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Um livro de leitura obrigatória, recomendado para lod 1

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e custosa navegação.

Só a coragem e a audácia dos Portugueses seria capaz da pro zu h ·rqi 11>1

Assim inicia João de Barros a sua adaptação em prosa de Os Lusladn , o po in ' i'· 1 IL o
português. Nesta obra, o autor condensa e simplifica a leitura d ·sa jol 1 da llt ~·1•11t11r 1
nacional, tornando-a acessível a um público mais jovem, mas inLcrcssudn · 111 'Cllth ·1 ·1

a sua História e as suas Origens.

d ptação em prosa de João de Barros


TLU RAÇÕES DE ANDRÉ LETRIA
Os Lusíadas
de Luís Vaz de Camões
CONTADOSÀSCRIANÇASELEMBRADOSAOPOVO

«Luís de Camões, autor de Os Lusíadas, foi um


grande poeta. Poucos, pouquíssimos poetas terá
havido que se possam comparar. Maior do que
ele, nunca existiu nenhum, nem em Portugal,
nem em qualquer outro país do Mundo.
Não foi só grande poeta, Luís de Camões. Foi
também grande patriota e valente soldado. Amou
a Pátria com dedicação sem limites, cantando-a,
celebrando-a nos seus poemas, sobretudo n'Os
Lusíadas, cultivando a sua língua com amorosa
ternura, e batendo-se corajosamente por ela na
África e na Ásia.

Na África, defendeu várias vezes Ceuta das


arremetidas dos Mouros, perdendo um dos
olhos em combate. Na Ásia, pertenceu a várias
expedições ao Estreito de Meca, para afugentar
os navios dos corsários que ali vinham impedir a
navegação das nossas caravelas. Para ele, a Pátria
estava acima de tudo - e não fez outra coisa,
durante a sua vida inteira, senão louvar as
virtudes do seu povo e dos seus heróis, ou lutar
para a fazer respeitada e admirada por todos.»
PREFÁCIO

A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Líni


Portuguesa.

info@marcador.pt O autor desta quase literal adaptação de Os Lusíadas


www.marcador.pt
facebook.com/marcadoreditora reconhece - apesar do respeito, do cuidado e do carinho
© 2012
que pôs na delicadíssima tarefa - que ela é de qualquer
Direitos reservados para Marcador Editora modo sacrilega.
uma empresa Editorial Presença
Estrada das Palmeiras, 59 Não se toca numa obra de génio, para a apresentar sim-
Queluz de Baixo plificada aos olhos do público, sem a triste e aliás inevitável
2730-132 Barcarena
sensação de amarfanhar a sua beleza, de corromper e des-
Titulo: Os Lusíadas Contados às Crianças e Lembrados ao Povo folhar o seu encanto radioso.
Autor: João de Barros
Uustrações: André Letria Não me pejo de confessar que estive constantemente
Revisão: Silvina d e Sousa
Paginação: Maria João Gomes
angustiado, que sofri contínuos e sérios remorsos, enquanto
Capa: Bruno Rodrigues procurava interpretar, em prosa corrente e fácil, a grandeza,
Impressão e acabamento: Multitipo - Artes Gráficas, Lda.
a majestade épica de Os Lusíadas.
ISBN: 978-989-8470-24-9 Insisti e teimei em fazê-lo, não por gosto e deleite no
Depósito legal: 339214/12
trabalho, mas porque este me pareceu necessário, urgente
P edição: fevereiro de 2012 e - perdoe-se-me o orgulho - sinceramente patriótico.
2.g edição: abril de 2012
3.Q edição: setembro de 2012 É costume dize~se que Os Lusíadas são a Bíblia da Pátria,
4.u edição: janeiro de 2013
5.ª edição: setembro de 2013
ou, menos retoricamente, o livro nacional por excelência.
6.u edição: julho de 2014 De facto. Mas essa Bíblia, esse livro intrinsecamente nacio-
7.u edição: novembro de 2014
8.ª edição: novembro de 2015 nal, só tomam contacto com ele - quando o tomam ... - os
9.g edição: outubro de 2016 alunos dos liceus, a partir do meio do seu curso, e os adultos.
PREFÁCIO

As crianças não o leem, não o podem ler - as crianças


que, por muito pouco que entendam o francês, encontram
nessa lingua edições, à sua escala e medida, da própria
A Odisseia, não será tempo de oferecer-lhes uma singela,
embora imperfeita adaptação da nossa Odisseia - Odis-
seia real, e não apenas imaginária, e, mesmo por isso, mais
do que a outra maravilhosa - para que ao menos se lhes
tomem familiares o povo, os heróis, os acontecimentos no-
I
táveis e celebrados por Luis de Camões e que são glória
imorredoira da nossa terra?
Creio que sim. E foi para elas - pensando na alegria
de ajudar a criar nas almas infantis o civismo de que tanto
falamos e de que tanto carecemos - que me atrevi a redu-
zir a linhas essenciais, embora pobres, a linhas acessíveis
à mais ingénua visão, a opulência de arquitetura, a prodi-
COMEÇAA VIAGEM
giosa riqueza de emoções, de sentimentos, de imagens e
de ideias, que, página a página, cativam e deslumbram o
leitor de Os Lusíadas.
Ousarei ainda acrescentar que esta adaptação a con-
sagro também - ao Povo. Não que o Povo - que somos
todos nós - ignore o poema, a sua celebridade e a sua
inspiração. Mas esquece talvez demais as nobres ligações
que dele dimanam. Atrevo-me a supor que ninguém levará
a mal que eu tão francamente o diga - e que ninguém dei-
xará de perdoar, pela pureza da intenção, os erros e faltas
da minha modesta e receosa tentativa.
João de Barros
1
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E ra uma vez um povo de marinheiros e de heróis, o


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povo português, o nosso povo, que já lá vão muitos


anos - mais de quatrocentos - quis descobrir o caminho
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~·- ~ • !.,."'!.;:::. .•• .:.·· marítimo para a Índia. A Índia aparecia então, aos olhos de
todos os Europeus, como terra de esplendor e de riqueza,
·~ .~.,..
'' ·... que todos os homens desejavam, mas onde era difícil, quase
impossível chegar.
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Quatro pequenos navios - tão pequenos sobre o imenso,


' • • ~.. f 1 1 1: : ~ 1
ignorado Oceano! - Quatro naus comandadas pelo grande
capitão Vasco da Gama lançaram-se através do Atlântico,
' T·•'"• só conhecido até ao Cabo da Boa Esperança, dobraram esse
Cabo e puseram-se de vela para a região que demandavam.
O vento era brando, o mar sereno. Até então a viagem
correra sossegada. Mas os perigos seriam constantes, a tra-
vessia arriscada, a viagem longa. E ninguém sabia ao certo
o rumo a seguir, pois nunca outra gente se atrevera sequer
a tentar tão comprida e custosa navegação.
Só a coragem e a audácia dos Portugueses seria capaz
da proeza heroica!
COMEÇA A VIAGEM OS LUSíADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

Mas Baco - sempre tonto e mau, que tivera outrora


grande poder na Índia e receava que os Portugueses, con-
quistando-a, até a lembrança do seu reinado de lá afastas-
Iam os barcos já na costa de Moçambique, rápidos en- sem - Baco preparava-se para os inquietar, desanimando
tre a branca espuma das ondas. a lusa energia com toda a espécie de maldades e perfidias.
A Índia estava longe. No palácio luminoso, perto das estrelas, em que habitual-
Mas o caminho para alcançá-la era aquele, diziam os mente se reuniam - grande conversa e discussão houve entre
sábios e marinheiros - e decerto lá chegariam Vasco da os Deuses a propósito dos nossos Portugueses e da melhor
Gama e os seus marujos, se o vento e o mar lhes fossem decisão a tomar sobre o destino das suas naus ...
favoráveis e, sobretudo, se a coragem os não abandonasse.
Ai deles, porém!
Sempre que um povo ou um homem tenta desvendar e
conhecer paragens até então ignotas, ou realizar um ato no-
bre e grande, parece que as forças da Natureza, ou a inveja
dos outros homens, tudo fazem para os não deixar vencer ...
Iam senti-lo e sabê-lo bem os nossos temerários ante-
passados!
E antes de senti-lo e sabê-lo - já os Deuses ou forças,
que vivem nas coisas e nas almas, discutiam se sim ou não
os deviam deixar triunfar.
Júpiter, que era o Deus dos Deuses, senhor do Mundo;
Vénus, filha de Júpiter, Deusa do Amor e da Ternura; Baco,
o Deus da Folia e do Vinho; Marte, o Deus da Guerra; Apo-
lo, o Deus da Luz e do Calor; e Neptuno, o Deus do Mar,
juntaram-se todos para resolver se dariam ou não auxílio
aos Portugueses.
Basta que Júpiter desencadeasse um grande temporal
sobre as frágeis embarcações, para que um naufrágio as
engolisse logo e, com elas, os tripulantes e o próprio Vasco
da Gama ...
Era isto o que nem Vénus nem Marte - amigos dos
Portugueses, que são, como ambos esses Deuses, afetuosos
e valentes - de maneira alguma queriam.
II

PERIGOS E TRAIÇÕES
F oi nesse momento que umas certas ilhas, aparente-
mente desabitadas, aos olhos de Vasco da Gama e
dos seus marujos apareceram, como chamando-os a des-
cansar.
Mas não viam eles razão para ali se deterem .. .
De uma das ilhas, porém - da Ilha de Moçambique,
que estava mais chegada à costa - , partem já alguns ba-
téis. Alegram-se os Portugueses, que há muitas semanas
viviam só entre o Mar e o Céu, e que, não desejando
embora ali parar, sempre gostavam de encontrar gente a
quem falassem.
Perguntaram uns aos outros a que raça, a que lei, a que
religião pertenciam os tripulantes dos batéis.
Mouros eram, como depois se viu, Mouros que explora-
vam o comércio das regiões africanas.
Atracam os batéis às naus, e entraram em amena con-
versa os Mouros e os nossos.
Os Portugueses, confiados, contavam os seus intentos.
Prometeram os Mouros, que se fingiam amigos, indicar-lhes
um bom piloto, que mais fácil guiasse até à índia os navios
PERIGOS E TRAIÇÕES OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

de Vasco da Gama. E também convencem os Portugueses Armaduras, pelouros, espingardas de aço e aljavas,
de que lhes dariam alimentos frescos , e água doce dos rios bombardas e chuços - tudo o Regedor olhou e admirou,
e das fontes da ilha onde habitavam. não querendo o grande capitão que se queimassem as es-
Nessa noite os Portugueses dormiram um sono tranqui- trondosas bombardas, para não assustar o visitante mouro.
lo, certos do auxílio tão rapidamente oferecido e que tanto Julgava o grande Vasco da Gama - como todas as pes-
os ajudaria a realizar o seu desejo. Piloto seguro e manti- soas verdadeiramente fortes e corajosas - que é «fraqueza
mentos frescos para continuar a viagem - eis, na verdade, entre ovelhas ser leão>>. Os homens daquelas ilhas pare-
as coisas de que mais precisavam então... ciam-lhe inofensivos, amáveis, e nunca indignos da sua
Assim que a aurora nasceu, Vasco da Gama - a quem amizade ...
o Regedor ou Xeque das Ilhas anunciara uma visita - man- Enganava-se na sua lealdade ...
dava embandeirar as naus e adorná-las de toldos vistosos O Mouro, vendo tantas armas e gente tão corajosa, ficou
para receber condignamente os seus hóspedes. cheio de raiva e de medo.
Não sabia o Regedor das Ilhas a que pais, a que religião E, como era mau e traidor, imaginou que os Portugueses
pertenciam os Portugueses. fingiam ser bons - só para o atacar na primeira ocasião.
Pensava ao princípio que seriam Turcos, e que adora- Disfarçou o ódio, calou-o e tratou de não despertar qual-
vam, como ele e toda a gente moura, não Cristo, mas o quer suspeita nos Portugueses.
Deus dos Maometanos, o Deus dos Infiéis - que Portugal Disse que daria um ótimo piloto a Vasco da Gama.
tinha sempre e sempre combatido. Falou-lhe noutras coisas com muita doçura.
Mas receando afinal que o não fossem, e tremendo já Tal doçura, porém, era só astúcia. E astúcia perigosa!
de encontrar ali os velhos inimigos de sua raça, pediu ao A ideia dele foi logo atrair os Portugueses a uma cilada -
valoroso Vasco da Gama que lhe dissesse donde vinha, o e desbaratá-los. Mas disfarçava o ruim projeto.
que pretendia, e que lhe mostrasse os livros da sua Fé, e Toda esta fúria, afinal, porque os Portugueses eram dou-
também as armas fortes que usavam os seus. tra religião - e ele, maometano, nunca perdoara a nenhum
Vasco da Gama, leal e sincero, tudo explicou sem difi- cristão as derrotas infligidas a seus avós, em Portugal e em
culdades, por intermédio de um intérprete, já se vê - pois Espanha, pelos nossos antepassados!
que não conhecia a língua daqueles estrangeiros. Foi então que Baco, mais zangado do que nunca por
Contou-lhes que se dirigia à Índia, que era cristão e que uma repreensão que Marte lhe dera ao terminar a reunião
não trazia nem precisava de trazer consigo os livros da sua dos Deuses, resolveu ajudar os Mouros na perfídia que ma-
Fé, porque tinha os mandamentos desta gravados e gua~ quinavam.
dados na alma. Pensando sempre que os Portugueses lhe roubariam a
Mostrou-lhe as suas armas de guerra... Mas só como fama que ainda tinha no Oriente, transformou-se em Mou-
bom amigo, dizia, acrescentando que desejaria nunca mos- ro - num Mouro que andava acompanhando o Xeque das
tradas como inimigo. Ilhas.
PERIGOS E TRAJÇÔES OS LUSiADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

Tais mentiras inventou sobre os Portugueses, chamando- Paz fingida, é claro, essa paz que o Xeque propõe.
-lhes ladrões e assassinos e jurando que em toda a parte Não que desejasse combater mais. Mas, vendo que não
onde tinham passado na sua viagem só mortes e desgraças vencia frente a frente Vasco da Gama, resolveu envial'"lhe,
deixavam, que o Xeque se tomou de pavor, e no extermínio e recomendar-lhe como bom, um piloto desleal, que não o
completo dos navegadores viu a sua salvação e a da sua conduziria à Índia, certamente, mas que faria naufragar a
gente. frota na primeira ocasião.
Quando Baco, disfarçado em Mouro, anunciando que Vasco da Gama aceitou o piloto; mas, homem prudente,
os marinheiros de Vasco da Gama viriam à terra muito já não acredita muito nos conselhos que ele dá.
cedo para buscar água doce, aconselhou o Xeque a matá- E bem fazia, na verdade, pois o piloto queria levá-los
-los todos - preparou-se logo este para tão feia ação, e para uma outra ilha, chamada Quíloa, onde novos e cruéis
imaginou logo uma cilada. Mouros receberiam os Portugueses pior, muito pior ainda
A cilada surtiu efeito, infelizmente, como ides ver... do que os primeiros.
Os Portugueses, na manhã seguinte, lá foram até à praia Apesar desse cuidado, as caravelas de Vasco da Gama
mais próxima, na intenção de buscar água e de trazer nos teriam aportado a Quíloa - por não haver terra mais pel'"
seus batéis o piloto prometido. to - se os ventos contrários não afastassem as naus para
Mas - graças a Deus! - desconfiados já por certas ati- longe.
tudes e perguntas muito esquisitas do Xeque, armaram-se Vénus, amiga dos Lusitanos, lá conseguira este favor da
à cautela. Não levaram, porém, as espadas na mão, nem Natureza...
supunham ter de lutar. Estariam salvos já da infame ardileza os valentes e amea-
Os Mouros é que não hesitaram!... Receberam-nos em çados nautas?
som de guerra, lançando sobre eles uma chuva de setas. Ainda não ...
Insultaram-nos, perseguiram-nos, feriram muitos, mas não O piloto, se os não pôde fazer aportar na segunda ilha
conseguiram matar nenhum. da traição, outra reservava ainda para os deixar lá, destro-
Defenderam-se os nossos com tremenda coragem. E nos çados e mortos.
batéis da frota estala o som da artilharia, som que os Promete levá-los a uma cidade cristã, onde encontra-
Mouros nunca tinham ouvido e que os atordoou e encheu riam seus irmãos de crença - e conduz os navios a Mom-
de pânico. baça, terra de pagãos.
Fugiram assustados. Uns, feridos, para os batéis. Outros Ali chegados, o Rei da povoação manda-lhes um recado
afogaram-se. Os restantes desapareceram a pouco e pouco. muito amável - e, bem industriado pelo espirita de Baco,
Enfim os Portugueses regressam vitoriosos à armada, mas sempre no encalço dos Portugueses - afirma-lhes que os
aborrecidos com a infâmia do Xeque. E o que sucede, no receberá como é devido a gente tão ilustre e tão nobre.
entanto? Assim que chegam às suas naus, o Rei Mouro, Rejubila Vasco da Gama. Pensa que vai descansar enfim
arrependido, apresenta-lhes propostas de paz! uns dias, antes de recomeçar a trabalhosa e fatigante jornada.
PERIGOS E TRAIÇÕES OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

Ai dele e dos nossos, todavia, se porventura se tivessem Velava, porém, a Deusa da Ternura, Vénus, a mais linda
fiado em tais palavras!. .. de todas as Deusas.
Mal vai sempre a quantos não usam de cautela e acredi- E, quando as naus entravam a barra, Vénus, escondida
tam nas palavras de quem não conhecem bem! na espuma das vagas, com outras Deusas do Mar, impeli-
Como o Xeque da Ilha de Moçambique, o Rei de Mom- ram a armada para fora, para o Mar largo, como se fossem
baça envia um mouro a bordo da nau almirante, que ofe- a própria força da maresia ...
rece aos Portugueses água e mantimentos - e convida-os a Obrigados pelo ímpeto das ondas, desistem os Portu-
visitar a cidade. gueses de fundear.
Nela - diz esse embaixador - encontrariam os nos- Os Mouros que cercavam nos seus batéis os nossos na-
sos um povo cristão e seriam fornecidos de tudo quanto vios julgam então que Vasco da Gama adivinhara o seu
precisassem ou ambicionassem, até de especiarias e de intento, tão pesada lhes está a consciência!
pedras preciosas. Fogem receosos e gritando.
Para comprovar a sua amizade, envia-lhes o Rei belos e O piloto, o piloto desleal dado pelo Rei de Mombaça,
ricos presentes, que Vasco da Gama recebe sem suspeita. lança-se ao Mar!
Mas a experiência ensinara-lhe já a precaver-se. E, para evi- Vasco da Gama, ao ver tudo isto, compreende a arma-
tar surpresas desagradáveis como aquela que já tivera - man- dilha em que fatalmente cairia, se porventura tivesse che-
da primeiro a terra dois marinheiros espertos, para observa- gado mais próximo da terra. Mede a luta desigual - contra
rem bem o que lá se passava, e se lá havia realmente cristãos. os elementos e a maldade dos homens - que vai susten-
Mais uma vez, no entanto, o maldoso Baco urdira uma tando com os seus companheiros. E reconhecendo quan-
das suas perfidias. to a Providência o tem auxiliado, e como tem livrado de
Tal como se tinha já transformado em favorito do Xeque perigos e traições os seus navios, lançados em viagem tão
de Moçambique, transforma-se agora em sacerdote, e põe-se difícil, agradece a ajuda divina. E a Deus roga que enfim
de joelhos diante de um altar que tinha fabricado. o conduza à índia ou, pelo menos, a um porto sossegado
Julgaram os Portugueses ver um padre da sua religião e onde possam todos descansar das longas provações sofri-
ficaram muito contentes. das, onde todos possam repousar sem medo e refazer as
De mais a mais, os Mouros tratavam-nos com aparente forças exaustas...
bondade e simpatia.
Por isso, ao voltarem à nau de Vasco da Gama, acompa-
nhados por vários mouros que ofereciam agasalho e paz,
trouxeram as melhores informações.
Baco e os Mouros iam vencer aleivosamente os Portu-
gueses, se as caravelas chegassem a ancorar nas águas de
Mombaça ...
III

O REI DE MELINDE
ACOLHE
OS PORTUGUESES
""\ fénus, a linda e carinhosa protetora dos Portugueses,
V ouviu a súplica de Vasco da Gama.
Sai das espumas, onde se ocultara, e corre para junto de
seu Pai, que no Palácio dos Deuses - Olimpo se chamava
este palácio - logo a recebeu e acolheu festivamente.
Vénus chora a desdita do seu povo, que tão audacioso
se mostrava, e que tão maltratado era pelo Destino.
Com os olhos cheios de lágrimas diz ao Pai:
- «Nunca julguei, meu Pai, que abandonasses os Portu-
gueses à fúria e à maldade de Baco.
«Arno esse povo glorioso, e tu o deixas entregue aos
caprichos dos seus inimigos!
«Antes eu não o estimasse tanto! Decerto o guardarias
melhor... »
E chorava cada vez mais, sufocada e tristissirna.
Júpiter, que lhe queria bem, corno os pais querem sem-
pre às filhas, abraçou-a e beijou-a muito. E sorrindo respon-
deu-lhe:
- «Não, minha formosa filha, não ternas sorte contrária
para os teus Lusitanos.
O REI DE MELINDE ACOLHE OS PORTUGUESES OS LUSÍADAS CONTADOS As CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

«Não penses que, mais do que tu, possa outrem influir «Irão até Malaca, e até à China!
no meu ânimo a respeito deles. «E até às ilhas mais remotas da Ásia, obedecendo o Ocea-
«Prometo que tais feitos eles praticarão no Oriente, no à audácia das suas naus, e deixando-as navegar livre-
que farão esquecer todas as proezas dos outros povos do mente e sem temporais ...
Mundo. «Esforço mais do que humano será o esforço dos Lusos,
«Mostrarão novos mundos ao Mundo. Edificarão cida- não se tendo visto nunca tão grande coragem do Oriente ao
des. Desbaratarão os Turcos ferozes. Subjugarão ao seu po- Ocidente, do Norte ao Sul do Globo.
der o Rei das Índias. E darão leis justas e sábias a todos «Eu o sei, eu o adivinho, eu o profetizo, eu o prometo.»
quantos governarem. Assim que disse estas palavras, Júpiter ordenou a Mer-
«Ver-se-á até um dia o Mar, agitado por violento terra- cúrio, seu habitual mensageiro, que em sonhos aparecesse
moto submarino, sossegar ao ouvir a voz calma de Vasco a Vasco da Gama e lhe indicasse um porto seguro e aco-
da Gama, dominando o receio de alguns dos seus compa- lhedor ...
nheiros ... Dormia o Capitão na sua nau, quando Mercúrio em
«Verás aquela terra de África, onde lhe recusaram água sonhos lhe apareceu, murmurando:
e mantimentos, tornar-se mais tarde um povo lusitano, «Foge imediatamente destas paragens traiçoeiras. Numa
onde os outros navios, que do Ocidente vierem, acharão terra perto do Equador, onde o dia é igual à noite, encon-
abrigo e paz. trarás um Rei amigo e hospitaleiro, que te agasalhará e in-
«0 Mar Vermelho, sempre tão bravo, há de amansar-se dicará piloto sabedor e honrado, capaz de te conduzir à
para os seus galeões. índia ... »
«Ormuz, Reino poderoso, duas vezes será por eles to- Vasco da Gama acorda, ainda no espanto deste sonho.
mado aos Mouros, que expulsos dessa região opulenta - Vendo no ar um vivo clarão - sinal certo de coisa extraor-
aprenderão que todos quantos combatem contra os teus dinária - pensou que o melhor seria obedecer às indicações
protegidos, combatem afinal contra si mesmos. do estranho sonho.
«Verás Diu, a fortaleza inexpugnável, duas vezes cerca- Manda dar velas ao vento, levantar as âncoras e par-
da, vencida e conquistada também. E Goa, que a valentia tir ... Os Mouros de Mombaça, escondidos nos seus barcos
dos Portugueses saberá tomar senhora e capital de todo o - não imaginando o que ele tencionava fazer - , cortam
Oriente; e Cananor, onde um pequeno punhado de Lusita- então as amarras das caravelas, tentando assim fazê-las dar
nos manterá o seu dominio; e Calecute, cidade populosa e à costa!
potente, caindo às suas mãos. Os Portugueses perceberam logo a maldade, mas nem
«E Cochim, gloriosamente tomada ... tiveram tempo de castigá-la, tão depressa os Mouros rugi-
«Nunca, Filha minha, houve no Mundo tantas vitórias ram ao sentir-se descobertos.
como aquelas que os Portugueses vão ganhar no Oriente. Era a última traição, última e inútil, daqueles torpes
«E não só na Índia!. .. Infiéis!
O REI DE MELINDE ACOLHE OS PORTUGUESES OS LUSiADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

dever do capitão da frota não a abandonar nunca, nem à


gente que está sob as suas ordens.
O Rei de Melinde ouve afavelmente o oficial português.
A caminho da terra hospitaleira, proas ovantes, as naus E acreditando em tudo quanto ele afirma, e louvando a
lusitanas, cortando a espuma das ondas, foram vogando coragem dos Lusitanos que tão longa e difícil viagem fize-
então para a terra anunciada por Mercúrio ... ram, promete ir visitar a bordo o Capitão ilustre, já que ele
Em dois navios tomados no caminho, e tripulados por não poderá desembarcar - por dever que muito respeita
Mouros menos ferozes que os de Mombaça, Vasco da Gama e admira.
encontrou, não quem lhe ensinasse a direção da Índia, mas No dia seguinte, a visita do Rei a bordo fez-se com toda
informação exata sobre o vizinho porto de Melinde, onde a pompa, mas já a noite fora de grande festa.
achariam piloto. Na armada e na terra houve fogo de artificio, danças e
Disseram os Mouros que o Rei de Melinde era humano cantos, que só terminaram quando o Rei e os nobres vie-
e generoso, como já a Vasco da Gama o anunciara em so- ram de barco saudar Vasco da Gama.
nho o enviado de Júpiter. Um e outro vestiam fatos riquíssimos e novos - o Rei
E num sábado de Aleluia, quando a Terra e o Mar estão envolto em luxuosa cabaia de seda, com um grande colar
já alegres e bonitos com o sol da primavera, aportaram as de oiro ao pescoço, e uma adaga na cinta, de aço e oiro
naus lusitanas a Melinde ... bem lavrados.
São mouros também os habitantes de Melinde, mas Nos pés, sapatos de veludo, bordados e cobertos, como
não falsos e cruéis, como os de Mombaça e de Quiloa. as próprias vestes, dessas pérolas pequeninas que se cha-
O contentamento deles, ao ver a frota, manifestou-se mam aljôfar ...
imediatamente. E o seu Rei quer e pede que os seus visitan- Um guarda-sol imenso, também de seda e com haste
tes venham a terra. doirada, protege o Rei dos raios do Sol.
Oferece-lhes tudo quanto possui. Envia-lhes para bordo No seu batel toca uma bela música à proa, alegremente.
carneiros, galinhas e frutas, manjares preciosos e boas be- E para o receber o grande Vasco da Gama - todo vesti-
bidas. do de seda vermelha, com botões de oiro nas mangas, com
Vasco da Gama não quer ser vencido em generosidade as calças e o gibão riquíssimo recamados de oiro, espada
- em troca dá-lhe sedas ricas e corais finos, e manda a ter- de oiro, e pluma no gorro - parece outro Rei.
ra um oficial encarregado de dizer quem são os Portugue- Tocam as trombetas; estoiram as bombardas, enchendo
ses, o que pretendem, quais as suas intenções pacificas, e o tudo de fumo; sobem ao ar vivas e aclamações festivas.
seu poder e o seu valor. Vasco da Gama acolhe no seu batel, abraçando-o, o Rei
Tudo isto o oficial da frota explica ao Rei de Melinde. E amigo.
mais lhe diz que Vasco da Gama não sairá da sua nau - não Este queria visitar a frota, e conhecer todas as coisas
porque desconfie ou receie dos Melindanos, mas porque é que os Portugueses traziam, e que ele nunca tinha visto.
O REJ DE MELINDE ACOLHE OS PORTUGUESES

Sobretudo a artilharia o espantava.


Vasco da Gama, certo de que essa curiosidade não ocul-
tava nenhum propósito malévolo, tudo mostrou, tudo ex-
plicou sem receios.
Mas o maior desejo do Rei era saber principalmente
donde vinham os Portugueses, a que país pertenciam, o
que tinha feito o seu povo, e que religião seguiam.
Certamente - afirmava o Rei - não lhe eram ignorados
IV
o nosso nome ilustre e os nossos heroicos feitos na Europa
e na África.
Mas, por isso mesmo, vendo os Lusitanos pela primeira
vez, maior se tornava a ansiedade de conhecer enfim a sua
glória imensa, de que só possuía noticia vaga e incerta...
Vasco da Gama, ancorado o batel em que os dois ti-
nham visitado a frota, de pé diante do Rei e levantando
AMAIS LINDA
a cabeça altiva, respondeu que só poderia satisfazer essa
curiosidade contando a grande e famosa história que é a
HISTÓRIA DO MUNDO
História de Portugal - a história dos nossos feitos, das nos-
sas conquistas, das nossas grandezas e atos sublimes.
Destarte mostraria àquele Rei potente que os Portugue-
ses eram de uma raça bem merecedora de hospitalidade e
do carinho, que ele espontaneamente dera aos navegado-
res e marinheiros de Portugal.
O Rei estava cheio de curiosidade. Sentou-se em cadeira
doirada, junto dos seus, e preparou-se para escutar a mag-
nífica narração.
Orgulhoso por evocar as glórias da sua grei, Vasco da
Gama começou então a falar serenamente:
«Obedeço, ó Rei, ao teu desejo ... »
« D ir-te-ei primeiro», começou Vasco da Gama, «que o
meu País, o Reino Lusitano, está situado quase no
cume da cabeça da Europa.
«Ali, a Terra acaba e o Mar começa.
«Ali, o Sol repousa no Oceano.
«flustre desde logo foi a minha Pátria ditosa e bem-amada!
Nela nasceu há muito tempo Viriato, pastor dos Montes
Hermínios, vencedor dos Romanos, quando estes quiseram
conquistar a terra que depois foi Portugal.
«Exemplo de coragem e lealdade, Viriato ensinou para
sempre aos seus descendentes e continuadores a mesma
lealdade e coragem.
«Mais tarde, um principe estrangeiro, de nome Henrique,
que vinha de combater os Infiéis e defendera a Fé de Cristo
na cidade de Jerusalém - então dominada pelos Turcos - ,
parou em Espanha e casou com Teresa, filha de um Rei de
Castela. Governava esse Rei parte da Península Ibérica, e
deu em dote à filha a formosa região onde alvoreceu a nos-
sa independência.
«Morreu o príncipe - e sua mulher casou com outro fidalgo.
A MAIS LI NDA HJSTÓRlA DO MUNDO OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

«Ambos governavam então o condado de Portugal - «Quando Egas Moniz volta, Afonso Henriques batalhava
que só condado era nesse momento a terra que depois foi outra vez contra cinco reis mouros, no Campo de Ourique.
reino. «Um jovem rei contra cinco reis experientes, um exército
«Erro muito grave, o desse casamento. pequeno contra cinco exércitos numerosos!
«Por direito de herança, o condado pertencia ao filho de «Na manhã do combate, mal rompia o Sol, Afonso Hen-
Henrique e de Teresa - a Afonso Henriques - , e a mãe e o riques e os seus soldados tiveram uma visão que os des-
padrasto não lho queriam dar. lumbrou - Cristo apareceu-lhes, incitando-os á luta ...
«Afonso Henriques, indignado, revoltou~se então contra «Cheios de entusiasmo, os nossos atiram-se contra os
os dois. Mouros, gritando pela primeira vez ao rodearem Afonso
«Acodem os Castelhanos a ajudar os seus amigos. Henriques no ardor da refrega: "Real, Real, pelo Rei de Por-
«Cercam Afonso Henriques em Guimarães. tugal."
«E ali teria ele morrido, se o seu aio Egas Moniz não «Desbarataram os cinco reis mouros e os seus regimen-
prometesse ao Rei de Castela obrigar o pupilo à obediência tos com formidável coragem.
completa. «Alcançada a vitória, Afonso Henriques fica no campo
«Promete Egas Moniz a submissão, promete! Mas não de batalha três dias. No escudo da sua bandeira manda
a promete Afonso Henriques, forte guerreiro, cioso da sua pintar cinco escudos azuis, em sinal dos cinco reis venci-
liberdade e da liberdade do povo que o acompanhava. dos; e nos cinco escudos, para memória da visão que tivera
«Auxiliado por todos os seus, luta desesperadamente, de Cristo, põe trinta dinheiros, preço por que Judas ven-
porfia, teima e vence. deu Jesus - cinco em cada um, contando duas vezes o do
«0 Reino de Portugal, a Pátria Portuguesa, começava meio ...
assim a impor-se ao respeito e à admiração de todos. «Quem, depois de tão grande triunfo, se atreveria a negar
«Porém Egas Moniz, flor dos cavaleiros, que tinha a independência, o direito à vida, de Portugal?
comprometido a sua palavra de honra em como Afonso «Afonso Henriques toma definitivamente o título de rei
Henriques não se revoltaria, vai levar em penhor a vida, e não descansa mais em tomar maior o seu reino. Leiria,
e a vida de sua mulher e dos seus filhos , ao Soberano de Abrantes, Santarém, Mafra, Sintra, Lisboa - cidade funda-
Castela. da por Ulisses, fabuloso navegador grego - terras que es-
«Entrega-se ao castigo de uma culpa que não tinha pra- tavam ainda em poder dos Árabes, foram conquistadas à
ticado - português de altas virtudes, de lealdade sem par, força de bravura e audácia.
um dos primeiros heróis que logo dignifica e engrandece a «Cinco dias resistiu Lisboa ao nosso Rei.
alma do nascente Portugal. «Mas quem poderia resistir ao impeto dos nossos sol-
«Sublime ação, a sua, que até ao Rei de Castela comove, dados?
abrandando-lhe a cólera e levando-o a deixar partir, livres e «Caiu enfim a cidade em poder de Afonso! E logo a seguir,
tranquilos, Egas Moniz e sua familia. conquista ele a Estremadura toda, com Óbidos, Alenquer e
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Torres Vedras. Depois o Alentejo, com Elvas, Moura, Serpa «Miralmumini, o grande chefe, fica morto no campo ...
e Alcácer do Sal, Palmela, Sesimbra e Badajoz - cujo rei «Foi esta a última vitória de D. Afonso Henriques. Morreu
era terrivel - , e que já depois de conquistado, foi lealmente pouco depois.
entregue pelos nossos aos Reis de Leão, visto que estava no ((Choraram-no os homens, as mulheres, a gente toda de
território dos Leoneses. Portugal. E até a terra da Pátria pareceu também chorar por
«Mas as conquistas e vitórias de Afonso iam continuando. ele, na voz lamentosa dos rios, nos ecos dos altos promon-
«Quiseram os Mouros cercá-lo e prendê-lo, quando ele tórios, e no fluir e refluir das searas ao vento ... E a sua fama
descansava em Santarém. Santarém era sempre terra mui- correu mundo, tão altas proezas praticara o primeiro Rei
to ambicionada pelos inimigos, tão boa situação tinha e dos Portugueses...
tantas riquezas possuía. (<Outros reis fortes lhe sucedem, cobrindo-se de glória
«Mas continuou em poder dos Portugueses ... na conquista da terra lusitana aos Mouros.
«Afonso Henriques volta para Lisboa, e, velho já e enfim «Até que chega o reinado de D. Dinis, que - liberto Por-
cansado, manda seu filho Sancho prosseguir na luta contra tugal inteiro do jugo árabe - pôde mandar edificar cidades
os Mouros, e conquistar-lhes terras para engrandecer Por- e castelos, fundar escolas célebres, como a Universidade de
tugal. Coimbra, cultivar as Letras, as Artes e as Ciências na sua
«Muito combateu Sancho. E o principal rei que venceu corte, semear a terra, plantar pinhais, e ensinar aos nossos
foi o Imperador Miralmumini, que tinha treze reis às suas o valor e a vantagem do saber.
ordens, fora soldados incontáveis e muitíssimas armas. «Foi seu filho, Afonso IV, um Rei valente entre os mais
«Miralmumini, sabendo D. Sancho em Santarém, tinha valentes. Estava-lhe reservado o destino de, como os seus
decidido conseguir desta vez o que os seus predecessores antepassados, se defrontar ainda com os Mouros e vencê-los
não tinham conseguido contra Afonso Henriques. outra vez ...
«Põe cerco à cidade, cerco apertado e severo, que D. Sancho «É que estes, novamente temerários, invadiram Castela.
não pôde romper ... «Era o Rei de Castela casado com a Princesa Maria, filha
«Resiste, no entanto, dentro dos muros de Santarém lon- queridíssima de D. Afonso IV.
gos e longos dias, e repele o inimigo a cada instante. «Quando viu o marido em perigo de perder os seus
«0 pai, que descansava nesse momento em Coimbra, domínios - muitos e atrevidos eram os Mouros que ten-
sabe do ataque dos Mouros - e que entre eles está o famo- tavam roubar-lhos - procura o Pai, chorosa, e pede-lhe
so e terrível Miralmumini. auxílio.
«Parte logo a socorrer o filho ... «Não eram os Portugueses grandes amigos de Castela, já
«Os Portugueses de Santarém, e os outros que vinham se sabe. Mas eram muito mais inimigos dos Mouros ...
de Coimbra, caem todos ao mesmo tempo sobre os Mouros «Juntaram-se, pois, com os Castelhanos. E de manhã até
e vencem-nos de vez. à noite, aos gritos de Santiago! Santiago! - Santiago era o
«Fogem os Mouros em tropel. protetor dos Cristãos - tantos, tantos infiéis perseguem e
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matam, que ao fim do dia nenhum mouro vivo se avistava mãe, tudo perderiam. Roga a D. Afonso que antes a exile
mais ali. para um deserto, mesmo entre feras bravas, mas que não
«Ficou célebre esta batalha, que se deu no Campo do roube o seu amor às criancinhas que traz ao colo, inocen-
Salado. tes de todo o mal e de toda a culpa...
«Nunca mais os Portugueses precisaram de combater «Ainda se comove o Rei, mas não se comovem os con-
os Mouros em terras suas ou de Espanha - e a Glória de selheiros.
o. Afonso IV, como a de Afonso Henriques, ficou eterna na «De mais a mais, ela era castelhana, e o povo não gosta-
lembrança dos Portugueses. va das mulheres vindas do pais, cujo povo tinha sido e era
«Mas, ai de nós! seu inimigo. Uma rainha castelhana era coisa que não que-
«Um caso triste aconteceu então, um caso de infelicida- riam os Portugueses; mas, se tivessem visto Inês chorando
de e crueldade, mas que mostra quanto é sincero e terno, e abraçada aos filhos, decerto lhe teriam perdoado...
sendo forte e corajoso, o coração dos Portugueses ... «Os ministros é que não perdoavam... Arrancam das
«Tinha D. Afonso IV um filho, D. Pedro, rapaz alegre e espadas de aço fino, e trespassam o seio da formosa Inês.
destemido, que gostava muito de uma dama da Rainha, «Mas, assim que ela morreu, chorou-a todo o povo, e até
chamada D. Inês de Castro. a choraram os seus mais cruéis inimigos, tão nova e bonita
«Em Coimbra, numa quinta a que mais tarde se deu o era a apaixonada de D. Pedro.
nome de Quinta das Lágrimas - pelos trágicos aconteci- «As águas do Mondego ficaram a correr melancólicas -
mentos que lá se deram - vivia em sossego a linda D. Inês. e uma fonte nasceu no sítio onde ela costumava encontrar-
«Ora o Príncipe não podia casar com uma senhora qual- -se com o seu amado Pedro, uma fonte plangente e cristali-
quer, mas só com uma princesa de sangue real. Assim o na que se ficou chamando "Fonte dos Amores".
exigiam nesse tempo os usos e normas da corte. Se Pedro «D. Pedro não esqueceu nunca a sua querida Inês, que
não os cumprisse, não o deixariam talvez ser rei... ainda a morrer gritava por ele.
«Por isso, muito se afligia D. Afonso, vendo o filho tão «Assim que subiu ao trono, coroou-a rainha, como se
preso dos encantos de Inês, e não querendo casar-se com viva fosse, entre festejos e pompas solenes. E castigou com
nenhuma Princesa verdadeira. severidade os ministros responsáveis da sua morte.
«Aconselha-se o Rei com os seus ministros - e resolve- «Mas nem só a eles castigou. Enquanto reinou nunca
ram tirar a vida à pobre D. Inês, cujo único pecado e crime perdoou nenhum crime, e não consentiu jamais que ne-
era amar o seu príncipe. nhum homem mau vivesse tranquilo e impune.
«Vão buscá-la a Coimbra e trazem-na arrastada à pre- «Foi justo e, por vezes, cruel. Mas, austero e bravo, sou-
sença do Rei. be defender o seu reino das cobiças alheias.
«Apertando muito ao peito os filhinhos que tinha de «0 filho que deixou, D. Fernando, bem diferente nasceu ...
D. Pedro, Inês chora, geme, pede e suplica piedade, não para «Por seu descuido, esteve o reino quase a ser conquis-
ela, mas para os filhos, que, ficando órfãos, que perdendo a tado pelos Castelhanos, que a todo o momento entravam
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pelo nosso País dentro, assolando-o, assassinando gente, a combater, estimulou os ânimos fracos, entusiasmou os
perseguindo e roubando os habitantes ... valentes, envergonhou os cobardes.
«Mole, sem energia, D. Fernando não cumpria os seus «Alguns resistiam ainda, mal habituados a lutar.
deveres de rei e só pensava na mulher, D. Leonor Teles, que «Mas Nun'Álvares vai falar-lhes e persuadi-los.
era uma castelhana traidora, desejosa de entregar a nossa «A mão na espada, o olhar firme, clama a esses habitan-
Pátria ao domínio dos seus patrícios. tes compatriotas:
«Rei fraco, D. Fernando não sabia resistir aos embustes «Como pode haver gente portuguesa que recuse lutar,
da formosa Leonor Teles. E um fraco rei faz fraca a forte gen- gente deste país que sempre foi o maior na guerra? Não
te ... Fortes eram decerto os Portugueses, mas tão mal man- será dever nosso defender a Pátria?
dados e governados, que pareciam fracos também, afinal ... «Negará um português a sua fé , o seu amor, o seu es-
«Portugal andava ao acaso, sem tino, como um barco forço e a sua inteligência - deixando o Reino sujeitar-se a
levado no furor de uma tempestade. outrem?
«São homens para vencer tempestades, os Lusitanos, «Não sois vós, meus amigos, descendentes daquela raça
embora às vezes os julguem descuidados ou adormecidos. que venceu já os Castelhanos à sombra da bandeira do he-
Mais uma vez mostraram que o não estavam... roico Afonso Henriques?
«Morto D. Fernando, reagem os nossos contra os perigos «E no tempo de D. Dinis, a vossa coragem não era a
que os cercam. mesma?
«Elegem rei o Mestre de Avis, D. João 1, e matam os fidal- «Se D. Fernando foi quem vos tomou tão fracos tornai-
'
gos que os traíam. -vos fortes agora com o vosso Rei novo!
«D. Leonor Teles, que tinha uma filha casada com o Rei «Tão grande ele é, que se o igualardes no valor, desbara-
de Castela, incita o genro a invadir Portugal. Dizia ela que tareis tantos exércitos quantos quiserdes ...
a sua filha era a herdeira do reino! Queria impô-la à força «E, se estas palavras vos não movem, se o medo vos
como rainha, e entregar a nossa Pátria aos Castelhanos! prende as mãos cobardes, eu sozinho resistirei ao jugo
«Os Portugueses serem governados por estrangeiros... alheio ...
Podia lá ser!... «Eu só, com os meus vassalos e com esta espada, defen-
«Juntam-se todos em tomo do Mestre de Avis e preparam- derei do inimigo a terra que nunca ninguém subjugou. E
-se para combater os inimigos, que, de Castela, da Andalu- não só destes inimigos de hoje, mas de todos aqueles que
zia, de Toledo, da Galiza, da Biscaia, das Astúrias - de toda vierem ainda, contrários à nossa Pátria e ao nosso Rei...
a Espanha, enfim - avançavam sobre a nossa terra. Era o «As palavras de Nun'Álvares, tão cheias de patriotismo e
maior exército que jamais os Castelhanos tinham formado! ardor, fazem chorar de vergonha os fidalgos medrosos. Não
«0 perigo era tremendo. Mas D. João, a quem a força querendo nenhum deles passar por cobarde, e compreen-
cresce com a coragem, ajudado pelo grande Nun'Álvares dendo então os perigos que ameaçavam Portugal, segui-
Pereira, organizou logo milícias aguerridas, chamou o povo ram todos Nun'Álvares.
A MAIS LINDA IDSTÓRIA DO MUNDO OS LUSiADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

«0 povo, esse, sempre pronto a lutar pela Pátria, já pre- «Perseguem os Portugueses os últimos fugitivos, cujas
parava e limpava as armas para a batalha. l>li.1sfémias e queixas ficam pairando no ar ...
«D. João reúne os seus soldados em Abrantes e de lá sai, «Nun'Álvares ainda chegou a terra de Espanha, corren-
com Nun'Álvares e Antão Vaz de Almada. Em Aljubarrota do atrás dos adversários. E ai mesmo os desbaratou, glorio-
encontram o exército comandado pelo Rei de Castela. 1-mmente.
«Soa a trombeta castelhana, dando o sinal de batalha. «Alguns anos durou ainda a luta; mas por fim os Caste-
Som horrendo que parece correr do Norte ao Sul de Portu- 1hanos desistiram de nos incomodar. A paz estabelece-se
gal, de vale em vale, de serra em serra. então, serena e próspera...
«As mães, aflitas, apertam os filhinhos ao peito, e rostos «D. João I, livre dos inimigos próximos, lança seus na-
há que mudam de cor. vios à conquista das terras existentes para além do Oceano.
«Trava-se a luta entre Espanhóis e Portugueses, com Passa para a África do Norte os seus soldados, conquistan-
fúria imensa de parte a parte. do a rica e bem defendida Ceuta, e expulsando de lá os
«Tiros e setas voam pelo ar. Mouros, que estavam sempre a ameaçar a Península com
«Treme a terra debaixo das patas dos cavalos. novas invasões.
«Numerosíssimos, os inimigos crescem sobre a gente de «Não viveu D. João I muito tempo depois desta última
Nun'Álvares e entre eles está - coisa feia - o próprio ir- faça nha. Mas seus filhos, grandes como ele, continuaram a
mão do futuro Condestável! engrandecer e a honrar Portugal:
«Mas D. João, gritando aos seus soldados que defendes- «D. Duarte, que foi Rei; D. Fernando, o Infante Santo, que
sem a sua terra ameaçada, pois a liberdade da Pátria de- os Mouros prenderam e queriam depois soltar se Ceuta lhes
pendia da coragem dos seus guerreiros; D. João, vendo em fosse restituída, coisa que ele mesmo não consentiu, mor-
risco os homens de Nun'Álvares - precipita-se como leoa rendo na prisão; D. Pedro, o que foi correr as sete partidas
ferida a quem roubam os leõezinhos, em auxilio da hoste do Mundo; e D. Henrique, o fundador da Escola Náutica
já cercada ... de Sagres, pai e instigador de todas as nossas navegações.
«Todos os seus soldados o acompanham; e sem medo «0 Mar, as viagens e as regiões distantes eram o sonho
de perder a vida, atiram-se para o meio dos inimigos. dos Portugueses. Dia a dia descobrem e conquistam novas
«Luta o Rei castelhano, e os seus milhares de valentes, terras, dia a dia desvendam novos mistérios.
desesperados e raivosos. «A África, sobretudo, os fascinava nesse momento. O fi-
«Mas, apesar de serem muitos mais do que os nossos, lho de D. Duarte, Afonso V, para lá foi combater os Mouros
não resistem à coragem lusitana. e conquistar importantissimas cidades, como a fortificada
«Cai no pó a bandeira de Castela, morto o guerreiro que Alcácer, Tânger populosa, e Arzila, que resistiu duramente ...
a levantava no ar. «Mas quem primeiro pensou em buscar as terras do
«São vencidos os Castelhanos. Fogem, recuam, somem- Oriente que eu busco hoje - afirmou Vasco da Gama - foi
-se dos campos de Aljubarrota. D. João II, o Príncipe Perfeito, de fama sempre eterna.
A MAIS LINDA HISTÓRlA DO MUNDO OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

«Primeiro, mandou mensageiros procurá-las por terra, grandes tributos, embora não estejamos habituados a que
correndo o Egito, a Etiópia, o Mar Vermelho, a Arábia e o nos subjuguem, e nunca mesmo tivéssemos sido subjuga-
Estreito Pérsico. dos ...
«Viagem muito demorada e longa, essa viagem por terra. «Eu sou o ilustre Rio Ganges, que nasce na China. Este,
Chegaram os mensageiros à índia, é certo, mas levaram que vês ao meu lado, é o Rio Indo, que nasce nesta mesma
meses e meses. serra.
«Resolveu depois o Rei procurar outro caminho, não por «Para nos conquistares, a guerra será dura.
terra, mas pelo mar. À sua ordem estudaram, trabalharam «Mas insistindo tu, acabarás por vencer e dominar, com
muito tempo os sábios e os nautas, no desejo de satisfazer vitórias nunca vistas, toda a gente e tudo quanto estás ven-
a vontade de D. João II. Mas, quando ia enfim partir uma do agora ...
expedição, e os navios se aparelhavam para a viagem, mo~ «Acabou o sonho logo depois de ouvidas estas palavras.
re o Príncipe Perfeito . D. Manuel acordou, espantado e agitado ...
«E foi D. Manuel, seu sucessor, que prosseguiu a empre- «Assim que a manhã rompeu, chamou os seus conse-
sa difícil, gostosa obrigação que os seus antepassados lhe lheiros e contou-lhes o que sonhara. Admiraram-se todos
tinham legado e que ele, bom português como era, ambi- com a visão do Rei; mas, crentes na origem sobrenatural do
cionava cumprir... sonho, concordaram em que é preciso obedecer ao apelo
«Não era outro o seu pensamento constante. dos grandes rios da índia, às palavras do velho Ganges, e
«Mesmo dormindo o recordava ... determinam mandar preparar navios para a viagem difícil.
«E uma noite, estando já deitado na sua cama doirada, «Vão-me chamar, a mim, Vasco da Gama, para coman-
revolvia essa ideia na sua mente, quando de súbito ado~ dar a frota destinada a esse heroico empreendimento.
meceu. «Obedeci ao meu Rei, que é meu dever obedece~lhe,
«Em sonhos, apareceu-lhe uma região estranha, perto embora soubesse a que sofrimentos me arriscava. Mas
dos montes onde nasce a Aurora, com gente e plantas des- fama e glória só assim se alcançam. E, por minha Pátria e
conhecidas, e animais ferozes. meu soberano, mais perigos e tormentos sofreria ...
«De um monte fluíam duas fontes claras e altas, cujas «Oferece-se a acompanha~me meu querido irmão Paulo
águas, abrindo-se, deixaram sair lá de dentro dois homens da Gama, que a nossa grande amizade obriga a não me
muito velhos, escorrendo água pelos cabelos, dois homens deixar sozinho. E a ele se junta Nicolau Coelho, marinheiro
de rosto baço e escuro, de barba farta e comprida. experiente e sabedor.
«Coroavam-lhes a fronte folhas e ervas nunca vistas. «Eis no porto de Lisboa, onde o Tejo mistura as suas
«0 primeiro, que tem um aspeto de cansaço, e que era águas com a água salgada do Mar, as naus prontas a sair.
o de fisionomia mais grave, bradou para o Rei: «Ninguém receia a viagem aventurosa. Ninguém vacila
«Ó Rei, que dominas já tão grande parte do Mundo, em segui~me a toda a parte.
avisamos-te de que é tempo de mandares receber de nós «Na praia, guerreiros e marujas passeiam os seus fatos novos.
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«Os ventos sossegados fazem ondular os estandartes «Que pretendem aqueles - exclamava o velho apon-
nas fortes e belas naus que prometem tornar-se um dia tando para nós - senão correr atrás de vaidades e vitórias
- como a lendária Argos onde os Gregos, em tempos re- impossíveis?
motos, foram conquistar o Velo de Oiro - estrelas brilhan- «Que desastres sofrerá Portugal por causa dessa loucura
tes no céu da glória ... que é abandonar a terra dos nossos avós, e as nossas con-
«Estão as naus aparelhadas e nós aparelhados para to- quistas da África, onde tantas vitórias poderíamos alcan-
das as traições e lutas do Mar, a que os navegadores estão çar ainda, indo tão longe e tão desvairadamente buscar a
sujeitos. Fama e a Riqueza?
«A Deus pedimos, antes de partir, a proteção e ajuda, «Temos o inimigo à porta - gritava o ancião - e tenta-
favor celeste que nos guiasse. -nos desperdiçar assim a força de que precisamos tanto?
«E enfim, da Capela de Santa Maria de Belém saímos «Maldito, acrescentou, maldito aquele que primeiro pôs
para bordo. uma vela num barco e deu aos homens o anseio de nave-
«A gente da cidade veio-nos acompanhar, em grande gar! Melhor fora não ter desejos tão subidos, nem imitar os
multidão, chorando e gritando. Soluçavam as mulheres. ambiciosos, que não sabem contentar-se com a sorte que
Suspiravam os homens que ficavam. Todos receavam a nos- Deus lhes deu.»
sa perda nos desconhecidos oceanos que íamos navegar... «Assim vociferava o ancião venerável, condenando a
«Mães, esposas, irmãs, imaginavam já não nos tomar a viagem que vínhamos tentar, saudosos da terra onde o nos-
ver. Uma, chama pelo filho. Outra, pelo esposo. Velhos e so esforço e o nosso trabalho ainda eram certamente pre-
meninos banhavam a branca areia com suas lágrimas. cisos ...
«Tão grandes saudades sentiam todos - os que ficavam «Mas esquecia o velho do Restelo que somos um povo
e os que partiam - que eu decidi que embarcássemos sem de marinheiros. E não queria também lembrar-se de que
despedidas, sem adeus. o bom nome e a honra de Portugal exigia que levássemos
«E assim fizemos, para não tomar triste, logo de come- ao fim a empresa começada... Continuou a gritar na praia,
ço, tão audaciosa e gloriosa jornada... mas não mais o ouvíamos.
«Nenhum de nós então se despediu, ninguém sequer «As naus navegavam já, abrindo as asas ao vento sere-
falou, para que não se adivinhasse a nossa comoção e a no. E - como é costume entre as pessoas que se arrojam às
nossa mágoa. incertas águas do Mar - uns aos outros, dentro dos barcos,
«Mas um velho, muito velho, que na praia chamada do dizíamos, saudando-nos mutuamente: "Boa Viagem!"»
Restelo ficara sozinho, homem de aspeto grave e veneran-
do, seguindo-nos com os olhos, pensativo, meneou três ve-
zes a cabeça.
«E levantando a voz, tão alto que a ouvimos já embarca-
dos, bradou, increpando-nos veementemente:
V

O GIGANTE
ADAMASTOR
«Estávamos então em julho, quando o Sol, na sua man-
cha sobre o Zodíaco, entra no signo do Leão.
«A armada singrava pelo Oceano fora, e lá iam desapa-
recendo o Tejo querido, e a fresca Serra de Sintra, onde nos
ficavam os olhos e o coração cheio de saudades ... Por fim
já não víamos senão o Céu e o Mar.
«Fomos sulcando sempre o Atlântico, o mar que os Portu-
gueses desvendaram à busca das novas ilhas e dos novos pa-
íses, que o Infante D. Henrique mandara descobrir e povoar.
«Montes da Mauritânia, terra de Anteu ou Marrocos; a
linda e grande Ilha da Madeira, assim chamada pelo muito
arvoredo que tem; a estéril costa do deserto do Sara, onde
nem aves, nem ervas, nem frutos existem - surgiam-nos à
vista. Deixámos depois as últimas paragens do nosso clima
temperado, entrando naquelas regiões cujos habitantes o
Sol queima e torna negros ...
«As ilhas das Canárias e de Cabo Verde foram aparecen-
do aos nossos olhos.
«Neste último arquipélago encontrámos um bom por-
to em Santiago, ilha que tem o nome do Santo que foi
O GIGANTE ADAMASTOR OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

sempre temor dos Mouros. Ali descansámos e tomámos «Começou a engrossar chupando a água, ondeando
mantimentos. como as ondas, enquanto uma densa nuvem surgia por
«Outras regiões ficaram para trás, no mesmo caminho cima dele.
do Sul: a Ilha de S. Tomé, que já era nossa, e o Reino do «Inchava a grande coluna a cada instante, alargava-se
Congo, pelos Portugueses convertidos à Fé de Cristo. Ali cada vez mais, e alargava com ela a nuvem que suportava.
corre o Zaire, rio claro e longo, que também os nossos des- «Por fim, quando ficou bem cheia, a rebentar, o pé que
cobriram. tinha no mar recolheu-se, separou-se, e a nuvem caiu em
«Atravessámos o Equador. aguaceiro sobre as vagas, mas já sem o sabor a sal...
«Vimos despontar a constelação do Cruzeiro do Sul, que «Esta, que se chama "tromba", foi uma das grandes ma-
ninguém vira antes dos nossos primeiros navegadores te- ravilhas que eu vi, entre tantas e tantas outras.
rem corrido tão longas rotas do Atlântico... «Mas as maravilhas tantas foram, que os antigos sábios,
«E nesses climas tropicais, onde a luz do Sol é mais in- se as conhecessem, grandes livros teriam escrito para as
tensa e viva, sofremos calmarias e tempestades, e os venda- estudar e descrever.
vais fortissimos que Éolo - o Deus do Vento - solta sobre «Mas nós não tínhamos sequer tempo de pensar nelas!
o Mar. Dissemos então adeus à Ursa Maior e à Ursa Menor, Seguíamos sempre, vendo o Mar, as correntes e o vento.
constelações que brilham no hemisfério donde vínhamos, «Quatro meses tinham passado desde a partida de Lis-
e que desapareceram então do Céu, mergulhando no Mar ... boa, quando, da gávea altíssima, um marinheiro nos bra-
«Contar agora os perigos do Oceano, as súbitas e terri- da: Terra! Terra!
veis trovoadas, os relâmpagos que parecem pegar fogo ao «Uma bela baía nos apareceu dos lados do Oriente.
Céu, as negras chuvadas, as noites tenebrosas, os bramidos «Desembarcámos logo.
dos ventos - não é possível, ó Rei! «Com o astrolábio tomámos a altura, e reconhecemos
«Vi casos extraordinários, em que só acreditam os mais estar no Sul da África.
rudes e experientes marinheiros, habituados a difíceis na- «Vimos depois um preto, de estranhas feições, que ia
vegações, mas que parecem falsos e mentirosos, a quem buscar favos de mel a uma montanha próxima. Foi logo
nunca andou no mar alto ... cercado pelos nossos, não para lhe fazerem mal, mas para
«Vi o Santelmo, lume vivo que voa sobre as ondas, nas que desse informações sobre aquela terra.
horas de tormenta escura e triste. «Mostraram-lhe tecidos de oiro, prata fina e especiarias.
«Vi as nuvens s01ver, como por um alto cano, as fundas «Quedou-se a olhar pasmado, sem compreender nada,
águas do abismo - espetáculo que mete medo. sem dizer palavra.
«Primeiro levantou-se no ar um vaporzinho, um fumo «Eu mesmo ofereci-lhe então contas de vidro, guizos de
leve, que se enrolava à volta de si mesmo, e se erguia até ao oiro, um belo barrete vermelho ... Eram os presentes que
Céu, mas tão delgado, que era difícil distingui-lo. lhe agradavam. Alegrou-se então o preto, que era cobiçoso
«Parecia feito só de nuvens. daquelas coisas.
O GTGANTE ADAMASTOR OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

«Conduziu-nos à povoação que havia perto. assustadora. Todas as tempestades pareciam vir dentro
«Fomos tão bem recebidos naquele dia e no dia seguin- dela, para de lá saírem e nos assaltarem.
te pelos pretos com quem fizemos várias trocas, que o nos- «Erguendo a voz ao Céu, supliquei piedade a Deus.
so companheiro Fernão Veloso se atreveu, estando eu já «Mal acabava de rezar - e logo uma figura surgiu no
embarcado, a ir ver o interior da terra. ar, robusta, fortíssima, gigantesca, de rosto pálido e zan-
«Avança sem medo, descuidado, mas não tardou muito gado, de barba suja, de olhos encovados, e numa atitude
que voltasse mais apressado do que partira. Receei, ao vê-lo feroz.
correr, a presença de qualquer perigo ainda desconhecido. «Os cabelos eram crespos e cheios de terra. A boca era
E logo mandei gente num batel para lhe prestar socorro. negra. Os dentes amarelos.
«Mas nessa altura, os negros avançam para ele, e furio- «Tão grandes eram os seus membros, que julguei ver
samente o perseguem. um segundo Colosso de Rodes, esse colosso que era uma
«Desço à terra, aflito, não vão os pretos matar Veloso. das sete maravilhas do Mundo, de tal maneira alto que, diz-
Mas uma espessa nuvem de setas e pedradas caiu sobre -se, por baixo das suas pernas passavam à vontade enor-
nós. mes navios! ...
«Tivemos de lutar contra este injusto e malévolo assalto. «Num tom de voz grossa, como a voz do mar profundo,
Mas conseguimos enfim salvar Veloso, que nos disse então começou a falar-nos.
que, se os negros o atacavam, era só na ideia de nos forçar «Arrepiámo-nos todos , só de ouvir e de ver tão mons-
a ir defendê-lo, e poderem matar-nos todos juntos. truosa criatura.
«E Veloso, sempre sorridente, dizia-nos também que «Disse então o Gigante, voltando-se para nós:
tinha corrido tão depressa, não por medo - o impostor! - - «Ó gente ousada mais do que nenhuma outra, que
mas para não deixar partir sem ele os seus leais amigos! nunca descansais de lutas e combates, já que não temeis
«Não havia tristezas na frota, como vês, grande Rei... ultrapassar os limites onde ninguém mais chegou, e nave-
«Navegámos cada vez mais por diante, vencendo sem- gar os mares que me pertencem; já que vindes devassar os
pre com boa cara os perigos incessantes que surgiam. meus segredos escondidos, que nenhum humano deveria
«Mas, cinco dias depois da aventura de Veloso, numa conhecer - ouvi agora os danos que prevejo para vós, para
noite em que sopravam ventos prósperos, estando nós de a vossa raça, que subjugará no entanto ainda todo o largo
vigia, uma nuvem imensa, que os ares escurecia, apareceu Mar e toda a imensa Terra.
de súbito sobre as nossas cabeças. «Ficai sabendo que todas as naus que fizerem esta via-
«Tão temerosa e carregada vinha que os nossos valentes gem encontrarão - castigo merecido do seu atrevimento
corações se encheram de pavor! sem par! - as maiores dificuldades nestes meus domínios.
«0 Mar bramia ao longe, como se batesse nalgum dis- E sofrerão o horror de tormentas desmedidas.
tante rochedo. Tudo infundia pavor. E nunca na nossa «Punirei de tal modo a primeira armada que vier aqui
viagem tínhamos encontrado nuvem tão espessa e tão depois da vossa frota, que os seus tripulantes mal sentirão
O GIGANTE ADAMASTOR OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

talvez o perigo de me defrontarem. Mas hão de chorar de- «E julguei certa noite vê-la e supus que vinha visitar-me
pois o dano que eu lhes fizer ... e combinar as nossas bodas.
«Hei de me vingar de quem primeiro me descobriu, do «Deslumbrado, corri como um doido para ela e comecei
vosso Bartolomeu Dias, fazendo-o naufragar aqui mesmo. a abraçá-la.
«E outras vinganças imprevistas executarei... «Mas nem sei de tristeza como conte o que me suce-
«D. Francisco de Almeida deixará aqui a sua glória e os deu ...
troféus que arrancar aos Turcos. Manuel Sepúlveda verá «Julgando abraçar quem amava, achei-me de repente
aqui morrer os filhos queridos, verá aqui sofrer mil ferimen- abraçado a um duro monte, coberto de mato bravio e es-
tos a sua mulher, que os negros cafres hão de torturar e pesso. Tétis transformara-se em rocha feia e fria!
matar. «Vendo um penedo a tocar a minha fronte, em lugar
«E tantos, tantos mais dos vossos, hão de experimentar do rosto angélico de Tétis, penedo me tomei também, de
a fúria do meu ódio pela audácia de me inquietarem, per- desespero.
turbando a solidão em que vivo e quero viver ...» «Em penedos se me fizeram os ossos, a carne em ter-
«Era tão assustador o que me dizia o monstro horrendo, ra inculta, e estes membros e esta figura que te horroriza
que eu o interrompi, perguntando-lhe quem ele era, e por- estenderam-se pelo mar fora.
que estava assim tão zangado. «Enfim, a minha grandissima estatura converteu-se nes-
«Retorcendo a boca e os olhos, e lançando um espan- te remoto Cabo.
toso brado, respondeu-me em voz pesada e amarga, como «E, para redobrar as minhas mágoas, Tétis anda-me
quem se aborrecera da pergunta feita: sempre cercando, transformada em onda.
- «Eu sou aquele oculto e grande Cabo, a quem vós ten- «E, como as ondas, que ora estão junto da praia, ora dela
des chamado Tormentório, e que ninguém, a não ser vós, fogem para o mar alto, assim faz a princesa do Oceano - ora
Portugueses, algum dia conheceu e descobriu. está perto, ora longe de mim, nunca se deixando prender,
«Sou um rude filho da Terra, e meu nome é Adamastor. nunca ficando tranquila entre os meus braços de pedra ...
«Andei na luta contra o meu Deus, contra Júpiter, e, «Assim contou a sua história o Gigante Adamastor ... E
depois, fiz-me capitão do mar e conquistei as ondas do logo em seguida a nuvem negra, que nos escondia o Céu,
Oceano. desfez-se - e o Mar bramiu ao longe, muito ao longe ...
«E então me apaixonei por Tétis, princesa do mar e filha «De novo rezei a Deus, pedindo-lhe que nos guardasse
de Neptuno. dos perigos que o Adamastor anunciara.
«Ai de mim!. .. Sou tão feio, tão horrivel, que ela nem me «Quando a manhã rompia, é que avistámos e torneá-
podia olhar! mos o Cabo em que se tinha convertido o grande gigante.
«Determinei conquistá-la à força e mandei-lhe participar «Descansámos algum tempo numa terra agradável, onde
esta minha intenção. os pretos nos receberam muito bem, dando-nos galinhas e
«Tétis fingiu aceitar o m eu pedido de casamento ... carneiros, e deixando-nos levar água doce dos seus rios.
O GIGANTE ADAMASTOR OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

«Tínhamos então corrido já a costa da África, e aportá- «Um dos nossos, Fernão Martins, que sabe falar árabe,
vamos ao ilhéu onde fundeara a frota de Bartolomeu Dias, com eles conversou.
que antes de todos os Europeus ali estivera. «Dão-nos os Mouros noticia da terra que procurávamos.
«A proa dos nossos barcos voltava-se para o Norte, de- Dão-nos enfim sinais do Oriente!
mandava de novo o Equador. «Alegrámo-nos todos, e logo fomos erguer um padrão
«Muitos dias viemos cortando o Mar, entre incertezas e da nossa passagem naquele sítio. Chamámos ao rio, para
temporais. memória da boa nova, Rio dos Bons Sinais. Lá ficou o pa-
«Uma corrente fortíssima não nos deixava subir a costa. drão, atestando a nossa presença.
Mas o vento sul empurrava as nossas velas, e conseguimos «Repousámos alguns dias limpando os cascos dos na-
navegar assim levados por ele. vios, sujos de tão longa travessia.
«No Dia dos Reis Magos, outra vez abordámos a uma «Estávamos contentes, bem-dispostos e cheios de espe-
praia hospitaleira, embora não conseguíssemos entender- rança, quando a doença nos assaltou.
-nos com nenhum dos seus habitantes, nem obter por isso «Morreram então muitos dos nossos que ali ficaram
nenhuma noticia sobre a Índia, que demandávamos. enterrados.
«Um largo rio corria nessa praia. Batizámo-lo com o «Voltou a inquietação e a tristeza. E partimos choran-
nome de Rio dos Reis. do, na saudade de tantos bons portugueses, perdidos para
«E, de novo, seguimos viagem ... sempre, sepultos na terra estranha.
«Imagina, ó Rei, a nossa inquietação - não encontran- «E, depois do maldoso acolhimento que tivemos em
do gente com que nos entendêssemos, nem sinal algum do Moçambique e em Mombaça - e que decerto já conhe-
Oriente! ces - eis-nos no teu seguro porto, junto do teu bom povo,
«Cheios de fome, exaustos da longa viagem por climas cuja brandura e afável tratamento darão saúde aos vivos, e
e mares desconhecidos, e tão cansados de esperar que já seriam até capazes de dar vida aos mortos ...»
desesperávamos ... Depois deste cumprimento ao Rei de Melinde, que tudo
«Os mantimentos apodreciam. A água de beber faltava. ouvia com atenção e interesse, Vasco da Gama acrescentou:
E te~se-iam revoltado os marinheiros, tão desgraçados se - <<Tudo te contei que me pediste, ó Rei! Dize-me tu ago-
sentiam, se o culto da lealdade, se a fiel obediência ao seu ra se julgas que outra gente no Mundo pudesse arroja~se a
comandante e o amor da Pátria longínqua não fossem ne- tal empresa e tenha visto, do que eu vi e ainda hei de ver,
les mais fortes do que o sofrimento e a fome. a oitava parte!. .. Não há aventuras sonhadas que valham as
«Mas já receávamos nunca poder chegará Índia dese- minhas, e a verdade que eu descrevi e narrei vence tudo o
jada ... que se tenha inventado a propósito de heróis imaginários
«Pela foz de um rio, que desaguava noutra praia onde e fabulosos!»
passámos, saiam e entravam batéis conduzidos por mou- Os Melindanos, embevecidos, embora não compreen-
ros. dendo as suas palavras, escutavam o capitão eloquente.
O GIGANTE ADAMASTOR

E, quando ele se calou, o Rei louvou o grande herói e os


seus companheiros pelos feitos praticados, e pela sublime
coragem que tinham mostrado em lances tão sérios e em
travessia tão arriscada ...

Voltou o Rei ao seu palácio, e o Gama ao seu navio,


VI
despedindo-se um do outro com manifestações de muita
amizade. Os Portugueses sentiam-se contentes com o elo-
gio do seu povo, feito pelo Almirante, e reconfortados com
o acolhimento dos Melindanos. E estes, por sua vez, orgu-
lhosos dos hóspedes que tinham, repetiam e comentavam
a linda História de Portugal, digna de glória eterna e da
admiração de todo o Mundo!. ..
MAGRIÇO
anças, jogos, e outras festas receberam em Melinde
D os heroicos Portugueses.
O Rei não sabia como demonstrar o contentamento que
sentia em dar hospedagem a pessoas tão ilustres.
Os banquetes sucediam-se. Magníficos banquetes
durante os quais Vasco da Gama e os seus marinheiros
saboreavam manjares desconhecidos em Portugal, aves,
frutos, carnes e peixes daquelas regiões por eles desco-
bertas.
A Índia, porém, ainda estava distante.
E por isso Vasco da Gama, apesar de tudo lhe correr
bem ali, resolveu continuar depressa a sua viagem.
Despediu-se comovidamente do Rei pagão, que o viu
partir com verdadeira saudade, e lhe deu um piloto fiel e
sabedor.
Lá se encaminhou a frota para o sonhado Oriente, onde
nasce o ardente Sol...
Breve chegaria ao termo da sua derrota, e então Portugal
inteiro teria conquistado uma nova e imortal glória!
Baco - o terrivel Baco - não dormia, porém.
MAGRIÇO OS LUSiADAS CONTADOS ÁS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

Vendo os Portugueses tão próximos da índia desejada, Tanto falou, gritou e gesticulou, que Neptuno e os ou-
mais uma vez resolve impedir-lhes a passagem por aquele tros se convenceram ou fingiram convencer-se. E para evi-
Oceano onde navegavam. tar a continuação da viagem de Vasco da Gama, chamaram
Em nada o ajudaii.a Júpiter, decerto, pois decididamente imediatamente Éolo, o Deus dos Ventos, Éolo, que tinha o
resolvera proteger os Portugueses. poder de desencadear de uma só vez - soltando-os de um
Deixá-lo! Baco não ignora manhas e habilidades ... Sem odre em que os trazia presos - o vento norte, o vento sul,
mais tardar, vai ter com Neptuno, Rei dos Mares, cuja corte o vento leste e o vento oeste.
é debaixo de água. Logo Éolo foi mandado soltar os quatro irmãos irrequie-
Vive Neptuno no mais fundo de uma profunda caverna tos, provocando dessa maneira um temporal furioso, em
submarina. que as pequenas e frágeis naus dos Lusitanos naufragariam
As areias que atapetam são de fina prata. por certo.
Altas torres de vidro transparente erguem-se dos lados Iam os nossos Portugueses, nesse momento, descansa-
da caverna, tão cristalinas, que se não sabe até se as fize- dos e bem-dispostos.
ram de diamante ... E tão descansados, tão descuidados dos possíveis peri-
As portas do palácio são de oiro, coberto de aljôfar, e gos, que o nosso conhecido Veloso, soldado engraçado e
belas esculturas as adornam. esperto, a pedido dos seus companheiros começou uma
Numa delas estão representados os quatro elementos noite a contar, para os distrair, a famosa história de Magri-
do globo: o Fogo, o Ar, a Terra e a Água, e na outra uma ço ou dos «Doze de Inglaterra». Encostado à amurada do
guerra que os Deuses antigos tiveram com os gigantes. navio falava, alegremente. E dizia:
Coisas admiráveis, que Baco - tão furioso corre! - nem - «No tempo de D. João 1, quando o Reino de Portugal já
sequer se detém a contemplar. estava sossegado e liberto dos Castelhanos, deu-se na Inglater-
Chega ao palácio de Neptuno, que já o esperava, rodea- ra uma grande questão entre doze damas e doze cavaleiros.
do de sereias e ninfas, todas espantadas que o Rei do Vinho «Tanto se envenenou essa questão, que por fim os ca-
entre assim tão depressa no palácio do Rei da Água! valeiros declararam que as damas nem o nome de damas
E Baco, logo que avista Neptuno, glita-lhe o que pretende, e mereciam.
pede-lhe que reúna um conselho de todos os Deuses marinhos. «Grande injúria, já se sabe, injúria que elas não podiam
Reúne-se o conselho, com efeito. E Baco principia logo perdoar. Mas não ficou ai o feio caso! Mais afirmaram os
a dizer mal dos Portugueses. fidalgos ingleses que se alguém quisesse defender as da-
Chama-lhes soberbos e insolentes, acusa-os de quere- mas do insulto recebido, ali estavam todos para matar com
rem devassar o Oceano só para desrespeitar e humilhar os lança e espada os audaciosos que a tal se atrevessem.
seus guardas naturais, os seus verdadeiros e velhos donos, «E a verdade é que, entre os seus compatriotas, nenhum
que há tantos anos nele viviam descuidados e felizes, sem se atreveu a aceitar o desafio, receosos da valentia, da impor-
que ninguém os fosse inquietar. tância e do nome que tinham os cavaleiros insultadores...
MAGRIÇO OS LUSiADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

«As pobres damas - coitadas! - choravam e maldi- (<Parara na Flandres, e por lá se divertia, sempre lembra-
ziam a sua triste sorte! do, no entanto, do dia do torneio ... Ou não fosse ele um leal
«Não sabendo como se poderiam vingar da ofensa rece- e honrado português!
bida, foram pedir conselho e ajuda ao Duque de Lencastre, «Mas o dia do torneio alvoreceu, e Magriço ainda não
guerreiro inglês que tinha combatido ao lado dos Portu- estava em Londres! A dama, a quem ele vinha defender,
gueses contra Castela, e cuja filha, D. Filipa, casara com veste-se de luto, certa já de que não tinha paladino.
D. João I. «Vai a corte inglesa toda para o campo do combate.
«0 Duque de Lencastre logo lhes aconselhou que cha- O Rei senta-se no seu trono, e as outras pessoas à volta
massem gente de Portugal para as desagravar, tanta ousa- dele.
dia, boa educação e coragem tinha conhecido e apreciado «Os cavalos dos valentes fidalgos espumam já.
nos Portugueses. «O Sol rutila nas lanças. A ansiedade de todos é enorme.
«E indicou-lhes imediatamente o nome de doze bravos, (<Mas do lado dos Ingleses há doze cavaleiros e do nosso
seus amigos de Portugal, capazes de combater e morrer por lado - só onze!...
elas. «Onde estaria, perguntam todos, o descuidado Magriço?
«Mandaram as senhoras inglesas um emissário a Lis- «De repente, grande alvoroço se produz, e toda a assis-
boa, trazendo cartas de cada uma das damas para cada um tência olha para a entrada do campo.
dos nossos valentes portugueses. Chegaram as cartas, com «É Magriço que chega, montado no seu cavalo, vestido
a noticia espantosa. E tanta indignação causou entre nós a e pronto para a luta.
conduta dos doze ingleses, que até o Rei D. João I desejava (<Cumprimenta o Rei, fala às damas, abraça os compa-
ir castigá-los... nheiros que rejubilam, e toma lugar ao lado deles.
((Mas o Rei é o Rei - tem de governar o seu povo, e não «A sua dama logo ali mesmo se enfeita com luxuosos
sai da Pátria quando lhe apetece ... arminhos, que são adornos próprios de festa.
((Arma-se um navio no Porto e embarcam nele os fidal- «Soa o primeiro sinal de combate, e os cavaleiros espo-
gos lusitanos. reiam os cavalos, largam as rédeas, abaixam as lanças.
«Mas só onze embarcaram. O mais valente, chamado «Faisca a terra sob as patas dos animais, que mordem
Magriço, decidiu ir por terra, prometendo no entanto apa- os freios de oiro. O chão parece tremer todo, sacudido.
recer no momento próprio. Queria dar o seu passeio, antes «0 coração de quantos ali se encontram palpita, medro-
de chegar a Inglaterra. so, tão violenta é logo a peleja.
<(Um belo dia os onze portugueses desembarcam em «0 aço das armas toma-se vermelho com o sangue do
Londres, onde são muito bem recebidos e tratados. inimigo.
(<Aproxima-se a hora da peleja. Ninguém tem medo, dos «Uns, caindo, parecem voar dos cavalos até ao chão ...
nossos. Só uma coisa os preocupa - a demora de Magriço, «Outros, derrubados e arrastados, açoitam com os pena-
que passeia não se sabe por onde. chos dos elmos as ancas dos ginetes ...
MAGRIÇO OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

«Morrem alguns. O resto fica ferido. E, depois de porfia- Umas vezes o Mar levanta as naus ao Céu, outras fá-las
da batalha, os Portugueses vencem inteiramente os adver- descer como atraídas para as profundas do Inferno.
sários, com aprumo e galhardia raras. Dir-se-ia que a tempestade queria despedaçar o Mundo
«A soberba inglesa sofreu assim um duro golpe, mas as inteiro.
damas ficaram desafrontadas da injúria sofrida, graças à Relâmpagos e raios, como jamais se viram, faiscam e
coragem e audácia dos nossos, que não hesitam em bater- fuzilam.
-se pela honra alheia ... Na costa, há montes que são derrubados, raízes que são
«Mais uma vez triunfou o espirita guerreiro e cavalhei- desenterradas e postas ao ar, e as fundas areias ficam todas
resco e a força invencível dos Portugueses. O Duque de Len- revolvidas, como por intima convulsão da Terra...
castre, como prova de gratidão, albergou-os no seu palácio. E, Tão perto da Índia estavam os Portugueses - e tão im-
enquanto eles não regressaram a Portugal, todos os dias lhes possível se lhes afigura lá chegar, nessa hora de tragédia!
ofereceu divertimentos, bailes e jantares, onde nunca faltavam O Oceano tragaria ali naus e marinheiros, se atempes-
as doze damas. À volta, segundo contam, ainda Magriço e um tade por fim não abrandasse.
seu companheiro tiveram alguns desafios, o primeiro na Flan- Vasco da Gama, entre o furor da procela, ergue a sua
dres e o segundo na Alemanha. Não deixavam nunca de pôr à alma a Deus.
prova a sua valentia e destreza no uso e manejo das armas ...» E enquanto os marinheiros lutam contra a fúria do Ocea-
Queria Veloso continuar a heroica narrativa, quando o no, a Deus suplica porto e salvamento.
mestre do navio lhe pediu e aos seus ouvintes que estives- Sossega o Mar, então. Cala-se o vento um pouco.
sem alerta ... É que se anunciava já a tempestade que Baco As nuvens fogem, deixando ver no Céu a estrela Vénus,
projetara desencadear... a estrela que tem o nome da protetora dos Lusitanos.
De facto, uma nuvem negra corria sobre a frota, e o vento A luz da estrela carinhosa acalma os elementos furio-
crescia assustadoramente. sos, anuncia a madrugada alegre, e traz força e coragem
Impetuosa, desencadeia-se a terrível procela. aos corações dos tripulantes. Cai o vento. Amainam as on-
Rompe-se a vela grande da nau de Veloso, pois não das. E as naus portuguesas retomam outra vez o seu rumo
houvera tempo de amainá-la. para a Índia. Baco invejoso fora vencido de novo, e já não
Alaga-se o navio todo com as ondas que o envolvem poderia contrariar os desígnios da gente lusitana.
espumando, e a água entra pelos porões. A manhã clareava nos outeiros por onde passa o Rio
Correm os marinheiros a dar à bomba, para evitar o Ganges, quando da gávea alta os marinheiros enxergaram
naufrágio, o que parece certo. terra, pela proa das naus.
Nunca a fúria do vento foi mais cruel do que nessa hora! Voa dos corações o medo. Foge a sombra d e temor que
Nunca o Mar foi tão perigoso! os desvairava.
O navio maior, em que navegava Paulo da Gama, irmão O piloto melindano, jubilosamente, exclama que a terra
de Vasco, leva o mastro quebrado. que se avista enfim é Calecute, cidade da Índia!. ..
VII

,,..
AINDIA
E ra realmente a Índia, a Índia que os Portugueses bus-
cavam, e que enfim alcançavam depois de obstinados
e rudes trabalhos.
Tão contente ficou Vasco da Gama, que, de joelhos em ter-
ra e de mãos postas, agradeceu à Providência a mercê que lhe
fazia, deixando-o obter a vitória que ambicionara, e hvrando-o
de todas as dificuldades e perigos aparecidos no caminho.
Bem ganha fora a recompensa do seu esforço e tenacidade!
Não são para os fracos e para os cobardes as graças e
mimos da Fortuna. São para aqueles que, vencendo tempo-
rais, sofrimentos, guerras, calor e frio, distâncias e medos,
desprezando molezas e preguiças, falsas honras e dinheiro
sem virtude - tudo fazem para conquistar fama e glória
próprias, que são depois a fama e a glória da sua Pátria e
do seu povo.
Triunfavam os Portugueses, naquela manhã da chegada
a Calecute.
E mereciam, realmente, que os achassem então superio-
res a Alemães, a Ingleses, a Franceses e Italianos, que em
vez de se lançarem a empresas árduas e dificeis, passavam
A ÍNDIA OS LUSIADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

o tempo em distrações vulgares, ou a lutar uns contra os Diz-lhes o mouro tudo o que sabe sobre aquela opulen-
outros, não tentando levar a desconhecidas regiões a Fé ta província, cujo nome é Malabar.
Cristã e a civilização da Europa. Anuncia as grandes riquezas que nela existem - e
Não assim o povo português, em cuja pequena terra lu- como se vestem e vivem os seus habitantes.
sitana nunca faltaram nem audácia, nem espirito empreen- Mas, enquanto ia esclarecendo os Portugueses sobre as
dedor, nem amor do ignoto Mar, encontrando-se agora na coisas novas que viam ou iam ver, já uma embaixada dos
Ásia os seus marinheiros para espalharem ali o nome de homens mais importantes da cidade vinha a caminho da
Portugal e os benefícios da doutrina de Cristo... frota, pelas ruas da cidade, para em nome do Rei saudar a
Calecute era a capital da índia, onde vivia o Imperador, armada.
ou Samorim, como lá se dizia. Vasco da Gama desembarca então na praia de Calecute,
Cidade rica, onde habitavam muitos índios e mouros , onde o esperavam o governador da Terra, que tinha o titu-
que faziam grande comércio uns com os outros. lo de Catual, rodeado de guerreiros, na Índia chamados
Assim que a frota portuguesa entrou no seu porto, mui- naires.
ta gente acorreu a vê-la. Grandes saudações e cumprimentos fazem ao Capitão,
Desceu um mensageiro a colher novas. transportando-o em seguida num palanquim até ao palácio
A primeira pessoa com quem travou conversa foi um real.
mouro chamado Monçaide, que sabia falar espanhol e que Os outros portugueses seguem a pé, acompanhados de
ficou espantadissimo de viagem tão longa, por mares igno- índios e mouros, que estranham e admiram os fatos e mo-
rados e tão perigosos. dos da gente lusa.
Explicou-lhe o português que o seu capitão trazia uma Primeiro param num templo sumptuoso, onde há vá-
mensagem do Rei de Portugal para o Rei daquelas regiões, rios idolos de formas estranhas - uns com muitos braços,
e que vinha ali, não para guerrear e combater, mas só para outros com aparência de animais.
acrescentar pacificamente o esplendor e a glória da sua Ter- Rezam os gentios àqueles seus deuses, e feita a reza,
ra e da sua Fé. continuam a marcha para o palácio real.
Monçaide ofereceu-lhe albergue e descanso em sua casa. Entre arvoredos, ei-lo que surge e se destaca, opulento
O mensageiro de Vasco da Gama aceitou sem receio a e vistoso.
hospitalidade do mouro. Rodeia-o frondosa cerca. E pelos portais da cerca, veem-
Vão ambos para casa de Monçaide. Comem e bebem -se figuras que representam os primitivos conquistadores
com boa disposição. E ambos se dirigem em seguida para da índia.
bordo a contar o que sabem ao grande Almirante. Lá aparecia a estátua de Baco, o primeiro soberano
Bem se calcula a alegria que este e os nossos marinhei- estrangeiro daquelas terras, em atitude guerreira e com a
ros tiveram ao ouvir falar a Monçaide a língua de Castela, fronte coroada de folhas de louro. Mais adiante, a Rai-
que entendiam e falavam também. nha Semiramis, que veio da Assíria. E depois Alexandre
A ÍNDIA OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

de Macedónia, que da Grécia partira também à procura de e que, se tu quiseres fazer com ele uma aliança e pacto de
tão ricas regiões. amizade, trocará muitas das suas riquezas com as tuas.
Todos tinham vindo de longe, com a ambição de senho- «Proveitosa será essa troca para ti, e para ele glória in-
rear a terra opulenta do Ganges ... gente - pois toda a Europa assim poderá saber que de lon-
Mostrando as estátuas, o Catual dizia a Vasco da Gama: ge viemos procurar os produtos e especialidades de terra
- «Tempo virá, e muito breve, em que outras vitórias de tão afastada da nossa, e à qual é tão difícil chegar.
outras gentes estranhas farão esquecer aquelas que vedes «Se o pacto de amizade e comércio que te proponho
aqui celebradas nestes vultos. E tão grandes, que todo o ficar firme e seguro, poderás contar com o apoio do meu
Mundo as conhecerá e louvará, pois suplantarão até a me- Rei e da minha Pátria em todas as guerras que porventura
mória das antigas, sempre vivas ... Assim o profetizaram os te moverem os teus inimigos, e com os seus soldados, suas
nossos feiticeiros e sábios.» armas e seus navios para te defenderem.
Mais coisas extraordinárias dizia o Catual a Vasco da «O meu Rei se considerará teu irmão e como teu irmão
Gama. E enquanto à boa paz conversavam, iam-se dirigindo se há de conduzir.»
para a sala onde o Imperador os esperava. O Rei de Calecute respondeu com muito agrado ao
Rodeado de várias pessoas, estava o Samorim deitado grande Vasco da Gama, dizendo-lhe que se sentia feliz por
num leito de seda e pedras preciosas, coroado com um ter ali embaixadores de um país tão ilustre e distante; mas
diadema de esmeraldas e diamantes. Envolvia-lhe o corpo que, a respeito da aliança proposta, nada respondia, en-
um largo pano tecido de fios de oiro. quanto não falasse com os seus conselheiros habituais.
Um criado velho e reverente, sempre de joelhos, dava- Prometeu, no entanto, dar depressa resposta satisfató-
-lhe a cada instante folhas de bétele a mastigar, segundo o ria. E mandou preparar camas para todos os portugueses
costume ali usado. O bétele é uma erva aromática, muito que o visitavam, convidando-os a repousar no seu próprio
apreciada pelos índios. palácio, enquanto não tomava uma resolução definitiva.
Sai do lado um Brâmane - que é o padre da religião Aceitou Vasco da Gama a hospitalidade do Samorim.
dos índios - adianta-se para Vasco da Gama e apresenta-o Logo ele e os seus companheiros foram descansar em
ao Imperador, com muitas e cerimoniosas vénias. belos aposentos. E o Catual, por ordem do seu Rei, foi pro-
Depois da apresentação, senta-se o Gama junto do leito - curar o mouro Monçaide para melhor se informar dos cos-
e com voz grave, que logo enche de respeito toda a gente, tumes, da lei e da terra dos Portugueses.
faz este discurso ao Samorim: Não foi este mouro traidor ou mentiroso ... Antes deu
- «Um grande rei do Ocidente, sabendo da tua influên- informações muito agradáveis, embora justas, dos seus no-
cia e valor, mandou-me aqui para te comunicar que, de to- vos amigos, e assim despertou no Catual o desejo de ver
das as coisas e seres que sobre o Mar e a Terra vivem, exis- mais de perto os navios e os marinheiros da frota.
tem e andam, desde o Tejo ao Nilo, desde o Norte da Europa Monçaide pintou os Portugueses como gente heroica e
ao Norte da África, há no seu Reino grande abundância; destemida, defensores estrénuos da sua Pátria e da Religião
A ÍNDIA

Cristã, nunca vencidos em nenhuma guerra contra os In-


fiéis, e sempre incapazes de faltar à verdade.
O Catual ouvia-o, ardendo em desejos de verificar por
seus próprios olhos a maneira como viviam esses homens
extraordinários.
Não se demorou em mandar preparar alguns batéis.
E, acompanhado por vários guerreiros, foi visitar a nau
capitaina, que era então comandada por Paulo da Gama,
VIII
irmão de Vasco.
Estava a nau toda empavesada, enfeitada com belos tol-
dos e grandes bandeiras de seda. As bandeiras batiam ao
vento, e via-se em cada uma delas a figura de um herói de
Portugal, pintada maravilhosamente. Traziam os Portugue-
ses esses retratos dos seus heróis para nunca se esquecerem
dos exemplos e lições que eles tinham dado, e que nunca
HERÓIS DE PORTUGAL
devem ser esquecidos, diminuídos ou menosprezados ...
Os Gentios quiseram logo saber o que representavam
aquelas figuras.
As perguntas sucediam-se, a curiosidade era imensa.
Mas Paulo da Gama, que os recebeu com muita solenida-
de, ofereceu-lhes primeiramente vinho e mandou tocar, em
sinal de regozijo, as trombetas de bordo.
Está com ele Nicolau Coelho, que do seu navio - onde
se transportavam os mantimentos da frota - ali viera para
acolher também os estrangeiros.
Os índios beberam largamente o vinho que viera de Por-
tugal, e cujo sabor tanto apreciavam.
E, quando Paulo da Gama os viu reconfortados, come-
çou então a explicar-lhes o significado das imagens pin-
tadas nas bandeiras, dessas imagens dos heróis lusitanos,
que seduziam e intrigavam o Catual e a sua comitiva, já
comovidos pela generosidade e magnificência dos Portu-
gueses ...
'"'\ f oltando-se para o Catual e para os seus companhei-
V ros, Paulo da Gama assim lhes explicou as figuras, das
quais os índios não tiravam os olhos:
- «Estas figuras todas que aparecem aqui, retratos de
homens fortes e valentes de aspeto, mais te impressiona-
riam ainda se conhecesses os feitos que rememoram ...
«Já morreram há muito, esses heróis, mas os seus no-
mes resplandecem entre os maiores que tem havido no
Mundo.
«0 primeiro que vês é Luso ou Liso, de cujo nome famoso
dizem que veio o nome do nosso Reino Lusitano.
«Foi filho e companheiro de Baco, que várias partes do
Mundo conquistou.
«Parece que veio até à Península Ibérica, combatendo e
perseguindo inimigos.
«Tanto gostou do território que se estende do Douro ao
Guadiana - território que depois se chamou Campo Lusi-
tano ou Lisitano - que ali quis morrer e sepultar-se, dando
o seu nome à região onde ficaram os seus ossos.
«0 ramo enfeitado de pâmpanos e heras que traz na mão
HERÓIS DE PORTUGAL OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

é o verde-tirso, usado por Baco - e indica ter sido Luso um «Vai com os seus filhos, em refém, entregar-se à sua
companheiro desse Deus. ama e soberana, pois que não pudera obrigar D. Afonso
«A segunda figura é de Ulisses, herói grego vencedor na Henriques a não batalhar contra a própria Mãe ...
guerra de Troia, que, depois de longas viagens e peregrina- «Mais adiante é D. Fuas Roupinho, que rompeu o cerco
ções, chegou ao Tejo e fundou Lisboa ...» de Porto de Mós, sitiado pelos Mouros, e que, nosso primei-
- «E este quem é?» - perguntou o Catual, impaciente, ro almirante, destroçou a esquadra mourisca em frente do
mostrando uma figura que o interessava mais. Era a figura Cabo Espiche!.
de um montanhês batalhando furiosamente e desbaratando «Nunca estava satisfeito senão quando pelejava.
um exército cujas bandeiras traziam águias pintadas. «Perseguiu os navios do inimigo até Gibraltar, queiman-
- «Este», diz Paulo da Gama, «é Viriato. Foi um pastor. do-os em frente de Ceuta e morrendo então.
Mas era mais destro na lança do que no cajado. Venceu as «A sua alma subiu contente ao Céu, liberta das mãos
legiões de Roma que se julgavam invencíveis. E, para o ma- dos Mouros e digna da palma dos triunfadores ...
tarem, tiveram de usar de manha - que frente a frente não «Aí vês também» - continuou Paulo da Gama, apon-
o conseguiam! Assassinaram-no à traição, quando dormia tando para outra figura - «Um estrangeiro, chamado Hen-
na sua tenda ...» rique, famoso cavaleiro que veio com os Cruzados e ajudou
Ao lado da imagem de Viriato estava outra bandeira, e a tomar Lisboa.
na bandeira outro retrato de herói. «Junto da sua sepultura nasceu uma palmeira cujos
- «É Sertório», disse Paulo da Gama, «Sertório que, ape- ramos são milagrosos.
sar de romano, contra Roma combateu, vingando Viriato, «E está, no outro pendão, o prior D. Teotónio, que, tendo
Vê-se uma cerva ou corça deitada aos seus pés, porque este os Mouros conquistado Leiria, cidade a ele dada pelo nosso
animalzinho, seu companheiro, o avisava da presença dos primeiro rei - logo se desafronta avançando contra Arron-
inimigos ... ches, e a liberta do jugo árabe.
«Foram estes os maiores defensores da Lusitânia. E, logo «Mem Moniz é o nome do outro guerreiro cujo retrato
a seguir, está o Conde D. Henrique, pai de D. Afonso Hen- admiras.
riques, fundador de Portugal. Ei-lo cercado dos seus nume- «Foi ele o primeiro que, ao ser tomada Santarém aos In-
rosos esquadrões, derrubando mouros, conquistando cida- fiéis desfraldou nos muros da cidade a bandeira da sua Pátria.
)

des, e pisando as coroas e estandartes dos seus adversários. «Acompanhou D. Sancho 1 a Sevilha, perseguindo o ini-
«Expulsou os Mouros de Portugal, depois de se ter tor- migo. E de lá trouxe a bandeira que eles erguiam. Soldado
nado independente do Rei de Castela. heroico, digno filho de um pai também valente, este Mem
«E aquele que além está, de braço estendido para o seu Moniz - que levantou ao alto a bandeira portuguesa e der-
príncipe, mandando-o recolher os exércitos que se batiam ribou a bandeira dos inimigos de Portugal!
contra D. Teresa, mãe de Afonso Henriques, é Egas Moniz - «Giraldo-sem-Pavor é o outro cavaleiro que vês ao lado
o forte e leal vassalo, claro espelho de homens honrados. de Mem Moniz.
HERÓIS DE PORTUGAL OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

«Conseguiu Giraldo introduzil'-se silenciosamente em Ouvia o Catual, surpreendido, a longa relação dos he-
Évora, que não era ainda nossa, e matando dois vigias, róis, que Paulo da Gama ia evocando e louvando.
apoderou-se com alguns soldados da cidade fortificada. Mas não chegara ainda a vez do mais célebre, do mais
«E aquele que vês ali adiante? Combateu um fidalgo ilustre de todos.
traidor, que, sendo castelhano, se bandeou com os Mouros, Quando pararam diante da sua imagem, logo o Portu-
esquecendo os deveres que lhe cumpriam. guês pediu atenção máxima ao índio.
«Chamava-se Martins Lopes, e, apenas ajudado por E disse-lhe:
meia dúzia de pessoas, desbarata e prende o traidor, quan- - «Vês aquele que tem um ar tão severo e grave? É
do este tinha tomado já a vila de Abrantes e se julgava a Nun 'Álvares Pereira, o Condestável, que sobre os seus om-
salvo. bros sustentou a honra e a vida da Pátria.
«Mas igual, se não maior do que ele, foi o outro herói «Acordou os corações dos Portugueses para a luta con-
que está retratado na bandeira a seguin> - prosseguiu Paulo tra Castela. Desbaratou os Castelhanos em Aljubarrota e
da Gama, com entusiasmo. Valverde. E tanta confiança tinha no seu esforço e ousadia,
«É D. Mateus Sueiro, Bispo de Lisboa. e na proteção que Deus concedia aos nossos, que duran-
«Quatro reis mouros juntaram-se ao Rei de Alcácer para te essa última batalha, no mais aceso da luta, retirou-se e
não deixar que os Portugueses tomassem essa linda terra. foi rezar num sítio afastado. Ali ficou, orando. Vieram-no
«0 Bispo fez-se guerreiro e contra eles avançou. Apare- chamar à pressa. Mas ele respondeu sossegadamente que
ceu-lhe uma visão, anunciando-lhe a vitória ... Vitória sem "ainda não era tempo".
par! Todos os reis foram mortos, e Alcácer foi tomada. «E não era, decerto.
«E mais um herói assim enfileira ao lado dos heróis «Só depois de terminadas as suas orações, acudiu aos
grandes da História de Portugal ... seus amigos e desbaratou o exército castelhano.
«D. Paio Correia também mereceu que o seu retrato apa- «Ditosa Pátria que tal filho teve!» - exclamou Paulo da
reça aqui. Gama.
«Ei-lo!» - exclamou Paulo da Gama em frente de uma «Filho ou ainda mais do que filho. Pai se deve chamar,
nova imagem. pois sem ele que teria sido de Portugal?
«Conquistou Tavira e Silves, por vingança de sete portu- «Desse mesmo tempo são os outros capitães que ainda
gueses assassinados naquelas cidades. te vou mostrar.
«Agora, numa só bandeira, vês três cavaleiros: são Gonçalo «É Pedro Rodrigues, alcaide-mor do Landroal, que ven-
Rodrigues Ribeiro, Vasco Anes e Fernando Martins Santarém. ceu um exército castelhano e libertou das garras de ferozes
«Eram conhecidos, em todas as terras onde passavam, inimigos um compatriota que ia preso. É Gil Fernandes, de
pela sua extraordinária valentia e audácia. Não os podemos Elvas, que depois de prender um falso português ao serviço
esquecer, pois são exemplos imortais de valor, de brio e de de Espanha, entra por Castela até Xerez, fazendo fugir to-
grandeza de alma.» dos os adversários adiante do seu braço forte ...
HERÓIS DE PORTUGAL OS LUSÍADAS CONTADOS As CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

«Gente de coragem sem fim, que o amor do berço natal conselhos de simpatia e de auxilio aos Portugueses, cuja
tomava indomáveis e vitoriosos sempre ... Até contra exérci- ahança e amizade só vantagens trazem a quem as saiba
tos mais numerosos, como aqueles dezassete portugueses, apreciar...
que nos outeiros de Almada - e mostrou outra bandeira - Mas, antes mesmo de chegar a terra, já infelizmente as
se defenderam de quatrocentos castelhanos, e consegui- coisas corriam muito mal para os nossos.
ram desbaratá-los! O Rei mandara chamar os seus ministros, que também
«Grande proeza, digna de patriotas sem medo e sem costumavam, naquele país, ser bruxos e adivinhos ...
outra paixão que não seja a da sua terra!» Adivinhos que muitas vezes se enganavam, feliz-·
O Catual estava deslumbrado e convencido já do valor e mente!
da energia dos Portugueses, da sua lealdade e apaixonado Julgavam poder decifrar o futuro! Ora os sinais que eles
amor da Pátria. Não valia a pena lutar contra homens de descobriram no futuro a respeito dos Portugueses eram
poder tão nobre e forte, que todos e tudo venciam e que mentirosos - todos contrários à lealdade dos nossos na-
nenhum perigo assustava ... vegadores.
Paulo da Gama ainda lhe indicou os retratos dos dois Anunciavam que eles destruiriam a gente e riquezas dos
infantes D. Pedro e D. Henrique, filhos de D. João I. Contou Índios, e ameaçavam estes de perpétuo e feroz cativeiro!
os atos corajosos que o primeiro praticou na Alemanha, O Rei acreditou em tais mentiras e, como é natural,
quando ali combateu os Turcos, e descreveu a conquista encheu-se de terror.
de Ceuta em África, feita pelo segundo, que foi também o Tanto mais que o eterno inimigo dos Portugueses, o tei-
desvendador dos mares, o mais ilustre dos Portugueses no moso e pérfido Baco, aparece em sonhos a um sacerdote
descobrimento e posse do Atlântico misterioso. mouro que habitava em Calecute, para o assustar sobre as
Este louvor aos nossos antigos heróis terminou-o então intenções dos Lusitanos.
Paulo da Gama, não porque outros não houvesse dignos de Os Mouros, muito numerosos e muito bem tratados na
serem ah sempre lembrados, mas porque não trazia mais Índia, enriqueciam ali com o comércio de pedras precio-
bandeiras com retratos ... sas, sedas e especiarias, comércio que mantinham há muito
Não deixou, porém, que o deslumbrado Catual pensasse tempo com os naturais.
serem só os nomes citados os de todos os grandes homens Baco bem sabia quanto eles receavam ser expulsos ou
de Portugal. prejudicados no seu trabalho e negócios,
Apenas, disse, não seria possível encontrar pintores e E, por isso, no sonho do sacerdote, apresenta-se disfal'"
arte bastante para os pintar a todos ... çado no profeta Maomet, que os Infiéis adoravam, e fal-
O Catual não perdera uma só palavra do que ouvira, nem samente denuncia os Portugueses como muito capazes,
afastava os olhos das gloriosas figuras ali representadas. assim que se sentissem com mais força, de guerrear, com-
Parecia que, das informações colhidas, de tudo o que bater e expulsar todos os Mouros!
observara e aprendera, se inspiraria para levar ao Samorim O mouro, assustado, acorda cheio de medo.
OS LUSiADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO
HERÓIS DE PORTUGAL

Mas, depois de acordar, lá se convence, pensando me- E como afinal o que desejava era trazer para Portugal
lhor, que não deve acreditar em sonhos. Adormece de novo e entregar ao seu soberano uma prova certa de que tinha
' chegado a paragens tão remotas, e realizado a viagem que
mais tranquilo.
Assim que volta a dormir, Baco reaparece-lhe e insiste se comprometera a fazer, não se incomodava muito com a
nas suas ameaçadoras profecias. Era um inimigo perigo- ideia de não concluir o tratado.
so, como mais uma vez se vê ... E, não desistindo das suas Contentava-se em partir da Índia sem mais dificuldades
más intenções, aconselha o mouro a que não se demore a e em levar consigo uns tantos produtos da região, para os
tomar providências rápidas, antes que os Portugueses se mostrar em Lisboa.
apossem da Índia inteira! Satisfeito com essa ideia, pede uma audiência ao Rei,
Desperta o sacerdote outra vez. O sonho aflige-o tanto, para se despedir sem mais complicações.
que não pode tornar a adormecer. Levanta-se da cama, in- O Samorim que, atemorizado pelos Mouros, receava os
quieto, e sai para a rua. E o que faz? Chama e convoca os Portugueses, mas que também ambicionava colher os lu-
seus e narra-lhes o que sonhou. Os Mouros, que não viam cros e vantagens que estes lhe tinham prometido, mandou
os nossos com bons olhos, acreditam em tudo quanto ele então chamar o grande Almirante.
diz. E o ódio contra os Portugueses começa a ferver, a subir, Vasco da Gama veio logo e entrou serenamente nos
como labareda de lume forte ... aposentos reais. Como não queria mal a ninguém, nem ti-
Prudentes e medrosos, os Mouros resolvem dissimular nha intenções ocultas, ia perfeitamente sossegado.
' O Rei começou por lhe declarar insolentemente que o
não combatendo frente a frente .. .
Decidem antes espalhar, entre os Índios mais importan- julgava um mentiroso e que bem sabia que ele não era em-
tes, que Vasco da Gama e os seus companheiros provoca- baixador de país nenhum, mas um vagabundo dos mares -
riam em breve grande catástrofe. A sua ideia era levar o pois nenhum rei do Ocidente se atreveria a enviar tão longe,
Rei a prendê-los ou a expulsá-los de Calecute, e talvez até a e por tão incertos caminhos, uma frota tão numerosa e tantos
matá-los do primeiro ao último. homens, com risco de se perderem todos a cada momento.
Dão até grandes presentes aos Catuais que governavam De mais a mais, nem presentes lhe trazia para demons-
aqueles povos, para melhor os convencer a voltarem-se trar que era representante de um verdadeiro Rei!
contra os Portugueses ... Acrescentou ainda que o supunha pirata ou desterra-
Vasco da Gama estava na cidade, esperando que o Sa- do, correndo os mares na rapina de navios, ou fugido da
morim dissesse alguma coisa sobre o tratado de aliança e sua terra natal!... Se assim fosse, dar-lhe-ia abrigo. Exigia
comércio que lhe tinha proposto. no entanto que lhe confessasse a verdade ... Se não - nada
O Samorim, porém, já aconselhado pelos seus cobardes feito ...
ministros, ia demorando, demorando a resposta ... Vasco da Gama, já suspeitoso das insidias que tinham
O que vale é que Vasco da Gama era mais inteligente do inventado a seu respeito e a respeito dos seus companhei-
que todos os Mouros e índios juntos! ros, mas desprezando tais invenções, não se zangou sequer.
HERÓIS DE PORTUGAL OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

Olhou sem medo o Samorirn e provou-lhe, em palavras «Só que nos dês um sinal, um testemunho, que levemos
eloquentes, como ele se deixava afinal levar pelas perfídias ao nosso Rei, e que seja a garantia de que estivemos neste
dos Mouros ... Nem pirata, nem desterrado podia ser - pois lugar. Não é outra a verdade. Tudo o mais é mentira ... »
que, se o fosse, para que viria tão distante da sua Pátria Por fim, o Capitão pediu ao Rei que o deixasse partir e
buscar hospitalidade, se em terras mais próximas a pode- que, se ainda algumas dúvidas tinha sobre os seus propó-
ria ter encontrado? sitos, meditasse bem no que dele ouvira. Um juízo claro
Para quê experimentar calores insuportáveis dos trópi- nunca poderia ver falsidade nas suas palavras.
cos, frios terríveis soprando do Polo Sul, perigos incessan- O Samorim ainda hesitava ...
tes do Mar furioso, se uma alta razão, um ideal grande o Mas a segurança com que falava o almirante da frota
não movessem e guiassem? portuguesa era tão grande, que lhe deu licença para voltar
Presentes não os trazia, porque os barcos eram poucos a bordo, recomendando-lhe que enviasse qualquer merca-
e pequenos, e não os devia carregar demais para tão longa doria boa para trocar pelas especiarias da Índia.
travessia. Como essas especiarias, produtos da região, constitui-
E nem para trazer presentes fizera a sua viagem, mas riam prova suficiente de que a frota chegara à Índia, Vasco
apenas para alcançar aquele clima longínquo, onde esta- da Gama saiu imediatamente do palácio e reclamou do
vam as praias tão faladas e tão desconhecidas da Índia... Se Catual uma embarcação para ir a bordo do seu navio.
a fortuna permitisse a sua volta à Pátria, então o Samorim O Catual, no entanto, ainda crente nas insidias dos
receberia uma dádiva soberba, que ele mesmo lhe ofere- Mouros, e vendo-o só e confiado, prendeu-o!
ceria... Imagine-se o desespero do heroico português!
Quanto à audácia e coragem que tão difícil empresa sig- Gritou, protestou - mas o Catual, para se desembara-
nificava - dizia o Gama sem se exaltar - não a estranhasse çar dele, já pensava em matá-lo e em matar todos os Portu-
o Samorim. gueses! Até o quis persuadir de que mandasse aproximar
É velha tendência dos Portugueses essa de querer des- a armada mais à terra, para melhor e mais facilmente a
vendar os mares ignotos, propondo-se os seus Reis e o seu desbaratar ...
povo vencer para isso todos os trabalhos e canseiras, impe- Vasco da Gama, que já começava a conhecer aqueles
lidos pela nobre curiosiçlade de saber onde ficam os derra- patifes, nada fez. Ficou muito quieto e não enviou nenhum
deiros horizontes do Mundo ... Já assim o tentara o Infante recado a bordo.
D. Henrique, cujos marinheiros chegaram até ao Hemisfé- Preferia morrer sozinho a sacrificar os seus.
rio Sul. E pelos Portugueses foi trilhado todo o Atlântico A noite que passou foi angustiosa. O Catual vigiava-o e es-
imenso, até aos fins dos litorais da África. perava. Vasco da Gama fingia pensar noutra coisa. E, como
«Agora, aqui estamos», continuou Vasco da Gama, o Catual era muito cobiçoso e reconheceu que nada obtinha
«tendo chegado ao último limite que ambicionávamos. do Gama por esse meio, acabou por combinar libertá-lo, se
«E o que queremos de ti? dos navios viessem presentes e mercadorias bastantes.
HERÓIS DE PORTUGAL

Vasco da Gama, já mais seguro da sua vida e da vida


dos seus, mandou então alguém aos navios pedir as merca-
dorias, que logo vieram. Vendo isto, o Catual soltou-o.
Recolheu o Gama á sua nau, deixando em terra apenas
dois feitores, para guardar as suas fazendas, e trocar algu-
mas pelos produtos da índia.
Bem queria o Catual apanhá-lo outra vez em terra ...
Nunca mais o apanhou, é claro ...
IX
Em segurança dentro dos navios da frota, os nossos li-
vraram-se bem das manhas do Catual.
Mas este é que já se não livrou da fama de intrigante
e interesseiro, incapaz de compreender a generosidade e
grandeza de alma de Vasco da Gama e dos seus fiéis maru-
jos, todos audazes e nobres portugueses...
OS PORTUGUESES
REGRESSAM DA ÍNDIA
s teme~ários descobridores do caminho marítimo
O para a India já mereciam descanso e prémio.
Já os mereciam, mas não os conseguiram logo ...
Os Mouros e o Samorim tinham, com efeito, resolvido
reter o mais possivel a frota de Vasco da Gama no porto
de Calecute. Esperavam matreiramente que uma grande
esquadra maometana - tudo terras de infiéis - chegasse
ali em toda a sua força e atacando as poucas e pequenas
naus lusitanas lhes deitasse fogo e as incendiasse uma
por uma.
Plano verdadeiramente infernal, que só gente criminosa
podia imaginar... Para o executar melhor, iam demorando
de dia para dia a troca dos seus produtos pelas mercado-
rias portuguesas.
A armada de Meca , entretanto, vinha já pelo mar fora.
E seriam destruídos sem piedade os navios de Vasco
da Gama, se o bom Monçaide, que aos Portugueses se afei-
çoara, os não prevenisse da armadilha projetada.
Julgavam os Mouros tê-lo ao seu lado, porque mouro
era também Monçaide.
OS PORTUGUESES REGRESSAM DA ÍNDIA OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

Mas, se era mouro, não era embusteiro, nem lhe con- Mandou soltar imediatamente os feitores lusitanos, que
sentia o seu leal coração que gente inofensiva e generosa depressa foram para bordo.
fosse atacada injustamente. Quando os lá viu, libertos e sãos, Vasco da Gama resti-
Resolveu então o Gama abandonar de vez aquelas para- tuiu os cativos que levava.
gens perigosas e tomar o rumo da sua Pátria. Acompanharam-no, porém, Monçaide e alguns mala-
Não o fez, todavia, sem primeiro chamar os seus dois bares, e trouxe também consigo certas especiarias, como
feitores, que estavam na cidade de guarda às mercadorias. pimenta, canela e noz-moscada - tudo para que melhor se
Mandou-lhes dizer que viessem depressa, pois os esperava acreditasse em Portugal que ele chegara até à Índia, a vira
ansiosamente ... e a visitara.
Mas os feitores não apareceram. E soube-se que esta- Monçaide seguia de vontade e por verdadeiro afeto aos
vam ambos presos à ordem do vil Catual! Portugueses.
Não hesitou o Gama, para defender os seus, em fazer Assim que a frota desceu pela costa do Industão e dei-
um ato de violência - o que até esse momento não quisera xou longe Calecute, esse grande amigo dos Portugueses
sequer experimentar - prendeu como reféns uns merca- converteu-se à religião cristã, tomando-se dessa maneira
dores de Calecute que tinham vindo vender pedras precio- mais capaz de compreender e estimar os seus novos com-
sas a bordo. panheiros.
Assim que os prendeu, mandou preparar tudo para a Estavam enfim os Portugueses no caminho de regresso,
largada. depois de terem alcançado a longínqua e desejada Índia e
Os marinheiros desatam as velas, esticam amarras, en- de terem corrido mares até aí nunca navegados, vencendo
tregam-se todos à faina de pôr os barcos em movimento. perigos, temporais, fúria dos elementos, maldades, traições
Vendo isto, assusta-se a gente da cidade, que sabendo e ciladas dos homens ...
os seus mercadores a bordo das naus, não os queria deixar Nunca ninguém no Mundo cometera façanha tão difí-
partir. cil! Nunca ninguém excedera ou sequer igualara a cora-
As mulheres dos índios que iam presos começam a gem, o sangue-frio, a tenacidade, a inteligência e a ciência
lamentar-se. dos marinheiros lusos!
Grande grita ia a bordo! Ordens e incitamentos aos tri- Por isso voltavam contentes, a proa dos navios já vol-
pulantes, para que não demorassem a saída da frota, ou- tada para o Sul, afastando-se cada vez mais da Ásia, para
viam-se a cada instante ... de novo dobrar o Cabo da Boa Esperança, a caminho de
Maior grita vinha da praia - dos indíos e índias aflitas com Portugal ...
o receio de nunca verem mais os seus patrícios embarcados. No coração dos mareantes nem parecia caber a alegria
O Samorim compreendeu então que Vasco da Gama do seu triunfo, arduamente conquistado entre climas e
estava zangado e já não tinha paciência para suportar de- céus ignotos, em lutas e trabalhos longos, para honra e gló-
longas e traições. ria da Pátria que tanto engrandeciam e amavam ...
X

A ILHA MARAVILHOSA
CHEGADA
A PORTUGAL
ma última aventura ainda demoraria a viagem ... Mas
U agradável, e compensadora das tribulações que os
Portugueses tinham sofrido.
Vénus, a Deusa da Beleza e da Ternura, que sempre os
estimara e protegera, queria premiá-los dos seus esforços e
canseiras. E, por isso, conduziu as naus a uma ilha formosa
e acolhedora, que se chamava Ilha dos Amores.
Ali estavam reunidas as nereidas, filhas do Oceano, co-
nhecedoras já da famosa viagem, para receber e acarinhar,
com festas e banquetes, Vasco da Gama e os seus compa-
nheiros.
Assim, mesmo antes de tocar a terra da Pátria, estes po-
deriam obter algum repouso das suas fadigas e receber um
prémio justo da grande glória que tinham sabido conquistar.
Formosa ilha, a ilha dos Amores, que os navegantes
viram um dia desabrochar, fresca e florida, do meio das
ondas.
Numa curva e quieta enseada de branca areia, toda co-
berta de conchinhas vermelhas, deram fundo as naus lusi-
tanas.
A ILHA MARAVILHOSA - CHEGADA A PORTUGAL OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

Três formosos outeiros se erguiam da terra, esmaltados Assistiram aí a danças e a jogos, ouviram músicas har-
de erva tenra. moniosas, gozaram alegrias inefáveis.
Do cume dos outeiros manavam fontes claras e limpi- Mas já um grande banquete se preparava para restaurar
das, que mantinham sempre verde e viçosa a vegetação, e as forças dos Portugueses, que a viagem comprida e as can-
cuja água corria num leito de pedras alvas. seiras de bordo tinham enfraquecido e minado ...
Avistava-se mais longe um vale ameno, onde as águas
se juntavam em ribeira, e no qual se estendiam e alarga-
vam à sombra do arvoredo carinhoso.
Mil árvores ali mostravam os seus pomos perfumados: Foi no palácio de Tétis o grande banquete.
laranjas, cidras e limões... Mesas cobertas de belos manjares enchiam uma vasta
Outras árvores sombreiam o vale - álamos, loureiros, sala.
mirtos, ciprestes que sobem direitos para o céu, cerejeiras, Em cadeiras de cristal sentaram-se os Portugueses e as
amoreiras, pessegueiros, que estavam carregados de frutos . nereidas aos pares.
Romãzeiras, com as suas romãs cor de rubim, enlaça- À cabeceira da mesa havia duas cadeiras de oiro - to-
vam-se aos ramos dos ulmeiros. E havia pereiras com peras maram nelas lugar o Gama e Tétis.
enormes, que os pássaros gulosos debicavam. Os pratos onde serviam as iguarias eram de oiro, tam-
No chão, a erva era um tapete rico, onde os narcisos e bém. Tinham-nos ido buscar a um riquíssimo tesoiro es-
as anémonas cresciam à beira de uma nascente serena. condido sob as águas do Mar, e que estava há muitos, mui-
Goivos e lirios roxos, rosas e cecéns, que o orvalho re- tos anos, sob a guarda da Rainha daquela Ilha.
frescara , manjeronas e jacintos, tudo cresce e brilha naque- Vasos de diamantes transbordavam de vinhos doces e
le vale aconchegado. cheirosos, que espumavam maciamente.
E não faltam também os animais amigos do homem - Bebendo e comendo, os Portugueses esquecem as passa-
cisnes e rouxinóis, veados mansos, lebres fugitivas, gazelas das misérias e dificuldades. Riam e falavam com entusiasmo.
timidas e carinhosas aves levando no bico o alimento para Suaves músicas se ouviam, tão suaves que até consola-
os seus filhinhos implumes... riam os condenados às penas do Inferno!
Tão atraente era a vista dessa ilha maravilhosa, que os Tétis começou então a cantar com a sua voz melodiosa
Portugueses não hesitaram um minuto sequer em desem- um grande canto de louvor ao povo lusitano.
barcar numa das suas praias. E logo para eles correram as E não louvava apenas os seus feitos passados, mas so-
nereidas, coroando-os de flores. bretudo mostrava a sua firme confiança no futuro dos Por-
A rainha das nereidas, que se chamava Tétis, pegou na tugueses, adivinhando e profetizando os actos heroicos, as
mão de Vasco da Gama e conduziu-o para o alto de um proezas sem conta que eles ainda realizariam ...
monte, onde um palácio de cristal e de oiro se erguia, res- Um silêncio enorme se estendeu então por todo o palá-
plandecendo ao sol. cio, calando-se o vento, as fontes e os animais ...
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Tudo parecia recolher-se, para ouvir o elogio dos Portu- «0 Samorim prometerá então tomar ainda a bater-se
gueses ... contra os Lusitanos invencíveis, e vencê-los, enfiml
Tétis celebrou primeiro as novas armadas que, seguin- «De nada lhe servirá o orgulho balofo ...
do o caminho aberto por Vasco da Gama, navegariam nos «Nem as máquinas donde lançará bombardas sobre as
mares orientais, partindo do Tejo, como de lá partira a frota caravelas de Duarte Pacheco, nem os barcos destinados a
ancorada na Ilha. incendiá-los, conseguirão assustar o herói e os seus valen-
Elogiou o Rei de Cochim, que mais tarde, para não faltar tes companheiros.
aos juramentos de paz e amizade feitos aos nossos, sofreria «Uma estacada fortíssima, erguida em volta das naus,
a guerra feroz e a fúria do Samorim de Calecute. impedirá que os inimigos lá cheguem. E Pacheco vencerá
E previu a audácia sem par de que daria provas o gran- sempre, com pouco mais de cem soldados - em vitórias
de Duarte Pacheco - tão extraordinária, que o próprio na- sucessivas e tão completas, que mais parecerão sonhadas
vio onde em Belém ele embarcasse sentiria logo o peso da do que verdadeirasl
sua glória, cavando mais fundo as águas do fundo Mar ... «Nenhum herói, antigo ou moderno, foi ou há de ser tão
- «Será ele», proclamou, «O defensor do Rei de Cochim. forte e sábio na guerra como este grande Duarte Pacheco»,
«Com poucos soldados desbaratará os numerosos guer- disse Tétis. E neste momento do seu canto, Tétis abaixou o
reiros de Calecute, e todo o Oriente pasmará de tanto he- tom da voz, e chorosa, continuou:
roismo. - «A vontade dos Reis manda às vezes mais do que a
«Mas o Samorim chamará mais gente, muita gente bem justiça e a verdade ...
armada, gente vinda de todas as suas províncias e cidades. «Duarte Pacheco será mal pago e compensado dos gran-
«Sete vezes, porém, Duarte Pacheco derrotará o exército des feitos que praticou, para honra e engrandecimento da
inimigo. sua terra e do seu povo, pois o Rei de Portugal não o pre-
«Numa delas, estando este dividido em dois grupos, miará como seria seu dever.
esperando os Portugueses à traição, Pacheco os levará de «Não importa!
vencida, arrasando tudo em sua frente. «Ficará eternamente ilustre e conhecido o nome de
«Noutra, assistindo à batalha o próprio Samorim - que Duarte Pachecol E ao Rei, neste caso pelo menos, todos o
virá animar com a sua presença os soldados - , um tiro ma- julgarão iníquo e mesquinho!
tará um dos servidores do Rei, e o palanquim que o trans- «Cantarei agora», continuou Tétis com voz mais forte. «0
portar tingir-se-á de sangue. Fugirão os Índios todos, como primeiro Vice-Rei da Índia, D. Francisco de Almeida, que
para nunca mais voltarem ... virá acompanhado do seu filho Lourenço.»
«Não desistirão da luta no entanto, apesar de ser esta «Ambos combaterão lealmente contra o Mouro, em
a sexta batalha contra Duarte Pacheco. E todos os meios Quíloa e Mombaça. E o jovem Lourenço de Almeida fará
desleais lhes hão de servír para combater os Portugueses, prodígios de bravura.
chegando mesmo a envenenar a água de beber! «Na índia destruirá a armada do Samorim, destroçando
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quatrocentos mouros, que tantos serão os tripulantes da «Conquistador indomável, Afonso de Albuquerque! Já
nau! vejo as palmas gloriosas que hão de coroar a sua fronte,
«Até que em Chaul, expondo-se corajosamente aos gol- quando tomar a bela Ilha de Goa.
pes e às bombardas do adversário, morrerá no seu navio, «Terá de abandoná-la uma vez, mas retomá-la-á e ela
lutando até que a vida o abandone de todo, deixando ali o ficará sendo portuguesa para sempre ...
pai choroso e desesperado. «Quanto heroísmo será necessário para isso!
«E que desespero será o deste pai, que ama o filho com «Os esquadrões de Mouros e índios serão tão espessos,
amor profundo! Deveria entregar o governo da Índia a ou- que só à ponta de espada se abrirá brecha neles.
tro Vice-Rei, mas não o fará antes de vingar o filho. «Os soldados serão como leões e touros furiosos, destro-
«Os olhos cheios de lágrimas, mas o coração ardendo çando tudo e todos na sua arremetida!
em ira, destruirá todos os barcos dos índios e dos Mouros, «Como Goa, também Malaca não escapará ao poder das
e, descendo em terra, entrará na cidade de Dalul, que do- armas lusas, e todas as populações destas e doutras cida-
mina e conquista. E depois, na enseada de Diu - que se des se tornarão obedientes aos Portugueses!
tornará célebre pelas batalhas ali empreendidas - fará fu- «Assim Afonso de Albuquerque saberá dar a Portugal
gir as grandes frotas do Rei de Calecute, do Emir e Principe domínios novos e fama que não mais esquecerá!»
do Egito, que ali estará para ajudar os Mouros, e também Cantando sempre, Tétis profetizou ainda mais vitórias
as naus de Mir Hocem, indio temível. futuras aos futuros e valentes soldados da nossa Pátria. E
«Os Portugueses parecerão raios de fogo no ardor com anunciava-as assim:
que destruirão tudo! - «Virá à índia também Lopo Soares de Albergaria,
«Grande vitória será a nova e clara vitória de D. Francisco como Vice-Rei e dispersará mais uma frota que os Mouros,
de Almeida! teimosos, ali mandarão para combater os Portugueses.
«Mas, ai! Ao regressar à Pátria, esse herói que nunca os «Tomará Ceilão, a antiga Taprobana, ilha que produz tan-
Índios, os Mouros e os Egipcios conseguirão matar, será trai- ta coisa boa e saborosa, e, sobretudo, a perfumada canela.
çoeiramente assassinado pelos Cafres do Cabo Tormentório! «Na mais alta torre de Colombo, a sua capital, erguer-se-
«Só a glória ficará de tão grande Capitão! -á a bandeira lusitana.
«Agora», prosseguiu Tétis, «vejo um clarão imenso no «E, depois de Albergaria, veremos Diogo Lopes de Se-
mar de Melinde! queira governar a Índia e de lá partir com uma rica arma-
«São as cidades que não obedeceram aos Portugueses e da, entrando no Mar Vermelho, descobrindo remotas ilhas
às quais Tristão da Cunha deitará fogo. e fazendo respeitar e admirar as proezas dos seus valentes
«Outra luz vejo depois, luz em que se juntam os reflexos marinheiros.
do incêndio que o forte Afonso de Albuquerque acendeu «D. Duarte de Meneses será o quinto Vice-Rei, ilustre
numa frota adversa, e a cintilação das espadas portuguesas pela reconquista de Ormuz, que os Portugueses tinham
que submeterão Ormuz. ocupado e por descuido seu fora perdida...
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«E será a tua vez, Vasco da Gama, já então chamado vencer todas as tormentas e perigos, chegando à cidade
Almirante do Mar das Índias, de governar o país que des- sitiada.
cobriste. «Depois virá o próprio D. João de Castro, também pelo
«Pouco tempo ali estarás, morrendo breve, mas desde Mar, e tal destroço fará nos Turcos, que os restantes fugirão
logo serás imortal pelos teus feitos e grandeza. sem sequer olhar para trás.
«E suceder-te-á D. Henrique de Meneses, homem moço «Mais outros feitos épicos se deverão a esse grande ge-
e prudente, de tão sábio governo, que deixará memória neral.
perpétua dos seus atos e das suas virtudes ... <~0 Rei da Cambaia, embora com quinze mil homens
«Outros virão, dignos de louvor e glória - Mascarenhas, em pé de guerra, não aceitará bater-se contra os Portugue-
Sampaio, Nuno da Cunha, Noronha-, combatentes ousa- ses, tal medo lhes tem.
dos e governadores insignes. «0 Principe Hidalcão, homem tremendo e selvagem,
«Entre eles um teu filho, ó Gama, que irá até Suez, no Mar tentará lutar ainda. Mas ver-se-á perdido e derrotado em
Vermelho, e realizará feitos que honrarão a tua memória. breve, embora traga consigo quatro vezes mais guerreiros
«Outro será Martim Afonso de Sousa, pródigo de atos do que os Lusitanos!
heroicos na costa do Brasil e que ajudará os Índios a ex- «Estes e outros varões, que te sucederão na Índia» - can-
pulsar seus velhos inimigos, os Mongóis, tendo, após este tou ainda a ninfa Tétis - , «dignos todos de prémio e de
grande serviço, sido obrigado a combater os soldados do glória, aportarão como tu a esta ilha de descanso e alegria,
sempre terrível Reino de Calecute. que não é senão a justa recompensa dos trabalhos e fadi-
«Vejo agora», exclama Tétis, «a grande batalha em que gas dos heróis ... »
um dos mais nobres portugueses de todos os séculos, Assim cantou a ninfa, e todas as outras a aplaudiam
D. João de Castro, defenderá a cidade de Diu. Ninguém o com entusiasmo.
excederá na prodigiosa bravura. E todos gritavam: - «Por mais incerta que seja a fortu-
«Entrincheira-se nela D. João de Mascarenhas, só com na, nunca vos hão de faltar, gente famosa, honra, valor e
seiscentos homens contra milhares de turcos, que, ferozes, glória!»
jurarão mesmo banhar os bigodes façanhudos no saque Entre aplausos e aclamações, acabou então o banquete.
dos Lusitanos! Estavam os Portugueses reconfortados, depois de tantos
«Mas a resistência heroica dos vossos dará tempo a que dias passados no Mar, às vezes cheios de fome e sempre
chegue D. João de Castro, e os seus soldados. sem nada comer que se parecesse com aquelas deliciosas
«Primeiro, virão os filhos, Fernão e Álvaro, que o pai iguarias na Ilha dos Amores ...
estremecia, mas que - tão patriota ele era! - não hesitava Tétis disse então a Vasco da Gama que lhe ia mostrar,
em sacrificar ao seu amor da Pátria ... representado em lúcida esfera, o Mundo todo com os seus
«Fernando morre logo em combate. E Álvaro, quando continentes, seus mares, suas nações e regiões várias, para
o inverno rigoroso embravece o Céu e o Mar, conseguirá ele saber melhor onde ia e onde desejava passar e navegar.
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Através de um mato duro, conduziu-o ao alto de um - «Vê o grande Império de Benomotapa, cheio de gente
monte. bárbara, onde o padre português Gonçalo da Silveira pa-
Ali se via um campo tão lindo, que parecia esmaltado decerá morte e vitupério, por não ter a mesma religião dos
de esmeraldas e rubis. Pretos.
Suspenso no ar, estava um grande globo transparente, «Neste lugar encontra-se o oiro brilhante, que desvaira
em que se viam pintados o Céu, o Sol, as estrelas, os plane- tanta gente.
tas, e, no meio de todos, a Terra. «Lá está agora o lago profundo, onde nasce o Rio Cuama
Tétis disse então a Vasco da Gama: - «Eis aqui repre- ou Zambeze.
sentado tudo o que existe e é criação de Deus ... » «As casas dos Negros não têm portas, porque são leais e
Mostrou a Ninfa ao Almirante as luzentes constelações fiéis uns aos outros, e não há, portanto, ladrões entre eles.
e estrelas que ali se achavam representadas: a Ursa Maior «Mas, como inimigos, são cruéis.
e a Ursa Menor; Andrómeda e Perseu; o Dragão terrivel; a «Vencê-los-ão um dia os Portugueses, que apenas em
formosa Cassiopeia, que brilha lá para o Norte; o fulgor in- número de trinta e cinco desbaratarão imensa multidão
quieto do Oriente; o Cisne, que surge em plena Via Láctea; desses selvagens!
a Lebre e os Cães; a Nau ou Argo e a Lira; Saturno, Júpiter e «Mais acima, repara, veem-se as nascentes do Nilo, rio
Marte; e por fim Vénus, astro protetor dos Lusitanos, Mer- inçado de crocodilos, que rega as regiões da Abissinia. O
cúrio e Diana. Rei e soldados deste país não vivem em palácios nem entre
Estas constelações, que tinham todas nomes de divin- muros que os protejam, mas em acampamentos, entregan-
dades fabulosas, pareciam mover-se em volta da Terra, ora do à coragem de todos a sua defesa e a do povo.
depressa, ora devagar, ora num curso longo, ora num curso «Será na Abissínia que um filho teu, Cristóvão da Gama,
breve ... acudindo em auxilio do Imperador dessas terras, vencerá
A Terra estava imóvel, como dantes se imaginava que os Turcos duas vezes, para depois, numa cilada, ser feito
ela era. prisioneiro e morrer, pobre dele, degolado!...
Viam-se os mares dividindo os continentes, e os conti- «Vê mais adiante a costa do Mar, onde o Rei de Melinde te
nentes com os seus diversos paises. deu hospitalidade, e o Rio Rapto e a povoação de Quilimance.
Primeiro a Europa Cristã, mais forte e civilizada do que «Está aqui o Cabo Guardafui ou Arómata, onde começa
as outras partes do Mundo. o Mar Roxo - que tem esse nome por causa da cor das
Depois a África, inculta e cheia de selvagens, com o areias do fundo .
Cabo Tormentoso, que até há pouco se negara a deixar «As belas cidades, as melhores de toda a África - ali se
passar os Portugueses, terra imensa de Infiéis, quase in- levantam junto das praias.
finita. «Eis as praias de Suez» - apontou Tétis a Vasco da
E Tétis, sempre desejosa de falar dos Portugueses, dizia Gama mostrando-lhe o extremo norte do Mar Vermelho -
a Vasco da Gama apontando o Globo: '
«onde se abrigam as mais ricas frotas do Egito.
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«Olha as águas que Moisés fez retirar, no seu caminho pitaleira enseada de Jaquete. Depois, a fertilíssima terra de
para a Ásia, que na Arábia começa ... Ulcinde e a riquíssima Cambaia ... E mil outras cidades, de
«Logo se nos apresenta o Monte Sinai, onde está o se- que não falo, mil cidades, todas elas destinadas a serem vos-
pulcro de Santa Catarina, mártir dos Infiéis. sas um dia ...
«E Áden estéril, e a Serra de Arzira erma de plantas, por «Percorre agora a costa indiana até ao Cabo Comori,
onde as águas do céu correm sem tronco ou raiz que as que está em frente de Ceilão ... Atenta nela bem! A gente
detenha. lusitana terá ali vitórias, ali ganhará grandes riquezas, e ali
«E as três Arábias - a Arábia Pétrea, a Arábia Deserta e possuirá terras opulentas, nas quais há de mandar durante
a Arábia Feliz - regiões extensíssimas onde os habitantes muitos séculos.
têm uma cor baça, e donde vêm os cavalos para a guerra, «As provincias que vês entre um e outro rio são de in-
ligeiros e sem medo ... finito tamanho. Aqui um reino é maometano, ali outro é
«Para díante - vês o Estreito de Ormuz, na Pérsia. índio. Mas neles ambos encontrarás memórias da tua raça
«E, por aí fora, o Reino de Ormuz, o Golfo Pérsico, a Ilha e religião.
de Barém, rodeada por um mar em que se pescam pérolas, «Em Meliapor, cidade de Narsinga, estão as relíquias do
pérolas rosadas como a cor da aurora, e onde desaguam o corpo de S. Tomé, que de longe veio pregar a Fé de Cristo
Tigre e o Eufrates. aos Índigenas que adoravam os ídolos antigos. E um caso
«Nesse nobre império, que é o império dos Persas, os ho- estranho lhe sucedeu...
mens são cavaleiros magníficos e os guerreiros não usam «Estava ele em Narsinga pregando, dando saúde a doentes
combater com artilharia. Só frente a frente, cara a cara, se e ressuscitando mortos, quando um dia um grande tronco
desafiam e lutam. trazido pelo Mar apareceu perto da praia. O rei daquela
«Aqui, D. Filipe de Meneses - fidalgo português - mos- terra, que andava a edificar palácios e casas, resolveu apro-
trará a sua inaudita coragem. Meia dúzia de Lusitanos, sob veitar esse tronco, e mandou que o puxassem para terra, à
as suas ordens, vencerão mais uma vez um sem-número força de homens, de engenhos e de elefantes. Mas não se
de inimigos. conseguiu mover o madeiro, tão pesado ele era.
«E o mesmo fará outro herói da tua terra, D. Pedro de «S. Tomé pensou logo em aproveitá-lo para edíficar uma
Sousa, cujo nome ficará temido e respeitado na Pérsia lon- igreja.
ginqua ... «Ata o cordão que lhe aperta a cinta à volta do tronco -
«Deixemos agora», continuou a bela Tétis, «deixemos o e, sem a menor dificuldade, logo o traz para junto de si!
Estreito de Ormuz, e o próximo Cabo de Jasque, na região da «Milagre da Fé, que - e assim Cristo lho ensinara -
Carmânia, onde as plantas e as flores nunca aparecem, tão tudo é capaz de conseguir, se for grande e forte ...
árido e ingrato é o solo, onde nenhum veio de água corre... «Ficaram os índios alvoroçados com o caso. E os seus
«Vejamos antes o formoso Indo e o extenso Ganges Brâmanes receavam já perder a autoridade que têm sobre o
- cada um nascendo da sua altura - e, adiante, a hos- povo. Cheios de inveja, procuram modo de matar S. Tomé.
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«E um deles - de que se lembra? De matar o próprio «Choraram-no também as almas que ele tomara cristãs.
filho e dizer que o a3sassino era o piedoso apóstolo! «Mas os anjos do Paraíso receberam-no e acolheram-no
«Arranjam falsas testemunhas e condenam Tomé à mo~ na eterna Glória, e a Ele pedimos sempre que favoreça os
te. Mas Tomé, confiado em Deus, por Deus chama e invoca - Lusitanos amigos ...»
e manda trazer à presença dos seus acusadores e do rei de Tétis, depois desta lembrança triste, continuou a indicar
Narsinga o corpo do rapaz assassinado. a Vasco da Gama as terras que seriam dos Portugueses:
«Ordena ao rapaz que ressuscite e ali revele quem o - «Com Meliapor começa a enseada do Ganges. O reino
matara. de Narsinga, rico e poderoso corre ao longo da costa; depois
«Ressuscita o morto, com admiração e espanto de toda vem o Reino de Orixá, onde se tecem roupas opulentas. No
a gente! fundo da enseada, o rio sagrado - o Ganges - lança-se
«0 rei, que era infiel, tão impressionado ficou, que se no Mar. É sagrado este rio, porque os Índios supõem que,
batizou logo e se fez cristão. E muita, muita gente lhe se- banhando-se nele, se lavam de seus pecados e impurezas ...
guiu o exemplo. «Aparece logo abaixo Chatidão, uma das melhores ci-
«Tomé é então festejado e acarinhado. Vários indígenas dades da provincia de Bengala, que se preza de ser abun-
beijam-lhe o manto, com respeito; os Brâmanes, porém, dante. E repara que nesse lugar já a costa se volta para o
não se dão por contentes. E decidem então matá-lo, fosse Sol...
como fosse ... «Mais cidades, mais reinos, Arracão, Pegu, vês surgir até
«Estava Tomé mais uma vez pregando ao povo, quando chegar ao Sião, império enorme, onde todas as mercado-
os Brâmanes fingiram que havia um grande barulho entre rias dos mares da China vêm parar. Dizem que desta terra
a multidão. Gritam, correm de um lado para o outro, como foi separada, pela força das ondas, a nobre Ilha de Sama-
cheios de medo. Vendo-os assim, começou a multidão a tra - que se chamou dantes Quersoneso ou Península do
assust~e. E os Brâmanes vão murmurando que o verda- Oiro. E é, na verdade, terra cheia de oiro. Por isso também
deiro culpado do barulho - é o Santo! imaginaram que ela fosse Ofir, a região do Oriente, onde o
«A multidão, receosa, acredita e indigna-se. E pega nas antigo Rei Salomão mandava buscar o precioso metal...
pedras da calçada para lapidar Tomé. As pedras são tantas «Vê ainda Singapura, na ponta da terra onde o caminho
e tão pesadas, que ele já nem resiste aos seus golpes e des- das naus se estreita, e o litoral, na direção do Norte, se en-
falece no chão. curva em seguida para o Oriente. E olha os reinos de Pam e
«Um índio vem então junto dele e atravessa-lhe o peito de Patane, e o longo Sião, e o Rio Menão, que sai do grande
com uma lança. Morreu logo o apóstolo, volvendo os olhos lago chamado Chiamai...
ao Céu. «Outras regiões contemplas agora» - prosseguiu a
«A gente boa daquela terra chorou longamente S. Tomé. Ninfa - , «regiões ainda ignoradas pelos teus e por todo o
E até o Rio Ganges e o Rio Indo, e a terra toda que ele pisa- Mundo, e algumas povoadas de selvagens que se alimen-
ra, se entristeceram com saudades. tam de carne humana e tatuam o corpo com ferro em brasa.
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«Em Camboja, na foz do Mecongue, naufragará um dia «Nessa grande terra da América que vai do Polo Norte
Luís de Camões... Os Lusíadas, que nunca abandona, são ao Polo Sul, conquistará várias provincias para a Espa-
levados pelas ondas e ficam a boiar nas águas revoltas, nha.
entre procelosos baixios. Camões lança-se ao Mar, salva o «Mas a frota que primeiro chegará à América, será a fro-
manuscrito precioso, e, nadando só com um braço, entrará ta de Pedro Álvares Cabral, descobridor de Santa Cruz, ou
no remanso do rio. Cansado, exausto quase, na mão livre Brasil, nome que vem de uma lustrosa madeira vermelha,
segurará o poema bem-amado, em que louvará e cantará o cor de brasa, que lá se encontra.
seu Povo e a sua Pátria... «Será ao longo do litoral do Brasil que Magalhães desce-
«Até à China, até ao Japão, podes continuar a seguir a costa. rá depois até às mais remotas paragens da sua travessia - Ma-
«Olha ainda as infinitas ilhas espelhadas pelos mares galhães, português no heroísmo e na alma, embora então
do Oriente - uma, onde nasce a árvore do cravo; outra, ao serviço de Espanha ...
onde um vulcão lança as suas chamas até ao céu; outra, «Encontrará Magalhães o estreito que há de ter o seu
onde as aves do Paraiso, que nunca se viram descer à Terra nome - e que liga o Atlântico ao Pacífico, na região que o
senão mortas, brilham no ar como o Sol... frio vento do extremo Sul defende da curiosidade alheia ...
«E as ilhas de Banda, cobertas de árvores da noz, po- «Até aqui» - disse então a Vasco da Gama a Ninfa
voadas de milhões de aves formosas que de nozes se ali- encantadora - «até aqui vos é concedido saber, ó Por-
mentam ... E Bornéu, onde a cânfora flui e cai, em lágrimas tugueses, os feitos futuros do vosso povo, e as terras que
transparentes, da planta que a produz. os vossos navegadores desvendarão e conquistarão, alcan-
«E a Ilha de Timor, rica de sândalo perfumado, tão be- çando glória eterna, e perpétuo respeito no coração dos
néfico para a saúde. E mais ilhas ainda, que dão benjoim, vindouros.
oiro e pedras preciosas, todas as riquezas, todas as essên- «A imortalidade dos vossos heróis e marinheiros será
cias, não sendo a menos estranha aquela onde uma fonte sempre ganha lealmente pela sua valentia e audácia, pela
se vê, manando e escorrendo óleo ... grandeza dos seus propósitos.
«Para o lado de cá, Ceilão, coroado por um alto monte, «0 Mundo e o Mar, cujos segredos nenhum outro povo
que os naturais julgam milagroso. E as Maldivas, Socotorá, se atrevera jamais a descobrir, eles, continuando a tarefa já
Madagáscar... Tudo isto vós ofertais agora ao Mundo, abrindo começada, os descobrirão, explorarão e dominarão até aos
as portas do Mar que navegastes com tanta coragem... Tudo seus mais distantes confins ...
isto - esse Oriente que vindes agora de alcançar e descobrir... «Sejam pois os Portugueses honrados e celebrados hoje
«Mas também para o Ocidente - novos e grandes feitos e sempre, em toda a Terra e por todos os homens de todos
cometerão os vossos ... os paises do Globo - do Globo que tomaram conhecido,
«Fernão de Magalhães, ao serviço de Castela, mas lusita- ensinando assim as nações e as greis a conhecer-se e a es-
no legitimo, dará a primeira volta ao Mundo - proeza que timar-se mais e melhor!»
nunca ninguém sequer tentara antes dele.
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viver, trabalhar e combater pela Pátria, e imortalizar em


versos de incomparável beleza a energia, o esforço, os
feitos e os triunfos jamais igualados da ocidental gente
Vasco da Gama e os seus companheiros gostariam de
ficar ainda algum tempo na ilha maravilhosa ... Mas o ven- lusitana!
to e o Mar estavam serenos, e foi a própria Tétis que os
aconselhou a embarcarem logo, para chegarem, sem mais
tormentos nem aflições, à Pátria querida.
Partiram, pois, levando água e mantimentos frescos.
E, enlevados sempre na lembrança daquela estada feliz e
daquelas ninfas tão acolhedoras e amáveis que os tinham
agasalhado e reconfortado, levaram consigo a certeza de
imorredoira fama para os seus feitos inigualáveis.
Não se descreve o que foi, semanas depois, a chegada
dos navegadores a Portugal.
O Tejo corria mansamente. E as naus, que ninguém es-
perava, entraram a barra de surpresa, causando entusias-
mo sem par entre a multidão que aos poucos se juntava e
apinhava nas margens do rio.
Vieram o Rei e a corte receber Vasco da Gama e os seus
companheiros.
Os abraços, as exclamações de regozijo, as lágrimas de
comoção não cessavam. Todos os peitos arfavam de ale-
gria. Todos os olhos choravam de contentamento.
Ninguém calava a sua admiração pela ousadia e pela
tenacidade dos nossos marinheiros, que tão longe tinham
ido, tantos prodígios tinham visto, tantos perigos tinham
passado - e ali se encontravam outra vez respirando o ar
deleitoso da sua terra, engrandecida pelo esforço ingente
desses lusitanos ilustres.
Portugal era senhor de vastas possessões e de vastos
oceanos, pelo valor e pelo patriotismo dos seus filhos!
Glória ao povo de Portugal! Glória também ao Poeta
que - braços às armas feito, mente às Musas dada - soube
HISTÓRIA DE
LUÍS DE CAMÕES
L uís de Camões, autor de Os Lusíadas, foi um grande
poeta. Poucos, pouquíssimos poetas terá havido que
se possam comparar. Maior do que ele, nunca existiu ne-
nhum, nem em Portugal, nem em qualquer outro país do
Mundo.
Não foi só grande poeta, Luís de Camões. Foi também
grande patriota e valente soldado. Amou a pátria com de-
dicação sem limites, cantando-a, celebrando-a nos seus
poemas, sobretudo n'Os Lusíadas, cultivando a sua língua
com amorosa ternura, e batendo-se corajosamente por ela
na África e na Ásia.
Na África, defendeu várias vezes Ceuta das arremeti-
das dos Mouros, perdendo um dos olhos em combate. Na
Ásia, pertenceu a várias expedições ao Estreito de Meca,
para afugentar os navios dos corsários que ali vinham im-
pedir a navegação das nossas caravelas. Para ele, a Pátria
estava acima de tudo - e não fez outra coisa, durante a
sua vida inteira, senão louvar as virtudes do seu povo e dos
seus heróis, ou lutar para a fazer respeitada e admirada por
todos.
HISTÓRIA DE LuiS DE CAMÕES OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

Por isso, o povo português levantou-lhe a estátua que se provincia onde estava. Pediu então que o deixassem alistar-
vê na Praça de Luís de Camões, em Lisboa. E todos os anos, -se como soldado, para ir defender a Pátria nas regiões de
no dia 10 de junho, data da morte do poeta, o seu nome, a além-mar. Mandaram-no para Ceuta. Foi ferido, como já se
sua obra e a sua vida são comemorados nas escolas e lem- disse, e perdeu um dos olhos. Depois de dois anos de guer-
brados por todos os bons e sinceros patriotas. ra, voltou para Lisboa, onde resolveu ficar.
Camões era um rapaz sem medo e sem cobardia - tudo
o que fosse injustiça o desesperava e indignava. Uma noite,
em plena rua, por causa de uma questão, em que julgou
Luís de Camões nasceu em Lisboa, em 1524 - fins do que um dos criados da casa real o ofendera, desembainhou
primeiro quarteirão do século XVI. Em Lisboa passou a sua a espada - todos os fidalgos andavam então de espada à
infância e ainda muito novo foi estudar para Coimbra. Já cinta - e feriu o adversário. Desta vez prenderam-no, e só
nesse tempo se estudava ali muito. Mas o que ele mais passado um ano o libertaram, mandando-o para a Índia.
gostava de aprender era a História de Portugal. Como era Conheceu o poeta nessa viagem as regiões e os mares por
pobre, aceitou a proteção de seu tio D. Bento, sacerdote e onde Vasco da Gama passara, e que ele iria descrever n'Os
sábio, que o ia guiando nos estudos. Um belo dia, porém, Lusíadas. Desceu o Oceano Atlântico, dobrou o Cabo da Boa
abandonou Coimbra, antes mesmo de completar o curso Esperança, e aportou a Goa. A contemplação dessas para-
e veio para Lisboa. Porquê? Ainda ninguém o sabe. Mas gens, que os Portugueses tinham descoberto e visto antes de
decerto para conhecer a cidade principal do seu Pais, e aí mais ninguém, ensinava-o a avaliar bem o esforço fonnidável
compreender melhor as aspirações e a vida de Portugal... do povo audacioso e persistente, que fora capaz de vencer
Reinava D. João III. Luís de Camões era fidalgo e podia todos os perigos e terrores de tão difícil e arriscada travessia.
frequentar a corte. Ia às festas e saraus do palácio real. Foi Na Índia, a sua existência foi tormentosa, embora de-
nessas festas que viu uma linda menina, com quem resol- sempenhasse um lugar público. Como dizia sempre a ver-
veu casar-se. Escreveu muitos versos consagrados a essa ra- dade aos poderosos, os poderosos vingaram-se, castigando-
pariga nobre. Mas nunca disse o verdadeiro nome da sua -o e prendendo-o. Mas dia a dia, hora a hora, ia compondo
apaixonada, tratando-a nas poesias pelo nome inventado os seus Lusíadas. E a consciência, que decerto já possuía,
de Natércia. O pior de tudo era que o poeta não tinha fortu- de neles celebrar como nunca nínguém fizera, a grandeza
na - e a menina era rica. Ora, nesse tempo, os pobres não e a glória lusitanas, consolava-o das suas desventuras.
casavam com os ricos. O rei, indignado, e não querendo Sempre mais ou menos perseguido pelos seus inimigos,
que o casamento se realizasse desterrou Camões para longe Camões é mandado para Macau, na China, onde se funda-
de Lisboa, para o Ribatejo. E lá foi o jovem Camões exilado, ra uma colónia portuguesa. Em Macau, mesmo perto e em
sofrendo as consequências dos costumes rigorosos da corte. frente do Mar, havia uma espécie de gruta. Para ali Camões
Não lhe agradava, porém, o desterro. Aborrecia-se por ia escrever o seu poema, e pensar no seu querido Portugal
não poder trabalhar, nem ganhar a sua vida, na terra de distante ...
HISTÓRIA DE LUÍS DE CAMÕES OS LUSÍADAS CONTADOS AS CRIANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

Arranjara um companheiro, um criado - o Jau Antó- lhe valeu foi poder abraçar-se a um rochedo alto, e espe-
nio, que nunca mais o abandonou até à morte. Foi nessa rar assim que um barco o viesse buscar. N'Os Lusíadas e
gruta, olhando o Mar, que o poeta compôs a maior parte numa outra célebre poesia sua, Camões evoca o doloroso
d'Os Lusíadas e muitas poesias mais curtas, como sonetos, caso, falando do:
odes e canções.
Encostava-se a uma pedra, punha o papel nos joelhos, ... <<Canto que molhado
e voltado para o Oriente - enchia páginas e páginas com «Vem do naufrágio triste e miserando,
as estrofes em que narrava e cantava as proezas de Vasco «Dos procelosos baixios escapado».
da Gama e de todo o povo português. Assim afugentava ou
tentava esquecer as saudades da Pátria. Cinco anos tinham passado desde a sua partida de Lis-
O fiel Jau sentava-se ao lado dele; e, quieto silencioso, boa. As saudades da Pátria eram maiores do que nunca.
seguia cheio de respeito o trabalho do seu senhor. Camões Mas, em Goa, esperava-o a prisão! Os seus adversários, que
tratou-o sempre muito bem - e trouxe-o depois para Por- eram poderosos, tinham conseguido convencer as autori-
tugal. Naqueles momentos, gostava de sentir ao pé de si a dades de que o poeta, o herói, o grande português era - o
presença do companheiro afetuoso e dedicado, verdadeira quê? Um ladrão!
consolação para as maiores tristezas e dificuldades. Talvez Preso ficaria muito tempo, se dois amigos de Camões
por isso, e embora constantemente desejoso de voltar a - lembremos e respeitemos, com orgulho, os seus nomes
Portugal, a sua estada em Macau não foi muito desagra- ilustres: Álvaro da Silveira e D. Coutinho de Bragança - não
dável! Ao menos, podia consagrar-se livremente à compo- tivessem chegado a Goa nessa ocasião. E, como o segundo
sição do poema que trazia na alma e na imaginação há vinha desempenhar o cargo de Vice-Rei, logo teve força para
tantos anos! mandar pôr em liberdade o poeta injustamente encarcerado.
Mas nem ai o deixaram descansar. Os seus inimigos Alguns anos ficou ainda Camões em Goa - tomando
da Índia não o poupavam, e acusaram-no falsamente de parte em várias e perigosas expedições contra os Turcos
ter roubado. Para se defender da acusação, voltou a Goa. e os Mouros. Mostrou a todos que não só escrevia versos
Na viagem de Macau para Goa, naufragou. O barco onde como mais ninguém, mas que sabia também combater ar-
vinha foi ao fundo na foz do Rio Mecongue, na costa do dorosamente os inimigos de Portugal. Como ele próprio diz
Camboja (Indochina). Perderam-se haveres, mercadorias e n 'Os Lusíadas, tinha «numa mão sempre a espada e nou-
passageiros. Camões tudo perdeu, também. tra a pena;> e o «braço às armas feito e a mente às Musas
Até o manuscrito d'Os Lusíadas, que ele trazia sempre dada». Toda a sua vida assim foi, e no seu exílio da Índia
consigo, se perderia - se o poeta, vendo-o boiar nas ondas, provou e afirmou igualmente o seu génio literário e a sua
se não lançasse à água para o salvar, indo apanhá-lo, todo imensa coragem de guerreiro.
molhado já entre as espumas do Mar embravecido. Camões Em 1567 consegue arranjar algum dinheiro, que lhe
escapou então por muito pouco de morrer afogado. O que emprestam uns amigos - pois naquele Oriente tão rico o
HISTÓRIA DE LUiS DE CAMÕES OS LUSÍADAS CONTADOS ÀS CR1ANÇAS E LEMBRADOS AO POVO

poeta não soubera senão empobrecer, tal o seu desprezo de Espanha. Durante sessenta anos seríamos, de facto, go-
das riquezas e comodidades - e parte primeiro até Mo- vernados pelos reis desse país, outrora inimigo.
çambique, onde, depois de dois anos, embarca no navio Como antidoto e remédio contra a vergonha e a baixeza
que o transportaria a Portugal. De Moçambique a Lisboa, de tal situação, Os Lusíadas andaram desde logo nas mãos
viajou de graça. O pouco dinheiro que arranjara - não era de todos os bons Portugueses. Enquanto Portugal não re-
bastante para o regresso tão desejado ... conquistou a independência, foram leitura fiel daqueles
Enfim, em 1570 chega a Lisboa. A peste devastava a que precisavam de fortalecer a sua confiança na Pátria e
capital, e a frota em que vinha o navio conduzindo o poeta no Povo oprimidos. Hoje ainda - hoje e sempre - o poe-
teve de fundear em Cascais, antes de entrar a barra, à espe- ma de Luís de Camões ensina a estrangeiros e a nacionais
ra de autorização do Rei para o desembarque dos passagei- a grandeza e a eternidade do destino de Portugal.
ros e mercadorias.
Mais um contratempo, que o poeta sofreu sem queixas.
Mas ao menos avistara já a sua terra, e breve poderia sentir
o carinho do berço natal. No entanto, ao desembarcar al-
guns dias depois, encontrou a cidade com um aspeto mui-
to triste - casas e lojas fechadas, e as ruas abandonadas
de multidão ...
Tratou logo Camões, apesar de tudo, de publicar Os
Lusíadas. A impressão do poema terminou em 1572 -
e Camões, que os oferecera ao Rei D. Sebastião, leu-os no
paço real. O Rei deu-lhe uma pensão que, razoável embo-
ra para aquela época, não era a recompensa devida a tão
grande génio e tão insigne patriota. O poeta continuou a
viver pobremente.
Pobre morreu, em 1580. Quando morria - conta-se -o
seu fiel jau levava-lhe a notícia do desastre de Alcácer
Quibir...
«Pátria, ao menos, juntos morremos» - exclamou ele en-
tão, segundo narra Almeida Garrett no seu poema Camões.
Que estas palavras sejam ou não autênticas, é o que nin-
guém assevera ... Mas a verdade é que a vida de Camões se
extinguiu no mesmo ano em que morreu D. Sebastião e em
que Portugal adivinhava já, ameaçadora e teimosa, a cobiça
ÍNDICE

Prefácio .... ................. ................................................................ 7

I. Começa a viagem ................... ............... ................... ............ 9


II. Perigos e traições .............................................................. 15
III. O Rei de Melinde acolhe os portugueses ..................... 25
IV. A mais linda história do Mundo ................................... 33
V. O Gigante Adamastor..... ................... ............................... 51
VI. Magriço ....... .... ............. ...................... ................ ............... 63
VII. A Índia ............................................................................. 73
VIII. Heróis de Portugal .. .. .................... ................................ 81
IX. Os portugueses regressam da Índia ............................. 95
X. A ilha maravilhosa - Chegada a Portugal.. ................ 101

História de Luís de Camões ............... ................... ............. 123

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