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BUCCI, Eugênio. Em Torno de um Conceito Preliminar de Telespaço Público.

In:
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita; BERCOVICI, Gilberto, MELO, Claudineu de
(Orgs). Direitos Humanos, Democracia e República - Homenagem a Fábio Konder
Comparato. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2008, p.399-428. ISBN: 85-
7674-390-6
(ATENÇÃO: ESTA VERSÃO CONTÉM ERROS QUE FORAM CORRIGIDOS PARA PUBLICAÇÃO NO LIVRO.)
Em torno de um conceito preliminar de telespaço público
Eugênio Bucci
Preâmbulo
Há mais de dez anos, anotei o que intuitivamente me parecia definidor da nova
fisionomia do espaço público brasileiro: “O espaço público (ou a esfera pública) no
Brasil começa e termina nos limites postos pela televisão. Ele se estende de trás
para diante: começa lá aonde chegam a luz dos holofotes e as objetivas das câmeras;
depois prossegue, assim de marcha à ré, passa por nós e nos ultrapassa, terminando
às nossas costas, onde se desmancha a luminescência que sai dos televisores. O
resto é escuridão. O que é invisível para as objetivas da TV não faz parte do
espaço público brasileiro. O que não é iluminado pelo jorro multicolorido dos
monitores ainda não foi integrado a ele. ”1
A predominância da televisão sobre a identificação da nacionalidade já tinha sido
registrada e bem desenvolvida por vários autores, entre os quais uma filósofa,
Marilena Chaui2, uma psicanalista, Maria Rita Kehl3, e um jurista, Fábio Konder
Comparato4. Em relação a eles, eu talvez acrescentasse um grau. A mim, parecia que
já não era possível se falar em espaço público no Brasil fora do campo constituído
por ela, o que terminou por me levar a uma longa pesquisa acadêmica. A partir da
percepção do espaço público brasileiro como um espaço televisivo ou televisual,
impus-me a necessidade de um estudo mais detido
sobre o conceito mesmo de espaço público. Logo aprendi que ele é beneficiário das
funções comunicativas, ou melhor, que não existe a não ser quando posto pela
comunicação. Ao fim, quando apresentei uma tese de doutorado, concluí que, diante
das alterações nos padrões de comunicação em nossos tempos, os conceitos usuais de
espaço público já não atendem à realidade.
O artigo que apresento a seguir, em homenagem ao professor Fábio Comparato, é uma
versão reduzida do primeiro capítulo da tese, “Televisão Objeto: a crítica e suas
questões de método ”, defendida na ECA-USP em 2002. Em sua maior parte, o presente
artigo mantém, com poucas alterações e atualizações, o texto do primeiro capítulo
da tese que lhe serve de origem. Trata-se, no entanto, de um artigo bem menor do
que aquele capítulo, do qual foram suprimidas extensas passagens para a versão que
se apresenta aqui.
Procuro demonstrar que a comunicação é a - e não apenas uma das - prática social
fundadora de espaço público, não havendo sentido em concebê-la como ferramenta para
o atingimento de fins - tal como ela aparece na sociologia,e na sociologia
jurídica, onde se origina o pensamento contemporâneo sobre o espaço público -, ou
como fenômeno que ocorra dentro do espaço público previamente posto.
A partir dos escritos do principal formulador do conceito, Jürgen Habermas, o
raciocínio aqui articulado tende a evoluir para um outro campo, o campo da
comunicação, dentro do qual os elementos do conceito mudam de lugar. No percurso,
noções como a de racionalidade ou a de manipulação perderão peso e, em seu lugar,
uma visão outra de espaço comum vai adquirindo corpo, afastando-se, talvez em
definitivo, do que se poderia chamar de paradigma habermasiano.
A imagem eletrônica na integração do espaço social
As transmissões ao vivo pela televisão inauguraram um novo patamar de registro e de
relato dos acontecimentos, por meio do qual o telespectador passou a testemunhar o
fato no exato instante em que ele se passa. Isso acarretou transformações
irreversíveis nos padrões de espaço e tempo. A imagem ao vivo se converteu num
lastro de credibilidade - provavelmente o lastro principal - para o discurso
jornalístico. Depois disso, com o advento das tecnologias de comunicação e
informação próprias da internet, a História presente transcorre num espetáculo
integrado, em tempo real, que não revogou mas acentuou o peso da imagem eletrônica
ao vivo. A hipótese de um espaço público em escala global - ou virtualmente global
- deixa de ser meramente uma possibilidade e pode ser aceita como realidade.
O semblante da nossa era tem a textura, a consistência, a natureza - e, ao mesmo
tempo, a fugacidade, a transitoriedade, a imaterialidade - de uma cena instantânea
que reluz dentro dos limites de um monitor de vídeo. O que ali está é o que é. Às
figuras
mutantes que se insinuam e se desfazem na tela eletrônica atribui-se a autoridade
de índices do real - e eis que delas a realidade se veste para dar-se a ver. A
história se escreve assim, ou melhor, desenha-se assim, como visualidade. O homem
pisou na Lua pela TV. A guerra do Golfo, a queda do Muro de Berlim, a rebelião dos
estudantes chineses, a fome na África, o funeral de Lady Di, os atentados
terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington, a guerra no
Afeganistão: imagens ao vivo.
Imagens, não obstante, em permanência. O “ao vivo” não se esgota com o esgotamento
do fato a que se refere, mas tem a propriedade de poder expandi-lo. A imagem que
perdura no ar faz perdurar o acontecimento num estado de acontecendo, um gerúndio
como tempo histórico e elástico. O “ao vivo” se refere ao fato e à sua
simultaneidade com sua própria cobertura, ou seja, com a sua representação e o seu
registro pela imagem eletrônica. Mas o fato, aí, entra apenas como aquilo a que se
refere a imagem ao vivo. O ao vivo é um atributo dessa imagem, mais que do fato.
Diz-se dela que está ao vivo quando, tecnicamente, promove a conexão instantânea e
imediata entre o público e o fato em acontecendo. O “ao vivo” é o índice de
autoridade e de realidade -e a possibilidade da comunicação ao vivo altera também o
padrão da comunicação como um todo. Uma imagem ao vivo em particular pode ser
efêmera, breve ou duradoura, marcante ou irrelevante, mas o padrão da comunicação
que institui a imagem ao vivo é perene: é o altar da verdade factual possível, o
seu plano mais alto e mais irrecorrível de registro, o portal por onde a natureza
ingressa na cultura, por onde o real se veste de imaginário, o livro de assinaturas
em que dão entrada aqueles, aquelas e aquilos que irão adquirir existência
simbólica.5
Esse novo padrão abraça a totalidade do “agora” por sobre a totalidade do espaço. O
que está no ar, na TV e na internet, ao vivo, não são os acontecimentos
propriamente ditos, o padrão eletrônico ao vivo no qual eles têm lugar. Não é o
mundo, mas o palco do mundo. Isso reordena o espaço público e funda um novo. A
integração do planeta pela informação on-line, as redes múltiplas de computadores,
telefones, os canais interativos de TV, as vozes eletrônicas, as notícias
secundadas pelos jornais impressos, pelas revistas, e de novo a imagem que se faz
acompanhar de seus textos legendas mais longos ou mais curtos: eis o espaço público
da contemporaneidade, que combina ubiqüidade e visibilidade.
Já não podem mais restar dúvidas teóricas acerca da presença fundadora dos meios de
comunicação na constituição dos espaços (ou esferas) públicos (as): o campo social
em que os indivíduos dialogam, em relação ao qual se dá a consolidação de opiniões
e de vontades, onde significação e sentido se referenciam, onde se manifestam
conflitos e entendimentos. Esse campo não é de natureza jurídica ou institucional,
ainda que se possa revestir de dimensões jurídicas ou institucionais: ele é
comunicacional, ou nada seria.
Gênese material da esfera pública burguesa
Quando se fala em esfera pública, fala-se, necessariamente, na esfera pública
burguesa. A formação do conceito tem sua historicidade nos estudos pós-escola de
Frankfurt, a partir dos anos 60, e tem na obra de Jürgen Habermas seu principal
expoente. Também o próprio objeto do conceito, ou seja, a própria esfera pública,
tem sua historicidade: a esfera pública tal como descrita acontece na sociedade
burguesa, quer dizer, segundo a genealogia proposta por Habermas, a esfera pública
- ou a esfera pública burguesa - emerge com a formação da sociedade burguesa.
Nesses termos, não há uma esfera pública que se situe fora dos marcos dessa raiz
histórica, não há uma esfera pública “proletária”, “socialista” ou
“anticapitalista”, embora tais postulações mais ou menos doutrinárias possam
coexistir na esfera pública.
Em resumo, a esfera pública é a expressão pública do mercado capitalista em
construção. Ela nasce a partir da troca de dados e informações entre os
comerciantes. Não vem à luz como instituição, nem como convenção jurídica, muito
menos como, digamos, uma extrapolação para as ruas e praças das confabulações dos
saraus literários ainda que, destes, guarde um quê estilístico, mas como a nervosa
face pública de uma atividade econômica privada: ela é o rumor público do mercado
privado. Nesse sentido, a esfera pública, ou melhor, uma idéia inicial de esfera
pública pode ser pensada um reflexo das práticas do mercado para além do próprio
mercado. Aí, no entanto, não mais se trocavam mercadorias, mas proposições e
opiniões. Nesse fórum embrionário que abrigava debates e amparava a formação de
disposições políticas coletivas, admitiam-se cidadãos com ocupações comerciais
capitalistas (ou pré-capitalistas) privadas. É aí que o comerciante burguês adquire
a visibilidade de cidadão, em diálogo com os demais.
Os primeiros movimentos desse fórum embrionário são cautelosos, como se os
protagonistas tateassem antes de abrir fronteiras para o desconhecido, como o
próprio
Habermas anota em Mudança estrutural da Esfera Pública, um estudo originalmente
publicado na Alemanha em 1961. O seu início, numa palavra, é “conservador”. “O pré-
capitalismo é conservador, não só na mentalidade comercial, descrita com tanta
vivacidade por Sombart, numa prática de negócios impregnada pela concepção do lucro
‘honrado’, mas também politicamente. Enquanto ele vive dos frutos do modo de
produção anterior (da produção agrícola feudal ligada a um campesinato não-livre e
da produção em pequena escala de mercadorias feita pela manufatura urbana) sem
reestruturá-la, os seus traços continuam ambivalentes: este capitalismo estabiliza,
por um lado, as relações de dominação estamental e, por outro lado, libera aqueles
elementos em que elas acabarão por se dissolver. Aqui pensamos nos elementos do
novo sistema de trocas: a troca de mercadorias e de informações engendrada pelo
grande comércio pré-capitalista.”6 A troca de informações guarda a gênese da esfera
pública burguesa.
As informações que transitavam no assim chamado pré-capitalismo não se assemelham
em nada a discursos com juízo de valor sobre o poder ou sobre a organização do
Estado, que virão mais adiante. Elas se resumem a dados circunscritos à atividade
econômica: ofertas, preços, rotas de transportes, cifras transmitidas em
correspondências. A esfera pública que então vai se formando assume as feições de
um sistema de trocas análogo, uma espécie de feira de informações sobre comércio,
elas próprias comercializáveis, num fluxo reforça, orienta e complementa o fluxo
das mercadorias propriamente ditas. “A troca de informações se desenvolve na trilha
da troca de mercadorias”, diz Habermas. “Com a expansão do comércio, o cálculo
comercial, orientado pelo mercado, precisava, de modo mais freqüente e exato, de
informações sobre eventos espacialmente distanciados. Por isso, a partir do século
XIV, a troca antiga de cartas comerciais foi transformada numa espécie de sistema
corporativo de correspondência. (...) Mais ou menos contemporâneos ao surgimento
das bolsas, o correio e a imprensa institucionalizaram contatos permanentes de
comunicação.”7
A transformação ganha força a partir do momento em que o serviço de postagem e de
entrega de mensagens escritas se tornam acessíveis para o público em geral e,
depois, quando a imprensa faz das notícias impressas mercadorias acessíveis também
pelo
público, isto é, passíveis de ser compradas e lidas por qualquer cidadão
alfabetizado e com dinheiro no bolso. “A troca de informações desenvolve-se não só
em relação às necessidades do intercâmbio de mercadorias: as próprias notícias se
tornam mercadorias.”8 Nota-se com facilidade que a esfera pública tem, desde logo,
uma dinâmica, de um lado, essencialmente comunicacional, e, de outro, análoga à do
mercado, como se dele fosse um reflexo, como vimos há pouco, mas não apenas isso.
Ela adquire condições de agir em retorno sobre o mercado: a esfera pública
nascente, mais que espelhamento, consubstancia um novo pólo articulado e
representativo de pressão política no interior do poder estatal, em condições de
interferir sobre esse poder e, por meio dele, ou diretamente, também sobre a
organização do mercado.
Frente às demandas dos sujeitos privados que ganham voz pública, a autoridade se vê
pressionada a buscar novas formas de legitimação do poder. O diálogo é tenso. “A
esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das pessoas
privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera pública regulamentada
pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com
ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente
relevante, as leis do intercâmbio de mercadorias e do trabalho social.”9 A
regulação da esfera pública, portanto, surge não como a origem da própria esfera
pública mas já como conseqüência de reivindicações dos sujeitos com lugar na esfera
pública nascente. A regulação não é causa do espaço comunicacional, mas
conseqüência deste. É curioso observear como o interesse privado se converte em
demanda de conseqüência pública. “A esfera privada da sociedade se torna
publicamente relevante”10: ela desabrocha em esfera pública e infunde, no Estado,
demandas às quais o poder não estava habituado.
Vista dessa perspectiva, a esfera pública burguesa, nascente, moderniza e civiliza
o poder. É correto afirmar, como faz Jean-Marc Ferry, que “o espaço público moderno
é uma criação do Iluminismo”11 Ele nasce com a vocação de promover a emancipação do
sujeito frente ao jugo absolutista, mas isso ocorre de modo gradual, menos por
rompimento e mais por sucessivas acomodações. “O impulso não vem de cima. Vem de
baixo, quando as pessoas particulares, reunidas nos salões, nos cafés e nos clubes
constituem as primeiras ‘esferas públicas’ burguesas para intercambiar
experiências. A autonomia privada da consciência individual, núcleo do espaço
público moderno, adquire sua própria força da crítica.” 12
Habermas joga luz sobre as idas e vindas, rupturas e conciliações entre Estado e
uma sociedade cada vez mais senhora de opiniões: “Uma esfera pública que,
indubitavelmente, tinha sido considerada uma esfera do poder público, agora se
dissociava deste como o fórum para onde se dirigiam as pessoas privadas a fim de
obrigar o poder público a se legitimar perante a opinião pública. O publicum se
transforma em público, o subjectum em sujeito, o destinatário da autoridade em seu
contraente.”13 O sujeito que adquire em sua condição privada as credenciais de sua
relevância pública, encontra em seu ser privado a sua via emancipatória. “Este é o
local de uma emancipação psicológica que corresponde a uma emancipação político-
economica. 14
A esfera pública nasce, enfim, como projeção das relações de mercado, que ganham
ressonâncias públicas no interior do Estado, transformando as razões dos sujeitos
de mercado em contrapartes das razões de Estado. Ao tempo em que “publiciza” o
Estado, ela contribui também para “desestatizar” a sociedade. O Estado, nessa mesma
perspectiva, antes uma ferramenta pública a serviço das razões privadas do monarca,
vê-se forçado a assimilar consensos mais amplos.
Uma primeira leitura do processo sugere um sistema primário de espelhamentos: fluxo
de mercadorias igual a fluxo de informações; liberdade de empreendimento e de
propriedade igual a liberdade de culto e de opinião, e assim por diante. Não é bem
isso. Há contradições, aí, que comparecem à gênese da esfera pública burguesa para
dotá-la de ideais liberais, de um lado, e de impulsos ordenadores, de outro. As
demandas dos comerciantes incidirão sobre uma arena que também funciona como espaço
inclusivo a serviço não apenas do comércio como da cidadania e esta, por sua vez,
também incidirá sobre as negociações inicialmente adstritas às práticas econômicas.
Mais que um constructo social, mais um pacto negociado entre interesses econômicos
diversos, a esfera pública precisa ser entendida por suas contradições intrínsecas.
Não que ela não possa (e não deva) ser entendida também como pacto, jogo ou
gramática, uma instituição, enfim; não que inexistam, no seu interior, estruturas
normativas a disciplinar a interação entre os sujeitos: essas várias dimensões não
podem ser esquecidas, mas a esfera pública é menos determinada pela intenção dos
agentes e por seus interesses imediatos calculados, e muito mais pela comunicação,
cujas leis escapam ao controle das autoridades e dos comerciantes. É mais adequado
pensar a esfera pública - ou os espaços públicos - como o ambiente necessário em
que se move o sujeito, em lugar de idealizá-lo como obra projetada pelos sujeitos
em grupo.
Por ser comunicacional, a esfera pública - ou os espaços públicos, nos termos de
Ferry - tende a ser pouco amoldável a fórmulas de controle institucional.
Espaço público ou esfera pública?
Antes de prosseguirmos, um esclarecimento.
As expressões espaço público e esfera pública aparecem na literatura de forma um
tanto aleatória, como se fossem equivalentes. Aparentemente, o emprego
indiscriminado de uma ou de outra teria diluído as distinções de método entre
ambas. Para efeitos de clareza dos critérios aqui adotados, convém uma rápida
interrupção do raciocínio para uma breve ponderação acerca do uso dos dois termos.
As inúmeras traduções de Habermas se valem de “espaço” ou “esfera” sem mais
justificativas. Basta dizer que L 'Espace Public, 30 ans après, a versão francesa
de um texto que surge nos anos 90, receberá em inglês com o título de Further
reflections on the public sphere.1 Fica uma sensação de que americanos preferem
esfera a espaço, enquanto franceses, espanhóis e latino-americanos preferem espaço
a esfera. No Brasil, assimilamos uma palavra ou outra, conforme a origem da
citação.
À parte esse tipo de acaso, nada desprezível, por sinal, ocorre que, para além das
traduções, há uma demarcação possível que pode ser encontrada no próprio Habermas,
num livro lançado na Alemanha em 1992 e que recebeu em inglês o nome de Between
Facts andNorms.16 A distinção entre os significados de um e de outro termo é dada,
segundo o autor, pela abstração, quer dizer, a esfera seria uma abstração em
relação ao espaço. Vamos a isso.
“Todo encontro em que atores não apenas se observam uns aos outros, mas se
relacionam comunicativamente [em inglês: “take a second-person attitude ”],
atribuindo liberdade comunicativa entre si, gera um espaço público lingüisticamente
constituído. Este espaço mantém-se aberto, em princípio, para aqueles potenciais
parceiros de diálogo, sejam eles os espectadores presentes ou aqueles que possam
entrar em cena e se juntar aos presentes. (...) Como infra-estrutura pública dessas
reuniões, performances, apresentações etc, as metáforas arquitetônicas de espaços
estruturados falam por si: são fóruns, palcos, arenas e assim por diante. Essas
esferas públicas ainda estão vinculadas aos locais concretos em que uma audiência
esteja reunida. Quanto mais elas se descolem da presença física do público e se
abram para a presença virtual de leitores, ouvintes ou espectadores espalhados,
ligados pela mídia pública, mais clara se torna a abstração que tem lugar quando a
estrutura espacial de simples interações é expandida para uma esfera pública.”17
Essa distinção nos interessa, agora, menos por motivos de ordem semântica e mais
porque ela ajuda a compreender as implicações da natureza comunicacional dos
espaços públicos (ou das esferas públicas), em contraste com aqueles que os vêem
como prolongamentos do poder público ou ainda como instituições postas por
ordenamentos jurídicos. O corte entre espaço e esfera, conforme quer o autor, seria
dado, então, pela capacidade de um público de produzir a instância abstrata - e
obrigatoriamente mais permanente - de si mesmo. “A esfera pública se diferencia
internamente em níveis segundo a densidade da comunicação, a complexidade
organizacional e extensão dos públicos episódicos que se encontram nas tavernas,
nos cafés ou nas ruas; passando pelos ocasionais ou ‘arranjados’ públicos de
eventos e apresentações, como espetáculos teatrais, shows de rock, congressos
partidários ou assembléias religiosas; até a esfera pública abstrata de leitores,
ouvintes e espectadores isolados, espalhados por grandes áreas geográficas, ou
mesmo ao redor do globo, e reunidos unicamente por efeito dos meios de comunicação
de massa.”18
Logo, a esfera pública habermasiana (1) está descolada da presença física do
público; (2) abre-se para a presença virtual de novos sujeitos; (3) não se
aprisiona em lugares concretos; (4) espalha-se por grandes áreas geográficas por
efeito dos meios de comunicação; e (5) é uma abstração,19, ou seja, a esfera
pública é um espaço público que teria atingido esse tipo de abstração. Toda esfera
pública, portanto, conteria um espaço público, mas nem todo espaço público estaria
alçado à condição de esfera pública.
Tais requisitos, como resulta evidente, tornam a adoção do conceito de esfera
pública uma operação que exigiria um minucioso exame de premissas, algo bastante
custoso. A partir de que instante se pode falar em, digamos, uma abstração
consumada? Para o olhar do estudioso de comunicação, os espaços públicos não se
reduzem a pontos de encontro meramente físicos, que se criam ou se dissolvem
instantaneamente, dos quais as instituições mediáticas estejam supostamente
alijadas. Um show de rock, por exemplo, pode mesclar o emprego de mediações
eletrônicas - o telão, a transmissão ao vivo - com a experiência de circo romano,
conjugando presença física e abstração, nos termos habermasianos, num único
espetáculo. Em outro extremo, a esfera da intimidade encontra-se “contaminada” pela
comunicação mediática, que abrem pontes para outros espaços mais ou menos públicos:
eventos familiares, como festas de casamento, ou mesmo experimentações conjugais
mais ou menos obscenas, adquirem existência ao vivo na internet, o que as vincula a
outras esferas de intimidade. Salas de “bate-papo” ou de “chats” na Internet
constituem locais virtuais, ainda que efêmeros: não são permanentes e, ao mesmo
tempo, não ensejam encontros propriamente “físicos”. Como fazer a distinção, em
termos práticos, entre espaços e esferas? Na fase em que se encontram as
tecnologias da informação, não há mais possibilidade de que se trace, aí, uma linha
divisória.
Sendo assim, o presente artigo, por segurança ou cautela, dá preferência, quando
possível, ao termo espaço. Há também uma razão de método para essa escolha: a de
evitar que a noção de abstração se converta numa senha para se falar em “tipo
ideal”, “espaço institucional” ou, ainda, para um certo juridicismo, qual seja, o
de se pôr a esfera pública na condição de espaço público regulado pelo direito.
Nessa perspectiva, a abstração seria concebida como a supressão, em algum nível, do
suporte material do espaço público - e nada mais enganoso que isso. Lembremos que a
categoria trabalho abstrato existe e, nem por isso, ela deixa de designar um objeto
material. Trabalho abstrato é um objeto material, embora o corpo do trabalhador não
se encontre ali, presente. Da mesma forma, não é porque o estudioso não pode pôr
sua mão sobre uma relação comunicacional que ela é menos material. Seu suporte
material é a linguagem.
O espaço público, mediado ou não por linguagens eletrônicas, esteja ele posto em
permanência, seja ele virtual ou próximo, lida com relações sociais, que podem ou
não ter traduções em relações de direito. Nesse sentido, embora não se pretenda
aqui contestar a proposição de Habermas, a expressão “esfera pública” pode tender a
abstrair, enfim, do espaço público, o exercício da própria comunicação, entendida
como o processo que promove ebulições e reconfigurações permanentes. Enfim, não é a
forma da esfera pública, mas a comunicação que permanece, modificando-lhe,
inclusive, materialmente, a forma.
Para que não subsistam mal-entendidos, o próprio Habermas enfatiza o caráter
eminentemente comunicacional, e não institucional, da esfera pública. Em Between
Facts andNorms, ele adverte: “A esfera pública não pode ser concebida como uma
instituição e certamente não como uma organização. (...) [Ela] pode melhor ser
descrita como uma rede para a comunicação de informações e pontos de vista.”20 Ele
prossegue: “A esfera pública se distingue como uma estrutura comunicacional que
está relacionada a um terceiro aspecto da ação comunicativa: não se refere nem às
funções nem ao conteúdo da comunicação de todo dia, mas ao espaço social gerado
pela comunicação. 21
De todo modo, para evitar os riscos de método que se põem a partir da idéia de
abstração tal como ela foi posta, a expressão espaço público é de uso mais adequado
aos fins deste artigo. Isso não significa que a expressão esfera pública deva ser
ou seja varrida deste artigo. Ela é aceita quando em referência a textos em que ela
assim apareça. Quando a escolha for possível, como já foi dito, a preferência
recairá sobre espaço público.
Opinião pública: mito e mistificação
O risco da idealização é menos distante do que pode parecer. Com efeito, a
idealização da esfera pública costuma ser recorrente. Há mesmo os que falam em
“alma” da esfera pública. Esta alma seria a opinião pública. Ora, a história da
idéia de opinião pública é história da idealização em estado puro, uma idealização
interfere, de modo decisivo, na concepção da própria esfera pública. Vejamos.
Se a esfera pública burguesa resulta de uma prática e se impõe como espaço social e
comunicacional, a opinião pública resulta de uma operação retórica, um processo de
outra natureza. Se dermos um passo além, poderemos dizer que ela já nasce como
mistificação, o que, ainda que soe uma afirmação atrevida, não desmerece a verdade.
Vejamos.
A idéia de opinião pública já em cena divinizada, como se fosse uma deusa - a
Liberdade desnuda numa tela de Delacroix - desfraldando a bandeira das Luzes e da
Razão. A opinião pública seria o grande tribunal onde os homens comuns atuariam com
seu discernimento para julgar os governantes. E, para além dos homens comuns, acima
dos limites de seus corpos e da vibração de suas vozes, a opinião pública reluziria
como um halo sagrado sobre os mortais, expressão pura de suas vocações, suas
aspirações e de seu devir. A opinião pública é a mais alta vontade do povo -
abstraída do povo, naturalmente.
Uma sintética arqueologia da idéia de opinião pública pode ser encontrada em
Opinião Pública e Revolução, de Milton Meira do Nascimento. Autora do prefácio,
intitulado “Os intelectuais e a política”, Marilena Chaui, dá o contexto: “Se, na
tradição filosófica, o conceito de opinião sempre fora relegado à condição de
sombra perturbadora da verdade, obstáculo à razão, sistema do medo e do preconceito
cristalizado nos costumes, sobretudo sob a ação dos poderes eclesiásticos, no final
do século XVIII, fazendo-se opinião pública, passa a ser encarada positivamente.
(...) A opinião pública é o encontro entre a razão e o povo esclarecido, torna-se
lugar da verdade e seu poderio depende de conseguir impor-se aos homens no poder.
(...) Concebida como direito do homem e do cidadão e como verdade que vem a público
trazida ao público pela razão, a opinião converte-se em arma na defesa da liberdade
de expressão, isto é, faz-se liberdade de imprensa.”22
Meira do Nascimento lança a pergunta chave: “Por que teria Rousseau escrito as
Confissões senão para encontrar o reconhecimento de um público capaz de melhor
julgá-lo?”23 Sim, o público estava lá. Por outro lado, uma interrogação subterrânea
persiste até hoje: seria esse público, de fato, capaz de julgar verdadeiramente? De
outro lado, será que se pode falar de democracia se o público não for capaz de um
julgamento racional? Em outras palavras, haverá democracia sem opinião pública
lúcida e soberana?
Pelo sim, pelo não, o conceito de opinião pública não precede, mas é simultâneo à
inquietação quanto à viabilidade da democracia inspirada na igualdade entre os
homens, cidadãos equivalentes em sua capacidade de julgar racionalmente e decidir
soberanamente. Erige-se como invenção dos ideais iluministas. Posta desse modo, a
razão de ser da opinião pública é teórica ou, mais propriamente, retórica: fornece
a sustentação discursiva permanente e auto-evidente do projeto pelo qual a
sociedade está apta a se governar de forma esclarecida.
Tudo dependeria da educação. Como preparar os homens do público para tão elevado
encargo, qual seja, o de se autogovernarem? A resposta vem dos filósofos
iluministas: pela ação pedagógica e doutrinária dos homens de letras, os
iluminadores por definição. Meira do Nascimento cita uma obra de Louis-Sebastien
Mercier, Notions claires sur les gouvernements, de 1787, e sintetiza o pensamento
do autor: “Para Sebastien Mercier, o que importa é a ação dos homens de letras para
a construção de um universo racional que possa funcionar como elemento decisivo de
pressão sobre os governos. (...) A maneira como Mercier concebe a opinião pública
conduz, na prática, à exigência de uma condição para o exercício da soberania
popular. O povo só será soberano, isto é, só se constituirá como detentor do poder
máximo da sociedade, se for suficientemente esclarecido pelos homens de letras.”24
Meira do Nascimento dá conta de que foi este o grande tema do século XVIII.25 Até
ali, a noção de “opinião”, tanto em Hobbes como em Locke, de um modo mais ou menos
acentuado, aparecia associada à crença ou à convicção particular do sujeito; a
opinião só poderia ser experimentada como verdade pelo próprio sujeito. Mesmo
quando compartilhada por uma coletividade, a opinião não era vista como algo que
coincidisse com a verdade, ou com a ciência, mas representava justamente o
contrário. Uma opinião particular assumida como verdade por uma comunidade seria
sintoma de fanatismo e obscurantismo. Essa opinião era o contrário de ciência, era
o lugar para crendices, palpites, superstições, preconceitos. Jamais poderia
pretender o lugar de verdade. A opinião pública, em contrapartida, cultivada pelos
homens de letras junto ao grande público, segundo diálogos embasados em argumentos
racionais de parte a parte, encontra-se num grau superior ao das opiniões
particulares: “A opinião pública, enquanto força racional, capaz de exercer uma
pressão sobre os indivíduos, exige, para se caracterizar como instância julgadora,
um processo de esclarecimento, um processo de formação do público, precisa tomar o
lugar do preconceito, que nada mais é do que a perpetuação do erro como verdade.”26
São particularmente reveladores da idealização a que este artigo vem fazendo
referência, ou, melhor ainda, da mistificação, os dois processos pelos quais a
verdade pode vir à tona quando vige a liberdade de opinião e de manifestação, ou
seja, quando a opinião pública vive e vige em sua plenitude. São os seguintes os
processos de manifestação da verdade pensados pelos cultores primeiros da opinião
pública: (1) ou ela, a verdade, é prévia ao debate e por meio dele é revelada, numa
epifania civilizadora, ou (2) ela é produto do choque entre as muitas opiniões que
tomam lugar nos espaços públicos. Mirabeau, para quem “a verdade já está dada,
mesmo que se admita o combate livre das doutrinas contrárias”, argumentou em favor
da primeira hipótese: “Deixemos que se batam [as doutrinas contrárias] e veremos de
que lado estará a vitória. Por acaso a verdade alguma vez foi derrotada quando
atacada abertamente e quando teve a liberdade para defender-se?”27 Para ilustrar a
segunda hipótese, segundo a qual a verdade é processada (fabricada) no calor dos
debates (não está previamente dada), Meira do Nascimento recorre à figura de
Malesherbes, que disse: “A discussão pública das opiniões é um meio seguro para se
fazer brotar a verdade, e talvez seja o único.”28
A diferença entre ambas as posições parece questão de detalhe, mas é profunda.
Segundo a primeira, a verdade existe em essência, é prévia, e só precisa do debate
para aí manifestar-se; pela segunda, a verdade inexiste previamente, mas se tece e
passa a
existir por obra do debate. Por um caminho ou por outro, contudo, acredita-se no
método pelo qual a razão há de sempre vigorar no interior da opinião pública,
ofertando a verdade a todos. Por um caminho ou por outro, a razão iluminista
deposita suas esperanças em um mecanismo, para dizer o mínimo, pouco racional. Ou a
verdade é prévia e irá se desvelar em epifania, ou a verdade é o resultado fatal. A
opinião pública, desde que livre e plena, jamais se equivocaria. A verdade,
portanto, é inevitável.
Aqui, precisamente, a mistificação corresponde à sacralização. Segundo vários
iluministas, a opinião pública, assembléia compacta das consciências de todos os
homens, livres e iguais, poderia ser portadora até mesmo da verdade divina. Tendo
parte com Deus e sua verdade, ela é apresentada como a primeira força humana capaz
de opor-se ao próprio Rei, que era anunciado como o escolhido pela vontade divina.
O advento da opinião pública ajuda a romper a sustentação divina daqueles que eram,
como se costumava assegurar, eleitos por Deus. Meira do Nascimento escreve: “Se o
discurso triunfante e épico sobre a libertação dos povos oprimidos e sobre o
triunfo da verdade aparece até nos textos de autores ateus, não é de estranhar que
os teístas e deístas tenham feito dele o seu escudo na luta pela queda do antigo
regime.” Entre outras tantas afirmações nesse sentido, tome-se uma breve passagem
do revolucionário Saint-Just: “Seja qual for a veneração que a piedade de nossos
pais mereça de nós, seja qual for a grandeza infinita de Deus e o mérito de sua
Igreja, a Terra pertence aos homens e os padres às leis do mundo, no espírito da
verdade. Esta verdade provém do eterno Deus, ela é a harmonia inteligente.”29 A
verdade vem de Deus e se manifesta por meio da liberdade do debate entre os homens.
A fé na razão implica sua negação: fundar a razão na fé. Ou, com outras palavras, a
fé na razão dá razão à fé.
O mito da revelação da verdade - ou por manifestação sagrada, num descortinar
luminoso da verdade previamente dada, ou como resultado prático da luta entre as
idéias - e o mito da verdade racional com origem divina e força benigna, a cura
para todos os males causados pelas tiranias, jamais abandonaram por inteiro o
conceito de opinião pública. O que terminou por influir nos debates em torno da
esfera pública.
Vida e morte da opinião pública (e do ideal de esfera pública)
Habermas, em Mudança Estrutural da Esfera Pública, também fala da opinião pública
(burguesa) como “ficção”30 (uma “ficção constitucional” ou “ficção do Direito
Público”31, na social-democracia européia), que se esvanece com o advento dos meios
de comunicação de massa. Ela não seria, pois, uma falsificação desde sempre, mas um
projeto fracassado. “À medida que o conceito de opinião pública, fixado nas
instituições de governo e de representação popular, não alcança bem a dimensão dos
processos informais de comunicação, tampouco, por outro lado, o conceito de opinião
pública, dissolvido psicossociologicamente em relações grupais, consegue novamente
inserir-se naquela dimensão em que a categoria, outrora, desenvolveu seu
significado estratégico.”32
É pertinente frisar que, pela força dos meios de massa, a esfera pública se expande
- o que aliás comprova a primazia da natureza comunicacional na esfera pública, ou
seja, com meios de maior alcance, ela se expande, ou, mais exatamente, ela tem
exatamente a dimensão dos meios que a tecem. 33 Ocorre que, agigantada, fenece,
pois os meios de massa, em poucas palavras, retiram da esfera pública as suas
possibilidades dialógicas e, sem isso, a opinião pública também já não se sustenta.
Esta se rebaixa a reclamos de consumo, quando muito. “Os desejos ‘privados’ por
automóveis e geladeiras recaem na categoria ‘opinião pública’ tanto quanto todos os
demais modos de comportamento de grupos quaisquer”.34 Para Habermas, a esfera
pública burguesa, sem opinião pública genuína, deixa de existir e o corpo sem alma
não pode viver sua utopia. (Como se pudesse ter havido, em termos materiais, uma
opinião pública que não tivesse sido desde sempre mistificação.)
A substituição do público pela massa é crucial no processo de fenecimento da esfera
pública. Ao final de Mudança Estrutural da Esfera pública, Habermas cita C. W.
Mills para descrever esse processo. Segundo Mills, “num público, (...) opiniões
formadas através de tal discussão rapidamente encontram uma saída na ação efetiva,
mesmo contra - caso necessário - o sistema dominante de autoridade. E instituições
autoritárias não penetram o público, que nisso é mais ou menos autônomo em sua
operação.”35 Habermas, então, antes de introduzir a definição de “massa”, pelo
mesmo Mills, anota: “Pelo contrário, opiniões perdem em termos de caráter público à
proporção que estão presas ao contexto de comunicação de uma ‘massa’.” Em seguida,
ele apresenta a definição de “massa” escrita por Mills: “Numa massa, (1) muito
menos gente expressa opiniões do que as recebe, pois a comunidade do público torna-
se uma coleção abstrata de indivíduos que recebem impressões dos meios de
comunicação de massa. (2) As comunicações que prevalecem são organizadas de tal
modo que é difícil ou impossível para o indivíduo responder de modo imediato ou com
qualquer eficácia. (3) A efetivação da opinião em ação é controlada por autoridades
que organizam e controlam os canais de tal ação. (4) A massa não tem autonomia
frente às instituições; pelo contrário, agentes de instituições autorizadas
penetram essa massa, reduzindo qualquer autonomia que ela possa ter na formação de
opinião através de discussão.”36 Logo, sem público, não haveria mais sentido em se
falar de uma esfera pública.
Não obstante, a opinião pública subsiste como conceito, pela simples razão retórica
- ou de técnica discursiva - de que é impossível pensar a democracia sem ela. Até
mesmo em Habermas37, às vezes, como categoria francamente utópica - ou idealizada.
Em Between Facts andNorms, o autor conclama: “Os meios de comunicação de massa
precisam estar a salvo das pressões das elites políticas e outras; eles devem ser
capazes de criar e manter o nível discursivo de formação da opinião pública sem
constranger a liberdade comunicativa das audiências críticas.”38 Agora, a despeito
de seu caráter de mistificação, a opinião pública resiste, enfim, como exigência de
um modelo teórico. Sem ela, a arquitetura conceitual da democracia resulta rígida,
um corpo sem intermediações. A função de intermediação parece inescapável e
recorrente, nas interações entre categorias separadas - tais como Estado e
sociedade, ou Executivo e Parlamento. A opinião pública, nesse sentido, cumpre, no
Habermas recente, a função de intermediar, de fazer a máquina teórica girar. Como a
alma, a opinião pública, ou melhor, o seu conceito, aparece como o sopro de vida na
democracia. Outra vez, como se se tratasse de um renascimento artificial do
iluminismo, a razão dependerá da fé.
Deixemos de lado, pois, as mistificações. Falemos dos espaços públicos
historicamente postos.
Conteúdos de “interesse público”: um requisito obrigatório?
Os espaços públicos independem da existência de uma opinião pública nos termos
iluminista, mas dependem do exercício da comunicação. Indo mais adiante, pode-se
dizer: comunicação sobre qualquer coisa. A tematização de assuntos de interesse
público não é um pré-requisito para a definição de um espaço público.
Entretanto, a primeira definição que se oferece a quem procura um conceito de
espaço público é de inspiração conteudística. Entre outros estudiosos, Giles
Achache prefere essa linha: “O espaço público, no modelo dialógico, primeiro se
define por seu conteúdo; mais precisamente, por um princípio de seleção do conteúdo
dos enunciados que nele circulam: o interesse geral (bem comum).”39 A tendência de
definir o espaço público pelo conteúdo dos temas mais ou menos públicos que nele
aparecem é generalizada. Quem se detém nessa tendência, porém, cai (de novo) nas
armadilhas racionalistas. E, depois, idealistas. Sigamos com o que formula Achache:
“Como lugar da determinação do interesse geral, o espaço público, em relação com o
modelo dialógico, se distingue de outros espaços sociais. Em primeiro lugar, se
opõe ao âmbito das atividades econômicas, o que também se tem chamado de ‘sociedade
civil’, e por outro lado, ao âmbito da vida privada e da intimidade. (...) [Nesses
âmbitos] não se espera dos indivíduos que se determinem conforme o bem comum”.40 Em
resumo, segundo esse autor, para que se defina um espaço público, requer-se do
sujeito uma conduta racional e sinceridade de propósitos, francamente voltados para
o bem comum.
A abordagem conteudística, por assim dizer, inviabiliza-se, seja porque depende de
um juízo de valor do observador - o que, afinal, é bem comum? -, seja porque é
ultraidealizado, supõe a existência de um espaço público puro, sem “contaminações”.
O problema aqui nem é teórico, mas de lógica. Há questões de interesse público que
são tematizadas sem nenhuma participação do público, e que desembocam em decisões
na esfera do poder estatal, afetando integralmente a sociedade, sem jamais passar
por espaços públicos. De outra parte, um espaço público pode tematizar apenas
frivolidades e assuntos que só afetem a intimidade das atrizes de televisão, dos
jogadores de futebol, e nem por isso deixa de ser espaço público - apto, a qualquer
instante, a tratar de debates ligados ao bem comum. Não há como extrair, para os
estudos da comunicação, um modelo conceitual do espaço público baseado em
conteúdos.
Lembremos que, numa passagem já citada, Habermas adverte que a esfera pública “não
se refere nem às funções nem ao conteúdo da comunicação de todo dia mas ao espaço
social gerado pela comunicação.”41 No espaço social gerado pela comunicação cabem,
sim, temáticas sexuais, étnicas e comportamentais que, trazidas discursivamente de
esferas não-públicas, incorporam-se ao debate público, às vezes interferindo no
curso do poder e dando ensejo a novas organizações institucionais. Conforme
demonstra Rousiley Maia, “a formação discursiva da opinião diz respeito não apenas
a um conjunto de temas fixos, supostamente relevantes para a vida política, em
sentido estrito da organização dos interesses gerais e ‘distantes’ de um todo
coletivo, mas também, e talvez principalmente, à descoberta, tematização e
tentativa de resolução de questões ou de situações-problema que se tornam visíveis
nos reflexos das experiências pessoais e nas questões práticas da vida”. Tanto
assim que “a linha divisória entre a esfera privada e a esfera pública não parece
poder ser marcada estrita e definitivamente pela natureza dos temas, mas, sim, como
sugere o recente marco teórico habermasiano, pelas condições alteradas da
comunicação, segundo níveis, densidade e complexidade da organização da comunicação
e do objetivo desta, os quais mantêm a privacidade de uma e a publicidade da
outra”.42
Privacidade e publicidade (publicidade não no sentido comercial, mas no sentido
daquilo que ganha lugar, visibilidade e tematização no espaço público) não se
definem, pois, pela natureza dos assuntos, mas pela natureza da comunicação que aí
se dá. Num resumo bastante apressado, pode-se dizer que público é o que se trata
publicamente.
Uma tautologia, por certo, que, no entanto, tem o mérito de sepultar a tentação
racionalista das acepções conteudísticas.
O debate público (ou o “tratar publicamente um assunto”) não ocorre sempre nas
mesmas bases, de modo que há debates públicos e debates públicos, uns mais públicos
que outros. O debate público pode se dar num processo que seja mais
institucionalizado ou menos institucionalizado, mais ou menos regulado, com mais ou
menos garantias para o equilíbrio entre as diversas partes para a condição de
enunciador, com mais ou menos diversidade. Mesmo os espaços em que os sujeitos
dialoguem assimetricamente assimetricamente podem ser considerados públicos, desde
que sejam permeáveis, ainda que apenas potencialmente, ao acesso dos sujeitos do
público. Donde um espaço impermeável, ainda que trate de temas de interesse
público, não poder ser tomado por espaço público. O espaço público totalmente
deteriorado por uma comunicação viciada se converte em espaço impermeável e deixa
de ser público.
Não que tenhamos de estipular graus de qualidade dialógica para medir a “saúde”
deste ou daquele espaço público - basta que tenhamos em vista que tratar
publicamente uma questão implica, de modo obrigatório, que as idéias tenham caminho
de ida e de volta, que haja troca. Que o público, no mínimo, esboce reações e que
essas façam parte das variáveis levadas em conta por aqueles que podem esboçar mais
do que reações no espaço público. A comunicação no espaço público é aquela que se
move ativa ou reativamente em relação aos vários públicos que nela se entrecruzam,
aos vários segmentos sociais, à diversidade dos modos de vida. Essa comunicação
tende a se expandir de modo inclusivo, mesmo quando o Estado, uma classe social,
uma etnia ou uma elite econômica ou religiosa procura se fechar em torno das
enunciações que aí tomem lugar. O espaço público, um campo de debates cujo acesso é
público, tem, por definição, a extensão exata da comunicação que promove - e que o
promove. E padece dos mesmos desequilíbrios da comunicação que (o) promove.
Em torno da comunicação pública
A premissa de que a natureza dos espaços públicos, bem como da assim chamada esfera
pública - ou esfera pública burguesa, ou esfera pública moderna -, é antes de tudo
comunicacional não significa que não exista possibilidade de que iniciativas
reguladoras ou que políticas públicas não possam atuar sobre o seu funcionamento e
sobre a sua qualidade. Esse ponto pode e deve ser esclarecido a partir de um
exemplo histórico.
Quando a social-democracia européia usou o poder público para, com os meios de
comunicação em rede pública (não-comercial), prover a função de formar e informar o
público - ou os cidadãos convidados a atuar dialogicamente na esfera pública que se
pretendia democrática -, procurava exatamente assegurar as regras de um diálogo
equilibrado e protegido das pressões do capital. Pode-se dizer que, por meio do
ordenamento - jurídico - da comunicação pública, a social-democracia procurou
preservar o equilíbrio do espaço público, numa política pública de eficácia
verificável, mas limitada. Daí vieram as redes públicas nacionais de televisão e
rádio na Europa.
Daí, também, veio a opinião difusa de estudiosos dispersos segundo a qual só se
pode falar de esfera pública se esta estiver mediada pelas redes públicas de
telecomunicação, com regras que protejam as simetrias dialógicas e afaste a
dominação (a colonização, mais que a simples presença) do capital sobre os meios de
comunicação. Acreditaram, muitos deles, que, se os meios públicos de comunicação
dessem o quadro da comunicação social, o espaço público, então, seria democrático,
uma vez que, se é a comunicação quem funda o espaço público, bastaria livrar essa
comunicação da lógica do mercado para que o espaço público fosse um retrato
equilibrado da composição e das tensões que caracterizam a própria sociedade.
Um autor que representa essa linha de pensamento é Nicolas Garnham, que identifica,
no serviço público de rádio e televisão, um “espaço para uma esfera pública
racional e universalista, distinta tanto da economia quanto do Estado”.43 Para
Garnham, só assim a esfera pública estaria a salvo da voracidade do mercado e dos
interesses automáticos (sistêmicos) do Estado. Entre o Estado e o mercado, Garnham
procura um terceiro termo, que viria justamente com essa esfera pública assegurada
por um ordenamento jurídico democrático.
A visão de Garnham reforça a idéia de que uma institucionalização pode garantir a
vigência de práticas dialógicas nos espaços públicos. Em parte, essa possibilidade
de fato existe. Para a utopia da TV pública44, uma eficiente institucionalização
democrática do regime do serviço público de comunicação garantiria, por
desdobramento, um espaço público dialógico e transparente. Para Rousley Maia, essa
institucionalização viria num nível superior e, ao mesmo tempo, mais abrangente.
“Para que os indivíduos possam exercer sua ação comunicativa e seu agir moral sem
riscos, é preciso que as estruturas e as prerrogativas da ação comunicativa estejam
suficientemente institucionalizadas. Isto é, os espaços comunicativos do mundo da
vida, as esferas públicas alternativas e os processos espontâneos de formação da
opinião devem estar assegurados institucionalmente.”45 Com efeito, as garantias e
os direitos constitucionais relativos à informação, à liberdade de opinião, de
expressão e de organização, bem como o limite para o monopólio e o oligopólio dos
meios de comunicação social, quando positivados pela lei e quando eficazes, podem,
sim, contribuir para maior diversidade e mais equilíbrio entre os sujeitos nos
espaços públicos. É preciso, no entanto, ter em mente os limites conceituais de um
projeto de institucionalização da esfera pública, limites a que a própria autora
faz referência. A esfera pública existe para além da institucionalização. As
políticas públicas não são capazes de fundar os espaços públicos, mas podem atuar
no seu aperfeiçoamento. Ainda que os processos de formação de opinião possam ser
protegidos institucionalmente, o âmago da esfera pública é por natureza não-
institucional. Ela não se resolve no Parlamento. Antes, o Parlamento é que se
resolve nela.
A proposta da regulação da esfera pública, com base na mediação provida pela
televisão pública, traz ainda uma outra questão: a natureza possível da televisão
pública é incapaz de gerar o tal “terceiro termo”, independente do Estado e do
mercado. Por isso, e com razão, a proposta de Garnham será criticada por outros
autores46. As redes públicas de comunicação - que combinam televisão, rádio e, cada
vez mais, internet -nas sociedades contemporâneas vêm cada vez mais se
caracterizando pelo hibridismo. Passadas as décadas áureas das televisões públicas
européias, que perdem hegemonia aceleradamente para as emissoras comerciais,
resulta evidente que, em nenhum momento, e em lugar nenhum, as redes públicas
escaparam à condenação de promover um equilíbrio tortuoso entre o Estado e o
mercado. Antes de abrir um “terceiro termo”, consistiram-se num campo que era
disputado tanto pelo poder quanto pelo dinheiro.
Diante do telespectador, propunham (e propõem) uma interlocução que oscilava (e
oscila) entre dois discursos: o estatal e o comercial. Nos bastidores, a TV
pública, no mundo inteiro, com raras exceções, debate-se entre fórmulas de
financiamento mais ou menos estatais e outras mais ou menos comerciais.
A utopia das TVs públicas é produto de uma contradição: na melhor das hipóteses,
entre esfera pública e prevalência de interesses não-públicos na esfera pública; na
pior, entre uma esfera pública que se deixa governar por mecanismos de mercado e um
Estado que luta para reconquistar sua condição de dirigente da opinião pública. Por
uma ou outra hipótese, a utopia dos serviços públicos de televisão como ordenadores
da esfera pública não superou sua contradição de origem, mas nela naufraga
lentamente. Como utopia, deve ser abandonada, ainda que, como projeto, tenha
funções a cumprir. Sua viabilidade como projeto depende da qualidade da crítica que
se faça ao seu caráter utópico.
Nascida contra o absolutismo e a desumanização da sociedade, a esfera pública
moderna iria atingir, pelas redes públicas de comunicação, a condição de arena
permanente capaz de barrar tanto os vícios absolutistas quanto os excessos
selvagens do capitalismo: eis a síntese do caráter utópico dos projetos de
televisão pública da social-democracia. Ora, a esfera pública que o serviço público
de comunicação iria proporcionar, liberta do dinheiro e do poder, é uma esfera
pública que não existe. As emissoras comerciais, com todos os seus vícios próprios,
realizaram e ainda realizam tarefas de que as redes públicas não foram capazes: “Há
evidências suficientes de que da mesma forma que os serviços públicos de mídia
estão cada vez mais sujeitos às forças do mercado, a mídia voltada para o mercado
está sujeita a um processo a longo prazo de auto-politização, no sentido de que
será forçada a orientar matérias de interesse de cidadãos capazes de distinguir
entre publicações sensacionalistas de mercado e controvérsias públicas.”47 Tanto
que, mesmo sem as redes públicas, a esfera pública aí está. Poderia estar melhor,
poderia ver-se mais solta em relação aos critérios do mercado que a dominam, mas a
esfera pública (campo de debate, ainda que assimétrico e desequilibrado) aí está.
Em momentos extremos, a interação do público com a mídia comercial pode ser tão
“politizada” quanto aquela que a social-democracia esperava que o telespectador
mantivesse com a televisão pública. E, muitas vezes, a televisão comercial pode ser
mais sensível às demandas do público que a televisão estatal ou mesmo pública, que
se encontram em crise de identidade, de modelo e de gestão na Europa e também no
Brasil.
O que resta para o projeto das emissoras públicas é justamente o de proporcionar
espaços públicos protegidos da lógica posta pelo sistema de anunciantes da
comunicação comercial, o que pode ser garantido por ordenamentos públicos. Parece
uma pretensão menor, mas, em termos objetivos, teria sido no passado e ainda é no
presente a mais ambiciosa possível, desde que sem salvacionismos. O projeto requer
emissoras públicas que se ocupem mais da qualidade da comunicação e menos de suas
conseqüências, ou de suas conclusões.
A supremacia da imagem eletrônica e a irrupção do telespaço público
O espaço público é um espaço mediático. “Por ‘mediático’ entendo o que mediatiza a
comunicação das sociedades consigo mesmas e entre si.”, diz Ferry.48 Há nele, sim,
uma forma alterada de diálogo, mas há diálogo. “O espaço público mediático deve ser
entendido como ‘o local estruturado onde a contestação ideológica e cultural ou
negociação entre uma variedade de públicos acontecem’.”49 Há que se levar em conta
que não há que se esperar, no espaço público mediático, a prevalência de modelos
estritamente racionais de argumentação, com que sonhava, talvez, a social-
democracia. Touraine é quem o diz: “Durante um breve período tivemos a ilusão de
que poderiamos (...) voltar à argumentação racional, de modo que a retórica pudesse
substituir os ritos. (...) As sociedades complexas e de mudanças rápidas, contudo,
pouco a pouco deixam de ser sociedades de intercâmbio, da comunicação e da
argumentação, para ser cada vez mais sociedades da expressão. A unidade de
comunicação entre o emissor e o receptor vai se quebrando. Cada vez menos tratamos
com comunicadores e cada vez mais com atores.”50
Em lugar da razão argumentativa, as sociedades complexas vêem surgir arenas
comunicativas permeadas pela lógica do modo de produção capitalista combinada com a
lógica do desejo, que é a lógica do inconsciente. Definitivamente, como diz Keane,
“não há, a princípio, razão por que o conceito de esfera pública deva
necessariamente ser atrelado a um tipo ideal de comunicação voltado para o consenso
baseado na força do melhor argumento”.51
Dizer que o espaço público é mediático não significa arrancá-lo inteiramente do
cotidiano dos indivíduos, das conversas informais, dos contatos interpessoais. O
espaço público busca sua seiva também nos processos de entendimento gerados na
intersubjetividade, em contatos espontâneos entre as pessoas, numa dinâmica que se
estende de baixo para cima. O dado novo é que os meios de comunicação passam a
fornecer não mais as idéias fechadas, os temas, os conteúdos, as “mensagens” - que,
segundo as antigas análises funcionalistas, sairiam de um lugar qualquer do topo da
pirâmide social, passariam pelos “veículos” e chegariam incólumes ao interior do
cérebro das pessoas desprotegidas do público -, mas os modos de tratamento dos
temas, as equações pelas quais os conflitos diversos serão resolvidos. A
comunicação mediática, aquela que é não apenas tematizada pelos meios de
comunicação de massa mas, acima disso, que é codificada por eles, infiltra-se na
intimidade e concorre para regulá-la. O espaço público torna-se tão extenso e tão
profundo quanto isso.
Hoje, além da disputa pela hegemonia (e pela supremacia) entre partidos, classes
sociais ou seus destacamentos, entre grupos econômicos, líderes religiosos e
cientistas, entre educadores e animadores de auditório, outra disputa toma conta
dos espaços públicos. Esta outra disputa tem por objeto o padrão da mediação, põe
frente à frente os sistemas de significantes de cada meio e já apresenta um
vencedor. A partir dela, verifica-se a prevalência da imagem eletrônica e de suas
conexões digitais com outros suportes - em som e texto - para a comunicação. O
padrão dominante é o do espetáculo visual, que ultrapassa as fronteiras idiomáticas
na tela eletrônica, reduzindo o mundo a um espaço público circular em tempo real.
Esse padrão não resultou do projeto político de uma classe social, por mais que
queiram assim os que acreditam nas conspirações movendo a História. Pode-se dizer
que o que está em curso é ainda mais grave: é esse padrão quem fornece os
parâmetros em que as classes sociais se enfrentam com seus projetos políticos. Esse
padrão, que hoje se instaura com mais desenvoltura numa tela de computador, tem sua
matriz na televisão. Com o advento do computador, da internet e, mais recentemente,
da televisão digital, o paradigma da TV não foi revogado. Ao contrário: expandiu-
se.
Comentanto a presença definidora da televisão na sociedade brasileira, Félix
Guattari se espanta: “É impressionante ver o quanto, nesse contexto [o da sociedade
dual brasileira], a impregnação mass-midiática precede a aculturação
capitalista.”52 E não se trata de uma exclusividade brasileira. Atualmente, o
espaço público se estrutura de acordo com a supremacia não apenas da hierarquização
de valores e conceitos a partir da instituição mediática, mas da hegemonia da
linguagem televisiva sobre as demais. Nos marcos da supremacia de um padrão sobre
os demais é que se devem entender os caminhos e os descaminhos do direcionamento da
comunicação, os deslocamentos dos centros de gravidade dos espaços públicos. O modo
de dizer, presidido pela indústria do espetáculo feito de imagens, força definições
sobre o que dizer.
Paul Virilio distingue três lógicas na história da imagem: a lógica formal (aquela
que presidiu a pintura, gravura, arquitetura), que termina no século XVIII, a
dialética (do fotograma, na fotografia ou no cinema), própria da mentalidade do
século XIX, e a lógica paradoxal (que começa com a invenção da videografia, da
holografia e da infografia). Aí, o mundo fica on-line. O ao vivo impera como
sinônimo de verdade. A imagem ao vivo é como se fosse a própria realidade, sem mais
mediações. “O paradoxo lógico está no fato de essa imagem em tempo real dominar a
coisa representada, nesse tempo que torna-se mais importante hoje do que o espaço
real. Essa virtualidade que domina a atualidade, perturbando a própria noção de
‘realidade’. Daí essa crise das representações públicas tradicionais (gráficas,
fotográfica, cinematográficas...) em benefício de uma apresentação, de uma presença
paradoxal, telepresença à distância do objeto ou do ser que suplanta sua própria
existência, aqui e agora. No fundo é isto a alta definição, a alta resolução: não
tanto imagem (fotográfica ou televisual) mas a própria realidade. Com a lógica
paradoxal é a realidade da presença em tempo real do objeto que se encontra
definitivamente resolvida, enquanto que na era precedente da lógica dialética da
imagem era unicamente a presença em tempo diferido, a presença do passado que
impressionava de forma duradoura as placas, as películas ou os filmes; a imagem
paradoxal adquire assim um estatuto comparável ao do acidente, ou mais
precisamente, do ‘acidente de transferência’.”53
O padrão de comunicação que projeta a predominância da imagem ao vivo como lastro
da verdade dá o tom de um sistema de significantes que incluirá a absorção da
imagem em suas outras lógicas, a formal e a dialética, tratando de superá-las. A
imagem eletrônica, mesmo quando em replay, em videotape, evoca o registro do
acontecimento ao vivo, no calor da hora. O novo padrão eletrônico de comunicação
está permanentemente ligado. É por ele que o mundo se conecta e se reconhece.
O critério da verdade é a vídeo-imagem que se apossa do espaço público
metamorfoseando-o em “videosfera”. Diz Régis Debray: “Uma foto será mais ‘crível’
do que uma figura, e uma fita de vídeo do que um bom discurso.”54 A síntese de
Debray é categórica: “A equação da era visual: Visível=Real=Verdadeiro. Ontologia
fantasmática da ordem do desejo inconsciente. No entanto, desejo, doravante,
bastante poderoso e bem equipado para linhar seus sintomas em uma verdadeira nova
ordem. Somos a primeira civilização que pode julgar-se autorizada por seus
aparelhos a acreditar em seus olhos.”55
Portanto, o espaço público - não o espaço público genérico, mas este espaço público
historicamente posto pela imagem ao vivo - é o telespaçopúblico. Ele tem sua
materialidade não mais nos lugares físicos - espaços urbanos, espaços
arquitetônicos, espaços projetados - em que os atores interagem, nos termos
propostos por Habermas, mas nas telepresenças de que fala Paul Virilio, no signo da
imagem eletrônica, ou, em poucas palavras, nos espaços demarcados agora, em lugar
da geografia, pela imagem ao vivo. Aí, a virtualidade não funciona como abstração,
mas como uma expansão eletrônica, material, portanto, do espaço social.56
O telespaço público é o espaço social gerado pelo padrão de comunicação que elege a
imagem ao vivo como lastro da verdade. Ele é a base para institucionalizações mais
ou menos formais de debates específicos, sobre temas específicos, destinadas a
finalidades específicos, mas não é, em si mesmo, uma instituição formal. É a
condição contemporânea do espaço público.
O paradigma do telespaço público dialoga com o paradigma habermasiano e, em certos
termos, tem-no como pressuposto. É uma fronteira que faz a mediação entre as
práticas discursivas e a hierarquização de significados e significantes dada
instituições mediáticas. Percorre toda a fronteira que separa o mundo da vida dos
subsistemas. É o campo em que os sentidos se realizam, mas não um campo de
consenso. É território de conflito porque é o território em que se batem as
racionalidades unilaterais sistêmicas contra as razões do mundo da vida.
Mas o paradigma do telespaço público também rompe com o paradigma habermasiano.
Existe sob a hegemonia do sistema de significantes próprio da imagem eletrônica; o
seu idioma universal é dado pela visualidade e pela discursividade televisivas
acrescida das interatividades digitais. Como não resulta de nenhuma forma de
consenso, não busca o consenso nem existe para o consenso, tem no consenso apenas
uma forma de simulação. O telespaço público não pressupõe sujeitos “racionais” ou
“conscientes”, mas se ordena segundo tensões inconscientes e, assim, é que decide
sobre temas que originalmente pressuporiam sujeitos conscientemente racionais. É
dado pelas contradições e caracterizado pelas relações dialógicas assimétricas, nas
quais se verificam todas as formas de manipulação, sem que estas o invalidem. Sua
existência depende das contradições sociais do capitalismo: é o reflexo necessário,
ativo e reativo do estágio atual do modo de produção capitalista.
Por isso, o telespaço público não depende da fé em uma opinião pública e nem mesmo
da existência de uma opinião pública (ainda que possa teatralizá-la nas diversas
formas de manifestações coletivas e ainda que possa admitir a nomenclatura de
opinião pública nas suas múltiplas simulações de busca de consenso); funciona a
partir das preferências de consumo do público (até quando se trata do espaço
público político, já que as questões eleitorais tendem a se resolver segundo os
critérios do consumo) e reveste o cidadão com a roupagem do consumidor.
O telespaço público é fragmentável e fragmentado. Subdivide-se em espaços plurais,
dos permanentes aos mais ou menos instantâneos, recortados do todo, cujos âmbitos
se estendem da esfera íntima aos espaços globais, em fronteiras sinuosas e porosas
com o mundo da vida.57 Fragmenta-se em segmentos comunitários, em temas, em regiões
geográficas, em crendices e, simultaneamente, interconecta a todos esses segmentos
possíveis, potenciais ou realizados.
O telespaço público seria, enfim, a forma orgânica final do espaço público, em sua
natureza que não separa, mas combina, dimensões físicas e virtuais das
possibilidades de identificação e entendimentos comuns entre os sujeitos,
pactuações conscientes ou não, sempre, e invariavelmente, como realidades
comunicacionais.

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