECCININI, D.
Op. cit., p. 61-62 e “O Ponto Alto”, Artes, Ano I, no. 3, jan./66, reprod., Arte em Revista, nº 2, p. 25
35
Cf. nota 27.
160
36
CORDEIRO, W. “Todos Atentos”. Catálogo Propostas 65, Artes, no. 3,
37
Idem, “Realismo, Musa da Vingança e da Tristeza”. Habitat, nº 83, 1965, reprod. em PECCININI, D..
Op. cit., p. 56.
161
com poder de referencialização, focalizando, pelo uso de traços fortes, cores e objetos
38
agressivos, a violência institucionalizada .
O destaque de Oiticica para Dias e Gerchman é significativo: neles ele vê a
recolocação da antiarte, que aflui simultaneamente à sua e de Lygia Clark. Elaboram
novas abordagens do objeto, um novo campo “pictórico-plástico-estrutural”, em que o
político está implícito na linguagem. Os antiquadros de Dias, assim como as “novas
ordens estruturais de manifestação” de Gerchman (caixas, marmitas, lindonéias, misses,
filas, multidões, times), expõe o mesmo cotidiano violento e dilacerado, embora suas
construções alegóricas sejam diferenciadas. A Dias não interessa o realismo: sua
plástica ilustrativa, à maneira dos quadrinhos, articula fábulas e símbolos, os lugares-
comuns da retórica popular e o imaginário da infância, estruturando o espaço por
simetrias, numa arquitetura rigorosa. A figuração de crimes, paixões e toda sorte de
violência, não decorre apenas das pressões da realidade social, da intensão social
comum aos artistas do tempo, mas de uma estratégia de comunicação. A vitalidade de
seus objetos é fruto de operações em que a simplicidade da ilustração encobre a
elaboração conceitual. Os materiais e o modo de articulá-los integram um projeto
crítico-construtivo, no qual o que vale são as idéias; o objeto “é quase sempre o resíduo
de um pensamento muito mais amplo, e a prática na manipulação desses conceitos é que
libera o artesanato”(...). “O realismo para mim nada significa (...) o que está fora não me
interessa, mas sim o que está dentro (...) A finalidade é comunicar-me com os outros.
Aliás, considero a arte, a pintura, um veículo de comunicação limitado e falho. De
minha parte, não levo em conta o problema estético: a qualidade estética é resultante.
Estou aparelhado tecnicamente para usar os recursos gráficos e procuro com eles me
exprimir sem indagar se isto é ou não estético, feio ou bonito. Vejo três modos de
realizar a expressão: o modo realista, que é a meu ver constatação acadêmica, o modo
39
subjetivo e o terceiro, que é a mistura dos dois. Misturo os dois” .
Como em Dias, o significado social de Gerchman aparece estruturalmente, como
diz Oiticica, na “luta entre plano e objeto”. Interessado no realismo e, como aquele, na
comunicação, seus objetos constróem novas relações de elementos urbanos como uma
40
“redução do real dado” . Operando, nas pinturas-cartazes, a transformação de temas e
38
ARANTES, Otília B.F. Novos Estudos, 15, p. 71-72.
39
Cf. entrevista de A. Dias ao Pasquim, ano VII, nº 325, 19-25/9/75, p. 18; “Entrevista de Antônio Dias e
Rubens Gerchman a Ferreira Gullar”, Revista Civilização Brasileira, Ano I, nº 11/12, dez. 66/marc.67, p.
174-5.
40
PEDROSA, Mário. “Crise ou Revolução do Objeto”. In: Mundo, Homem, Arte em Crise, p. 162.
164
41
Cf. HANSEN, J.A.”Dados para Identidade em R.G.”. Arte em Revista, Ano V, nº 7, ago. 1993, p. 25-
30.
42
Cf. depoimento de Gerchman em PECCININI, D. Op. cit., p. 147.
43
Cf. Aspiro ao Grande Labirinto, p. 88.
44
Idem, ib., p. 92.
165
***
45
Cf. Arte em Revista, ano III, nº 5, mai. 1981, p. 3-4
166
46
Sobre o Tropicalismo, cf. FAVARETTO, C.F. Tropicália: Alegoria, Alegria. São Paulo: Kairós, 1979 e
A Invenção de Hélio Oiticica, p. 136 e ss
47
OITICICA, Hélio. “Brasil Diarréia”. In: FERREIRA GULLAR (org.). Arte Brasileira Hoje. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1973, p. 147-152.
168
Propondo uma nova imagem da arte, a dissolução das distinções entre arte e
vida, e respondendo ao imperativo de posicionamento ético-político, a vanguarda
brasileira da segunda metade dos anos 60 visava a efetivar os princípios da criticidade
moderna. Por sua radicalidade, as proposições celebravam a propalada morte da arte,
rompiam a hegemonia do projeto construtivo e problematizavam o circuito.
Abrindo o vasto campo da colagem, compôs uma ampla atividade pela
apropriação das possibilidades estéticas provocadas pela pulverização dos processos e
códigos modernos desencadeados a partir da pop art. Questionando a autonomia da
pintura e da escultura e o centramento visual-retiniano; desidealizando o conceito de
arte, a tradicional imagem de artista e a recepção habitual, a experimentação dedica-se a
anular o ilusionismo pela valorização de técnicas, temas, retóricas e sintaxes. Desloca a
prioridade da visada sintático-formal para a semântico-pragmática. A proposta de
participação surge como necessidade: de um lado artística, para compor um novo
espaço estético; de outro, cultural e política, para dar conta do imperativo de falar do
país e denunciar a repressão do regime militar.
Desbordando as fronteiras fixadas desde o modernismo, as vanguardas
exercitam a multiplicidade de estilos, a mescla de técnicas, a fusão de gêneros, a ruptura
dos suportes, valorizando o caráter heterogêneo e multidisciplinar da arte. Rearticulando
desenvolvimentos construtivistas, ou simplesmente negando-os; reativando as
proposições duchampianas ou apostando na antiarte; repropondo a representação através
de novas figurações; explorando o aleatório, o eventual, o gesto e os comportamentos, a
vanguarda brasileira produz a abertura do campo estético para inovações, que não são
livres de ambigüidades. Entre a crítica do sistema da arte e a integração do mercado,
entre o esteticismo de algumas experimentações e a significação social perseguida, as
propostas promovem a reavaliação do sentido e da função da arte naquele momento.
A atividade artística do período recobriu uma gama muito elástica de atitudes e
experiências: objetos, ambientes, happening aparecem misturados com pintura e
escultura, abstratas e figurativas, referidos a elementos pop, op, surrealistas, dadaístas,
*
In: RIBENBOIM, Ricardo(org.). Tridimensionalidade. São Paulo: Itaú Cultural, 1997, p. 109-115; 2.ed.,
Tridimensionalidade: arte brasileira do século vinte. São Paulo: Itaú Cultural/Cosac & Naify, 1999.
169
da arte povera, corporal etc. Pode-se dizer que um básico procedimento conceitual se
explicitava em graus diferenciados. Das tendências mais próximas da figuração às mais
desconstrutivas, passando por aquelas que privilegiavam o trabalho com os signos da
comunicação de massa, manifestava-se um básico empenho de auto-reflexão da arte.
Embora multidisciplinar e mesclada, nessa produção podem-se observar
algumas direções prioritárias: nova figuração, antiarte, objetos. Entretanto, o conjunto
dessas experimentações não constituía uma unidade de pensamento. Havia um esforço
de identificar uma “posição específica” da vanguarda brasileira; uma posição coletiva
de sentido ético-estético. Nas significativas exposições Opinião (65 e 66), Propostas
(65 e 66), Salão de Brasília (66 e 67), Nova Objetividade Brasileira (67); nas
intervenções e manifestações como os Parangolés de Oiticica e a Não-Exposição de
Nelson Leirner; nos textos e manifestos dos artistas, a tentativa de formulação de uma
posição crítica, apesar das diferenciações e divergências, gerava a sensação de
movimento aglutinador. No mínimo, como disse na ocasião Sérgio Ferro num debate
entre artistas e críticos, a unidade do que ocorria nas artes plásticas no Brasil não estava
em algum parentesco formal ou nos objetivos específicos, mas na posição agressiva, no
inconformismo, na tentativa ampla e violenta de desmistificação. Para isto, tratava-se de
lançar mão de todos os instrumentos, processos, técnicas e linguagens disponíveis, dos
tradicionais aos modernos, incluindo os da comunicação de massa.
É exatamente nesta direção que a “nova figuração” produziu ressonâncias
estéticas e politizadoras. Embora a expressão, às vezes substituída por “realismo” ou
“novo realismo” fosse confusa, pois englobava manifestações muito distintas como as
de Oiticica, Lygia Clark e Wesley Duke Lee, por exemplo, ela queria contemplar, com
as idéias de participação coletiva e desmistificação político-cultural, o restabelecimento
de relações mais próximas com a realidade do país. Mas os “realismos”, as figurações,
eram vários: Rubens Gerchman, Waldemar Cordeiro, Vergara, Roberto Magalhães,
Flávio Império, Wesley Duke Lee muito se diferenciavam, embora todos emitissem
“opiniões”. Em cada um o experimentalismo agenciava imagens de modo específico,
mais ou menos sintomático, com maior ou menor radicalidade estética. Em cada artista
cumpriria examinar o modo de articulação das imagens e procedimentos: as soluções
estruturais em que coabitam o pictórico, os signos da comunicação, os símbolos
populares; o visual e o verbal; o plano e a tridimensionalidade; as representações sociais
e as fantasmagorias.
170
É naquilo que foi denominado “problema do objeto” que se localiza uma questão
central das experimentações dos 60, que aliás se prolongará com significações diversas,
nos anos 70. As transformações estruturais da pintura e escultura levaram à construção
de objetos com a intenção de superar os suportes e a idéia de obra. Embora nem sempre
isto tenha acontecido, pois os objetos freqüentemente apenas substituíam o quadro ou a
escultura e impunham-se como obra, a concepção de “objeto” foi muito eficaz. Oiticica,
com os seus Bólides e teorização específica pensou de modo instigante o problema. O
objeto não seria uma nova categoria híbrida e sintética acrescentada à pintura e à
escultura, mas uma proposição conceitual que praticamente abre um domínio da arte
contemporânea ativo até hoje. Tal concepção de objeto radicaliza a dissolução estrutural
e propõe outras ordens estruturais, de criação e de recepção; implica a relação objeto-
comportamento, ressignifica o ato artístico e a experiência estética. O objeto, diz
Oiticica, é um sinal que aponta para uma ação no ambiente ou situação. Concretiza a
idéia de procedimento conceitual que redimensiona a participação, a posição dos
protagonistas. Há nos objetos uma imanência expressiva que pode se objetivar de
muitas maneiras: caixas, vidros, pacotes etc., além de proposições em que o corpo
intervém constitutivamente, como no caso dos parangolés de Oiticica e da nostalgia do
corpo de Lygia Clark.
A proposição de objetos é uma dissolução do primado do visual. Enquanto
supõe uma participação diversificada, em que o visual é esbatido no táctil e olfativo, e
para não ser tomado apenas como objeto estético substitutivo de pintura e escultura, o
objeto inclui-se no domínio mais amplo da antiarte, uma fusão de arte e ação
constituindo uma poética que vislumbra a arte como outra coisa. A antiarte propõe-se
como ação simbólica; lugar de produção de ações exemplares que ressaltam a força do
gesto e do conceito, valorizando situações instáveis com ressonância imediata. A
eficácia simbólica provém do simples ato de as ações mostrarem-se. Antiarte é o limite
da desestetização.
A arte dos 60, conceitualista e processual, exasperada e ambígua na efetivação
da negatividade, radicalizou os signos de modernidade vanguardista, especialmente no
seu momento final, o tropicalista. Experimental, violenta e utópica, pensou o sentido
cultural da arte tanto em relação às transformações estéticas na linha da modernidade,
quanto às condições específicas da cultura brasileira. Imaginou a utopia da arte-vida
realizável na atividade coletiva e na participação como conseqüências da destruição das
categorias estéticas tradicionais e transformação do sistema da arte. O corte das ações e
171
Maria Bonomi, Evandro Carlos Jardim, Renina Katz e muitos outros. A gravura foi
proposta como substitutivo de obras visuais e objetos de fácil circulação no mercado;
entretanto, as novas condições técnicas à disposição e a excelência dos trabalhos
serviram para veicular uma diversidade muito grande de técnicas, procedimentos e
imagens.
A efervescência artística gerada nos inícios de 70 deu a sensação de que se
formava um amplo e diversificado público de arte, sugerindo a possibilidade de
constituição de um verdadeiro mercado. A tentativa foi feita; multiplicaram-se galerias e
leilões, supervalorizando as obras da tradição, inclusive algumas de vanguarda,
contrapostas à efemeridade e à precariedade das proposições conceituais. Artificial, o
boom do mercado não durou, retornando o consumo de arte para os setores tradicionais,
mantendo-se apenas como mais extensivo o interesse pela gravura.
As pesquisas mais exigentes oriundas do conceitualismo prosseguiram no
trabalho daqueles artistas que, atravessando as contradições da época, afirmaram o
sentido reflexivo e a materialidade da arte, não em relação às sugestões e demandas do
mercado, mas segundo o percurso institucional. Problematizando a incompletude do
passado moderno, explorando a tensão do sensível e do inteligível e intervindo sem
violência numa situação artística imprevisível, os trabalhos insistem na exigência de
atenção e pensamento especificados para cada obra, evento ou instalação.
175
Nos últimos anos a arte brasileira tem estado em evidência: em boa parte devido
às repercussões da participação de artistas, recentes ou não, em mostras internacionais,
– em Veneza, Kassel e Nova Iorque; em parte devido a retrospectivas, coletivas e,
principalmente, aos debates gerados pela “Bienal Brasil Século XX” e “22ª Bienal
Internacional de São Paulo”. Procede-se a uma revalorização de alguns artistas que
atuaram intensamente nos anos 60/70, alguns sempre lembrados outros quase
esquecidos, embora lendários; e, simultaneamente, à tentativa de fixação de valores
jovens a uma tradição constituída nos anos 80/90. Embora o circuito, particularmente o
mercado, sejam acanhados, a crítica de jornais e semanários tem dado destaque às
diversas manifestações. Parece que no campo das artes, os domínios do plástico, das
intervenções urbanas e das proposições multimídia agenciam interesse, tensionamento
de linguagens e valores notáveis, pelo menos em relação às demais artes.
Sem minimizar a importância do reconhecimento internacional da produção
brasileira, um outro fator sobressai nesta situação: os artistas, críticos e público parecem
reivindicar referências brasileiras para estes trabalhos, fato aparentemente óbvio, mas
que desde os anos 60 não ocorria no Brasil. A abertura do campo artístico e a
redistribuição estética daquele tempo, provocadas pelo pop, pelas radicalizações
minimal e conceitual, lançaram as práticas artísticas no desconhecido e no
indeterminado, tornando obsoletas as reivindicações de nacionalidade, originalidade e
novidade. Pode-se dizer que, depois de um período em que se impôs a repetição de
estilemas, de perplexidade e falta de horizontes, alguma coisa passou a se impor,
lentamente, e provavelmente em virtude do surgimento no Brasil dos debates sobre o
pós-moderno. Equívocos à parte, o debate serviu para desreprimir a produção,
exatamente porque pôs em questão a história dominante da arte moderna e a
conseqüente reavaliação do trabalho de vanguarda. O processo de reavaliação de nossa
modernidade, inclusive a mais recentes, já deixou um saldo positivo: os artistas,
desligados do tabu do novo, vêm tentando elaboras as rupturas e questões modernas,
buscando desenvolver pontos de tensão, lacunas e repressões daqueles
*
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. São Paulo: IEB-USP, n° 39, 1995, pp. 231-6.
176
1
O espaço de Lygia Clark. São Paulo: Atlas, 1994.
177
ANEXO
Sobre PanAmérica*
*
Texto publicado no Jornal de Resenhas, n. 75, com o título “A outra América”. São Paulo: Discurso
Editorial/ USP/UNESP/UFMG/Folha de S.Paulo, 9/6/2001,p. 1-2.
182
1
Artigo publicado na Folha de S.Paulo. Rep. em NOGUEIRA MOUTINHO, J.G. A Fonte e a Forma.
Rio de Janeiro: Imago, 1977,p.34-37.
183
criativa das transformações que a pop art disparara: o grande mundo da colagem, da
mescla estilística, das justaposições e procedimentos técnicos e tecnológicos inusitados.
De outro, uma mudança significativa nos modos de expressar e tentar transformar em
ação as significações políticas e sociais, fazendo incidir as contradições nos
procedimentos.
PanAmérica participa com destaque destas duas dimensões, dando uma solução
até então não conhecida na literatura de vanguarda do Brasil, cuja contundência provém
em grande parte de ter dado à mistura de referências culturais um corpo sensível tão
emblemático quanto o das canções tropicalistas e o de artistas plásticos como Antônio
Dias, Gerchman, Roberto Magalhães, Claudio Tozzi, Aguilar, Wesley Duke Lee , por
exemplo. Não é a toa que a capa da primeira edição é de Antônio Dias, ilustrada com
uma imagem dos violentos quadros narrativos, plasticamente brutais, da “Nova
Figuração”, como “The American Death”; em que o imaginário que circula na
sociedade de massas está conectada à denúncia da dominação.
Texto delirante que finge um efeito de real, a epopéia de Agrippino funciona
como uma alucinação, uma fantasmagoria toda feita de cacos, de estilhaços da cultura,
na feliz imagem de Evelina Hoisel, no pioneiro livro em que se tratou com propriedade
histórica e analítica a obra de Agrippino2.
Blocos narrativos descontínuos se sucedem, construindo hipérboles de aspectos
das mitologias contemporâneas: sexualidade, luta política, astros cinematográficos,
personagens dos esportes, da política, são agenciados numa narrativa despsicologizada e
descentrada, irredutível a um painel ou a uma imagem totalizadora, qual uma alegoria
do Brasil. São designados e hiperacentuados aspectos da cultura, simultaneamente
satirizados, pois a linguagem que os pressupõe simbólicos é desconstruída.
Procedendo por via expositiva, indiciada pelo uso reiterado da conjunção “e”, o
campo onde a narrativa se institui é fragmentário e lacunar. As referências e fragmentos
da cultura são articulados em ritmo cinematográfico, com cortes e fusões.
Escrita tóxica, violenta, com o excesso de imagens e reiteração dos mesmos
elementos, induz o leitor à desvalorização dos objetos designados, com que se dá a
destruição da própria imagem. Assim, pulverizando os códigos de produção e recepção,
reiterando o visível , hiperbolizando a representação, o texto desmobiliza as
expectativas do leitor que nele procuraria um sentido, uma significação profunda, uma
2
HOISEL, E. Supercaos, os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1980.
184
dos índices. Mas há outros, culturais, como o índio brasileiro, na vitrine de uma cidade
americana, nu, enfeitado de penas e com o enorme e mole pênis que caía até o joelho,
portanto exangue, desenergizado à custa da exploração. Este objeto exótico, imagem
brasileira pronta para exportação e consumo, é um raro signo motivado da narrativa, a
única manifestação, salvo engano, de um sujeito historicamente afirmado: “eu sofria
internamente, (...) gritei de ódio”. Acoplado às referências brasileiras, percebe-se que,
intencionalmente, a guerrilha estende-se para toda a América do Sul e Central,
indiciando-se nisto o despertar da solidariedade latinoamericana, significada
principalmente na figura exemplar de Che Guevara.
Fundindo a imagerie que procede da pop art, onirismo e técnica expositiva do
novo romance francês, o texto explora o distanciamento de qualquer realidade,
representando a representação. Assim, a obsessão erótica não se fixa como finalidade,
portanto em exploração da pornografia, pois a sexualidade é aí apenas um objeto
dessublimado, pronto para a circulação no regime do capital;mais uma das imagens
reprodutíveis e permutáveis que o sistema do espetáculo agencia. Os acontecimentos
são narrados para um olhar de fora, com uma objetividade técnica, excluindo-se
qualquer envolvimento afetivo. Como um dos seus efeitos críticos, evidencia a
alienação que informa a produção da espetacularização da cultura, pois ao levar a
representação até o ponto em que a consciência racha, institui os objetos como algo já
conhecido, destituídos de presença
Puro heteróclito que resulta da montagem de referências culturais disponíveis na
sociedade de consumo, em que sobressaem as imagens visuais, o romance opera um
realismo espectral em que a história é desapropriada de suas significações, pois a
cultura, naturalizada, é reduzida a fatos, à pura objetividade dos acontecimentos virados
notícias. Entretanto, por efeito da encenação, a história reaparece com brutalidade neste
realismo delirante. Na apresentação de “Rito do Amor Selvagem”, Agrippino
caracteriza o processo de composição do texto e da encenação como mixagem, por
analogia com o que no cinema é a mistura de várias faixas de som, diálogos, ruídos e
música; nele a mistura dos meios, de diversas midias, articulam informações,
fragmentos, na simultaneidade. A falta de fé no poder da palavra, diz ele, levou-o ao
que denominou “texto de desgaste”, todo calcado nos estereótipos, restos e cacos da
cultura de consumo, significantes-objetos industriais prontos para a circulação, em que
o desejo é reificado. É o mesmo processo da composição de PanAmérica, em que uma
ritualização sem fundo fixa como realidade a simples aparência, substituindo os valores
186
*
in BOUSSO, Daniela et al. Por que Duchamp? Leituras duchampianas por artistas e críticos
brasileiros. São Paulo: Paço das Artes/Itaú Cultural, 1999, p.78-89.
1
HÉLIO Oiticica. Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica/Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996-7. p.199-
200. (Catálogo de exposição).
188
2
PECCININI, Daisy V.M.(org.). Objeto na arte: Brasil, anos 60. São Paulo: FAAP, 1978. p.190.
3
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p.103.
189
4
Ibidem, p.65 e ss.
190
5
Duchamp, apud PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 1977.
p.27-28.
6
OITICICA, Hélio. op.cit., p.63-64.
192
7
OITICICA, Hélio. “Parangolé: da antiarte às apropriações ambientais”. GAM, Rio de Janeiro, nº 6, p.30,
1997.
8
Ibidem.
9
OITICICA, Hélio. op.cit., p.81
193
faz a beleza neste caso. Está completamente dentro da massa cinzenta”.10 Jogo mental:
um procedimento conceitual. Além disso, o interesse pelo xadrez, numa tirada de
humor, permite-lhe a crítica ao meio de arte: “O meio dos jogadores de xadrez é mais
simpático que o dos artistas. Estes são completamente confusos, completamente cegos,
usam viseira-de-burro. (...) Isto foi provavelmente o que mais me interessou”.11
Novamente, uma estratégia perante a arte e o seu sistema.
Assim, a referência de Oiticica a Duchamp é “indireta e longínqua”. Encontram-
se no objetivo de deslocamento da arte, diferem nas estratégias e nas táticas. Para ambos
“a obra é o caminho e nada mais”, pois ambos, visando a um além-da-arte, visualizam
uma liberdade que “não é um saber, mas aquilo que está depois do saber”.12 Jogar com a
arte é conciliar arte e vida.
10
CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva, 1987.
p.28.
11
Ibidem, p.28-29.
12
PAZ, Octavio, op.cit., p.59.
194
*
Revista Gaia. São Paulo: USP, Ano I, n. 2 , set-dez. 1989, p. 24-32. Rep. na revista Educação e
Filosofia. Universidade Federal de Uberlândia, v. 4, n. 8, jan-jun. 1990, p. 151-158.
1
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Seleção de textos organizada por Luciano Figueiredo,
Lygia Pape e Waly Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 69.
2
Idem. “Situação da vanguarda no Brasil”. Op. cit., p. 110.
3
FERRO, S. “Vale tudo”. Catálogo do evento Propostas 66, reproduzido em Artes, ano I, n° 3, jan 66 e
em Arte em Revista, n° 2, 1979.
195
parte dos artistas brasileiros pretendia, ao fazer arte, estar fazendo política”4. A posição
crítica e a atuação cultural requeridas pelo momento faziam coincidir o político e a
renovação da sensibilidade; a participação social e o deslocamento da arte. Como
posição coletiva, a atuação dos artistas manifesta-se na atitude “contra”. Oiticica: “não
pregamos pensamentos abstratos, mas comunicamos pensamentos vivos (...). No Brasil,
(...) hoje, para se ter uma posição cultural atuante, que conte, tem-se que ser contra,
visceralmente contra tudo que seria em suma o conformismo cultural, político, ético,
social (...). Da Adversidade Vivemos”5!
É a proposta de participação coletiva, interessada tanto na superação da arte
(reconceituando-a, desintegrando o seu objeto e recriando a imagem), como no
redimensionamento cultural dos protagonistas, pela integração do coletivo, que mobiliza
os artistas. Enquanto pretendem liberar suas atividades do ilusionismo, os artistas
intervêm nos debates do tempo, fazendo das propostas estéticas propostas de
intervenção cultural. Seu campo de ação não é apenas o sistema de arte, mas a
visionária atividade coletiva que intercepta subjetividade e significação social. A
“antiarte”, proposta com que Oiticica pretende radicalizar a situação, é exemplar. Não
visa à criação de um “mundo estético”, pela aplicação de novas estruturas artísticas ao
cotidiano, nem simplesmente nele diluir as estruturas, mas transformar os participantes,
“proporcionando-lhes proposições abertas ao seu exercício imaginativo”, visando a
“desalienar o indivíduo”, para “torná-lo objetivo em seu comportamento ético-social”6.
Apontando para uma outra inscrição do estético, Oiticica visualiza a arte como
intervenção cultural e o artista como “motivador para a criação”.
O imaginário de Oiticica é aquele que se interessa, não pelos simbolismos da
arte, mas pela função simbólica das atividades, cuja densidade teórica está na
suplantação da pura imaginação pessoal em favor de um “imaginativo” coletivo. Isto se
cumpre quando as atividades possuem visão crítica na identificação de práticas culturais
com poder de transgressão; não pela simples figuração das indeterminações e conflitos
sociais, ou, ainda, pela denúncia da “alienação” dos discursos (totalizadores) sobre a
“realidade brasileira”. A participação coletiva (planejada ou casual) provém da abertura
das proposições; evita as circunscrições habituais da “arte” e o puro exercício
espontaneísta de uma suposta criatividade generalizada. O essencial das manifestações
4
ARANTES, O.B.F. “Depois das vanguardas”. Arte em Revista, n° 7, 1983 e “De Opinião 65 à XVIII
Bienal”.
5
OITICICA, Hélio. “Esquema geral da nova objetividade”. Op. cit., p. 98.
6
Idem. “Aparecimento do suprassensorial na arte brasileira”. Op. cit., p. 103.
196
7
Idem, ibidem, p. 80.
8
Idem, ibidem, pp. 81-2.
9
Idem, ibidem, p. 83.
197
de vida) e das relações sociais do povo da Mangueira, em que Oiticica surpreende uma
ética comunitária10.
O interesse de Oiticica por práticas populares não implica recurso à valorização,
dada naquele momento, à cultura popular com ênfase em “raízes populares”. Se
hiperboliza a Mangueira, o samba, a construtividade popular, é por razões que relevam
de sua concepção de antiarte ambiental; de sua experiência da marginalidade.
Mantendo-se embora afastado dos projetos culturais que figuravam a “realidade
nacional”, como etapa da ação política que reagia à dominação do imperialismo e do
regime militar, Oiticica respondeu à sua maneira aos apelos dessa esquerda. A sua
marginalidade foi vivida, pois é o ponto em que se desfaz a contradição do
inconformismo estético e do inconformismo social. Para ele, a arte tem sempre função
política, contanto que isso não seja um “alvo especial”, mas sim “um elemento”, pois,
“se a atividade é não-repressiva será política automaticamente”11. Arte e política são
práticas convergentes, mas que não se confundem, sob pena de se promover a
estetização da política.
É com o projeto Tropicália (1967) que Oiticica objetiva o “sentido ético” como
prática cultural, determinando a posição crítica que o distinguiu, pela coerência,
radicalidade e lucidez, das demais propostas em desenvolvimento na vanguarda
brasileira. Na Tropicália, a “objetivação de uma imagem brasileira” não se faz pela
figuração de uma realidade como totalidade sem fissuras, mas pela devoração das
imagens conflitantes que encenam uma cultura brasileira. Esta devoração se atribui aos
participantes: apropriando-se dos elementos disparatados, justapostos, que formam uma
“síntese imagética” (na verdade uma mistura de imagens, linguagens e referências), os
participantes agem nesse sistema conjuntivo e ambivalente, produzindo a evidenciação
do processo de constituição das contradições enunciadas. O objetivo é provocar a
explosão do óbvio por efeito da participação. Conjugando estrutura e fantasia, no
ambiente tramam-se intervenções que vão estendendo as proposições. Com isso, tudo o
que é traço cultural é ressignificado. Alheia ao exclusivismo da experimentação ou da
expressão de conteúdos do nacional-popular, Tropicália conjuga experimentalismo e
crítica. Para Oiticica, ela é produção em que as imagens “não podem ser consumidas,
não podem ser apropriadas, diluídas ou usadas para invenções comerciais ou
10
BRETT, G. Texto do catálogo da “Whitechapel Expereience”. Londres, 1969, reproduzido em AGL
(encarte).
11
OITICICA, Hélio. Entrevista. In: AYALA, W. (org.). A criação plástica em questão. Petrópolis:
Vozes, 1970.
198
12
Texto do catálogo da “Whitechapel Expereience”.
13
GULLAR, F. (org.). “Brasil diarréia”. Arte brasileira hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973, pp. 147-
9.
14
Idem, ibidem, p. 152.
15
Idem, ibidem, pp. 148-9.
199
16
“O sentido da vanguarda do grupo baiano”. Correio da Manhã, 24/11/1968.
200
*
Itinerários, n. 10. Revista de Pós-Graduação em Letras- Estudos Literários. Araraquara: Faculdade de
Ciências e Letras da UNESP, 1996, 247-253. Rep. em ANDRÉ DE SOUSA, Edson L. et al (org.)- A
Invenção da Vid: arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001, p. 106-112..
1
OITICICA, H. Entrevista a Ivan Cardoso. Folha de S. Paulo, 16/11/1985, p. 48.
201
2
Idem. Aspiro ao grande labirinto. Organizado por Luciano Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão.
Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 54.
3
Idem. “Brasil diarréia”. Arte em Revista. São Paulo, n° 5, 1981, pp. 43-5.
4
Idem. Op. cit., 1986, pp. 33 e 84.
202
5
Idem. Op. cit., 1986, pp. 116-7.
6
DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
203
Eis por que não interessavam a Oiticica a “arte ambiental”, a “arte conceitual”, a
“arte corporal, pois os seus interesses não são funcionais, isto é, voltados para uma
atividade experimental” entendida como descritiva de um ato a ser julgado
posteriormente em termos de sucesso ou fracasso”; mas como uma potência, “um ato
cujo resultado é desconhecido”7. A sua invenção constrói uma poética do instante, um
“exercício experimental da liberdade” na expressão de Mário Pedrosa, que, valorizando
situações instáveis e indeterminadas, de fim impreciso, instala os acontecimentos como
experiências exemplares, simbólicas, nas quais coexistem intensidade de sentido,
convicção e violência. Assim, esta poética visa não aos simbolismos da arte, mas a
simbólica dos estados de transformação: a invenção é, portanto, mais do que “criação”,
um dispositivo que alia pulsões e reflexão, impulsos desterritorializadores e elaboração:
um trabalho que quer liberar, nos acontecimentos, os signos transformáveis, os sinais da
potência de instante, dos estados de transformação.
Se a imagem de labirinto é a metáfora unificadora desses estados, pois enfatiza
polimorfias, mobilidades, aberturas, jogos e tensões, surpresas e intervenções
ativíssimas, e se os Parangolés são o ponto de partida dessa poética, os índices dessa
concepção da arte como evento encontram-se progressivamente encadeados nas
proposições anteriores: na proposição de um além da pintura nos Metaesquemas
(“meta”, além-transcendência da visualização; “esquema”, estrutura, quadro); nas
Invenções, em que a cor é liberada como pulsação, promovendo não só a mudança dos
meios, mas da própria concepção de pintura; na ativação do espaço com Bilaterais,
Relevos espaciais e Núcleos, em que a vivência da “estrutura-cor” explora as múltiplas
ressonâncias de espaço e cor temporalizados, na instauração do novo espaço perseguido
nas experiências construtivas, o Penetrável, e, finalmente, nos Bólides.
Os Bólides ocupam um lugar muito especial nos desenvolvimentos do programa
de Oiticica. São, ao mesmo tempo, as últimas “estruturas primordiais” do processo de
instauração da ordem ambiental e espécie de tubos de ensaio; evidenciam o processo de
abertura das estruturas, expondo as possibilidades e procedimentos que seriam
efetivados plenamente nos desenvolvimentos ambientais. São objetos estranhos, com
forte conotação conceitual; mágicas incursões que permitem experiências sensoriais e
ludismo. Signo e evento, objetos plásticos e já âmbitos para exercícios imaginativos,
permitem a inspeção das estruturas pigmentares de cor; são focos de uma luminosidade
7
OITICICA, H. “Experimentar o experimental”. Op. cit., 1981, p. 52.
204
que se expande, quer soltar-se e fulgurar no espaço. Não é por menos que Oiticica, até o
fim, sempre recodificou-os e revitalizou-os; disse mesmo, certa vez, que eles “são a
semente, ou melhor, o ovo de todos os futuros projetos ambientais”8. São protótipos de
desenvolvimentos ambientais comportamentais.
Visando a ressaltar o caráter operatório dos Bólides, que fazem a passagem das
“estruturas transcendentais imanentes” para “estruturas comportamento-corpo”, Oiticica
caracteriza-os como “transobjetos”, ressaltando, inclusive, que a proposta é a mesma
dos Parangolés. Neles importa o signo e não o objeto como obra, pois a participação
(explorar, manipular, descobrir) é atividade constitutiva. Os Parangolés redefinem as
operações dos Bólides; deslocam-nas das estruturas contidas de cor, desatam os gestos,
liberam os movimentos e os envolvimentos dos participantes. Os Bólides são a
imaginação do movimento e do gesto; os Parangolés a efetivação.
O princípio operante da composição dos Bólides é a apropriação, procedimento
construtivo e desestetizante fundamental da arte moderna e da contemporânea. Contudo,
Oiticica pretende diferenciar as suas apropriações de outras, como as de Rauschemberg
e Jasper Johns, por exemplo. Segundo ele, “nessas experiências a chegada à objetivação,
ao objeto tal como ele é no contexto de uma obra de arte, transportada do “mundo das
coisas” para o plano das ‘formas simbólicas’, dá-se de maneira direta e metafórica. Não
se trata de incorporar a própria estrutura, identificá-la na estrutura do objeto, mas de
transportá-lo fechado e enigmático da sua condição de ‘coisa’ para a de ‘elemento da
obra’. A obra é virtualizada pela presença desses elementos, e não antes a virtualidade
da obra na estrutura do objeto (...)”. Nos Bólides, exatamente para enfatizar o processo
de construção, e para não reduzi-los à desfuncionalização ou estetização dos objetos
apropriados, não há “justaposição virtual” de elementos, mas, ao escolher cada um
deles, já se identifica a “estrutura implícita” dos mesmos com a idéia que preside a
concepção dos Bólides. Os objetos “achados na paisagem” são, assim, incorporados a
uma “idéia estética”, com que se valoriza a eleição como um ato que não visa ao objeto
em seu estado natural, mas à sua “estrutura implícita”. A virtualidade (de cor,
luminosidade, estrutura, ludismo) está, portanto, nos elementos e não na “obra”, com
que se ressalta a carga cultural do “mundo das coisas”, assim como a tônica conceitual
do procedimento9.
8
Idem. “Sobre o objeto na arte brasileira dos anos 60”. In: PECCININI, Daisy M. Objeto na arte: Brasil,
anos 60. São Paulo: Faap, 1978, p.190.
9
Idem. Op. cit., 1986, pp. 63-5.
205
10
Idem. Op. cit., 1978, p. 190.
11
Idem, ibidem.
206
*
Revista USP, nº 4. São Paulo: CCS/USP, dez-jan-fev. 1989-90, p. 45-54.
1
OITICICA, H. “A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade”. Aspiro ao
grande labirinto. Seleção de textos de HO por Luciano Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão. Rio de
Janeiro: Rocco, 1986, pp. 54 e ss.
207
2
Idem, ibidem, p. 53.
208
3
Idem, ibidem, p. 50 e ss.
4
Moholy Nagy e Gabo Pévsner, citados por PEDROSA, M. “A significação de Lygia Clark”. Lygia
Clark. Coleção Arte Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Funarte, 1980, pp. 16-7.
5
BRITO, R. “Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro”. Temas e Debates, n°
4, Rio de Janeiro: Funarte, 1985, p. 65.
209
madeira que pendem soltas, pintadas com cores quentes (laranja, amarelo, vermelho),
luminosas. Labirínticos, são cavidades ambíguas, cabines em que a cor resplandece por
todos os lados. O espectador-participante penetra, assim, num campo de ação; caminha
por labirintos de cor, banha-se em cor, experimentando um espaço de tensões que ele
mesmo pode produzir movimentando as placas. Oiticica considera os Núcleos uma
evolução da estrutura neoplástica de Mondrian, pois a tendência de eliminar o corte (a
“linha abstrata”) de uma cor para outra propicia a visão contínua da estrutura-cor, e a
projeção das placas numa superfície plana não resulta em cortes6.
A experiência dos Núcleos significa a descoberta da cor-luz ativa, do “núcleo de
cor”, com que Oiticica inova a concepção de cor na pintura, pela temporalização do
espaço. Normalmente, a sugestão de luz é obtida pela modificação da intensidade tonal;
no “desenvolvimento nuclear” a passagem de um tom para outro se dá de maneira sutil,
em nuanças; não há, nos Núcleos, tentativa de “amenizar contrastes” por harmonização,
nem de dinamizar a cor por justaposição dissonante ou justaposição de complementares,
“mas de movimentar virtualmente a cor, em sua estrutura mesma”, fazendo-a “durar” no
espaço e no tempo, “como se ela pulsasse de dentro de seu núcleo e se desenvolvesse”7.
a cor-luz gera um espaço por expansão da superfície, distinguindo-se tanto do uso
tradicional, em que a cor é preenchimento e simulação do volume, como do abstrato-
geométrico, em que a forma-cor é condição da organização do espaço visual. Na
experiência de Oiticica, a cor tende a se “corporificar”; a incorporação da cor significa
que ela deve adquirir máxima luminosidade, assimilando o espaço e a estrutura.
O desenvolvimento nuclear propõe, assim, um uso determinado da cor que se
distingue daquele da pintura tonal. Nesta, os componentes cromáticos são fundidos,
perdem suas características singulares, gerando um acordo entre as cores: atmosfera.
Continuando os desenvolvimentos modernos, que na busca da cor pura transformaram a
superfície cromática em matéria cromática, a experiência das estruturas-cor supõe uma
pesquisa sobre as propriedades materiais da cor (propriedades “tímbricas”), tendo em
vista a determinação de suas virtualidades expressivas, isto é, da capacidade de pulsação
produzida na passagem do estado pigmentário (estático, opaco) para o dinâmico (cor-
luz)8. A cor pura age através de seus valores pigmentários ressaltando a luminosidade
intrínseca dos materiais, intensidades crescentes e decrescentes, variações das direções
6
OITICICA, H. Op. cit., pp. 32-3.
7
Idem, p. 40.
8
DORFLES, G. “Sobre a distinção entre cor tonal e cor tímbrica”. A evolução das artes. Trad. port.
Lisboa: Arcádia, s.d. pp. 115-8.
210
de expansão, movimentam a cor, fazendo-a pulsar. Assim, pela exploração das infinitas
possibilidades do timbre, acede-se ao continuum das nuanças: estabelece-se um estado
de indeterminação que ressalta o instante e a integração do espectador no processo.
Assim, não é por simples analogia que Oiticica insiste que a cor tem que se estruturar
como o som na música; que o “sentido musical” é predominante nos Núcleos (não o
arquitetônico). A “dimensão infinita” da cor provém da musicalidade, que não é
“emprestada” às estruturas, nem resultante de relações contrapontísticas ou eurrítmicas
entre as placas, mas que “nasce da sua essência”9.
Oiticica está, pois, atento às pesquisas de pintores e músicos modernos e
contemporâneos que erigem a cor e o som em protagonistas, fugindo aos impactos
tonais. Tratando-os fisicamente, exaltam os timbres e as nuanças (aplicados
indistintamente às qualidades das cores e das sonoridades), pois, sendo indeterminados,
escapam às determinações das vibrações em termos de altura, duração, freqüência10.
Ressaltando a pulsação, das “células” e das estruturas, Oiticica privilegia a exploração
das sinestesias, os estímulos que atingem simultaneamente a vista e o ouvido, todo o
corpo, situando-se no vasto campo (indeterminado) das analogias entre imagens
cromáticas e sonoras11. Na teoria do desenvolvimento nuclear da cor, repercutem os
ecos da kandinskiana “sonoridade da cor”, das pesquisas de Klee e da abstração
cromática (Newman, Rothko, Pollock). Ao buscar o “sentido de cor”, quer dar corpo à
cor: “vivência da cor”.
No Penetrável formula-se o que totaliza a seqüência de proposições anteriores.
Propõem-se nele as condições de realização da estética de “movimento e
envolvimento”12, que fica patente nas experiências subseqüentes. Chegado ao espaço
prefigurado nos desenvolvimentos construtivos, o Penetrável abriga a concepção de cor
pulsante, estrutura-cor envolvente, a participação; dilui a fronteira entre as artes, faculta
modalidades novas de experiências, que são intervenções ativíssimas. Com os
Penetráveis, a estrutura arquitetônica dos Núcleos desce para o chão, originando
Projetos que unem pintura, poesia, música, teatro, experiências cotidianas: móvel,
indeterminado e “organificado”, o novo espaço é um campo de tensões em que as
relações plásticas se transformam em vivências (espaço cotidiano estetizado). Estético e
mágico, o espaço interpenetra o interno e o externo, a “obra” e o cotidiano, a estrutura e
9
OITICICA, H. “Cor, tempo e estrutura”. Op. cit., p. 48.
10
LYOTARD, J.F. “Aprés le sublime, état de l’esthétique”. L’inhumain. Paris: Galilée, 1988, pp. 151-4.
11
DORFLES, G. Op. cit., pp. 206-7.
12
NUNES, B. Lygia Clark e Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Funarte, 1987, p. 42.
211
a cor, num continuum. Tudo o que nos Núcleos era estático, torna-se ativo, vital.
Imagem de uma arte no espaço, a finalidade do Penetrável é encaminhar a atividade
estética para um urbanismo generalizado. É por isso que os Projetos de Oiticica visam à
experiência coletiva: são abrigos, construções ao ar livre, conjuntos de cabines abertas
para jardins, ninhos de lazer, de brincadeiras e jogos. São “âmbitos”13 para propostas,
para invenções, supondo-se que a destinação das atividades é a mudança de
comportamento, tanto do individual como do coletivo. Espaço de jogo, circular, o
Penetrável ou reitera processos na constituição de uma nova imagem da arte, ou então,
jogo vicioso, opera eventos. A circularidade do jogo remete à vertigem do sentido (e dos
sentidos); a pensamentos e experiências em abismo, que liberam a invenção de outros
ritos e outros mitos: a utopia da arte no fio do vivencial.
A imagem desse espaço de transmutações é o labirinto. Consagrado na tradição
artística, o labirinto enfatiza polimorfias, mobilidades, acontecimentos e aberturas.
Remete a jogos abstratos de entreleçamentos, em que o pensamento, sensação, fantasia
ou gesto se desatam, na articulação de espontaneidade e construção. Metáfora
unificadora, o labirinto apresenta o mundo como mistura de previsível e imprevisível,
sendo apropriado para figurar estados fragmentários de dissolução. Forma mítica,
aponta para um centro, para uma ordem em que o contraditório e o díspar operam,
produzindo diferenciação. O labirinto efetua a passagem da perspectiva comum,
estabelecida, para outra, continuamente inventada na ação14. Assim, o labirinto produz a
transformação a que Oiticica aspira: criar estruturas-totalidades que incorporem e
recriem o espaço real. Alterando a posição anterior da estrutura-cor, Oiticica erige os
Penetráveis em dispositivos de transformação e, com eles, reinscreve o simbólico, a
experiência estética. Esta deixa de ser uma atividade interior, uma viagem pelo
imaginário e pela reflexão, tal como se dá na pintura, para ser uma articulação de corpos
e materiais15.
A pesquisa da estrutura-cor, a “necessidade de dar-lhe corpo”, produziu, ainda,
“inesperadas conseqüências” no programa: a emergência das “últimas estruturas
primordiais” do processo de instauração da ordem ambiental: Bólides e Parangolé16.
Nestas propostas, “células germinativas” dos projetos ambientais, o corpo entra como
13
CAMPOS, H. de. “O vôo da razão sensível de Hélio Oiticica”. Entrevista a Lenora de Barros. Folha de
S. Paulo, 26/07/1987, p. A-55. Reproduzida no catálogo Lygia Clark e Hélio Oiticica, p. 55.
14
HOCKE, G.R. Maneirismo: o mundo como labirinto. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 161 e ss.
15
GERVAIS, R. “Big-bang et postmodernité”. Parachute, n° 39, Montréal-Québec, jun/aug, 1985, p. 20.
16
OITICICA, H. “Bólides” e “Situação da vanguarda no Brasil”. Op. cit., p. 63 e 110-1.
212
17
BRETT, G. Kinetic art. London: Studio-Vista, 1969, pp. 67-9 e texto no catálogo da Whitechapel
experience. London, 1969, trad. em OITICICA, H. Op. cit. (encarte).
213
18
OITICICA, H. “Anotações sobre o Parangolé”. Op. cit., p. 71.
19
Idem. “Esquema geral da nova objetividade”. Op. cit., p.84.
214
20
Idem. “As possibilidades do Crelazer”. Op. cit., p. 114.
215
21
Idem. “A dança na minha experiência”. Op. cit., pp. 73-4.
22
Idem, ibidem, p. 72.
23
Idem, ibidem, p. 73.
24
“A arte penetrável de Hélio Oiticica”. Entrevista de Hélio Oiticica a Ivan Cardoso em 1979. Folha de S.
Paulo, 16/11/1985, p. 48.
25
Anotações de Hélio Oiticica no catálogo “O q faço é Música”, da retrospectiva de sua produção na
galeria de arte São Paulo, fev/mar, 1986. O texto comparece aqui sem a grafia característica de Oiticica.
216
26
RODRIGUES, A.M. “A poesia lírica das modinhas e solidão política”. Jornal da Tarde, 26/07/1980, p.
10.
27
BERIO, L. “Commentaires au rock”. Musique em Jeu, n° 2, Paris: Seuil, 1971, p. 56; MORIN, E. “Não
se conhece a canção”. Linguagem da cultura de massas. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 146 e ss.
28
OITICICA, H. “O sentido de vanguarda do grupo baiano”. Correio da Manhã, 24/11/1968.
217
29
ZILIO, C. “Da antropofagia à tropicália”. O nacional e o popular na cultura brasileira: artes plásticas
e literatura. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 30.
218
30
TATIT, L. “Vocação e perplexidade dos cancioneiros”. Folha de S. Paulo, Folhetim, 20/02/1983, pp.
6-7.
31
FAVARETTO, C.F. Tropicália, alegoria alegria. São Paulo: Kairós, 1979.
32
Idem, ibidem, caps. III e IV .
219
*
In: HERKENHOFF, Paulo & PEDROSA, Adriano (orgs.). Arte contemporânea brasileira: um e/entre
outro(s). Catálogo da XXIV Bienal de São Paulo (1988). São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo,
1999, p. 148-151.
221
1
Correio da Manhã, 24/11/1968.
223
2
ZILIO, C. “Da antropofagia à tropicália”. O nacional e o popular na cultura brasileira: artes plásticas e
literatura. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 30.
224
uma festa, que também é farsa, vê desdobrar-se um painel, que aparentemente designa o
Brasil, mas que leva a uma metáfora terminal, a uma alegoria do Brasil.
A convergência dos projetos de Oiticica e dos tropicalistas patenteia-se,
portanto, na transformação do espectador (ouvinte) em protagonista de ações, pela
exploração da indeterminação provocada pela abertura estrutural e do heteróclito de
materiais e referências agenciados nos sistemas. Há, entretanto, devido à singularidade
de cada uma das poéticas, distinções de níveis de produção significante. Nas músicas,
produzem-se imagens estranhas e alusivas, enigmáticas como as da elaboração onírica,
compondo alegorias. No ambiente de Oiticica, a alusão não efetua um movimento
decisivo em direção a um sentido profundo a ser decifrado, pois a relação entre
significados óbvios e ocultos não exige que a designação literal seja vencida pela
figurada. Nas músicas, o efeito surreal resulta mais da construção textual; no ambiente
de Oiticica, o que sobressai é a exposição sensorial dos materiais. Naquelas, o fluxo
contínuo das imagens produz metaforização; neste, resíduos e objetos coexistem,
gerando sincretismo e indiferenciação. Entretanto, em ambas as produções, o resultado
do tráfego entre as imagens designa um heteróclito que não significa um todo
homogêneo – o Brasil –, mas o estilhaçam. As músicas figuram as indeterminações
culturais, sugerindo uma totalidade de incompossíveis no presente e excluindo qualquer
forma de realização na utopia; a Tropicália de Oiticica indicia processos de atuação
cultural.3
3
Este texto retoma e reelabora idéias desenvolvidas nos livros A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo:
Edusp, 1992 e Tropicália: alegoria, alegria, 2. ed., São Paulo: Ateliê Editorial, 1996.
225
Uma das estranhezas provocadas pela música tropicalista, pelo menos na época
de seu surgimento, foi o seu modo de tratar o contexto sócio-político-cultural, ou, como
se dizia, a “realidade brasileira”, um conceito compósito e muito significativo da época.
Mais precisamente: estranho foi o modo de conceber e realizar na música a relação entre
arte e realidade imediata, entre cultura e linguagem, através de uma articulação
inusitada face às soluções que se apresentavam na época, inclusive nos domínios da arte
de vanguarda. A singularidade da atividade tropicalista, alvo de suspeitas e acusações,
por uma parte da crítica e do público – que lhe atribuíam a pecha de “arte alienada”, ou
simplesmente “comercial”, sem reconhecer seu caráter revolucionário – configurou-se
como uma intervenção artístico-cultural que definiu uma posição estética radical, com
ressonâncias imediatas e de ampla atuação na produção artística brasileira, talvez, até
hoje. Foi uma intervenção cujo vigor deveu-se ao fato de derivar de uma intervenção
criativa na própria estrutura da canção e no sistema que a sustentava. Os artistas, o
público, a crítica, os sistemas de comunicação, todos foram atingidos pelo modo como
as músicas e a atuação do chamado grupo baiano incidiram e evidenciaram as
contradições culturais e políticas daquele momento histórico. Esse modo singular dos
tropicalistas, das canções tropicalistas, caracterizou-se por fazer incidir a crítica social e
política diretamente na estrutura da canção, na sua construção e na articulação das
imagens, cujo resultado mais contundente está na formulação das imagens alegóricas.
Pode-se exemplificar a eficácia deste modo novo e específico de atuar com uma
declaração de Caetano Veloso, em uma entrevista de anos depois:o tropicalismo, dizia,
produziu “a explicitação da função crítica da criação”, ou seja, uma reflexão sobre os
poderes da canção em termos de linguagem e de crítica social.
Quando em meados dos anos 70 escrevi o livro Tropicália, alegoria alegria,
publicado em 1979, ainda não era fácil defender o tropicalismo, ressaltar a sua
singularidade e importância no que se referia às discussões sobre arte participante e arte
de vanguarda ou experimental.Tratava-se de mostrar que a atividade tropicalista
produzira uma relação tensa entre vanguarda e comunicação, vanguarda e mercado, e
*
Versão modificada do texto “Tropicália:política e cultura”, publicado em DUARTE, P.S. & NEVES,
Santuza C. Do samba-canção à tropicália. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Faperj, 2003, p. 242-247.
226
no processo construtivo das músicas tropicalistas permite ver nelas como se articulam o
conceitual e o sensível, idéia e comportamento – uma experiência em desenvolvimento
em muitas artes daquele tempo, em Lygia Clark e Oiticica, por exemplo, em muito mais
gente e domínios, mas que nunca havia sido feito nada semelhante na música.Para os
críticos do tropicalismo, haveria nas canções, muito ao contrário, uma desarticulação de
linguagem e uma falta de sentido, algo caótico, incompreensível. Daí não entenderem
que a participação, um requisito da arte do tempo, não estava ausente no tropicalismo,
que o político aparecia e era contundente, só que, devido ao modo construtivista com
que eram compostas as músicas, a participação também era constitutiva da estrutura,
não um efeito de uma fala através da música. A participação dependia do grau de
elaboração a que o ouvinte era levado a operar; efeito da abertura estrutural das canções,
exigindo a entrada e interferência do ouvinte-espectador-participante.
As canções tropicalistas produziram, em virtude dessa atitude, uma verdadeira
ruptura no imaginário da participação que comandava as ações em quase todas as
manifestações artísticas, ao operar o deslocamento da idéia e das práticas para
modalidades de participação focados no princípio de intervenção – na estrutura da
canção e na proposição de gestos simbólicos com poder de. choque ou de alusão a uma
outra posição na arte e na história. Essa ruptura no imaginário produzida pelo
tropicalismo tematizava e insistia criticamente no processo de descentramento cultural,
enfatizando que no Brasil posição crítica permanente, da política e da cultura, e
experimentalismo artístico são indissociáveis, são elementos construtivos, o qur foi tão
bem formulado um pouco depois por Hélio Oiticica em “Brasil Diarréia”. Para se
perceber esta nova atitude face à participação, e nela entrar, exigia-se dos participantes
uma sensível mudança de posição, de idéias, de comportamento; uma sensibilidade
aguçada para as diferenças, crítica das totalizações, enfim, uma abertura, uma coragem
para viver transformação. Dentre estas, era preciso valorizar o trabalho dos tropicalistas
com a heterogeneidade cultural e a mistura de referências artísticas, perceber as relações
tensas entre elementos provenientes das culturas populares, do consumo e das
vanguardas – o que , aliás, ocorria não só na música como nas artes plásticas e no teatro,
em breve em todas as artes. Basta lembrar, para exemplificar, dos trabalhos de José
Celso Martinez Corrêa, de Oiticica, Antonio Dias, Gerchman, de Joaquim Pedro de
Andrade, de Arnaldo Jabor e, também, do Panamérica de José Agrippino de Paula.
Com este procedimento, deslocando a ênfase do tema para o modo de formar, o
tropicalismo designou as assincronias e sincretismos culturais enquanto
229
Tropicália revisitada*
*
Texto publicado parcialmente em O Estado de São Paulo, Suplemento Cultura, 07/08/1993, p. 1.
233
*
Cult. Revista Brasileira de Literatura, n.49, ano V, ago. 2001, p. 4-9. A entrevista, formulada por Carlos
Adriano e Bernardo Vorobow, apareceu sob o título “Celso F. Favaretto lança novas luzes sobre a obra de
Caetano Veloso”.
236
perder o seu teor designativo, são poéticas , emoção recordada na tranquilidade. Basta
que se percorra as canções, desde as primeiras, para se ver como o que aparece como
prodígio de memória – e não deixa de sê-lo–, traz à tona fragmentos, cacos, resíduos,
traços de experiência, associando o vivido ao tumulto do presente. O presente é sempre
o lugar da enunciação ,com que em Caetano não há qualquer nostalgia, ou saudade. A
sua poética é, assim, afirmativa, elaboração contínua de um fluxo existencial em que o
pessoal e o histórico não se distinguem.
4. Você acha que a obra musical de Caetano opera alguma síntese entre as
tradições da poesia e da música brasileiras? Quais seriam essas tradições e
como se dá tal síntese? Você v6e ou ouve algum projeto literário bem nítido
e delineado?
instigante, daqueles textos que escreveu em Londres,no exílio, recolhidos, não sei se na
totalidadee ,na coletânea Alegria Alegria organizada por Waly Salomão, que clama por
uma reedição,acrescentada de vários textos que vieram depois. Assim, o nível
excepcional da realização textual de Caetano, que o coloca com facilidade ao lado de
muitos outros poetas contemporâneos,não justifica entretanto assimilá-lo à categoria
restrita de escritor;ele é um concionista, algo mais complexo estruturalmente, e mais
complexo na manifestação pois inclui, no disco ou no show, os rigores, os êxtases e a
eficácia de um outro modo de manifestação do artístico.É muito significativo que
Caetano nunca tenha se interessado em musicar poemas. Talvez porque,vindo antes a
música ou a letra, ou ambas simultaneamente, a canção tem a particularidade de ser uma
linguagem motivada. O som chama a palavra e vice-versa. Uma vez aparecida a canção,
o seu texto pode ser alvo, como tem sido, de fruição e análises puramente literárias,
poéticas. Boa parte da produção de Caetano suporta a comparação com os textos
nascidos como poesia: e isto é um notável fator distintivo de sua produção,por si só
merecedora de toda nossa admiração .Contudo,o mistério da canção é ela ser outra coisa
,um objeto não identificado.
Na canção, “Janelas abertas n.2”, Caetano diz: “mas eu prefiro abrir as janelas
pra que entrem todos os insetos”. Estas palavras abrem-se para o incomensurável da
experiência contemporânea ,para toda a imprevisibilidade e a indeterminação de uma
trajetória que se afirma sobretudo pela coragem de seguir “sozinho caminhando contra o
vento”,nadando “contra a maré”,embora sempre acossado por vozes que cobram uma
retificação de suas atitudes supostamente vinculadas a um compromisso social
anteriormente firmado. Mas, assim como desde cedo não quis “viver a nostalgia de
tempos e lugares”, também não admitiu que sua inspiração fosse circunscrita por
compromissos que um dia se manifestaram em suas canções com a força do tom justo
no tempo oportuno. No manifesto “Jóia”Caetano dizia “estar cuidadosamente entregue
ao projeto de uma música posta contra aqueles que falam em termos de década e
esquecem o minuto e o milênio”.Assim, vejo em Caetano alguém que realiza na música
brasileira um trabalho cujo alcance pode ser realçado recorrendo-se a algumas idéias de
Deleuze sobre a relação entre literatura e vida, expostas ,por exemplo, em Crítica e
Clínica. Diz ele,que a literatura traça no interior da língua “uma espécie de língua
estrangeira”,isto é, “um devir-outro da língua (...) uma linha de feitiçaria que foge ao
sistema dominante”.Este é um traço distintivo de Caetano; em suas canções, tensiona a
língua até os seus limites, por atos de enunciação sempre singulares, uma produção
intensiva de sentido, em que o sujeito é suplantado por agenciamentos coletivos de
enunciação. Nisto,acima de tudo,deve-se ver o político , a significação social da arte de
Caetano, e não,simplesmente, no vai e vem das declarações que as circunstâncias e as
paixões mobilizam, nele, na imprensa e na crítica.
242
*
Texto inédito. Configura um projeto de pesquisa em desenvolvimento.
243
produções culturais da primeira metade dos anos 70, que, aliás, não deixavam de opor-
se ao Brasil do milagre econômico.
Ao lado dessa atividade multifacetada, continuou a desenvolver-se a produção
do sistema da arte, com o expressivo incremento da indústria cultural – em parte
articulada às iniciativas da política oficial de cultura, que, por meio de um programa de
ação cultural e da proposição de uma política nacional de cultura, visava tanto um
relacionamento com os meios artísticos e intelectuais como um aproveitamento das
novas possibilidades técnicas para a efetivação das idéias de cultura nacional e
identidade cultural. Simultaneamente, surgiam modalidades e formas diversas de
produção alternativa, nas artes, no jornalismo, nos movimentos sociais.
Importa, assim, ressaltar produções que, atuando nas margens ou à margem do
sistema artístico, desenvolveram e especificaram atividades culturais e experimentações
que vinham das décadas anteriores, seja tentando manter, ressignificando, ações
políticas – alvo da forte repressão e censura do regime militar –, seja explorando as
possibilidades técnicas dos novos meios e linguagens, às vezes situando nas
transformações dessas linguagens a resistência política.
Respondendo às novas condições da sociedade, especialmente ao alinhamento
do país à lógica cultural da sociedade de consumo, a complexa e variada produção
artística, agora inclui, sem preconceitos, como elemento constitutivo de
experimentações, de teorizações e da crítica, os pressupostos, as regras e as técnicas da
indústria cultural. Institucionalização da cultura, consumo e experimentação,
especialmente quando pensados – nas artes plásticas, por exemplo – em relação a obras
ou manifestações efêmeras, conceituais e comportamentais, evidenciaram problemas
ético-estéticos – além dos simplesmente técnicos, de realização, de distribuição ou
exibição – que questionaram a tentativa de constituição de um amplo sistema da arte,
especialmente de um emergente mercado, que logo se mostraria inconsistente. Ao
mesmo tempo, tal composição iria discutir a viabilidade, a eficácia crítica e o poder de
resistência de toda a produção que se queria alternativa. Assim, a produção artístico-
cultural dos 70, longe de um suposto vazio, instaurou um processo extensivo de
invenção e de reelaboração que, pela conjugação ou pelo desenvolvimento paralelo de
três direções – política oficial de cultura, indústria cultural e cultura alternativa –
244
***
1
Este fragmento inicial foi publicado no catálogo do evento “Anos 70: Trajetórias”, São Paulo, Itaú
Cultural, out. 2001.
2
Cf., por exemplo, MICELI, Sérgio (org.). Estado e Cultura no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1984; ORTIZ,
Renato. A Moderna Tradição Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1988.
245
tropicalismo não guarda relação imediata com o “pós” que em breve identificará no
Brasil o “pós-modernismo”, embora em alguns aspectos vão se aproximar. Dentro do
que mais propriamente pode-se chamar de “cultura alternativa”, que se expandiu
durante toda a década de 70 – do underground às expressões mais politizadas, como as
do jornalismo político-cultural de “Opinião”, “Movimento”, etc –, pós-tropicalismo
identifica aqui um tipo de produção artística aliada a posições culturais e
comportamentos (“vivências”) que derivam diretamente das proposições tropicalistas,
do marginalismo de Hélio Oiticica, das proposições artístico-terapêuticas de Lygia
Clark, de certas informações da poesia concreta, dentre outras.
Portanto, trata-se de pensar a especialidade da produção dita pós-tropicalista, no
horizonte mais vasto da cultura alternativa. Precisamente: em quais produções artísticas
pode-se flagrar modos de articulação do experimentalismo dos anos 60, especialmente
aquele do tropicalismo, aos rituais da “nova sensibilidade” contracultural, às condições
novas do circuito de arte, ao jogo com o mercado e, finalmente, a uma certa significação
política que se diferencia daquela dos anos 60.
Quanto a este último aspecto, político, pretende-se discutir e criticar uma
interpretação feita no final da década por Luciano Martins, no ensaio “A Geração AI-5”,
em que fala de um “vazio cultural” – expressão com a qual pretende caracterizar o a-
politicismo da juventude dos anos 70 a partir de três práticas determinantes para o
comportamento: o uso das drogas, a desarticulação do discurso e o modismo da
psicanálise3. A questão, talvez, deva ser pensada através de outros vetores, sem que se
desprezem os citados. É preciso interpretar o que significava no período
“marginalidade” e, principalmente, na atividade artística, o sentido das expressões
variadas de desestetização da arte e de estetização dos comportamentos.
***
3
MARTINS, Luciano. “A Geração AI-5”. Ensaios de Opinião – 11, set. 1979.
246
“Ficaram os despojos vivos, uma infinita massa colorida, de gestos, costumes, formas de pensar,
de amar, de ver o mundo, que estão para sempre assimiladas às consciências das jovens
gerações. A Cultura morre nos museus, mas se eterniza dentro do corpo. Jimi Hendrix antes de
morrer disse numa entrevista ao Rolling Stone que o negócio já não era mais aquele que era
outro, que ele não sabia qual era, mas que vinha aí. John Lennon declarou, numa tremenda ego-
trip que o sonho tinha acabado. E continuou vivo, à procura de outros sonhos, pois sabe que
continua vivo, e que enquanto há vida haverá sonho. E para sonhar basta não ter medo da
imaginação”.
4
JABOR, Arnaldo. “Debaixo da Terra”. Pasquim, no. 131, 4-10/01/72.
5
BRITO, Jomard Muniz de. Escrevivendo, Recife: mimeo, 1973.
247
***
248
“O espectador deve produzir, dentro de si, aquilo que a obra promete mais ainda não deu. Assim,
o espectador é o centro de um procedimento que trata e adquire a obra somente enquanto
hipótese, para permitir o gesto criativo do objeto: a obra. E a fruição acontece entre o gesto
sádico de apropriação e o gesto eletivo da escolha. Escolha que no caso significa sempre
exclusão”.6
6
OLIVA, Achille Bonito. “A arte e o sistema da arte”. Malasartes, n. 2, 1976, p.25.
249
7
SANTIAGO, Silviano. “Abutres: a literatura do lixo”. Revista de Cultura Vozes, ano 66, v. LXVI, no.
10, 1972, p.23.
8
CHKLOVSKI, cit. por Silviano Santiago, loc. cit., p.23.
250
9
LYOTARD, J-F. “Esquisse d’une économique de l’hiperréalisme”. Dispositifs Pulsionnels, Paris:
U.G.E., coll. 10/18, 1973.
10
OLIVA, A.B., art. cit. , p.25.
11 cf. FAVARETTO, Celso F. “Nos rastros da tropicália”, Arte em Revista, Ano 5, nº 7, ago. 1983, p. 34-
35.
251
*
Revista Temporaes (Um laboratório de História). Ano V, Edicão Especial n. 2. FFLCH-USP /
Departamento de História, 1996, p. 24-30.
253
Nesta cena, o jovem (na verdade, o estudante) muda a sua posição: não é mais aquele
que marcha para o futuro segundo as promessas do país “em desenvolvimento”; é
aquele que compromete o seu destino com o destino do país. Nasce a imagem do
“jovem participante”, indicando um outro comportamento, individual e social.
Dentre as manifestações artísticas surgidas naquele momento, a música de
protesto e denúncia (e também de esperança no “dia que virá”) se sobressai. A música
passou a ser o canal mais adequado para a veiculação de projetos políticos, exatamente
porque a canção popular sempre foi no Brasil a modalidade artística com maior
penetração pública, em todas as camadas da população. Geralmente líricas, misturando
informações da bossa nova a ritmos populares, a música de protesto já é significativa
antes mesmo de 64. O golpe só fez crescer a sua importância, pois é com ela que, em
grande parte, vai-se responder e reagir ao regime militar, à censura e à repressão. Por
outro lado, a recente implantação, em 65, da TV Globo, impulsionando o
desenvolvimento da indústria cultural, favoreceu a evidenciação dos espetáculos
musicais, dando origem aos festivais de música popular por exemplo, onde a canção de
protesto terá um lugar (ainda que contraditório e problemático) de apresentação de suas
mensagens.
O surgimento do tropicalismo em 67 não só provocou mudanças na situação da
música popular no Brasil, colocando em discussão os limites da eficácia da canção de
protesto, como marca a chegada e a absorção mais incisiva das contribuições do rock,
até então experimentados de forma apenas superficial pela Jovem Guarda de Roberto e
Erasmo Carlos. A complexidade do tropicalismo provém de sua intervenção nos modos
de se fazer canção no Brasil, pela explicitação da função crítica da canção. É a própria
materialidade da canção que é modificada com a introdução de procedimentos de
vanguarda (musicais, teatrais, cinematográficos, poéticos), com a absorção do rock, dos
instrumentos eletrônicos, da encenação etc. Além disso, a explicitação do político na
canção é diferenciada: não mais há o emprego de meios didáticos de denúncia e
conscientização, mas a proposição de um conjunto sincrético de imagens disparatadas
que, referindo-se à “realidade brasileira”, ao mesmo tempo a estilhaçava.
Não só pelas inovações musicais o tropicalismo apareceu como transgressão;
também pelo modo como os artistas se apresentavam: roupas extravagantes, gestos
provocativos e mesmo obscenos, cabelos desgrenhados compunham uma linguagem de
rebeldia, de mau-gosto (segundo os padrões), de cafonice, de desafio. Nas músicas, os
temas eram coerentes com a atmosfera gerada nos espetáculos: crítica à sociedade de
255
ANEXO
*
Travessia – Revista do Migrante. São Paulo: Centro de Estudos Migratórios (CEM), ano VI, n° 17,
set/dez 1993, pp. 11-4.
1
Dorival Caymmi. “Saudade da Bahia”, 1957. “Peguei um Ita no Norte” é de 1945, e a de Caetano (e
Gil), de 1968.
2
Luis Gonzaga e Humberto Teixeira. “Asa branca”, 1952.
3
A distinção é de Walnice Nogueira Galvão, em “MPB: uma análise ideológica”. Aparte, Tusp, maio-
junho 1968.
259
4
Patativa do Assaré. “A triste partida”, 1965.
5
Venâncio, Corumba e J. Guimarães. “O último pau-de-arara”, 1956.
260
6
Edu Lobo. “Borandá”, 1966.
261
Nos versos: “Vendi meus troços que eu tinha / O resto eu dei pra guardar / Talvez eu
volte pro ano / Talvez eu fique por lá”, flagram-se dois índices de relativização desse
mito: o óbvio talvez e o modo da enunciação. Caymmi duvida da volta mesmo antes de
ir. Depois, mudando o tempo verbal, reitera o que estava implícito na dúvida: “Tou há
bem tempo no Rio / Nunca mais voltei por lá / Pro mês inteiro é dez anos / Adeus
Belém do Pará”. A música é puramente descritiva, não constrói estados de alma, não há
saudade nela; é antiilusionista. Em “Saudade da Bahia”, embora o tema seja a saudade e
um certo lamento, – pois “se escutasse o que mamãe dizia” não teria partido, não teria
saudade da Bahia, e embora diga que “pobre de quem acredita / na fama e no dinheiro
para ser feliz” (entenda-se, o que se procura no Sul) –, ele observa: “a gente faz o que o
coração dita”; isto é, “esse mundo é feito de maldade e ilusão”, mas a gente faz o que é
imperioso, o que é ditado pelo desejo. E aí, nem a saudade tem poder; pode-se apenas
“desabafar”, transformar o sofrimento representando-o na linguagem e no canto. Em
Caymmi é bem claro que não há nunca volta: parte-se por decisão, por imposição de
construir a vida para além da melancolia. Com seu lirismo descritivo Caymmi é
tranqüilo e feliz num presente contínuo.
Em “Triste partida” há também um índice interessante: falando do “nortista, tão
forte, tão bravo”, observa que dá pena vê-lo “vivê como escravo / No Norte e no Su”.
Faz, na música, um inventário das desgraças do Norte e da dor de partir; mas também da
vida em São Paulo onde “Trabaia dois ano / Três ano e mais ano / E sempre nos pranos /
De um dia voltá. Mas nunca ele pode, só vive devendo / e assim vai sofrendo / A sofrê
sem pará”(...) O tempo rolando, vai dia, vem dia / E aquela famia / Não volta mais não”.
A desilusão acaba em desistência; pois tanto faz no Sul como no Norte, é tudo igual. O
mito da volta é destruído pelo princípio de realidade. E, na famosa “Paraíba” (Luiz
Gonzaga e Humberto Teixeira, 1962) a partida é deliberada e sem dramas, como fica
indiciado no “vim’embora”: “Quando a lama virou pedra / E mandacaru secou / Quando
ribaçã de sede / Bateu asas e vuou / Eu entonce vim’embora / Carregando minha dor”.
A ausência de drama é reiterada quando diz que “meu bodoque num quebrou” e que
hoje apenas manda “um abraço / Pra ti pequenina / Paraíba masculina / muié macho,
sim senhor”.
É no Tropicalismo dos anos 1967/68 que as ambigüidades rastreadas se
radicalizam, configurando em sua plenitude o terceiro tipo de canções que tratam da
partida para o Sul. O tema é explorado sem recurso a nostalgias, melancolia e
depressão. São músicas afirmativas; incidem sobre o presente, abertas para um futuro
263
*
Inédito. Texto elaborado a partir de comunicação na mesa redonda “Espaços expositivos: lugares
específicos de educação”, do “Seminário Internacional sobre Ação Educativa em Instituições Culturais”.
Organização conjunta do Serviço Cultural doMuseu do Louvre, Paris, e Instituto Itaú Cultural. São Paulo,
28/11/2000.
268
fragmentação, para uma espécie de unidade da experiência prometida pela arte – talvez
aquela promessa de felicidade de que fala Stendhal
A função educativa destas instituições culturais não pode ser pensada como
supletiva, como preenchendo lacunas das instituições escolares, do sistema regular de
educação, pública e privada. Estas, supõem, por princípio, a continuidade dos
conhecimentos e da formação, sistematizadas conforme ideais, princípios, objetivos e
valores articulados por uma concepção pedagógica psico-social, além de filosófica-
existencial. Já as instituições de que estamos tratando, museus, institutos, fundações,
etc.,dedicadas especificamente , ou especialmente, à produção artística, e, muito
particularmente, à arte contemporânea, devem dar conta do desnível entre a experiência
propiciada pela arte contemporânea – que são pontuais, implicando continuidade mas de
outra espécie, por blocos, módulos – e o horizonte de expectativas do público1.
As expectativas do público são fortemente marcadas pelas modalidades artísticas
difundidas pelo sistema midiático, com tudo o que isto implica em termos de relação
consumista, modista e de generalização estética que atinge e torna artísticos objetos de
proveniência diversa – mas também com tudo o que isto implica de abertura do campo
artístico e de possibilidades amplas de informação e de comunicação. Coloca-se aqui a
contribuição potencial das novas tecnologias para o desenvolvimento de atividades de
participação dos visitantes, com sua grande diversidade, o que impõe requisitos para a
produção das atividades. É muito importante considerar também os limites destas novas
tecnologias na formulação e realização das funções educativas, pois não se pode
considerar o valor dos media em si mesmos. Daí a necessidade de se definir a
colaboração necessária entre os especialistas da comunicação e da multimídia e os
produtores culturais das instituições em pauta. Pois, se de um lado, pode-se dizer que as
novas tecnologias constituem uma ocasião excepcional de “relançar a ação cultural e
educativa dos museus do terceiro milênio”2, de outro, “seria ilusório, ingênuo e perigoso
sacralizar as novas tecnologias”3.
Assim, atualmente, um dos esforços das instituições culturais dedicadas à arte
contemporânea consiste em estabelecer processos de acompanhamento ou de mediação
que facultem a possibilidade dos espectadores de acederem sensivelmente e
1
RECHT, Roland. “Le musée et l’initiation à l’art contemporain”.In. GALARD, Jean (org.). Le regard
instruit.Action éducatif et action culturelle dans les musées.Paris: La documentation Française – Musée
du Louvre, 2000, p.180.
2
GALLUZZI, Paolo, “Les nouvelles technologies et l’éducation hors les murs”. Id.ib.,p.140.
3
BOURDON, Alain. “L’usage éducatif d’un service en ligne: le cas de [Louvre.edu].Id.ib., p.152
269
reflexivamente a uma experiência estética específica. Isto requer, antes de tudo, uma
contextualização dos trabalhos – obras, objetos, instalações, proposições, ambientações.
Trata-se de um esforço de “situar a obra nas condições de sua gênese singular e, por
conseqüência, aproximar-se do horizonte de expectativas” do público e, assim,
“contribuir para apoiar a obra na história de uma dada sociedade”4
A constituição de um sistema de referências – por exemplo, pela justaposição de
obras contemporâneas e obras anteriores, antigas e modernas – permite muitas vezes
que o espectador faça uma espécie de viagem pelo interior de uma vertente produtora de
obras para localizar aquela obra contemporânea que está sendo apresentada. Em
resumo: como os espectadores de arte contemporânea, poderão apossar-se das
elaborações dos artistas, considerando que estes estabelecem, nos seus trabalhos, uma
relação entre as próprias operações e o processo de criação de alguns de seus
antecessores? Como acessar as regras que presidem os trabalhos contemporâneos, em
sua singularidade, senão evidenciando o sistema de referências a que se remetem ou em
que se incluem? Esta, talvez, seja a tarefa mais importante a ser realizada pelas
instituições dedicadas às artes visuais. Se as obras, sob certos aspectos, autônomas na
criação, não o são na recepção. Dessa maneira, pode-se dizer que a educação artística
propiciada pelas instituições de que falamos não pode reduzir-se ao domínio das
técnicas, procedimentos , estilos ou ao gosto. Nem pode, também, fornecer princípios
estéticos que formulem juízos de valor. A entrada na própria experiência artística é a
meta. Isto se dá através de mediações.
A mediação, enquanto processo de entrada no sistema de relações que preside o
trabalho dos artistas, exige métodos próximos daqueles que se efetuam nas escolas –
embora em outra chave,pois nestas a “aula” é atividade indispensável – ,aliados a outros
que devem responder diretamente à configuração dos espaços culturais das instituições.
Lugares de evidenciação da arte, especificamente dedicados a mostrar, exibir, eventuar
a arte contemporânea, já determinam uma qualidade de experiência artística
diferenciada. Se na escola, a arte comparece pelo seu possível valor educativo, como
uma articulação de signos aptos a mediar o processo de ensino e a aprendizagem, nas
instituições culturais ela afirma-se imediatamente pelo seu valor cultural. Nelas, “a ação
educativa não é um fim em si – ela deve colocar-se a serviço do museu [ou outro lugar
específico], cujo sentido a ultrapassam amplamente, mas que também a orientam”5.
4
RECHT,Roland. Loc. cit ,p.181
5
Id.ib. p.178
270
6
COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Iluminuras,1997,p.32-33
7
Cf. GALARD, Jean. “Beauté involontaire et. beauté prémédité”. Temps Libre 12. Paris,1984.
271
8
Cf. LYOTARD, J-F. Moralidades Pós-Modernas. Trad. bras. Campinas: Papirus,1996,p.31.
9
RECHT, Roland. Loc. cit. p.180-181
10
Idem, p.181
11
Cf. BRITO Ronaldo. “Pós, pré, quase ou anti?”. Folhetim. Folha de S.Paulo, 2/10/1983, p.6
272
A questão que se coloca aqui é a seguinte: dado o pressuposto de que a ação dos
museus e outras instituições culturais combinam os objetivos usuais de evidenciar a
produção artística e a ação educativa, como um requisito social incontornável, como
compatibilizar a especificidade e exigências da experiência estética com a utilidade das
ações educativas. Portanto, a reflexão sobre a experiência que se situa entre o trabalho
do artista e a sua absorção pelos usufruidores, numa situação considerada educativa,
implica a reflexão sobre as mediações articuladas pelas instituições dedicadas, como é o
caso, preponderantemente às artes visuais.
Faz bastante tempo, pelo menos desde Duchamp, que “a arte é um exercício
contínuo de desorientação”. As convenções e expectativas que envolviam a atividade
artística e, assim, a experiência estética que disparava, nunca mais foram as mesmas.
Desde então instalou-se “uma tensão entre o fenômeno artístico e a experiência
estética”, embora sabendo-se que essa tensão “não implica necessariamente uma
dissociação – por mais que essa separação tenha sido recorrente nos textos de vanguarda
– mas uma ampliação, levada a cabo por exigência das obras, da própria experiência
estética”1. Esta ampliação, que é especialmente relevante para o redirecionamento da
ação cultural a partir da experiência artística, veio se desenvolvendo prioritariamente em
duas direções: uma estetização generalizada – em parte difusa, típica da sociedade de
consumo , em parte comprometida com a reinvenção da vida, com a transformação das
estruturas perceptivas, vulto da desestetização e aplicação das categorias da obra de arte
a aspectos da vida cotidiana – , e uma outra, de reproposição da arte e da experiência
estética através das novas tecnologias. Estas direções frequentemente estão imbricadas,
e ambas são relevantes para se pensar hoje a experiência das obras e de outras
manifestações artísticas nos diversos espaços considerados educativos.
A estetização generalizada, difusa, típica das megalópoles e da sociedade de
consumo em geral, ressalta nas atividades artísticas não o valor das obras mas a
*
Inédito. Texto elaborado a partir de comunicação na mesa redonda “O acesso à experiência
especificamente artística”, do “Seminário Internacional sobre Ação Educativa em Instituições Culturais”.
Organização conjunta do Serviço Cultural do Museu do Louvre, Paris e do Instituto Itaú Cultural. São
Paulo, 01/12/2000.
1
OSÓRIO, Luiz Camillo. “Uma leitura contemporânea da estética de Kant”. In: CERÓN, Ileana P. &
REIS, Paulo (orgs.). Kant-crítica e estética na modernidade. São Paulo: Senac,1999,p.230.
273
2
LYOTARD, Jean François. Moralidades Pós-Modernas.Trad. bras. Campinas: Papirus,1996, p.27-31.
3
BRITO, Ronaldo. “Pós, pré, quase ou anti?”. Folhetim. Folha de S.Paulo, 2/10/1983, p.6.
4
GALARD, Jean. “Repères pour l’élargissement de l’expérience esthétique”. Diogène, 119, 1982, p.93-
94.
274
freqüentemente, não mais se refere ao vivido em favor da experiência virtual, com que
ocorre uma transformação radical no conceito de representação, devido à passagem do
ótico ao digital.5 Toda a questão é a seguinte: se as experimentações abertas pelas novas
tecnologias atingem a sensibilidade a ponto de relegar as imagens óticas ao passado ou
se ainda não estaríamos, na produção artística, na fruição e na crítica, imersos numa
visão acrítica das intersecções de arte e tecnologia. A nova ordem visual que estaria
aniquilando os modos consolidados de ver na arte desde a antiguidade não seria um
acontecimento do olhar, supondo outras regras de interação como experiencia estética,
um processo que tem como mediação o jogo. Como argutamente diz A. Fabrris, “os
ensaios das novas tecnologias redefinem a relação do fruidor com a obra, obrigando-o a
ter uma atenção concentrada num fluxo contínuo, que só pode ser apreendido em sua
totalidade, a introjetar a temporalidade proposta pelo artista, enquanto não é raro um
olhar transeunte sobre os produtos tradicionais, que nada mais fazem do que exibir
estruturas e relações perceptivas conhecidas a sobejo”6.
Face à situação estimulante provocada pela emergencia dos trabalhos que
incidem sobre as estruturas visuais, é significativa a proposição de A. Renaud – que as
novas tecnologias da imagem são “laboratórios experimentais da sensibilidade e do
pensamento visual”. Nelas estariam ocorrendo um alargamento da experiência estética
de dimensões nunca vistas, pelo menos desde o Renascimento, originando uma
discussão renovado sobre as categorias estéticas. As dificuldades apresentadas pela arte
contemporânea ao espectador são imensas, pois as categorias que identificavam as obras
e outras propostas artísticas, até mesmo nas vanguardas, são hoje aleatórias e ainda não
definindo um regime básico de absorção e fruição. Afinal, qual é a fruição esperada
dessas novas produções visuais? Para quem nelas busca algo semelhante à experiência
do belo, são decepcionantes. A experiência estética pertence agora a um novo regime:
“em direção a uma estética de procedimentos na qual o processo se impõe sobre o
objeto: a forma cede lugar à morfogênese; vivemos o fim da hegemonia do espetáculo
fechado e estável: a cenografia é substituída pela cenologia. Em direção a relações
5
RENAUD, Alain. “Nouvelles images, nouvelle culture: vers um ‘Imaginaire numérique’ (ou ‘Il faut
imaginer un Démiurgue heureux’)”. Cahiers Internationaux de Sociologie, v.LXXXII, p.125 e ss. Paris:
PUF, 1987. Cf. os comentários de Annateresa Fabris às idéias de Renaud em “Critérios de
contemporaneidade e novas mídias”, comunicação apresentada no workshop “Rumos Visuais I –
Investigações”, Instituto Itaú Cultural, 20/2/2000.
6
FABRIS, A. Art. cit., p.3.
275
7
RENAUD, A. Art. cit. ,p.126. Cf. cit. FABRIS, A. Art. cit.,p.1
276
A cena e a sala*
Não deixa de espantar o fato de o teatro permanecer tão vivo como nos seus
inícios, afirmando sua vocação de atuar no espaço público, mobilizando afetos e
pensamentos, deslocando-se da ética à política, investindo desejos e utopias. Parece que
a sua versatilidade para configurar os estados e modos de vida não cessa de produzir
efeitos, mesmo quando, como hoje, outros dispositivos parecem lançar este modo de
representação, ou de apresentação, dos movimentos humanos ao ostracismo, quando
não na obsolescência. Falamos das, assim chamadas, novas tecnologias de produção e
difusão de imagens, idéias e comportamentos, que, ao acenarem para uma mutação do
humano, parecem indiciar que alguma coisa como o teatro, como também a literatura,
estariam superados, por serem inatuais. E, no entanto, muito vivos, literatura e teatro
continuam agindo culturalmente, motivando reiteradas experiências, artísticas e
educativas.
Este livro é exemplo dessas tentativas que partem da recusa em aceitar que se
estaria simplesmente adiando a agonia do teatro; é, ao contrário, uma afirmação da
crença na eficácia das virtudes e virtualidades que ele efetiva e nos desdobramentos
sempre renovados das suas ações e pulsões. Focando a questão aqui abordada na
pedagogia do espectador, reativando e recodificando as estratégias, já clássicas, do
teatro épico em seus usos educativos, o que é proposto é o redimensionamento dessa
vertente crítico-criativa segundo uma certa teoria do contemporâneo, tendo em vista
certas experiências inovadoras, como a do Théâtre des Jeunes Années, em Lyon, o
Théâtre des Jeunes Spectateurs, em Montreuil e o Théâtre la Montagne Magique, em
Bruxelas, por exemplo, e as que o próprio autor do livro vem desenvolvendo há anos em
locais e circunstâncias culturais diversas.
Uma proposta como esta é uma tentativa de articular exigências artísticas, do
texto e da encenação, e pressupostos pedagógicos, centrados em atividades educativas
em torno dos espetáculos. O foco é a formação de espectadores, visando, no limite,
como resultado, uma intervenção reflexiva nos modos de estar e atuar culturais dos
*
Inédito. Texto sobre o livro de Flávio Desgranges, A Pedagogia do espectador (São Paulo: Hucitec,
2003). A ser publicado pela revista do Departamento de Teatro da ECA-USP.
277
*
Texto elaborado a partir de comunicação na mesa redonda “Pedagogia, psicanálise e arte
contemporânea”, do Simpósio “Psicanálise & Pedagogia”, no Congresso “Freud: Conflito e Cultura”,
organizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise. São Paulo, MASP, 15/10/2000. Publicado em
ASSIS, Bernadete A. de & MACEDO, Lino de. Psicanálise e pedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2002, p.171-175
282
1
LYOTARD, J-F. L'inhumain. Paris: Galilée, 1988, p.35
284
Aberturas
286
*
Inédito. Texto de uma conferência no Simpósio “A vida em cena: teatro e subjetividade”, integrante do
evento Porto Alegre em cena. Porto Alegre, Secretaria Municipal de Cultura / UFRGS, 21/9/2003.
287
1
Cf. Folha de S.Paulo, Ilustrada – A-37, 23/12/1987
2
WARIN, François. “La représentation de l’horreur”. Marseille: Lycée St. Charles, nov. 2001, p. 5.
3
Cf. a propósito a análise de O coração das trevas, COSTA LIMA, Luiz . O redemunho do horror – as
margens do ocidente. São Paulo: Planeta, 2003, p.212-27.
288
4
WARIN, F. Loc. cit.
289
5
Cf. “Para comer a sopa até o fim”. Jornal do Brasil. Idéias/Ensaios. 03/03/1991, p.4.
290
6
BAUDRILLARD, Jean . De um fragmento ao outro.Trad. bras. São Paulo: Zouk, 2003.
7
Cf. WARIN, F. Op. cit., p.5-6.
8
Cf. LYOTARD, J.-F. Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 16.
9
Cf. LYOTARD, J.-F. Moralidades pós-modernas. Trad. bras. Campinas: Papirus,1996, p. 29 e ss (col.
Travessia do Século).
291
10
BAUDRILLARD, J. Op. cit., p. 39
292
11
Cf. WARIN, F. Op. cit., p. 7
12
Id. ib., p.8
13
id. ib.,p. 26.
14
id. ìb., p. 20
293
15
LYOTARD, J.-F. Le postmoderne expliqué aux enfants, p.27.
16
Cf. FITZGERALD, F. Scott. “A derrocada” (The crack -up).In: A derrocada e outros contos e textos
autobiográficos. Trad. bras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 47.
294
17
LOURENÇO, Eduardo P. Loc.. cit.
18
De um fragmento ao outro, p.18
295
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