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Ação coletiva e veto em política pública:

ARTIGO ARTICLE
o caso do saneamento no Brasil (1998-2002)

Collective action and veto players in public policy:


the sanitation policy in Brazil (1998-2002)

Ana Cristina Augusto de Sousa 1


Nilson do Rosário Costa 1

Abstract In 1999, the federal government has Resumo Em 1999, em busca de recursos para de­
committed itself to the IMF with the privatiza­ belar ou minimizar a crise fiscal, o governo federal
tion of the sanitation and other public services, comprometeu-se junto ao FMI com a privatização
seeking resources to address the fiscal crisis. He do setor de saneamento básico e outros serviços
proposed the bill 4147/01 as the regulatory frame­ públicos. Propôs o Projeto de Lei 4147/01 como o
work that would provide the necessary security marco regulatório que daria a segurança necessá­
for investors interested in acquiring the state- ria aos investidores interessados na concessão das
owned sanitation enterprises. Against this ini­ empresas públicas estaduais de saneamento. Con­
tiative, a coalition of industry interests mobi­ tra essa iniciativa, uma coalizão de interesse seto­
lized in order to veto the adoption of privatiza­ rial se mobilizou para vetar a proposta de privati­
tion: the National Front for Environmental San­ zação: a Frente Nacional pelo Saneamento Ambi­
itation (FNSA). This paper identifies the actors, ental (FNSA). Este trabalho identifica os atores, as
the agenda and the interests involved in this po­ agendas e os interesses presentes nesta coalizão se­
litical coalition. It shows that the coalition acted torial. Demonstra que ela atuou decisivamente
decisively as an instance of veto, limiting the ef­ como instância de veto, limitando os efeitos do
fects of the agreement with the IMF on the public acordo firmado com o FMI sobre a política de sa­
policy of sanitation in Brazil this time. neamento do Brasil neste período.
Key words Sanitation public policy, National Palavras-chave Saneamento, Frente Nacional
Front for Environmental Sanitation (FNSA), pelo Saneamento Ambiental (FNSA), Privatiza­
Privatization of sanitation supply, Public servic­ ção, Serviços públicos, Instâncias de veto
es, Veto players

1
Departamento de Ciências
Sociais, Escola Nacional de
Saúde Pública, Fundação
Oswaldo Cruz. Rua
Leopoldo Bulhões 1480/sala
913, Manguinhos. 21041­
210 Rio de Janeiro RJ.
nilsondorosario@terra.com.br
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Introdução searam-se nas seguintes fontes: boletins infor­


mativos da Câmara dos Deputados, documen­
Diversos estudos sobre a situação do saneamen­ tação produzida pelas entidades da Frente, tra­
to no Brasil mencionam a fragilidade da política mitação legislativa do Projeto de Lei 4147/01 pro­
pública brasileira para este setor, expressa na cri­ posto pelo governo federal e relatos escritos de
se em que ele mergulhou logo após o fim do Pla­ atores da Frente que atuaram ativamente nesse
nasa1. Este trabalho demonstra que a permanên­ período. Entre os documentos produzidos pela
cia da crise do saneamento no governo Fernan­ Frente e suas entidades, constam atas de reunião,
do Henrique Cardoso (FHC) - 1998-2002 - pode propostas de ação, calendário de mobilização,
ser associada, nesse período, ao elevado dissenso cartas abertas, manifestos e demais materiais de
político sobre o melhor arranjo institucional para organização e divulgação, entre outros.
a prestação desses serviços no Brasil. Esse dis­ As informações analisadas permitiram a iden­
senso é percebido pela análise do veto político de tificação dos interesses presentes na coalizão, de
uma coalizão de interesse setorial – a Frente Na­ uma agenda mínima unificadora deles e das are­
cional pelo Saneamento Ambiental (FNSA) – ao nas que foram utilizadas na luta contra o gover­
principal marco regulatório proposto pelo go­ no. Foi possível perceber também as divergênci­
verno FHC para o setor: o Projeto de Lei 4147/ as e os conflitos internos nesse período, assim
01. Esse Projeto foi relevante no contexto político como sistematizar a mobilização desses grupos
da época, por conta de sua vinculação a um acor­ no sentido de vetar a proposta do governo. Os
do firmado pelo governo com o FMI em relação relatos dos atores da Frente sobre esse processo
à provisão dos serviços públicos. Nele, em troca foram fundamentais para elucidar e cimentar
de empréstimos para a contenção da crise finan­ importantes aspectos das dinâmicas políticas não
ceira do período, o governo se comprometeu com explicitadas nos documentos acima.
a privatização de setores como energia, teleco­ A análise da tramitação legislativa e dos bole-
municações e saneamento básico, entre outros2. tins informativos do PL 4147/01, por sua vez,
Esse estudo divide-se em cinco seções. A pri­ visou identificar a agenda do governo para o se-
meira apresenta os procedimentos e as fontes tor em questão, bem como a reação dos grupos
utilizadas para a realização da análise aqui pro­ de interesse representados no Congresso em face
posta. A segunda discute a influência das coali­ dela. Para mapear os pontos de maior atrito en­
zões de interesse setorial sobre a definição das tre eles, foram analisadas as 224 emendas pro­
políticas sociais no contexto das reformas dos postas pelos parlamentares na ocasião, identifi­
anos 1990. A terceira identifica os principais ato­ cando os artigos mais emendados, assim como a
res da FNSA e os seus principais interesses no posição da base governista e da oposição com
veto à privatização. O mapeamento e a análise relação aos pontos-chave da agenda governa­
da estratégia de luta da Frente contra o PL 4147/ mental para o setor. A análise do conteúdo das
01 nas arenas institucionais, especialmente no proposições por partido permitiu verificar a co­
Legislativo, constituem o objeto da quarta seção. esão da base aliada em relação a tais questões,
Na quinta seção, são expostos os resultados des­ com o objetivo de perceber o grau de consenso
sa disputa e seus impactos sobre a proposta do existente para a votação da proposta, assim como
governo. Nela, são definidos os ganhadores e os o raio de ação alcançado pela mobilização da
perdedores do embate pela definição dessa polí­ Frente nesta arena decisória.
tica pública, que culminou com a retirada do ter­
ceiro e último pedido de urgência constitucional As políticas sociais e o papel das coalizões
para a votação do Projeto em questão. Por fim, de interesse nas reformas dos anos 1990
são apontadas as condições que, combinadas
com os resultados dessa disputa, teriam contri­ Com o fim do Planasa, no inicio dos anos
buído para a situação da política pública de sa­ 1990, o setor de saneamento experimentou uma
neamento no Brasil e para o desempenho da co­ situação de indefinição institucional em relação à
bertura desses serviços nesse período. regulação e à prestação desses serviços, o que afe­
tou o seu desempenho no país. Neste contexto,
diversas iniciativas foram adotadas com vistas a
Procedimentos torná-lo mais atraente ao investimento privado.
As iniciativas mais relevantes neste sentido foram
As informações utilizadas para a reconstituição a aprovação da Lei de Concessões em 1995 (Lei
da atuação dos grupos de interesse da FNSA ba­ 8987/95) e a proposição de dois marcos regulató­
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rios que viabilizariam a privatização do setor: o cas conduzidas pela globalização na década de
PLS 266/96 e o PL 4147/013. Tais projetos basea­ 19908. A consolidação dos Estados de bem estar
vam-se na assunção de que a transferência da ti­ gerou as condições para a sustentabilidade eleito­
tularidade sobre a prestação de tais serviços dos ral das coalizões partidárias social-democratas e
Municípios para os Estados garantiria aos inves­ socialistas e para a emergência de uma ampla rede
tidores a segurança jurídica necessária para a aqui­ de interesses composta por empregados do setor
sição das companhias estaduais de água e esgoto. publico, prestadores de serviços e beneficiários.
A apresentação do PLS 266/96 fez com que os Nas décadas de 1980 e 1990 essa coalizão enfren­
grupos de interesse se mobilizassem para impedir tou, com sucesso, as mudanças na economia glo­
o que foi considerado como um passo para a balizada e a queda da capacidade política do tra­
privatização do saneamento. Articulando os mo­ balho organizado, neutralizando os ataques con­
vimentos sindical, social e as comunidades pro­ servadores às políticas públicas redistributivas.
fissionais ligadas ao setor, foi criada em 1997 uma Para Pierson, a agenda da reforma do Estado
coalizão de interesse setorial: a Frente Nacional nos anos 90 impunha, em vários casos, perdas
pelo Saneamento Ambiental (FNSA). Exploran­ tangíveis e concentradas para certos grupos de
do os vícios constitucionais presentes no projeto, cidadãos eleitores e prometia benefícios difusos.
a mobilização fez com que o mesmo fosse vetado. Não pôde demandar apoio eleitoral a nenhum
O acordo do governo federal com o FMI em grupo social majoritário nas democracias con­
1999, porém, renovou as intenções do governo solidadas, a não ser o da comunidade financeira.
em mudar a regulação do setor, de forma que se A promessa de benefícios difusos e de perdas
pudesse atender aos compromissos de privati­ concentradas recebeu o veto da coalizão de bene­
zação assumidos. Com a assessoria do Banco ficiários do Estado de bem-estar, minimizando
Mundial4, o governo federal apresentou no ini­ os efeitos das reformas nos anos 19909.
cio de 2001 a proposta de um novo marco regu­ Esses argumentos em relação ao poder de veto
latório para o setor com pedido de votação em das coalizões beneficiárias de políticas setoriais
urgência constitucional: o PL 4147/01. Foi nesse podem ser aplicados às políticas específicas bra­
momento que a FNSA teve que exercer sua capa­ sileiras? Esse trabalho considera que sim: a ação
cidade máxima de veto à agenda do Executivo da FNSA, uma importante coalizão de interesse
Federal. setorial, foi decisiva para a definição da política
A noção de veto na agenda política considera pública para o saneamento no Brasil durante o
que a adoção de uma nova linha de ação gover­ governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC).
namental que se desvia do status quo requer a Defende-se aqui que, embora esse setor seja cons­
concordância de uma ampla gama de atores. tituído por diferentes grupos de interesse que ora
Quando a quantidade de atores com poder de se aliavam, ora rivalizavam diante das reformas
obstrução é muito expressiva, a mudança se tor­ propostas, a Frente construiu uma estratégia
na extremamente difícil. No Brasil, no regime de comum de resistência à privatização do sanea­
democracia recente, o Executivo federal tem enor­ mento nesse período, calcada num discurso de
me dificuldade para introduzir novas políticas defesa da gestão pública e do fortalecimento do
onde exista um grande número de atores cruci­ poder local na prestação desses serviços.
ais com poder de obstrução5,6.
Segundo Kaufman, os estudos sobre a ação A constituição da FNSA:
das agências internacionais e as economias naci­ atores e interesses da resistência
onais deram ênfase à subordinação das políticas
nacionais aos processos de globalização dos mer­ O setor de saneamento é composto por di-
cados financeiros e dos fluxos comerciais7. Ge­ versos grupos de interesse. O Quadro 1 mostra
ralmente, esses estudos ignoram a coalizão in­ seus principais atores no período em questão10.
terna de interesses que atuam como uma instân­ Desde que se formou, a Frente mobilizou di-
cia de veto por força das condições para a toma­ versos segmentos opositores ao governo federal
da de decisão em democracias com sistemas par­ com interesses diretos ou indiretos na área: tra­
tidários atuantes e grupos de interesse articula­ balhadores e dirigentes das companhias estadu­
dos a benefícios ou posições governamentais. ais e dos serviços municipais de saneamento, li­
Pierson apresenta argumentos teóricos para deranças de associações profissionais e técnicas
rejeitar a hipótese do desmantelamento das fun­ ligadas a essa área, representantes de interesses
ções do Estado nas democracias contemporâne­ coorporativos de funcionários das concessioná­
as determinado pelas mudanças macroeconômi­ rias, entidades representativas dos movimentos
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por moradia e reforma urbana, além de diversas Como o próprio nome indica, a FNSA não
entidades do chamado “terceiro setor”, defenso­ era uma entidade orgânica e seu funcionamento
res do meio ambiente, do direito do consumidor foi baseado na estrutura operacional das entida­
e do desenvolvimento social. Outros grupos de des que a compunham. Desde o início a coorde­
interesse também se aproximaram dessa frente: nação foi feita pela FNU/CUT, que indicou o Se­
empresas fornecedoras de equipamentos, e mes­ cretário Executivo, o engenheiro Abelardo Oli­
mo entidades representantes do setor privado veira Filho, seu presidente. As principais bases de
com interesses na privatização (especialmente na apoio operacional da FNSA ficavam na sede da
escala municipal) e em obras, entre outros. Assemae em Brasília e Jaboticabal-SP, a Secreta­
O Quadro 2 mostra as 18 entidades que inicial­ ria da Comissão de Desenvolvimento Urbano e
mente compuseram a Frente (Anexo 1. Lista de Interior da Câmara dos Deputados, a FNU/CUT
siglas). no Rio de Janeiro e em São Paulo, o SINDIÁGUA
Com o tempo, outras entidades relevantes e o SINERGIA em Brasília, e o SINDAE, em Sal­
aderiram a esta coalizão, tais como a Confedera­ vador, na Bahia11.
ção Nacional das Associações de Moradores, a A Frente foi conduzida pelos interessados di­
Rede Brasileira pela Integração dos Povos e o retos na regulação do saneamento: as entidades
Fórum Nacional das Entidades Civis e de Defesa sindicais, os profissionais e os setores municipalis­
do Consumidor e outros. tas. Os membros dessas entidades seriam os prin-

Quadro 1. Grupos de interesse do setor de saneamento nas décadas 1990 e 2000.


Grupos integrantes da Frente, segundo natureza da organização
Grupos de interesse Principais entidades
Agentes governamentais responsáveis pela definição SEDU/PR (FHC);
da política pública, do novo modelo para o setor e Ministério das Cidades/SNSA (Lula);
das linhas de financiamento; IPEA; CAIXA; BNDES
Entidades e organizações da sociedade civil atuantes ENSP; IBAM; IDE
no tema, tais como universidades, centros de CPOLIS; FASE; FNRU; MNLM
estudos, ONGs e movimentos sociais interessados
na universalização do atendimento;
Associações de gestores e prestadores públicos; AESBE (estaduais)
ASSEMAE (municipais)
Associações de empresas privadas voltadas para a ABCON; ABDIB
operação dos serviços de saneamento;
Associações profissionais, fornecedores, consultores ABES; ASFAMAS;
e empresas de equipamentos e engenharia, voltadas
para planejamento, projeto, equipamentos e obras;
Organizações corporativas Sindicatos dos servidores do setor (FNU; SENGE;
FISENGE e outros)
Fonte: Zveibil10, p. 33. Elaboração dos autores.

Quadro 2. Composição inicial da Frente, segundo natureza da organização dos grupos integrantes.
Grupos integrantes da Frente, segundo natureza da organização
Organizações corporativas e Organizações da sociedade civil Organização de
profissionais e movimentos sociais Gestores/prestadores
FNU/CUT; ABESOAB; FNRU; CMP IDEC MNLM; ASSEMAE
FISENGESEESP; SENGE­ FASE; UNMP; ANSUR;
RJAESABESP; APU POLISÁgua e Vida
Fonte: Oliveira Filho A. “Brasil: luta e resistência contra a privatização da água”, 200211. Elaboração dos autores.
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cipais perdedores da mudança do regime de regu­ reitos urbanos, com atuação em nível nacional.
lação do saneamento em direção à privatização. Articulada ao Fórum Nacional pela Reforma
Buscando apoio em forças políticas adversá­ Urbana (FNRU), a FASE foi o elo da Frente com
rias às propostas do governo, a FNSA se engajou os movimentos sociais ligados ao direito à mo­
em inúmeras campanhas em prol de uma política radia e à cidade, entre eles, a CONAM.
nacional para o setor, baseada na gestão pública Ao preconizar o saneamento como um direi­
do saneamento, concebido como atividade estra­ to social a ser provido por empresas estatais, a
tégica ao desenvolvimento nacional e direito soci­ agenda da FNSA divergiu frontalmente da agen­
al fundamental assegurado a todo cidadão, inde­ da governamental para o setor no sentido de sua
pendentemente da condição social12. Os princípi­ provisão, que previa uma reforma liberalizante
os da agenda da Frente foram debatidos em reu­ para a atuação de empresas privadas. Isso fez
niões, assembléias, eventos e outras atividades com que a FNSA constituísse alianças políticas
mais, como seminários e conferencias em todos de oposição ao governo nas diversas arenas ins­
os níveis nacionais. No Congresso, essa agenda titucionais.
produziu a PL 2763/00, cuja proposição foi resul­ As entidades da FNSA entendiam que priva­
tado de ampla mobilização política das entidades tizar o saneamento significava vincular o acesso
que compunham ou apoiavam a Frente. aos serviços à lógica do lucro e ao pagamento de
Apesar de ter chegado a formação de uma tarifas, nem sempre possível a todos os brasilei­
agenda comum, a diversidade de interesses na ros. Para elas, diante da desigualdade social do
FNSA era expressiva. A principal divergência re­ país, isso excluiria do acesso as parcelas pobres
feria-se à questão da titularidade sobre a presta­ da população, comprometendo assim a saúde
ção dos serviços. Embora a Frente tivesse como pública. Além disso, o cenário de desemprego
um dos seus princípios o fortalecimento do po­ decorrente de uma privatização não as favorecia
der local, entidades como a ABES e parte da FNU, nem um pouco, já que essas entidades reuniam
por exemplo, eram estadualistas. Isso porque a basicamente funcionários públicos, empregados
primeira, apesar de ser uma associação de repre­ nas empresas públicas estaduais e nos serviços
sentação profissional, era composta por profis­ municipais de saneamento. Por isso, embora dis­
sionais ligados à rede pública estadual e à inicia­ cordassem em algum grau na questão da titula­
tiva privada (firmas de engenharia e prestadores ridade, pode-se dizer que a principal convergên­
de serviços das companhias estaduais), tendo cia da agenda das entidades da Frente referia-se à
como seus membros mais influentes os dirigen­ defesa da governança vertical estatal.
tes das empresas estaduais. Já a FNU, por sua Segundo Zveibil10, o setor privado também
vez, reunia majoritariamente no setor de sanea­ não era unido, já que às empresas multinacionais
mento os trabalhadores das empresas estaduais, de saneamento interessava a estadualização, com
para os quais a manutenção da prestação esta­ a concessão dos serviços em maior escala, e às me­
dual representava a preservação de seus empre­ nores empresas de engenharia brasileiras interes­
gos, desde que tal prestação permanecesse esta­ sava a municipalização, com potenciais conces­
tal. A opção dos estadualistas pela articulação sões em escalas menores, compatíveis com suas ca­
com as demais entidades antiprivatizantes visou pacidades de disputa de mercado.
ampliar as forças para vetar à privatização das A configuração complexa de interesses da
empresas públicas. Embora esta não tenha sido Frente operou num quadro instável de coalizões
a tônica do discurso de sua adesão, a ameaça da setoriais onde uma extensa rede de associações
privatização foi um fator aglutinador dessas for­ se destacou no embate com o governo, em mo­
ças na Frente, especialmente com as organiza­ mentos alternados, como será visto adiante. As
ções de natureza sindical. entidades da FNSA com maior destaque na con­
Entre os municipalistas, pode-se destacar a dução do veto à privatização foram a ASSEMAE
atuação da ASSEMAE e da FASE. A primeira re­ (serviços municipais), a FNU (sindicatos de tra­
presentava os serviços municipais de saneamen­ balhadores) e a Fase (movimentos sociais).
to, reunindo os 1700 municípios brasileiros que
operavam, em 1997, diretamente os seus servi­ A agenda da privatização do saneamento:
ços de água e esgoto. Desde sua fundação, seus o Projeto de Lei 4147/01
presidentes foram ligados ao Partido dos Traba­
lhadores, principal base de oposição ao governo Em Fevereiro de 2001, o governo apresentou
FHC. Já a segunda constituía uma importante o Projeto de Lei 4147/01. O pedido de urgência
organização não-governamental ligada aos di­ constitucional obrigaria o Congresso a votá-lo
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no prazo máximo de 45 dias. Tal projeto basea­ A aderência da base aliada do Executivo no
va-se numa concepção que restringia o sanea­ encaminhamento de emendas de veto a pontos
mento básico aos serviços de abastecimento de fundamentais do PL 4147/01 revela que a Frente
água e esgotamento sanitário, vinculava a expan­ angariou apoio também na base parlamentar
são e a universalização do acesso ao pagamento governista aliada aos interesses municipais e lo­
de tarifas, criava um fundo para a universaliza­ cais. Este apoio ficou evidente nas emendas pro­
ção do saneamento e se omitia em relação ao postas aos dois artigos mais importantes para a
regime de subsídios cruzados. Além disso, defi­ “estadualização” pretendida pelo governo (Qua­
nia titularidade estadual para os serviços de inte­ dro 3 e Quadro 4). Neles se definiam os concei­
resse comum e a municipal para os serviços de tos de interesse comum, interesse local, serviços
interesse local. Por interesse local, entendia o ser­ universalizados (art.2o) e o de atribuição de titu­
viço cujas atividades, infra-estruturas ou insta­ laridade (art. 4o). Por constituírem os principais
lações operacionais se destinassem ao atendimen­ objetos de veto pela Frente, seu conteúdo será
to de um só município, integrante ou não de re­ focalizado nas seções seguintes.
gião metropolitana. Por interesse comum, os ser­ O primeiro deles era especialmente impor­
viços em que pelo menos uma dessas condições tante porque definia as categorias conceituais que
se destinasse ao atendimento de dois ou mais regeriam a Lei e que condicionariam a posterior
municípios. atribuição titularidade sobre os serviços. As
Considerando a engenharia operacional da emendas propostas questionavam a definição
prestação existente no Brasil, em que as compa­ sobre os seguintes temas: abrangência dos servi­
nhias estaduais predominam no atendimento à ços de saneamento básico, condições para a uni­
população, pode-se dizer que esse Projeto garan­ versalização do acesso e, principalmente, a dife­
tiria a vitória dos Estados na batalha da titulari­ renciação entre interesse local e interesse comum,
dade, exceto nos casos em que houvesse a gestão para fins de atribuição de titularidade. Observa­
associada entre municípios, o que praticamente se, no Quadro 3, que as emendas dos partidos
não ocorre no país. Apensado ao PL 2367/00, o da situação a gerou maioria das posições de veto
PL 4147/01 seguiu para apreciação. às proposições governamentais contidas nesse
O governo contava com grande base aliada e artigo.
o apoio de muitos governos estaduais. A FNSA A disputa pelas definições e em torno dos
teve que se mobilizar de todas as formas possí­ pontos críticos acima enunciados refletiu a dis-
veis. A oposição ao governo no Congresso logo
foi acionada através dos partidos de oposição,
cujas plataformas coincidiam com a da Frente,
no sentido da defesa da gestão estatal sobre os Quadro 3. Comportamento dos Partidos de
serviços públicos. A luta contra o 4147/01 repre­ Oposição e Aliados em relação aos conceitos de
interesse comum, interesse local, serviços
sentou o principal palco de embate entre o go­
universalizados constantes na proposta do
verno e FNSA e também a culminância, nessa Executivo Federal.
arena setorial, do conflito entre duas visões an­
tagônicas sobre o papel do Estado na provisão Veto Apoio
direta de bens e serviços de natureza social. De Oposição (PT; PDT; PSB) 5 0
um lado, o governo federal defendia que a gestão Governo (PFL; PSDB; PPS; PMDB) 4 6
sobre a água, um bem econômico, se operasse de Total 9 6
maneira empresarial e sustentável economica­
Fonte: PL 4147/013. Elaboração dos autores.
mente. Para ele, o seu provimento pelo mercado
geraria mecanismos de modernização e eficiên­
cia que beneficiariam a população como um
todo. De outro lado, a Frente, junto à oposição, Quadro 4. Comportamento dos Partidos de
defendia que, por sua natureza social, o sanea­ Oposição e Aliados em relação à definição da
mento fosse provido pelo poder público, com titularidade estadual.
garantia do acesso universal ao mínimo necessá­ Veto Apoio
rio à vida e controle social. Para eles, a gestão
estatal, por desvinculada ao objetivo do lucro Oposição (PT; PDT; PSB) 3 0
inerente às empresas privadas, seria a mais ade­ Governo (PSDB; PFL; PPS; PMDB) 3 3
quada para minimizar o déficit social desses ser­ Total 6 3
viços no país. Fonte: PL 4147/013. Elaboração dos autores.
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puta entre duas agendas polarizadas em relação membros da Assemae e de outras entidades re­
ao papel do Estado na provisão de bens e servi­ clamavam de sua postura não colaborativa14.
ços, às políticas sociais e, especificamente, à ges­ A Frente passou a investir intensamente na
tão do saneamento. De uma forma geral, as aliança com os movimentos sociais e na amplia­
emendas da oposição tentaram ampliar a abran­ ção de sua relação com parlamentares dos parti­
gência dos serviços de saneamento, desvincular a dos aliados ao governo. Em busca de apoio para
universalização do acesso ao pagamento de tari­ vetar o PL 4147/01, tirou proveito da fragilidade
fas, criar um fundo nacional para o setor, resga­ da base aliada, especialmente ao mobilizar as
tar o regime de subsídios cruzados e garantir a bases eleitorais desses políticos em nível local e o
titularidade municipal mesmo sobre os serviços Congresso Nacional. Essa tática, no entanto, ti­
de interesse comum. Tais medidas visavam con­ nha que ser colocada em prática rapidamente,
templar a agenda da Frente na Lei que pretendia pois o Projeto seria votado em 45 dias.
ser o novo marco regulatório do setor. A principal iniciativa para ganhar tempo con­
Em todos os temas acima discutidos, a oposi­ tra a votação neste prazo foi pressionar pela reti­
ção obteve algum apoio da base aliada, com exce­ rada do pedido de urgência constitucional. Isso
ção ao resgate dos subsídios cruzados, no qual viabilizaria mais discussão sobre o projeto e a
esta se omitiu. O grau de apoio pode ser medido cooptação de apoio para vetá-lo. O deputado Ser­
não só pelo conteúdo das emendas da base alia­ gio Novais (PPS/CE), um aliado parlamentar da
da, mas também pela quantidade de emendas si­ Frente, marcou uma data para o debate sobre a
milares propostas, a qual variou de acordo com matéria com representantes de vários municípi­
o assunto que estava em pauta. Na questão da os, do Governo Federal e da ABES. Alertou ainda,
titularidade, a mesma fragmentação da base alia­ junto a Maria do Carmo Lara (PT/MG), que a
da ocorreria, como mostra o Quadro 4. O enca­ Frente trabalharia para levar a população a parti­
minhamento de emendas que fortaleciam o mu­ cipar de atos públicos em defesa dos recursos
nicípio pela própria base aliada tornou majoritá­ naturais em todo Brasil, na data em que se come­
ria a posição de veto novamente numa questão moraria o Dia Mundial da Água (22/03) e que a
central para a agenda do governo. campanha de mobilização nos municípios seria
Pela análise da tramitação do Projeto, pode­ uma das armas para impedir, na Câmara, a vota­
se tirar algumas conclusões. Do total de 224 emen­ ção, em regime de urgência, do projeto em ques­
das apresentadas, mais de 90% delas foram colo­ tão15. Entregaram ao presidente da Câmara, na
cadas no inicio da tramitação. No total das emen­ época o deputado federal Aécio Neves (PSDB­
das, 61,6% foram apresentadas por parlamenta­ MG), um pedido de retirada da urgência, que só
res da base aliada, sendo que, em razão de retira­ veio a ocorrer duas semanas depois, logo após a
da das emendas do relator, 53% do total segui­ primeira audiência do governo federal com a
ram para a apreciação. Como vimos acima, nos Comissão Especial (27/03/01) que analisava o
artigos mais relevantes para a agenda do gover­ projeto.
no, parcela dos aliados e oposição concordara na É provável que a primeira retirada da urgên­
posição de veto, o que nos leva a crer que alguns cia constitucional (29/03/2001) tenha ocorrido
deputados aliados discordavam do governo nos justamente em função do grande número de emen­
pontos-chave do Projeto de Lei. A adesão de de­ das propostas logo no inicio, o que indicou a falta
putados da base aliada a preceitos defendidos pela de consenso sobre o assunto até na base de alia­
Frente, como o conceito de universalização do da. Sem a urgência, o governo ganharia tempo
acesso desvinculado do pagamento de tarifas e o para negociar de um lado e do outro. Era preciso
de titularidade municipal na prestação desses ser­ que o governo aglutinasse os deputados da base
viços, demonstrou a fragilidade do governo, que ou mesmo que cedesse à pressão da Frente e de
não produziu a coesão necessária nos partidos outros atores para um debate sobre o projeto.
aliados para a discussão da matéria. Até a emissão do relatório final em agosto de
Porém, se o governo não se manteve unido, a 2001, a Comissão Especial que analisou o proje­
Frente também se fragmentou a partir do PL to realizou 20 reuniões, entre audiências públi­
4147/01. Ao perceber o favorecimento dos Esta­ cas, reuniões técnicas e reuniões para discussão
dos pelo PL 4147/01, a ABES esfriou sua militân­ de assuntos internos. Ao longo do ano, intensas
cia na Frente. Lideranças regionais declaravam mobilizações foram realizadas em todo o país
que a estadualização da titularidade para as re­ pela sociedade civil organizada pela Frente. Inicial­
giões de interesse comum era um ponto positivo mente, a FNSA entregou no Congresso um abai­
do PL 4147/0113. Nas atas de reunião da Frente, xo-assinado com 720 mil assinaturas contra a
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privatização da água e o PL 4147/01 do governo. era conscientizar os Municípios para os prejuí­


Movimentos sociais e sindicais foram requisita­ zos que teriam no pacto federativo, caso tives­
dos para ocupações na Câmara e nas Comissões sem a titularidade transferida para os Estados.
que debatiam o projeto. No dia estipulado pela Entendendo que o município seria o maior
FNSA como o Dia Nacional de Luta contra o PL perdedor caso o mesmo fosse aprovado, a FNSA
4.147 e contra a privatização da água, várias ci­ interveio junto às entidades nacionais de prefeitos
dades se mobilizaram. Foram também divulga­ que influenciariam as audiências da Comissão no
das em importantes meios de comunicação as Congresso Nacional. Dessa forma, conseguiram
pesquisas do Instituto de Defesa do Consumi­ o apoio da AMB (Associação dos municípios bra­
dor sobre a qualidade dos serviços públicos pri­ sileiros), da CBM (Confederação brasileira dos
vatizados16. municípios) e da FNP (Frente Nacional de prefei­
A estratégia da Frente passou a enfatizar, para tos das capitais), que se posicionaram frente ao
além da mobilização de trabalhadores e usuá­ Projeto. O Quadro 5 resume as principais inicia­
rios, os executivos e legislativos locais. O objetivo tivas da Frente nesse sentido17-20.

Quadro 5. Iniciativas da Frente para mobilizar os Executivos e Legislativos Locais e suas bases de representação no
Congresso Nacional (Março a Agosto de 2001).

2001 Iniciativa Descrição Consequência

Março . Inicio da campanha “Estão . Distribuição de folders, banners, . Obteve o posicionamento da


querendo vender a sua água”, com cartazes e adesivos para prefeitos e maioria dos Prefeitos presentes
o apoio financeiro de dez vereadores, durante a realização do no evento contra o PL 4147/01.
empresas públicas e autarquias do Congresso Nacional de Prefeitos em
setor. Brasília.

Abril . Fórum Nacional para análise do . Reunião de prefeitos, secretários . Encaminhamento da “Carta de
Projeto 4147/01, realizado na municipais, políticos e técnicos em Vitória” ao Congresso Nacional,
cidade de Vitória/ES pela FNP e saneamento de todo o Brasil para a contendo severas críticas e
FNSA. análise do PL 4147/01. Presença do sugestões ao Projeto do governo
relator Adolfo Marinho (PSDB/CE) federal. Retomada da urgência
em 27/04/01.

Maio . Realização do seminário “Gestão . Apresentação de especialistas . Com o registro das


da Água e do Esgoto: experiências estrangeiros sobre o tema e divulgação recomendações, membros da
nacionais e internacionais”, com o de material. Recomendação de retirada Frente, convidados estrangeiros e
apoio da Internacional dos da urgência constitucional, com a deputados da oposição
Serviços Públicos em parceria com convocação da II Conferência Nacional pressionaram o Presidente da
o Sindicato nacional dos de Saneamento, a ser precedida por Câmara a cancelar o segundo
empregados públicos do Canadá, conferências nos níveis estaduais e pedido de urgência
na Comissão de Desenvolvimento municipais; constitucional, que ocorreu em
Urbano e Interior da Câmara dos . Discussão com diversas entidades sobre 12/06/2001;
Deputados. o Projeto de Lei 4.147/2001. Elaboração . Encaminhamento ao
. Evento do movimento Minas em de uma cartilha sobre saneamento. Congresso Nacional de uma
defesa das Águas. carta de repúdio ao projeto de lei
4147/01.

Julho . Encaminhamento de . Solicitou a intervenção de seus . Constrangimento das bases de


correspondências da AMB a todos associados junto aos respectivos apoio locais aos deputados
os prefeitos associados (17/07/ deputados regionais para que rejeitassem federais no Congresso Nacional;
2001); o PL 4147/01; . Posicionamento dos executivos
. Audiência da FNP com o . Manifestou recusa em aceitar a locais contra o PL 4147/01.
Presidente da República transferência de titularidade para o
Estado

Agosto . Seminário organizado pela . Discussão dos aspectos jurídicos do PL . Posicionamento dos executivos
Assemae junto aos procuradores 4147/01 e suas conseqüências para os locais contra o PL 4147/01.
municipais do país. municípios.
Fonte: Oliveira Filho11; Alemg (2001); FNSA14,17. Elaboração dos autores.
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Os políticos favoráveis ao Projeto eram ex­ salubridade ambiental é direito de todos e dever
postos nos sítios eletrônicos das entidades do do Poder Público, não podendo portanto estar
setor, em suas reuniões e eventos públicos e em vinculada ao pagamento de tarifas. Dessa for­
cartazes pelo Congresso Nacional. Enfrentavam ma, acatou a concepção da Frente.
slogans e palavras de ordem que os remetiam ao Agora, vejamos o ponto-chave do Projeto de
prejuízo eleitoral que teriam no ano seguinte caso Lei. O relator rejeitou a predominância irrestrita
privatizassem o setor. A FNSA, através da Fase, do interesse local sobre os serviços de saneamen­
convocou a ocupação da Câmara pelos movi­ to, tal qual defendia a Frente, pois considerou a
mentos sociais, com a especial participação da relevância do interesse comum e dos Estados
CONAM, que se destacou na estratégia adotada. para a prestação desses serviços de forma inte­
O objetivo era constrangê-los. Profissionais es­ grada. Porém, reconheceu que o interesse comum,
pecializados foram contratados para acompa­ mesmo predominante em algumas etapas do ser­
nhar a tramitação do projeto nas comissões par­ viço, não poderia anular o interesse local, como
lamentares. pretendia o PL do governo. Assim, definiu que,
A mobilização dos prefeitos e a pressão sobre nos casos em que houvesse a complementarida­
os deputados regionais no Congresso alertavam de entre as etapas de interesse comum e as etapas
sobre a repercussão negativa do voto favorável de interesse local, tal como predomina no Brasil,
ao PL 4147/00. A dependência de muitos deputa­ a gestão seria feita de forma compartilhada entre
dos federais com relação às suas bases políticas Estado e Municípios. Dessa forma, assegurou a
locais pode explicar a adesão ao municipalismo participação municipal na gestão das etapas de
por parte da base aliada do governo. Para o interesse comum. E determinou também que,
Município, perder a titularidade sobre o sanea­ nas etapas de interesse local, a titularidade era
mento seria reduzir poder em favor do Estado municipal, independentemente de o município
no pacto federativo. Daí as entidades representa­ pertencer ou não a uma região metropolitana.
tivas de prefeitos e a maior parte dos prefeitos Segundo o secretário executivo da Frente,
das regiões metropolitanas, em especial, terem Abelardo Oliveira, o substitutivo encaminhado,
rejeitado o Projeto. Apesar disso, o governo soli­ apesar de alguns avanços, não agradou aos par­
citou um novo pedido de urgência constitucio­ tidos de oposição, às entidades que compõem a
nal (24/07/01). Mas em pouco tempo o substitu­ FNSA e às entidades que congregam os municí­
tivo do relator já estaria pronto. pios brasileiros. Aliás, para ele, desagradou in­
clusive a setores do próprio PSDB, do Fórum
O substitutivo do relator: Nacional de Secretários Estaduais de Saneamen­
vencedores e perdedores to e da Associação das Empresas Estaduais de
Saneamento Básico – AESBE. Isso porque, no
O substitutivo do relator Adolfo Marinho foi final das contas, não contemplou plenamente o
apresentado em 30/08/01. No relatório que o municipalismo, de um lado, como queria a Frente,
acompanhou, justificou as alterações acatadas nem a estadualização dos serviços de interesse
sob a forma de uma nova Lei (o substitutivo)18 comum, de outro, como queria o governo.
que não chegou a ir ao plenário. Esse documento Não há como negar, porém, que o substituti­
foi abandonado pelo Executivo Federal porque vo enfraqueceu as atribuições do Estado e forta­
não contemplou os pontos-chave de sua agenda, leceu as do Município, se comparado ao que foi
da mesma forma que também não contemplou proposto pelo Executivo federal. Com isso, reti­
as expectativas da Frente. rou a segurança para a privatização pretendida
Com relação à abrangência dos serviços, por rejeitar o ponto-chave do marco regulatório
Adolfo Marinho acatou o argumento da base que a viabilizaria.
aliada e manteve os serviços de saneamento res­ A agenda da Frente para o saneamento tam­
tritos ao abastecimento de água e esgotamento bém não conseguiu gerar consenso para a edição
sanitário, tal qual proposto pelo governo. O go­ de um marco regulatório alternativo devido às
verno foi contemplado, pois sua concepção de divergências existentes no interior da própria
abrangência dos serviços foi a que prevaleceu. Já Frente em torno da titularidade municipal ou
no que se referiu à universalização vinculada ao estadual. Dessa forma, o consenso obtido pela
pagamento de tarifas, o Adolfo Marinho acatou Frente só tornou possível uma atuação para o
o pedido da oposição: assumiu que a garantia à veto à privatização.
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Conclusão respectivas bases eleitorais, se aliaram aos prefei­


tos e vereadores mobilizados pela Frente.
A discordância entre governo e FNSA sobre o Ao constranger o raio de ação do governo,
papel do Estado na provisão dos serviços de sa­ impedindo a aprovação de sua principal proposta
neamento gerou um elevado dissenso político a para o setor, a ação política coletiva da Frente
respeito do melhor arranjo institucional para o constituiu uma decisiva instância de veto à agen­
setor no Brasil. Esse dissenso se expressou no da de privatização do saneamento encaminhada
veto da Frente à agenda governamental para o pelo governo federal com o aval do FMI. Isso
setor, que culminou na derrota do PL 4147/01. A corrobora a hipótese de Pierson8,9 de que as coa­
análise desse dissenso revela que ele é fundamen­ lizões de interesse setorial puderam minimizar
tal para a compreensão da permanência, no pe­ ou mesmo neutralizar os efeitos das reformas
ríodo em questão, da crise na formação da agen­ nos anos 1990, ao vetarem uma agenda que pro­
da pública em que o saneamento mergulhou após metia benefícios coletivos difusos e perdas con­
o fim do Planasa nos anos 1990. Com o objetivo centradas e tangíveis para determinados grupos.
primordial de impedir a privatização de tais ser­ No caso do saneamento no Brasil, os benefí­
viços, a Frente empreendeu ampla mobilização cios difusos de eficiência e modernização anunci­
de diversos grupos políticos e sociais, via dife­ ados pelas reformas liberalizantes do governo para
rentes táticas, tais como: a realização de confe­ o setor não tiveram o apoio de uma importante
rências e campanhas de cooptação da opinião coalizão beneficiária da política brasileira de sa­
pública, o ajuizamento de ações judiciais (ADINS) neamento, ancorada na provisão estatal direta de
contra a venda das empresas estaduais de água e tais serviços. O risco de uma demissão em massa
esgoto, as ocupações no Congresso com a parti­ proveniente da privatização das empresas públi­
cipação de movimentos sociais e, principalmen­ cas prestadoras configurava uma perda concen­
te, a forte pressão sobre executivos e legislativos trada e tangível para esses grupos, não valendo a
locais e sobre os deputados federais envolvidos pena aceitar a mudança em nome de benefícios
na votação do PL 4147/01. difusos anunciados pelo governo, os quais, segun­
Além da atuação da Frente, outros fatores do eles, não seriam vantajosos para a população
contribuíram para a derrota da proposta gover­ de uma forma geral. Isso porque, para eles, o in­
namental. O fato da prestação desses serviços não centivo do governo à lógica de mercado excluiria
ser de competência federal, por exemplo, dificul­ do acesso os estratos mais pobres do país.
tou uma ação mais rápida e direta do governo, A intensa queda de braço travada, ao mesmo
como nos casos da energia e das companhias de tempo em que vetou a agenda governamental,
mineração, por exemplo, forçando a inclusão de não permitiu que a agenda da Frente vingasse
atores de peso na negociação de sua proposta: os como proposta alternativa para o saneamento.
Executivos e Legislativos locais, que foram mobi­ Isso gerou um cenário de paralisia decisória, con­
lizados e aproveitados pela Frente. Outro obstá­ tribuindo, entre outros fatores, para o seu baixo
culo encontrado pelo governo foi a fragmentação desempenho como uma política pública de pro­
de sua base aliada, que abrigava deputados mu­ visão de serviços coletivos no Brasil ao longo das
nicipalistas, os quais, por dependerem de suas décadas de 1990 e 2000.

Colaboradores

ACA Sousa e NR Costa participaram da concep­


ção, pesquisa e redação final do presente trabalho.
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Referências

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2001. mo de reunião na Câmara Federal, Brasília/DF, 23/
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cessões privadas de saneamento no Brasil: Bom para
quem?”. Ambiente & Sociedade 2004 ; 7(2):68.
13. Pedrosas MT. Depoimento do Presidente da Seção
Minas Gerais da Associação Brasileira de Engenharia
Sanitária Ambiental [acessado 2007 out 12]. Dispo­ Artigo apresentado em 21/09/2009
nível em http://www.almg.gov.br/eventos/Ciclo_ Aprovado em 15/03/2010
Debates/politica_nacional_de_saneamento.asp Versão final apresentada em 12/04/2010
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Anexo 1. Lista de siglas

ABES – Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental


ADIN – Ação Direta de Insconstitucionalidade
AESABESP – Associação dos Engenheiros da SABESP
AESBE – Associação das Empresas de Saneamento Estaduais
AMB – Associação dos Municípios Brasileiros
ANSUR – Associação Nacional do Solo Urbano
APU – Associação dos Profissionais Universitários da SABESP
ASSEMAE – Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento Ambiental
CBM – Confederação Brasileira dos Municípios
CMP – Central dos Movimentos Populares
Conam – Confederação Nacional das Associações de Moradores
FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional / Observatório de Políticas Públicas e Gestão
Municipal
FHC – Fernando Henrique Cardoso
FISENGE – Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros
FMI – Fundo Monetário Internacional
FNP – Frente Nacional de Prefeitos das Capitais
FNRU – Fórum Nacional da Reforma Urbana
FNRU – Fórum Nacional pela Reforma Urbana
FNSA – Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental
FNU/CUT – Federação Nacional dos Urbanitários/ Central Única dos Trabalhadores
IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
MNLM – Movimento Nacional de Luta pela Moradia
OAB – Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Taboão da Serra-SP)
Planasa – Plano Nacional de Saneamento
POLIS – Instituto de Estudos Formação e Assessoria em Políticas Sociais
PSI – Public Services International
Rebripe – Rede Brasileira pela Integração dos Povos
SEESP – Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo
SENGE/RJ – Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio de Janeiro;

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