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M. E. S.

Almeida 17

CONSTITUIÇÃO ESPECULAR DO DESEJO E SUA


ATUALIZAÇÃO NO ADULTO

WISH SPECULAR CONSTITUTION AND ITS UP DATE IN ADULT

Maria Emilia Sousa Almeida1

Universidade de Taubaté
Resumo
Nesse artigo, examina-se a constituição especular do desejo da criança a partir do desejo de seus
objetos primários. Assim, as representações, afetos e vazios representacionais da criança se articulam
as representações, afetos e vazios representacionais de seus pais. Esse processo favorece o bloqueio
na atualização do desejo do adulto. Vários fatores contribuem para isso: os vazios representacionais
no desejo dos objetos primários e do sujeito, sua identificação e contra-identificação com eles,
a formação do objeto idealizado e do objeto imaterial-simbólico, as alterações no sistema das
representações no trauma do absoluto. Portanto, uma série de hipóteses de trabalho são propostas
pela autora, para tentar entender esse fenômeno. O método clínico psicanalítico permite, afinal,
que o sujeito, quando adulto, possa atualizar seu desejo no mundo. O pensamento de alguns
psicanalistas favorece a reflexão da autora sobre essas questões.
Palavras-chave: representações, afetos, desejo, vazio representacional

Abstract

In this article, the specular constitution of a child’s wish is related to his/her primary material
wishes. In this case, the child’s representations, affects and representational voids are linked to his/
her parents’ representations, affects and representational voids. This process favors the block in the
adult’s wishes’ update. Several factors contribute to this: representational voids in primary objects
wishes and in the subject, his/her identification and counter-identification with them, the idealized
object and symbolic-immaterial object, alterations in the representational system regarding absolute
trauma. Therefore, a series of work hypotheses are proposed by the author in order to understand
this phenomenon. The psychoanalytical clinical method allows the patient, when adult, to update
his wishes in the world. Some psychoanalysts’ thoughts favor the author’s reflection regarding these
questions.
Keywords: representations, affects, wish, void representational

1 Contato: maealmeida@yahoo.com.br

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Torna-te quem tu és. realização e enunciam limites e interditos.


(Nietzsche)
Sustentam o recalcamento de representações,
Insista em si mesmo. Não copie. a supressão de afetos e a renúncia pulsional no
(R. W. Emerson) herdeiro. O sujeito é nomeado, representado
segundo o desejo dos porta-vozes do desejo,
INTRODUÇÃO interditos e ideais do grupo.
Neste artigo, a autora propõe algumas A partir dessa herança psíquica, o eu
hipóteses de trabalho sobre a constituição do sujeito é impregnado pelo objeto em seus
especular do desejo, com base na clínica, a primórdios de formação e, nele, tendem a se
partir de conceitos de psicanalistas da vertente constituir aspectos do não-eu.2 Em virtude
transgeracional e de outras escolas. Entre eles da transmissão psíquica na família, no mais
encontram-se Kaës (2001), Eiguer (1998), das vezes, ocorrem distorções do material
ao lado de Racamier (1991) e Green (2008), psíquico herdado pela criança. Nessa medida,
por exemplo. O método clínico psicanalítico podem imperar nela desde aspectos do não-eu
sustenta a articulação entre um caso clínico até aspectos do profundamente não-eu. Neste
e as hipóteses da autora, apresentadas no caso, a transmissão comporta distorções
decorrer do trabalho. graves na mente de seu herdeiro. Assim sendo,
No sujeito, em sua infância, a a via intersubjetiva de constituição do desejo
constituição especular do desejo remete do sujeito pode ser marcada pelo registro
a sua construção como uma espécie de do fake, com suas diferentes gradações. Em
espelho entre representações, afetos e vazios meio a isso, a sucessão geracional imbrica
representacionais de seus objetos primários e avós, pais e sujeito, em sua infância. Como
dele. Esse processo retrocede, no mínimo, à formação psíquica fake, interliga sujeito,
geração dos pais de seus pais, sob o prisma das objetos primários e objetos secundários, em
relações transgeracionais. sua vida adulta.3 Os objetos secundários do
A vertente psicanalítica da transmissão sujeito são aqueles escolhidos pelo adulto:
da vida psíquica entre as gerações da família humanos e objetos imaterais-simbólicos,
tem se dedicado ao estudo dos objetos como música, literatura, cinema, escultura,
psíquicos, de suas representações e afetos, entre outros. São constituintes de seu sistema
entre outros. Assim, para Kaës (1998), os das representações, formado em sua infância.
membros do grupo transmitem configurações O sistema das representações constitui
de objetos psíquicos (representações, afetos e um aparato psíquico do sujeito, capaz, a priori,
fantasias) munidos de seus vínculos, incluindo de representar seus impulsos, relações de
relações de objeto. Certos membros do objeto e estados mentais.4 Ele é constituído
grupo que precede o sujeito mantêm-no
2 Winnicott (1987) aponta que, no período de dependência relativa,
numa matriz de investimentos, predispõem o bebê vive estados de integração e não integração, formando
conceitos de eu e não – eu, de mundo externo e interno. 
sinais de reconhecimento, designam lugares, 3 Freud (1915a/2006) designa os pais como os objetos primários
da criança.
apresentam objetos de satisfação, oferecem 4 O sistema das representações é um termo de Herrmann (2001)
interligado a conceitos do autor. Não foi desenvolvido, por ele,
meios de proteção e ataque, traçam vias de como um conceito em si. A autora desenvolve sua concepção
sobre ele em face das questões transgeracionais que instigam seu

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por diferentes camadas ou estratos psíquicos. ser amado, ser inteligente, ser competente, ser valorizado,
Em seus estratos inconscientes são produzidas ser bem-sucedido, ser vitorioso, ser ganhador, ter
as representações ou seus rudimentos pré- méritos próprios, investidas por amor. Elas estão
representacionais. A função desse sistema radicadas em seus estratos inconscientes,
de representar as vivências do sujeito não se ao passo que as representações do absoluto
desenvolve de per si. Depende dos sistemas tendem a se fixar no estrato consciente do
representacionais de seus objetos primários e, sistema.
assim, se submete ao seu desejo. Este se realiza Nesse trauma, há uma falha funcional
de modo mais “fluido” ou fica paralisado, no do sistema, no que se refere à produção,
adulto, com base nas representações e afetos ao manejo, à organização e à integração
parentais projetados, nele, por seus pais, das representações e afetos coerentes com
quando criança. Essa projeção compreende: o desejo.6 Portanto, as representações do
ser designada como inteligente ou imbecil, absoluto atuam como vazios funcionais no
flor ou verme, especial ou insignificante - no sentido de dificultar a realização do desejo do
plano consciente – além de suas projeções adulto. A despeito do trabalho de análise, as
inconscientes. Esses conteúdos psíquicos representações do absoluto tendem a se manter
introjetados pela criança têm relação com o no estrato consciente do sistema, enquanto as
material psíquico disseminado por seus pais, representações solidárias ao desejo tendem a
igualmente herdado de seus genitores. permanecer no estrato inconsciente. Faz-se
Entre esse legado psíquico, o trauma longo o tempo de análise até que o sujeito
do absoluto pode se constituir no sistema integre as representações harmônicas com seu
das representações. O trauma do absoluto desejo, ao estrato consciente do sistema. O
se caracteriza pelo sobreinvestimento de sistema comporta, assim, representações que
ódio e horror em certas representações: ser funcionam como vazios representacionais no
desamparado, ser abandonado, ser rejeitado, ser âmbito do bloqueio na atualização do desejo
fracassado, ser devedor, ser perdedor, ser não amado, do adulto. O irrepresentável sob o absoluto
ser invulnerável ao amor, entre outras.5 Em remete às representações de ser amado, ser
contraposição a estas, outras representações acolhido, ser bem-sucedido, ser vitorioso, ser autônomo
favorecem a realização de seu desejo. São elas: em seu desejo. Elas podem integrar-se ao
trabalho teórico-clínico.
estrato consciente do sistema, com a análise
5 Esse constructo hipotético se articula a quatro correntes do desejo do sujeito.
da psicanálise. A princípio, o absoluto filia-se à teoria das
representações de Freud (1915b/2006). Porém, embora Freud No tocante a isso, Eiguer (1998)
destaque os investimentos libidinais nos representantes ideativos,
não considera os investimentos de ódio. Por outro lado, ainda considera que a teoria de relação de objeto
que enfoque o ódio, Klein (1932) aborda os ataques destrutivos
aos objetos internos – e não os investimentos de ódio nas da transmissão psíquica entre as gerações
representações. Índice de traumas para além da relação primária, o
absoluto liga-se à transgeracionalidade de Eiguer (1998) e de Kaës descreve a representação e o irrepresentável.
(1998). Essa corrente investiga a transmissão da vida psíquica
entre as gerações, os efeitos do trauma sobre a representabilidade
A representação de objeto transgeracional
psíquica, os segredos, as criptas, as pragas, a vergonha, entre liga-se à falta de representação, ao vazio, ao
outros. Termo cunhado por Herrmann (2001), o sistema das
representações adquire uma concepção própria no contexto do
absoluto. Desse modo, essa hipótese da autora não se associa, em 6 Afetos, no contexto, da clínica da autora, se referem a amor, ódio,
particular, a nenhuma dessas abordagens. Portanto, dialoga-se com horror, pavor e outras emoções que fornecem uma carga energética
elas, sem desrespeitar suas diferentes bases metapsicológicas. às representações ou ideias relativas ao desejo.

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oco. Na clínica, o irrepresentável é concebido conteúdos infantis sejam projetados em seus


na falta de uma representação que um dia objetos secundários. Nesse caso, quanto maior
será conhecida. Kaës (2001) propõe que a a radicalidade das defesas do sistema ante a
transmissão psíquica pode apoiar-se no que dor psíquica associada a esse trauma, maior
falha e falta e, numa negatividade radical, será a distorção lógica de suas representações.
na ausência de inscrição e representação Assim, o sofrimento representado pelo sujeito
e no material psíquico sob estase, sem como ad aeternum rompe logicamente o tempo
estar inscrito. Há a falha da metabolização real de sua existência real.
psíquica do que liga sujeito ao conjunto e o Nesse contexto, ser membro e
essencial da transmissão escapa à atividade de partícipe de uma família implica aceitar sua
representação. forma de organização. O estatuto da família
Com as representações do absoluto é formado pelo conjunto de ideais, valores,
que funcionam como vazios representacionais preceitos, ditames, injunções e interditos que
contra a realização do desejo no adulto, demarcam seu funcionamento. Seu estatuto
os vazios representacionais no desejo dos pode ser mais saudável/construtivo ou mais
objetos primários contribuem para a paralisia patológico/destrutivo. Com seu diapasão
na satisfação do desejo desse adulto. Foram ancestral, repercute sobre seus componentes
herdados por ele e constituem seus próprios e, desse modo, favorece sua saúde ou sua
vazios representacionais no sistema. Com isso, patologia.
o trabalho de análise para a assunção de seu Na patologia ancestral do trauma
desejo é bastante difícil. do absoluto, uma espécie de umbral de
Além disso, o sistema das destrutividade pode definir o “proibido
representações pode criar uma clausura absoluto” da família contra o desejo singular
psíquica ou um lócus de proteção a esse do sujeito. O proibido absoluto se refere a
sofrimento traumático. Nesse caso, acaba por aspectos de seu desejo alçados a um nível de
perpetrar o ódio do sujeito às suas conquistas satisfação impossível, p. ex.: sucesso no amor,
ao longo do tempo, inclusive na análise. Sua sucesso no mundo das relações humanas,
criação se mescla com a ruptura do tempo e exercício prazeroso e saudável da sexualidade,
do espaço conscientes, favorecendo alterações relação bem-sucedida com dinheiro, entre
nas representações do tempo e espaço. outros. Desse modo, o umbral designa a
Com isso, surgem outras representações do travessia do sujeito entre o proibido absoluto
absoluto: ser submetido para sempre ou por do desejo na família e sua possibilidade
séculos ao sofrimento psíquico, não ter espaço no de efetivação no mundo, quando adulto.
mundo. Podem surgir outras representações Essa efetivação depende da transição por
de tempo e espaço: o tempo parou, minha vida diferentes momentos de sua elaboração em
ficou em suspenso, entre outras. Estas constituem análise, visando realizar o desejo do sujeito
depósitos do tempo e do espaço no sistema, em sua singularidade. A idealização do objeto
sem serem representações do absoluto. Logo, e a persecutoriedade do desejo do sujeito são
esse trauma do sujeito faz com que seus elementos desse umbral: passagem entre o

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quase e o nunca,7 pois a efetivação do desejo No absoluto, o ódio e o horror


do adulto no trauma do absoluto situa-se na constituem afetos fundamentais da interdição
borda entre o quase e o nunca.8 ao desejo do sujeito, mantendo a interdição
O quase sinaliza a lacuna entre o familiar. Entre os congêneres afetivos
passado – sobrecarregado de sofrimento - derivados do ódio, a clínica revela o horror,
e o futuro - eivado de terror que paralisa o o pavor e o desespero. A despeito de seu
desejo, como na frase: quando tudo cair, desabar, sofrimento na família, certo membro pode
desmoronar. O quase situa-se, ainda, na fronteira sentir desespero diante da sensação de estar
entre o presente – no qual ele pode realizar inexoravelmente preso a essa estrutura, mas
seu desejo - e o futuro – no qual ele projeta sentir pavor de romper seus ideais e ditames.
representações sobreinvestidas de amor no Eles contribuem para fixar o pathos da família.
objeto desse desejo: ser magnífico, ser poderoso, ser Essa conjuntura contribui para o vazio
absoluto. Com isso, os atributos projetados nesse representacional de representações coerentes
objeto idealizado adquirem valor supremo, com o desejo do sujeito.
que minimizam o valor do sujeito. O desejo Quanto a isso, Green (1998) lembra
do sujeito torna-se persecutório, visto que seus que o ódio é expressão da pulsão de morte.
atributos são investidos de ódio: ser desprezível, Afirma que a pulsão de vida está ligada à
ser insignificante, ser nada. Ele se representa, função objetalizante e a investimento e,
inclusive, como incompetente para lidar com as ainda, que a pulsão de morte está ligada à
demandas da realidade, de modo a atualizar função desobjetalizante, de desligamento e de
seu desejo. Enfim, ele se representa aquém desinvestimento. Green (2008) aponta que a
de suas possibilidades na vida. Seu objeto meta da pulsão de morte é realizar a função
idealizado-persecutório torna-se avassalador, desobjetalizante, mediante o desligamento dos
sendo o depositário dessa lacuna temporal objetos. Nesse caso, a relação com o objeto
entre passado, presente e futuro. Por sua vez, e o ego é atacada, sendo o ego o único lócus
o nunca demarca a realização de seu desejo do investimento, haja vista o desligamento dos
como impossível e inatingível: representações do objetos. Aborda ainda o desejo do não-desejo
interdito da família contra sua singularidade. como parte do processo de desligamento
São representações antagônicas à atualização provocado pela pulsão de morte. Além disso,
de seu desejo, enquanto adulto. O umbral aponta que o desinvestimento é marcado por
do proibido absoluto do desejo do sujeito se um oco, um vazio de representações.
articula aos vazios representacionais de seus Esses aspectos do ódio são discutidos
pais: aos aspectos de seu desejo que eles não ao longo deste trabalho, permitindo pensar
puderam representar e, tampouco, realizar no a complexidade desse afeto no sistema das
mundo. representações do sujeito.
7 Segundo Klein (1932), o objeto persecutório é formado a partir Outra formação psíquica faz parte
do aumento do ódio dirigido ao objeto, devido às frustrações do
ego com ele. Por sua vez, o objeto idealizado permite defender o do trauma do absoluto e dificulta a realização
ego contra o objeto persecutório.
do desejo do sujeito: o paradoxo. Portanto,
8 Em português, “quase” é advérbio de intensidade e “nunca” é ora
advérbio de tempo, ora de negação. Contudo, ambos funcionam o paradoxo entrelaça o sujeito, seus objetos
como representações do tempo das gerações numa análise.

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primários e seus objetos secundários. O A clínica do absoluto


paradoxo se revela mediante representações Filha mais velha, a paciente recebe
contraditórias do sujeito quanto a si e a seus forte carga de ódio de seus pais, com base em
objetos, investidas por ódio. sua infância e em seu casamento.
Com relação a isso, Racamier (1991) Sua mãe foi a segunda filha, sendo que
conceitua o paradoxo como uma formação sua irmã mais velha engravidou, numa aldeia
psíquica singular, que liga indissociavelmente de um país conservador, há setenta anos. O
duas proposições inconciliáveis, mas que não ódio, o desgosto e a vergonha da mãe de ambas
necessariamente se opõem. O paradoxo é uma foram enormes e uma forte carga de ódio foi
agressão ao eu, suscitando na vítima um ódio depositada nessa segunda filha, que passou
intenso, que procede de suas autodefesas. a ter horror a sexo e amor. A descoberta de
O trauma do absoluto é propagado, uma segunda família do marido fez a avó da
ainda, mediante a identificação e a paciente chorar lágrimas de sangue e dizer: parentes
contraidentificação dos filhos com seus pais e, só meus dentes e ainda assim me doem. Ademais,
destes, com seus genitores. com a segunda guerra, a mãe da paciente teve
No que concerne à identificação, de mudar de um país – no qual sua família
Kaës (1998) propala que ela é o processo era abastada- para outro – em que se tornou
fundamental da transmissão psíquica. Por sua costureira – e, afinal, para outro – no qual se
vez, a autora propõe que a contraidentificação tornou empregada doméstica, numa casa em
constitui um processo de formação do que a comida era controlada. Casou-se com
sujeito e um mecanismo de defesa em o primo. Na posição de mãe, apresenta-se
seu desenvolvimento: facetas do mesmo como pobre, trabalhadora incansável, mas esgotada.
movimento psíquico do sujeito. Este se Esmaga a filha/paciente sob regras rígidas
contraidentifica com características odiadas quanto a sua sexualidade, que se opõem ao
de seus pais em sua infância, aos quais atribui seu prazer de viver. Educou-a sob a tortura
seu sofrimento. Contudo, elas predispõem à da submissão à crítica alheia: o que outros vão
satisfação de seu desejo em sua vida adulta. pensar? Esta frase retoma a vergonha pública
Um filho pode se contraidentificar com a de sua família com sua irmã grávida.
determinação, o empreendedorismo e o Nascido noutra aldeia, o pai da
sucesso de seu sádico e odiado pai, traços aos paciente também foi o segundo filho. Foi visto
quais atribui seu abandono e seu desamparo. como ovelha negra em relação ao irmão mais
Ao sobreinvestir de ódio as representações velho, modelo de trabalho e de obediência aos
de ser abandonado e ser desamparado, não investe pais. Todavia, condições específicas de seu
de amor, ser empreendedor, ser determinado e ser nascimento permitir-lhe-iam ser diplomata e
bem-sucedido como o pai. Tão somente essas navegar ao redor do mundo: desejos arrebentados
representações e afeto favorecem a efetivação pela segunda guerra. Quis ser locutor de rádio,
de seu desejo no presente, atingido pelo mas foi impedido pelo pai, para quem ser
trauma do absoluto em seu passado. artista era ser depravado e ser imoral. Cabia, assim,
a ele trabalhar, casar e ser um respeitável pai

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de família. Casou com a prima, moça muito vaidoso no que se refere aos seus feitos, ele vive
bonita, mas com horror a amor e sexo. No cheio de sofrimento e ódio. Conta à filha que
início do casamento, ela buscava o marido o chupim põe seus ovos no ninho do tico-tico
nos bailes, em nome da filha/paciente e sob e come os ovos dele. Refere-se a um duplo
terríveis brigas, recriminações e vergonha. No parasitismo, que se dirige a ela.
caos familiar, imperavam ódio, assim como Com as inúmeras dificuldades pessoais
dominação paterna e submissão materna. e financeiras de sua profissão, a paciente adulta
Tomando para si os feitos de um herói- faz ver à analista o poder econômico de seu
mártir, esse self-made-man vitorioso se lançou pai, bem como sua total impossibilidade de
ao trabalho e amealhou, com sacrifício, um ter acesso a ele. Quando a analista aumenta
bom patrimônio. O sádico e pretenso poderio o preço da análise, a paciente sai dela, dada
paterno sobressaía à custa do intenso trabalho sua precariedade mental de ganhar seu
da sofrida figura materna. Trabalhando à próprio dinheiro. Esvai-se em choro diante da
exaustão, sua mãe nunca chamou a si o mérito impossibilidade de contar com o dinheiro de
de seu trabalho, que sustentava o poder seu pai e tampouco com uma amiga. Procura
masculino sobre ambas. No início da análise a “acolhida” impessoal de uma grande árvore
da paciente, seu pai detinha grande poder, seca. Tão somente em outra fase de sua vida a
sendo evidente o paradoxal apoio valorativo paciente retoma sua análise, ao se lançar a um
da paciente nele. Posteriormente, fica claro novo trabalho.
seu ódio à figura paterna. Ela fez uma radical retirada do mundo
Em sua infância, seu pai a chama de dos vivos, inclusive quanto a amor e sexo.
débil mental e doente mental em público. Face às O ódio e o horror maternos a eles foram
explosões de ódio da filha, diz: eu dou tudo, faço repassados a ela. A morte na ligação com seu
tudo e recebo nada; cê vai ser um nada na vida; cê não desejo e com o mundo levou o sistema a criar
presta pra nada; filhos trocados por m... ainda saem um lócus de proteção contra o padecimento
caro; criei você pra me fazer feliz e cê faz da minha psíquico. Quase tão somente a leitura a
vida um inferno. O imperceptível investimento ligava ao mundo dos vivos, sendo a literatura
amoroso de seu pai nela deteriora-se ainda a produção humana usada como defesa e
mais por se revestir de um tom de intrusão ataque contra os demais objetos e o mundo.
sedutora, na adolescência. Diante da sua Sua mirada quanto a eles ficou paralisada num
beleza, ele diz: nenhum homem vai amar você mais paradoxo de interação: afastando-se dos vivos
que eu e outros homens vão ter por você só desejo. buscava abolir sua dor que, paradoxalmente,
Afora esse desmentido radical e paradoxal, ficou fixada no tempo infinito do ódio.
sobressaía, em sua percepção, o ódio de seu pai A afetividade da paciente é percebida
a ela. Ao pedido dela de dirigir, queria que ela por ela como extremamente caótica e envolve
o fizesse do jeito dele. Ela não aceitava fazê-lo. as figuras parentais bastante agressivo-
Ele dizia, então, para ela dirigir o peruzinho/ destrutivas. Seus intensos investimentos
carrinho de jardim: símbolo de seu poder inconscientes de ódio a elas levaram-na a
fálico-narcisista. A despeito de ser orgulhoso e se desligar das demais pessoas, em geral,

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e a estabelecer especial distância afetiva com vigor seu lugar no mundo seria um ato
da figura masculina. Ela odeia ainda seus sádico, dado seu pavor de ser cruel como o
aspectos masculinos e femininos, cindidos e pai. Com a continuidade da análise, o ápice
projetados nos objetos imaterial-simbólicos: da ruptura de suas defesas ocorre quando
leitura e escrita. Ao serviço das defesas do ela se apaixona por uma figura masculina/
ego, o exercício passivo e solitário da leitura depositária do objeto idealizado. Numa
e, em maior grau, o exercício ativo da escrita paradoxal reviravolta afetiva, nesse homem,
marcam sua diferença e sua exclusão da ela deposita seu ideal de imunidade ao amor,
família e do mundo. A literatura representa mas, nele, busca refúgio amoroso em face de
sua masculinidade, tendo como função seu ódio ao amor.
defendê-la de sua afetividade, associada a sua Seu ódio a si e aos objetos primários,
feminilidade/sexualidade. bem como seu horror às demais pessoas são
Com a análise, sua sexualidade adquire intensos. Desse modo, seu amor é investido
um tom menos caótico, mas o olhar público nos objetos secundários: objetos imateriais e
ainda a fragiliza, porquanto o mundo é o objeto humano/suporte do objeto idealizado.
espaço dos homens: grandes, poderosos e sádicos. Seu dom de escrever constitui, para ela,
Representa-se, então, como uma bonne-vivant um objeto imaterial absoluto: emblema do
talentosa, que não precisa buscar com vigor os asseguramento de sua identidade e garantia
objetos de seu desejo. Por tudo o que já sofreu de invulnerabilidade absoluta contra o amor.
com os pais, teria direito a viver no bem-bom Contudo, sua capacidade de criação literária
e morar com regalia numa propriedade deles. também é investida de ódio. Fica impedida
Ela fez um voto de ódio perpétuo às figuras de usufruir esse dom de modo absoluto, ao
parentais e à figura masculina. Tal voto foi representá-lo como parte da herança parental
erigido por ela como decreto irrevogável para odiada. Assim, ela representa seu talento
extirpar de si a loucura familiar. Porém, vivia para escrever como garantia de ser invulnerável
o pavor de enlouquecer, caso desistisse de seu ao amor; sobrevalorizado, mas amaldiçoado e
voto de não amar um homem. E, ainda, seu perdido “para sempre”. Esse processo caótico
sucesso dependeria do fracasso, da derrota e resvala para a idealização do objeto humano
do massacre absoluto das figuras parentais. “absoluto”. Para ela, o monopólio da escrita
Todavia, tortura-se por ser fracassada. pelo objeto humano/suporte da idealização
Em certo momento, irrompe em sua resultaria de uma genealogia familiar
mente a frase de Ricardo III: “Até as feras privilegiada, a ser exibido como dom e signo
têm compaixão; eu não, eu sou humano”. de saúde. De modo paradoxal, subtrai o poder
Fera remete-a ao sadismo, à crueldade e à votado a ele, pois seu dom adviria de mera
insensibilidade do pai poderoso, que não herança familiar. Contudo, representa-o como
teve compaixão dela, tão boazinha e frágil. ser magnífico, absolutamente brilhante, detentor
Fera remete, igualmente, a ser excelente na absoluto da arte de escrever e invulnerável ao
profissão. Para tanto, ela deve ser firme, amor. Na paciente, seu dom derivaria de uma
determinada e persistente. Contudo, buscar degeneração familiar, sendo sintoma de ela

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ser mórbida e louca, demandando ser escondido e assimilar os atributos sobrevalorizados no


ser proibido. Assim sendo, ela se paralisa diante objeto humano, como seus, devia reconhecer
de seu desejo de lançar sua própria obra no os aspectos positivos da herança parental.
mundo. Para fazê-lo, requer uma garantia de A isso, ela se recusava. Perdoar e amar seus
ser amada por todos, de modo absoluto. Em pais eram representados como absolutamente
meio a isso, suas autorrepresentações são impossível. Seu ódio às figuras parentais era
sobrecatexizadas por ódio: ser um nada, débil representado como incomensurável e insaciável.
mental, louca, absolutamente incompetente para A morte de seus pais reais não poderia saciar
escrever e vulnerável ao amor. O fascínio pelo seu desejo de vingança e tampouco uma
objeto emerge com toda a carga de idealização indescritível tortura com eles, ainda que durasse
e perseguição, ligadas a seus impulsos eróticos para sempre, seria a revanche proporcional a
e agressivos. Tão somente o trabalho com esse sua dor. Esse tratamento absurdo do tempo
objeto possibilita a reconstrução de seu eu, sob como ad aeternum para curar suas feridas
a condição de amá-lo. Fratura em seu sistema narcísicas, aprisionava-a sob a representação
representacional, tal idealização gera tanto de ser impossível realizar seu desejo: tornar-se
caos quanto potencial crescimento psíquico. uma grande romancista, bem como viver um
Logo, seus paradoxos envolvem a grande e sublime amor.
persecutória figura paterna, a figura masculina Essa trama remetia a uma área do
idealizada-persecutória e os objetos externos sistema envolta pela penumbra das falhas
não humanos de investimento. Há evidentes da representação, devido ao investimento
conexões entre os objetos humanos - objetos de ódio e horror. A possibilidade de se
primários e secundário/idealizado - e os descolar de seu ódio aumentava-o, como
objetos “imateriais” investidos por amor e reação de sobrevivência de seu frágil eu. O
ódio: capacidade literária e dinheiro. O dinheiro horror à intersubjetividade era notório em seu
é o objeto simbólico deveras valorizado pela distanciamento das pessoas, em geral, e em
família da paciente e de forma contraditória por sua paixão pelo objeto imaterial/literatura.
ela, que o adora e o odeia. Entre esses objetos, Esse horror constituía uma espécie de versão
a produção literária recebe maior gradiente de do ódio desmedido às figuras primárias,
amor e ódio do que o dinheiro. A malha de generalizado para os objetos secundários. Seu
representações e afetos dos objetos humanos distanciamento desses objetos e do mundo
e imateriais é parte de seu ódio ao seu desejo, fazia com que o mundo da escrita e dos
permitindo-lhe manter o ódio aos pais internos. grandes escritores fosse representado como
As representações do absoluto na um não lugar mental. Outras facetas de seus
paciente são absurdas à luz de sua consciência. paradoxos implicavam o horror de ter que amar
Era absurdo que ela não pudesse integrar o objeto humano/suporte da idealização para
representações de seus dons e usufruí- ter acesso a seu próprio dom. Descolar-se
los. Em momentos de lancinante dor da fusão com a figura idealizada enchia-a de
mental com seus pais internos, imperavam pavor e paralisia, como ameaça de lançá-la a
as autorrepresentações do absoluto. Para assumir seu desejo.

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Constituição especular do desejo e sua atualização no adulto 26

Discussão escritora. O luto de si mesma permite elaborar


O luto de si mesma é o processo que os investimentos destrutivos contra as ligações
permite à paciente realizar seu desejo, alienado amorosas para consigo mesma, com o outro e
a partir das relações de objeto parentais e contra sua capacidade literária.
ancestrais. Essa modalidade de luto mobiliza As representações do proibido absoluto
o núcleo de identidade construído a partir de contra a realização de seu desejo revelam
exacerbados investimentos de ódio aos objetos determinantes psíquicos supraindividuais e
primários. Ele produz efeitos disseminados se ligariam ao lugar de sustentáculo da ordem
pelo sistema das representações da paciente familiar. Seu brilho como romancista e seu
como a formação de objetos secundários de sucesso no amor destituiriam o sádico poderio
investimento ‒ humano e imaterial-simbólicos paterno, romperiam o bloqueio de seus
idealizados ‒, bem como a inibição de sua desejos amoroso-eróticos por parte de sua
criatividade. Essa inibição ocorre em virtude mãe e “explodiriam” autorrepresentações: ser
da projeção de seus aspectos valorizados nos boazinha, comportada, educada, contida, econômica,
objetos e da dificuldade de reintegrá-los ao sóbria, casta e decente. Flagra-se, nos conflitos da
estrato consciente do sistema. paciente, um longo processo especular de sua
No sistema, o objeto idealizado família, cujo estatuto patológico deveria ser
concentra representações e afetos arcaicos mantido por ela.
da paciente, em contraidentificação com seus Ao prorrogar o luto quanto ao objeto
pais. Ele é o depositário de representações humano e imaterial, retoma movimentos de
valorizadas por ela, mas impossíveis no tocante idealização e perseguição envolvendo seu
a serem integradas pela paciente. O objeto desejo. Volta a se colar ao núcleo de identidade
idealizado tanto constitui uma formação arcaico e ao objeto idealizado, diante da
cristalizada, que a impede de fruir de seus dons, iminência assustadora de novas representações
quanto encerra a possibilidade de resgate de de si e de novas modalidades de relação
aspectos exilados de si. O sobreinvestimento objetal. Por fim, tal duelo do desejo permite
de amor nesse objeto a impede de utilizar os a ela sair da indiferenciação relativa ao objeto
recursos de seu eu. Seus aspectos identitários idealizado, que bloqueia outras representações
idealizados foram construídos contra os que viabilizam seu desejo. Desconstruir essa
limites da realidade. trama e resolver seu conflito transgeracional
Nesse entremeio, há falhas absurdas viabiliza o luto do impossível para seu desejo.
da capacidade de representar do sistema, dado No tocante ao conflito transgeracional,
que talentos inerentes a ela lhe são inacessíveis. este pode ser conjugado ao aparelho psíquico
Uma corrente estagnada de representações e grupal na família. A esse respeito, Kaës (2001)
afetos do trauma do absoluto remete umas às aponta as redes de representações que circulam
outras, num circuito psíquico quase sem saída. no aparelho psíquico grupal e as flutuações
Elas a mantém numa circularidade mental das quantidades de excitação ligadas a elas.
contra novas representações de seus talentos e No sistema representacional da
méritos: ser simpática, ser amorosa, ser divertida, ser paciente, entrecruzam-se representações,

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afetos e vazios representacionais de si e de seus de seu desejo mais verdadeiro. Ser ganhador e
objetos primários, bem como representações ser bem-sucedido nos negócios associa-se a ser
e afetos valorizados por ela e projetados em sádico e ser mau para com o outro. No caso
seus objetos secundários. de sua mãe, ser rica e ser ganhadora constituem
Com relação a seus objetos primários, vazios representacionais, sobrepujados pelas
uma trama complexa se apresenta. Seu pai representações de ser pobre e ser perdedora.
detém as representações de ser sádico, ser cruel, Assim, ser perdedor e ser fracassado, no caso de
ser poderoso, ser bem-sucedido nos negócios, ser seu pai, assim como ser pobre e ser perdedora, no
autoritário, ser arrogante e ser superior. Na relação caso de sua mãe, constituem representações
com seu pai/avô da paciente, ele introjetou fake de seu desejo mais essencial. Isso acarreta
que ser artista era ser depravado e ser imoral. À sua consequências psíquicas na paciente.
mãe cabem as representações de ser masoquista, Em momentos da análise nos quais
ser dominada, ser pobre, ser submissa, ser humilhada e a paciente atravessa seu umbral do proibido
ser inferior. Na relação com sua mãe, a paciente absoluto do desejo, vê ressurgir seu ódio a si
introjetou que ser mulher junto a um homem e às figuras parentais, envolvendo ser rica, ser
era ser depravada e ser imoral. Sob essa dupla pobre; ser ganhadora e ser perdedora e, ainda, ser
identificação com seus pais, à paciente cabia bem-sucedida e ser fracassada. A partir da relação
ser sóbria, ser decente, ser assexuada, ser casta, ser com seu pai, ela se envolve em paradoxos do
contida. tipo “ganha ou perde”, que resvalam para
Dadas as perdas e interdições do decisões que envolvem “perde mais ou perde
desejo sofridas por seus objetos primários, seu menos”. No final, ela sempre perde mais
vazio vivencial na realização de seus desejos do que ganha com certa conquista realizada
gerou, neles, um vazio representacional. Os por ela. Nessas vivências paradoxais, em seu
vazios de ambos incluem a impossibilidade triunfo edípico sobre a figura paterna, revive
de eles serem autorrealizados, bem-sucedidos no culpa e punição, ao produzir, para si, perdas
amor, amorosos, empáticos, felizes. Falta a essas materiais consideráveis. Por exemplo, a cada
representações, inclusive, serem investidas por vez que compra um carro novo, sempre raspa,
amor por eles. O desejo da filha/paciente é esfola e bate o carro antigo. Assim, diante
impregnado por esses vazios representacionais da possibilidade de ganho/superioridade
de ambos os genitores. esmagadora sobre seu pai ao comprar um
No que se refere a seu pai, ser importante carro novo, acaba perdendo mais do que
e ser valorizado no mundo constituem vazios ganha. Perde com a desvalorização do carro
representacionais. A despeito de seu pai ser antigo, bem como, repetidamente, com seu
representado pela filha como ganhador e bem- conserto e pintura: perda de tempo, dinheiro e
sucedido nos negócios, ser perdedor e ser fracassado bem-estar. Cabe lembrar que seu pai dizia para
são marcantes em seu desejo mais íntimo. toda a família que ela seria incapaz de dirigir e
Na relação pai-filha, ele detém o lugar de que deveria dirigir o “peruzinho”.
ser ganhador e ela fica reduzida a ser perdedora. Além disso, o paradoxo central da
Todavia, ele é perdedor e fracassado na realização paciente é enlouquecedor, pois o mesmo

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pai que a odeia na infância, diz que a ama de escrever: aspectos impossíveis na realização
na adolescência. Ele se designa como de seu desejo. O dom da escrita, nesse objeto,
representante absoluto do amor num tempo é signo de ele ser saudável e deve ser exibido no
condicional, pois “...ele a amaria mais que mundo.
qualquer outro homem”. Com isso, ele nega de Assumir seu desejo envolve intensa
forma onipotente as percepções obscuras da confusão entre representações e afetos: entre
filha sobre seu ódio a ela. Ele faz uma cisão ser arrogante e ser superior, como seu pai e ser
entre amor e desejo sexual, fazendo de si e dos humilhada e ser inferior, como sua mãe. Sofre com
homens elementos perigosos. Sua existência seu desejo de ser superior aos objetos humanos
como filha deve submeter-se à felicidade de poderosos, em especial os objetos masculinos
seu pai e a singularidade de seu desejo constitui que, a sua revelia, a reduziriam a ser inferior.
um elemento infernal. Portanto, sofre com fantasias sadomasoquistas
Por conseguinte, a paciente representa de sofrer com seus pares e fazê-los sofrer, de
perdoar e amar seus pais como absolutamente estar à mercê de seu ódio, inveja e ataques.
impossível. Seu ódio às figuras parentais é Defende-se deles, ao escamotear seu desejo.
incomensurável e insaciável, paralisando a O mundo é lugar exclusivo dos homens: grandes,
capacidade representativa de seu sistema poderosos e sádicos. Seu ódio perpétuo às figuras
das representações. Uma indescritível e eterna parentais e à figura masculina a impediria de
tortura de seus pais remete ao ad aeternum de ser louca. Ser bem-sucedida associava-se a seus
seu desejo de vingança contra eles. Assim, pais serem fracassados, derrotados e massacrados.
continua a lhe ser impossível realizar seu desejo, Todavia, ela se representava como fracassada.
em seus fundamentos mais essenciais. Seu Ser perdedora era ser boa, enquanto ser ganhadora
horror à intersubjetividade faz parte dessa trama. era ser má como seu pai. Ser fera era ser sádica
No que tange aos seus objetos e ser insensível como seu pai. Contrapunha a
secundários de investimento, seu talento isso ser boazinha e ser frágil. Ser fera, porém, é
para escrever é representado por ela como ser excelente na profissão. Para tanto, ela deve ser
ser invulnerável ao amor e sobrevalorizado, mas firme, determinada e persistente em seus projetos
amaldiçoado e perdido “para sempre”. Portanto, de vida. Para ela, ser bonne-vivant talentosa
deve ser escondido e ser proibido. Lançar seus significava ser indolente quanto a seu desejo.
contos no mundo demanda ser amada por Contudo, ser vigorosa ao buscar seu lugar no
todos, de modo absoluto. Em meio a isso, suas mundo seria ser sádica como seu pai.
autorrepresentações são sobrecatexizadas por Logo, ela investe de amor: ser boazinha,
ódio: ser vulnerável ao amor, ser um nada, débil ser concessiva, ao passo que investe de ódio: ser
mental, doente mental e absolutamente incompetente pobre, ser chupim, ser débil mental, ser pior que m...
para escrever. Para ela, seu dom de escrever Esse segundo grupo é das representações
é sintoma de ela ser mórbida e ser louca. Em autodepreciativas, que se contrapõem às
contrapartida, atribui ao objeto idealizado, representações de seu pai, ser sádico, poderoso,
ser invulnerável ao amor, ser magnífico, ser perfeito, vitorioso e rico, que merece ser extorquido. E,
absolutamente brilhante, detentor absoluto do dom mais, sobreinveste de ódio ser abandonada, ser

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rejeitada, ser odiada, ser fracassada, para sempre, sem secundários, igualmente, é delineada.
lugar no mundo: representações do absoluto. Ser Para as dificuldades de realização
fracassada é uma representação aparentada a ser do desejo do sujeito, contribuem os vazios
chupim. Ser bem-sucedida entra em conflito com representacionais no desejo de seus pais, sua
ser generosa, ao perdoar as figuras parentais. Ser identificação e contraidentificação com eles,
generosa ao perdoá-las é igualada a ser derrotada bem como a idealização e a persecutoriedade
por elas. Ela sobreinveste de ódio: ser o nada associadas ao objeto idealizado. Ao lado
em oposição a ser magnífico; ser débil mental e ser dos vazios representacionais no desejo de
psicótica opõem-se a ser inteligente; e ser neurótica, seus pais, as representações do absoluto
ser sórdida destitui-a de sua representação de funcionam como vazios representacionais que
ser decente. Identifica-se com representações inviabilizam o desejo do filho. Esses fatores se
associadas a seus pais - ser cruel consigo - e se articulam ao trauma do absoluto, na qualidade
contraidentifica com outras - ser determinada e de trauma no desejo, permitindo pensar essas
ser vigorosa em seu trabalho. dificuldades em sua efetivação no mundo.
A mudança de ser boazinha para Na análise do trauma do absoluto, as
ser competente e ser amorosa com seus pares, representações que aprisionam o desejo do
igualmente, é difícil para ela. Não obstante, sujeito sofrem desinvestimentos, percorrem
entre ser arrogante e ser humilhada – investidas novas vias associativas e originam novas
por ódio - afinal investe de amor: ser segura e representações, que abrem para sentidos
autoconfiante. Por fim, centra seu desejo em inusitados. Novos afetos investem as novas
si mesma, incluindo novas representações representações e, igualmente, são trazidos
de si. São representações de seus talentos e ao estrato consciente do sistema das
méritos: ser simpática, ser afetiva, ser divertida, ser representações. Desarticular a associação
escritora. Juntam-se a ser grande, ser autêntica, ser entre desejo, proibições absolutas contra sua
competente, ser bem-sucedida, ser vitoriosa, ser segura e realização e vazios representacionais permite
ser adulta. Ao final, ao rever as identificações e quebrar o sofrimento infindável oriundo da
contraidentificações com os objetos primários, família. Elabora-se, então, a conexão mundo-
surgem: ser amada, ser cuidada, ser importante, ser sofrimento e articulam-se mundo-prazer-
excelente, ser determinada, ser persistente, buscar o realidade.
melhor para si e colocar-se em primeiro lugar. Elas são Na paciente, o luto de si mesma
investidas de amor, favorecendo a realização caracteriza uma operação mental complexa,
de seu desejo no mundo das relações. que remete a um período longo de análise em
que se desinveste de ódio as representações
Considerações finais do absoluto e se reinveste de amor novas
Ao se examinar a constituição representações coerentes com seu desejo.
especular do desejo do sujeito em relação Trabalha-se com significados distorcidos de
com o desejo de seus pais, suas dificuldades uma representação, pois ser determinada em
de atualização no adulto são explicitadas. seu desejo confundia-se com ser sádica; ser
A relação entre sujeito, objetos primários e fera remetia a ser sádica e a ser insensível, mas

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significava ser excelente em sua profissão. Nesse problemática implicou uma paradoxal
âmbito, ser a última no desejo de seu pai pode, derrocada de seu rígido sistema defensivo e
afinal, ser transformada em ser a primeira para do fracasso de ser a si mesma. Nesse sentido,
si mesma, em seu desejo. Esse duelo entre fez-se necessário um rearranjo saudável dessa
representações solidárias e antagônicas ao seu teia de representações e afetos, permitindo-lhe
desejo teve como consequência centrar seus recapturar sua capacidade amorosa e artística
méritos e capacidades, em si mesma. Uma como rendimentos de seu desejo. Sua potência
nova dimensão da intersubjetividade permitiu amorosa e artística, então, viabiliza-se a partir
a ela amar a si e aos outros, a despeito das do complexo processo de reorganização do
diferenças e dos limites de ambos. Desenvolveu sistema das representações. Nesse curso, a
uma garantia de ser a si mesma, para além criatividade e a capacidade de criação são
da relação malograda com o objeto humano investidas por amor no sistema. Com isso,
e com o objeto imaterial. A desmontagem o desejo da paciente adquire uma dimensão
dessas figuras permitiu-lhe elaborar essas de riqueza e grandeza como potencial de
factícias formações de seu desejo. Com isso, autorrealização, sem se associar à agressividade,
ela diferenciou seu desejo do desejo dos arbitrariedade e destrutividade sobre seus
objetos e pode utilizar suas potencialidades pares. No entanto, esse processo a leva a uma
intelectuais e afetivas. consciência da densidade ontológica de ser a si
Ademais, a assunção de seu desejo mesma e de tomar a si o próprio desejo.
demandou interpretar a tessitura dos paradoxos Ao sistema representacional cabe fazer
que enfeixavam seus objetos humanos e essa mudança psíquica, que se complica muito
imateriais. Para tanto, fez-se necessário quando o ódio prepondera sobre o amor,
trabalhar suas identificações – ser cruel consigo a vergonha sobre o orgulho de si, a tristeza
como seus pais o foram - e contraidentificações sobre a alegria - nos investimentos do filho por
com seus objetos primários – ser indolente em seus pais. Ainda nesse sentido, a culpa de ser
oposição a ser determinada como seus pais, a si mesmo - na qualidade de espécie de raiva
bem como trabalhar as oposições extremas dirigida a si como autorrecriminação – tende
atribuídas a si – ser um nada – e ao objeto a dar lugar à raiva e à indignação dirigidas aos
idealizado - ser magnífico. Com isso, o amor, objetos do presente, junto com a consciência
o ódio e demais afetos ligados a eles foram de seu valor como sujeito. Todavia, a culpa
trabalhados. Fez-se necessário transformar tem sua importância no sistema, quando o
em amor a idealização do objeto e protegê- sujeito rompe certos princípios na relação
lo de seu ódio, bem como transformar o com seu objeto de amor. Logo, uma ampla
ódio às figuras parentais em agradecimento e reorganização dos afetos está em questão
reconhecimento a elas. Nesse trabalho, o ódio numa análise do trauma do absoluto.
pode ser dirigido a certa pessoa no presente, Sua mudança psíquica quanto a
de forma consciente e diferenciada daquele representações e afetos demandou transitar por
dirigido aos objetos primários no passado. vários momentos críticos em análise, nos quais
A elaboração dessa intrincada se deparou com os vazios representacionais

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de seu desejo. Estes se alicerçavam nos transferencial (Vol., XII. pp. 118-210) (Edição
Standard). Rio de Janeiro: Imago.
vazios representacionais de seus pais e seus
com relação ao objeto idealizado. Eram Freud, S. (1915b/2006). A repressão (Vol., XIV,
eles: ser amada, ser valorizada, ser importante, ser p.141-158). (Edição Standard). Rio de Janeiro:
Imago.
competente, ser autorrealizada, ser feliz. Além disso,
à medida que as representações do absoluto Green, A. (1988). Pulsão de morte. São Paulo:
Editora Escuta.
foram desinvestidas de ódio, deixaram de
funcionar como vazios representacionais Green, A. (2008). Orientações para uma psicanálise
contra a realização do desejo. Deixaram de contemporânea. Rio de Janeiro: Imago.
se fixar no estrato consciente do sistema das Herrmann, F. A. (2001). O método da psicanálise.
representações e as representações coerentes São Paulo: Brasiliense.
com o desejo se integraram a esse estrato.
Kaës, R. (1998). Os dispositivos psicanalíticos
São elas: ser amada, ser inteligente, ser competente, e as incidências da geração. In A. Eiguer. A
ser valorizada, ser bem-sucedida, ser vitoriosa, ser transmissão do psiquismo entre gerações. São Paulo:
ganhadora, ter méritos próprios, investidas por Unimarco Editora.
amor.
Kaës, R. (2001). Transmissão da vida psíquica entre
Atravessar o referido umbral, em gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo.
diferentes momentos, provocou inúmeras
Klein, M. (1932/1981). Psicanálise da criança. São
contendas no plano das representações e Paulo: Mestre Jou.
afetos da paciente. Seu umbral era a baliza
Racamier, P-C. (1991). Souffrir et Survivre dans
entre o quase – possibilidade de realizar
les Paradoxes, Revue Française de Psychanalyse.
seu desejo - e o nunca – proibição absoluta Paris, PUF, 55(4), 893-909.
de realizá-lo - e demarcava a travessia entre
Winnicott, D, W.(1987). Os bebês e suas mães.
passado, presente e futuro. Coube, pois,
São Paulo: Martins Fontes.
à análise alterar representações de si, dos
objetos primários e dos objetos secundários
imaterial e humano, imbricadas a amor e ódio. Recebido em: 23/02/2015
Assim sendo, do ódio, horror e pavor houve Aceito em: 30/05/2016
uma longa transição até se chegar a amor,
atração pelo sublime e segurança nas relações.
Assim, seu desejo em seus fundamentos mais
essenciais pode ser realizado, no mundo das
relações.

REFERÊNCIAS

Eiguer, A. (1998). A transmissão do psiquismo


entre as gerações. São Paulo: Unimarco.

Freud, S. (1915a/2006).  Observações sobre o amor

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