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Celso Fernando Favaretto

Moderno, pós-moderno, contemporâneo


na educação e na arte

Textos apresentados ao Concurso de


Livre-Docência, junto ao Departamento
de Metodologia do Ensino e Educação
Comparada, da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo

São Paulo
2004
Assim, eis-me aqui, na metade do caminho, [...]
Tentando aprender como empregar as palavras, e cada tentativa
É sempre um novo começar, e uma diversa espécie de fracasso
Porque apenas se aprendeu a escolher o melhor das palavras
Para o que não há mais a dizer, ou o meio pelo qual
Não mais se está disposto a dizê-lo [...]

(T.S. Eliot, Quatro Quartetos, “East Coker”)

A n’importe ce qui valut


Le blanc souci de notre toile

(Stéphane Mallarmé, “Salut”)

Ao Bruno, meu filho, pelos muitos


anos de apoio estratégico e suporte
técnico
Índice

Abertura.................................................................................................................5

Apresentação de um percurso crítico ..................................................................6

I – Moderno e pós-moderno na educação .............................................................34

Pós-moderno na educação? ................................................................................35


Sobre o pós-moderno na educação......................................................................40
Unidade e multiplicidade no debate sobre o pós-moderno ..................................47
[ANEXO] Nietzsche: uma estratégia da interpretação ...........................................53

II – Sobre o ensino de Filosofia..............................................................................57

Notas sobre ensino de Filosofia ..........................................................................58


Filosofia, ensino e cultura...................................................................................65
A Filosofia no ensino médio...............................................................................69

III – O moderno e o contemporâneo na arte.........................................................74

Notas sobre arte contemporânea .........................................................................75


Impasses da arte contemporânea.........................................................................83
Restauração e resgate na arte contemporânea .....................................................88
Arte do tempo: o evento .....................................................................................93
Poéticas da atitude – o transitório e o precário ....................................................98

IV – O moderno e o contemporâneo no Brasil......................................................101

Infortúnios da unidade.......................................................................................102
Modernidade e nacionalismo.............................................................................119
A estética do desvario .......................................................................................133
Modernidade, vanguarda, participação ..............................................................139
Das novas figurações à arte conceitual ..............................................................168
O espaço de Lygia Clark ...................................................................................175
[ANEXO] Sobre PanAmérica ..............................................................................181
Por que Hélio Oiticica? .....................................................................................187
Inconformismo estético, inconformismo social, Hélio Oiticica ..........................194
Transformar a arte, mudar a vida.......................................................................200
A música nos labirintos de Hélio Oiticica..........................................................206
Hélio Oiticica e a música tropicalista.................................................................220
Tropicália, cultura e política..............................................................................225
Tropicália revisitada..........................................................................................232
Sobre Caetano Veloso .......................................................................................235
Arte e cultura nos anos 70: o pós-tropicalismo ..................................................242
O tropicalismo, a contracultura, os alternativos .................................................252
[ANEXO] Imagens do migrante na música popular brasileira ..............................258

V – Sobre arte e educação......................................................................................266

Ação educativa em instituições culturais ............................................................267


Experiência estética e ação educativa .................................................................272
A cena e a sala ...................................................................................................276
Pedagogia, psicanálise e arte contemporânea......................................................281

Aberturas ...............................................................................................................285

Do horror: a cena contemporânea, resistência e criação ......................................286

Bibliografia.............................................................................................................296
5

Abertura
6

Apresentação de um percurso crítico

A idéia de moderno atravessa de ponta a ponta os textos aqui alinhados,


constituindo-se no foco das questões culturais, artísticas e educacionais discutidas. Estes
textos podem ser tomados como registros pontuais de um pensamento que vem se
fazendo em cursos regulares e, conforme demandas ocasionais, em seminários,
colóquios, mesas redondas e conferências. Espécie de work in progress, proliferante,
cada texto de determinado bloco vai incluindo correções, supressões e acréscimos, pois
todas as discussões tematizam uma mesma situação cultural, a contemporânea,
configurando uma interpretação que incide sobre os limites dos projetos, das teorias e
das operações modernas. Os textos pretendem evidenciar desenvolvimentos e
conseqüências de processos da cultura moderna, a partir da consideração de que as
pressuposições implicadas na modernidade foram se formulando e atualizando por um
trabalho que, dadas as suas inúmeras ambigüidades, ao mesmo tempo disseminava a
necessidade e as condições da crítica exercida continuamente pela modernidade sobre
seu próprio sentido.
As proposições em torno da idéia de pós-moderno e de algumas de suas
manifestações na cultura contemporânea, especificamente na arte e na educação, partem
também da exploração das ambigüidades, inerentes aos processos modernos e à própria
idéia de modernidade; mais claramente, situam-se perante a propugnação das teorias
pós-modernistas de um suposto “fim da modernidade”. Assim, referindo-se aos estados
de indeterminação da cultura e da arte, resultantes do que foi considerado fechamento
dos projetos e programas modernos, pós-moderno, pós-modernidade e pós-modernismo
são designações que indiciam e pretendem explicitar a crise dos pressupostos e
processos modernos. E o que é mais importante: evidenciam, com a análise das
figurações desses pressupostos e processos, a perda da confiança no futuro prometido
pela ênfase moderna no progresso incessante em direção ao perfeccionamento do
espírito e ao progresso da humanidade. Não distante disso, ao se atribuir a designação
contemporânea à arte recente – aquela que, segundo um critério histórico, vem depois
das vanguardas novas dos anos 1960-70 –, assim como ao se aludir, através dela, a
mudanças na experiência e na cultura, pretende-se indicar a aderência ao presente,
positivando uma atualidade como âmbito de efetuações que se produziriam como
7

mutações no pensamento, na sensibilidade e na linguagem modernas. Os textos situam-


se, assim, contra as tendências – teóricas, críticas, artísticas, culturais – que entendem a
crise do moderno como um resultado da perda de sua visada regeneradora fundada na
aposta do progresso, e o pós-moderno como reproposição de um passado, das promessas
modernas – resgate de princípios e conquistas que teriam sido abandonadas pelas
mitologias modernistas –, ou como realização do projeto moderno, ainda inacabado.
A discussão sobre os limites da modernidade e a análise de manifestações de sua
crise, simultânea à mais radical efetivação de seu ímpeto – de realização do novo pela
ruptura –, já aparecia na dissertação de mestrado1, onde a análise do tropicalismo,
centrada nas questões surgidas da composição efetuada entre renovação artística e
crítica cultural, situou-se num horizonte teórico-crítico apto para explicitar o ponto de
inflexão dos projetos artístico-culturais modernos, comprometidos com o tema da
“invenção” do Brasil, através da problematização do conceito compósito de “realidade
brasileira”. Examinava-se aquele momento histórico em que se apresentaram as mais
radicais e artisticamente sofisticadas manifestações da intersecção de experimentalismo
artístico e crítica cultural, articuladas em torno de intenções e projetos de ruptura social.
Considerava-se, também, que faziam parte daquele impulso crítico-criativo os sinais da
diluição das propostas e ações políticas comprometidas com os projetos de intervenção
e transformação da realidade, seja devido à reflexão sobre a caducidade dos efeitos de
choque e ruptura mobilizados pela arte de vanguarda, seja pela sensação de que os
projetos e ações estavam prenhes de ilusões, pois o intuito revolucionário que as
comandava era mais visionário que prática efetiva.
Apesar das ambigüidades implicadas nas suas proposições, principalmente
quanto ao modo de pensar e efetivar a crítica dos passadismos – sinteticamente, pelo seu
modo de articular e figurar os conflitos entre temas, técnicas e linguagens arcaicas e
modernas –, integrando os processos das comunicações de massa e da indústria cultural,
o tropicalismo produziu a representação mais complexa e significativa das propostas
artísticas e dos debates culturais que tensionaram por décadas a intelligentsia brasileira.
Ao mesmo tempo que as atitudes de vanguarda aí se manifestaram com intensidade e
radicalidade típicas, considerava-se que a sua maneira de entender os processos
artísticos e culturais já indiciava, em algumas proposições, um deslocamento da
produção artística para um estado que, pouco tempo depois, foi identificado, por

1
Tropicália: alegoria, alegria. FFLCH-USP, Departamento de Filosofia, 1978. Publicado em 1979 pela
editora. Kairós. 3. ed., Ateliê Editorial, 2000.
8

algumas tendências críticas, como pós-moderno, também entendido como de abertura


do campo contemporâneo na arte brasileira, na criação e na crítica.
Na tese de doutorado2, examinou-se a passagem das propostas da vanguarda
brasileira das idéias e operações radicalmente modernas para uma outra posição, que
embora mantendo a radicalidade experimental, até exacerbando-a, transfigurava,
contudo, a significação cultural da arte – pois, na nova situação cultural, manifestava-se
a perda da eficácia do valor do novo e da ruptura, com o conseqüente obscurecimento
daquilo que distingue a modernidade, ou seja, a crítica. A análise da produção de Hélio
Oiticica encaminhou-se, devido ao sentido de suas obras, da identificação de sua
exemplaridade na compreensão das tensões da vanguarda brasileira assinaladas pela
atividade tropicalista às contribuições para a dissolução do que aparecia como um
“projeto moderno”.
Esta foi a linha do trabalho que se impôs. Para a sua efetivação, foram
estratégicas as idéias de J-F. Lyotard sobre a questão do pós-moderno, tanto para cifrar
a análise da trajetória de Hélio Oiticica – situando-a no horizonte da mais importante
tendência artístico-cultural brasileira dos anos 1960-70, a construtiva –, quanto para
enfatizar o tema do fechamento das vanguardas e abertura do campo contemporâneo.
Tratava-se então de examinar, a propósito das questões tematizadas nos diversos
trabalhos, particularmente daquelas surgidas na tese de doutorado, como a confiança no,
assim chamado, “projeto construtivo brasileiro” – nas diversas acepções teóricas em que
foi tomado e na diversidade de suas produções – formulou-se na vanguarda brasileira.
E, a partir daí, tratava-se de investigar o que nas artes e na cultura poderia ser
identificado como um “além do moderno” ou, mais propriamente, um “depois do
moderno”. Impunha-se, finalmente, a necessidade de perguntar sobre o destino daquele
“imperativo de modernização” que mobilizava o esforço permanente de atualização
estética e cultural, que vinha sendo levado a efeito no Brasil pelo menos desde os anos
de 1920.
Assim, foi inevitável que a linha de pesquisa configurada nos textos, cursos e
outros eventos, a partir dos problemas levantados na tese de doutorado, tenha se
concentrado na exploração de vários aspectos das concepções pós-modernistas. Além
das questões artístico-culturais, também as preocupações, que vinham de longe, em
torno da renovação da educação motivaram a inclusão de questões relativas à incidência

2
A invenção de Hélio Oiticica. Idem, 1988. Publicado pela Edusp, 1992; 2. ed. 2000.
9

das teorias pós-modernas na crítica das concepções tradicionais de educação e de


formação, assim como na proposição de novas orientações do ensino e da pesquisa
requeridas para responder aos desafios contemporâneos.
Nas tentativas de elaboração, em alguns textos preponderantemente teóricos, do
debate sobre o moderno e o pós-moderno, a linha de investigação central continuou a
ser aquela que vinha desde o mestrado: análise da estratégia cultural moderna brasileira,
armada desde o modernismo, tentando explicitar seus pontos de tensão, como por
exemplo o implicado na intersecção de nacionalismo e experimentação artística. Não se
exclui, entretanto, nesta via de análise, a tentativa (ou a tentação?) de surpreender os
sintomas de um “outro moderno” que estaria surgindo com a crítica dos projetos e
experiências modernas. Não é outra a orientação de pesquisa mobilizada nos textos e
atividades acerca da educação e do ensino contemporâneos. Os textos curvam-se sobre
este arco, seja pensando uma reproposição da educação, particularmente das estratégias
de ensino de filosofia, seja pensando, a propósito da arte depois das vanguardas, as
mudanças que estão ocorrendo nas concepções e práticas do ensino de arte, decorrentes,
talvez, da relativização do valor, tacitamente aceito, da arte como um princípio
indispensável da educação 3.
A matriz teórica dos textos procede da mesma tópica em que se situaram os
trabalhos de mestrado e doutorado, tendo como referências marcantes e decisivas, em
termos de elaboração conceitual, idéias de Lyotard, Deleuze, Foucault e Benjamin. A
discussão armou-se a partir do debate entre Habermas e Lyotard, tal como aparece,
resumidamente, nos textos respectivos, “Modernidade versus pós-modernidade” e
“Resposta à questão: o que é o pós-moderno?”. A estratégia interpretativa, que surgiu
no texto “Nietzsche, uma estratégia da interpretação” e foi paulatinamente definida nos
textos seguintes, partiu da apropriação de um comentário de Foucault a uma passagem
de Nietzsche, sendo depois estendida aos textos que trataram da questão do pós-
moderno na arte e na educação. A contraposição entre as ilusões da modernidade e a

3
Reiterando o que já foi assinalado, pode-se imediatamente notar que os textos sobre a questão do pós-
moderno na educação e na arte apresentam repetidamente a mesma discussão, embora alterada em função
de cada ambiente ou situação em que circulou, dentro ou fora da universidade. Adição ou supressão de
passagens indiciam a proliferação de uma posição crítica pensada para ser lida em blocos de textos, cada
um configurando uma discussão, ora na educação, ora na arte. Por vicissitudes diversas, vários textos
nunca foram publicados. Em relação aos já publicados, é bom observar que as notas de rodapé foram
praticamente mantidas como estavam nas versões originais. em certos casos, houve pequenas alterações
na formatação de referências bibliográficas, mas não houve normalização. A bibliografia geral ao final
deste volume traz todas as referências de maneira normalizada.
10

indiferença pós-moderna configura o espaço em que medraram os interesses teóricos e


os procedimentos analíticos fixados no movimento dos textos aqui reunidos.
As motivações que os engendraram vinham, contudo, de longe, da “década de
60”: a aposta nas possibilidades modernas de transformação do homem e da sociedade
levara a investimentos cheios de fervor, de que o compromisso com a renovação
educacional e a adesão aos projetos e programas artísticos de vanguarda eram a sua
mais completa tradução. E, ainda que a transformação do homem e do mundo estivesse
emblematizada nas utopias político-sociais, e alegorizada nas atividades artísticas, a
aposta fundamental estava na educação – na crítica das pedagogias essencialistas, na
proposição de concepções e práticas renovadoras – e na mudança dos comportamentos.
O cenário das ações, ou melhor, o locus da emergência de discursos e ações, na arte e na
educação, na política e na cultura, estava na vida cotidiana; ou seja, na experiência de
um presente descontínuo impulsionado pela crença no movimento de transformação,
que se pretendia portador de eficácia imediata e, simbolicamente, com poder de gerar,
nas representações artísticas, uma imagem do futuro. A conjugação de arte e educação
parecia compor imagens de uma destinação, do esforço de reversão da ordem cotidiana
e dos destinos gravados no país.
No final daquela décadas, a adesão aos projetos e práticas culturais, artísticas e
educacionais foi sendo alvo de dura crítica, encontrando no tropicalismo uma via
sugestiva de rearticulação. A questão do estetismo – da estetização da vida cotidiana, da
relação arte-vida, da mudança dos comportamentos – surgiu como uma via produtiva de
rearticulação daquela utopia em que arte e educação confluíam, pois, até então, parecia
evidente que o esforço de modernização social e a vontade de acesso à modernidade
cultural no Brasil deveriam construir-se a partir de um projeto essencialmente
pedagógico, proveniente da crença moderno-iluminista no poder transformador da
educação. Entretanto, se o compromisso com as experimentações educacionais, o
entusiasmo com a arte de vanguarda e a adesão aos projetos culturais transformadores
foram naturais, inevitável foi também a sua derrocada.
Os textos sobre música, literatura, teatro, artes plásticas e educação têm todos
esta origem. Alguns, mais afirmativos, acentuam a invenção, o novo, a ruptura, a crença
moderna no valor da crítica; outros, mais reticentes, fundados na historicidade dos
dispositivos modernos, principalmente dos projetos e dos programas, acentuam as suas
insuficiências para dar conta da situação contemporânea. Tomando como suposto a
corrosão das “grandes narrativas” modernas e do seu poder de transformação, tentam
11

investigar, nas novas condições de produção, as possibilidades da emergência de um


“outro novo”, sem contudo descurar da aposta paradoxal implícita no tratamento das
questões. Daí a pergunta: o que acontece quando uma “modernidade sólida” se
liquidifica4, e, apesar disso, tudo, no fundo, permanece moderno? Eis aí o embaraço
implicado na postulação do pós-moderno.
O enfoque desenvolvido na tese sobre Hélio Oiticica é exemplar, pelo modo
como pretendeu mostrar o processo de afirmação-diluição da modernidade na produção
artística do final dos anos 60. O próprio aparato analítico empregado pretendeu ser
homólogo às transformações evidenciadas. Acompanhando os desenvolvimentos do
trabalho do artista, figurando a passagem do mais alto grau de experimentação
moderna-vanguardista a outra posição que não mais implicava um “projeto moderno”, a
análise vai se formulando como interpretação sintomática. Na trajetória experimental de
Hélio Oiticica é clara a passagem de uma posição construtivista – que enfatizava o
estrutural, tanto no aspecto formal como na sua concepção da articulação arte-vida,
cifrada no problema da participação – para uma outra posição que enfatiza a abertura
estrutural, o “desinteresse pelas estruturas” em favor da “vivência”, mantendo, contudo,
o sentido de construção. O desinteresse pelas estruturas encaminha-o para outra sorte da
relação arte-vida: aquela que ultrapassa a proposição da simples inclusão dos
espectadores nas obras com a reproposição da participação, da centralidade do
comportamento na elaboração das experiências – o que ocorreu a partir da instalação-
manifestação-projeto ambiental Tropicália – com que rompe definitivamente as
circunscrições estéticas, articulando arte e vida segundo uma poética do instante e do
gesto. Assim, à mudança das categorias artísticas deveria corresponder a mudança das
categorias de análise. Seria este um procedimento, artístico e crítico, pós-moderno?

***

Os textos aqui reunidos alinham-se nesta perspectiva. O que neles vai se


desenhando é uma interpretação sobre processos que modalizam os dispositivos
modernos, agora livres do mito e da utopia. Abrem-se, então, em diversas direções de
trabalho, dentro de uma mesma linha de pesquisa, desenvolvida segundo as referências
teóricas primordiais, já enunciadas. Uma primeira direção é a constituída pelos textos

4
Referência à expressão “modernidade líquida” de Zygmunt Bauman. Cf. entrevista do autor a Maria
Lúcia G. Pallares-Burke, “A sociedade líquida”. Folha de S.Paulo, Mais!, 19/10/ 2003, p. 5 e ss.
12

que retomam questões em torno do tropicalismo e da atividade de Hélio Oiticica,


diferenciando, estendendo e investigando aspectos acentuados, ou não, nos estudos
anteriores. Uma questão intrínseca a estes trabalhos foi isolada e configurada como um
projeto de pesquisa, inicialmente com o apoio do CNPq. Trata-se de uma reflexão sobre
o que poderia ser entendido por “arte contemporânea”, que motivou alguns textos,
incluídos nesta coletânea – na verdade, versões de um texto-base que vão alargando a
mesma discussão. Na mesma direção, comparecem textos que enfocam períodos ou
aspectos da “modernidade brasileira”, estendendo os estudos seminais sobre o
tropicalismo e Oiticica. Um texto sobre o romance Quincas Borba de Machado de
Assis, escrito para um seminário na Universidade do Texas, aparentemente deslocado
desta discussão, tomou, entretanto, o mesmo rumo interpretativo, a partir da mesma
referência teórica dos textos sobre artes plásticas, música e literatura de vanguarda.
Outra direção é determinada pela reflexão sobre as diversas posições do debate sobre o
pós-moderno, aplicando-a ao domínio da educação e dos discursos pedagógicos.
Motivou textos em que se incluem algumas proposições específicas sobre o ensino de
filosofia e de arte.

***

Uma mesma tônica teórico-interpretativa esteve na base desses textos: o


conceito freudiano de perlaboração (Durcharbeitung) tal como foi apropriado por J-F.
Lyotard em alguns textos, especialmente em “Reescrever a modernidade” – conceito
que se mostrou fecundo para entender e desenvolver um ponto de vista sobre o “depois
do moderno”, ou seja, para pensar produtivamente a questão do pós-moderno. Esta via
da interpretação funda-se no suposto de que o grande trabalho moderno, enquanto
projeto e utopia de realização das promessas da razão iluminista, chegou a um impasse:
perdeu o impulso que gerou a modernidade cultural e fracassou enquanto projeto
totalizador da experiência. Segundo a crítica irônica de Lyotard a Habermas, não se
poderia mais sonhar com uma unidade que lançasse uma ponte sobre a diferenciação e a
multiplicidade das manifestações culturais, artísticas. Liberada dos imperativos e
projetos modernos, especialmente os vanguardistas, as experiências contemporâneas,
também desidealizantes, navegam no indeterminado, tendo que definir, conforme uma
idéia sugestiva de Lyotard, enquanto se fazem, as regras e categorias que as
singularizam e que permitem o seu julgamento. Sem projetos totalizadores, estas
13

atividades vivem de surpresas e incertezas, entre a inquietação e a indiferença, ansiando


freqüentemente por um preenchimento, por uma espécie de suplemento de sentido, para
dar conta da sensação de irrisão que as domina.
A análise que elabora esse mal-estar, da arte, da cultura e do saber, põe em
destaque o processo complexo que acontece nesta situação: a impossibilidade do novo
leva à reproposição e à análise dos princípios modernos, ainda ativos, para
repotencializá-los segundo as condições presentes, do imaginário e da história.
Entretanto, o trabalho da rememoração é insuficiente para reativar os princípios, pois
freqüentemente apenas presentifica, resgatando, o recalcado da história, ou os cacos da
experiência moderna, podendo assim apenas perpetuar o passado, nostalgicamente.
Analisar é processo de escuta, que resulta da interação discursiva da rememoração e do
tumulto dos acontecimentos do presente. Neste processo, o mais importante é a atenção
aos modos da enunciação, com que se redimensionam os enunciados fixados, abrindo-
os para um sentido impressentido
Assim, os textos aqui reunidos, tematizando obras e teorias artísticas, discursos e
práticas educativas, configuram estratégias culturais modernas e táticas
contemporâneas, saídas do debate sobre o pós-moderno. Ressaltam o atrito da
linguagem na experiência e a pergunta sobre a legitimação de enunciados
suficientemente aptos para figurar modos de elaboração do saber numa situação em que
vige a indeterminação. Uma hipersensibilidade aos signos da experiência e aos efeitos
de linguagem compõe um campo de ressonâncias em que as intensidades forçam o
pensamento para articulações de discursos e vida. Assim, o ponto de acumulação de
onde se fala é aquele que privilegia os modos da enunciação, que retém o movimento
vivo dos acontecimentos, ou seja, as ressonâncias de um espaço de signos, emitidos em
toda parte, constituindo-se em lugar de emergência de novas relações. A estratégia
enunciativa que atravessa a produção dos textos, vale dizer, a maneira de fazer teoria,
atravessando textos e referências, deles se apropriando, conforme a necessidade
discursiva, feita às vezes por associação, encontrou, como já foi dito, uma formulação
satisfatória a partir de um comentário de Foucault sobre a presença de Nietzsche em seu
pensamento: um modo de associar signos e referências gerando uma linguagem em que
operam sintomas.

***
14

Na entrevista, “Sobre a prisão”, referindo-se à marcante presença de Nietzsche


em seu pensamento, diz Foucault provocativamente: “quanto a mim, os autores de que
gosto, eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode ter com um
pensamento como o de Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger,
gritar. Que os comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse”5.
É este modo abusado de apropriação, que, aliás, lembra muito a fala de Oswald de
Andrade no “Manifesto Antropófago” – “Só me interessa o que não é meu. Lei do
homem. Lei do antropófago” –, que informa a estratégia utilizada nos textos. Considera-
se que discussões como as de Habermas e Lyotard sobre o pós-moderno servem para
desenvolver reflexões sobre educação e arte, não por uma simples aplicação de teorias a
obras ou manifestações culturais, mas por uma elaboração em tudo devedora a um modo
de apropriação produtivo, até mesmo antropofágico. E, tendo em vista que o foco dos
textos é a tentativa de pensar uma teoria do contemporâneo, ou, pelo menos, uma
figuração de suas possibilidades, tais reflexões partem, com Deleuze, da crítica
nietzschiana do platonismo. Segundo Foucault, o platonismo como fenômeno cultural
implica a idéia de regulação, que, tornada “modo de vida”, teria levado a consciência
moderna ao repouso do pensamento, à supressão do mal-estar, à renúncia da curiosidade
e à fuga ao perigo6. Esta é uma interpretação que tem tudo a ver com uma pesquisa
interessada em pensar os problemas decorrentes da estetização da vida cotidiana,
especialmente as repercussões na educação e nos comportamentos.
Neste sentido, algumas idéias de Michel de Certeau foram muito úteis,
especialmente as que valorizam em Foucault a proposição de um dispositivo que
articula “um discurso sobre práticas não discursivas”, fazendo-as falar. Como um
caçador armado de estratégicas e táticas, diz ele, Foucault visa práticas ordinárias,
cotidianas, para evidenciar os “restos” da história. Abre, assim, um campo de pesquisas
sobre as concepções de história, de sujeito e de conhecimento que estão propostas nos
grandes relatos, nos sistemas de interpretação já fixados. Foucault, como se sabe, ao
examinar procedimentos panópticos, mostra que os detalhes escondidos na vigilância
escolar, militar e hospitalar liberam técnicas de controle estranhas aos princípios da
razão ilustrada, pondo em questão, portanto, a sua legitimidade discursiva. Para ele, tais
técnicas esclarecem o sistema de funcionamento da sociedade moderna e o das ciências

5
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. bras. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.143. Grifos
nossos.
6
LEBRUN, G. “Por que ler Nietzsche, hoje ?”. In: Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 33 e
ss.
15

humanas. Monta microdispositivos que lhe permitem formular um discurso sobre o não
discursivo: estratégia pela qual trata o heterogêneo com relações heterogêneas; ou seja,
passa diretamente da heterogeneidade das práticas à interpretação sem homogeneizar o
diverso7.
Ainda na metáfora do caçador, M. de Certeau diz que Foucault agencia “uma
arte do suspense, das citações, da elipse, da metonímia; uma arte da conjuntura (a
atualidade, o público) e das ocasiões (epistemológicas, políticas); em suma, uma arte de
fazer ‘golpes’, ‘lances’, com ficções de histórias”. Assim, ressalta que não é apenas a
prodigiosa erudição que dá tanta eficácia a Foucault, mas esta arte de dizer, de pensar,
de fazer história. Articulando procedimentos retóricos, esboçando quadros históricos
exemplares e distinções teóricas, ele desloca os campos em que se insinua. Por essa arte
da narração, Foucault, “dançarino disfarçado em arquivista”, modifica a lei da
historiografia atribuindo-lhe um novo arranjo. Nela, percebe-se claramente que “o riso
de Nietzsche perpassa o texto do historiador”8.
Portanto, o que se quer ressaltar em Foucault é a sua “estratégia de
interpretação”. Se Nietzsche não é para ele um sistema, mas um “instrumento de
trabalho”, que lhe permite fazer ranger, gritar (a verdade, o poder, instituições), ele
mesmo se propõe também assim. Ele pensa com Nietzsche; pensa-se com Foucault9. É
nesta transversal, em que Foucault intercepta Nietzsche, que outras referências são aqui
estrategicamente associadas, também deformadas, para se pensar o incomensurável da
experiência contemporânea. Lyotard e Habermas entram na cena, interceptam-se, são
interceptados, para fazer ranger “o moderno”. No pensamento, na enunciação, na
sensibilidade acontece algo muito virulento, que se propaga viralmente: a crise da idéia
de história, da concepção de história como processo de emancipação progressiva do
homem.
Sabe-se que Foucault muito contribuiu para o esclarecimento dessa questão. Em
suas pesquisas – sobre a reelaboração da teoria do sujeito e sobre a análise dos discursos
–, aparece o tema da “deslegitimação” dos sistemas totalizadores (éticos, estéticos,
epistemológicos, políticos), suportes de práticas institucionais (filosóficas, artísticas,
judiciárias, políticas, educacionais). O tema magnetizou o debate sobre o pós-moderno,
pelo menos na emblemática polêmica entre Habermas e Lyotard. Aí, conexões podem

7
DE CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano I – Artes de Fazer. Trad. bras. Petrópolis: Vozes, 1994, p.
131 e ss.
8
Id. ib., p. 154
9
LEBRUN, G.. Op. cit., p. 37
16

ser estabelecidas entre proposições de Lyotard e Foucault, embora uma não possa ser
assimilada à outra. Já Habermas é crítico dos dois, inclusive arrolando-os, com Deleuze,
Derrida, Baudrillard e outros, no rol do que ele denomina “neonietzschianismo francês”,
ou “pós-modernismo neo-conservador”.
Tentativas de projetar o debate sobre manifestações e discursos artísticos e
educacionais utilizando uma determinada constelação de referências, esta modalidade
de pensamento estendeu-se sobre uma diversidade de problemas, aqui reunidos em
blocos temáticos: teoria da educação, ensino de filosofia e de arte, ensino e pesquisa na
universidade, arte brasileira contemporânea, uma teoria do contemporâneo são os temas
problematizados nos textos. Em todos, a tentativa de pensar a reorientação das
experiências depois de torpedeadas muitas das crenças, esperanças e ilusões modernas.

***

No que se refere às transformações no ensino e na pesquisa, lembrando as


primeiras proposições de Lyotard em La condition postmoderne, não é possível deixar
de assinalar as conseqüências do debate no trabalho universitário, especialmente a
discussão sobre as “condições objetivas da formação do pesquisador no Brasil”10. O
suposto da discussão, nem sempre evidenciado, é que, na vinculação de ensino e
pesquisa ou na prevalência de um sobre outro – nas estruturas curriculares, na formação
de docentes-pesquisadores, na crescente escolarização dos programas de pós-graduação,
assim como nas imagens de ciência disseminadas –, trata-se de enfrentar o processo de
dessubstancialização da cultura. Assim, a postulação de uma “interpretação
essencialmente única” da ciência, buscada como maneira de recusar o “relativismo
radical” e o “encantamento produzido, sobretudo nas ciências humanas” pelo discurso
pós-moderno, “livre, leve e solto”, é estratégica: visa a resistir à indeterminação e
deslegitimação do trabalho de produção de conhecimento na universidade.
A indeterminação pode ser debitada, em parte, à inadequação do “conjunto de
práticas curriculares que persistem na formação do pesquisador”, mas também aos
modos como a universidade tem reagido às transformações em curso dos sistemas,

10
Referência ao tema de uma mesa redonda no Seminário de Pesquisa organizado pela Comissão de
Ensino e Pesquisa da FFLCH-USP, em 1994, da qual participei como comentador do texto do Prof.
Carlos Franchi, “A formação do pesquisador na área de humanidades na universidade
brasileira”.Publicado em JANCSÒ, István (org.). Humanidades, Pesquisa, Universidade. São Paulo:
FFLCH-USP, 1996, p.40-43.
17

principalmente em sua dimensão cultural. Nesta direção, questões referentes à


reformulação das estruturas universitárias, à desburocratização e descentralização, assim
como à gerência dos recursos orçamentários, dizem respeito à mutação das perspectivas
culturais, tanto quanto às questões de formação dos pesquisadores. Além disso,
internamente e externamente a universidade é alvo de expectativas, que a valorizam ou
desvalorizam conforme a adequação de suas práticas a necessidades julgadas
prioritárias, aliando produção do saber e utilidade social.
Mas, notadamente nas ciências humanas, na situação contemporânea o
conhecimento procede por tentativas de configurar alguma coisa em meio à proliferação
de temas, idéias, conceitos, redes etc. Nenhuma teoria ou sistema é suficientemente
forte para fundamentar práticas, totalizar o saber, constituir sistemas. Há uma sensação
forte de que ocorreu uma perda de vínculo com o passado, pois regras, doutrinas e
crenças antes ativas não mais servem para guiar as ações. Assim, o que poderia
significar hoje “formação”, quando, face ao processo de transformação e de apropriação
do saber, pretende-se, freqüentemente, realizar a conciliação entre imagens do passado e
efeitos de inovação? Não é outra a exigência que vem da, assim chamada, razão
comunicativa, particularmente da imprensa, que cobra da universidade um rendimento
social semelhante ao do sistema produtivo. Sob a alegação de que outra é a “realidade”
(no fundo, aquela determinada pela economia capitalista), a universidade é acusada de
ser incapaz de articular-se às condições sociais objetivas, ainda mais quando, sendo
pública, não justifica, em termos de “produção”, os recursos que lhe são destinados.
Mais grave, entretanto, que a atitude reguladora do sistema comunicativo é a
atitude reativa da universidade: introjetando a cobrança que lhe é feita, substitui o
imperativo de reorganização e transformação por tentativas de legitimação segundo a
lógica do sistema produtivo. Veja-se, por exemplo, o empenho atual para com a
“avaliação” da universidade; deixa entrever que internamente ela se considera
deslegitimada. Aparentemente, a deslegitimação refere-se à sua falta de eficácia na
formação profissional; na verdade, ela é antes de tudo cultural, pois a perda de sua
identidade tradicional não pode ser suprida por uma identidade adjudicada. Assim, na
falta de força para afirmar a sua pesquisa, distante que seja dos problemas sociais
emergentes, torna-se refém do produtivismo.
A deslegitimação, como se sabe, é histórica: provém do fato de que os
dispositivos modernos, requeridos nos processos de sistematização, parecem não dar
conta das indeterminações, incomensuráveis, da experiência contemporânea, teóricas,
18

funcionais e existenciais. Um dos sintomas mais evidentes dessa dificuldade é a ênfase


atual no resgate do passado, o que, freqüentemente, redunda em restauração de
identidades sob a pressão da demanda social de estabilidade, comunicabilidade e
produção de sentido a todo custo. Assim, o esforço em se reconstruir totalidades que
substituam aquelas que, modernas, não impediram que o ideal emancipativo entrasse em
crise reverte-se em simples recodificação de experiências, projetos e sistematizações. A
alternativa, entretanto, é a adesão indiscriminada à fragmentação.
De um lado, observa-se o esforço em restabelecer um plano de formulações
universalizáveis, uma racionalidade apta a definir regras e organizações, tendo em vista
uma ação social concertada, a eficácia na investigação e no ensino. De outro, a aposta
na multiplicidade, recaindo na recusa da unidade para fins instrumentalizadores. De
qualquer maneira, entretanto, não se pode fugir da exigência de partir da
heterogeneidade – o que supõe a necessidade de pensar as possibilidades de
compatibilização entre os fragmentos, entre as unidades discretas que alimentariam o
saber, as práticas, os sistemas – a uma outra totalidade. Não temos nenhuma linguagem
adequada para isto, a não ser a recomposição de modelos e esquemas similares aos
criticados pela ciência, pelas técnicas e artes da modernidade; ou então a imersão no
indeterminado, o que, de resto, é intolerável. Entende-se, assim, a ênfase no resgate das
identidades institucionalmente constituídas.
Em meio a tantos equívocos e julgamentos apressados sobre a universidade,
principalmente quanto à sua utilidade social imediata, pode-se perguntar se ela não teria
perdido muito daquele seu sentido original, no qual a pesquisa vale tanto pela
universalidade quanto pela historicidade de suas práticas. Parece que o lamento pela
perda da perspectiva histórica unitária (que vem de dentro) e a acusação (que vem de
fora) de que não teria utilidade social satisfatória, decorrem do mesmo erro: a não-
consideração de que se vive hoje um vazio de ideal. O interessante da atitude defensiva
e autojustificadora da universidade está na evidenciação de suas dificuldades em
elaborar o estado atual da cultura. Em todas as áreas da universidade brasileira, nas
humanidades e fora delas, desenvolvem-se trabalhos relevantes, rigorosos e
significativos; percebe-se, entretanto, que o conjunto das pesquisas não determina
sistemas. Mas isto importa?
Importa reafirmar que estes trabalhos se perdem, ou não se tornam ativos
culturalmente, devido, em boa parte, à obsessão escolarizante e burocratizante que
confunde racionalidade da organização com controle, avaliação e utilidade imediata das
19

pesquisas. Importa muito assinalar que estes trabalhos não são evidenciados, devido, em
grande parte, à limitação constrangedora das publicações , e de toda sorte de meios de
fazer a produção circular, em que pesem os avanços obtidos nos últimos anos pela
produção editorial universitária. Se a produção de saber na universidade brasileira é
relevante, não o é o seu consumo, isto é, a veiculação e a utilização da produção – por
razões diversas, políticas, econômicas, sociais, e não apenas pela ineficácia da estrutura
universitária. Importa, ainda, considerar que as exigências de exploração de domínios
conexos de saber, das intersecções e da interdisciplinaridade, embora continuamente
alegadas, não encontram na universidade possibilidades de fluxo e mobilidade. Rigidez
curricular na graduação, escolarização de programas de pós-graduação, burocratização
das carreiras e desprestígio profissional advindo dos baixos salários conduzem
freqüentemente o trabalho universitário para o campo do esforço e da persistência
individuais.
A dificuldade e mesmo a impossibilidade de articulação de grandes projetos
culturais propõe, necessariamente, a reorganização dos sistemas, para que a queda das
utopias não redunde simplesmente na perda do desejo de transformação. Por isso, o
cinismo não pode ser a resposta a tais dificuldades; pois o cinismo, que encobre a
insatisfação e o imobilismo, recobre as dificuldades com atividades supletivas. Como
responder a estes impasses? Pode-se aventar que, na ausência de sistemas e grandes
idéias, cumpre ativar e sempre reativar o trabalho de análise – em sentido semelhante ao
da psicanálise freudiana, conforme a sugestão de Lyotard – sobre os pressupostos e
subentendidos dos projetos e sistematizações do saber e da experiência, associando os
elementos, aparentemente inconsistentes, do presente a situações passadas, não para
retornar a uma origem, julgada segura, mas para abrir o campo dos possíveis, fechado
ou excessivamente delimitado por motivos e motivações diversos. Se, a rigor, os
pressupostos modernos ainda não se realizaram suficientmente no Brasil, não se trata,
entretanto, de reatualizar os projetos, pois eles não ficaram inacabados: são datados.

***

No primeiro bloco de textos, a pergunta sobre as repercussões do debate sobre o


pós-moderno na teoria e nas práticas educacionais, na pesquisa e no ensino, não deixou
de ser provocativa. Até então, quando o texto “Pós-moderno na educação?” foi escrito
20

para uma comunicação em um congresso11, não se conhecia nenhum texto nesta direção.
Propor uma concepção de educação que pudesse informar práticas de ensino e pesquisa,
questionando conceitos e concepções consagradas, como a idéia de formação e o
processo de totalização do saber e da experiência, implicava riscos, como o de incidir na
ingenuidade teórica caudatária das modas que circulavam no setor educativo-
pedagógico. Não se pretendia, contudo, apenas provocar um debate, mas destacar e
mesmo decifrar um fato inerente a várias experimentações educacionais em curso há
várias décadas no Brasil: a inadequação da aposta irrestrita na novidade das
experimentações, tanto quanto na esdrúxula conjugação de novidade e efeitos
regressivos, evidenciada sobretudo nas incongruências entre as práticas educativas e os
discursos que as legitimavam.
Tendo em vista o processo de dessubstancialização da cultura e os problemas
surgidos das alterações na forma e na destinação das pesquisas e do ensino – detonadas
tanto pela explosão das demandas quanto pela incidência das novas tecnologias de
informação e comunicação nos processos educativos –, ressaltava-se a importância da
busca de modos de pensar as conseqüências da dispersão dos saberes. Na educação, e
nas ciências humanas, constatava-se que um dos efeitos dos problemas acentuados é a
emergência de novas práticas discursivas, advindas da flexibilização epistemológica e
do enfraquecimento da ênfase nas metodologias. Considerava-se também que, ao se
questionar as imagens de saber, estaria posta em jogo toda a sistematização cultural
moderna, de raiz iluminista, pois a proliferação de teorias dificulta a fundamentação e a
articulação das práticas – o que é requerido para, no mínimo, suprir uma necessidade:
estabelecer as regras de funcionamento da sociedade.
De Certeau acentua12 que as dificuldades da formação provêm em grande parte
da quase extinção do que se entendia por “cultura” – pois cultura, atualmente, remete
aos processsos de consumo, ao entretenimento e ao lazer –, e da incapacidade da escola
em assimilar produtivamente as mudanças do imaginário cultural em que os jovens se
movem, dada a resistência que, em princípio, opõem às demandas de integração no
sistema produtivo. Assim, como contemplar todas estas variáveis se, para eles, não há
nem mesmo uma linguagem que lhes permita transitar da experiência ao saber? Pois não
se pode esquecer, acentua o autor, que a cultura dos jovens – destes jovens assimilados

11
Simpósio “Epistemologia e Educação”, no I Congresso Estadual Paulista sobre Formação de
Educadores, promovido pela UNESP. Águas de São Pedro, SP, 20/05/1990.
12
cf. A Cultura no Plural. Trad. bras. Campinas: Papirus, 1995, p.101 e ss.
21

à cultura de consumo – destila uma linguagem feita de acúmulos e de colagem de


imagens, que destoa da linguagem da escola. O seu pensamento é muito mais um
caleidoscópio de informações e de questões que, propriamente, um conhecimento, um
saber, como o que é sistematizado pela cultura escolar.
Assim, a educação, face ao heteróclito cultural, face à heterogeneidade dos
saberes e das experiências dos jovens e, simultaneamente, face à sua necessidade de
sistematização para responder às expectativas sociais, parece que é obrigada a
questionar o imperativo, até há pouco inabalado, da “formação”. A ação educativa cada
vez mais tem de se curvar aos interesses dos jovens, que são localizados – o que implica
levar em conta a avaliação, feita por eles, da relevância do que a educação escolar
pretende ensinar. Nesta direção, constata-se novamente a crise dos valores universais
transformados em objetivos educacionais. Como se pode ver, trata-se de uma mutação
considerável do que até agora tem sido a educação formal e do seu princípio
fundamental, a formação.
Estas considerações motivaram a elaboração de algumas proposições e propostas
sobre o ensino da filosofia como disciplina do ensino médio, assunto do segundo bloco
de textos. As proposições são estratégicas, isto é, focadas em problemas concretos da
educação brasileira: as dificuldades naturais em transformar a filosofia em disciplina
escolar, as condições adversas da legitimação da disciplina no sistema escolar brasileiro
e as insuficiências da formação dos professores. Entende-se que o princípio básico de
que deve partir qualquer proposta de ensino de filosofia é o da escolha da orientação do
pensamento que se julga relevante, e adequada à realidade do ensino médio brasileiro;
isto é, a conjugação da especificidade da contribuição da filosofia para a consecução dos
objetivos do ensino médio com a sua viabilidade no contexto educacional brasileiro.
Propõe-se que o requisito fundamental para a escolha dessa orientação é a definição de
um lugar de fala do professor, considerando que ele não pode fazer um trabalho
adequado de ensino de filosofia se, além da competência básica obtida no curso de
filosofia, não efetivar uma experiência própria de pensamento, um modo particular e
refletido de se situar no horizonte histórico, temático e discursivo da filosofia.
Em segundo lugar, face às dificuldades provenientes da precária experiência da
filosofia como disciplina do ensino médio, a proposta tenta dar conta da disciplina como
área de conhecimento específico e enquanto elemento do currículo: simultaneamente,
cumpre objetivos educativos precisos e, enquanto disciplina pedagógica, objetivos
gerais da escola de nível médio. Daí a complexidade da tarefa: enfatizar conhecimentos
22

relevantes para responder à necessidade premente de situar reflexivamente os jovens na


cultura; colocá-los em contato com experiências de pensamento a que possam se referir,
ou lançar mão, conforme as necessidades. Para isso, é preciso situar os temas,
problemas, conceitos e procedimentos discursivos que compõem o exercício da
disciplina no âmbito dos problemas científicos, tecnológicos, ético-políticos e artísticos
que articulam o horizonte cultural da escola, com os quais ela deve estar em sintonia.
Assim, a filosofia pode adquirir sentido problematizador, voltada para a elaboração de
diretrizes conceituais e procedimentos argumentativos que levem à posse de um
discurso que habilite os jovens a interpretar, articular e justificar resoluções, valorações,
escolhas e atuações, individuais e coletivas.
Finalmente, sempre lembrando da precariedade do ensino brasileiro no trato da
língua e da linguagem, a filosofia é pensada como disciplina que, para se singularizar e
cumprir requisitos educativos específicos, deve uma atenção especial à dinâmica
textual, na leitura e na escrita. O trabalho com os textos, enquanto visam à explicitação
das regras de funcionamento da enunciação, responde, certamente, a uma carência
básica do ensino brasileiro. Neste sentido, leitura filosófica de textos filosóficos e não
filosóficos, focada nos regimes enunciativos dos discursos, onde a filosofia está “em
ato”, é exercício imprescindível de pensamento.
Talvez aí, mais do que em qualquer outro lugar, esteja a vocação formativa da
filosofia, pelo menos nas condições brasileiras – a despeito da resistência a ela
manifestada, seja pela impaciência dos jovens, seja pela inadequação da expectativa do
sistema escolar, quando atribuem à disciplina uma função imediatista: de suprir as
deficiências de “nível teórico” e de linguagem dos alunos, acreditando ingenuamente
que a filosofia pode propiciar a passagem automática do pensamento à ação.
Tendo em vista a inadequação destas expectativas nele depositadas, entende-se
aqui o ensino de filosofia como uma iniciação às produções discursivas e conceituais,
que ressalta a especificidade do “aparelho formal da enunciação filosófica”13. Tendo em
vista, entretanto, que não é adequado reduzir o trabalho filosófico a uma única
dimensão, como a argumentação ou a análise de conceitos, esta concepção de ensino
implica a exploração das variadas manifestações da potência da linguagem, da
variedade dos registros enunciativos, notadamente o metafórico, que por timbres e

13
Cf. COSSUTTA, F. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. Trad. bras., São Paulo: Martins
Fontes, 1994, p. 12.
23

tonalidades modalizam o funcionamento do aparato conceitual, facultando a emergência


de atos de linguagem em sintonia com a experiência dos jovens.

***

O bloco seguinte compõe-se de textos que tentam formular o que está


subentendido na postulação de uma pós-modernidade artística. Ao se falar de uma arte
“depois das vanguardas”, pretende-se evitar os equívocos das denominações arte
contemporânea e arte pós-moderna, especialmente desta, pois não se trata de conceber
a contemporaneidade artística como uma época que sucede a moderna. A postulação de
uma arte contemporânea, ou, pelo menos, de um acento contemporâneo na arte,
detonado pela pop art, não tem em vista a realização de possibilidades aventadas e não
efetivadas na modernidade, e muito menos a superação da arte moderna. Pode-se falar
na existência de um campo contemporâneo da arte, ainda que indeterminado. Um
campo de ações e proposições, livres contudo da presunção de ruptura e novidade.
Considerando-se a inviabilidade de qualquer vanguarda atualmente, tomando
como referência os mais consistentes e permanentes trabalhos modernos, pode-se dizer
que existe um “espaço da contemporaneidade”, só que “não seria uma figura clara, com
âmbitos plenamente definidos. Seria um feixe descontínuo, móvel, a se exercer na
tensão com os limites da modernidade, interessado na compreensão e superação desses
limites. Não há uma diferença evidente entre o trabalho moderno e o trabalho
contemporâneo válida por si; há, isto sim, démarches distintas agindo ‘dentro’ e ‘fora’
deles”14. Agindo dentro e fora dos limites modernos, o lugar dessa arte contemporânea
“é apenas e radicalmente reflexivo (...) operando em cima do choque da modernidade
com o real”; por isso “o seu material é portanto a reflexão produtiva sobre a história
ainda viva, pulsante, da obra moderna”15.
Ao atingirem os seus limites expressivos, com a radicalização minimalista e
conceitual, as experiências modernas chegaram a um duplo impasse: a inviabilidade de
qualquer presunção de ruptura e novidade e a dificuldade de articular experimentalismo
e criticidade. Devido à diversidade da produção, ao desaparecimento do próprio objeto
da arte, à evanescência da inscrição simbólica e das regras de produção e julgamento, o

14
BRITO, Ronaldo. “O moderno e o contemporâneo (o novo e o outro novo)”. In: Arte Brasileira
Contemporânea. Caderno de Textos 1. Rio de Janeiro: FUNARTE 1980, p.6-7.
15
Idem, ib., 8-9.
24

espaço contemporâneo da arte tornou-se incomensurável, assim como, aliás, a


experiência estética que propicia. Assim, o que se denomina arte contemporânea não
designa uma arte distinta da moderna, por superá-la: aponta apenas a existência de um
espaço sintomático, em que operam signos de proveniência diversa: do trabalho dos
artistas, de sua veiculação institucional ou mercadológica, pela inclusão da arte no
circuito do entretenimento e do lazer, e pelo aprisionamento da produção aos sistemas
de comunicação.
Diferentemente da estratégia moderna – da sua ênfase nos processos e
procedimentos e a conseqüente desidealização da forma –, e também do seu interesse
emancipatório, a arte dita contemporânea opta “pela realidade imediata da arte”,
vivendo do “cinismo inteligente de si mesma”16. Na impossibilidade de apresentar outra
coisa que ultrapasse o moderno, o mais das vezes esta arte manifesta o seguinte
sintoma: “o desejo de atravessar a arte moderna ou, simplesmente, utilizá-la. Isto é,
parodiá-la cética ou furiosamente, ou então consumi-la”17. Daí o impasse: de um lado,
pensando-se liberta dos imperativos e dispositivos modernos, esta arte quer valorizar as
singularidades, por puro efeito da imanência expressiva; de outro, não consegue se
afirmar senão através da reescritura do trabalho moderno.
Os textos deste bloco tentam desdobrar tais questões acolhendo muitas das
críticas aos dispositivos modernos. Consideram a arte contemporânea como pertencente
ao processo de estetização generalizada, própria da cultura do capitalismo em seu estado
atual, mas também como o que vem de todo o processo de desidealização e
cotidianização da arte. Mas localizar a questão do contemporâneo apenas nas
proposições sobre arte e cultura pós-modernas, que derivam da aceitação da cultura de
consumo como sendo hoje “a cultura”, limita o alcance da discussão. Pois, se é verdade
que o processo cultural, de generalização da arte, de estetização da vida cotidiana, é em
tudo consentâneo ao reducionismo dos dispositivos da sociedade de consumo, também é
verdade que a arte contemporânea intensifica, retraduz, redimensiona aspectos e
operações da experiência estética moderna ou vanguardista, pelo simples fato de levar
adiante a empreitada experimental, agindo dentro e fora dos seus dispositivos,
recodificando-os segundo condições específicas de produção, de circulação e de
sensibilidade. Ou seja: muda o valor da arte.

16
Id. ib., p. 7
17
BRITO, R.. “Pós, pré, quase, ou anti?”. Folha de S.Paulo, Folhetim, 02/10/1983.
25

Esses impasses teóricos foram discutidos em textos que tematizam as relações


da arte com os sistemas de comunicação, a questão da reescritura dos princípios,
processos e procedimentos modernos, a rediscussão dos fundamentos da estética diante
das transformações produzidas “na antiga indústria do belo” – lembrando da sugestiva
expressão de Valéry – pelas novas tecnologias. O caráter de evento assumido por boa
parte da arte recente, nas poéticas da atitude, performances e instalações, são exemplos
das condições diversificadas do processo de estetização, que, paradoxalmente, coloca
em destaque o ressurgimento da idéia de obra, abalada nas experiências modernas.

***

No quarto bloco, aparecem textos que se curvam sobre a modernidade brasileira.


Alguns focalizam produções que repercutem, ainda hoje, na produção e na crítica,
notadamente nas artes plásticas e na música popular. Pela radicalidade dos projetos e
contundência das ações, manifestaram os signos da exaustão dos processos modernos e
a abertura para outra coisa, ainda que indeterminada. Alguns retomam, às vezes
recodificando, questões examinadas nos trabalhos sobre a música tropicalista e a obra
de Hélio Oiticica, estendendo-as a aspectos da produção artístico-cultural dos anos de
1960-70 coectados a elas. Outros textos contextualizam, em painéis histórico-críticos, o
processo de constituição da modernidade brasileira, reexaminando e rearticulando
análises anteriores.
Três textos que funcionam como um panorama indicativo do percurso da arte
moderna no Brasil propõem-se a retraçar seus desenvolvimentos, articulados como
projetos, destacando os momentos de ruptura, experiências e personagens exemplares.
Atravessa estes amplos traçados a idéia de que o moderno no Brasil foi, desde pelo
menos a década de vinte, um “imperativo”: precisávamos ser modernos. Referindo-se
nos anos de 1950 a esse imperativo, que se tornara premente no quadro da
modernização econômica e cultural, cujo marco emblemático foi Brasília, o crítico
Mário Pedrosa cunhou a expressão: o Brasil é um país condenado ao moderno. Dizia
ele: “o nosso passado não é fatal, pois nós o refazemos todos os dias. E bem pouco
preside ele ao nosso destino. Estamos, pela fatalidade mesma de nossa formação,
condenados ao moderno”18. Esta é uma formulação que hoje parece exagerada, mas que

18
cf. “Brasília, a cidade nova” (1959). In: PEDROSA, Mário. Dos murais de Portinari aos projetos de
Brasília. Org. Aracy Amaral. São Paulo: Perspectiva,1981 p.347 (col. Debates 170).
26

expressava a confiança nos valores modernos, propugnados como antídoto às formações


do passado, entronizadas, pelo conservadorismo renitente, como o destino do Brasil.
“Condenados ao moderno” quer dizer: devemos e podemos construir a nossa
modernidade, que é a nossa única destinação. E moderno, nas artes, significava
articulação de um “projeto construtivo”, na linha daqueles construtivismos do início do
século, ainda reafirmado por Hélio Oiticica em formulação célebre do final de 1960, ao
detectar os sintomas e problemas que emperravam o trabalho experimental: “no Brasil,
portanto, uma posição crítica universal permanente e o experimental são elementos
construtivos”19.
Um problema que deve ser destacado nos esforços de modernização, até os anos
de 1960-70, é o da maneira como se deu a integração das teorias e dos modelos
experimentais fornecidos pelas vanguardas européias e norte-americanas. Mais
precisamente, cumpre destacar os dispositivos que produziram o encontro cultural por
meio da singularidade das soluções resultantes da ação de princípios e operações
especificamente brasileiros – como, por exemplo, o que é representado na metáfora da
devoração da antropofagia oswaldiana e tropicalista, pela ênfase que atribuíram, no
processo de incorporação da alteridade, ao conflito entre as referências culturais de
procedência diversa e à exploração da tensão entre as diferenças.
A vontade do moderno mobilizou, pelo menos até o final dos anos 60, uma
estratégia cultural agressiva em que o sentido de construção agenciava uma atitude de
ruptura que compunha programas estéticos com projetos de transformação social. A
articulação das esferas cultural e política levou a soluções originais e significativas,
responsáveis por radicalizações expressas nas artes por símbolos e alegorias poderosos.
E é exatamente ao enfraquecimento, ou diluição, das proposições e ações daí surgidas
que se debita o desaparecimento do debate cultural, sob a pressão da repressão e censura
do regime militar e, simultaneamente, devido ao estabelecimento no país daquilo a que
F. Jameson chamou de “lógica cultural do capitalismo avançado”.

(Entre estes textos há, contudo, aquele sobre o Quincas Borba de Machado de
Assis, que à primeira vista não se inclui no movimento assinalado de elaboração da
modernidade brasileira. Entretanto, ele aqui comparece porque propõe a interpretação
de que o romance de Machado apreende já no final do século XIX os sinais da

19
OITICICA, Hélio. “Brasil Diarréia’. In: GULLAR, Ferreira (org). Arte Brasileira hoje . Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1973, p. 152.
27

modernização liberal capitalista, que transformava os modos de vida do Rio de Janeiro


do final do Império. A modernidade social aparece na forma moderna do romance, de
maneira inédita no país; uma modernidade que só chegaria à consciência artística
brasileira com o modernismo. No texto, “Infortúnios da unidade”, ao se ressaltar como
problema central do romance a perda da unidade da vida, propõe-se que Machado de
Assis estava já pensando a fratura da modernidade, suas ambigüidades e contradições.
De modo especial, o romance de Machado estaria manifestando sinais da ruptura do
processo de internalização dos valores ocidentais, tema que seria caro aos modernistas,
antropófagos e tropicalistas. Mais ambiciosamente, o texto quer indicar a fecundidade
de um procedimento crítico em que o histórico-social pode ser iluminado por um
conhecimento que não é imediatamente nem histórico nem sociológico: que é, antes,
questão de linguagem.
Também um outro texto, sobre o livro PanAmérica de José Agrippino de Paula,
comparece como indicativo de uma outra fratura da modernidade brasileira. É, na
literatura, exemplo único do momento tropicalista da cultura brasileira, compondo, com
a música do grupo baiano, com a manifestação ambiental Tropicália de Hélio Oiticica,
com Terra em transe de Glauber Rocha e com a encenação de O rei da vela de Oswald
de Andrade pelo Teatro Oficina, o conjunto de atividades associadas ao projeto
construtivo brasileiro na arte, que desidealizaram as representações da cultura
brasileira).

***

Completam esta trajetória textos que focalizam aspectos da produção cultural do


final dos anos 60 e inícios dos 70, também dedicados a apreender os sintomas da
exaustão dos projetos modernos. As considerações sobre a contracultura e experiências
alternativas visam a interpretar os rumos do processo de modernização artística e
cultural, o destino dos projetos e atuações vanguardistas, depois de 1968. O desgaste ou
a repressão dos projetos com significação política que, clara ou alusivamente,
insuflavam a ação de resistência ao regime militar foi em parte responsável pela
emergência de práticas contraculturais. É da composição entre a crítica tropicalista e as
informações vindas de fora, especialmente do underground norte-americano dos anos
60, que surgiram no Brasil manifestações contraculturais que enfatizavam as mudanças
de comportamento e uma nova sensibilidade.
28

Com a promulgação do AI-5 em 13 de dezembro de l968, o processo artístico-


cultural foi em grande parte inviabilizado. A passagem dos 60 aos 70 é, em boa parte,
marcada por este acontecimento político, pois foi um duro golpe sobre os projetos e
ilusões revolucionárias que informavam as ações políticas e artístico-culturais. Sob este
ponto de vista, a década de 70 abre-se sob o signo de uma grande derrota. Mas é preciso
assinalar o outro lado da questão: desde o momento tropicalista dos anos 67/68, surgiam
manifestações culturais que se estenderiam até a metade dos anos 70. Contracultura,
cultura alternativa, cultura marginal, curtição e desbunde foram designações que
pretenderam dar conta de uma produção variada e dispersa que se distinguia das
totalizações dos projetos artístico-culturais anteriores, principalmente pela ênfase que
atribuíam aos aspectos comportamentais das atividades em detrimento da significação
político-social imediata.
A proposição de uma “nova sensibilidade”, que se compunha com uma certa
concepção de “marginalidade”, em relação ao sistema sócio-político e ao artístico-
cultural, aparecia como a motivação básica daquelas manifestações – o que implicava
mudança acentuada da concepção e das práticas de experimentação e de participação
desenvolvidas na década de 60. Entretanto, nova sensibilidade e marginalidade
articularam-se em algumas manifestações contraculturais ao experimentalismo, artístico
e comportamental. É na intersecção destes três conceitos operacionais – nova
sensibilidade, marginalidade e experimentalismo – que surgiram as mais expressivas
produções artístico-culturais dos anos 70. Poesia, música, cinema, teatro, literatura,
jornais, revistas, livros – além de roupas e artesanato – compunham a atitude
contracultural, que não deixava de pretender opor-se ao Brasil do milagre econômico.
Contudo, é bom acentuar, ao lado desta multifacetada atividade alternativa continuou a
se formular a institucionalização da modernidade cultural, agora em grande parte
incentivada pela recém-instalada política nacional de cultura, que passou a atuar
inclusive através de novas agências, como Embrafilme, Funarte, Pró-Memória e outras.
O que, entretanto, mais interessa é inventariar aquelas produções que, atuando
dentro ou à margem do sistema artístico, levaram adiante as experimentações dos anos
50/60, seja ainda tentando manter a significação política, agora alvo da censura do
regime militar, seja explorando todas as possibilidades técnicas e expressivas abertas
pelo heroísmo das vanguardas novas. Respondendo às novas condições da sociedade,
especialmente pelo alinhamento do país à lógica cultural do capitalismo multinacional, a
complexa e variada produção artística coloca no centro de suas experimentações e
29

discussões os pressupostos e regras do mercado. Consumo e experimentação,


especialmente quando pensados em relação a obras ou manifestações efêmeras,
conceituais e comportamentais, provocam problemas ético-estéticos, além dos
simplesmente técnicos e de exibição, que vão se chocar com o desenvolvimento do
sistema de arte, especialmente do mercado de arte, que assiste no período a uma
floração que se mostraria depois inconsistente.

***

O bloco seguinte reúne alguns textos surgidos de comunicações em seminários,


conferências e cursos em instituições escolares, institutos culturais e museus, enfocando
aspectos das relações entre arte e educação. Particularmente, pretendem apresentar
contribuições para o estabelecimento de alguns fundamentos do ensino de artes nas
escolas, segundo a perspectiva de que a ação educativa é, sobretudo, ação cultural. Tal
consideração é especialmente relevante quando a ação educativa tem como suporte
obras, eventos e situações incluídas na denominação genérica de arte contemporânea,
conforme a problematização feita nos textos dos blocos anteriores. Neste sentido,
propõe-se que não se trata de pensar a costumeira “função da arte na educação” nos
termos das discussões tradicionais, que idealizam a arte e seu valor transcendental, ou
nos termos das pedagogias funcionalistas que, via de regra, exageram o poder e os
efeitos da arte na transformação dos indivíduos e da sociedade. Assim, estes textos não
se alinham em uma ou outra das concepção usuais em que as relações entre arte e
educação ou são recobertas por uma mistificação sublimadora, ou decorrem de uma
crença no sentido lúdico das atividades centradas no manejo de procedimentos
“modernos”. Considera-se que a ação educativa pela arte deve sempre centrar-se na
experiência das obras e acontecimentos artísticos, tomados como focos de estetização.
O trabalho educativo deve sempre provocar a entrada na experiência estética
generalizada, de modo que o ensino de arte, entendido como ação educativa, visa a abrir
possibilidades de conexão entre arte e vida cotidiana.
O horizonte de pensamento desta concepção é aquele que decorre das mutações
contemporâneas da arte, com o conseqüente deslocamento do interesse pelos
simbolismos das obras para o valor simbólico das ações, desligando a arte das
categorias ilusionistas. Nesta concepção, a participação não se circunscreve apenas à
atitude de fruição, mas integra o próprio ato criativo. Assim, a demanda por uma
30

educação artística, mais do que uma educação para a arte, em termos de participação em
uma ação educativa, é requerida pelas transformações efetuadas no conceito, nos
processos e na historicidade das práticas artísticas, cujos ideais foram comprometidos
pela queda das muitas ilusões modernas sobre o poder transformador da arte. Apesar
dessas considerações sobre o redimensionamento contemporâneo do trabalho artístico e
da experiência estética, a sondagem sobre as possibilidades educativas da arte e através
da arte é ainda relevante, por reforçar a crença moderna sobre o poder da arte de
modelar a experiência.
Referentes, na maioria, às artes plásticas, mas sugerindo extensões das
proposições à música, ao teatro e mesmo à literatura, estes textos pensam a arte
integrada aos dispositivos culturais em que aparece constitucionalmente ou em que é
evidenciada. Tendo em vista o perfil dos espaços a ela dedicados, a ênfase das reflexões
está posta nos museus e instituições aparentadas, como institutos e centros culturais. A
questão principal aí implicada é a do uso público da cultura. E, pensando-se a integração
do processo educativo da escola com o daquelas agências culturais, cumpre perguntar
sobre a modalidade de ação educativa apropriada para cada um dos espaços. Assim,
desidealiza-se o valor da arte e valoriza-se o trabalho de conferir significação às práticas
artísticas pela conjugação da especificidade de cada prática, esteticamente configurada,
a projetos culturais e educativos. Evidentemente, parte-se do princípio de que estas
instituições, de sentido público, têm algo relevante a oferecer, tendo em vista aquilo que
é requerido pelos usuários e o que é prometido pela arte – o que implica pensar as
condições necessárias para efetivar a mediação entre estas instâncias.
Tome-se como exemplo o museu, particularmente um museu de arte moderna ou
de arte contemporânea, que enfatize o caráter experimental da atividade artística, os
processos e procedimentos, a participação e a pesquisa. Pode-se perguntar: o que é
requerido dele, supondo-se que a demanda é diversificada – de escolares dos três níveis,
de adultos variados, de pessoas idosas, de crianças, jovens e adultos de variada
proveniência social? Que disponibilize conhecimentos ou experiências? E, se for o caso,
quais são os conhecimentos e experiências esperadas, quando já se sabe que o público
majoritário que freqüenta exposições e outras atividades de museus é constituído de
visitantes-consumidores, que chegam ao museu através das informações e chamadas dos
jornais, revistas e televisão, e cuja expectativa é, geralmente, encontrar uma experiência
estética comunicativa, semelhante à facultada por aqueles sistemas?
31

As mudanças que estão se processando nestes museus configuram um avanço


em relação aos museus de arte mais antigos; são tentativas de responder às exigências
da recepção específica da arte contemporânea, em que a atitude de ver é insuficiente, e
às vezes inadequada, para dar conta da experiência estética propiciada pelas obras e
eventos os mais variados, nem sempre categorizáveis. A função do museu é
obrigatoriamente alargada, pois o que neles se apresentam não são apenas as obras
destinadas à contemplação, mesmo as modernas. Ao retraduzir a sua função, por meio
de mudanças que se estendem da arquitetura dos prédios às atividades que propiciam
conhecimentos, experiência estética e lazer, os museus repensam sua destinação social,
sendo sensíveis às demandas do sistema da cultura e dos públicos. Repensam, assim, a
ação educativa, retirando-a da simples, ainda que sempre indispensável, mediação
histórica e estética das obras consagradas. Finalmente, esta nova configuração dos
museus contribui para desidealizar as esperanças depositadas na arte pelos educadores,
com as quais tentavam suprir a sempre lamentada fragmentação contemporânea, que
seria responsável pela ruína da “formação”.

***

O último texto da coletânea não pretende apresentar uma síntese das discussões,
nem mesmo uma conclusão formal deste trabalho; pretende indicar que as discussões
sobre o moderno e o pós-moderno parecem deslocadas, pois, se os problemas a que se
referem ainda continuam em aberto, a análise e a interpretação pedem por novas
aberturas. Escrito como comunicação na mesa redonda “A cena contemporânea: criação
e resistência” para o simpósio “A vida em cena – teatro e subjetividade”, que integrava
a programação do evento “Porto Alegre em cena”20, o texto mantém as marcas da
oralidade, e a elocução um tanto coloquial retém o signo de um pensamento ainda em
estado bruto, intencionalmente determinado por impactos também brutais. O vínculo
entre representação e horror surgiu, provavelmente, como uma conseqüência do
questionamento da interpretação de que a crítica da modernidade implicaria a queda no
vazio. Vazio e horror; o horror do vazio. Pois o horror refere-se à experiência do que
não é possível representar, por que não há linguagem que dela dê conta. O horror é o
inominável, portanto, o irrepresentável. Na arte e na vida. Mas não se pode

20
Porto Alegre, 12-28/09/2003, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura com a colaboração da
UFRGS.
32

simplesmente dizer que o vazio é irrepresentável. E onde ele se impõe, surpreende-se a


tentativa de colmatar esse vazio, quando, ao contrário, conviria “descobrir os interstícios
do vazio”21. Então, talvez, poder-se-ia falar em resistência e criação.
O tema moderno do desencantamento do mundo, o tema pós-moderno do fim
das grandes narrativas, a atividade vanguardista de crítica da representação, do
ilusionismo; as crenças na educação e na mudança dos comportamentos pelo
levantamento das repressões; enfim, todas as variáveis do, assim chamado, projeto
moderno de repente pareceram desatualizadas. Não que isto significasse o desapreço
pelo grande trabalho moderno. Ao contrário, significa que esse trabalho foi até onde
pôde, que suas ambigüidades são intrínsecas, que as promessas da razão ilustrada
comportavam já a simultaneidade de entusiasmo e tristeza, essa marca da situação
contemporânea. É certo que a idéia e a crença no progresso comandou a experiência
moderna, justificou a fetichização do novo, que foi suficientemente poderoso para gerar
o ideal de renovação da vida, da humanidade, como fica patente nos projetos culturais,
nos programas políticos, revolucionários ou não, e nas transformações artísticas da
modernidade. Entretanto, parece que algo escapou desse impulso moderno e talvez
tenha sido recalcado. O que se paga pelo progresso a todo custo?
O horror é o fundo que rosna, o que deveria sempre permanecer oculto, secreto,
e que de algum modo é disparado. Conversão das forças, converte o amor do progresso
em gozo da destruição e esta pulsão libera o perigo oculto: tudo é possível, aterrador e
fascinante. A divisa de Mallarmé, emblema do impulso moderno, “a destruição foi a
minha Beatriz”, enquanto destruição de todo passadismo e perseguição do novo que
amalgamaria a beleza e a eficácia técnico-científica-administrativa, converte-se na
simples literalidade da destruição. O descentramento dos cânones, retóricas, sistemas e
regras do passado, enfim, tudo o que é liberação produziu simultaneamente a perda das
referências. O sentimento de horror nasce disso. Não é mais possível fazer falar o
“mundo”, pois, desarticulada, a experiência do real não provém de uma instância de
sentido e muito menos induz a uma tal produção. Mas a multiplicidade não substitui,
com vantagem, a unidade. O horror vem da indiferenciação; é, assim, tanto o mundo
desconcertado como a queda na subjetividade radical.
O fechamento da representação, que repercute na crítica do sujeito, e de tudo
que decorre daí, é o tema recorrente do trabalho moderno. No entanto, aquilo que as

21
BAUDRILLARD, Jean. De um fragmento ao outro. Trad. Bras., São Paulo, ZOUK, 2003, p. 36.
33

designações pós-moderno e contemporâneo recobrem ainda implica reativar


dispositivos e referências modernas, mas não restaurá-los. Então, nesta situação, em que
o funcionamento dos elementos constitutivos da modernidade cultural – o indivíduo, o
mercado, a tecno-ciência – foram radicalizados, hiperconcentrados22, como é possível
produzir dissonâncias ao estado das coisas? Pois “a cena contemporânea” é sintomática:
paradoxalmente, combina a supressão de limites com a demanda por normas, a
funcionalidade exacerbada e comportamentos mágicos, a diversidade e a busca por
identidades. Isto ainda configura uma “derradeira possibilidade, senão de uma
representação, pelo menos de uma dramaturgia simbólica”23.

***

Finalmente. O que estes textos configuram como uma espécie de “investigação”,


algo em curso, está sugerido como uma abertura a outras posições que, na enunciação
claudicante do último, estão indiciadas como “aberturas”. Neles, rigorosamente falando,
não se determina um conhecimento do que é tematizado; eles decepcionam a exigência
de conhecimento. Aqui comparecem restos de um esforço de conhecimento. Mas estes
restos são motivados e mobilizados por necessidades e paixões; por isso surgem como
acontecimento. Avançamos por tentativas, empurrados por um encadeamento aberto,
em que o já pensado volta como impensado, sob o estímulo de alguma singularidade
que se manifesta fortuitamente. Pois, os pensamentos são nuvens, diz Lyotard24.

22
LIPOVETSKY, Gilles, “O caos organizado”. Entrevista, Folha de S.Paulo – Mais!, 14/3/2004, p.5-7.
23
BAUDRILLARD, Jean . Id. ib., p. 16.
24
Cf. para esta reflexão, em muitos pontos, LYOTARD, J.-F.. Peregrinações: lei, forma, acontecimento.
trad. bras., São Paulo, Estação Liberdade, 2000, p. 18 e ss.
34

I – Sobre o moderno e o pós-moderno na educação


35

Pós-Moderno na Educação?*

A controvérsia que anima a postulação de um pós-moderno tem em vista


designar, pelo menos, a inquietação (ou a atmosfera) que acompanha transformações
contemporâneas, evidenciadas em discursos científicos, filosóficos, tecnológicos,
artísticos, embora pouco se refiram ao pedagógico. A incidência dessas transformações,
notadamente as tecnológicas e informacionais, sobre o saber (na pesquisa e na
transmissão do conhecimento) corresponde ao desgaste das delimitações culturais e das
áreas do conhecimento, à atual indissolubilidade das relações de conhecimento e
verdade com o poder, ao desmoronamento do que Lyotard denomina grandes discursos
de legitimação (o iluminista, o hegeliano, o marxista, por exemplo). Na situação pós-
moderna, o saber deixa de ser magnetizado por uma idéia, como aquela do projeto
moderno de emancipação da razão e da liberdade humanas; desenvolve-se por uma
dinâmica interna, assimilando o acaso e, através de novas mediações, transformando-se,
muitas vezes, em instrumento de circulação e de poder. Assim, o desafio moderno, de
conferir um sentido às coisas, vê-se atingido pela indeterminação e a heterogeneidade
das atividades contemporâneas, que criticam o ideal de progresso e o finalismo dos
projetos modernos1.
Entretanto, o destaque da educação na organização social (pois é condição da
continuidade de uma sociedade, das instituições) e as esperanças depositadas na
formação (pois esta retém o princípio básico de inteligibilidade e o ideal de completude
como realização dos possíveis do espírito) continuam justificando abordagens e
reflexões que tratam o “fenômeno educacional” como totalidade. No campo educacional
(pois é disto que se trata, de um campo de forças e efetuações) vigem discursos que,
enquanto multiplicam metáforas que relevam do vivido e do acento sobre situações,
afirmam que tal fenômeno só adquire significação social quando articula valores
consensuais. Tendo como pressuposto que a educação deve cumprir um programa de

*
Revista da Faculdade de Educação. v.17, nº. 1/2, São Paulo: FEUSP, jan-dez. 1991, p. 121-127.
Também em: SERBINO, R.V. & BERNARDO, M.V.C. Educadores para o século XXI. São Paulo: Ed.
Unesp, 1992, p. 81-85.
1
Cf. LYOTARD, J-F. O pós-moderno. Trad. bras. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1986, p. 4-5 e L’inhumain,
Paris: Galilée, 1988, p. 12-14.
36

reunificação da experiência2, em função das exigências da formação e da necessidade de


uma ação social concertada, as totalizações pedagógicas procuram, via de regra, “lançar
uma ponte sobre o abismo que separa os discursos do conhecimento, o da ética e o da
política, e, assim, franquear uma passagem a uma unidade da experiência”3. Pergunta-
se, então, ainda acompanhando Lyotard em sua crítica à interpretação que Habermas faz
do pós-modernismo estético e cultural: com que espécie de unidade sonham os
educadores? Aquela, sóciocultural moderna, em que todos os elementos da vida
cotidiana e do pensamento encontrariam um lugar como em um todo orgânico? Ou uma
outra ordem, em que os jogos de linguagem heterogêneos (os do conhecimento, os da
ética, os da política) se cruzam, se superpõem, sem aspirar a uma síntese efetiva4?
Face à dispersão das práticas educativas, à falência dos projetos, ou à diluição
dos valores (atribuída, pelo neoconservadorismo pós-moderno, à difusão de uma ética
social hedonista e anarquista, incompatível com a ordem pública e com o ethos da
cultura5), vem-se pronunciando atualmente um desejo de “retorno à realidade”, de
“recuperação” de um fim unitário da história e do sujeito, que teriam sido perdidos em
meio às operações modernas de desconstrução da cultura, da educação, da arte etc. O
impulso conservador de reterritorialização responde ao pânico generalizado que a
desterritorialização, continuamente realizada nas sociedades afluentes, provoca nos
indivíduos. Se, de um lado, é patente que “não existe uma linguagem que esteja à altura
de traduzir o estado atual das coisas”, uma linguagem adequada a situações
indeterminadas, aleatórias, flutuantes, onde tudo funciona por simulação6 – daí o pânico
–, por outro, pretende-se recompor os esquemas da individualidade, as formas de poder,
a sociabilidade etc., restaurando o império da totalidade. Aí, onde vige o indeterminado,
onde se materializa uma atmosfera que vaga entre a inquietação e a indiferença, entre a
crítica e o cinismo, ainda há quem se empenhe em afirmar discursos que buscam um
sujeito (depois de Freud), uma razão (depois de Nietzsche), uma arte (depois das
vanguardas).
Mesmo que não se subscreva o tom afirmativo do pós-moderno – sua
proposição, por exemplo, de que o projeto moderno, enquanto realização da
2
Cf. HABERMAS, J. “Modernidade versus pós-modernidade”. Trad. bras. Arte em Revista, nº. 7, São
Paulo: CEAC, 1983.
3
Cf. LYOTARD, J-F. Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 16.
4
Idem, ibidem.
5
Cf. ROUANET, S.P.. “Do pós-moderno ao neo-moderno”. Tempo brasileiro. Rio de Janeiro: Ed.
Tempo Brasileiro, n. 84, jan-mar, 1986, p. 92.
6
Cf. BAUDRILLARD, J. Folha de S. Paulo, 23/12/1987, p. A-37, e GUATTARI, F. “Impasse pós-
moderno e transição pós-mídia”, Folhetim, 13/04/1986, n. 479.
37

universalidade, aposta no progresso infinito do conhecimento, no avanço em direção ao


aperfeiçoamento social e moral e na idéia de uma realização progressiva da
emancipação social e individual, foi, mais que esquecido, destruído7 – as repercussões
do debate que gerou incidiram sobre as interpretações culturais em curso. Constata-se
que uma certa concepção de modernidade fracassou, comprometendo a confiança na
própria idéia de prática social emancipadora8. Na educação, a repercussão desse debate
aguçou a sensibilidade para as questões de poder que a envolvem e, mais ainda,
reforçou a desconfiança nos poderes da própria educação. Talvez se possa dizer que o
pós-moderno incide na educação como crítica de uma básica “paixão pedagógica”: o
desejo de renovar e de reparar. Ainda que o proverbial otimismo (ou entusiasmo)
pedagógico tenha esmaecido, dada a dificuldade de se proporem práticas eficazes de
ação social através da educação, e devido à quase impossibilidade de pensar-se a
educação em situações tão indeterminadas como as atuais, a crença nas virtualidades do
impulso para a educação permanece ativa. Uma certa nostalgia, sempre uma esperança,
são secretadas pelos discursos e projetos educacionais, apontando para uma origem,
preexistente às práticas e ao conhecimento, que teria a virtude subtrair-se aos
descaminhos, aos preconceitos, aos esquecimentos das finalidades universais da
educação. No campo educacional, o que prevalece é uma atitude reativa, que pretende
enfrentar a banalização, a dessubstancialização e a individualização do conhecimento e
da experiência; a atomização programada que rege o funcionamento das sociedades
capitalistas (uma outra forma de destruir o projeto moderno), através de uma ambígua
aposta no “resgate” de valores. Assim, propõe-se, freqüentemente, a atitude redentora:
rememorar, para redimir, uma origem traída “como se se tratasse de reparar os crimes,
os pecados, as calamidades, engendradas pelo dispositivo moderno; e, finalmente, de
revelar o destino que o oráculo, no início da modernidade, haveria preparado e realizado
em nossa história”9.
Uma outra atitude é possível: aquela que procura elaborar a inquietação presente
pela pesquisa dos pressupostos implícitos nos projetos. Neste caso, o resgate de
elementos do passado transmuta-se em tendência à reiteração. Reitera-se não apenas
para repetir, mas pra diferenciar e recodificar – operações que forçam o sentido das
atividades que ficaram obscurecidas – de modo a liberá-las; incluí-las no estoque

7
Cf. HABERMAS, J. Art. cit., p. 86 e J.-F. Lyotard, Le postmoderne expliqué..., p. 120 e L’inhumain, p.
36.
8
Cf. GUATTARI, F. Art. cit.
9
Cf. LYOTARD, J.-F. L’inhumain, p. 36.
38

cultural e colocá-las à disposição para usos indeterminados. Esse trabalho se assemelha,


para Lyotard, ao de anamnese, no sentido da terapêutica psicanalítica; “um trabalho
aplicado para pensar aquilo que, no acontecimento e no sentido do acontecimento, nos é
ocultado constitutivamente, não apenas pelos prejuízos passados, mas principalmente
por essas dimensões de futuro que são o projeto, o programa, a prospectiva...”10.
A elaboração do mal-estar em que patinam a educação e seus discursos pode
beneficiar-se de uma concepção estratégica de saber, em que o conhecimento não
procede da valorização dos sujeitos, mas das relações de forças num campo. Esse
deslocamento – o sujeito do conhecimento, as formas do conhecimento não são dados
previamente, mas se constituem no interior dos acontecimentos – propõe, não a
valorização dos significados e finalidades armados em projetos, mas a ênfase nos modos
de enunciação e de produção do conhecimento, pois esta não provém nem de uma
faculdade, nem de uma estrutura universal derivadas da natureza humana; é inventado.
Importa a genealogia do conhecimento e da verdade, isto é, o modo de produção. Efeito
mais valorizado do pensamento, o conhecimento é da ordem do acontecimento; efeito
de superfície coextensivo à linguagem, implica uma ruptura com a natureza humana e
com as coisas.
O conhecimento tem, pois, caráter perspectivo, e é inseparável da interpretação:
resulta das tensões de forças múltiplas e diferenciadas num campo de ações. Como cada
força aspira à dominação, importa sejam determinadas a gradação e a intensidade de
cada força, fixada a sua posição no campo, identificada qual a preponderante. A
interpretação é função do impulso de crescimento das forças e da variação intensiva das
mesmas. Assim, a interpretação refere-se às relações de força que presidem à produção
do conhecimento, não se remetendo nem a um sujeito, nem a um fato isolado, mas a um
campo de dominação11.
Perspectivismo significa relação estratégica na produção do conhecimento, de
modo que este é sempre parcial, oblíquo. Conhecer não é explicar, elucidar, mas
interpetar – atividade contínua, inacabada, voltada não sobre o significado das coisas,
mas para a ação de inscrever signos. Aprender, por exemplo, implica estabelecer
familiaridade prática com os signos, com o heterogêneo; aprender é constituir um
espaço de encontro dos signos –, “espaço em que os pontos relevantes se retomam uns

10
Id. ib., p. 35.
11
Cf. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC-RJ, Cadernos da PUC,
Série Letras e Artes, 06/74, p. 10, ss. Cf. também KOSSOVITCH, L. Signos e poderes em Nietzsche. São
Paulo: Ática, 1979, p. 30-32, 58 e ss.
39

aos outros, e em que a repetição se forma ao mesmo tempo em que disfarça”12 . Emitir
signos a serem desenvolvidos no heterogêneo é o que pode fazer toda educação;
apoderar-se violentamente desses signos, dominar situações, dar forma, estruturar,
impor determinadas relações de força, situar aquele que se educa. Educar-se, conhecer,
aprender: arte da multiplicação do sentido e da modificação da natureza dos signos que,
por estabelecerem relações entre um ocultado e uma superfície, manifestam-se como
sintomas. Toda educação processa-se ao nível dos sintomas, para situar o intérprete na
atividade de valoração: quanto vale uma força, esta força?
O perspectivismo do conhecimento pode ser aventado como traço do saber pós-
moderno, adequado às reflexões pedagógicas – sobre o estatuto da pedagogia, sobre os
modos de construção do conhecimento, sobre o ensinar e o aprender. Talvez o discurso
pedagógico seja, ainda, um tanto frouxo, principalmente face à instabilidade e
indeterminação contemporâneas do saber, das práticas, dos valores etc. Devido ao
finalismo que tradicionalmente o domina, é muito difícil trabalhar sem regras já
estabelecidas, sem a priori; é complicado aceitar-se na educação que as regras se
estabelecem a partir do que é feito, no que é feito. Propondo-se como um saber que
subentende a arte de ensinar, fundando-se no pressuposto de que há um desejo de saber,
como a pedagogia pode se justificar numa situação (pós-moderna) em que o próprio
saber, e o ensinar estão envolvidos no jogo das simulações? Embora afirmando
reiteradamente a indissolubilidade dos processos de ensinar e aprender (como ensinar,
como aprender), na educação a compulsão de ensinar acaba preponderando, pois o
ensino é a prática consagrada na instituição, e o aprender, como bem se sabe, pode
subverter os jogos de poder.
Nesta situação, embora permaneça como forma privilegiada de gestão do social,
a educação é quase uma impossibilidade. A vivência do mal-estar na educação propõe
ao entusiasmo pedagógico a tarefa de transformar a impossibilidade em necessidade:
exercício instigante, que exige a desmontagem dos mecanismos dos discursos e das
práticas educacionais, abrindo o espaço da indeterminação e ativando o imaginário
pedagógico contemporâneo. O pós-moderno, diz Lyotard, “aguça nossa sensibilidade
para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável”13.

12
Cf. DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. bras. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 54-5.
13
Cf. LYOTARD, J.-F. O pós-moderno. Op. cit. nota 1.
40

Sobre o pós-moderno na educação*

A perda da perspectiva histórica unitária, o fato de o moderno não mais ser um


valor determinante, a indeterminação teórica e a incomensurabilidade da experiência
contemporânea talvez sirvam para explicar a irrisão dos projetos de sistematização da
cultura, do saber, das artes. Um dos sintomas mais evidentes é o movimento de
restauração que mobiliza artistas, educadores e promotores culturais, premidos pela
demanda da sociedade das comunicações, ao acentuarem a recepção pública
normalizada. A confusão é grande, atingindo a teoria, a pesquisa e as práticas, pois face
à quase impossibilidade de produção de consenso promove-se uma rápida conciliação
entre imagens do passado e efeitos de inovação, – mistura esdrúxula de passadismo e
progressismo. Freqüentemente, disso resulta a confirmação de identidades
institucionalmente requeridas por uma suposta pós-modernidade.
Pouco se percebe, entretanto, que algo muito virulento está acontecendo: a crise
da idéia de história, que incide sobre a concepção moderna-iluminista da história como
processo de emancipação progressiva do homem. Basta observar, nas atividades e
teorias culturais e artísticas, a convivência indiscriminada de procedimentos telemáticos
(que implicam um sujeito fractal envolvido na multiplicidade de redes), com os que
propugnam a autonomia do sujeito auto-consciente (que realizaria concretamente o
mundo humano), para notar-se a complexidade de tal acontecimento. Repercutindo na
pesquisa e na transmissão dos conhecimentos; na sensibilidade, na linguagem e no
pensamento; no fundo, sobre a própria idéia de realidade, a situação está longe de ser
adequadamente configurada. Mas, face à indeterminação, cabe a análise e a
interpretação; ao menos uma perspectiva, aquela que enfatiza a marcha da enunciação
ao invés dos enunciados.
A crise do ideal emancipativo, particularmente o iluminista, de suas idéias de
história e progresso, pondo em causa a realização da civilização e o ideal do homem
europeu, tem sido objeto de um debate que se refere, em última instância, aos

*
Este texto recorta e modifica o que foi publicado, sob o título “Educar e avaliar: uma perspectiva
contemporânea” no caderno Educação e Avaliação, publicado pelo Grupo Paidéia, coordenado
pelo Prof. Alfredo Bosi. Instituto de Estudos Avançados da USP, Col. Documentos, série
Educação para a Cidadania, nº 8, dez. 1993, p. 3-9; republicado em Argumento. São Paulo:
Secretaria da Educação/CENP, 1994, p. 98-103.
41

desenvolvimentos da, assim chamada, razão moderna. A querela modernidade versus


pós-modernidade, nos seus diversos enfoques, epistemológicos, culturais, artísticos e
políticos, traduz o destino da razão na sociedade midiática, em que a autoconsciência
não modela definitivamente o saber e a experiência. Ela abriu um espaço teórico
interdisciplinar que, enquanto procura evidenciar e reelaborar os pressupostos, limites e
conseqüências da modernidade, sonda as possibilidades da emancipação na cultura
dessubstancializada, de sociabilidade rarefeita.
Habermas e Lyotard polarizaram o debate pela valorização diversa do poder
emancipatório da razão iluminista; o primeiro, apostando no inacabamento do projeto
moderno, pensa que é preciso realizá-lo retraduzindo-o segundo os problemas atuais da
comunicação; o segundo, ao contrário, considerando-o acabado, nega o potencial
emancipador do projeto a partir da situação desencadeada pelas operações da tecno-
ciência1. Preocupado com a “destruição de formas de convívio humano”, Habermas, em
sua crítica do neoconservadorismo cultural e social, insistentemente reitera que “uma
modernização unilateral, orientada segundo padrões da racionalidade econômica e
administrativa, penetra em esferas da vida que estão centradas nas tarefas da tradição
cultural, integração social e educação, e que, portanto, se assentam em outros padrões,
isto é, nos padrões de uma racionalidade comunicativa”2. Pretende, através das
categorias da razão comunicativa, sondar as possibilidades de uma comunidade
argumentativa universal que permita manter a unidade da experiência; isto é, um
consenso no enfrentamento das aporias da modernidade. Lyotard, contrariamente, não
acredita na possibilidade de uma ação social concertada, pois, para ele, com o
desmoronamento do que denomina “grandes discursos de legitimação” (o iluminista, o
hegeliano sobre a realização do espírito, o marxista sobre a emancipação dos
trabalhadores), todos os valores de consenso tornaram-se obsoletos e suspeitos.
Também descrendo de uma filosofia da linguagem unificadora, afirma que somente
pequenos discursos, ou “pragmáticas de partículas de linguagem”, múltiplas,
heterogêneas, e cuja performatividade é necessariamente limitada, podem propor alguns
valores de justiça e liberdade3.

1
cf. HABERMAS, J. “Modernidade – um Projeto Inacabado”. Trad. bras. em ARANTES, Otília &
ARANTES, Paulo. Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense,
1992. Cf. também LYOTARD, J-F. O Pós-Moderno (La Condition Postmoderne). Trad. bras., Rio de
Janeiro: J. Olympio, 1986.
2
HABERMAS, J. op. cit. p.108-9.
3
cf. GUATTARI, F. “Impasse pós-moderno e transição pós-mídia”. Folha de S.Paulo, Folhetim,
23/4/86,p.4.
42

Assiste-se atualmente, segundo Lyotard, a uma transformação profunda dos


sistemas; da razão instituída ou que se institui continuamente no esforço de restaurar e
recompor identidades (o social, o político, o sujeito, a arte, a educação, a cultura),
exatamente para não se enfrentar a indeterminação, a heterogeneidade dos saberes,
práticas e experiências. É preciso, insiste, tentar compreender estas transformações, sem
dramas mas sem negligenciá-las. O termo “pós-moderno”, apesar de sua inadequação e
dos usos abusivos, serve para designar qualquer coisa, pelo menos a inquietação, a
atmosfera e a falta de entusiasmo histórico, advindos com a falência das grandes
narrativas de legitimação. A pós-modernidade impõe uma reavaliação da idéia de um
fim unitário da história, do sujeito auto-consciente e da razão autônoma. O saber
desenvolve-se agora por uma dinâmica que assimila o acaso e os efeitos da tecno-
ciência, e através de novas mediações transforma-se muitas vezes em instrumento de
poder, em mercadoria.
A questão contemporânea, deste ponto de vista, é a da multiplicidade. Mas, no
saber ou na arte, na cultura ou na educação, multiplicidade não significa imediatamente
elogio da fragmentação, que freqüentemente é simples recusa da unidade para fins
instrumentalizadores – narcisistas, hedonistas, comerciais, modistas – que elegem a
diferença e a diversidade individual, social e cultural como motivos ou gênero da
pesquisa. A multiplicidade valoriza o que se passa na “transversal”, na associação de
signos heteróclitos, implicando a heterogeneidade como relação. A contrapartida do que
se elabora na continuidade visando a totalizações, não é a simples fragmentação, porque
esta pode estar postulando uma realidade já existente, que só pode manifestar-se em
fragmentos, ou um conjunto ainda por vir, – o que retira a violência dos signos e suas
relações, que são inteiramente diferentes e irredutíveis à unidade4. Assim, não há
multiplicidade qualquer, nem indefinida; assim como a recusa das totalizações não
implica a impossibilidade de toda unidade. Para dar conta de um estado de coisas,
aleatório e flutuante, para o qual não existe hoje uma linguagem adequada, a visada da
multiplicidade não dispensa as unidades discretas,articuladas em séries ou em redes, às
vezes determinadas nas interseções delas.
O dispositivo agenciado pela multiplicidade é a desterritorialização – do social,
das identidades coletivas, dos sistemas de valor-,enquanto o da unidade-totalidade
promove a recomposição de esquemas e modelos funcionalmente similares àqueles

4
cf. DELEUZE, G. Proust e os Signos. Trad. bras., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p.22 e
122.
43

criticados pelas ciências, técnicas e artes da modernidade.5 De um lado, valoriza-se a


proliferação de teses, conceitos, redes, deslocações, sobreposições e invenções; de
outro, a procura de idéias salvadoras, que fundamentem e regulem as ações, a
investigação, o ensino, a arte.Trata-se, hoje, de configurar e decifrar uma paisagem
desconhecida, de navegar entre suspresas e incertezas, pois não há nenhuma idéia que
salve6.
O conhecimento é descoberta das relações entre os signos. Tendo as
propriedades do acontecimento,a sua produção e resultados “não são em princípio
governados por regras já estabelecidas, e não podem ser julgados mediante um juízo
determinante, pela aplicação de categorias conhecidas, pois estas regras e categorias são
exatamente aquilo que se procura”7. Defrontar-se com o desconhecido é reconhecer nos
acontecimentos não o que acontece, mas alguma coisa no que acontece, entendendo o
saber como o “espaço de encontro com os signos, espaço em que os pontos relevantes se
retomam uns nos outros, estruturando e modificando relações entre os signos
instituídos”8. Esta concepção, estratégica, faz o conhecimento derivar das relações de
força num campo, de modo que ele pode ser dito como inventado Enquanto produção, o
conhecimento resulta da tensão de forças múltiplas e heterogêneas num campo de ações,
em que o pensamento, a sensibilidade e os modos da anunciação dependem da gradação
e intensidade das forças.
Esta concepção do saber,que resiste à totalização do conhecimento, talvez
explique, pelo menos em parte, o pânico generalizado que a desterritorialização
provoca; seja porque dificulta a elaboração de projetos e a garantia de sua execução,
seja porque evidencia a irrisão das ações individuais que pretendem retirar sua validade
das puras potencialidades da razão e da liberdade. Assim, compreende-se a ênfase atual
na restauração da unidade, julgada perdida, para dar conta de um suposto vazio de
idéias; compreende-se a insistência no resgate do passado, alegado para suprir a falta de
referências e fundamentos. Mas, note-se como freqüentemente o passado é visado como
uma bela totalidade, como promessa de liberdade ou completude projetada idealmente,e
não como elaboração, isto é, um processo analítico que articula um presente
inconsistente, turbulento, a elementos cuja historicidade só pode ser aferida pela força

5
cf. GUATTARI, F.. Art. cit.
6
cf. PRADO COELHO, Eduardo. “Para comer a sopa até o fim”. In: Jornal do Brasil, Idéias/Ensaios,
3/3/91, p.4.
7
LYOTARD, J-F. Le Postmoderne Expliqué aux Enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 33.
8
DELEUZE, G. Lógica do Sentido (trad. bras. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 152) e Diferença e
Repetição, (trad. Bras. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.54).
44

das relações que os produziram, não pelo fato de serem simplesmente passados. É
preciso, sim, reiterar e recodificar, retomar e analisar, não com intuitos restaurativos,
mas para evidenciar um trabalho que, ao realizar-se segundo as condições do seu
presente, secretou também a sua parte de transitório, não apenas a parte de eterno.
Rememorar, pois, não se confunde com a atitude redentora; esta mantém compromissos
com a idealização, esquecendo que na sua origem todo processo de formação não exclui
constrangimentos, desregramento e mesmo terror9.
O campo pedagógico, por ser exemplar tanto quanto o da arte, debate-se com a
indeterminação, manifestando, apesar das experimentações variadas, do
redirecionamento teórico e dos projetos de reorganização dos sistemas, grande
dificuldade em adequar discursos modernizantes a práticas que assumam a
heterogeneidade. O desejo de atualidade, aliado à paixão pedagógica, continuam
validando o pressuposto de que a educação visa a realizar um programa de reunificação
da experiência e do saber, exigido pelo dever de formação e necessidade de produção de
resultados consensuais. Embora sabendo os educadores que a ação pedagógica procede
hoje da interseção de teorias e pesquisas de procedência diversa, que é inadequado tratar
as novas tecnologias, especialmente a telemática e a informática, apenas como novos
meios de comunicação – pois seus procedimentos são determinantes para o processo de
dissolução dos pontos de vista centralizadores da consciência, sensibilidade, afetos e
linguagem -, parece que eles, os educadores, ainda sonham com uma espécie de unidade
em que “todos os elementos da vida cotidiana e do pensamento encontrariam um lugar
como em um todo orgânico”10, tendo em vista a formação integral dos educandos.
Pode-se perguntar se a idéia de formação legitimada nos discursos pedagógicos
não manteria ainda vínculos com a idéia de natureza homogênea, com o finalismo da
razão e com a auto-consciência do sujeito, – e não com a idéia que implica a educação
como efetuação dos possíveis do espírito. Muito se valoriza hoje a experiência das
crianças e dos jovens; a efemeridade dos afetos, a labilidade dos valores, a força do
cotidiano e a diversidade cultural; mas sabe-se que é defrontando-se com o heterogêneo,
o estranho e o desconhecido que eles podem dar forma à insatisfação que mobiliza a
aprendizagem. Mas não é convertendo o heterogêneo em homogêneo, por uma suposta
continuidade de experiência e conhecimento que se pode acolher o múltiplo e salvar a
unidade. As possibilidades de uma educação contemporânea derivam das condições

9
cf. LYOTARD, J-F. L'Inhumain. Paris: Galilée, p.12.
10
LYOTARD, J-F. Le Postmoderne Expliqué aux Enfants, p.16.
45

geradas para que as crianças e jovens possam apoderar-se dos signos fortes da
experiência para dominar situações, modificar relações vigentes nos signos instituídos, a
se acreditar em que “aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, como se
emitissem signos a serem decifrados, interpretados”11.
Assim, como pensar uma racionalidade sistemática, nesta situação em que a
indissociabilidade de saber e formação é posta em questão? De um lado há o esforço em
restabelecer um plano de formulações universalizáveis; uma racionalidade apta para
definir regras universais do bom e do justo. De outro, uma tendência que restringe a
validade universal das regras em nome da pluraridade e heterogeneidade das
experiências. Para Habermas, devido às novas mediações da razão comunicativa, tratar-
se-ia de sondar as possibilidades teóricas e práticas de um reacoplamento entre razão e
emancipação na cultura da modernidade tardia, na busca de normas “de validade
intersubjetiva que conectam expectativas recíprocas de comportamento e que validam
pelo discurso”12. A sua proposição de uma ética discursiva, baseada no consenso, visa
ao estabelecimento de uma espécie de “comunidade argumentativa universal”, efetivada
pelas categorias e processos da razão comunicativa.
Lyotard, entretanto, não acredita nas possibilidades desta validação
intersubjetiva, nem mesmo na possibilidade de se fundar racionalmente uma ética nos
quadros da sociedade pós-industrial. A tecno-ciência, diz ele, incidiu sobre a linguagem,
modificando as condições dos enunciados aceitos como conhecimento, de modo que o
critério de validade do conhecimento passa a ser o da eficácia, de “capacidade
discriminante”. Utilizando-se da teoria dos jogos de linguagem, observa que “nestes as
regras não são legítimas em si mesmas, mas resultantes de um contrato explícito; uma
modificação mínima de uma regra modifica a natureza do jogo. Todo enunciado deve
ser considerado como um 'lance'. Isto significa que todo ato de fala é um ato de
combate, no sentido de jogo, e que os atos de linguagem revelam uma 'agonística
geral'.”13. Assim a questão da validade e da eficácia do discurso de saber implica a
análise das formas de discurso, “pois como saber se um discurso sobre a realidade não é
alienado, isto é, não é uma ideologia, a não ser mediando-o por um outro discurso
suposto verdadeiro?” 14.

11
DELEUZE, G. Proust e os Signos, p.4.
12
MACHADO, Carlos E.J. “O conceito de racionalidade em Habermas: a guinada da Teoria Crítica”. In:
Trans/Form/Ação. São Paulo, v.11, 1988, p.38.
13
Id. ib., p.35.
14
LYOTARD, J-F. Entrevista ao Jornal da Tarde. São Paulo, 20/1/79, p.4.
46

Estas posições conflitantes são expressivas das repercussões deste debate nas
teorias e práticas institucionalizada e instituídas de ensino e de pesquisa, principalmente
nas tentativas recentes de conferir significação a um domínio cultural marcado
fortemente pelos ardis da comunicação e pelos desígnios da racionalidade econômico-
administrativa.
47

Unidade e multiplicidade no debate sobre o pós-moderno*

Na introdução do livro que marca sua intervenção no debate sobre o pós-


moderno, Lyotard diz que o saber pós-moderno “aguça nossa sensibilidade para as
diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável” (1986:XVII). A
ênfase na diferença e no incomensurável, que tantalizam a experiência contemporânea,
aparece, na problematização da história, na teoria, na cultura e na arte, através de
expressões que são verdadeiras personagens conceituais: indeterminado,
heterogeneidade, hibridismo, deslegitimação, desenraizamento etc. Todas indiciam,
pretendem significar; o processo de fuga do consensual, a dificuldade de unificar e
totalizar, valorizando descontinuidades, desterritorialização, descentramento:
multiplicidade.
O debate sobre a pós-modernidade, enquanto análise dos pressupostos, limites e
conseqüências da modernidade, situa-se, basicamente, no horizonte dos problemas
surgidos no desenvolvimento da assim chamada “razão moderna” e, especialmente, da
consciência, ou crença generalizada do seu esgotamento – de uma suposta incapacidade
de abrir novas vias de progresso e de investigação teórica do que é próximo, atual.
Estabelecendo-se no arco que inclui desde posições da negatividade crítica até aquelas
neoconservadoras, o debate implica o campo das artes, da literatura, das ciências
sociais, da filosofia e mesmo da ciência, originando um espaço interdisciplinar das
teorias e experiências contemporâneas. Tal como foi polarizado nas posições
extremadas de Habermas e Lyotard, o debate centra-se na valorização diversa do poder
emancipatório da razão iluminista; a primeira, afirmando a permanência do projeto
moderno-iluminista, considera as proposições pós-modernas identificadas a tendências
políticas e culturais neoconservadoras; a segunda, contrariamente, considera o projeto
moderno como acabado, e que os resíduos iluministas não mantêm, na situação pós-
moderna, qualquer potencial emancipador. No fundo, a questão toda é da crença no
progresso da razão e da história, central no projeto moderno, descentrado na perspectiva
pós-moderna.

*
Este texto é uma outra variante do texto publicado no caderno Educação e Avaliação, do IEA-USP, em
1993. Provém de uma mesa redonda na PUC-SP em 1993. In: MARTINELLI, M.L. et al. (org.). O uno e
o múltiplo nas relações entre as áreas do saber. São Paulo: Cortez/EDUC, 1995, p. 29-44.
48

Enquanto Habermas parece apostar numa espécie de iluminismo contemporâneo


que permita manter uma unidade da experiência através das categorias de uma razão
comunicativa voltada para a formação de uma comunidade argumentativa universal,
Lyotard, como assinala Guattari (que dele discorda), desconfia “de qualquer veleidade
de ação social concertada”, pois

todos os valores de consenso [...] tornaram-se obsoletos e suspeitos [...] devido ao


desmoronamento do que ele denomina grandes discursos de legitimação (por exemplo, o
discurso Iluminista, o de Hegel sobre a Realização do Espírito ou o dos marxistas sobre a
emancipação dos trabalhadores). Somente os pequenos discursos de legitimação, em outras
palavras, “pragmáticas de partículas de linguagem”, múltiplas, heterogêneas, e cuja
performatividade é necessariamente limitada no tempo e no espaço, podem ainda salvar alguns
valores de justiça e liberdade1.

Estamos hoje assistindo, segundo Lyotard, a uma transformação profunda dos


sistemas; da razão instituída ou que se institui continuamente no esforço de restaurar e
recompor identidades (o social, o político, o sujeito, a arte etc.), exatamente para não se
enfrentar a indeterminação contemporânea, a heterogeneidade de saberes, de práticas e
experiências. É preciso, insiste, tentar compreender estas transformações, sem dramas
mas sem negligenciá-las. O termo “pós-moderno”, apesar de inadequado, serve para
designar qualquer coisa dessas transformações2; pelo menos a atmosfera, a inquietação,
os traços de entusiasmo, tristeza, dúvida e ironia que marcam os discursos políticos,
éticos e artísticos destes tempos pós-utópicos.
A incidência dessas transformações no saber, especialmente as provocadas pela
tecnociência e pelas redes de comunicação, corresponde ao desgaste das delimitações
tradicionais de áreas de conhecimento e da cultura e à perda da unidade da experiência.
Na situação pós-moderna, o saber deixa de ser magnetizado por uma Idéia; desenvolve-
se por uma dinâmica interna assimilando o acaso e, através de novas mediações,
transforma-se muitas vezes em instrumento de circulação mercantil e poder.
Desde que se parta da visada da multiplicidade, a questão contemporânea pode
ser assim entendida: conceitualmente, o múltiplo não significa simplesmente
multiplicação indefinida; a multiplicidade valoriza o que se passa “entre”, o que se

1
GUATTARI, F. “Impasse pós-moderno e transição pós-mídia”. Folha de S. Paulo. 23/4/1986, Folhetim,
p.4.
2
LYOTARD, J-F. La condition postmoderne. Paris: Minuit, 1979.
49

elabora não na continuidade e totalidade (isto é, segundo um ponto de vista), mas na


“transversal”, na associação de signos heteróclitos. Mas isto não implica simples elogio
da fragmentação, pois esta pode estar postulando uma realidade já existente (que se
apresenta fragmentariamente) ou um conjunto ainda por vir – o que retira a violência
dos fragmentos e suas relações, que são inteiramente diferentes e irredutíveis à unidade.
Pois fragmento aqui quer dizer signo, que já implica a heterogeneidade como relação3.
Assim, não há multiplicidade qualquer; unidade e multiplicidade são componentes de
um único movimento que tenta dar conta do estado atual (aleatório, flutuante) das
coisas, para o qual não há uma linguagem adequada. A visada da multiplicidade é
desterritorializante (dos territórios sociais, das identidades coletivas, dos sistemas de
valor tradicioanis); a da unidade, hoje reativa, visa à recomposição de esquemas e
modelos funcionalmente similares aos criticados pelas ciências, técnicas e artes da
modernidade, mobilizando freqüentemente a reterritorialização subjetiva do
conservadorismo4.
O sentimento muito difundido de que hoje patina-se no indeterminado,
manifesta-se, atualmente, em conservadores, progressistas e apocalípticos, através de
expressões como: desencanto, desilusão, vazio de idéias, melancolia, niilismo, barbárie.
São expressões que não alcançam os paradoxos, ambigüidades e as conseqüências da
modernidade; subscrevem implicitamente que é um tempo malogrado, e que depois só
há o vazio. Fora, entretanto, dessas visões taxativas e apressadas, fora do lamento,
cumpre constatar

através do próprio desastre, nessa perda dos astros reguladores que todo desastre é, [que] alguma
coisa se move [e] que, se nos incitarmos a seguir o fio tênue desse movimento, nos poderá
conceder um pouco de alegria e deslumbramento – o enigmático sorriso de um virar de século.
Poder-se-á suspeitar que, quando se fala em “vazio de Idéias”, o que se lamenta é
fundamentalmente isto: não existem hoje idéias que salvem, nem idéias que fundamentem. Por
outras palavras: nenhuma idéia nos assegura a salvação, nenhuma idéia é portadora de uma
verdade que salve, nenhuma idéia nos dispensa de sermos nós próprios a criarmos o nosso
modelo e itinerário de salvação. E ainda: nenhuma idéia é suficientemente forte para
fundamentar uma prática, para funcionar como ciência rigorosa da práxis. Sem astros que nos
guiem, sem uma ciência da navegação que apenas seja preciso aplicar, avançamos agora num
mar de surpresas e incertezas. [...] Contudo, o panorama das idéias contemporâneas é feito de

3
DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, pp. 22 e 122.
4
GUATTARI, F. “Impasse pós-moderno e transição pós-mídia”. Folha de S. Paulo. 23/04/1986,
Folhetim, p. 4.
50

múltiplos acontecimentos interessantes. Se não procurarmos idéias que salvem ou fundamentem;


mas, sim, a proliferação de teses, conceitos, redes, deslocações, sobreposições, derivas e
invenções, deparamos com uma paisagem desconhecida que é preciso configurar e decifrar5.

Configurar e decifrar uma paisagem desconhecida, indeterminada, exige, não a


aplicação de um modelo ou sistema legitimados, mas o mergulho no heteróclito, aí
procurando inventar um ponto de vista unificador. O conhecimento é descoberta de
relações entre signos; o conhecimento tem as propriedades do acontecimento, cujas
regras e categorias não são dadas, mas se estabelecem na produção das relações.
Defrontar-se com o desconhecido é reconhecer nos acontecimentos “não exatamente o
que acontece, mas alguma coisa no que acontece”, constituindo-se o saber como um
“espaço de encontro com os signos, espaço em que os pontos relevantes se retomam uns
nos outros, estruturando e modificando relações entre os signos instituídos”6. Esta
concepção, estratégica, do saber faz o conhecimento proceder das relações de força num
campo, de modo que ele pode ser dito como inventado; importa a produção de
conhecimento, que resulta da tensão de forças múltiplas e heterogêneas num campo de
ações. O que é sempre preciso – e isto advém tanto do pensamento, como da
sensibilidade e dos modos da enunciação – é a gradação e a intensidade das forças.
Esta concepção não-consensual de conhecimento e saber corresponde ao campo
aberto da experiência contemporânea, resistente à visão de totalidade, o que é
responsável pelo pânico generalizado que a desterritorialização provoca, seja porque
dificulta a elaboração de projetos, seja porque evidencia a irrisão das ações individuais.
Assim, compreende-se a ênfase atual, na experiência, no saber, na cultura, na
restauração da unidade perdida – o que aparece, por exemplo, na insistência para com o
“resgate” do passado, entendido freqüentemente não como elaboração do que no
passado foi um trabalho de ruptura, mas apenas como promessa, ideal, utopia. Sob a
rubrica do resgate, ouve-se a voz da totalidade, como se fosse possível repetir a
historicidade dos projetos. É preciso, sim, reiterar, recodificar, para iluminar o presente
inconsistente através daquilo que no passado cumpriu-se ou foi esquecido e reprimido;
melhor ainda, obscurecido pela força dos projetos. Rememorar não se confunde com

5
COELHO, E. P. “Para comer a sopa até o fim”. Jornal do Brasil. 03/03/1991, Idéias/Ensaios, p. 4.
6
DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 152 e Diferença e repetição. Rio de
Janeiro: Graal, 1988, p. 54.
51

atitude redentora, pois esta mantém compromisso com a origem, cifra de um destino
hoje desapropriado7.
Observe-se, por exemplo, como tal atitude manifesta-se no campo educacional.
Apesar das experimentações e iniciativas – teóricas, técnicas, de organização de
sistemas –, é um campo que ainda mantém uma distância acentuada entre discursos
modernizantes e práticas modernizadoras, entre desejos de atualidade e persistência de
modelos que esquecem a heterogeneidade cultural. No fundo, continua a valer o
pressuposto de que a educação visa a realizar um programa de reunificação da
experiência, por exigência do dever de formação e necessidade de cumprir objetivos e
produzir ações com o mínimo de consenso. Embora saibam os educadores que a prática
pedagógica exige hoje a coexistência de múltiplas referências teóricas, que é impossível
fechar-se os olhos para as transformações, na consciência, na sensibilidade, nos afetos,
trazidas pela tecnociência, parece que ainda sonham com uma espécie de unidade:
aquela, sócio-cultural moderna, na qual “todos os elementos da vida cotidiana e do
pensamento encontrariam um lugar como em um todo orgânico”8, tendo em vista a
“formação integral” dos educandos.
O campo educacional, apesar de toda a grande experimentação em curso há
bastante tempo, resiste, por sua pretensão totalizadora, a tomar estas experimentações
como sua própria realidade, pois está sempre em busca de grandes discursos de
legitimação, ou seja, de fundamentação e organização unitárias. Não seria porque a
idéia de formação mantém vínculos profundos com a idéia de natureza homogênea,
autoconsistente, com a de perfectibilidade? Pois não é visível que, na educação,
enquanto multiplicam-se discursos e ações que enfatizam a experiência mutável dos
jovens, o caráter efêmero das vivências cotidianas, a labilidade dos valores, ao mesmo
tempo insiste-se na necessidade do consenso para a formação? E, assim, não estaria
havendo um reforço das homogeneidades para validar-se uma identidade institucional?
Sabe-se muito bem hoje que é defrontando-se com o heterogêneo, com o
estranho, com o desconhecido, que os jovens podem dar vazão à insatisfação,
fundamento de qualquer aprendizagem. Mas, não é passando apressadamente do
heterogêneo ao homogêneo, por uma suposta continuidade de experiência e
conhecimento, que eles podem acolher o múltiplo e salvar o uno. Todo o problema está
na possibilidade e nas maneiras de eles se apoderarem dos signos da experiência para

7
LYOTARD, J.F. L’inhumain. Paris: Galilée, 1988, p. 36 e ss.
8
LYOTARD, J.F. Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 16.
52

dominar situações e modificar relações vigentes nos signos instituídos – posicionando-


se como uma espécie de “egiptólogos”, pois “aprender é, de início, considerar uma
matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados,
interpretados”9.
Para se configurar a “paisagem desconhecida”, seria preciso falar, no campo
político, do abrandamento das opções radicais, do fim das utopias e do tempo das
revoluções; estabelecer, no campo filosófico, a oposição entre os que postulam um
retorno ao discurso da verdade e os que apostam na pluralidade dos jogos de verdade;
falar, ainda, do desinvestimento do social, da importância dos sistemas de comunicação
de massa e de tudo a que se chama hoje telemática; do interesse crescente pela ciência e
pelas metáforas dela derivadas, de grande repercussão pública (buracos negros, teoria
das catástrofes, objetos fractais etc.); da voga da psicanálise, da generalização da arte;
do retorno do discurso da Ética e da Religião (inclusive da sua metamorfose em
esoterismos, misticismos, ritualismos). No fundo, tudo se remete, de um lado, ao
esforço em restabelecer um plano de “formulações universalizáveis, isto é, de uma
racionalidade que se considera apta a definir regras universais do bom e do justo”; de
outro, “uma tendência para restringir a validade universal destes modelos em nome da
pluralidade ilimitada das experiências10, ressaltando o “sujeito fractal, fragmentado, que
se agita na interface de uma multiplicidade de redes”11.
Suportar o incomensurável, suportar a relatividade essencial das coisas, olhar de
frente a ausência de um juiz supremo: este é o desafio dessa nossa condição pós-
moderna.

9
DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 4.
10
COELHO, E.P. “Para comer a sopa até o fim”. Jornal do Brasil. 03/03/1991, Idéias/Ensaios, p. 4.
11
JEUDY, H.P. Ardis da comunicação. Rio de Janeiro: Imago, s/d.
53

ANEXO

Nietzsche: uma estratégia da interpretação*

Não se trata, aqui, de tomar Nietzsche como objeto de pensamento, mas de


pensar com ele, através dele. Utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar, talvez seja o
único sinal de reconhecimento que se pode testemunhar a um pensamento como o de
Nietzsche; pois ele não se constitui em sistema, propõe-se como uma tópica a que se
deve habituar quando se pretende, para além do repouso, elaborar o mal-estar. Para
Nietzsche, pensar é sempre interpretar, falsificar, deformar; pensar com ele é afirmar
um modo do pensamento, da sensibilidade, da enunciação em que vigem a
desconfiança, a zombaria, a objeção – sinais de saúde1. Para ele, o conhecimento (o
efeito mais valorizado do pensamento) é da ordem do acontecimento: é invenção, efeito
de superfície coextensivo à linguagem.
O conhecimento não é uma faculdade, nem uma estrutura universal, derivadas
de uma natureza humana. Uma fábula de Nietzsche assim o vê: “Em algum remoto
rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares,
havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o
minuto mais soberbo e mais mentiroso da ‘história universal’: mas também foi somente
um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais
inteligentes tiveram de morrer”2. Não pode, ainda, o conhecimento ser reduzido ao
modo consciente de pensar, pois “a maior parte do pensamento consciente deve também
ser incluída nas atividades instintivas (...), é dirigida secretamente pelos instintos e
forçada a seguir determinada via”3. O conhecimento não despreza, contudo, o explícito,
pois, para Nietzsche, não há oposição de pensamento consciente e instinto; mas a sua
virulência provém daquilo que ele dissimula: a avaliação, que decorre da efetuação das

*
Estudos Lingüísticos XVIII – Anais de Seminários do Gel. Lorena: Grupo de Estudos Lingüísticos do
Estado de São Paulo, 1989, pp. 58-64.
1
FOUCAULT, M. “Os jogos do poder”. In: GRISONI, D. (org.). Políticas da filosofia. Trad. port.,
Lisboa: Moraes, 1977, p. 141; LEBRUN, G. Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 38.
2
NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Seleção de G. Lebrun. Trad. de Rubens R. Torres Filho. Coleção
Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 53.
3
NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal. § 3. Trad. port. Lisboa: Guimarães, 1967, p. 13.
54

forças (impulsos, vontade de potência) de seus modos de produção, da atividade da


interpretação4.
Através do procedimento genealógico Nietzsche afirma o conhecimento como
invenção, opondo esta concepção ao procedimento genético, entendido como busca da
origem, em que sobressaem as noções de essência e verdade5. O que interessa a
Nietzsche é a proveniência dessas noções, a sua produção; não a origem, o começo:
invenção. Esta concepção indica uma ruptura do conhecimento, tanto com a natureza
humana como com o mundo (as coisas) a conhecer. A relação entre os instintos e o
conhecimento, assim como aquela entre o conhecimento e as coisas é de violência, de
luta. O conhecimento tem por fundamento e ponto de partida os instintos; não é um
instinto nem o refinamento deles, é efeito do estado de tensão ou de apaziguamento
entre os instintos. Na imagem de Nietzsche, “uma centelha entre duas espadas”,
diferindo, entretanto, do material que as constitui. O conhecimento nasce de uma
relação de violência, da luta, do combate, em que vigem o risco e o acaso6.

O que significa conhecer? – Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere! – Diz
Espinosa, simples e sublime, como é o seu modo. Entretanto: o que é esse intelligere, no último
fundamento senão a forma em que justamente os três primeiros se fazem sentir a nós de uma só
vez? uma resultante dos impulsos, diferentes e contrários entre si, do querer-ir, lamentar,
execrar? Antes que seja possível um conhecer, é preciso que cada um desses impulsos tenha
apresentado seu ponto de vista unilateral sobre a coisa ou acontecimento; posteriormente surge o
combate dessas unilateralidades e dele às vezes um meio-termo, um apaziguamento, um dar-
razão a todos os três lados, uma espécie de justiça e contrato: pois graças à justiça do contrato
podem todos esses impulsos afirmar-se na existência e ter razão todos juntos. Nós, que só temos
consciência das últimas cenas de reconciliação e cômputos finais desse longo processo,
pensamos portanto que intelligere seja algo conciliador, justo, bom, algo essencialmente oposto
aos impulsos; enquanto é somente uma certa proporção dos impulsos entre si7.

O conhecimento tem, pois, um caráter perspectivo. Resulta de tensões de forças


múltiplas e opostas num campo de efetuações e, como todo instinto aspira à dominação,
é preciso determinar-se a gradação e a intensidade das forças para se fixar a posição de
cada força no campo, isto é, qual é a preponderante. Assim, o perspectivismo de

4
KOSSOVITCH, L. Signos e poderes em Nietzsche. São Paulo: Ática, 1979, p. 62.
5
MARTON, S. “Por uma genealogia da verdade”. Discurso, n° 9. São Paulo: Departamento de Filosofia,
FFLCH-USP, 1978, p. 63.
6
FOUCAULT, M. “A verdade e as formas jurídicas”. Cadernos da PUC-RJ, n° 16. Rio de Janeiro: PUC-
RJ, 1979, pp. 10-4.
7
NIETZSCHE, F. “Gaia ciência”. § 333. Obras incompletas, p. 213-4.
55

Nietzsche é inseparável da interpretação: inserido num campo de forças, de dominação;


fixando diferenças de potência, a interpretação é função do impulso de crescimento das
forças e da variação intensiva das mesmas. Assim, importa saber qual a relação de
forças que preside a produção de uma interpretação, isto é, “quem fala”?, “quanto pode
uma força”? A interpretação não remete, assim, nem a um sujeito, nem a um fato
isolado, mas a um campo de dominação8. Como assinala Foucault, o conhecimento (e,
portanto, a interpretação) provém sempre de “uma certa relação estratégica em que o
homem se encontra situado. É essa relação estratégica que vai definir o efeito de
conhecimento e por isso seria totalmente contraditório imaginar um conhecimento que
não fosse em sua natureza obrigatoriamente parcial, oblíquo, perspectivo. O caráter
perspectivo do conhecimento não deriva da natureza humana, mas sempre do caráter
polêmico e estratégico do conhecimento. Pode-se falar do caráter perspectivo do
conhecimento porque há batalha e porque o conhecimento é o efeito dessa batalha”9.
Interpretar, afirma ainda, “é apoderar-se, violenta ou subrepticiamente, de um sistema
de regras, que não tem em si uma significação essencial, e impor-lhe uma direção,
curvá-lo a uma vontade nova, fazê-lo entrar num outro jogo e submetê-lo a regras
secundárias”10.
Esse perspectivismo implica que conhecer não é explicar, elucidar, é interpretar.
A atividade interpretativa é contínua, infinita, inacabada. Isto significa que, se o
conhecimento não tem por objetivo atingir a verdade, pois não tem afinidade com o
mundo, não há nada a ser interpretado; no fundo já tudo é interpretação, ou conflito de
interpretações. Não há fatos, só interpretações: “Não há fenômenos morais, mas apenas
uma interpretação moral de fenômenos”11. Assim, percebe-se que, para Nietzsche, a
interpretação volta-se sobre si mesma, propondo que não se interpreta o significado, e
que, portanto, “o princípio da interpretação nada mais é que intérprete”12, reforçando a
idéia de que o conhecimento não visa o significado das coisas, mas uma ação que impõe
um sentido. Essa pergunta sobre a posição preponderante do intérprete, que é a mesma
dirigida às forças que dominam num determinado campo, implica que a interpretação
opera um novo estatuto da linguagem. Livre da ontologia, afirma a autonomia do signo,

8
KOSSOVITCH, L. Op. cit., pp. 30-2.
9
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas, p. 19.
10
FOUCAULT, M. Apud S. Marton, art. cit., p. 41.
11
NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal. § 108. Ed. cit., p. 82; também FOUCAULT, M.
Nietzsche, Freud e Marx. Trad. port. Porto: Rés, 1975, p. 14 e MACHADO, R. Nietzsche e a verdade.
Rio de Janeiro: Rocco, 1984, pp. 107-8.
12
FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Marx, p. 18.
56

sua arbitrariedade, abrindo-se para uma teoria da significação em que cada significado é
relativo a uma perspectiva de força. Assim, interpretar é produzir signos e sentidos; mas
por ser ilimitada esta operação exige a determinação do modo de produção. É o valor
que determina as diferenças, isto é, as atualizações de sentido, pois os valores são
significações relativas, uma perspectiva (interpretação) imposta às coisas13.
Essa produção das forças, que avaliando (interpretando) produz signos, toma a
forma de sintoma. Os sintomas estabelecem a relação entre o mais profundo (o oculto,
freqüentemente mascarado) e a superfície (o explícito), constituindo constelações de
intensidades, de sentidos múltiplos. Os sintomas expressam relações dos signos com os
instintos, afetos, paixões, desejos, compondo um campo em que a interpretação se
propõe como ressonância entre as duas séries. A interpretação estabelece-se como um
conjunto de atos diferenciados, pelos quais o intérprete se apodera violentamente dos
signos, domina situações, dá forma, estrutura, impõe determinadas relações de forças.
Esta relação estratégica situa o intérprete e define o conhecimento como efeito. A arte
de interpretar é, portanto, a arte da multiplicação dos sentidos de um sintoma e de
modificação de sua natureza; pois o que permite a interpretação não é a semelhança, que
é limitada, mas a diferenciação, que é infinita14.

13
KOSSOVITCH, L. Op. cit., p. 58 e ss.
14
Id. ib., p. 69 e ss.
57

II – Sobre o ensino de Filosofia


58

Notas sobre ensino de filosofia*

1. Na situação contemporânea, talvez seja mais adequado se falar em


“filosofias”, pois, face à sua dispersão, a Filosofia não mais se apresenta como um
corpo de saber e, assim, não se propaga da mesma forma como um saber se transmite;
isto é, apenas por aquisição. A atual disseminação da Filosofia – a mobilidade que muda
de lugar o seu “assunto” – ao mesmo tempo que indicia uma certa perda de vigor no
ensino escolar garante a sua vigência como requisito indispensável para a articulação de
teorias e estratégias culturais, políticas, científicas, pedagógicas e artísticas. Esta crise
da Filosofia, independentemente da perda de seu assunto instituído, provoca a sua
valorização e o desenvolvimento de um novo estilo de filosofar. É exatamente isto que
coloca dificuldades para o professor de Filosofia. Ensinar Filosofia: mas qual Filosofia?
Em que consiste a especificidade do filosófico? E, se não há conteúdos básicos e
métodos fixados, o que deve ser considerado o mínimo necessário para realizar uma
suposta especificidade em termos de ensino? Assim, o professor de Filosofia (no 2°
grau notadamente), para enfrentar as injunções de sua atividade, antes de definir-se por
conteúdos, procedimentos e estratégias (o que deve ser ensinado?, o que pode ser
ensinado?, como ensinar?) precisa definir para si mesmo o lugar de onde pensa e fala.
Neste sentido, pode-se dizer que o ensino de Filosofia vale o que vale o pensamento
daquele que ensina1.

2. A escolha do programa, por ser este necessariamente aberto, requer do


professor a determinação clara da imagem de Filosofia que ele visa efetivar com os
alunos. Portanto, não se trata apenas, e nem em primeiro lugar, da opção por conteúdos
(informações, rede conceitual, problemas), mas daquilo que possa garantir a entrada nos
procedimentos filosóficos; isto é, à produção da familiaridade com um modo de
linguagem que articula fabricação de conceitos, argumentação, sistematicidade e
significação. Qualquer programa provém de um recorte efetuado na tradição fixada

*
Revista da Faculdade de Educação, v. 19, n. 1 , São Paulo, FEUSP, jan-jun. 1993, p.97-102. Rep. em
MUCHAIL, Salma T. (org.). A Filosofia e seu ensino. Petrópolis: Vozes; São Paulo: EDUC, 1995, p. 77-
85.
1
MAUGÜÉ, J. “O ensino da filosofia: suas diretrizes”. Revista Brasileira de Filosofia, v. V, fase. IV, n°
20, out/dez, 1955, p. 643. Sobre as idéias de Maugüé, cf. o ensaio de ARANTES, P.E., “Certidão de
nascimento”. Novos Estudos Cebrap, n° 23, São Paulo, 1989.
59

como História da Filosofia, no elenco das áreas filosóficas, ou então em temas de


natureza diversa (éticos, políticos, epistemológicos, estéticos etc.) sacados dos
desenvolvimentos filosóficos tradicionais e atuais. Todo recorte deve ser afeto,
evidentemente, aos interesses e competência do professor, pois discutir um assunto
implica ser interrogado por ele – o que é importante quando não se quer reduzir a
Filosofia a um saber cadastrado. Mesmo quando o recorte privilegia o vivido, é possível
fazer redução dos interesses dos alunos às questões filosóficas aí imbricadas, sem que o
professor exclua a sua visada. Não se trata de forçar os temas, nem de parcialidade, mas
de insistir-se na necessidade de se focalizar o que é relevante ser ensinado, tendo em
vista aquele mínimo de especificidade filosófica. A articulação de problemas
tipicamente filosóficos com questões emergentes da experiência (individual, social,
histórica) depende diretamente da maneira como o professor pensa a situação cultural,
em especial de sua habilidade para captar o imaginário dos alunos. Os valores, crenças,
justificações, teorizações; os “eu acho que”, liberados em conversas, discussões,
redações, podem sempre permitir o acesso a problemas filosóficos, sem imprimir a
inabilidade teórica ou a manifestação emocional dos alunos.

3. Algumas idéias de G. Lebrun são estratégias para a elaboração de uma


concepção de ensino de Filosofia no 2° grau, voltada para a determinação do “mínimo”
e do “específico” filosóficos, levando em conta o estágio de desenvolvimento
psicológico e a inserção cultural dos adolescentes. Diz ele:

Nunca acreditei que um estudante pudesse orientar-se para a filosofia porque tivesse sede da
verdade: a fórmula é vazia. É de outra coisa que o jovem tem necessidade: falar uma língua da
segurança, instalar-se num vocabulário que se ajuste ao máximo às “dificuldades” (no sentido
cartesiano), munir-se de um repertório de topoi, em suma, possuir uma retórica que lhe permitirá
a todo instante denunciar a “ingenuidade” do “cientista” ou a “ideologia” de quem não pensa
como ele. Qual melhor recurso se lhe apresenta senão tomar emprestado um discurso filosófico?

Para reforçar a importância da constituição dessa “linguagem da segurança” e do


“repertório de topoi”, diz Lebrun, que os alunos, através da passagem pelos textos,
conceitos e doutrinas filosóficas, aprendem a “marcar o sentido de todas as palavras”,
educando-se “para a inteligibilidade”, pois “onde os ingênuos só vêem fatos diversos,
acontecimentos amontoados”, a filosofia permite discernir uma significação, uma
estrutura. É por isto, diz Lebrun, que os jovens retiram “um prazer tão vivo” da
60

atividade que lhes possibilita desenvolver o gosto em identificar o sentido das palavras,
em descobrir “essências” e estruturas. Porque, continua, “até mesmo as crianças, (como)
dizia Hegel, gostam de encontrar um encadeamento e uma conclusão nos contos.
Descrever a filosofia como uma retórica consiste pois somente em comentar o ideal de
inteligibilidade que ela difunde. Insistir na necessidade retórica a que responde para o
adolescente ocidental não significa desprezá-la (...). Filosofar consiste principalmente
em expulsar o acaso, decifrar a todo custo uma legalidade sob o fortuito que se dá na
superfície. Especificamente filosófico é o problema de compreender o funcionamento
de uma configuração a partir de uma lei que lhe é infusa (é preciso que haja uma),
conforme à ordem que se exprime nela (é preciso que haja uma) – quer se trate de
compreender a possibilidade do juízo a partir da afinidade dos materiais sintáticos ou,
de maneira mais desembaraçada, a sociedade feudal a partir dos moinhos de vento...
Cada vez que a ‘physis’ da coisa contenha uma unificação a priori ou um encadeamento
‘lógico’, o filósofo triunfa”2.

4. Aí está uma posição muito fecunda quanto ao “específico” do trabalho


filosófico (a inteligibilidade, compreender o funcionamento de uma configuração a
partir da lei que lhe é infusa) e quanto ao “mínimo” que se deve visar no ensino
(constituição de uma retórica através da assimilação de um repertório de topoi e que
funcione como uma língua da segurança). Veja-se que esta pode ser uma via produtiva
para se precisar um objetivo tão difundido (e mal compreendido) do ensino de filosofia
no 2° grau: desenvolvimento do pensamento crítico através da vinculação entre
problemas vivenciais e problemas filosóficos. Educar para a inteligibilidade, contribuir
para a constituição de uma retórica (de uma língua e de uma linguagem) implicam
submeter os interesses dos alunos a um tratamento que lhes permita descobrir os
encadeamentos, a lei, a estrutura que está (ou não está) nos discursos por eles
elaborados. Evita-se, assim, que as aulas sejam preenchidas pelo discurso vazio
(geralmente do professor), por simulacros de reflexão, ou então se tornem apenas um
lugar para se “discutir”, “criticar” etc. Pois, educar para a inteligibilidade significa
reafirmar que a crítica não vem antes das condições que a tornam possível. Portanto,
mínimo no ensino de filosofia não é, certamente, este ou aquele conjunto de tópicos,
problemas ou partes da filosofia. Não é, também, uma coleção de conceitos, textos ou

2
LEBRUN, G. “Por que filósofo?”. Estudos Cebrap, n° 15, jan/mar, 1976, pp. 148-53.
61

doutrinas. O que interessa é o foco do trabalho com os alunos: o que é preciso fazer para
o desenvolvimento das condições de inteligibilidade?

5. Qualquer que seja o programa escolhido, não se pode esquecer que a leitura
filosófica retém o essencial da atividade filosófica. É preciso acentuar, entretanto, que
uma leitura não é filosófica apenas porque os textos são filosóficos; pode-se ler textos
filosóficos sem filosofar e ler textos artísticos, políticos, jornalísticos etc.
filosoficamente. A leitura filosófica não se esgota na simples aplicações de
metodologias de leitura; ela é um “exercício de escuta” (no sentido psicanalítico). O
texto fala a partir da relação que se estabelece com ele: o que há nele, a linguagem nele
articulada, não se manifesta senão quando a leitura funciona como elaboração,
desdobrando os pressupostos e subentendidos do texto. Esse exercício (de paciência)
permite que o leitor se transforme na leitura, pois interfere nos modos habituais da
recepção3. A leitura como compreensão (e interpretação) é uma atividade produtiva que
“reconstrói um imaginário oculto, sob a literalidade do texto”4.

6. Em termos práticos, a conquista da inteligibilidade pelos alunos pode advir da


proposição, pelo professor, de “exercícios operatórios” (no sentido piagetiano). Na
leitura de textos, nas redações, nas discussões, na aquisição de uma determinada
informação, na elaboração de um conceito, é preciso levar em conta a qualidade do
conteúdo e a situação de aprendizagem. Em filosofia, os trabalhos operatórios visam ao
desenvolvimento de habilidades em construir e avaliar proposições, em determinar os
princípios subjacentes a elas, o que passa pelo sentido das palavras e pela atenção à
cadeia sintática, pelo menos. O pensamento crítico não provém, portanto, da simples
discussão, ou da confrontação de posições contrárias, ou da doação de soluções pelo
professor. A crítica pode ser avaliada pela capacidade dos alunos em formular questões
e objeções de maneira organizada, estruturada (rigorosa). A prática, sempre interessante,
de intrigar os alunos, provocando-os para a dúvida, a produção de inferências e a
articulação de experiência e teoria é útil, principalmente naquelas situações em que os
alunos não têm condições de aplicar imediatamente uma regra pelo exercício de uma

3
LYOTARD, J.F. “Le cours philosophique”. In: VV.AA. La grève des philosophes. Paris: Osiris, 1986,
pp. 35-6. O texto integra também o livro do autor, Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée,
1986, cap. 10.
4
GRANGER, G.G. Por um conhecimento filosófico. Campinas: Papirus, 1989, p. 220.
62

retórica já desenvolvida. Explorar os trabalhos operatórios talvez seja o grande caminho


do professor de filosofia.

7. Ainda, embora seja ocioso dizer: a filosofia deve ser considerada no 2° grau
como uma disciplina, ao nível das demais. Como “disciplina”, é um conjunto específico
de conhecimentos, com características próprias sobre ensino, formação etc. Não é,
entretanto, como diz o sentido latino da palavra disciplina “a instrução que o aluno
recebe do mestre”; não guarda mais o sentido de “ginástica intelectual”, de
disciplinamento da inteligência; diz respeito, hoje, mais a idéia de “exercício
intelectual”, mesmo que isto seja um tanto restritivo. Mas, como disciplina do currículo
escolar, ela mescla conteúdo cultural, formação e exercício intelectual a partir de seus
materiais, mecanismos e métodos, como qualquer outra disciplina. Não há razão, pois,
para ser tratada como uma atividade fora das contingências do currículo.

8. Ensinar Filosofia enquanto disciplina escolar implica determinar uma ordem


de conhecimentos e práticas a que se poderia denominar “ordem da transmissibilidade”,
inscrita na própria história da Filosofia5. A busca dessa ordem dedica-se a especificar
aquilo que na ação pedagógica é dimensionado como “ensinável”, embora tendo em
vista que não de desdenhe o inensinável, este indeterminado da educação. O foco de
atenção de cada disciplina, como se sabe, diz respeito ao que pode ser ensinado e
aprendido (incluindo-se aí o como se aprende), enquanto processos pensados
institucionalmente; isto é, a determinação do que pode e deve ser aprendido, tendo em
vista as necessidades de formação e saber inscritos culturalmente e solicitados
socialmente. Aquilo que se enuncia pela designação “aula” é um espaço em que se
efetivam as condições da transmissibilidade: um trabalho que articula materiais e
linguagens, conceitos e procedimentos, explicitando o que, já intrinsecamente na
disciplina, é disposição para a transmissibilidade.

9. As ressalvas comumente feitas ao ensino de Filosofia no 2° grau quanto ao


seu estatuto de disciplina; mais ainda, as suspeitas quanto à seriedade, em virtude das
confusões e indefinições vigentes na maioria dos professores, não são infundadas, pois a
recaída no mito da “atividade” é sempre iminente nestes tempos de rarefação

5
CARRILHO, M.M. Razão e transmissão da filosofia. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987,
p. 11 e ss.
63

intelectual, de diluição pedagógica e apressada crítica das instituições escolares. De


fato, as práticas que privilegiam a “atividade” como núcleo e desenho das disciplinas
consideram as experiências dos alunos, a vivência, como antídoto ao racionalismo e ao
idealismo da pedagogia ilustrada. Nesta, como se sabe, o primado do método, da
tenacidade e da autoridade servem à aspiração burguesa de progresso e emancipação,
erigindo a educação em dispositivo do saber institucional, voltado ao cumprimento do
programa de totalização da experiência. E se, neste caso, a unidade da experiência é
tomada como pressuposto, naquele, em que os projetos privilegiam a atividade, o
pressuposto é a dispersão da experiência moderna. Recaindo freqüentemente no
espontaneísmo e no empirismo grosseiro, argumenta-se que, se as experiências
cotidianas dos alunos são fragmentárias, o conhecimento produzido na escola deverá
resultar de uma síntese delas. Assim, as disciplinas-atividades estabelecem-se como
organização e sistematização da experiência imediata, e o conhecimento como
resultante de uma passagem contínua e homogênea da experiência ao saber, e não como
reflexão e crítica da experiência6. Ora, este procedimento, além de ainda postular uma
totalização, às avessas, reivindicada freqüentemente como dialética, implica
impropriedade quanto aos fundamentos da pesquisa e produção do saber, dificultando,
simultaneamente a compreensão do sentido da experiência. Em Filosofia, por exemplo,
o vivido só exerce o papel de objeto de conhecimento num primeiro nível, “interpretar o
que o filósofo diz como um discurso sobre objetos – fatos e coisas –, é confundir o
conhecimento que ele nos expõe com um saber positivo sobre o mundo que só, ou a
percepção ou a ciência, cada uma a seu modo, podem apresentar-nos”7.

10. O primado do ensino na prática institucional da escola implica que a


aprendizagem seja compulsória, exatamente para validar a identidade da instituição, o
espaço do homogêneo. Mas a ênfase no aprender abre o espaço da experimentação de
idéias e ações; espaço heterogêneo onde o aluno se defronta com o desconhecido, com o
estranho, dando vazão à insatisfação que é o fundamento do desejo de conhecer. Se o
primado do ensino leva à ilusão de que aprender é a entrada num domínio de verdades
constituídas, do qual o professor seria o decifrador privilegiado, a ênfase no aprender
incita à produção. Daí a necessidade de se relativizar o valor exclusivo da experiência
imediata dos alunos, pois se ela propõe os índices de um espaço heterogêneo de ação e

6
CHAUÍ, M. “A reforma e o ensino”. Discurso, n° 8, 1973, pp. 152-4.
7
GRANGER, G.G., op. cit., p. 213.
64

pensamento, o que mais importa é que os alunos se apoderem dos signos fortes para
dominar situações, estruturar e modificar a relação dos signos instituídos. O ensino
torna-se, assim, processo de constituição do espaço de encontro dos signos,
possibilitando que o aprender se desenvolva pela exploração do atrito da linguagem na
experiência8.
Se o ensino vive da ilusão de que é possível transmitir um corpo de
conhecimentos sobre um determinado domínio, de certa forma expressando um real
unificado, a aprendizagem vive da produção da inteligibilidade, da elaboração das leis
de funcionamento de uma configuração, da ordem que se exprime nela. Face à
multiplicidade e heterogeneidade dos signos, tal configuração nasce do embate das
forças que agem no campo, e o conhecimento resulta da ruptura da força preponderante
no interior das relações fixadas. Evidentemente, a experiência é importante neste
processo, porque nela o aprendiz expõe-se nas questões que desenvolve, nas dúvidas
que explicita, nas inferências que realiza. A experiência é o seu espaço de repetição,
através do qual articula pontos relevantes, impõe relações, inscreve signos que propõem
o trânsito entre experiência individual e representação social.

11. “Eis por que é tão difícil dizer como alguém aprende: há uma familiaridade
prática, inata ou adquirida, com os signos, que faz de toda educação alguma coisa
amorosa, mas também mortal. Nada aprendemos com aquele que nos diz: faça como eu.
Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem faça comigo e que, em vez de nos
propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no
heterogêneo”9. Nisto se reconhece a ação da Filosofia no ensino de 2° grau (e em outros
lugares); não apresentar objetos para aprender, mas contribuir para que o espírito
possível, à espera desde a infância, se realize assumindo a nossa prematuridade10. Não
radicaria aí o valor formativo da Filosofia?

8
FERRARA, Lucrécia D’A. “Paris, Rue de Tournon, n° 6”. Folhetim 16/9/1984, p. 9; DELEUZE, G.
Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 54.
9
DELEUZE, G. Op. cit., loc. cit.
10
LYOTARD, J.F. Op. cit., p. 34.
65

Filosofia, ensino e cultura*

Trata-se de pensar a Filosofia e o ensino de Filosofia em uma situação em que


vigem – na teoria, na cultura, na sensibilidade, nos comportamentos – a multiplicidade,
a heterogeneidade e a dispersão. O “valor formativo” da Filosofia tradicionalmente
sempre se referiu a uma suposta unidade da experiência e do saber, o que implica,
devido à visão de totalidade aí implícita, o requisito de sistematicidade. Já faz tempo
que não se fala mais em Filosofia, mas em Filosofias, de modo que não se pode
simplesmente tratá-la como um “corpo de saber”, à disposição para ser transmitido.
Resistente às totalizações que fazem dela um saber soberano, a Filosofia nem mesmo é
um ato, ou uma região delimitada e fixada do saber, mas algo “em ato”1.
Contudo, apesar da dispersão, ela continua mantendo conexões com a idéia de
formação: com a idéia de que o espírito humano está sempre à espera de algo que o leve
a cumprir-se. As dificuldades desta proposição provêm do fato de que a formação supõe
o término de um processo, geralmente longo, cujo objetivo primordial é o de levar o
educando à maturidade e à conquista da autonomia, de pensamento e existencial; ou
seja, implica o ideal de emancipação, tal como pensada na Ilustração. Mas o exercício
de pensamento, mobilizado nestas filosofias, que é um trabalho que está sempre no
meio, “em curso” e que sempre recomeça, não produz a imagem tradicional de
formação pois não supõe a possibilidade de um “curso” que, desenvolvido, leva à
formação. O que pode ser considerado formação não vem de um conjunto sistematizado
de conhecimentos. Talvez se possa dizer que a formação agora não é algo que decorre
do que se aprende na Filosofia, mas o que é destilado nas próprias e variadas operações
do pensamento tido como Filosofia. Um reexame dos pressupostos e subentendidos dos
discursos permite entender o trabalho filosófico e surpreender a sua tônica formativa
pela elaboração que, ao articular o que está em curso com o que foi cursado, dá acesso
ao impensado no que já foi pensado.

*
Este texto retoma e modifica a prova escrita do Concurso de Efetivação na disciplina de Metodologia do
Ensino de Filosofia, do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da FEUSP,
realizada em 01/12/1998.
1
cf. LYOTARD, J-F. , “Le cours philosophique”. In: DERRIDA, J. et al. La grève des philosophes. Paris:
Osiris,1986, p.34 e ss.
66

Uma proposição como esta resiste e encontra resistência na, assim chamada,
“realidade”. A proliferação de teorias e discursos, de teses e conhecimentos, de técnicas,
instrumentos e comportamentos, enfim, o domínio do múltiplo e do heterogêneo,
dificultam o próprio trabalho filosófico, que provém da paciência e da sistematização.
Se assim é no trabalho filosófico, quanto se trata de pensar a Filosofia como disciplina
escolar do ensino médio não ocorre coisa diversa.
Situar a Filosofia enquanto disciplina escolar no horizonte dos problemas
contemporâneos – científicos, tecnológicos, ético-políticos, artísticos, culturais –
implica perguntar por sua contribuição específica ao lado das demais disciplinas ou dos
dispositivos que fornecem, ou pretendem fornecer, referências e significados para a vida
pessoal e social. Em resumo, pergunta-se como a Filosofia situa-se na produção cultural
como modo de produção de sistemas de significação. Mais do que agência fornecedora
de informações e significados, a Filosofia “em ato” constitui-se em modalidade
enunciativa que, pela sua especificidade, tematiza e elabora as dificuldades da produção
de sentido.
Um trabalho de Filosofia no ensino médio pode ser significativo quando resulta
da conjugação de um repertório de conhecimentos, que funcionam como referências
para discussões, julgamentos, justificações, com os procedimentos básicos da produção
filosófica: elaboração de conceitos, argumentação e problematização. Tomando posse
deste repertório e dos requisitos da enunciação filosófica, os alunos podem ingressar em
uma experiência reflexiva relevante: a passagem do heterogêneo ao homogêneo, do
disperso ao uno, da variedade dos fatos, acontecimentos e opiniões a uma ordem de
pensamento, lei ou estrutura que lhes permita a produção da inteligibilidade2.
No vasto e diversificado mundo da cultura, particularmente da cultura de
consumo, hoje hegemônica, a contribuição da formação que vem do trabalho filosófico
cifra-se na elaboração de “diretrizes conceituais” e de “estilos de interrogação” que
permitem aos alunos adquirir meios de “orientar-se no pensamento”. Pois descobrir uma
estrutura, organização ou configuração onde os fatos diversos se amontoam, repetem-se,
substituem-se, reciclam-se é, por si só, uma afirmação do ideal de inteligibilidade. E,
para isto, o mais importante é a compreensão do funcionamento dessas configurações3.
A partir de uma sugestão de Deleuze, pode-se conceber o processo de
aprendizagem comparando-o com o de um “egiptólogo”: um decifrador de signos.

2
cf. LEBRUN, G. “Por que filósofo?”. Estudos CEBRAP. nº 15, jan/fev/mar 1976, p. 148 e ss.
3
Id. ib.
67

Aprender, diz ele, “é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se
emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja
um ‘egiptólogo’de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível
aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. A vocação
é sempre uma predestinação com relação a signos. Tudo que nos ensina alguma coisa
emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos”4. A
descoberta das configurações do pensamento, da lei que subjaz a uma matéria, a um
acontecimento, é uma interpretação que só é possível pela faculdade que esta matéria ou
acontecimento tem de emitir signos. A aprendizagem se dá, uma configuração de
pensamento se monta, quando é instaurado um espaço de encontro com os signos,
“espaço em que os pontos relevantes se retomam uns nos outros e em que a repetição se
forma ao mesmo tempo em que se disfarça”5. Mas é preciso acentuar que a cultura de
consumo constitui-se de um acúmulo de signos, manifestando-se como imagerie em que
a significação é, contudo, limitada, contida pelas expectativas de comunicação. Assim,
imagina-se que os jovens, munidos de sistemas de referência e estilos de interrogação,
tenham condições de liberar os signos dos seus usos seqüestrados pelo imaginário e pela
estrutura do consumo, deslocando-os das significações culturais cadastradas pelos
consumo e legitimados pela forma mercadoria.
Contra a tendência natural dos jovens de tudo criticar de imediato, supostamente
traduzindo com isto a força do desejo, o ensino de Filosofia pode contribuir para gerar
as condições da criticidade. A crítica surge da capacidade de formular questões e
objeções de modo organizado, sistematicamente. Mas a crítica não surge da organização
ou da sistematização do imediato, dos fatos da experiência da, assim chamada,
realidade, por uma passagem contínua da experiência, dos fatos e acontecimentos, ao
saber. A crítica não se coaduna com a pressa, com a velocidade, o sucesso, a
prospecção, o prazer; com o “ganhar tempo”, com a eficiência, com tudo isto que nos
fala e em que freqüentemente nos afundamos. A crítica, sabe-se, “suspende” a realidade,
para melhor vê-la. A crítica é uma intervenção na realidade; pelo menos neste domínio
que nos diz respeito aqui e agora, na relação de educação e cultura.
Eis, então, uma posição quanto à idéia de formação pela Filosofia: a Filosofia
gera condições, indiretas é claro, de intervenção na realidade, nos modos dos jovens se
situarem face à multiplicidade e heterogeneidade dos problemas, fatos, acontecimentos

4
DELEUZE, G. Proust e os signos.Trad. bras. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987, p. 4.
5
Idem., Diferença e repetição. Trad. bras. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 54.
68

com que estão envolvidos. Intervir, aqui, significa então descobrir o funcionamento e o
sentido das configurações (ideológicas, míticas, religiosas, científicas, tecnológicas,
artísticas); significa interrogar, formular questões e objeções. Para isto, reafirmando, os
jovens utilizam os sistemas de referência constituídos no curso de Filosofia como uma
experiência (acima de tudo, no que diz respeito aos processos enunciativos) que articula
uma diversidade significativa de trabalhos filosóficos.
Intervir reflexivamente, hoje, significa fazer a crítica dos imaginários da cultura
e do imaginário individual – da re-individualização consumista, de bens, sentimentos,
doutrinas etc. Trata-se de produzir distinção entre “formas” e valores, entre
“modelação” e formação, explorando o atrito da linguagem e do pensamento na
experiência6. O exercício da dúvida e a produção de inferências, possibilitados pelos
sistemas de referência constituídos com os alunos, exploram este atrito com recursos
tanto da oralidade quanto da escrita, sempre articulando os processos do trabalho
filosófico: elaboração conceitual, procedimentos argumentativos e problematização, isto
é, análise das noções, justificação de um ponto de vista e discussão.
Se, a princípio, os interesses dos alunos estão fixados, dada a homogeneização
efetuada na cultura, o trabalho educativo de emancipação que se espera da Filosofia está
em inscrever, pragmaticamente, na sala de aula – acima de tudo na sala de aula –, tais
processos fundamentais do processamento filosófico7. Visa-se, a partir disso, algo mais,
se possível: inscrever a enunciação filosófica como um trabalho de elaboração do
pensamento sobre o seu próprio sentido. Este sentido, contudo, é histórico e vivencial,
pois, como diz Lyotard, quando interrogamos algum assunto, alguma matéria, algum
objeto, somos por ele interrogados, pois em Filosofia não é possível expor uma questão
sem nela se expor. Cultural, histórico, vivencial é o próprio pensamento, especialmente
daquele que ensina, pois só aprendemos com aqueles que sabem emitir signos, propor
gestos a serem desenvolvidos no heterogêneo8. A aprendizagem, no caso da Filosofia,
mas não só neste caso, é a passagem viva de um ao outro, uma experiência que só é
possível quando se instaura e determina um espaço de circulação dos signos: dos
conhecimentos e dos afetos; das relações de força e da alteridade.

6
cf. FERRARA, Lucrécia D’Alessio. “Sala de aula: espaço de uma experiência”. Margem 2, São Paulo:
PUC-SP, nov. 1993, p.124
7
cf. LYOTARD, J.-F., op. cit.
8
cf. DELEUZE, G. Diferença e repetição.Trad. bras. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 54.
69

A filosofia no ensino médio*

1. Por que ensinar Filosofia

A presença da Filosofia no currículo do ensino médio justifica-se pelo seu valor,


historicamente consagrado, de formação. Cumpre, entretanto, esclarecer qual é a
formação a que se refere quando pensada como uma disciplina educativa, ou seja, qual a
sua contribuição específica para a efetivação dos objetivos gerais da educação de nível
médio. Considera-se, sem dificuldade, que a Filosofia é requisito indispensável para a
elaboração de referências que permitam a articulação entre os conhecimentos, a cultura,
as linguagens e a experiência dos alunos.
Entretanto, face à multiplicidade de orientações em Filosofia não se pode tratá-la
simplesmente como um corpo de saber já à disposição para ser transmitido. A
proliferação de teorias e discursos, a diversidade e dispersão da atividade filosófica
atual, exige que se fale em filosofias e não em a Filosofia. Assim, a primeira tarefa do
professor de Filosofia é a de definir-se por uma determinada concepção de Filosofia que
seja adequada para cumprir os objetivos educacionais da disciplina. Situar a Filosofia
enquanto disciplina escolar no horizonte dos problemas contemporâneos – científicos,
tecnológicos, ético-políticos, artísticos ou os decorrentes das transformações das
linguagens e das modalidades e sistemas de comunicação –, implica uma tomada de
posição para que a sua contribuição seja significativa, quanto aos conteúdos e processos
cognitivos.
Se em Filosofia é difícil estabelecerem-se conteúdos básicos e mesmo métodos
gerais, deve-se, contudo, garantir as condições mínimas da especificidade do trabalho
filosófico. Isto requer do professor a determinação da orientação filosófica que seja
estratégica para levar os alunos a apropriarem-se dos conteúdos, modos discursivos e
procedimentos indispensáveis para abordarem problemas de natureza diversa. Portanto,
a opção por um determinado conteúdo – seja ele diretamente situado ou não no conjunto
dos temas e problemas da História da Filosofia – é simultânea à definição dos

*
Este texto resultou de uma colaboração para a discussão prévia à formulação da proposta da disciplina
Filosofia dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio na área de Filosofia, por solicitação
da coordenação do Projeto PNUD (MEC/UNESCO), 1997/98.
70

procedimentos que facultam a familiaridade dos alunos com conceitos, linguagens,


técnicas de leitura e processos argumentativos, possibilitando-lhes o desenvolvimento
do pensamento reflexivo.
Um trabalho específico de Filosofia no ensino médio resulta da conjugação de
um repertório de conhecimentos, que funcionam como um sistema de referências para
discussões, julgamentos, justificações e valorações, e de procedimentos básicos de
análise, leitura e produção de textos. Tomando posse desse repertório de conhecimentos
e constituindo uma retórica, isto é, desenvolvendo um sistema discursivo, o aluno pode
passar da variedade dos fatos, acontecimentos, opiniões e idéias para o estado reflexivo
do pensamento, para a atitude de discernimento que produz configurações de
pensamento. É importante que ele compreenda como funcionam tais configurações,
como elas supõem sempre uma lei interna, uma ordem constitutiva.
Esta é uma via produtiva para se entender com mais precisão o que
genericamente é designado como o objetivo do ensino de Filosofia no ensino médio:
desenvolvimento do pensamento crítico através da vinculação entre os conhecimentos
filosóficos, a cultura e as vivências. Uma educação para a inteligibilidade supõe a
constituição de um conjunto de referências, que pela articulação sistemática de
conteúdos, linguagem e processos específicos de pensamento, permita aos alunos
descobrir encadeamentos, estruturas, nos discursos de proveniência diversa, inclusive
nos produzidos por eles mesmos. Evita-se, assim, que as aulas sejam preenchidas por
discursos vazios, por simulacros de reflexão, ou então que se tornem lugares apenas
para discussões e “críticas” vagas, indeterminadas. Educar para a inteligibilidade
significa reafirmar que a crítica não vem antes das condições que a tornam possível.
Portanto, se o desenvolvimento do pensamento crítico não provém de genéricas
discussões de temas e problemas, não provém também de uma coleção de conceitos,
doutrinas, problemas e textos. O pensamento reflexivo é fruto de uma aprendizagem
significativa, que supõe o domínio e a posse dos procedimentos reflexivos e não apenas
de conteúdos.
Qualquer que seja o assunto tratado, não se pode esquecer que a leitura filosófica
retém o essencial da atividade filosófica. Uma leitura não é filosófica apenas porque os
textos são filosóficos; pode-se ler textos filosóficos sem filosofar e ler filosoficamente
textos jornalísticos, artísticos, políticos etc. Esta leitura não se caracteriza pela simples
aplicação de metodologias de leitura e análise de texto, mas pela atenção aos
pressupostos e subentendidos do texto, pela reconstrução de um imaginário oculto que
71

ultrapassa a literalidade. A apreensão daquilo que o texto enuncia exige que se


compreenda como se produzem os enunciados, os processos de enunciação.
A Filosofia, como disciplina de ensino, é um conjunto particular de
conhecimentos com características próprias no que se refere a formação. Não é,
entretanto, como diz o sentido latino da palavra disciplina, a instrução que o aluno
recebe do mestre, nem guarda mais o sentido pedagógico de “ginástica intelectual”, de
disciplinamento da inteligência. Exercita, é certo, capacidades intelectuais, requerendo
algumas habilidades; mas é, antes de tudo, uma disciplina cultural, pois a formação que
propicia diz respeito à significação dos processos culturais e históricos. Na aula, na
leitura de textos e nos exercícios operatórios de fixação de conceitos e técnicas
argumentativas; nas discussões e elaboração de textos, é preciso levar em conta a
qualidade dos conteúdos em relação às situações de aprendizagem. Tais práticas visam
ao desenvolvimento de habilidades para construir e avaliar proposições, construir
unidades de significação, produzir conjuntos sistematizados de conhecimentos que
funcionem como produção teórica; isto é, como articulação entre concepções da
realidade e experiência vivencial.
Portanto, o pensamento crítico não surge apenas das discussões sobre questões
atinentes aos problemas culturais, históricos e vivenciais, pela simples confrontação de
posições divergentes, nem da reprodução das soluções apresentadas pelo professor. A
crítica surge da capacidade dos alunos em formular questões e objeções de maneira
organizada, e o quanto possível rigorosa conceitualmente. A prática de intrigar os
alunos, provocando-os para a dúvida, a produção de inferências e a articulação de teoria
e experiência, é um procedimento pedagógico sempre necessário – tanto quanto o de
gerar as condições de constituição da retórica, do discurso necessário para falar sobre
algum assunto. A crítica não se estabelece como organização e sistematização imediata
da realidade, como se houvesse uma passagem contínua da experiência, dos fatos,
acontecimentos e idéias ao saber. A crítica, como processo reflexivo, não é um
conhecimento expositivo, um saber positivo sobre o mundo e muito menos uma
percepção: é uma interpretação, que exige perspectiva de análise, sistemas de referência
e práticas discursivas adequadas.

2. O que ensinar de Filosofia


72

Um programa de Filosofia para o ensino médio é composto dos temas –


recortados na tradição fixada como História da Filosofia ou no elenco das áreas
filosóficas (ético-políticos, científicos, estéticos), referidos ou não a problemas
imediatos (sociais, culturais, vivenciais). Qualquer recorte ou escolha implica
evidentemente os interesses e a formação do professor, pois discutir um assunto implica
ser interrogado por ele, expor-se nele. Mesmo quando o recorte privilegia o vivencial, é
possível e necessário vincular os interesses dos alunos às questões e informações
filosóficas imbricadas no tema, para não se perder a especificidade da abordagem
filosófica. A articulação de problemas tipicamente filosóficos com aqueles que
emergem da experiência individual, social e histórica, depende muito da formação
cultural do professor e de sua habilidade em propor situações pedagógicas reflexivas.
Depende muito também de sua versatilidade e prontidão para vincular o imaginário dos
alunos – as suas opiniões, justificações, teorizações, idéias tomadas de empréstimo ou
fruto de influências e que aparecem sob a forma de valores – às referências já
constituídas ou em elaboração.
Considerando-se a flexibilidade dos conteúdos de Filosofia, não é, entretanto,
descabido acentuar-se uma direção prioritária para a determinação de assuntos
estratégicos para efetivar atualmente o valor formativo desta disciplina. Pode-se propô-
la como um trabalho de articulação cultural, de pensar e repensar a cultura através das
representações que as ciências, as comunicações, a Tecnologia e a História fazem hoje
do mundo e, particularmente, da realidade circundante. Esta posição implica a
exploração do contato da Filosofia com as demais disciplinas do currículo, para estender
a experiência do conhecimento, suas articulações metodológicas e históricas. A
abstração própria do trabalho filosófico não pode ser confundido com um trabalho
pedagógico abstratizante, pois a atividade racional é dinâmica, traduzindo e
retraduzindo continuamente as relações entre teorias e experiências vivenciais.
Para a efetivação do sentido pedagógico do ensino de Filosofia, podem ser
formuladas duas posições gerais: (a) uma estritamente filosófica, que transpõe os
conteúdos e modos do saber filosófico para o nível médio: a aprendizagem da Filosofia
é um exercício pessoal; aprende-se a Filosofia no seu próprio conteúdo,
sistematicamente elaborado nos textos da tradição filosófica; neles estão os temas, os
problemas, os conceitos, os métodos, os procedimentos, bastando adquiri-los; (b) a
segunda enfatiza procedimentos gerais de pensamento, entendidos como princípios
metodológicos da atividade intelectual – desenvolvimento das capacidades de análise e
73

leitura; de técnicas de raciocínio e argumentação; de métodos de questionamento,


problematização e expressão. Estas posições na verdade não são excludentes, antes são
componíveis. A primeira enfatiza a constituição histórica do pensamento, mostrando
como os problemas filosóficos vão se formulando nos filósofos, nos textos, de modo
específico. A segunda enfatiza os procedimentos de pensamento que se encontram nos
textos filosóficos, e também em outros, e que são condições essenciais para o exercício
da reflexão. Nas duas posições é possível tomar-se a História da Filosofia como centro
ou como referencial para a montagem de conteúdos de ensino.
É através destas competências e habilidade que os alunos capacitam-se para
tratar os conteúdos justificando tomadas de posição, produzindo interpretações,
transferindo os conhecimentos de uma dimensão a outra realidade, estabelecendo
articulações entre as questões tratadas nas diferentes áreas de saber e a experiência.
Munidos de sistemas de referência e exercitando os requisitos discursivos, podem
aceder ao domínio das representações, isto é, à elaboração teórica. Podem, assim,
deslocar-se da apreensão imediatista da realidade para uma posição esclarecida, efeito
da criticidade.
74

III – O moderno e o contemporâneo na arte


75

Notas sobre arte contemporânea*

O que poderia ser hoje a arte, a estética, depois das operações e do trabalho de
negatividade efetuados pela modernidade? E esse prefixo “pós”, atribuído a atividades
contemporâneas alude a quê? A um “depois da arte moderna”, sugerindo que a
modernidade cumpriu o seu curso, que agora assiste-se à abertura de um novo período
histórico? Ou, então, não seria nada disso: o pós-moderno seria uma continuação da arte
moderna ou, ainda, a reativação dos seus pressupostos, virtualidades e imperativos? A
pós-modernidade, não seria, assim, mais uma atmosfera, uma atitude, que entre a
inquietação e a indiferença, vagando pelo precário e o disperso, pressiona o espaço
simbólico liberado pelas operações modernas, ansiando por um preenchimento (uma
Estética, uma Arte, uma Totalidade)? E, no entanto, marcados pela indeterminação,
esses tempos pós-modernos não estariam indicando que não existe, nesta situação
cultural, uma linguagem com poder de fixar o estado atual das coisas (da arte, da
cultura, do saber)?1
A controvérsia que anima a postulação do pós-moderno nas artes, na cultura, nos
comportamentos, no saber, evidencia o desejo de articular (e mesmo conciliar) o
cinismo e a razão crítica. Lança mão, simultaneamente, do acervo cultural (inclusive
sob a forma de documentação), das grades de comunicação e da análise dos efeitos
dessas integrações. Nessa situação, em que se multiplicam efeitos de aparência
(simulação), a imaginação retoma seu ímpeto interpretativo: elabora o mal-estar.
Curvando-se sobre o caráter intempestivo da arte moderna – retomando sua potência ao
simulacro –, esta interpretação tem caráter perspectivo: resulta da tensão de forças
múltiplas e opostas num campo de efetuações. Neste, ativa-se em determinar a posição
de cada força (qual prepondera?), pois o perspectivismo é função da variação intensiva
das forças, da relação estratégica que preside ao campo. Além disso, a interpretação é
sintomática: estabelece relações entre um profundo (oculto) e uma superfície (explícito):
expressa relações dos signos produzidos na interpretação com as forças, os instintos, os
desejos, compondo um campo de ressonâncias. A interpretação é, assim, um efeito: arte

*
in PACHECO, Elza D.(org.). Comunicação, Educação e Arte na Cultura Infanto-Juvenil. São Paulo:
Loyola, 1991, p. 57-66.
1
BAUDRILLARD, J. Entrevista à Folha de S. Paulo, 23/12/1987.
76

da multiplicação dos sentidos (de um sintoma); de modificação de sua natureza,


diferenciação2.
Esse nietzchianismo da interpretação opera na atmosfera pós-moderna passagens
para o devir da experiência contemporânea: conjuga acontecimentos, referências, modos
que, modernos, funcionam como potências do instante, que, entretanto, paradoxalmente,
reengatam o estado nascente da arte moderna e é perspectiva de seus desenvolvimentos
históricos. Essa volta ao material moderno não implica, entretanto, redimir uma origem
traída (como querem alguns, nostálgicos, revivalistas, conservadores, melancólicos do
culto da Arte); trata-se, antes, de investir um espaço de reconhecimento para vôos
futuros (não, entretanto, na chave da utopia, esse vetor da modernidade). O sintoma pós-
moderno (afastemos de vez o equívoco da denominação: é melhor dizer: o
contemporâneo) afasta as veleidades do novo: propõe a anamnese do moderno, para
evidenciar que o oculto (o profundo) efetuou-se por repressão (efeito de totalidade).
Não há pois origem a ser determinada e reinstaurada; mas a proposição de um trabalho
de elaboração do que foi suprimido, esquecido ou bloqueado nos desenvolvimentos
modernos: elaborar o tumulto presente como única perspectiva possível – aquela que
articula materiais, processos e procedimentos para liberar a produção presente dos
impasses, compromissos e ambigüidades da época moderna.

***

A reflexão sobre o que pode ser denominado “contemporâneo” em arte não


apresenta uma figura clara, com âmbitos plenamente definidos; é simplesmente um
campo de efetuações. Pois, não se trata de entender a contemporaneidade artística e
cultural como uma época, ou mesmo como uma tendência determinada, mas sim como
um modo (da sensibilidade, do pensamento, da enunciação)3. Nas artes, é cada vez mais
evidente que o grande processo das vanguardas está terminado, indicando a caducidade
das expressões de modernidade que efetivaram. O precioso trabalho de negatividade que
elas desenvolveram conseguiu realizar qualquer coisa que não tem mais fim: se não foi
o de provocar o desaparecimento da arte, como era postulado em várias de suas
tendências, este trabalho liquidou o princípio moderno de que é necessário instaurar
uma maneira de viver, de pensar, de criar, absolutamente novos. A idéia de uma

2
KOSSOVITCH, L. Signos e poderes em Nietzsche. São Paulo: Ática, 1979, p. 30 e ss.
3
LYOTARD, J.F. Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 46.
77

tradição de ruptura, realizada na própria vanguarda, está hoje abandonada. Para ser
atual, hoje, não é preciso que se aposte no inusitado, pois a volatização do estético e sua
generalização, provocadas pela atividade vanguardista, estendeu as operações e
processos especificamente artísticos para outros domínios do cotidiano e da produção.
O longo e obstinado trabalho das vanguardas desenvolveu operações que
atingiram a imagem da arte, a atitude dos artistas, a situação social da arte, produzindo
alterações significativas na recepção. Enfatizando os projetos de ruptura do sistema das
belas-artes, apostando na superação do que julgavam ser a concepção idealizada de arte,
as vanguardas efetivaram um trabalho altamente responsável de desconstrução da arte
do passado: fixando processos, procedimentos e atitudes experimentais, valorizando a
invenção, a produção do novo, visavam a corporificar os pressupostos modernos de
progresso da racionalidade e da liberdade. Requeria-se, para isso, a renovação das
formas, da percepção, dos comportamentos; no mínimo tratava-se de proscrever a
“obra” em favor do ato e da atividade: no limite, fundir arte e vida. Utópica, heróica e
crítica, a arte dita moderna queria contribuir para o projeto de emancipação social e
individual pela reinvenção da vida.

***

A modernidade vanguardista do início do século liberou os artistas para a


aventura da constituição da autonomia da arte, ancoradas na presunção de ruptura do
sistema da arte e na valorização do binômio desconstrução-construção. Mantinha
compromisso com a descentração do olho, com a desnaturalização da percepção e a
confiança no valor da novidade, da estranheza e da experiência do choque.
Simultaneamente, por efeito do ímpeto utópico, pretendia tirar partido de uma situação
histórica que permitia aos artistas a ilusão de poder utilizar a arte como aspecto da luta
pela transformação social, agenciando experimentalismo, inconformismo estético e
crítica cultural que, imbricados, compõem a atitude ético-política. Intempestiva,
pretendendo representar a verdade da arte liberta das ilusões transcendentais;
evidenciando a materialidade dos processos e conspirando contra o mito, que ela
produzia, de uma essência da arte, a modernidade investiu o desejo na desmontagem das
78

mistificações que recobrem a concepção idealizada de arte, sem a imposição de


qualquer realidade e individualidade prévias4.
Esses imperativos da arte moderna são apropriados, na passagem dos anos 50
aos 60, por tendências diversas, articuladas, fundamentalmente, em duas grandes
alternativas: aquelas que se dedicam à renovação sintático-formal, seja de modo
unidimensional, seja reativando propostas germinais dos construtivismos, explicitadas e
desenvolvidas segundo as condições presentes de produção; e as que articulam as
dimensões semânticas e pragmáticas, relativizando a ênfase sintática das formas. Ambas
as direções pretendem, freqüentemente, pôr em causa a significação da pintura e do
processo estético em geral; impugnam convenções da representação tradicional e da
abstração5. No início dos anos 60 constata-se um fenômeno que se agrava até o final da
década: desbordando as fronteiras institucionalizadas, as diversas tendências exercitam
a multiplicidade de estilos, a mescla de técnicas, o caráter heterogêneo e
multidisciplinar da arte. Pintura, escultura, música, teatro, cinema e poesia confluem
num espaço estético aberto. A ruptura com os suportes questiona o estatuto existencial
da obra de arte e, na pintura, relega ao passado a dicotomia abstração/figuração. A
referência a Duchamp, aos herdeiros do Dadá e aos construtivismos, é obrigatória para o
atendimento dessa floração de inventos da década de 60 e inícios de 70.6
Esta visada beneficiou-se da situação nacional e internacional da arte de
vanguarda na passagem dos anos 50/60: de redistribuição geral da estética, da
pulverização dos códigos de produção e recepção, provocadas pela pop-art. À nova
inscrição da produção artística corresponde um novo espaço estético, onde tudo pode
surgir, tudo pode relacionar-se com tudo em jogo permanente. A prática pictural não só
elimina a referência ao ilusionismo, levando ao fim o criticismo moderno, como
questiona a formalidade das pesquisas sintáticas, centradas nas relações entre forma e
cor, amplificadas pela arte concreta. À preocupação sobre a autonomia da pintura, como
um domínio em si, contrapõe-se o campo da colagem. Assumindo-se como montagem
de disparates, as práticas artísticas liberam os elementos que a compõem – técnicas,
temas, retóricas, sintaxes – que passam a gravitar aleatoriamente. Assim, surge a
necessidade de anular o quadro ilusionista, de produzir outro espaço estético que

4
OLIVA, A.B. “A arte e o sistema da arte”. Malasartes, n° 2, dez/jan/fev, 1975, p. 24; BRITO, R. “O
moderno e o contemporâneo”. Arte Brasileira Contemporânea. Caderno de Textos, n° 1, Rio de Janeiro:
Funarte, 1980, p. 5.
5
MARCHAN, S. Del arte objetual al arte de concepto. Madrid: A. Corazon, 1974, p. 7.
6
DEXEUS, V.C. La poética de lo neutro. Barcelona: Anagrama, 1975, pp. 15-6.
79

valorize outras coisas, eliminando de vez os resíduos de profundidade visual. Num


primeiro momento – como nas “Superfícies Moduladas” de Lygia Clark e nas
“Invenções” de Oiticica, por exemplo – o quadro perde seus poderes encantatórios e
também se transmuta em coisa. Depois, como conseqüência da desindividualização da
prática pictórica, os desenvolvimentos vanguardistas lançam a produção no aleatório. A
busca da arte pura, que se autodefine, desloca-se para o puro experimental.7
As novas vanguardas diferem em aspectos básicos das tendências do início do
século. Às mudanças na recepção, tendo-se em vista a especialização do mercado, agora
determinante na produção artística, correspondem transformações nas expectativas dos
artistas quanto à eficácia de suas ações. Estas passam a oscilar entre a simples
integração – efeito de uma reavaliação do sentido e função da arte na sociedade de
consumo – e a diferenciação de propostas de resistência a essa integração. As
ambigüidades dessas posições são inúmeras, e estão no cerne das manobras dos artistas,
premidos pela urgência do consumo e do acicate crítico. Entretanto, via de regra, não
são vividas como purgatório necessário, mas como desafio aos projetos de intervenção
ou divertimento; quando não como otimista avaliação do conúbio com os media.
O confronto com o mercado atinge duramente a relação dos artistas com o
circuito e com o público. Entre a integração e a marginalidade relativamente ao sistema
de arte, os seus projetos passam, forçosamente ou de bom grado, a supor alguma ação
do público no horizonte da produção artística. O consumo dos resultados de suas
atividades – obras, eventos, objetos, experimentos –, assim como as reações do público
frente a tais manifestações, tornam-se instrutivas para o prosseguimento dos projetos,
propondo uma reflexão que, ato contínuo, é introjetada na produção. Assim, as
estratégias dos artistas são contaminadas, ineludivelmente, por expectativas do público
– o que provoca reviravoltas no velho tema da criação, atingindo a sua proverbial
individualização, e, por ricochete, problematiza o circuito. Supor um público articulado
em termos de sensibilidade e informação torna-se básico para que as operações dos
artistas tenham a força de transformar o espectador, consumidor ou contemplador, em
participante. Este é visado como suposto realizador de propostas; arrancado da
imobilidade e da legibilidade, estimulado por objetos, situações e idéias, exercitando o
ludismo num misto de escolha e abandono. Construtor e destruidor, incluindo e

7
OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto, p. 25; RIEU, A.M. “La machinerie hyperréaliste”. Voir,
Entendre (Revue d’Esthétique, 1976/4). Paris: UGS, Coll. 10/18, 1976, pp. 26-8; GREENBERG, C. “A
pintura moderna”. A nova arte. Trad. bras. São Paulo: Perspectiva, 1975 (Col. Debates, 73), pp. 95-106;
Idem, “Depois do expressionismo abstrato”. Gávea, n° 3, PUC-RJ, 1986, pp. 99-119.
80

excluindo, sempre um devorador, esse participador freqüentemente se aproxima da


atividade terapêutica. Para o artista, estes comportamentos, assim como o riso que os
despreza, interessam, pois contribuem para solapar a mitificação sobre a
transcendentalidade da arte.
Assim, as diversas tendências estão empenhadas em arruinar as circunscrições
costumeiras da noção e da prática da arte, que têm na obra de arte sua peça de
resistência. A luta é bifrontal: de um lado o confronto com o mercado e o público; de
outro, a exacerbação de procedimentos, alguns já experimentados, visando ao seu limite
expressivo. Esta radicalidade, efeito de desrecalque da produção, volta-se para o desejo
de distanciamento de qualquer origem, de qualquer função específica da arte, para
provocar condições de instauração de um espaço puramente estético, liberto das
avaliações tributárias da História da Arte. Trata-se, portanto, de promover a explosão de
um campo, o sistema de arte, minado, ainda, apesar das operações modernas, pelo
consolo das boas formas e pelo fantasma de abarcar a realidade.8

***

Depois das apostas e dos jogos das vanguardas – notáveis pelo sentido de
abertura, pelo empenho em realizar a autoconsciência da arte sobre seu próprio sentido
–, observa-se um desinteresse pela questão moderna por excelência: o que é a arte?
Livres dos projetos e imperativos empenhados no combate pelo novo, os artistas tentam
cingir-se à imediaticidade do trabalho. Além das simples rearticulações de despojos
vanguardistas, reivindicados por tentativas nostálgicas, ou oportunistas, de revalidação
do novo, flagra-se uma sensibilidade aguçada para as diferenças que elabora o
incomensurável aberto pelas experiências modernas. Lançados no indeterminado, esses
artistas sabem que não estão garantidos por qualquer a priori. Seu trabalho, cada
trabalho, impõe-se pela singularidade, especificando a produção: agindo num campo de
investimentos variados, o trabalho contemporâneo atravessa as pesquisas modernas,
viaja pelo imaginário das formas, das cores, dos processos, dos temas fixados pela
tradição; captura descontinuidades, sinais e referências, condensando, reatualizando,

8
LYOTARD, J.-F. “Reponse a la question: qu’est-ce que le postmoderne?” Critique, n° 419, abril, 1982.
Trad. bras. Arte em Revista, n° 7, 1983, pp. 95-6. Incluído em Le postmoderne expliqué aux enfants.

Todo este fragmento pode ser encontrado em nossa Tese de Doutorado, A Invenção de Hélio Oiticica,
FFLCH-USP, 1988, p. 9-14. Nota: publicado pela EDUSP em 1992.
81

deformando, citando, acima de tudo utilizando, o que está à disposição como estoque
cultural. Muitas vezes os trabalhos não vão além do virtuosismo (de formas, de gestos,
de pesquisas etc.) ou então em manobras estilísticas; nos artistas mais interessantes,
entretanto, inscrevem-se como elaboração interpretativa, em que a imaginação associa
livremente elementos indefinidos, fluxos do presente e referências históricas.
Esse trabalho contemporâneo é sintomático: compõe um campo de ressonâncias
que modifica as relações fixadas num passado. Reiterando procedimentos já
experimentados, intensificando os materiais, jogando com a indeterminação do sentido e
com a imanência da expressão, a atividade artística contemporânea libera os signos de
uma atividade sem fim. Mas a tendência à reiteração expõe as dificuldades desses
trabalhos: reatualizando, repetindo, citando, utilizando o que foi liberado pelas
pesquisas anteriores eles mostram a quase impossibilidade de articular imagens, formas
e processos que indiquem a emergência de alguma coisa depois da arte moderna. Essa
dificuldade complica a posição do artista, pois a criação está sempre referida a uma
série já determinada, e a do receptor, que é compelido ao esforço de se render à
objetividade daquilo que está à sua frente, abandonando a compulsão de preencher o
vazio, deixado pela ausência do novo, com um outro novo, agora inexistente. No fundo,
artista e receptor estão às voltas com a dificuldade produzida pelo desaparecimento do
objeto da arte.
Assim, os trabalhos contemporâneos mais interessantes são os que nada
prometem; inscrevem-se como atividade interpretativa a partir e sobre as rupturas
modernas, despojadas, entretanto, de seu significado histórico, exatamente para elucidá-
las9. E porque esses trabalhos são táticos e reflexivos, Lyotard diz que “um artista, um
escritor pós-moderno está na situação de um filósofo: o texto que ele escreve, a obra que
ele realiza não são em princípio governados por regras já estabelecidas, e não podem ser
julgados por meio de um juízo determinante, pela aplicação de categorias conhecidas a
esse texto, a essa obra. Tais regras ou categorias são o que a obra ou o texto procuram.
O artista e o escritor trabalham, pois, sem regras, para estabelecer regras do que terá
sido feito. Daí que a obra e o texto tenham propriedade de acontecimento (...)”.10
Pode-se perguntar: onde está esta arte contemporânea? Em todo lugar,
desenvolvendo-se desde as operações Pop, passando, principalmente, pelas proposições
conceituais e minimalistas. Está onde se percebe a aderência ao que restou da arte, de

9
BRITO, R. “O moderno e o contemporâneo”, loc. cit.
10
LYOTARD, J.F., loc. cit.
82

mais essencial: um procedimento conceitual, uma reflexão. Muitas vezes indiscernível


dos fluxos modernos ainda ativos, alguns academizados, está nos quadros que reiteram a
expressividade, nas retomadas abstratas e construtivistas, nas experiências minimalistas
e, inclusive, nas instalações. De uma maneira bastante sugestiva, e potente, está nas
metamorfoses da escultura moderna, com sua ênfase nos materiais, nas tensões entre
elementos e na indeterminação da forma e do sentido.
O que denominamos arte contemporâneo é um vasto campo de atividades que
não produzem efeitos imediatos, pois, não podendo presentificar-se como objetos
inusitados, esses trabalhos são desprovidos de contundência. São, sim, surpreendentes;
despertam a curiosidade – que tudo reduz à suspeita categoria de “interessante”, que
tudo aplastra. O público já não é facilmente desconcertado; o que antes escandalizava
hoje diverte e, na melhor das hipóteses, esclarece.
83

Impasses da arte contemporânea*

A situação das artes plásticas no Brasil não se distingue daquela dos demais
centros produtores, mesmo tendo-se em conta que a atividade cultural aqui é
absolutamente irrisória. Seus impasses estéticos, e as significações que mobilizam, são
caudatários dos problemas provocados pela exaustão dos projetos vanguardistas. Ao
atingirem os limites expressivos, as diversas tendências, após a radicalização conceitual
e minimalista, não conseguiram levar adiante o desejo de articular (ou conciliar) o
cinismo e a razão crítica: a inevitabilidade do mercado enquanto instância objetiva da
produção e da recepção – com suas exigências de comunicação –, e o incomensurável
da experiência estética – que valoriza o indeterminado, o imprevisível, o incerto, o
incomunicável.
A modernidade artística apostou na autonomização do processo estético e na
negatividade (crítica cultural), erigidos em princípios e justificativas de suas
intensidades. A postulação de uma contemporaneidade tem em vista, freqüentemente,
designar uma situação (identificada acriticamente a uma suposta pós-modernidade) que
reteria as conquistas e virtualidades dessa modernidade, desenvolvendo-as na direção de
possibilidades ainda não efetivadas. Mesmo cessadas as condições históricas que
permitem aos artistas jogar com a ruptura do sistema da arte e com o ímpeto de
transformação social, postula-se ainda o ideal de eventuar. Entretanto, nessa situação,
em que o novo não mais opera e na qual o experimentalismo agencia, geralmente,
reatualizações o que poderia ser denominado “contemporâneo” no sentido de um além
do moderno?
Embora a discussão sobre a contemporaneidade artística não permita o
estabelecimento de um conceito (o contemporâneo), nem de uma época ou tendência
que substituíssem as modernas, pode-se falar na existência de um campo de efetuações
aberto às singularidades. Esta reflexão sobre o agora da arte, atenta a transformações
presentes (qualquer coisa que não se inscreva apenas na demanda contínua por
comunicação, longe entretanto de qualquer ruptura) procede da consideração da

*
AJZENBERG, Elza (org.). Comunicações e Artes em Tempo de Mudança(1966-1991). São Paulo,
SESC/ECA-USP, 1992, p. 113-115.
84

modernidade como um modo (no sentido latino do termo) no pensamento, na


enunciação, na sensibilidade.1
As operações desenvolvidas em cascata pelas vanguardas realizaram um
trabalho “altamente responsável, orientado para a procura das pressuposições
implicadas na modernidade”; um trabalho semelhante ao da anamnese psicanalítica, em
que “o paciente tenta elaborar a sua perturbação presente associando livremente
elementos aparentemente inconscientes com situações passadas, o que lhe permite
descobrir sentidos ocultos da sua vida, do seu comportamento (...) como uma elaboração
(Durcharbeitung) efetuada pela modernidade sobre seu próprio sentido”2. Mediante este
trabalho, muito além da postulação da ruptura e da novidade, os projetos vanguardistas
efetivaram a desidealização da arte. Dessublimado, enfatizando a reflexividade e o
procedimento conceitual, este trabalho atingiu os mitos que recobriam a atitude dos
artistas, a obra de arte, a recepção e todo o sistema da arte. Esta consciência de si das
condições objetivas do processo artístico moderno pensa a autonomia da arte através da
negatividade, afirmando a imprevisibilidade da experiência estética como índice de uma
repressão efetuada pela modernidade sobre seu próprio sentido. Tratava-se, portanto, de
eventuar para “fazer ver que há alguma coisa que se pode conceber e que não se pode
ver nem fazer ver”3. Assim, a cartada da arte moderna de vanguarda aliava o
experimentalismo à crítica cultural, erigindo a incomunicabilidade em dispositivo de
transformação (do conceito de arte, da idéia de obra, da imagem de artista, do
comportamento estético).
Hoje, constata-se que o encerramento do grande processo das vanguardas indica
também a caducidade das expressões de modernidade que efetivaram. A idéia de uma
tradição de ruptura, realizada na própria vanguarda, está abandonada; para ser atual não
é mais preciso que se aposte no inusitado. Mas o trabalho interpretativo prossegue.
Alteradas as condições de produção e recepção em virtude da crescente especialização
do mercado, do desenvolvimento de novos meios, das oportunidades de exibição-
fruição e devido à volatização do estético, a autonomização do processo artístico tem
que enfrentar os problemas colocados pelas exigências de comunicação, livre entretanto
de qualquer projeto. A contemporaneidade estabelece-se, então, sobre os resíduos do
moderno; ela é sintoma, portanto sinal, de uma pulsão recalcada. Afastadas as

1
LYOTARD, J.F. Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 46.
2
Idem, ibidem, p. 125.
3
Idem, ibidem, p. 27.
85

veleidades do novo, a busca de convivência entre autonomia e razão comunicativa,


reflexividade e razão econômica, pesquisa e linguagem comum, simula o desrecalque da
produção.
O fim das vanguardas implica perda de perspectiva crítica, do aspecto
intervencionista da arte, mas simultaneamente, que “ela se desfaz pouco a pouco de suas
convenções, até pôr em risco a legalidade que a distingue como esfera autônoma”4.
Desde então, nesse contexto atual de dissolução dos limites e das definições, o ato de
denominação da arte, a partir da distinção: “isto é arte”, “isso é arte”, apanágio da
instituição no século passado, que se tornou, em seguida, uma reivindicação das
vanguardas (Duchamp, ou: “isso não é mais arte”, do dadaísmo), retornou à instituição.
Entretanto, não mais na forma de preservação de convenções como no século passado,
mas de adaptação dos que decidem – managers, marchands, donos de galerias e
comissários – ao clientelismo: “isso pode ser considerado como arte já que o mercado
reconhece nele a arte” (...). Estamos numa situação em que o sobrelance estético foi
substituído pelo lance econômico. Liberando-se das utopias modernas, abandonando a
idéia de uma tradição de ruptura, esta arte contemporânea “vive no cinismo inteligente
de si mesma”; na expressão lapidar de Ronaldo Brito. O espaço da contemporaneidade
(pois se trata disto, de um espaço aberto), manifesta um tom afirmativo, elidindo tensão
e compromissos. Desidealizada, mas susceptível aos encantos dos seus efeitos, a arte
evolui no desejo “de atravessar a arte moderna ou, simplesmente, utilizá-la, (...) ou
então consumi-la”. Na busca de reconciliação da arte com suas origens, este desejo
indica o sintoma: “opta pela realidade imediata da arte. E esta realidade, como se sabe, é
um mercado, uma modalidade de lazer, um exercício superior da fantasia”5.
Reatualizando, citando, estilizando, esta arte viaja pelo imaginário das formas, cores e
processos modernos, ansiando por um lugar onde se exerceria descompromissadamente,
simplesmente suprindo as tensões produzidas nos deslocamentos modernos.
Mas, se o movimento de restauração toma conta da cena contemporânea, pode-
se também flagrar que indiciam transformações, algo que não é espetacular, que não
funciona como preenchimento de um vazio, como sucedâneo do objeto da arte (pois é
disso que se trata), e, portanto, que não é imediatamente suscetível de troca. São
trabalhos que, ao reiterar processos e procedimentos modernos, recuperam nexos da

4
AMEY, C. “Experiência estética e agir comunicativo”. Novos Estudos Cebrap, n° 29, março, 1991, p.
143.
5
BRITO, R. “O moderno e o contemporâneo”. Arte brasileira contemporânea. Caderno de Textos 1. Rio
de Janeiro: Funarte, 1980, pp. 6-7, n° 350, 2/10/1983, p. 6.
86

produção moderna para fazer ver que alguma coisa no já feito foi recalcada, inclusive
pela força dos projetos; inscrevem-se, portanto, como análise interpretativa. Reiterar
não é reatualizar formas, processos, temas e materiais; nem apenas rememorar – porque
seria preciso “reparar, e identificar os crimes, os pecados, as calamidades engendradas
pelo dispositivo moderno, e finalmente revelar o destino que um oráculo, no início da
modernidade, teria preparado e realizado em nossa história”6. A reiteração, nesses
trabalhos contemporâneos, refere-se às rupturas modernas exatamente para elucidá-las:
desidealizando-as7.
Os trabalhos contemporâneos são fundamentalmente reflexivos; referindo-se à
história da arte moderna, compõem um campo de ressonâncias que atuam sobre os
significados fixados para, de certa forma, evidenciar que alguma coisa de impensado
existe no já pensado. Reiterando procedimentos, intensificando materiais, jogando com
a indeterminação do sentido e com a imanência da expressão, flagra-se neles uma
abertura para as conexões entre o presente e a tradição. Esta, entretanto, não é visada
enquanto processo de formação, devedor de uma concepção da História como
totalidade, mas como transformação que provém da descontinuidade e da não-teleologia
dos sistemas artísticos, – com que desarma a visão moderna de processo na arte.
Esta perspectiva de análise expõe as dificuldades dos trabalhos contemporâneos.
Reiterando, reatualizando, repetindo, citando, eles mostram a quase impossibilidade de
articular imagens. Compreende-se, então, que a maioria dos artistas preencham o vazio
deixado pela ausência de novo com o excesso (de imagens catalogadas, de matéria, de
procedimentos) ou com retóricas. Neles, o horror do vazio recai na falta de imaginação
e na imagerie. O desafio enfrentado por alguns artistas, que vivem a tensão do instante
através de uma imaginação e uma reflexividade que retomam seu ímpeto interpretativo,
é o de especificar a produção. Tendendo à sobriedade construtiva, à valorização da
técnica requintada, ou mesmo ao excesso, estes artistas protegem-se de validar seus
trabalhos apenas pelo uso descontextualizado dos recursos modernos. Agindo contra os
recursos fáceis e o virtuosismo, evitam a recaída, sempre solicitada pelas modas e pela
razão comunicativa, no ideário das belas-artes ou na reconciliação com o trabalho
tradicional8.

6
LYOTARD, J.-F. L’inhumain. Paris: Galilée, 1988, p. 36.
7
BRITO, R. Op. cit.
8
NAVES, R. “A arte comedida e as dificuldades da alquimia”. Folha de S. Paulo, 19/11/1989, p. F-9.
87

As dificuldades dessa arte contemporânea tornam-se mais cruciais quando se


considera a dessubstancialização da cultura, a que tente responder, e a dissolução do
próprio meio de arte. Porque não pode entender a tendência à reiteração como a volta a
um moderno que deteria todas as possibilidades a serem desenvolvidas, e porque o
próprio sujeito (da produção e da recepção) não pode mais deter a sua ilusória
autonomia, essa arte não sabe como reinstaurar a sua capacidade de intervenção. A
desterritorialização do sujeito e o desaparecimento do objeto da arte remetem a
atividade estética do imaginário, e, portanto, à evanescência da inscrição simbólica. O
sentido da atividade moderna, tal como se manifesta nos artistas mais significativos,
está no interesse, não pelos simbolismos da arte, mas pela função simbólica das
intervenções, cuja densidade está exatamente na suplantação da imaginação pessoal,
situando-se no horizonte de uma objetividade imaginativa. Estaria aí, talvez, a
possibilidade de a arte contemporânea enfrentar os seus impasses.
88

Restauração e resgate na arte contemporânea*

O interesse pela pesquisa histórica vem contribuindo decisivamente para


esclarecer a situação contemporânea da arte, a transformação profunda do sistema
provocada pela exaustão dos processos modernos. Trata-se de pensar a reorganização do
sistema de arte, de suas relações internas, através da conexão com as tradições. Este
trabalho, sobre as ruínas da modernidade, padece de inúmeras ambigüidades,
principalmente devido ao seu aprisionamento em teatros da memória1. Nestes, a história
não é tratada como processo aberto, descontínuo e não-teleológico dos sistemas
artísticos e culturais, mas como formação. A distância histórica, alegada para se falar do
moderno e do presente, freqüentemente esquece que a história não é um passado, mas
um modo de pensá-lo; assim um retorno ao passado não é necessariamente um retorno à
história. Revisitar o passado, visando a uma retomada crítica ou uma refeitura, pode não
se estar colaborando para se compreender as transformações contemporâneas, mas, à
falta de ideal e de utopia, para reconstituir totalizações onde só existiram práticas ou
processos singulares. Tal é a tendência que, em nome de uma recepção pública
normatizada, erige o passado recente, o modernismo, com tudo o que teve de disperso,
fragmentário e estratégico em território de consensos. Tal é também uma certa atitude
dita pós-moderna que, em virtude da perda do valor de evidência da arte, tenta impor
algum sucedâneo para o desaparecimento do seu objeto.
Assim, face à perda de perspectiva histórica (revolucionária) que dava
credibilidade às vanguardas, a arte contemporânea navega na indistinção, para o bem e
para o mal. Ao mesmo tempo que, devido ao desrecalque da produção efetivado pelas
operações modernistas, tudo se tornou possível para a experiência estética, pois,
liberada de convenções, de idéias portadoras de verdade, de exigências de práxis e do
imperativo de tornar-se esfera autônoma2, mostra dificuldades para afirmar sua
presença. Após a radicalização conceitual e minimalista, tornou-se complicada a
possibilidade de articular, e mesmo conciliar, o cinismo e a razão crítica; a

*
BARBOSA, Ana Mae et al.(org.). O Ensino das Artes na Universidade. São Paulo: EDUSP, 1993, p.
45-49.
1
JEUDY, H.P. Ardis da comunicação. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 17.
2
AMEY, C. “Experiência estética e agir comunicativo”. Novos Estudos Cebrap, n° 29, mar, 1991, p. 143.
89

inevitabilidade do mercado, com suas exigências de comunicação e o incomensurável


da experiência estética.
Observa-se então que a ausência de projetos inovadores e a perplexidade que
advém da indefinição secretam esperanças de recuperação de idéias, processos e
referências. Sob a designação de “resgate”, ouve-se a voz da nostalgia de um tempo que
prometia alguma completude: tudo estava por fazer, principalmente reinventar a arte, a
vida. Rasura-se assim o próprio trabalho moderno, especialmente a historicidade das
operações vanguardistas. Ao invés de uma arqueologia, voltada para a reconstrução de
objetos, processos e problemas, procede-se à inclusão dos elementos resgatados numa
espécie de museu dos restos da modernidade3. E com isso, a uma reconstituição de
continuidades no horizonte de uma totalidade, confundindo interesse histórico –
releitura da tradição e dos vínculos recíprocos com a modernidade – com recuperação
de fatos, idéias e processos retraduzidos em normas, como que relativos a uma unidade
da experiência. Embora manifestando interesse historiográfico, essa atitude centra-se
prioritariamente nos referentes, que absolutizados e glamourizados neutralizam ou
fetichizam momentos, fases, tempos históricos. Substitui-se, assim, rapidamente, a
saudade do futuro pela nostalgia do passado: restauração.
Entretanto, se a multiplicação dos teatros da memória tem como uma de suas
causas o enfraquecimento do simbólico nas formas de comunicação, que investem a
memória como instância de reconstituição de identidades – o que, aliás, pode-se
também flagrar na ênfase museográfica em curso –, importa refletir sobre as condições
da modernidade para que o histórico da arte do presente se manifeste no intervalo entre
o uso das formas do passado e a atualização4. Dessa maneira, a rememoração desliga-se
da ênfase na reconciliação com fundamentos, conceitos e formas criticados pela
experiência moderna, confirmando-se como trabalho de elaboração do passado. Como
diz Lyotard, rememorar não é reparar – como se fosse preciso “identificar os crimes, os
pecados, as calamidades engendrados pelo dispositivo moderno, e, finalmente, revelar o
destino que um oráculo, nos inícios da modernidade, houvesse preparado e consumado
em nossa história”5. Trata-se, portanto, no passado e no presente, de não se suprimir os
acontecimentos, pois estes expõem a ferida, para não se deixar inquestionado o
presente.

3
JEUDY, H.P. Op. cit., p. 126.
4
BURGER, P. “O declínio da era moderna”. Novos Estudos Cebrap, n° 29, mar, 1988, p. 95.
5
LYOTARD, J.F. L’inhumain. Paris: Galilée, 1988, p. 36.
90

A modernidade efetuou a crítica da autonomia do processo estético, fazendo na


negatividade princípio e justificativa de suas operações. A postulação de uma
contemporaneidade artística visa a designar uma situação, freqüentemente identificada a
uma suposta pós-modernidade que reteria as conquistas e virtualidades modernas,
desenvolvendo-as no horizonte do cenário cultural em que as informações tecnológicas
incidem consideravelmente no saber, na pesquisa, nos modos de evidenciação da arte.
Contudo, é estranho que, mesmo cessadas as condições históricas que permitiram aos
artistas jogar com o sistema da arte e com o desejo de transformação social, ainda se
pretenda conferir eficácia à produção do novo enquanto dispositivo de emancipação.
Nessa situação, dita pós-moderna, em que o novo não mais opera transformações nos
sistemas, o experimentalismo agencia, geralmente, reatualizações. Assim, o
contemporâneo, entendido como um além do moderno, não subsiste. A reflexão sobre a
contemporaneidade artística não permite o estabelecimento de um conceito, nem de uma
época ou tendência que substituam as modernas; pode-se falar, mais propriamente, de
um campo de efetuações aberto às singularidades. Trata-se de apreender nas
transformações presentes qualquer coisa que não se inscreva apenas na demanda
contínua por mais comunicação; algo que avança escavando o instante, considerando o
tempo como acontecimento, ferida onde cabe a análise interpretativa.
As operações das vanguardas realizaram um trabalho “altamente responsável,
orientado para a procura das pressuposições implicadas na modernidade”; um trabalho
semelhante ao da anamnese psicanalítica, em que “o paciente tenta elaborar sua
perturbação presente associando livremente elementos aparentemente inconsistentes
com situações passadas, o que lhe permite descobrir sentidos ocultos da sua vida, do seu
comportamento”; uma espécie de perlaboração (Durcharbeitung) “efetuada pela
modernidade sobre seu próprio sentido”6. Dessublimando a arte, enfatizando
reflexivamente o procedimento conceitual, este trabalho atingiu a idealização que
recobria as atitudes, a obra de arte, a recepção e o sistema da arte. É este sentido de
elaboração e reelaboração que prossegue no trabalho contemporâneo, e ele é histórico.
Alteradas as condições de produção e recepção, em virtude da crescente especialização
do mercado, e de outros agentes culturais que assimilaram seus processos, produzindo
oportunidades diversificadas de exibição-fruição e volatilização do estético, as artes têm
que enfrentar os problemas colocados pelas demandas de comunicação, demitidas,

6
LYOTARD, J.F. Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 46.
91

entretanto, das exigências de projetos, utopias, programas. A contemporaneidade


procede por interpretação de resíduos modernos; é, portanto, sintomática. Afastadas as
veleidades do novo, a busca de convivência de autonomia e razão comunicativa,
reflexividade e razão econômica, pesquisa e linguagem comum têm que dar conta das
simulações tomadas por desrecalque da produção. Assim, para não repetir o processo
moderno, que valoriza o evento e a ruptura, com que muitas vezes se reprimia o passado
mais que de ultrapassá-lo7, trata-se de elaborar o passado reinscrevendo-o segundo as
condições presentes.
Há, entretanto, um problema a ser considerado nessa reinscrição: ao mesmo
tempo que a arte se desfaz de suas convenções e do empenho de autonomia, pode perder
também a perspectiva crítica, e isto é freqüente. Retorna, pois, à instituição agora sob os
desígnios dos que decidem as condições de sua adaptação ao gosto imperante; e esse
gosto privilegia a experiência lúdica, que deixa de ser, como nas vanguardas, princípio
histórico. Fingindo desilusão, é o cinismo que impera, pois elide tensões e
compromissos provenientes da substituição do estético pelo eventual e econômico8, por
efeitos de estetização. Desidealizada, mas suscetível aos encantos da arte, esquecendo
assim o trabalho moderno, essa arte contemporânea viaja pela história da arte, no desejo
de atravessá-la, utilizá-la. Reconciliando o compromisso de atualidade e a manutenção
das promessas da arte, acaba afirmando-se como “uma modalidade de lazer, um
exercício superior da fantasia”9, manifestações típicas e ambíguas do fetichismo
esclarecido.
Mas, apesar desse movimento de restauração, pode-se flagrar na dispersão da
atividade contemporânea trabalhos que indiciam transformações; evitando a
espetacularidade não se remetem ao preenchimento do vazio, à proposição de algum
sucedâneo para o desaparecimento do objeto da arte, trabalhos que não são
imediatamente suscetíveis de troca. Ao reiterar processos modernos, visam nexos e
tensões, disseminadas nos dispositivos modernos, não para reatualizar formas, temas e
materiais que rememoram o impulso que os comandou. A reiteração, nesses trabalhos,
refere-se às rupturas modernas para elucidá-las, desidealizando-as10. São trabalhos

7
Idem, ibidem, p. 121.
8
AMEY, C. Op., cit., p. 143; COELHO, Teixeira. “A negatividade na cultura ocidental”. O Estado de S.
Paulo, Cultura, 28/12/1991, p. 2.
9
BRITO, R. “O moderno e o contemporâneo”. Arte Brasileira Contemporânea, Caderno de Textos 1, Rio
de Janeiro: Funarte, 1980, pp. 6-7; “Pós-moderno: pós, pré, quase ou anti”? Folha de S. Paulo, Folhetim,
n° 350, 2/10/1983, p. 6.
10
Idem, ibidem.
92

reflexivos que jogam com a indeterminação do sentido; não operam regras e categorias
já estabelecidas, tentam estabelecer as regras e categorias daquilo que foi feito11.
Agindo contra os recursos fáceis e o virtuosismo (visíveis nas reatualizações, citações,
no uso descontextualizado dos recursos modernos), evitam as retóricas do excesso ou da
técnica requintada, expondo a quase impossibilidade de articular imagens. Protegem-se,
assim, da reconciliação com o trabalho tradicional, solicitado continuamente pela moda
e pela razão comunicativa, paradoxalmente ainda tributários do ideário das belas-artes12.
As dificuldades dessa arte são imensas; tendo em vista a dessubstancialização da
cultura, não sabe como articular sua significação cultural, pois a experiência estética
contemporânea está remetida preponderantemente ao imaginário, dada a evanescência
da inscrição simbólica13.

11
LYOTARD, J.-F. Op. cit., p. 33.
12
NAVES, R. “A arte comedida e as dificuldades da alquimia”. Folha de S. Paulo, 19/11/1989, p. 9.
13
A última parte deste texto reelabora aspectos de uma comunicação feita no seminário promovido pela
ECA-USP (1991) em comemoração aos seus 25 anos. Nota: conferir texto “Impasses da arte
contemporânea”.
93

Arte do tempo: o evento*

Sabemos muito bem do deslocamento produzido pelo trabalho das vanguardas:


desidealizou a idéia de arte e seus objetos. Elaborando-se sobre as teorias, as ações, os
resíduos e os fragmentos da arte moderna; atravessando e utilizando suas obras, o
trabalho contemporâneo, que está em curso pelo menos desde a redistribuição estética
promovida pela pop art, está reconfigurando a imagem da arte, suas atividades, obras e
outras manifestações. Depois da crise do sistema da arte, levada a efeito pelos
dispositivos modernos, segue-se a crise cultural do meio de arte.
Alguns problemas novos surgem dessa mutação da arte da modernidade; um
deles, muito freqüente, é a mescla de manifestação artística e evento cultural. A ênfase
recente dada a uma possível modalidade de inscrição estética que pretende repropor a
arte como intervenção cultural e na qual se integram subjetividade e significação social
é, sem dúvida, uma tentativa de atribuir sentido aos acontecimentos mobilizados por um
meio de arte frágil, fortemente determinado por apelos e modas artísticas.
Destinado, a princípio, à inserção de um trabalho artístico no meio de arte, o
evento freqüentemente torna-se o próprio acontecimento artístico. Assim, a arte aparece
segundo a sua realidade mais imediata – instância de mercado e lazer, “exercício
superior da fantasia” – e não como experiência estética1. Ao tentar identificar questões
artísticas e práticas culturais renovadas, até mesmo com poder de transgressão, a arte
fundida ao evento dissolve os signos artísticos originando uma categoria típica dos
tempos atuais, o “interessante”, que tanto afasta-se do belo e do maravilhoso, quanto do
novo e da ruptura. Ora, o que é interessante é, simplesmente, indiferenciado. Como é
que o indiferente pode ser interessante, pergunta Lyotard, pensando a estetização
generalizada da cultura das metrópoles. Diz ele: “quando o objeto perde seu valor de
objeto, o que conserva valor é a maneira como se apresenta”2. O evento é exatamente
uma maneira de exibição de objetos ou situações artísticas. Nele, o interesse estético
desloca-se dos objetos, obras ou proposições para concentrar-se nos comportamentos
dos participantes de determinado acontecimento cultural. Participar, contudo, não tem

*
Revista Sexta Feira 5 [Tempo]. São Paulo, 2000, p. 110-117.
1
BRITO, R. “Pós-moderno: pós, pré, quase ou anti”? Folhetim, n° 350, 2/10/1983, p. 6.
2
LYOTARD, J.F. Moralidades pós-modernas. Trad. bras. Campinas: Papirus, 1996, p. 29 e ss.
94

nada a ver com a categoria moderna de participação, que surge com a desestetização,
pela crítica das categorias tradicionais da obra de arte, implicando práticas artísticas e
experiências estéticas reflexivas.
Assim, os trabalhos artísticos convertem-se em instâncias de comunicação, o que
resulta na perda do valor que se pretende atribuir ao evento: o de lugar de exploração de
signos de resistência cultural, de explicitação da angústia provocada pela perda do
objeto da arte, dado o aprisionamento do desejo pelo consumo. A estetização
generalizada é simultaneamente fruto da abertura moderna, ou seja, da desestetização, e
perda das tensões entre sensível e racional, construtividade e vivência, patentes em
todas as tendências e experiências modernas.
Como o estatuto da arte contemporânea parece inteiramente determinado por
uma condição extrínseca – o caráter institucional do lugar em que aparece – e como o
meio de arte age em consonância com as instâncias institucionais e vice-versa, é preciso
dar a devida atenção ao evento como maneira privilegiada de enunciar experimentações
que pretendem ser transformadoras do ambiente cultural e educadoras da sensibilidade.
Eventos são intervenções, regradas ou extemporâneas, que num lugar preciso
permitem a intersecção de falas, tempos e ações. Simultâneos e descontínuos, estes
elementos desdobram e reiteram gestos e atitudes que exploram o instante da
apresentação. Nas artes plásticas, por exemplo, acentuam a temporalização do espaço,
tornando espesso o fugaz.
O evento não propicia imediatamente a fruição dos trabalhos artísticos, mas a
presença em um acontecimento. A passagem da simples presença à presentificação de
uma experiência significativa, de que proviria o efeito estético da participação, supõe
que os gestos efetivados nos comportamentos derivem do valor exemplar dos signos
produzidos na experiência das obras ou proposições artísticas. Os eventos tiram toda a
sua eficácia do poder simbólico do espetáculo; daí o seu interesse: são lugares ou
ocasiões onde o tempo é intercambiável e consumível – um tempo pseudo-crítico.
Entretanto, quando as proposições artísticas abrem um espaço no interior das estratégias
consagradas, mesmo que muitos recentes, o tempo do evento pode ser crítico. De modo
geral, os eventos são ocasiões em que se produzem e consomem imagens – um modo de
dominar a fuga do instante e do prazer. Dramatizando espetacularmente a sucessão dos
atos em que algo se dá a ver, os que vivem o tempo do evento rendem-se ao encanto (e
também ao cansaço) dos mecanismos de repetição. Lugar onde presumivelmente a
95

subjetividade se descentra, nômade e espontânea, o evento, na verdade, propõe a


vivência do tempo regrado, dos gestos plenos de expectativas.
Os paradoxos do evento permitem esclarecer muito do que é contemporâneo em
arte. Uma arte não é contemporânea apenas porque é recente e mesmo presente.
Contemporaneidade pressupõe o ultrapassamento das categorias modernas – o novo, o
projeto, a autoria, a soberania do sujeito, a racionalidade etc. – em favor de intervenções
num sistema em contínua transformação, em que a invenção procede da interpretação.
Por estar comprometido com as operações midiáticas, com os ardis da comunicação, o
evento dissolve a dimensão simbólica da arte, incluindo-a no processo geral de
culturalização. Contemporâneo, então, confunde-se, neste caso, com articulação de
efeitos imaginários. Há, entretanto, outra possibilidade, simultânea, de manifestação
contemporânea de arte: reflexiva, atravessando a arte moderna para desrecalcar suas
pulsões ou realizar promessas esquecidas, é uma arte que se constitui como uma
elaboração, articulando o passado e o presente, o vivido e o pensado. O tempo em cada
obra, instalação ou o que seja, é diferenciado e especificado, sendo, no fundo,
dependente da reflexão sobre as condições da ação, ou seja, sobre os limites do trabalho
moderno. É por isto que esta “eventuação” da arte contemporânea é frustrante para o
público não especializado; esta é também uma das razões pela qual ele é levado a viver
o calor ambiental – uma temporalidade provisória e contingente –, como uma espécie de
simulação da participação artística. A especificidade e o processo de especificação
próprios dessa arte decepcionam o público porque desapropriam um conceito de arte
ainda remanescente na cultura, principalmente impedindo-o de aceder à arte como
elemento expressivo do sujeito.
O trabalho contemporâneo é, pois, um trabalho de inscrição num campo de
transformações, de passagem de um sistema a outro (ainda não passível de
configuração), onde vigoram tensões e mobilidades descontínuas, sem qualquer
remissão ou presunção de totalização. É por isso que o artista contemporâneo “está na
situação de um filósofo”, diz Lyotard, pois o que faz “não está governado por regras já
estabelecidas”; é, antes, um trabalho que força o pensamento e a sensibilidade,
propondo-se como uma investigação e exigindo dos participantes (mais ou menos
ativos) uma interpretação3. Somente nesse arco de atitudes a arte contemporânea
evidencia, explicita, desenvolve alguma espécie de problema: configura numa “obra”,

3
LYOTARD, J.F. O pós-moderno explicado às crianças. Trad. port. Lisboa: Dom Quixote, 1987, p. 26;
DELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. bras. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, pp. 17 e 96.
96

que não é mais “obra de arte”, uma proposição, uma idéia, uma ação. Os trabalhos
contemporâneos são, assim, táticos, diferentemente dos modernos, estratégicos.
As táticas, diz Certeau, são ações calculadas que pretendem determinar um lugar
de ações e um tempo de intervenções. Não tendo poder de totalização, visam a “captar
no vôo as possibilidades oferecidas por um instante”. É a arte da caça, do senso de
ocasião, da ausência de poder; modos hábeis de “utilização do tempo”4. Assim é a arte
contemporânea: ela não vive das intenções emancipatórias do processo e do projeto
modernos; é um pensamento sobre as estratégias modernas, rigorosamente centrado na
exploração do lugar e do tempo em que aparece, mesmo que seja eventualmente,
mesmo que seja para ser consumida, imediatamente ou não. Sua força está na quebra do
ilusionismo da forma e na fuga dos conteúdos que os tempos modernos elegeram. Mas,
de que vive esta arte, depois de afastadas as veleidades do novo? Freqüentemente do
não-dito da arte moderna; daquilo que nela permaneceu oculto ou incluso, sem
desenvolvimentos, e cuja manifestação é possibilitada apenas pelos novos tempos. É
uma arte reflexivamente rica, às vezes paródia do saber configurado nas propostas
modernas. Daí a sensação que temos de que as obras recaem no lugar-comum, no
clichê, numa espécie de “retórica da banalidade”5. Isso provém, principalmente, do fato
– já mencionado – de a arte contemporânea ser fortemente institucionalizada, o que
equivale a dizer codificada, pois não pode mais tirar partido dos efeitos de ruptura, de
choque, mas, ao contrário, da tentativa de suprir a brecha aberta pela arte de vanguarda
entre o que quer significar e o que é concretamente entendido pelo público.
O tempo da arte contemporânea é o tempo do paradoxo e da repetição. Não é,
como o moderno, tempo da invenção ou, como o cíclico, tempo da conservação: é o
tempo das transformações, da dualidade e das ambivalências. Na repetição se dá a
diferença, uma espécie de simultaneidade de ritmos que ora homogenizam as
disparidades, gerando séries, ora exploram a dispersão, gerando singularidades. Os
trabalhos contemporâneos se efetivam através da história ainda viva e pulsante da arte
moderna, reativando e refletindo os seus princípios, tensionando suas questões,
desativando, entretanto, os seus projetos emancipatórios6. A arte contemporânea perde,
assim, o seu aspecto de representação, tornando-se irrepresentável. Por isso lhe é

4
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano – artes de fazer. Trad. bras. Petrópolis: Vozes, 1994, pp.
46-47.
5
HUCHET, S. “Instalação, alegoria, discurso”. Trilhas, n° 6, Campinas: Unicamp, 1997, p. 70 e ss.
6
BRITO, R. “O moderno e o contemporâneo”. In: BRITO, R; VENÂNCIO FILHO, P. O moderno e o
contemporâneo (O novo e o outro novo). Rio de Janeiro: Funarte, 1980, pp. 7-9.
97

atribuída a categoria do sublime, que interpreta a quase impossibilidade de fixação de


formas, significados e valor. O sublime é índice da impossibilidade de preenchimento
do espaço deixado pela crítica moderna do ilusionismo que envolvia o conceito de arte e
as suas obras.
Os trabalhos contemporâneos dedicam-se, portanto, à investigação das relações
entre as novas condições de produção e de circulação vigentes na cultura
contemporânea e as experiências modernas, particularmente as vanguardistas. Ao
reiterar, recodificar ou simplesmente utilizar idéias e procedimentos já experimentados,
estes trabalhos atuais visam esclarecer ou desrecalcar nexos e tensões implícitos nos
dispositivos modernos – não para simplesmente reatualizá-los, e muito menos para
restaurá-los, mas, precisamente, para elucidá-los e desidealizá-los7. São trabalhos
reflexivos, que pretendem estabelecer regras e categorias estéticas a partir do que é
feito. Reagindo à simples reconciliação com os trabalhos modernos, longe também da
solicitação por modas e tendências, efetivam-se como uma espécie de perlaboração dos
pressupostos modernos. As dificuldades maiores com que se deparam provêm da quase
impossibilidade de articular imagens, em virtude da evanescência da inscrição
simbólica. Dessublimados, os eventos funcionam como fenômenos de uma estética
difusa, generalizada. De estratégias para sensibilizar o público e de mediadores das
experiências artísticas, os eventos convertem-se em táticas artísticas, pretendendo
inscrever-se como intervenções no conceito, na manifestação e na vivência da arte.
Resultam, geralmente, apenas em táticas de consumo – da arte, do instante, dos
comportamentos.

7
Idem, ibidem.
98

Poéticas da atitude – o transitório e o precário*

É da aproximação, ou da fusão, de arte e vida que procedem as poéticas da


atitude na arte desde as grandes intervenções levadas a efeito pelo trabalho moderno.
Malévitch, Duchamp e, entre nós, Oiticica, são emblemas de atitudes transformadoras,
afirmadas por várias direções do trabalho de vanguarda e desenvolvidas nas variadas
manifestações da arte contemporânea, desde a redistribuição estética promovida pela
pop art: ressignificando a concepção de arte e a imagem artística, consagradas teórica e
culturalmente, interferindo nos modos de apreciação e de circulação das obras,
propondo, assim, mudanças significativas na experiência estética que privilegiava a
atitude contemplativa.
Nas atitudes, que implicam operações como as de Duchamp e Oiticica – que
deslocam a ênfase da produção de obras de arte para idéias, gestos, ações, objetos e
comportamentos –, o que se designa como arte e experiência estética concentra-se em
proposições que acentuam o processual e o conceitual; no fundo, ressaltando a atitude
crítica sobre a arte e o sistema cultural que lhe dá sustentação. O ready-made de
Duchamp e a antiarte de Oiticica, embora singulares experiências de fusão de arte e
vida, admitem conexões de proposta ético-estética, no que se refere à crítica da arte e às
relações entre arte e cultura. Ambos coincidem no desejo de reconciliação de arte e vida
pela superação da autonomia estética preconizada no projeto moderno. Para isto,
Duchamp articula gestos de recusa, com sarcasmo e humor, voltados contra as habituais
circunscrições estéticas, jogando com o sistema artístico a ponto de diluir suas margens.
Oiticica mobiliza um programa de matriz construtivista que interceptando subjetividade
e significação social encaminha-se para a diluição das estruturas com a inclusão das
vivências. Reconceituando a arte, desintegrando o seu objeto, ambos redimensionam a
ação dos protagonistas das proposições que substituem as “obras de arte” e, assim,
deslocam o sentido cultural da arte. O dispositivo duchampiano funciona por
interruptores num sistema artístico consagrado, desmobilizando, com estratégias
calculadas, as idealizações que recobriam o conceito e a prática de arte, ironizando as
histórias da arte, interessado, antes de tudo, na arte de viver. Oiticica pretende renovar o

*
Texto inédito. Escrito a partir de intervenção em mesa redonda integrante do Programa Rumos Artes
Visuais, do Instituto Itaú Cultural. São Paulo, 2001.
99

“mundo da arte”, intervir na situação artístico-cultural brasileira, reinventar a arte como


vivência e como ação cultural1.
Lúdica, sensorial ou formalizada, a arte que deriva dos trabalhos emblemáticos
enunciados é sempre intelectualizada e implica o destinatário como protagonista,
participante de uma situação estetizadora, que provoca mudanças na atitude que
relaciona artista, obra e público. Antes de ser uma de recusa da arte, tal atitude revela
uma tentativa de revigorá-la. Trata-se, acima de tudo, nestas experiências, daquelas
emblemáticas às intervenções mais radicais das últimas décadas do século XX, de
definir uma outra ordem do simbólico, uma outra modalidade de inscrição estética: uma
extensão da arte, uma estetização generalizada, que implica a reproposição da arte como
intervenção cultural, resistente à dessubstancialização vigente na atualidade. Portanto,
este trabalho, moderno e contemporâneo, de ampliação da arte, pelo empenho dos
artistas em forçar os limites expressivos, implica o sentido político das atividades que se
expressa na crítica à simples identificação da arte como cultura de consumo.
Esta modalidade de apresentação da arte explora, de um lado, o fato de que a
diluição de fronteiras entre arte e vida situou-a no ambiente. É preciso acentuar que
hoje, freqüentemente, o estatuto da obra, quando ela existe como tal, é determinado
pelas especificidades do lugar em que é exibida, e que este lugar é institucional. Se isto
coloca problemas complicados para a discussão sobre a criticidade da arte
contemporânea, de outro lado, permite esclarecer que a crise atual é uma crise cultural
do meio de arte, e não crise da arte – o que permite pensar a diluição da arte no
cotidiano através da relativização das diferenças entre o que é institucionalizado e o que
pode não ser. Trata-se sempre, nestas experiências, de repotencializar a arte para nela
recuperar a vida. Uma aposta moderna, como se pode ver, ainda ativa no trabalho dos
artistas, como uma espécie de pressuposto que atesta a atualidade e a força do trabalho
moderno. A circulação entre experiência pessoal e experimentação artística não se
desliga, nas proposições contemporâneas em que esta atitude está motivada, da tentativa
de atribuir significação cultural às intervenções – uma espécie de reafirmação da
negatividade crítica moderna.
Esta nova inscrição estética, proposta nos trabalhos das vanguardas e
radicalizado depois, apresenta algumas dificuldades quando se considera que a arte,
considerada como a cultura típica da sociedade de consumo, aparece em sua realidade

1
FAVARETTO, C.F. “Por que Oiticica”. In: BOUSSO, V.D. et al. Por que Duchamp? São Paulo: Itaú
Cultural; Paço das Artes, 1999, p. 80.
100

mais imediata, ou seja, como instância de mercado e lazer, como um “exercício superior
da fantasia”2. Daí a necessidade, como já foi aludido, de se atentar para o caráter
institucional das experiências e obras, pois o lugar de aparição é por si só um critério
distintivo do valor das proposições: se admitem categorias estéticas ou se são apenas
“interessantes”, ou seja, maneiras ditadas pela moda. Singularizadas esteticamente ou
indiferenciadas como objetos comuns, as obras, experiências ou propostas
contemporâneas participam do mesmo processo extensivo de generalização da arte na
cultura das metrópoles. O que as diferencia é a intensidade com que tensionam o
ambiente com proposições e ações que ora enfatizam as relações entre o sensível e o
racional, ora entre construtividade e vivência, ora entre enunciação e pensamento.
Este largo traçado da atitude contemporânea, com todas as diferenciações que
são necessárias para contemplar a variedade e riqueza da produção em
desenvolvimento, quer evidenciar que os trabalhos dos artistas são sintomáticos.
Exatamente porque, na continuidade da atitude duchampiana, operam a partir do
conhecimento das regras de funcionamento das instituições artísticas, tomadas como
instância de diálogos e jogos, os trabalhos tensionam os limites do trabalho moderno,
seus pressupostos e suas questões. O sintoma pós-moderno, diz Ronaldo Brito, é “o
desejo de atravessar a arte moderna ou, simplesmente, utilizá-la. Isto é, parodiá-la cética
ou furiosamente, ou então consumi-la”3. Esta travessia pode ser entendida como um
trabalho semelhante ao da anamnese psicanalítica, “como uma perlaboração
(Durcharbeitung) efetuada pela modernidade sobre seu próprio sentido”4. Associando
livremente a perturbação presente com situações passadas, o artista contemporâneo,
como um paciente, elaborando descobre nos dispositivos modernos sentidos ocultos,
esquecidos ou recalcados. Assim, desidealizado, o trabalho dos artistas enfatiza a atitude
reflexiva, compondo um campo de ressonâncias que elucida as proposições modernas –
desenvolvendo-as, diferenciando-as ou negando-as, liberando, assim, os seus implícitos.

2
BRITO, R. “Pós, pré, quase ou anti”? Folha de S. Paulo, Folhetim, 2/10/1983, p. 6.
3
Idem, ibidem.
4
LYOTARD, J-F. O pós-moderno explicado às crianças. Trad. port. Lisboa: Dom Quixote, 1987, p. 97;
L’inhumain. Paris: Galilée, 1988, p. 35.
101

IV – O moderno e o contemporâneo no Brasil


102

Infortúnios da unidade*

Herdeiro de uma grande fortuna e, compulsoriamente, de um cão, o provinciano


Rubião transfere-se de Barbacena para o Rio de Janeiro no final do Império. Tentara
alguns negócios fracassados e fora professor de crianças, antes de dedicar-se
inteiramente aos cuidados do esquisito filósofo Quincas Borba, retirado doente e
delirante da Corte do Rio de Janeiro para a interiorana Barbacena, da província de
Minas Gerais. Crédulo, formado nos princípios da moral; ressentido e destituído de
opinião própria, aspira a toda sorte de benefícios conferidos pelo dinheiro. Ao ser
designado herdeiro universal de Quincas Borba, também herdeiro inopinado, vê a
oportunidade de viver na capital do Império os sonhos e aspirações de grandeza,
acreditando que a simples posse da riqueza lhe abriria as portas do luxo, do poder e da
glória, enfim, dos progressos da vida moderna. É a sua desforra; “quebrar a castanha na
boca aos que antes faziam pouco caso dele”, dos que riam de sua amizade pelo filósofo
enlouquecido e por seu homônimo cão.1
Desconhecedor das engrenagens da florescente vida burguesa das elites do Rio
de Janeiro, dos estratagemas da ascensão social, das intrigas da Corte, das nuanças dos
comportamentos modernos e das artimanhas do poder, Rubião torna-se presa fácil dos
arrivistas que, fingindo disponibilidade para orientá-lo nos negócios e na política,
exploram sua boa fé. Fantasiando o amor, apaixona-se por Sofia, por quem é seduzido e
abandonado; desconhecedor dos negócios, delega a Cristiano Palha, marido de Sofia, a
gestão de seu capital; aspirando ao poder, é iludido na política por Camacho. Aos
poucos, confuso e desencantado, inadequado às dissimulações e interesses que
comandam o círculo das elites em que foi introduzido abruptamente, Rubião se perde,
torna-se dois. Desencantado, perde a substância da vida moral, a própria unidade da
vida, a identidade. Disperso, vítima de “sensações diversas e contrárias”2, despojado do
dinheiro, dos sonhos de grandeza, dos devaneios de amor e poder, passa do
deslumbramento ao desencanto; da excitação ao tédio; da presunção de poder à

*
Texto apresentado no Simpósio Internacional “Machado de Assis: Reflexions, Refractions, Realities”.
University of Texas at Austin, EUA, 27-28/10/1995. Uma versão reduzida foi publicada sob o título “The
misadventures of Unity”, como posfácio à traduçào norte-americana do romance Quincas Borba de
Machado de Assis (New York/Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 273-290).
1
Machado de Assis, Quincas Borba. 12ª ed., São Paulo: Ática, 1993, c. XV, p. 27.
2
QB, c. XLIX, p. 61.
103

megalomania e ao delírio. Vaga, sem prazer, pelos salões, pelas ruas, pela Câmara dos
Deputados; passeia os sonhos e busca o “repouso do espírito” em sua casa de “luxo
rutilante”, ocupado em ler romances que falam de “uma sociedade fidalga e régia”, com
“seus nobres espadachins e aventureiros, as condessas e os duques de Feuillet, metidos
em estufas ricas, todos eles com palavras mui compostas, polidas, altivas ou graciosas”,
que lhe faziam “passar o tempo às carreiras”3. Falto de idéias, compensa pela
imaginação, como Bovary, a fuga do real, reconstituindo a perda da consciência. Sendo
dois, vivendo os “extremos do coração e do espírito”4, alterna cenas de delírio com
alguma lucidez; perde a unidade da experiência. Abandonado pelos que o assediavam
com protestos de amizade, Rubião é agora a imagem rediviva de Quincas Borba, de sua
esquisitice e seu legado de loucuras; confirmação da filosofia do Humanitismo
inventada pelo filósofo. Por fim, desaparece do Rio de Janeiro e retorna, maltrapilho,
doente, acompanhado pelo cão, a Barbacena, onde morre enlouquecido, cingindo
imaginariamente uma coroa como o Napoleão de seus delírios: “ele pegou em nada,
levantou nada e cingiu nada”. Do nada ao nada, cumpre a irrisão do destino, que encena
“os risos e as lágrimas dos homens”5.
Sucintamente, aí estão o enredo e a temática de Quincas Borba, que é, também,
uma continuação do romance anterior de Machado de Assis, Memórias Póstumas de
Brás Cubas, em que o filósofo Quincas Borba é personagem. Compõe uma sátira social,
política e filosófica; mais propriamente, uma alegoria da modernização burguesa do
final do século XIX no Brasil. Imediatamente, é um romance comum à época, tratando
dos temas do amor, da família, da vida em sociedade e da política, com as intrigas
costumeiras. No modo de compor , desloca os lugares- comuns em que aparecem nas
narrativas romanescas, o que implica crítica da literatura, do naturalismo e do romance
imperantes. E, enquanto alegoria, é inventário terrível das assincronias da integração
dos costumes e dispositivos modernos.
Quincas Borba, assim como a vida, “compõe-se rigorosamente de quatro ou
cinco situações, que as circunstâncias variam e multiplicam aos olhos”6. A trama é
simples; o que vale é o nuançamento das situações, das circunstâncias advindas “do
abismo que há entre o espírito e o coração”7, dos interesses individuais, da concorrência

3
QB, c. LXXX, p. 99.
4
QB, c. XL, p. 49.
5
QB, c. CCI, p. 214.
6
QB, c. CLXXXVII, p. 205.
7
QB, c. II, p. 13.
104

social, da política e dos negócios. São as circunstâncias que tecem a assim chamada
vida interior, a aliança do amor e do dinheiro, as vicissitudes do poder. O lucro, valor
preponderante da “vida moderna”, disfarçado nas aparências da amizade, do amor, do
progresso, da solidariedade social, expõe a irrisão dos valores universais, a facticidade
do moderno e as ilusões da nova intimidade.

***

Quincas Borba encena a inadequação dos romances naturalistas, históricos e de


formação face à perda da unidade da vida patente na experiência moderna – em síntese,
a unidade do idêntico e suas representações. Tomando o partido da diversidade e,
inclusive, da repetição do idêntico que, disfarçadas, promovem a coexistência das
diferenças na rubrica da novidade, propõe que a conciliação é a única saída, embora
compensatória, para dar-se conta da perda da unidade do sujeito, da impossibilidade da
mímese, da inviabilidade dos sistemas orgânicos,- éticos, políticos e artísticos. Terrível
potência de agressão contra toda transcendência, afirma a dissimulação como lei, pois
desterritorializa as universalidades em favor de singularidades exemplares, que mostram
a eficácia simbólica da multiplicidade, disfarçada nas representações das belas-almas.
Este movimento é o seu efeito moderno que, atravessando a figuração das elites do final
do Segundo Reinado, dramatiza a finitude da condição humana na crise do romance.
Aderindo à narrativa aberta, descontínua e inacabada, com que o romance
moderno finge a totalidade apenas pressentida, comum na literatura em que a lucidez e
o desencanto flagram as potências entrevistas de um pensamento e de uma sensibilidade
futuros, este romance de Machado, como outros, procede ao inventário das forças
ativadas por uma modernização forçada, em seu contraste com os resíduos ainda ativos
das ilusões de um mundo em que a vida era concertada. Destituindo identidades,
reconstruindo-as sob os signos de valores distintos dos metafísicos, a narrativa
sagazmente os pulveriza na entronização do personagem-conceitual, material e moderno
por excelência, o lucro. O mal-estar de Rubião, contrastando com a impassibilidade de
Palha, os disfarces de Sofia e os artifícios de Camacho, indicia esse moderno como pura
positividade sem história. Nele, são indiscerníveis os limites entre realidade e
105

idealização, sanidade e loucura, aparência e valor, estagnação e progresso. A paisagem


pintada é “um desolado deserto varrido pelos ventos de sandice”8.
Machado tensiona a “pobre língua humana”9 intensificando significados de uso
simbólico e significantes fixados, fazendo-os vibrar. Explora os extremos da linguagem,
explode os usos meramente representativos. Desloca, assim, os argumentos e as
metáforas, enfatizando a enunciação. É desta maneira que, contrariamente ao
naturalismo, repropõe o realismo por uma nova adequação de conteúdo e expressão. O
conteúdo comum dos romances da época é desterritorializado por intervenções, que ao
mesmo tempo atingem a unidade da narrativa e dos sujeitos e, conseqüentemente, a
unidade pressuposta do leitor. Introduzindo ruptura entre a designação e o sentido,
produz o vazio da significação a ser preenchido pelo leitor, que é incluído na cena. A
narrativa agencia-se como uma espécie de máquina de expressão que corrói as
identidades e a unidade da ficção, propondo uma leitura virtual, construída como
enunciação coletiva. Processo polifônico, o narrador e o leitor integram uma
constelação de intensidades que recompõe outra unidade em que a dualidade
designar/exprimir desaparece nas dimensões variadas da multiplicidade. A continuidade
narrativa provém das relações que se vão construindo na variação de situações,
personagens e idéias10.
O efeito da máquina é arrasador: agenciando ironia e humor, às vezes o
grotesco; pontuando a narrativa de citações literárias , filosóficas e bíblicas, articula a
reflexão imoralista, por vezes de gosto duvidoso, da condição humana, tecendo a teia
em que o amor, os afetos, as afinidades são objeto de uma escansão que lhes esvazia os
significados instituídos. Machado expõe os dispositivos de poder e de consolação que
conferem unidade à vida burguesa, mas também deixa entrever as forças que se
anunciam: a irresistível desnaturalização e desidealização da modernidade.
Ao dirigir-se ao leitor com fingida benevolência quando figura a dureza desse
mundo moderno, que no Brasil especificava o processo capitalista, o narrador sugere
que nada muda no objeto encenado, mas que alguma coisa muda no representado,
intervindo na recepção. Ditos sentenciosos e enunciados que elegem transcendência são
simultaneamente distanciados pelo modo da enunciação. A ironia e o humor são as

8
CORÇÃO, Gustavo. Machado de Assis-Romance. Rio de Janeiro: Agir, 1959, p. 13 (Nossos Clássicos,
37).
9
QB, c. XXVIII, p. 37.
10
DELEUZE, Gilles. Logique du Sens. Paris: Minuit, 1969. Trad. bras. Lógica do Sentido. São Paulo,
Perspectiva, 1974, p. 26-27 (Estudos, 35).
106

táticas exatas de reversão de princípios, de suspensão do sentido, de valorização das


singularidades em detrimento da lei, da generalidade, do universal. Problematizam os
acontecimentos, idéias e situações, abolindo toda profundidade, instigando o espírito a
rir da seriedade das idéias, dos juízos peremptórios, das semelhanças entre
particularidades e das predicações opositivas, que traduzem um mundo constelado11.
O narrador de Quincas Borba enuncia ironicamente: “eu não me quero senão
com dissimulados”12. Deslocando e disfarçando a solenidade da sabedoria pelo riso e
olho mau, surpreende o choro dos homens como doença do espírito: o mau-gosto do
eterno como disfarce das repetições secretas.

***

A modernidade de Quincas Borba é sintomática. Na figuração alegórica, marca


os signos do processo de formação de uma realidade “moderna”, em que, entretanto, o
mundo patriarcal da economia ruralista e dos valores liberais transparece nas formações
substitutivas do compromisso e da conciliação13. A pressa na adoção dos ideais da razão
ilustrada, enquanto produz o encantamento da cultura ornamental, à moda européia,
omite, num passe de mágica, a ideologia do favor e o escravismo14. A crença positivada
no progresso, traduzida no caráter mercantil da produção de idéias, comportamentos e
afetos, não deixa aparecer a desigualdade e o lucro como o motor das novas vivências.
Não escapam a Machado essas determinações. Nas relações de amor, de amizade e
família, a composição encobre a dominação, estabelece o equilíbrio, fomenta as
posições sociais e as honorabilidades. A representação formal do igualitarismo é
espicaçada por Machado, seja nos movimentos das personagens, seja na paródia do
positivismo e do evolucionismo darwinista, como é o caso da exposição do
Humanitismo de Quincas Borba, reencarnado em Rubião.
Sintomática também é a estratégia narrativa. Aqui, a solução técnica é um
achado inédito no Brasil, aliando-se às realizações de outras práticas de desvio do

11
DELEUZE, Gilles. Différence et Répétition. Paris: PUF, 1968. Trad. Bras. Diferença e Repetição. Rio
de Janeiro: Graal, 1988, p. 27; Lógica do Sentido, p. 143.
12
QB, c. CXXXVIII, p. 158.
13
cf. GLEDSON, John. Machado de Assis: Impostura e Realismo. São Paulo: Companhia das Letras,
1991, p. 102.
14
Conferir, a respeito desta questão: SCHWARZ, Roberto. “As idéias fora do lugar”. Estudos CEBRAP
nº 3. São Paulo: jan. 1973, p.143 e s., incluído em Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades,
1977. Confereir ainda CARVALHO FRANCO, Maria Sylvia de. “As idéias estão no lugar”. Cadernos de
Debate 1. São Paulo: Brasiliense, 1976, p. 61 e ss.
107

romance burguês, de Sterne a Flaubert. O romance machadiano é elaborado com


abertura e rigor. O uso da palavra justa e do efeito calculado compõe-se com a
exploração de procedimentos de corte na narrativa e de obscurecimento da forma,
cruzando e desnaturalizando estilos e representações consagradas, como a elegância
clássica, o sentimentalismo romântico, a descrição naturalista15. A narrativa constitui-se
como jogos de linguagem, buscando a eficácia crítica da linguagem e da referência.
Ironia, humor, grotesco, paródia, alegorização produzem o efeito de distanciamento que
a um só tempo atinge o conteúdo e a expressão. E, ainda, o desvendamento da narrativa
exige a participação do leitor, não como espectador-receptor, leitor-consumidor de
histórias romanescas, mas como produtor. Neste sentido, a abertura da narrativa implica
seu inacabamento, comum no romance moderno.
A modernidade de Quincas Borba é, pois, dupla, sempre estrutural. A figuração
cético-irônica da integração do moderno nas elites ilustradas – nos negócios, na política,
na imprensa, nas modas – representa o otimismo progressista da burguesia que ainda
auferia os privilégios e as distinções da proximidade da Corte. Machado procede a uma
violenta redução, emblematizando em alguns personagens o encantamento das
promessas modernas e, simultaneamente, o caráter imitativo das mudanças e a
assincronia da desordem mantida da sociedade. Daí que um dos assuntos do romance
seja a conciliação moral e política que restaura formalmente a unidade na desigualdade.
Mas o reducionismo é funcional16, pois se manifesta na intertextualidade, visível no
processo produtivo da leitura.
Opondo-se ao naturalismo e à sensibilidade romântica, Machado articula o seu
realismo, que resiste à leitura fácil, feita de projeções e identificações; de fixação de
patologias e caracteres naturais, típicos dos romances do tempo Astuciosamente e com
muita ironia, serve-se do imaginário do gosto imperante pelas intrigas e pelo ornato
cultural, voltando-o contra o leitor. Exige deste outra posição da leitura, a dos ocultos da
narrativa17, em que a volubilidade dos personagens é o correlato objetivo da crítica da
verossimilhança. Cortando o fluxo da narrativa, baralhando a seqüência temporal e
mudando a enunciação com a rotatividade dos sujeitos, impede que o leitor apenas siga
a trama: desautomatização.

15
cf. “Machado de Assis: Um debate. Conversa com Roberto Schwarz”. Novos Estudos CEBRAP, nº 29,
São Paulo, mar. 1991, p.68-69, a propósito do livro de RS, Um mestre na periferia do capitalismo –
Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades,1990.
16
Idem, p. 67 e 71.
17
cf. GLEDSON, John. Machado de Assis: Ficção e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 113.
108

A dupla inscrição do romance de Machado implica deslegitimação dos sistemas


e valores, de territórios sociais e identidades. Considerando que “a paisagem depende do
ponto de vista”18, a narrativa desqualifica a universalidade da razão iluminista, apanágio
da nascente burguesia urbano-comercial, que se expressava no individualismo, no
progressismo dos discursos políticos liberais em torno da escravatura e do
republicanismo e, principalmente, na idéia de intimidade burguesa.
Machado não desterritorializa apenas mostrando, por meio do dispositivo do
disfarce, a duplicidade de intenção e ato, de consciência e imaginação, de estrutura de
classe e igualitarismo formal. Não o faz, também, pela crítica direta ao poder; nisso,
aliás, é dúbio, pois não ostenta nenhuma adesão à República, nenhuma crítica à
Monarquia. Sua visada é a da crítica das representações, que tornam sistemas, idéias e
afetos dependentes do poder e do lucro. A sua estratégia é moderna: indireta. Expõe
tecnicamente os descompassos da sociedade e da arte, fazendo o leitor deslizar da
transcendência do símbolo, que aplaca tensões, para a percepção de sintomas que
indiciam o desarranjo. O perspectivismo evidencia os dispositivos de recomposição de
esquemas que a ciência moderna- o darwinismo-positivista- e os princípios liberais
declaravam ultrapassados, embora mobilizadores das reterritorializações subjetivas do
conservadorismo.
Assim, tomando como fulcro da narrativa a contraposição da perda da unidade
da vida em Rubião e da recomposição funcional de Palha/Sofia, Machado monta um
esquema da modernização que evidencia os efeitos perversos atuantes nas
racionalizações dos personagens. No calculismo do casal e na confusão de Rubião, há
razões legitimadoras e interesses disfarçados. A falta de escrúpulos de uns e os remorsos
do outro supõem, embora com expectativas diversas, o solo comum da racionalidade
ilustrada, o individualismo. “Desvarios embora, lá tem seu método”, diz o narrador,
comentando o sonho de Rubião em que Sofia é associada à Imperatriz Eugênia19. Há
lógica nos devaneios e delírios de Rubião: a razão sucumbe ante o despedaçamento das
suas categorias: harmonia, perfeição, beleza, completude. Delírio e loucura são
compensações do descompasso entre espírito e coração, entre natureza e sociedade,
entre consciência e imaginação. Contrariamente, em Palha-Sofia, o equilíbrio da vida é
restaurado nos momentos de fraqueza pela facticidade, suprimindo-se os conflitos no
arrivismo. A contraposição agencia apenas os pontos de vista diversos sobre o mesmo

18
QB, c. XVIII, p. 30.
19
QB, c. CIX, p. 128.
109

fato; é encenação da convivência, no moderno, do eterno e do contingente. E a narrativa


é, ela mesma, esta encenação. Semeando idéias, “muitas idéias”, “idéias demais” que, à
semelhança das representadas na cabeça de Quincas Borba, o cão, são “poeira de
idéias”20, a narrativa vai montando um cenário em ruínas: um nada.
Assim, não se excluem o imediato da narrativa, que se dirige ao leitor de
romances em moda, e o irrepresentável, que se dirige ao leitor virtual, ambos
contemporâneos; são dimensões do romance machadiano, a partir de Memórias
Póstumas de Brás Cubas, que diverge do “método de tantos outros, – velhos todos, –
em que a matéria do capítulo era posta no sumário: 'De como aconteceu isto assim, e
mais assim'. Aí está Bernardim Ribeiro; aí estão outros livros gloriosos. Das línguas
estranhas, sem querer subir a Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e
Smollet, muitos capítulos dos quais só pelo sumário estão lidos. Pegai em Tom Jones,
livro IV, cap. I, lede este título: Contendo cinco folhas de papel. É claro, é simples, não
engana a ninguém; são cinco folhas, mais nada, quem não quer ler não lê, e quem quer
lê, para os últimos é que o autor conclui obsequiosamente: 'E agora, sem mais prefácio,
vamos ao seguinte capítulo'“21.
Eis aí, para o leitor de aventuras, para os que se deliciam nas intrigas ou os que
se querem haver com fatos objetivamente narrados, o “método” dos “velhos” romances;
deve cumprir a promessa da experiência antecipada no título dos capítulos, ou do livro,
podia-se completar. Para os que lêem porque querem, a despeito da falta de assunto
anunciada nos capítulos (ou no livro – afinal, Quincas Borba nomeia quem, o filósofo
ou o cão?), nada é prometido, senão a narrativa como experiência.
O irrepresentável é o verdadeiro assunto do livro; presença e presentificação de
um “real” que se vai construindo, não exatamente com o que acontece, mas com
“alguma coisa no que acontece”: “espaço de encontro dos signos, espaço em que os
pontos relevantes se retomam uns nos outros”, estruturando e modificando relações
entre os signos instituídos22. Machado configura uma paisagem, a um tempo
determinada e indeterminada, conforme o “ponto de vista” que a interpreta. O olho
centrado, participante das situações históricas imediatas, vê os acontecimentos como um
painel de desigualdades derivadas do espetáculo, triste e melancólico, da vida humana.
O olho cínico, cético e mau, vê o que se passa na transversal, associando signos que

20
QB, c. XXVIII, p. 37.
21
QB, c. CXII, p. 131.
22
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição, p. 54; Lógica do Sentido, p. 152.
110

transitam pragmaticamente, embora disfarçados. O narrador indicia o irrepresentável


dos estados que interceptam determinações diversas, que não podem ser nomeadas
senão por “um não sei quê”, um “não sei como dizer”- expressões que não se referem a
um suposto inefável do sublime ou às limitações da linguagem, porque aludem à
impropriedade de todo ponto de vista que pretenda universalidade. Indicia que “a
variedade necessária”, que faz o “equilíbrio da vida” e explica a “natureza das ações” ,
exclui a totalização da experiência. Talvez no inumano do cão Quincas Borba possa
aventar-se uma outra unidade. Este inumano, contudo, não é o não-humano por
oposição, mas um deslocamento do humano em seus disfarces. O cão é, assim, o
personagem conceitual do romance: “recolhe idéias”, mas como são idéias de cachorro,
são “poeira de idéias”, ou “menos ainda que poeira, explicará o leitor”23.
Entretanto, no brilho alusivo das imagens, propõe-se ao leitor a ficção de uma
totalidade continuamente diferida e deceptiva. Traçado da racionalidade enquanto
representação, alegoria do poder, o livro inventaria e critica as categorias
regularizadoras, morais e artísticas, concentradas nas proposições: “o melhor modo de
apreciar o chicote é ter-lhe o cabo à mão”; “ao vencedor as batatas”24. Estas categorias
são cifradas como “simetria e regularidade” na consideração da “unidade moral da
pessoa” e da unidade formal da narrativa25.

***

A ação de Quincas Borba desenvolve-se em 1867-71, no período da crise


institucional do Segundo Reinado e do entusiasmo dominante pelas idéias progressistas;
de ascensão e queda de ministérios e rotatividade no poder de liberais e conservadores,
cuja distinção, aliás, era pouco nítida. Nos debates da Campanha Abolicionista, da
Guerra do Paraguai (1864-1870) e das idéias republicanas, buscava-se a unidade política
pela conciliação de interesses partidários em que os conflitos de posições eram
amortecidos pelo prestígio pessoal e imperial de Pedro II. A modernização que se
processava era conservadora; apesar do enfraquecimento da burguesia rural e da
emergência de novas lideranças, provenientes da burguesia comercial em ascensão,
ideologicamente não havia contradição entre as propostas. O poder determinava-se mais

23
QB, c. XXVIII, p. 37.
24
QB, c. XVIII, p. 30.
25
QB, c. LV, p. 70.
111

pelo prestígio pessoal assegurado pelo clientelismo que por projetos. Apesar das crises
sucessivas, advindas da disputa de hegemonia entre as Províncias do Norte e as do Sul;
do descontentamento dos militares; dos arrufos entre Igreja e Estado; do deslocamento
do pólo econômico da cana de açúcar nordestina para o cafeeiro do Vale do Paraíba, as
mudanças institucionais eram reformistas. As leis de extinção do tráfico de escravos
(1850) e a Lei do Ventre Livre (1871) provocavam resistências na economia rural em
dificuldades: uma de suas conseqüências foi o início da substituição da mão-de-obra
escrava por imigrantes.
A situação era complexa. A modernização impulsionada pelo vento das idéias e
práticas liberais, que chegavam da Europa e da América do Norte, promovia mudanças
na fisionomia do país, com as estradas de ferro, com a liberação dos capitais
empenhados no tráfico de escravos e agora injetados na especulação e nos negócios,
mas não transformava essencialmente as relações de poder. Traduzia, ainda, a ideologia
do favor, os privilégios da proximidade da Corte, a desigualdade. Entretanto, algo
estava em marcha, eram iminentes a Abolição e a República. Dois poderes se
manifestam decisivamente: o Exército, fortalecido com a Guerra do Paraguai, e a
Imprensa, arena das idéias liberais.
Machado dissemina signos disso tudo, surpreendendo o quadro das ambições,
vaidades, interesses, e, não menos, o horror da escravidão, a irrisão das medidas
políticas, as representações abstratas da racionalidade que as validava. A consonância
entre o que se passava nas relações domésticas e nos salões, nas conversas políticas e
negociatas, provinha da indiferenciação entre ética das aparências e idealização.
Passava-se de um esfera a outra sem conflitos; estes eram simplesmente suprimidos ou
vividos sem ambigüidade, relegados, nos dois casos, à intimidade e suas tiranias. Assim,
a paisagem figurada por Machado nega a positividade da razão ilustrada que, devendo
expressar-se nas esferas autônomas da religião, da ciência, da moral e da arte, não
produzia no Brasil qualquer fratura propriamente moderna. As elites compunham, por
acomodação, uma imagem de felicidade. A crença na ciência e o entusiasmo pelo
progresso que deveriam levar ao domínio da natureza e à justiça das instituições são
denunciados por Machado como idealização. O otimismo das elites é satirizado porque
a ação objetiva desmente os ideais abstratos: as relações de propriedade fundadas no
trabalho escravo tornam irrisórias as belas idéias, recheio da consciência aliviada,
patente nas motivações bovaristas e arrivistas dos personagens. Na chave dos
112

moralistas, Machado mostra o vulto de uma natureza humana monstruosa, destilando


uma sabedoria “envenenada”26.
Machado delineia as ambições, vaidades e paixões como as “formas várias de
um mal”. O efeito moralista, “intempestivo, inatual, imprevisto, inoportuno, fora do
tempo”, dá forma “à verdade de sua época”, internalizada esteticamente27. Em
contraposição, a inépcia de Rubião na vivência dos disfarces torna-o um signo
estereotipado, uma monumentalização grotesca da modernização imitada. Nele, o
consumo puramente conspícuo das modas convive com a forma moral da consciência
ressentida, plena de remorso e ímpetos de reparação. Se os demais personagens
emblemáticos, Palha, Sofia e Camacho, são figuras da indiferença, Rubião é a diferença
desatualizada. De um lado, a indiferença ou o prazer; de outro, a dor, indiciando ambos
a ilusão da novidade moderna. Na narrativa, tudo depende da volubilidade dos desejos,
assim como do interesse e da vontade que os mobiliza; mais ainda, das estrelas, da lua,
do Cruzeiro, que, impassíveis, não riem nem choram com o espetáculo dos homens.
Ceticismo.

***

No modo de compor Quincas Borba, Machado de Assis realiza as dissincronias


da modernidade pela justaposição de seus cacos. Personagens e situações são articuladas
no jogo das oposições, especificamente na dualidade. É evidenciando as diferenças que
o romance constitui um estado de coisas designado por metáforas arruinadas, que
figuram acontecimentos. O sentido não se produz diretamente pela pintura de
personagens, paisagens e situações. O leitor é várias vezes advertido de que não deve
procurar na narrativa aquilo que sua voracidade romanesca espera: “a análise da
operação mental” dos personagens, pois ela seria “longa e fastidiosa”28. Nas dualidades
– Quincas Borba filósofo e cão; Quincas Borba e Rubião; Rubião e Sofia-Palha; Rubião
e Camacho; Carlos Maria e Sofia; Carlos Maria e Maria Benedita, e outras – as lacunas
dos saltos narrativos só podem ser preenchidas pela atividade do leitor. Este opera, não
a análise dos caracteres e situações que faltam, mas o sentido pela constelação dos
signos dispersos, como um caçador que saltasse as barreiras do tempo, como um olhar

26
Cf. “Conversa com Roberto Schwarz”, loc. cit, p. 66 .
27
MURICY, Kátia. “Machado de Assis, um Intempestivo?”. Gávea 10, Rio de Janeiro: PUC-RJ, mar.
1993, p. 13 e ss.
28
QB, c. CXIII, p. 131-132.
113

que investigasse, vendo de novo, reconstituindo fragmentos. A encenação é da ordem


do delírio, da loucura e da imaginação, não da razão.
Se o narrador “corta o episódio”, “interrompe o livro”, é porque a realidade
visada não é narrável; ou, pelo menos, não pode ser narrada segundo os procedimentos
em voga. Portanto, se o leitor fica confuso e perdido, é porque não leu “com pausas”.
Com elas, não acederá a uma compreensão da “realidade”; poderá, quanto muito,
“concertar farrapos da realidade”. Descobrirá, assim, “uma quarta causa”, “talvez a
verdadeira”, explicativa das motivações , ainda que indeterminada, fugindo da ordem da
causalidade: a causa do acaso29.
Este romance destina-se aos que “sabem ler”, aos que não buscam a
verossimilhança, mas o susto do pensamento, a liberdade imaginativa, a surpresa e o
riso das motivações inconscientes. Machado brinca com o costume do leitor curioso das
intrigas, levando-o a presumir encadeamentos de fatos, sentimentos e situações que,
aparentemente, têm lógica, são verossímeis, mas que na verdade advêm da imaginação
doentia, da consciência culpada, do ciúme. Neste sentido, o livro encena em Rubião as
desventuras do desejo; aquele fogo que vez ou outra nele se acende,
descontroladamente.
Escritor dos avessos, Machado encena, nas dualidades, a unidade perdida da
vida. Flagra em Rubião a tentativa instrumentalizada e, conseqüentemente, desastrada,
de reconstituí-la. Sem conseguir a compreensão do que nele se passa, nem nos outros,
por não dominar a arte do disfarce, enleia-se em considerações que não são
“propriamente filha(s) do espírito nem das pernas, mas de outra causa, que ele não
distinguia bem nem mal, como a aranha”. Pois, “que sabe a aranha a respeito de
Mozart? Nada; entretanto, ouve com prazer uma sonata do mestre. O gato, que nunca
leu Kant, é talvez um animal metafísico. (...) Rubião sentia-se disperso; os próprios
amigos de trânsito (...) davam-lhe à vida um aspecto de viagem, em que a língua
mudasse com as cidades, ora espanhol, ora turco”30.
A remissão à aranha não é, obviamente, casual. É imagem do enleamento de
Rubião, da sua dualidade, da sua confusão, prenúncios da desarticulação que sobrevirá.
É também metáfora do processo construtivo da narrativa e crítica da razão. No mito
grego, Aracne desafia Atena, deusa da razão, na arte da tapeçaria, e, como castigo, é
metamorfoseada em aranha. A aranha tece, puxando o fio da teia, mas a sua ciência

29
QB, c. CVI, p. 124.
30
QB, c. LXXX, p. 98.
114

“todo mundo desconhece”31. É metáfora da escrita e, por extensão, da arte. A


associação, aparentemente arbitrária, da aranha a Mozart e do gato a Kant seria mais da
ordem do processo onírico que do proposicional, como a reflexão finge. Mozart e Kant
remetem a regularidades, na arte e na filosofia. Mas Mozart remete também aos saltos,
às cabriolas de suas frases musicais; e Kant, à inversão da metafísica clássica. Signos
entrelaçados que sugerem multiplicidade e relações de força que agem sob a
representação do idêntico. Mas tem ainda o gato, “animal metafísico”. A aranha, está no
mito, é dissimulada, arrogante e competitiva; o gato é esperto e atento, mirando sempre
sem compreender, suas reações são prontas e precisas. Se a aranha, no seu eterno tecer,
é imagem da rememoração, como Rubião, o gato é a metáfora do deslocamento, e este
falta a Rubião. E rememorar, sabe-se, supõe o ruminar de uma suposta origem traída,
sempre preste a renascer no remorso e na culpa. Já o gato não tem origem, vive um
presente distendido, o dos acontecimentos.
Nada em Machado é casual; a referência a Kant, como a outros filósofos, visa a
um efeito preciso, calculado. Neste caso, em que Rubião cogitava “um modo de restituir
à vida a unidade que perdera”, Kant é alegado, talvez porque sua ética incida na
consideração da experiência da finitude, quando sonda o abismo entre natureza e
liberdade. Kant, sabe-se, procura a síntese de sensível e inteligível, já que a razão,
cindida pela separação da ciência e da moral, não permite compreender diretamente a
coisa em si, conhecendo apenas o que se torna objeto de experiência. A universalidade
de qualquer juízo, como regra, só pode ser extraída das singularidades, daí o desacordo
das faculdades, do entendimento e da razão. O juízo reflexivo parte, portanto, do
singular para o universal, e é o que Rubião não alcança, por sempre proceder
inversamente. Ao perder as representações, vê tudo confusamente, inclusive porque,
sendo como todos os indivíduos “bolha transitória”, “não tem opinião”32.
Assim, Machado dirige-se ao leitor, dizendo: não procure no enredo a verdade;
já é muito “concertar farrapos da realidade”; nem procure uma finalidade fácil no
espetáculo dos homens, a única que existe é a da natureza. O máximo a que se pode
aspirar, quando a alma é “uma colcha de retalhos”, “é que as cores se não desmintam
umas às outras, – quando não possam obedecer à simetria e regularidade”. Rubião é a
impossibilidade desse acordo precário; já em Palha, embora tendo “o aspecto baralhado

31
. Cf. a canção “Na asa do vento”, de Luiz Vieira/João do Vale, cantada por Caetano Veloso, LP Jóia,
Philips, 1975.
32
QB, c. VI, p. 20.
115

à primeira vista”, “atentando bem, por mais opostos que fossem os matizes, lá se achava
a unidade moral da pessoa”33. Se a unidade aspirada por Rubião é transcendente, a de
Palha é transcendental, ou seja, a do lucro.
A narrativa de Quincas Borba é descontínua, obrigando o leitor a puxar-lhe os
fios, desenleá-los como a aranha, esperto como o gato, para articular as relações de
forças que a tensionam como um “espaço em que os pontos relevantes se retomam uns
nos outros e em que a repetição se forma ao mesmo tempo em que se disfarça”34. Signos
heterogêneos implicam heterogeneidade nas relações, de modo que a compreensão vem
sempre depois. Machado incita o leitor a reconstruir os signos disseminados e,
decifrando-os e interpretando-os, a passar dos fenômenos narrados à possível
significação de uma totalidade apenas sugerida.
Agenciando dualidade e inacabamento, Machado traça a paisagem moral e a
história como relações de força, figurando um mundo que se dissolve enquanto outro se
constitui. A paisagem é de ruínas. Como se diz de Freitas que, ostentando embora uma
“máscara risonha”, diz-se um triste, “um arquiteto de ruínas”35. Quincas Borba
apresenta o mal-estar de uma situação de crise em que se justapõem as ruínas ainda
ativas do passado e as de um presente inconsistente, que ressaltam a modernização
predatória. O implacável processo de destruição de Rubião é a figuração dessa coalizão
do tempo que morre e do que nasce. Também na narrativa é o que acontece. O tempo da
narrativa vai-se acelerando à medida que o delírio toma conta de Rubião. O
arruinamento da personagem é rapidamente arrematado por cortes abruptos, compondo
a alegoria das batatas, de que a trajetória de Rubião é a demonstração.

***

O autor põe um fim no livro, mas a narrativa não se conclui à maneira dos
romances. Machado reconduz Rubião doente e maltrapilho a Barbacena,
acompanhando-o do cão, repetindo a mesma situação do filósofo. Delirante, Rubião
entende a alegoria das batatas – pelo menos “o sentido vago da luta e da vitória”36.
Concretiza, assim, no destino do personagem, a filosofia do Humanitismo, remetendo o
leitor novamente ao início do texto. No último capítulo, anunciando a morte do cão,

33
QB, LV, p. 70.
34
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição, p. 45-46.
35
QB, c. XXX, p. 40.
36
QB, c. VIII, p. 21.
116

abre a obra com a dúvida sobre o título do livro, “questão prenhe de questões, que nos
levariam longe”. A questão e as questões dizem respeito à verdade da ficção e à
possibilidade de o romance figurar a realidade. Mais propriamente, confundindo o leitor
quanto ao título do livro, que nomeia personagens conceituais e não a ação narrada,
Machado lança desconfiança sobre as formas de narrar constituídas no seu tempo:
aquelas que pretendem “discernir os risos e as lágrimas dos homens”, descrever e cifrar
a condição humana, na construção épica da experiência. Machado indicia a crise da
narrativa e a crise do romance como gênero marcado pelas idéias de unidade e
completude. Quincas Borba, ao contrário, finge o romance. Lembre-se a advertência
“ao leitor” em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “a gente grave achará no livro umas
aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance
usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são a duas
colunas máximas da opinião”.
O romance de Machado já é aquele, moderno, em que os personagens não são
construídos como símbolo de uma totalidade; trata do indivíduo em sua solidão,
fragmentado, disperso. Trata da mudança estrutural da experiência, dos indivíduos que
vivem ao acaso dos acontecimentos, não mais traduzindo a aventura espiritual do
homem no mundo, mas os efeitos derrisórios da perda da unidade que o faz estranho a si
mesmo. A fragmentação do indivíduo é encenada na fragmentação da narrativa, no
emprego de procedimentos do distanciamento deceptivo. Uma das táticas de Machado é
o deslocamento do leitor, tanto o “sério” como o “frívolo”, pela dissolução das
expectativas universalizantes. Alegórico, Quincas Borba compõe as “quatro ou cinco
situações” logo nos primeiros capítulos; surpreende Rubião em devaneios de grandeza e
partido (“que abismo há entre o espírito e o coração!”); no flash back, introduz o
Humanitismo, de que o romance é a efetivação; delineia a personalidade de Rubião
como fraco, sem opinião e ressentido; contrapõe-lhe a fraqueza à dissimulação de Sofia
e ao calculismo de Palha; enfim, monta o painel histórico dos operadores da estratégia
narrativa.
Machado toma partido da alegoria em contraposição ao símbolo, pois não
constitui uma imagem totalizadora que subordinasse as particularidades ao universal,
não promove a identidade no todo, não busca o infinito no finito. Nesta alegoria, o
particular apenas significa o universal , não é o seu representante37. A sabedoria

37
TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. “O simbólico em Schelling”. Almanaque 7. São Paulo:
Brasiliense, 1978, p. 86 e ss.
117

encenada em Quincas Borba, exatamente porque agenciada como humor, provém de


uma agonística, em que o ideal decai. Na corrosão da narrativa épica, e na desorientação
do leitor no decurso da narrativa, enfraquece-se o romance. A perda do verossímil
sintoniza o desaparecimento de um mundo concertado sob os auspícios da razão
ilustrada38.
Se Machado, como várias vezes aparece em Quincas Borba, dirige-se
constantemente ao leitor, é porque este faz da leitura de romances um modo substitutivo
da perda da unidade moral, o que corresponde à presença cada vez mais determinante
do jornal: Machado não só se aproveita da imprensa para veicular seus escritos, como
inclui nos romances as contaminações de sua leitura. Explora a forma da notícia para
ironizar o leitor de romances de folhetim, usando a imprensa como dispositivo de
“envenenamento” da narrativa39. Veja-se, por exemplo, como aparece em Quincas
Borba a notícia pela qual Rubião toma conhecimento da morte do filósofo: “Faleceu o
Senhor Joaquim Borba dos Santos, tendo suportado a moléstia com singular filosofia.
Era homem de muito saber, e cansava-se em batalhar contra esse pessimismo amarelo e
enfezado que ainda nos há de chegar aqui um dia; é a moléstia do século. A última
palavra dele foi que a dor era uma ilusão, e que Pangloss não era tão tolo como o
inculcou Voltaire... Já então delirava. Deixa muitos bens. O testamento está em
Barbacena”40.
Machado mescla enunciados típicos das notícias fúnebres e enunciados que, por
acúmulo de resíduos, identificam princípios morais e traços culturais . Remete à
filosofia do Humanitismo exposta em Memórias Póstumas de Brás Cubas,
especialmente no capítulo CXVII, citando e deformando a frase final (“Pangloss, dizia-
me ele ao fechar o livro, não era tão tolo como o pintou Voltaire”); parodia o tom
moralizante do conservadorismo (“esse pessimismo amarelo e enfezado que ainda nos
há de chegar aqui um dia”), contra o qual “ cansava-se de batalhar” como um dos
efeitos da modernização, em que a “crise”social é pensada na chave ética da tradição;
valoriza a figura de Quincas Borba na chave da impassibilidade e da consolação
filosófica (“tendo suportado a moléstia com singular filosofia”). Homem de muito
saber, no entanto “delirava” e, finalmente, “deixava muitos bens”. O delírio desconstrói

38
Cf. BENJAMIN, Walter. “O Narrador”; “A Crise do Romance”. Obras Escolhidas, v. 1, São Paulo:
Brasiliense, 1985.
39
Cf. “Conversa com Roberto Schwarz”, loc. cit., p. 66
40
QB, c. XI, p. 25.
118

a filosofia e os valores atribuídos a Quincas Borba, enquanto a indicação de que deixa


muitos bens reconstitui a posição social.
O tom enfático da notícia parodia tanto o anúncio fúnebre quanto o
Humanitismo que, lembre-se, é paródia do Positivismo. Como se sabe, Pangloss,
personagem de Candide, postula um otimismo que nada abala. A citação do princípio “a
dor é um ilusão” contrasta, por sua vez, com a machadiana constatação das “formas
diversas do mal”.
Quincas Borba é, enquanto demonstração da alegoria das batatas, uma crítica do
positivismo brasileiro. Este é um amálgama de idéias em voga, de Comte, Spencer,
Darwin, de racionalismos naturalistas, de monismos e ceticismos, uma “filosofia”, como
acúmulo de doutrinas41. Humanitas é o “princípio da vida” que “reside em toda parte”:
“há nas coisas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal,
eterno, comum, individual e indestrutível”, que “existe também no cão”. O equilíbrio da
vida é garantido pela “variedade necessária” dos acontecimentos, dos fenômenos
naturais, sociais e individuais. O mal não existe, a dor é ilusão e “o homem só
comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso”. Assim, a competição e a guerra
são princípios de conservação: “ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as
batatas”42. E os indivíduos são apenas “bolhas transitórias”.

41
Cf. MURICY, Katia. A Razão Cética – Machado de Assis e as Questões de seu Tempo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 35; ARANTES, Paulo Eduardo. “O positivismo no Brasil”. Novos
Estudos CEBRAP 21. São Paulo, jul. 1988, p. 186.
42
QB, c. VI, p. 19.
119

Modernidade e nacionalismo*

Em 1913 chega a São Paulo o jovem pintor Lasar Segall, judeu-lituano de Vilna.
Introduzido na elite paulistana a que pertencia sua irmã, é convidado a expor em São
Paulo e, depois, em Campinas – cidade próxima da capital, importante centro
econômico, político e cultural. Em São Paulo, expõe em março num salão improvisado
no centro da cidade, certamente à falta de museus e galerias de arte; em Campinas, no
Centro de Ciências, Letras e Artes, em junho do mesmo ano.
Segall trazia a São Paulo quadros de suas experiências anteriores na Europa.
Iniciado, por volta de 1907, nos cânones estéticos naturalistas da Imperial Academia
Superior de Belas Artes de Berlim expõe, dois anos depois, convidado por Max
Liebermann, na Freie Sezession. Viaja e trabalha na Holanda, depois em Dresden, em
cuja Academia é aluno do impressionista Gottard Kühl, onde entra em contato com os
artistas do Die Brücke, realizando neste período quadros de um expressionismo
atenuado. Ao chegar ao Brasil pela primeira vez, Segall traz quadros impressionistas e
moderadamente expressionistas, inclusive porque tinha sido advertido do
“provincianismo” reinante na São Paulo da época. As suas exposições foram recebidas
apenas cordialmente. As repercussões reduziram-se a alguns artigos de jornal, de teor
informativo, sendo que apenas em Campinas apareceu um artigo mais consistente.
Entretanto, a exposição de São Paulo foi visitada pela quase totalidade dos artistas
ativos, como atesta o livro de assinaturas, e algumas obras foram vendidas. Assim, a
primeira exposição de arte moderna no Brasil não teve repercussão. Segall voltaria ao
Brasil definitivamente em 1923, tornando-se então um dos artistas modernistas
destacados do país, inclusive por sua contribuição para a formulação na pintura do tema
da “brasilidade modernista”.
Em 1913, Anita Malfatti, filha de um engenheiro italiano naturalizado brasileiro,
depois de um período de aprendizado na Escola de Belas Artes de Berlim, orientada por
Lowis Corynth e Bishoff Culm, volta ao Brasil. Interessada sobretudo pelo que chamou
de “festa da cor”, fruto do convívio nos museus da Alemanha e Paris com as obras de

*
Texto da conferência “Modernité et nationalisme: l’art moderne au Brésil”, no Colóquio “Ruptures: de
la discontinuité dans la vie artistique”. Service Culturel du Musée du Louvre. Publicado em: GALARD,
Jean (org.). Ruptures. De la discontinuité dans la vie artistique. Paris: École Nationale des Beux-
Arts/Musée du Louvre, 2002, p. 243-268.
120

Cézanne, Gauguin, Van Gogh e de toda a arte moderna, dedica-se, então, ao “segredo
da composição das cores”. Em São Paulo, faz uma exposição, com retratos e algumas
paisagens, em que as cores explodem, mas sem indicação significativas de deformação,
contorção e contraste de cores – o que seria plausível de se esperar, pois estivera na
Alemanha no tempo da Secessão e da Die Brücke. A exposição não mereceu atenção
especial da crítica e do público. No ano seguinte parte para N. York, tornando-se aluna
de Homer Boss, que estimula a liberdade de experiências de seus alunos, com ênfase na
pintura ao ar livre. Anita encontra aí a possibilidade de prosseguir nos
desenvolvimentos dos jogos de cores, mas agora como “festa da forma e da cor”1. Anita
Malfatti une a experiência trazida da Alemanha expressionista com o colorido brilhante
da natureza – da ventania, do sol, da chuva e da neblina – da costa leste da Nova
Inglaterra, para onde Boss levava seus alunos.
Quando Anita Malfatti volta a São Paulo em 1916 traz consigo quadros,
especialmente retratos, muito coloridos, muito fauves, com zonas assimétricas de cor e
angulações de forma, mais do que propriamente deformações. Com alternância de
verdes, vermelhos e amarelos, compõe massas bastante estruturadas, em que a
assimetria acentuava a dramaticidade dos retratos, paisagens e nus. Vejam-se, por
exemplo, os quadros “A boba”, “O homem amarelo”, “A Estudante”2. Entusiasmada
com suas conquistas artísticas, interessa-se pelo que se faz em São Paulo, especialmente
pela demanda por inovações temáticas, pelos motivos e cores brasileiras que delineiam
uma preocupação nacionalista. Participa em 1917 de um concurso sobre a figura do
“saci”, lendário ser da mata brasileira, uma espécie de identificador de nacionalidade. A
tela de Anita choca muita gente, sendo criticada por Monteiro Lobato. Ficando
conhecida de jornalistas e do pintor Di Cavalcanti, Anita é convencida, apesar de
receosa, a expor os quadros trazidos dos Estados Unidos e outros pintados recentemente
no Brasil. A exposição, de 12 de dezembro de 1917 a 10 de janeiro de 1918, provocou
mais uma crítica, agora agressiva, de Monteiro Lobato que, embora destacando o
“talento vigoroso” da artista, julga-o desnaturado por força da “sedução da arte
moderna”. O seu artigo Paranóia ou mistificação? arrasou a artista. Embora defendida
por Oswald e Mário de Andrade, a pintora, chocada, recolhe-se e guarda os quadros.
Continua a pintar, mas nunca mais retorna àquela ousadia, preferindo ficar no “debate

1
BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte
Moderna. 5. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p.40 e ss.
2
Catálogo Anita Malfatti, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo / Instituto de
Estudos Brasileiros da USP, 1977, p.9 e ss.
121

consigo mesma”3. Esta foi a primeira manifestação explícita de arte moderna no Brasil,
prenúncio da ruptura modernista que eclodiria em 1922 com uma Semana de Arte
Moderna.
No início de 1920 os jovens modernistas, já então denominados genericamente
“futuristas”, descobrem o escultor Victor Brecheret que, depois de um período de
estudos na Escola de Belas Artes de Roma, de 1916 a 1919, trabalhava incógnito em
São Paulo. Os modernistas deslumbram-se com as enormes e estranhas esculturas de
Brecheret, que lhes pareciam modernas como nada que se conhecia até então no Brasil.
Brecheret formaria então com Anita Malfatti a dupla inicial do modernismo brasileiro.
Ele é erigido em escultor moderno, tanto pelos temas (considerados nacionais), como
pelas características plásticas, embora estas traduzissem inicialmente uma estilização
naturalista, decorativa ou simbolista. Para os modernistas, que fazem a fama do arredio
escultor, a descoberta é decisiva, reativando o estado de espírito provocado pela
exposição de Anita Malfatti e instigando os desejos de ruptura com a arte do passado.
Mesmo o escritor e crítico Monteiro Lobato, que havia destratado Anita Malfatti,
derrama-se em elogios a Brecheret – certamente porque via nele um elo com seu gosto
estético naturalista. Para os modernistas, Brecheret era o Rodin brasileiro4.
Os fatos elencados até agora querem sugerir que a Semana de 22 não foi um
acontecimento abrupto. É, sem dúvida, o marco divisor que inaugura a modernidade
artística no Brasil – e, como tal, uma ruptura com a arte do passado. Foi um
acontecimento ruidoso, com as características das ações vanguardistas, que
escandalizaram o meio intelectual, artístico e social de São Paulo, repercutindo em
outras capitais e mesmo em cidades de província. Eram, entretanto, resultado de um
processo que vinha se desenvolvendo lentamente, tendo como horizonte a crítica da arte
do passado e uma vaga imagem de modernidade, atrelada à questão de criação de uma
arte nacional. De qualquer maneira, a semana de 11 a 18 de fevereiro de 1922, ano em
que se comemorava o centenário da independência do país, virou emblema do
modernismo brasileiro. Entretanto, é somente depois de 22 que a arte moderna se
realizaria no Brasil, com a obra de Tarsila do Amaral, Rego Monteiro, Cícero Dias, Di
Cavalcanti e outros, na conjunção de forma moderna e significação nacional.
O que se quer sugerir, enfim, é que “a questão moderna é um dado fundamental
na produção cultural dos primeiros anos do nosso século e não uma súbita descoberta do

3
Id. ib.
4
BRITO, Mário da Silva. Op cit., p.109.
122

grupo de São Paulo por volta da década de 1920”5. Trata-se de “avaliar o grau de
inovação que a sociedade estava em condições de absorver (...). A arte brasileira não é
moderna no sentido europeu, por não ter criado uma nova noção de espaço e por não ter
abdicado do referente, mas é considerada localmente moderna pela erosão que vai
promovendo da disciplina acadêmica e pelo grau de deformação que vai incorporando
ao seu léxico”6. Pode-se falar, certamente, de uma “vontade de ruptura” e, por volta dos
anos 20, do aparecimento de um imperativo moderno que iria mobilizar até
recentemente a atividade artística e os projetos culturais no Brasil. Os índices de
modernidade estavam mais nos conteúdos (brasileiros) que na forma, sem que na
pintura e na escultura de Anita Malfatti e de Brecheret fossem propostas verdadeiras
rupturas de códigos e de convenções7. Apesar desta timidez, os jovens futuristas
realmente produziram a inovação da atividade artística no Brasil; foram os propositores
do espírito novo nas artes e defensores de uma cultura nacional – o que permitiu a
Mário de Andrade bradar na abertura do momento modernista de 22: “somos os
primitivos de uma nova era”.
Em 1942, em conferência comemorativa dos 20 anos da Semana de Arte
Moderna, Mário de Andrade caracterizou o modernismo brasileiro como um trabalho de
“reverificação da inteligência nacional”, resultante da “fusão de três princípios
fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência
artística brasileira, e a estabilização de uma consciência criadora nacional (...). A
novidade fundamental, imposta pelo movimento, foi a conjugação dessas três normas
num todo orgânico da consciência coletiva”8. Como se vê, esta atitude implicava, de um
lado, a abertura experimental, com a ruptura dos códigos de representação e de
sensibilidade vigentes; de outro, a reinterpretação criativa e crítica do passado, a
articulação de inovação e tradição. A consciência coletiva de que fala Mário de Andrade
valoriza o sentido de projeto que anima os modernistas, não apenas o aspecto coletivo
das atividades de vanguarda. E este projeto vinculava ética, estética e política,
modernidade e nacionalismo – vinculação que acompanharia os desdobramentos do
modernismo nas décadas seguintes, até os anos 60, com ênfase diferenciada em cada

5
FABRIS, Annateresa. “Modernidade e vanguarda: o caso brasileiro”. In: Modernidade e Modernismo no
Brasil. Campinas: Mercado de Letras, 1994, p.18.
6
FABRIS, A. “Modernismo: nacionalismo e engajamento”. In: Catálogo Bienal Brasil Século XX, 1984,
p.82.
7
Id. ib., p.73.
8
ANDRADE, Mario de. “O movimento modernista”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo:
Martins, s/d, p.242.
123

surto modernista. Modernidade e nacionalismo cultural e estético tornam-se uma busca


tão marcante que, décadas depois, o crítico Mário Pedrosa iria dizer que o Brasil era um
país “condenado ao moderno”. Para ele, para ser moderno o país não estaria
irremediavelmente condenado a reproduzir no futuro o passado dos países mais
adiantados; deveria inventá-lo9.
A aspiração moderna que os anos 20 inauguram aparece, na temática nacional e
popular, como “amor aos primitivismos”, e como uma “vontade de construção”, para a
qual muito contribuiu o cubismo que Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Anita
Malfatti e Rego Monteiro exercitaram em Paris. Vontade de construção e nacionalismo,
imbricados, definirão, a partir do modernismo, perspectivas de atuação artística e
cultural, sendo que somente nos anos 50 e 60 serão radicalizadas segundo um ponto de
vista brasileiro.
À medida que se passa da consideração das rupturas modernistas dos anos 20,
para o período de construção da modernidade, em que se dá a consolidação das
conquistas modernistas em termos de realização de obras e de institucionalização da
produção artístico-cultural, percebe-se que o processo de modernização vinha suprir
uma espécie de carência de identidade. Tanto é assim que, desde os anos 20, em obras
como Macunaíma de Mário de Andrade, quadros de Tarsila do Amaral – A negra,
Abaporu, Antropofagia – na poesia pau-brasil de Oswald de Andrade, na de Raul Bopp,
Murilo Mendes, e, mais tarde, de Carlos Drummond de Andrade, percebe-se a
formulação da pergunta sobre a identidade nacional.
A busca de brasilidade no modernismo aparece não só como desejo de suprir a
carência de identidade, mas também como resistência e reação à demanda européia de
exotismo. Assim, inventar o Brasil é reinventar a origem, negando aquela gerada pela
colonização. A consciência da identidade como falta manifestava-se no modernismo
mais radical, na antropofagia de Oswald de Andrade e na pintura de Tarsila do Amaral,
em que a invenção aparece na composição da originalidade nativa com a cultura técnica,
interessando-se menos pelo primitivismo exaltado pelos artistas europeus que pelo
primitivismo enquanto volta ao “sentido puro” e à “inocência construtiva” da arte10.
Para Mário de Andrade, entretanto, a falta deveria ser suprida por um trabalho de
formação, espécie de ideal que funcionaria como orientação na passagem do mimetismo

9
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. “Prefácio”. Mário Pedrosa – Acadêmicos e Modernos – Textos
Escolhidos III. São Paulo: EDUSP, 1998, p.15.
10
ANDRADE, Oswald de. “Manifesto da poesia pau-brasil”. In Obras Completas – 6. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1972, p.5 e ss.
124

à criação. Tratar-se-ia, para ele, de reatualizar a consciência artística em relação aos


movimentos artístico-culturais europeus, compondo as raízes populares com a forma
culta – tal como propõe no Ensaio sobre a música brasileira de 1928, nos estudos do
folclore, das danças, das falas e de outras manifestações culturais populares de várias
regiões do país.
O modernismo dos anos 20 foi a “primeira estratégia cultural moderna brasileira
(...) menos pelas importantes marcas de linguagem que fixou – com as pinturas de
Segall, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti e as esculturas de Brecheret – e mais, muito
mais, pela própria dinâmica de sua operação cultural, suas conquistas, seus impasses,
suas limitações”11. Exatamente porque foi uma intervenção numa realidade cultural que,
embora atrasada em relação ao compasso da história européia, poderia ser alvo de um
trabalho de construção singularizada, não se pode reduzir o modernismo brasileiro a
simples imitação ou transposição das modas artísticas européias. Estava, sim,
vinculando aos modelos culturais dominantes – que deveriam ser conhecidos,
assimilados naquilo que importava para efeitos de emancipação artístico-cultural, e o
resto simplesmente descartado, conforme explicitado na visceral ironia da teoria
antropofágica de Oswald de Andrade. Na guerra tardia contra o academismo, o
modernismo vai desenvolver-se marcado por ambigüidades e inadequações, fato, aliás,
persistente em toda trajetória de constituição da modernidade artística, cultural e sócio-
política no Brasil. Um exemplo desta inadequação nos anos 20 é a convivência, pacífica
para os modernistas, da orientação construtiva da pintura de Tarsila do Amaral e uma
certa marca “expressionista” daquela de Anita Malfatti. Também as estilizações de
Brecheret e de Rego Monteiro, o traço ilustrativo de Di Cavalcanti e as adaptações de
Segall à cor e figurações locais, não eram vistas como incompatíveis com um projeto
vanguardista, mas evidenciavam a importância da formação de um grupo ativo contra o
academicismo vigente. Assim, diferentemente das vanguardas européias, que para
afastar-se da tradição dissolviam as identidades, os modernistas assumiam e
positivavam as condições e características locais, o hibridismo cultural e do olhar – uma
espécie de “compulsão de conciliar e misturar”. O cubismo que Tarsila do Amaral
mobilizava para pintar o Brasil é, portanto, estratégico: “formular uma percepção

11
BRITO, Ronaldo. “A Semana de 22: o trauma do moderno”. In: Sete Ensaios sobre o modernismo. Rio
de Janeiro: FUNARTE, 1983. Caderno de Textos nº 3, p.17.
125

moderna brasileira”. Aquilo que pareceria uma limitação, dela e de Anita Malfatti – o
primado do tema – era, na verdade um modo de “projetar o Brasil”12.
Assim, o moderno é um problema, pelo menos nos desenvolvimentos que vão
das presenças inaugurais de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Lasar Segall até a
fixação da pintura de Cândido Portinari e Di Cavalcanti como emblemas de
modernidade artística brasileira nos anos 30-40, época do segundo modernismo13.
Enquanto Tarsila “submete a recém conquistada espacialidade cubista ao teste de
realidade da cultura local” para “armar o ponto de vista brasileiro”, pela “intrusão
cândida e insolente do elemento afetivo e intimista da paisagem brasileira na dinâmica
impessoal da superfície cubista”, em Portinari e Di Cavalcanti o que se vê é a
“continuidade e adaptação” de elementos fragmentários da pintura moderna,
assimilados no ambiente parisiense dos anos 2014. Na pintura de Tarsila o nacional “era
uma questão interna do trabalho, movendo-se nele como um processo reflexivo, de
auto-comprensão de uma cultura que queria se atualizar no estrangeiro, mas segundo
critérios próprios, e a partir de uma consciência cultural própria”15. O cubismo
aprendido com Gleizes, Lhote e Léger serve-lhe para lançar um novo olhar sobre o
Brasil. Percebe-se em seus quadros “a presença de elementos brasileiros – luz direta,
cores rudes, linhas duras, volumes pesados, uma pintura verdadeiramente nossa”16.
Entre 22 e 28 o modernismo produziu uma descontinuidade na produção, na
crítica e no ambiente cultural, culminando com a antropofagia de Oswald de Andrade, a
pintura de Tarsila e o romance-rapsódia de Mário de Andrade, Macunaíma, em que
notam-se tentativas radicais de ajustar a experiência brasileira da vida com a tradição
herdada. Encontra-se afirmada nessas produções uma idéia de ruptura artístico-cultural
que não estava clara nos inícios do modernismo, a não ser como aspiração de liberdade
de criação e de atualização estética amalgamados ao desejo de ter, de inventar, uma
cultura e uma arte nacionais.
Oswald de Andrade, nos manifestos Pau-Brasil (1924) e Antropófago (1928),
enfatiza uma espécie de “força primitiva de resistência à doutrinação promovida pelo
colonizador”. Assim, o “primitivismo da forma pura” é um princípio de sua poesia, de
seus romances-invenção e da pintura de Tarsila que deriva da assimilação produtiva da

12
Id. ib., p.14 e 16.
13
SALZSTEIN, Sônia. “O moderno como problema”. Jornal de Resenhas 29. Discurso
Editorial/USP/Unesp/Folha de S.Paulo, 9/8/97, p.8.
14
Idem. “Uma tensa celebração da brasilidade”. Folha de S.Paulo, 7/9/97, Suplemento MAIS!, p.8.
15
Idem. “O moderno como problema”, loc.cit.
16
Apud. FABRIS, A. “Modernismo: nacionalismo e engajamento”. loc. cit., p.76.
126

diferença – “só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. O
primitivismo é um princípio ativo da vida intelectual brasileira17. Primitivo não é, pois,
algo como uma utopia rousseauista, uma entidade primitiva, uma origem. Oswald de
Andrade fala de um traço cultural, e não de um traço étnico. Essa capacidade de
resistência “é identificada apenas pelo modo como opera; pelo canibalismo simbólico”.
Neste, o ajustamento cultural implica o conflito, pois a inclusão do “estrangeiro” pelo
“primitivo” não elimina nem um nem outro; antes, o “valor prévio permanece e
continua a circular em um novo corpo”18. Neste sentido, a antropofagia oswaldiana
funcionou como ruptura no processo brasileiro de internalização dos valores ocidentais;
de atualização artística e elaboração cultural. O conflito entre vanguarda européia e
modernismo brasileiro não se resolve pela redução de um ao outro, nem por uma
pseudo-dialética: tratava-se de sustentar as tensões entre a capacidade local de
canibalizar as informações da cultura européia sem sublimação dos antagonismos – ou
seja, das descontinuidades entre os valores da sociedade brasileira e os valores
ocidentais. A antropofagia explora o mal-estar na cultura, evidenciando aquilo que isto
implica de conflito, tensão, luta. A “transformação permanente do tabu em totem”,
conforme se lê no Manifesto Antropófago, deve ser entendida como transformação do
interdito em ritual de incorporação, “metamorfose do símbolo de excludente em
includente”19.
A questão da dívida da antropofagia de Oswald de Andrade para com o
canibalismo europeu é controversa. É certo que o brasileiro conheceu de perto as
discussões em torno do canibalismo que se manifestavam em torno da revista Au Sans
Pareil, que editara seu livro de poesias, Pau-Brasil, graças à interferência de Blaise
Cendrars, Léger, Gleises, Valéry-Larbaud, Picasso, Cocteau que, em 1923,
frequentavam o ateliê de Tarsila do Amaral, então mulher de Oswald. O Manifesto,
assim como a sua produção poética ficcional, está visivelmente impregnado de
reminiscências cubistas, dadaístas e futuristas. Mas, certamente, o exotismo etnográfico
dos canibalistas europeus não afetou a teoria oswaldiana. Oswald devorou-o. Tratando
desse problema, Antonio Candido disse que as experiências modernistas eram
“congeniais” àquelas da vanguarda francesa, reafirmando o que Oswald de Andrade

17
NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.28.
18
COSTA LIMA, Luiz. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p.27 e ss.
19
NUNES, Benedito. “Antropofagia ao alcance de todos”. In: Obras Completas de O. de Andrade – 6, p.
XXX-XXXI.
127

dissera do primitivismo: foi “o único achado da geração de 22”20. Para Antonio


Candido, “no Brasil as culturas primitivas se misturam à vida cotidiana ou são
reminiscências ainda vivas de um passado recente. As terríveis ousadias de um Picasso,
um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara eram, no fundo, mais coerentes com a
nossa herança cultural do que com a deles (...). Os nossos modernistas se informaram
pois rapidamente da arte européia de vanguarda, aprenderam a psicanálise e plasmaram
um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando a influência
européia por um mergulho no detalhe brasileiro. É impressionante a concordância com
que um Apollinaire e um Cendrars ressurgem, por exemplo, em Oswald de Andrade”21.
A partir de 1930 ocorre uma institucionalização bastante rápida das conquistas
modernistas; o início de “uma fase mais calma, mais modesta e quotidiana, mais
proletária, por assim dizer, de construção”, disse Mário de Andrade. Época de grande
efervescência política, começando pela Revolução de 1930, que se pretendia
renovadora, modernizadora das instituições públicas, nela gesta-se uma visão de arte e
cultura voltada para o sentido social das atividades e não exclusivamente com interesse
estético. Os próprios intelectuais modernistas, como Mário e Oswald de Andrade fazem
críticas acerbas ao que consideravam “descomprometimento” político-social dos
modernistas de 22.
A tônica social foi dominante, tendo Portinari como artista emblemático até o
final dos anos 40. A combinação de nacional e moderno, com expansão das idéias
modernistas, está presente nas inúmeras associações de artistas, salões e exposições. Na
pintura e na gravura, artistas enfatizam os temas sociais, procurando os meios plásticos
ded expressão desse interesse. É nesta década que amadurece a gravura de um Goeldi,
que estudara com Kubin, e que Lívio Abramo introduz em sua iconografia social novos
temas e refinamentos, na exploração dos contrastes luminosos e cromáticos da gravura
em madeira.

Ao lado da arte de preocupação social, formam-se no Rio de Janeiro e em São


Paulo grupos de artistas que reatam o diálogo com a tradição, sem, entretanto, recaírem
no academicismo. São os pintores que exercitam uma espécie de “volta à ordem”. No
Rio reunem-se dissidentes da Escola Nacional de Belas Artes e, em São Paulo, artistas

20
ANDRADE, Oswald de. “O caminho percorrido”. In: Obras Completas – 5. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1972, p.96.
21
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 3.ed., São Paulo: Editora Nacional, 1973, p.121.
128

de origem proletária, geralmente imigrantes ou filhos de imigrantes italianos, como


Rebolo, Zanini, Bonadei, Fúlvio Pennachi, e Alfredo Volpi. “Traço comum a todos os
integrantes do grupo é a procura da ‘pintura verdadeira’, isto é, de uma pintura
alicerçada na recuperação dos valores artesanais, à qual se soma sua proposta de
‘matizes e atmosfera’ (...). Conhecedores de Cézanne e da pintura italiana renascentista
e de suas atualizações pelas diversas correntes da volta à ordem, trazidas a São Paulo
por Paulo Rossi Osir, Fúlvio Pennacchi, Vittorio Gobbis, os pintores do Santa Helena
dão preferência a temas intimistas e cotidianos: paisagens suburbanas, marinhas,
naturezas-mortas, nus, cenas populares, retratos e figuras”22.
Portanto, na década de 30 há duas direções dominantes nas artes plásticas: de um
lado, a arte claramente empenhada na expressão do social, quando não do político; de
outro, o empenho no trabalho artístico, singularizado em seus meios e linguagens,
constituindo-se em consolidação de uma tradição moderna. Ressalte-se, neste sentido, a
importância do trabalho de Guignard, Flávio de Carvalho, Ernesto de Fiori, além dos já
citados Oswaldo Goeldi e Livio Abramo.
A tendência social da pintura, principalmente de Portinari, corresponde aos
esforços, especialmente do final dos anos 30, de construção da identidade cultural. Em
torno do Ministro Capanema, desenvolve-se um vasto projeto, de alcance nacional.
Nesse período, dentre outras iniciativas, cria-se o Serviço de Proteção ao Patrimônio
Histórico e constrói-se o novo prédio do Ministério da Educação e Saúde, cujo projeto
teve a colaboração de Le Corbusier, ponto inicial da arquitetura moderna no Brasil.
No final dos anos 40, as conquistas modernistas e sua assimilação já podiam ser
perfeitamente delineadas. Uma Exposição de Arte Moderna realizada em Belo
Horizonte, visando à revisão histórica da produção modernista, ainda suscitou uma
reação escandalizada e agressiva do público contra a “arte moderna”. E, entretanto, o
que lá se apresentou foram obras de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Di Cavalcanti,
Lasar Segall, Cândido Portinari, Oswaldo Goeldi, Lívio Abramo, Alberto da Veiga
Guignard, Alfredo Volpi, Pancetti, Carlos Scliar, Zanini, Rebolo, e outros, já
perfeitamente palatáveis em termos de expressão artística moderna, sem os arroubos
vanguardistas. Este ataque à arte moderna mostra o atraso brasileiro, não tanto por parte
dos artistas, mas do sistema cultural e do circuito de arte, ainda resistentes às inovações.

22
FABRIS, A, “Modernismo: nacionalismo e engajamento”, loc. cit., p.80.
129

Prosseguem nos anos 40 os esforços, geralmente de natureza oficial, para


realizar a modernidade cultural brasileira. Destacam-se o aparecimento das primeiras
galerias de arte moderna no Rio e em São Paulo, do Museu de Arte de São Paulo, do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Conferências, debates, exposições e
pesquisas em arte moderna – que pela primeira vez começam a tratar da arte abstrata –
aparecem no início dos anos 50, os anos decisivos para a implantação da modernidade
artística no Brasil. Em 1950 houve uma exposição de Max Bill no Museu de Arte de
São Paulo de enorme repercussão – indício de uma nova ruptura que se efetivaria
brevemente. Em 1951 é instalada a I Bienal de São Paulo, onde, além de Max Bill, que
obtém o primeiro prêmio de artista internacional com a escultura Unidade Tripartita,
expõem os primeiros abstratos geométricos brasileiros: Ivan Serpa, Almir Mavignier,
Abraham Palatnik. A partir de então desencadeiam-se em cascata manifestações,
experiências e produções que, em pouco tempo, até a metade da década, introduzem
uma nova imagem da arte no Brasil, com a formação de grupos, que promovem
acalorados debates com artistas e críticos. A arte moderna tinha chegado finalmente ao
Brasil, radicalizada pela arte concreta – nas artes plásticas, na poesia e na música.
Inaugura-se aí uma produção artística referenciada à linha construtiva da arte moderna,
originando uma interpretação que considera, desde o modernismo, a direção construtiva
como a mais adequada para responder à demanda de modernidade e, inclusive,
responder à demanda de articulação de modernidade e nacionalismo. Estava,
finalmente, determinado um caminho prioritário de construção do moderno no Brasil.
A integração da arte abstrata no Brasil, tímida antes de 1950, incontornável
depois, significou a assimilação programática das tendências construtivistas, a
reproposição da modernidade de 22 e a reposição do valor social da arte. O
desenvolvimento no Brasil de uma produção construtivista favoreceu, pela sua
radicalidade, o redirecionamento das linguagens artísticas, assim como ofereceu aos
artistas interessados em pensar a inserção social da arte recursos formais renovados. A
assimilação do abstracionismo e a ênfase nos construtivismos era, na ocasião, tanto uma
questão de modernidade plástica como de reorientação do lugar da arte na sociedade.
A arte concreta brasileira radicalizou esta direção agenciando uma produção
programática, às vezes sectária, sempre combativa, mas que não pretendia desprezar as
contradições do projeto de ruptura que articulava. Voltada ao projeto de transformação
artístico-cultural, tendo no horizonte a transformação social, comprometeu-se,
estrategicamente, com as pesquisas de forma, com a autonomia da arte quanto aos
130

aspectos temáticos e anedóticos, com a internacionalização da produção, com o


desenvolvimento de mecanismos institucionais aptos a constituir um sistema de
sustentação das pesquisas e, finalmente, com a articulação da arte à produção industrial.
Inscrevia-se, assim, no ideário moderno de linguagem e significação da arte, em
consonância com o surto desenvolvimentista do país desencadeado na segunda metade
da década de 50 pelo governo do presidente Juscelino Kubitschek.
Nas artes plásticas, na poesia e na música a estratégia concretista foi de oposição
radical a toda sorte de naturalismo, de figurativismo e expressividade. Pretendia
eliminar os resíduos “irracionalistas” da criação que transitavam no imaginário
brasileiro e impediam o progresso na produção artística e nos modos de nela articular a
significação social. Criticava a ingenuidade e o sentimentalismo, a cultura sincrética e
caótica, a valorização da exuberância tropical e o exagero retórico que apareciam
emblematizados na estética nacionalista-expressivista. Esta era a posição dos
concretistas paulistas – do grupo Noigandres, depois Invenção, integrado pelos poetas
Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari; do grupo Ruptura, dos artistas
plásticos Waldemar Cordeiro, Fiaminghi, Maurício Nogueira Lima, Geraldo de Barros e
outros; do grupo Música Nova, de Rogério Duprat, Júlio Medaglia, Damiano Cozella,
Gilberto Mendes e Willy Correa de Oliveira. No Rio de Janeiro, artistas como Ivan
Serpa, Frans Weissmann, Aluísio Carvão, Lígia Pape, Lygia Clark e outros, articulados
ao grupo Frente, eram mais flexíveis, mais ecléticos e menos programáticos. Desse
grupo se desenvolveria, no final dos anos 50 e inícios de 60, uma contestação do
rigorismo concretista paulista, embora dentro da linha construtivista, com o que foi
denominado neoconcretismo, tendo à frente o poeta e crítico Ferreira Gullar, os artistas
plásticos Lygia Clark, Lígia Pape, Hélio Oiticica e outros. Sem abandonar os postulados
concretos, mostram, contudo, interesse pela cor expressiva e pela forma significativa. A
teoria neoconcreta, centrada no que Ferreira Gullar chamou de não-objeto, vai abrir
caminho para a maioria das experimentações dos anos 60, porque valoriza a
experimentação aberta, em que a participação do espectador torna-se fundamental,
inclusive no nível da criação. O neoconcretismo visava à fundação de um novo espaço
expressivo que facilitou tanto a renovação da linguagem construtiva, como a
possibilidade de articulação entre arte e vida.
A ruptura concreta-neoconcreta é o ponto final do esforço de atualização da arte
brasileira segundo o primado da construção. A crise dessas vanguardas, por volta de
1962, abre um campo contemporâneo de experimentações que tanto acolhe a
131

redistribuição estética provocada em toda parte pela pop art, como é tentativa de
encontrar soluções formais e expressivas para as exigências do processo de
transformação da realidade brasileira. A crise das vanguardas construtivas, que antecede
o golpe militar de 1964, ocorreu tanto pelo acirramento das posições estéticas dos
grupos divergentes, como pela pressão do momento histórico, que estava propondo aos
artistas a necessidade de repensar e repropor as conexões entre modernidade e
nacionalismo. Atividades diversas disseminam as várias tendências em ebulição:
happening, novas figurações, realismo mágico, arte popular, arte popular
revolucionária, novo realismo, além do prosseguimento de experiências concretas-
neoconcretas. Inaugurava-se um período de férteis e variadas experimenteções e, ao
mesmo tempo, de intenções nitidamente sociais. Isto, evidentemente, no campo
delimitado pela vanguarda brasileira, já que fora dele artistas singulares, como Volpi,
Flexor, Iberê Camargo, Yolanda Mohaly, Mira Schendel, Flávio Shiró e outros, embora
denotando as marcas das experiências modernas das últimas décadas, desenvolviam
seus trabalhos em direções que não se referiam aos projetos estéticos e culturais da
vanguarda.
É nesse período, posterior ao golpe militar de 1964, especialmente nos anos de
1967-68 – até, portanto, a promulgação do Ato Institucional nº 5, que limita a livre
manifestação crítica e criativa no país –, que se especificam as experimentações de
artistas singulares como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Rubens Gerchman, Antonio Dias,
Carlos Vergara, Wesley Duke Lee e Roberto Magalhães, que definem poéticas
singulares conectadas com os rumos da arte contemporânea e, em alguns casos, com as
linguagens das comunicações de massa e a crítica social. Foi um tempo de explosão
criativa, de rupturas artísticas e proposições radicais de articulação entre arte e política,
cuja melhor expressão foi configurada pelo tropicalismo – na música popular, no teatro
e nas artes plásticas. Nesta proposta fundiram-se os desenvolvimentos construtivos, a
antropofagia oswaldiana dos anos 20, reatualizada, neo-figurações, arte concreta e
neoconcreta, proposições ambientais, antiarte, etc. Movida pelo impulso de renovação
estética e por um sentido ético-político, a experimentação tropicalista mobilizou a
participação como condição necessária para dissolver as categorias da arte, mesmo as
modernas. Simultaneamente, deslocou as relações consagradas entre arte e política, por
meio de procedimentos que em, vez de de remeter a produção às tradicionais relações
entre arte e realidade, situou-a no horizonte de uma atividade imaginativa que
evidenciava as ambigüidades do processo artístico de vanguarda, pondo em questão
132

seus pressupostos. Através desta intervenção crítica e criativa, a proposta tropicalista


desatualizou definitivamente a questão modernista da vinculação do moderno e do
nacional. Nisso consistiu a radicalidade tropicalista, responsável pela abertura do campo
contemporâneo da arte brasileira.23

23
FAVARETTO, C.F.. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1992, p.34 e ss.
133

A estética do desvario*

Vista oitenta e tantos anos depois – depois que a estratégia modernista de


atualização da arte, da cultura, da consciência crítica, formulada retrospectivamente por
Mário de Andrade na famosa conferência de 19421, e mesmo depois que os projetos, e a
própria idéia de moderno, bem ou mal se realizaram ou perderam o ímpeto combativo,
pois não são mais necessários – a designação “desvario”, atribuída à atividade
modernista, tal como referida à “paulicéia desvairada” de Mário de Andrade, pode
enganar.
Sem dúvida, desvario alude bem à irreverência e ao desejo de mudança, nas
artes e na cultura, que presidiu as atividades dos jovens modernistas, em torno do marco
emblemático, gesto inaugural da modernidade brasileira, que foi a Semana de 22. Uma
“vontade de ruptura” compunha-se muito bem com o espírito novo, irriquieto, daquelas
rapazes dos anos 20, da sua disponibilidade, inconformismo e mesmo
irresponsabilidade. Naquele momento, ainda não tinha se manifestado a urgência
política que deveria, anos depois, orientar a construção da modernidade por iniciativas
institucionais. A metáfora do desvario é apropriada para figurar a composição do desejo
do novo, com ações impulsivas de mudança, ainda que mobilizados por uma atitude
cultural predominantemente esteticista, literária.
Contudo, não seria justo dizer que o desejo de ruptura estivesse fora do lugar.
Nas primeiras décadas do século vinte ocorreram mudanças importantes, na vida social
e na política, mobilizadas pelo surto industrial. A modernização do sistema produtivo, a
crescente urbanização, a influência da imigração, os conflitos políticos partidários e a
ebulição causada pelos movimentos anarquistas, em choque com um Estado
conservador, que se reforçava para afirmar o ritmo do progresso, o crescimento da
burguesia comercial e industrial; enfim, um conjunto de elementos modernizadores
repercutiam na cultura institucionalizada com um quociente modesto mais insistente de
necessidade de atualização. Assim, pode-se entender o sentido do depoimento de

*
Texto inédito, reelaborado, de uma comunicação na mesa redonda com o mesmo título, integrante do
seminário “Paulicéia Desvairada: 110 anos de Mário de Andrade”. São Paulo, Programa de Estudos Pós-
Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, 07/10/2003.
1
“O movimento modernista”. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, s.d. (Obras
Completas de Mário de Andrade, X)
134

Oswald de Andrade, em 1933 no prefácio do seu romance Serafim Ponte Grande, que
interpretando a sua virada do esteticismo à politização, interpretava a plataforma da
geração modernista. Burgueses brincando de modernidade, esteticistas boêmios que
ignoravam o surgimento das massas proletárias e de uma cultura proletária. O contrário
do burguês não era o proletário, era o boêmio, disse com sarcasmo Oswald de Andrade.
E Mário de Andrade, embora com outras palavras e num outro tom, sério e lamentativo,
não deixaria de apontar na conferência de 1942 o que considerou a falha dos
modernistas: a despolitização.
A expressão “estética do desvario” pode enganar porque a poética de Mário de
Andrade, que surge no texto-manifesto “Prefácio interessantíssimo” de Paulicéia
desvairada (1921), que aliás refere-se a uma produção poética que só alusivamente
pode ser considerada “desvairada”, é na verdade uma poética “séria”, como tudo que
procede do autor. Sério aqui quer dizer “construtivo”, entendendo-se com isso não
apenas a vontade e o esforço de mudar, mas o modo atualizado, vanguardista, inventivo
que se constata na produção que se estende de 22 a 28 – período em que os modernistas
viveram, segundo Mário de Andrade, “na maior orgia intelectual que a história artística
do país registra”2. Construtivo, também como resposta ao imperativo de inventar o
Brasil, emblematizado nas imagens de brasilidade, poéticas, plásticas, musicais, assim
como fixado pela pesquisa desencadeada pelos modernistas de nossas características
culturais, com que Mário de Andrade, especialmente, construtor por vocação e por auto-
imposição, se torna “professor de Brasil”. Além disso, é preciso ressaltar que no
“Prefácio interessantíssimo” apresenta claramente a proposição do característico
“construtivismo primitivista” – modalidade de elaboração artística e intelectual que vai
alia os processos, procedimentos e linguagens das vanguardas européias, de que se
embebiam os modernistas, aos gerados na experiência cultural brasileira, constituindo
uma espécie de princípio ativo da inteligência nacional. “Somos os primitivos duma
nova era”, bradou Mário de Andrade, como que em parte justificando a qualificação de
“futuristas”, meio correta meio sarcástica, com que a imprensa da época identificava os
irrequietos modernistas, mas ao mesmo tempo assumindo a posição de quem se sente
investido da missão de começar de novo alguma coisa.
Quando Oswald de Andrade, premonitoriamente, saudou Mário de Andrade
como “o meu poeta futurista”, não laborava em erro; ao contrário acertava em cheio.

2
Cf. “O movimento modernista”, p. 238.
135

Pois o futurismo daqui, se rebatido nos manifestos dos italianos, de que eles se
apropriaram para liberar a linguagem poética dos resíduos parnasianos e simbolistas,
permitia essa identificação de rótulos, validada pela aderência ao novo dos processos
modernos: a ênfase na forma construtivista, na atualidade científica e industrial; a crítica
do passadismo e, sobretudo, a pesquisa da figuração adequada à expressão das
manifestações de um homem novo, da era da máquina, surgido da razão e das
revoluções modernas.
Não sou futurista de Marinetti bradava contudo Mário de Andrade no seu
manifesto. Claro, ele e os modernistas todos nada tinham a ver com aquele futurismo
esteticista que via beleza na guerra, nos estrondos e clarões das bombas, nem com o que
confundia antipassadismo com ódio à tradição, postulando a derrubada dos museus e a
queima das bibliotecas como condição para a existência da novidade moderna e muito
menos com aquele que faz o elogio entusiasmado do selvagem, primitivo,
transformados em motivos exóticos, supostamente portador da força, da virilidade, da
vitalidade perdida na cultura européia. Tal era, como se sabe, uma rubrica cultural
gravada pelos futuristas italianos e pelo grupo canibalista canibalistas que circulavam
em Paris em torno da livraria Au Sens Pareil, onde, aliás, Oswald. de Andrade pescou,
no mare nostrum das novidades do esprit nouveau a sua metáfora antropofágica,
contudo em chave original3. O primitivismo de Mário de Andrade, o seu futurismo,
vinha da apropriação das experimentações futuristas sem os resquícios fascistas e as
ilusões redentoras de seus discursos. “Éramos uns puros.Mesmo cercados de repulsa
quotidiana, a saúde mental de quase todos nós nos impedia qualquer cultivo da dor.
Nisso talvez as teorias futuristas tivessem uma influência única e benéfica sobre nós.
Ninguém pensava em sacrifício, ninguém bancava o incompreendido, nenhum se
imaginava precursor nem mártir: éramos uma arrancada de heróis convencidos. E muito
saudáveis”4, disse Mário. Daí também a divisa de Oswald de Andrade no Manifesto
pau-brasil, comum a todos os modernistas: ver com olhos livres.
Na conferência, “O movimento modernista”, Mário de Andrade refere-se ao
período heróico do modernista da seguinte maneira: “durante essa meia-dúzia de anos
fomos realmente puros e livres, desinteressados, vivendo numa união iluminada e
sentimental das mais sublimes”. Sabemos, pelo que diz na mesma conferência, que mais
tarde lamentaria esse desinteresse. Diz: “nós, os participantes do período milhormente

3
Cf. NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 13 (Elos, 26).
4
Id. ib., p. 238.
136

chamado ‘modernista’, fomos, com algumas exceções nada convincentes (...) si tudo
mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude interessada diante
da vida contemporânea”(...).Apesar de nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da
nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não
participamos: o amilhoramento político-social do homem”5.
Freqüentando as proposições do Prefácio interessantíssimo e rebatendo-as na
poesia emocionada de Paulicéia Desvairada (“São Paulo! Comoção de minha vida. /
Minha Londres das neblinas finas”), vemos como o tom comovido e a expressão
arlequinal nem sempre correspondem à seriedade teórica tingida de galhofa. A teoria
poética aí entranhada, e confirmada em seguida no ensaio “A escrava que não é
Isaura”6, mostra que a estética do desvario é tudo, menos desvairada, se por desvario se
entender desatino, delírio e alucinação. É, ao contrário, uma estética das concordâncias,
entre a tradição e a modernidade, encarnando muito bem a idéia baudelairiana de
modernidade, que tentando entender a beleza e o heroísmo da vida moderna, diz que a
modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra
metade o eterno e o imutável. O desvairismo de Mário, e dos modernistas, provém da
adesão apaixonada do heroísmo da vida moderna. A crença de que a grande tradição se
perdeu, que a inteligentzia bordejante do academicismo burguês devia ser destruída. Os
poetas parnasianos só davam tiros entre rimas disse Oswald de Andrade. O heroísmo
modernista, carnavalizante, arlequinal, alegre, sadio, risonho, debochado, cheio de
humor, encena o lado épico da vida, como só se veria no Brasil anos depois, nos idos de
60.
Então, futurismo quer dizer: heroísmo, arrebatamento, alegria da destruição.
Como Mário disse na conferência de 42: “Todo esse tempo destruidor do movimento
modernista foi para nós tempo de festa, de cultivo imoderado do prazer” e expressão de
“um sentimento de arrebentação”. Esta “convulsão profundíssima”, como disse,
caracterizou-se pela fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à
pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; a estabilização de
uma consciência criadora nacional.7
A estética de Mário de Andrade configura-se, em suas linhas principais, já no
início dos anos 20, em três lugares: na série de artigos sobre “Mestres do passado”, no

5
Id. Ib. p. 252, 255.
6
In: Obra Imatura. São Paulo: Martins, s/d (Obras Completas de Mário de Andrade, I)
7
Op. cit. p. 241, 242.
137

“Prefácio interessantíssimo” e no ensaio “A escrava que não é Isaura”. Esse primeiro


esforço de conceituação da arte, já indica que a preocupação antiindividualista e
antiformalista, bem no espírito das vanguardas, compõe-se com a ênfase na função
expressiva da arte que supõe, simultaneamente, o interesse social e os processos formais
de expressão. Ou seja: o inconformismo estético modernista, que se bate contra as
formas eleitas na retórica acadêmica, não desdenha a forma da arte, pois ela é condição
de expressão; vale dizer, de comunicação, de funcionalidade social. A conjunção desses
dois princípios, o social e o formal, percorre de ponta a ponta e estética de Mário. Uma
conjunção responsável pelo seu combate em prol da desidealização ou materialização da
beleza, contra as idealizações românticas e acadêmicas e condição daquele
experimentalismo propugnado nos claros princípios expressos na conferência de 42. A
criação de obras é sempre determinada por uma idéia, por um princípio formador,
mesmo que tenha sido mobilizado por um impulso, mesmo inconsciente, como se vê no
“Prefácio interessantíssimo”8. É por isso que reiteramos que a aparente desordem que
deriva da metáfora do “desvairismo”, engana, pois tanto a teoria do prefácio como a
poesia que daí deriva são estruturadas; implicam uma poética, um modo de formar,
moderno, que enfatiza os procedimentos instituídos pelas vanguardas: o simultaneísmo,
as palavras em liberdade, a sensibilidade assentada na experiência cotidiana,
construtivismo,etc.
Embora seja claro que é só nos anos 30-40 que Mário de Andrade sistematizou
os seus princípios estéticos, corrigindo aquela disponibilidade e o esteticismo
modernistas, é interessante destacar que desde o início dos anos 20 ele falava em uma
“atitude estética” diante da arte e da vida, como está claro no texto “O artista e o
artesão”, de 1938, que foi também sua aula inaugural no curso de estética que ministrou
no Instituto de Artes que criou na recém fundada Universidade do Distrito Federal9. A
atitude estética que propugna corrige o individualismo esteticista, referido ao idealismo
da “educação estética da humanidade” de Schiller, em favor das dimensões técnicas e
formais, exigidas pelo fazer artístico e, simultaneamente, pela valorização da dimensão
artesanal aí envolvida. Essa atitude estética é a pedra de toque para a compreensão
daquela idéia de conceber a arte como um “todo orgânico da consciência coletiva” que
na conferência de 1942 completa os princípios do modernismo. Esse coletivismo remete

8
Seguimos aqui algumas idéias do livro: MORAES, Eduardo Jardim de. Limites do Moderno – o
pensamento estético de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. cf. p. 29, 32-33, 44-45,
53.
9
Op. cit., p.69 e ss.
138

tanto a uma experiência comum a todos os homens, como à experiência em comum.


Implica também, genericamente, uma concepção de história da arte, sempre de origem
social e, particularmente, a necessidade de pensar a questão modernista da
“brasilidade”, como uma tarefa coletiva, para a qual, aliás, ele diz ter sacrificado o seu
trabalho artístico, de poeta e ficcionista, pois, disse, “a arte tem que servir à vida”. A
atitude estética já inclui o nacional porque a crítica das idealizações românticas e
acadêmicas já implica que a expressão brasileira é expressão de necessidades nossas,
contingentes: é o primitivismo compondo-se com a forma pura, com o simultaneísmo, o
polifonismo, a rapidez, a síntese, as palavras em liberdade, com cubismo, futurismo,
expressionismo,surrealismo. No feliz achado de Antonio Cândido, trata-se da
congenialidade entre as proposições culturais ousadas de Marinetti, Max Jacob, Breton,
Tzara, Picasso, etc., interessados na vida primitiva, no canibalismo literário que daí
surgia, e os processos primitivistas dos modernistas brasileiros. Aquilo que para eles era
exotismo, e que aqui chegava pelas revistas, para os novos modernistas seria “natural”,
isto é, proveniente de nosso solo cultural sincrético. Cândido caracteriza essa operação,
clara na antropofagia, como “desrecalque localista”, uma assimilação original das
vanguarda européia10.
Um tupi tangendo um alaúde. Assim se apresenta o “trovador” de Paulicéia
Desvairada, comovido não só pela São Paulo, metrópole que despontava, mas
sobretudo pela vida moderna, cosmopolita, significando a conquista da liberdade de
pesquisa estética e de reinvenção da vida com o olhar armado pelo espírito novo que
articulava o inconformismo estético ao “coração arlequinal” aberto aos quatro cantos do
seu país.
Da impulsão lírica, do grito do inconsciente, de onde explode seu coração
arlequinal, da inspiração fugaz, violenta e da comoção da vida moderna, de onde parte a
sua poética do desvario, ao trabalho de limpeza dos exageros coloridos, ao processo de
construção, estende-se a estética de Mário de Andrade, que repercute até hoje.

10
Cf. CANDIDO, Antonio. “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”. In: Literatura e Sociedade. 3. ed., São
Paulo: Nacional, 1973, p. 119-123.
139

Modernidade, vanguarda, participação*

Do início dos anos 50 até o final dos 60, as artes plásticas, resguardadas as
especificidades e devidas mediações, responderam aos desafios e imperativos da
modernização, manifestadas em todos os campos, nas artes e na cultura, na política, na
economia e na sociedade. Mário Pedrosa, com muita propriedade, na ocasião
caracterizou o Brasil como país condenado ao moderno. As repercussões das atividades
artísticas evidentemente não foram as mesmas, embora semelhantes, dada a
singularidade de linguagem, expressão, público e mercado em cada área. Todas,
entretanto, responderam ao seu modo e a seu tempo às exigências de renovação artística
e crítica cultural.
Para se evidenciar a situação delas no contexto das transformações em
desenvolvimento no período recortado, principalmente para se reconstruir os modos
singulares de produzirem a significação social em que se empenharam, é necessário
surpreender como adequaram, ou conciliaram, a significação básica de modernidade aos
processos de modernização; isto é, verificar-se como os elementos “externos”(o social,
1
o político, o desenvolvimentismo) tornaram-se ou não “internos” (estrutura, forma) .
Embora se trate aqui apenas de um recorte, pois o impulso e o trabalho de modernização
vinha de longe, da época do modernismo, é preciso acentuar-se que o período é
privilegiado para o entendimento da integração do moderno no Brasil, pois não só a
situação nacional e internacional da arte aí sofreram inflexões contundentes, como o
contexto social e político do pós-guerra propiciou as condições históricas que tornaram
possível a realização da modernidade no país.
Entre as primeiras iniciativas desta modernização, final dos anos 40 e início dos
50, e a radicalização dos 60, houve mudanças significativas na posição das artes,
implicando a sua concepção, a imagem de artista, o circuito, o público e sua
significação social. Se inicialmente, por exemplo nas artes plásticas e na poesia, os
interesses se fixaram nos aspectos formais, isto não excluía a visada politizadora, ainda
que esta estivesse apenas indiciada em discursos universalizantes. Já, no ponto de

*
Texto inédito. Apresentado em Seminário do projeto “História social da arte no Brasil, século XX”,
coordenado por Sérgio Miceli. São Paulo, IDESP, 1993. O texto recontextualiza aspectos do livro A
invenção de Hélio Oiticica tendo em vista a discussão proposta no seminário.
1
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 3. ed. rev., São Paulo: Nacional, 1973, p. 4-5.
140

chegada, na segunda metade dos 60, a politização estava escancarada. Em ambos os


casos, a diferença das respostas aos imperativos do tempo deve ser buscada nos
problemas e impasses da modernização, pensada segundo a complexidade do processo
de modernização, em que as variáveis do país compuseram-se com as determinantes
internacionais.

***

A integração da arte abstrata no Brasil, timidamente antes da 1º Bienal de São


Paulo e incontornável a partir dela, significou a assimilação programática das tendências
construtivistas, a reproposição da modernidade de 22, ao estender as pesquisas
modernistas e, particularmente, a reposição do valor social da arte. Surgindo numa nova
situação de reversão de expectativas culturais, de redemocratização e desenvolvimento
econômico, que, como ocorrera anteriormente, provocou o desejo de atualização,
pesquisa e repensamento daquilo que os modernistas denominaram “brasilidade”, o
abstracionismo (geométrico e informal) teve o seu desenvolvimento favorecido pela
fundação, além das Bienais, de museus e galerias, que contribuíram decisivamente para
a ampliação do circuito, para a evidenciação das tendências contemporâneas e para a
renovação das atividades de produção, crítica e consumo de arte. Os resultados foram
imediatos, gerando polêmicas que envolveram o todo das manifestações artísticas e
2
sacudiram o ambiente de “isolacionismo provinciano .
Até 1948, quando efetivamente começam a se formar no Rio e em São Paulo
núcleos de artistas abstratos, arte moderna era identificada aos trabalhos de Portinari, Di
Cavalcante, Segall e Pancetti; de Cícero Dias, Tarsila e Guignard. Emblematicamente, o
moderno era Portinari, e isto significava basicamente duas coisas: uma determinada
relação de arte e realidade e um tipo específico de compromisso do intelectual e do
artista para com a sociedade neste momento de reorganização política depois do Estado
3
Novo . A assimilação do abstracionismo era tanto uma questão de modernidade plástica
como de reorientação do lugar da arte. É por isto que a polêmica em torno do
“realismo”, que aliás vai atravessar os anos subseqüentes, até 68, é não só a discussão
sobre a realidade da arte como a da resposta ao imperativo de se pensá-la nos quadros

2
“PEDROSA, Mário. Mundo, Homem, Arte em Crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 254.
3
COCCHIARALE, F. & GEIGER, A. B. Abstracionismo: Geométrico e Informal. A vanguarda
brasileira nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: FUNARTE/INAP, 1987, p. 11-12.
141

do que viria a ser compromisso com a “conscientização” e a transformação da


sociedade.
As mudanças culturais do pós-guerra, que operavam externa e internamente, a
euforia que se segue à queda de Getúlio em 1945, o superávit na balança comercial e o
surto industrial impulsionado pelo afluxo de capital durante a pós guerra, e ainda, o
mecanismo de substituição de importações implantado na segunda gestão de Vargas,
propiciaram investidas institucionais que respaldaram e impulsionaram a atividade
artística e o debate cultural. São inúmeros os acontecimentos que marcaram a época: em
1948 o TBC, a EAD, MAM-SP, MAM-RJ; em 1949 a exposição “Do Figurativismo ao
Abstracionismo” no MAM-SP; também no mesmo ano atividades dos artistas que no
Rio de Janeiro agrupavam-se em torno de Mário Pedrosa (Palatnik, Mavigner, Serpa), e
a defesa da importante tese do crítico, “Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de
Arte”; em 1950, exposição de Max Bill no MASP-SP, importantíssima, como a de
Calder em 1948 no MEC; Fundação da TV Tupi, da Companhia Vera Cruz; 1951, I
Bienal de São Paulo com a premiação da “Unidade Tripartida” de Max Bill, e realização
do Congresso Nacional de Críticos em São Paulo, que segundo Mário Barata foi “uma
espécie de tomada de consciência profissional da crítica, que até então tinha sido um
4
produto mais literário” Tudo isto, e muito mais, contribuiu para a quebra do
isolacionismo, abrindo o campo da arte para a efetivação da modernidade, o que se
tornará tenso com a organização dos grupos concretos Ruptura (1952) em São Paulo, e
Frente (1953) no Rio. Daí, até o final da década, os acontecimentos se multiplicaram,
desembocando no debate entre concretos e neoconcretos, enquanto no teatro, no cinema,
na música popular e erudita-contemporânea, na poesia, também a modernidade
avançava rapidamente. E, além disso, não se esqueça dos desdobramentos contínuos da
arquitetura desde, pelo menos, a construção do edifício do Ministério da Educação e
Cultura no Rio em 1939.
O desenvolvimento no Brasil de uma produção construtivista favoreceu, em
virtude de sua radicalidade, o redirecionamento das linguagens artísticas, assim como
ofereceu aos artistas interessados em pensar a inserção social da arte, a oportunidade de
situar o desejo de figuração desse interesse com recursos formais renovados. O
compromisso com a construção de uma nova sociedade tinha à disposição as variadas
propostas do construtivismo europeu, em seu interesse pelo urbanismo generalizado.

4
Cf. GALLERANI, Maria A. C. Concretismo e Neoconcretismo nas Artes Plásticas. Dissertação de
Mestrado – Filosofia. PUC-SP, 1991, p. 19.
142

Assim, através da veiculação dessas novas informações, os artistas articulados às


tendências construtivistas puderam pensar a adequação da arte ao projeto de
modernização que emergia no país por estratégias mais contundentes. Isto porque, pelo
menos inicialmente, as questões propriamente estéticas, de forma, eram prioritárias;
onde havia preocupação social, percebia-se que ela não podia ser satisfeita pela
justaposição de um conteúdo a uma forma, e sim pelo tratamento da arte como
produção. Esta atitude, – cuja importância deve ser destacada como um marco no Brasil,
no que tange à discussão sobre as relações de arte e realidade, e da famigerada questão
da “função social” da arte –, tão patente nos artistas concretos de São Paulo, agenciou
uma produção organizada e programática, às vezes sectária, sempre combativa e que
não eludiu as contradições. Voltada ao projeto de transformação artístico-cultural, tendo
no horizonte a transformação social, comprometeu-se, basicamente, com pesquisa de
forma, autonomia da arte em relação aos aspectos anedóticos e temáticos, com a
internacionalização da produção e desenvolvimento de mecanismos institucionais aptos
a constituir um sistema de sustentação das pesquisas e, finalmente, com a articulação da
arte à produção industrial. Como se vê, um ideário moderno em consonância com o
processo de modernização do país, inscrevendo-se mesmo, em alguns casos, na
ideologia desenvolvimentista, na sua ambição de alcançar para o país a dimensão
contemporânea de linguagem. Investiram nisso uma vontade de saber segundo os
princípios das ideologias construtivistas: racionalização, ordem e utilidade social,
tomados por eles com processadores analíticos e terapêuticos face às mitologizações
expressivistas, surrealistas e naturalistas de uma suposta brasilidade.
Apesar dos desenvolvimentos já prenunciados, a integração da nova forma
ocorreu abruptamente, como um salto em direção ao estado de progresso. Este era
requerido, é certo, pelas condições objetivas de produção, pois tratava-se de superar o
subdesenvolvimento; mas o corte com o passado era pensado não só como estratégia,
antes como visualização de uma ordem moderna irrefutável: uma teleologia positiva da
razão e do progresso. Implicava a superação do “naturalismo”, a eliminação dos
resíduos “irracionalistas” na criação, considerados pelos concretistas frutos das
mitologias que transitavam no imaginário brasileiro: ingenuidade e sentimentalismo,
cultura sincrética e caótica, exuberância tropical e exagero retórico, etc. – que
apareceriam como positividade na estética nacionalista-expressivista. Assim, as atitudes
exigidas pelo ímpeto de modernização, assimilado à racionalidade da forma, – com
contribuição decisiva da Gestalt, disseminada através de Mário Pedrosa -, se propunham
143

como antídoto às “deliqüescências românticas”, à folclorização da cultura, ao


figurativismo banalizado nos temas e nas formas, ao gosto da magra clientela5.
A estratégia concretista foi de oposição radical a “todas as variedade e
hibridações no naturalismo” e ao “não-figurativismo hedonista, produto do gosto
6
gratuito, que busca a mera excitação do prazer ou do desprazer” . Pretendia romper com
a visão, tida como puramente representativa, que envolvia a arte brasileira, ao adotar a
forma geométrica, pela sua auto-referencialidade, austeridade, rigor e ênfase na
estrutura. Para a arte concreta, a criação artística “consistia em manipular
inventativamente as formas, produzir uma ordem maximal de informações visuais,
estabelecer processos semióticos que forçassem o espectador a romper os esquemas
convencionais de percepção e exercitar-se na ordem proposta (...). Essa produção se
caracterizou pela sistemática exploração da forma seriada, do tempo como movimento
mecânico, e se definiu por suas intenções estritamente óptico-sensoriais; isto é, contra o
7
conteudismo representacional propõe o jogo perceptivo .
O fundamento da pesquisa concreta pode ser resumido em algumas formulações
lapidares: pensamento por imagens (W. Cordeiro); concreção de uma idéia (Max Bill);
processo criador que “inicia-se na imagem – idéia (Bild-Idee) e culmina na imagem-
objeto (Tomás Maldonado); uma figura ideológica que, tornada visível e traduzida em
quadro, deu origem a um objeto concreto”(M. Bill). Estas pressuposições indicam
redefinição do conceito de arte e transformação da prática artística. Esta se instaura
como “fenômeno pluridimensional, no qual o espaço real, perpetuamente cambiante, e o
8
espaço psíquico se superpõem” . O trabalho dos concretos paulistas enfatizou tais
princípios exemplarmente. O primado da visualização, que reduz as formas e cores a
elementos da estrutura da dinâmica visual, em detrimento da expressão, da significação
da forma e da preocupação temática, está explícito, por exemplo, na recusa em usar
expressivamente a cor – que, aliás, repontará no neoconcretismo além de estar presente
em concretos cariocas.
A polêmica desencadeada a partir da I Exposição Nacional de Arte Concreta
(Rio-São Paulo, dez. 56 – fev. 57) entre concretos paulistas e cariocas, evidencia as

5
PEDROSA, Mário. Op. cit., p.254.
6
Manifesto Ruptura. In: AMARAL, Aracy A. (Org.). Projeto Construtivo na Arte: 1950-1962. Rio de
Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977, no. 69
7
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro. Rio de Janeiro:
FUNARTE/ INAP, 1985, p. 36-37
8
Cf. FERREIRA GUILAR, “Arte Concreta”. In: AMARAL, Aracy, op. cit., p. 106.
144

diferenças, patentes especialmente desde a criação dos grupos Ruptura e Frente, a


respeito da compreensão que cada um fazia dos princípios teóricos da arte concreta. Os
concretos paulistas se consideravam os intérpretes legítimos dos postulados concretos
no Brasil, referenciando sua prática às teorias desenvolvidas por Max Bill e pela Escola
de Ulm. Os cariocas, acusados pelos paulistas de praticarem equívocos quanto ao rigor
da arte concreta, mantiveram distância de qualquer exclusivismo teórico,
9
encaminhando-se assim para experiências abertas . Dessa polêmica nasce o
neoconcretismo, não apenas como dissidência, mas como ruptura. Repropõe e
reinterpreta os desenvolvimentos construtivos valorizando, exatamente, aqueles pontos
considerados como desvios da norma concretista. Criticava o que julgava ser nos
concretos paulistas um “mecanismo” proveniente de uma “perigosa exacerbação
racionalista”, ao mesmo tempo que rejeitava “reações igualmente extremistas, de caráter
10
retrógrado como o realismo mágico ou irracionalista” . Se a preocupação exclusiva pela
dinâmica visual, levava os concretos a se fixarem na forma seriada, na pureza cromática
e no atonalismo, os neoconcretos mostram interesse pela cor expressiva e pela forma
significativa, ou seja, “pelo universo de significações existenciais que (a obra) a um
11
tempo funda e revela” .
Ao retomar a categoria de expressão, o neoconcretismo enfatiza a “experiência
direta da percepção”, propondo, ainda, a participação do espectador como fundamental
ao nível da própria criação, abrindo o campo da experimentação, – o que terá
conseqüências notáveis para o redirecionamento artístico da década de 60, marcado
exatamente pelas questões da experimentação e da participação. A arte neoconcreta visa
à fundação de um novo espaço expressivo: pela renovação da linguagem construtiva,
revitalizando propostas suprematistas, neoplásticas e construtivistas; propondo um novo
objeto para a pintura, libertando-a da tela e realizando-a no espaço real; rompendo com
as categorias estéticas fundadas na obra de arte como objeto autônomo e tomando-o
como objeto relacional que opera pela experiência direta, isto é, com a prevalência da
12
obra (o “não-objeto”) sobre a teoria .
A revitalização do espaço plástico e a teoria da arte agenciados no projeto
neoconcreto pretendem afastar-se dos postulados concretos no tratamento das questões
de cor, tempo e estrutura, da contradição figura-fundo e no questionamento (e
9
Cf. COCCHIARALE, F. & GEIGER, A. B., op. cit., p. 16-17
10
Manifesto Neoconcreto. In: AMARAL, A., op. cit., p. 80 e ss.
11
Id. ib.
12
cf. COCCHIARALE, F. & GEIGER, A. B., op. cit., p. 19
145

destruição) da tela-suporte. A arte neoconcreta considera tempo, espaço, forma, cor,


como elementos integrantes da estrutura, voltada para a “expressão de realidades
humanas complexas”. O tempo é ativo, tempo-duração, indiciando a criação como ação,
distinguindo-se do tempo-espaço do simultaneísmo visual concreto; ele é virtualidade
de participação na estrutura. Implica existencialidade e remete à formação de
significados. É signo de participação. A eliminação da contradiação figura-fundo, por
outro lado, significa para os neoconcretos a eliminação da representação, que
permanecera tanto nas experiências construtivistas iniciais como na concreta, com
exceção, talvez, de Maliévitch. Para eles a tela converte-se num espaço de ações, em
que as cores e as formas não mais se distribuem em função da dinâmica visual, mas
integram um espaço ativo que mobiliza significações que transcendem o perceptivo,
acenando vivências. A experiência neoconcreta é, assim, uma experiência orgânica :
corporal e significativa. Daí o reducionismo atribuído por Ferreira Gullar aos concretos
13
que, segundo ele, distinguem “forma física” e “estrutura (forma) orgânica” .
O neoconcretismo, ao abolir um projeto a priori, determinante da prática, e
ressaltando a experimentação, contribuiu para que os artistas que o adotaram se
liberassem para um sentido de pesquisa muito mais amplo que o dos concretos. Um dos
seus feitos principais foi, sem dúvida, colocar como fundamental para o novo campo de
ação que se abria, a questão da participação, implícita nos desenvolvimentos
construtivos. O novo espaço expressivo, ao privilegiar a experiência no momento
mesmo da invenção, rompeu o exclusivismo do programa concretista, abrindo no Brasil
direções variadas de pesquisas contemporâneas.
A polêmica entre concretos e neoconcretos, embora centrada no modo diverso
de entender a integração da modernidade artística e cultural e, particularmente, na
renovação da pintura, não reduziu-se à perspectiva esteticista. O modo de inserção
social da arte aí esteve presente, acompanhando a modernização social do
desenvolvimentismo da era JK. A industrialização através da importação de tecnologia,
o processo de substituição de importações, a colocação da burguesia industrial no centro
do desenvolvimentismo, a ampliação da participação em termos de cidadania, a
liberdade de expressão e a efervescência cultural são elementos de um único processo

13
Cf. FERREIRA GULLAR. Etapas da Arte Contemporânea. São Paulo: Nobel, 1985., p. 38-39 e
OITICICA, Hélio. “Cor, Tempo, Estrutura”. In: Aspiro ao Grande Labirinto. Org. Luciano Figueiredo,
Lygia Pape, Waly Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, pp. 44 e ss.
146

14
de entusiasmo pelo novo e pelo progresso . Tratava-se de superar o
subdesenvolvimento. A renovação da pintura, se não pensava diretamente, ou melhor,
instrumentalmente, a inserção social, de alguma forma – isto é, pretendendo pela
renovação formal assumir a complexidade da realidade moderna – respondeu às
exigências de se deslocar a função social da arte. Ambos os projetos situaram-se com
radicalidade na questão.
Os concretistas paulistas aliaram o empenho em afirmar a mais pura e radical
concepção da modernidade artística e a consideração da arte na sociedade industrial. Os
princípios, que a forma segue a função e que ela não é expressão mas produto,
implicavam a integração ao sistema produtivo, restando entretanto determinar o modo
dessa inserção. Com isso, a significação, humana e social, do trabalho de arte tinha
muito daquela positividade moderno-construtivista baseada na crença no progresso
contínuo da razão e da história. Entretanto, internamente, o grupo concreto abrigou
posições divergentes quanto à articulação entre a “visão industrial” e a tomada de
posição ideológica, marxista, que comporia a “objetividade” da arte concreta. Entre uma
posição alinhada ao PC, de um realismo socialista como o de Vilanova Artigas, e a
gramsciana de Waldemar Cordeiro e Décio Pignatari, desenvolvia-se a tentativa de
15
politizar a arte . Pensando a dimensão contemporânea da arte pela positivação da
ciência, da técnica e da industrialização; sintonizando-se com os centros internacionais
produtores de arte; afirmando os princípios característicos das ideologias construtivas –
racionalização, ordem, utilidade social -, conectados às aspirações de reforma e
modernização do desenvolvimentismo, os concretos investiam uma vontade de saber
que punha em xeque a teoria e prática da arte institucionalizada. Seu procedimento era
estratégico: atacando o idealismo que envolvia a arte, principalmente o mito da criação
original, deslocando a sua função social, pretendiam transformá-la em instrumento
social mais eficaz. Além desse mérito, cabe ressaltar nos concretistas a compreensão
que tiveram do mercado; como instância incontornável da realidade da arte na sociedade
e como modo concreto de politizá-la, enquanto expõe a posição dos produtos e do
16
artista na sociedade . A aposta concretista só desatará suas aporias internas no início
dos anos 60, quando premidos pelas pressões do surto populista, projetam o “salto
semântico-conteudístico-participante”.
14
Cf. LAFER, Celso. “Os Anos JK: seu impacto e significado”. In: Saudades do Brasil: A Era JK
(catálogo). CPDOC-FGV, 21/4–10/5/92, p. 11 e ss.
15
PIGNATARI, Décio. Entrevista in COCCHIARALE, F. & GEIGER, A.B., op. cit. p. 72-3.
16
cf. BRITO, R., op. cit., p.54-60.
147

Já no neoconcretismo, a questão da significação social é menos aparente, pois


não havia intenção política em seus integrantes, e a inserção da arte na produção
industrial era vista com desconfiança. Ferreira Gullar declarou francamente: “eu não
17
tinha nada de político na época”, o neoconcretismo ficava na “idéia” . O interesse
concentrava-se na reorganização do construtivismo em situação brasileira; isto é,
tentativa de realizar uma expressão brasileira de vanguarda que retirasse as discussões e
a prática de renovação artística dos quadros de referência construtivos exclusivamente.
Segundo Waldemar Cordeiro, o intuito de Gullar era o de “levar o real para a cultura”,
18
enquanto o dos concretos, “a cultura para o real” . A questão da relação entre
experimentalismo, significação social e luta de classes, ao contrário do que ocorreu nos
domínios concretos, nunca apareceu, muito menos a do mercado.
Assim, embora na teorização neoconcreta houvesse indícios de que a
transformação social estivesse no horizonte de suas propostas, especialmente na
proposição da participação dos espectadores, a sua prática experimental manifestava
19
resíduos idealistas, não interferindo basicamente no sistema da arte instituído .
Entretanto, paradoxalmente, ao criticar o rigorismo concreto a partir dessa posição
puramente experimental, o neoconcretismo abriu a possibilidade da crítica ao modo
como a inserção social vinha sendo pensada nos desenvolvimento construtivos. Isto teve
conseqüências imediatas, para a “dialetização” do projeto construtivo brasileiro e,
principalmente, para o redirecionamento da produção artística na virada da década, em
função das perspectivas de análise cultural, política e artística que se delineavam a partir
das proposições isebianas.
Pode-se dizer que, apesar de o neoconcretismo ser apolítico, apesar de seu
caráter quase marginal em termos de experimentalismo, inclusive com a
despreocupação com o acabamento das obras (na verdade proposições), ele delineou um
campo de atuação para os artistas, que no ideário concreto estava contido. A
“existencialização” propugnada pelos neoconcretos, ao incidir na participação
corporificada abriu as possibilidade de a arte acolher o processo cultural e político em
desenvolvimento. Ao invés da engenharia dos processo concretos, a participação dos
espectadores na criação já indiciava, indiretamente, a arte como participação social. Os
desdobramentos seguintes do neoconcretismo em diversas áreas artísticas e a tentativa
17
FERREIRA GULlAR, Entrevista in COCCHIARALE, F. & GEIGER, A. B., op. cit., p. 99.
18
CORDEIRO, Waldemar. “Teoria e Prática do Concretismo Carioca”. In COCCHIARALE, F. &
GEIGER, A.B., op. cit., p. 226.
19
cf. BRITO, R. , op. cit., p. 54.
148

concreta de propor o salto participativo comprovam o alcance do neoconcretismo. O


resultado paradoxal da ruptura neoconcreta confirma o que é comum na história da arte:
que a significação social não advém, necessariamente, do programático e do prescritivo,
mas da sensibilidade ao atual, ao histórico em formação.
Enquanto, entre 59 e 61, o neoconcretismo desenvolvia sua meteórica
insurgência crítica e criativa, a arte concreta também apresentava mudanças na teoria e
na produção. Cordeiro assinala a inaptidão da arte concreta “a assimilar as
transformações oriundas de uma nova situação histórica”, e que seria preciso libertá-la
20
“das vestais de uma pureza, que é fácil isolamento, para torná-la participante” . A
experimentação neoconcreta perde força no final de 1961, quando Gullar retira-se do
movimento. A ação prefigurada na participação do espectador na realização da obra,
torna-se insuficiente face às significações sociais que tomavam corpo no país em vista
mesmo dos impasses das vanguardas construtivas em seu desejo de evidenciação.
Naquele momento brasileiro, em que o interesse pelo social se impõe aos
artistas, surge a categoria, e protagonista predileto, da arte que despontava: o povo.
Abre-se o período da politização da arte, que, em projetos e atividades diversificados se
extenderá até o final de 68.

***

Em 1961/62 manifesta-se a crise das vanguardas construtivas no Brasil; no


período até 65, quando os artistas voltam às atividades coletivas, houve um certo
isolamento criativo, fruto da indecisão quanto aos modos de assumir o que se impunha
no momento. Os acontecimentos político-sociais, a intensa mobilização popular, a
hegemonia da ideologia do nacional-popular na cultura brasileira, exigiram novamente
dos artistas repensar o compromisso de colaborar no processo de transformação da
“realidade brasileira”. Há uma retração do concretismo e dissolução do neoconcretismo,
repontando aqui e ali algumas atividades: Wesley Duke Lee lança o “Realismo Mágico”
e realiza um primeiro happening (1963); no mesmo ano funda-se a Galeria Novas
Tendências em São Paulo e a ESDI no Rio de Janeiro; em 1964 na Galeria Relevo
ocorre a exposição “Nova Figuração da Escola de Paris”, onde, também, com a presença

20
Cf. GALLERANI, M.A.C.. Op. cit., p. 91.
149

de Pierre Restany, Antonio Dias faz a exposição “Da torre de marfim à Torre de Babel”;
e no mesmo ano, Waldemar Cordeiro apresenta os Pop-cretos na Galeria Atrium em
São Paulo. São manifestações isoladas, sem a força dos grupos e projetos construtivos,
que, ora voltados para a retomada da figuração, ou para a busca de um “novo realismo”,
propondo “concreções semânticas”, encaminham-se para a inclusão do social,
delineando, através de sátiras, a linha de crítica social. Enquanto o neoconcretismo se
dissolvia, com a adesão de Ferreira Gullar ao CPC, os concretos tentam o “salto
participante” que, contrariamente à “arte popular revolucionária” das propostas dos
CPCs, articula uma vanguarda também engajada, como “nacionalismo crítico”.
A contribuição dos artistas para com a transformação da realidade torna-se um
imperativo geral, pois como declarou Ferreira Gullar, naquele tempo “a realidade
21
rompia as formas, pondo à mostra o caráter político, interessado, dos valores sociais” .
Enquanto no plano internacional os impasses das vanguardas (da abstração construtiva e
informal) iam se resolvendo através das variantes do Pop americano, no Brasil, apesar
da penetração do Pop, sentia-se a necessidade de desenvolver “um trabalho de crítica
sobre as idéias estéticas em vigor, seguido de debate e de pesquisa em torno das
22
possibilidades efetivas de uma arte ligada à nossa cultura e às nossa necessidade” .
Buscava-se uma arte de intenções nitidamente sociais.
As contradições ideológicas daquele momento histórico refletem-se nas artes, na
tentativa de articularem o inconformismo estético ao inconformismo social por uma arte
participante, engajada. A linha da arte popular revolucionária, do CPC da UNE, do
MCP do Recife, com suas expressões militantes no teatro, na canção, no cinema e na
poesia, desenvolve um programa “nacionalista” adequado às propostas populistas. Ele
encontra a sua forma objetiva numa arte diretamente voltada para os problemas
nacionais imediatos, usando uma linguagem julgada acessível ao povo. Denúncia e
exortação eram as técnicas empregadas, na ilusão de que a “conscientização” do povo (
da dominação imperialista e da burguesia nacional como causas da miséria, do
analfabetismo, etc.), através das atividades artísticas e culturais, era a condição para a
transformação da sociedade. Esta crença, e este desejo, no poder da ação eram tanto
onipotentes quanto generosos. Tratava-se de falar do país através de gêneros e
linguagens “autenticamente nacionais”, sem estabelecer distância entre a intenção social

21
Visão, 11/03/74. “Da ilusão do poder a uma nova esperança”. p. 139
22
FERREIRA GULLAR. “Porque parou a arte brasileira”. Revista Civilização Brasileira, ano I no. 1,
março 1965, p. 222-28.
150

e a realização estética. A distância era suprida pelos esquemas de identificação emotiva,


gestual, expressiva, pelo emprego de categorias abstratas, mitificadas (e mistificadoras):
povo, país, rico, pobre, realidade brasileira, homem brasileiro, etc. A ausência de
mediações era notável; forma e conteúdo eram hipostasiados, assim como linguagem e
realidade. Esta arte recusava a experimentação de vanguarda, tida como reacionária,
posto que “formalista”. Nesta linha, nada se produziu de significativo em artes plásticas,
a não ser um figurativismo regressivo, folclorizado.
Entretanto, é na outra linha de abordagem da questão da participação que se
encontram as manifestações mais interessantes do momento: aquela que tentava
soluções para o problema, pela crítica à ideologia do nacional-popular e pela
reafirmação da especificidade da pesquisa de novas linguagens. Reagindo tanto à
mistificação do popular quanto ao figurativismo do realismo mágico ou fantástico, ou
ainda, à figuração de estados subjetivos, os concretos pretendem afirmar um “novo
realismo” derivado da assimilação de tendências internacionais derivadas da Pop-Art.
Waldemar Cordeiro recorre ao conceito sartriano de “consciência intencionante” para
distinguir o seu “novo realismo” da “objetividade impessoal da linguagem visual”
concreta e das propostas de uma volta à figuração. O seu realismo é aquele que não
representa a realidade, mas apresenta-a, como um “realismo (histórico) construído
dentro da linguagem objetiva da arte contemporânea” isto é, conectada às questões
sociais e ao cotidiano urbano: uma espécie de “arte concreta intencionante”, uma
“objetivação das coisas”. O que ele propõe é nada mais que o “problema do objeto” que
23
tensiona a década de 60, em toda parte
O “problema do objeto” surgiu da redistribuição geral da estética e do campo
artístico com a emergência da Pop-Art. Diz respeito às transformações estruturais, ao
comportamento criador, à proposição da arte como ação no ambiente e, inclusive, ao
confronto com o mercado e relações dos artistas com o público. Refere-se, portanto, à
questão da superação da pintura, libertando-a do quadro; à dissolução de gêneros e
estilos artísticos e a abertura de um campo de experiências multidisciplinares.
Desenvolve-se em duas direções, que não raro se fundem: aquela dedicada à renovação
sintático-formal, reativando propostas construtivistas segundo as novas condições de
produção; e a que enfatiza a dimensão semântico-pragmática. Ambas põem em causa a
significação da pintura e do processo estético em geral, impugnando convenções da

23
CORDEIRO, W. “Novas Tendências e Nova Figuração”. Habitat, no. 77, 1964. In: PECCININI, Daisy
(coord.). Objeto na arte: Brasil, anos 60. São Paulo: FAAP, 1978, p. 53.
151

representação tradicional e da abstração. O objeto, ao mesmo tempo que significou na


época a saída para os impasses da evidenciação da arte na sociedade industrializada e a
sua situação no mercado, resultou do interesse em localizar a arte na vida cotidiana, ao
24
nível dos comportamentos (éticos, sociais, políticos) .
As manifestações neofigurativas realizam no início da década de 60 a transição
do movimento concreto e neoconcreto para uma arte que, na segunda metade dos 60,
iria levar as artes plásticas a uma produção extensa, e significativa, atualizando uma arte
brasileira de vanguarda no contexto explosivo dos anos 65-68. Mesmo que a
manifestações do início, em sua valorização do contacto com a realidade social, tenham
incidido num realismo imediatista, às vezes de acento regionalista, às vezes dirigindo-se
para a reportagem social, as experiências concretas e neoconcretas não deixaram de
produzir seus efeitos. E logo que a Pop-Art é integrada, ela se faz de modo diferenciado
da americana: aqui, a dialética entre realidade artística e realidade do observador
extrapola o aspecto perceptivo para tornar-se, segundo o princípio da participação, uma
tomada de posição ético-política. A Pop-Art, assim como outras tendências paralelas,
tornaram-se no Brasil elementos para uma intervenção na realidade, que tivesse impacto
e alguma eficácia crítica.
O golpe de abril de 1964 significou para alguns a perda da ilusão em uma arte
revolucionária, para outros a confirmação de que o valor social da arte não poderia
desligar-se do trabalho experimental, do deslocamento das formas imediatas de
percepção, pensamento e ação, e que, portanto, a significação social passaria
necessariamente pela renovação das formas, dos processo e da própria concepção da
arte. Assim, o ativismo não responderia adequadamente às questões da politização da
arte.

***

Se o golpe de 64 liqüidou a ilusão de que a ação conscientizadora acabaria por


transformar a sociedade, promovendo a justiça e a igualdade, passado o momento de
perplexidade a arte volta a se manifestar: constatando o fracasso, rebelando-se,
reformulando seus processos de análise da realidade e de conscientização, chegando,

24
OITICICA, Hélio. “Instâncias do Problema do Objeto”. GAM. nº 15, Rio de Janeiro, 1968, Rep. em
PECCINICI, D., op. cit. p. 97-98.
152

25
finalmente, à violentação . A produção artística responde então ao que se apresentava
como necessidade: articular a atividade cultural em termos de inconformismo e
desmistificação; vincular a experimentação às possibilidades de uma arte participante;
reagir à repressão do regime. Experimentação e participação agenciam uma outra ordem
do simbólico, a do comportamento, visando a instaurar uma imagem de arte como
atividade em que não mais se distinguem os modos de efetivar programas estéticos e
exigências ético-políticas.
O período que vai de dezembro de 64 (quando é lançado o show Opinião)até
dezembro de 68 (edição do AI-5), é de intensa mobilização e de transformações nas
artes. Heterogênea, sem constituir-se propriamente num movimento com unidade de
pensamento, a atividade artística definiu, entretanto, uma “posição específica” da
vanguarda brasileira, considerada por Hélio Oiticica como “um fenômeno novo no
26
panorama internacional” . A especificidade e o novo referem-se ao modo como a
redistribuição estética produzida pela Pop-Art foi aqui transfigurada pela politização nas
artes, pois além de veicularem toda sorte de inovações, as manifestações artísticas
articularam a crítica da arte, do artista e do sistema aos imperativos sócio-políticos.
Disto surgiram inúmeras propostas, às vezes divergentes no modo da articulação, mas
que, segundo Sérgio Ferro, definiram uma “unidade de ação”.
No catálogo do seminário Propostas 65 (exposição e debates sobre “o realismo
atual no Brasil”, FAAP- São Paulo, dez. 65), Sérgio Ferro diz que “a pintura nova, no
Brasil, é fundamentalmente, o restabelecimento de relações mais próximas com a
realidade”, devido, provavelmente, “à historização do processo brasileiro, ao
aguçamento de seus desencontros, à conscientização política, à radicalização das
posições”. Em decorrência, “os problemas que a pintura nova examina são os do
subdesenvolvimento, imperialismo, o choque direita-esquerda, o (bom) comportamento
burguês, seus padrões, a alienação, a 'má-fé', a hipocrisia social, a angústia generalizada,
etc”. e as respostas artísticas “oscilam entre a desesperança niilista, as utopias e o
engajamento crítico”. Para isso, “a nova pintura arma-se com todos os instrumentos
disponíveis. Recorre, para responder às suas necessidades, a quaisquer veículos úteis: ao
academismo, a maneirismos de mil espécies, a artifícios mais ou menos elaborados;
importa, empresta, rouba e cria seu vocabulário com a liberdade indispensável para o

25
“As marcas da inocência perdida”. Visão, 1/3/68. p. 46
26
OITICICA, Hélio. “Situação da Vanguarda no Brasil”. Seminário Propostas 66, reprod. em Arte em
Revista, Ano I, no. 2, p. 31 e em Aspiro ao Grande Labirinto, p. 110.
153

reexame profundo que efetua. A vastidão do empreendimento exige um equipamento


móvel, diferenciado, capaz de captar a incrível irracionalidade do nosso tempo. Inexiste
a preocupação com a unidade, a correção, a elegância de linguagem: para dizer o novo,
com a crueza necessária, há que esquecer as boas maneiras e as limitações gramaticais”.
Mas, adverte: “a unidade do novo movimento da pintura brasileira não deve ser
procurada em algum parentesco formal ou mesmo no objetivo específico de suas várias
realizações, mas na sua posição agressiva diante da situação abafante, no seu
conformismo, na sua colocação da realidade como problema em vários aspectos, na sua
27
tentativa ampla e violenta de desmistificação” .
O texto de Sérgio Ferro dá o tom do momento, refletindo, apesar de suas
idiossincrasias, a variedade das pesquisas e das atuações, pois, no fundo, pode-se dizer
que de “65 a 69, boa parte dos artistas brasileiros pretendiam, ao fazer arte, estar
28
fazendo política” ; a posição crítica na atuação cultural requerida fazia coincidir o
político e a renovação artística, o deslocamento da arte e a participação. Tudo se
resumia, como disse Oiticica, na atitude “contra” e “anti”: desconstruir a arte, renovar,
reinventar, significava reconceituá-la, desintegrá-la; recriar o seu objeto e suas imagens,
rumo a uma “arte suja”, à “antiarte” ou a qualquer outra expressão que implicasse
simultaneamente o redimensionamento cultural dos protagonistas – os artistas e o
público, a crítica e o circuito, o sistema e o mercado. “Não pregamos pensamentos
abstratos, mas comunicamos pensamentos vivos (...). No Brasil (...) hoje, para se ter
uma posição cultural atuante, que conte, tem-se que ser contra, visceralmente contra
tudo que seria em suma o conformismo cultural, político, ético, social (...). Da
29
Adversidade Vivemos!” .
A vanguarda brasileira recobre uma gama muito elástica de atitudes e
experiências – nova figuração, objetos, ambientes, acontecimentos, happening, etc. –,
que traduzem, muitas vezes, elementos pop e op, da arte conceitual e da arte povera,
surrealistas, dada ou neo-dadaístas. O “realismo” de Ferro é, portanto, uma ampla e
indistinta categoria que serve para estabelecer uma polarização genérica com todo
“idealismo” ( no fundo, a idealização da arte). É a proposta de “participação coletiva”

27
FERRO, Sérgio. “Vale Tudo”. Propostas 65. In: Artes, Ano I, no. 3, jan./66 e reprod. em Arte em
Revista, no. 2, p. 26.
28
ARANTES, Otília B.F. – “Depois das Vanguardas”. Arte em Revista, Ano V, no. 7, ago, 1973, p. 26.
Também Novos Estudos, CEBRAP, n. 15, 1986, “De Opinião 65 à XVIII Bienal”, p. 69.
29
OITICICA, Hélio; “Esquema Geral da Nova Objetividade”. Catálogo da exp. Nova Objetividade
Brasileira, MAM-RJ, abr. 1967. Reprod. em Aspiro ao Grande Labirinto, p. 98.
154

que dá a marca dessas atividades heterogêneas; tanto o coletivo que significa o trabalho
de grupos de artistas (agrupados em tendências ou pela “unidade de ação”), como o
coletivo que significa o que é visado socialmente.
As atividades desenvolvidas desde 1965, assim como a indicação das
contribuições internacionais, que chegavam, por exemplo através das Bienais, permitem
o entendimento desse formidável período que liberou os signos da criatividade coletiva.
Vejam-se algumas das principais:
1965: mostra Opinião 65 (12 de agosto/12 de setembro), idealizada por Jean
Boghici da Galeria Relevo e pela crítica de arte Ceres Franco, reunindo artistas da
Escola de Paris (Nova Figuração e Figuração Narrativa) e brasileiros, que procuravam
explorar uma tendência internacional de volta à figuração, como reação, ainda que
diferenciada ao informalismo e ao concretismo/neoconcretismo. Dela participaram:
Antônio Dias, Pedro Escosteguy, José Roberto Aguilar, Waldemar Cordeiro, Ângelo de
Aquino, Roberto Magalhães, Carlos Vergara, Hélio Oiticica (apresentando o Parangolé
e a sua teoria “Bases fundamentais para a definição do Parangolé”), Rubens Gerchman,
Adriano D'Aquino, Flávio Império, Ivan Serpa, Ivan Freitas, Gastão Manoel Henrique,
Tomoshige Kusuno, Vilma Pasqualini e Wesley Duke Lee. Neste mesmo ano, em
setembro, Antônio Dias e Roberto Magalhães são premiados na IV Bienal de Paris e no
mesmo mês, Nelson Leirner e Geraldo de Barros fazem exposição de quadros, objetos e
colagens na Galeria Atrium em São Paulo. Em dezembro, Propostas 65, exposição
organizada por Waldemar Cordeiro, com debates centrados no tema “Aspectos do
Realismo no Brasil”, reuni trabalhos de Opinião 65, artistas abstratos, primitivos e
concretistas: Antônio Dias, Gerchamn, Sérgio Ferro, Geraldo de Barros, Maurício
Nogueira Lima, Nelson Leirner, Ubirajara Ribeiro, Tomoshige Kusuno, Wesley Duke
Kee, dentre outros.
1966: Em março, exposição de Pintura de Vanguarda no MAM-RJ; em abril,
inauguração da Galeria G-4 no Rio, com a exposição “PARE” , de Antônio Dias, Pedro
Escosteguy, Rubens Gerchman, Roberto Magalhães e Carlos Vergara, com grande
repercussão e afluxo de público. Em junho o Grupo Rex inicia em São Paulo suas
atividades na Rex Gallery & Sons, com exposição de Nelson Leirner, Geraldo de
Barros, Wesley Duke Lee, Carlos Fajardo, Frederico Nassar, José Resende e outros,
inclusive com o lançamento do primeiro número do jornal Rex Time (é “time” mesmo e
não “taime”). Em julho/agosto, exposição “Vanguarda Brasileira” na Reitoria da
Universidade Federal de Minas Gerais com a presença de Hélio Oiticica, Gerchman,
155

Dias, Escosteguy, Vergara e outros; e Opinião 66 no MAM-RJ. Em setembro e outubro,


números dois e três do Rex Time e exposição “Flash Back” na Galeria, que em outubro
também realiza a exposição “Descoberta da América”, onde são exibidos documentários
sobre os trabalhos de Jim Dine, Lichtenstein, Warhol, Barnett Newman, Frank Stella e
Larry Poons. Ainda destacam-se neste ano, exposição “13 artistas Gaúchos” no MAC-
USP, a “1ª Bienal Nacional de Artes Plásticas de Salvador”, o III Salão de Brasília, o
XV Salão de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, que premia Antônio Dias, Roberto
Magalhães e Rubens Gerchman e, em dezembro, Propostas 66, em São Paulo, com uma
“Semana de Seminários sobre a Arte de Vanguarda”, na Biblioteca Municipal, onde,
aliás, Oiticica apresenta seu texto “Situação da Vanguarda no Brasil”.
1967: Em janeiro, “Declaração de Princípios Básicos da Vanguarda”; março,
exposição “O Ato da Criação” do Grupo Rex e Rex Time nº 4; seis a trinta de Abril:
Exposição Nova Objetividade Brasileira, no MAM-RJ, onde se faz um panorama da
vanguarda brasileira, na qual Hélio Oiticica montou o ambiente “Tropicália”.
Participaram artistas de várias tendências, dentes os quais: Nelson Leirner, Sami Mattar,
Pedro Escosteguy, Avatar Morais, Maria do Carmo Secco, Flávio Império, Sérgio Ferro,
Roberto Magalhães, Carlos Vergara, Rubens Gerchamn, Antônio Dias, Marcelo
Nitsche, Luís Gonzaga, Carlos Zílio, Ana Maria Maiolino, Samuel Spiegel, Raimundo
Collares, Waldemar Cordeiro, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Glauco Rodrigues, Geraldo
de Barros, Maurício Nogueira Lima. Em maio: “Concurso de Caixas”, na Petite Galerie
do Rio; Jornal Rex Time nº 5, última edição, juntamente com a “Não-Exposição” de
Nelson Leirner na Rex Gallery. Evento denominado “Rex Kaput”, um happening de
oito minutos, tempo que durou a invasão da galeria por uma multidão, convocada por
anúncio na imprensa, para arrancar e carregar as obras (que estavam chumbadas). A
repercussão foi grande, devido ao estardalhaço criado pelo evento, encerrando as
atividades do grupo e da galeria. Ainda em maio Nelson Leirner inaugura na Galeria
Seta, São Paulo, a exposição “Da produção em massa de uma pintura”, com quadros a
preço de custo. Em setembro inaugura-se a “IX Bienal Internacional de São Paulo”. que
ficou conhecida como a Bienal Pop, com importante representação norte-americana e
brasileira. Em julho, Oiticica realiza no evento “Arte na Rua”, a manifestação ambiental
“Parangolés Coletivos” no Aterro e também no MAM. Em set./out. “1ª exposição
Jovem Arte contemporânea” no MAC-USP. Em set./nov., na IV Bienal de Paris,
comparecem Gerchman, Oiticica, Regina Vater, Avatar Moraes, Anna Bella Geiger e
outros. Em dezembro, “Simpósio de Brasília” e “IV Salão de Brasília”, no qual Nelson
156

Leirner apresenta um porco empalhado e publica em jornais a fotografia da “obra”,


questionando os critérios de julgamento do juri que a aceitou e premiou. Grande
repercussão na crítica e na imprensa. Ainda em dezembro, em São Paulo, Exposição de
Bandeiras e Estandartes de Flávio Motta e Nelson Leirner, na Galeria Atrium, que havia
sido proibida pela polícia de realizar-se em praça pública.
1968: Em janeiro, “Declaração de Princípios dos críticos de Arte Brasileira
sobre os direitos da livre criação artística e a inviolabilidade das exposições coletivas e
individuais de Artes Plásticas nos países civilizados”; “Festa das Bandeiras”, no Rio de
Janeiro, com Flávio Motta, Nelson Leirner com mais ou menos vinte outros artistas. Em
julho, Frederico Morais promove no Parque do Flamengo “Um mês de Arte Pública”,
manifestações “Arte no Aterro”. A manifestação final foi comandada por Hélio Oiticica
– “Apocalipopótese”. Em dezembro, interrupção da publicação da Revista Civilização
Brasileira; vários artistas partem para o exterior (Oiticica, Lygia Clark, Antônio Dias,
Sérgio Ferro, Rubens Gerchman).
1969: Em Janeiro “Supermercado de Arte”, organizado por Jackson Ribeiro, no
Rio; Proibição da mostra dos artistas brasileiros selecionados para a representação
brasileira na VI Bienal de Paris. Em abril, boicote internacional à Bienal de São Paulo.
Em junho, “Cultura Loucura Brasileira”, debate no MAM-RJ, com intelectuais, artistas
e críticos, como Oiticica, Caetano Veloso e Rogério Duarte. Em novembro, 1º Salão da
Bússola” no MAM- RJ.
1970: Em abril, manifestação “Do corpo à terra” no Parque Municipal de Belo
Horizonte; em junho, exposição “Arte de Vanguarda” no Instituto de Arquitetos do
Brasil, São Paulo; em dezembro, exposição de Baravelli, Fajardo, Nasser, José Rezende
30
no MAC-USP.
A par dessa intensa atividade, é preciso assinalar a importância das Bienais, que
foram trazendo para cá a produção contemporânea internacional e acolhendo a
vanguarda brasileira. Na VII (63) o Pop faz sua aparição com George Segal, na VIII
(65), Donal Judd, Frank Stella, Barnett Newman. Esta é também a Bienal da Op-Art,
especialmente com Vasarely; dos comics e dos surrealistas (Max Ernst, Tanguy, Man
Ray, Arp e o brasileiro Walter Levy). A IX (67) teve importância decisiva, com enorme
sucesso de público. O pop americano esteve magnificamente representado: Robert
Indiana, Jasper Johns, Lowel Nesbitt, Claes Oldenburg, Roy Lichtenstein, James

30
cf. PECCININI, D.-Op. cit, p. 41-44.
157

Rosenquist, George Segal, Andy Warhol, Tom Wesselmann, etc. E dos brasileiros,
Marcelo Nitsche, Wesley Duke Lee, Nelson Leirner, Vergara, Claudio Tozzi, dentre
outros.
Se Opinião 65 foi o evento determinante desse afluxo de atividades, a Nova
Objetividade Brasileira foi a culminação do processo. A busca de uma linguagem mais
ampla para a expressão da complexidade humana e histórica, a ênfase na participação
do (até então) espectador, a concepção de obra como objeto, a idéia de vivência
assimilada a propostas sensoriais, a tomada de posição política, as proposições
coletivas, a integração da Pop-Art realizaram-se no período (que se estende até inícios
dos 70) e estiveram representadas e refletidas naquele acontecimento. No texto,
“Esquema Geral da Nova Objetividade”, escrito para o catálogo, Hélio Oiticica faz um
ensaio de globalização da vanguarda brasileira, no desejo de formular um diagnóstico
31
da situação e os princípios da atuação coletiva A análise de Oiticica elabora o tumulto
desse momento de fratura da modernidade, associando os elementos presentes aos
pressupostos da vanguarda brasileira. Para ele, os princípios que regem a posição crítica
e criativa dessa vanguarda são o resultado dos desenvolvimentos construtivos no Brasil:
antropofagia oswaldiana, arquitetura moderna, arte concreta e neoconcreta, a
experiência de Lygia Clark e a sua. Assim, a estratégia adequada ao momento é a
tendência à “antiarte”, pois ela vincula a experimentação às “exigências ético-
individuais e sociais”. Dirigida “por uma necessidade construtiva característica nossa”,
diz Oiticica, a antiarte permite aos artistas enfrentar a questão: “como, num país
subdesenvolvido, explicar o aparecimento de uma vanguarda e justificá-la, não como
32
uma alienação sintomática, mas como um fator decisivo no seu progresso coletivo?” .
Embora a posição crítica de Oiticica esteja sempre referenciada à sua produção e
às suas idéias, o texto explicita adequadamente aquela “Unidade de ação” da vanguarda
brasileira. De fato, entendendo como básico realizar a ampliação do “imaginativo do
indivíduo” e a “solidificação cultural” da arte de vanguarda, acredita que, naquele
momento, tratava-se de perguntar “quais as preposições, promoções e medidas a que se
deve recorrer para criar uma condição ampla de participação popular nessas proposições
abertas”, para que elas pudessem efetivar os objetivos da vanguarda brasileira:

31
OITICICA, Hélio. op. cit., p. 84-89.
32
Idem, ib., p. 97. Cf. também sobre a “Nova Objetividade”, FAVARETTO, C.F. A Invenção de Hélio
Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1992, p. 151 e ss.
158

“1. vontade construtiva geral; 2. tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de
cavalete; 3. participação do espectador (corporal, táctil, visual, semântica, etc.); 4. abordagem e
tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos; 5. tendência para
proposições coletivas e conseqüente abolição dos 'ismos' característicos da metade do século na
arte de hoje (...); 6. ressurgimento e novas formulações do conceito de antiarte”.

A Nova objetividade, tal como imaginada por Oiticica, representa as aspirações,


os problemas, as ambigüidades e a destinação dessas experiências. Desenvolve e precisa
os princípios básicos da vanguarda declarados no manifesto de 67 (assinado por ele,
Dias, Vergara, Gerchman, Lygia Clark, Lygia Pape, Glauco Rodrigues, Escosteguy,
Maurício Nogueira Lima. Frederico Morais, Mário Barata e outros). Com a intenção de
“alterar ou contribuir para que se alterem as condições de passividade e expressão”, diz
o manifesto, a vanguarda “assume uma posição revolucionária”. Pretendendo “integrar a
atividade criadora na coletividade, opõe-se “às técnicas e correntes esgotadas”, denuncia
“tudo quanto for institucionalizado”, nega “a importância do mercado de arte em seu
conteúdo condicionante”, aspira “a acompanhar as possibilidades da revolução
industrial, alargando os critérios de atingir o ser humano, despertando-o para a
compreensão de novas técnicas, para a participação renovadora e para a análise crítica
da realidade”, adota “todos os métodos de comunicação com o público, do jornal ao
debate, da rua ao parque, do salão à fábrica, do panfleto ao cinema, do transistor à
televisão, propõe modificações múltiplas, das “inespecíficas da linguagem, à invenção
de novos meios capazes de reduzir à máxima objetividade tudo quanto deve ser
33
alterado, do subjetivo ao coletivo, da visão pragmática à consciência dialética” .
Estes princípios, posto que genéricos, prescritivos e muito ambíguos,
reatualizam a posição revolucionária das vanguardas em consonância com a situação
brasileira de produção, de cultura e política. Eles abrigam uma extensa gama de
experiências, até contraditórias (por exemplo, quanto à maneira de entender a questão
do mercado e a inserção na sociedade industrial). Oiticica, por seu lado, insiste
entretanto na importância do “sentido de construção”, na especificidade da vanguarda
brasileira e na tendência para a antiarte, pois estes princípios referem-se ao seu projeto
de transformar a arte em outra coisa, que para ele, neste momento, está cifrada na
proposta-parangolé, nas manifestações ambientais.

33
Cf. “Declaração de Princípios Básicos da Vanguarda”. In: PECCININI, D. Op, cit., p. 73.
159

Assim, a posição específica da vanguarda brasileira, produzida por Oiticica,


provém da reconstrução das experiências , individuais e de grupo, que a partir do
neoconcretismo provocaram mudanças na concepção do objeto e do político da arte.
Embora referidas às tendências internacionais (Pop, Op, Nouveau Réalisme, Primary
Structures – Hard Edge), delas se distingue. O trabalho de Lygia Clark e dele próprio, o
“realismo carioca” de A. Dias, Gerchman e Escosteguy, o pocreto e outras experiências
como as do “realismo mágico”, da poesia participante de Ferreira Gullar, do teatro do
Grupo Opinião e do Cinema Novo, indicam para ele o encontro de dois processo: a
dissolução estrutural, que centrada na questão do objeto encaminha-se para as
proposições antiartísticas e a articulação da preocupação estrutural ao interesse social,
através de “proposições dialético-pictóricas”. Oiticica distingue este encontro das
proposições estruturais (dele e de L. Clark) com as do realismo carioca (Dias,
Gerchman e Escosteguy), provenientes do desenvolvimento “dialético” das
“estruturações individuais” e da “participação coletiva”, como uma particularidade da
concepção genérica das relações entre arte e realidade formulada na ocasião por Mário
Schemberg, designada como “realista”, e de largo emprego entre artistas e críticos.
De fato, embora naquela ocasião, na consideração dos eventos anteriormente
citados, se insistisse mais na “unidade de ação” do que nas diferenças experimentais, era
evidente a heterogeneidade das propostas. O realismo de Schemberg é genérico: o
emprego de materiais descartados, a ausência de preocupação com o “requinte
artesanal”, a preferência por imagens e objetos habituais, resultam para ele da filiação
do “novo realismo brasileiro” às grandes correntes atuais do movimento neo-realista
internacional”, embora mantivesse “características próprias determinadas pelas
condições econômicas, sociais e culturais brasileiras”. Uma forma de arte participante e
“instrumento de conscientização nacional”, esse realismo abrigava tanto um “realismo
social” como o “fantástico”, o mágico”, o “existencial”, pois todos comprometiam-se
com um “novo humanismo” caracterizado “por uma síntese do individual, do social, do
existencial e do cósmico” propiciada pela ciência e técnica modernas de produção e
34
comunicação social .
Esta posição foi caracterizada de modo mais preciso por Sérgio Ferro e
35
Waldemar Cordeiro. No texto já citado , Sérgio Ferro admite que o não-conformismo, a

34
CF. SCHENBERG, Mário. “Um novo realismo”. Catálogo Propostas 65, reprod. em PECCININI, D.
Op. cit., p. 61-62 e “O Ponto Alto”, Artes, Ano I, no. 3, jan./66, reprod., Arte em Revista, nº 2, p. 25
35
Cf. nota 27.
160

desmistificação e a posição agressiva implicam diversas “categorias de realismo”,


dependendo do emprego diferenciado das linguagens à disposição. Refere-se a “um
realismo do fato significativo” de Gerchman, “um realismo de crítica das instituições
sociais” de Flávio Império, “um realismo psicológico” de Ubirajara Ribeiro, “um
realismo do absurdo” de Antônio Dias, “um realismo técnico” de Waldemar Cordeiro,
“um realismo estrutural” de Wesley Duke Lee, etc. Assim, apesar de todos interessados
na mesma ação de resistência e denúncia, diz que “conviria examinar o outro fator da
relação artista realista-realidade”: que cada artista ou tendência opera por totalizações
parciais, por seleção de seu campo de expressão e excluindo as demais. E isto é um
problema, pois a totalização da realidade (fundamental para a unidade de ação, segundo
ele) só poderia ocorrer pela sugestão “de uma densidade superior à da totalização
parcial proposta”, já que a realidade como tal” ultrapassa as possibilidades de
compreensão individual”. Percebe-se que Sérgio Ferro vê a unidade de ação na alusão e,
portanto, no emprego, maciço naquele momento, da técnica alegórica, o que seria
insatisfatório politicamente. Se o realismo de Schemberg é simplista, o de Ferro é
claramente dualista, pois o político impõe-se à experimentação – o que também foi
comum nos domínios da arte participante de contestação.
Já o realismo de Waldemar Cordeiro, igualmente valorizado nas visões de
Oiticica, Schemberg e Ferro, quer ser analítico. Tentando o salto das posições concretas,
“gramatical e sintática”, para a arte concreta “semântica”, agora pela “apresentação
direta das coisas da produção industrial” propõe: “o realismo atual – que não é um
retorno mas conseqüência do desenvolvimento da arte de vanguarda até as últimas
possibilidades – não pode ser compreendido mediante esquematização e paralelismos
mecânicos que caracterizam o realismo histórico, que poderíamos chamar também de
realismo causal. De resto, não é produto apenas das 'relações imanentes' inerentes ao
desenvolvimento das formas de arte resultante também de uma atitude crítica com
36
respeito ao desenvolvimento histórico da cultura por imagens no seu conjunto” .
Assim, ao chegar a esta posição, Cordeiro enfatiza não apenas a relação bivalente
“realidade-imagem”, cuja expressão artística é a concepção do objeto como “signo-
37
coisa, coisa-signo, por uma dialética de similitude de situações” . Acrescenta ao
tratamento formal uma reflexão sobre o “campo da organização da cultura”, enfatizando

36
CORDEIRO, W. “Todos Atentos”. Catálogo Propostas 65, Artes, no. 3,
37
Idem, “Realismo, Musa da Vingança e da Tristeza”. Habitat, nº 83, 1965, reprod. em PECCININI, D..
Op. cit., p. 56.
161

a atitude ética que transcende a atividade criadora em vista da “responsabilidade mais


vasta em face do desenvolvimento histórico-cultural da arte”, que não se reduz à
individualização nem ignora a internacionalização do processo. Propõe um visão
“contextual”, “dialética”, que dê conta da diversidade de criação e circulação, para o
que são requeridos o concurso dos novos meios de comunicação e os “processos
narrativos” da cultura de massa e do design.
No seu interesse de “uma nova codificação” da arte, “de criação e leitura de uma
realidade visual mais ampla”, tal como se patenteia nos popcretos, assim se refere a
artistas diversos de Propostas 65: Palatnik “se comunica mediante a organização serial
(...) do dado natural (...) e não em termos naturalísticos de representação”; Ruben
Martins “é o calígrafo da era industrial”, comunicando “uma realidade semântica e não
apenas óptica”; Escosteguy “objetiva metáforas”, Maluf “propõe um Raio X da
paisagem urbana (...) povoada pelos mitos da cultura de massa”; Maurício (Nogueira
Lima) “por meio da linguagem da reprodução mecânica constrói imagens bicolores, em
que a intermitência fundo-figura não é apenas uma ilusão óptica mas um ato
semântico”; Gerchman “faz figurativismo que nada tem a ver com o figurativismo
histórico nem com a representação clássica da pintura, compõe com o mesmo espírito
dos repórteres fotográficos e os seus flagrantes se assemelham àqueles dos jornais
populares”; Ferro “vê o mundo cotidiano e existencial mediante transposições
culturalísticas”; Império “fabrica representações anacrônicas para personagens
anacrônicas (UDN)”; Vergara “oferece um rico cardápio de gastronomia
expressionista”; Leirner “faz popcreto”, etc.
A posição de Hélio Oiticica quanto ao “realismo” é bastante distinta; não é por
menos que ele prefere a expressão “nova objetividade” em lugar de “novo realismo” ou
“realismo”. Também não é irrelevante que ele não procure nos artistas de vanguarda
uma “unidade de pensamento”, mas de ação. Talvez, mais esteticista e menos
ideológico que Schemberg, Ferro e Cordeiro, seu interesse (e sua posição ético-política)
está voltado para a criação de “um mundo experimental”, cuja objetividade está fundada
na superação da individualidade da produção e das representações que a tornam
possível. A criação desloca-se da identificação mítica com o artista para práticas que
conduzem ao deslocamento (estético e social) da arte. O imaginário de Oiticica: tal
como se explicita no Parangolé, na antiarte ambiental, é aquele que se interessa, não
pelos simbolismos da arte, mas pela função simbólica das atividades, cuja densidade
teórica está exatamente na suplantação da pura imaginação pessoal em favor de um
162

“imaginativo” coletivo. Assim, ao invés de remeter-se, como aqueles, às tradicionais


relações entre arte e realidade, sua produção explicita a relação arte-artista, situando-a
no horizonte de uma objetividade imaginativa. Propõe, assim, uma mudança de tática no
que concerne aos modos dos artistas se manifestarem politicamente: evidenciar as
ambigüidades do processo em curso na vanguarda brasileira e reexaminar os
pressupostos nela subentendidos. Isto se cumpre quando as atividades possuem visão
crítica na identificação de práticas artísticas e culturais com poder de transgressão; não
pela simples figuração das indeterminações e conflitos sociais, pela denúncia, mas pela
crítica dos discursos sobre a realidade brasileira e suas expressões na arte. Trata-se de
criticar o sistema da arte que suporta tais representações e, acima de tudo, de
desmobilizar a tradicional atitude receptiva dos participantes das manifestações: assim,
transformar a sensibilidade, ampliar a consciência, proscrever as obras de arte,
coletivizar ações, desterritorializar os participantes. Para ele, a dissolução das estruturas
na arte, a abertura para vivências e significações sociais, só é revolucionária quando
simultânea à transformação dos indivíduos e dos processos que os identificam. Esta
posição, ético-estética, fica clara na maneira como integrou práticas populares em suas
manifestações. O samba, a arquitetura e vivências da Mangueira, não são um recursos à
valorização dada naquele momento à “cultura popular” ou às “raízes”; ultrapassam o
mero interesse por mitos, valores e formas de expressão das vivências populares. O que
lhe interessam, são os elementos populares, que redefinidos no ambiente artístico,
sirvam de signos de transgressão; isto é, tenham eficácia construtiva no
redimensionamento da arte como prática coletiva.
A proposição ambiental faz da participação coletiva agente do “processo
dialético” que articula o estrutural e o social, distinguindo a sua busca de uma
linguagem especificamente brasileira das tendências que aqui retraduziam as
internacionais em voga, para afirmar um “realismo”. Assim, ao valorizar o seu trabalho
e o dos “realistas cariocas”, especialmente Antônio Dias e Rubens Gerchman, ele
assinala o que há neles de irreverência, denúncia e alegorização, que não vê no Pop
(com sua glorificação do mundo das coisas cotidianas) e nas acumulações do Nouveau
Réalisme. Para ele, a utilização de elementos das figurações recentes, bem como das
técnicas de comunicação de massa, servem a “necessidade construtiva” de tratar os
mitos e símbolos populares e urbanos estruturalmente. O que é retido do Pop, por
exemplo, é a sua imagerie, o recarregamento semântico com que se produzem imagens
163

com poder de referencialização, focalizando, pelo uso de traços fortes, cores e objetos
38
agressivos, a violência institucionalizada .
O destaque de Oiticica para Dias e Gerchman é significativo: neles ele vê a
recolocação da antiarte, que aflui simultaneamente à sua e de Lygia Clark. Elaboram
novas abordagens do objeto, um novo campo “pictórico-plástico-estrutural”, em que o
político está implícito na linguagem. Os antiquadros de Dias, assim como as “novas
ordens estruturais de manifestação” de Gerchman (caixas, marmitas, lindonéias, misses,
filas, multidões, times), expõe o mesmo cotidiano violento e dilacerado, embora suas
construções alegóricas sejam diferenciadas. A Dias não interessa o realismo: sua
plástica ilustrativa, à maneira dos quadrinhos, articula fábulas e símbolos, os lugares-
comuns da retórica popular e o imaginário da infância, estruturando o espaço por
simetrias, numa arquitetura rigorosa. A figuração de crimes, paixões e toda sorte de
violência, não decorre apenas das pressões da realidade social, da intensão social
comum aos artistas do tempo, mas de uma estratégia de comunicação. A vitalidade de
seus objetos é fruto de operações em que a simplicidade da ilustração encobre a
elaboração conceitual. Os materiais e o modo de articulá-los integram um projeto
crítico-construtivo, no qual o que vale são as idéias; o objeto “é quase sempre o resíduo
de um pensamento muito mais amplo, e a prática na manipulação desses conceitos é que
libera o artesanato”(...). “O realismo para mim nada significa (...) o que está fora não me
interessa, mas sim o que está dentro (...) A finalidade é comunicar-me com os outros.
Aliás, considero a arte, a pintura, um veículo de comunicação limitado e falho. De
minha parte, não levo em conta o problema estético: a qualidade estética é resultante.
Estou aparelhado tecnicamente para usar os recursos gráficos e procuro com eles me
exprimir sem indagar se isto é ou não estético, feio ou bonito. Vejo três modos de
realizar a expressão: o modo realista, que é a meu ver constatação acadêmica, o modo
39
subjetivo e o terceiro, que é a mistura dos dois. Misturo os dois” .
Como em Dias, o significado social de Gerchman aparece estruturalmente, como
diz Oiticica, na “luta entre plano e objeto”. Interessado no realismo e, como aquele, na
comunicação, seus objetos constróem novas relações de elementos urbanos como uma
40
“redução do real dado” . Operando, nas pinturas-cartazes, a transformação de temas e

38
ARANTES, Otília B.F. Novos Estudos, 15, p. 71-72.
39
Cf. entrevista de A. Dias ao Pasquim, ano VII, nº 325, 19-25/9/75, p. 18; “Entrevista de Antônio Dias e
Rubens Gerchman a Ferreira Gullar”, Revista Civilização Brasileira, Ano I, nº 11/12, dez. 66/marc.67, p.
174-5.
40
PEDROSA, Mário. “Crise ou Revolução do Objeto”. In: Mundo, Homem, Arte em Crise, p. 162.
164

materiais urbanos em signos, à maneira dos jornais populares, registra um imaginário de


deserdados, perseguidos e desaparecidos, com que denuncia a violência urbana.
Radiografia das nostalgias dos subúrbios e do que “acontece dentro das casas”, suas
41
caixas-de-morar retratam a fantasmática que nelas vicejam . A utilização de meios e
suportes variados, – desenho, pintura, objeto, ambientes, imagens e palavras – , às vezes
com redundância, as cores agressivas e a montagem de imagens incongruentes,
produzem a passagem da contestação e do protesto representados à figuração alegórica.
Com isto procede à recodificação da atividade produtiva: seus retratos são, na verdade,
simulacros de realidade; produzem a realidade como cena, em que comparecem as
ruínas de um ambiente humano em desagregação. Como Dias, ensaia uma
“comunicação com a massa”, apontando uma situação; por isso articula processos que
42
pouco diferem “da atividade do marceneiro ou do pintor do cartaz de rua” .
O “realismo” de Oiticica admite outras contribuições. Na de Escosteguy, o
poético e o lúdico compõem “objetos semânticos”, ao mesmo tempo impregnados de
ingenuidade e protesto. Para Oiticica as manifestações dele recolocam, em termos
diferentes do seu e de L. Clark, a questão da antiarte, “como se fora num parque de
43
diversões” . Nos objetos de Escosteguy, as proposições “dialético-pictóricas” provêm
da implicação social do visual e do verbal, em que explora a redundância das
informações para efeito de protesto. Provavelmente, além das afinidades de grupo, o
que leva Oiticica a colocar Escosteguy ao lado de Dias e Gerchman é o modo cool em
que expressa a comum “intenção social”. Ainda na tendência realista do Rio, Oiticica
ressalta, como “ligadas em raiz” aos três anteriores, as experiências de Roberto
Magalhães, Vergara, Glauco Rodrigues e Zílio. Porque iniciais e correspondentes a uma
“outra etapa” do processo dialético-realista, as experiências deles trazem um elemento
novo: uma “ausência exemplar de drama” no tratamento do “conflito entre a
representação pictórica e a proposição do objeto”. Para Oiticica isto se deve ao
amadurecimento do “processo dialético geral”, pois nos macro e microbjetos de
Magalhães, nas experiências múltiplas de Vergara, nas manifestações ambientais de
Glauco e nas estruturas participantes de Zílio, “as intenções são definidas com uma
44
clareza matissiana, hedonista e nova neste processo” .

41
Cf. HANSEN, J.A.”Dados para Identidade em R.G.”. Arte em Revista, Ano V, nº 7, ago. 1993, p. 25-
30.
42
Cf. depoimento de Gerchman em PECCININI, D. Op. cit., p. 147.
43
Cf. Aspiro ao Grande Labirinto, p. 88.
44
Idem, ib., p. 92.
165

O esquema de Oiticica se completa com rápidas referências a artistas de São


Paulo. Reconhece em Waldemar Cordeiro, com o Popcreto, a proposição semântico-
estrutural, em que a “desintegração do objeto físico é também desintegração semântica”,
permitindo-lhe a abertura do significado, “de certo modo também participante”.
Distingue-o do grupo carioca pelo seu “caráter universalista, qual seja o da tomada de
consciência de uma civilização industrial, etc.”. Apesar dessa vagueza de
caracterização, Oiticica não deixa de assinalar o pioneirismo de Cordeiro no conceito de
apropriação. E, ainda vagamente, Oiticica anota como “desenvolvimento independente,
mas fundamental”, o “realismo Mágico” de Wesley Duke Lee, “premissas teóricas”
considera “uma das constituintes principais nesse processo que levou à formulação da
Nova Objetividade”. Contudo, Oiticica mostra-se desinformado sobre os artistas do
Grupo Rex; ao citar Leirner, Resende, Fajardo e Hasser, simplesmente os alinha no
“Realismo Mágico”.

***

As idéias de Oiticica, Sérgio Ferro e Schenberg cifram a busca da unidade de


ação pelos artistas plásticos, de 65 a 68. O AI-5 interrompeu a ação artística e cultural
justamente no momento em que se processavam as radicalizações, que visavam à
revisão das propostas, tensionadas pela irrupção do Tropicalismo. Entretanto, apesar da
repressão e da censura, algumas manifestações ainda tentam manter, senão a
agressividade, o ímpeto de contestação, agora desenvolvendo-se ao nível das operações
desestetizadoras. Até os inícios de 70, justamente com atividades no cinema, no teatro e
na música popular, a vanguarda persiste no experimentalismo, na proposição de uma
nova sensibilidade (já bastante marcada pelas vivências do underground) e sob o signo
da modernidade. A irreverência tropicalista, que aliava experimentalismo, sofisticação
técnica, culto do corpo; auto- referencialidade de linguagem, visão política e jogo com o
mercado; arcaísmos e modernização; provincianismo e cosmopolitismo, gerou um
fenômeno híbrido e complexo que se irradiou na produção artística e cultural até
45
meados de 70.
O Tropicalismo expôs as polarizações e impasses a que tinham chegado as
atividades artísticas e culturais, assim como a crítica e a análise política-social. Sua

45
Cf. Arte em Revista, ano III, nº 5, mai. 1981, p. 3-4
166

radicalidade consistiu na montagem e justaposição de elementos e referências – dados


locais e informações internacionais, vanguardismo e política, experimentalismo e jogo
com o mercado –, por uma prática desconstrutora e descentralizante, operada pela
mistura e indistinção dos antagonismos e contradições. Embaralhando os temas e
confundindo as discussões, reformulou e pôs em xeque os processos de análise e de
expressão da chamada “realidade brasileira”. Deslocou as interpretações hegemônicas,
colocou em recesso as formulações idealizadas, questionou as soluções artísticas
baseadas tanto no mito universalista da cultura como as da “identidade nacional” e do
“popular”. Lúcida, brutalista e violentadora, a crítica tropicalista decorreu da
necessidade, que se punha naquele momento, de radicalizar e de relativisar a atividade
artística no seu empenho de reinventar suas linguagens e relações com a sociedade.
Alvo de acerbas críticas, pois opunha-se às totalizações ideológicas, foi logo depois
valorizada, sendo objeto de análises variadas – estéticas, culturais, políticas. De modo
geral, a valorização decorre não só de sua reformulação dos processos artísticos, mas de
sua posição cultural que identificava o esgotamento da crença no poder imediatamente
político das ações artísticas.
Nas artes plásticas esta posição está emblematicamente representada no
ambiente Tropicália que Hélio Oiticica montou no MAM-RJ em abril de 67, que realiza
a sua formulação do Parangolé, e concretiza o seu Programa ambiental. Nesta
proposição Oiticica determina a sua posição crítica: nela, a “objetivação de uma
imagem brasileira” e a “tentativa ambiciosa de criar uma linguagem nossa” não se faz
pela figuração de uma realidade como totalidade sem fissuras, mas pela devoração de
imagens, via participação, que encenam uma “cultura brasileira”. Através da
intervenção dos protagonistas da manifestação, os elementos e referências culturais são
apropriados, criticados e ressignificados. O ambiente propõe-se como um dispositivo
dessacralizador, em que as significações dadas são desapropriadas, de modo que tanto o
que se designa como a arte com atuação cultural são atingidos em seu valor instituído.
Explorando as assincronias culturais, alegorizando as indeterminações figuradas, encena
as dualidades e presentifica diferenças impedindo qualquer totalização de uma imagem
de Brasil (irracional, exuberante, absurdo, etc.).
Juntamente com a produção do grupo baiano de música popular, com “Terra em
Transe” de Glauber Rocha, com a montagem de “O Rei da Vela” e “Roda Viva” pelo
Teatro Oficina, com Rubens Gerchman, Antônio Dias, Vergara e outros, a manifestação
ambiental de Hélio Oiticica compõe uma referência fundamental deste “momento
167

tropicalista” da cultura brasileira46. Num texto posterior, “Brasil Diarréia” (69/70),


Oiticica explicita a visão cultural criticada no Tropicalismo e, inclusive, denuncia a
diluição daquelas intervenções. Explicita o processo de “conservação-diluição”, a
“convi-conivência”, como “doença típica brasileira”, que leva inevitavelmente ao
“policiamento instituição cultural” e ao cultivo de tradições e hábitos que resistem ao
“destino de modernidade do Brasil”. Propõe uma posição radical e lúcida face aos novos
dados de realidade: a internacionalização da cultura, o mercado, as linguagens
experimentais para enfrentar as “ambivalências” sem exclusões e “dissecar as tripas” do
“brasil diarréia”. Para isto, diz, é preciso enfrentar na “falta de coerência crítica”, que
leva à diluição. Para ele, a resposta estaria na afirmação da atitude experimental e de
uma “posição crítica universal permanente”, entendidos como “elementos
47
construtivos” .
A dimensão construtivista e prospectiva das vanguardas esteve sempre permeada
de ambigüidades, freqüentemente assumidas, na articulação das relações entre arte e
sociedade. A idéia de obra aberta à participação reuniu, com exceções, a produção das
variadas tendências. A própria idéia de participação é ambígua, pois muitas vezes
visando a explorar o distanciamento crítico e o choque, resultou em processo de
identificação de agressor e agredido. Em outras, a participação converteu-se apenas em
oportunidade de exercício do ludismo de corpo e objetos. Em suma, a participação virou
dispositivo psicológico, catártico, ficando longe da ação social conseqüente. Mas,
apesar desse efeito, a produção vanguardista levou ao fim os seus pressupostos estéticos
e gerou o vulto de uma atividade em que a contundência social era indissociável da
experimentação, pois exigida e permitida pelas condições históricas.

46
Sobre o Tropicalismo, cf. FAVARETTO, C.F. Tropicália: Alegoria, Alegria. São Paulo: Kairós, 1979 e
A Invenção de Hélio Oiticica, p. 136 e ss
47
OITICICA, Hélio. “Brasil Diarréia”. In: FERREIRA GULLAR (org.). Arte Brasileira Hoje. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1973, p. 147-152.
168

Das novas figurações à arte conceitual*

Propondo uma nova imagem da arte, a dissolução das distinções entre arte e
vida, e respondendo ao imperativo de posicionamento ético-político, a vanguarda
brasileira da segunda metade dos anos 60 visava a efetivar os princípios da criticidade
moderna. Por sua radicalidade, as proposições celebravam a propalada morte da arte,
rompiam a hegemonia do projeto construtivo e problematizavam o circuito.
Abrindo o vasto campo da colagem, compôs uma ampla atividade pela
apropriação das possibilidades estéticas provocadas pela pulverização dos processos e
códigos modernos desencadeados a partir da pop art. Questionando a autonomia da
pintura e da escultura e o centramento visual-retiniano; desidealizando o conceito de
arte, a tradicional imagem de artista e a recepção habitual, a experimentação dedica-se a
anular o ilusionismo pela valorização de técnicas, temas, retóricas e sintaxes. Desloca a
prioridade da visada sintático-formal para a semântico-pragmática. A proposta de
participação surge como necessidade: de um lado artística, para compor um novo
espaço estético; de outro, cultural e política, para dar conta do imperativo de falar do
país e denunciar a repressão do regime militar.
Desbordando as fronteiras fixadas desde o modernismo, as vanguardas
exercitam a multiplicidade de estilos, a mescla de técnicas, a fusão de gêneros, a ruptura
dos suportes, valorizando o caráter heterogêneo e multidisciplinar da arte. Rearticulando
desenvolvimentos construtivistas, ou simplesmente negando-os; reativando as
proposições duchampianas ou apostando na antiarte; repropondo a representação através
de novas figurações; explorando o aleatório, o eventual, o gesto e os comportamentos, a
vanguarda brasileira produz a abertura do campo estético para inovações, que não são
livres de ambigüidades. Entre a crítica do sistema da arte e a integração do mercado,
entre o esteticismo de algumas experimentações e a significação social perseguida, as
propostas promovem a reavaliação do sentido e da função da arte naquele momento.
A atividade artística do período recobriu uma gama muito elástica de atitudes e
experiências: objetos, ambientes, happening aparecem misturados com pintura e
escultura, abstratas e figurativas, referidos a elementos pop, op, surrealistas, dadaístas,

*
In: RIBENBOIM, Ricardo(org.). Tridimensionalidade. São Paulo: Itaú Cultural, 1997, p. 109-115; 2.ed.,
Tridimensionalidade: arte brasileira do século vinte. São Paulo: Itaú Cultural/Cosac & Naify, 1999.
169

da arte povera, corporal etc. Pode-se dizer que um básico procedimento conceitual se
explicitava em graus diferenciados. Das tendências mais próximas da figuração às mais
desconstrutivas, passando por aquelas que privilegiavam o trabalho com os signos da
comunicação de massa, manifestava-se um básico empenho de auto-reflexão da arte.
Embora multidisciplinar e mesclada, nessa produção podem-se observar
algumas direções prioritárias: nova figuração, antiarte, objetos. Entretanto, o conjunto
dessas experimentações não constituía uma unidade de pensamento. Havia um esforço
de identificar uma “posição específica” da vanguarda brasileira; uma posição coletiva
de sentido ético-estético. Nas significativas exposições Opinião (65 e 66), Propostas
(65 e 66), Salão de Brasília (66 e 67), Nova Objetividade Brasileira (67); nas
intervenções e manifestações como os Parangolés de Oiticica e a Não-Exposição de
Nelson Leirner; nos textos e manifestos dos artistas, a tentativa de formulação de uma
posição crítica, apesar das diferenciações e divergências, gerava a sensação de
movimento aglutinador. No mínimo, como disse na ocasião Sérgio Ferro num debate
entre artistas e críticos, a unidade do que ocorria nas artes plásticas no Brasil não estava
em algum parentesco formal ou nos objetivos específicos, mas na posição agressiva, no
inconformismo, na tentativa ampla e violenta de desmistificação. Para isto, tratava-se de
lançar mão de todos os instrumentos, processos, técnicas e linguagens disponíveis, dos
tradicionais aos modernos, incluindo os da comunicação de massa.
É exatamente nesta direção que a “nova figuração” produziu ressonâncias
estéticas e politizadoras. Embora a expressão, às vezes substituída por “realismo” ou
“novo realismo” fosse confusa, pois englobava manifestações muito distintas como as
de Oiticica, Lygia Clark e Wesley Duke Lee, por exemplo, ela queria contemplar, com
as idéias de participação coletiva e desmistificação político-cultural, o restabelecimento
de relações mais próximas com a realidade do país. Mas os “realismos”, as figurações,
eram vários: Rubens Gerchman, Waldemar Cordeiro, Vergara, Roberto Magalhães,
Flávio Império, Wesley Duke Lee muito se diferenciavam, embora todos emitissem
“opiniões”. Em cada um o experimentalismo agenciava imagens de modo específico,
mais ou menos sintomático, com maior ou menor radicalidade estética. Em cada artista
cumpriria examinar o modo de articulação das imagens e procedimentos: as soluções
estruturais em que coabitam o pictórico, os signos da comunicação, os símbolos
populares; o visual e o verbal; o plano e a tridimensionalidade; as representações sociais
e as fantasmagorias.
170

É naquilo que foi denominado “problema do objeto” que se localiza uma questão
central das experimentações dos 60, que aliás se prolongará com significações diversas,
nos anos 70. As transformações estruturais da pintura e escultura levaram à construção
de objetos com a intenção de superar os suportes e a idéia de obra. Embora nem sempre
isto tenha acontecido, pois os objetos freqüentemente apenas substituíam o quadro ou a
escultura e impunham-se como obra, a concepção de “objeto” foi muito eficaz. Oiticica,
com os seus Bólides e teorização específica pensou de modo instigante o problema. O
objeto não seria uma nova categoria híbrida e sintética acrescentada à pintura e à
escultura, mas uma proposição conceitual que praticamente abre um domínio da arte
contemporânea ativo até hoje. Tal concepção de objeto radicaliza a dissolução estrutural
e propõe outras ordens estruturais, de criação e de recepção; implica a relação objeto-
comportamento, ressignifica o ato artístico e a experiência estética. O objeto, diz
Oiticica, é um sinal que aponta para uma ação no ambiente ou situação. Concretiza a
idéia de procedimento conceitual que redimensiona a participação, a posição dos
protagonistas. Há nos objetos uma imanência expressiva que pode se objetivar de
muitas maneiras: caixas, vidros, pacotes etc., além de proposições em que o corpo
intervém constitutivamente, como no caso dos parangolés de Oiticica e da nostalgia do
corpo de Lygia Clark.
A proposição de objetos é uma dissolução do primado do visual. Enquanto
supõe uma participação diversificada, em que o visual é esbatido no táctil e olfativo, e
para não ser tomado apenas como objeto estético substitutivo de pintura e escultura, o
objeto inclui-se no domínio mais amplo da antiarte, uma fusão de arte e ação
constituindo uma poética que vislumbra a arte como outra coisa. A antiarte propõe-se
como ação simbólica; lugar de produção de ações exemplares que ressaltam a força do
gesto e do conceito, valorizando situações instáveis com ressonância imediata. A
eficácia simbólica provém do simples ato de as ações mostrarem-se. Antiarte é o limite
da desestetização.
A arte dos 60, conceitualista e processual, exasperada e ambígua na efetivação
da negatividade, radicalizou os signos de modernidade vanguardista, especialmente no
seu momento final, o tropicalista. Experimental, violenta e utópica, pensou o sentido
cultural da arte tanto em relação às transformações estéticas na linha da modernidade,
quanto às condições específicas da cultura brasileira. Imaginou a utopia da arte-vida
realizável na atividade coletiva e na participação como conseqüências da destruição das
categorias estéticas tradicionais e transformação do sistema da arte. O corte das ações e
171

no imaginário, provocado pelo recrudescimento da repressão e censura do regime


militar contribuiu decisivamente para pôr em recesso a aposta nas virtualidades das
propostas ético-estéticas.
Algumas atividades ainda tentaram, entre o final de 60 e inícios de 70, dar
continuidade àquelas manifestações aproveitando-se dos estilhaços tropicalistas, mas
foram tentativas agônicas, freqüentemente esteticistas, em que a criticidade decaiu no
lúdico. A poética do instante e do gesto, da ação e do comportamento – ponto extremo
do complexo fenômeno que dominara a arte dos 60 – mesclava, contraditoriamente, já
no final da década signos contraculturais e, contraditoriamente, experimentalismo de
linguagem e recursos técnicos.
Mudanças significativas ocorrem na produção artística dos anos 70, devido a
vários fatores: a investida institucional do regime para a formulação de uma política
cultural e implementação do “milagre econômico”; a internacionalização da cultura e
das linguagens; o desenvolvimento e especificação dos rumos experimentais abertos no
período anterior. Livres dos imperativos dos projetos modernos, do voluntarismo e
rupturas vanguardistas, da necessidade (ou impossibilidade) de tematizar politicamente
a situação brasileira, os artistas passam a explorar um campo de possibilidades.
A década de 70, considerada geralmente como de “vazio cultural”, apresenta-se
complexa e contraditória. Até que ponto o rigor do regime, a ação da censura e a
integração capitalista foram introjetadas na produção cultural? Como as manifestações
artísticas especificaram a internacionalização das linguagens e dos processos
experimentais, sendo ou não permeáveis às sistematizações oficiais? No Brasil, a
impossibilidade de manifestações públicas levou a atividade crítica à marginalidade, a
práticas alternativas que às vezes se tornaram rituais restritos, a ações fragmentadas e
individualizadas.
Nessa situação, as artes plásticas parecem ter caminhado segundo uma lógica
que não expressava tais contradições, desenvolvendo as possibilidades abertas da
experimentação em várias direções. Marcada por uma atitude de positividade frente à
internacionalização e ao mercado, dedica-se a especificar e desenvolver os processos e
procedimentos recentes. Adotando novos materiais – aço, acrílico, plástico, alumínio
etc. –, propondo o múltiplo para a solução do problema da crítica da obra única,
deslocando o conceito de participação pela ênfase quase exclusiva no ludismo, esta arte
conforma as novas possibilidades e imposições do momento: uma mistura contraditória
de experimentalismo, marginalidade e mercado.
172

Considerando cumprida a tarefa de questionamento dos suportes e de conquista


da faculdade de utilizar todas as linguagens, procedimentos e poéticas, os
desenvolvimentos se especificam, freqüentemente chegando aos limites do hermetismo,
outras vezes aproximando-se da produção industrial.
Mas um fato importante se destaca à medida que a época vai liberando a
possibilidade de aparecimento de produções de novos artistas ou da pesquisa daqueles
aparecidos no final dos 60: o procedimento reflexivo, conceitual, vai tomando corpo em
obras que se singularizam. Em Resende, Fajardo, Baravelli, Cildo Meirelles, Leirner e
Cordeiro; em Regina Silveira, Waltércio Caldas, Tunga e outros, percebe-se a afirmação
de um trabalho que dá forma à consciência reflexiva da materialidade da arte. Ainda que
certamente devedores da abertura estética dos 60, parecem caminhar segundo a lógica
da história da arte moderna. Optando pela realidade imediata da arte, pelo seu sentido
imanente, enfatizam os processos e procedimentos conceituais, tensionando os limites
da arte moderna, contextualizando o lugar de aparecimento das obras.
Embora as palavras “novo” e “ruptura” ainda estivessem em franca circulação,
não mais se referiam ao impulso vanguardista; a ênfase no conceitual não elidia a
dificuldade da formalização. A reiteração do novo, embora tivesse algo de inusitado, era
mais uma moeda posta em circulação pelos meios de comunicação açulados pelo
mercado, tendo em vista um público de arte assimilado ao estilo de vida da cultura
técnico-industrial. Os artistas exigentes procuravam entretanto uma outra coisa: dar
forma, buscar formas de gerar pontos de tensão num sistema de atividades tanto
variadas quanto diluidoras das pesquisas vanguardistas. A dificuldade maior estava na
quase impossibilidade de produção de imagens, em parte porque a crítica das
representações efetivadas pelas vanguardas tinha sido eficiente, em parte devido à
rápida obsolescência da apropriação das imagens das comunicações de massa e,
finalmente, porque o procedimento conceitual regrava o uso das imagens na formulação
de linguagens singularizadas.
O domínio do conceitual envolvia uma variedade de experiências: objetos,
múltiplos, arte postal, arte na rua, xerox, gravura, audiovisuais, videoarte, arte do
computador, design, artes gráficas etc. A vertente minimalista, entretanto, retinha o
essencial das proposições conceituais, pois nela pintura e escultura foram retraduzidas
em experiência plástica pura, reduzida a estados mínimos, morfológicos, perceptivos e
significativos. A radicalidade minimalista é tão exemplar quanto a da antiarte. É o limite
dos desenvolvimentos surgidos da crise dos sistemas visuais. A monumentalidade e
173

auto-referencialidade do minimalismo problematiza a circulação das obras, não mais


referindo-as a um público consumidor mas ao percurso institucional da produção e
aparecimento, nos museus e lugares públicos. Contrariamente a boa parte da produção
dos 70, que se mescla à circulação das mercadorias industrializadas, a minimal exige
tensão reflexiva e evidenciação pública para que se efetive a sua eficácia plástica.
Para se evidenciar a complexidade e as contradições da cultura dos 70, cumpre
mencionar ainda alguns fatores que interferiram na paisagem artística: a voga da arte
primitiva, o ensaio de implantação de um mercado de arte, a moda dos múltiplos e a
revalorização da gravura. Em princípio oposta ao conceitualismo, a voga da arte
primitiva é um sintoma do hibridismo cultural do período. Aparece como uma espécie
de reação ao hermetismo da arte de vanguarda, mas é também fruto do interesse pelo
popular enfatizado nos 60, ainda com um certo ar de nacionalismo cultural. É, também,
consonância imediata com o novo plano nacional de cultura do governo militar,
interessado em despolitizar o tema da cultura popular para utilizá-lo como instrumento
de doutrinação cívica na proposição de uma “alma brasileira para o consumo”.
Finalmente, articulada à revivescência do artesanato trazida pelas comunidades
contraculturais, a arte primitiva vem tentar ocupar o vazio de imagens provocado pela
crítica da visualidade. Embora tenha afirmado um certo interesse etnológico e
antropológico pelo imaginário popular, foi um fenômeno comercial que explorou
sentimentalmente a via contracultural de recusa da sociedade tecnológica. Mas, é bom
lembrar, ficaram alguns traços dessa passagem ambígua pelo popular e pela arte
primitiva: permitiu a identificação de formas e imaginários que mais tarde iriam se
fundir a experiências contemporâneas.
A onda dos múltiplos é bastante elucidativa da perda de vitalidade da proposição
do objeto na década de 60, pois aparentemente realizando o acesso generalizado às
obras, pela multiplicação em escala industrial, na verdade o múltiplo não reteve o
aspecto crítico das discussões sobre a reprodutibilidade. Os protótipos de múltiplos
foram logo erigidos em obras únicas, com as características da aura. Foi também um
fenômeno comercial, ligado aos desenvolvimentos do design, vagando entre o
esteticismo dos objetos e o consumo do ludismo. No fundo era uma produção ainda
artesanal.
Já a revitalização da gravura, embora proveniente em boa parte do
questionamento da obra único, é mais interessante, pois permitiu repor em circulação
alguns mestres, como Grassman, Livio Abramo e evidenciar os que ascendiam, como
174

Maria Bonomi, Evandro Carlos Jardim, Renina Katz e muitos outros. A gravura foi
proposta como substitutivo de obras visuais e objetos de fácil circulação no mercado;
entretanto, as novas condições técnicas à disposição e a excelência dos trabalhos
serviram para veicular uma diversidade muito grande de técnicas, procedimentos e
imagens.
A efervescência artística gerada nos inícios de 70 deu a sensação de que se
formava um amplo e diversificado público de arte, sugerindo a possibilidade de
constituição de um verdadeiro mercado. A tentativa foi feita; multiplicaram-se galerias e
leilões, supervalorizando as obras da tradição, inclusive algumas de vanguarda,
contrapostas à efemeridade e à precariedade das proposições conceituais. Artificial, o
boom do mercado não durou, retornando o consumo de arte para os setores tradicionais,
mantendo-se apenas como mais extensivo o interesse pela gravura.
As pesquisas mais exigentes oriundas do conceitualismo prosseguiram no
trabalho daqueles artistas que, atravessando as contradições da época, afirmaram o
sentido reflexivo e a materialidade da arte, não em relação às sugestões e demandas do
mercado, mas segundo o percurso institucional. Problematizando a incompletude do
passado moderno, explorando a tensão do sensível e do inteligível e intervindo sem
violência numa situação artística imprevisível, os trabalhos insistem na exigência de
atenção e pensamento especificados para cada obra, evento ou instalação.
175

O espaço de Lygia Clark*

Nos últimos anos a arte brasileira tem estado em evidência: em boa parte devido
às repercussões da participação de artistas, recentes ou não, em mostras internacionais,
– em Veneza, Kassel e Nova Iorque; em parte devido a retrospectivas, coletivas e,
principalmente, aos debates gerados pela “Bienal Brasil Século XX” e “22ª Bienal
Internacional de São Paulo”. Procede-se a uma revalorização de alguns artistas que
atuaram intensamente nos anos 60/70, alguns sempre lembrados outros quase
esquecidos, embora lendários; e, simultaneamente, à tentativa de fixação de valores
jovens a uma tradição constituída nos anos 80/90. Embora o circuito, particularmente o
mercado, sejam acanhados, a crítica de jornais e semanários tem dado destaque às
diversas manifestações. Parece que no campo das artes, os domínios do plástico, das
intervenções urbanas e das proposições multimídia agenciam interesse, tensionamento
de linguagens e valores notáveis, pelo menos em relação às demais artes.
Sem minimizar a importância do reconhecimento internacional da produção
brasileira, um outro fator sobressai nesta situação: os artistas, críticos e público parecem
reivindicar referências brasileiras para estes trabalhos, fato aparentemente óbvio, mas
que desde os anos 60 não ocorria no Brasil. A abertura do campo artístico e a
redistribuição estética daquele tempo, provocadas pelo pop, pelas radicalizações
minimal e conceitual, lançaram as práticas artísticas no desconhecido e no
indeterminado, tornando obsoletas as reivindicações de nacionalidade, originalidade e
novidade. Pode-se dizer que, depois de um período em que se impôs a repetição de
estilemas, de perplexidade e falta de horizontes, alguma coisa passou a se impor,
lentamente, e provavelmente em virtude do surgimento no Brasil dos debates sobre o
pós-moderno. Equívocos à parte, o debate serviu para desreprimir a produção,
exatamente porque pôs em questão a história dominante da arte moderna e a
conseqüente reavaliação do trabalho de vanguarda. O processo de reavaliação de nossa
modernidade, inclusive a mais recentes, já deixou um saldo positivo: os artistas,
desligados do tabu do novo, vêm tentando elaboras as rupturas e questões modernas,
buscando desenvolver pontos de tensão, lacunas e repressões daqueles

*
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. São Paulo: IEB-USP, n° 39, 1995, pp. 231-6.
176

desenvolvimentos, sem que o apelo à produção internacional funcione como modelo,


mas por trabalhos convergentes, dado o multiculturalismo da sociedade das
comunicações.
Assim, estamos em pleno processo de releitura, reescrevendo a modernidade e
reinscrevendo o contemporâneo segundo a temporalidade gerada pelos ritmos diversos
da experiência cultural. Livre das aporias modernas; descolonizada, mas sem aderência
aos marcos internacionais; contextualizada, mas sem os delírios da brasilidade, a arte
brasileira afirma-se inteligentemente, agora, inclusive, delineando uma política
internacional de exposições. Não deixa de ser interessante notar que artistas e público,
críticos e jornalistas parecem ter feito uma descoberta, para alguns desconcertante: a
arte brasileira contemporânea existe. As repercussões internacionais de algumas
exposições, como que pela primeira vez levando ao descobrimento artístico do Brasil,
certamente têm contribuído para com a evidenciação de artistas; entretanto,
internamente, há muito que se sabia que havíamos inventado alguma coisa forte e
singular. Nas reavaliações e descobertas da arte brasileira, recentemente dois artistas se
tornaram referência obrigatória, erigidos em ícones de nossa contemporaneidade: Lygia
Clark e Hélio Oiticica. A atividade que desenvolveram, dos anos 50 aos 70, propuseram
uma leitura e a elaboração da modernidade artístico-cultural e a abertura para os
trabalhos contemporâneos.
O livro de Ricardo Fabbrini1, nomeia, esclarece e valoriza adequadamente a
atuação exemplar daquela artista face aos desafios e necessidade que se impunham
naquele momento em toda parte. É trabalho rigoroso, de reconstrução da trajetória de
Lygia Clark e interpretação de seu pensamento (da posição estética que deriva das
experiências e des textos), articulando o artístico ao cultural, as intervenções estéticas às
exigências éticas propostas naquela situação histórica de radicalismos. O autor não cede
à tentação de valorizar a artista “do exterior”, isto é, seja em função da quase
unanimidade crítica que a envolvia, seja em relação aos desenvolvimentos de vanguarda
então em vigor (concretismo, neoconcretismo, conceitualismo, arte pobre etc.). Procede
à análise da produção (das atividades e dos textos) aliando análise interna, referências
teóricas, momento artístico e crítica cultural.
Como é imprescindível quando se reescreve a trajetória de um artista em
consonância com as práticas históricas em que emergiu, Fabbrini vê os diversos lances e

1
O espaço de Lygia Clark. São Paulo: Atlas, 1994.
177

sucessivas rupturas do trabalho de L. Clark como determinando um continuum orgânico


já prefigurado nos projetos modernos, contudo original dentre outras iniciativas
semelhantes (como a de Oiticica, por exemplo). De fato, a crítica e o abandono do
suporte, a passagem da pintura ao objeto e aos ambientes e, enfim, a chegada aos
processos de vida como arte e, inclusive, o abandono às referências artísticas, é trabalho
levado a efeito coletivamente; mas L. Clark o faz com rara eficácia, pois o seus “atos”
tinham a contundência dos gestos simbólicos, voltados para as potências do puro viver.
L. Clark julgava-se uma “catalizadora do momento”, uma “inventora pura”, de modo
que ao realizar suas proposições não tinha como parâmetro o que faziam outros que
operavam na mesma direção; a proximidade aos artistas que, com ela promoviam a
ruptura neoconcreta, antes a instituía mestre que caudatária de experiências.
A análise de Fabbrini, da seqüência de proposições de L. Clark, não se contenta
com a descrição e elucidação da trajetória e intervenções (sobre os procedimentos, idéia
de arte e destinação), embora o faça admiravelmente. Para destacar o pioneirismo e a
originalidade do trabalho da artista, o autor escava as referências (culturais, filosóficas,
psicanalíticas), sejam as reconhecidas ou assumidas, sejam aquelas provenientes do
debate intelectual e da crítica de arte que saturavam o meio (artístico-cultural). E, acima
de tudo, ele surpreende o desejo que impulsiona e diferencia as rupturas experimentais,
subordinando as descontinuidades ao processo de identificação do sujeito desejante.
Uma declaração de L. Clark lhe é cara: “A gente trabalha na realidade com aquilo que
os franceses chamam fenda, aquilo que você tem dentro e que é seu defeito interior,
pessoal. Quando fazemos arte, no momento de fazer, conseguimos nivelar esse buraco,
esse defeito interior, pessoal”. Assim, vinculado a referências que a própria artista
reconhece, Fabbrini pensa as proposições não penas como fenômeno estético, mas a
motivação que o conduz segundo perspectivas interpretativas abertas pelos “filósofos da
diferença” (Barthes, Foucault, Deleuze, Lyotard), por ela aludidos. Pensando a fenda, a
“fissura”, surpreende em L. Clark as virtualidades do acontecimento, aquilo que, para
Deleuze, torna-se “a quase-causa do que se produz em nós”. Lygia, diz o autor, “pensará
sua própria atividade artística como uma reconciliação entre o sujeito que deseja (uma
presença rasgada por uma ausência) e o objeto deste desejo (uma recordação ou uma
esperança de reencontro que torne presente uma ausência)”.
A fenda está presente no trabalho de Lygia Clark desde o momento da invenção
da “linha orgânica”, com que introduziu mudanças radicais nas pesquisas concretas e da
nova abstração americana. Ao invés de continuar exercitando a sintaxe de cores e
178

geometrias; ao invés de escalavrar ou minerar o vazio da tela, propõe a sua anulação. O


salto para o “objeto” e para os “atos”; para a “fantasmática do corpo” e os “objetos
relacionais” é conseqüência mais do interesse em processos de vida do que na “arte”.
Restam, é claro, apesar dos esforços em contrário da artista, procedimentos que são
resíduos artísticos, pelo menos uma poética, pois a ausência de forma, enquanto busca
uma linguagem anterior à sintaxe, propõe o sensível e o sensorial; o corpo, o contacto e
o organismo, como vultos de um estado da arte sem “arte”.
Acompanhando o desenvolvimento dos capítulos do livro, pode-se constatar a
excelência da análise de Ricardo Fabbrini. Em “A morte do plano”, ressalta a ruptura
para com o projeto concretista: superfícies e espaços modulados, projetos ambientais,
propõem o “espaço externo” como extensão do quadro; a “linha orgânica” configura o
espaço plástico sem o quadro: é a fenda que irrompe no plano; linha ativa que elimina a
possibilidade (latente na pintura concreta) de qualquer representação: “uma nesga de
nada situada na fronteira da visualidade”. Rumo ao “espaço incorpóreo” (sem suporte),
que realizaria já nas ambições de Maliévitch, Tátlin e outros a “integração das artes”,
Lygia recria investigações neoplásticas por efeitos de “interação cromática produzida
entre superfícies adjacentes”. Mas este limite construtivo só interessa enquanto permite
explorar os “rasgos de espaço”; espaço ativo da “linha orgânica”, que explodido lança a
pintura no espaço; o, assim chamado, espaço real. Neste ponto Fabbrini percebe, fina
análise, “o estremecimento de um plano que, invalidando qualquer tentativa de
focalização pela articulação de unidades simples e padrões, acaba por mobilizar suas
sensibilidades inconscientes mais profundas”.
Ao rastrear “Casulos”, “Bichos”, “Obra mole”, “Abrigos poéticos”, “Caixas” e
“Trepantes”, com que Lygia conquista o espaço ambiente em consonância com outros
artistas que lançam a produção brasileira na febre do “objeto”, Fabbrini explicita a
gênese, a estrutura e a disponibilidade à manipulação desses artefatos (ou dispositivos
libidinais) para neles flagrar a metáfora do organismo na participação táctil. A passagem
ao “Ato” dá-se em “Caminhando”: a obra é o ato, o ato é a obra. Chegada à poética do
instante e do gesto, o “ato” afirma a potência do desejo, desterritorializando ações e
significados cristalizados. Busca do ato livre, inventino, o comportamento dos
participantes integra subjetividade, organismo e ambiente, que é sensibilizado.
O processo desatado por “Caminhando” desdobra-se em proposições que
pretendem abandonar de vez as conotações estéticas, em proveito de ações lúdicas que
visam a “novos modelos de relacionamento grupal”. Tendendo já a manifestar
179

acontecimentos corporais de liberação de repressões e recalques, incidindo na


“Fantasmática do corpo”, proposições como “Nostalgia do corpo”, “Respire comigo”,
“Máscaras sensoriais”, “A casa é o corpo”, dentre outras, anunciam a futura terapia dos
“Objetos relacionais”. Ao descrevê-las, Fabbrini associa os elementos de acaso,
imprevisto, ausência de regras e vivência do instante, presentes nesta abertura à
disponibilidade criadora, ao gesto contracultural que se alastrava no final dos anos 60.
Lygia Clark não foi insensível a tais florações do desejo; viu nelas algo sintonia com
suas pesquisas e desejos.
Na França entre 1970 e 1976, vivendo na Sorbonne o clima pós-68, L. Clark
radicaliza-se ainda mais com a proposição do “Corpo coletivo”, de que “Baba
antropofágica”, “Rede elástica”, “Canibalismo”, “Cabeça”, são exemplos, dentre outros.
Em condições culturais e liberdade política ausentes no Brasil, ela elabora seu
pensamento em contacto com as teorias e filosofias do desejo, com a psicanálise. O que
ocorria culturalmente na França, diz Fabbrini, “deu atualidade à pesquisa de L. Clark,
que avançava coerentemente desde o final dos anos 50”: pela coletivização das ações,
não só desbancar o artista do “papel pioneiro na criatividade”, como responder às novas
posições e aos novos valores propostos na contracultura. Fabbrini assinala que Lygia
viveu então a utopia de que “os jovens não se limitavam, como artistas, a representar
simbolicamente uma nova possibilidade de rearticulação do real, ou mesmo a propor
situações que estimulassem o desenvolvimento de novas formas de sociabilidade; eles
cavocavam na vida diária, diretamente, com o próprio corpo, o muro que encobre a
luminescência sedutora de um novo lugar”. Trabalhando com jovens, Lygia via a
possibilidade, no ludismo, aceder à fantasmática do corpo, – vivência de desrepressão
anti-autoritária, promovendo o alargamento da sensibilidade e da consciência. Ações de
investimento de desejo, visavam à reinvenção dos valores e a constituição de novas
vivências sociais. Esta a sua utopia, operada pela relaxação”.
Retornando ao Brasil em 1977, Lygia prossegue este trabalho com dispositivos
sensoriais: desenvolve a atividade terapêutica pelo contacto corporal dos pacientes com
os “Objetos relacionais”, estágio final de sua experiência. O trabalho distingue-se das
“terapias corporais” e da “arte-terapia” então em voga, afastando-se dos procedimentos
que lidam com doenças diagnosticadas pelos discursos da medicina, da psicopatologia,
da psiquiatria e mesmo da psicanálise. Ricardo Fabbrini esclarece o sentido da terapia
com “objetos relacionais”: busca a “atualidade” das “vivências interiores” de um corpo
no espaço, por uma poética da integração individual de estruturação do self. Terapia
180

pré-verbal, pois não elege, segundo o autor, “a investigação lingüística o veículo de


interpretação dos processos psíquicos do sujeito; seria a percepção dos próprios desejos
e não a compreensão verbal e intelectual de sua dinâmica (de acordo com o método
psicanalítico convencional) que deveria produzir um real efeito curativo”.
Os “objetos relacionais” são dispositivos que nem se aproximam dos objetos
artísticos, nem possuem propriedades sensoriais por si mesmos; instituem-se
terapêuticos pelo toque, pela qualidade do contacto corporal: “é a relação entre a
realidade psíquica interna e o mundo externo, mediada pelos sentidos, que define a
fantasmática do paciente”. Assim, o “o objeto relacional é um objeto transicional (...)
um objeto que nega a separação entre subjetividade e objetividade”, levando o
participante “a reviver um estado anterior à separação entre o sujeito e o objeto”. Sacos
plásticos com águas ou ar, colchões com bolinhas de isopor, lençóis, almofadas, pedras
etc. aplicados às diversas regiões do corpo visam a efeitos determinados, como, por
exemplo, a ativação da sexualidade genital; estimulam o envolvimento táctil por
surpresa e curiosidade. Friccionados ao corpo, apalpados; deslizando sobre a pele,
massageando, alisando, os objetos relacionais provocam a sensação de integração,
“fechando os buracos”, soldando as fissuras. Lacan, Winnicott e Melanie Klein,
segundo o autor, aí estão presentes, na recomposição da “memória corporal”.
Lygia Clark sabia estar mexendo em zonas proibidas, posto que desestruturantes,
inclusive de si própria; anos antes de morrer abandonara sua atividade, pelos demônios
que desatara. Restou o sonho de um pensamento e intervenção vital que, partindo das
possibilidades da construtividade na arte, chegou à construção de processos de arte
como vida. Ricardo Fabbrini aceitou o repto de entender a violência secretada por um
projeto de fazer da arte uma pulsação de vida. E o fez muito bem.
181

ANEXO

Sobre PanAmérica*

Notável foi o ano de l967: “Terra em Transe”, “O Rei da Vela”, “Nova


Objetividade Brasileira”, o ambiente “Tropicália”, de Hélio Oiticica, a explosão das
canções tropicalistas e este livro lendário, mas até agora pouco conhecido, de um artista
também lendário.
No prefácio desta nova edição de PanAmérica, Caetano Veloso lembra o
impacto do livro antes do aparecimento de suas canções tropicalistas – uma informação
importante, pois esclarece ainda mais a concomitância de referências que presidiram
aquelas produções. Com efeito, é evidente a sintonia entre o modo de enunciação em
muitas dessas canções, a narrativa de Agrippino, as imagens visuais de artistas da
“Nova Figuração” e o ambiente de Oiticica. As semelhanças são estruturais, de
linguagem e operação de descentramento cultural. Construtivistas e dessacralizadoras,
elas recolocam as relações entre fruição estética e crítica social fora dos parâmetros
fixados pela oposição entre experimentalismo e participação, enfatizando não os temas,
mas os processos e procedimentos.
Nos anos seguintes, o interesse por Agrippino e seu livro só se fez confirmar.
Em 1976, Gilberto Gil musicou um fragmento do livro com o título “Eu e Ela
Estávamos Ali Encostados na Parede”, canção incluída no disco “Doces Bárbaros”; em
1977, na canção “Gente”, Caetano cita Agrippino como um dos que são “gente espelho
da vida doce mistério”; no ano seguinte, em “Sampa”, junto a marcas e emblemas
culturais de São Paulo, o livro de Agrippino também comparece na cascata de
referências (“panaméricas de áfricas utópicas túmulo do samba mas possível novo
quilombo de zumbi”).
Em 1981,o número 5 de “Arte em Revista”, dedicada à documentação e análise
da produção artístico-cultural do final dos anos 60 e inícios de 70, reproduzia textos de
Agrippino acerca de “Rito do Amor Selvagem”, encenação multimídia inovadora,
concebida por ele e Maria Esther Stokler, em 1968-69, a partir de alguns fragmentos da
peça “Nações Unidas”, escrita em l966 e ainda inédita.

*
Texto publicado no Jornal de Resenhas, n. 75, com o título “A outra América”. São Paulo: Discurso
Editorial/ USP/UNESP/UFMG/Folha de S.Paulo, 9/6/2001,p. 1-2.
182

E, finalmente, em 1988,a editora Max Limonad relançou PanAmérica, com a


mancha gráfica do texto semelhante à esplendorosa edição original. A segunda edição
também passou desapercebida e, depois disso, fez-se um longo silêncio sobre o livro,
até esta terceira edição.
Já em 1965 o aparecimento de Lugar Público, seu primeiro romance, foi
surpreendente na produção daquele tempo. No horizonte de uma literatura marcada pela
temática da participação política, seja pela via da instrumentalização da linguagem, seja
pela alegorização da revolução, que se acreditava em curso, o livro de Agrippino
destoava pela forma com que tais temas apareciam. Destoava também de algumas
poucas tentativas na ficção, que nem chegaram a se consolidar como obras, de fazer
neste gênero o que se fazia na poesia experimental de várias extrações. O livro mostra
assimilação singular dos processos básicos das invenções literárias do século 20. A
narrativa flui ininterruptamente, sem divisão de capítulos e seccionamento de lugar ou
tempo, como assinalou, com seu apurado faro para os talentos que surgiam, o crítico
Nogueira Moutinho: “tecnicamente um romance sem assunto, (...) escrito sem luvas,
sem assepsia, sem desinfecções prévias, romance em estado bruto, no qual se dá
transmutação da realidade em linguagem”1.
Neste romance já aparece a representação da realidade moderna, mais
precisamente da banalidade cotidiana, como um cenário, em que a vida moderna
representa-se como espetáculo. Insipidez, maquinismo, velocidade, multidões, anúncios,
cinema, mitologias da cultura de massa – índices da vida urbana da sociedade industrial
que reapareceriam em PanAmérica –, compõem uma narrativa sem história. Os objetos
e os acontecimentos carecem de presença, pois o excesso de visibilidade desvaloriza os
objetos e suas imagens.
Entretanto, se Lugar Público é um romance em que ainda se reconhecem
elementos da profundidade, embora não psicológica, da narrativa moderna, pois enfatiza
a reflexão sobre a banalização da experiência e o esvaziamento da consciência,
PanAmérica já não é um romance. Classificado por Agrippino como “epopéia”, pode
ser considerado um caso particular das maleáveis formas ficcionais que, articulando
várias tendências experimentais abriram o campo da escrita.
A produção tropicalista notabilizou-se pelos desregramentos que produziu nas
linguagens e nas relações da arte com seu contexto. De um lado, propiciou a absorção

1
Artigo publicado na Folha de S.Paulo. Rep. em NOGUEIRA MOUTINHO, J.G. A Fonte e a Forma.
Rio de Janeiro: Imago, 1977,p.34-37.
183

criativa das transformações que a pop art disparara: o grande mundo da colagem, da
mescla estilística, das justaposições e procedimentos técnicos e tecnológicos inusitados.
De outro, uma mudança significativa nos modos de expressar e tentar transformar em
ação as significações políticas e sociais, fazendo incidir as contradições nos
procedimentos.
PanAmérica participa com destaque destas duas dimensões, dando uma solução
até então não conhecida na literatura de vanguarda do Brasil, cuja contundência provém
em grande parte de ter dado à mistura de referências culturais um corpo sensível tão
emblemático quanto o das canções tropicalistas e o de artistas plásticos como Antônio
Dias, Gerchman, Roberto Magalhães, Claudio Tozzi, Aguilar, Wesley Duke Lee , por
exemplo. Não é a toa que a capa da primeira edição é de Antônio Dias, ilustrada com
uma imagem dos violentos quadros narrativos, plasticamente brutais, da “Nova
Figuração”, como “The American Death”; em que o imaginário que circula na
sociedade de massas está conectada à denúncia da dominação.
Texto delirante que finge um efeito de real, a epopéia de Agrippino funciona
como uma alucinação, uma fantasmagoria toda feita de cacos, de estilhaços da cultura,
na feliz imagem de Evelina Hoisel, no pioneiro livro em que se tratou com propriedade
histórica e analítica a obra de Agrippino2.
Blocos narrativos descontínuos se sucedem, construindo hipérboles de aspectos
das mitologias contemporâneas: sexualidade, luta política, astros cinematográficos,
personagens dos esportes, da política, são agenciados numa narrativa despsicologizada e
descentrada, irredutível a um painel ou a uma imagem totalizadora, qual uma alegoria
do Brasil. São designados e hiperacentuados aspectos da cultura, simultaneamente
satirizados, pois a linguagem que os pressupõe simbólicos é desconstruída.
Procedendo por via expositiva, indiciada pelo uso reiterado da conjunção “e”, o
campo onde a narrativa se institui é fragmentário e lacunar. As referências e fragmentos
da cultura são articulados em ritmo cinematográfico, com cortes e fusões.
Escrita tóxica, violenta, com o excesso de imagens e reiteração dos mesmos
elementos, induz o leitor à desvalorização dos objetos designados, com que se dá a
destruição da própria imagem. Assim, pulverizando os códigos de produção e recepção,
reiterando o visível , hiperbolizando a representação, o texto desmobiliza as
expectativas do leitor que nele procuraria um sentido, uma significação profunda, uma

2
HOISEL, E. Supercaos, os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1980.
184

crítica como a da alegorização abstratizante do contexto político-cultural brasileiro, que


então era corrente na produção cultural do período 1965-69. Exterioridade pura, a
narrativa corrói o sujeito da representação. O eu reiterado que o narrador dissemina no
texto não fixa nenhuma identidade, antes a pulveriza. Não sendo posição de um sujeito,
o eu é apenas um efeito enunciativo submetido a um regime técnico, homólogo ao da
narrativa cinematográfica. Máquina histérica, a enunciação é ritmada pela repetição, o
que pode ser associadado à forma industrial da produção cinematográfica.
Epopéia contemporânea do império americano, como disse Mário Schemberg na
apresentação da primeira edição, o livro tematiza mitologias da cultura da sociedade
industrial. Nesta narrativa ciclópica, os tipos gerados pela indústria cinematográfica de
Hollywood são apresentados como naturais, quando são, na verdade, convencionais.
Astros e estrelas, intercalados pela aparição de políticos, esportistas e outros
personagens, entram na cena e dela saem, sem nada que justifique ou requeira.
propriamente uma ação. Os atos e gestos que desenvolvem são típicos, indiciando
emblemas do imaginário imperialista. O narrador, nem herói, nem anti-herói, vaga por
entre camas e outros cenários cinematográficos, às vezes como um herói, logo
desmentido, que quer destruir o império, destruindo o gigante Joe Di Maggio e
conquistando a bela Afrodite, Marylin Monroe, personagem-ícone de Agrippino.
Tomando a forma de uma superprodução hollywoodiana, como “Os Dez Mandamentos”
de Cecil B. de Mille, outro ícone, reconstruindo detalhes das filmagens, cenários,
processos e técnicas, expõe a produção da ilusão, como se fosse o desenvolvimento de
uma construção romanesca, que configurasse a epopéia de conquista e destruição do
grande império do norte.
Mas as encenações cinematográficas com as constelações do império são
alternadas com outras encenações, como que abastardando as referências: são as cenas
da outra América, que não se submete aos planos de uma operação panamericana,
referência clara à política norte-americana de intervenção em alguns países, sob a capa
de uma operação pela paz, na verdade de dominação, disfarçada de luta contra a
propalada influência comunista. Na epopéia, a única possibilidade de resistência é a
guerrilha, pois forma política atópica, desterritorializada, a única que age, não com a
força, mas com astúcia.
A referência à situação histórica brasileira é óbvia. O golpe de 1964, as
passeatas, a repressão do governo militar, o aparecimento da guerrilha urbana, o clima
de terror, a identificação da resistência ao regime com o Partido Comunista, são alguns
185

dos índices. Mas há outros, culturais, como o índio brasileiro, na vitrine de uma cidade
americana, nu, enfeitado de penas e com o enorme e mole pênis que caía até o joelho,
portanto exangue, desenergizado à custa da exploração. Este objeto exótico, imagem
brasileira pronta para exportação e consumo, é um raro signo motivado da narrativa, a
única manifestação, salvo engano, de um sujeito historicamente afirmado: “eu sofria
internamente, (...) gritei de ódio”. Acoplado às referências brasileiras, percebe-se que,
intencionalmente, a guerrilha estende-se para toda a América do Sul e Central,
indiciando-se nisto o despertar da solidariedade latinoamericana, significada
principalmente na figura exemplar de Che Guevara.
Fundindo a imagerie que procede da pop art, onirismo e técnica expositiva do
novo romance francês, o texto explora o distanciamento de qualquer realidade,
representando a representação. Assim, a obsessão erótica não se fixa como finalidade,
portanto em exploração da pornografia, pois a sexualidade é aí apenas um objeto
dessublimado, pronto para a circulação no regime do capital;mais uma das imagens
reprodutíveis e permutáveis que o sistema do espetáculo agencia. Os acontecimentos
são narrados para um olhar de fora, com uma objetividade técnica, excluindo-se
qualquer envolvimento afetivo. Como um dos seus efeitos críticos, evidencia a
alienação que informa a produção da espetacularização da cultura, pois ao levar a
representação até o ponto em que a consciência racha, institui os objetos como algo já
conhecido, destituídos de presença
Puro heteróclito que resulta da montagem de referências culturais disponíveis na
sociedade de consumo, em que sobressaem as imagens visuais, o romance opera um
realismo espectral em que a história é desapropriada de suas significações, pois a
cultura, naturalizada, é reduzida a fatos, à pura objetividade dos acontecimentos virados
notícias. Entretanto, por efeito da encenação, a história reaparece com brutalidade neste
realismo delirante. Na apresentação de “Rito do Amor Selvagem”, Agrippino
caracteriza o processo de composição do texto e da encenação como mixagem, por
analogia com o que no cinema é a mistura de várias faixas de som, diálogos, ruídos e
música; nele a mistura dos meios, de diversas midias, articulam informações,
fragmentos, na simultaneidade. A falta de fé no poder da palavra, diz ele, levou-o ao
que denominou “texto de desgaste”, todo calcado nos estereótipos, restos e cacos da
cultura de consumo, significantes-objetos industriais prontos para a circulação, em que
o desejo é reificado. É o mesmo processo da composição de PanAmérica, em que uma
ritualização sem fundo fixa como realidade a simples aparência, substituindo os valores
186

simbólicos da cultura e a profundidade da experiência interior das tramas romanescas


em pura exterioridade de acontecimentos que viram ícones ou emblemas.
A fabricação artificiosa que o texto evidencia é efeito da repetição dos mesmos
significados, típico processo inerente aos períodos de saturação cultural. O vazio de
realidade é a sensação que fica ao final da leitura. Mais propriamente, a volatilização do
simbólico na narrativa, com que não se tem mais um romance, mas uma ficção objetiva
em que a história é desarticulada, por efeito da técnica narrativa, e reduzida a acúmulo
de clichês, objetos, materiais e comportamentos industrializados que, segundo
Agrippino, têm uma “presença superior”. Daí o seu fascínio.
187

Por que Hélio Oiticica?*

A pergunta não é irrelevante, nem simplesmente provocativa. A associação de


Oiticica a Duchamp salienta muito mais uma atitude crítica sobre a arte e o seu sistema
que a singularidade das invenções. Oiticica pouco se referiu em seus textos a Duchamp
e quando o fez, passageiramente, estabeleceu distinções inequívocas entre as duas
experiências. Em Anotações sobre o READY CONSTRUCTIBLE, de 21 de agosto de
1978, diz: “O READY CONSTRUCTIBLE substitui – herda o conceito de
READYMADE INOVA-O ele instaura FUNDA ESPAÇO”. Em outra, de 5 de
novembro de 1979: “READY CONSTRUCTIBLE (MADE) OBJECT: a relação
comandada veta referência à terminologia-invenção de Duchamp (o READYMADE) é
tão indireta e longínqua quanto este (DUCHAMP) aos tromp-oeils da arte francesa:
DUCHAMP se relacionaria até mais perto daqueles do que eu dele”.1
Mas é certo também que a proposição da antiarte ambiental, a idéia e o processo
de apropriação, a valorização do movimento e do jogo e, principalmente, o primado da
participação nos bólides e parangolés admitem conexões com idéias e processos
duchampianos. Entretanto, mesmo nisso é preciso cuidado: são registros singulares que
estabelecem códigos e modos específicos de comportamento; em cada um, o trânsito
entre a proposta estética e o sentido ético das intervenções manifesta entendimento
diverso da crítica da arte e das relações entre arte e cultura.
Transformadores, ambos ressignificam o que é designado como Arte; um pelo
gesto de recusa, pleno de sarcasmo e humor, das suas circunscrições estéticas e
culturais, confundindo componentes e diluindo as margens do sistema que a identifica;
o outro, mobilizando um programa de matriz construtivista que, progressivamente,
interceptando subjetividade e significação social, encaminha-se para a diluição das
estruturas pela inclusão das vivências e respondendo ao imperativo imediato, e
brasileiro, de desmistificação cultural. Oiticica retoma, dentre outros, aspectos
essenciais do gesto duchampiano – reconceituando a arte, desintegrando seu objeto,
redimensionando a posição cultural dos protagonistas –, mas o seu impulso é outro,

*
in BOUSSO, Daniela et al. Por que Duchamp? Leituras duchampianas por artistas e críticos
brasileiros. São Paulo: Paço das Artes/Itaú Cultural, 1999, p.78-89.
1
HÉLIO Oiticica. Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica/Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996-7. p.199-
200. (Catálogo de exposição).
188

visionário: atingir um “estado de invenção”, um além-da-arte. Ambos coincidem, é


certo, no desejo de reconciliação de arte e vida, pela superação da idéia moderna de
obra de arte e da autonomia do estético.
O dispositivo duchampiano funciona por interruptores num sistema artístico
consagrado, desmobilizando, com estratégias calculadas, as idealizações que recobriam
o conceito e as práticas, ironizando as elaborações da história da arte, pois o que lhe
interessa é a arte de viver. Oiticica refere-se ao “mundo da arte” visando, inicialmente,
renovar, depois, intervir numa situação artístico-cultural e, finalmente, reinventar sua
imagem. Duchamp explora, evidenciando, a cisão entre o homem e o artista, este e a
cultura; Oiticica repropõe a arte como um modo de atuação cultural. Duchamp acha,
imediatamente, a liberdade; Oiticica busca, programaticamente, a “disponibilidade
criadora”. Não é por menos que, nos seus últimos anos, dizia ter finalmente chegado ao
“estado de invenção”, que estava apenas começando, pois a trajetória experimental
desencadeada pelo parangolé tinha sido um “prelúdio ao novo”, que vinha chegando.2
Referindo-se sempre ao sistema da arte, pondo entre parênteses a idéia moderna de arte,
a ironia duchampiana é metacrítica; Oiticica visa à fundação do campo contemporâneo
da arte como arte-vivência.
O imaginário de Oiticica é o que desliga os simbolismos da arte, interessando-se
pela função simbólica das atividades em que a imaginação pessoal investe-se no
imaginário coletivo, para tornar o indivíduo “objetivo em seu comportamento ético-
social”.3 A abertura das estruturas anteriormente realizadas, dos metaesquemas aos
bólides, é requisito tão importante quanto a recusa da casualidade e do espontaneísmo
derivado de uma suposta criatividade generalizada. Eliminar as circunscrições habituais
da arte, liberar a fantasia, renovar a sensibilidade e ampliar a consciência são efeitos de
práticas, de “exercícios para o comportamento”, que coletivizam ações. São práticas
reflexivas, desterritorializantes, pois, pela participação, desnormativizam as
significações artísticas e culturais fixadas.
Oiticica chegou ao parangolé, entendido como um “programa in progress” que
formula ordens de experiências, expandindo e atualizando operações construtivistas ao
espaço das vivências, a partir de uma original concepção de “sentido de construção”.
Uma ampla tendência construtiva da arte moderna – Tatlin, Malévitch, Mondrian, etc. –
compõe-se com sugestões de Schwitters, Pollock, Rothko, neoconcretos, Lygia Clark,

2
PECCININI, Daisy V.M.(org.). Objeto na arte: Brasil, anos 60. São Paulo: FAAP, 1978. p.190.
3
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p.103.
189

entre outros, para explorar “possibilidades ainda não desenvolvidas”. Pressupostos e


práticas construtivas aliam-se a experiências desestetizadoras na eliminação de
formalismos tanto no horizonte geral da arte moderna como, particularmente, no da
vanguarda brasileira. A “descoberta do corpo” no parangolé recodifica e transforma o
sentido estrutural pela assimilação do “mundo ambiente”, convertendo o espaço estético
em espaço de experiências abertas. As estruturas dissolvem-se, transformando-se em
“receptáculos abertos às significações”; o corpo vira signo em situação, dotado da força
do instante. A estrutura é agora o próprio ato expressivo, liberando o desejo pela
participação.4
Operações transobjetivantes, os parangolés não são obras ou objetos; as
estruturas produzem-se como eventos, instáveis e móveis, à medida que objetos e
materiais apropriados são usados. Extensões do corpo, salientam ações e gestos
esplendentes de cor; ampliam e intensificam o tempo da participação, abrem espaços.
Exaltam a fantasia, a visualidade espetacular, o êxtase da dança. Eliminam os resíduos
contemplativos ainda existentes nas proposições anteriores e geram um campo
experimental com as imagens, a cor, o espaço, o tempo e o movimento; violam o “estar”
dos participantes como indivíduos no mundo, transformando-lhes os comportamentos
em coletivos. São dispositivos que salientam uma outra ordem do simbólico: uma
poética do instante e do gesto.
A ênfase na proposição vivencial não pode ser, contudo, assimilada a
compreensões equivocadas da designação “antiarte”, que a incluam nas chaves do
irracionalismo, da arte corporal, da arte pobre, da arte objetual, etc. A antiarte ambiental
requer processos rigorosos para materializar a idéia: as proposições para a participação
supõem experiências de cor, estrutura, dança, palavra, estratégias de sensibilização dos
protagonistas e visão crítica na identificação de práticas culturais que mereçam ser
transgredidas. Não há uma estética da antiarte; ela é um procedimento conceitual e
reflexivo. Estrutura e cor, gesto e comportamento são pulsações que não mais se
referem ao espaço plástico. Sistema crítico, o ambiental evidencia a produção como
significativa, dessublimando a arte.
Na trajetória experimental de Hélio Oiticica, a passagem da participação
planejada dos núcleos e penetráveis para a participação aberta do programa ambiental
ou parangolé é ressaltada pelos bólides. A idéia e os processos de apropriação tornam-

4
Ibidem, p.65 e ss.
190

se princípio operante da abertura estrutural que consolida o primado da participação. E é


aqui que se observam as afinidades, assim como as diferenças, em relação às
proposições duchampianas, especialmente o readymade. Os bólides concentram, e
prefiguram, como protótipos, as possibilidades dos desenvolvimentos ambientais:
situam-se ambiguamente no espaço plástico (estrutura e pigmento de cor) e fora dele
(permitem experiências sensoriais e lúdicas); são incursões mágicas na arte e na vida,
situando-se entre as obras e as coisas, articulando construtividade e vivência. Neles,
flagra-se o momento que apenas precisa de um gesto para desatar a definitiva superação
do mundo da arte. São “estruturas primordiais” do processo de instauração das ordens
ambientais, células germinativas dos futuros projetos e, ao mesmo tempo,
especificações das virtualidades do núcleo de cor, centros nucleares de energia, aptos a
irradiarem-se no espaço. São estímulos perceptivos e mentais que excitam
comportamentos renovados.
Estruturas contidas de cor – caixas, sacos, latas, bacias, feitos de materiais
diversos, abrigando areia, terra, carvão, água, anilinas, etc. –, portanto, objetos pré-
moldados contendo elementos que exaltam a cor em estado pigmentar, destinam-se os
bólides a experiências exploratórias da cor imanente, para serem desvendadas as
virtualidades da luminosidade intrínseca dos materiais. Visando ressaltar o seu caráter
operatório, Oiticica caracterizou-os como “transobjetos”, “estruturas de inspeção” e
“estruturas transcendentais imanentes”. As designações afastam o caráter de obra-
objeto, propondo-os como signos: indiciam o ato de explorar, manipular, descobrir –
com que se libera sua carga expressiva.
O princípio operante na composição dos bólides é a apropriação, a prática
construtiva que, surgida com a colagem cubista, o readymade duchampiano, o objet
trouvé surrealista e o merz de Schwitters, se constitui em procedimento fundamental da
assemblage moderna. No programa de Oiticica, a apropriação é diferenciada e
estendida, não se reduzindo à mera desfuncionalização ou estetização de objetos; muito
menos a uma plástica com objetos (naturais, encontrados, incorporados, perturbados,
interpretados). Segundo a coerência e o rigor do programa experimental, os bólides
acentuam o primado do conceitual na escolha dos objetos e materiais em vista dos
efeitos visados na estrutura e na participação. Como no readymade, o ato de escolha é o
decisivo, mas diverso nas duas proposições.
Em Duchamp, a escolha é ditada pela indiferença visual: “O grande problema
era o ato de escolher. Tinha de eleger um objeto sem que este me impressionasse e sem
191

a menor intervenção, dentro do possível, de qualquer idéia ou propósito de deleite


estético. Era necessário reduzir meu gosto pessoal a zero. É dificílimo escolher um
objeto que não nos interesse absolutamente, e não só no dia em que o elegemos, mas
para sempre, e que, por fim, não tenha a possibilidade de tornar-se algo belo, agradável
ou feio...”5 Em Oiticica, a apropriação era comandada por uma “idéia estética”, de modo
que a eleição de um objeto já visava à sua “estrutura implícita”, às virtualidades de
corporificação, luminosidade e ludismo: “O que faço ao transformá-lo numa obra não é
a simples ‘lirificação’ do objeto, ou situá-lo fora do cotidiano, mas incorporá-lo a uma
idéia estética, fazê-lo parte da gênese da obra, tomando ela assim um caráter
transcendental, visto participar de uma idéia universal sem perder a sua estrutura
anterior (...) nos ‘transobjetos’ há a súbita identificação dessa concepção subjetiva com
o objeto já existente como necessária à estrutura da obra, que na sua condição de objeto,
oposto ao sujeito, já deixa de ser o momento da identificação, porque, na verdade, já
existia implícito na idéia”.6
Nesse texto, em que pese a inadequação da linguagem para dar conta do
processo, percebe-se que a escolha é determinada pela coincidência prévia entre sentido
estrutural e estrutura do objeto, ou seja, pela idéia a ser objetivada, tendo em vista a
participação na própria “gênese da obra”. Além dessa distinção do procedimento
duchampiano, entende-se também uma outra: Oiticica exclui o acaso de suas
apropriações. Nele, o interesse não está na produção de humor e indiferença visual;
trata-se de articular sentido de construção e vivência, uma experiência significativa. Não
há acaso na incorporação de um objeto (na “obstinada procura daquele objeto”) porque
a escolha supõe as virtualidades do objeto já implícitas na idéia. Os objetos interessam a
Oiticica, não são indiferentes, nem excluem a beleza: são signos de transformabilidade.
No programa ambiental, os resíduos contemplativos dos bólides desaparecem; a
“imanência expressiva” migra para a “imanência do ato corporal expressivo”, de modo
que as apropriações destinam-se à elaboração de estruturas-comportamento propícias à
participação coletiva. Apropriação e construção são procedimentos conjugados nas
proposições com que Oiticica desenvolve, até o final de sua vida, o programa-
parangolé. Entre as muitas proposições que desdobram o programa – das capas,
bandeiras e estandartes iniciais às manifestações e ambientes como Tropicália; do

5
Duchamp, apud PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 1977.
p.27-28.
6
OITICICA, Hélio. op.cit., p.63-64.
192

supra-sensorial e crelazer ao Éden, um campus experimental que totaliza as


experiências de Oiticica até 1969; da reproposição dos bólides nos topological
readymade landscape à inversão do processo nos contrabólides e em muitas outras –, é
interessante destacar, pela possível alusão a Duchamp, a Sala de Bilhar ou Jogo de
Sinuca que Oiticica armou no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro na exposição
Opinião 66.
Partindo de uma observação de Mário Pedrosa, que associou as sensações de cor
dos núcleos e bólides ao clima do quadro O Café Noturno, de Van Gogh, em que
aparece um bilhar, Oiticica constrói um ambiente que recria o clima do quadro através
das cores (mesa verde, uma parede vermelha e outra preta, as camisas coloridas dos
jogadores). O processo de apropriação do jogo de bilhar está marcado pela descoberta
do “sentido profundo do jogo” na “construção do jogo de sinuca”. Mais ainda: pela
descoberta “do sentido do jogo como participação”, uma das chaves da antiarte. Oiticica
disse que não se tratava “apenas de acentuar a beleza plástica de um determinado jogo,
mas de revelar o sentido vital do ato desse jogo (...) a habilidade de cada jogador é o
que interessa no jogo em si, mas na totalidade é a ação real do jogo que interessa: desde
que esta termine, temporariamente ou de vez, cessa a ‘obra’ em sua ação – não há, pois,
o propósito esteticista de ‘apreciar’ o jogo na sua beleza, mas apenas de realizá-lo”.7
O jogo de sinuca é propício aos objetivos do programa ambiental; inclui
apropriação do “mundo ambiente”, de referências populares, participação coletiva;
articula estrutura-cor e movimento; explicita “o elemento prazer do jogo”. Oiticica
considera a proposição um “meio-termo” entre apropriação e construção, pois o jogo
não é achado, mas construído, com o que seria abolido “o lado ainda metafísico que
possui o conceito de apropriação”.88 Com esse intuito, planejava “fazer vir à tona toda
a plasticidade da própria ação-cor-ambiente criado”9, atividade que supõe regras e
imprevisibilidade, estrutura e fantasia, simbolismos e efetuações.
Nessas condições, a ênfase de Oiticica ao ato de jogar não é similar à de
Duchamp ao movimento. Sabe-se que a paixão de Duchamp pelo xadrez tinha muito a
ver com suas estratégias na pintura: “Uma partida de xadrez é uma coisa visual e
plástica (...) é um desenho, é uma realidade mecânica. As peças não são belas por elas
mesmas (...) o que é belo é o movimento (...). Imaginar o movimento ou o gesto é que

7
OITICICA, Hélio. “Parangolé: da antiarte às apropriações ambientais”. GAM, Rio de Janeiro, nº 6, p.30,
1997.
8
Ibidem.
9
OITICICA, Hélio. op.cit., p.81
193

faz a beleza neste caso. Está completamente dentro da massa cinzenta”.10 Jogo mental:
um procedimento conceitual. Além disso, o interesse pelo xadrez, numa tirada de
humor, permite-lhe a crítica ao meio de arte: “O meio dos jogadores de xadrez é mais
simpático que o dos artistas. Estes são completamente confusos, completamente cegos,
usam viseira-de-burro. (...) Isto foi provavelmente o que mais me interessou”.11
Novamente, uma estratégia perante a arte e o seu sistema.
Assim, a referência de Oiticica a Duchamp é “indireta e longínqua”. Encontram-
se no objetivo de deslocamento da arte, diferem nas estratégias e nas táticas. Para ambos
“a obra é o caminho e nada mais”, pois ambos, visando a um além-da-arte, visualizam
uma liberdade que “não é um saber, mas aquilo que está depois do saber”.12 Jogar com a
arte é conciliar arte e vida.

10
CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva, 1987.
p.28.
11
Ibidem, p.28-29.
12
PAZ, Octavio, op.cit., p.59.
194

Inconformismo estético, inconformismo social, Hélio Oiticica*

O imaginário da revolução mobiliza o sentido político da vanguarda nos anos


60. Programas, manifestos, declarações, intervenções e obras compõem uma atividade
extensa, que manifesta, na experimentação, o desejo de transformação social. A
produção artística responde ao que se apresentava naquele momento, particularmente no
período 1965-68, como necessidade: articular a produção cultural em termos de
inconformismo e desmistificação; vincular a experimentação de linguagem às
possibilidades de uma arte participante; reagir à repressão. Experimentação e
participação agenciam uma outra ordem do simbólico (o comportamento), visando a
instaurar a “vontade de um novo mito”; uma imagem da arte como atividade em que
não se distinguem os modos de efetivar programas estéticos e exigências ético-
políticas1. A transmutação da arte – proposta em desenvolvimento em toda parte e que
implicava a transmutação da vida –, transformou-se em imperativo; explicitado em
projetos diversos, este empenho produziu, nos diferentes setores artísticos,
interpretações da “realidade brasileira”, atitudes de contestação e de revolta. Como
assinalou Hélio Oiticica no Esquema geral da nova objetividade (1967), o afluxo de
experiências, nas artes plásticas, no cinema, no teatro, na música, não constituía um
movimento, caracterizado por uma “unidade de pensamento”, mas uma “posição
específica” da vanguarda brasileira, considerada por ele como “um fenômeno novo no
panorama internacional”2. Recobrindo uma gama muito elástica de atitudes e
experiências, a vanguarda definiu uma “unidade de ação”, que, segundo Sérgio Ferro,
não provinha do parentesco formal ou dos objetivos específicos dos artistas, mas da
“posição agressiva diante da situação abafante, no seu não-conformismo, na sua
colocação da realidade como problema em seus vários aspectos, na sua tentativa ampla
e violenta de desmistificação”3, de modo que “pode-se dizer que de 1965 a 69 (...) boa

*
Revista Gaia. São Paulo: USP, Ano I, n. 2 , set-dez. 1989, p. 24-32. Rep. na revista Educação e
Filosofia. Universidade Federal de Uberlândia, v. 4, n. 8, jan-jun. 1990, p. 151-158.
1
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Seleção de textos organizada por Luciano Figueiredo,
Lygia Pape e Waly Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 69.
2
Idem. “Situação da vanguarda no Brasil”. Op. cit., p. 110.
3
FERRO, S. “Vale tudo”. Catálogo do evento Propostas 66, reproduzido em Artes, ano I, n° 3, jan 66 e
em Arte em Revista, n° 2, 1979.
195

parte dos artistas brasileiros pretendia, ao fazer arte, estar fazendo política”4. A posição
crítica e a atuação cultural requeridas pelo momento faziam coincidir o político e a
renovação da sensibilidade; a participação social e o deslocamento da arte. Como
posição coletiva, a atuação dos artistas manifesta-se na atitude “contra”. Oiticica: “não
pregamos pensamentos abstratos, mas comunicamos pensamentos vivos (...). No Brasil,
(...) hoje, para se ter uma posição cultural atuante, que conte, tem-se que ser contra,
visceralmente contra tudo que seria em suma o conformismo cultural, político, ético,
social (...). Da Adversidade Vivemos”5!
É a proposta de participação coletiva, interessada tanto na superação da arte
(reconceituando-a, desintegrando o seu objeto e recriando a imagem), como no
redimensionamento cultural dos protagonistas, pela integração do coletivo, que mobiliza
os artistas. Enquanto pretendem liberar suas atividades do ilusionismo, os artistas
intervêm nos debates do tempo, fazendo das propostas estéticas propostas de
intervenção cultural. Seu campo de ação não é apenas o sistema de arte, mas a
visionária atividade coletiva que intercepta subjetividade e significação social. A
“antiarte”, proposta com que Oiticica pretende radicalizar a situação, é exemplar. Não
visa à criação de um “mundo estético”, pela aplicação de novas estruturas artísticas ao
cotidiano, nem simplesmente nele diluir as estruturas, mas transformar os participantes,
“proporcionando-lhes proposições abertas ao seu exercício imaginativo”, visando a
“desalienar o indivíduo”, para “torná-lo objetivo em seu comportamento ético-social”6.
Apontando para uma outra inscrição do estético, Oiticica visualiza a arte como
intervenção cultural e o artista como “motivador para a criação”.
O imaginário de Oiticica é aquele que se interessa, não pelos simbolismos da
arte, mas pela função simbólica das atividades, cuja densidade teórica está na
suplantação da pura imaginação pessoal em favor de um “imaginativo” coletivo. Isto se
cumpre quando as atividades possuem visão crítica na identificação de práticas culturais
com poder de transgressão; não pela simples figuração das indeterminações e conflitos
sociais, ou, ainda, pela denúncia da “alienação” dos discursos (totalizadores) sobre a
“realidade brasileira”. A participação coletiva (planejada ou casual) provém da abertura
das proposições; evita as circunscrições habituais da “arte” e o puro exercício
espontaneísta de uma suposta criatividade generalizada. O essencial das manifestações

4
ARANTES, O.B.F. “Depois das vanguardas”. Arte em Revista, n° 7, 1983 e “De Opinião 65 à XVIII
Bienal”.
5
OITICICA, Hélio. “Esquema geral da nova objetividade”. Op. cit., p. 98.
6
Idem. “Aparecimento do suprassensorial na arte brasileira”. Op. cit., p. 103.
196

antiartísticas é a confrontação dos participantes com situações; concentrando o interesse


nos comportamentos, na ampliação da consciência, na liberação da fantasia, na
renovação da sensibilidade, desterritorializam os participantes, proscrevem as obras de
arte, coletivizam ações. Desnormativizantes, pois questionam as significações correntes,
essas manifestações interferem nas expectativas dos protagonistas, sendo, portanto,
práticas reflexivas. Assim, para Oiticica, a antiarte como “verdadeira ligação definitiva
entre manifestação criativa e coletividade”7, tem poder de transgressão, identificando-se
a práticas e revoltas “contra valores e padrões estabelecidos: desde as mais socialmente
organizada (revoluções, p. ex.) até as mais viscerais e individuais (a do marginal, como
é chamado aquele que se revolta, rouba e mata). São importantes tais manifestações,
pois não esperam gratificações, a não ser a de uma felicidade utópica, mesmo que para
isso se conduza à autodestruição”8. O “princípio decisivo” dessa atividade, em que a
antiarte não se distingue das práticas revolucionárias, é assim formulado: “a vitalidade,
individual e coletiva, será o soerguimento de algo sólido e real, apesar do
subdesenvolvimento e caos – desse caos vietnamesmo é que nascerá o futuro, não do
conformismo e do otarismo. Só derrubando furiosamente poderemos erguer algo válido
e palpável: a nossa realidade”9.
A conexão entre o coletivo e o individual, experiência de inconformismo social
que ultrapassa o mero interesse por mitos, valores e formas de expressão das vivências
populares, leva Oiticica a uma marginalidade nada circunstancial. A Mangueira, onde
viveu, teve muito amigos (notadamente o Cara de Cavalo, bandido morto pela polícia,
que se tornou, para ele, símbolo de revolta, homenageado no bólide Homenagem a Cara
de Cavalo, 1966), onde tornou-se passista da Escola (sua experiência de
“desintelectualização”) e lugar de muitas manifestações ambientais, deu-lhe régua e
compasso. Esse deslocamento social disparou os processos de transformação de suas
propostas construtivistas, aliando, na “estrutura-ambiental” ou “Parangolé”,
experimentação e participação social. Da Mangueira, Oiticica apropriou-se: do samba,
que manifesta uma “força mítica interna, individual e coletiva” (vivência do cotidiano
do morro sem referência às formalidades da “dança de par” e da coreografia do balé,
significando para ele a livre expressão); da arquitetura das favelas, com suas casas
bricoladas (produção de organizações espaciais abertas, adaptadas às mutações do ritmo

7
Idem, ibidem, p. 80.
8
Idem, ibidem, pp. 81-2.
9
Idem, ibidem, p. 83.
197

de vida) e das relações sociais do povo da Mangueira, em que Oiticica surpreende uma
ética comunitária10.
O interesse de Oiticica por práticas populares não implica recurso à valorização,
dada naquele momento, à cultura popular com ênfase em “raízes populares”. Se
hiperboliza a Mangueira, o samba, a construtividade popular, é por razões que relevam
de sua concepção de antiarte ambiental; de sua experiência da marginalidade.
Mantendo-se embora afastado dos projetos culturais que figuravam a “realidade
nacional”, como etapa da ação política que reagia à dominação do imperialismo e do
regime militar, Oiticica respondeu à sua maneira aos apelos dessa esquerda. A sua
marginalidade foi vivida, pois é o ponto em que se desfaz a contradição do
inconformismo estético e do inconformismo social. Para ele, a arte tem sempre função
política, contanto que isso não seja um “alvo especial”, mas sim “um elemento”, pois,
“se a atividade é não-repressiva será política automaticamente”11. Arte e política são
práticas convergentes, mas que não se confundem, sob pena de se promover a
estetização da política.
É com o projeto Tropicália (1967) que Oiticica objetiva o “sentido ético” como
prática cultural, determinando a posição crítica que o distinguiu, pela coerência,
radicalidade e lucidez, das demais propostas em desenvolvimento na vanguarda
brasileira. Na Tropicália, a “objetivação de uma imagem brasileira” não se faz pela
figuração de uma realidade como totalidade sem fissuras, mas pela devoração das
imagens conflitantes que encenam uma cultura brasileira. Esta devoração se atribui aos
participantes: apropriando-se dos elementos disparatados, justapostos, que formam uma
“síntese imagética” (na verdade uma mistura de imagens, linguagens e referências), os
participantes agem nesse sistema conjuntivo e ambivalente, produzindo a evidenciação
do processo de constituição das contradições enunciadas. O objetivo é provocar a
explosão do óbvio por efeito da participação. Conjugando estrutura e fantasia, no
ambiente tramam-se intervenções que vão estendendo as proposições. Com isso, tudo o
que é traço cultural é ressignificado. Alheia ao exclusivismo da experimentação ou da
expressão de conteúdos do nacional-popular, Tropicália conjuga experimentalismo e
crítica. Para Oiticica, ela é produção em que as imagens “não podem ser consumidas,
não podem ser apropriadas, diluídas ou usadas para invenções comerciais ou

10
BRETT, G. Texto do catálogo da “Whitechapel Expereience”. Londres, 1969, reproduzido em AGL
(encarte).
11
OITICICA, Hélio. Entrevista. In: AYALA, W. (org.). A criação plástica em questão. Petrópolis:
Vozes, 1970.
198

chauvinistas”12. A Tropicália define uma linguagem de resistência à diluição: assumir


uma posição crítica, diz Oiticica, é enfrentar a “convi-conivência”, essa doença
tipicamente brasileira, misto de conservação, diluição e culpabilidade, que concentra os
“hábitos inerentes à sociedade brasileira”: cinismo, hipocrisia e ignorância13. Essa
“posição crítica universal permanente”, a que denominou “o experimental”,
possibilitou-lhe interferir na vanguarda brasileira, enquanto nela encontrou condições
para desenvolver projetos coletivos implícitos em seu “programa-Parangolé”. Pois “o
experimental não só assume a idéia de modernidade e vanguarda, mas também a
transformação radical no campo dos conceitos-valores vigentes: é algo que propõe
transformações no comportamento-contexto, que deglute a convi-conivência”14.
Assim, o “caráter revolucionário” que Oiticica atribui à sua posição provém da
atitude de desestabilização do experimentalismo e das interpretações culturais
hegemônicas. Ao insistir na “urgência da colocação de valores num contexto universal”,
para “superar uma condição provinciana estagnatória”15, rompe com os debates que
monopolizavam as práticas artísticas e culturais, radicalizando-os. Com Tropicália (o
projeto e a teorização), Oiticica participa ativamente de um dos momentos mais críticos
e criativos da cultura brasileira, juntando-se a outras manifestações igualmente
significativas: Terra em transe (1967), O rei da vela, do Teatro Oficina (67), a música
do Grupo Baiano (67-68), Macunaíma, de Joaquim Pedro (69), O bandido da luz
vermelha, de Rogério Sganzerla (68), identificadas como “tropicalistas”. Essas
produções evidenciaram o conflito das interpretações do Brasil sem apresentar um
projeto definido de superação dos antagonismos; expuseram a indeterminação da
História e das linguagens, devorando-as; ressituaram os mitos da cultura urbano-
industrial, misturando elementos arcaicos e modernos, explícitos ou recalcados,
ressaltando os limites das polarizações ideológicas no debate cultural em curso.
Dentre as tropicalistas, Oiticica destaca a importância da produção do Grupo
Baiano, atribuindo-lhe “caráter revolucionário” e identificando-a às propostas e à
linguagem de seu programa ambiental. Para ele, ambas articulam o experimentalismo
construtivista e o comportamental; nelas a participação é constitutiva da produção, e a
crítica efeito da abertura estrutural. Para ele, “o caráter revolucionário implícito nas

12
Texto do catálogo da “Whitechapel Expereience”.
13
GULLAR, F. (org.). “Brasil diarréia”. Arte brasileira hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973, pp. 147-
9.
14
Idem, ibidem, p. 152.
15
Idem, ibidem, pp. 148-9.
199

criações e nas posições do Grupo Baiano”16 deve-se à não distinção entre


experimentalismo e crítica da cultura; na ausência de privilégios entre posições
discrepantes, quando se trata de “constatar um estado geral cultural” e nele intervir; e,
finalmente, na não distinção entre a repressão da ditadura e a da “intelligensia
bordejante” (a crítica e o público de uma certa esquerda). Oiticica identifica nos
músicos a mesma tônica de suas manifestações ambientais: a renovação de
comportamentos, de critérios de juízo etc., passa pelo modo de produção, aliando
conceitualismo, construtividade e vivência. Ambas as produções originam conjuntos
heteróclitos, em que processos artísticos e culturais diversos são justapostos e, efeito da
devoração, reduzidos a signos que agenciam ambivalência crítica e exploram a
indeterminação do sentido, propondo se, assim, como ações que exigem dos
participantes a produção de significados. Ambas fazem parte do projeto crítico que
assume a ambivalência como modo de enfrentar a “diarréia” brasileira.
Toda a experimentação de Oiticica compõe um programa coerente que
problematiza a situação brasileira e internacional da criação e se desenvolve como
versão da produção contemporânea que explora a provisoriedade do estético e
ressignifica a criação coletiva, a marginalidade do artista, o político da arte. A tendência
básica do programa é a transformação da arte em outra coisa; em “exercícios para um
comportamento”, operados pela participação. Ora, a virtude própria dos
comportamentos é a de se manifestarem sem ambigüidades, como potências de um puro
viver; apontam para um além-participação, em que a invenção enfatiza os processos,
explorando o movimento da vida como manifestação criadora. Prática revolucionária, a
transmutação da arte em comportamento se dá quando o cotidiano é fecundado pela
imaginação e é investido pelas forças do êxtase. Desrealizados, os comportamentos
libertam as possibilidades reprimidas; afrouxam a individualidade, confundem as
expectativas: manifestam poder de transgressão. Esse modo de atuação rompeu com as
propostas de resistência em desenvolvimento no país, apontando para práticas
alternativas. Desacreditando dos projetos de longo alcance, de concepções históricas
feitas de regularidades, essa atitude desligou o finalismo, afirmando o poder de
transgressão do intransitivo.

16
“O sentido da vanguarda do grupo baiano”. Correio da Manhã, 24/11/1968.
200

Transformar a arte, mudar a vida*

Traçando e repensando o seu trajeto experimental, da crise da pintura,


manifestada em 1959 nos monocromáticos (denominados “Invenções”), aos últimos
projetos e manifestações de 1979/80, Hélio Oiticica caracteriza-o como “descoberta da
invenção”1. Parodiando Mallarmé, pode-se dizer que a invenção foi sua Beatriz. A
conquista do “estado de invenção”, configurado com clareza nos Parangolés (1964),
dispara um processo de abertura estrutural, já indiciado e ensaiado em Bilaterais,
Relevos espaciais, Bólides, Núcleos e Penetráveis, que desenvolve, como um “programa
in progress”, um lúcido, rigoroso e coerente trabalho de diluição estrutural voltado à
transmutação da arte; sua transformação em alguma outra coisa que, livre de resíduos
esteticistas, pudesse abarcar as vivências individuais e coletivas, redimensionando-as.
A atividade inventiva de Oiticica, desdobrada em parangolés, bólides,
manifestações ambientais, projetos de intervenção urbana etc.; as reflexões e teorizações
que localizam e explicitam as sucessivas posições do programa, propõem o
experimentalismo (o experimental, como ele prefere) e a crítica cultural como vultos de
um mesmo processo de ressignificação da arte. O programa desencadeado pelo
Parangolé, ou antiarte ambiental, imbrica reconceituação da experiência estética e
“posição ética” numa visionária concepção das relações de arte e vida. Inconformismo
estético e social, radicalidade e marginalidade (nada circunstancial), exemplares na
vanguarda brasileira, são atitudes que afirmaram Oiticica como emblema de inventor,
antena e intérprete de seu tempo.
Ao deslizar, paulatinamente, da pintura às estruturas e manifestações ambientais,
depois às estruturas-comportamento, a atividade de Oiticica mantém, entretanto, a
unidade proveniente da tensão entre uma básica tônica conceitual (que reconceitua a
arte) e a categoria de vivência (que valoriza as ações, os gestos, os comportamentos). O
que antes era obra ou objeto, transmuta-se em intervenção, acontecimento: alguma coisa
que desborda da Arte, pela intensificação de forças, afetos, sensações e idéias tramadas
em perspectiva cultural: potências de um “puro viver” em disponibilidade criadora. O

*
Itinerários, n. 10. Revista de Pós-Graduação em Letras- Estudos Literários. Araraquara: Faculdade de
Ciências e Letras da UNESP, 1996, 247-253. Rep. em ANDRÉ DE SOUSA, Edson L. et al (org.)- A
Invenção da Vid: arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001, p. 106-112..
1
OITICICA, H. Entrevista a Ivan Cardoso. Folha de S. Paulo, 16/11/1985, p. 48.
201

operador dessas transformações é a categoria de “participação” que circulava na época,


mas que em Oiticica singulariza-se por ser considerada prática construtiva que retém as
exigências e o rigor da construtividade da forma, da cor, das estruturas plásticas, enfim,
o “sentido de construção” – princípio estético e procedimento que atravessa de ponta a
ponta a experimentação. Esse sentido de construção, e a idéia de participação, inerentes
ao peculiar entendimento do “desenvolvimento construtivo da arte contemporânea”,
com que pretende contribuir para as “novas possibilidades ainda não exploradas”2 são
responsáveis pelo modo específico de Oiticica elaborar as propostas comuns da
vanguarda brasileira e pela sua utopia da arte nos fios do vivencial, situando-as no
horizonte de uma atividade experimental de inegável contundência crítica.
Assim, embora Oiticica participe das tendências da arte contemporânea – que,
no Brasil e em toda parte, promoviam a redistribuição geral da estética, enfatizando ora
a tônica conceitual, ora a vivencial , a renovação sintático-formal ou as dimensões
semânticas e pragmáticas, quase sempre desestetizadoras –, ele não se deixa determinar
exclusivamente pelas soluções predominantes no circuito internacional ou brasileiro. A
singularidade de sua posição está no modo como articula, atravessa e elabora, no seu
trabalho, no debate cultural e nos textos crítico-teóricos, as experiências e propostas em
jogo segundo a perspectiva do “sentido de construção” em que o “conceitual” e o
“fenômeno vivo”, indissociáveis, não pactuam com a “convi-conivência”, com o
conservadorismo e a diluição, mesmo que pretensamente vanguardistas3.
A lucidez das proposições de Oiticica é dupla: por situar a sua posição estética
historicamente na continuidade das intervenções modernas, no empenho de
desidealização da arte, particularmente em relação ao estado da arte brasileira de
vanguarda, e por afirmar a especificidade individual de seu trabalho no contexto das
experimentações em que se reconhecia ao lado de outros artistas significativos4. O seu
particular entendimento dos desenvolvimentos construtivos, da historicidade das
práticas vanguardistas e das questões culturais implícitas nessa arte sensível ao social, à
criação e participação coletivas, levaram-no a recusar tanto os equívocos do vivido (das
mistificações da arte e da mitificação da vida) como os da política na arte. Oiticica
sempre se preocupou em expor as ambigüidades do processo em curso, propondo o
experimental como um reexame dos pressupostos nele subentendidos.

2
Idem. Aspiro ao grande labirinto. Organizado por Luciano Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão.
Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 54.
3
Idem. “Brasil diarréia”. Arte em Revista. São Paulo, n° 5, 1981, pp. 43-5.
4
Idem. Op. cit., 1986, pp. 33 e 84.
202

A extensão da arte na vida, a proposta da criatividade generalizada, inicialmente


pela conquista do “espaço real”, fora do quadro, paulatinamente com a proposição de
âmbitos e “estruturas germinativas” para comportamentos, embora insistindo na tônica
sensorial, desligam os efeitos perceptivos e afetivos de uma espontaneidade
irracionalista e anticonceitual, como desligam o político de uma função imediatista. A
diluição estrutural mantém a idéia de estrutura e os procedimentos construtivos e,
inclusive, produz um aumento do conceitual. Das primeiras estruturas no espaço, aos
“exercícios imaginativos” do Suprassensorial e do Crealazer, a tensão entre “o
conceitual” e “o fenômeno vivo” não subscreve a adesão ou abandono, ao vivido
mistificado ou folclorizado; propõe a abertura como fundação de estruturas-
comportamento, “células-comportamento”, que implicam redimensionamento cultural
dos participantes. Enfim, essa desestetização significa que a valorização das sensações e
afetos não é uma simples oposição ao racionalismo (na concepção do espaço plástico,
nas relações de espaço e cor, da função social da arte, do valor da arte), pois tal visada
poderia ser uma postulação sub-reptícia e substitutiva dos mesmos ideais da arte
questionados. Há violência em sua proposição: visava ao devir de uma experiência em
que a totalização do vivido levaria necessariamente à transmutação dos indivíduos
através da transformação da arte em atividade cultural, por multiplicação e “expansão
celular”5.
Nas invenções de Hélio Oiticica, na fulguração das cores e incorporação do
espaço na dança dos Parangolés; nos labirintos e na pletora de imagens de Tropicália,
nas estruturas tácteis-pigmentares de Bólides; nos âmbitos, células-germinativas de
comportamentos do Éden, dos Ninhos, no espaço-ambiente-lazer, projeto-recinto
Barração, nos Delírios ambulatórios etc., as estruturas, o espaço e o tempo, sons e
cores, palavras, idéias, sensações e afetos, entram como constituintes de acontecimentos
que se entre-exprimem na conjugação de forças heterogêneas. Nas superfícies e dobras
dos acontecimentos, nas relações que se produzem no entrechoque de imagens e
referências, como tão bem manifestam os labirintos, brilha o esplendor do sentido,
encarnado em situações, indivíduos, processos6. Os acontecimentos se constroem como
enunciações, por conjugação e diferenciação, liberando a imagem de um pensamento
em que o conceito é sensorial e as sensações conceituais.

5
Idem. Op. cit., 1986, pp. 116-7.
6
DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
203

Eis por que não interessavam a Oiticica a “arte ambiental”, a “arte conceitual”, a
“arte corporal, pois os seus interesses não são funcionais, isto é, voltados para uma
atividade experimental” entendida como descritiva de um ato a ser julgado
posteriormente em termos de sucesso ou fracasso”; mas como uma potência, “um ato
cujo resultado é desconhecido”7. A sua invenção constrói uma poética do instante, um
“exercício experimental da liberdade” na expressão de Mário Pedrosa, que, valorizando
situações instáveis e indeterminadas, de fim impreciso, instala os acontecimentos como
experiências exemplares, simbólicas, nas quais coexistem intensidade de sentido,
convicção e violência. Assim, esta poética visa não aos simbolismos da arte, mas a
simbólica dos estados de transformação: a invenção é, portanto, mais do que “criação”,
um dispositivo que alia pulsões e reflexão, impulsos desterritorializadores e elaboração:
um trabalho que quer liberar, nos acontecimentos, os signos transformáveis, os sinais da
potência de instante, dos estados de transformação.
Se a imagem de labirinto é a metáfora unificadora desses estados, pois enfatiza
polimorfias, mobilidades, aberturas, jogos e tensões, surpresas e intervenções
ativíssimas, e se os Parangolés são o ponto de partida dessa poética, os índices dessa
concepção da arte como evento encontram-se progressivamente encadeados nas
proposições anteriores: na proposição de um além da pintura nos Metaesquemas
(“meta”, além-transcendência da visualização; “esquema”, estrutura, quadro); nas
Invenções, em que a cor é liberada como pulsação, promovendo não só a mudança dos
meios, mas da própria concepção de pintura; na ativação do espaço com Bilaterais,
Relevos espaciais e Núcleos, em que a vivência da “estrutura-cor” explora as múltiplas
ressonâncias de espaço e cor temporalizados, na instauração do novo espaço perseguido
nas experiências construtivas, o Penetrável, e, finalmente, nos Bólides.
Os Bólides ocupam um lugar muito especial nos desenvolvimentos do programa
de Oiticica. São, ao mesmo tempo, as últimas “estruturas primordiais” do processo de
instauração da ordem ambiental e espécie de tubos de ensaio; evidenciam o processo de
abertura das estruturas, expondo as possibilidades e procedimentos que seriam
efetivados plenamente nos desenvolvimentos ambientais. São objetos estranhos, com
forte conotação conceitual; mágicas incursões que permitem experiências sensoriais e
ludismo. Signo e evento, objetos plásticos e já âmbitos para exercícios imaginativos,
permitem a inspeção das estruturas pigmentares de cor; são focos de uma luminosidade

7
OITICICA, H. “Experimentar o experimental”. Op. cit., 1981, p. 52.
204

que se expande, quer soltar-se e fulgurar no espaço. Não é por menos que Oiticica, até o
fim, sempre recodificou-os e revitalizou-os; disse mesmo, certa vez, que eles “são a
semente, ou melhor, o ovo de todos os futuros projetos ambientais”8. São protótipos de
desenvolvimentos ambientais comportamentais.
Visando a ressaltar o caráter operatório dos Bólides, que fazem a passagem das
“estruturas transcendentais imanentes” para “estruturas comportamento-corpo”, Oiticica
caracteriza-os como “transobjetos”, ressaltando, inclusive, que a proposta é a mesma
dos Parangolés. Neles importa o signo e não o objeto como obra, pois a participação
(explorar, manipular, descobrir) é atividade constitutiva. Os Parangolés redefinem as
operações dos Bólides; deslocam-nas das estruturas contidas de cor, desatam os gestos,
liberam os movimentos e os envolvimentos dos participantes. Os Bólides são a
imaginação do movimento e do gesto; os Parangolés a efetivação.
O princípio operante da composição dos Bólides é a apropriação, procedimento
construtivo e desestetizante fundamental da arte moderna e da contemporânea. Contudo,
Oiticica pretende diferenciar as suas apropriações de outras, como as de Rauschemberg
e Jasper Johns, por exemplo. Segundo ele, “nessas experiências a chegada à objetivação,
ao objeto tal como ele é no contexto de uma obra de arte, transportada do “mundo das
coisas” para o plano das ‘formas simbólicas’, dá-se de maneira direta e metafórica. Não
se trata de incorporar a própria estrutura, identificá-la na estrutura do objeto, mas de
transportá-lo fechado e enigmático da sua condição de ‘coisa’ para a de ‘elemento da
obra’. A obra é virtualizada pela presença desses elementos, e não antes a virtualidade
da obra na estrutura do objeto (...)”. Nos Bólides, exatamente para enfatizar o processo
de construção, e para não reduzi-los à desfuncionalização ou estetização dos objetos
apropriados, não há “justaposição virtual” de elementos, mas, ao escolher cada um
deles, já se identifica a “estrutura implícita” dos mesmos com a idéia que preside a
concepção dos Bólides. Os objetos “achados na paisagem” são, assim, incorporados a
uma “idéia estética”, com que se valoriza a eleição como um ato que não visa ao objeto
em seu estado natural, mas à sua “estrutura implícita”. A virtualidade (de cor,
luminosidade, estrutura, ludismo) está, portanto, nos elementos e não na “obra”, com
que se ressalta a carga cultural do “mundo das coisas”, assim como a tônica conceitual
do procedimento9.

8
Idem. “Sobre o objeto na arte brasileira dos anos 60”. In: PECCININI, Daisy M. Objeto na arte: Brasil,
anos 60. São Paulo: Faap, 1978, p.190.
9
Idem. Op. cit., 1986, pp. 63-5.
205

Os Bólides são manifestações singulares da “tendência ao objeto”, vigente na


arte brasileira do período; Oiticica, entretanto, sublinha os equívocos e confusões da
maioria dos “fazedores de objetos”, dos “fazedores de caixas” que, para ele, propugnam
uma “estética do objeto”. Por considerar o objeto como etapa do processo de mutação
da arte; uma etapa prévia, pois apenas comprometida com as transformações estruturais,
Oiticica não o entende como uma nova categoria acrescentada à pintura, uma espécie de
categoria substitutiva, tábua de salvação face à crise da pintura. Acrescenta que o
problema do objeto é mais complexo; “parece ser uma aspiração mais ampla no
pensamento moderno: parece desafiar a lógica dessas transformações”. O que importa,
para ele, não é o objeto-obra, mas “a ação no ambiente, dentro do qual os objetos
existem como sinais” e se propõem como “exercício para um comportamento”10. É por
isso que Oiticica considera os Bólides como “o objeto por excelência da vanguarda
brasileira”11, pois exploram exemplarmente o intervalo que vai do sinal à ação, fundindo
idéia e objeto.
A conquista definitiva do estado de invenção nos Parangolés pode ser entendida
como proveniente da explosão da estrutura-bólide: a expressividade da cor em estado
pigmentar desenvolve-se no espaço temporalizado, impregnando o ambiente.
Incorporando a cor, soltando-a no espaço; liberando a ação e multiplicando os sinais;
deslizando dos espaços poético-tácteis-pigmentares de contensão para os atos-corporais-
expressivos, os Parangolés redefinem aquela fusão de idéia e objeto dos Bólides. A
apropriação de materiais é relativizada, mas a escolha ainda supõe a identificação da
“estrutura implícita”. O acréscimo de música e dança, embora fazendo progredir a
diluição das estruturas, são mais signos transformáveis e de transformação que desprezo
pela “idéia”, que agora comanda o ambiente. A dança realiza o que está implícito na
idéia, atualizando relações mutáveis da estrutura e do corpo, da cor e do movimento. A
proposição do Parangolé é o ponto crucial do programa de Oiticica, porque articula
imanência expressiva, transformabilidade e vivência: nisso está a chave da invenção,
cifrada na proposta ambiental entendida como combinação de “Bólide-Parangolé”.

10
Idem. Op. cit., 1978, p. 190.
11
Idem, ibidem.
206

A música nos labirintos de Hélio Oiticica*

Impulso visionário de transvaloração da arte, a experimentação de Hélio Oiticica


efetiva-se como um programa aberto, desencadeado pelo projeto de transformar a
pintura em estrutura ambiental. Operando deslocamentos, subordinando as rupturas à
continuidade, o programa avança negando e incorporando proposições. No evolver
dessa experimentação, que não se fixa, música e dança são intrínsecas às proposições;
operadoras de passagens e signos de transformabilidade: imagem da invenção.
Alusivamente, ou por analogias, elas comparecem nas experiências preponderantemente
plástico-visuais; explicitamente, integram a nova “ordem ambiental”, detonada pela
“descoberta do corpo” no Parangolé. Ponto crucial do programa, este define uma
posição específica dos desenvolvimentos construtivos: articulando construtividade e
vivência, redefine a estética de Oiticica; reconceitua a arte ao ressignificar a
participação. Neste projeto singular, em que um peculiar “sentido de construção”
desliga as propostas de simples renovação do espaço plástico, música e dança
impulsionam a atitude experimental, cuja manifestação exige mudança dos meios e da
concepção de arte: ruptura das concreções artísticas, proposição de estruturas-
comportamento. Deslocando a arte, as operações de Oiticica instauram uma poética do
instante e do gesto, de envolvimento e desenvolvimento transespacial.
Identificando uma ampla (e heterodoxa) “tendência construtiva” na arte moderna
e contemporânea, recusando as determinações “formalistas” dos desenvolvimentos
construtivos, Oiticica pretende contribuir para a realização das “possibilidades ainda
não exploradas dentro desse desenvolvimento”. Retomando pesquisas dos
construtivistas russos de Malévitch, Kandinsky e Mondrian; de Schwitters e Duchamp;
de Pollock, Wols, Yves Klein e Rothko; de Lygia Clark e outros neoconcretos etc.
formula um original “sentido de construção” que, para ele, “abre os caminhos mais
positivos e variados a que aspira toda a sensibilidade do homem moderno, ou seja, os de
transformar a própria vivência existencial, o próprio cotidiano, em expressão”1. A partir
dessa visada, desencadeia uma seqüência de experiências voltada para a desintegração

*
Revista USP, nº 4. São Paulo: CCS/USP, dez-jan-fev. 1989-90, p. 45-54.
1
OITICICA, H. “A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade”. Aspiro ao
grande labirinto. Seleção de textos de HO por Luciano Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão. Rio de
Janeiro: Rocco, 1986, pp. 54 e ss.
207

do quadro e para a superação da pintura pelo seu lançamento no “espaço real”:


Metaesquemas, invenções e Relevos espaciais, Núcleos, Penetráveis, Bólides,
Parangolés. Como um único desenvolvimento, essas propostas fazem a anamnese das
pesquisas modernas de transformação do espaço plástico e de aproximação da arte à
vida e inventam uma nova proposta: Manifestações ambientais. Com ela, Oiticica
propõe um outro espaço estético, que não se refere mais ao “espetáculo na superfície”, à
individualidade da criação e à recepção contemplativa. Espaço de ações e
comportamentos, esse novo supõe a destruição das formas de evidenciação da pintura,
mantendo dela, apenas, a possibilidade de fundação de relações estruturais que
abriguem “novos sentidos de espaço e tempo”.
A pesquisa de Oiticica é comandada pelo desígnio de ativar o espaço pela
inclusão do tempo e da cor estrutural: é a busca das “estruturas-cor no espaço e no
tempo”, experiência pela qual visa a “eliminar toda relação de representação e
conceituação que porventura haja carregado em si a arte”2. Abrindo um campo
“completamente inexplorado da arte da cor”, essa pesquisa produz “novas ordens”
experimentais que preparam a emergência de “totalidades ambientais”.
Metaesquemas são estruturas referidas à matriz neoplástica e à pesquisa
malevitchiana das estruturas visuais mínimas e de um além da arte puramente pictórica;
são considerados por Oiticica como a primeira indicação do salto para o espaço.
Determinando uma posição ambígua do espaço pictórico, entre o desenho e a pintura,
são estruturas perturbadas pelo dinamismo imprimido por operações gráficas ou
coloristas: bailam no espaço, sugerindo estruturas em germinação. As formas, de cores
puras e uniformes, abrem-se, soltam-se, abrem festas; articulam-se ritmicamente, numa
plástica mais musical que arquitetônica, de modo que a percepção assiste ao
desprendimento da própria cor no espaço; a cor ganha estabilidade e transcende a
estrutura. O conflito entre espaço pictórico e extra-espaço, aí manifestado como
processo de “diluição estrutural”, é radicalizado nas Invenções: placas monocromáticas
que exercitam a cor como anulação do suporte; estruturas quase diáfanas em que a cor,
“íntegra e absoluta”, é temporalizada pela luminosidade obtida por variações do mesmo
tom. A cor, com densidade uniforme, evita a ilusão espacial, eliminando o efeito de
figura no campo. Cor e suporte tornam-se incompatíveis: o espaço e a estruturam viram
“subsidiários da vontade de cor, de sua necessidade de incorporação”. O quadro, “corpo

2
Idem, ibidem, p. 53.
208

da cor”, apresenta-se como um ato; “duração que pulsa”3. O monocromatismo e os


efeitos de destacamento da parede – tentativas de anular a ação persistente do fundo e
do suporte – liberam a cor como pulsação pura: limite extremo da pintura, mas não do
plástico.
A ambigüidade das Invenções – superfícies absolutamente planas que ainda
permitem uma sorte de ilusão; objetos que produzem um espaço ativo – resolve-se, para
Oiticica, com a superação do quadro: Bilaterais e Relevos espaciais lançam a pintura no
espaço, soltam a cor, pintam a estrutura-cor no espaço temporalizado. Operam, na fase
do neoconcretismo, a passagem decisiva para a pesquisa de ativação do espaço.
Segundo a leitura neoconcreta dos desenvolvimentos construtivistas, essas estruturas de
Oiticica visavam a estabelecer relações novas entre “o homem, o material, as forças e o
espaço”; efetivar o visionário do construtivismo (“somente as construções espaciais
tocariam o coração das massas humanas futuras”)4. Objetos monocromáticos recortados
em madeira, onde se adivinham figuras geométricas geradoras, fundidas numa única
peça, – linearizadas nos Bilaterais, dobradas, formando cavidades, nos Relevos –,
pendentes do teto oferecem ao observador a experiência de um espaço mutável, de
apreensão não-contemplativa da cor. Esta propõe-se como luminosidade e dinamismo
espacial, determinando relações variadas entre superfícies e espaço extraquadro.
Especialmente nos Relevos a cor é instanciada; entra e sai pelas aberturas, explora os
efeitos de cheio e vazio, repropondo a oposição neoplástica entre cores primárias e não-
cores, como também alude ao contraste entre som e silêncio na música. Em relação às
Invenções, produz-se nesses objetos um aumento conceitual, pois os efeitos de
luminosidade decorrem da posição deles no espaço, da direção e intensidade da
iluminação, do lugar de observação. A mutabilidade do sistema permite entendê-los
como “estudos topológicos especulativos”5.
Núcleos e Penetrável são proposições que avançam a pesquisa da estrutura-cor
por duas linhas de investigação, fundidas na busca da “vivência da cor”: a da visão
contínua da estrutura-cor, na exploração das múltiplas direções do espaço e da
ressonância da cor; a da efetivação da participação. Construções arquitetônicas de
diversos níveis, que obedecem à ortogonalidade, os Núcleos são formados por placas de

3
Idem, ibidem, p. 50 e ss.
4
Moholy Nagy e Gabo Pévsner, citados por PEDROSA, M. “A significação de Lygia Clark”. Lygia
Clark. Coleção Arte Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Funarte, 1980, pp. 16-7.
5
BRITO, R. “Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro”. Temas e Debates, n°
4, Rio de Janeiro: Funarte, 1985, p. 65.
209

madeira que pendem soltas, pintadas com cores quentes (laranja, amarelo, vermelho),
luminosas. Labirínticos, são cavidades ambíguas, cabines em que a cor resplandece por
todos os lados. O espectador-participante penetra, assim, num campo de ação; caminha
por labirintos de cor, banha-se em cor, experimentando um espaço de tensões que ele
mesmo pode produzir movimentando as placas. Oiticica considera os Núcleos uma
evolução da estrutura neoplástica de Mondrian, pois a tendência de eliminar o corte (a
“linha abstrata”) de uma cor para outra propicia a visão contínua da estrutura-cor, e a
projeção das placas numa superfície plana não resulta em cortes6.
A experiência dos Núcleos significa a descoberta da cor-luz ativa, do “núcleo de
cor”, com que Oiticica inova a concepção de cor na pintura, pela temporalização do
espaço. Normalmente, a sugestão de luz é obtida pela modificação da intensidade tonal;
no “desenvolvimento nuclear” a passagem de um tom para outro se dá de maneira sutil,
em nuanças; não há, nos Núcleos, tentativa de “amenizar contrastes” por harmonização,
nem de dinamizar a cor por justaposição dissonante ou justaposição de complementares,
“mas de movimentar virtualmente a cor, em sua estrutura mesma”, fazendo-a “durar” no
espaço e no tempo, “como se ela pulsasse de dentro de seu núcleo e se desenvolvesse”7.
a cor-luz gera um espaço por expansão da superfície, distinguindo-se tanto do uso
tradicional, em que a cor é preenchimento e simulação do volume, como do abstrato-
geométrico, em que a forma-cor é condição da organização do espaço visual. Na
experiência de Oiticica, a cor tende a se “corporificar”; a incorporação da cor significa
que ela deve adquirir máxima luminosidade, assimilando o espaço e a estrutura.
O desenvolvimento nuclear propõe, assim, um uso determinado da cor que se
distingue daquele da pintura tonal. Nesta, os componentes cromáticos são fundidos,
perdem suas características singulares, gerando um acordo entre as cores: atmosfera.
Continuando os desenvolvimentos modernos, que na busca da cor pura transformaram a
superfície cromática em matéria cromática, a experiência das estruturas-cor supõe uma
pesquisa sobre as propriedades materiais da cor (propriedades “tímbricas”), tendo em
vista a determinação de suas virtualidades expressivas, isto é, da capacidade de pulsação
produzida na passagem do estado pigmentário (estático, opaco) para o dinâmico (cor-
luz)8. A cor pura age através de seus valores pigmentários ressaltando a luminosidade
intrínseca dos materiais, intensidades crescentes e decrescentes, variações das direções

6
OITICICA, H. Op. cit., pp. 32-3.
7
Idem, p. 40.
8
DORFLES, G. “Sobre a distinção entre cor tonal e cor tímbrica”. A evolução das artes. Trad. port.
Lisboa: Arcádia, s.d. pp. 115-8.
210

de expansão, movimentam a cor, fazendo-a pulsar. Assim, pela exploração das infinitas
possibilidades do timbre, acede-se ao continuum das nuanças: estabelece-se um estado
de indeterminação que ressalta o instante e a integração do espectador no processo.
Assim, não é por simples analogia que Oiticica insiste que a cor tem que se estruturar
como o som na música; que o “sentido musical” é predominante nos Núcleos (não o
arquitetônico). A “dimensão infinita” da cor provém da musicalidade, que não é
“emprestada” às estruturas, nem resultante de relações contrapontísticas ou eurrítmicas
entre as placas, mas que “nasce da sua essência”9.
Oiticica está, pois, atento às pesquisas de pintores e músicos modernos e
contemporâneos que erigem a cor e o som em protagonistas, fugindo aos impactos
tonais. Tratando-os fisicamente, exaltam os timbres e as nuanças (aplicados
indistintamente às qualidades das cores e das sonoridades), pois, sendo indeterminados,
escapam às determinações das vibrações em termos de altura, duração, freqüência10.
Ressaltando a pulsação, das “células” e das estruturas, Oiticica privilegia a exploração
das sinestesias, os estímulos que atingem simultaneamente a vista e o ouvido, todo o
corpo, situando-se no vasto campo (indeterminado) das analogias entre imagens
cromáticas e sonoras11. Na teoria do desenvolvimento nuclear da cor, repercutem os
ecos da kandinskiana “sonoridade da cor”, das pesquisas de Klee e da abstração
cromática (Newman, Rothko, Pollock). Ao buscar o “sentido de cor”, quer dar corpo à
cor: “vivência da cor”.
No Penetrável formula-se o que totaliza a seqüência de proposições anteriores.
Propõem-se nele as condições de realização da estética de “movimento e
envolvimento”12, que fica patente nas experiências subseqüentes. Chegado ao espaço
prefigurado nos desenvolvimentos construtivos, o Penetrável abriga a concepção de cor
pulsante, estrutura-cor envolvente, a participação; dilui a fronteira entre as artes, faculta
modalidades novas de experiências, que são intervenções ativíssimas. Com os
Penetráveis, a estrutura arquitetônica dos Núcleos desce para o chão, originando
Projetos que unem pintura, poesia, música, teatro, experiências cotidianas: móvel,
indeterminado e “organificado”, o novo espaço é um campo de tensões em que as
relações plásticas se transformam em vivências (espaço cotidiano estetizado). Estético e
mágico, o espaço interpenetra o interno e o externo, a “obra” e o cotidiano, a estrutura e

9
OITICICA, H. “Cor, tempo e estrutura”. Op. cit., p. 48.
10
LYOTARD, J.F. “Aprés le sublime, état de l’esthétique”. L’inhumain. Paris: Galilée, 1988, pp. 151-4.
11
DORFLES, G. Op. cit., pp. 206-7.
12
NUNES, B. Lygia Clark e Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Funarte, 1987, p. 42.
211

a cor, num continuum. Tudo o que nos Núcleos era estático, torna-se ativo, vital.
Imagem de uma arte no espaço, a finalidade do Penetrável é encaminhar a atividade
estética para um urbanismo generalizado. É por isso que os Projetos de Oiticica visam à
experiência coletiva: são abrigos, construções ao ar livre, conjuntos de cabines abertas
para jardins, ninhos de lazer, de brincadeiras e jogos. São “âmbitos”13 para propostas,
para invenções, supondo-se que a destinação das atividades é a mudança de
comportamento, tanto do individual como do coletivo. Espaço de jogo, circular, o
Penetrável ou reitera processos na constituição de uma nova imagem da arte, ou então,
jogo vicioso, opera eventos. A circularidade do jogo remete à vertigem do sentido (e dos
sentidos); a pensamentos e experiências em abismo, que liberam a invenção de outros
ritos e outros mitos: a utopia da arte no fio do vivencial.
A imagem desse espaço de transmutações é o labirinto. Consagrado na tradição
artística, o labirinto enfatiza polimorfias, mobilidades, acontecimentos e aberturas.
Remete a jogos abstratos de entreleçamentos, em que o pensamento, sensação, fantasia
ou gesto se desatam, na articulação de espontaneidade e construção. Metáfora
unificadora, o labirinto apresenta o mundo como mistura de previsível e imprevisível,
sendo apropriado para figurar estados fragmentários de dissolução. Forma mítica,
aponta para um centro, para uma ordem em que o contraditório e o díspar operam,
produzindo diferenciação. O labirinto efetua a passagem da perspectiva comum,
estabelecida, para outra, continuamente inventada na ação14. Assim, o labirinto produz a
transformação a que Oiticica aspira: criar estruturas-totalidades que incorporem e
recriem o espaço real. Alterando a posição anterior da estrutura-cor, Oiticica erige os
Penetráveis em dispositivos de transformação e, com eles, reinscreve o simbólico, a
experiência estética. Esta deixa de ser uma atividade interior, uma viagem pelo
imaginário e pela reflexão, tal como se dá na pintura, para ser uma articulação de corpos
e materiais15.
A pesquisa da estrutura-cor, a “necessidade de dar-lhe corpo”, produziu, ainda,
“inesperadas conseqüências” no programa: a emergência das “últimas estruturas
primordiais” do processo de instauração da ordem ambiental: Bólides e Parangolé16.
Nestas propostas, “células germinativas” dos projetos ambientais, o corpo entra como

13
CAMPOS, H. de. “O vôo da razão sensível de Hélio Oiticica”. Entrevista a Lenora de Barros. Folha de
S. Paulo, 26/07/1987, p. A-55. Reproduzida no catálogo Lygia Clark e Hélio Oiticica, p. 55.
14
HOCKE, G.R. Maneirismo: o mundo como labirinto. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 161 e ss.
15
GERVAIS, R. “Big-bang et postmodernité”. Parachute, n° 39, Montréal-Québec, jun/aug, 1985, p. 20.
16
OITICICA, H. “Bólides” e “Situação da vanguarda no Brasil”. Op. cit., p. 63 e 110-1.
212

requisito construtivo, com aumento da participação, da tônica conceitual e do


processual. Objetos-penetráveis, Bólides e Parangolés exercitam a abertura das
proposições arquiteturais, especificam as virtualidades do núcleo de cor, materializam a
junção entre sentido estrutural e sentido de cor. São “centros nucleares de energia”;
fazem a cor fulgurar, pela manipulação de pigmentos ou pela liberação da cor e do
corpo na dança17. Os Bólides adquirem significação especial na experimentação de
Oiticica: conjuntos perceptivos sensoriais; espaços pigmentares de contenção, poéticos-
tácteis, esses “transobjetos” – caixas, latas, sacos, bacias, gavetas, vidros; abrigando
areia, terra, carvão, brita, água, anilinas etc.; preparados para experiências radicais de
cor-luz – possibilitam desvendar as virtualidades da cor imanente e liberar sua
luminosidade intrínseca. Estruturas de inspeção, ou estruturas transcendentais
imanentes, como os denominou Oiticica, incorporam objetos e materiais cotidianos,
visando à sua “estrutura implícita”, ou seja, as virtualidades de liberação de
luminosidade através do contato e manipulação. Situando-se no intervalo entre sinal e
ação, seu efeito é o de estimular novos comportamentos, propiciando a exploração do
indeterminado dos estados de transformação; estranhos, desconstroem os modos de
enunciação que confundem experimentação e suas diluições, na época em que vigorava
em toda parte a estética do objeto. Inspecionando-se os Bólides e neles mexendo-se,
acede-se a experiências que relevam tanto do êxtase visual como do simbolismo de uma
outra posição do imaginário, em que vigem os estados de fantasia e memória típicos do
ludismo infantil, de jogos e surpresas.
Os Parangolés estendem as operações dos Bólides, soltando definitivamente a
estrutura-cor: estandartes, tendas e capas envolvem o corpo, desenvolvem-se no espaço
e no tempo, pulsando com a música, evoluções e dança. Designação que Oiticica aplica
a todos os desenvolvimentos desencadeados pela “descoberta do corpo”, o Parangolé é
a proposição que produz a transmutação da arte em “estrutura ambiental”. A dança das
formas e das cores, virtualidade dos desenvolvimentos construtivos, corporifica-se, vira
comportamento: soltam-se, esvoaçam, fulguram no espaço real. Artefatos em que a cor
se desenvolve, os Parangolés resultam da migração da “imanência expressiva” para a
“imanência do ato corporal expressivo”. A estrutura é, agora, o próprio ato expressivo;
extensões do corpo, os Parangolés salientam ações e gestos esplendentes de cor
(carregar, andar, dançar, abrigar-se, penetrar, percorrer, vestir); ampliam e intensificam

17
BRETT, G. Kinetic art. London: Studio-Vista, 1969, pp. 67-9 e texto no catálogo da Whitechapel
experience. London, 1969, trad. em OITICICA, H. Op. cit. (encarte).
213

o tempo da participação, liberando o imaginário com ações que eliminam os resíduos


contemplativos dos Bólides: exaltam a fantasia, a visualidade espetacular, o êxtase da
dança. Os Parangolés não são objetos; a estrutura se produz, como evento, são instáveis
e indefinidos, à medida que os materiais são usados; explicitam a operação
“transobjetivante”, que é o princípio das “proposições para a criação”: o deslocamento
da arte pela participação propõe a “antiarte ambiental”.
O Parangolé redefine a posição estética de Oiticica, pela abertura de um novo
campo experimental com as imagens e pelo “deslocamento social” da atividade artística,
na “vivência-total Parangolé”. Não se trata de um espaço em que operam formas, mas
de um sistema que desata a fantasia e instaura a “vontade de um novo mito”.
Descontínuo de atividades, os Parangolés são dispositivos que desencadeiam
experiências exemplares, que, salientando uma outra ordem do simbólico, violam o
“estar” dos participantes “como indivíduos no mundo”, transformam-lhes os
comportamentos em coletivos18. A circularidade entre experiência pessoal e
experimentação artística, efetivada no Parangolé, é o ponto crucial do programa de
Oiticica: a formulação da “antiarte ambiental”, que ressalta a criação e a participação
coletiva, é, simultaneamente, uma “tomada de posição em relação a problemas políticos,
sociais e éticos”19. Inconformismo estético e inconformismo social fundem-se no
“programa ambiental” através da experiência da marginalidade (em relação ao sistema
de arte e ao social). Situando-se no horizonte de uma objetividade imaginativa, que se
interessa, não pelos simbolismos da arte, mas pela função simbólica das atividades, cuja
densidade teórica está exatamente na suplantação da pura imaginação pessoal, em favor
de um imaginativo coletivo, a antiarte ambiental de Oiticica propõe uma mudança de
tática no que concerne aos modos de os artistas se manifestarem politicamente:
evidenciar as ambigüidades do processo em curso na vanguarda brasileira, e reexaminar
os pressupostos nela subentendidos. Exemplo dessa posição ético-estética é a maneira
com que Oiticica integrou algumas práticas populares em sua experimentação (o samba,
a arquitetura, as vivências da Mangueira). O interesse de Oiticica pela Mangueira não
implica recurso à valorização, dada naquele momento, à “cultura popular”, com ênfase
em “raízes populares”; ultrapassa o mero interesse por mitos, valores e formas de
expressão das vivências populares. É um interesse pelos aspectos “construtivos” das
habitações, das vivências coletivas, abertas à invenção contínua de formas, lugares e

18
OITICICA, H. “Anotações sobre o Parangolé”. Op. cit., p. 71.
19
Idem. “Esquema geral da nova objetividade”. Op. cit., p.84.
214

comportamentos. Oiticica viveu na Mangueira, foi passista de sua Escola: a Mangueira


lhe deu régua e compasso. Encontrou nela a imagem de uma atividade em que “a
preocupação estrutural se dissolve no desinteresse das estruturas, que se tornam
receptáculos abertos às significações”20.
As Manifestações ambientais de Hélio Oiticica são lugares de transgressão em
que se materializam signos de utopias. As condições que governam estes eventos são
fornecidas pela cultura e pelo propositor: os signos sí são intensos, pois se produzem na
intersecção dos debates do tempo, das propostas de Oiticica e das ações dos
participantes. Ao remeterem os protagonistas à produção de vivências
descondicionantes, essas manifestações não se efetivam apenas como relação de
situações, mas como desejo liberado nas experiências. Apontam, assim, para uma nova
inscrição do estético: a arte como intervenção. Seu campo não é o sistema da arte, mas a
visionária atividade coletiva que intercepta subjetividade e significação social,
propondo-se como uma investigação do cotidiano, não como diluição da arte na vida.
Atividade lúdica e prática reflexiva, o ambiental alia estrutura e fantasia, simbolismos e
efetuações: estrutura-se como retórica (da ação e do movimento). Mágico-poéticas, as
Manifestações ambientais desdobram e reiteram gestos, atitudes, ações; produzem
blocos de significação: com isto, os elementos conjugados perdem a univocidade do
sentido referencial e, recategorizados, produzem séries de outros significados,
afirmando as intensidades móveis, as formas do desejo.
Signo de transformabilidade, a experiência da dança (a “descoberta do corpo”
pelo samba) converge com as da abertura estrutural e da incorporação da cor na eclosão
do Parangolé. A diferenciação do sentido de construção que a partir daí se efetua,
provoca a ressemantização do corpo e é, simultaneamente, sua conseqüência. Pela dança
o corpo vira signo em situação, dotado da força do instante como também de
transcendência. A dança é o desenvolvimento requerido pelo Parangolé e rito por
excelência das atividades que suscita: realiza o que está implícito na idéia de envolver-
se e desdobrar, pois institui um espaço intercorporal gerado pelas estruturas-
comportamentos, em que se atualizam relações mutáveis da estrutura e do corpo. A
dança é a fantasia desse movimento: integra ritmo, corpo e estrutura; enfatiza gestos,
dilui arquiteturas, estende espaço, solta cor. Manifesta a “força mítica” (coletiva) e a

20
Idem. “As possibilidades do Crelazer”. Op. cit., p. 114.
215

“embriaguez dionisíaca” que provêm da vivência plena do presente como “lucidez


expressiva da imanência do ato”21.
Para Oiticica, a dança, como “busca do ato expressivo direto”, respondeu à
“necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, à necessidade de
uma livre expressão”22, desatando o vivencial implícito nas proposições anteriores. Mas,
para que tivesse esse poder de “diluição estrutural” não poderia ser a “dança de par”,
mas outra, livre, suscetível a interferências acidentais e improvisações. Inicialmente, foi
o samba que lhe possibilitou “uma imersão do ritmo, uma identificação vital completa
do gesto, do ato com o ritmo”. Aí “as imagens são móveis, rápidas, inapreensíveis – são
o oposto do ícone, estático e característico das artes ditas plásticas – em verdade a
dança, o ritmo, são o próprio ato plástico na sua crueza essencial – está aí apontada a
direção da descoberta da imanência. Esse ato, a imersão no ritmo, é um puro ato criador,
uma arte – é a criação do próprio ato, da continuidade”23. Mais tarde, Oiticica viu no
rock a possibilidade de efetivação ainda mais livre das potências da dança, pois o samba
exige uma “iniciação”, mas o rock é pura invenção, ao alcance de todos. Para a pessoa
que adere a ele, o rock produz uma transformação semelhante às operações de
Malévitch e Duchamp; desconstrói a experiência, provoca a invenção. O rock tem, pois,
para Oiticica, um efeito radical na mudança do comportamento; é uma espécie de
“branco no branco” malevitchiano24. Para ele, “o rock é a síntese planetário-fenomenal
dessa descoberta do corpo que se sintetiza no novo conceito de música como totalidade-
mundo criativa em emergência hoje: Jimi Hendrix, Dylan e os Stones são mais
importantes para a compreensão plástica da criação do que qualquer pintor depois de
Pollock (...) e não seria a essa síntese música-totalidade plástica a que teriam conduzido
experiências tão diversas e radicalmente ricas na arte da primeira metade do século
quanto as de Malévitch, Klee, Mondrian, Brancusi?: e por que é que a experiência de
Hendrix é tão próxima e faz pensar tanto em Artaud”25?
O destaque do samba e do rock nas manifestações e projetos ambientais de
Oiticica liga-se à posição da música popular, como prática cultural que incide sobre as
potências do corpo, como reflexão sobre o cotidiano e como produção que expõe

21
Idem. “A dança na minha experiência”. Op. cit., pp. 73-4.
22
Idem, ibidem, p. 72.
23
Idem, ibidem, p. 73.
24
“A arte penetrável de Hélio Oiticica”. Entrevista de Hélio Oiticica a Ivan Cardoso em 1979. Folha de S.
Paulo, 16/11/1985, p. 48.
25
Anotações de Hélio Oiticica no catálogo “O q faço é Música”, da retrospectiva de sua produção na
galeria de arte São Paulo, fev/mar, 1986. O texto comparece aqui sem a grafia característica de Oiticica.
216

ambigüidades e contradições sociais. Espécie de “enciclopédia implícita”, operada por


uma etnologia sincrética, a canção reitera sofrimentos, alegrias, dramas amorosos e
malandragens; repensa a condição dos homens lançados ao destino e os debates
culturais; anela pelas utopias de renovação da vida e presentifica o imaginário da festa26.
Complexa, elabora-se como pulsação dos ritmos, da linguagem e do corpo; fortemente
iconográfica e gestual, tende sempre a exibir os caracteres daquilo que denota,
suscitando no ouvinte reações imediatas; participa da dança e do espetáculo, realçando
não só a voz como o corpo dos participantes27.
Oiticica explicitou essa base comum da música popular, realçando mais uma vez
o seu valor na “descoberta do corpo”, na sua análise da produção dos músicos
tropicalistas28. Tendo como referência as Manifestações ambientais, Parangolé coletivo
(Parque do Aterro, mai, 1967), Apocalipopótese (Parque do Aterro, ago, 68) e,
principalmente, Tropicália, projeto ambiental montado na mostra “Nova objetividade
brasileira” (MAM-RJ, abr, 67), que se tornou emblema da sua antiarte ambiental,
Oiticica ressaltou a coincidência de proposta, de procedimentos e de crítica, entre a sua
produção e a do grupo baiano. Valorizando a atividade tropicalista, Oiticica vincula-a às
suas experiências: ao traçar o paralelismo das duas propostas, ressalta as “conexões do
grupo baiano com problemas universais da vanguarda”, por sua visão estrutural,
radicalidade crítica, e posição revolucionária no processo de revisão cultural e de
renovação das artes no Brasil. Reconhece nos tropicalistas uma prática que se assemelha
à sua: a renovação de comportamentos, de critérios de juízo etc. passa pelo modo de
produção, aliando conceitualismo, construtividade e vivência. Ambas as produções
originam conjuntos heteróclitos, em que processos artísticos e culturais diversos são
justapostos e, efeito da devoração, reduzidos a signos que agenciam ambivalência
crítica. Os tropicalistas, diz Oiticica, “modificam estruturas, criam novas estruturas”.
Para ele, o auge da atitude experimental tropicalista foi atingido no programa de TV
“Divino maravilhoso”, pois aí foram reunidos todos os elementos que compõem o
“caráter ambiental” das canções, totalizados no “calor ambiente” propiciado pelo
espetáculo, em que o sentido grupal, a dança, as roupas e adereços, o cenário, os

26
RODRIGUES, A.M. “A poesia lírica das modinhas e solidão política”. Jornal da Tarde, 26/07/1980, p.
10.
27
BERIO, L. “Commentaires au rock”. Musique em Jeu, n° 2, Paris: Seuil, 1971, p. 56; MORIN, E. “Não
se conhece a canção”. Linguagem da cultura de massas. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 146 e ss.
28
OITICICA, H. “O sentido de vanguarda do grupo baiano”. Correio da Manhã, 24/11/1968.
217

recursos eletrônicos e televisivos, a improvisação, as interferências aleatórias foram


potencializados, gerando uma “trama que se faz e cresce por etapa: a trama-vivência”.
De fato, em ambas as “tropicálias” o experimentalismo articula o construtivo e o
comportamental; a participação é constitutiva da produção e a crítica, efeito da abertura
estrutural. Responderam, assim, de modo imprevisto, às polarizações em curso nos
debates do tempo: lirismo e participação, crítica e inserção no mercado, vanguarda e
tradição, criação individual e coletiva. Naquela situação cultural, em que a circulação de
projetos com ênfase no conceitual e no vivencial era tendência comum nas artes, e o
tom crítico impunha-se, como ruptura, no imaginário da participação, essas produções
(juntamente com Terra em transe, O rei da vela do Grupo Oficina, PanAmérica de José
Agrippino, O bandido da luz vermelha de Sganzerla etc.), radicalizaram as posições em
conflito, não distinguindo experimentalismo e crítica da cultura.
Em Tropicália – um labirinto feito de dois penetráveis, plantas, areias, araras,
poemas-objeto, capas-parangolé, aparelho de TV, música, dança – monta-se uma cena
que mistura o “tropical” (primitivo, mágico, popular) com o tecnológico (mensagens e
imagens), proporcionando experiências visuais, tácteis, sonoras; brincadeiras e
caminhadas. Penetrando no ambiente, o participante envolve-se com materiais e
referências culturais disparatados; devorando imagens, entra numa atividade que
provoca a reflexão, pois não se apresenta qualquer síntese possível desses elementos
contraditórios em estado de indistinção e mistura. É um ambiente-acontecimento que
opera transformações de comportamentos: desconstrói as experiências e referências,
impedindo a fixação de uma “realidade brasileira” constituída. Processo conjuntivo e
ambivalente, a Tropicália joga com significações óbvias e ocultas, propondo que a
atividade do protagonista é provocar a “explosão do óbvio”29: demitizar imagens,
linguagens e comportamentos. A crítica provém dessa atitude de devoração, e não pela
figuração de uma realidade como totalidade sem fissuras. A devoração ressignifica tudo
o que é traço cultural. Nesse sistema, que não se fixa estruturalmente (pois se faz como
circularidade e troca), os participantes são confundidos em suas expectativas. Desloca-
se, assim, o que se designa como “arte” e, simultaneamente, o modo de atuação cultural.
Construtivo, indeterminado e ambivalente, o projeto ambiental de Oiticica determina o
problema cultural brasileiro; não o resolve, qual uma dialética que buscasse a síntese
dos elementos contraditórios.

29
ZILIO, C. “Da antropofagia à tropicália”. O nacional e o popular na cultura brasileira: artes plásticas
e literatura. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 30.
218

A música tropicalista abriu um campo experimental inédito nos domínios da


canção praticada no Brasil. Explorando a estrutura híbrida e imprecisa da canção30,
recarregou a música popular: texto, melodia, ritmo, vocalização, arranjo, gestualidade e
dança nela são redimensionados e se entre-exprimem. Articulando elementos diversos –
tradição musical brasileira, rock, iê-iê-iê, música experimental, poesia de vanguarda,
mise-en-scène, enquadramentos e montagem cinematográficos – explodiu os limites que
determinavam a música popular, problematizando-a como gênero artístico, forma de
comunicação (crítica e comercial) e enquanto manifestação popular31.
Compôs uma linguagem de mistura, semelhante às manifestações ambientais,
gerou um campo de atuação, explorando esse espectro de determinações e submetendo
as pulsações das canções a um projeto que desconstruía os temas e privilegiava a
enunciação. As canções são acontecimentos: montam o painel da diversidade cultural,
exibindo simultaneamente os seus processos de produção; tal operação incide nos
comportamentos, corroendo as designações e a posição dos sujeitos. Desenvolvem-se
como eventos que descentram à percepção organizada por continuidade, propondo-se
como ações que exigem do ouvinte a produção de significados e instalando-o como
protagonista de acontecimentos. A cascata de imagens gera uma temporalidade estranha
à comunicação imediata, à representação linear de sentimentos e idéias. Cruzando várias
durações presentificadas, as músicas temporalizam espaços e exploram a ambivalência
das significações conjugadas. O receptor não ouve, propriamente, as músicas, mas
realiza idéias, estabelece relações, acompanha desenvolvimentos, neles interferindo.
Participando de uma festa, que também é farsa, vê desdobrar-se um painel, que
aparentemente designa o Brasil, mas que leva a uma metáfora terminal, a uma alegoria
do Brasil32.
A convergência dos projetos de Oiticica e dos tropicalistas patenteia-se,
portanto, na transformação do espectador (ouvinte) em protagonista de ações, pela
exploração da indeterminação provocada pela abertura estrutural e do heteróclito de
materiais e referências agenciados nos sistemas. Há, entretanto, distinções de níveis de
produção significante, devido à singularidade de cada uma das poéticas. Nas músicas,
produzem-se imagens estranhas e alusivas; enigmáticas como as da elaboração onírica,
materializam-se como exercício surrealista. No ambiente de Oiticica, a alusão não

30
TATIT, L. “Vocação e perplexidade dos cancioneiros”. Folha de S. Paulo, Folhetim, 20/02/1983, pp.
6-7.
31
FAVARETTO, C.F. Tropicália, alegoria alegria. São Paulo: Kairós, 1979.
32
Idem, ibidem, caps. III e IV .
219

efetua um movimento decisivo em direção a um sentido profundo a ser decifrado, pois a


relação entre significados óbvios e ocultos não exige que a designação literal seja
vencida pela figurada, tal como nas músicas, que, assim, compõem alegorias. Nas
músicas, o efeito surreal resulta mais da construção textual; no ambiente de Oiticica o
que sobressai é a exposição sensorial dos materiais. Naquelas, o fluxo contínuo das
imagens produz metaforização; neste, resíduos e objetos coexistem, gerando sincretismo
e indiferenciação. Entretanto, em ambas as produções o resultado do tráfego entre as
imagens designa um heteróclito que não significa um todo homogêneo, mas o
estilhaçam. As músicas figuram as indeterminações culturais, sugerindo uma totalidade
de incompossíveis no presente e excluindo qualquer forma de realização na utopia; a
Tropicália de Oiticica indicia processos de atuação cultural.
220

Hélio Oiticica e a música tropicalista*

Ao passar das pesquisas da estrutura-cor ao parangolé, Oiticica efetiva o seu


projeto de transformação da pintura em estrutura ambiental. Articulando corpos e
materiais, referências e imagens, música e dança, abre o programa com uma modalidade
de experiência que intercepta proposições experimentais e práticas culturais. Música e
dança são intrínsecas às proposições ambientais; operadores de passagens e signos de
transformabilidade. Nas experiências plástico-visuais, compareciam por alusões e
analogias, agora se explicitam, detonadas na “descoberta do corpo” pelo samba.
Ponto crucial do programa, o parangolé redefine a posição estética de Oiticica:
articulando construtividade e vivência, reconceitua a arte, ressignifica a participação,
concretiza o sentido ético-estético de sua atividade. Compatibilizando o estrutural e o
vivencial, idéia e comportamento, participação individual e coletiva, ativa o espaço pela
inclusão do tempo e do movimento, liberando a luminosidade da cor nos movimentos e
envolvimentos transespaciais. As manifestações ambientais surgidas do programa-
parangolé configuram-se como espaços de ações e comportamentos; suscitam relações
estruturais abertas em que se produz circularidade entre experiências individuais,
coletivas e artísticas.
As formas e cores, que desde os Metaesquemas tendiam a se soltar numa
plástica mais musical do que arquitetônica, de modo que a percepção assiste ao
desprendimento da própria cor no espaço, transcendem agora a estrutura, temporalizam-
se. Prosseguindo nesta pesquisa de ativação do espaço e da cor, Oiticica busca, com o
que denominou “desenvolvimento nuclear”, um uso da cor que se distinga daquele da
pintura tonal. Os núcleos de cor exploram a capacidade de pulsação produzida na
passagem do estado pigmentário para o dinâmico, da cor-luz. Assim, não é por simples
analogia que Oiticica insiste que a cor tem de se estruturar como o som na música, mas
para exaltar os timbres e as nuanças. Ressaltando a pulsação dos núcleos de cor,
privilegia as sinestesias que atingem simultaneamente a vista e o ouvido, todo o corpo.

*
In: HERKENHOFF, Paulo & PEDROSA, Adriano (orgs.). Arte contemporânea brasileira: um e/entre
outro(s). Catálogo da XXIV Bienal de São Paulo (1988). São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo,
1999, p. 148-151.
221

Repercutem aí os ecos da kandinskiana “sonoridade da cor”, das pesquisas de Klee e da


abstração cromática.
Os parangolés efetivam esta pesquisa, pois são artefatos que se desenvolvem no
espaço e no tempo, pulsando com a música, evoluções e dança – corporificando a cor,
gerando espaços de ação e vivências. A estrutura é agora o próprio ato expressivo,
intensificado pela participação. Não se trata mais de um espaço em que operam formas,
mas de um sistema que desata a fantasia e instaura uma outra ordem do simbólico,
transformando a arte em ação coletiva. O parangolé propõe uma nova imagem da arte e
dos modos de os artistas manifestarem-se: uma atividade ético-estética que integra
experimentação artística e práticas populares. Aponta, assim, para a concepção da arte
como intervenção; uma atividade visionária que intercepta subjetividade e significação
social pela ressemantização do corpo. Música e dança são requisitos do parangolé; por
elas, o corpo vira signo em situação, dotado da força do instante e também de
transcendência. Inicialmente, foi o samba que proporcionou a Oiticica o salto para a
realização da idéia de antiarte ambiental, compondo a proposição de estruturas
vivenciais com o interesse ético-social. Mais tarde, veria no rock uma possibilidade
ainda mais livre de efetivar as potências da música e da dança em seu programa.
O destaque conferido à música popular no programa ambiental de Hélio Oiticica
provém da especificidade cultural dessa prática consagrada no Brasil. Incidindo sobre as
pulsões, traduzindo os imaginários, refletindo sobre o cotidiano, expondo ambigüidades
e contradições sociais e figurando o político, as canções meditam sobre a condição
existencial, propõem utopias de renovação da vida. Complexas estruturalmente,
elaboram-se como pulsações de corpo e linguagem. Fortemente iconográficas e
gestuais, exibem os caracteres daquilo que denotam, suscitando no ouvinte reações
imediatas. Participando da dança e do espetáculo, realçam a voz e o corpo dos
participantes.
Assim, a valorização que Oiticica faz da produção musical do grupo baiano
(Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Capinam, Tom Zé) é conseqüência do
sentido de suas proposições ambientais. Sabe-se, inclusive, que os músicos foram
denominados “tropicalistas” porque o seu modo de atuação foi julgado semelhante ao
que ocorria no projeto ambiental Tropicália, que Oiticica instalara no MAM do Rio de
Janeiro em 1967, simultaneamente à eclosão das primeiras músicas de Caetano e Gil.
Sabe-se também que a música Tropicália de Caetano Veloso foi assim denominada por
222

admitir semelhanças temáticas e estruturais com o ambiente de Oiticica – que, aliás,


produzira impacto no compositor.
No artigo “O sentido de vanguarda do grupo baiano”1, Oiticica ressaltou a
coincidência de proposta, de procedimentos e de crítica cultural entre o seu programa
ambiental e a produção do grupo baiano. Detectou nos tropicalistas uma posição
revolucionária no processo de revisão cultural por meio da renovação das artes no
Brasil, pois estavam sintonizados com os “problemas universais da vanguarda”,
manifestando em suas atividades visão estrutural e radicalidade crítica. Reconhece neles
uma prática que se assemelhava à sua: a renovação da música, dos critérios de juízo e
dos comportamentos derivados da nova audição que requeriam, passavam pelo modo de
compor, articulando conceitualismo, construtividade e participação. Os tropicalistas, diz
Oiticica, “modificam estruturas, criam novas estruturas”. Dentre as produções
tropicalistas, destacou a semelhança do programa de televisão Divino maravilhoso com
as suas manifestações ambientais. Aí, diz ele, foram reunidos todos os elementos que
compõem o “caráter ambiental” das canções, totalizados no “calor ambiente” propiciado
pelo espetáculo: sentido grupal, dança, roupas e adereços, cenário, recursos eletrônicos,
improvisação, interferências aleatórias geram “a trama-vivência”.
Este “caráter ambiental”, comum a ambas as produções, pode ser melhor
evidenciado pela comparação dos modos de operar o experimentalismo conjugado à
crítica cultural. Ambas montam conjuntos heteróclitos justapondo processos artísticos e
referências culturais que, submetidos à devoração por efeito da participação, são
reduzidos a signos ambivalentes.
Em Tropicália – um labirinto feito de dois penetráveis, plantas, areias, araras,
poemas-objeto, capas-parangolé, aparelhos de TV, música, dança – monta-se uma cena
que mistura o “tropical” (primitivo, mágico, popular) com o tecnológico (mensagens e
imagens), proporcionando experiências visuais, táteis, sonoras; brincadeiras e
caminhadas. Penetrando no ambiente, o participante envolve-se com materiais e
referências culturais disparatados; devorando imagens, entra numa atividade que
provoca a reflexão, pois não se apresenta aí qualquer síntese possível dessa mistura de
elementos contraditórios. É um ambiente-acontecimento que opera transformações de
comportamentos: desconstrói as experiências e referências, impedindo a fixação de uma
“realidade brasileira” constituída. Processo conjuntivo e ambivalente, Tropicália joga

1
Correio da Manhã, 24/11/1968.
223

com significações óbvias e ocultas, propondo que a atividade do protagonista seja


provocar a explosão do óbvio2: demitizar imagens, linguagens, significados e
comportamentos. A crítica provém dessa atitude de devoração, e não pela figuração de
uma realidade como totalidade sem fissuras. A devoração ressignifica tudo o que é traço
cultural. Neste sistema, que não se fixa culturalmente, pois se faz como circularidade e
troca, os participantes são confundidos em suas expectativas. Desloca-se, assim, o que
se designa como “arte” e, simultaneamente, o modo de atuação cultural. Construtivo,
indeterminado e ambivalente, o projeto ambiental de Oiticica determina o problema
cultural brasileiro; não o resolve, entretanto, qual uma dialética que buscasse a síntese
dos elementos contraditórios.
A música tropicalista abriu um campo experimental inédito nos domínios da
canção praticada no Brasil. Explorando a estrutura híbrida e imprecisa da canção,
recarregou a música popular: texto, melodia, ritmo, vocalização, arranjo, gestualidade e
dança nela são redimensionados e se entre-exprimem. Articulando elementos diversos –
tradição musical brasileira, rock, iê-iê-iê, música experimental, poesia de vanguarda,
mise-en-scène, enquadramentos e montagens cinematográficos – explodiu os limites
que determinavam a música popular, problematizando-a como gênero artístico, forma
de comunicação (crítica e comercial) e enquanto manifestação popular. Compôs uma
linguagem de mistura, semelhante às manifestações ambientais; gerou um campo de
atuação explorando esse espectro de determinações e submetendo as pulsações das
canções a um projeto que desconstruía os temas e privilegiava a enunciação. As canções
são acontecimentos, montam o painel da diversidade cultural, exibindo simultaneamente
os seus processos de produção; tal operação incide nos comportamentos, corroendo as
designações e a posição dos sujeitos. Desenvolvem-se como eventos que descentram a
percepção organizada por continuidade, propondo-se como ações que exigem do
ouvinte a produção de significados e instalando-o como protagonista de acontecimentos.
A cascata de imagens gera uma temporalidade estranha à comunicação imediata, à
representação linear de sentimentos e idéias. Cruzando várias durações presentificadas,
as músicas temporalizam espaços e exploram a ambivalência das significações
conjugadas. O receptor não ouve, propriamente, as músicas, mas realiza idéias,
estabelece relações, acompanha desenvolvimentos, neles interferindo. Participando de

2
ZILIO, C. “Da antropofagia à tropicália”. O nacional e o popular na cultura brasileira: artes plásticas e
literatura. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 30.
224

uma festa, que também é farsa, vê desdobrar-se um painel, que aparentemente designa o
Brasil, mas que leva a uma metáfora terminal, a uma alegoria do Brasil.
A convergência dos projetos de Oiticica e dos tropicalistas patenteia-se,
portanto, na transformação do espectador (ouvinte) em protagonista de ações, pela
exploração da indeterminação provocada pela abertura estrutural e do heteróclito de
materiais e referências agenciados nos sistemas. Há, entretanto, devido à singularidade
de cada uma das poéticas, distinções de níveis de produção significante. Nas músicas,
produzem-se imagens estranhas e alusivas, enigmáticas como as da elaboração onírica,
compondo alegorias. No ambiente de Oiticica, a alusão não efetua um movimento
decisivo em direção a um sentido profundo a ser decifrado, pois a relação entre
significados óbvios e ocultos não exige que a designação literal seja vencida pela
figurada. Nas músicas, o efeito surreal resulta mais da construção textual; no ambiente
de Oiticica, o que sobressai é a exposição sensorial dos materiais. Naquelas, o fluxo
contínuo das imagens produz metaforização; neste, resíduos e objetos coexistem,
gerando sincretismo e indiferenciação. Entretanto, em ambas as produções, o resultado
do tráfego entre as imagens designa um heteróclito que não significa um todo
homogêneo – o Brasil –, mas o estilhaçam. As músicas figuram as indeterminações
culturais, sugerindo uma totalidade de incompossíveis no presente e excluindo qualquer
forma de realização na utopia; a Tropicália de Oiticica indicia processos de atuação
cultural.3

3
Este texto retoma e reelabora idéias desenvolvidas nos livros A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo:
Edusp, 1992 e Tropicália: alegoria, alegria, 2. ed., São Paulo: Ateliê Editorial, 1996.
225

Tropicália, cultura e política*

Uma das estranhezas provocadas pela música tropicalista, pelo menos na época
de seu surgimento, foi o seu modo de tratar o contexto sócio-político-cultural, ou, como
se dizia, a “realidade brasileira”, um conceito compósito e muito significativo da época.
Mais precisamente: estranho foi o modo de conceber e realizar na música a relação entre
arte e realidade imediata, entre cultura e linguagem, através de uma articulação
inusitada face às soluções que se apresentavam na época, inclusive nos domínios da arte
de vanguarda. A singularidade da atividade tropicalista, alvo de suspeitas e acusações,
por uma parte da crítica e do público – que lhe atribuíam a pecha de “arte alienada”, ou
simplesmente “comercial”, sem reconhecer seu caráter revolucionário – configurou-se
como uma intervenção artístico-cultural que definiu uma posição estética radical, com
ressonâncias imediatas e de ampla atuação na produção artística brasileira, talvez, até
hoje. Foi uma intervenção cujo vigor deveu-se ao fato de derivar de uma intervenção
criativa na própria estrutura da canção e no sistema que a sustentava. Os artistas, o
público, a crítica, os sistemas de comunicação, todos foram atingidos pelo modo como
as músicas e a atuação do chamado grupo baiano incidiram e evidenciaram as
contradições culturais e políticas daquele momento histórico. Esse modo singular dos
tropicalistas, das canções tropicalistas, caracterizou-se por fazer incidir a crítica social e
política diretamente na estrutura da canção, na sua construção e na articulação das
imagens, cujo resultado mais contundente está na formulação das imagens alegóricas.
Pode-se exemplificar a eficácia deste modo novo e específico de atuar com uma
declaração de Caetano Veloso, em uma entrevista de anos depois:o tropicalismo, dizia,
produziu “a explicitação da função crítica da criação”, ou seja, uma reflexão sobre os
poderes da canção em termos de linguagem e de crítica social.
Quando em meados dos anos 70 escrevi o livro Tropicália, alegoria alegria,
publicado em 1979, ainda não era fácil defender o tropicalismo, ressaltar a sua
singularidade e importância no que se referia às discussões sobre arte participante e arte
de vanguarda ou experimental.Tratava-se de mostrar que a atividade tropicalista
produzira uma relação tensa entre vanguarda e comunicação, vanguarda e mercado, e

*
Versão modificada do texto “Tropicália:política e cultura”, publicado em DUARTE, P.S. & NEVES,
Santuza C. Do samba-canção à tropicália. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Faperj, 2003, p. 242-247.
226

não uma composição esperta de vanguarda e conformismo, como linhas críticas


acentuavam. Demorou muito tempo para que a crítica contemplasse devidamente a
importância da intervenção tropicalista, embora em termos de criação, como já foi dito,
a repercussão tenha sido imediata, bastando para isto verificar as transformações na
produção musical brasileira a partir do final da década de 60 Tome-se como exemplo
privilegiado, da complexidade das posições críticas do período, um artigo de Roberto
Schwarz, que é de 1967, chamado “Nota sobre vanguarda e conformismo”. Referindo-
se a entrevistas feitas por Júlio Medaglia, publicadas no Suplemento Literário de “O
Estado de São Paulo” com Rogério Duprat e outros músicos de formação
contemporânea que atuavam em São Paulo, e que se tornaram arranjadores ou já
estavam vinculados aos tropicalistas, o crítico começa o artigo dizendo o seguinte:
“Sabe-se que progresso técnico e conteúdo social reacionário podem andar juntos. Essa
combinação, que é uma das marcas do nosso tempo, em economia, ciência e arte, torna
ambígua a noção de progresso. Também a noção próxima, de vanguarda, presta-se à
confusão. O vanguardismo está na ponta de qual corrida?”. Essa pergunta tornou-sei
emblemática das posições críticas da esquerda que atribuía à experimentação
vanguardista em desenvolvimento no Brasil inúmeras ambigüidades quando às suas
pretensões de, ao promover a renovação artística, estar também renovando os modos de
atuação política da arte. Num ensaio posterior, Cultura e política de 1964 e 1969, o
crítico reafirmou os termos do artigo, embora ressaltando a importância do tropicalismo,
inclusive lançando a primeira formulação consistente da estética tropicalista, com sua
análise das imagens alegóricas. Mas, assim mesmo, ao acentuar a ambigüidade das
imagens, apesar do seu brilho, não desmente os termos do artigo anterior, agora
projetados na música tropicalista, em que vislumbrava, como perigosos para fins
políticos, efeitos conformistas que resultariam da simbiose com as exigências do
mercado. E no texto “O que pensa você do teatro brasileiro?”, inserido no catálogo da
“1a. Feira Paulista de Opinião”, em 1968, Augusto Boal também ressaltava a
interferência do mercado na “perspectiva criadora”, especialmente na “tendência
tropicalista”. Para ele, o tropicalismo era “neo-romântico”, pois agredia apenas as
aparências da sociedade, “o predicado e não o sujeito”; era “homeopático”, porque
ambiguamente endossava o que criticava e, “inarticulado”, caótico, portanto sem clareza
política.
A compreensão e aceitação do tropicalismo exigiu uma mudança da audição, dos
critérios do que era até então considerada música popular e do seu valor cultural, assim
227

como a transformação das categorias de avaliação de suas várias dimensões –


artísticas,sócio-políticas, de entretenimento e mercadológicas. Assim, se naquela
ocasião, de um lado a música tropicalista foi recebida com entusiasmo por aqueles que
estavam em busca do novo, atilados para o novo, valorizando a estranheza, enfadados
com a repetitividade e falta de eficácia crítica da maior parte da produção da arte de
denúncia, por outro não era aceita facilmente por aqueles que se mostravam
desconfiados de uma arte que se apresentava com inequívoco tom de provocação
política e moral, mas através de uma expressão difícil, estranha, musicalmente e
textualmente complicada, cheia de efeitos de linguagem que dificultavam a audição e
compreensão do “assunto”. Para uma visada da música popular, e da arte em geral,
interessada na comunicação de conteúdos, políticos, sociais, morais e artísticos, ou seja,
para uma visão ideológica que apostasse em alguma espécie de instrumentalização da
arte, tendo em vista, por exemplo, a sua importância para a transformação social, mais
ou menos imediata, as músicas tropicalistas não seriam satisfatórias, pois os seus
processos de construção e de elaboração dos temas não poderiam ser acessíveis ao
“povo”, tomado como entidade histórica, não servindo, assim, para efeitos de
mobilização política. Mais estranhas e complicadas eram as apresentações dos
tropicalistas na televisão, espetáculos, assim como o que diziam e com se vestiam, etc.
O aspecto comportamental da atividade tropicalista também escapava à maioria. Ora os
tropicalistas eram tratados, especialmente pelos tradicionalistas e reacionários, como
simplesmente extravagantes, o que era perdoado por serem jovens, artistas, astros da
televisão, assunto de revistas, etc., ora eram alvo de críticas ferinas , por serem
comerciais, irresponsáveis, alienados, etc. O moralismo estava em toda parte.
O que é que essas diversas críticas, até com orientações ideológicas opostas, não
toleravam quando atribuíam aos tropicalistas, ora um certo conformismo, ora uma
petulância, pelo fato de estarem evidenciando na sua produção a assimilação das
técnicas, processos e linguagens dos meios de comunicação de massa, que vinham
misturados com os tradicionais e aos de vanguarda? O que não estava sendo entendido?
Não percebiam o caráter eminentemente construtivista , a tônica construtiva, do trabalho
dos tropicalistas. As músicas tropicalistas são construtivistas. O “sentido de
construção”, para usar uma expressão de Hélio Oiticica, que aparece acentuado já nas
vanguardas históricas, destacando-se dos cubo-futuristas russos, a Mondrian e ao
concretismo e neoconcretismo brasileiros, e que também pode ser flagrado na voz e no
violão de João Gilberto, é procedimento fundamental da música tropicalista.. A ênfase
228

no processo construtivo das músicas tropicalistas permite ver nelas como se articulam o
conceitual e o sensível, idéia e comportamento – uma experiência em desenvolvimento
em muitas artes daquele tempo, em Lygia Clark e Oiticica, por exemplo, em muito mais
gente e domínios, mas que nunca havia sido feito nada semelhante na música.Para os
críticos do tropicalismo, haveria nas canções, muito ao contrário, uma desarticulação de
linguagem e uma falta de sentido, algo caótico, incompreensível. Daí não entenderem
que a participação, um requisito da arte do tempo, não estava ausente no tropicalismo,
que o político aparecia e era contundente, só que, devido ao modo construtivista com
que eram compostas as músicas, a participação também era constitutiva da estrutura,
não um efeito de uma fala através da música. A participação dependia do grau de
elaboração a que o ouvinte era levado a operar; efeito da abertura estrutural das canções,
exigindo a entrada e interferência do ouvinte-espectador-participante.
As canções tropicalistas produziram, em virtude dessa atitude, uma verdadeira
ruptura no imaginário da participação que comandava as ações em quase todas as
manifestações artísticas, ao operar o deslocamento da idéia e das práticas para
modalidades de participação focados no princípio de intervenção – na estrutura da
canção e na proposição de gestos simbólicos com poder de. choque ou de alusão a uma
outra posição na arte e na história. Essa ruptura no imaginário produzida pelo
tropicalismo tematizava e insistia criticamente no processo de descentramento cultural,
enfatizando que no Brasil posição crítica permanente, da política e da cultura, e
experimentalismo artístico são indissociáveis, são elementos construtivos, o qur foi tão
bem formulado um pouco depois por Hélio Oiticica em “Brasil Diarréia”. Para se
perceber esta nova atitude face à participação, e nela entrar, exigia-se dos participantes
uma sensível mudança de posição, de idéias, de comportamento; uma sensibilidade
aguçada para as diferenças, crítica das totalizações, enfim, uma abertura, uma coragem
para viver transformação. Dentre estas, era preciso valorizar o trabalho dos tropicalistas
com a heterogeneidade cultural e a mistura de referências artísticas, perceber as relações
tensas entre elementos provenientes das culturas populares, do consumo e das
vanguardas – o que , aliás, ocorria não só na música como nas artes plásticas e no teatro,
em breve em todas as artes. Basta lembrar, para exemplificar, dos trabalhos de José
Celso Martinez Corrêa, de Oiticica, Antonio Dias, Gerchman, de Joaquim Pedro de
Andrade, de Arnaldo Jabor e, também, do Panamérica de José Agrippino de Paula.
Com este procedimento, deslocando a ênfase do tema para o modo de formar, o
tropicalismo designou as assincronias e sincretismos culturais enquanto
229

simultaneamente desconstruía as linguagens instituídas, o que provocava uma mal-estar,


à direita e à esquerda, embora por razões diferentes. Da mesma maneira deslocou a
forma básica da arte de protesto: as interpretações da “realidade brasileira,
transformadas em palavras de ordem por via emotiva, que tiravam todo o seu efeito da
produção de significados totalizadores que deviam imprimir no público visado, o
imperativo da ação, imediata, ainda que reduzida a manifestações espetaculares de
inconformismo. Os tropicalistas não desdenhavam a necessidade de atingir
virulentamente o seu público, apenas pensavam de outro modo a eficácia de suas
intervenções. Utilizando os efeitos de humor, a sátira, linguagem e gestos grotescos,
carnavalizando as referências, deslocaram o ouvinte-receptor dos lugares de fala
estabelecidos ideologicamente, lançando o receptor a um estado de produtividade. Hoje
tal procedimento é banal; é fácil ouvir música tropicalista; temos o ouvido treinado por
três décadas de rock e todo tipo de música, inclusive experimentais, quase tudo
assimilado na nossa música popular, cantada e instrumental. Mas naquele tempo era
muito difícil, era preciso estar muito disposto à inovação e a ser violentado, no gosto,
nos gêneros, nos temas, nas atitudes, nos valores. Era difícil assimilar o princípio básico
de construtividade, na criação, na crítica e na fruição. Os tropicalistas fizeram da
transgressão um princípio complementar ao de construtividade. O modo como os
artistas se apresentavam, com roupas extravagantes, gestos provocativos, cabelos
desgrenhados, compunham uma imagem de rebeldia, de mau gosto, segundo os padrões
da época, de cafonice, como se dizia. O desafio das convenções era, portanto, intrínseco
às canções e a todas as demais manifestações dos artistas
Nas músicas, os temas eram os correntes, participavam da atmosfera crítica do
momento, presente em toda parte, especialmente nos programas de televisão dedicados
aos vários aspectos da musica brasileira, em que se destacaram os famosos festivais.A
novidade tropicalista foi transformar as costumeiras apresentações na televisão em
espetáculos que estendiam e realizavam cenicamente o que estava, construtivamente,
nas canções Nas músicas e nas apresentações manifestava-se a poética do espetáculo
centrada na eficácia do gesto simbólico. A espetacularidade foi a sua marca, atingido a
um só tempo a boa consciência burguesa, a música bem comportada e especialmente as
linguagens instituídas de denúncia ou de justificação das posturas políticas imperantes.
O que aparecia nas primeiras apresentações de “Alegria alegria” e “Domingo no
parque” desdobrou-se e especificou-se, tornou-se cada vez mais contundente na
produção tropicalista até o final de 1968. A música de Caetano Veloso “É proibido
230

proibir”, e principalmente o seu discurso quando foi proibido de cantá-la, no Festival


Internacional da canção, no TUCA de São Paulo, reprimido pelo público de jovens
estudantes e desclassificada pelo júri, dá bem a idéia do gesto abusado dos tropicalistas.
Assim, os tropicalistas exploraram na música e nos comportamentos os efeitos de
choque e de estranheza. As músicas propunham ao ouvinte a experiência da
participação, pois não poderiam ser entendidas e apreciadas sem decodificação e
trabalho interpretativo. Propunham uma experiência de prazer e êxtase, dados no
espetáculo, internalizados na forma da composição, e externados nos comportamentos.
Os desenvolvimentos posteriores da música popular, impulsionada pelo rock e
pela especialização dos espetáculos, levaram adiante aquelas primeiras
experimentações, transformando o choque e a estranheza em matéria assimilável. Na
verdade, o tropicalismo aguçou a relação entre arte e política, entre arte e sociedade,
levando ao limite as possibilidades de se fazer música, de se fazer arte e, ao mesmo
tempo, produzir significações que não eram imediatamente consumíveis. Um certo
anarquismo compunha-se como um ímpeto construtivo, gerando um espírito libertário.
Embora o trabalho dos tropicalistas tivesse se efetivado dentro do sistema das
comunicações, como estratégia de ação sobre o público, esta determinação não partiu de
uma suposta contradição entre os meios de comunicação e a postura libertária.Os
tropicalistas sabiam que trabalhavam com sistemas e materiais culturalmente datados e
socialmente localizados, mas escolheram correr o risco – uma apostas cujas
repercussões são até hoje perceptíveis.
É possível constatar mais intensamente a eficácia da intervenção tropicalista
relançando a atenção sobre os processos de construção das imagens tropicalistas,
basicamente sobre o processo alegórico. As canções tropicalistas resultam de um
processo construtivo que agencia imagens que resultam da justaposição de materiais
diversos, de elementos díspares, provocando um efeito de obscuridade, de estranheza,
como se fosse um sonho. Cena alusiva que alegoriza o Brasil, esta cena desmontada
evidencia as aberrações da persistência dos arcaísmos, das deformações no processo de
modernização da sociedade, tal como estão explicitados nas interpretações culturais, nas
artes, na política, no sistema artístico e cultural. As canções, individualmente ou em
conjunto, quando assim consideradas, configuram na fulguração de suas imagens uma
situação histórica impossível de ser concretizada com nitidez, que irrompe sob a forma
de retorno do recalcado, precisamente, do recalcado da nossa história. Assim, as
canções geram significações conflitantes com os significados designados como
231

identificadores de uma entidade abstrata, o Brasil, emblematizado em signos sensíveis,


que compõem “as relíquias do Brasil” Os fatos culturais designados, as formações
históricas, os estilos artísticos, usos e costumes, são desapropriados de seus valores já
fixados como tradição, como identitários, e são transfigurados pela parodização, pelo
humor, pela sátira, pelos procedimentos grotescos, pela carnavalização da linguagem,
evidenciando sintomas de uma história mal formada e que talvez nunca tenha chegado
verdadeiramente a ser. Ora, se estas canções tropicalistas funcionam assim como
sonhos, se elas são figurações de um desejo recalcado, do desejo disfarçado – de uma
imagem de Brasil destoante das emblematizadas em muitas das canções da época, na
forma da ideologia nacionalista, em utopias como “Brasil, o país do futuro” e do projeto
moderno desenvolvimentista – analisar essas canções implica detectar, evidenciar
sensivelmente as deformações processadas na passagem dos conteúdos latentes para os
manifestos através da apreensão do trabalho que produziu essa imagem: trabalho
interpretativo, como na elaboração psicanalítica do processo de agenciamento dessas
imagens. As canções, uma vez apresentadas, violentam as defesas do ouvinte, desde
audições conformadas até as impostas pela censura. As canções, portanto, são vistas
como dispositivos de levantamento da repressão. A composição de paródia e alegoria,
efetivada nas canções tropicalistas, leva adiante um trabalho extremamente importante e
inédito, o trabalho de corrosão da cultura instituída em seus diversos matizes. Corrosão
do mito das raízes populares, das mitologias da cultura de mercado, que pode ser
entendido como um trabalho crítico, um processo de descolonização e descentramento
cultural.
Portanto, o centro da interpretação aqui proposta está no seguinte: as canções
exploram o conflito entre o que é designado e o que é significado, instalando o ouvinte
numa tensão de tal modo incômoda, inquietante, que exige dele uma transformação dos
modos habituais de ouvir, de entender, de interpretar. Assim fazendo, as canções
conseguem desmobilizar as significações consagradas, veiculadas pela arte e pela
cultura que circulavam. Nisto consiste a operação desmistificadora do tropicalismo.
232

Tropicália revisitada*

A expectativa em torno do aparecimento de um disco denominado Tropicália II


vai muito além da curiosidade despertada por declarações disseminadas na imprensa;
ultrapassa também o interesse que acompanha cada novo disco de Caetano e Gil,
especialmente aquele manifestado a propósito de Circuladô, o disco e o show. Vai mais
além, ainda, das comemorações; belas e simpáticas dos 50 anos desses artistas,
significativa, pela importância cultural, dos 25 anos de Tropicalismo.
A designação Tropicália II é interessante, e espanta, porque incide na questão
central de toda arte contemporânea: o que pode ser hoje a arte depois do trabalho de
negatividade efetuada pelas vanguardas dos anos 50-60, ao se constatar que seus
projetos se exauriram e que o experimentalismo foi integrado e assimilado aos
desenvolvimentos subseqüentes, em sintonia com as atuais condições de produção. Se o
notável trabalho das vanguardas está encerrada, e se a experimentação prossegue mas
mudou de posição, importa assinalar, entretanto, que ela realizou seus objetivos, pois
pela virulência das intervenções e contundência crítica atingiu seus limites expressivos e
tensionou e deslocou significações culturais. A exacerbação dos procedimentos, a
ênfase conceitual, a descompartimentação estética e o jogo com o mercado levaram ao
desrecalque da produção e à abertura do campo artístico para o possível de suas
efetuações. Assim foi a Tropicália precisamente valorizada; um lance de coragem e
lucidez, num momento em que as perspectivas artísticas e culturais, sociais e políticos,
estavam polarizadas e magnetizadas de fervor e ilusão.
Liberada dos imperativos e projetos vanguardistas, que impulsionam o novo mas
também rasuram diferenças, a arte contemporânea navega no indeterminado, tendo que
definir, enquanto se faz e naquilo que faz, as regras e categorias que as singularizam.
Sem projetos totalizadores (de desidealização da arte, de crítica cultural, de
transformação do homem etc.), sem modelos ou idéias suficientemente fortes para
fundamentar práticas, vive de surpresas e incertezas, entre a inquietação e a indiferença,
ansiando, talvez, por um preenchimento que dê conta de sua irrisão, por uma espécie de
suplemento de sentido.

*
Texto publicado parcialmente em O Estado de São Paulo, Suplemento Cultura, 07/08/1993, p. 1.
233

Assim, vaga entre desejos de restauração de operações e projetos que outrora


tiveram sentido, “resgatando”, como se diz, possíveis temas, processos, procedimentos e
significados que se tornaram emblemáticos estética e criticamente; ou então, dedica-se a
eventuar, recodificar, reiterar. Aqui e ali surpresas acontecem; um tensionamento de
signos da experiência, uma reinterpretação que excita a sensibilidade e o pensamento,
uma reinscrição da simbólica das intervenções que produz hiato no desencanto, um
nexo surpreendente de reflexividade e razão comunicativa, uma alternativa, ainda que
efêmera, à conciliação do cinismo e da crítica. Esses lampejos são raros, mas sempre
existem: são eles que afirmam as potências do puro viver; derivadas da arte
instrumentalizada. Acostumamo-nos, há 25 anos, a ver aí Caetano e Gil, e também
outros.
O interesse maior dessa arte é sobretudo histórico: vem contribuindo para
esclarecer a situação contemporânea da arte, evidenciando a transformação profunda
dos sistemas provocada pela exaustão dos processos modernos. Quer pensar e repensar
as relações internas dos sistemas na conexão de presente e tradição; articulando os
modos e o tempo. As dificuldades e as ambigüidades dessa posição da arte provêm, em
grande parte, do aprisionamento das atividades, e da própria reflexão, em teatros da
memória, com o seus subprodutos: a nostalgia, o revivalismo; a idealização de um
passado que teria contido as promessas de liberdade e progresso, plenos de sentido.
Hoje, é comum a ênfase na recuperação; está em marcha um movimento de restauração,
com que se reentronizam projetos e experiências para suprir a carência de ideais e a
quase impossibilidade do novo. Por isso, o que vem sob a rubrica do resgate é,
freqüentemente, apenas repetição, pois a evanescência das inscrições simbólicas
remeteu a invenção ao imaginário.
Então, uma outra Tropicália é possível? Seguramente não, daí o espanto (o
inquietante, o divertido) da designação “Tropicália II”. O que estariam pensando, talvez
tramando, Caetano e Gil? Não se sabe, mas pode-se apostar que será um jogo
inteligente, instigante, cheio de surpresas, considerando-se que não são nem ingênuos
nem apressados. E mais: que a lucidez de suas trajetórias caracteriza um trabalho de
pensamento na música, uma presença tensa na cultura, uma coerência crítica e um
enfrentamento das exigências do presente.
Pode-se, portanto, esperar que o disco não venha como uma simples e
descontextualizadora revisita à Tropicália de 67/68; nem como uma retomada ou
refeitura para fins de balanço de suas virtualidades e limites. Desde aquele tempo
234

tiveram consciência clara da importância de suas intervenções, e também das


ambigüidades nelas contidas. Sempre souberam que as “raízes”, como disse Oiticica,
foram há muito tempo arrancadas e que só há o grande mundo da invenção. Sempre
souberam, sabem, que a Tropicália foi fruto de seu tempo: é datada. Também, pode-se
afirmar que o disco não vai incidir na rememoração, para identificar, por uma espécie de
ilusão retrospectiva, os limites e a eficiência das intervenções tropicalistas nos domínios
da arte e da crítica cultural brasileiras.
Pode-se aventar que neste disco estariam fazendo o que já fizeram em outros
momentos; em “Araçá azul”, em “Doces bárbaros” e em inúmeras canções
disseminadas nos diversos discos lançados. Retomando experimentações, temas e
significações presentes na Tropicália, recodificando-os, retirando-os das pressões e
tensões típicas daquele momento histórico, articulam imagens em que imaginação e
reflexão, prazer e crítica não se distinguem. Além disso, e sobretudo, este disco deve
manifestar o trabalho de elaboração que os caracteriza, especialmente Caetano: um
trabalho que, marcado pelo sentidos dos acontecimentos, articula o tumulto do presente
àquilo que no passado foi suprimido ou esquecido pela própria força dos projetos e
pelas suas dimensões de futuro. Um trabalho que elabora continuamente a tradição da
música popular brasileira afirmando seu poder de produzir significações culturais e
êxtase.
235

Sobre Caetano Veloso*

1. Como você sintetizaria a contribuição de Caetano Veloso para a


instauração de uma nova poética na música popular brasileira na época do
tropicalismo?

Caetano Veloso é o pensamento na canção. Em sua música, no seu canto,


surpreende-se uma reflexão que incide na forma, nos encantos e no alcance cultural
deste modo tão privilegiado no Brasil de manifestação da sensibilidade.Certa vez
Caetano disse que o tropicalismo foi “um momento de aguçamento e de explicitação da
função crítica da criação”. Ainda hoje este é um dos crivos mais adequados para a
análise de toda a sua produção.Se, naquele momento, a criticidade estava provinha do
destaque à negatividade da arte de vanguarda, – às questões que envolviam a produção
do novo, aos desafios implícitos nas relações da arte com as novas condições de
produção, em um meio artístico polarizado por discussões acerca da arte participante e
das relações com o mercado -, a função crítica, contudo, não se extinguiu
posteriormente.Ela se transformou,tornou-se menos empenhada, livre das pressões
daquele momento candente, traduzindo-se em discretos ou nuançados modos de
enunciação,no pensamento e na sensibilidade.A função crítica permanece tanto na
ênfase autorreferencial à estrutura da canção, aos seus efeitos ,quanto na significação
cultural e afetos de que é portadora.
A afirmação continuada de uma posição crítica, tem que ser sempre
surpreendida nas transformações do trabalho do artista, captando, assim, as
descontinuidades, as reiterações e as reelaborações, – de temas, procedimentos e
pensamento.É absolutamente necessário atentar à mobilidade dos processos de
invenção,tanto quanto tentar perceber a metamorfose da vida nas formas através dos
processos de enunciação.De outra maneira, se produziria a disjunção entre o artista,com
suas criações, e o homem público,o que,aliás, muitas vezes ocorre, inclusive com
cobrança de posições.A coerência de um artista tem que ser buscada no

*
Cult. Revista Brasileira de Literatura, n.49, ano V, ago. 2001, p. 4-9. A entrevista, formulada por Carlos
Adriano e Bernardo Vorobow, apareceu sob o título “Celso F. Favaretto lança novas luzes sobre a obra de
Caetano Veloso”.
236

desenvolvimento de seu trabalho, principalmente quando este artista é também uma


personalidade marcante, que faz parte do sistema do espetáculo, sujeito, assim, a
injunções, interesses e expectativas diversificadas, tendo o seu comportamento avaliado
continuamente.
É com a atividade tropicalista que o domínio da canção deixou de ser um objeto
cultural situado quase que exclusivamente na esfera do entretenimento para alçar-se em
realização propriamente artística, estética e culturalmente em sintonia com a literatura, o
cinema ,o teatro e as artes plásticas – um fato hoje óbvio e banal, mas que naquele
tempo não era tão simples, como demonstram muitos trabalhos à disposição,
desenvolvidos nas últimas décadas, em torno da constituição da modernidade no Brasil.
Na passagem dos anos 60 aos 70, Caetano Veloso configurou em seu trabalho, nas
canções, declarações, atitudes e gestos, a profunda mudança da experiência daqueles
que se associaram , em arte, em política e cultura, às posições críticas que deslocaram as
polarizações firmadas.

2. E como essa intervenção vem ocorrendo ao longo de sua carreira e


atualmente?

O trabalho de Caetano vem se desenvolvendo em duas dimensões simultâneas.A


primeira é aquela que pensa a canção brasileira, articulando um modo particular de
entender a tradição,- que foi se construindo com o samba e em conjunção com tudo o
que o rádio e o disco foram liberando -, aí elegendo as músicas marcantes em sua
formação cultural e na afetividade.Como ele tantas vezes declarou, canções que ouviu
desde criança, que circulavam no dia a dia , gerando um gosto ,um sentimento,um
pensamento que não se define, pois configura uma experiência de vida singular e
intransferível, em que gosto e valor cultural coincidem.
A outra dimensão é histórica. Insere-se naquela tendência iniciada no século
XIX pelos intépretes do nacionalismo ,intensificada pelo interesse dos modernista em
conhecer o Brasil e que foi marcante até os anos sessenta. Trata-se de ver em Caetano, a
partir do tropicalismo, alguém empenhado em questionar as imagens emblemáticas de
Brasil;respondendo, criativa e criticamente, à drummondiana pergunta:onde é Brasil? E,
principalmente, tratando-a com uma crítica virulenta do estreito nacionalismo, tanto
quanto do conservadorismo cultural. Para ele, já naquele tempo, o Brasil importa, e
muito, como “ponto de ver e não de ser”. Isto fez dele, desde o início, um moderno, um
237

cosmopolita, um pensador em quem a paixão da cultura onde surgiu como artista


destacado não exclui a visada mais larga do existir incondicional. A imposição
modernista, “precisamos conhecer o Brasil”, converteu-se, no tropicalismo, na também
drummondiana, “precisamos esquecer o Brasil”,pois “nenhum Brasil existe”.E, no
entanto,o que não é um paradoxo, o seu interesse sempre esteve voltado para o Brasil,
está patente em Verdade Tropical e em outros textos, em entrevistas e polêmicas.
Assim, a reflexão sobre a canção e na canção é sempre atual, levando a felizes
achados, a canções logo integradas ao imaginário da tradição musical brasileira como
elementos de uma escuta ao mesmo tempo seletiva e disseminada,- o que só ocorre com
artistas que inscrevem com seu trabalho um sujeito impessoal,tradutor
involuntário,entretanto, de uma lingua coletiva. Importa ,antes de tudo, aquilo que está
dito nas canções.As duas dimensões acentuadas aparecem conjugadas não por uma
redutora e exclusiva atividade profissional.Caetano dá a impressão de agir por uma
neceessidade interna, própria daqueles que têm o que dizer,ora deixando em evidência
circunstâncias e motivações culturais próximas, ora traduzindo o trabalho em que a
memória se transfigura em experiência.

3. Como se dá esta passagem entre memória e experiência?

Tocamos aqui no que me parece ser o ponto central do processo criativo de


Caetano:um trabalho conduzido pelo processo de elaboração ,semelhante ao da
elaboração analítica, a perlaboração (durcharbeitung) freudiana. Nas reinterpretações,
nas associações, é sensível a escuta de um pensamento que sente,ou um sentimento que
pensa. Caetano dá a idéia de que um fluxo interior articula sons e palavras configurando
idéias,mas que o móvel da articulação é uma memória, seletiva ou involuntária, que faz
do ato de ouvir suas canções uma experiência que,no limite,pergunta: existir, a que será
que se destina? Há um tempo nas canções de Caetano que embora possa indiciar o
presente, ou um passado, é sempre, na verdade um entretecimento de passado e
presente, uma incorporação de tempos e lugares, de ações e pensamentos, de um sentir
concentrado. Presente é sempre,é agora, o que faz de sua história uma contínua
rememoração.Vejo na excelência das reinterpretações que faz de canções ,sobretudo
antigas, a confirmação deste trabalho de rememoração, de reelaboração de vivências e
referências culturais.Memórias do passado no presente, fatos imediatos da história
individual e social, o lido , o visto ,o ouvido, tudo acaba condensando imagens que, sem
238

perder o seu teor designativo, são poéticas , emoção recordada na tranquilidade. Basta
que se percorra as canções, desde as primeiras, para se ver como o que aparece como
prodígio de memória – e não deixa de sê-lo–, traz à tona fragmentos, cacos, resíduos,
traços de experiência, associando o vivido ao tumulto do presente. O presente é sempre
o lugar da enunciação ,com que em Caetano não há qualquer nostalgia, ou saudade. A
sua poética é, assim, afirmativa, elaboração contínua de um fluxo existencial em que o
pessoal e o histórico não se distinguem.

4. Você acha que a obra musical de Caetano opera alguma síntese entre as
tradições da poesia e da música brasileiras? Quais seriam essas tradições e
como se dá tal síntese? Você v6e ou ouve algum projeto literário bem nítido
e delineado?

Não me parece que a questão de Caetano seja a de estabelecer sínteses entre


poesia e música e, menos ainda, delinear um projeto literário ,embora este seja um tema
sempre relembrado quando se trata de assinalar a maestria de sua construção textual,
inclusive porque os textos das suas canções podem ser lidos como poesia,- o que,aliás,é
um fato inquestionável-, situadas no nível do que melhor se fez e se faz no Brasil. Desde
o início de sua produção, a literatura funcionou como um implícito do sentimento e do
pensamento que circula nas canções, mas não me parece existir nele um projeto
literário, mesmo quando faz um disco chamado Livro,em que o livro é tema, ou quando
faz um disco como este que nasceu da leitura de Nabuco. Caetano faz canção e esta é
estruturalmente híbrida, como tão bem mostram os estudos de Luiz Tatit. Caetano
absorve em suas canções procedimentos literários, cuja percepção nem sempre é fácil,
dependendo do espectro cultural dos ouvintes. É preciso conviver longamente com as
canções para aos poucos ir descobrindo o que é citação e o que é absorção,
transfiguração,transpiração; sempre invenção. A sensibilidade de Caetano é apurada,
cultivada por leituras diversificadas, de poesia, filosofia, ficção,estudos críticos e
culturais: João Cabral, Drummond, Clarice, Joyce, Sartre, Guimarães Rosa, por
exemplo.. De tudo sobrou, sobra, um pouco e, não se sabe como, assoma na criação.
Assim, Caetano tem na história da música popular brasileira um lugar à parte: os seus
textos incorporaram as poéticas modernas, as operações vanguardistas, de modo
excepcional, o que faz com que o tratem como poeta. Não é o caso, embora seja um
grande escritor. Lembro, por exemplo,como importante,além das canções, a escrita
239

instigante, daqueles textos que escreveu em Londres,no exílio, recolhidos, não sei se na
totalidadee ,na coletânea Alegria Alegria organizada por Waly Salomão, que clama por
uma reedição,acrescentada de vários textos que vieram depois. Assim, o nível
excepcional da realização textual de Caetano, que o coloca com facilidade ao lado de
muitos outros poetas contemporâneos,não justifica entretanto assimilá-lo à categoria
restrita de escritor;ele é um concionista, algo mais complexo estruturalmente, e mais
complexo na manifestação pois inclui, no disco ou no show, os rigores, os êxtases e a
eficácia de um outro modo de manifestação do artístico.É muito significativo que
Caetano nunca tenha se interessado em musicar poemas. Talvez porque,vindo antes a
música ou a letra, ou ambas simultaneamente, a canção tem a particularidade de ser uma
linguagem motivada. O som chama a palavra e vice-versa. Uma vez aparecida a canção,
o seu texto pode ser alvo, como tem sido, de fruição e análises puramente literárias,
poéticas. Boa parte da produção de Caetano suporta a comparação com os textos
nascidos como poesia: e isto é um notável fator distintivo de sua produção,por si só
merecedora de toda nossa admiração .Contudo,o mistério da canção é ela ser outra coisa
,um objeto não identificado.

5. A fase tropicalista parece concentrar de modo mais evidenteas relações com


outras obras e artistas da cultura nacional, talvez pela própria natureza (ou
projeto) do movimento e o contexto do momento. Com que inst6ancias o
diálogo foi mais frutífero? Qual o papel da forma “literária”das letras nesse
diálogo?

Sem dúvida, o momento tropicalista, como tanto já foi dito, notabilizou-se em


grande parte por realizar a intersecção e a mistura, de gêneros, referências artístico-
culturais, índices político-sociais, .fusão do erudito e do popular, inclusão dos processos
e imagens da cultura de massa. Havia consciência clara do que se fazia, do que se
queria: intervir no sistema da música popular e intervir de modo específico, estridente e
intensivo nas relações fixadas entre arte e cultura.O momento tropicalista realizou
aquilo que precisava ser feito e que estava obstado pelas polarizações e preconceitos: a
realização da modernidade cultural, da atualização das artes, de renovação dos modos
de significação do social e de questionamento do seu uso político.A metáfora
antropofágica, reatualizada de acordo com as novas condições de produção cultural, foi
aplicada com propriedade pelos tropicalistas, permitindo-lhes articular efeitos crítico-
240

criativos de extrema eficácia. O uso de procedimentos cinematogáficos, plásticos,


poéticos, teatrais, de música contemporânea, provenientes das experiências de
vanguarda que circulavam no ambiente artístico em toda parte, resultou em um processo
de composição híbrido,inusitado, brilhante.O brilho estava fundamentalmente na
construção das imagens, através de uma hábil emprego da paródia, das sátira e do
humor, com a produção de uma figuração alegórica até então desconhecida no Brasil.
Pois a alegoria tropicalista tanto designava o contexto como evitava a simbolição, a
proposição de uma imagem de Brasil que viesse utopicamente substituir aquela criticada
por todos, a do nacional populismo.A forma literária das letras vagava entre o uso de
procedimentos vanguardistas em circulação, desde os cubistas, dadaistas e surrealistas,
até os concretistas., sem que o lirismo básico, fundamental, da canção brasileira
estivesse ausente, como suporte dos procedimentos vanguardistas,das citações,
pastiches,colagens, bricolagens, etc.

6. A obra do artista, com sua carga de informaçào estética, se difunde no meio


da comunicação de massa. Como ele transita entre (ou concilia) os
reperetórios de novidade (esfera da própria criaçào) e redundância (esfera
da música de consumo), arte e mercadoria, chic e kitsch?

Para Caetano, o aspecto comercial, intrínseco à materialidade da canção, nunca


foi um problema, ao contrário, este foi um de seus combates mais importantes contra as
ilusões que, nos anos 60, fingiam que seria possível fazer arte sem compromissos com o
mercado.A questão nunca foi simplesmente a da difusão dos produtos culturais pelos
meios de comunicação de massa;o mais importante é considerar o mercado como um
aspecto da própria criação.Para Caetano não se tratava de conciliar os aspectos estéticos
e os comerciais,`mas sim trabalhar já ao nível das duas instâncias enquanto simultâneas,
dados o gênero e a destinação dos produtos. Se nesse ou naquele disco um dos aspectos
prevaleceu, se uma ou outra canção é mais ou menos permeável ao consumo, no todo
isto é irrelevante. Interessa,entretanto, como indicativo de uma conquistada liberdade,
onde muitas posições são possíveis.Importa que Caetano nunca teve medo de correr
riscos, de cantar o que gosta, “o que pede para se cantar”,de violentar o gosto
estabelecido, de inovar, de discutir.Compondo, cantando, falando, Caetano está sempre
pensando questões que se põem no fluir da existência pessoal e social.
241

7. Em “O estrangeiro”, o compositor confessa: “sigo mais sozinho


caminhando contra o vento” e (no final): “some may like a soft brazilian
singer / but I’ve given up all attempts at perfection”; em “Branquinha”:
“vou contra a via / nado contra a maré”. Esses toques podem ser lidos num
contexto mais amplo no trajeto do compositor? Em que escala e alcance?

Na canção, “Janelas abertas n.2”, Caetano diz: “mas eu prefiro abrir as janelas
pra que entrem todos os insetos”. Estas palavras abrem-se para o incomensurável da
experiência contemporânea ,para toda a imprevisibilidade e a indeterminação de uma
trajetória que se afirma sobretudo pela coragem de seguir “sozinho caminhando contra o
vento”,nadando “contra a maré”,embora sempre acossado por vozes que cobram uma
retificação de suas atitudes supostamente vinculadas a um compromisso social
anteriormente firmado. Mas, assim como desde cedo não quis “viver a nostalgia de
tempos e lugares”, também não admitiu que sua inspiração fosse circunscrita por
compromissos que um dia se manifestaram em suas canções com a força do tom justo
no tempo oportuno. No manifesto “Jóia”Caetano dizia “estar cuidadosamente entregue
ao projeto de uma música posta contra aqueles que falam em termos de década e
esquecem o minuto e o milênio”.Assim, vejo em Caetano alguém que realiza na música
brasileira um trabalho cujo alcance pode ser realçado recorrendo-se a algumas idéias de
Deleuze sobre a relação entre literatura e vida, expostas ,por exemplo, em Crítica e
Clínica. Diz ele,que a literatura traça no interior da língua “uma espécie de língua
estrangeira”,isto é, “um devir-outro da língua (...) uma linha de feitiçaria que foge ao
sistema dominante”.Este é um traço distintivo de Caetano; em suas canções, tensiona a
língua até os seus limites, por atos de enunciação sempre singulares, uma produção
intensiva de sentido, em que o sujeito é suplantado por agenciamentos coletivos de
enunciação. Nisto,acima de tudo,deve-se ver o político , a significação social da arte de
Caetano, e não,simplesmente, no vai e vem das declarações que as circunstâncias e as
paixões mobilizam, nele, na imprensa e na crítica.
242

Arte e cultura nos anos 70: o pós-tropicalismo*

A partir dos anos 50, simultaneamente a grandes transformações políticas,


econômicas e culturais, a produção artística respondeu a desafios estéticos, técnicos e
ideológicos que tensionavam o país, compondo projetos de renovação artística e cultural
voltados à efetivação da modernidade. No final dos anos 60 as diversas tendências
experimentais haviam transformado a paisagem da arte brasileira, tanto em termos
formais como em relação a posicionamentos ético-estéticos. Com a promulgação do Ato
Institucional n° 5, em 13 de dezembro de 1968, o processo artístico-cultural, tal com o
vinha se desenvolvendo nas últimas décadas, foi em grande parte inviabilizado. A
passagem dos 60 aos 70 é marcada por esse acontecimento – um duro golpe sobre os
projetos, ações e ilusões revolucionárias que mobilizaram as radicais ações políticas e
artísticas do período. Sob este ponto de vista, a década de 70 abriu-se sob o signo de
uma grande derrota. A expressão “vazio cultural” foi aplicada exatamente para indicar a
impossibilidade ou inadequação daqueles projetos.
Mas é preciso assinalar o outro lado da questão: desde o momento tropicalista
surgiam manifestações culturais diferenciadas, alternativas, que se estenderam aos anos
70. Contracultura, cultura marginal, curtição e desbunde foram designações que
pretendiam dar conta de uma produção variada e dispersa – que se distinguia das
totalizações de muitos dos projetos anteriores, principalmente pela ênfase agora
atribuída aos aspectos comportamentais das atividades, às vezes em detrimento de uma
específica e imediata significação político-social. A proposição de uma “nova
sensibilidade”, que se compunha com uma certa concepção de “marginalidade” em
relação ao sistema sócio-político e artístico-cultural, aparecia como a motivação básica
daquelas manifestações – o que implicava mudança acentuada da idéia e das práticas de
participação desenvolvidas na década de 60. Nova sensibilidade e marginalidade
articularam-se freqüentemente ao experimentalismo artístico nas atividades de jovens
estudantes, artistas e intelectuais. É da intersecção desses conceitos operacionais
identificadores das manifestações alternativas que surgiram as mais expressivas

*
Texto inédito. Configura um projeto de pesquisa em desenvolvimento.
243

produções culturais da primeira metade dos anos 70, que, aliás, não deixavam de opor-
se ao Brasil do milagre econômico.
Ao lado dessa atividade multifacetada, continuou a desenvolver-se a produção
do sistema da arte, com o expressivo incremento da indústria cultural – em parte
articulada às iniciativas da política oficial de cultura, que, por meio de um programa de
ação cultural e da proposição de uma política nacional de cultura, visava tanto um
relacionamento com os meios artísticos e intelectuais como um aproveitamento das
novas possibilidades técnicas para a efetivação das idéias de cultura nacional e
identidade cultural. Simultaneamente, surgiam modalidades e formas diversas de
produção alternativa, nas artes, no jornalismo, nos movimentos sociais.
Importa, assim, ressaltar produções que, atuando nas margens ou à margem do
sistema artístico, desenvolveram e especificaram atividades culturais e experimentações
que vinham das décadas anteriores, seja tentando manter, ressignificando, ações
políticas – alvo da forte repressão e censura do regime militar –, seja explorando as
possibilidades técnicas dos novos meios e linguagens, às vezes situando nas
transformações dessas linguagens a resistência política.
Respondendo às novas condições da sociedade, especialmente ao alinhamento
do país à lógica cultural da sociedade de consumo, a complexa e variada produção
artística, agora inclui, sem preconceitos, como elemento constitutivo de
experimentações, de teorizações e da crítica, os pressupostos, as regras e as técnicas da
indústria cultural. Institucionalização da cultura, consumo e experimentação,
especialmente quando pensados – nas artes plásticas, por exemplo – em relação a obras
ou manifestações efêmeras, conceituais e comportamentais, evidenciaram problemas
ético-estéticos – além dos simplesmente técnicos, de realização, de distribuição ou
exibição – que questionaram a tentativa de constituição de um amplo sistema da arte,
especialmente de um emergente mercado, que logo se mostraria inconsistente. Ao
mesmo tempo, tal composição iria discutir a viabilidade, a eficácia crítica e o poder de
resistência de toda a produção que se queria alternativa. Assim, a produção artístico-
cultural dos 70, longe de um suposto vazio, instaurou um processo extensivo de
invenção e de reelaboração que, pela conjugação ou pelo desenvolvimento paralelo de
três direções – política oficial de cultura, indústria cultural e cultura alternativa –
244

configurou entre 13 de dezembro de 1968 e 31 de dezembro de 1978, quando o AI-5 foi


extinto, a imagem de uma cultura em trânsito.1

***

As análises empreendidas sobre a produção cultural dos anos 70 destacaram


prioritariamente as questões referentes à consolidação de um mercado de bens
simbólicos e aquelas referentes à concepção oficial de política cultural e seus
desdobramentos institucionais2. Uma parte significativa das análises da produção
artística do período situou-se no horizonte destas questões, ora tematizando as
transformações provocadas pela crescente importância dos meios de comunicação de
massa, ora os impactos da censura e da repressão do regime militar sobre a produção
artístico-cultural, ora as repercussões no trabalho universitário das direções teórico-
críticas provenientes do estruturalismo francês e suas conseqüências em vários setores,
especialmente no jornalismo cultural e na crítica de arte.
Sabe-se, entretanto, que ao lado das iniciativas culturais oficiais, mobilizadoras
de um conjunto de agências e entidades (Instituto Nacional do Cinema,
EMBRAFILME, FUNARTE, Pró-Memória, etc.), ao lado dos desenvolvimentos de um
mercado de arte e de manifestações variadas não articuladas diretamente às direções
acima, desenvolve-se uma modalidade de manifestação cultural que ficou conhecida
como contracultura, cultura alternativa, cultura marginal, curtição, desbunde, etc. Na
verdade, estas designações recobrem uma gama muito elástica de manifestações
culturais, artísticas e comportamentais.
Fenômeno híbrido e complexo, em parte confluindo e sendo expressão local do
underground norteamericano, estas manifestações oscilavam entre comportamentos
regressivos, neo-românticos, e outros que articulavam uma nova sensibilidade
contracultural ao experimentalismo artístico dos anos 50/60. Nesta segunda vertente é
que se pode localizar propriamente o que se denomina aqui “pós-tropicalismo”;
manifestações artísticas – poesia, música, cinema, teatro, artes plásticas, literatura –,
jornais, revistas, livros, compunham uma produção dispersa e multifacetada, que não
deixava de ser uma contestação ao Brasil do milagre econômico. Assim, pós-

1
Este fragmento inicial foi publicado no catálogo do evento “Anos 70: Trajetórias”, São Paulo, Itaú
Cultural, out. 2001.
2
Cf., por exemplo, MICELI, Sérgio (org.). Estado e Cultura no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1984; ORTIZ,
Renato. A Moderna Tradição Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1988.
245

tropicalismo não guarda relação imediata com o “pós” que em breve identificará no
Brasil o “pós-modernismo”, embora em alguns aspectos vão se aproximar. Dentro do
que mais propriamente pode-se chamar de “cultura alternativa”, que se expandiu
durante toda a década de 70 – do underground às expressões mais politizadas, como as
do jornalismo político-cultural de “Opinião”, “Movimento”, etc –, pós-tropicalismo
identifica aqui um tipo de produção artística aliada a posições culturais e
comportamentos (“vivências”) que derivam diretamente das proposições tropicalistas,
do marginalismo de Hélio Oiticica, das proposições artístico-terapêuticas de Lygia
Clark, de certas informações da poesia concreta, dentre outras.
Portanto, trata-se de pensar a especialidade da produção dita pós-tropicalista, no
horizonte mais vasto da cultura alternativa. Precisamente: em quais produções artísticas
pode-se flagrar modos de articulação do experimentalismo dos anos 60, especialmente
aquele do tropicalismo, aos rituais da “nova sensibilidade” contracultural, às condições
novas do circuito de arte, ao jogo com o mercado e, finalmente, a uma certa significação
política que se diferencia daquela dos anos 60.
Quanto a este último aspecto, político, pretende-se discutir e criticar uma
interpretação feita no final da década por Luciano Martins, no ensaio “A Geração AI-5”,
em que fala de um “vazio cultural” – expressão com a qual pretende caracterizar o a-
politicismo da juventude dos anos 70 a partir de três práticas determinantes para o
comportamento: o uso das drogas, a desarticulação do discurso e o modismo da
psicanálise3. A questão, talvez, deva ser pensada através de outros vetores, sem que se
desprezem os citados. É preciso interpretar o que significava no período
“marginalidade” e, principalmente, na atividade artística, o sentido das expressões
variadas de desestetização da arte e de estetização dos comportamentos.

***

A produção artística pós-tropicalista manteve, através da crítica tropicalista,


relações com os problemas estéticos delineados pela teoria e prática da arte dos anos 60.
De outro lado, foi marcada pelas experiências da nova consciência contracultural.
Restaram, na primeira metade dos anos 70, despojos vivos das duas linhas de ação: de
um lado, o gosto pela experimentação, a sofisticação técnica, o jogo com o mercado; de

3
MARTINS, Luciano. “A Geração AI-5”. Ensaios de Opinião – 11, set. 1979.
246

outro, a gestualidade, o corpo, o sensorial, as experiências de limite via drogas,


misticismo e comportamentos renovados na vida amorosa. Na confluência desses
limites, tensionada pela explosão tropicalista, emerge uma crítica da cultura, explorando
as possibilidades internas do sistema ou ensaiando a evasão. Resumindo, poderíamos
dizer que o pós-tropicalismo tentou superar tanto o empenho com a participação (a
temática da “realidade brasileira”), tendo em vista a descentralização da cultura; como
os impasses técnicos e ideológicos da arte de vanguarda, tendo em vista a proposição da
arte-vida.
Desta discussão e prática participaram artistas novos e artistas provenientes da
década anterior e outros já consagrados. Arnaldo Jabor publicou no Pasquim, no início
de 1972, um extenso artigo em que tenta retraçar o percurso da arte e da cultura no
Brasil desde o Modernismo, para enfatizar o lugar-nenhum da situação no momento em
que escrevia4. Segundo uma visão mais ou menos evolutiva vê a participação dos
artistas e intelectuais na cultura, especialmente na década de 60, destacando os seus
impasses até aquilo que ele denomina trauma de dezembro de 68. Avaliando o período
69/72 e tentando captar a originalidade das experiências contraculturais, constata que
estas, apesar de domesticadas, não chegaram ao fim como apenas uma grande ilusão:

“Ficaram os despojos vivos, uma infinita massa colorida, de gestos, costumes, formas de pensar,
de amar, de ver o mundo, que estão para sempre assimiladas às consciências das jovens
gerações. A Cultura morre nos museus, mas se eterniza dentro do corpo. Jimi Hendrix antes de
morrer disse numa entrevista ao Rolling Stone que o negócio já não era mais aquele que era
outro, que ele não sabia qual era, mas que vinha aí. John Lennon declarou, numa tremenda ego-
trip que o sonho tinha acabado. E continuou vivo, à procura de outros sonhos, pois sabe que
continua vivo, e que enquanto há vida haverá sonho. E para sonhar basta não ter medo da
imaginação”.

Jomard Muniz de Britto, poeta e crítico pernambucano envolvida na década de


60 com a questão da cultura e da educação popular, publica em 1973 um dos livros
marginais mais sintomáticos de artistas que foram marcados pelo tropicalismo e pela
contracultura – Escrevivendo5 . Estabelece uma discussão, numa linguagem
poética/teórica eivada de procedimentos vanguardistas, sobre “vanguarda e a
desculturação”.

4
JABOR, Arnaldo. “Debaixo da Terra”. Pasquim, no. 131, 4-10/01/72.
5
BRITO, Jomard Muniz de. Escrevivendo, Recife: mimeo, 1973.
247

“Desculturação é uma proposta na medida em que funciona como um estimulante conceitual


operacional, palavra de um agir concreto, nomeAÇÃO de uma realidade como fato e projeto.
Não como palavra jogada no vazio. Não como séria metáfora da vacuidade. Quem fala
desculturAÇÃO pensa em des-condicionamento dos estereótipos da cultura como tabu, em
maiúsculo e com K. Da Kultura proibitiva, centralizadora, hierárquica: K”.

“A vanguarda existe por uma d i f e r e n ç a diferenciAÇÃO. Diferença entre o nível da


produção cultural (crítico-criativo, inovador, experimental, laboratorial, inventivo) e o horizonte
largoestreito do consumo pelo grande público (passivo, redundante, repetitivo, enquadrado
dentro dos padrões vigentes)”.

Esta diferenciação deveria conjugar a racionalidade (exatidão, rigor, lucidez,


estruturação) e a trans-racionalidade – abertura para todas as fontes de experiência
humana (magia, mito, misticismo, filosofias). É a busca de uma totalização, feita na
vida pela conjugação de ciência, filosofia, religião, etc. A pergunta que, segundo ele, se
colocaria diria respeito à criticidade e auto-criticidade da vanguarda para ser eficiente,
criativa e instauradora. A condição complementar é que a vanguarda se tornasse
verdadeiramente produção, o que a levaria a ser um trabalho inscrito no corpo pela
“imaginação corporificada”. Utilizando-se de formulação de Umberto Eco, diz que a
vanguarda se tornaria, assim, integrada, contra qualquer apocalipse.
Como se vê esta teorização, pretendendo-se crítica e original, nada mais faz do
que repetir velhas discussões, em sua pretensão de determinar uma pureza da vanguarda
ou da invenção, agora submetida à concepção de arte-vida. Não cremos que seja por aí
que se possa captar a especificidade da nova arte que surge no período pós-tropicalista.
Digamos que análises como a de Jabor e de J.M. de Brito são puramente reativas; a do
primeiro desesperada, a do segundo substitutiva. Exemplos como estes se multiplicam
no início da década de 70, a par com as visões claramente reacionárias ou desdenhosas.
É preciso tratar daqueles artistas superadores dessas recaídas (consagrados – como
Hélio Oiticica, Lygia Clark, Caetano, Gil, Torquato Neto, ou recém aparecidos – como
Waly Salomão, Gramiro de Matos, Zé Vicente, Bivar, Bressane – dentre outros) para se
identificar a marca típica da arte pós-tropicalista.

***
248

Em áreas específicas da produção artística ou no imbricamento delas, o pós-


tropicalismo assimilou atitudes da nova consciência sem deixar de constituir projetos de
“gramáticas”. Arte altamente experimental, sem reivindicações vanguardistas mas
consciente dos impasses da vanguarda, é despida do heroísmo e do cinismo pelos quais
a vanguarda pretendia afirmar-se – seja enquanto experimental, seja como manipuladora
das instâncias apaziguadoras do sistema da arte, em especial do mercado.
Contemporânea, longe de qualquer visão evolucionista, centrada na tradição
Dadá, sem qualquer presunção de ruptura e novidade e consciente de que ao artista não
é mais permitida a ilusão de usar a arte como instrumento de transformação da
realidade, esta arte afirma-se como lúdica e estranha. Então, se de um lado essa
produção supõe um público, articulado em termos de sensibilidade ativada pelas
vivências contraculturais – entendidas como conceito operacional –, há, de outro lado, o
desejo de arrancar esse público da imobilidade, da legibilidade, pela transformação das
obras em projetos cuja realização implica o público como constituinte da produção.

“O espectador deve produzir, dentro de si, aquilo que a obra promete mais ainda não deu. Assim,
o espectador é o centro de um procedimento que trata e adquire a obra somente enquanto
hipótese, para permitir o gesto criativo do objeto: a obra. E a fruição acontece entre o gesto
sádico de apropriação e o gesto eletivo da escolha. Escolha que no caso significa sempre
exclusão”.6

Entende-se então que a sensibilidade é conceito operacional porque a fruição,


vivendo sob o signo da parcialidade, provoca antagonismo entre produção e público.
Este, através do reconhecimento (vivência) e do entendimento, tende a uma atitude
canibalística, engolindo propostas de artistas como forma motivada de seu próprio
irreconhecimento. A metáfora da criação é reinventada, reativada como única maneira
de conter o delírio (racional/irracional) que as obras expelem.
Quer se fale de artes plásticas, literatura, poesia, cinema, teatro ou música, a arte
pós-tropicalista supõe uma “estética” caracterizada por algumas regras básicas. Em
primeiro lugar a valorização do fragmento em detrimento do todo:

6
OLIVA, Achille Bonito. “A arte e o sistema da arte”. Malasartes, n. 2, 1976, p.25.
249

“O trecho aparece trabalhado, bordado, rendado, pedindo portanto apreensão sintética


(fragmento) e ao mesmo tempo analítica (bordado)”7

com que se perde a continuidade, a discursividade, típicas da lógica da exclusão.


O estranhamento vem, em parte, disso; mas não só disso. Já que o consumidor deve
“curtir” o objeto artístico, manter com ele uma relação fantasmática, sado-anal, via
operacionalidade do vivido, a estranheza vem também do jogo com o artifício:

“o artifício da arte é o artifício da singularização dos objetos e ele consiste em obscurecer a


forma, em aumentar a dificuldade e duração da percepção”8

A isto acrescenta-se a total falta de desejo de sistematização, procurando


eliminar resquícios de estilo. O que poderia ser visto, imediatamente, como desleixo ou
“falta de capacidade” para engendrar obras é, ao contrário, buscado como efeito, ou
efeito da perseguição da vida em substituição à busca da boa forma. O estilo implica
configurações, definição de categorias estéticas (da criação e da recepção); a “falta de
estilo” abre campo para a inclusão do comportamento como móvel da atividade
artística, quer isto se materialize em obras ou não.
A arte pós-tropicalista pretende-se contemporânea porque quer deixar de lado o
binômio desconstrução/construção, eixo da modernidade vanguardista. Esta, apesar das
diferenças irredutíveis entre tendências, tinha compromisso com a descentração do olho,
da audição, da leitura, com que se efetuava a desnaturalização da percepção e dos
suportes estéticos das Belas-Artes. As poéticas da desrepresentação foram levadas à
exaustão na década de 60, atingindo seus limites no hiperrealismo, na arte conceitual, na
arte pobre. Tematizando a criação como crítica visavam a uma incisão na arte. De um
lado, para destruir o código perceptivo e o estatuto da Arte, impediu-se qualquer
possiblidade de produção de sentido; de outro, valorizou-se a criação de estruturas. Num
e noutro caso privilegiou-se o lugar da imagem ou a hipertrofia dos procedimentos.
Remetendo à vertigem do sentido ou ao pensamento em abismo, a arte
contemporânea joga com superfícies. Sem interioridade ou exterioridade, anterioridade
ou posterioridade, projeta-se como coisa dada desde que experimentada: “Isto todo
mundo faz”, “isto é simplesmente idiota”- eis alguns julgamentos que provoca.

7
SANTIAGO, Silviano. “Abutres: a literatura do lixo”. Revista de Cultura Vozes, ano 66, v. LXVI, no.
10, 1972, p.23.
8
CHKLOVSKI, cit. por Silviano Santiago, loc. cit., p.23.
250

Não apresentando tendência a qualquer origem, seus objetos são acabados


apesar da precariedade material e do inacabamento de parte dessa produção. Objetos
prontos inclusive para a circulação do capital. Daí sua perversidade: não há uma
primeira vez nem para o capital nem para o saber, nem para a fruição e nem, ainda, para
a reprodutividade9. Pura manifestação, estes objetos (não-objetos) quaisquer assumem
estatuto de seres posicionais. Da mesma forma como o objeto científico é um objeto
fechado no recinto do discurso científico, o objeto artístico é um objeto fechado no
recinto do discurso artístico. O que estes objetos poderiam representar como imagens,
ilusões, provém, apenas, de seu efeito de reiteração – são itens já representados, objetos
de um catálogo permutáveis entre si. Desaparecem, assim, completamente da esfera da
produção, com abandono da originalidade.
Entretanto, se lembrarmos que a nova sensibilidade, como conceito operacional,
está presente nesses objetos estranhos, percebe-se que uma re-semantização é possível.
Esta insinua-se, não como vulto estrutural mas pela suposição de um público que atribui
status a esses produtos, ainda que negando sua condição de objetividade. O que circula é
o processo que estes objetos exigem que o fruidor desenvolva: um gesto que “nasce e se
define como o desejo sádico de introjetar o objeto e expeli-lo sob a forma de
criatividade difusa e, finalmente, não especializada”10. O público deve produzir uma
atividade a partir de algo que não é obra, mas uma hipótese, mas que no final,
descartando a objetividade desta proposta (como obra duradoura), pelo gesto
instaurador produz a “obra” como atributo da experiência, fora dos limites do objeto-
proposição. Gesto, espetáculo ou o que quer que seja, esta “obra” não mais suporta as
delimitações do sistema da arte ou do sistema dos objetos. Sua vigência está na legenda
que os mantém – vale dizer, no círculo de iniciados que comungam da nova
sensibilidade. Fugindo à liturgia neo-totêmica dos objetos, incorrem no pan-totemismo
do gesto11.
Questões como estas repercutiram em toda a produção dos anos 70, constituindo
o espaço da contemporaneidade no Brasil. A ênfase no experimentalismo – de um lado
pela via do conceitual, de outro pela da arte-vida –expande-se, invadindo inclusive o
mercado de arte, não se restringindo portanto, aos ambientes alternativos. Nos inícios de

9
LYOTARD, J-F. “Esquisse d’une économique de l’hiperréalisme”. Dispositifs Pulsionnels, Paris:
U.G.E., coll. 10/18, 1973.
10
OLIVA, A.B., art. cit. , p.25.
11 cf. FAVARETTO, Celso F. “Nos rastros da tropicália”, Arte em Revista, Ano 5, nº 7, ago. 1983, p. 34-
35.
251

80 haveria um ensaio de mudança de rumo nesta ênfase, com as tentativas


representativas, matéricas, pictóricas, etc.
Uma pesquisa sobre o “pós-tropicalismo” deve estender-se, no mínimo, sobre
estas questões (“experimentalismo e nova sensibilidade”); sobre a atividade cultural do
período, tal como se manifestou heterogeneamente em revistas e jornais (Pasquim, Flor
do Mal, Presença, Navilouca, Polém, etc.); no jornalismo cultural de Torquato Neto; na
literatura de José Agrippino de Paula, Gramiro de Matos, Waly Salomão; nas
proposições de Hélio Oiticica, Lygia Clark e muitas manifestações em espaços públicos;
na música popular, de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Macalé, Walter Franco e alguns
outros.
252

O tropicalismo, a contracultura, os alternativos*

Vou falar aqui de alguns aspectos da produção cultural brasileira que,


genericamente, centrou-se na idéia de “independência”, referindo-me a três momentos
significativos: o tropicalista, do final dos 60; o contracultural, da primeira metade dos
70 e o da cultura alternativa, também chamada especificamente independente, do final
de 70 a inícios de 80.
Penso que, apesar das diferenças que apresentam, em termos de modos de se
efetivarem em contextos históricos diversos, estas produções mantiveram uma certa
continuidade: em todas elas observa-se a ênfase na questão do comportamento.
Mudaram as cenas, mas o comportamento libertário desenvolveu-se através de inúmeros
caminhos, com matizes que ora acentuavam a oposição a regramentos sociais e
imperativos políticos, ora diretamente as vivências individuais ou de grupos.
Irreverência, tendências anarquistas e uma certa marginalidade foram as marcas dessas
produções, que tinham nas manifestações artísticas, especialmente a música o ponto de
convergência.
O Tropicalismo foi o momento de explosão dessa trajetória cultural,
conformando inquietações artísticas e culturais de ruptura em relação ao sistema
instituído. Aliando experimentalismo artístico e crítica cultural, articulando
procedimentos de vanguarda e participação política, os tropicalistas deslocaram os
modos de evidenciação do inconformismo estético e social. As posições de
inconformismo que vinham se elaborando desde os anos 50 foram retraduzidas segundo
as novas condições de produção artístico-cultural e do contexto político-social dos anos
60; foram relativizadas, confundidas, misturadas e negadas em sua positividade. O
tropicalismo abriu o campo já marcado por posições hegemônicas e excludentes,
propondo a reinvenção dos processos artísticos e culturais.
Se os anos 60 foram tão significativos e hoje alvo de tanto interesse, é porque
neles se promoveram transformações profundas, nas artes, na produção cultural, na
política e nos comportamentos. Evidentemente, o tropicalismo não foi o seu único feito,
mas foi o seu momento crítico mais instigante; momento em que o formidável

*
Revista Temporaes (Um laboratório de História). Ano V, Edicão Especial n. 2. FFLCH-USP /
Departamento de História, 1996, p. 24-30.
253

florescimento cultural e artístico respondeu à altura ao golpe de 64 e aos imperativos


das transformações culturais em curso em toda parte. É o momento em que a emergente
“cultura jovem” manifesta-se contra os padrões morais tradicionais, contra as
instituições escolares, contra as guerras, contra os regramentos da sexualidade etc.
Especialmente, é o momento que entra em cena o conflito entre a vida aberta, já
explorada pelos sistemas de comunicação de massa e o fechamento institucional do
regime político.
Antes dos 60, o tema da mudança dos comportamentos dos jovens era um
assunto muito bem localizado: a única imagem que se tinha era proveniente das atitudes
angustiadas de rebeldia, traduzidas no cinema americano dos filmes estrelados por
James Dean e Marlon Brando; especificamente, pelos filmes Juventude transviada (que
serviu de emblema para identificar um certo comportamento de rebeldia) e Vidas
amargas. O aparecimento do Rock de Elvis Presley, com as manifestações de juventude
em torno dessa nova música, serviu para afirmar o rótulo: juventude transviada era
aquela, ao mesmo tempo angustiada e barulhenta, que rompia com a imagem do jovem
idealista que caminhava para o futuro decididamente, segundo os padrões já
estabelecidos. No Brasil, apesar do atraso social, não ocorria coisa muito diferente do
que aparecia no cinema americano.
As transformações começam a se dar logo no início da década de 60. O mundo
idílico gerado pelo otimismo dos anos 50 começa a se quebrar. A miséria, o
analfabetismo, a exclusão social, a dominação imperialista salta à cena abruptamente,
compondo a imagem de um país “subdesenvolvido”, injusto, culturalmente atrasado. A
renúncia de Jânio Quadros (1961), a ascensão de Jango Goulart, as tentativas de
reformas sociais, o sentimento nacionalista etc. tomam conta do país. A mobilização
social tem na juventude uma força de referência, principalmente como realizadora dos
projetos de cultura popular, de alfabetização, de conscientização das camadas populares.
Em 62 a UNE cria o CPC (Centro Popular de Cultura) que atuaria em vários lugares do
país com um projeto claro de intervenção política para o qual as manifestações artísticas
(cinema, teatro, música, literatura) seriam de grande utilidade. Articulando uma
linguagem emotiva, de denúncia, as produções do CPC geraram também a imagem de
uma juventude comprometida com as questões políticas e sociais, através de um tipo de
experimentação artística que utilizava procedimentos de vanguarda misturados com
procedimentos da nossa tradição popular. A tentativa era a de criar um tipo de expressão
artística apta para transmitir informações, recados políticos, palavras mobilizadoras.
254

Nesta cena, o jovem (na verdade, o estudante) muda a sua posição: não é mais aquele
que marcha para o futuro segundo as promessas do país “em desenvolvimento”; é
aquele que compromete o seu destino com o destino do país. Nasce a imagem do
“jovem participante”, indicando um outro comportamento, individual e social.
Dentre as manifestações artísticas surgidas naquele momento, a música de
protesto e denúncia (e também de esperança no “dia que virá”) se sobressai. A música
passou a ser o canal mais adequado para a veiculação de projetos políticos, exatamente
porque a canção popular sempre foi no Brasil a modalidade artística com maior
penetração pública, em todas as camadas da população. Geralmente líricas, misturando
informações da bossa nova a ritmos populares, a música de protesto já é significativa
antes mesmo de 64. O golpe só fez crescer a sua importância, pois é com ela que, em
grande parte, vai-se responder e reagir ao regime militar, à censura e à repressão. Por
outro lado, a recente implantação, em 65, da TV Globo, impulsionando o
desenvolvimento da indústria cultural, favoreceu a evidenciação dos espetáculos
musicais, dando origem aos festivais de música popular por exemplo, onde a canção de
protesto terá um lugar (ainda que contraditório e problemático) de apresentação de suas
mensagens.
O surgimento do tropicalismo em 67 não só provocou mudanças na situação da
música popular no Brasil, colocando em discussão os limites da eficácia da canção de
protesto, como marca a chegada e a absorção mais incisiva das contribuições do rock,
até então experimentados de forma apenas superficial pela Jovem Guarda de Roberto e
Erasmo Carlos. A complexidade do tropicalismo provém de sua intervenção nos modos
de se fazer canção no Brasil, pela explicitação da função crítica da canção. É a própria
materialidade da canção que é modificada com a introdução de procedimentos de
vanguarda (musicais, teatrais, cinematográficos, poéticos), com a absorção do rock, dos
instrumentos eletrônicos, da encenação etc. Além disso, a explicitação do político na
canção é diferenciada: não mais há o emprego de meios didáticos de denúncia e
conscientização, mas a proposição de um conjunto sincrético de imagens disparatadas
que, referindo-se à “realidade brasileira”, ao mesmo tempo a estilhaçava.
Não só pelas inovações musicais o tropicalismo apareceu como transgressão;
também pelo modo como os artistas se apresentavam: roupas extravagantes, gestos
provocativos e mesmo obscenos, cabelos desgrenhados compunham uma linguagem de
rebeldia, de mau-gosto (segundo os padrões), de cafonice, de desafio. Nas músicas, os
temas eram coerentes com a atmosfera gerada nos espetáculos: crítica à sociedade de
255

consumo misturada à crítica da moral, dos costumes, dos valores pequeno-burgueses;


crítica das posições políticas consagradas (de direita e de esquerda); utilização de
resíduos culturais populares e eruditos formando uma mistura aparentemente caótica, na
verdade construída. Nas músicas e nas apresentações manifestava-se a poética do
espetáculo, centrada na eficácia dos gestos simbólicos. A espetacularidade foi a sua
marca, atingindo a um só tempo a boa consciência burguesa, a música bem comportada
e, especialmente, as linguagens instituídas de denúncia ou de justificação das posturas
políticas imperantes. O que já aparecia nas primeiras apresentações de Alegria alegria e
Domingo no parque, desdobra-se, especifica-se, torna-se contundente na produção que
vai até final de 68. A música de Caetano É proibido proibir, e, principalmente, o seu
discurso no Tuca quando foi impedido de cantá-la, reprimido pelo público (jovem, de
estudantes) e pela crítica, dá bem a idéia do gesto abusado dos tropicalistas.
Assim, os tropicalistas exploraram na música e nos comportamentos os efeitos
de choque e estranheza. As músicas propunham ao ouvinte a experiência da
participação, pois não poderiam ser entendidas e apreciadas sem decodificação.
Propunham uma experiência de prazer e êxtase dados no espetáculo, interno (na forma
das músicas) e externo. Exigia, portanto, uma mudança de comportamentos do ouvinte,
o que, evidentemente, provocava muita reação. Era pura loucura, dizia-se: e, no entanto,
tudo aquilo hoje parece simples, pois os desenvolvimentos posteriores da música
popular, impulsionada pelo rock, e a especialização dos espetáculos levaram adiante
aquelas primeiras experimentações, transformando o choque, a estranheza, em matéria
assimilável imediatamente pelos jovens.
Na verdade, o tropicalismo aguçou as relações entre arte e política, entre arte e
sociedade, pois levou ao seu limite (naquele tempo, pelo menos) as possibilidades de se
fazer música (arte) e ao mesmo tempo produzir significações que não eram
imediatamente consumíveis. Um certo anarquismo compunha-se com um ímpeto
construtivo gerando um espírito libertário. Embora seu trabalho tivesse se efetivado
dentro do sistema das comunicações (na TV, nos discos, nos espetáculos), o
tropicalismo assumia esta determinação como estratégia de ação sobre o público. Não
partiam de uma suposta contradição entre os meios de comunicação e a postura
libertária; sabiam os tropicalistas que trabalhavam com sistemas e materiais
culturalmente datados e localizados socialmente; mas queriam correr o risco. Esta foi
uma de suas apostas mais interessantes, e que resultou em interferência na música
popular e na cultura cujos resultados até hoje podem ser sentidos.
256

Em 67/68, quando o tropicalismo desenvolvia a sua breve e contundente


trajetória, chegavam ao Brasil os ecos da atividade do underground norte-americano.
Algumas de suas práticas foram imediatamente absorvidas pelo tropicalismo, como um
dos elementos de sua mistura antropofágica. Mas somente a partir de 69, quando com o
AI-5 o movimento tropicalista se extinguira, começa a tomar corpo uma
“contracultura”, que, aliás, vai tomar a atividade tropicalista como uma das referências
de suas ações. A idéia de marginalidade é agora mais explícita, pois implica a saída para
fora do sistema. A ênfase na ritualização, no culto do corpo, nas drogas, no
orientalismo, na vida comunitária, na sexualidade aberta, no rock, aparecem como o
caminho para a expressão do inconformismo dos jovens. Opondo-se à sociedade
tecnológica, ao controle social e à moral familiar, pretendiam renovar a vida através de
novas formas de sociabilidade grupal, as comunidades. A contracultura desenvolve-se
na primeira metade dos anos 70, aparentemente desligando-se da problemática política
dos 60. A ênfase agora não estava mais na relação arte-política, mas na relação arte-
vida: a oposição ao sistema era mais genérica e pretendia-se mais radical porque
implicava o abandono das relações produtivas, do processo educacional tradicional, da
política partidária, da cultura estabelecida. A contracultura propunha a idéia de
desculturação e a proposta de um novo início, ligado às formas simples de vida, ao
artesanato, à atenção ao corpo, ao prazer etc.
Romântica, a contracultura não deixava de ser uma reação às avessas à repressão
dos anos 60, e também um sintoma da desilusão quanto aos projetos mobilizadores da
década. Indicava desencanto quanto às possibilidades de se mudar a sociedade pelos
meios políticos e culturais consagrados, acreditando ingenuamente nas pequenas
revoluções individuais e das células comunitárias. De qualquer forma, embora
rapidamente recapturados pelo sistema, os comportamentos contraculturais
aprofundaram algumas indicações tropicalistas no que tange aos comportamentos.
Roupas, barbas, cabelos, manifestações artísticas, relacionamento afetivo, objetos
artesanais, religiosidade oriental, drogas, vida natural, compunham a imagem de um
comportamento aberto, de reinvenção da vida. Disso tudo sobraram os resíduos, muitas
vezes tornados objetos de consumo.
Encerrado (não se sabe como, talvez por exaustão das experiências, talvez pela
recuperação do sistema) o período da “curtição”, na segunda metade dos 70 a idéia de
marginalidade perde a força. Formam-se grupos de egressos das práticas contraculturais
ou reminiscentes das tropicalistas que através da poesia (a “poesia marginal”), teatro,
257

cinema e principalmente música, constituem núcleos de “produção independente”.


Trabalhando com toda a liberdade conquistada pelas experiências tropicalistas e
contraculturais, estes grupos afrontam agora a possibilidade de fazer uma intervenção
organizada, ainda que em circuito paralelo ao da cultura convencional. É o momento de
surgimento de bandas, grupos de teatro e outros que formaram um movimento de
cultura alternativa. Em São Paulo, por exemplo, as atividades centraram-se em grande
parte do Teatro Lira Paulistana. Lá se consolidaram grupos como Língua de Trapo,
Premeditando o Breque, Banda Isca de Polícia, Grupo Pau-Brasil, Grupo Rumo, Arrigo
Barnabé, Itamar Assumpção, Tetê Espíndola etc. Até meados de 80, proliferam bandas e
artistas independentes, com produções inovadoras. Quando, pouco tempo depois,
surgem os punks, todo um caminho de liberação e de abertura de possibilidades de
expressão de comportamentos desviantes havia sido trilhado.
258

ANEXO

Imagens do migrante na música popular brasileira*

Da conhecida canção de Dorival Caymmi, “Peguei um ita no norte”, que se


tornou emblemática, à pouco conhecida “No dia em que eu vim-me embora”, de
Caetano Veloso, a saga dos nordestinos que vêm para o Sul, acreditando “na fama e no
dinheiro para ser feliz”1, atravessa a música popular brasileira das décadas de 50 e 60
compondo um imaginário de exílio e saudade, de esperança e decepção. Incidindo,
especialmente, na vida do homem simples e pobre, marcado pela seca e miséria, sem
futuro na terra que tanto ama, o tema do retirante comparece nas músicas com uma
força semelhante (embora justificada por outros aspectos da análise social) ao
deslocamento, na década de 30, de escritores e artistas do Norte/Nordeste, da Bahia e
Minas para o Rio. Analisando o acontecimento, bradou um crítico da época: “são os do
Norte que vêm”, como que valorizando a interferência e as mudanças de registro que
provocavam na literatura.
As canções do período em destaque desdobram um imaginário vinculado
simultaneamente a uma mitologia de origem (concepção edênica da “terra”, votada à
felicidade) e a uma utopia de progresso (o Sul apontando o futuro, como resolução de
problemas imediatos e das condições de possibilidade de volta ao Norte). Norte e Sul
são substancializados; são metáforas de pobreza e riqueza, imagens de atraso e
progresso, articulando sempre a decisão de ir e o anelo de voltar. Entre a ilusão e a
desilusão, imagens recorrentes na maioria das músicas, o Sul aparece como o lugar do
trabalho e da espera, do lamento e da saudade: “Hoje longe de muitas léguas / Numa
triste solidão / Espero a chuva cair de novo / Pra mim vortá pro meu sertão”2.
Entretanto, ainda que esse imaginário seja muito cristalizado, há diferenças e
ambigüidades que modalizam o tema da ida e da volta, pois ora as músicas remetem-se
a uma mitologia coletiva, ora procedem de mitologizações individuais3. Assim, embora

*
Travessia – Revista do Migrante. São Paulo: Centro de Estudos Migratórios (CEM), ano VI, n° 17,
set/dez 1993, pp. 11-4.
1
Dorival Caymmi. “Saudade da Bahia”, 1957. “Peguei um Ita no Norte” é de 1945, e a de Caetano (e
Gil), de 1968.
2
Luis Gonzaga e Humberto Teixeira. “Asa branca”, 1952.
3
A distinção é de Walnice Nogueira Galvão, em “MPB: uma análise ideológica”. Aparte, Tusp, maio-
junho 1968.
259

esquematicamente, pode-se classificar as canções em três tipos, que não são


rigorosamente estanques: canções saudosistas, de lirismo ingênuo e fundo edênico;
canções politizadas, líricas e esquemáticas na forma do “protesto”; canções afirmativas,
em que a migração é efeito de decisão irreversível.
Enquanto o primeiro tipo opõe simplesmente o Norte (pintado como terra de
abundância, autenticidade pessoal, bondade e felicidade espontânea, contanto que
chova) ao Sul, como lugar de sofrimento e trabalho, de “vivê ou morrê”4, o segundo
tipo, embora mantendo o mesmo tom de lamento, introduz um certo inconformismo (em
relação a Deus que parece não ouvir as queixas, por mais que se reze, ou em relação à
estrutura social e às relações de produção). Já as canções do terceiro tipo não procedem
por simples oposição das virtudes e maldades de Norte e Sul; visam ao futuro de modo
indeterminado, mantendo a referência ao passado na clave de um tempo completo, mas
sem idealizações como ocorre nas anteriores. Se nas canções do primeiro e segundo
tipos a vinda para o Sul é forçada, compulsória e não desejada, nas do terceiro ela é
deliberada.
O ideal da volta comanda as canções saudosistas: “Quem sai da terra natal / Em
outros campos não pára / Só deixo meu Cariri / No último pau-de-arara”5. No Sul,
exilado, tudo estranhando, só a idéia de volta serve de consolo. Através das relações
com os conterrâneos, que permanecem como as referências afetivas quase que
exclusivas, pelas cartas e notícias do Norte, que correm incessantemente entre os
agrupamentos, o que é efetivamente vivido está marejado dos comportamentos e valores
dos lugares de origem. E se a volta é retardada e mesmo impossível, ela é abrandada
pelos retornos periódicos, para as festas coletivas anuais. Conhecem-se as verdadeiras
romarias nestas ocasiões, para as quais os nordestinos não medem esforços;
economizam o ano todo, deixando os empregos se preciso. Também se conhece um
outro procedimento: a compra de terrenos, na roça ou na cidade, como que prefigurando
uma estabilidade e segurança mínimas no caso da volta definitiva. Mas é preciso
também acentuar que, paralelamente ao imaginário da volta, outro se impõe: o da
vivência e das possibilidades da cidade grande, o apelo do consumo, das facilidades
(ainda que precárias) de educação e saúde, do futuro para os filhos. Só uma coisa
permanece imutável e de difícil assimilação: a força da cultura de origem, mesmo
quando edulcorada por emblemas de consumo e modernidade. Lembrar, rememorar é,

4
Patativa do Assaré. “A triste partida”, 1965.
5
Venâncio, Corumba e J. Guimarães. “O último pau-de-arara”, 1956.
260

então, não um simples passatempo, ou apego ao passado, mas o modo de estabilizar a


afetividade; de manter a unidade pessoal, familiar e social; de fugir à fragmentação para
não sucumbir à saudade, à loucura, à despersonalização.
Assim, uma primeira ambigüidade se impõe: lembrar é sempre preciso, mas é
melhor ficar (como foi melhor partir) para não “ver tudo piorar”6. Ou seja, se o Norte
permanece a referência da unidade, ficar no Sul é também uma proteção contra a
imutabilidade das condições de vida do Norte. Por isso, geralmente quando retornam ao
Norte, pretendendo ficar, logo voltam, para tentar de novo.
As músicas politizadas manifestam, ao mesmo tempo, a saudade dos lugares de
origem e os imperativos da participação, típicos dos anos 60. Provenientes de
cantadores nordestinos ou de artistas articulados aos projetos culturais que faziam a
crítica da dominação (do coronelismo, do imperialismo, do capitalismo) e, depois de 64,
a crítica do Regime Militar, incidiam, nos temas, nos ritmos e melodias, nos processos
de “conscientização” e de “protesto”. Embora procedendo também idealização, seus
objetivos eram didáticos: ensinar, esclarecer e mobilizar. A maior parte delas nasceu no
interior dos movimentos (artísticos, da Igreja Católica, educacionais) instrumentados
politicamente. Mesmo quando frutos do lirismo individualizado, ou dos cantadores,
foram apropriados por projetos – como o dos Centros Populares de Cultura – CPC – da
UNE; os de teatro, como nos shows “Opinião” (1965), “Arena conta Zumbi”, “Arena
conta Bahia”; pelo cinema de Glauber Rocha, de Nelson Pereira dos Santos e outros;
também pelos Festivais de Música Popular –, que visavam a uma crítica dos sistemas de
poder montando alegorias revolucionárias.
Embora as mensagens políticas traduzidas nas músicas fossem bombásticas,
levantando as platéias (geralmente de intelectuais, estudantes e público variado das
classes médias), seu efeito era mais emotivo que politicamente instaurador de práticas.
Serviram, entretanto, na ocasião, para manter um fervor e entusiasmo na explicitação da
miséria e injustiça reinantes. Serviram, por sua atitude “contra” para mobilizar corações
e mentes na indignação. Canções como “Sina de Caboclo” (João do Vale, 1964) e
“Borandá” (Edu Lobo, 1966) são típicas: ainda que melancólicas, indicam decisão,
tomada de posição. João do Vale, músico nordestino que se tornou conhecido com a
famosa “Carcará”, cantada por Nara Leão e Maria Bethânia no show “Opinião”, –
música que foi um dos emblemas maiores da luta contra o golpe de 64 e tudo o que

6
Edu Lobo. “Borandá”, 1966.
261

representou de dominação, repressão e conservadorismo –, é descritiva e incisiva: “Eu


sou um pobre caboclo / Ganho a vida na enxada / O que eu colho é dividido / Com
quem não plantô nada. Se assim continuá / Vou deixar o meu sertão / Mesmo os olhos
cheios d’água / E com dor no coração. Vou pro Rio carregá massa / Pros pedreiro em
construção. (...) Mas plantá pra dividi / Não faço mais isso não”. Este refrão, como o de
“Carcará” (“Pega, mata e come”) e o de “Opinião”, de Zé Keti (“Podem me prender /
Podem me bater, Podem até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião”),
virou símbolo de mensagem participativa. Em cada um desses refrões ouve-se a voz do
dominado que se revolta, na voz do artista que fala em nome dos que não têm voz. Na
ocasião, este procedimento didático repercutiu e foi contundente, apesar de toda a crítica
que se possa fazer ao seu conteúdo ideológico simplista.
Na música citada de Edu Lobo percebe-se um nível de ambigüidade já bastante
nítido, certamente devido à proveniência do artista (instruído, da classe média da zona
sul do Rio). O protesto não é direto, visando a instrumentar revolta; é subliminar: vamos
embora, andar, “que a terra já secou / que a chuva não chegou” e “meu Deus não ouve,
não”. É um lamento, assim reforçado: “Vou-me embora, vou chorando / Vou me
lembrando / do meu lugar”. Mas: “Quanto mais eu vou pra longe / Mais eu penso sem
parar / Que é melhor partir lembrando / Que ver tudo piorar”. A lembrança não implica
necessariamente saudade: parte-se porque a situação é irremediável, só tende a piorar. O
protesto insinua-se dramaticamente, na alusão ao estado estagnatário do Norte (do
Brasil, alegoricamente). Disso advém a ambigüidade; partir não é, necessariamente, um
mal: é decisão proveniente de análise da situação; a contrapartida da dor de partir é a
dor de ficar presenciando a desgraça. Ao consentimento destrutivo na dor de ficar opõe-
se a força da vida: partir. Esta abertura para o futuro, ainda melancólica, desemboca no
elogia da mudança pelo correr “no meio do mundo” na música “Ponteio”, feita com
Capinam, e ganhadora do III Festival de MPB da TV Record em 1967. Nela, embora o
tema não seja o do retirante, mas o da eficácia do canto em meio à “violência” e à
“morte” se diz: “Parado no meio do mundo / Senti chegar meu momento / Olhei pro
mundo e nem via / Nem sombra, nem sol, nem vento”. Daí surge a esperança de
mudança: “Certo dia que sei por inteiro / Eu espero não vá demorar / Esse dia estou
certo que vem / Digo logo o que vim pra buscar”. Alegoricamente, a decisão de partir
abre a possibilidade da transformação, elidindo a dor através do combate.
A ambigüidade assinalada, que matiza a mitologia da volta, na verdade já se
manifestava no Caymmi de “Peguei um Ita no Norte”, mesmo em “Saudade da Bahia”.
262

Nos versos: “Vendi meus troços que eu tinha / O resto eu dei pra guardar / Talvez eu
volte pro ano / Talvez eu fique por lá”, flagram-se dois índices de relativização desse
mito: o óbvio talvez e o modo da enunciação. Caymmi duvida da volta mesmo antes de
ir. Depois, mudando o tempo verbal, reitera o que estava implícito na dúvida: “Tou há
bem tempo no Rio / Nunca mais voltei por lá / Pro mês inteiro é dez anos / Adeus
Belém do Pará”. A música é puramente descritiva, não constrói estados de alma, não há
saudade nela; é antiilusionista. Em “Saudade da Bahia”, embora o tema seja a saudade e
um certo lamento, – pois “se escutasse o que mamãe dizia” não teria partido, não teria
saudade da Bahia, e embora diga que “pobre de quem acredita / na fama e no dinheiro
para ser feliz” (entenda-se, o que se procura no Sul) –, ele observa: “a gente faz o que o
coração dita”; isto é, “esse mundo é feito de maldade e ilusão”, mas a gente faz o que é
imperioso, o que é ditado pelo desejo. E aí, nem a saudade tem poder; pode-se apenas
“desabafar”, transformar o sofrimento representando-o na linguagem e no canto. Em
Caymmi é bem claro que não há nunca volta: parte-se por decisão, por imposição de
construir a vida para além da melancolia. Com seu lirismo descritivo Caymmi é
tranqüilo e feliz num presente contínuo.
Em “Triste partida” há também um índice interessante: falando do “nortista, tão
forte, tão bravo”, observa que dá pena vê-lo “vivê como escravo / No Norte e no Su”.
Faz, na música, um inventário das desgraças do Norte e da dor de partir; mas também da
vida em São Paulo onde “Trabaia dois ano / Três ano e mais ano / E sempre nos pranos /
De um dia voltá. Mas nunca ele pode, só vive devendo / e assim vai sofrendo / A sofrê
sem pará”(...) O tempo rolando, vai dia, vem dia / E aquela famia / Não volta mais não”.
A desilusão acaba em desistência; pois tanto faz no Sul como no Norte, é tudo igual. O
mito da volta é destruído pelo princípio de realidade. E, na famosa “Paraíba” (Luiz
Gonzaga e Humberto Teixeira, 1962) a partida é deliberada e sem dramas, como fica
indiciado no “vim’embora”: “Quando a lama virou pedra / E mandacaru secou / Quando
ribaçã de sede / Bateu asas e vuou / Eu entonce vim’embora / Carregando minha dor”.
A ausência de drama é reiterada quando diz que “meu bodoque num quebrou” e que
hoje apenas manda “um abraço / Pra ti pequenina / Paraíba masculina / muié macho,
sim senhor”.
É no Tropicalismo dos anos 1967/68 que as ambigüidades rastreadas se
radicalizam, configurando em sua plenitude o terceiro tipo de canções que tratam da
partida para o Sul. O tema é explorado sem recurso a nostalgias, melancolia e
depressão. São músicas afirmativas; incidem sobre o presente, abertas para um futuro
263

imponderável e que tomam o passado, o Norte, a Bahia, como fonte de valor


incontestável, pois deu a seus filhos “régua e compasso” (Gilberto Gil, “Aquele
abraço”). Mas: “adeus, meu bem, eu não vou mais voltar” (Caetano Veloso, “Quem me
dera”). Há mudança radical no tema da volta e no registro das canções, agora acolhendo
a modernização (social, política, cultural, artística) como positividade e desafio. Longe
dos versos e acordes saudosistas, o que nelas se vê é a coragem de viver o heterogêneo,
o mutável; sem ideais fixados, só com perspectivas.
Embora a Bahia esteja presente em muitas das canções do Grupo Tropicalista
(Caetano, Gil, Torquato Neto, Capinam, Tom Zé), numa delas o tema do migrante está
tratado de modo exemplar: “No dia que eu vim-me embora”, de Caetano e Gil (1968).
Nesta música, o rigor de linguagem produz imagens precisas, compondo o imaginário
da partida fincado numa mitologia privada de rara argúcia e, pela primeira vez na
música popular, pensando a partida como ruptura, sem qualquer referência ao que
deixava. É verdade que tem muito de similar a “Peguei um Ita no Norte”, mas é mais
complexa, radical e cruel, pois nela o sentimento está objetivado. Vale a pena
transcrevê-la na íntegra para se acentuar a sua eficácia crítica:

No dia em que eu vim-me embora


minha mãe chorava em ai
minha irmã chorava em ui
e eu nem olhava pra trás.
No dia em que eu vim-me embora
não teve nada de mais.
Mala de couro forrada
com pano forte, brim cáqui.
Minha avó já quase morta
minha mãe até a porta
minha irmã até a rua
e até o porto meu pai.
O qual não disse palavra
durante todo o caminho.
E quando me vi sozinho
vi que não entendia nada
nem de pro que eu ia indo
nem dos sonhos que eu sonhava.
Senti apenas que a mala
de couro que eu carregava
embora estando forrada
fedia
cheirava mal.
A fora isto ia indo
atravessando seguindo
264

nem chorando nem sorrindo


sozinho pra capital

Desde o primeiro verso acentua-se o ato voluntário (“vim-me embora”),


indiciando escolha e determinação; a saudade não se impõe: a partida “não teve nada de
mais”. Diferentemente das demais músicas rastreadas, não há remissão aos lamentos
familiares; não há conselhos também: a mãe e a irmã choravam, a avó “já quase morta”
e o pai “não disse palavra”, mas “eu nem olhava pra trás”. Cru e cruel, diz que a mala
de couro (o passado, a família, o lugar de origem) “fedia, cheirava mal”; isto é, o
passado é associado à morte e decomposição, dada a sua imutabilidade. A esta atitude
antepõe-se a abertura para o presente, o que é indiciado pelo tempo verbal, presente
contínuo: “ia indo, atravessando, seguindo, nem chorando, nem sorrindo”: plena
disponibilidade para o acontecimento, para o indeterminado. Parte “sozinho pra
capital”, sem mitificar o passado, sem apoiar-se em utopias de futuro. Sem construir
mitologia coletiva, sem vincular-se a qualquer projeto pré-fixado, lança-se no puro fluir
do tempo, convertendo a própria individualidade em mito.
Esta canção, considerada no conjunto das demais canções e intervenções
tropicalistas, produz um deslocamento dos temas tradicionais da música popular
brasileira, no lirismo e na participação, tanto no que se refere aos conteúdos
(sentimentos, afetos, significações políticas, sociais e morais) quanto aos procedimentos
artísticos. A canção não é apenas expressão de sentimentos, valores e tomadas de
posição, fonte de lirismo e prazer, mas um pensamento que corrói os sujeitos instituídos.
O discurso político e a crítica social não aparecem nessas canções sob a forma de uma
pedagogia, derivada de uma doutrina (ideologia), antes propõem-se como intersecção de
discursos e práticas que se relativisam mutuamente.
Assim, o tema do migrante, por exemplo, não contempla nem a saudade nem o
ideal de volta, pois a migração é imaginada como exercício desterritorializante, isto é,
como abertura para a vida, para o mundo e suas surpresas.
Sintomaticamente, depois da crítica tropicalista o tema do migrante não
alcançou outras expressões significativas; sintoma, talvez, das transformações radicais
que a imersão do país na modernização capitalista provocou. Mesmo que o Norte
continue idealizado para os migrantes, as formas sociais do Sul, principalmente a
sedução dos bens de consumo e os ardis da comunicação, reduziram a saudade e o
265

desejo de volta a elementos de um álbum de fotografias ou a despojos de um tempo


onde ainda havia felicidade.
266

V – Sobre arte e educação


267

Ação educativa em instituições culturais*

Distintos do espaço escolar, os espaços expositivos das instituições que, além


dos museus, incluem oficinas culturais, casas de cultura, bibliotecas públicas, fundações
e institutos culturais, precisam ser caracterizados para cada caso , situação e mesmo
para eventos distintos. A questão fundamental que se coloca é a seguinte: qual a
modalidade de ação educativa apropriada para cada espaço, contexto e projeto cultural
dessas instituições, tendo-se em vista as demandas culturais da sociedade e, muito
especialmente, as demandas particulares do sistema público de ensino, com a sua
estrutural penúria e impotência no que se refere à formação da base cultural requerida
pelo processo educativo.
Parte-se do princípio de que estes lugares, estas instituições, têm a oferecer algo
que é culturalmente relevante, necessário e requerido por um público que busca alguma
coisa que supostamente lhe é prometida pelo domínio da arte, independentemente dos
mitos e místicas que o recobrem. Conhecimentos? Experiências? Que tipo de
conhecimento e de experiência? As expectativas desse público, na verdade públicos,
visam, certamente, a participação em experiências e a aquisição de conhecimentos
tacitamente valorizados socialmente; ou seja, legitimados pelos discursos que sustentam
os valores, os comportamentos e os ideais da, assim chamada, cultura ocidental ou,
particularmente, que legitimam as necessidades de uma sociedade, como a
brasileira,comprometida com os imperativos da modernização. Não se pode, entretanto,
deixar de levar em conta que a busca genérica de um contacto com a arte, ou, de uma
experiência especificamente estética, vistas como um ideal de cultura, de humanização e
modo de vida moderno, podem ser objetivos primordiais dessa busca, ainda que não
claramente percebidos ou evidenciados pelos freqüentadores, ou usuários, dessas
instituições. Sob este ponto de vista, pode-se arriscar dizer que as expectativas que
mobilizam a busca de cultura por estas pessoas referem-se a uma suposta potencialidade
da arte em propiciar a elas a passagem da dispersão das experiências cotidianas, da

*
Inédito. Texto elaborado a partir de comunicação na mesa redonda “Espaços expositivos: lugares
específicos de educação”, do “Seminário Internacional sobre Ação Educativa em Instituições Culturais”.
Organização conjunta do Serviço Cultural doMuseu do Louvre, Paris, e Instituto Itaú Cultural. São Paulo,
28/11/2000.
268

fragmentação, para uma espécie de unidade da experiência prometida pela arte – talvez
aquela promessa de felicidade de que fala Stendhal
A função educativa destas instituições culturais não pode ser pensada como
supletiva, como preenchendo lacunas das instituições escolares, do sistema regular de
educação, pública e privada. Estas, supõem, por princípio, a continuidade dos
conhecimentos e da formação, sistematizadas conforme ideais, princípios, objetivos e
valores articulados por uma concepção pedagógica psico-social, além de filosófica-
existencial. Já as instituições de que estamos tratando, museus, institutos, fundações,
etc.,dedicadas especificamente , ou especialmente, à produção artística, e, muito
particularmente, à arte contemporânea, devem dar conta do desnível entre a experiência
propiciada pela arte contemporânea – que são pontuais, implicando continuidade mas de
outra espécie, por blocos, módulos – e o horizonte de expectativas do público1.
As expectativas do público são fortemente marcadas pelas modalidades artísticas
difundidas pelo sistema midiático, com tudo o que isto implica em termos de relação
consumista, modista e de generalização estética que atinge e torna artísticos objetos de
proveniência diversa – mas também com tudo o que isto implica de abertura do campo
artístico e de possibilidades amplas de informação e de comunicação. Coloca-se aqui a
contribuição potencial das novas tecnologias para o desenvolvimento de atividades de
participação dos visitantes, com sua grande diversidade, o que impõe requisitos para a
produção das atividades. É muito importante considerar também os limites destas novas
tecnologias na formulação e realização das funções educativas, pois não se pode
considerar o valor dos media em si mesmos. Daí a necessidade de se definir a
colaboração necessária entre os especialistas da comunicação e da multimídia e os
produtores culturais das instituições em pauta. Pois, se de um lado, pode-se dizer que as
novas tecnologias constituem uma ocasião excepcional de “relançar a ação cultural e
educativa dos museus do terceiro milênio”2, de outro, “seria ilusório, ingênuo e perigoso
sacralizar as novas tecnologias”3.
Assim, atualmente, um dos esforços das instituições culturais dedicadas à arte
contemporânea consiste em estabelecer processos de acompanhamento ou de mediação
que facultem a possibilidade dos espectadores de acederem sensivelmente e

1
RECHT, Roland. “Le musée et l’initiation à l’art contemporain”.In. GALARD, Jean (org.). Le regard
instruit.Action éducatif et action culturelle dans les musées.Paris: La documentation Française – Musée
du Louvre, 2000, p.180.
2
GALLUZZI, Paolo, “Les nouvelles technologies et l’éducation hors les murs”. Id.ib.,p.140.
3
BOURDON, Alain. “L’usage éducatif d’un service en ligne: le cas de [Louvre.edu].Id.ib., p.152
269

reflexivamente a uma experiência estética específica. Isto requer, antes de tudo, uma
contextualização dos trabalhos – obras, objetos, instalações, proposições, ambientações.
Trata-se de um esforço de “situar a obra nas condições de sua gênese singular e, por
conseqüência, aproximar-se do horizonte de expectativas” do público e, assim,
“contribuir para apoiar a obra na história de uma dada sociedade”4
A constituição de um sistema de referências – por exemplo, pela justaposição de
obras contemporâneas e obras anteriores, antigas e modernas – permite muitas vezes
que o espectador faça uma espécie de viagem pelo interior de uma vertente produtora de
obras para localizar aquela obra contemporânea que está sendo apresentada. Em
resumo: como os espectadores de arte contemporânea, poderão apossar-se das
elaborações dos artistas, considerando que estes estabelecem, nos seus trabalhos, uma
relação entre as próprias operações e o processo de criação de alguns de seus
antecessores? Como acessar as regras que presidem os trabalhos contemporâneos, em
sua singularidade, senão evidenciando o sistema de referências a que se remetem ou em
que se incluem? Esta, talvez, seja a tarefa mais importante a ser realizada pelas
instituições dedicadas às artes visuais. Se as obras, sob certos aspectos, autônomas na
criação, não o são na recepção. Dessa maneira, pode-se dizer que a educação artística
propiciada pelas instituições de que falamos não pode reduzir-se ao domínio das
técnicas, procedimentos , estilos ou ao gosto. Nem pode, também, fornecer princípios
estéticos que formulem juízos de valor. A entrada na própria experiência artística é a
meta. Isto se dá através de mediações.
A mediação, enquanto processo de entrada no sistema de relações que preside o
trabalho dos artistas, exige métodos próximos daqueles que se efetuam nas escolas –
embora em outra chave,pois nestas a “aula” é atividade indispensável – ,aliados a outros
que devem responder diretamente à configuração dos espaços culturais das instituições.
Lugares de evidenciação da arte, especificamente dedicados a mostrar, exibir, eventuar
a arte contemporânea, já determinam uma qualidade de experiência artística
diferenciada. Se na escola, a arte comparece pelo seu possível valor educativo, como
uma articulação de signos aptos a mediar o processo de ensino e a aprendizagem, nas
instituições culturais ela afirma-se imediatamente pelo seu valor cultural. Nelas, “a ação
educativa não é um fim em si – ela deve colocar-se a serviço do museu [ou outro lugar
específico], cujo sentido a ultrapassam amplamente, mas que também a orientam”5.

4
RECHT,Roland. Loc. cit ,p.181
5
Id.ib. p.178
270

Se a ação educativa não é um fim em si e porque ela é um dos elos do sistema de


produção cultural que se estabelece nestas instituições, ela situa-se, não apenas no
horizonte da distribuição ou democratização de idéias, produtos, obras, porém, mais
incisivamente, no uso da cultura, promovendo “o pleno desfrute de uma determinada
obra, o que envolve o entendimento de seus aspectos formais e também de conteúdo,
sociais e outros; para tanto recorre à elaboração de catálogos, programas de
apresentação de um espetáculo ou filme, palestras, cursos, seminários, debates, etc.”6.
Portanto, é como ação cultural, definida por uma atuação, voltada para efetivar uma
determinada política cultural, que a arte está estrategicamente situada no núcleo central
do trabalho destas instituições.
É preciso contudo ressaltar que a ação cultural através da arte não pode
restringir-se, e muito menos submeter-se, a fins objetivamente programados, ou seja,
não pode ser simplesmente instrumentalizada. Ela propõe, organiza e articula ações que
materializam pensamentos e atitudes que visam a orientar os destinatários na
discriminação de valores, na definição de uma posição face à dispersão cultural
contemporânea, particularmente, face à diversificação do trabalho artístico. Sabe-se,
além disso, que as experiências que as artes proporcionam não mais satisfazem às
expectativas e desejos de transcender, a tal dispersão, ou seja, não satisfaz o anelo de
reunificação da experiência fragmentária. De qualquer maneira, entretanto, a arte
permanece sendo um foco de estetização, um lugar de concentração e comoção, do
pensamento e da sensibilidade, que, se não tem o poder de modelar a experiência7. Se
não tem o poder de mudar a vida, é, sem dúvida, uma de suas faces mais intensas: ela é
o lugar onde o sentido ainda insiste em presentificar-se.
Assim, uma educação pelos museus, pelas exposições, pelas retrospectivas,
pelas obras, eventos, instalações,etc., em que se joga a experiência da conjunção do
sensível e do inteligível, pode não fornecer imediatamente resultados como os esperados
segundo os cálculos administrativos e econômicos que hoje invadem a cena da cultura
sob a rubrica de política cultural. A cultura cotidiana do ambiente das metrópoles,
marcada pela indiferenciação do consumo, visada pelos objetivos das políticas culturais
com a finalidade de oferecer oportunidades de diferenciação, é de qualquer maneira o
objetivo das ações educativas mencionadas,pois é aí, mais do que em qualquer outra
circunstância social que se põe crucialmente hoje o valor da arte. A capacidade e a

6
COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Iluminuras,1997,p.32-33
7
Cf. GALARD, Jean. “Beauté involontaire et. beauté prémédité”. Temps Libre 12. Paris,1984.
271

possibilidade dessas ações produzirem diferenciação cultural, através da experiência do


valor dos objetos, das obras, num tempo em que perdem o valor e afirmam-se apenas
através de suas maneiras, estilos de se apresentarem8. A ação educativa não pode ,
assim, reduzir-se a oferecer maneiras e estilos ou mesmo o simples ludismo das formas
e dos procedimentos.
Nas instituições culturais de que falamos, as vias de iniciação à arte
contemporânea efetua-se em duas direções, que se excluem ou que se combinam,
semelhante ao que ocorre nas instituições escolares, especialmente nos cursos de artes
plásticas: a que “elabora uma análise plástica das obras – desconstrução dos
componentes composicionais ou cromáticos, etc. – e considera a obra como um edifício
formal que será o resultado de um saber-fazer, e raramente de um saber-pensar, e que
aparece como uma espécie de molde operatório. Ora, uma tal análise da obra não dá
conta. nem de sua.historicidade nem de seu contexto. A história é o que permite resgatar
os dados diacrônicos, permitindo ligar as obras recentes às obras do passado (...). Os
museus que podem e sabem justapor as obras contemporâneas e as obras de suas
coleções antigas favorecem sensivelmente a aproximação da obra contemporânea”9. A
outra via é a que contempla o “estudo do contexto”da obra: o que está na origem de uma
obra como uma necessidade ou resposta a um pedido, a uma encomenda? Qual foi a sua
destinação primeira? Em que condições trabalhou o artista? Estas são questões, dentre
outras, que “permitem situar a obra nas condições de sua gênese singular e, por
conseqüência, aproximar-se do horizonte de expectativas de seus contemporâneos”,
contribuindo, assim, “para apoiar a obra na história de uma dada sociedade”10.
Atualmente, participar das experimentações implica entrar na reflexão sobre a
constituição do campo contemporâneo da arte. Só assim, a ausência da experiência do
belo, do maravilhoso e do sublime não decairá no domínio do simplesmente
“interessante”, ou seja, no domínio da indiferenciação. A ação educativa é uma ação
ético-estética, não um simples exercício da sensibilidade e um treinamento da
percepção; muito menos uma simples “modalidade de lazer”11.

8
Cf. LYOTARD, J-F. Moralidades Pós-Modernas. Trad. bras. Campinas: Papirus,1996,p.31.
9
RECHT, Roland. Loc. cit. p.180-181
10
Idem, p.181
11
Cf. BRITO Ronaldo. “Pós, pré, quase ou anti?”. Folhetim. Folha de S.Paulo, 2/10/1983, p.6
272

Experiência estética e ação educativa*

A questão que se coloca aqui é a seguinte: dado o pressuposto de que a ação dos
museus e outras instituições culturais combinam os objetivos usuais de evidenciar a
produção artística e a ação educativa, como um requisito social incontornável, como
compatibilizar a especificidade e exigências da experiência estética com a utilidade das
ações educativas. Portanto, a reflexão sobre a experiência que se situa entre o trabalho
do artista e a sua absorção pelos usufruidores, numa situação considerada educativa,
implica a reflexão sobre as mediações articuladas pelas instituições dedicadas, como é o
caso, preponderantemente às artes visuais.
Faz bastante tempo, pelo menos desde Duchamp, que “a arte é um exercício
contínuo de desorientação”. As convenções e expectativas que envolviam a atividade
artística e, assim, a experiência estética que disparava, nunca mais foram as mesmas.
Desde então instalou-se “uma tensão entre o fenômeno artístico e a experiência
estética”, embora sabendo-se que essa tensão “não implica necessariamente uma
dissociação – por mais que essa separação tenha sido recorrente nos textos de vanguarda
– mas uma ampliação, levada a cabo por exigência das obras, da própria experiência
estética”1. Esta ampliação, que é especialmente relevante para o redirecionamento da
ação cultural a partir da experiência artística, veio se desenvolvendo prioritariamente em
duas direções: uma estetização generalizada – em parte difusa, típica da sociedade de
consumo , em parte comprometida com a reinvenção da vida, com a transformação das
estruturas perceptivas, vulto da desestetização e aplicação das categorias da obra de arte
a aspectos da vida cotidiana – , e uma outra, de reproposição da arte e da experiência
estética através das novas tecnologias. Estas direções frequentemente estão imbricadas,
e ambas são relevantes para se pensar hoje a experiência das obras e de outras
manifestações artísticas nos diversos espaços considerados educativos.
A estetização generalizada, difusa, típica das megalópoles e da sociedade de
consumo em geral, ressalta nas atividades artísticas não o valor das obras mas a

*
Inédito. Texto elaborado a partir de comunicação na mesa redonda “O acesso à experiência
especificamente artística”, do “Seminário Internacional sobre Ação Educativa em Instituições Culturais”.
Organização conjunta do Serviço Cultural do Museu do Louvre, Paris e do Instituto Itaú Cultural. São
Paulo, 01/12/2000.
1
OSÓRIO, Luiz Camillo. “Uma leitura contemporânea da estética de Kant”. In: CERÓN, Ileana P. &
REIS, Paulo (orgs.). Kant-crítica e estética na modernidade. São Paulo: Senac,1999,p.230.
273

“maneira da apresentação”. Nesta situação, diz Lyotard, “tudo é arte ou artifício”;”vive-


se esteticamente”.Esta estetização generalizada torna os objetos e os conteúdos
indiferentes: “quando o objeto perde o seu valor de objeto, o que conserva valor é a
maneira como se apresenta. O estilo torna-se o valor”2.Não é preciso qualquer esforço
para se concluir que o que está elidido nesta generalização do estético é aquela
expeeriência que a arte propicia – a transmutação do real em imaginário e vice-versa, a
concentração da sensibilidade , que se torna um modo do pensamento, a elasticidade do
pensamento que torna sensível o conceito. E, também, não é difícil perceber o quanto o
educativo que aparece disfarçado de facilidade de informação, comunicação e
conhecimento, nada mais é que um simples abandono ao fácil, ao simplesmente
interessante, curioso, picante – nada marcante.
Estas instituições estão se tornando nas últimas décadas espaços vivos
exatamente pela sua abertura à comunicação com um público pronto a entrar em
situações educativas.Ora, as expectativas desse público, em parte contaminadas pela
experiência artística via midias é encontrar nesses espaços institucionais algo
semelhante, algo interessante, algo como “uma modalidade de lazer, um exercício
superior da fantasia”3. Mas, como esta atitude do público passa como sendo uma
experiência verdadeiramente artística, como podem as instituições garantir ao mesmo
tempo tais expectativas – pois elas têm a virtude de aglutinar um público, dre torná-lo
cativo – e forçar as atividades para fornecerem a oportunidade de uma experiência que
vá além do lazer? Hoje, o enfrentamento desta questão não se faz sem a mediação das
tecnologias de comunicação, além do uso dessas novas tecnologias como elemento
constitutivo das poéticas da imagem. Como é sabido, hoje fotografia, televisão, video,
programas informatizados, etc. “contribuem para instaurar uma espécie de curiosidade
perceptiva média, uma contemplação flutuante generalizada. Propõem uma “categoria
que se situa tanto longe do maravilhoso quanto do indiferente: a categoria do
interessante”4.
Refletindo sobre as mudanças no estatuto da imagem na cultura contemporânea,
provocada pelas novas tecnologias, e, assim, as repercussões na experiência estética,
Alain Renaud afirma que a noção de visibilidade cultural substitui atualmente o
conceito de imagem. As novas tecnologias estão redefinindo a experiência estética, que,

2
LYOTARD, Jean François. Moralidades Pós-Modernas.Trad. bras. Campinas: Papirus,1996, p.27-31.
3
BRITO, Ronaldo. “Pós, pré, quase ou anti?”. Folhetim. Folha de S.Paulo, 2/10/1983, p.6.
4
GALARD, Jean. “Repères pour l’élargissement de l’expérience esthétique”. Diogène, 119, 1982, p.93-
94.
274

freqüentemente, não mais se refere ao vivido em favor da experiência virtual, com que
ocorre uma transformação radical no conceito de representação, devido à passagem do
ótico ao digital.5 Toda a questão é a seguinte: se as experimentações abertas pelas novas
tecnologias atingem a sensibilidade a ponto de relegar as imagens óticas ao passado ou
se ainda não estaríamos, na produção artística, na fruição e na crítica, imersos numa
visão acrítica das intersecções de arte e tecnologia. A nova ordem visual que estaria
aniquilando os modos consolidados de ver na arte desde a antiguidade não seria um
acontecimento do olhar, supondo outras regras de interação como experiencia estética,
um processo que tem como mediação o jogo. Como argutamente diz A. Fabrris, “os
ensaios das novas tecnologias redefinem a relação do fruidor com a obra, obrigando-o a
ter uma atenção concentrada num fluxo contínuo, que só pode ser apreendido em sua
totalidade, a introjetar a temporalidade proposta pelo artista, enquanto não é raro um
olhar transeunte sobre os produtos tradicionais, que nada mais fazem do que exibir
estruturas e relações perceptivas conhecidas a sobejo”6.
Face à situação estimulante provocada pela emergencia dos trabalhos que
incidem sobre as estruturas visuais, é significativa a proposição de A. Renaud – que as
novas tecnologias da imagem são “laboratórios experimentais da sensibilidade e do
pensamento visual”. Nelas estariam ocorrendo um alargamento da experiência estética
de dimensões nunca vistas, pelo menos desde o Renascimento, originando uma
discussão renovado sobre as categorias estéticas. As dificuldades apresentadas pela arte
contemporânea ao espectador são imensas, pois as categorias que identificavam as obras
e outras propostas artísticas, até mesmo nas vanguardas, são hoje aleatórias e ainda não
definindo um regime básico de absorção e fruição. Afinal, qual é a fruição esperada
dessas novas produções visuais? Para quem nelas busca algo semelhante à experiência
do belo, são decepcionantes. A experiência estética pertence agora a um novo regime:
“em direção a uma estética de procedimentos na qual o processo se impõe sobre o
objeto: a forma cede lugar à morfogênese; vivemos o fim da hegemonia do espetáculo
fechado e estável: a cenografia é substituída pela cenologia. Em direção a relações

5
RENAUD, Alain. “Nouvelles images, nouvelle culture: vers um ‘Imaginaire numérique’ (ou ‘Il faut
imaginer un Démiurgue heureux’)”. Cahiers Internationaux de Sociologie, v.LXXXII, p.125 e ss. Paris:
PUF, 1987. Cf. os comentários de Annateresa Fabris às idéias de Renaud em “Critérios de
contemporaneidade e novas mídias”, comunicação apresentada no workshop “Rumos Visuais I –
Investigações”, Instituto Itaú Cultural, 20/2/2000.
6
FABRIS, A. Art. cit., p.3.
275

inéditas entre o Corpo, a Materialidade e o Artificial, em direção ao deslocamento


tecno-estético da ordem representativa analógica”7
Se o específico do trabalho artístico contemporâneo determina-se em cada artista
pela relação que estabelece entre sua atividade produtora e a história da arte, e se daí e
só daí derivam as regras que caracterizam seu trabalho e, inclusive, a possibilidade de
juízos de valor sobre os seus produtos, é aí que se situa o crivo das atividades educativas
que pretendem mediar o acesso à experiência artística e propiciar o desenvolvimento de
competências para avaliação das obras.
A redefinição da relação do fruidor com as obras, qualquer que seja a
modalidade artística abrigada nesta denominação, propõe desafios renovados aos
espaços institucionais dedicados à divulgação e ao conhecimento das artes visuais,
assim como à elaboração de propostas de exercícios criativos voltados para a ampliação
do acesso à experiência especificamente artística. Os visitantes destes espaços, tomados
agora como interlocutores de um trabalho de significação prática, porque social,
precisam, assim, serem articulados ativamente ao processo de comunicação cultural,
que desate a criatividade e processos de subjetivação. Adquire, assim, um sentido
especial a seguinte pergunta: onde se situam as novas mídias para que propiciem o
desenvolvimento de experiências artísticas, da sensibilidade e da reflexividade estética,
de modo a produzir nas instituições em pauta uma alternativa ao simples, mas
imperante, consumo de cultura?

7
RENAUD, A. Art. cit. ,p.126. Cf. cit. FABRIS, A. Art. cit.,p.1
276

A cena e a sala*

Não deixa de espantar o fato de o teatro permanecer tão vivo como nos seus
inícios, afirmando sua vocação de atuar no espaço público, mobilizando afetos e
pensamentos, deslocando-se da ética à política, investindo desejos e utopias. Parece que
a sua versatilidade para configurar os estados e modos de vida não cessa de produzir
efeitos, mesmo quando, como hoje, outros dispositivos parecem lançar este modo de
representação, ou de apresentação, dos movimentos humanos ao ostracismo, quando
não na obsolescência. Falamos das, assim chamadas, novas tecnologias de produção e
difusão de imagens, idéias e comportamentos, que, ao acenarem para uma mutação do
humano, parecem indiciar que alguma coisa como o teatro, como também a literatura,
estariam superados, por serem inatuais. E, no entanto, muito vivos, literatura e teatro
continuam agindo culturalmente, motivando reiteradas experiências, artísticas e
educativas.
Este livro é exemplo dessas tentativas que partem da recusa em aceitar que se
estaria simplesmente adiando a agonia do teatro; é, ao contrário, uma afirmação da
crença na eficácia das virtudes e virtualidades que ele efetiva e nos desdobramentos
sempre renovados das suas ações e pulsões. Focando a questão aqui abordada na
pedagogia do espectador, reativando e recodificando as estratégias, já clássicas, do
teatro épico em seus usos educativos, o que é proposto é o redimensionamento dessa
vertente crítico-criativa segundo uma certa teoria do contemporâneo, tendo em vista
certas experiências inovadoras, como a do Théâtre des Jeunes Années, em Lyon, o
Théâtre des Jeunes Spectateurs, em Montreuil e o Théâtre la Montagne Magique, em
Bruxelas, por exemplo, e as que o próprio autor do livro vem desenvolvendo há anos em
locais e circunstâncias culturais diversas.
Uma proposta como esta é uma tentativa de articular exigências artísticas, do
texto e da encenação, e pressupostos pedagógicos, centrados em atividades educativas
em torno dos espetáculos. O foco é a formação de espectadores, visando, no limite,
como resultado, uma intervenção reflexiva nos modos de estar e atuar culturais dos

*
Inédito. Texto sobre o livro de Flávio Desgranges, A Pedagogia do espectador (São Paulo: Hucitec,
2003). A ser publicado pela revista do Departamento de Teatro da ECA-USP.
277

jovens participantes dessas experiências. Na linha brechtiana, pressupõe-se, portanto,


um efeito crítico com acentuado teor moral e político.
Há uma questão, entretanto, enfrentada neste livro, que é primordial para se
pensar qualquer ação educativa e que pode ser estratégica para a determinação da
escolha teórica e direção a ser efetivada praticamente, quando se trata de visar a um
público determinado, ou seja, quando se pensa numa figuração de espectador de um
determinado teatro. Trata-se de se perguntar sobre a relação entre uma dada modalidade
de ação educativa e o espaço cultural em que pode se exercitar, considerando-se que
este espaço é, hoje, quase sempre, um espaço institucional. E mais: que o espaço assim
considerado já implica uma demanda determinada, que pode ser genérica, digamos,
simplesmente humana, ou condicionada por fatores sociais, escolares, públicos ou
privados. A questão é relevante porque está no horizonte de um pensamento sobre o
desejável e o possível e não, idealmente, no horizonte de genéricos valores humanos. A
pergunta é: seria possível determinar antes o que é requerido por um determinado
público, por espectadores com perfil mais ou menos configurado, para que o que lhe é
oferecido é culturalmente relevante? Não é esta a exigência de uma arte, de um teatro,
materialista, como o de Brecht e similares?
Assim, esta é a questão de fundo que, diz o autor, não pode ser contornada sob
pena de se fazer da arte, do teatro, simplesmente um portador de mensagens, um
instrumento da educação, não da sensibilidade e do pensamento, mas do costume. Trata-
se da exigência, quando se lida com a relação da arte e da educação, de se
compatibilizar a especificidade da experiência estética propiciada pelas obras e eventos
artísticos com a utilidade das ações educativas. Tal problema implica a consideração das
mediações articuladas nas ações e nas instituições para que os receptores, ou
espectadores, entrem efetivamente no gozo da experiência estética, sem a qual o
interesse educativo não se materializa, caindo, por vezes, no mero divertimento, quando
não nas práticas exortativas, em que o político decai no moralismo e na ideologia. A
problematização da experiência artística é fundamental, pois incide na contundência e
na eficácia estética das experiências, desidealizando assim expectativas por vezes
excessivas que pesam sobre as experiências de arte na educação, por um lado muito
marcadas ainda pelas estéticas do belo e do sublime, por outro, explorando as aberturas
modernas e contemporâneas da cena.
O autor enfrenta este questionamento sem, evidentemente, enunciá-lo nestes
termos. A sua visada é, contudo, precisa. Está metaforizada numa “experiência da
278

janela”, acontecida numa visita do autor ao Musée d’Orsay, em que é tematizada a


atitude dos espectadores de arte, indicando que a experiência estética das obras de arte é
marcada também pelas circunstâncias em que aparecem as obras. Ainda mais quando se
trata de teatro, que requer uma presença efetiva do espectador e uma mútua exposição
de atores e espectadores. Tal como aparece na citação em epigrafe de Bernard Dort, o
autor centra sua pesquisa naquele ponto de intersecção, caro ao teatro moderno, “da
cena com a sala, ou melhor ainda, no encontro do teatro com o mundo”.
Mas este encontro se dá em situações e contextos que devem ser caracterizados,
exatamente porque são históricos e socialmente determinados, não tanto por condições
de classe , antes por fatores institucionais que constrangem o lugar das atividades. A
sempre propalada crise da arte, crise do teatro, e outras crises, freqüentemente devem-
se, além dos impasses estéticos dos artistas, às dificuldades de evidenciação das
experiências, ou seja, a questões institucionais e de política cultural. Atualmente, como
salienta Flávio Desgranges, em virtude da predominância da imagerie contemporânea e
da imposição das atividades espetaculares, que estetizam o cotidiano, o narcisismo dos
artistas e o mercantilismo dos empreendimentos teatrais fazem, paradoxalmente, do
espectador, um elemento acessório, pois a ênfase está colocada nos efeitos colaterais,
publicitários e comerciais, de modo que as instâncias artístico-culturais aparecem mais
pela “maneira” como se apresentam do que pelo valor do objeto, da cena. Então,
pergunta-se, por que ir ao teatro se os seus efeitos aparecem disseminados na televisão,
no cinema, na publicidade? Se a teatralização foi generalizada? Se o antigo espectador,
se o protagonista da cena moderna, se as intervenções contemporâneas, perdem o élan
quando integradas pelos dispositivos das comunicações de massa? Se, portanto, a
criticidade é abolida em favor da fantasia e do lazer? Impõe-se, assim, a necessidade de
se pensar em uma pedagogia do espectador, escavar nos tempos atuais as possibilidades
da presença, que se dá na intersecção de cena e sala, acreditando-se, ainda, que o
diálogo representado é terap6eutico, pois re-potencializa a linguagem da comunicação,
o diálogo de todo dia.
A pedagogia do espectador pensada neste livro, em consonância com sua
referência emblemática, o teatro épico de Brecht, não poderia deixar de acentuar o papel
central da crítica, do jogo de sensibilidade e entendimento, centrado na atividade de
decifração de signos que interceptam o individual e o social, articulando a cena como
discurso, cujo resultado é o redimensionamento da subjetividade. Esta posição estética
leva ao destaque do diálogo na construção da cena, e ao dialógico na relação de
279

participação do espectador. Tirar partido desta posição é o que intenta o autor-


encenador, refletindo sobre as possibilidades abertas de um teatro para a juventude e
experimentando em ato a eficácia dessa proposta. Empresa árdua esta: retirar o
espectador de seu mutismo, de sua inapetência ao discurso, do seu sono rancoroso que
evita o pensamento, para despertá-lo para o diálogo com a diversidade, é tarefa quase
heróica. Metamorfose interessante esta: o deslocamento do épico, que antes de
manifestar-se na cena, investe a figura do encenador. Daí a posição afirmada pelo autor,
para quem a pedagogia do espectador se justifica “pela urgência de uma tomada de
posição crítica frente às representações dominantes, pela necessária capacitação do
indivíduo-espectador para questionar os procedimentos e desmistificar os códigos
espetaculares hegemônicos”.
Referindo-se aos projetos e práticas teatrais que dos anos de 1960 aos 70
puseram em evidência as relações do teatro com a escola, pensando na preparação de
“espectadores para o futuro” como uma faceta privilegiada das propostas de
democratização cultural, então um pilar das ilusões revolucionárias que tensionavam o
país, o autor examina as nuances desse interesse no Brasil e em outros países, como
Bélgica, França, Canadá, estados Unidos, Austrália. A idéia de “animação teatral” que
surge no período vai inovar as práticas, muito em evidência no Brasil, de “teatro
infantil”, pois redimensionam o imaginário encenado nos espetáculos e as relações entre
palco e platéia. A diversidade de práticas que surgiram daí em diante, até hoje, revelam
a preocupação cultural que passou a ser dominante: não admitir que a atividade
propriamente teatral, o teatro como arte, fosse “fagocitada” pelo didatismo e pelo
dirigismo do sistema de ensino, que tende a reduzir o teatro a mero instrumento de
facilitação da aprendizagem. A análise das diversas formas de animação teatral, cada
uma acentuando um aspecto, ou vários, da ação teatral como ação educativa que decorre
diretamente da forma, da linguagem, dos processos artísticos, é um dos pontos altos
deste livro.
A pesquisa do autor é extremamente relevante para o que se passa na escola
brasileira, seja devido aos problemas de formação específica dos professores que nelas
trabalha com teatro, seja porque, antes de tudo, as condições institucionais não
permitem experiências desdobradas no tempo escolar e expandidas na vida social dos
jovens. Dada a situação, este livro apresente uma contribuição inédita para se pensar e
instituir o trabalho de formação de jovens espectadores, que não se reduz, por exemplo,
à montagem de espetáculos. As informações trazidas pela pesquisa, das várias
280

experiências estrangeiras abre um espaço de manobra inestimável para se articularem


estratégias brasileiras de mediação cultural, particularmente escolar. Pensando a
atualidade do teatro épico moderno, projetando-o na paisagem contemporânea nem
sempre receptiva à poética do distanciamento, dada a formidável re-assunção da
intimidade burguesa, agora feita à moda do consumo, a proposta de “espectador épico”
é uma alternativa que merece destaque no Brasil, pelo seu alcance crítico e, o que é
notável, pelo caráter visionário de suas ambições culturais.
Sedimentado teoricamente, em teorias e reflexões estéticas e culturais;
referenciado a experiências exemplares, frutos de pesquisa e vivência; interessado no
sentido pedagógico das práticas, este livro é uma notável contribuição ao trabalho de
resistência à banalização da arte que resulta do uso abusivo de sua potência de mediação
cultural para fins imediatistas, que freqüentemente produzem indistinção entre efeitos
educativos e de consumo.
281

Pedagogia, psicanálise e arte contemporânea *

Em sua comunicação, Maria Bernadete Amêndola abordou, de um lado, o


processo de construção do conhecimento, e, de outro algumas características da relação
analítica, tendo em vista produzir algumas intersecções entre estes domínios. Já Sérgio
Fingermann abordou uma questão – absolutamente fundamental para esta discussão –
acerca da pintura pensada como presença, mais exatamente como “presença estranha”.
Assim, colocou o pintor na condição de produtor de alteridade, bem como ajudou a
pensar no pintor como alguém que está no lugar do grande outro. Daí a fascinação da
pintura, que dessa forma será sempre marcada pelo inacabamento, isto é, pelo fato de
que aquilo que é concebido pelo pintor não pode ser apresentado e talvez nem mesmo
representado.
Aquilo que o pintor realiza é o inapresentável – o que, em termos kantianos,
decorre do conflito entre a faculdade de conceber e a faculdade da imaginação. É no
inapresentável que estaria a presença estranha da arte da pintura, é nele que o outro se
manifestaria – “não através da rememoração pura e simples”, como lembrou Bernadete,
“mas, pela exploração da repetição”.
O conceito de construção é intrínseco às manifestações da modernidade na arte e
na educação ao longo do século XX, referindo-se sempre a procedimentos, processos e
modos de operar desidealizantes. Evidentemente, por trás desse conceito, o que se
coloca em questão é a própria constituição dos domínios de saber aqui abordados (o da
arte, o da Psicanálise e o da Pedagogia). Por exemplo, pensar nas operações construtivas
e desconstrutivas da arte de vanguarda no século XX implica questionar o próprio
conceito de arte, a imagem do artista e a (in)consistência do conceito-matriz de obra de
arte. No limite, essa indagação põe em causa a idéia e o processo mesmo de criação, que
ainda hoje, apesar de todo o trabalho crítico das vanguardas, ainda retém uma conotação
acentuadamente romântica.

*
Texto elaborado a partir de comunicação na mesa redonda “Pedagogia, psicanálise e arte
contemporânea”, do Simpósio “Psicanálise & Pedagogia”, no Congresso “Freud: Conflito e Cultura”,
organizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise. São Paulo, MASP, 15/10/2000. Publicado em
ASSIS, Bernadete A. de & MACEDO, Lino de. Psicanálise e pedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2002, p.171-175
282

Estas indagações também repercutem na imagem de educação e de educador,


bem como na própria identificação do conceito-matriz do campo educacional: o de
formação. Sabemos que, segundo esse conceito, de extração iluminista, um mestre
oferece sua ajuda a um espírito que, desde a infância, espera para se realizar. Essa idéia
de formação – acompanhando algumas idéias de Lyotard – parte do pressuposto de que
o espírito dos homens não lhes é dado em condições adequadas, devendo, pois, ser
reformado. Ora, há aqui um círculo vicioso: quem reformará os educadores? O espírito
dos educadores?
Essas concepções em voga acerca da arte, da imagem do artista e da formação
remetem ao que aquele filósofo, em sua concepção da “condição pós-moderna”,
denomina de “metanarrativas”: são elas que ainda buscam reafirmar os grandes
conceitos iluministas como sendo suficientes para abarcar os domínios atuais da razão,
da sensibilidade, da imaginação e do entendimento. Mas será que em tempos nos quais
os conceitos de construção e desconstrução – que remetem necessariamente ao
descentramento do sujeito ou mesmo à deposição do sujeito – fazem da arte sobretudo
um procedimento que visa a singularizações, ainda seria possível pensar na pintura um
outro centrado ou mesmo pensar o processo de formação na educação, sem antes tratar
dos deslocamentos significantes?
Com a ausência de “origem” e de “centro”, na experiência contemporânea o
significado não é mais fixado, passa a existir enquanto construção substitutiva, quase
como um sintoma, pelo menos num sentido restritivo de sintoma, fazendo com que a
operação de produção da significação se estabeleça como operação de diferenciação. A
eliminação da referência a um centro e a um sujeito indica que não se pode identificar
em um texto, obra de arte, proposição estética ou teoria psicopedagógica a produção de
uma totalidade de sentido. A operação desconstrutora surge exatamente para denunciar
as totalizações que escamoteiam as experiências singulares da arte, e mesmo em
educação.
A desconstrução abre os campos da estrutura, da invenção e do saber. No
universo da arte, propicia a abertura da arte a todos os seus possíveis, para além dos
regramentos institucionais e retóricos. Daí decorre, por exemplo, a valorização da
exibição, da recepção, do consumo, enfim da vida histórica da arte. Como disse Sérgio
Fingermann, a arte é um procedimento de aparência, ou seja, relembrando Paul Klee,
não reproduz o visível, mas torna visível. Este é o império da presença. Diria mais: é o
júbilo da presença. E o júbilo da presença é o olhar. Mas esse nosso olhar hoje é
283

desconstruído, deslocado: percebe a estrutura como um vulto do sentido e, com isso,


abre o campo da experiência para os seus possíveis também. Assim, elimina exatamente
a rigidez das constituições puramente sintáticas na arte e recaptura o domínio do
semântico, que é precisamente o domínio do humano a que se referiu Sérgio
Fingermann. Ocorre, assim,desde as vanguardas do início do século XX, o desrecalque
das idealizações que sempre assediaram o conceito de arte.
As operações desconstrutoras articuladas pelas vanguardas nas primeiras
décadas do século passado efetivaram o trabalho moderno em três linhas principais: 1) a
dos desenvolvimentos construtivistas, que vai do Cubismo e do Cubofuturismo russo
até a arte conceitual e minimalista; 2) a da radical negatividade Dadá, de Duchamp e da
anti-arte dos anos 60 e 70; 3) a do escândalo surrealista, dos manifestos de Breton, da
poesia, do cinema de Buñuel, da pintura de Dali, Magritte e outros. Na pintura moderna,
essas três linhas tinham um ponto em comum : a desnaturalização do olhar, que
corresponde ao descentramento do sujeito. Trabalho de transgressão, daí resultou o
levantamento – ou, pelo menos, a tematização – das castrações do princípio de
realidade, com a afirmação da libido das vanguardas.
A vontade construtiva foi uma das maneiras de efetivação dessa vertente. O
trabalho das vanguardas estava voltado para a realização dos pressupostos da
modernidade. Dos cubistas, cubofuturistas e de Duchamps à pintura concreta e aos
desenvolvimentos pictóricos como os do abstracionismo cromático norte-americano,
pode-se pensar nesse trabalho moderno vanguardista, ainda acompanhando idéias de
Lyotard, como uma elaboração comparável à da terapêutica psicanalítica, mais
propriamente “como uma elaboração efetuada pela modernidade sobre o seu próprio
sentido”, um processo de análise e anamnese do presente “associando livremente
elementos aparentemente inconsistentes a situações passadas”, o que permitiria à arte,
tal como aparece no trabalho dos artistas, liberar os seus sentidos, lançando-se nos fios
do experimental. Este trabalho “dedica-se a pensar aquilo que do acontecimento e do
sentido do acontecimento nos é escondido de forma constitutiva, não apenas pelo
pressuposto anterior, mas também por essas dimensões de futuro que são o projeto, o
programa, a perspectiva e mesmo a proposição e o propósito de psicanalisar”1.
Essa elaboração, ademais, distingue-se da repetição e da rememoração. A tríade
“recordar, repetir e elaborar” do famoso texto freudiano está aqui presente como

1
LYOTARD, J-F. L'inhumain. Paris: Galilée, 1988, p.35
284

substrato da desconstrução: não tanto a repetição como a história de um destino que


deveríamos cumprir; não tanto a elaboração como uma espécie de drama que é
recapturado e, no entanto, reafirmado como história ainda presente. Mas a elaboração
como o centro da análise, como possibilidade de articular presente e passado e abrir a
dimensão de futuro. É isso que nos interessa e que faz da arte contemporânea uma
viagem pelas pesquisas, pelos fundamentos da modernidade. Uma viagem que descobre
os seus sintomas, evidencia-os, mostra-os, dispõe-nos com o olhar, para que a análise do
próprio trabalho feita pelos artistas recapture neles não o sentido oculto passado, mas o
sentido ainda possível, uma espécie de infância do pensamento e também de infância do
olhar.
Não seria também isso o que freqüentemente procuramos em educação? A idéia
de formação freqüentemente nos deixa cegos e não nos permite pensar o que é a
fragmentação contemporânea e o deslocamento do sujeito. Esquecemos que não
devemos recapturar a infância como um drama, como uma eterna repetição, nem
rememorá-la como nosso destino. Mas a infância do pensamento, assim como a infância
do olhar, tem que fazer do deslocamento a aventura do pensamento e das nossas
atuações.
285

Aberturas
286

Do horror: a cena contemporânea, resistência e criação*

Da referência de Eliot ao livro de Joseph Conrad, O coração das trevas 1899, na


epígrafe de “The hollow men” (“Os homens ocos”, 1922), “Mistah Kurtz – he dead”,
“O senhor Kurtz – morto”, à apropriação da mesma passagem por Francis Ford Coppola
no filme Apocalipse now, e até hoje, na vida de todo dia e nos acontecimentos
históricos, de Auschwitz ao Vietnam, das torres de Nova York ao Iraque, das
hecatombes naturais aos desastres aéreos e etc., ressoam as graves palavras de Conrad:
“O horror, o horror!”.
A representação do horror e da morte, constante na arte, desde sempre, passou,
desde, digamos, a primeira guerra mundial, por uma rápida transformação: da crença na
morte da representação à sua reaparição. E, contrariamente, da representação da morte à
morte, isto é, ao enfraquecimento de sua representação – porque, cada vez com mais
freqüência e intensidade, vem ocorrendo alguma coisa que lembra aquilo que a
psicanálise entende como “passagem ao ato”: passagem de uma representação ao ato
propriamente, aos atos impulsivos, violentos, agressivos, mortais.
Hoje, a representação do horror não mais decorre, como já se acreditou, da
simples multiplicação dos teatros da memória, e perda de eficácia dos teatros da
representação, provocados, seja pelo enfraquecimento do simbólico efetuado pelas
recentes tecnologias de comunicação, seja, mais especificamente, pelo excesso de
imagens e de espetacularização da “imagerie “contemporânea. Atualmente, as potências
do espetáculo dependem da aplicação, certeira ou equivocada, dos efeitos de
presentificação, dos modos de experimentar as coisas em presença; da tentativa de
instaurar a presença como antídotos às ilusões da representação, isto é, às falsificações
do real; e ainda como antídoto à própria crença de que o real pode ser representado. O
horror do Kurtz de Conrad e de Coppola, e de outros , parece atualizar, o que diz T.S.
Eliot no Four Quartets: “Go, go, go, said the bird: human kind / Cannot bear very much
reality” (Vai, vai, vai, disse o pássaro: o gênero humano / Não pode suportar tanta
realidade).

*
Inédito. Texto de uma conferência no Simpósio “A vida em cena: teatro e subjetividade”, integrante do
evento Porto Alegre em cena. Porto Alegre, Secretaria Municipal de Cultura / UFRGS, 21/9/2003.
287

Passados cerca de quarenta anos de circulação das teorias e experiências, na arte


e na filosofia modernas, de fechamento da representação, percebe-se que a questão é
outra: que não temos, como assevera Baudrillard, “uma linguagem que esteja à altura de
traduzir o estado atual das coisas; o que temos é a linguagem da representação, que é a
linguagem do sujeito,o que, aliás, é bom, ela é simbólica, ambivalente. Contudo, esta
linguagem, da representação, não corresponde a situações completamente
indeterminadas, aleatórias, flutuantes”1; não serve para falar daquilo que nos perturba –
o horror – ; pelo menos tal como ela aparece nos vários teatros da representação,
artísticos ou culturais, sempre interessados em responder a exigências diversas de
identificação dos espectadores ou protagonistas de uma realidade em cena. Pois “a
linguagem que dá valor objetivo à representação é um processo de identificação e de
sublimação que funciona no medo e se constitui como um véu, uma tela (écran) que nos
separa e nos protege do fluxo caótico do devir”2. O horror é, assim, o irrepresentável, o
inominável3.
Talvez seja este o desafio, muito grande, colocado para todas as artes, depois do
grande trabalho das vanguardas ao levarem ao fim as possibilidades da crítica da
representação, isto é, de destruição das convenções que presidiam à produção da ilusão.
A recuperação da presença, agora entretanto uma espécie de aura transmutada, tem em
vista re-propor o sentido da representação. Depois da assepsia, ou da terapia efetuada
pelo trabalho das vanguardas, que pôs em causa a representação como sistema,
linguagem e modo artístico produzidos na abertura dos tempos modernos, com o seu
perspectivismo, experimentalismo científico, alargamento das fronteiras geográficas e
invenção do espaço pictural, do espaço teatral, do espaço literário, da escala musical, a
presença, a pura materialidade da forma, é reivindicada como possibilidade de
reencontro com uma realidade aquém ou além da simulação do real. Mas como isto
fazer sem considerar as mediações efetuadas pelos dispositivos modernos?
Livres do imperativo moderno, particularmente vanguardista, de buscar o novo,
muita arte dita contemporânea vaga no indeterminado, tendo que definir, em cada caso,
enquanto se inventa, as regras e categorias que a singularizam e que propiciam a fruição
e o julgamento. Esta arte desidealizada, exercitando-se na tensão com os limites da

1
Cf. Folha de S.Paulo, Ilustrada – A-37, 23/12/1987
2
WARIN, François. “La représentation de l’horreur”. Marseille: Lycée St. Charles, nov. 2001, p. 5.
3
Cf. a propósito a análise de O coração das trevas, COSTA LIMA, Luiz . O redemunho do horror – as
margens do ocidente. São Paulo: Planeta, 2003, p.212-27.
288

modernidade, que remete a um “sujeito operativo” e não mais a um “sujeito focal”4


como o herdado da Renascença, não promete nenhuma experiência de completude,
dificultando assim a articulação de uma crítica da cultura e, portanto, de se apostar na
transformação da vida – pois não propõe idéias suficientemente fortes para fundamentar
práticas, vive de incertezas e surpresas, entre a inquietação e a indiferença, ansiando,
talvez por um preenchimento que dê conta da irrisão dos projetos modernos. Assim, esta
arte, de um lado vaga entre desejos de restauração de projetos e operações que outrora
tiveram sentido, “resgatando”, como se diz, a possibilidade de articulação entre criação
e crítica. Ou então, por outro lado, dedica-se a recodificar, reiterar e eventuar. Aqui e ali
surpresas acontecem: um tensionamento de signos da experiência, uma reinterpretação
que vira um modo inédito de enunciar, uma reinscrição do simbólico onde só havia
repetição, um nexo surpreendentemente de sensibilidade e pensamento que interfere no
circuito da razão comunicativa, repropondo a arte com sentido de intervenção cultural.
São estes lampejos, estes acontecimentos, que afirmam as potências do puro viver. Pois
é disto que se trata hoje na arte: reinventar a arte de viver. Curiosamente, tudo aqui vem
enunciado pela partícula re Um re que significa elaboração: levantamento dos
esquecimentos, dos recalques, das supressões promovidos pelos dispositivos
vanguardistas, pelo projetualismo moderno: a produção do novo e da ruptura. Trata-se,
então, de indiciar com este re que agora estamos em pleno regime de elaboração ,
analisando os processos modernos, especialmente os de vanguarda. Talvez, uma tática
para vôos futuros.
Pois sabemos que o grande horror é a morte e que, lembrando Artaud, a vida é
sempre a morte de alguém, ou de alguma coisa podemos acrescentar. E sabemos
também que a arte nos é dada para de alguma forma dar conta do fundo horrível das
coisas, para que possamos suportar o incomensurável, o insuportável da existência. Ora,
para suportar esta condição é que inventamos as representações, a representação do
insuportável, do horror. Por isso, foram embalde as estratégias e operações da arte da
modernidade: o fundo permanece, a ponto de não termos linguagem que dê conta de
nossa realidade, e , assim, lançamos mão da linguagem da representação. Mas a
experiência do horror põe em causa a distância que implica a representação, o que a
modernidade fez muito bem, é preciso lembrar: foi mesmo o seu grande trabalho, de
reversão, parafraseando agora Deleuze, da noção, do modelo e dos teatros da

4
WARIN, F. Loc. cit.
289

representação, no pensamento e nas artes, nascidos nos primórdios do mundo moderno


para dar conta da ruptura entre a linguagem e as coisas, só para lembrar Foucault.
A representação, como se sabe está no centro das posições filosóficas no que diz
respeito às relações entre o pensamento e a realidade. As noções de sujeito e de
consciência aí estão para atestar o primado da representação, dada nas imagens que o
homem faz de si, em espelho, e daquelas dos personagens com que se institui
socialmente e das imagens que a sociedade dá de si mesmo em teatro ou em espetáculo
permanente. As imagens assim constituídas foram desde sempre a matriz das
instituições, sistema de representação coletiva e, simultaneamente, modos
suplementares de produção de sentido da existência e conjuração das potências
invisíveis. Assim, a representação é a matriz de nossa identidade, cifrada nas imagens.
Todo o drama contemporâneo, no pensamento e na arte, está na tentativa de lidar com
esta “velha doença” ocidental, como diz Deleuze, a representação, do que um claro
emblema é a chamada crise do sujeito , ou seja, as dificuldades da produção de
subjetividades que não mais subscrevem as exigências daquela subjetividade inventadas
na filosofia moderna, de Descartes a Kant, em que o real e o sujeito se
recobrem.Sabemos toda a discussão que isto implicou na Filosofia e também suas
repercussões na arte, a ponto de Nietzsche, sintomaticamente, declarar que “ temos a
arte para não morrermos de verdade”.
Então, onde estamos nesta nossa digressão? Onde estamos quando consideramos
que a arte serve para aguçar nossa sensibilidade e reforçar nossa capacidade de suportar
o incomensurável – o horror? Onde estamos, quando constatamos, como nos adverte
Eduardo Prado Coelho, que “nenhuma idéia nos assegura a salvação, nenhuma idéia é
portadora de uma verdade que salve, nenhuma idéia nos dispensa de sermos nós
próprios a criarmos o nosso modelo e itinerário de salvação. E ainda: nenhuma idéias é
suficientmente forte para fundamentar uma prática, para funcionar como ciência
rigorosa da práxis. Sem astros que nos guiem, sem uma ciência da navegação que
apenas seja preciso aplicar, avançamos agora num mar de surpresas e incertezas .
Contudo, “se não procurarmos idéias que salvem ou fundamentem, mas sim, a
proliferação de teses, conceitos, redes, deslocações, sobreposições, derivas e invenções,
deparamos com uma paisagem desconhecida que é preciso configurar e decifrar”5

5
Cf. “Para comer a sopa até o fim”. Jornal do Brasil. Idéias/Ensaios. 03/03/1991, p.4.
290

Nesta paisagem desconhecida que é preciso configurar – pois viver é uma


ordem, e os signos dessa ordem estão aparecendo em toda parte, e o essencial “está no
instante da aparição das coisas”6 –, há cenários perfeitamente configurados. Basta nos
situarmos no horizonte de sua realidade mais imediata: o da cultura em sua instância
predominante – do mercado e do lazer, que ao dar prioridade ao vivido, às experiências
mutáveis, múltiplas e simultâneas, neutralizam a distância, o recolhimento e abole a
mediação que a representação necessariamente introduz7. A crença absoluta na
experiência, de que é possível um acesso imediato à realidade ( que, é bom relembrar, é
irrepresentável) ou o reencontro com o “eu”, mítica fonte de unidade. Mas com que
unidade sonhamos? Aquela, diz Lyotard, que acredita ser possível reorganizar os
elementos da vida cotidiana numa unidade sociocultural?8 Aquela prometida pela
restauração da unidade perdida agenciada pelos museus e teatros da memória? Ou
aquela, que apelando para o mito do vivencial,? Ou aquela que ante a ausência do
espaço público e do espaço privado quer dar consistência àquilo que agora são simples
efeitos de uma suposta ordem objetiva, da lei? Referimo-nos às esperanças colocadas na
recuperação da interioridade, da intimidade, da alteridade, da subjetividade. O que
querem dizer estas noções, para não recaírem na idealidade, manifestação da carência de
ideal e, simultaneamente, vulto de dispositivos de suplência do ideal.
A modalidade de manifestação artística e atividade cultural típica da sociedade
do consumo é o evento, ele mesmo tornando-se o próprio acontecimento artístico,
funcionando como uma espécie de estetização da vida cotidiana. Assim, na cena
contemporânea, quando se pretende identificar questões artísticas e práticas culturais
renovadas, inclusive com poder de transgressão, ou alguma eficácia crítica, percebe-se
uma grande dificuldade: a arte fundida à vida sob a modalidade do evento acaba por
dissolver os signos numa categoria típica da arte dessublimada, da estetização
generalizada da cultura das metrópoles, que é a categoria do “interessante”. Esta tanto
afasta-se das categorias tradicionais, do belo, do maravilhoso, quanto das modernas, do
novo e da ruptura. Ora, sabe-se que o que é interessante é indiferenciado. O evento, diz
Lyotard9, é exatamente uma maneira de exibição de objetos ou de situações estetizadas.
Nele o interesse estético desloca-se dos objetos, obras, etc. para concentrar-se nos

6
BAUDRILLARD, Jean . De um fragmento ao outro.Trad. bras. São Paulo: Zouk, 2003.
7
Cf. WARIN, F. Op. cit., p.5-6.
8
Cf. LYOTARD, J.-F. Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée, 1986, p. 16.
9
Cf. LYOTARD, J.-F. Moralidades pós-modernas. Trad. bras. Campinas: Papirus,1996, p. 29 e ss (col.
Travessia do Século).
291

comportamentos dos participantes de um acontecimento cultural. Participar, entretanto,


não tem a ver aqui com a categoria artística moderna que surge com a desestetização
com a abertura da obra de arte, implicando sempre um teor reflexivo. Assim, os
trabalhos artísticos que funcionam segundo a modalidade do evento, embora
pretendendo, inicialmente, interferir, até mesmo dialetizar, o meio de arte; isto é, o
sistema artístico, convertem-se freqüentemente em instâncias de comunicação, com que
perdem o valor crítico pretendido, qual seja: provocar um acontecimento localizado, que
explorando a força do instante, daria lugar à exploração de signos de resistência,
entendendo-se este trabalho como o de explicitação da angústia provocada pela perda do
próprio objeto da arte, em virtude do aprisionamento dos objetos e do desejo pelo
consumo. Assim, a estetização generalizada é simultaneamente fruto da desestetização
moderna e perda do vigor de nexos e tensões dos dispositivos modernos, como a tensão
entre o sensível e o racional, entre construtividade e vivência, por exemplo.
Mas, não seria possível pensar uma outra posição da experiência dos
acontecimentos que não se submeta a esta estética generalizada presa do consumo, ou
seja, não seria possível pensar uma outra maneira de se entender a estetização do
cotidiano, num espaço cultural em que as representações simbólicas foram afetadas até
a raiz? Em suma: seria possível pensar-se em outra ordem do simbólico ao nível dessa
cultura dessublimada? Ou então: quais as possibilidades de reinstauração da
simbolização e do espírito crítico na cultura do espetáculo?
Ao se recusar as promessas redentoras da totalidade, da teleologia dos sistemas
de pensamento , enfim dos sistemas de representação, a aposta que se tem que fazer é a
de não se render à tentação de preencher o vazio que então se instala, colmatar o vazio,
mas, o que é, repito uma aposta, descobrir e trabalhar nos instertícios (na falha, na
brecha) do vazio. Na linguagem, no pensamento e na arte, trata-se de assumir as coisas
em sua singularidade, e ao mesmo tempo em sua literalidade, na forma. Descobrir,
como na música, uma dicção, um timbre, uma tonalidade. Assim, ao invés dos
desenvolvimentos críticos habituais,em que o que é pensado como resistência ainda vive
das ilusões do sujeito, da totalidade, das promessas da razão iluminista, trata-se de
explorar a resistência na forma ( da linguagem, do pensamento, da arte), pois “só a
forma ataca o sistema em sua própria lógica”10. Nesta perspectiva, criticar é jogar, desde
que se enunciem as regras do jogo. Criticar, resistir é uma aposta. E o que é criar?

10
BAUDRILLARD, J. Op. cit., p. 39
292

Sabemos que diversas proposições artísticas tentaram esta façanha. Lembremos,


apenas, a título de exemplo a busca da eficácia do ato simbólico no teatro da crueldade
de Artaud, ao explorar a ruptura entre os signos e as coisas e ao propor um retorno para
antes da representação. Não será também isto que se procura em alguns rituais musicais
e festas selvagens?11.Tais exemplos provocam-nos a pensar se a vontade de fazer
coincidir arte e vida não é apenas um jogo, do qual não se sai nunca, o jogo da
representação e que só podemos nos aproximar dos acontecimenmtos, como o horror,
por exemplo, quando representados e não quando imediatamente vividos.
Mas o conceito de representação é ambíguo: acentua os efeito de presença que a
torna possível e o de ausência, que a funda; de um lado torna visível,expõe, exibe algo ,
como seu emprego no teatro, por exemplo; de outro , pela repetição, substitui algo
ausente, vicário12. Embora um sentido remeta ao outro, pois presença e ausência, prazer
e desprazer. É por isso que um acontecimento grave, aquilo que é da ordem do horror,
põe em questão a representação que temos do mundo, pois desestabiliza toda a
compreensão que a representação propicia, já que a representação é um princípio de
inteligibilidade, de razão. Mas também permite um efeito surpreendente, que
esteticamente refere-se à categoria do sublime: a transformação do horror em
espetáculo, como vimos recentemente, de modo que o desprazer converte-se em prazer (
o prazer no desprazer), mas um prazer feito de “inquietante estranheza” – de
irrepresentável13. Esta espécie de confusão é, na verdade, uma espécie de loucura, de
negação do simbólico. Então, “se o horror é o fundo das coisas, a cultura e a linguagem
[a arte] estariam aí para conter o horror”, por meio da astúcia da representação, que
consegue elidir a morte14.
Assim, estabelecemos até aqui duas posições: uma, da resistência, que de um
lado incide sobre as representações da cultura de consumo, pondo em relevo as imagens
da cultura de massa das sociedades “democráticas”, que privilegiam o vivido imediato,
neutralizando a distância ( reflexiva e perceptiva); outra, que de outro lado valoriza o
irrepresentável da experiência contemporânea – ou seja, o horror. A outra posição, a da
criação, tem em vista exatamente não só criticar a cultura do consumo como tentar
afirmar que há qualquer coisa que pode ser concebido e que não se pode representar,não
se pode ver nem fazer ver, mas que de uma maneira ou de outra é possível apresentar

11
Cf. WARIN, F. Op. cit., p. 7
12
Id. ib., p.8
13
id. ib.,p. 26.
14
id. ìb., p. 20
293

.”Nomear o informe, a ausência de forma ( de representação) como índice possível do


inapresentável”15. Como ainda observa Lyotard, situando-nos, hoje, nas fronteiras, nos
limites expressivos podemos dizer, do que pode ser apresentado, trata-se de violentar
estas fronteiras para tentar apresentar o que não pode ser apresentado. Assim como
nestas fronteiras, o pensamento desafia a sua própria finitude, a imaginação( faculdade
de presentificar algo, de tornar sensível o inteligível) tenta ultrapassar os limites do
possível, ou seja, quando a imaginação falha ao presentificar um objeto,devido ao
desacordo com a razão, temos o sentimento do sublime, indiciando o inapresentável, o
que não pode ser representado – já que não existe mais a possibilidade de projetos de
domínio, ou seja, de representação do real, das coisas, já que o que existe para a
experiência artística é uma realidade difusa e indefinida. Este desejo ilimitado que
sentimos, este estado sublime, é o que se traduz como mescla de felicidade e
infelicidade, alegria e dor ( a alegria e a dor formam um tecido estranho; uma venda
para nossos olhos, diz William Blake em algum lugar). Percebe-se então porque ante as
forças e potências que rosnam no fundo da existência, o homem reconhece-se nos
limites e impossibilidades, e encontra salvação na experiência estética da finitude e da
morte, do horror, sondando o abismo entre a natureza e a liberdade.
Neste momento em que as forças utópicas declinaram, paradoxalmente o que se
apresenta é o signo de algo inaugural, de um recomeço da estaca zero. Não sabemos
signo de quê; só sabemos que estamos numa situação privilegiada. Lembrando Scott
Fitzgerald, temos a sensação de estar parados, ao cair da noite, numa vasta região
desértica, com um rifle vazio nas mãos e os alvos por terra, a nossos pés. Nenhum
problema – um silêncio simples, cortado apenas pelo som da nossa própria respiração16.
Teríamos já nos apropriado das condições suficientes para levantar e elaborar os
obstáculos modernos, principalmente de seu imperativo de produção do novo a todo
custo e de crença num princípio unitário da história, da história da razão e do progresso,
de modo que estaríamos agora aptos a realizar a experiência de uma vida toda feita à
maneira da arte e da linguagem? Uma imagem de felicidade feita de toque, de
acontecimento. Aptos a configurar as paisagens do possível e não apenas ficar na
decifração e reiteração das paisagens da memória. Apalpamos uma aragem, uma leve
brisa que passa, conjurando a nossa renitente saudade do futuro com uma saudável

15
LYOTARD, J.-F. Le postmoderne expliqué aux enfants, p.27.
16
Cf. FITZGERALD, F. Scott. “A derrocada” (The crack -up).In: A derrocada e outros contos e textos
autobiográficos. Trad. bras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 47.
294

afirmação da imanência. Livres do mito e da utopia, prosseguimos, como que


retomando o fio de uma vida que julgávamos sepultada pela morte da esperança
moderna e devido a persistência do terror. Em outras palavras, fazendo coexistir os
signos de entusiasmo e tristeza, “ avançamos num mar de surpresas e incertezas”17. Ao
desencanto das promessas de uma sociedade feliz segue-se, agora, o entusiasmo moral,
o entusiasmo por uma idéia, ao mesmo tempo pensamento e sentimento; idéia que está
espalhada por aí, em signos contraditórios, que estão aí e que precisam ser reconhecidos
e não produzidos – signos de melancolia, de tristeza, de paixão, de apatia, de dúvida, de
ironia, de medo, de felicidade – projetados em dimensão estética, isto é, na dimensão do
sentimento do sublime, em que a coexistência desses signos contraditórios é
manifestação do irrepresentável, a que somos chamados a suportar por tentativas.
Suportar quer dizer que jamais esquecemos o acontecimento, que temos que ser dignos
com o que acontece. Pois querer o acontecimento, o seu brilho que é o sentido, é a
condição dos encontros e da transmutação. Pois, diz o poeta, vida é uma ordem, porém,
“saber a ordem não é importante/analisar a ordem não é importante/cumprir a ordem é
importante”.
Contudo, só uma coisa é preciso: entrar no jogo, fazer a aposta. Ao invés disso
parecer um canto de esperança, alude-se aqui a uma outra operação: aquela, que em
lugar de apostar na dissonância e nas posições alternativas, – pois elas já estão previstas
no sistema –, aposta, como propõe Baudrillard, na criação de “universos paralelos”18.
Porque, se duvidamos da própria idéia de resistência, que carreia a de pensamento
crítico, revoltado, subversivo, e, enfim, se a negatividade moderna foi absorvida e
neutralizada, o que resta de todo este trabalho de limpeza é a possibilidade de mudar as
regras do jogo; a proposição de uma singularidade que não resiste, mas que se constitui
como um outro universo – talvez produzindo eventos, aparições, intervenções, que
funcionando como ações mais ou menos regradas exploram num espaço determinado, a
intersecção de tempos, linguagens e referências. Descontínuos, simultâneos, os
acontecimentos assim gerados exploram as potências do instante, inscrevendo,
desdobrando e reiterando signos, de cuja eficácia simbólica depende a relevância de
nosso redivivo fervor.

17
LOURENÇO, Eduardo P. Loc.. cit.
18
De um fragmento ao outro, p.18
295

(E assim termina este estranho solilóquio, mistura adúltera, talvez simples


mixórdia, de pensamentos lidos, idos e vividos).
296

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