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MÚSICA,
POESIA &
CINEMA
JAIRO
LUNA
São Paulo
Jairo Nogueira Luna
2011
Copyright Jayro Luna © 2011
2
Sumário
3
APRESENTAÇÃO
1
João Alexandre Barbosa se refere ao livro A Imitação da Forma: Uma Leitura de
João Cabral de Melo Neto (Duas Cidades, 1975).
4
que fora leitor dessas obras deixou-me, é claro, envaidecido,
sentimento que expressei nos autógrafos.
Por isso mesmo, uma vez que fui um dos idealizadores do
Projeto Nascente, fiquei feliz que sua lavra poética tenha sido
premiada por dois anos seguidos, fato raro, não previsto, que levou a
organização do Nascente a rever o regulamento que não previa que
alguém pudesse ganhar mais de uma vez o prêmio, como você fez.
Seu doutoramento na Literatura Portuguesa, com o modo
arguto com que lera as poesias, o teatro e a pintura de Almada
Negreiros, autor fundamental para a compreensão do Modernismo
em Portugal, mas tão pouco lido entre nós, veio contribuir para
diminuir essa lacuna em nossa crítica literária.
Voltando, aos textos que me mandou para leitura, terei sim o
maior prazer em escrever um texto de apresentação para seu livro,
que de certo modo, não será mais que um comentário ao lado de seu
percurso crítico, retribuindo assim a forma atenta e profunda com
que leu os meus2.
2
O presente texto é uma carta enviada por João Alexandre Barbosa, em resposta ao
envio de dois textos que lhe remeti, semanas antes – “São Paulo por Blaise
Cendras e Minas Gerais por Oswald” e “O Paradigma Holográfico num Soneto de
Gregório de Matos” – nesta carta, comentei do projeto de publicar um livro, em
que estes dois textos figurariam, e eu pedia se o prezado professor poderia escrever
uma apresentação para ele. Alguns dias depois, encontrei-o nos corredores da
FFLCH e falei-lhe que o projeto do livro demoraria, uma vez que eu estava
encontrando dificuldades financeiras para poder publicá-lo, de modo que quando
eu realmente me decidisse pela publicação daquele material eu pediria a João
Alexandre o texto de apresentação. Porém, quis o destino que o admirado professor
e crítico falecesse em 2006. Resolvi agora publicar a carta, pois ao que me parece,
dentro do contexto e do conteúdo deste livro – diferente, é verdade, do conteúdo
originalmente pensado -, não poderia existir melhor apresentação. Num certo
sentido, o professor João Alexandre Barbosa já tinha escrito a apresentação para o
meu livro, sem que eu me desse conta naquela ocasião. Ei-la.
5
A CENSURA AOS ARTISTAS EM TRÊS QUADRAS DAS CENTÚRIAS DE
NOSTRADAMUS.
7
“Notam-se resquícios da Inquisição nestes versos. Na
realidade, os astrólogos não foram tão duramente
perseguidos depois da morte de Nostradamus como no
século anterior. É possível também que ele se referisse à
caça às bruxas que assolou a Europa e só mais tarde
amainou. Nostradamus foi convocado a depor diante do
tribunal da Inquisição em Toulouse e teve que desaparecer
durante algum tempo.”
(CHEETAM: 1983, P. 215)
10
astronomia foi, sem dúvida, das mais desenvolvidas e exatas dentre
os povos antigos.
12
Como escritor esotérico, Masil adota o estilo lacônico,
elíptico, de forma que deixa no ar o significado da rosa encontrado
por ele na leitura da quadra. Umberto Eco, no seu mais famoso
romance, O Nome da Rosa, já trabalhara o conceito medieval da
rosa. Algumas incongruências, no entanto, permanecem na
interpretação de Masil, como a distinção entre “política” e
“socialista”, o que de certo modo não se sustenta, bem como que a
significação mística se oporia a estas, o que não também, do ponto de
vista dos estudos sociológicos, antropológicos e culturais também
não se verifica.
Érika Cheetam, a respeito dessa quadra, se cala, e apresenta
apenas uma tradução livre e lacônica da quadra.
José García Alvarez assina matéria colocada na Internet
(http://relatoscortos.com) em que interpreta algumas das quadras de
Nostradamus, e com relação a esta em particular escreve:
Referências Bibliográficas:
16
A Hermenêutica do Neo-estruturalismo Semiótico:
Acompanhada de Brevíssima Leitura de “Cidadezinha
Qualquer”, poema de Drummond.
21
O deus Hermes podia se mover livremente, pela sua esperteza
e ligeireza, entre o mundo subterrâneo (Hades), a Terra e o Olimpo.
Não havia outra divindade que pudesse fazer isso com igual
capacidade. Analogamente, a mente humana pode ser considera
como constituída desses três mundos, o inconsciente profundo (nosso
Hades), a Terra (nosso ego), o Olimpo (o conhecimento da totalidade
buscado e nunca encontrado).
No Neo-estruturalismo Semiótico o mito de Hermes também
se fundamenta numa possibilidade de leitura em que a existência do
simbólico como natural do domínio mais profundo da mente só possa
ser interpretado por uma consciência hermética (de Hermes) que com
habilidade e ligeireza consiga recriar ou dito de outro modo,
ressignificar constantemente. Quando Hermes com as tripas de dois
bois roubados a Apolo e o casco da tartaruga fez a lira estava agindo
de modo análogo ao que propomos como atitude crítica do Neo-
estruturalismo Semiótico. A cada leitura o crítico deve inventar um
novo instrumento artístico que se fundamenta nas possibilidades de
relações entre os objetos de que dispõe e que de se utilizou para a
leitura. Nesse sentido, podemos ler um poema de Drummond, como
“Cidadezinha Qualquer” e buscar nele a imagem de Mercúrio
(planeta) em movimento retrógrado. De fato, Mercúrio que não dista
astrologicamente mais que 28.° do Sol, tem um movimento aparente
em que a par da sua decantada ligeireza tem por vezes um
movimento de estagnação. Como observam Guttman e Johnson:
Cidadezinha qualquer
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
24
A História do Rock Segundo Glauco Mattoso
36
“Comigo é diferente! Se uma banda
quiser o meu delírio, nem preciso
meu tênis descalçar: antes que expanda
37
Talvez, um rockeiro que vai aí pela casa dos quarenta anos,
lembra-se além de Mariska Veres, e seu sex appeal de lindas perucas
e maquiagem forte, da loirinha de voz agressiva e postura despojada
que foi a cantora do Suzi 4. Notemos, o modo como Glauco se refere
à voz de Robert Plant:
38
“Machista pra caralho, a mulherada
faz fila pra sair com o rapaz
que agora é MAN, palavra soletrada.”
40
Por fim, destacaremos aqui nesse texto um aspecto que parece
importante e rico da poética de Glauco nesse conjunto de sonetos. O
poeta, já há vários anos sofrendo de glaucoma, daí seu pseudônimo
artístico, e dizem alguns, já cego, descreve não poucas vezes capas
de discos. Essas descrições parecem fazer parte da memória visual do
poeta, do tempo em que se ouvia os discos de vinil LP – long play,
em que os grupos se esmeravam na produção gráfica das capas, não
raras vezes, contratando artistas plásticos para composição das
mesmas. Outras vezes, capas interativas, como a simplezinha do
“The Who By Numbers”, do The Who, que era um jogo de ligar
pontos para formar a caricatura dos componentes da banda, ou
outros, com encartes diversos, como se fossem livros infantis ou
histórias em quadrinhos (Magical Mistery Tour, dos Beatles, por
exemplo), com capas duplas com recortes que precisam e ajustar para
montar uma figura (Physical Graffiti, do Led Zeppelin ou Some
Girls, dos Rolling Stones).
No “Soneto Rockeiro – Remixado”, Glauco avalia sua
condição de cego e como essa condição modifica sua relação de
apreciador das bandas de rock:
Referências
44
A Simbologia do Fruto Proibido em 4 Canções de Caetano
Veloso
“Jóia
Beira de mar
Beira de mar
Beira de mar na América do Sul
Um selvagem levanta o braço
Abre a mão e tira um caju
Um momento de grande amor
De grande amor
Copacabana
Copacabana
Louca total e completamente louca
A menina muito contente
Toca a coca-cola na boca
Um momento de puro amor
De puro amor”
“Cajueiro desgraçado,
A que Fado te entregaste,
Pois brotaste em terra dura
Sem cultura, e sem senhor!”
(“O Cajueiro”, Rondó III)
Cá já
Vejo que areia linda
Brilhando cada grão
Graças do sol ainda
Vibram pelo chão
Esteja cá já
Pedra vida flor
Seja cá já
Esteja cá já
Tempo bicho dor
Seja cá já
Doce jaca já
Jandaia aqui agora
Esteja cá já
Pedra vida flor
Seja cá já
Esteja cá já
Tempo bicho dor
Seja cá já
Doce jaca já
Jandaia aqui agora”
“Cajuína
“Araçá Azul
Com fé em Deus
Eu não vou morrer tão cedo
54
Pete Townshend, do The Who, que na voz de Roger Daltrey cantava:
“I hope I die before I get old”.
O “sonho-segredo”, binômio que contém a gênese da
psicanálise, pois é no sonho que se revelam parte dos segredos do
inconsciente, e aqui o segredo desvelado está materializado nessa
exótica fruta; “Araçá Azul é brinquedo”. O fruto proibido
transformado em sabor do paraíso (a cor azul da religiosidade, da
espiritualidade, do céu) transmutada em casca de fruta que deve
conter pela aparência uma espécie de “maná”, que há pouco é dado
conhecer: “Araçá Azul fica sendo / o nome mais belo do medo”. O
medo do desconhecido, do mistério, da epifania, da agnição.
Como se diz no interior da capa dupla do disco de vinil (não sei se a
versão atual em cd tem esse dizer, creio que tenha): “um disco para
entendidos”. A fruta exótica está conotando sensualidade e
sexualidade, a começar pela foto de Caetano, de sunga vermelha,
tirada de baixo para cima que se relaciona com a foto da contracapa,
a do “Araçá Azul”.
Observando as iniciais da letra da canção e notando a
repetição contínua dos versos num círculo que se volta sobre si
mesmo temos uma revelação acerca da cor e do sentido do “Araçá
Azul” assim como as fotos todas ligadas à praia, ao Sol, ao Mar:
56
Alguns Aspectos do Uso da Mitologia nas Odes de Ricardo Reis
60
Assim, o pensamento constrói a memória do passado, e essa
memória prende o homem ao mundo dos pensamentos, afastando-o
do conhecimento do presente e, por conseguinte, da presentidade do
sensível da Natureza. No poema citado, Ricardo Reis cita Orfeu e o
erro que cometeu ao olhar para trás na subida saindo do Hades. Esse
nosso erro constante, na acepção de Reis. Toma como exemplo
Saturno, que olha apenas para a frente, assim o poeta finaliza o
poema declarando a necessidade de não pensarmos para que
possamos buscar a verdadeira liberdade:
“Hiperion no crepúsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou” (p.254)
65
Pã é outro deus de destaque no panteão sensacionista de
Ricardo Reis. Pã, deus dos pastores e dos rebanhos. Conhecido por
este nome tanto entre gregos como romanos. Metade homem, metade
bode, amava as fontes, os bosques e passava por estes cenários
tocando sua flauta. Admirava as Ninfas, pelas quais tentava dar
vazão a sua atividade sexual exagerada. A paternidade do deus Pã é
de grande variedade de versões na mitologia: um mero pastor e uma
cabra, Zeus, Saturno, Hermes com Dríope, entre outras versões
constam como pais do deus. Conta-se a lenda que ao tempo de
Augusto ou Tibério, um barco romano passando por algumas ilhas
gregas ouviram um voz que dizia “O Grande deus Pã morreu!”
Assim o poema 313 das odes de Ricardo Reis começa com a
afirmação de que “P Deus Pã não morreu, / Cada campo que mostra /
Aos sorrisos de Apolo / Os peitos nus de Ceres - / Cedo ou tarde
vereis / Por lá aparecer / O deus Pã, o imortal”. (p.255)
Em outras duas ocasiões Pã aparece associado à figura da
deusa Ceres – deusa da agricultura:
“Hiperion no crepúsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou” (p.254)
70
“Inserida numa guerra „a sério‟ e opondo-se-lhe, aparece
uma guerra simulada, que se passa no simulacro que é o
tabuleiro. À guerra „a sério‟, Reis opõe a guerra de
brincadeira, a guerra do jogo e, chocando deliberadamente os
seus leitores pela criação da situação-limite, Reis propõe que
se deve preferir a guerra do jogo à real, salvar antes o „rei de
marfim‟ que a „carne e o osso das irmãs e das mães e das
crianças.”
(GARCEZ: 1990, p. 34)
72
“(..) Ricardo Reis agride o Cristianismo, pondo-o em
ridículo, como um meio, talvez, de assim se libertar. Quem é
que não o „deixa‟, em última instância, viver paganamente?
Os „crentes em Cristos e Marias‟ ou sua própria consciência?”
(GARCEZ: 1990, p. 85)
75
“Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.” (p. 273)
“Gozemos escondidos.
A sorte inveja, Lídia. Emudeçamos.” (p.277)
79
“Nesta hora, Lídia ou Neera ou Cloe,
Qualquer de vós me é estranha, que me inclino
Para o segredo dito
Pelo silêncio incerto.” (p. 281)
82
há em pés descalços, / Esse ritmo das ninfas repetido, / Quando sob o
arvoredo / Batem o som da dança” – p.263).
Aristóteles é colocado em Atenas, na Acrópole falando,
porém, para Reis Epicuro tem mais a ensinar do que o mestre de
Alexandre Magno:
84
Átropos, a mais velha, com uma tesoura decidia o momento em que
cada fio deveria ser cortado.
Uma vez decidido o destino dos homens pelas Parcas, nem
mesmo os deuses têm o poder de modificá-los. Fernando Segolim
observa que em Reis exercita-se a busca de uma liberdade que de
algum modo tenta ludibriar, ainda que momentaneamente as Parcas:
86
A Sorte passa por ser em Ricardo Reis o momento que se frui
no presente, e ao fruí-lo a certeza instantânea de que se vive ainda.
Tal estado de presentidade e conformidade com o Destino incerto é o
que fornece o equilíbrio tênue para que se alcance o prazer e a
felicidade neste mundo:
6. Referências Bibliográficas
88
Alguns Comentários Acerca da Mitologia Afro-Brasileira em
Três Letras de Canções de Gilberto Gil
90
São João Xangô Menino
Logunedé
“É de Logunedé a doçura
Filho de Oxum, Logunedé
Mimo de Oxum, Logunedé - edé, edé
Tanta ternura
É de Logunedé a riqueza
Filho de Oxum, Logunedé
Mimo de Oxum, Logunedé - edé, edé
Tanta beleza
Logunedé é demais
Sabido, puxou aos pais
Astúcia de caçador
Paciência de pescador
Logunedé é demais
93
Logunedé é depois
Que Oxossi encontra a mulher
Que a mulher decide ser
A mãe de todo prazer
Logunedé é depois
Buda Nagô
“Dorival é ímpar
Dorival é par
95
Dorival é terra
Dorival é mar
Dorival tá no pé
Dorival tá na mão
Dorival tá no céu
Dorival tá no chão
Dorival é belo
Dorival é bom
Dorival é tudo
Que estiver no tom
Dorival é Eva
Dorival Adão
Dorival é lima
Dorival limão
Dorival é a mãe
96
Dorival é o pai
Dorival é o peão
Balança, mas não cai
Dorival é índio
Desse que anda nu
Que bebe garapa
Que come beiju
Dorival no Japão
Dorival samurai
Dorival é a nação
Balança, mas não cai.”
98
Daí o bordão “balança mas não cai” que era o nome de
conhecido programa humorístico da TV brasileira nos anos 60/70,
transforma-se aqui em elemento de caracterização desse conflito. Se
no “Navio Negreiro” de Castro Alves o balanço do navio é associado
ao ritmo funesto de uma orquestra horrenda cujo instrumento de solo
é o chicote, nessa canção de Gil, a idéia contida no bordão “balança
mas não cai” é a de um equilíbrio provisório, resultado não de uma
acomodação ou alienação, mas de um desenvolvimento espiritual que
faz com que a figura de Caymmi represente esse desenvolvimento, a
compreensão dos limites da dor ante a opressão.
Não é por acaso, que estruturalmente existe como figura
dominante a anáfora. A repetição contínua do nome “Dorival” vai
destacando aspectos sonoros contidos nesses fonemas, de forma que
a palavra “dor” vai ecoando num processo de tripartição do nome
próprio: “Dor / i / val” que vai aos poucos degenerando-se em “dor e
vale” ou “dor e vai”.
O tratamento da dor, a consciência do domínio sobre a dor
física é um dos aspectos mais evoluídos da preparação do monge, a
capacidade superar privações, intempéries rigorosas apenas com uma
leve túnica e pouco alimento são conhecidas dos monges. A Yoga
tem suas bases no desenvolvimento dessas capacidades dos monges.
Dorival é um monge “Buda Nagô”, assim ele consegue superar as
privações, compreender as tensões sociais circundantes e oferecer um
discurso de não violência, ao modo de um Gandhi. Apresentado
ainda na canção como iluminado por Xangô, como resultado da
união mítica da figura do masculino com o feminino (“Dorival é Eva
/ Dorival Adão /.../ Dorival é mãe / Dorival é o pai”) e ainda, como
um “peão”, como um “índio” que anda nu, como um samurai. Essa
multiplicidade de aparências de Dorival se caracteriza pela noção das
reencarnações sucessivas que uma alma deve passar segundo o
Budismo. As vidas estariam ligadas por relações de causa e efeito, de
modo que o que foi feito numa vida terá conseqüências em outra.
Mas aqui, em Gil, a noção passa por um processo de metaforização
em relação ao contexto do Brasil e de Salvador, afinal, Dorival é um
“Buda Nagô”. Assim, cada cidadão de Salvador, é ao mesmo tempo
e não sucessivamente um “Caymmi”, por isso conclui Gil: “Dorival é
a nação / Balança, mas não cai”.
99
O que vimos nessas três letras de canções é que Gilberto Gil
foi montando um sincretismo entre as influências africanas, o
cristianismo brasileiro (São João Xangô Menino, p.ex.), mas foi em
seguida acrescentando outros elementos num caldeirão de mitos que
converge para uma totalidade, aquela que há vinte anos Fred de Góes
dizia que Gil buscava. Não sei se esse é o resultado final, mas sem
dúvida, é um processo em evolução, ou como diria Pound, “work in
progress”.
100
AVATAR – Da Ficção Científica à Realidade Virtual: A Alegoria
da Ecologia e da Tecnologia.
106
platéia, é agora uma janela/olho para o mundo da imaginação em que
formas, cores, sons sinestesiam-se num mundo mágico.
Referências Bibliográficas:
107
Linguagem, Mito e História em “Al Capone” de Raul Seixas.
109
doutrina, que assegura ter ocorrido sua ressuscitação ao terceiro dia
como prova não só de sua divindade, mas também da garantia dessa
vida eterna. Na canção, porém, o poeta-astrólogo pede a Cristo que
abandone o Pai, ou seja, deixa de lado sua crença e se volte para sua
própria condição de homem, mais que a condição de filho de Deus.
Se assim não podemos ter garantia de sua divindade nem da vida
eterna, por outro lado, o poder temporal dos homens também nada
nos oferece, uma vez que a César se pede que não compareça ao
senado, onde será vítima de traição. Apenas Deus, enquanto figura
onipotente, mas também conceitual, não visível em seu aspecto físico
no mundo dos homens continua, porém, impotente diante do
descrédito que se afigura a sua volta.
A outra tríade é a composta pelos personagens da cultura
urbana norte-americana: Jimi Hendrix, Frank Sinatra e Al Capone.
Nessa tríade, Jimi Hendrix se opõe a Frank Sinatra, pois representa a
radicalidade da Contracultura, o rock, e sua morte ocorrida por
overdose de drogas em 1970 é colocada como alusão nos versos:
“Hei, Jimi Hendrix, abandona o palco agora, / Faça como fez Sinatra,
compre um carro e vá embora”. Ou seja, se Hendrix abandonar o
palco, deixar sua radicalidade e se retirar para gozar da fama
adquirida; ao comprar um carro poderá alcançar a longevidade de
Sinatra. Completando a tríade está a figura central de Al Capone - tão
central que dá título à música e é o tema do refrão. Pois Al Capone
representa também a radicalidade, só que no sentido da corrupção do
sistema. O grande chefe mafioso não é um signo da Contracultura,
mas um signo da corrupção do sistema. Sua ação se fez pela própria
incongruência do sistema social e político americano, fundamentado
na lei seca, lei que contradizia o sentido econômico e mercadológico
do way of life americano, mas que se sustentava numa visão
estereotipada de valores pseudo-religiosos e morais, valores esses
que ainda sustentam boa parte do eleitorado da atual política
intervencionista americana. Enriquecendo-se na venda e no controle
da distribuição proibida de bebida alcoólica, Al Capone só pode ser
pego não pelo crime que cometia, mas pelo deslize de sonegar
imposto.
Se justapuséssemos a tríade primeira, da antiguidade, com a
tríade da sociedade americana, teremos as equivalências anunciadas
110
de seus vértices, formando assim três pares: Jesus Cristo/Jimi
Hendrix, Al Capone /Júlio César, Frank Sinatra /Pai(Deus).
O primeiro par se constitui pelo não apenas no signo da morte
trágica e anunciada: A morte de Cristo era prevista pelo próprio
Cristo nas suas parábolas e discurso aos seus seguidores. A morte de
Hendrix era prevista no discurso oficial que buscava combater o
vício das drogas. Mas, o que mais sustenta essa par é o signo da
radicalidade. Cristo e Hendrix são colocados como representantes de
uma postura revolucionária em relação ao sistema.
O segundo par se compõe na questão da corrupção intrínseca
ao sistema, no crime que surge no seio do sistema social e que se
mantém graças aos aspectos contraditórios da realidade social.
Assim, a máfia de Al Capone não combate o sistema, mas se instaura
no sistema e dela tenta tirar proveito. O comércio ilegal de bebida
alcoólica se sustenta em razão da natureza inconsistente da lei que o
proíbe. E a razão desta lei tenta se justificar por uma postura
moralizante que não compactua harmoniosamente com o sistema que
visa proteger. No caso de Júlio César, também temos a corrupção do
sistema. A traição que sofre o imperador romano é fruto de uma
organização imperial que busca manter o poder e suas vantagens em
detrimento de qualquer valor ético, muito embora seu discurso se
apresente como fundamentado também nessa mesma ética. Pode-se
dizer que a prisão de Al Capone e a morte de Júlio César foram
resultados da reação do sistema ao excesso de poder paralelo que a
corrupção pode conferir. O sistema reage quando existe, digamos
assim, um fator limite de corrupção que o sistema pode suportar sem
entrar em crise estrutural. Se Al Capone não pudesse ser preso, o
crime organizado desestabilizaria a ordem social das cidades
americanas, notadamente Chicago (“Assim dessa maneira, nego,
Chicago não agüenta”), se Júlio César não fosse traído pelo senado, o
próprio senado e a república romana se desestabilizariam em função
de uma monarquia ditatorial e populista.
O terceiro par (Frank Sinatra/Pai) representa o controle para
que o limite que o sistema social traça para que sua organização se
mantenha, de certa maneira, esse limite pode ser traduzido no
elemento que organiza a hierarquia e o status quo. Deus-Pai
representa na primeira tríade, a lei passada pelo Velho Testamento, e
111
sobre ela se mantém a religião judaica. Embora a região de Israel
estivesse sob o domínio estrangeiro dos conquistadores romanos,
essa religião sustentava a ordem social, e é justamente ela a causa da
morte de Cristo. Frank Sinatra, por sua vez, representa na segunda
tríade o limite de corrupção que o sistema pode suportar, as supostas
ligações de Sinatra com a máfia e seus relacionamentos amorosos
polêmicos faziam parte do que o sistema poderia prever e suportar, o
que dava à figura de Sinatra um tom de polêmica que só fez por
aumentar o interesse por sua carreira. Cabe ainda lembrar que no
final da década de 40, Sinatra entrou em decadência, mas no início
da década de 50, o filme A Um Passo da Eternidade recolocou o
artista no auge do estrelato. Nesse sentido é que Frank Sinatra está
para Jimi Hendrix, assim como Deus está para Jesus Cristo. O par
Pai/Sinatra compreende o status quo, a garantia de sustentabilidade
do sistema social, ao passo que o par Hendrix/Cristo representa a
quebra dessa garantia e a revolução da ordem institucionalizada. São
essas as condições ideais para o martírio e a reconfiguração dessas
personagens no âmbito da mitificação, ou seja, na transformação de
suas figuras em mito. Porém, se Cristo, com sua morte, deu origem
ao Cristianismo por ação de seus seguidores, a morte de Hendrix teve
caminho reverso e representou um dos pontos finais da
Contracultura, confirmada, num contexto próximo, pela lendária
frase de John Lennon: “O Sonho Acabou”.
A figura de Lampião, na sua singularidade, é o único
personagem que não pertence nem à Antiguidade nem à cultura
americana. É o personagem brasileiro. Enquanto tal, Lampião
compõe o signo do conceito de Brasil que subjaz ao texto. Lampião
está em convergência com Al Capone, uma vez que como o grande
chefe da Máfia, era o líder de uma organização de caráter criminoso,
o cangaço. Também Lampião está em convergência com Jesus
Cristo, uma vez que sua morte o mitificará, será cantada pelos
repentistas e pelos cordéis e se cristalizará num ícone da cultura
popular nordestina. Lampião ainda está em convergência com Jimi
Hendrix tanto como com Cristo, uma vez que sua morte significará a
normalização do sistema, do status quo. Nesse sentido em Lampião
está como que, latente, uma nova organização dos elementos
históricos, uma linha que liga Al Capone, Jesus Cristo e Jimi
112
Hendrix, linha essa que se opõe a Frank Sinatra, Júlio César e Pai,
estes três personagens representativos do poder, do próprio status
quo, estes três podem ser traduzidos no tripé Máfia - Estado -
Religião, ao passo que Hendrix, Cristo e Al Capone formariam o
tripé da revolução artística, religiosa e o caos social. Lampião
consubstanciaria esse tripé, causando o caos no sertão, o sentimento
de desordem social levaria ao sentimento de clima apocalíptico tão
característico do imaginário religioso nordestino e que é tão
constante na arte popular daquela região.
Mas todo o discurso da letra desta canção se estrutura sobre
uma outra tríade, não tão explícita, mas que organiza de forma quase
subliminar o texto. A tríade é composta pelos elementos Astrólogo
(eu), tu (você ) e eles (os outros).
Nessa tríade se instaura o processo de comunicação que
envolve a letra da canção. Raul Seixas travestido de astrólogo,
profeta do rock, figura que cultivou em várias outras canções e
discos (Gita, Eu nasci há 10.000 anos atrás, O Dia em que a terra
parou, etc...) comunica-se com seu público e o que tem ele nessa
canção a dizer é que a História está diante de todos e ela serve de
exemplo para que se compreenda as conflituosas relações entre os
indivíduos e o sistema social dominante. Como se estivesse diante da
máquina do mundo, Raul Seixas não só parece suspender o tempo
como sincroniza os mais distantes acontecimentos num mesmo
momento, o instante de seu discurso. Assim é como se Cristo ainda
estivesse vivo e pressentisse a possibilidade da morte próxima, Al
Capone tem que ser avisado que o que ele tem feito à Chicago
exigirá medidas drásticas do Estado para controlar suas ações e tirá-
lo de circulação, Lampião ainda vive no sertão, Júlio César ainda
impera em Roma e Hendrix ainda sola sua guitarra. Esse tempo
suspenso, sincrônico e que se apresenta diante de Raul e de seu
público existe de fato, e estava na casa de praticamente todos os seus
fãs: a televisão e a mídia. Por isso, o conhecimento de História que o
compositor exige de seu público é aquele que faz parte da média
previsível pelos mass media.
Nesse tempo sincrônico e suspenso, Raul apresenta nessa
nova máquina do mundo as causas eminentes que levaram/levarão
seus personagens à tragédia e ao encontro com seus destinos. A
113
corrupção do sistema, o crime organizado, a revolução religiosa, as
drogas e a revolução artística, são esses os fatores específicos que
causam o final trágico de cada um, e paralelamente, Raul ironiza que
existe uma saída caso algum desses personagens quisessem garantir
suas próprias vidas: a desistência, a retirada - estratégica ou não.
Assim Hendrix deveria abandonar o palco; Cristo, a sua fé; Al
Capone, o tráfico de bebidas e a máfia; Lampião, o cangaço; Júlio
César deveria evitar o encontro com o Senado romano.
Os verbos indicativos de ação na canção são indicativos dessa
situação de sincronização das diferentes épocas e lugares.
No refrão o verbo “ver” aparece associado aos verbos
“emendar” e “orientar” no modo imperativo. O verbo “ver” ainda
aparece no verso que fala de Júlio César, agora associado ao verbo
“ir” negativado pelo advérbio de negação (“não vai”). Este “ver” é o
que determina a relação atemporal, suspensa, sincronizada entre o
astrólogo e os personagens históricos.
Por sua vez, o verbo “ir” ainda aparece mais duas vezes.
Quando se avisa Lampião que eles (a volante) irão à feira exibir a
cabeça do cangaceiro caso ele não atenda ao aviso que o compositor-
astrólogo dá. E também quando se pede a Hendrix que abandone o
palco e “vá embora” ao modo de Sinatra. Assim, o verbo ir, em
verdade, continua sugerindo a idéia de “não ir”, ou seja, Lampião e
Hendrix não devem continuar o percurso que seguem para que
possam evitar suas mortes.
Reforçam esse aspecto de pressentimento e de aviso que o
compositor-astrólogo apresenta os verbos que sugerem a
descontinuidade e a retirada: abandonar, dar, deixar, desaparecer.
O verbo saber tem um papel importante nessa estrutura.
Aparece duas vezes, uma no refrão e outra na referência a Júlio
César. Acompanhado do advérbio de tempo “já” o que esse verbo
informa é que os planos de ambos os personagens (Júlio César e Al
Capone) já são do conhecimento de seus opositores.
Completam o panorama outros verbos no imperativo: foge,
compre e faça. Aliás, o verbo fazer quando se refere a Cristo,
apresenta-se também no presente do indicativo (faz) associado à
expressão “o melhor que”, querendo dizer que Cristo está prestes a
fazer a opção errada, qual seja, a de continuar com sua pregação.
114
Os verbos no infinitivo (deixar e controlar) associam-se a
esses imperativos de forma a criar a ilusão da suspensão do tempo,
uma vez que o infinitivo se caracteriza pela nominalização da ação.
Esses dois infinitivos resumem o aviso dado pelo astrólogo. O verbo
deixar tanto indica a interrupção da ação que os personagens
históricos praticam quanto indica a retirada de cena, ao passo que a
tentativa de controlar seus destinos e o próprio mundo se torna cada
vez mais uma impossibilidade. Nesse caso anuncia-se o caráter
trágico dessas personagens, não podem modificar o destino que lhes
foi traçado.
Desse modo, o astrólogo, como uma espécie de novo Tirésias,
avisa o que vê aos personagens da canção sem que, no entanto, tais
personagens possam efetivamente alterar suas rotas. Seria então um
trabalho inútil esse aviso? Evidentemente não é para os personagens
históricos que se dirige a preocupação do poeta, mas para o “você”
da tríade astrólogo-tu-eles: seu público. O público deve considerar
esses fatos históricos e ponderar acerca dos riscos que envolvem a
radicalização a assumir o quanto está disposto a tomar posições no
sentido de alteração do status quo. E Raul Seixas compôs uma obra
cuja tentativa de organização de uma visão de mundo alternativa ao
sistema social dominante se fez presente em canções como
Sociedade Alternativa, Novo Aéon, Metamorfose Ambulante, entre
outras.
Na estrofe final da canção o verbo “ser” revela a identidade do eu-
lírico, o astrólogo (eu sou astrólogo). O verbo “ser” no presente do indicativo
coloca o astrólogo e seu público diante da máquina do mundo. O público, por
sua vez, está diante da revelação, tem a possibilidade da epifania, para tal,
porém, é preciso acreditar na palavra do astrólogo (verbos que se destacam
nesta estrofe) e a autoridade que o astrólogo tem vem do fato de que ele
conhece a história do princípio ao fim, muito embora, em verdade, ele não
tenha feito previsão alguma, uma vez que os fatos que prevê estão
circunscritos ao passado. Assim, falso profeta que, no entanto, encanta sua
audiência, haja vista que o que ele narra é do conhecimento de todos, como
um aedo a cantar passagens épicas ou um sacerdote a proferir hinos já
conhecidos dos fiéis, mas que, e exatamente por isso, têm o poder de
hipnotizar a atenção de sua platéia, tanto pela recorrência quanto pela forma
como estrutura seu discurso. E os elementos que destacamos: suspensão do
115
tempo, sincronização dos fatos históricos, estes dois elementos criando a
sugestão da revelação/epifania diante da máquina do mundo confirmam o
poder dessa estrutura. O astrólogo é que aquele que vê o destino nas estrelas,
aqui, ironicamente, as estrelas pelas quais observa o destino de sua platéia
são estrelas históricas descaracterizadas ou, ao menos, esvaziadas pela mídia:
Cristo, César, Al Capone, Lampião, Hendrix. São personagens
transformados em ícones gerais, em alegorias. E é justamente nesse ponto
que creio está a maior virtude de Raul Seixas nessa canção, o modo irônico
com que compreende o poder da cultura de massa e como constrói um
discurso que se estrutura como paródia do mundo pastichado pela mídia.
Nesse aspecto convém observar que se excluímos a estrofe final,
vemos que a música fica composta por um refrão de dois tercetos e o restante
da letra tem dois quartetos, dentro dessa organização não se pode deixar de
comentar que tal estrutura de estrofes é o inverso da estrutura do soneto. Não
poderia ser de outra forma, uma vez que o soneto é a forma fixa que
representa a tradição e o cânone da literariedade e a estrutura estrófica da
canção “Al Capone” só poderia sugerir a subversão e corrupção da tradição e
do cânone.
Assim também é cabível notar que os personagens históricos citados
compõem um conjunto heterogêneo e díspare, em que se encontra lado a lado
profeta, mafioso, astro do rock, imperador romano e cangaceiro. Justamente
esse o grande poder da mídia, descontextualizar personagens e fatos para
compor a geléia geral. E Raul é o astrólogo a rir e parodiar essa geléia geral
tendo como máquina do mundo a televisão, sua astrologia é a das revistas de
variedades e suas profecias, embora restritas ao domínio do passado
esvaziado, denunciam a incoerência do presente e a falta de perspectiva para
o futuro, justamente estas as maiores qualidades de qualquer profeta.
Referências Bibliográficas:
PASSOS, Sylvio & BUDA, Toninho. Raul Seixas: Uma Antologia. São
Paulo, Martin Claret, 1992.
MOLES, Abraham. Sociodinâmica da Cultura, trad. Mauro W. B. de
Almeida. São Paulo, Perspectiva, 1974.
116
O Paradigma Holográfico Num Soneto de Gregório de Matos
117
“Os „holistas‟ querem enfatizar o aspecto onda da
experiência, à medida que cada elemento da consciência - na
verdade cada elemento da própria realidade - se relaciona
com todos os outros. O todo é algo maior que a soma das
partes, ou, como coloca David Bohm - um dos principais
proponentes do modelo holográfico -, a realidade é uma
„inteireza não dividida‟. Tudo e todos estão tão
integralmente inter-relacionados que qualquer menção de
indivíduos ou de separação é uma distorção da realidade,
uma ilusão.”
(ZOHAR: 2005, p, 84)
118
Assim na base da analogia entre o paradigma holográfico e o
próprio holograma parte-se do princípio de que o todo (holos)
compreende uma supra-realidade, digamos assim, que nossos
sentidos - por questões culturais - não estão aptos a entender ou
perceber de modo racional, e que a própria racionalidade é relativa,
fruto de um conjunto de modos de pensar datados e previsíveis que,
em geral, não dão conta desta totalidade.
Roger Penrose estudando os aspectos físicos que envolvem a
compreensão da cognição e da consciência, escreve:
123
partes e a consistência geral de suas inter-relações mútuas
determina a estrutura do tecido em seu conjunto.”
(CAPRA: 1982, p. 113-114).
REFERÊNCIAS:
126
São Paulo Por Blaise Cendras e Minas Gerais por Oswald de
Andrade: Ressignificação do Olhar Simbólico
(Análise fundamentada no Neo-estruturalismo Semiótico)
134
“Simbologia” transforma os personagens bíblicos em
caricaturas arquetípicas pela sobreposição das qualidades dos
populares que as representam: “Abraão tem bigodes pretos”, “Isaac é
inocente pequeno e nuzinho”, “Os homens que carregam o caixão /
Estão todos de branco / e descalços”, “O soldado romano / É
zangadíssimo / E tem cabelo na cara”. Por esse processo, a que conceito
de símbolos o poeta se refere? Com certeza é um conceito de símbolo que
permite a paródia como corolário, ou seja, domina o ambiente alegórico no
poema. O quadro que se monta em “Simbologia” com os personagens
bíblicos revividos pelos populares que, no entanto, não deixam de
representar-se a si mesmos. Seus trajes estão mais para parangolés dum
Oiticica - se me permitem o sincronismo - do que para figurinos de teatro
religioso. O olhar livre e crítico de Oswald capta o contraste e fecha a cena
com “O padre” que “saiu para a rua / De dentro de um quadro antigo”. A rua
e o quadro antigo estão ali, de modo que a tridimensionalidade da rua
desconfigura a seriedade do quadro antigo e bidimensional, revelando aí as
contradições de espaço e de tempo. “Simbologia” ressignificada.
O poema “São José Del Rei” (atual cidade de Tiradentes)
parece aludir ao percurso de 12 km de trem entre São João Del Rei e
Tiradentes: “Bananeiras / O Sol / O cansaço da ilusão / Igrejas / O
ouro na serra de pedra / A decadência”. O poema fecha com um
substantivo conclusivo: “A decadência”. O ouro da serra de São José,
já no início do século XX não tinha rendimento econômico para a
indústria de mineração aurífera: “O cansaço da ilusão”. “Bananeiras”
entre “Igrejas” num efeito de acumulação que transgride pelo
contraste típico da nossa tropicalidade.
“Sábado de aleluia” apresenta imagens duma festividade algo
carnavalesca: “Serpentes de fogo procuram mordeu o céu / E
estouram / A praça pública está cheia”. Nos dois versos seguintes, o
“arcebispo” se apresenta como representante do passado, da tradição:
“E a execução espera o arcebispo / Sair da história colonial”. O
passado parece se apresentar de forma anacrônica em constante
refabulação no cenário. Os dois versos seguintes apresentam uma das
mais belas imagens poéticas do livro: “Longe vai tempo soltaram a
lua / Como um balão de dentro da serra”. A lua-balão que sai da serra
que guarda o ouro, representando no céu a atmosfera melancólica do
tempo colonial.
135
Na imagem final, apresenta-se “Judas” que “balança caído
numa árvore / Do céu doirado e altíssimo”. Uma árvore que se
mistura ao céu, de onde cai ou balança Judas, imagem plástica que
funde o céu como fundo à árvore em que um Judas de pano - como
era tradição comum no sábado de aleluia -, seu balanço é
acompanhado pelo das palmeiras, estas por sua vez, acompanhadas
dos “Jardins” (natureza transformada) e “Negros” (vítimas da
colonização e da exploração do ouro). Assim a figura de “Judas”, do
“arcebispo” que sai da história colonial, da Lua melancólica, das
palmeiras e dos negros compõem de fato o jardim, um jardim
edênico, tropical e contraditório.
“Bumba meu boi” começa com dois adjetivos: “Descolocado
/ Arrebentado” mostrando a sensação de estranhamento causada pela
cena folclórica. O poema faz uso da linguagem popular e coloquial:
“Vai saí / A companhia do arraiá”, como se fosse a inserção na
imagem de uma gravação fidedigna do momento. O “bumba meu
boi” é comparado com a tourada, porém, é uma tourada alegre, que
dança varando a noite: “Sob o estandarte / A tourada dança / Na
música noturna”.
“Ressurreição” faz alusão aos sinos que tocam nas várias
igrejas: “Um atropelo de sinos processionais / No silêncio”. A
sibilação tem por objetivo a conotação onomatopaica dos sinos que
ecoam. Os quatro versos do poema colocam um duplo espaço, os
dois primeiros parecem se referir ao interior da igreja, os dois
seguintes ao exterior: “Lá fora tudo volta / Á espetaculosa
tranqüilidade de Minas”. As polissílabas do verso final e a
recorrência ao som do “i” criam a sensação fônica do som refluindo
em decrescente. Assim, o que renasce não é propriamente o Cristo,
mas o silêncio das serras de Minas que circunda a cidade, logo após
o atropelo de sinos.
“Menina e Moça” afirma que o colorido das procissões,
missas e festas religiosas encanta os olhos, este seria o sentido mais
aguçado nestes eventos: “Gostei de todas as festas / Porque esse
negócio de missa / E procissão / É só para os olhares”. Versos de
sentido profano, já que o sentido religioso e seu sentimento
respectivo são relativizados em razão do poder icônico do evento.
136
Não foi por acaso, que desde o final da idade média e
principalmente no barroco, a Igreja desenvolveu técnicas de
comunicação visual. Porém, nestes versos, “os olhares” têm outro
sentido, principalmente se atentarmos no título do poema (“menina e
moça”). Tais festas religiosas são o principal momento de encontro
da comunidade local, e uma grande oportunidade para se arranjar
namoros e casamentos: “Vou agora triste no trem / Com aquela
paixão / No coração”. A paixão aqui, não é apenas a lembrança da
representação da “paixão de Cristo”, espetáculo cênico característico
da semana santa, mas também o sentimento melancólico e amoroso
dos olhares com intenção de namoro. A tristeza sentimental se
confirma pela idéia de sofrer pela ausência e pela despedida: “Vou
emagrecer / Junto às palmeiras / Malditas / Da fazenda”. Lembremos
dos madrigais de Silva Alvarenga e suas referências às mangueiras e
laranjeiras como testemunhas do idílio com Glaura.
O poema pode ser dividido em duas partes, os primeiros
quatro versos relativos aos sentimentos de uma menina, feliz com o
colorido e a visualidade das festas, os seguintes, com os sentimentos
de uma moça apaixonada.
Em “Casa de Tiradentes” a casa do mártir da inconfidência
mineira é evocada como símbolo de um passado esquecido, ou ainda,
de sentido ambíguo: “A Inconfidência / No Brasil de ouro / A
história morta / Sem sentido”. De fato, Tiradentes tornou-se herói e
símbolo do sentimento de nacionalidade mais por obra republicana
que buscava encontrar símbolos não imperiais para criar mitos
nacionais do que por uma tradição vinda do século XIX, assim existe
uma lacuna no tempo entre o fato histórico e seu significado a partir
da proclamação da república. O “Brasil de ouro” é estritamente
Minas Gerais e Rio de Janeiro e, sabe-se, o projeto de independência
dos inconfidentes restringia-se a essa região e algumas regiões
próximas. Em uma conferência realizada em Piracicaba em 1945, Oswald
dissera que “No fundo do sonho de Vila Rica estava a República, estava a
siderurgia, estava a universidade” (“A Lição da Inconfidência”). Oswald
envolvido pelo ideal republicano de criação de mitos heróicos reivindica a
Tiradentes um valor que, porém, não tinha ainda encontrado na manifestação
popular e cultural (“havia por esse Brasil afora mais retratos de dona Maria I
que retratos de Tiradentes”).
137
O abandono do significado que Oswald pretende atribuir à
Inconfidência causa-lhe desconforto e tristeza: “Vazia como a casa
imensa / Maravilhas coloniais nos tetos / A igreja abandonada”. O
Sol, testemunha contínua dos eventos integra-se agora ao cenário de
paz aparente, resultado mais da alienação do que de alguma
felicidade: “E o sol sobre muros de laranja / Na paz do capim”.
“Chagas Dória” nome de estação de trem em São João Del Rey,
homenagem ao diretor da Estrada de Ferro Oeste de Minas é o título
do poema seguinte. O primeiro verso: “Picassos na parede branca / E
mais nada”, alude às formas geométricas dos tijolos pintados de
branco da estação, referência à fase cubista do grande artista, mas
também é uma forma de criar uma contraposição entre a riqueza da
acumulação de ornamentos do barroco circundante no cenário da
cidade e a geometria simples da estação. Na seqüência do poema,
num corte digno da melhor montagem eisensteniana, Oswald passa
para a sacristia de uma igreja: “Mas na sacristia / Uma imagem
barbuda / Arregalada de santidade / Me espera como uma criança de
colo”. Os adjetivos “barbuda” e “arregalada” dão o sentido dessa
ornamentação barroca: contraditória, ambígua, cumulativa. O verso
final traz o símbolo da ingenuidade de que certas obras sacras
buscam se adornar, notadamente nas imagens de anjos e santos. A
partir desse poema, entramos no segundo momento de “Roteiro de
Minas” em que há a contraposição entre o novo, o progresso e a
urbanização típica do século XX que se opõem e modificam o
tradicional e o antigo, muitas vezes com prejuízos de ambos os lados.
“Mapa” se abre com acumulação de localidades do mapa ferroviário
da época da linha da estrada de ferro do oeste mineiro que ia até a
barra do Paraopeba, espécie de poema ready-made feito a partir do
mapa: “Ibitiruna / Campos Sertanejos / Carmo da mata / Tartária”. A
“máquina de brincadeira” é referência ao trem, e a viagem foi para o
grupo de paulistas, ao que parece, um momento de alegria e
descontração, além da possibilidade de reflexão da imagem que
possuíam do Brasil: “E a máquina de brincadeira / Que corre dois
dias / Atrás da barra do Paraopeba”. Por outro lado, a “máquina de
brincadeira”, no contexto poético, é o próprio poema oswaldiano,
bem humorado, sutil, porém, satírico e não raras vezes, sarcástico,
138
fundado na paródia, na blague, na destruição canônica do padrão
poético vigente.
“Capela Nova” se apropria do nome de dois estabelecimentos
da pequena localidade: “Salão Mocidade / Hotel do Chico”.
Contrapõe-se à mocidade que dá nome ao “salão” (supomos, de
barbearia, como era típico nesses casos) “Uma igreja velha e cor-de-
rosa”. O rosa da igreja cria um sentido kitsch “Na decoração dos
bananais / Dos coqueirais”.
“Documental” abre-se com uma proposta de referência de
montagem eisensteniana, já pela citação do cinema em si: “É o Oeste
no sentido cinematográfico / Um pássaro caçoa do trem / Maior do
que ele”. A ironia se instala pela referência ao nome da estação (“A
estação próxima chama-se Bom Sucesso”). No verso seguinte a
citação à técnica da montagem por meio da ambigüidade do
significado da palavra “cortes”: “Floresta colinas cortes / E súbito a
fazenda nos coqueiros” O verso final, ainda em técnica de
montagem, coloca um final alegre e lírico ao poema: “Um grupo de
meninas entra no filme”. O filme agora é o poema, poema-filme.
Em “Paisagem” a técnica de montagem é acompanhada por
imagens metafóricas dinâmicas que conferem cor e movimento ao
cenário observado da natureza: “Na atmosfera violeta / A madrugada
desbota / Uma pirâmide quebra o horizonte / Torres espirram do chão
ainda escuro / Pontes trazem nos pulsos rios bramindo / Entre fogos”.
O verso final alude ao alumbramento da percepção poética com a
aurora no cenário das montanhas de Minas: “Tudo novo se
desencapotando”. Notemos o adjetivo “novo” que se contrapõe aos
poemas inicias de “Roteiro de Minas” que buscavam comentar
acerca do passado, do valor da tradição, de quão velho era este ou
aquele elemento criado pelo homem ou pela natureza.
Para Haroldo de Campos, o poema “Ao Longo da Linha” é um bom
exemplo em que “importa (...) a geometria sucinta, a objetividade
câmara-na-mão” (CAMPOS: 1978, p. 44). Vera Lúcia Oliveira
observa que esse “é o estilo telegráfico, epigramático, das breves e
incisivas poesias, em que as imagens são montadas por um processo
de justaposição e a pontuação é totalmente abolida. Nunca se vira na
poesia brasileira uma tal síntese e concisão” (OLIVEIRA: 2002, p.
109). A montagem da câmara eisensteniana atinge aqui a dinâmica
139
absoluta do movimento: “Coqueiros”, o primeiro verso delimita e
apresenta o objeto, os versos seguintes dão movimento
cinematográfico ao objeto estático do substantivo: “Aos dois / Aos
três / Aos grupos / Altos / Baixos”.
O poema “Santa Quitéria” também se faz nessa técnica de
movimento ocasionado não pelo verbo, como seria usual na
gramaticidade corriqueira e normativa, mas pela justaposição de
elementos. Os verbos “subir” e “aprumar” são, pois, elementos de
figuração poética: “Palmas imensas / Sobem dos cavalos ocultos /
Cercas e cavalos / a raça que se apruma”.
Em “Aproximação da Capital” a referência indireta a Belo
Horizonte se faz pelo comércio e pela inserção da palavra
“horizonte” visto da janela do hotel: “Trazem-nos poemas no trem /
Azuis e vermelhos / Como a terra e o horizonte / É um hotel
rigorosamente familiar / Que oferece vantagens reais / Aos dignos
forasteiros / Havendo o máximo escrúpulo na direção da cozinha”.
Como não cotejar esse poema com “Debout” de Blaise Cendrars:
“Une fenêtre s‟ouvre / Um homme se penche au dehors en
fredonnant”. Como em Cendrars, as cores observadas servem de
elemento metafórico para criar correlações com a natureza e a
cidade: “o azul” - “horizonte” a “terra” - “vermelha”. No final, a
acumulação dá o ritmo urbano da capital mineira: “Impermeáveis /
Borzeguins / Pijamas”.
Em “Barreiro” a estrada de rodagem oferece uma paisagem tão veloz
e dinâmica quanto em “Ao Longo da Linha”, apenas menos sintética, mas
não menos dinâmica e cumulativa, fruto de intensa justaposição e montagem:
“Estradas de rodagem / E o canto dos meninos azuis da Gameleira / A
paisagem nos abraça / Pontes / Alvenaria / Ninhos / Passarinhos / A escola e
a fazenda de duzentos anos”.
Em “Canção do Vira” o domínio poético sobre a linguagem popular
quase como um ready-made do falar cotidiano, um flash instantâneo, um
momento de gravação da oralidade regional, folclórica, da tradição sendo
aglutinada na velocidade do cinema sonorizado no poema: “Coa comade
pode / Pode / Quá o quê / Afinca / Afinca”.
“Lagoa Santa” possui nessa técnica de montagem por
justaposição uma riqueza metafórica e de evocação de imagens que
dá à leitura tal multiplicidade de significados e correlações que
140
poderíamos dizer que o poema todo é como um grande símbolo, ao
modo simbolista de composição de imagens, em que o que não se diz
ou o que é apenas entrevisto povoa as palavras de reminiscências e
ambigüidades: “Águas azuis no milagre dos matos / Um cemitério
negro / Ruas de casas despencando a pique / No céu refletido”. O
contraste entre o azul e o negro: o primeiro termo é metonímia do
céu; o segundo, do cemitério de escravos. A assonância anafórica
entre “ÁgUAs AzUis / Um cemitério / rUas de cAsAs” transfere para
o estrato fônico esse contraste. A imagem refletida na lagoa tanto do
céu quanto das casas ao redor é a fonte simbolista da imagem final.
“Viveiro” trabalha cinematograficamente o enquadramento da
imagem: “Bananeiras monumentais / Mas no primeiro plano / O
cachorro é maior que a menina / Cor de ouro fosco”. No início da
segunda estrofe o poeta faz referência à riqueza de pássaros na
paisagem: “As casas do vale / São habitadas pela passarada matinal / Que
grita de longe”. Assim as casinhas caboclas são transformadas em elemento
lírico, poético em que os moradores que se destacam são os pássaros na
manhã, prontos para o vôo diário. No final do poema, o poeta identifica um
pintor que deve ser sacro para poder não só pintar a beleza da paisagem, mas
inseri-la no âmbito do barroco sacro: “Junto à Capela / Há um pintor /
Marcolino de Santa Luzia.”
“Sabará”, neste poema Oswald recupera a imagem composta
por Cláudio Manuel da Costa acerca da significação das águas
barrentas dos rios mineiros (Soneto II: “Leia a posteridade, ó pátrio
Rio”) pois em Oswald: “No fundo da bateia lavada / O sol brilha
como ouro”. Nova relação com a obra de Glauceste Satúrnio pode
ser conseguida na seqüência do poema, quando se fala em Borba
Gato, como não lembrar do épico O Vila Rica e o modo como o
poeta de Nise insere os bandeirantes na sua trama de mitificação da
fundação de Vila Rica? Em Oswald: “Borba Gato / Os paulistas
traídos / Sacrilégios / O vento”. A exploração intensa pela mão do
trabalho escravo é marcada pela hipérbole (talvez seja até um
eufemismo, segundo alguns...) no meio do poema: “Outrora havia
negros a cada metro de margem / Para virar o rio metálico / Que ia
no dorso dos burros / E das caravelas”. A imagem: o rio metálico é o
ouro derretido, que por sua vez, enquanto pedra bruta, está no fundo
dos rios barrentos. O verso final (“O vento”) sopra como lembrança
141
de um passado colonial que, por sua vez, já estava na abertura do
poema: “Este córrego há trezentos anos”.
“Ouro Preto” é o maior poema do conjunto “Roteiro de
Minas”, 15 versos. Próximo a esta extensão apenas “Sabará” e
“Aproximação da Capital” (13 versos cada).
Na primeira estrofe, Oswald com a inserção de um fato do
cotidiano ao estilo “câmara-na-mão” põe a narrativa simples e direta
como uma imagem que cria o contraste com o significado histórico
da antiga capital de Minas: “Vamos visitar São Francisco de Assis /
Igreja feita pela gente de Minas / O sacristão que é vizinho da Maria
Cana-Verde / Abre e mostra o abandono / Os púlpitos do Aleijadinho
/ O teto do Ataíde”. Assim, as pessoas do cotidiano presente (o
sacristão, a Maria Cana-Verde) pouco sabem ou desconhecem o
valor das obras coloniais do Aleijadinho e de Manuel da Costa
Ataíde, essa oposição entre o desconhecimento do presente e o valor
histórico do passado é o signo da alienação, provocada não pelo
sacristão ou pela Maria Cana-Verde, estas, em verdade, vítimas de
uma política de abandono do passado.
O Itacolomi é aqui como o personagem mitológico de
Cláudio Manuel da Costa, o Itamonte. Sob suas vistas encerra-se a
dramatização histórica do período colonial, mas ficam os índices
abandonados quase como ruínas nas ladeiras de pedra, nas igrejas, na
frontaria das casas: “Mas a dramatização finalizou / Ladeiras do
passado / Esquartejamentos e conjurações / Sob o Itacolomi”.
A herança árcade é tratada no verso final (“E em alguns maus
alexandrinos”). O dístico final do poema alude ao trágico episódio da
revolta dos mineiros chefiados por Felipe dos Santos, em 1720,
sufocada com violenta repressão pelo Conde de Assumar, Pedro
Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos: “Só o Morro da
Queimada / Fala do Conde de Assumar”. Desse modo, no poema, o
passado histórico de Vila Rica, assim como o passado artístico e
literário são colocados em imagens metonímicas, compondo nesse
processo de montagem algo próximo aos retábulos barrocos das
igrejas mineiras - um acúmulo de cabeças de santos, figuras míticas,
pássaros, flores, linhas sinuosas, cruzes - aqui substituídos por
referências mínimas aos acontecimentos dramáticos do passado
142
colonial da cidade que se perpetua agora pelo abandono e descaso:
“Abre e mostra o abandono”.
“Congonhas do Campo”, penúltimo poema do conjunto, se
inicia pela ironia causada pelo nome de um novo hotel e o passado
histórico e artístico da cidade: “Há um hotel novo que se chama York
/ E lá em cima na palma da mão da montanha / A igreja no círculo
arquitetônico dos Passos”. O verso seguinte em rápida sucessão de
elementos cria o panorama geral: “Painéis quadros imagens”.
O abandono referido no poema anterior aqui é relativizado
pela presença do sol: “A religiosidade no sossego do sol / Tudo puro
como o Aleijadinho”.
O verso final também se fecha com uma imagem irônica, o
carro de boi - signo do passado, mas da tradição rural e cabocla -,
lembra o som do órgão - signo do passado, mas da tradição barroca e
sacra de Minas. Nessa simbiose, o popular é que consegue guardar o
valor do passado com mais eficácia do que o erudito: “Um carro de
boi canta como um órgão”.
No último poema do conjunto, “Ocaso” fecha-se a cena com a
visão dos profetas do Aleijadinho diante do horizonte: “No anfiteatro
de montanhas / Os profetas do Aleijadinho / Monumentalizam a
paisagem”. O verbo criado (“monumentalizar”) insere um diálogo
entre a grandeza das montanhas e a obra de Aleijadinho, numa
transferência ou equivalência de grandiosidade. Nos dois versos
seguintes o contraste entre as “cúpulas brancas dos Passos” e o modo
como Oswald apresenta as palmeiras metaforizando suas copas em
cocares de índios: “E os cocares revirados das palmeiras”, cria a
dialética da colonização: “São degraus da arte de meu país / Onde
ninguém mais subiu”.
No dístico final, a síntese da significação dos doze profetas:
“Bíblia de pedra sabão / Banhada no ouro das minas”. A pedra sabão,
cujo adjetivo lembra a espumosidade e a capacidade higiênica do
substantivo na origem se torna em elemento de ironia diante do
banho de ouro: “Banhada no ouro das minas”.
Como observa Vera Lúcia Oliveira, no conjunto de poemas
de “Roteiro de Minas” temos uma redescoberta do Brasil por
Oswald:
143
“É um outro Brasil que nos vem descrito e apresentado, um
Brasil regional de forte personalidade. Percebe-se que o poeta
visita a região como que encantado, que enriquece a própria
experiência com aspectos inusitados, que alarga a sua visão de
mundo, embora lamente o abandono em que se encontram os
monumentos da região. Como se tivesse uma câmera nas
mãos, ele vai compondo, diante de nós, as tantas seqüências
da realidade caleidoscópica”.
(OLIVEIRA: 2002, p. 145)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
146
Uma Questão a Respeito das Traduções de Letras de Músicas
147
Tropicalismo foi decisivo para a implantação duma via de diálogo
entre essas duas posições acerca da música popular tocada no Brasil.
Mas não vamos aqui tecer um histórico sobre a Jovem
Guarda, a Velha Guarda, a Bossa Nova ou o Tropicalismo, nosso
intento é mais específico.
Era uma prática até regular no período anterior aos anos 60,
mais precisamente entre os anos 30 e 50, quando o rádio era o meio
de comunicação predominante, uma vez que a televisão ainda não se
firmara no cenário brasileiro como grande meio de comunicação, a
tradução de músicas de sucesso no estrangeiro para a interpretação
de artistas brasileiros. Afinal, se considerava que o público que não
tinha o domínio do inglês ou do francês, não se interessaria em ouvir
letras que não pudessem entender. O que nos parece ter um certo
sentido e razão.
Dalva de Oliveira, p.ex., fez sucesso nos anos 40 com “Valsa
da Despedida” (Auld lang syne), de Robert Burns, versão de Alberto
Ribeiro e João de Barro (com Francisco Alves), Cauby Peixoto fez
sucesso cantando uma versão de Blue Gardenia, de Nat King Cole.
São apenas dois exemplos entre vários possíveis.
Porém, o fato é que com o tempo o público se habitou a ouvir
música em inglês sem, no entanto, ter conhecimento da língua.
Acostumou-se com a sonoridade do inglês e algumas palavras e
expressões mais usuais passaram para o domínio público, como “I
love you”, frase típica de canções românticas. Em tempos recentes, a
cantora Marisa Monte gravou uma música da autoria de José Higino
Filho, “Amor I Love You”.
Jackson do Pandeiro gravou em 1959 a música “Chiclete com
Banana” de Almira Castilho e Gordurinha, em que ironiza a questão
do relacionamento entre a MPB e a música norte-americana.
De qualquer modo, a tendência de se gravar versões de
músicas estrangeiras na língua portuguesa, foi diminuindo, no
sentido da necessidade de trazer ao público o significado original da
letra, embora não poucas vezes encontremos aqui e ali, versões de
músicas americanas, mas, agora, com outro espectro de intenções.
Não se tratava mais de dar ao público a possibilidade de ouvir a
canção na nossa língua, mas sim de incorporar ao repertório uma
especificação das influências musicais do intérprete.
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O grupo Renato e Seus Blue Caps, famoso grupo da Jovem
Guarda se destacou pelas versões que fazia de músicas do rock inglês
e norte-americano dos anos 60, dos Beatles verteram “I Should Have
I Known Better” (“Menina Linda”) e “You Won‟t See Mee” (“Até o
Fim”), de Donaldson e Brown, verteram “Shame and Scandal in the
Family” (“O Escândalo”), entre outras.
Mais recentemente o grupo Nenhum de Nós fez sucesso com
“Astronauta de Mármore”, versão de “Starman” de David Bowie.
Não pretendo tratar aqui do caminho inverso, das músicas
brasileiras vertidas para outros idiomas, como foi o caso de “Garota
de Ipanema”, feita por Norman Gimbel.
Mas, especificamente, da versão para o português de músicas
estrangeiras, notadamente do inglês.
Em geral, as traduções das letras de músicas enfrentam o
problema além da simples tradução do significado da palavra. As
letras de músicas compartilham com a poesia a questão da
tradutibilidade da forma. É preciso que as palavras se encaixem
adequadamente ao ritmo da música.
Haroldo de Campos em “A Palavra Vermelha de Hoelderlin”
escreve:
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mulheres negras parecem, na opinião do compositor – Mick Jagger –
mais quentes no sexo do que as brancas.
É um caso a se considerar a qualidade dessas traduções que
pululam no mundo virtual e que tomam como texto original, canções
cujo contexto específico dificulta a simples tradução literal.
Consideremos ainda, que muitos jovens, músicos iniciantes e
admiradores de música estrangeira, lêem essas traduções e as tomam
como modelo para compor composições próprias, resultando num
evidente empobrecimento da composição em música popular
brasileira. A dupla Sandy & Júnior gravou uma música, composição
deles mesmo, intitulada “Marylin”. A música, composta em três
estrofes, fala de uma amizade entre um “eu plural – nós”, que pode
se referir à própria dupla e uma certa amiga de infância chamada
“Marylin”. Na segunda estrofe, lemos:
“Foi demais
Esse tempo que viveu aqui
Mas a vida é sempre um vem e vai
Por que tudo tem que ser assim?
Dói demais
Descobrir que o sonho teve fim
Quanta falta que você nos faz
Marilyn”
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São poucos os artistas da música brasileira que se deram
conta dessa questão e trataram a versão de músicas, quando a ela se
propuseram de uma forma mais artística e/ou mais técnica.
Consideremos a tradução que Caetano Veloso fez de “It‟s All Over
Now Baby Blue” de Bob Dylan e que foi sucesso na voz de Gal
Costa com o título de “Negro Amor”. Em primeiro lugar, a música
escolhida possuía uma qualidade poética relevante o que deu à
tradução um verdadeiro sentido de tradução poética.
Peguemos, para uma breve exposição, a terceira estrofe da canção,
que em Bob Dylan lemos:
REFERÊNCIAS
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