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INFORME C3, Porto Alegre, v. 10, n. 1 (Ed. 20), Jan/Abr - 2018. (ISSN: 2177-6954) - www.informec3.weebly.

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edição 20
ano 10, nº 01
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE

CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA


artigos

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INFORME
“Dizer que são coisas informes é dizer não que
não têm formas, mas que suas formas não
encontram em nós nada que permita
substituí-las por um ato de traçado ou
reconhecimento nítido. E, de fato, as formas
C3

informes não deixam outra lembrança senão


a de uma possibilidade… “(VALÉRY, 2012, 79)

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Ano 10- n. 01 - Edição 20


EXPEDIENTE Jan/Abr - 2018
CORPO - ARTES - EDUCAÇÃO - MODA - CULTURA - SAÚDE

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Coordenação Geral:
Wagner Ferraz

Editores:
Wagner Ferraz e Renata Sperrhake

Editores assistentes:
Elisandro Rodrigues e Gilberto Silva Santos

Direção de Arte:
Anderson Luiz de Souza e Wagner Ferraz

Organização:
Processo C3 - Grupo de Pesquisa
Estudos do Corpo

Projeto Gráfico e diagramação: INFORME C3


Wagner Ferraz é um periódico técnico-científico e artístico registrado com Nú-
mero Internacional Normalizado para Publicações Seriadas (Inter-
Edição e arte da capa: national Standard Serial Number) - ISSN: 2177-6954. Voltado para
Anderson Luiz de Souza publicações no campo das ARTES (em geral – dança, teatro, músi-
ca, performance, circo, visuais, entre outras...) e EDUCAÇÃO com
desdobramentos e atravessamentos com outras áreas de conhe-
Conselho Editorial: cimento como Educação Física, Psicologia, Saúde Coletiva entre
Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva (UFRGS/RS); Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopez Bello outras... Publicada semestralmente e disponibilizada para visualiza-
(UFRGS/RS); Prof. Dr. Luis Henrique Sacchi dos Santos (UFRGS/RS); Profª Drª Kathia Casti- ção e download gratuitamente. Tem os Estudos na área da Educa-
lho (UAM/SP); Prof. Dr. Luciano Bedin da Costa (UFRGS/RS); Profª Drª Marta Simões Peres ção e Artes como foco de suas edições dialogando com diferentes
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(ULBRA/RS); Prof. Ms. Leandro Valiati (UFRGS/RS); Profª Ms Luciane Coccaro (UFRJ/RJ); cimentos e experiências proporcionando espaço para publica-
Profª Ms Flavia Pilla do Valle (UFRGS/RS); Prof Ms Camilo Darsie de Souza (UNISC/RS); ções de textos livres, artigos, resenhas, entrevistas, poemas, críticas, Arte da Capa e
Profª Ms Eleonora Motta Santos (UFPEL/RS); Profª Ms Giana Targanski Steffen (UFSC/SC); crônicas, fabulações, desenhos, fotografias e produção visual em tratamento de imagem:
Ms Zenilda Cardoso (UFRGS/RS); Profª Ms Miriam Piber Campos (INDEPIN/RS); Ms Lucia- geral. Criado e desenvolvido pelo Processo C3 – Grupo de Pesqui- Anderson de Souza
ne Glaeser (RS); Ms Jeane Félix (UFRGS/RS); Ms Alana Martins Gonçalves (UFRGS/RS); sa, que publicou sua 1ª edição em março de 2009, conta com a
Profª Ms Sabrine Faller (INDEPIN/RS); Ms Luiz Felipe Zago (ULBRA/RS); Ms Carla Vendra- colaboração de pesquisadores e artistas de diferentes lugares do Local:
min (UFRGS/RS); Prof Esp Anderson de Souza (FEEVALE/RS); Prof Ms. Wagner Ferraz (UFR- Brasil que participam voluntariamente enviado suas propostas e Portugal
GS/RS); Profª Drª Luciana Éboli (UFRGS/RS); Profª. Drª. Daniele Noal Gai (FACED/UFRGS); trabalhos. Além de convidados que contribuem com números es- 2018
Profª. Drª. Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan (IA-PPGEdu/UFRGS); Profª. Drª. pecíficos de acordo os temas de cada edição.
Cibele Sastre (UFRGS/RS); Profª. Drª. Cibele Sastre (UFRGS/RS); Carlise Scalamato (UFSM/
RS); Samira Trancoso (FEEVALE e ESPM/RS); Rossana Della Costa (UFSM/RS).

Informe C3 / v. 10, n. 01 (edição 20), Jan/abr, 2018. Informe C3. – Porto Alegre, RS:
Processo C3 e Estudos do Corpo, 2018. On line. 340 p. Disponível em: www.informec3.
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ISSN: 2177-6954

1. Artes. 2. Educação. 3. Corpo. 4. Cultura. 5. Pesquisa. 6. Moda. 7. Saúde. 8. Ensino


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da Revista Eletrônica Informe C3. Nem todo opinião expressa neste meio eletrônico ou em possível verão impressa,
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expressam a opinião e posicionamento dos organizadores, editores e responsáveis por este veículo. Porto Alegre

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Foto: Wagner Ferraz
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ENTREVISTA
ENQUANTO AS COISAS NÃO SE
COMPLETAM

ESPAÇO
DANÇA, TÉCNICA ALEXANDER E
PROCESSOS DE CRIAÇÃO

LIVRE
Entrevista com Michel Capeletti
por Alyne Rehm ....................... 13

ARTIGOS FALTA DE RESPEITO


Gui Malgarizi ............................ 226

ENTRE DEUS E O DIABO: RELAÇÕES O SUCESSO DE REPRISES: UM ESTUDO DE LÃ E ÁGUA


ENTRE NARRAÇÃO E EXPERIÊNCIA CASO DE “A USURPADORA” E O SBT Aline Daka ................................ 232
Ananda Vargas Hilgert ........................28 Jose Luiz Pereira de Arruda, UNIPLAC
Ivan Cláudio Siqueira de Moraes MOVIMENTO ENTRE: Documentos
BOA PRÁTICA PEDAGÓGICA E O BOM Gisele Cristiane Urnau dos Prazeres de Transição,
PROFESSOR DE MATEMÁTICA: uma Luiz Henrique Zart .............................. 140 performance-exposição
constituição moral através de jogos de de Michel Capeletti e Marina
verdade REVERBERAÇÕES UTERINAS: PROCESSO Camargo
Grace Da Ré Aurich .............................44 DE CRIAÇÃO SANTO/PROFANA NO Alyne Rehm ............................. 242
ESPAÇO INCORPORAL DA INSTALAÇÃO
TRAÇANDO CAMINHOS DANÇANTES PERFORMÁTICA EXPERIMENTOS COM
NAS RUAS DE PELOTAS Daniel Aires ........................................ 158 DESENHOS DE MODA
Carmen Anita Hoffmann Anderson Luiz de Souza .......... 248
Débora Souto Allemand ......................66 NDO: IMBRICAÇÕES POÉTICAS PARA
PENSARMOS UMA DRAMATURGIA DA SILÊNCIO
A CIÊNCIA DA VIDA E A DANÇA NO/DO TEMPO-GERÚNDIO Carla Vendramin
NATURALIZAÇÃO DA HISTÓRIA: Thiago Torres ...................................... 178 Lu Trevisan ................................ 280
A CONSTITUIÇÃO DA BIOLOGIA A
PARTIR DA PERSPECTIVA DE MICHEL DANÇA DO VENTRE: O MOVIMENTO DO CORPO BRINCANTE
FOUCAULT CAMELO E O CORE Guilherme Cruz ........................ 290
André Morando, UFRGS Joelene de Oliveira de Lima
Rochele de Quadros Loguercio Carla Vendramin ............................... 198 ENSAIO PERFORMÁTICO
Aline Ferraz da Silva ............................ 84 “REVERBERAÇÕES UTERINAS”
ARTE, FOTOGRAFIA E MEMÓRIA Daniel Aires .............................. 294
O CORPO QUE FALA É O CORPO QUE Cernaide Hubler ................................ 212
ESCUTA. Candomblé ketu saber do TRANSTEXTO
corpo oralizado. ¨Folclorização¨ do Dan Porto ................................. 304
candomblé poder sobre o tradicional
Luiz Fernando da Silva Anastácio ... 102 CHÁ DA NOITE
Guedes Mechisso ................... 316
A TECNOLOGIA NO DESIGN DE SUPERFÍ-
CIE EM TÊXTEIS CORPO FLOR
Christie Jaconi Meditsch, UFRGS ..... 120 Francine Cezar Bandeira ....... 320
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TRE ENQUANTO AS COISAS

VIS
NÃO SE COMPLETAM
DANÇA, TÉCNICA ALEXANDER E PROCESSOS DE CRIAÇÃO
entrevista

entrevista
TA
com MICHEL CAPELETTI1

por Alyne Rehm2

1 Michel Capeletti é bailarino e professor de Técnica Alexander formado pela Escuela de


Técnica Alexander de Buenos Aires.
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2 Alyne Rehm é artista-pesquisadora em dança, doutoranda em Artes Cênicas (PPGAC/


UFRGS) e graduanda em Dança (ESEFID/UFRGS). Contato: alyne.rehm@gmail.com

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Alyne: Não consigo deixar de observar o quão presente é o movimento,


o mover-se, na tua fala. Com isso, te pergunto: tu conseguirias definir o
Enquanto conversamos, em um sábado chuvoso do mês de
que é movimento, o que é mover-se para ti?
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agosto de 2016, entre algumas xícaras de chá, Michel Capeletti me
conta sobre sua trajetória nas artes cênicas. Do início com o teatro, Michel: Sabe o que a gente sente quando está improvisando, quando
da passagem por diferentes técnicas de dança, da mudança para está dançando?! Do que acontece no corpo?! De um movimento
Buenos Aires, da formação em Técnica Alexander. Dos processos, que leva a outro?! Essa conexão intensa com algumas ideias, com
das estratégias e das referências para a criação do espetáculo em algumas propostas?! Aí, para mim, está o movimento, pois me lanço
que está trabalhando. Do que tem feito Enquanto as coisas não se para o movimento a partir de ideias, de propostas, ou, simplesmente,
completam. entro para me mover e deixo que as ideias aconteçam. Isso começa
a ser fácil pela experiência que se está passando. E pelo trabalho

técnico que se tem, obviamente. Mas me deixar ser levado por um
Alyne: Tu poderias falar um pouco de ti, da tua trajetória nas artes? estado, por um interesse, por uma ideia, por uma proposta, gerando
Michel: Me interesso pelo movimento. Cada vez mais. Sempre me fluxo, faz com que cada vez menos as coisas se separem.
interessei pelo movimento. Começo a entender melhor isso assim,
dessa forma, porque comecei pelo teatro. Comecei treinando
Alyne: Movimento como algo que pode partir de uma ideia assim
teatro. Em 1996, entrei num grupo de investigação e pesquisa em
como pode gerar uma ideia...
antropologia teatral, com Roberto Birindelli, onde fiquei até 1999. Foi
uma experiência superintensa, ainda mais para um adolescente: Michel: Exato! Mas mais do que isso: não existe uma hierarquia, não
todos os dias, de segunda a sexta, de noite... E já lá, buscando a existe um lugar de começo, não existe um ponto de origem. (Tudo vai
formação de ator, eu identificava algo muito forte em mim em relação ficando meio importante quando tu falas, né?! Não sei se é tudo isso,
ao movimento, pois o que eu mais gostava de fazer era me mover. O se é tão assim... Risos).
trabalho era baseado em princípios e conceitos conhecidos através
das práticas do Eugênio Barba, então a noção de treinamento era
Alyne: E quando a dança surge, mais pontualmente?
muito forte. A gente fazia, fazia, fazia, só que não era aquilo em si
que a gente estava fazendo, pois existia a preocupação de em Michel: Como comentei no começo, me interesso pelo movimento
entrevista

entrevista
como levar aquele treinamento, aquilo que fazíamos, para o texto, desde sempre e, por isso, me entendo dançando desde o início. E
o personagem, a máscara. Trabalhávamos muito com a máscara da me entendo muito apaixonado pelo movimento. Passei por muitos
commedia dell’arte, ou seja, era um treinamento mais voltado para lugares nesses vinte anos trabalhando com movimento. Isso porque,
colocar a máscara, para a cena, para alguma ideia de cena. E, já ao sair do trabalho com a antropologia teatral, eu já tinha formulado
nesse momento, eu me dava conta, sem conseguir formular dessa que o que me interessava era o movimento, era a dança, então, eu
maneira, obviamente, pois essa é uma formulação recente, de que deveria dançar. Não deixei de fazer teatro. Segui trabalhando como
eu já me interessava muito mais em mover do que em treinar para ator, mas com a ideia de dançar, de adquirir habilidades em dança.
alguma coisa, me interessava por questões de movimento. Era o A minha chegada em aulas de dança foi em 2000, com a Jussara
movimento em si que me interessava. E me lembro que, lá, com 16 Miranda. Ela tinha um espaço chamado Engenho da Dança, onde
anos, quando comecei no teatro, as propostas eram compradas com tive aulas de diferentes técnicas com professoras incríveis como Lu
muita facilidade. Lembro de uma sensação de me mover com muito Dariano, Didi Pedone e a própria Jussara. Depois, nessa mesma época,
prazer, de gostar muito daquilo que estava fazendo. Então, falando tive um encontro muito forte com Alexandra Dias e André Mubarack.
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de mim, posso dizer que sou uma pessoa que gosta muito de se mover. Desse encontro surgiu o PROJETO MAX, que também foi um espaço

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de afirmação de uma ideia de dança, de interesse pela dança e,


principalmente, de compreensão do meu corpo como sendo o corpo
de um bailarino. Trabalhamos de 2003 a 2008, em Porto Alegre/RS, e
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sinto que trouxemos várias questões importantes para a dança que se
fazia naquele momento na cidade. Outros encontros surgiram a partir
do PROJETO MAX com pessoas com quem sigo até hoje: Tatiana da
Rosa, Helô Gravina, Dani Boff. Passei por muitas disciplinas, por muitas
técnicas, mas não posso dizer que tenho uma técnica de dança em
especial. A técnica na qual me formei é a Técnica Alexander, que
não é uma técnica de dança.

Alyne: Uma provocação: dança e educação somática.

Michel: Morei no Rio de Janeiro entre 2000 e 2003 e quando voltei a


Porto Alegre o teatro foi ficando em segundo plano em relação ao meu
interesse pela dança. E a dança que me atravessou já estava muito
mergulhada no universo da exploração somática. Então, entendo
movimento e dança a partir desse lugar, pois sempre trabalhei com
dança através de uma perspectiva somática. Elas estão coladas. É a
dança em si mesma. É a dança que eu sei fazer. Talvez por isso chegou
um momento em que senti necessidade de buscar uma formação
específica, já que não fazia sentido, para mim, ficar chamando tudo
de educação somática.

Alyne: Por que a formação em Técnica Alexander?


entrevista

entrevista
Michel: Nessas investigações com a dança, trabalhávamos muito com
a ideia de movimento que inicia pela cabeça, falávamos muito sobre
a relação entre o crânio e a primeira vertebra, e, por alguma razão
nesse universo somático, sempre identifiquei nas minhas explorações
procedimentos como sendo da Técnica Alexander, como se fosse
essa a referência mais forte. Depois, quando comecei a pesquisar
melhor a estrutura das formações em algum desses métodos, fiquei
muito interessado por como se organiza a formação para professores
de Técnica Alexander.
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Alyne: Por que em Buenos Aires? sobre essa técnica, sobre esse trabalho. É preciso desconstruir muitas
coisas para, só depois sair, trabalhar, dar aulas. E essa é uma das
Michel: Era o único lugar na América Latina que, naquele momento,
características comuns a várias dessas disciplinas somáticas. E, quando
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tinha escola de formação para professores em Técnica Alexander.
vejo essa questão da educação somática apresentada de forma tão
E, também, eu sentia que não era o momento de ir para os EUA ou
ampla, fico pensando como é o caminho que percorre alguém que
para a Europa para me formar. Buenos Aires sempre me fascinou. É
faz uma formação em educação somática. Me pergunto: Como é a
uma cidade muito interessante, assim como as pessoas e arte que se
vivência pessoal de um educador em educação somática? O que
constrói por lá.
que ele faz? São perguntas... Coisas que eu não tenho resposta. Mas,
basicamente, a diferença que sinto é a de que lá essas abordagens
Alyne: Outra provocação: tu identificas diferenças entre Brasil e estão muito bem estabelecidas. Tão bem estabelecidas que não se
Argentina, mais especificamente entre Porto Alegre e Buenos Aires, fala mais nelas.
quando o assunto é justamente esse, dança e educação somática?

Michel: Sim, sim. Buenos Aires é um lugar muito favorável para essa Alyne: Como assim?
articulação, dança e educação somática. Aqui, em Porto Alegre,
Michel: Eu explico: em algum momento, sim, falamos nelas... para
percebo que a gente tem essa tinta forte “educação somática”... E
divulgarmos o nosso trabalho, para mostrarmos com o que estamos
aí tudo entra nesse caldo. Talvez porque quase todas as formações
trabalhando, de que lugar partimos. Por exemplo: estou trabalhando
dessas técnicas acontecem em São Paulo. Já lá, em Buenos Aires, o
com Técnica Alexandre e improvisação... Vamos citar a técnica com
que acontece é o trabalho com técnicas específicas. Lá, inclusive, não
que trabalhamos para situar o público que vem para as nossas aulas.
se encontra essa ideia de educação somática como aqui. O termo
Mas quando entramos em um processo de criação, não existe a
“educação somática”, lá, é usado por pessoas que trabalham com
necessidade de falarmos na técnica, qualquer que seja. Isso porque
Técnica Alexander, com BMC, com Feldenkrais, com Antiginástica,
estamos em um ambiente que respira isso de uma maneira tão
com Ginástica Holística, e que se nomeiam educadores somáticos.
profunda que já não é nem mais dito... (Pausa). E, com isso, comecei
Ou seja, as pessoas trabalham com técnicas determinadas.
a entender – de 6 anos para cá – que não é fácil falar de dança
contemporânea, que não se pode falar em dança contemporânea
entrevista

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Alyne: Não sei se tu concordas, mas me parece que aqui se dá uma sem se pensar em uma trajetória de muitos cruzamentos dentro da
confusão: a educação somática quase como uma técnica, e não história da dança. Porque... O que que a gente fala quando a gente
como uma abordagem, e que, dentro dessa abordagem, existem fala em dança contemporânea? É muito amplo...
técnicas específicas.

Michel: Podemos pensar em técnicas de educação somática e a Alyne: O que que a gente fala quando fala em dança contemporânea?
partir disso pensar em um conjunto de técnicas. Existem, aqui, algumas
Michel: A gente fala de uma expansão de disciplinas que talvez
formações em educação somática, e confesso que não tenho ideia
entrem nesse nome “dança contemporânea” por falta de um outro
do que isso seja. De verdade. Não quero que a minha fala pareça
nome, ou que talvez entrem nesse nome porque ele basta para dizer
preconceituosa. Não é isso. É mesmo um desconhecimento da minha
justamente dessa multiplicidade de disciplinas em colaboração. E
parte. Então, fica a pergunta: o que é uma formação em educação
também penso que a gente fala de uma ideia de corpo no espaço,
somática? E (me) pergunto isso porque a minha formação em Técnica
de movimento no espaço.
Alexander é muito específica e intensa, no sentido de que é preciso
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transformar muitas coisas em si mesmo para, só então, poder falar

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Alyne: E a tua dança, agora falando dos processos de criação do


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espetáculo Enquanto as coisas não se completam?

Michel: Esse trabalho está muito vinculado à minha formação em


Técnica Alexander. Mas, ao mesmo tempo que ele tem esse vínculo,
também tem isso, que talvez venha justamente da minha vivência com
dança e com práticas somáticas em Buenos Aires de que falávamos
antes, de eu não querer mais falar em Técnica Alexander. E esse, para
mim, é o momento em que o trabalho fica mais forte, pois a técnica
está presente no trabalho porque ela está presente em mim. Ou seja,
não estou colocando uma técnica dentro de outra, até porque isso
seria um esforço desnecessário e improdutivo; estou colocando em
convivência a dança e a Técnica Alexander. E essa convivência
se dá porque sou eu, porque elas me constituem. Assim de simples
e complexo... A convivência entre Técnica Alexander (e cada vez
mais desejando a Técnica Alexander e não a educação somática)
e improvisação, entre Técnica Alexander e criação em dança para
mim já não precisa mais ser dita.

Alyne: Tu conseguirias me falar um pouco mais dessa convivência


entre Dança e Técnica Alexander?

Michel: Tem essa cosia meio estranha no que estou te falando, de


que, ao mesmo tempo em que estou lidando com Técnica Alexander
entrevista

entrevista
não estou sublinhando, marcando isso dentro do trabalho. A minha
proposta primeira, a minha pergunta primeira, quando formulei o
projeto em 2013, era super ampla: “o que acontece quando eu inibo
um movimento e deixo que outro me atravesse?”. Então, passo o
tempo todo buscando observar, identificar as possibilidades de dizer
não para um movimento, de inibir um movimento e ver o que que
acontece, ver que outro movimento surge. E inibir aqui não é travar;
inibir é suspender um movimento e deixar que outro movimento me
leve para outro lado. Isso está diretamente relacionado com a Técnica
Alexander, com a edição que o próprio Alexander propõe: edição
como procedimento. O que acontece se não faço uma coisa que
me propus a fazer e deixo que outra coisa me atravesse?
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Alyne: Como essa pergunta ganha forma no trabalho? Alyne: Sobre as referências, quais são? Como elas te atravessam na
hora da criação? Como elas se materializam no teu corpo, na tua
Michel: Teve toda uma questão de atraso na liberação do
dança?
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financiamento que refletiu no andamento do trabalho. Cheguei
a ir para a sala de ensaio em Buenos Aires quando soube que o Michel: Venho trazendo alguns artistas e algumas técnicas como
financiamento sairia, ensaiei por mais ou menos um mês e meio, mas lugares de referência faz algum tempo. Existe o recorte que é a criação
não pude sustentar porque tinha que trabalhar. Mas o processo de do espetáculo em si, mas sinto que venho com algumas questões e
criação em si vem muito antes disso. Ele vem dessa pergunta central, com algumas referências faz algum tempo, antes desse trabalho ter
que é uma pergunta que me acompanhou durante toda a formação nome. O Alexander obviamente é uma referência forte, assim como
em Técnica Alexander, de como me coloco em movimento, de o artista visual Dan Graham, que é muito presente na minha vida (falo
como posso observar esse lugar tão habitual de movimento que, por bastante dele nesse trabalho) e também todo o universo da dança
vezes, me leva a fazer sempre o mesmo do mesmo jeito. Então, como pós-moderna norte americana. Nesses últimos anos, descobri muitos
é que consigo encontrar outras nuances praquilo que estou fazendo coreógrafos e bailarinos argentinos que me influenciaram bastante,
sempre sem perder o que estou fazendo sempre, já que muito disso como Fabián Gandini e Federico Moreno. Tudo isso me atravessa na
sou eu. Ou seja, ao mesmo tempo que dou voz a isso, posso sempre medida em que me interessa, em que me desperta curiosidade. Isso
dizer não para isso e, nesse dar voz e dizer não, alguma coisa outra vem sendo uma questão para mim: observar como posso suavizar a
acontece. Talvez meu corpo se amplie, talvez eu fique mais desperto, ideia de usar uma referência ou uma técnica, observar que isso se dá
mais atento... É um processo muito particular e que está em constante na medida em que vivencio todo esse material, na medida em que
mutação. Tem muitas leituras, muitas referências teóricas e artísticas. me encanto por tudo isso.
Coisas que fui buscando através de pistas que o próprio processo
foi me dando. E, também, passei três anos praticando Técnica
Alyne: Me fala um pouco da tua prática na sala de ensaio, no que tu
Alexander, em um contexto diferente da dança, claro, mas inibindo
tens explorado ultimamente.
alguns movimentos, alguns hábitos, a partir de movimentos cotidianos
como sentar, levantar de uma cadeira, caminhar. O movimento da Michel: Venho praticando algo que é bem objetivo: uma ideia de
dança, de se lançar no espaço, em queda, é uma outra coisa, mas o fluxo e não-fluxo. Me questiono sobre como deixar que a gravidade
treinamento em Técnica Alexander é a ferramentas que tenho. Ainda atue no meu corpo e me dê direções. A minha ideia, então, para
entrevista

entrevista
mais trabalhando sozinho...Vou tentando de tudo. entender esse fluxo e esse não-fluxo, é a de seguir essa direção que
surge pela atuação da gravidade até esgotá-la. Poderia diferenciar
entre ceder à gravidade para permitir um fluxo ou experimentar essa
Alyne: Como é entrar na sala de ensaio sozinho? sensação de não permitir que o movimento complete um trajeto. Me
Michel: É lindo e instigante. Tem dias em que o ensaio é somente interesso bastante por esse não-fluxo, esse corte, essa ruptura, essa
estar na sala, habitar o espaço e pensar sobre as imagens com as inibição, esse dizer não. Outra coisa que tenho observado é que mudo
quais estou trabalhando. E tem dias de muita atividade física em que de ritmo quando mudo de direção.
tudo parece resolvido, em que parece que já tenho a composição
do trabalho pronta. Nesse processo todo, tenho permitido que toda
Alyne: Essas inibições de movimento causam oposições entre o que tu
informação que encontro possa repousar, tenha tempo, e, nesse
estavas fazendo e o que tu vens a fazer a partir delas, das inibições?
sentido, é fundamental, para mim, que o processo seja longo. Entender
que tudo que acontece faz parte do processo sem ser indulgente. Michel: Não. Não necessariamente. Passo muito por opor, mas espero
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encontrar outras nuances que não exatamente contrárias àquilo que

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eu estava fazendo. Inibir pode ser sustentar uma pausa por muito
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tempo, por exemplo. É um movimento que se atravessa. Isso, para mim,
Capeletti, “atravessa três situações que tensionam corpo, objeto
está muito ligado ao conceito de Alexander, pois ele diz que inibimos
e alteridade pela presença de um espelho e do jogo que esse
um movimento, retiramos um pouco a interferência da ação, que
provoca como imagem e volume, disparando incompletude. Nessa
está sempre carregada de hábito, para que uma boa organização
composição, interessa a atualização constante que convoca esse
apareça, uma organização mais eficiente da estrutura corporal.
modo de perceber particular do músculo, de uma musculatura
E essa boa organização acontece sozinha. Não precisamos fazer
profunda capaz de se lançar em diferentes tempos e sentidos,
alguma coisa, não precisamos produzir. O simples fato de inibirmos um
multiplicando essa tensão ao infinito”.
movimento já faz, já produz outros movimentos. Isso porque estamos
vivos e estamos em relação à gravidade, então, no momento em O espetáculo de dança contemporânea Enquanto as coisas
que descomprimimos o hábito que nos leva para baixo, que nos faz não se completam, de Michel Capeletti, contemplado no Prêmio
encurtar, ocorre uma reação de reflexo. E isso eu levo para a sala de Funarte de Dança Klauss Vianna 2014 e desenvolvido ao longo do
ensaio: por vezes, lido com essas coisas, vejo como é que chego em ano de 2016 em colaboração com Marina Camargo, Tatiana da
algum lugar, vejo que repito muito algumas posturas que fazem parte Rosa, Carina Sehn e Pablo Sotomayor, estreou no dia 18 de novembro
das minhas práticas corporais e que não necessariamente quero de 2016, às 20h, na Sala 209 da Usina do Gasômetro, em Porto
repetir. Não que elas não possam aparecer, mas, então, tenho que Alegre/RS, seguindo em temporada durante dois finais de semana e
fazer escolhas para modificá-las. Todo o tempo são escolhas. retornando a Porto Alegre entre os dias 5 e 7 de maio de 2017 dentro
da programação do 12º Festival Palco Giratório SESC.

Fizeram parte do projeto a performance-exposição Documentos


Alyne: Para finalizarmos, nesses três anos de projeto, as escolhas,
de Transição e a oficina Práticas para Observar Movimento. Em meio
sejam elas teóricas ou práticas, mudaram?
a vídeos, performances, textos pessoais e teóricos, a performance-
Michel: Esses dias precisei escrever um texto sobre o projeto e a partir exposição Documentos de Transição, apresentada entre as 18h e as
dessa escrita fui entendendo melhor o que estou fazendo agora, já 21h do dia 17 de setembro de 2016, na Galeria Península, em Porto
entrevista

entrevista
que o trabalho já está bem diferente daquele que aparece no projeto Alegre/RS, buscou performar-expor a relação que se estabeleceu
inicial. A pergunta “quais as ferramentas para inibir o movimento entre Michel Capeletti e Marina Camargo durante o processo de
habilitando que outros movimentos, outros discursos possam criação do espetáculo. Na oficina Práticas para Observar Movimento,
atravessar meu corpo imaginário no momento da composição” tem ministrada entre as 14h e as 17h dos dias 29 e 30 de outubro de
se transformado. Percebo o trabalho se desenhando em direção a 2016, na Casa Frasca, em Porto Alegre/RS, Michel Capeletti buscou
um lugar que nunca chega, a um movimento que não se alcança, dividir algumas das ferramentas por ele utilizadas na composição
a uma imagem que não se concretiza. Lanço os estímulos. Defino o do espetáculo, abrindo espaço à observação do movimento como
movimento. Dou uma forma mínima. Mas não alcanço. E o que se um disparador que coloca o artista em relação a outros corpos, ao
produz nessa derrota é o que fica. Esse resto é o que não se completa. espaço e a contextos diversos, possibilitando outras perspectivas para
criar.

Um pouco mais sobre Enquanto as coisas não se completam O material referente ao projeto está disponível em
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Enquanto as coisas não se completam, segundo Michel https://enquantoascoisasnaosecompletam.wordpress.com/

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ARTIGOS
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artigos

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Foto: Wagner Ferraz
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Artigo 1 ENTRE DEUS E O DIABO:


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RELAÇÕES ENTRE NARRAÇÃO E EXPERIÊNCIA

Me. Ananda Vargas Hilgert, UFRGS, Porto Alegre/RS1

Resumo: Este artigo trata-se de um ensaio teórico sobre o conceito


de experiência, especialmente pensando nas possíveis relações

ENTRE DEUS
desse tema com a narração, a linguagem e a presença. Pretende-se,
aqui, estabelecer uma espécie de diálogo com três autores: Walter
Benjamin, Giorgio Agamben e Hans Ulrich Gumbrecht; respeitando
os devidos contextos de cada escritor e considerando que certos
apontamentos desses autores podem nos auxiliar a pensar sobre o

E O DIABO:
conceito de experiência no nosso próprio contexto contemporâneo.
Além disso, este artigo coloca lado a lado aos autores teóricos, trechos
de textos literários e a narração de um episódio da série Black Mirror,
pensando que produções artísticas podem complexificar os conceitos
filosóficos aqui trabalhados.

RELAÇÕES Palavras-chave: Experiência. Narração. Literatura. Linguagem.

ENTRE AMONG GOD AND THE DEVIL:


CONNECTIONS BETWEEN NARRATIVE AND EXPERIENCE

NARRAÇÃO Abstract: This paper is a theoretical composition about the notion


of experience, especially in regards to its possible relations between
narrative, language and presence. The purpose is to establish a dialogue
connecting three authors: Walter Benjamin, Giorgio Agamben and Hans

E EXPERIÊNCIA
Ulrich Gumbrecht, respecting each writer’s context and considering
their importance to the notion of experience in our own contemporary
context. Furthermore, this paper includes excerpts of literature and an
artigos

episode of the Black Mirror TV series, reflecting on the potential that

artigos
artistic productions have in the intrication of the philosophical notions
discussed herein.
Keywords: Experience. Narrative. Literature. Language.

1 Doutoranda em Educação, mestre em Educação e graduada em Letras pela UFRGS.


Trabalhou com o ensino de literatura e cinema brasileiro para estrangeiros, elaborando sua
C3

dissertação de Mestrado sobre as relações entre alteridade, educação e cinema. Atualmen-


te, realiza sua pesquisa de doutorado sobre temáticas relacionadas à memória, nostalgia e
tecnologia, com um viés voltado à filosofia da educação.

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precisamos saber sobre a vida. Sobre a complexidade das relações,


Deitava-me na cama, imaginava a terra no sobre amizade, amor, travessia, coragem, Deus e Diabo. Algo de
corpo, a água, os passos das ovelhas, nenhuma Guimarães é tão grande, de tão vasto alcance, que não precisamos
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luz. Muito frio. Estava muito frio. Não podia
mexer. Os mortos não se encolhiam, não se ser cangaceiros apaixonados por um amigo no sertão mineiro para
aconchegavam melhor, ficavam tal como sentir profundamente o que significa dizer que “Diadorim é a minha
os tivessem deixado. E eu sabia que devia ter
acautelado isso. Devia ter visto se levava um neblina” (ROSA, 2001,p. 40). Parto, portanto, desse encontro com certas
agasalho, se estava puxado até o pescoço, se literaturas, certos personagens, autores e linguagens, para ensaiar,
lhe puseram almofadas ou haverá aquilo de ser
apenas um tecido nas tábuas duras. neste artigo, possíveis relações entre narração, criação e experiência.
(MÃE, 2014, p. 9)

Alguma coisa também é minha nas palavras de Valter Hugo


Onde não há experiência pode haver narração?
Mãe. Pode ser porque o livro A desumanização me acompanhou em
um momento de luto. Pode ser porque, assim como a personagem Acredito que não há possibilidade de falar sobre narração e
narradora do livro, também pensei como os mortos se aconchegam experiência sem pensar em Walter Benjamin. Nos textos “Experiência
já que não podem se mexer, e, similar a ela, preocupei-me não com e pobreza” e “O narrador”, Benjamin explicita uma de suas mais
o frio, mas com o calor que meu pai sentiria por causa das grossas importantes teses: estamos perdendo a capacidade de narrar, de
meias brancas (que nem mesmo combinavam com sua roupa), que compartilhar histórias, de ouvir a experiência do outro e fazer dela
ficaram nos pés dele quando precisei me despedir pela última vez. nossa também. Especificamente em Benjamin, narração é oralidade.
Será que precisamos necessariamente vivenciar algo parecido com O autor analisa o contexto em que vive, as relações que estavam
o que lemos nos livros para que algo dali nos constitua? Será possível se formando entre arte, criação e alteridade, e destaca a presença
responder como uma cena literária diz tanto sobre nós, tenhamos forte do romance como um indício do possível término da narração
ou não vivido algo similar? Quais as relações entre experiência e oral de uma história. O autor vê a leitura de um romance como uma
literatura? ação solitária, o que ressignificaria, naquele contexto sócio-histórico,
a narração como uma atividade de escuta e partilha. “A origem do
Recorro aos meus livros para pensar nessas perguntas. Que
romance é o indivíduo isolado” (BENJAMIN, 2012, p. 217).
outros autores/livros/trechos/poesias me constituem? Como me
constituem? Quais são aqueles livros aos quais eu volto (volto quando, O romance, o retorno da guerra, o cotidiano nas cidades, o
volto por quê?)? Ah, Guimarães Rosa! Sempre retorno ao Grande trabalho, a lógica de vida que gira em torno de ser necessariamente
Sertão: Veredas. “produtivo”. Esses são alguns aspectos analisados por Benjamin para
artigos

artigos
O senhor... Mire veja: o mais importante pensar sobre o quanto fomos, de certa forma, roubados da faculdade
e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não de narrar e trocar experiências. O excesso de informações implica
estão sempre iguais, ainda não foram terminadas
– mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou também um exagero de explicações, que acabam matando a
desafinam. (p. 39) possibilidade de narração. “Metade da arte narrativa está em, ao
Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me comunicar uma história, evitar explicações” (Idem, p. 219). Em uma
lembro das coisas, antes delas acontecerem... (p.
47)
vida totalmente preenchida por trabalho, informação, explicação,
violências radicais como as guerras, Benjamin prevê a extinção da
Moço: toda saudade é
uma espécie de velhice. (p. 56) narração quanto prática oral, partilhada, “artesã” e de alteridade.
(ROSA, 2001)
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Giorgio Agamben revisita Benjamin quando diz que “o


Às vezes penso que Guimarães Rosa ensina tudo que

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homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência: aliás, relacionada aque tipo de vivências temos, o que fazemos no nosso
a incapacidade de fazer e transmitir experiências talvez seja um dos dia-a-dia, de que forma nos relacionamos com as pessoas, os objetos,
poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo” (AGAMBEN, as atividades ao nosso redor. Não conseguir mais narrar, significa não
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2005, p. 21). Assim como Benjamin fez alguns anos antes, Agamben ter também mais experiências. O que nos deixa mudo é o excesso.
também fala da vida extenuante da cidade e do trabalho: Diferente da leitura que muitas vezes é feita de Benjamin, que entende
(...) o dia-a-dia do homem contemporâneo não a mudez como uma impossibilidade de narrar a experiência, destaco
contém quase nada que seja ainda traduzível em aqui que compreendo os apontamentos desse autor em outra direção:
experiência: não a leitura de jornal, tão rica em
notícias do que lhe diz respeito a uma distância a dificuldade de narrar, ou a própria morte da narração, já indica uma
insuperável; não os minutos que passa, preso ao morte da experiência em si. Essa é a primeira relação entre narração
volante, em um engarrafamento; não a viagem
às regiões ínferas nos vagões do metrô nem a e experiência que aqui proponho: a visão benjaminiana de que
manifestação que de repente bloqueia a rua; perdemos a faculdade de narrar, pois perdemos antes a possibilidade
não a névoa dos lacrimogêneos que se dissipa
lenta entre edifícios do centro e nem mesmo os de ter experiências.
súbitos estampidos de pistola detonados não
se sabe onde; não a fila diante dos guichês de
uma repartição ou a visita ao país da Cocanha
do supermercado nem os eternos momentos de Experiência, presença e linguagem
muda promiscuidade com desconhecidos no
elevador ou no ônibus.” (AGAMBEN, 2005, p. 22)
No final do texto “Presença na linguagem ou presença adquirida
O homem moderno esgotado por seu cotidiano de carros e contra a linguagem?”, Gumbrecht justifica a sua busca pelo conceito
metrôs, tumultos de gente, buzinas, gritos, compras, notícias sobre as de presença como algo anterior à linguagem como uma possível
quais não se exerce quase empatia nenhuma. O homem moderno, reação ao seu contexto contemporâneo. Agora sim um contexto mais
que volta paracasa transbordado de explicações e excessos, tanto próximo do nosso, não o do homem moderno de Benjamin.
que não sobra nenhuma lacuna, nenhum espaço para elaboração, Mais do que nunca, tornou-se um cotidiano de
para narração, para pensamento e, consequentemente, para realidades apenas virtuais, um cotidiano em que
as tecnologias modernas da comunicação nos
experiência. deram onipresença e, dessa forma, eliminaram
da nossa existência o espaço, presença na tela
Acredito que para reler Benjamin hoje, tanto em seus próprios – de tal desenvolvimento a nova vaga de “reality
shows” não é senão o sintoma mais tautológico
textos quanto a releitura dele feita por Agamben, é preciso um certo e hiperbolicamente desamparado. (GUMBRECHT,
deslocamento de nosso próprio contexto. Essa figura do homem 2015, p. 32)
moderno, pode parecer já um clichê, ou uma existência ultrapassada,
Gumbrecht fala sobre linguagem, não exatamente narração
artigos

artigos
não em relação a uma ideia de progresso, de termos de alguma
como Benjamin, além de tratar de um contexto sócio-histórico e
forma evoluído, mas pensando que nos ressignificamos, nos afinamos
filosófico diferente, mas acredito que podemos fazer uma relação
ou desafinamos, deslocamos as nossas angústias. No entanto, a
entre o que nos dizem os autores. Ambos parecem expor suas angústias
relevância dos apontamentos de Walter Benjamin para pensarmos em
diante das nossas relações com experiências e a possibilidade de
narração e experiência é inegável; mesmo considerando narração
falar delas, de narrar, escrever, ou, mais amplamente, criar a partir de
não mais necessariamente atrelada a prática oral, o que acredito
certas linguagens das quais dispomos.
não fazer mais sentido em uma elaboração contemporânea sobre as
relações entre experiência e narração. Gumbrecht propõe-se a apresentar o que ele chamou de
C3

“amálgamas” entre linguagem e presença, diferenciando as “culturas


A pobreza da experiência, em Benjamin, está intimamente
do sentido” e as “culturas da presença”. Não pretendo aqui explicar

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cada uma delas e citar os autores por ele estudados, mas falar, de ordem do “não-narrável” me parece ainda muito pouco para tratar
uma visão geral, quais me parecem ser as questões levantadas por de conceitos tão complexos e caros à filosofia como esses. A narração
Gumbrecht ao dedicar-se a tal estudo. Exatamente como o próprio não dá conta da experiência na mesma medida em que nada dá,
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autor aponta no fim de seu capítulo, vejo a cultura da presença de em que nada encerra uma experiência. Se encerrasse talvez nem
Gumbrecht como uma possível reação a certas frustrações das nossas poderia ter sido chamada de experiência. Se chegássemos nas “coisas
vidas, sendo a principal delas a impossibilidade de chegar na “coisa elas mesmas”, talvez não tivéssemos espaço para criação. Podemos
ela mesma”. Ele diz não ter encontrado “consolo naquilo que gosto ver a linguagem como interpretação e fechamento das coisas
de caracterizar como o ‘existencialismo linguístico’ da desconstrução, do mundo, mas isso me parece levar a uma insatisfação que vai à
isto é, o lamento recorrente e a melancolia (...) a propósito da alegada contramão das potências da experiência para criação e elaboração
incapacidade de a linguagem se referir às coisas do mundo” (idem). de pensamento.A experiência não está antes da linguagem, não está
Ao longo de todo o capítulo citado, o autor traça certas diferenças por trás da palavra, mas é ela que motiva a criação, que aponta uma
entre a linguagem e “as coisas do mundo”. A presença dessas tais falta, uma lacuna que nos coloca a necessidade de narrar.
coisas é o que está em jogo nas suas formulações. E a presença aqui
é o que parece se relacionar mais profundamente com uma ideia
de experiência, pensando experiência como um conceito sempre Experiência muda e linguagem
escorregadio, uma ideia que se transforma dependendoaoque é
Depois da releitura de Walter Benjamin, Giorgio Agamben trilha,
relacionada. Essa é a segunda relação entre experiência e narração
no ensaio aqui citado, uma série de complexos caminhos para pensar
que proponho aqui: a impossibilidade de uma “tocar”a outra, a
sobre experiência e linguagem, fazendo, finalmente, uma pergunta
frustração de narrar uma experiência e ver que a linguagem não dá
que pode aqui apontar uma forma de complexificar tais relações:
conta daquilo que acreditávamos ser a experiência.
“existe uma experiência muda, existe uma in-fânciada experiência?
Embora extremamente necessária para quebrar uma suposta E, se existe, qual é a sua relação com a linguagem?” (AGAMBEN, 2005,
“supremacia” da linguagem, acredito que a insistência na separação p. 48).
entre linguagem e presença possa nos levar a uma busca por uma
Assim como Gumbrecht, Agamben coloca o problema da
essência do mundo, uma verdade que estaria escondida atrás das
linguagem como algo central para se pensar a experiência (ou a
palavras. O que são essas coisas mesmas do mundo nas quais nunca
presença). Agamben também aponta para a necessidade de se
chegamos? O que encontraríamos na presença e não na linguagem?
atentar ao silêncio, à mudez, a algo que não se dá só em palavra,
Seguindo essa linha de pensamento sobre a frustração diante que se perde no caminho da narração. No entanto, acredito que
da incapacidade da linguagem em chegar nas coisas e relacionando
artigos

Agamben ainda vai além dos paradoxos filosóficos de Gumbrecht e

artigos
com experiência e narração, poderíamos perguntar: quais as afirma o seguinte:
implicações danarração não dar conta da experiência? Ao narrar,
A ideia de uma infância como uma substância
o que estamos tentando fazer é chegar na experiência ela mesma? psíquica pré-subjetiva revela-se então um mito,
como aquela de um sujeito pré-linguístico, e
Se este for o caso, acredito que experiência acaba ganhando um
infância e linguagem parecem assim remeter
status de essência e verdade, ao contrário da narração, que seria a uma à outra em um círculo no qual a infância
aparência, a máscara que esconde o que está por trás. é a origem da linguagem e a linguagem a
origem da infância. Mas talvez seja justamente
neste círculo que devemos procurar o lugar
De um ponto de vista nietzscheano, e também foucaultiano, da experiência enquanto infância do homem.
C3

tais separações não parecem pensar conceitos filosóficos pela Pois a experiência, a infância que aqui está em
questão, não pode ser simplesmente algo que
produtividade deles. Colocar experiência e presença numa certa precede cronologicamente a linguagem e que,

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a uma certa altura, cessa de existir para versar- Clarice Lispector é a narração de uma experiência porque chega
se na palavra, não é um paraíso que, em um
determinado momento, abandonamos para
em mim, chega no outro, é um sentimento partilhado, uma angústia
sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente enigmaticamente humana. A pura tentativa de partilha já é uma
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com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma
narração que se faz experiência ela mesma.
na expropriação que a linguagem dela efetua,
produzindo a cada vez o homem como sujeito.
(AGAMBEN, 2005, p. 59) Esse caráter quase coletivo da experiência é outro indício
da importância da narração; narração como partilha, transmissão
Agamben nos apresenta o problema da linguagem, nos ao outro, elaboração do que passa comigo, tentativa, mesmo que
aponta para uma necessidade de pensar a experiência muda frustrada, de comunicar, criar a partir do que me toca. Se tratarmos a
“situada aquém da expressão primeira” (Idem, p. 48), para, logo experiência apenas como algo anterior à linguagem, como algo que
depois dizer que essa separação não é assim tão clara, que não se perde no momento em que é versada em palavra, então como será
existe a experiência cronologicamente antes da linguagem, e que possível uma transmissão, uma relação com a alteridade? Da mesma
depois que “virou” linguagem deixa, então, de existir. Não há esse forma, não podemos dizer que elaborar uma narração seja o mesmo
lugar idílico da experiência crua, presente, das coisas do mundo não que encerrar a experiência. A experiência é opaca, escorregadia, não
contaminadas pela linguagem. O que o filósofo nos aponta é para a plenamente atingível. Mas é a tentativa de pegar sabendo que vamos
coexistência entre experiência muda e linguagem. Essa seria, então, resvalar que torna possível a criação, a arte que nunca se esgota, que
a terceira e última consideração que aqui aponto para complexificar se reformula. A experiência é o que deve nos instigar a essa narração,
as relações entre narração e experiência: a experiência seria algo abrindo lacunas que são eternas possibilidades; possibilidades que
que fica entre essa possível mudez, ou in-fância da linguagem, e a são ainda ampliadas pelas muitas reformulações da narração. Como
narração (palavra, criação, elaboração). A experiência não está afirma Agamben, as relações entre linguagem e experiência se dão
antes ou depois da linguagem, mas oscila entre esses dois mundos na forma de um círculo: a experiência leva à narração, que, por sua
aparentemente contraditórios. Entre Deus e o Diabo, assim como o vez, também instiga à experiência.
sertão de Guimarães Rosa. A experiência é e não é da ordem de um
certo não-narrável.

Narração e transmissão
*
Além da importância de pensar experiência relacionada com
uma possível elaboração, criação, narração, acredito que é preciso Black Mirror, episódio 3, primeira temporada:
artigos

artigos
elucidar ainda outros elementos que podem ajudar a “desenhar” em
Uma dada tecnologia permite que todas as pessoas possam
torno desse conceito tão complexo. Experiência não é da ordem do
gravar tudo que acontece em suas vidas e reproduzir tais eventosna
individual, não é algo que passa comigo e mais ninguém. Aquilo que
hora em que desejarem. Um personagem faz uma entrevista de
passa comigo é experiência justamente porque diz algo do outro. A
emprego e, logo depois, voltando para casa, revê cada momento
experiência tem algo do mistério, do inexplicável, exatamente por não
da entrevista, tentando analisar cada palavra, cada mudança na
ser misterioso só pra mim. É o que há de humano, de compartilhado,
respiração dos entrevistadores, para talvez localizar algum indício de
de relação com o outro que poderia ser chamado de experiência.
que será ou não contratado. Em vez de contar a sua esposa como foi
A intensidade, a singularidade de uma experiência me parece
a entrevista, ele simplesmente reproduz numa tela a entrevista inteira.
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estar intimamente ligada a uma certa característica “pública” da


experiência. Aquele estado de epifania de uma personagem de À noite, amigos jantam juntos e reproduzem um para o outro

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as suas histórias. Ninguém “perde” tempo contando nada. Por que onde não éramos isolados e ouvíamos as histórias um do outro; seja
narrar se podemos mostrar exatamente como aconteceu? para o passado de Gumbrecht, onde não havia tantas telas, tantas
“virtualidades”, tanta supremacia da linguagem; seja olhando para
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Marido e mulher discutem sobre algo que aconteceu no
um possível futuro onde teremos chips de memória, que substituirão
passado. Ela o acusa, ele diz que não fez. Vamos tirar a prova? É só
a necessidade da narração e nos darão o contato direto com a
rever, reproduzir exatamente como aconteceu.
“verdade”. Diante desses medos de um possível fim da narração e da
O marido desconfia da fidelidade da esposa. Ela jura que sempre experiência, parece-me extremamente relevante pensarmos de que
foi fiel. A palavra dela não é o suficiente. A forma como ela conta a forma nos relacionamos com esses conceitos hoje.
história não o convence. Para encerrar a discussão é só reproduzir
Procurei tratar aqui narração não apenas como oralidade, tal
exatamente como aconteceu.
como Benjamin aborda, já que não se pode simplesmente transpor
Nesse mundo não há mentira, não há a possibilidade de chegar seu pensamento, pois corremos o risco de cairmos em um saudosismo
ao fim do dia e contar a um amigo aquele evento inesperado que romântico do que nem vivemos. Acredito que não podemos apenas
aconteceu no trabalho. Não há uma reformulação do que nos pensar hoje em narração como uma contação de histórias oral, mas
acontece, não há memória pelo meio das narrativas. Perdemos a devemos ampliar este conceito. Quando falei aqui em narração,
capacidade de narrar. A gravação do que aconteceu parece uma linguagem e palavra procurei tratar de uma certa elaboração de um
forma de chegar “na coisa ela mesma”, de encerrar o nosso medo de pensamento, uma vontade de potência da experiência que nos abre
“perder” memórias, de não conseguir nunca criar algo que faça jus lacunas, espaço para criação, que pode ser literária como os trechos
àquilo que tão intensamente experienciamos. que abriram este ensaio, ou uma série como Black Mirror, como pode
se manifestar de tantas outras formas que dispomos para nos narrar
A narração, a mentira, a criação, a potência do falso, fazem
contemporaneamente: webséries, webcomics, grafite, performance,
falta a esse futuro. Para que serve criar se tenho acesso à verdade?
cinema, vídeo, blogs, etc. Considerando as três formulações
apresentadas aqui sobre as relações entre linguagem, narração
* e experiência, pergunto: quais formas temos hoje de nos narrar, de
narrar nossas experiências? Quais as relações contemporâneas entre
Tanto Benjamin quanto Gumbrecht parecem falar do lugar de novas formas de narratividade e experiência?
uma possível nostalgia, talvez motivados por uma angústia, um medo,
como o próprio Gumbrecht justifica no trecho apresentado aqui neste Os anseios de Benjamin, Gumbrecht e dos criadores de Black
ensaio. Os dois falam sobre os contextos em que vivem. Benjamin Mirrornão são apenas medos nostálgicos, mas devem ser levados em
consideração quando analisamos o que é necessário para que uma
artigos

artigos
sobre a ideia moderna da cidade grande, do trabalho, do princípio do
isolamento do homem; Gumbrecht sobre tecnologias e comunicação, experiência se constitua como tal; ou ainda, para pensarmos o que
sobre telas e virtualidade. Acredito que essa constatação seja está em jogo quando nos narramos, quando tentamos transmitir ao
um importante dado para pensar experiência e suas relações outro algo que é tanto meu quanto dele. Talvez pensar em mudez,
com: narração, linguagem, criação, partilha, transmissão, tempo, em silêncio, em tempo para elaboração seja um caminho importante.
silêncio, intensidades, entre outros elementos que são colocados em Acredito que é insuficiente apontar algo como aquilo que “elimina”
funcionamento pelos autores aqui citados. a experiência e a narração das nossas vidas, tal como o romance,
ou uma lógica capitalista de vida, para Benjamin; ou o excesso de
Da mesma forma, uma série como Black Mirror também linguagem interpretativa para Gumbrecht; ou a tecnologia de Black
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parece anunciar uma tragédia humana relacionada à narração, Mirror. Ainda recorrendo a Benjamin, de que forma podemos constituir
transmissão e experiência. Seja olhando para o passado de Benjamin,

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um tédio hoje, um tempo para criar, um silêncio pré-linguagem que


vai alimentar a própria linguagem? “O tédio é o pássaro onírico que
choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o
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assusta.” (BENJAMIN, 2012, p. 221).Finalizo este artigo com perguntas
em aberto, dúvidas que podem ser produtivas, podem ser potência
para ir além quando pensamos nas relações teóricas entre narração
e experiência. Perguntas que talvez nunca sejam totalmente
respondidas, mas que dizem respeito a certos perigos do nosso tempo.

Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Ensaio sobre a destruição da
experiência. In:_________. Infância e história. Destruição da experiência
e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2005, p.19 – 78.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. Magia e técnica, arte e política.
Ensaios sobreliteratura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012.
ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.
FOUCAULT, Michel. Sobre a genealogia da ética: uma revisão do
trabalho em curso. In: DREYFUS, H. RABINOW, P. Michel Foucault, uma
trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica.
Rio de Janeiro: Forense, 2010.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Presença na linguagem ou presença
adquirida contra a linguagem? In: ______. Nosso amplo presente. Trad.
Ana Isabel Soares. São Paulo: UNESP, 2015, p. 19-32.
MÃE, Valter Hugo. A desumanização. São Paulo: Cosa Naify, 2014.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.

Artigo recebido em: 14/08/2016


artigos

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Aprovado em: 20/01/2018


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Foto: Wagner Ferraz
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Artigo 2
A BOA PRÁTICA PEDAGÓGICA E O BOM
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A BOA
PROFESSOR DE MATEMÁTICA:
uma constituição moral através de jogos de verdade

PRÁTICA Dra. Grace Da Ré Aurich, UFRGS, Bagé/RS1

PEDAGÓGICA
Resumo: Discute-se a constituição moral do docente em matemática
e sua prática pedagógica pela relação com as verdades discursivas
pedagógicas através da noção de jogo em Foucault. Analisa-se
discursivamente ditos e escritos de estagiários, a partir da pesquisa

E O BOM
de Lenzi (2008) acerca dos efeitos das relações de poder e verdade
na constituição e regulação de práticas pedagógicas, por meio de
discursos, para se pensar possibilidades éticas de ser professor de
matemática. Ao fim, sugerem-se modos pelos quais prescrições de

PROFESSOR DE
caráter moral podem ser tornadas condutas de caráter ético desse
futuro docente.
Palavras-Chave: moral, ética, jogos de verdade, formação docente,

MATEMÁTICA:
educação matemática.

UMA
THE GOOD PEDAGOGICAL PRACTICE AND THE GOOD MATH TEACHER:
a moral constitution through games of truth

CONSTITUIÇÃO Abstract: It discusses the moral constitution of the mathematics


teacher and his/her pedagogical practice by the relation with the
pedagogical discursive truths through the notion of game in Foucault.

MORAL ATRAVÉS
From the research of Lenzi (2008) on the effects of relations of power
and truth in the constitution and regulation of pedagogical practices
through discourses, it analyzes statements and writings given by trainees
artigos

artigos
to reflect on ethical possibilities of being a teacher of mathematics.

DE JOGOS DE
Finally, it suggests ways in which prescriptions of moral character can
be made ethical conduct of this future teacher.
Keywords: moral, ethics, truth games, teacher education, mathematical

VERDADE 1 Licenciada em Matemática pela Universidade da Região da Campanha


(URCAMP), Mestre e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDu/UFRGS). Professo-
ra na Escola Estadual de Ensino Médio Luiz Maria Ferraz (CIEP), bolsista do Ministério
C3

da Educação (MEC) como Formadora Regional no PNAIC/PNME pela Universidade


da Região do Pampa (UNIPAMPA) e pesquisadora do PRAKTIKÉ – Educação e Currí-
culo em Ciências e Matemática (PPGEDu/UFRGS).

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education. escola e na educação matemática contemporânea.

PRIMEIRA JOGADA: DO QUE SE TRATA Adotou-se a noção de sujeito como sendo constituído na e
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pela linguagem e por verdades discursivas sustentadas por regimes
Neste artigo, apresenta-se um recorte da dissertação de mestrado
de verdade, um sujeito enquanto efeito do discurso e das relações
de Aurich (2011) intitulada “Jogos de Verdade na Constituição do Bom
de poder, o que poderia lhe proporcionar uma mobilidade de
Professor de Matemática” e que discutiu a relação estabelecida por
desdobramentos e singularizações. Um sujeito tomado enquanto
licenciandos/estagiários de matemática com determinadas verdades
forma,
pedagógicas – da Pedagogia, da Psicologia, da Matemática, etc. –
[...] essa forma nem sempre é, sobretudo, idêntica a
que os constituem como sujeitos morais e seus modos de dizerem-se e si mesma. Você não tem consigo próprio o mesmo
verem-se como bons professores de matemática. tipo de relações quando você se constitui como
sujeito político que vai votar ou toma a palavra
O recorte foca-se nessa referida relação por licenciandos, em em uma assembléia, ou quando você busca
situação de estágio de docência na formação inicial de professores, realizar o seu desejo em uma relação sexual. Há,
indubitavelmente, relações e interferências entre
a partir de uma analítica discursiva de seus ditos e escritos produzidos essas diferentes formas do sujeito: porém, não
durante as reuniões de orientação com o professor formador dessa estamos na presença do mesmo tipo de sujeito. Em
disciplina de estágio. cada caso, se exercem, se estabelecem consigo
mesmo formas de relação diferentes. (FOUCAULT,
Tratou-se de uma pesquisa de viés filosófico e pós-estruturalista 2006a, p.275),
na qual foram utilizadas noções filosóficas como ferramentas analíticas,
Com isso, o indivíduo estabelece relações diversas com
como as noções de jogo de verdade e de ética em Foucault, para
verdades discursivas que lhe posicionam. Esse entendimento afasta-
olhar diferentemente para questões sobre a formação docente em
se da noção de sujeito iluminista, do sujeito centrado, autônomo,
matemática.
dotado de desejos, vontades, intenções que vem a tornar-se humano
Não se pretendeu renunciar as verdades discursivas ou negar pela aquisição do conhecimento. Um sujeito no qual sua autonomia
sua existência, menos ainda verificar esta ou identificar discursos e consciência cedem espaço para “[...] um mundo social constituído
verdadeiros. Apenas dedicar a elas um tempo suficiente para pô-las em anterioridade e precedentemente àquele sujeito, na linguagem
em suspenso, para munir-se delas, apoiar-se nelas a fim de entender e pela linguagem.” (SILVA, 1994, p.248). Um sujeito submetido à
de que modos os sujeitos estagiários estabelecem com elas um linguagem e a história, produzido, fabricado, constituído pelas
determinado jogo através do qual passam a se constituírem-se a si verdades pedagógicas através das quais se relaciona consigo próprio,
mesmos como bons professores de matemática. movimentando-se por meio de técnicas que lhe promovem processos
de subjetivação e incitado a possuir desejos e intenções que lhe fazem
artigos

artigos
reconhecer-se e enunciar-se como um bom professor de matemática.
SEGUNDA JOGADA: DAS FERRAMENTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Linguagem e verdade são entendidas como jogos: jogos de
Para a análise proposta, trabalhou-se com as noções de moral,
linguagem no segundo Wittgenstein2 e jogos de verdade em Foucault.
ética e jogos de verdade em Foucault e deslocamentos teóricos
O entendimento de linguagem adotado destaca sua função
acerca do entendimento sobre a noção de sujeito e de linguagem.
inventiva e instituidora da realidade. Não sendo representativa ou
Utilizando a clave foucaultiana tendo a noção de jogos de verdade,
correspondente aos objetos, é composta por regras que, através da
perpassada pelo conceito wittgensteiniano de jogos de linguagem,
maneira como são utilizadas e dos modos pelos quais são seguidas,
como a principal ferramenta analítica discursiva, analisou-se ditos
C3

e escritos olhando para os modos de dizer-se e ver-se como bom


2 Segundo Wittgenstein ou Wittgenstein das Investigações filosóficas é como o
professor de matemática, no espaço interinstitucional universidade- filósofo austríaco é denominado na segunda fase de seu pensamento.

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institui modelos e padrões, fabricando sujeitos e não apenas como Pensando em linguagem como um jogo, devemos considerar
mero instrumento de comunicação entre sujeitos. que ela possui regras que são padrões de correção que indicam
direções e conduzem as maneiras de como se deve proceder. Nessa
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Dizer que a realidade é constituída pela linguagem, ou
noção de regra reside a imposição, aos jogos de linguagem, de sua
linguisticamente constituída, é assumir que o significado dos objetos,
característica como atividade regrada, de prática regulada nas
materiais ou não, não estão presente nestes, mas sim na construção
nossas diversas formas de vida, assim como nas ações pedagógicas.
linguística que os define. Ao compreender que quando se pensa
em algo se está inventando-o, instituindo-o, dando-lhe significado é Em relação à verdade, Foucault, entende como “[...] o conjunto
porque esse algo só pode ser pensado em dependência e coexistência das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se
com o que pode ser dito dele. Nada estaria fora da linguagem, nem atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder [...]” (2007, p.13).
ações, ou intenções, ou pensamentos, ou vontades, ou sentimentos, Existem verdades nas ciências – pedagogia, matemática, psicologia,
até mesmo porque a linguagem não se restringe a atos de fala ou de etc – que dizem quem nós somos e que podem nos incitar ao desejo
escrita, mas também, gestos e contextos. de constituir-nos enquanto sujeitos bons professores de matemática.

Foucault (1987) afirma que não é na mentalidade dos indivíduos Entre muitas das verdades discursivas pedagógicas que atuam
que habitam as regras de formação das práticas discursivas, mas nelas como matrizes de ação, governando, dando a forma-sujeito aos
mesmas. Essas regras constituem práticas e são impostas àqueles que indivíduos que assujeitam, estão as que envolvem o discurso da
de um determinado campo discursivo pretendem participar. Logo, educação matemática e a psicologia do desenvolvimento, como
exercer uma prática discursiva significa seguir determinadas regras e as do uso de tecnologias, de materiais manipuláveis, do lúdico, da
expressar as relações que ocorrem no interior do discurso, configurando contextualização de conteúdos, da reflexão sobre a ação pedagógica,
uma prática discursiva como sendo da interdisciplinaridade, da etnomatemática, entre outras.
[...] um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre Como em um jogo, uma atividade regrada, os estagiários são
determinadas no tempo e no espaço, que definiram,
em uma dada época e para uma determinada conduzidos e orientados a produzirem falas e condutas determinadas.
área social, econômica, geográfica ou lingüística, Pelas verdades presentes nos discursos, são incitados, provocados a
as condições de exercício da função enunciativa.
possuírem desejos, vontades e a tomar como sua a intencionalidade
(FOUCAULT, 1987, p.136).
do próprio discurso.
Retomando a noção de sujeito adotada, não há, então, um
É preciso cuidado com o sentido da palavra “jogo” [da verdade],
sujeito a ser moldado, mas um sujeito que, pela linguagem e pelas
pois
verdades discursivas, se configura e se constitui através de seus
[...] pode induzir em erro: quando eu digo “jogo”, me
jogos e de suas regras. Assumiu-se, como suporte analítico para a
artigos

refiro a um conjunto de regras de produção da verdade.

artigos
investigação, no que se refere ao entendimento da linguagem como Não um jogo no sentido de imitar ou de representar...;
organizadora do mundo e das significações, a noção de linguagem é um conjunto de procedimentos que conduzem a um
certo resultado, que pode ser considerado, em função
no segundo Wittgenstein, entendida como um jogo, como uma de seus princípios e das suas regras de procedimento,
atividade organizada por regras, ou seja, uma prática regrada. válido ou não, ganho ou perda. (FOUCAULT, 2006a,
p.282)
Por jogos de linguagem entende-se “[...] a totalidade formada
pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada Nessa perspectiva, o jogo de verdade estabelece uma relação
[...]” (WITTGENSTEIN, 2008, §7, p.19), ou como “[...] conjunto indissociável, entre os indivíduos e as regras desse jogo o organizam e o legitimam.
da linguagem e das atividades com as quais interagimos no mundo Para Birman (2002, p.307) “[...] enunciar a existência de uma regra
C3

[...]” (CONDÉ, p.217, 2004). é indicar a existência de algo que é da ordem da invenção e do
arbitrário, que seria constitutivo de toda e qualquer regra.” [grifo do

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autor]. os modos pelos quais vem a conduzir-se, a esculpir-se moralmente


tendo como referência os elementos prescritivos constituintes de um
A produção de verdades como jogo implica a linguagem, mas
código moral. Uma maneira de ser, de conduzir-se, uma forma de ser
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mesmo necessária, não é suficiente. Birman (2002) salienta que os
visível aos outros, ou como para os gregos, um cuidado de si para com
jogos de linguagem de Wittgenstein seriam remetidos à construção
os outros.
dos jogos de verdade de Foucault pela agregação da produção de
certezas e de crenças fundadas na ação de dispositivos de poder Na relação estabelecida com as verdades, resultam seus
que legitimam verdades e as inscreveriam nos corpos dos indivíduos modos de ser e de agir que fazem com que venha a praticar uma
por meio de processos de subjetivação. Assim, o poder, incidindo nos ação de caráter ético implicando, segundo Foucault (2006b), uma
corpos dos indivíduos pela mediação de dispositivos, seria crucial para determinada relação consigo mesmo, uma constituição de si como
a constituição de tais jogos. sujeito de sua moral e não mais como objeto da prática moral.

A noção de regra em Foucault não está restrita a questão de Assim, o sujeito acaba por definir sua posição em relação ao
significação. A regra não é apenas gramatical, constituitiva de um jogo, preceito que decidiu acatar, agindo sobre si mesmo, colocando-se
operando como um padrão de correção, como para Wittgenstein, à prova, aperfeiçoando-se, transformando-se e determinando para
pois no momento que representa a possibilidade de produção de uma si mesmo um modo de ser para seu próprio cumprimento moral, (re)
conduta, evidencia o seu caráter estratégico. Esse caráter das regras constituindo sua ética. Uma conduta ética resulta de uma relação de
constituintes dos jogos de verdade, regras que orientam, conduzem e si consigo frente às verdades que são impostas ao sujeito.
governam acabam por significar modos de ser e de agir, os esquemas O professor de matemática entendido como um sujeito dado
de comportamento dos indivíduos. pela linguagem e por jogos de verdade pode ter possibilidades
Para se discutir a constituição moral do professor de matemática de tornar-se um sujeito ético com efeitos estéticos, passível de
e a possibilidade de condutas éticas, é preciso esclarecer o singularizações, afinal, “[...] sempre há possibilidade, em determinado
entendimento sobre ambas para Foucault. jogo de verdade, de descobrir alguma coisa diferente e de mudar mais
ou menos tal ou tal regra, e mesmo eventualmente todo o conjunto do
Para Foucault (1984) a moral está compreendida em dois níveis:
jogo de verdade.” (FOUCAULT, 2006a, p.283). Pois, essas relações de
o do código moral que seria o conjunto de valores e regras propostos
poder são “[...] móveis, reversíveis e instáveis [...]” (FOUCAULT, 2006a,
aos indivíduos e aos grupos pelos diferentes aparatos prescritivos
p.276), são relações que podem se modificar e há a possibilidade
difusamente transmitidos e o da moralidade dos comportamentos, ou
de “[...] estratégias que invertam a situação [...]” (FOUCAULT, 2006a,
o real comportamento dos indivíduos frente a um princípio de conduta,
p.277).
envolvendo suas condutas morais à medida que se submetem ou não
artigos

artigos
a tal princípio, obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma
prescrição, respeitam ou negligenciam um conjunto de regras e de TERCEIRA JOGADA: DOS CAMINHOS PERCORRIDOS
valores.
A investigação deu-se a partir de um recorte do levantamento
As verdades pedagógicas da ciência quando entendidas de dados realizado por Lenzi (2008) para sua pesquisa. Tais dados foram
como máximas, tomam para si um caráter imperativo, tornando-se, tomados como material investigativo em função de se encontrarem
portanto, prescritivas e passando a ocupar lugar na ordem da moral. em um lugar privilegiado para a investigação: um espaço escolar
Por sua vez, a noção de ética em Foucault (1984) sofre um estudado, onde os seis estagiários – futuros professores de matemática
deslocamento teórico e passa a ser entendida como a maneira pela – do segundo semestre de 2006 do curso de licenciatura em
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qual o indivíduo se constitui como sujeito moral de suas próprias ações, matemática da UFRGS, participantes da pesquisa, possuíam certas

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falas – durante suas discussões de orientação de estágio, sobre o ato c. Narrativas (escritos) que se constituem como
unidades de significação articuladas a partir de certos
de planejar suas aulas e na elaboração de seus planos de ensino –
princípios de agrupamentos discursivos.
por estarem naquele lugar, sob influência dos jogos de poder e de
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verdade considerados legítimos nesse espaço, sob certas atividades Com a analítica sobre os ditos e os escritos dos estagiários,
regradas que os orientam. que traziam consigo evidências, através da elaboração do plano
de aula, das suas formas de vinculações com as verdades que lhes
Esse material investigativo constituiu-se pela degravação da
foram propostas nesses espaços institucionais lhes posicionando
apresentação de planejamentos dos estagiários referente às aulas
discursivamente, focou-se o olhar para as relações existentes entre eles
que deveriam ministrar, na escola onde desempenharam suas práticas
mesmos e tais verdades que lhe constituiriam como bons professores
de ensino, para o seu professor formador. Os estagiários apresentam
de matemática.
de forma oral e/ou escrita (ditos e escritos) os modos pelos quais
pretendiam desempenhar sua ação pedagógica.

Destaca-se que o trabalho de Lenzi (2008) não discutiu sobre QUARTA JOGADA: DO JOGO EM SI
um professor que reflete sobre sua prática. Percebeu a prática A constituição do bom professor de matemática, ou seja,
pedagógica em meio a discursos, saberes, experiências e relações de a maneira como se dá a constituição desse professor como sujeito
poder que instituem e regulam essa prática, desvinculando a ideia de moral, pode ser entendida conforme evidenciado anteriormente com
um sujeito portador de autonomia e problematizando sobre um sujeito o trabalho de Lenzi (2008), ou seja, como resultado de discursos “[...]
professor que está atrelado a tudo isso, através dos instrumentos que que constituem as condições de possibilidade de toda a ação [...]”
os normalizam, os identificam e os classificam. (VEYNE, 1985, p.04). Todavia, não basta apenas a significação, no
No que se refere à busca de discursos que instituem e regulam âmbito coletivo, dadas às palavras que seguem determinadas regras
práticas pedagógicas dos estagiários, Bello (2010) justifica a escolha de uso3, mas também os modos de subjetivação – jogos de verdade –
de Lenzi em utilizar os ditos e escritos produzidos por diferentes meios onde o professor se reconhece e enuncia-se como um bom professor.
e sujeitos envolvidos em sua investigação, considerados por ela como A partir da descrição do que seria uma boa aula de matemática,
a principal ferramenta de acesso aos discursos que circulam nas pautada por verdades teóricas da ciência pedagógica, o estagiário
instituições universidade e escola, afirmando que vincula à sua boa prática pedagógica, a condição de tornar-se um
[...] ao buscar recorrências discursivas em palavras, bom professor de matemática. Pelo atendimento a um determinado
é pertinente lembrar que a fala se constrói sob a
código de comportamentos, resulta o bom professor de matemática
interferência de regras e padrões produzidos em
instituições sociais e que as práticas moldam e na medida que dá a sua conduta referente a uma determinada
modelam o que pode ser considerado verdadeiro ou
artigos

prescrição. Nessa medida nomeia sua boa prática pedagógica.

artigos
falso. (p.07).
Como uma prática podería-se dizer que pensar no planejamento
Na perspectiva teórico-metodológica empreendida na
de ensino, nesta pesquisa, entendido como uma prática constituída de
investigação, foi realizada uma analítica discursiva. Bello (2010, p.09)
discursos, presente dentro do espaço institucional escolar que envolve
caracteriza essa espécie de analítica como aquela em que são
saberes e determinam regras que orientam o sujeito (professor) a agir
escolhidos(as):
de modo específico, é pensar em
a. Atos de fala (ditos) que, produzidos e/ou organizados
como o conjunto de verdades do que é ser um bom
no interior de certos grupos sob dependência de
professor de matemática - aquele sujeito autônomo,
certas formações discursivas, passam a ser entendidos
sujeito do prático, do fazer, da inovação, da tecnologia,
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como manifestações linguisticos-enunciativas de uma


subjetividade também produzida discursivamente [...];
3 Pensando na linguagem como jogo, no segundo Wittgenstein.

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da contextualização, entre tantas outras que classificam compreensão adequada dos conjuntos numéricos nem
os “bons” e os “não bons” - se constituiu, implica em mesmo uma relação de ordem entre os números, estes são
pensarmos nas regras desses jogos que ao produzirem conhecimentos necessários para desenvolver o conceito de
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verdades criam identidades e impõem condutas aos função, imagem e domínio. Dessa forma venho propor um
indivíduos. (AURICH; BELLO, 2011, p.10).
trabalho que envolva funções, mas que provoque os alunos a
De acordo com as verdades circulantes no ambiente necessidade de que certos conceitos sejam revistos e, dessa
forma, retomar conteúdos que já deveriam estar dominados
acadêmico, onde se dá a questão da escrita, uma das funções
e avançar a ponto de podermos, de fato e com propriedade,
do planejamento seria utilizar essa escrita enquanto técnica para explorar verdadeiramente os conceitos pertinentes ao estudo
racionalizar, organizar e coordenar o trabalho docente buscando de funções.” [...]5
fixar algumas verdades consideradas pelo professor formador4 como
Na escrita do planejamento, um exercício que faz com que
aquelas a partir das quais considera um bom planejamento, dele
o sujeito estagiário seja, de certa forma, “colado” a determinadas
derivando uma boa aula e, consequentemente, constituindo um bom
verdades, prescrições, dá-se a constituição de um sujeito bom professor
professor. Assim, cabe destacar a valoração dada ao exercício de
de matemática na medida em que vincula e mede a sua conduta ao
escrita do planejamento.
atendimento de determinado código.
No material de investigação, destacam-se trechos nos quais
Na segunda parte do plano de ensino, o E2 sistematiza seu plano
alguns estagiários apresentam o planejamento por escrito e outros
de ação:
explicam oralmente como pretendem desenvolver sua ação
E2: [...] Então, escrevendo minha proposta, passo-a-passo,
pedagógica.
temos o seguinte:
Feita a apresentação, o professor formador toma o documento
1º Momento: apresentar gráficos envolvendo informações do
do estagiário 2 (E2) como modelo e orienta aos que ainda não fizeram cotidiano e provocar os alunos para que tentassem elaborar
que o façam e ao que fizeram que reelaborem seus escritos. alguma leitura deles, por exemplo: se eles são capazes de
visualizar o crescimento e decrescimento em gráficos e se
Na medida em que se solicita que o planejamento seja um
conseguem comparar gráficos e estabelecer relações entre
documento escrito, pode-se entendê-lo como uma técnica que eles.
faz com o sujeito estabeleça alguma relação com as verdades
2º Momento: apresentar gráficos e solicitar que os alunos
pedagógicas. colham informações e estabeleçam comparações utilizando
O planejamento tomado como um “bom” planejamento, para porcentagem, neste momento os alunos terão a possibilidade
de relembrar como usar a regra de três e em função delas
o professor formador, que deveria ser tomado como modelo é dividido
necessitarão de operações com números, principalmente
em duas partes. A primeira parte traz o relato de como pretende divisão.
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conduzir sua prática vinculando-se a verdades pedagógicas muito
3º Momento: partindo do processo de divisão serão relembrados
comuns no âmbito escolar como o preocupar-se com as lacunas conceitos como fração e suas operações, a relação de ordem
conceituais dos alunos: entre frações, o surgimento de dízimas periódicas e, por fim,
E2: Bom, eu fiz bem diferente, porque eu ainda não elaborei aproveitaria para explorara existência de números irracionais
todas as aulas, então eu fiz um texto do que eu pretendo e de como estabelecer estimativas para valores de raízes
fazer: “O trabalho a ser desenvolvido com a turma 1B no inexatas.
período da minha prática deveria versar exclusivamente sobre
4º Momento: dado que neste passo, os alunos terão uma
o estudo das funções. Durante o período de observações
compreensão mais abrangente do conceito de números e da
pude constatar que a maioria dos alunos não tem uma
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5 Em fonte Arial 10, espaçamento simples e alinhamento justificado, os excer-


4 Referência ao professor que orienta a disciplina de estágio de docência. tos são assim apresentados para diferirem das citações longas deste artigo.

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relação entre eles, seria reconstruído o conceito de intervalo jogo associada à verdade, uma condição para a produção de
real e suas peculiaridades, principalmente as noções de subjetivações e assujeitamentos, para a constituição de “eus” através
aberto, fechado e continuidade. Além disso, se os alunos se
da produção de crenças e certezas que fixam, mantém e transformam
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mostrarem receptivos poderia mencionar o conceito de infinito
e suas variações. identidades. Assim
[...] é pela proposição da contextualização, para além
5º Momento: Retomaria o conceito de função, imagem dos jogos científicos e teóricos, neste caso do discurso
e domínio e proporia a leitura de gráficos onde os alunos da educação matemática, emergir uma possibilidade
sistematizariam o uso desses conceitos. de constituição do sujeito bom professor, na medida
que a contextualização opera como regra de conduta
6º Momento: Abordaria as funções de 1º e 2º graus, seus gráficos do seu fazer docente.
e suas peculiaridades.
Conforme Bampi (1999) e Santos (2011) essa “pretensão” do
Desse modo, os estagiários, para Lenzi, “[...] ao elaborarem seus discurso da educação matemática, em transformar o conhecimento
planejamentos de ensino, relatam suas intenções e a maneira como matemático em uma ferramenta que possibilitaria a “transformação
iriam abordar os conteúdos na sala de aula, deixando transparecer da sociedade” e a “formação do cidadão”, lida no trecho a seguir,
a identidade com a qual ‘pretendiam se vestir’ em suas práticas de assujeita os estagiários e colocam como verdade única modos
ensino.” (2008, p.75). de como ensinar e aprender matemática. Sem um exercício de
Sobre esse ato de escrever, dessa prática de si dos estagiários, pensamento sobre tais prescrições, eles não se conduzem de maneira
seguem os seguintes excertos: diversa da imposta por tais verdades.
E1: Também quero que os conhecimentos matemáticos sejam E3: Quero trabalhar com eles a “auto-estima intelectual”com a
construídos através da discussão e da participação efetiva dos matemática.[...] Eles acham que não tem condições de fazer
alunos. Pretendo que os alunos sejam motivados na construção vestibular, que uma coisa muito distante deles, que o negócio
do conhecimento defrontando-se com situações palpáveis, deles é ser operário, eles não veem a possibilidade de continuar
onde o conteúdo possa ser aplicado. A minha intenção é a estudando e fazer com que o ensino melhore suas vidas.
de, antes de começar a dar o conteúdo, trazer uma questão
ou uma situação onde aquele conteúdo se faz necessário. Também presente nos ditos do estagiários, prescrições advindas
Quero que eles tentem fazer e, ao não conseguir, queiram da matemática acadêmica como a que destaca que
saber como é que se resolve isso.[...] Não adianta eu pedir
que eles façam alguma coisa que eles não estejam motivados “A Matemática é uma boa escola para o raciocínio
a fazer. Para motivar eu vou trazer questões e desafios que demonstrativo”. Esta afirmativa soa bem familiar —
interessem eles. Eu acho que a partir de situações que eles algumas formas dela são provavelmente quase tão
se interessem em fazer, eu vou provocar uma discussão, um velhas quanto a própria Matemática. De fato, muito
debate, a argumentação e a construção dos conceitos.[...] mais é verdade; Matemática tem quase o mesmo
significado que raciocínio demonstrativo, o qual está
artigos

presente nas Ciências na medida em que os seus

artigos
A sujeição a uma verdade faz do estagiário seu objeto. Frente
conceitos se elevam a um nível lógico-matemático
ao jogo de verdade da ciência pedagógica, o momento em que o suficientemente abstrato e definido. Abaixo deste alto
estagiário traz para si uma prescrição, um preceito moral, vincula-se nível, não há lugar para raciocínio verdadeiramente
aquela verdade através da escrita e passa, a partir dessa fixação, a demonstrativo (o qual não tem lugar, por exemplo,
nas tarefas do dia-a-dia). Ainda assim (é desnecessário
entender-se e a enunciar-se como um bom professor. discutir-se tal ponto, tão amplamente aceito) os
professores de Matemática devem colocar os seus
A importância e a necessidade da contextualização do
alunos, salvo os das classes mais elementares, em
ensino para dar sentido a aprendizagem, como um imperativo do contato com o raciocínio demonstrativo: Faça-os
“bom” professor, segundo Bello (2011)6, se dá através da noção de
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do para o governo dos sujeitos da educação matemática”, no II Congresso Nacio-


nal de Educação Matemática / IX Encontro Regional de Educação Matemática
6 Excerto proferido na palestra “Saberes, Poderes e Práticas escolares: olhan- – Ijuí, em 09 de junho de 2011.

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aprender a demonstrar. [em itálico, grifo do autor e em eles participem da aula, que deem suas sugestões para que,
negrito, grifos meus] (POLYA, 1987, p.6). depois das argumentações e dos debates, se consiga chegar
num consenso do conhecimento que a gente quer construir.
Como pode-se ser lido no seguinte trecho do estagiário3 (E3):
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[...]
E3:O objetivo da aula é demonstrar o teorema de Pitágoras e
justificar as manipulações algébricas envolvidas na resolução Debate, questionamento e argumentação são ideias também
de uma equação. [...] Eles tem uma ideia de que matemática atreladas às verdades discursivas circulantes no meio pedagógico
é resolução, fazer contas, essa demonstração ela é pra mostrar
que a matemática vai bem além disso, de fazer contas, a no sentido de se chegar a uma só verdade, no caso, a verdade do
matemática se preocupe em porque tu podes fazer aquelas construtivismo, uma prescrição desse jogo de verdade dessa tendência
contas. Aqui eu trago uma demonstração. Em algum momento metodológica que dita que o processo pedagógico possui essa única
da vida eles tem que ver isso![...] Eu não estou preocupado
que eles aprendam essa demonstração, eu tô preocupado via a ser percorrida.
em mostrar para eles como é a matemática de verdade,
Essa busca por uma única e não por múltiplas verdades, em meio
a matemática que não é só resolução de contas, que tem
demonstrações. a uma “[...] disseminação das verdades inquestionáveis [...]” (SANTOS,
2011, p.07) é o que preocupa, pois é justamente ao questioná-la, ao
Valoração à escrita e ao rigor matemático são verdades
colocá-la em suspenso que estagiário pode vir a transitar por outras
acadêmicas matemáticas que consideram que o bom professor de
verdades e ter um pensamento de caráter ético, um pensamento
matemática deve trabalhar com seus alunos, aulas pautadas pelo
que problematize as verdades pelas quais está sendo atravessado e
rigor matemático, alertando para as simplificações, os reducionismos
venham a se inscrever em sua constituição docente.
e as tranposições didáticas. Continua E3:
Expressões como “Meu planejamento””, “meus objetivos”,
E3: Aí é que está, aqui na escrita eu sou rigoroso, mas lá, como é
que eu vou colocar tudo isso no quadro, através de exemplos, “quero fazer diferente”, “Quero que eles participem” manifestam
através até da resolução da aplicação da fórmula do Teorema uma relação de si para consigo, entretanto é possível perceber que a
de Pitágoras, eu vou mostrar esse axioma aqui, por exemplo, tu finalidade não é a constituição do “eu”, mas sim da própria verdade
podes somar quantidades iguais do dois lados que não altera
científica.
a igualdade, por isso que um número pode ir de um lado pro
outro [...] Mas eu falei lá em cima, lá em cima tá escrito. Mas Reconhecer o planejamento como algo seu é um primeiro passo
quando temos um triângulo retângulo e queremos determinar no caminho para uma constituição singular, mas não é suficiente. É
o valor de x, vamos utilizar o Teorema de Pitágoras. Mas o que
garante cada etapa da resolução desta equação? Aí é que preciso ainda uma ação, um exercício de pensamento para que o
vem o axioma, entendeu? Ali tá o exemplo 52 = x2 + 32, eu quero planejamento venha a receber os resultados de uma reflexão ética.
determinar o valor de x, aí tem as etapas, mas o que justifica
Realizar um planejamento específico, ao invés de um geral,
e dá respaldo teórico, que valida cada uma dessas etapas?
é uma prática que possivelmente possibilitaria por em suspenso os
artigos

artigos
A repetição das verdades do discurso pedagógico construtivista discursos pedagógicos até então reconhecidos como verdadeiros,
demonstra o assujeitamento do estagiário à uma verdade, na qual o resultando em movimentações éticas, em outras formas de conduzir-
indivíduo estabelece sua conduta a partir de uma sujeição a ela. A se, uma possibilidade de constituir-se singularmente.
ativação dessa verdade é fixada no estagiário através da prática da
Num primeiro momento, assujeitado à questão do saber e do
escrita do seu plano de aula:
poder, o planejamento é uma prática. Contudo, há um espaço para a
E1: Meu planejamento é bem geral. Coloquei meus objetivos: De possibilidade desse exercício de pensamento. Assim, o planejamento
que os alunos tenham possibilidade de construir conhecimento
pode ser um lugar de produção de condutas éticas, de produção de
num ambiente de debate, questionamento e construção de
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argumentação. Ou seja, quero fazer diferente do que está sentidos para si, um espaço para um exercício de pensamento, pois se
sendo feito em sala de aula com aquela turma. Quero que pensa sobre ações que serão realizadas, sobre as posturas que serão

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tomadas, de modos de agir singulares. Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.


AURICH, Grace Da Ré; LÓPEZ BELLO, Samuel Edmundo. Jogos de
verdade na constituição do bom professor de matemática. In:
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CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, II / ENCONTRO
REGIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, IX, 2011, Ijuí. Anais do
FINAL DE JOGO (?): DOS MODOS DE SER PROFESSOR DE MATEMÁTICA
Congresso Nacional de Educação Matemática. Ijuí: UNIJUÍ, 2011. p.1-
A fim de mostrar como um jogo de verdade pode vir a tornar- 12.
se um jogo ético, discutiu-se a constituição do bom professor de BAMPI, Lisete. Efeitos de poder e verdade do discurso da educação
matemática como efeito de um código de conduta moral e a matemática. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v.24, n.1,
jan./jun. 1999.
classificação de uma boa prática pedagógica como sendo vinculada
a medida do atendimento de tais prescrições e verdades. BELLO, Samuel Edmundo. Discursividades e práticas analíticas: (re)
inventando estratégias investigativas em educação matemática.
Há desejos na intencionalidade dos discursos, incitados nos In: Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino. 15, 2010, Belo
estagiários, de igualarem-se aos modelos de condutas, entendidos Horizonte. Anais. CD-ROM.
como sendo modos de ser e de agir de bons professores de BELLO, Samuel Edmundo. Saberes, Poderes e Práticas Escolares:
matemática. Entendeu-se que nesse espaço, entre o estagiário e a olhando para o governo dos sujeitos da Educação Matemática.
Ijuí: UNIJUÍ, 2011. (Palestra no II Congresso Nacional de Educação
verdade que lhe provoca a tornar-se um bom professor, encontram- Matemática / IX Encontro Regional de Educação Matemática).
se as possibilidades de jogar com as regras, com as prescrições morais
BIRMAN, J. Jogando com a verdade: uma leitura de Foucault. PHISIS:
que lhe são ofertadas para que possam, ao munir-se dessas verdades, Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 12(2):301-324, 2002.
cuidarem-se de si mesmos, respondendo eticamente ao constituírem-
CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. As teias da razão: Wittgenstein e a crise
se, tornando-se docentes éticos matemáticos com possibilidades da racionalidade moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2004.
estéticas. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Trad. de Luiz Felipe
Essa (re)constituição ética com possibilidades estéticas que Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
está em constante re/de/trans/formação está longe de ser um novo FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática de liberdade.
modelo a ser proposto. Mais do que uma relação causa-efeito, se In: Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política. MOTTA, Manoel Barros
da (org). 2 ed. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio
trata de uma possibilidade de postura adotada pelo sujeito de efetuar de Janeiro: Forense Universitária, 2006a. p.264-287.
combinações, de modificar e remodelar sua conduta, de compor
FOUCAULT, Michel. O Uso dos prazeres e as técnicas de si. In: Ditos
modos outros de ser professor na medida em que exercita a sua relação e escritos V: Ética, sexualidade, política. MOTTA, Manoel Barros da
com as verdades dos discursos, convertendo suas regras, exercendo, (org). 2 ed. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de
assim, uma prática de liberdade e produzindo outras possibilidades Janeiro: Forense Universitária, 2006b. p.192-217.
artigos

artigos
de ser docente em seus modos de conduzir-se, encontrando formas FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O Uso dos Prazeres. Trad.
de (re)inventar-se enquanto professor em meio aos jogos de verdade de Maria Thereza da Costa Albuquerque. 10.ed. Rio de Janeiro: Graal,
1984.
que se encontra.
FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: MACHADO, Roberto. (Org.)
Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2007. p. 1-14.
REFERÊNCIAS LENZI, Giovana da Silva. Prática de Ensino em Educação Matemática:
a constituição das práticas pedagógicas de futuros professores de
AURICH, Grace Da Ré. Jogos de verdade na constituição do bom
matemática. Porto Alegre, 2008. 106f. + Anexos. Dissertação (Mestrado
professor de matemática. Porto Alegre, 2011. 117f. + Anexos + DVD.
em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação,
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Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação


Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio
Porto Alegre, 2008.

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POLYA, George. Dez Mandamentos para Professores. Revista do


Professor de Matemática, São Paulo, nº 10, p. 2-10, 1987.
SANTOS, Suelen Assunção. Formação de Professores de Matemática
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e a Filosofia da Diferença.  In: XIII Inter American Conference on
Mathematics Education, 2011, Recife. Anais da XIII Inter American
Conference on Mathematics Education. Recife : EDUMATEC-UFPE,
2011. p. 1-12.
SILVA, Tomaz Tadeu. O adeus às metanarrativas educacionais. In. SILVA,
Tomaz Tadeu (Org.) O sujeito da Educação: estudos foucaultianos. 2
ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 1994. p. 247-258.
WEYNE, P. O último Foucault e sua moral. Trad. De Wanderson Flor do
Nascimento. Critique. Paris, v. XLIL, n. 471-472, p. 9333-941,1985.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. de Marcos G.
Nontagnoli. Petrópolis: Vozes, 2008.

Artigo recebido em 10/01/2018

Aprovado em 12/03/2018
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Foto: Wagner Ferraz
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Artigo 3
TRAÇANDO CAMINHOS DANÇANTES NAS RUAS DE PELOTAS
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Drª. Carmen Anita Hoffmann, UFPel, Cruz Alta/RS1
Me. Débora Souto Allemand, UFPel, Pelotas/RS2

Resumo: O presente texto refere-se ao projeto de extensão Caminhos


da Dança na Rua, do Curso de Dança-licenciatura da Universidade
Federal de Pelotas. O tema central do trabalho é o de propor diálogos
entre a cena de dança e o cotidiano da cidade para um grupo de
participantes chamados a partir de divulgação nas redes sociais.

TRAÇANDO
Como aporte teórico buscou-se subsídios em Jacques (2002), Rancière
(2005), Spolin (2005), Strazzacappa (2012), entre outros. Os encontros
acontecem em “espaços seguros” e “espaços de risco” (FREITAS,
2011), refletindo em diferentes poéticas e percepções da cidade de

CAMINHOS
Pelotas. A comunidade se envolve direta e indiretamente no processo
de experimentação na rua, papéis de espectador e artista se tornam
borrados e os participantes têm encontrado outras danças em si
mesmos.

DANÇANTES
Palavras-chave: Cidade. Dança. Arte de Rua. Pelotas. Performance.

NAS RUAS DE MAPPING DANCE WAYS IN PELOTAS’ STREETS


Abstract: This text is about the Caminhos da Dança na Rua extension

PELOTAS
project, from Universidade Federal de Pelotas Dance Course. The work
main reason is about dialogues between the dance scene and the
city daily to a group guest through social networks advertising. To do
the text’s bibliography, we used the autors: Jacques (2002), Rancière
(2005), Spolin (2005), Strazzacappa (2012), and others. The meetings
artigos

artigos
1 Professora do Curso de Dança-licenciatura da Universidade Federal de Pe-
lotas – UFPel. Arquiteta e Urbanista. Doutora em História - PUCRS. Líder do grupo de
pesquisa Observatório de Culturas Populares e membro do Grupo Dança e Educa-
ção/ Cidade+Contemporaneidade UFPel. Coordenadora da Câmara de Extensão
do Centro de Artes e coordenadora adjunta do NUFOLK - UFPel. Criadora e cola-
boradora do Projeto de Extensão “Caminhos da Dança na Rua”, coordenadora do
projeto de extensão Festival Internacional de Folclore e Artes Populares, do projeto
de pesquisa Aspectos Históricos da Dança no RS e do projeto de ensino Valise Cultu-
ral . carminhalese@yahoo.com.br.
2 Professora substituta no curso de Dança-Licenciatura UFPel. Arquiteta e ur-
banista pela UFPel. Licenciada em Dança pela UFPel. Mestre em Arquitetura e Urba-
nismo pela UFPel. Trabalha com intervenções urbanas, relacionando dança e cida-
C3

de. Vice-líder do grupo de pesquisa Cidade+Contemporaneidade. Coordenadora


do Projeto de Extensão “Caminhos da Dança na Rua”. deborallemand@hotmail.
com.

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happens in “security spaces” and “risk spaces” (FREITAS, 2011), caus- ocasionando uma diversidade de demandas e estéticas (figura 1).
ing different poetics and perceptions of Pelotas’ city. The community Assim, a rua foi e é capaz de unir esses dissensos. Os participantes
is involved directly and indirectly in the street experimentation process,
tinham liberdade, também, para propor sobre o que queriam falar,
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role of viewer and artist are mixed and the participants are finding oth-
er dances in himselves. onde queriam ir e seus desejos e necessidades de expressão.
Key-words: City. Dance. Street Art. Pelotas. Performance.

Em virtude do encontro e compartilhamento de duas


arquitetas-bailarinas ou bailarinas-arquitetas, ambas com interesse na
interdisciplinaridade das áreas, nasceu o projeto Caminhos da Dança
na Rua que, como o próprio nome já indica, é um espaço-tempo que
contempla as inquietações e desejos acerca da relação poética das
pessoas entre si e com o espaço público – arquitetônico e urbano.
O objetivo da proposta, sobretudo, é o de experimentar movimentos
corporais a partir do/e com o espaço urbano.

A cidade contemporânea, em geral, é um lugar de mudança


constante e, por isto, de grande potência para a criação artística,
abrindo possibilidades de diferentes sensações e movimentos e
ampliando as formas de fazer e compreender dança. Assim, diversos
grupos de arte utilizam a rua como espaço de afirmação política e
buscam na cidade inspiração para suas obras. Além disso, a arte de
rua faz com que as pessoas percebam sua cidade, que geralmente é
desconhecida pelos cidadãos, fomentando uma participação ativa Figura 1: Grupo com diferentes cunhos: político e estético.
na vida pública das pessoas. Fotos: Carmen Hoffmann e Débora Allemand, 2015.

A ginga e a dança parecem diluir os espaços,


transformando o espaço em movimento, pois
temporalizam o espaço. A arte do tempo, a música, e As ações são trabalhadas por meio de experimentações
a arte do espaço, a arquitetura, se casam na dança,
individuais e contato-improvisação4. Dessa forma, durante o
arte do movimento (JACQUES, 2002, p. 61).
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andamento do projeto, o próprio grupo e a rua é quem dão “pistas”
A partir da divulgação por meio das redes sociais, atendendo para as performances, unindo os desejos do grupo e atentando ao que
ao chamado por interessados(as) em parkour3, performance e os espaços utilizados sugerem. Ou seja, o processo e a resposta que a
intervenções urbanas, um grupo corporalmente diverso se formou. cidade dá aos corpos definem os próximos passos. Isso faz com que se
Nessa congruência, alguns queriam movimentos mais artísticos,
plásticos, estéticos, enquanto que outros queriam movimentos com
4 Contato-improvisação é uma técnica de dança criada por Steve Paxton na
maior cunho político, que discutissem sobre o espaço e a sociedade, década de 1970. Consiste em criar movimentos a partir do contato entre dois cor-
pos, utilizando de improvisação, equilíbrio, peso e confiança entre os “contatistas”.
O objetivo não era pensar na estética do movimento, mas fazer o que era possível.
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3 Parkour é um esporte urbano, cujo princípio é mover-se de um ponto a outro Além disso, era uma forma de democratizar a dança, “qualquer um poderia come-
o mais rápido e eficientemente possível, usando principalmente as habilidades do çar a praticar quase imediatamente, pois não havia um vocabulário a aprender
corpo humano.  como há nas técnicas de dança moderna” (LEITE, 2005, p. 94).

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desvende e se invente uma Pelotas que surge a partir do contato do Os espaços de sala de aula, com piso adequado para práticas
corpo dos bailarinos com o corpo da Arquitetura, onde um transforma de dança que utilizam o chão, possibilitam uma breve experimentação
o outro constantemente, atingindo, inevitavelmente, os transeuntes5 das técnicas mais voltadas à educação somática7. Visou-se
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que passam pela rua. trabalhar com alavancas corporais, respiração, trabalho de queda
e recuperação, contato e improvisação, atenção aos estímulos etc.
Esse tipo de técnica é o que mais se adequa ao projeto no momento,
Os Corpos os Espaços
por possibilitar a consciência corporal dos participantes.
O grupo apresenta uma pré-disposição favorável às propostas,
Já o espaço da cidade é, para nós, um lugar “desconhecido”
o que facilita o cuidado entre seus integrantes, já que a rua é um
e, para conhecê-lo, é necessária uma observação atenta sobre ele
local de grande exposição e de difícil concentração. Por isso, são
e as pessoas e atividades que nele vivem e acontecem. Um lugar de
trabalhados jogos6 com ênfase na concentração e na percepção
experimentação, de abertura para que o movimento surja a partir
corporal dos estímulos que a rua provoca nos sujeitos.
da relação do corpo no espaço e não a partir de concepções de
Atualmente, os encontros são mesclados entre “espaços movimentos prévios àquele local. Um lugar que muda constantemente
seguros” – sala de aula – e “espaços de risco” – cidade (FREITAS, 2011). e, por isso, a “preparação” também é estar atento às mudanças. O
Nesse processo, os “corpos disponíveis”, com e sem experiências exercício viewpoints8 foi um dos que auxiliou o grupo nessa observação,
intrinsecamente ligadas às artes, participam tanto dos laboratórios estimulando o movimento a partir do outro e do espaço (figura 3). As
de experimentações corporais (principalmente com preparação movimentações trabalhadas, neste caso, surgiram, principalmente,
corporal), improvisações e jogos, quanto das saídas a campo do repertório de cada um.
desempenhadas nas ruas de Pelotas (figura 2).
artigos

artigos
Figura 2: Espaço seguro e espaço de risco: sala de aula e rua. Fotos: Débora Allemand, 2015.

7 A educação somática vem sendo utilizada por alguns artistas da dança


para o tratamento e prevenção de traumas e lesões. Ela é usada também por ser
5 Aqueles que estão de passagem na cidade, que transitam de um lugar a uma técnica capaz de possibilitar a ampliação das capacidades expressivas dos
outro. praticantes, desenvolvendo a qualidade da presença cênica e trazendo a cons-
ciência do movimento. O principal objetivo da educação somática é fazer emergir
6 No jogo, cria-se um ambiente no qual as pessoas sintam-se livres para ex- formas e posturas mais eficazes, ou seja, máximo de aproveitamento com o mínimo
perimentar, a partir de uma atividade que faça a espontaneidade acontecer. Essa de esforço (STRAZZACAPPA, 2012).
experiência acontece através do envolvimento do grupo no próprio jogo, que é
capaz de desenvolver técnicas e habilidades próprias para o jogo através do ato 8 Viewpoints é uma técnica de improvisação e composição criada por Anne
de jogar. Durante o jogo, o jogador é livre para inventar soluções para qualquer pro- Bogart e Tina Landau. “A base dessa técnica é a decomposição da percepção,
blema que o jogo apresente, desde que seja para atingir o objetivo e que obedeça análise e construção de significados, em cena, pelo movimento – portanto, pela
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as regras estipuladas anteriormente. Os jogadores tornam-se ágeis, alertas, prontos relação do corpo com o espaço e com o tempo - a partir de nove perspectivas:
e desejosos de novos lances ao responderem aos diversos acontecimentos aciden- tempo, duração, resposta cinestésica, repetição, forma, gesto, arquitetura, relação
tais simultaneamente (SPOLIN, 2005). espacial e topografia” (FERREIRA; FALKEMBACH, 2012, p. 71).

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Figura 3: Realização do exercício Viewpoints. Foto: Geovana de Carvalho e
Débora Allemand, 2015.

Percebe-se uma linha tênue entre os estados cotidiano e


extracotidiano (BARBA e SAVARESE, 1995) durante as performances,
fazendo com que a vida esteja muito presente nos exercícios, já que se Figura 4: Performances durante o ano de 2015, Pelotas. Fotos: Débora Allemand e
Carmen Hoffmann, 2015.
experimentam espaços onde passam pessoas a todo o tempo e, muitas
vezes, se realizam paradas para conversar com algum conhecido
ou para falar com alguém que tenha perguntado o que estava
A ideia de que na rua sempre se está “apresentando” algo não
acontecendo. Por isso, a ideia é justamente criar uma concentração
tem definido uma produção e sim experimentações, que são assistidas
que não se feche em si mesmo, mas sim uma concentração que se
por algumas pessoas dependendo do lugar onde se performa (figura
adeque a responder aos estímulos do entorno ao mesmo tempo em
5). Percebe-se que os encontros que aconteceram no bairro Porto,
que se segue em estado extracotidiano.
próximo à Universidade Federal, exigiram maior quantidade de
registro de vídeo e foto, já que poucas pessoas viram o que estava
acontecendo, para que o material registrado pudesse vir a ser editado
Relatos... (Per)formando, analisando e (trans)formando mais tarde. Nos espaços mais centrais da cidade, onde se tinha um
A partir do uso dos figurinos no espaço da rua, surgiram ideias público maior, as câmeras muitas vezes “denunciavam” que algo
artigos

artigos
que relacionavam o figurino com o espaço, onde o tecido era o artístico estava acontecendo, já condicionando as pessoas a pensar
motivador para a criação do movimento. Além disso outros artefatos, de certa forma ou confortando-os com aquele evento.
advindos das ações cotidianas dos espaços públicos, como caixas
de embalagens das mercadorias, animais que circulam pela cidade,
natureza urbana, entre outros, provocam movimentos diversos e
compõem de forma inusitada a cena que se estabelece no momento
das ações artísticas (figura 4).
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Percebo contrastes na cidade. Ao mesmo tempo em


que vejo pessoas correndo sem olhar para os lados (e
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para a frente e para trás), ou olhando apenas para o
celular e tropeçando nas calçadas, percebo também
pessoas curiosas que sentam no banco da praça e
observam a cidade. Esses contrastes, pelo que percebi
até então, estão muito relacionados com os lugares
frequentados. No calçadão, a correria é evidente, mas
na praça percebi muita gente curiosa com as nossas
atividades.9

Entretanto, hoje vivemos em espaços previsíveis, sem a


possibilidade da surpresa e da experiência. Paradoxalmente, vivemos
em meio à multidão de habitantes das cidades e, ao mesmo tempo,
não temos troca com o outro, porque não temos tempo de parar para
pensar, parar para sentir (BONDÍA, 2002). O espaço público tornou-
se principalmente espaço de circulação e perdeu seu caráter de
socialização (SOUZA, 2011).

Os condomínios fechados e os shoppings acarretam obstáculos


na cidade e há o aumento do convívio só com os iguais. Criam-se
guetos homogêneos. E essa falta de uso do espaço público despolitiza
a cidade, pois é no dissenso, segundo Rancière (2005), que está o
cerne da política10. Um exemplo que ocorreu em Pelotas, é que muitos
Figura 5: Olhares atentos das crianças durante a Feira do Livro, na Praça Coronel reagiram aos nossos movimentos incomuns falando frases como: “tô
Pedro Osório. Fotos: Débora Allemand, 2015. gostando, mas não entendi” ou, “isso é uma palhaçada”. Para o
autor, um lugar onde falta política, é um lugar que sobra polícia, onde
se visa excluir tudo o que é diferente e regular a ordem.
Durante o ano de 2015 surgiram muitas leituras a respeito da
dinâmica do espaço. Em cada local que eram realizados encontros, No Porto de Pelotas, vimos “vidros quebrados, pichação, lugares
as pessoas se comportavam de uma maneira e isso influenciava o abandonados” (Geovana de Carvalho)11, lugares que são barreiras,
grupo de formas diferentes, do mesmo modo que modificava os
artigos

artigos
participantes da dinâmica dessa estrutura. Corpo e cidade estão em
9 Na linha de raciocínio de Halbwachs (2013) é que se optou por citar depoi-
relação constante e para pensar sobre corpo é necessário pensá-lo mentos dos participantes no decorrer do texto do projeto e estes constam em itálico
junto com o contexto em que ele está imerso, pois esses dois estão em para diferenciar das citações bibliográficas. Ele defende a ideia da memória tratar-
se de um “vestígio”, um fato documentado e, no caso aqui, através de depoimen-
constante troca. Por isso, Miranda (2008), sugere que o corpo do nosso tos orais de alguns de seus protagonistas mais significativos. Daí que a escolha pela
tempo não é mais um corpo próprio e que se tornou corpo-espaço, oralidade entra como elemento-chave no desenvolvimento do registro, uma vez
que a diversidade de seus protagonistas resulta em diferentes vestígios de memória,
em eterno vir a ser. acompanhando a diversidade das experiências vividas nas diferentes situações, ca-
racterizando as interpelações discursivas individuais e coletivas do grupo.
Uma das leituras do espaço foi de Helena Lessa, sobre os espaços
10 A política é “a possibilidade de opor um mundo comum ao outro” (RAN-
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experimentados nas aulas: CIÈRE, 2005).


11 Escrita de uma participante.

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que não se comunicam com o espaço público (figura 6). E o que isso com o que está acontecendo. Uma das formas de aproximação do
diz sobre a política da cidade? A arte, mesmo sem querer, entra como público foi a realização de ações engraçadas e lúdicas (figura 7).
uma “ampliadora” das características e relações que acontecem no Estas proporcionaram às pessoas que passavam “entrarem no jogo” e
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espaço urbano. A proposta era pensar em fazer arte com a cidade e interagirem com os participantes.
não na cidade, por isso, muitas das ações realizadas trouxeram à tona
características do espaço onde estavam inseridas.

Figura 6: Paredes, muros e barreiras no Porto de Pelotas. Foto: Geovana Carvalho,


2015.

Possivelmente, o individualismo cada vez maior dos cidadãos,


“cada um com sua luz esquivando-se pelas arestas frias, protegendo
a si mesmo da ordem em desuso que os ronda” (Sarah Leão)12, causa
Figura 7: Ações lúdicas a partir do movimento dos cachorros na rua. Fotos: Débora
a dificuldade da relação com o diverso. As pessoas, na sua rotina
Allemand, 2015.
inalterada, cada vez menos olham para o lado, estão impregnadas
do trabalho e
se mostram indignadas com o fazer artístico, por este “É quando o passo vira dança que o espaço em movimento
artigos

artigos
não ter caráter produtivo. Revelam, assim, o incômodo pode ser apreendido. A compreensão desse tipo de espaço se faz
com sua própria situação de sujeitado pelo sistema
no momento em que verbalmente propõe a aguda através do corpo, através da ginga, uma vez que o próprio espaço é
agressividade com os artistas, que lhes parecem gingado” (JACQUES, 2002, p. 63). Esta autora fala da favela, um lugar
“vagabundos” (ILDEFONSO, 2012, p. 83).
diverso do traçado xadrez da cidade de Pelotas, mas, através das falas
Assim, a arte de rua deve ter o cuidado em não afastar as do grupo, é possível compreender que os espaços por onde passamos
pessoas. Ela pode ser uma maneira de atentar para o espaço, mas não também têm movimento, tanto é que cada um encontrou e inventou
rompendo com o que as pessoas estão acostumadas e não fazendo uma Pelotas diferente. Mas o espaço só se abre ao movimento para
com que as pessoas se sintam oprimidas, mas que fiquem curiosas quem o percorre com todos os sentidos, para quem está aberto à
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transformação corporal pelo espaço:


12 Escrita de uma participante.

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Só não pode cair no vão o cheiro das folhas no chão, Assim, a comunidade é envolvida direta e indiretamente no
a textura das paredes descascadas, o sabor das ruas
molhadas. Somos seres galopantes, fragmentos de processo de experimentação na rua. Muitos questionam o que
saberes. Troca o toque e reutiliza o gesto em cada está acontecendo, outros até “entram na dança” e conversam
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encaixe. Em cada fresta de corpo desocupado. Pode
corporalmente com os participantes e alguns somente observam os
se preencher com o vento ou com o fato (Sarah Leão).13
caminhos que a dança toma. Mas papéis de espectador e artista ficam
Então, a cidade proporciona sensações que não só passam borrados, misturados. O simples fato de ter alguém vivenciando a rua
pelo corpo como o constituem. Como descrever o sol que toca de modos não habituais é, em si, uma experiência extracotidiana, com
nossa pele quando estamos de olhos vendados? Como descrever o potencial de fazer as pessoas sentirem e perceberem outras vivências
vento, que nos desestabiliza e influencia diretamente no nosso corpo? poéticas, estimulando a fruição em arte, pela estranheza arrancando-
Podemos ir até o limite, deixar o vento nos empurrar até cairmos no as de um possível estado de inércia. Então, experimentantes e
chão, podemos tirar uma perna do chão e brincar com o desequilíbrio passantes criam, fazem e refazem conexões a todo momento.
ou não, contraímos o abdômen e vamos em frente, enfrentamos.
Pode-se pensar que a arte na rua nem sempre aproxima o
As aulas na rua ou na sala nos fazem ter discussões sobre
essa Pelotas muitas vezes esquecida, abandonada, público do artista, nem sempre forma público, embora estabeleça uma
mas que respira arte, cultura e muitos movimentos. Eu relação diferenciada com os transeuntes da cidade, dialogando de
sempre soube dessa parte, mas poder sentir, tocar e
estar na rua está fazendo com que minhas memórias maneira diversa da relação artista-público do teatro. A dança na rua
corporais se aflorem e eu tenha cada vez mais tem que ter um cuidado muito maior para não afastar as pessoas, não
curiosidade de conhecer outros cantos e ventos dela
(Karen Rodrigues).14
criar uma barreira que rompe com o cotidiano das pessoas e sim criar
uma linha de fuga a partir daquilo que elas estão acostumadas. Foi
possível perceber que as ações engraçadas e lúdicas proporcionaram
Considerações às pessoas que passavam se aproximarem mais da proposta.

Sabe-se que a proposta de intervenção urbana não é inovadora, Na maior parte dos encontros, se buscou locais possíveis de se
já que desde 1950 muitos movimentos de arte lutam pelo seu espaço relacionar com mais pessoas. Locais mais centrais, mais povoados.
na cidade, discutindo e reinventando o que é coreografia e o que é Talvez por uma necessidade de divulgar a dança, talvez por uma
dança. Entretanto, para o curso de Dança da UFPel, o projeto veio necessidade de se relacionar com o espaço vivo da cidade, o espaço
preencher uma lacuna, onde foi possível reunir artistas de diversas que se modifica a cada momento em que uma pessoa diferente
áreas e com diferentes objetivos no contato do corpo com a rua, passa.
também rediscutindo o que é dança e o que é coreografia.
A conexão entre o grupo participante, independente da
artigos

artigos
Entende-se que o mais importante para o grupo seja produzir quantidade de pessoas, permitiu uma exploração abrangente, do
movimentos que tenham relação com o espaço. Esse espaço corpo que dança em movimento com arte na rua. Os participantes
por vezes é físico e por vezes é uma relação que acontece na estão motivados e envolvidos com o projeto ao ponto de buscarem
cidade, podem ser as pessoas que passam na rua ou as atividades possibilidades de participação em eventos, da mesma natureza, já
que estão acontecendo ali. Estímulos diversos dos que se têm nos consolidados em outras ruas de outras cidades e de outros Estados.
espaços tradicionais (teatros, salas de espetáculo) proporcionam aos
As ações caracterizam-se como desdobramentos desafiantes
participantes encontrarem outras danças em si mesmos.
das práticas do Curso de Dança Licenciatura, pois sugerem algo que
se estende para além das “fronteiras” do curso, além dos espaços
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13 Escrita de uma participante.


cênicos tradicionais, abrindo espaços para que a curiosidade alheia
14 Escrita de uma participante.

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sirva-se dos conhecimentos que ali emergem, despertando interesses, LEITE, Fernanda Hübner de Carvalho. Contato improvisação (contact
alimentando inclinações e simpatias. Ou seja, existe para difundir improvisation): um diálogo em dança. Revista Movimento, v. 11, n.
saberes e experiências, até então, novas. 2. Porto Alegre: 2005. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/Movimento/
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article/view/2870. Acesso em 14/ago/2016.
Por fim, seja pela curiosidade ou pelo incômodo, o Caminhos
tem se mostrado e mostrado outros modos de dança possíveis, que MIRANDA, Regina. Corpo-espaço: aspectos de uma geofilosofia do
o tempo de (re)descobrimento de si e do mundo não precisam ficar movimento. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
velados. O projeto disponibiliza um acervo visual e audiovisual que
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São
pode ser acessado na página de rede social: < https://www.facebook.
Paulo: EXO experimental org./ Editora 34, 2005.
com/caminhosdarua/?fref=ts>.
SOUZA, Gabriel Girnos Elias de. Territórios Estéticos: a experiência do
Projeto Arte/Cidade em São Paulo (1994/2002). São Paulo: Annablume;
Referências Fapesp, 2011.
BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nicola. A arte Secreta do Ator. São Paulo, SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. 5. Ed. São Paulo: Perspectiva,
Campinas: Hucitec/UNICAMP, 1995.
2005.
BONDÍA, Jorge Larrosa.  Notas sobre a experiência e o saber de
STRAZZACAPPA, Márcia. Educação somática e artes cênicas: princípios
experiência.  Revista Brasileira de Educação. 2002, n.19, pp. 20-28.
e aplicações. Campinas, SP: Papirus, 2012.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf>.
Acesso em 14/ago/2016.
Artigo recebido em 20/08/2016
FERREIRA, Taís; FALKEMBACH, Maria Fonseca. Teatro e Dança nos anos
iniciais. Porto Alegre: Mediação, 2012. Aprovado em 09/01/2018

FREITAS, Vanilto Alves de. Para Uma Cidade Habitar Um Corpo:


Proposições de Uso do Espaço Urbano e seus Acréscimos na
Formação do Artista Cênico. Dissertação de Mestrado Programa de
Pós-graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia.
Uberlândia: UFU, 2011.

HALBAWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2ª Ed. São Paulo:


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artigos
Centauro, 2013.

ILDEFONSO, Élder Sereni. Estudos Cênicos Híbridos E O Corpo Em


[Des]Territorialização No Processo De Urbanização. Dissertação de
Mestrado Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade
Estadual Paulista. São Paulo: UNESP, 2012.

JACQUES, Paola Berenstein. Quando o Passo vira Dança. In: VARELLA,


Drauzio; BERTAZZO, Ivaldo; JACQUES, Paola. Maré, Vida na Favela. Rio
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de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

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artigos

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Foto: Wagner Ferraz
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Artigo 4
A CIÊNCIA DA VIDA E A NATURALIZAÇÃO DA HISTÓRIA:
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A CONSTITUIÇÃO DA BIOLOGIA A PARTIR DA PERSPECTIVA
DE MICHEL FOUCAULT

A CIÊNCIA Me. André Morando, UFRGS, Porto Alegre/RS1

DA VIDA E A
Drª. Rochele de Quadros Loguercio, UFRGS, Porto Alegre/RS2
Drª. Aline Ferraz da Silva, IFRS, Porto Alegre/RS3

NATURALIZAÇÃO RESUMO: Neste texto, utilizamos o pensamento de Michel Foucault para


procurar conhecer a influência da linguagem e das relações de saber
e poder que constituíram a Biologia como ciência da vida. Colocamos

DA HISTÓRIA: A
em análise a relação entre conhecimento científico e a produção de
verdades, sobretudo àquelas que dizem respeito a construção do que
nesse tempo, conhecemos como Biologia . Consideramos por fim, que
a Biologia é escrita e inscrita pelo social, fazendo da natureza ou o

CONSTITUIÇÃO
conceito de natural uma produção cultural.

PALAVRAS-CHAVE: Ciências da vida. Natural. Foucault. Biologia

DA BIOLOGIA
A PARTIR DA
THE SCIENCE OF LIFE AND THE NATURALIZATION OF HISTORY: THE
CONSTITUTION OF BIOLOGY OF MICHEL FOUCAULT’S PERSPECTIVE

ABSTRACT: In this text, we use the thought of Michel Foucault to seek to

PERSPECTIVA
know the influence of language and relations of knowledge and pow-
er that constituted the Biology as a science of life. We submitted for
review the relationship between scientific knowledge and production

DE MICHEL
of truths, especially those that relate to the construction of that at this
artigos

artigos
time, we know as biology. We consider that the Biology is written and
recorded by social, making the nature or the natural cultural produc-
tion concept.

FOUCAULT KEY-WORDS: Science of life. Natural. Foucault. Biology

1 Mestrando em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul.
2 Professora Doutora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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3 Professora Doutora do Instituto Federal do Rio Grande do Sul

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A História Natural(izada) O olhar de hoje, bestializa a mitologia de Aldrovandi, mas foi a


crença na verdade da ciência e a posição ocupada por ele numa
rede de saber e poder, que manteve o seu discurso no campo do
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O pensamento sobre o ser humano nas culturas ocidentais en-
verdadeiro. O regime de verdades produz discursos que narram e mol-
tre o século XVII e XVIII produziam o corpo e a alma como um espe-
dam o espaço social, elencando as técnicas e procedimentos que
lhamento da natureza. Nesse sentido o homem mantinha-se ligado às
são tidos como referenciais para a obtenção da verdade, e o estatu-
supostas forças superiores e celestiais, em uma relação de natureza
to para determinar o que é legítimo e ocupa um lugar de poder para
ativa e o corpo humano passivo. Portanto, havia uma ligação vital en-
narrar o que será aceito como verdadeiro (REVEL, 2005). Dentre as
tre o macrocosmo universal e o microcosmo limitado ao corpo, cujo
técnicas que padronizam os procedimentos para se chegar à verda-
seus humores fluiriam de acordo com os ventos, as tempestades, o
de, a ciência vem ao longo da história, aprimorando seus protocolos
frio e o calor. As movimentações do universo, ocasionadas por um
para produzir conhecimento, concebido por inúmeras culturas como
suposto poder celestial repercutiam na fisiologia humana, mantendo
prova irrefutável da verdade.
a harmonia ou a desordem do corpo e dessa forma, o mal ou o bem
-estar do corpo e da alma estavam, por exemplo, relacionadas com O saber científico entre os séculos XVI e XVII, por meio do jogo
as mudanças no clima (FOUCAULT, 2000). de similitudes sobrepunha falar dos signos e evidenciar as semelhan-
ças e descobrir as coisas que são semelhantes. Dessa forma, se esta-
Nesse momento hitórico, entre os séculos XVI e XVII, o saber
belecia uma descontinuidade, uma fenda entre o que pode ser visto
científico estava em decifrar os códigos divinos que produziam as si-
do signo e o que ele indica. Por isso, nesse período da história, o saber
militudes, buscando descobrir com o que se assemelham as leis dos
cientifico abria um campo infinito para o seu trabalho, pois uma seme-
signos. Ulisse Aldrovandi, um naturalista italiano de grande destaque
lhança estabelece outra que irá ligar-se a uma segunda produzindo
na época, produzia seres a partir das lendas e do que os viajantes e os
ligações infinitas de analogias mantendo o saber científico atrelado a
antigos falavam. Por meio dos seus bestiários, materializou seres a par-
um imensurável número de confirmações dessas analogias. De certa
tir das palavras que os ligavam ao mundo (fig.1). A forma de constituir
forma, será um saber que não permite o novo, mas sim a adição de
a verdade desses seres passava pelo saber narrativo, cuja riqueza de
conhecimento nas ligações anteriores. Podemos pensar que é nesse
detalhes fortalecia e delineava a existência destes. Assim, Aldrovandi
sentido, que está a falta de limites do microcosmo, que caracteriza-
narrava histórias que misturavam a anatomia aos alimentos que estes
va o saber científico do século XVI e XVII, que garantia numa escala
seres consumiam e às substâncias que poderiam ser retiradas deles a
maior, a possibilidade de confirmar as semelhanças (FOUCAULT, 2000).
fim de preparar possíveis medicamentos.
Este saber foi sendo moldado em relações de poder e estra-
tégias econômicas, voltadas para a agricultura, a agronomia, e aos
artigos

artigos
conhecimentos sobre as plantas e animais exóticos, sobretudo em
meados do século XVIII. O conhecimento científico nesse período da
história, não mais se baseava nas semelhanças, no cosmos e no espe-
lhamento entre macro e microcosmo, mas sim passava a categorizar,
classificar e nomear a natureza pela linguagem, fazendo da natureza
bbb b aquilo que as palavras conseguiam descrever (FOUCAULT, 2000).
Fig. 1. Ilustrações de Ulisse Aldrovandi 4 O esquadrinhamento da natureza por meio da observação, or-
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4 Disponível na página virtual da Biblioteca Nacional da França <http://catalogue.


bnf.fr/ark:/12148/cb38457405q> Página virtual da Biblioteca Nacional da França. Acesso: nov. 2016.

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denação, nomeação e a busca pelo conhecimento dos fenômenos Existiam apenas seres vivos e que apareciam através
de um crivo do saber constituído pela história natural.
e das forças vitais (respiração, reprodução, evolução) fizeram a histó- (FOUCAULT, 2000, p.175).
ria se tornar a história natural no século XVIII. Por sua vez, a decodifica-
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ção dos desígnios de Deus, feita pelos taxonomistas, permitiu unir os De acordo com Foucault (2000), nessa época, a vida ou o estu-
pontos de uma rede de saberes que estavam afastados. Dessa forma, do dela não existiam, pois a vida estava em intercursos que ligavam
a perspectiva da continuidade dos pontos, permitiu a legitimação do o visível ao dizível, sendo assim, se ela não era vista não era descrita,
natural como verdadeiro, por um homem que era pesquisador e sujei- e então não formaria bases para outros saberes. Portanto, “quando a
to dessa prática discursiva. O saber científico da época clássica [para história natural foi dissociada dos seres vivos, eles foram reagrupados
Foucault período entre século XVI e XVII] foi sendo desacomodado e em torno do enigma da vida” (Foucault, 2000, p. 418), e a partir do
deixou de ser constituído pela semelhança, passando a ser construído surgimento da vida, novos conceitos e palavras foram criados para
em uma nova forma de pensar, baseado na análise e nas interpreta- descrever os seres vivos. As palavras já não mais limitavam os saberes,
ções da linguagem, a qual, nomeia, classifica e procura, por uma or- mais especificamente, quando o homem se questionou sobre a ori-
dem progressiva de complexidade, propiciando assim combinações gem fundante da ordenação dos seres vivos:
e recortes.
A última “peça” que saltou — e cujo desaparecimento
afastou de nós para sempre o pensamento clássico —
O quadro de classificação marca essa época em que a taxo- é justamente o primeiro desses crivos: o discurso que
nomia se tornou a ordem do discurso, substancializando o produto do assegurava o desdobramento inicial, espontâneo, in-
gênuo da representação em quadro. Desde o dia em
visível e do dizível. No entanto, com o passar do tempo, e as aproxima- que ele cessou de existir e de funcionar no interior da
ções do século XIX, que trazia consigo questionamentos, promoveu representação como sua ordenação primeira, o pen-
samento clássico cessou, no mesmo movimento, de
novas rupturas no modelo de pensamento da época. O quadro de nos ser diretamente acessível (Foucault, 2000, p. 417).
classificação dos seres que os nomeava em pelo menos três grandes
grupos: animal, vegetal e mineral, não dava mais conta de explicar a Este deslocamento no modelo de pensamento alicerçado nos
decodificação dos signos divinos. Uma nova configuração do modelo domínios da razão, é chamado de modernidade, o qual produziu efei-
de pensamento começa a criar uma desacomodação na história na- tos não só na ciência, mas na sociedade. Nesse sentido, para Hall
tural. A vida começa a ser anunciada deixando de ser uma categoria (2006), a modernidade também produziu um sujeito social, fundado
de classificação como todas as outras e passa a constituir, sobretudo no discurso da interação entre o self e a exterioridade. Partindo do
a partir de Carl Linnaeus, um limiar que requer formas inteiramente pressuposto que o self ou o “eu verdadeiro” é produzido por meio das
novas de saber (FOUCAULT, 2000). imagens da cultura, do lado de fora do corpo, a modernidade trouxe
Foi a crença na verdade sobre os seres vivos, que permitiu o sur- novas formas de pensar o homem e sua natureza, estabelecendo as
artigos

artigos
gimento das ciências da vida séculos depois. Foucault (2000) afirma noções de finitude e novas formas de nomear as coisas. A linguagem
que para o surgimento da ciência natural, a história precisou se tornar então produziu novos seres vivos e novas verdades sobre eles, os ratos,
natural, visto que, não poderia existir uma história da biologia, se a por exemplo, não mais se originavam de “roupas sujas” esquecidas
vida fosse somente uma categoria e não um limiar de classificação em armários escuros, o suco de uva não mais se transformava em vi-
nesse período. Foucault expõe que: nho pela “força vital do ar” e os sapos e rãs se originavam de ovos
e não mais da lama da lagoa. Infere-se então, a partir de Foucault
Pretende-se fazer histórias da biologia no século XVIII;
mas não se tem em conta que a biologia não existia e (2000), que até esse momento, o homem não existia, era apenas o
que a repartição do saber que nos é familiar há mais efeito da criação divina. Na modernidade a significação da natureza
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de 150 anos não pode valer para um período anterior.


E que, se a biologia era desconhecida, o era por uma é feita por um olhar antropomórfico, a nomeação dos seres não mais
razão bem simples: é que a própria vida não existia. representa sua identidade, mas as relações estabelecidas com o ho-

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mem. aponta para o fato de o conceito preexistir ao conhecimento cientí-


fico. É o conceito, por meio de sua normatividade que permitirá ler e
interpretar os experimentos. Entende-se que a ciência é discurso, no
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Ciência da Descontinuidade entanto, ao ler uma revista de divulgação científica em massa, por
exemplo, é possível perceber que nem todo o discurso científico está
necessariamente no verdadeiro. Canguilhem lança um olhar mais
A pós-modernidade ou a modernidade tardia como referida
atento para a formulação dos conceitos da ciência, uma vez que,
em Hall (2006), traz consigo os questionamentos sobre os grandes re-
toda a ciência se mantém viva pelas relações entre o falso e o verda-
latos, das histórias totalizantes ou unas. Dentro dos pressupostos da
deiro. São os experimentos e o método que serão capazes de sepa-
pós-modernidade, não há como se pensar em história da biologia, da
rá-los, e o conceito permitirá a análise dessas proposições tornando o
matemática e das ciências humanas, mas sim em histórias que foram
discurso científico racional.
a seu tempo exaltadas ou interditadas. Nesses pequenos grupos de
interdições e exaltações, o discurso produziu eixos que eram então O conceito é um instrumento de validação interna do discurso
ditos como campos das ciências biológicas, médicas, exatas e entre científico que permite cognoscere uma ciência enquanto processo.
outras. Foucault (2008b) propunha evidenciar os rompimentos da his- Canguilhem (apud Machado, 2006, p. 25-26) nos possibilita analisar
tória linear e contínua das ciências, abandonando a ideia de origem os pontos de contato conceituais das ciências, uma vez que, para o
e adotando o método da arqueologia ou genealogia das pequenas filósofo, os conceitos não possuem limites marcados ou fronteiras. Ao
histórias para se traçar os vestígios de verdade nas teias discursivas. contrário disso; conceitos de uma ciência podem perpassar por ou-
Para o filósofo, o método da arqueologia procurava romper com a tras, como no caso do conceito de reflexo que pode ser o nervoso na
continuidade buscando entender como as forças do poder foram ca- fisiologia, ou o da luz na física. Nesse sentido, o conceito de normal,
pazes de mobilizar e organizar as produções de enunciados eviden- por exemplo, ao transitar de uma ciência para outra pode produzir er-
ciando os saberes. ros, ou discursos falhos quando observados em uma perspectiva não
linear e descontínua (MACHADO, 2006).
O médico e filósofo Georges Canguilhem (1904-1995), de acor-
do com Foucault (2008b), reivindicou e proporcionou a constituição G. Canguilhem analisou as descontinuidades, os deslocamen-
da história filosófica da biologia ao romper com as disciplinas exatas tos e os ideais de validação das ciências (Foucault, 2008b). As análises
[obedecem fortemente a dedução] que fundamentavam a episte- iam de encontro com as noções de verdade científica da época, ba-
mologia científica. G. Canguilhem rompeu com a formalização mate- lizadas pela noção de contingência e pela lógica. Para Canguilhem
mática da ciência, “sabendo que a importância teórica dos proble- as ciências da vida, se constituíram como ciência ao se afastarem
mas levantados pelo desenvolvimento de uma ciência não é neces- das disciplinas formalizantes - a matemática, a física e a astronomia –
artigos

artigos
sariamente diretamente proporcional ao grau de formalização por pois, uma ciência que estuda a vida produz resultados que nem sem-
ela atingida” (Foucault, 2008c, p.358). Para Canguilhem, a vida não pre podem ser explicados pela matemática ou pela mecânica, nesse
poderia ser explicada pela lógica matemática, sendo assim, os seres sentido havia várias formas de produzir o verdadeiro. O discurso ver-
vivos não poderiam ser fenômenos reduzidos às explicações científi- dadeiro está intimamente ligado com o método recorrente, que em
cas que estivessem associadas a tais lógicas. linhas gerais, analisa o passado de uma ciência, buscando verificar
as constantes transformações na produção do discurso da verdade
Para Machado (2006), Canguilhem entende a ciência como
científica, ou nos termos de Machado (2006), da história recorrente,
uma produção cultural que detém os procedimentos, os métodos e
na qual as narrativas históricas são articuladas com a noção de finali-
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os experimentos para produzir conhecimento que se articulam entre


dade do presente. Talvez esse seja o ponto chave do método episte-
si, validando o verdadeiro. Canguilhem (apud Machado, 2006, p.19)

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mológico de Canguilhem de não olhar linearmente para aos tempos entre a vida e o que dela se sabe, pois é o erro conceitual que coloca
históricos das ciências, mas sim refletir sobre a formulação dos seus em evidencia os problemas filosóficos e os aproxima do verdadeiro, e
conceitos (FOUCAULT, 2008b). do conceito de vida (Foucault, 2008b).
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Ao discorrer sobre o método de G. Canguilhem, Foucault Assim, nos termos de Latour (2000), os leigos e até mesmo os
(2008b), apropria-se da noção de tempo afirmando que há de sair do cientistas não dão conta do processo de criação das ciências. O que
processo normativo das ciências e perceber suas descontinuidades, se vê, são os efeitos das ciências como os medicamentos, os satélites,
os recortes e ligando os pontos, não sob olhar da erudição, mas da os alimentos transgênicos, a produção de energia e todas as materia-
epistemologia. Dessa forma, a biologia recolocada nessa perspectiva lizações que a ciência produziu durante séculos. Latour (2000) identifi-
histórico-epistemológica apresenta traços específicos em relação às ca a ciência como uma grande produtora de verdades nas socieda-
demais ciências, principalmente dentro do pensamento médico, ao des contemporâneas. Contudo, o autor nos leva a pensar quais são as
tentar traçar os limiares do normal ou patológico. ações que determinam a construção de uma verdade no laboratório
e as transformações que ela sofrerá até chegar aos leigos. As contro-
O patológico sempre foi pensado a partir do distanciamento do
vérsias ou disputas de interesses são levadas para além das paredes
padrão da normalidade. Neste sentido, o método recorrente produ-
do laboratório como fatos.
zia, retomava e teorizava novas articulações conceituais. O normal,
assim dito, era concebido de acordo com a perspectiva do observa- De acordo com Machado (2006), a ciência não é natural, pois
dor, nesse contexto, o limiar da normalidade não era fixo e poderia o fato de naturalizá-la seria como colocar em um mesmo conceito
ser expandido ou reduzido. O conceito de anormal na biologia está a história, a natureza, as biografias civis e acadêmicas dos cientis-
ligado a noção de desviante, já no discurso jurídico, por exemplo, a tas. Seria necessário também colocar nesse conceito os poderes que
normalidade está vinculada a coerência e a hierarquização de re- atravessam as comunidades científicas. Ainda em Machado (2006),
gras. Na biologia, a normalidade não é individualizada, ou seja, um dentro da epistemologia de G. Canguilhem, a ciência só pode levan-
indivíduo não é normal dentro do seu próprio contexto ou das suas tar questionamentos sobre si dentro dos seus próprios domínios territo-
condições. Ele se torna normal. Este é um efeito da naturalização de riais. Exteriorizar os questionamentos sobre a ciência, para além das
conceitos dentro de um contexto cultural, constituído num poder dis- paredes do laboratório, implica contextualizar com subjetividades.
ciplinador que cria tais regras (Foucault, 1979; Canguilhem, 2000). Segundo o autor, não existem critérios exteriores ou universais para se
julgar a verdade de uma ciência.
De forma similar às histórias epistemológicas e descontínuas de
Canguilhem, os caminhos da ciência também se tornam objeto de Para Foucault a história da ciência geralmente é contada e ab-
estudo para Latour (2000). Não o da ciência pronta e lapidada em sorvida em totalidade, como se estivesse fora do tempo, supra-histó-
artigos

artigos
forma de proposições, mas a ciência em construção, que se desen- rica, alicerçada por uma verdade eterna e absoluta. Foucault (1979)
rola pela descontinuidade e também pela potencialidade do erro. faz uso da genealogia para evidenciar as rupturas das histórias do pas-
Assim, na biologia, por exemplo, o conceito de anomalia aparece de sado. Se o saber histórico é feito por pedaços, nada é fixo e constante,
ponta a ponta, fazendo com que todas as questões que saiam do a história cumpre com seu propósito, ao permitir, ver o descontínuo.
padrão do normal sejam explicadas como anomalia genética, fisio- Nesse sentindo, de acordo com Foucault (1979), é possível propor que
lógica ou mental. Ao observar as descontinuidades da história das ci- o saber é feito para cortar.
ências da vida, e perceber que o conceito de anormal poderia estar
contido no território da normalidade, caso o momento histórico fosse
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esticado, o erro poderia deixar de ser a contingência que desenrola a


história da vida. É a noção de erro que permite estabelecer ligações

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Os Entremeios do Discurso Científico de verdades que formam um dispositivo de saber-poder. Foucault


acredita que:
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(...) a verdade não existe fora do poder ou sem poder
Ao analisar a ordem do discurso científico, se faz necessário
(não é − não obstante um mito, de que seria necessá-
questionar a vontade de verdade [para Foucault, a vontade de ver- rio esclarecer a história e as funções − a recompensa
dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilé-
dade está relacionada a vontade de poder] para a produção de
gio daqueles que souberam se libertar). A verdade é
conhecimento científico, visto o seu apelo positivista, há que se duvi- deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas
coerções e nele produz efeitos regulamentados de po-
dar das certezas. A análise da rede em sua temporalidade espacial e
der. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
topológica é capaz de restituir a aleatoriedade dos acontecimentos, “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso
que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
rompendo o plissê da rede, afastando os pontos contínuos os quais
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os
abarcaram a construção das significações “lógicas e lineares” do dis- enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se
sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos
curso científico. Nos termos de Foucault (1999), o conhecimento pré-
que são valorizados para a obtenção da verdade; o
concebido é uma crença, ou seja, é a vontade de verdade que se estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que
funciona como verdadeiro (Foucault, 1979, p.12).
faz base fundante da racionalidade científica. Para Foucault (1999),
a análise crítica e genealógica do discurso permite ver para além da
vontade de verdade, pois o verdadeiro está na possibilidade de ver- A crença na ciência permite que os discursos produzidos de for-
dade, nos entrelaçamentos da rede, na ordem do discurso. ma verticalizada por ela e criados pelo poder como verídicos, sejam
entendidos como verdadeiros e produzam efeitos horizontalizantes na
Nesses termos, o homem não necessariamente venera a verda- cultura, potencializando as reiterações da norma e da disciplina, cor-
de, mas busca regozijar-se dos benefícios intrínsecos a ela. As repre- porificando, marcando sujeitos por meio de jogos, entre o verdadeiro
sentações da verdade estão ligadas à ficção da garantia de encon- e o falso. A partir de Foucault, pode-se inferir que a verdade, nos re-
trar o que promete ser visto. As convenções do verdadeiro permitem gimes de verdades ocidentais, está centrada no discurso científico e
a manutenção da vida, no social (Machado, 1999). O espaço social nas instituições que o produzem, e por sua vez, está intrinsecamente
para Hall (2006) é o lugar onde se estabelecem as relações de perten- ligada à produção econômica e ao poder político (REVEL, 2005).
cimento cultural ou identitário do sujeito, é fundado em crenças de
verdade, que produzem e são produzidas nas relações de poder.

Dentro das perspectivas críticas e pós-críticas da ciência, os Considerações Finais


ideais regulatórios que normalizam os passo-a-passos pela busca do
conhecimento verdadeiro, ou das possibilidades e convicções de en- O saber-poder na história das ciências inscreve o irreal no terri-
artigos

artigos
contrar algo que possa estar no verdadeiro, são impossíveis de serem tório do real, transformando proposições em fatos. Uma das grandes
descritos fora do terreno da ciência, uma vez que, o conhecimento questões da história das ciências da vida é entender que poder é esse
científico ascenderia ao grau de verdadeiro quando fosse ao encon- que produz disciplinamento e sujeição. Tanto naqueles que pouco sa-
tro dos pressupostos estabelecidos dentro de pontos de vistas, parciais bem sobre a ciência, quanto nos que fazem dela seu ofício, há um
e isolados que normalizam, regulam e disciplinam a prática científica conformar-se quase que generalizado, quando o discurso vem assina-
(Machado, 1999). do pelo “provado cientificamente”. O objeto de estudo da biologia
De acordo com Veyne (2011), Foucault não generaliza a fabri- é a vida, e esta, está muito além das explicações vindas de cálculos
cação da verdade e não a tem como condição humana, como na matemáticos e das reações químicas/físicas, que é o que se espera
C3

perspectiva nietzschiana. Para Foucault há formação de um regime das ciências ditas exatas. A biologia, ao se constituir como ciência,
afastou-se das ciências matematizadoras, dogmáticas e produtoras

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de verdade, tal como a mecânica, a astronomia e a física. Podemos A biologia surgiu em um momento discursivo da história, no qual
pensar que uma das causas que fez com da biologia a ciência da se buscavam fundamentos em uma filosofia racional, com o intuito de
vida foi o afastamento das ciências exatas. Sendo assim, não seria de classificar e esquadrinhar os seres vivos, delimitando o normal e o pa-
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se esperar uma ciência não exata? Ou a não exatidão a faria menos tológico, a estratificação das raças, a fundamentação da eugenia, os
legítima? Para a sua manutenção na rede, seria necessário produzir controles da natalidade e as interdições da sexualidade entre outros.
sistematicamente discursos exatos? Ou dobrados com aparência de No discurso, agora biológico, o sujeito não é pré-formado por substân-
exatos? cias inertes, a abiogênese foi substituída pela historicidade e se há his-
tória na vida, se faz necessário governar e disciplinar suas direções. O
A ciência é uma sociedade de discurso com sua história de ver-
discurso científico fixa posições e sistematiza proposições de verdade
dade que se disciplina por princípios próprios por meio das práticas re-
ou que estão no verdadeiro, a fim de trazê-las ao grau de existência.
gulatórias. O conhecimento, produzido no âmago das práticas cien-
Há que se dar conta que a verdade não existe, mas sim proposições
tíficas, ao sair do laboratório por meio da divulgação, sofre a ação
dela.
das histórias de verdades concebidas por práticas regulatórias exter-
nas que articuladas na sociedade delimitam subjetividades, jogos de
linguagem, objetificações e transitividade do saber. De acordo com
Referências
Foucault (2000), a biologia surgiu em um momento histórico simultâ-
neo a outras ciências empíricas (filosofia transcendental, economia,
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro:
linguística) se articulavam na formação do homem como sujeito de
Forense Universitária, 2000.
estudo. Nos termos de Foucault (1979, p.7), não importam os poderes
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no College
exteriores que agem na ciência, “mas que efeitos de poder circulam
de France. Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de
entre os enunciados científicos; qual é seu regime interior de poder;
Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola: 1999.
como e por que em certos momentos ele se modifica de forma glo-
_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências hu-
bal”.
manas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Em As Palavras e as Coisas, Foucault define os sistemas de simul- _________. A vida: a experiência e a ciência. In: MOTTA, Manoel Barros
taneidade que podem ser entendidos como uma série de articula- da (Org.). Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciências e História dos
ções, necessárias para circunscrever os limites de um novo modo de Sistemas de Pensamento. Tradução Elisa Monteiro. 2.ed. Rio de Janeiro:
pensar. Assim, a biologia é contemporânea aos estudos da lingua- Forense Universitária, 2008b
gem e aos estudos que analisam as moedas e as riquezas. Esses sabe- _________.Estruturalismo e Pós-estruturalismo. In: MOTTA, Manoel Barros
res engendrados procuravam estabelecer condições para gerir as so- da (Org.). Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciências e História dos
artigos

artigos
ciedades (Foucault, 1999). A sociedade percorre terrenos discursivos Sistemas de Pensamento. Tradução Elisa Monteiro. 2.ed. Rio de Janeiro:
formados pela imersão e emersão de forças em ação que estruturam Forense Universitária, 2008c
o pensamento e são capazes de comandar, modificar, potencializar, _________. Sobre as maneiras de escrever a história. In: MOTTA, Manoel
reprimir e constituir as ações do indivíduo e da própria sociedade. A Barros da (Org.). Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciências e História
forma de pensar é sempre marcada por poderes. Metaforicamente, dos Sistemas de Pensamento. Tradução Elisa Monteiro. 2.ed. Rio de
é como cavar um buraco em areia fofa: por mais que se cave e se Janeiro: Forense Universitária, 2008a.
tente manter o fundo livre, sempre pequenos grãos de areia estarão _________. Verdade e poder. In: ________. Microfísica do Poder. Rio de
chegando ao fundo. A ciência cumpre com a função de empurrar Janeiro: Graal, 1979.
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pequenos grãos de poder sobre o pensamento social. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução

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Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2006.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenhei-
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ros sociedade afora. São Paulo, UNESP, 2000.
MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
________. Nietzsche e a Verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
REVEL, Judith. Michel Foucault: Conceitos essenciais. São Carlos:
Claraluz, 2005.
VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Trad. Marcelo
Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

Artigo recebido em 11/12/2017

Aprovado em 10/02/2018
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Foto: Wagner Ferraz
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Artigo 5
O CORPO QUE FALA É O CORPO QUE ESCUTA.
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Candomblé ketu saber do corpo oralizado.

O CORPO QUE ¨Folclorização¨ do candomblé poder


sobre o tradicional

FALA É O CORPO Esp. Luiz Fernando da Silva Anastácio, FCE, São Paulo/SP. 1

QUE ESCUTA. RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a importância

CANDOMBLÉ
da oralidade no aprendizado e sistematização das práticas corporais
na religião de matriz africana candomblé- ketu no Brasil. Podemos
observar que a legitimação e relevância dos ensinamentos no Brasil
estão pautadas a um modo eurocêntrico de contabilizar o que se é

KETU SABER
aprendizado. O ensinamento no candomblé afirma o conhecimento
oral pela vivência da prática corporal, sublinha o aprendizado e o
conhecimento integrando corpo e mente, sem separar o ser de suas
práticas, mas que ainda no Brasil sofre bastante preconceito sobre sua

DO CORPO
importância quanto história, cultura, memória, e assim acaba caindo
na ¨folclorização¨ da tradição enquanto religião.
Palavra chaves: Aprendizado. Candomblé. Corpo. Folclorização.
Oralidade.

ORALIZADO.
“FOLCLORIZAÇÃO” THE BODY THAT SPEAKS IS THE BODY THAT LISTENS.
candomblé ketu know of the oralized body.

DO CANDOMBLÉ ¨Folclorization¨ of candomblé power over the traditional.


artigos

artigos
PODER SOBRE O
ABSTRACT: This article aims to analyze the importance of orality in the
learning and systematization of corporal practices in the religion of
the African matrix candomblé ketu in Brazil. We can observe that the
legitimacy and relevance of the teachings in Brazil are based on a

TRADICIONAL
Eurocentric way of accounting for what one learns. The teaching in
candomblé affirms the oral knowledge by the experience of the corporal
practice, it emphasizes the learning and the knowledge integrating

1 Formado em dança, Professor da cadeira de danças Brasileiras Da ETEC de


C3

Artes- Centro Paula Souza. Artigo apresentado para pós-graduação em Cultu-


ra Africana FCE-SP. Email: paxacult@ig.com.br. Endereço para acessar este CV:
http://lattes.cnpq.br/2044104536903182

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body and mind, without separating the being from its practices, but e discutir questões que elucidam o candomblé enquanto religião do
still in Brazil suffers a lot of prejudice about its importance as history, corpo oral, assuntos como esse mostra que a sabedoria do ensinar e
culture, memory , And thus ends up falling into the “folklorization” of
aprender faz parte de trazer sentidos vivenciados para a própria vida,
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tradition as religion.
discutir o candomblé é uma maneira de minimizar os preconceitos e
Key words: Learning. Candomblé. Body. Folklorization. Orality. perceber o quanto nos apropriou daquilo que não temos propriedade.

INTRODUÇÃO Candomblé ketu saber do corpo oralizado.

O presente artigo tem como objetivo enfatizar a importância O candomblé é uma religião derivada do animismo3 africano,
da oralidade como ensinamento corporal, que atribui ao individuo dependendo da linhagem ou filiação a qual nação pertence, o ser
praticante do candomblé ketu a sistematização de seu conhecimento cultuado será apresentado pelo nome de orixás, voduns ou nkisis. É
adquirido na religião. Observando que o modo de ensino formal que uma das religiões de matrizes africanas mais praticadas, possuindo
é pautado apenas em estudos catalogados, onde a compreensão mais de três milhões de seguidores em todo mundo, onde tem o
de aprendizado tem como diagnostico muitas vezes o que consegue maior numero de adeptos principalmente no Brasil. Embora seja uma
decorar, não necessariamente aprender, tornando deslocadas religião de matriz africana, a mesma não existia em África, já que a
a prática da teoria e a realidade do indivíduo em processo de configuração religiosa é estabelecida pelos escravos advindos de
aprendizado. várias regiões do continente africano, onde em cada um cultuava se
um orixá. Quando os escravos foram agrupados em senzalas passaram
Com o objetivo de esclarecer que o candomblé enquanto religião
a reunir se ensinar, aprender e louvar seus orixás, aglutinando o culto
que prioriza o ser nas vivências experienciadas através dos orixás, está
em um só se relacionar, assim formando o candomblé.
intimamente ligada às práticas do corpo. Pois a oralidade que se
faz necessário ao aprendizado da religião, afirma a necessidade de Os negros escravizados no Brasil pertenciam a diferentes grupos
integração para o autoconhecimento e as relações de grupos vividas. étnicos, tais como: os yorubás, ewe, fon e os bantus. Como o candomblé
No qual a transmissão oral é um exercício de legitimação através dos a partir de sua origem e ramificação, teve diferentes agrupamentos
sentidos que se relacionam para que se propaguem conhecimentos. étnicos e se ramificou para distintas regiões do país, ele se diferencia
Fazendo que os adeptos consigam ser parte da sua espiritualidade, principalmente no conjunto de divindades veneradas, idioma falado,
onde conseguem na importância do se relacionar perceber o exaltar um fator muito determinante para essas diferenças é a propriedade
o corpo enquanto necessidade de existência. da oralidade em quanto modo de sistematização.
artigos

Com relação ao termo “etnia”, alguns intelectuais,

artigos
O presente artigo iniciará com um breve panorama da configuração
educadoras (ES) e acadêmicas (os) considera seu
do candomblé enquanto religião do corpo oral, referenciando a conceito mais adequado por não carregar o sentido
resistência e a necessidade de integração do corpo para a própria biológico atribuído à raça. Dessa forma, o termo é
usado para se referir ao pertencimento ancestral e
existência. Mostrando também que a religião por fatores relacionados étnico-racial dos negros e outros grupos em nossa
à sua origem de matriz africana de raízes marginalizada, sofre a sociedade. Os que partilham dessa visão entende etnia
segundo Munanga e Gomes (2006, p. 177).
folclorização2 enquanto prática religiosa. É importante problematizar
A lista seguinte é uma classificação simples das principais nações
2 Folclorização- Tal processo consiste em transformar as manifestações cul-
turais dos negros em algo irrelevante ou em recheios ideais para se montarem es-
C3

quemas de entretenimento para vastas camadas da população, em especial para 3 Animismo (do latim animus, “alma, vida”) é a visão de mundo em que enti-
aquelas que, independentemente da cor, podem usufruir, de forma mais plena, dades não humanas (animais, plantas, objetos inanimados ou fenômenos) possuem
certo tipo de lazer produzido pela sociedade brasileira. (ARAÚJO, 2011, p.3) uma essência espiritual.

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e sub nações, de suas regiões de origem, e línguas sagradas: A nação jeje-mahin, do estado da Bahia, e a jeje-
mina, do maranhão derivam suas tradições e lín-
• Nagô ou yorubá/Ketu ou Queto (Bahia) e quase todos os gua ritual do ewê-fon, ou jejes, como já eram cha-
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estados - Língua yorubá (Iorubá ou Nagô em português). mados pelos nagôs, e suas entidades centrais são
os voduns. As tradições rituais jejes foram muito im-
• Efon na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. portantes na formação dos candomblés com pre-
dominância iorubá. (PRANDI, 1995, p. 66)
• Ijexá principalmente na Bahia, mas cultuado também em
Podemos observar que as várias etnias, contribuíram para uma
outros estados como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
grande ramificação e distinção a partir da oralidade instaurada [...]
• Nagô Egbá ou Xango no Nordeste Pernambuco, Paraíba, existe um mito de monolingüismo 4no país [...] esse mito é eficaz para
Alagoas, e no Sudeste Rio de Janeiro e São Paulo. apagar as minorias, isto é, as nações indígenas, as comunidades
imigrantes e, por extensão, as maiorias tratadas como minorias, ou
• Mina-nagô  ou  tambo de mina  no  Maranhão/Xam- seja, as comunidades falantes de variedades desprestigiadas do
bá em Alagoas e Pernambuco (quase extinto). português (CAVALCANTI, 1999, p. 387). O candomblé ketu trás em seu
nicho totêmico o culto aos orixás, divindades que possuem em seu
• Banta, Angola e Congo(Bahia, Pernambuco, Rio de Janei-
signo representativo o poder de dominar os elementos da natureza, os
ro, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Rio Gran-
16 principais cultuados no candomblé ketu são:
de do Sul), mistura delínguas bantas, quicongo equimbun-
do.
1-Exu- Orixá mensageiro divino dos oráculos. 2-Ogum-Orixá do
• Jeje: a palavra “jeje” vem do ioruba adjeje, que signifi-
ferro.3-Odé ou Oxóssi- Orixá da caça e da fartura.4-Ossaim- Orixá
ca “estrangeiro, forasteiro”. Nunca existiu nenhuma na-
das folhas.5-Omulu- Orixá das doenças de pele e da cura.6-Nanã-
ção Jeje na África. O que é chamado de nação jeje é
Orixá dos pântanos e da morte, mãe de omulu.7-Oxumarê –Orixá do
o candomblé formado pelos povos fons vindo da região
arco-íris.8-Ewá- Orixá feminino do rio e da virgindade.9-Irôco- Orixá do
de  Daomé  e pelos povos mahis  ou mahins. “Jeje” era o
tempo, a árvore sagrada ( gameleira branca no Brasil).10-Obá- Orixá
nome dado de forma pejorativa pelos iorubas para as pes-
que rege o encontro das águas rio e o mar.11-Xangô-Orixá que rege
soas que habitavam o leste, porque os mahis  eram uma
o fogo e o trovão. 12-Oyá ou Iansã- Orixá rege ventos, relâmpagos e
tribo do lado leste e Saluvá ou povos Savalu do lado sul. O
tempestades. 13Oxum- Orixá que rege os rios e ouro.14-Logun edé-
termo Saluvá ou Savalu, na verdade, vem de “Savé”, que
Orixá da caça e da pesca.15-Yemanjá ou Yemojá- Orixá rege Lagos,
era o lugar onde se cultuava Nanã. Nanã, uma das origens
mares e fertilidade.16-Oxala-Orixá da criação.
artigos

artigos
das quais seria Bariba, uma antiga dinastia originária de um
filho de Oduduá, que é o fundador de Savé (tendo neste
caso a ver com os povos fons). O Abomey ficava no oeste, Quando se fala em candomblé, geralmente a referência
enquanto os axântis eram a tribo do norte. Todas essas tri- é o candomblé queto, ou da chamada ¨nação¨queto,
da Bahia, vertente em que predominam os orixás e ritos
bos eram de povos jejes,(Bahia, Rio de Janeiro eSão Paulo) de iniciação de origem iorubá. Seus antigos terreiros
- língua ewe e língua fon (jeje). são os mais conhecidos e prestigiados do Brasil: a Casa
Branca do Engenho Velho, o candomblé do Alaketo,
o Axé Opô Afonjá e o Gantois. As mães-de-santo
• Jeje Mina: de língua mina, de São Luís do maranhão. que alcançaram grande prestígio e visibilidade na
sociedade local têm sido dessas casas, como Pulquéria
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• Babaçuê: Belém (Pará).

4 Uso fluente de apenas uma língua, por um falante ou grupo.

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e Menininha, sua sobrinha-neta e sucessora no O candomblé ensina, sobretudo, que antes de


candomblé do Gantois; Olga, do terreiro do Alaketo; e se louvar os deuses, é imperativo louvar a própria
Aninha Senhora e Stella, do candomblé do Opô Afonjá.
cabeça; ninguém terá um deus forte se não estiver
O candomblé queto tem tido grande influência sobre
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outras nações¨, que têm incorporado muitas de suas bem consigo mesmo, como ensina o dito tantas
práticas rituais. Sua língua ritual deriva do iorubá. Mas vezes repetido nos candomblés; ¨Ori buruku kossi
o significado das palavras em grande parte se perdeu orixá, ou ¨cabeça ruim não tem orixá¨. Para os que
através do tempo sendo hoje muito difícil traduzir os se converte, isso faz uma grande diferença em
versos das cantigas sagradas e impossíveis manter
termos de autoestima. (PRANDI, 1995, p.65)
conservação na língua do candomblé. (PRANDI, 1995,
p.66)
O ser que não se desloca de seu corpo e do mundo para poder ser
Com recorrência das inúmeras nações, e as similaridades e o que é. No candomblé ketu percebe se a importância de alimentar
distinções faladas entre elas, podemos observar que no candomblé os estímulos, onde a vivência estabelecida potencializa o sentido de
ketu, os sentidos das traduções faladas se perderam na rigorosidade estar vivo. No candomblé relacionar se é sentir pertencente a partir
dos significados, então o que ficou?Como prosseguir com uma prática da aproximação de tudo o que se possibilita viver, é acessar uma
religiosa, no qual o que se fala não tem o rigor da propriedade dos única coisa, ou seja, não diferencia a natureza e o homem, todos é
significados? É importante salientar que muito se ficou para tanto não a natureza e todos é o homem. A relação de unidade através da
conseguiria existir até os dias de hoje, o candomblé como saber do genuinidade de ser diferente faz com que todos sejam iguais a partir
corpo oralizado, prioriza o ser enquanto parte de sua prática. Corpo das diferenças.
esse que trás o similar divino ao similar do adepto, trazendo respostas Vivenciar o corpo como conexão do divino, faz perceber através
aos diferentes e iguais a partir do panteão dos orixás. das práticas as necessidades de integrar se com o meio, o colher
a folha para tomar banho, realizar oferendas, dançar para o orixá,
Sobreviveram marginalmente no novo contexto social
e ritual. As divindades mais diretamente ligadas às cantar, cozinhar, alimentar se, tocar, evocar orikis5, realizar rituais,
forças da natureza, mais diretamente envolvidas na tudo isso faz parte de viver no próprio corpo, ou seja, alimentar o EU.
manipulação mágica do mundo, mais presentes
na construção da identidade da pessoa, os orixás, Tornando essas práticas vivenciadas o canal de pertencimento do
divindades de culto genérico, estas sim vieram a individuo na organização em quanto coletivo.
ocupar o centro da nova religião negra em território
brasileiro. (PRANDI, 1995, p. 64) O aprendizado que aqui sublinha a oralidade quanto recorrência,
possibilita que o conhecimento adquirido antes de ser passado deve
O candomblé ketu, faz ao adepto perceber que todas as
fazer sentido para se incluído enquanto sabedoria. Não se pode
práticas vivenciadas sejam parte de seu próprio ressignificar, como
deslocar a prática da teoria no candomblé, assim possibilita que a
o ensinamento não parte de um escrito sistematizado onde o fazer
cronologia dos fatos sejam maneiras de se relacionar com os fatos,
artigos

está grafado em capítulos, o aprender e o ensinar estão inseridos

artigos
e não fórmulas onde os resultados obtidos sejam sempre os mesmos
na própria prática, no observar fazendo e fazer observando. Para
para todos. Tratando que, a construção do conhecimento possibilita
tanto é muito importante como religião que integra as práticas, ter
que algo exista, e a intimidade que se tem com as diferentes formas de
propriedades sobre seu próprio ser, o alto conhecimento é primordial
observar a mesma situação, inclui o individuo a sua própria existência e
para que conheça os orixás a serem louvados, e consiga perceber o
em consequência para o próprio grupo, explicado muitas vezes pelas
que deles tem em você, trazendo como diferencial da religião que
personalidades dos orixás. Tornando o singular no plural no território do
a ideia sobre certo errado é algo construído a partir de valores da
própria condição humana, porém assim dando espaço para que
reveja e analise a sua própria condição. 5 A palavra Oriki, é formada por duas palavras, Ori = Cabeça e KI = Louvar
C3

/ saudar. Então Oriki significa, saudar ou louvar a algo que estamos nos referindo.
Sendo as palavras portadoras de força e asè, dá-se aos orikis o poder de invocarem
por si próprios a força vital.

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pertencimento. ¨Folclorização¨ do candomblé poder sobre o tradicional


A categoria identidade enquanto pertencimento. Mas
pertencimento a quê? A um grupo, a uma família, a um
Para entendermos por onde se discorre o termo ¨Folclorização¨
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clã, a uma classe ou fração de classe, a um gênero, a é importante observar a etimologia da palavra folclore, advinda
uma (neo) tribo? O indivíduo isolado (se pudéssemos
do termo inglês Folk e Lore cuja tradução é: povo e conhecimento,
achar algum!) não tem necessidade de identidade,
nem de nome, nem de uma descrição de si mesmo: aglutinados forma-se em folklore (conhecimento do povo). No Brasil
ele não se (re) conhece. Ele está. É através de um
até 1930 escrevia se folklore, a partir da reforma da língua brasileira
longo processo (segundo Darwin) que chegamos ao
ser que somos, seja em etapas, seja em saltos, seja a letra estrangeira é eliminada, e passa se redigir folclore. O termo
em continuidade/descontinuidade (não importa aqui
conhecimento do povo Folklore- teve origem em meados do século
o modelo que invoquemos). Mas, acreditamos que
identidade deve ser pensada no plural – identidades XIX. Cunhado pelo arqueólogo inglês William John Thoms, que viveu
– considerando suas perspectivas complexas,
entre 1803 e 1885, foi usado pela primeira vez pelo cientista no dia 22
diversificadas, desiguais e dispostas diante de nós
para serem acionadas de acordo com as conjunturas. de agosto de 1846 em um artigo publicado “na revista The Athenaeum
Assim, o jogo das identidades contempla o eu/nós, o
(...)”. William John Thoms estendeu a aplicabilidade do termo, fazendo
outro/outros, pertencer a x não pertencer a x: em que
momento. (BAÍA, MORAES, LOREIRO, 2007, p.07) referências aos costumes, lendas, superstições dos tempos da época.

Observar sua etimologia e significado introduz uma grande


Contudo relacionar com a ideia moderna de religião, onde
relevância e entendimento para o termo, conhecimento é algo que
distancia o SER do divinizado, intitulando que a identidade seja oposta
se constitui pelo reconhecimento e pertencimento, ou seja, ninguém
do integrar com o sagrado. Diferente, o candomblé no campo das
reconhece mais ou menos, ou pertence mais ou menos. O que te faz
possibilidades exalta o corpo, a vida, que sempre esteve à margem
pertencer não é o que diferencia do outro, más o que te relaciona.
para que se pudesse existir, resistir. A margem não está somente na
Em uma analise simples um macho e uma fêmea se separam pelo
religião, mas também na origem, e para que exista orixá é necessário
seu pertencimento e reconhecimento biológico, o fato da fêmea
que exista o Homem, se o fiel não come o orixá também não come.
ter vagina a coloca no grupo de fêmeas e não o de não possuir
Sem separação, similar a resistência de afirmação do negro no Brasil,
pênis. Consequentemente a vagina é seu símbolo totêmico 6de
permanece o próprio candomblé, ambos a margem.
pertencimento, relacionando com o conceito totêmico que Emile
Observando que a pratica do corpo só faz necessário para Durkheim teoriza. Reconhecer e pertencer abarca valores e atributos
aqueles que estão inseridos. Estar dentro da prática legitima o modo do que seria fazer parte de algo, tanto positivo quanto negativo. Por
de relacionar a própria existência com a dos outros. Acaba tornando isso no candomblé ketu o símbolo totêmico são os orixás.
se tudo o que vive, ou propõe a viver. [...] Na prática, enquanto grupo
O folclore é o conhecimento do povo, a partir da prática do
de culto, comunidade de fiéis, permitirá o trânsito num espaço em
ensino oral, afirmando seu caráter popular, aqui agravamos seu
artigos

artigos
que não há separação entre a intimidade e a publicidade. Onde,
grau de complexidade e relevância para o entendimento social. O
portanto não há nada a esconder ou reprimir, com relação a si mesmo
conhecimento deve gerar certezas e não duvidas, é comum ouvirmos
e com relação aos demais. Onde também podemos ser o que somos
o termo folclore no Brasil ser utilizado para tudo que não se tem certeza,
o que gostaríamos de ser e o que os outros gostariam que fôssemos.
aquilo que não parte do reconhecimento e pertencimento do povo.
Há um mesmo tempo. [...] (PRANDI, 1995, P.76). Legitimando a religião
O candomblé por sua vez ainda sofre com olhar do colonizador.
que a prática do corpo oralizado é pertencimento dos presentes e
não dos ausentes. Ausentes todos esses que afirmam propriedade É habitual escutar no candomblé que bonita aquela dança,
sobre a prática do candomblé, por aquilo que acham, gestando
C3

preconceitos e a folclorização da religião. 6 Para Durkeim as representações são compostas de símbolos. O conceito
durkheimiano de símbolo postula que as representações religiosas expressam o mun-
do das coisas sociais.

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aquela roupa colorida, aquela musicalidade, aqueles canto, dando Por exemplo, o candomblé Ketu sua existência está na necessidade e
para ela o caráter folclorizado há uma tentativa de torna-la tradicional, maneira de fazer os rituais, fazer as comidas, fazer as festividades, fazer
pois dizer que é folclórico o popular elimina a responsabilidade de as danças... O caráter tradicional é mantido pela própria existência
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entender consequentemente de explicar, falar sobre, ficando apenas do fazer e somente os que pertencem os praticam e reconhecem, por
nas camadas superficiais imagéticas de captura. Não reconhece não sua vez são tradicionais das suas práticas, os únicos que conseguem
sabe sobre, más se diz: é bonito, é exótico, é colorido, faz parte da estabelecer relevância e sentidos no que se faz na religião do corpo
cultura do Brasil... . Tirando o peso de ser brasileiro pela breve analise oralizado.
e contato, estando no lugar de observador e confortável para opinar
A prática tradicional não é questionada, ou seja, as pessoas
sobre, apropriando da prática que desconhece como alguém de
inseridas não questionam o fluxo do seu acontecimento, a organicidade
dentro. Na Tentativa de lhe dar um valor tradicional, e não no território
de reconhecer e pertencer às práticas que a circundam, torna se
do reconhecimento e pertencimento a partir da religião.
natural à prática, pois tudo aquilo que se faz é parte de sua existência.
A folclorização do popular, Isto é, a transformação em O olhar antropólogo sobre a prática tradicional vem sempre de fora,
tradição foi à estratégia encontrada para reagir às
transformações impostas pelo presente. Nesse sentido,
embora o tradicional trata-se como o individuo se relaciona com o
seria selecionado do passado um repertório a ser seu pertencimento, ela não se dar individualmente, para algo ser
monumentalizado. ¨Museificar¨o popular, obstruir sua
perenidade foi à estratégia adotada a fim de evitar
considerado tradicional precisa dos elos entre as pessoas, no relacionar
fusões e hibridismos que pudessem comprometer sua plural, no entanto se fosse no relacionar singular seria hábito e não
autenticidade. O morto preservado seria fisgado em
suportes e exposto em museus e arquivos, para que
tradição.
gerações vindouras pudessem conhecer a nossa
¨verdadeira cultura¨. (Garcia, 2004, p.9)
No candomblé seu pilar tradicional está no culto aos orixás, e
como se unem através da qualidade estabelecida pela oralidade do
Com isso colocar no museu é tentativa de congelar o corpo. Os pertencentes da prática estabelece no próprio convívio,
conhecimento e impedir suas transformações orgânicas, não somente o elo que os unem aos deuses, vinculam sua unidade as relações, e
distancia a pratica do seu saber, mas também o conhecimento aquilo que é praticado a partir do conhecimento sistematizado, louvar
que o referencia, pois aquilo que não faz parte do meu relacionar, os orixás torna se tudo.
somente poderá ser contemplado, não finda o quanto esquecido
Durkheim tem um interesse pela religião porque ela
esta. Preservar o candomblé não é somente guardar e impedir as articula rituais e símbolos que têm o efeito de criar entre
volatilidades de relacionar a prática e sua época, más propor que indivíduos afinidades sentimentais que constituem a
base de classificações e representações coletivas. As
aquele conhecimento seja parte de um saber coletivo ao ponto cerimônias religiosas cumprem um papel importante
de não deturpar uma tradição. Não existe nada autentico partindo ao colocarem a coletividade em movimento para sua
celebração: elas aproximam os indivíduos, multiplicam
artigos

artigos
de um pressuposto que tudo já na sua segunda tentativa já é uma os contatos entre eles, torna-os mais íntimos e por isso
releitura do seu original. E o que faz com que isso perdure é o quanto mesmo, o conteúdo das consciências muda. (HASS,
1999, P. 01)
eu me relaciono a partir do conhecimento adquirido por tal pratica,
sem deixar cair na folclorização. Então o tradicional é tudo que não descaracteriza a consciência
Analisando que muitas vezes damos a conotação de folclórico do existir, se para fazer um ritual para um orixá é necessário colher
aos desconhecidos e que esses desconhecidos geralmente estão em ervas, fazer banhos, dar lhe oferendas, louvar na frente dos tambores,
nichos isolados, quem somente sabem sobre eles são os que estão se um desses elos é quebrado a prática perde naquele momento seu
inseridos em tais práticas. Podemos então dizer que tradicional é tudo caráter tradicional, pois deixou de ser feito algo imprescindível para
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aquilo que permite permanecer em seu propósito de existência, sem sua existência, deixando um elemento fundamental de fora para que
descaracterizar as necessidades e ocasionalidades de tal coisa existir. tal prática ocorresse. Dando ao tradicional o grau de conhecimento

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e envolvimento e complexidade sobre a própria prática, pois só é O pertencimento somente pode fazer parte daquilo que conhece
tradicional quem está inserido no aprender e reconhecer do corpo, e reconhece, para tanto vivenciar estabelece que o aprendizado
sistematizado pelo ensinamento oral. e o ensinamento faça sentido para qualquer tipo de prática. Pois a
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vivência de cada um ninguém pode tirar, ou atravessar para poder
sentir o que o outro sente, essa experiência é única por mais que
CONSIDERAÇÕES FINAIS tenhamos estímulos e caminhos parecidos com o do outro.
Perceber o candomblé como religião do corpo oralizado, não
é somente observar a doutrina enquanto modo de sistematização,
que não segue um dogma a partir de uma catalogação, más acima REFERÊNCIAS
de tudo é incluir o fiel a sua pratica não deslocando o indivíduo do
ARAÚJO,Zezito de.Folclorização e Significado Cultural do Negro. São
divino. Louvar os orixás primeiramente é louvar o a vida, a existência é
Paulo,2011
perceber que os aprendizados sobre algo o aproxima de si próprio, e
com isso inclui a todos que se relacionam. BAÍA, Luiz César dos Santos, MORAES, Nilson Alves de, LOUREIRO,
José Alves Matheus. Arte e Artistas Populares: Tradição, identidade e
O corpo como potência do existir nos seus sentidos, pluraliza
Mercado. VIII ENANCIB – Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência
as maneiras de poder vivenciar a mesma coisa de forma distintas,
da Informação. Salvador ,Bahia , 2007.
no candomblé ketu, o corpo não é somente o transporte para o
divinizado, é a oportunidade de se perceber como se é. Através de a CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro & VILHENA, Luís Rodolfo.
natureza poder se incluir como uno naquilo que é ofertado, permitido Traçando fronteiras – Florestan Fernandes e a marginalização do
e experienciando. É fazer que a prática espiritual não fosse tão distante folclore. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 3, n. 5, p. 75-92, 1990
que não possa ser contemplada. O corpo em forma de celebração
sem julgamentos de como se é, seria ou fosse. A possibilidade de se CAVALCANTI, Marilda C. Estudos sobre educação bilíngüe e
integrar com tudo que o faz sentir se vivo, aguçando todos os sentidos escolarização em contextos de minorias lingüísticas no Brasil. DELTA
como dádiva divina, o comer, o tocar, escutar, cheirar, falar o kinético Volume especial, vol.15, 385 – 447, 1999.
7
. GARCIA, Tânia Costa. A Folclorização do Popular: uma Operação
de Resistência à Mundialização da Cultura, no Brasil dos anos 50.
Para tanto o fato de integrar o ser ao divino não pode ser um ArtCultura, Uberlândia, v. 12, n. 20, p. 7-22, jan.-jun. 2010
subterfúgio que gerencie formas de represálias e preconceitos para
os que não fazem parte da religião. É importante e determinante que HASS, Francisco. Concepção de Religião, Segundo Emile Durkheim.
respeitem as diferenças, mesmo que não as compreendam. O fato dom total. 1999
artigos

artigos
de subjugar, folclorizar ou se apropriar daquilo que não o pertence,
MONTERO, Paula. A teoria do simbólico de Durkheim e Lévi-
somente afirma que é importante ainda nos dias de hoje problematizar Strauss:desdobramentos contemporâneos no estudo das religiões.
e colocar em pauta discussões como intolerância religiosa, racismo, Novos estud. - CEBRAP  no.98 São Paulo Mar. 2014
e campos de pertencimento sobre o viés de tudo que se apresenta a
MUNANGA, K.GOMES, N. L. O negro no Brasil de hoje. São Paulo:
margem.
Global, 2006

7 A kinética, cinésica, ou significado expressivo de estudos de linguagem cor- PRANDI, Reginaldo. As Religiões Negras no Brasil, Para Uma Sociologia
poral significativa denominação ou os movimentos do corpo de comunicação e
gestos aprendido somatogénica ou não oral, visuais, auditivos ou percepção táctil Dos Cultos Afro Brasileiros. São Paulo ( 28) : 64-83, Revista USP. Dezembro/
C3

sozinho ou em ligação com a estrutura paralingüística e linguística e o comunicati- Fevereiro 95/95.


va. 2 situação também é conhecido pelo nome comportamento Kinesico ou lingua-
gem corporal.

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________________¨Os candonblés de São Paulo: aVelha Magia na


Metrópole Nova. São Paulo. Hucitec &Edusp, 1991 ( a).
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________________ ¨Cidade em transe: Religiões Populares no Brasil no
fim do Século da Razão¨. In Revista USP no.11, São Paulo, out-dez,
1991(b) PP.65-70

Artigo recebido em 27/05/2017

Aprovado em 12/01/2018

 
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Foto: Wagner Ferraz
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Artigo 6

A Tecnologia no Design de Superfície em Têxteis


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Me. Christie Jaconi Meditsch, UFRGS, Porto Alegre/RS1

Resumo: A pesquisa busca identificar como os avanços tecnológicos


estão sendo incorporados pelo design de superfície em têxteis. Para tal
entendimento é buscado o estado da arte em uma pesquisa explora-
tória, considerando experimentos ainda não lançados no mercado e
produtos já em fase de comercialização. Com os levantamentos, per-
cebeu-se que os têxteis estão passando por uma mudança radical na

A TECNOLOGIA
sua expressão e na sua funcionalidade. Com isso, o campo de estudos
do design de superfície ganha amplitude em seus fundamentos, que
ampliam de noções de rapport e módulo para questões de dinamis-
mo e interatividade.

NO DESIGN DE Palavras-chave: design de superfície, tecnologia, têxteis.

SUPERFÍCIE EM

TÊXTEIS
Technology on Surface Design in Textiles

Summary: Abstract: The research seeks to identify how technological


advances are being incorporated by surface design in textiles. For this
understanding the state of the art is sought in an exploratory research,
considering experiments not yet launched in the market and products
already in the stage of commercialization. With the surveys, it has been
noticed that textiles are undergoing a radical change in their expression
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and functionality. With this, the field of study of surface design gains
amplitude in its foundations, which expand from notions of rapport and
module to questions of dynamism and interactivity.

Keywords: surface design, technology, textiles.

1 Christie J. Meditsch, UFRGS, Porto Alegre/RS. O presente artigo é um recorte


da dissertação de mestrado apresentada pela autora com o título de Design de
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Superfície: a apropriação criativa de tecnologia em estampas de roupas infantis.


Mestre em design, designer de superfície especializada em projetos e pesquisas na
área de estampas para estamparia.

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Introdução Tecnologia
O fundamento básico da criação de uma estampa segundo Estando os têxteis atrelados às questões do tempo sua relação
com a tecnologia se torna presente, é possível pensar no aspecto
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Rüthschilling (2008), compõe, primeiramente, o pensar em um motivo
referente à temática da superfície. Depois estabelecer o módulo, tecnológico como um divisor e marcador de épocas. Para entender
que é a unidade que forma a estampa, onde precisam estar todos os melhor o que está implícito no significado de tecnologia, o Sebrae
elementos visuais que fazem parte do motivo. E o sistema de repetição disponibiliza na internet um dicionário em que o conceito de tecnologia
determinado pelo designer deste módulo, chamado de rapport, é apresentado da seguinte maneira (MELO; LEITÃO, p. 99, 2010):
forma o desenho final da estampa. TECNOLOGIA – (a) Método para transformar inputs
em outputs; (b) Aplicação dos resultados de pesquisa
Porém, conforme afirma Rüthschilling (2008), o avanço da
científica à produção de bens e serviços; (c) Tipo
tecnologia possibilita que o design de superfície se envolva com específico de conhecimento, processo ou técnica
exigido para fins práticos; (d) Conhecimentos de
projetos que levem em consideração o entorno e a situação de uso.
que uma sociedade dispõe sobre ciências e artes
Assim, o design não se esgota na única função de projetar linguagens industriais, incluindo os fenômenos sociais e físicos, e sua
aplicação à produção de bens e serviços. Identificam-
visuais, contemporaneamente, passa a se ocupar com outras variáveis
se duas grandes categorias de tecnologia: tecnologia
de projeto, como aspectos táteis, olfativos, dinâmicos e de simbologia de produto (componentes tangíveis e facilmente
identificáveis) e tecnologia de processo (técnicas,
mais complexa.
métodos e procedimentos).
Pensar no design de superfície para têxteis no cenário
contemporâneo requer ir além do plano imagético e bidimensional. Conforme o dicionário do Sebrae a tecnologia é desenvolvida a
O ato criativo se expande e entrecruza áreas. O caminhar do uso de partir de conhecimentos sobre ciências que são destinados à produtos
tingimentos e padrões em têxteis evoluiu de questões decorativas, e/ou processos. Segundo Basalla (1998) a tecnologia evolui, parte
para relações de pertencimento de grupos, a representatividade de de um estado simples para outro mais complexo, de acordo com os
estilos de vida. Atualmente, chega-se ao caminho de uma imagem/ saberes que vão se somando no seu manuseio. Entende-se, então,
conteúdo que sai do objetivo externo e objetiva-se para o seu usuário, que uma tecnologia provém da combinação e experimentação do
com recursos de dinamismo e interação. cruzamento de outras tecnologias.
Este novo cenário fez com que projetos de têxteis, que até Na presente pesquisa, quando se fala de tecnologia, não
então eram apoiados em fundamentos do desenho, artesanato e corresponde somente a tecnologia eletrônica, no caso, é abordada
composição visual - passem a ter como problemas de design questões qualquer tipo de tecnologia, podendo ser nanotecnologia,
como interatividade, dinamismo, explorando novos fundamentos, biotecnologia, tecnologias antigas com novas apropriações de uso,
como especificidades de materiais, tipo de ação e novas tecnologias. entre infinitos outro tipos.
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O progresso tecnológico em química, fibras e polímeros oferece As variadas tecnologias de matérias que estão sendo
aos designers de superfície materiais novos e expressivos, e através de incorporadas e experimentadas no design de superfície de têxteis
sua apropriação para a estampa é possível criar padrões dinâmicos, na contemporaneidade tendem a busca por ações que reagem
onde diversas expressões e estímulo de diferentes sentidos podem conforme as condições e estímulos ambientais e gestuais, que podem
estar presentes em um mesmo tecido (WORBIN, 2010). ser a partir de fontes humanas, mecânicas, térmicas, químicas,
Com isso, percebe-se que existe uma ampliação de saberes no elétricas, eletrônicas, magnéticas ou outras.
que envolve projetos de estampas. Para tais processos criativos no- Tais tecidos com apropriações tecnológicas costumam passar
vos problemas surgem para serem resolvidos dentro de um contexto de um estado para outro, podendo ser manipuláveis e mutantes. Este
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funcional e/ou simbólico, interativo e/ou dinâmico, decorativos e/ou tipo de desempenho assume características chamadas na pesquisa
simbólicos. de “mutáveis”, “dinâmicas” e/ou “interativas”. Que podem ser

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alcançadas de diversas maneiras na superfície do tecido, com ou sem resume nos têxteis eletrônicos, que se dividem em tecidos inteligentes
influências de tecnologias computacionais, seja por manipulação da (smart textils) e comutadores vestíveis (roupas wearable). Porém
luz (por holografia), através de transferências de luz em fibras ópticas teoricamente, tratam-se de três áreas diferentes, que segundo
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ou em materiais de luminescência como os eletroluminescentes ou Berzowska (2005) possuem uma estreita relação que leva a muitos
fluorescentes. Ainda, tal mutação pode ser oriunda do processo cruzamentos possíveis e divergentes direções de pesquisa.
termocromático por luz UV, onde há uma série de fenômenos Um têxtil eletrônico refere-se a um substrato têxtil que incorpora
cromáticos que proporcionam a mudança de cor de acordo capacidades de detecção (biométrico ou externo, comunicação
com a corrente elétrica, a pressão, o atrito, entre outros estímulos (geralmente sem fios), transmissão de energia e tecnologia de
(WORBIN, 2010). Assim como pigmentos cromáticos são encontrados interconexão para permitir sensores ou coisas tais como dispositivos de
experimentos termocromáticos, fotossensíveis e eletroluminescentes processamento de informação a serem ligados a redes dentro de um
(WORBIN, 2010): tecido). São tecidos que integram elementos condutores, muitas vezes,
Termocromático – ocorre com a mudança de uma cor para outra fios ou fibras. Os tecidos são criados usando técnicas de fabricação
pela mudança de temperatura. Não é um material emissivo, ou seja, de têxteis tradicionais, como: tecelagem, tricô, bordado, costura e
não emite luz. A mudança de cor reage de forma reversível variando impressão com tintas.
conforme a temperatura. Abaixo da temperatura de ativação o tom O que promove a condução de energia são as substâncias
é colorido e acima da temperatura de ativação atinge um tom claro contidas nos fios, como o exemplo da tinta eletrônica2. Um exemplo
esbranquiçado. deste tipo de tecnologia no âmbito do design de superfície são os
Fotossensível – muda a cor conforme a exposição de luz tecidos que tem sua cor programada para mudanças e os com toque
ultravioleta ou luz solar. Não é um material emissivo. Tal reação ocorre programável que também podem ser sensíveis a luz (BERZOWSKA,
de forma reversível da cor branca a outra cor determinada, que 2005). Diferente dos têxteis inteligentes que apresentam avanços
podem ser: amarelo, rosa, azul, turquesa, magenta ou verde. científicos na pesquisa de materiais, como o caso do nitinol3. E com
Eletroluminescente (EL) – consiste no fenômeno óptico e elétrico isso, incluem capacidades como: melhores isolantes ou tecidos que
durante o qual o material emite luz em resposta a uma corrente elétrica resistem a manchas.
que o atravessa, ou a um forte campo elétrico. Em comparação com Enquanto o conceito de wearables é centrado na ideia de
outras fontes de luz esta é uma energia elétrica com baixa fonte de incorporar um computador pessoal em um guarda-roupa diário para
luz e de consumo, por isso, não apresentam efeito de aquecimento. permitir o acesso ubíquo ao poder computacional e conectividade
Além dos citados que são encontrados mais facilmente em universal (BERZOWSKA, 2005). São exemplo de tais relações
experimentos, existem casos de estudos de pigmentos hidrocromáticos, experimentos que transformam uma roupa em um transmissor de
que exploram as respostas de mudança de cor em contato com a dados, como, por exemplo, o casaco com um capuz que armazena
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água. E de pigmentos piezochromics, que mudam de cor em resposta MP3, ou ainda, experimentos que rompem a fronteira entre a estampa
à pressão. e a informação digital.
Segundo Worbin (2010) a transferência para a era digital que Vivemos em um mundo complexo composto por bits e átomos. A
ocorre na contemporaneidade também afeta sob fortes influências tecnologia junto com os recursos de computação e de comunicação
as expressões têxteis. Mais recentemente, no final do século XX, o
entendimento sobre a relação de tecidos, eletrônicos e computação 2 A tinta eletrônica são circuitos extensíveis e laváveis impressos em teci-
mudou radicalmente e muitos experimentos passaram a surgir da do. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/tinta-eletronica/. Acesso em:
15/12/2013.
interação e mistura de um com o outro (BERZOWSKA, 2005).
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3 Nitinol é uma liga metálica de níquel e titânio, que exibe a propriedade de


Popularmente, a relação entre o tecido e a tecnologia se efeito térmico de memória e superelasticidade. Disponível em: http://www.nitinol.
com/. Acesso em: 15/12/2013.

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que integram os objetos físicos está aumentando e avançando nologia – se refere à desenvoltura da empresa em al-
rapidamente. Mas também é necessário lembrar que a tecnologia terar desenhos, usos de materiais, projetos, processos. A
assume a forma de têxtil há milhares de anos, funcionando como empresa tem habilidade para aprimorar conhecimen-
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proteção, disfarce, e interface para o mundo. tos, pois possui uma base sólida de conhecimento técni-
Assim, dentro da evolução tecnológica, existem elos de união co e experiência. As mudanças são vistas como inova-
com tecnologias anteriores. Além das ligações que promovem ções que melhoram o funcionamento e a produção da
o avanço tecnológico, outros tipos de variações ocorrem nesse empresa;
campo. De uma descoberta tecnológica podem ser multiplicadas - Capacidade de gerar novas tecnologias –
infinidades de aplicações usadas em diferentes ambientes e com empresas que estão na ponta do domínio do conheci-
diferentes materiais. Considerando a possibilidade, tanto de avanço mento técnico e tecnológico do setor. A partir de cons-
e, principalmente de multiplicidade da tecnologia, o designer se tantes atividades de pesquisa e desenvolvimento, con-
encontra no desafio da aplicação ao uso. Para os profissionais que seguem elaborar e implantar inovações que impactam
trabalham com problemas de projetos a relação com a tecnologia o mercado. Este tipo de desenvolvimento de tecnologia
não se estabelece com a busca pela descoberta, mas sim pela faz com que a empresa seja capaz de lançar novo con-
apropriação criativa desta. teúdo cientifico e como resultado, lançar no mercado
Nessa questão, o trabalho do designer se configura como novos conceitos de materiais, produtos e serviços.
multidisciplinar, pois o uso de apropriações requer o contato com
Estas classificações abordam o entendimento e o valor que
áreas que não são próprias ao design. Por exemplo: a tecnologia LED
as empresas dão para investimentos em tecnologia. A apropriação
já há tempo está difundida no mercado, porém com o avanço das
criativa de tecnologia ocorre em decorrência da busca por um melhor
nanopartículas, chegou recentemente um ponto onde é possível criar
desempenho ou diminuição de custos. E tal objetivo pode ser atingido
pequenos dispositivos de LED e estes podem ser molhados. Com isso,
através do uso de novos componentes ou materiais que melhorem o
o designer se apropria do avanço tecnológico de uma área que não
desempenho.
se relaciona com a sua e adapta de forma criativa tal novidade para
Ainda, a apropriação criativa de tecnologia pode ter níveis de
a estampa da roupa. A roupa ganha aspectos interativos e dinâmicos
lançamento, podendo ser esta lançada de forma pioneira a nível
de uma luz que pode ser acionada e mantém suas características de
mundial, mercadológico ou empresarial. Para ser considerada uma
conforto e pode ser lavada sem problemas.
novidade a nível mundial, esta deve representar a primeira vez em
A apropriação tecnológica capaz ao designer pode ser feita
que o produto aprimorado ou novo é lançado. O nível mercadológico
em diferentes capacidades. O trabalho de Kim (1993 apud SCHNORR,
corresponde ao pioneirismo dentro de uma área geográfica que
2008) apresenta uma forma de medir as capacidades tecnológicas
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atinge os concorrentes diretos. E quando a inovação é considerada
de acordo com as atividades desenvolvidas por designers junto das
em nível da empresa, esta pode já existir em outras empresas, sendo
empresas para as quais trabalham. Tais níveis são classificados da
apenas uma novidade para o núcleo em questão.
seguinte maneira:
De acordo com Puerto (1999) toda a empresa deve
- Capacidade de assimilar e utilizar a tecnolo-
continuamente ajustar as suas atividades com as mudanças temporais.
gia – a empresa apenas mantém em funcionamento e
O mercado sinaliza as necessidade da criação de novos produtos. Por
atualiza a tecnologia com a qual trabalha. Isto significa
sua vez, o ato de desenvolver tais produtos ou redesenhar antigos,
que a empresa não atualiza ou altera os conhecimentos
motiva assimilação da busca por inovação dentro da empresa. Como
sobre equipamentos, materiais e processos;
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designers, é importante assegurar que as interações entre as pessoas


- Capacidade de adaptar e modificar a tec-
e estampas em roupas com apropriações criativas de tecnologia

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possam ser úteis, agradáveis e, mais importante, significativas.

Tecnologia e o Design de Superfície em Têxteis


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O campo que experimenta o uso novas aplicações de tecnologia
no design de superfície em tecidos ainda apresenta certas barreiras –
principalmente econômicas - por todos os suportes têxteis. Em maioria,
no lugar de produtos consolidados existem experimentos que arriscam
e testam caminhos. Entretanto, tais experimentos são fundamentais
para o avanço da ciência na área, pois com o manuseio do material
se pode aprender sobre as suas propriedades (WORBIN, 2010).
Os testes com pigmentos cromáticos foram os mais encontrados
na pesquisa exploratória sobre o estado da arte dos avanços
tecnológicos incorporados pelo design de superfície em têxteis. A
coleta de dados para o seguinte fim foi realizada em livros, anais,
dissertações, sites e artigos de revistas nacionais e internacionais. Muitos
outros avanços foram encontrados nos campos de modelagem,
comunicação e saúde, porém os que não apresentavam relação
Figura 02: Vestido com tinta termocromática
com a superfície têxtil não foram considerados. Fonte: Smart Textiles Body Print (2013)
Worbin (2010) apresenta o exemplo da tinta termocromática da
pesquisadora Marjan Kooroshnia para a empresa Smart Textiles (2013). O movimento é uma questão inerente ao ser humano, pensar em
Este projeto em andamento consiste em tintas à base de corantes uma estampa que acompanhe em termos cromáticos essa atividade
leuco reversíveis, à base de água, com as temperaturas de ativação constitui em um grande leque de possibilidades a serem exploradas.
de 15 ° C e 27 ° C (figura 01). A textura da roupa modifica conforme Por outra designer, Joanna Berzowska (2005), o Shimmering Flor
a temperatura do corpo. Este projeto indica como a temperatura e a é um projeto desenvolvido que serve como exemplo de apropriação
interação do usuário podem influenciar a aparência de uma peça de de tecnologia para criar mudanças de cor na estampa. O projeto
roupa; mudando constantemente (figura 02). funciona como um painel não emissivo que muda de cor. Composto
por fios macios com componentes condutores e fibras de tecido, tintas
termocromáticas e componentes eletrônicos personalizados que
permitem a mudança de cor por meio de animação eletrônica. O
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projeto funciona com um controle que ativa as tintas termocromáticas,
pela mudança da temperatura, o que resulta na animação da
composição de cores da estampa (figura 03).
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impressa em camadas com uma combinação de cor pigmento e cor


termocromática (com uma mudança de estado em 27°C), sensores
de pressão para detectar quando alguém se senta sobre o tecido,
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computador programado para controlar os tópicos que aquecem e
o tempo de permanência (figura 04).

Figura 04: Pufe com estampa programada que altera conforme o uso
Fonte: Smart Textiles Patterns (2013)

Este experimento, se acoplado em pequenas fibras laváveis, que


permitam conforto ao uso, poderia ser pensados para a roupa infantil.
Algumas boas possibilidades podem se estender do experimento
utilizado no pufe.
Além dos testes realizados com tintas termocromáticas, outras
Figura 03: Painel com estampa que muda de cor por animação eletrônica
formas de diálogos com a estampa e com o usuário foram encontradas.
Fonte: Berzowska (2005)
Um exemplo é o projeto de design que lida de forma interativa com a
O experimento ainda não virou peça de roupa, pois os requisitos questão do controle do movimento. É um exemplo de roupa Wearable,
de energia são elevados e para as tintas termocromáticas funcionarem que possui sua propriedade programada e interligada com programas
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necessitam de um ambiente com a temperatura controlada. computacionais.
Outro projeto com interação dinâmica é o de um pufe O conceito desse experimento consiste em um tipo de “broche”
que muda de expressão conforme o seu uso (SMART TEXTIL, 2013). com seu formato inspirado em borboleta fixada na roupa que parte
Seu funcionamento consiste em uma estampa brilhante que é do princípio de que o inseto necessita se mover para sobreviver (figura
gradualmente revelada quando alguém se senta sobre o pufe. 05). Assim, possui três sensores que captam o movimento do usuário
Tendo suas luzes apagadas quando novamente ele fica sem que que deve preocupar-se em movimentar-se o suficiente (do tempo
alguém o utilize. Este tipo de estampa com movimento recorrente programado) para que seu “broche inseto” permaneça vivo.
de cor que acende e desaparece completamente é possível por
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possuir camadas programáveis. Os tecidos são construídos por quatro


partes: algodão tecido com fios condutores embutidos, uma estampa

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Figura 05: Broche de borboleta controlado por movimento
Fonte: Smart Textiles Balance (2013) Figura 06: Estampa com sistema de LED programável
Fonte: CuteCircuit (2013)

Este é um projeto que envolve o jogo, a interatividade e propõe


a reflexão sobre o papel de interfaces do usuário têxtil na era digital. A camiseta T-Shirt-OS abre um novo paradigma. É um
Essa apropriação não ocorre especificamente na estampa, mas pode experimento que pode ser tornar muito especial se voltado para
vir a ser uma extensão desta. crianças que possuam habilidade com computadores e celulares.
No quesito comercial de roupas wearables, a marca londrina Estampas podem virar animações, e com isso, a camiseta pode vir
CuteCircuit (2013), criada no ano de 2004 é a líder mundial em moda a servir como suporte de tela e infinitas possibilidades podem surgir a
interativa. Seus projetos não ficam apenas em experimentos, são partir disso.
comerciais e unem beleza e funcionalidade através do uso de tecidos Outra empresa que apresenta grandes avanços tecnológicos
inteligentes e microeletrônica. com têxteis é a Luminex (2013), empresa de luminárias. Um deles é o
Um exemplo de roupa wearable desenvolvido pela CuteCircuit tecido LUMINEX ® composto de fibras luminosas capazes de emitir luz
(2013) é a camiseta programável, chamada de T-Shirt-OS. O projeto própria em cores diversas. O tecido pode ser criado com fios de todo
se assemelha com o aspecto de uma camiseta comum, mas com a tipo e natureza integrados com as fibras luminosas. Os fios LUMINEX ®
funcionalidade que permite compartilhar status no Facebook, Tweets, são detectores de partículas elementares que correspondem a fibras
músicas e fotos. Além da função de compartilhamento, a camiseta especiais utilizadas nos experimentos científicos da física sub-nuclear.
possui 1.024 pixels de LED arranjados em uma grade de 32 cm por A novidade pode ser usada em diversas aplicações, desde o
32 cm, que é controlada através de um aplicativo no celular que mais insignificante até os mais úteis, num grande número de áreas
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permite transmitir frases e imagens na camiseta como se fosse uma ainda não exploradas. A ideia de tornar os tecidos luminosos não é
tela de computador. Além disso, a T-shirt-OS inclui câmera, microfone, nova segundo Luminex (2013), desde o nascimento de fibras ópticas
acelerômetro e alto-falantes acoplados (figura 06). (no início dos anos 1970) várias empresas tentaram iluminar materiais,
mas foram desencorajadas por muitas dificuldades.
O tecido LUMINEX ® (figura 08) ainda pode ter integrado a ele aparatos
eletrônicos, o que transforma o tecido em um material inteligente
(microchips com dimensões muito reduzidas e peso). Isso possibilita
que além dos efeitos luminosos, o tecido seja capaz de processar sinais
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como batimentos cardíacos ou temperatura do corpo, ou responder


de forma consistente aos estímulos ambientais.

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apropriações criativas de tecnologia.


Quando as características das estampas mudam, papéis
de designers e usuários se alteram, assim, como o posicionamento
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da indústria. O tecido entendido como uma forma de interação e
dinamismo, cada vez mais abre leques de caminhos de projeto, de
produção e de usabilidade. Muito além da produção da decoração,
possibilidades se amplificam, podendo o tecido ser usado para
casos inusitados como iluminação, suporte de mídia, transmissão de
informação, entre outras possibilidades.
As apropriações criativas de tecnologia têxteis também podem
ser suportes ao estímulo de outros sentidos, não somente ao comumente
estimulado, a visão. Também podem transmitir valores e questões de
ensino, sendo um tecido com uma estampa inclusiva, que estimula
Figura 08: Tecido luminoso uma brincadeira, uma conexão entre pessoas que estão longe, uma
Fonte: Nirvanacph (2017) incitação à criatividade; assim, podendo ganhar um sentido mais
amplo que o visual decorativo.
Diante de tantos experimentos, num universo ainda muito mais
Pensando em evolução, pode-se recordar que o desenho
amplo, ainda são poucos os observados com o cunho comercial, e
feito à mão livre e os processos artesanais de tingimento e trama,
menores ainda os que têm sucesso de vendas e assim, considerados
passaram para o suporte computacional e produção automatizada.
como inovações. Mesmo que muitos desses exemplos possam ser
As apropriações criativas de tecnologia nos têxteis representam o
adaptados ao design de superfície de têxteis, questões como recursos
continuar e o andamento dessa evolução. A transição para um novo
financeiros, preço de venda, conforto e praticidade e acesso a
e desconhecido ambiente de projeto e de superfície.
tecnologia, são barreiras para que tais implementações aconteçam.
Nesse lugar que irá se chegar, mas que ainda não se conhece,
Mas tais experimentos aproximam o uso do avanço da tecnologia,
é possível visualizar primeiros apontamentos. Tecidos começam
que aos poucos vai sendo incorporada e se tornando mais acessível.
a ser gerados em conjuntos colaborativos e multidisciplinares,
que acompanham os avanços da tecnologia. Com isso, novas
Considerações Finais
metodologias de projetos vão sendo requisitadas. E por consequência,
De acordo com a pesquisa, os avanços tecnológicos
tais reflexos fomentam e fazem surgir novas reflexões, novas buscas por
identificados que estão sendo incorporados pelo design de superfície
conhecimentos e ressignificações no meio acadêmico e profissional.
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no projeto de têxteis apresentam dinamismo e projetos com diferentes
materiais incorporados tecidos. Os exemplos demonstrados na
pesquisa visam exibir possibilidade de alguns caminhos de projetos e
abrir possibilidades para muitos outros. REFEREÊNCIAS
Além das questões visuais como estampas, tingimentos e tramas;
os têxteis com tecnologia apropriada possuem elementos de projeto BERZOWSKA, Joanna. Electronic Textiles: Wearable Computers,
que envolvem formas tridimensionais, dinamismo, tipos de ação, Reactive Fashion, and Soft Computation. United Kingdom: Textile,
formas de interatividade e uso de diferentes materiais. Desta forma, Volume 3, Issue 1, pp. 2–19, 2005. Disponível em: http://www.xslabs.
C3

surgem novos problemas de projeto e, com isso, a necessidade de net/papers/texile05-berzowska.pdf. Acesso em: 13/12/2013.
aprofundar a compreensão sobre o que significa projetar tecidos com CUTECIRCUIT. Disponível em: <http://cutecircuit.com/>. Acesso em 10

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nov. 2013.
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Artigo recebido em 31/07/2016

Aprovado em 02/02/2018
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Foto: Wagner Ferraz
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Artigo 7
O sucesso de reprises:
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um estudo de caso de “A Usurpadora” e o SBT

Me. Jose Luiz Pereira de Arruda, UNIPLAC, Lages/SC 1


Esp. Ivan Cláudio Siqueira de Moraes, UNIPLAC, Lages/SC 2
Gisele Cristiane Urnau dos Prazeres, UNIPLAC, Lages/SC 3
Grad. Luiz Henrique Zart, UNIPLAC, Lages/SC 4

O SUCESSO RESUMO: Um dos produtos de maior alcance do imaginário social

DE REPRISES:
da população brasileira pela indústria da cultura é a telenovela,
que chega aos lares da quase totalidade do país. Ela é reafirmada
pela constante reprise de grandes sucessos brasileiros (e de outros
países), como uma forma de expressão da vida cotidiana por meio

UM ESTUDO DE
das situações vividas pelos personagens. Este artigo pretende analisar
o impacto das inúmeras reprise de “A Usurpadora” pelo SBT. A partir
disso, identificar os modos de vida estimulados pelas telenovelas
mexicanas, oferecendo um panorama geral da cultura de massa, da

CASO DE “A
representatividade de gênero presente nas tramas, além da chegada
da TV no Brasil e do contexto latino-americano no desenvolvimento
da narrativa melodramática dos folhetins até ela se transformar em
telenovela.

USURPADORA” E PALAVRAS-CHAVE: Usurpadora. Reprises. SBT. Melodrama. Telenovela.

O SBT Success of reruns: a research study of “La Usurpadora” and the SBT

ABSTRACT: One of the products most far-reaching of the social


artigos

artigos
imaginary of the population by the culture industry is the soap opera
that reaches the homes of almost all the country. It is reaffirmed by the
constant reprise of great Brazilian successes (and other countries) as a
form of expression of everyday life through the images and situations
experienced by the characters. This article analyzes the impact of the

1 Professor de jornalismo da UNIPLAC – Mestre em Comunicação Social;


2 Professor de jornalismo da UNIPLAC – Mestrando PPGCAMB-UDESC / Espe-
cialista em Comunicação e Semiótica;
C3

3 Graduanda do curso de jornalismo da UNIPLAC.


4 Graduado em Jornalismo na UNIPLAC – Mestrando (especial) UDESC.

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reprise of “The Usurpadora” SBT. From this, identify ways of life stimulated encenação, o estilo tem o primeiro romance publicado em outubro
by Mexican telenovelas, offering an overview of the mass culture, de 1836, no jornal La Presse, escrito por Honoré de Balzac. Foi a partir
gender representation present in the plots, plus the arrival of TV in Brazil
desta iniciativa que o estilo começou a expandir-se.
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and the Latin American context in the development of melodramatic
narrative of serials until she turn into soap opera. Entrelaçado com a cultura de folhetim, o melodrama tinha
como principais público a pequena e a média burguesia, em jornais
KEYWORDS: Usurpadora. Reprises. SBT. Melodrama. Soap Operas.
franceses. A linguagem era acessível, e serviria de molde para as
radionovelas.

Uma introdução ao caso de “A Usurpadora” Esse recurso, aliado à forma de contar a história
diariamente, ou seja, em série, recriava o suspense a
cada fatia, a fim de manter o leitor curioso e instigá-
“A Usurpadora” foi exibida originalmente em 1998, no México, lo a acompanhar o desfecho da trama. Isto é, a
pela Televisa, a maior empresa de comunicações do país. Um ano fórmula gerava o compromisso com o próximo capítulo
(FIGUEIREDO, 2003, p. 26) (VIEIRA, 2013, p. 5)
mais tarde, foi reprisada no SBT pela primeira vez. E em março de
2015, a emissora de Silvio Santos resolveu apostar novamente na velha Conforme Thomasseau (2005, p. 14 apud SILVA, 2013) o estilo
fórmula pela sexta vez, com grande sucesso e apelo com o público, melodramático segue usando principalmente da linguagem oral,
às 5h30 da tarde durante a semana. Chama a atenção o fato de apelando aos aspectos estéticos exagerados, ao excesso de
a trama mexicana ter sido transmitida além da estreia, também em julgamentos morais em torno das situações vividas por personagens
2000, 2005, 2007 e 2012 na televisão brasileira. antagônicos, que protagonizam um jogo de sentimentos que acaba
por exaltar vícios e virtudes de seus intérpretes.
Antes de chegar a “A Usurpadora”, foi necessária a construção
de todo um pano de fundo, um contexto onde se desenvolveu o Neste estilo, a tônica é a de oposição entre as principais
gênero da telenovela, tanto mundialmente, quanto na América características das personagens. O melodrama, como poderia se
Latina. Só depois disso, e com a consolidação da cultura televisiva presumir pelo nome, presa pela arte dramática, comocional, em
em território brasileiro, é que a telenovela pode obter sucesso e ser estórias que tem um toque de realismo fantástico, atravessando as
reprisada mais uma vez, mesmo 16 anos depois da estreia no país fronteiras do impossível, temperadas com os dilemas do cotidiano.
onde foi escrita. É, portanto, entendido como um gênero carnavalesco, do ponto
de vista de uma literatura dialógica (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 319).
Muito antes de “A Usurpadora” ser telenovela, a narrativa
Nela, espectadores e atores ilustram uma narrativa da vida, aberta
esteve fortemente ligada ao melodrama: gênero com raízes no
a reações e modificações vindas de ambas as partes (SILVA, 2013,
teatro, com origem no século XVIII, principalmente na França e na
artigos

p. 4). Age como uma matriz cultural que expressa (com ênfase em

artigos
Inglaterra. Os folhetins, surgidos em meados do século XIX também
determinados pontos) o cotidiano: é deste contexto que a estrutura
ajudaram a desenvolver o estilo narrativo da novela, em suas
da narrativa se repete, mas precisa se adequar às novas formas de
principais características. Folhetins que, na raiz do termo, designavam
vida.
uma parte específica dos jornais, no rodapé da primeira página, onde
normalmente se encontravam também resenhas, críticas literárias e Jesús Martín-Barbero, estudioso da cultura latino-americana,
anúncios e os fait divers (HAMBURGER, 2011, p. 74; SILVA, 2013) destaca que o melodrama é um “espetáculo total” não apenas
como encenação do cotidiano, mas na própria estrutura dramática
Para Martín-Barbero (1997, p. 157), este gênero surge em 1790
na qual é composto: Tem por principais quatro sentimentos básicos –
(portanto, apenas um ano mais tarde) como espetáculo popular,
C3

medo, entusiasmo, dor e riso -, que são, ao mesmo tempo, situações e


oposto ao teatro erudito. Focado na expressividade e no drama da
sensações – “terríveis, excitantes, ternas e burlescas – encarnadas por

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quatro intérpretes, sob as figuras de Traidor, Justiceiro, Vítima e Bobo, mundo, alcançando em suas melhores fases 40% de
audiência masculina (HAMBURGER, 2011, p. 67).
respectivamente.
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Existe uma diferença entre os dois modelos. Enquanto o folhetim
Juntas, essas características mesclam quatro gêneros narrativos
desenvolvia a história em “próximos capítulos”, com o objetivo de
diferentes: o romance de ação, a tragédia, a comédia e a epopeia,
chagar a um fim definido, a soap opera se desenvolve ao mesmo
que resultam em uma intensidade só atingida pelo melodrama
tempo que é escrita, produzida e encenada (praticamente como as
(MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 62 apud VIEIRA, 2013, p. 4). Afirmando esta
telenovelas). Desta forma, é mais flexível no sentido de que pode sofrer
posição, Thomasseau trata o melodrama como
alterações conforme as reações do público. Outra semelhança entre
[...] um gênero teatral que privilegia primeiramente a
emoção e a sensação. Sua principal preocupação é a soap-opera e a novela é a existência de comunidades, núcleos de
fazer variarem estas emoções com a alternância e o personagens em determinado local, que facilita a identificação pela
contraste de cenas calmas ou movimentadas, alegres
ou patéticas. É também um gênero no qual a ação divisão em extratos sociais, como o bairro nobre e a periferia (BORELI;
romanesca e espetacular impede a reflexão e deixa ORTIZ; RAMOS, 1991, p. 19 apud VIEIRA, 2013, p. 6).
os nervos à flor da pele [...]. O melodrama, é verdade,
pratica em geral um moral convencional e ‘burguesa’, Com o desenvolvimento das radionovelas na América Latina,
mas não se pode esquecer que ele veiculou, durante
uma boa parte do século não só idéias políticas, sociais e o Brasil também teve mudanças. A partir de 18 de setembro de 1950,
socialistas, mas, sobretudo humanitárias e ‘humanistas’, quando a TV (Tupi) chega ao país pelas mãos de Assis Chateaubriand,
apoiando-se na esperança fundamental de um triunfo
final das qualidades humanas sobre o dinheiro e o empresário das telecomunicações e proprietário dos Diários Associados
poder. Ele carreou, de cambulhada, os sonhos e as – que envolvia uma cadeia de jornais impressos e rádios -, a ficção e
esperanças dos estratos sociais mais desfavorecidos,
mas também criou e manteve a efervescência de o teleteatro perdem espaço para a telenovela, que vive um espaço
um imaginário popular, rico e vigoroso (THOMASSEAU, de consolidação até 1969 (MIRA, 1999, p. 30 apud VIEIRA, 2013, p.
2005, p.139-140) (SILVA, 2013, p. 3)
7). Até a logo da primeira emissora de TV brasileira, a Tupi, faz alusão
Neste panorama, na América Latina, o melodrama representou a um menino indígena com antenas na cabeça, em vez do cocar.
uma matriz cultural baseada no reconhecimento popular na cultura Assim, há uma espécie de apropriação da tecnologia internacional
de massas (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 152 apud VIEIRA, 2013, p. 4). de maneira infantilizada (APPADURAI, 1999 apud HAMBURGER, 2011).
Tem parte neste processo o surgimento e a popularização do rádio, Mas o que é, realmente, uma telenovela?
primeiro nos Estados Unidos, em 1930, já que por lá existiam programas Uma história contada por meio de imagens televisivas,
de aproximadamente 15 minutos diários, que dão início à “era com diálogo e ação, criando conflitos provisórios e
conflitos definitivos. Baseia-se em diversos grupos de
moderna” se assim se pode dizer, da soap-opera ou história seriada personagens, de lugares e de ação, grupos que se
(MEIRELLES, 2008). relacionam interna e externamente e, ainda, supõe a
artigos

artigos
criação de protagonistas, cujos problemas assumem
Em primeiro lugar, é útil ressaltar que o nome de soap-opera pode primazia na condução da história. Na atualidade,
tem uma duração média de 160 capítulos: cada
ser tratado ao pé da letra, já que os espetáculos eram patrocinados, capítulo tem, aproximadamente, 45 minutos de ficção
nos EUA, por empresas fabricantes de sabão (soap, em inglês). Em (FIGUEIREDO, 2003, p. 38) (VIEIRA, 2013, p. 7)

segundo lugar, a estrutura de história seriada vem da exibição da Vale ressaltar que a telenovela surge neste mesmo período no
estória fragmentada por capítulos, assim como o folhetim. Brasil, mas a veiculação diária só acontece a partir de 1963, com o
Mas a soap opera se define por uma temporalidade videotape, que torna a televisão o meio de comunicação de maior
quase que real, com histórias que acompanham o
envelhecimento do elenco e dos personagens. A soap alcance e expressão do país. Esta tecnologia permitiu que “lugares
C3

opera não possui começo, meio e fim; ela dura anos. diferentes vissem os mesmos programas, mas com atrasos que variavam
Já a novela dura alguns meses e dominou o horário
nobre de uma das principais indústrias de televisão do de acordo com o tempo que a fita demorava a chegar (HAMBURGER,

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2011, p. 63-64). Também como uma ambição dos militares, em uma entre empregada e o filho do patrão” (ROMANCINI, 1999, p. 2).
tentativa de “integração” do país pelas telecomunicações, com a
Já em 1970, a TV Globo apostava nas tramas melodramáticas,
criação da Empresa Brasileira de Telecomunicações, a Embratel
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em série, para um público predominantemente feminino. Tudo com
(SILVA, 2013, p. 5-6).
base na reescrita de roteiros que funcionaram na América Latina.
A TV age como uma formadora da identidade contemporânea Depois de certo período, as produções brasileiras começaram a se
do povo brasileiro, de acordo com Martín-Barbero (2003), pelos distinguir do resto do continente, ainda seguindo a estrutura narrativa
aspectos visuais que ela privilegia. do melodrama, mas de maneira menos apelativa, mais aberta
ao diálogo, realista, e à tensões sociais exacerbadas na década
Em 21 de dezembro de 1951, Walter Forster começou a delinear
anterior. Também vale o destaque de uma indústria novelista ainda
a influências que as novelas teriam no Brasil. Escreveu, dirigiu e atuou,
embrionária. Como lembra Jesús Martín-Barbero, (2001, p. 118 apud
ao lado de Vida Alves em “Sua vida me pertence”, ainda em estrutura
VIEIRA, 2013, p. 8: “Até a década de 1970, os horários mais rentáveis
radiofônica, mas na TV, com 15 capítulos exibidos duas vezes por
eram dominados por ficções e seriados norte-americanos. Então,
semana (ALENCAR, 2005 p. 2; MEIRELLES, 2008, p. 3).
cerca de 40% da programação ocupada por seriados, melodramas
Entretanto, por um bom tempo, a TV manteve-se em espaços comédias e policiais”.
mais restritos da população. Não ocupava o horário nobre, não trazia
Iniciado o desenvolvimento, diz Hamburger (2011, p. 75) que
retorno financeiro, “Em 1960, dez anos depois de inaugurada, ela
“durante os anos 1970-80, a novela brasileira surpreendeu por sua
podia ser vista em 4,6% do território nacional. Em 1991, a televisão já
capacidade, inédita como produto comercial, de atrair público
alcança 99% do território e 74% dos domicílios (HAMBURGER, 1998)”
telespectador de diferentes classes sociais, composto de homens e
(HAMBURGER, 2011, p. 64). Hoje, a TV está em mais de 98% dos lares
mulheres, das mais diversas gerações e habitantes de todo território
brasileiros, de acordo com informações do Instituto Brasileiro de
nacional”.
Geografia e Estatística (IBGE), de 2010. Em 1969 iniciou-se um processo
de transição, onde a televisão deixaria de ser local para ter alcance A dinâmica da telenovela começa a aparecer quando é
nacional. composta uma linha de temporalidade, por exemplo, para a exibição
dos capítulos diariamente, além da ambientação das histórias em
Sob a ditadura, os impasses sobre a censura e a repressão eram
determinados lugares (HAMBURGER, 2011, p. 70). Esta relação de
constantes. O intervencionismo, as prisões e as torturas eram blindados
continuidade permite a criação de laços de afeto e proximidade
por uma aura magnífica que a televisão causava. Neste período,
entre os personagens e os cenários e o público, que identifica-
popularizaram-se os programas de auditório, que costumavam
se com a trama e começa a adequar seus horários em função da
artigos

distribuir objetos como geladeiras e carros, além de outros bens de

artigos
novela. A previsibilidade da narrativa comum às novelas mexicanas
consumo.
faz com que o público identifique (apesar do dramalhão) situações
Mesmo durante a época de repressão, o movimento de abertura que acontecem no cotidiano, e, então, acompanhe a trama e se
da teledramaturgia brasileira em relação aos produtos latinos se identifique com determinados papéis. Chegando, inclusive, a tratar os
iniciou. Inclusive, o modelo de história do dramalhão mexicano tão atores (fora das câmeras) como se realmente fossem os personagens
presente em “A Usurpadora” e outras tramas já podia ser identificado, que interpretam.
em um modelo que, segundo o autor, pode ser explorado a exaustão Niklas Luhmann (2005, p. 137) aponta que “[...] a televisão
e mesmo assim não tem perdido a validade: “Em 1964, a TV Excelsior parece buscar sugerir ao leitor que certas experiências
são dele mesmo. [...] Chega-se a emaranhados
C3

ajudou a firmar o gênero, em sua forma diária, com ‘A Moça que Veio indestrinçáveis entre a realidade real e a realidade
de Longe’, adaptação de um original argentino, cuja história de amor ficcional.” O que é mostrado numa telenovela, por

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exemplo, é baseado na realidade, que por sua vez, a face. Mas em alguns aspectos a televisão também
também pode ser alterada pela ficção apresentada. estreita a variedade de deixas simbólicas (THOMPSON,
Luhmann (2005, p. 109) conclui que “o entretenimento 1995, p. 85).
possibilita uma auto-inserção do mundo representado”
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(FERNANDES, 2012, p. 4). A conexão entre as produções da América Latina proporcionou
a troca de experiências e capital tecnológico e dramatúrgico entre
Usurpadora é um exemplo do destaque dado aos personagens
emissoras. Junto à Globo no Brasil, uma das precursoras da TV foi o
no melodrama: figura em um quadro de choque entre a pobreza e
Texmex, que, no futuro, se tornaria a Televisa: O maior grupo de
a ascensão social; trafega nos limites entre o aceitável e o execrável,
comunicação do México com 58 canais de TV nacionais, o mesmo
e mexe com clichês como falsidade, traição e mentira, claramente
número de emissoras locais, cobrindo 85% da oferta televisiva mexicana
condutas conflituosas, que temperam a telenovela das Bracho. Assim,
-, e o primeiro a trazer a telinha para aquele país em 1950 (COSTA,
“as histórias são centradas em personagens femininos, heroínas que
2000, p. 67 apud VIEIRA, 2013, p. 14). A Globo seria a primeira emissora
lutam contra diversos tipos de dificuldade até o final feliz do encontro
brasileira a se aproveitar desta situação e a profissionalizar seu setor de
amoroso definitivo e desimpedido dos empecilhos que constituíram
dramaturgia, que hoje é referência (até de exportação) do Brasil.
por meses a longa trama narrativa” (ALMEIDA, 2007). A novela também
atua no sentido de Neste contexto é que aparece um dos personagens que levaram
difundir narrativas que veiculam moda, decoração, a cultura do dramalhão mexicano ao nosso país: Senor Abravanel,
aparelhos eletrônicos, carros, o hábito de viajar, a
mais conhecido como Sílvio Santos.
novela, além de turbinar vendas, possibilita que, via
consumo, o espectador se sinta parte do universo
narrativo. Há aqui um embrião da estrutura em As tramas amorosas se consolidam como um programa
rede: espectadores se relacionam entre si e com os vespertino com a popularização dos aparelhos televisores. Mas não
personagens através da adoção de certos modismos
que fazem sentido enquanto a novela está no ar. só isso. Como exemplo da explosão da cultura da novela mexicana
Ela acena simultaneamente com a possibilidade no Brasil. Em 1994, Silvio Santos já apostava nos produtos mexicanos,
de inclusão no universo interno e externo à narrativa
ficcional (HAMBURGER, 2011, p. 71-72). quando comprou 52 episódios da série “El Chavo del Ocho”, no
Brasil, o “Chaves”; além de 247 capítulos da novela “Os ricos também
Thompson ajuda a esclarecer alguns aspectos técnicos, nos choram”. Depois, só fez aumentar: com “Chiquititas”, produzida em
enfoques e direcionamentos característicos da teledramaturgia, de Buenos Aires e exibida em 16 países; “Pérola Negra”, exibida entre
maneira geral: 1998 e 1999, com roteiro mexicano, tradução, produção e mão de
Uma das conquistas técnicas da televisão é a sua obra brasileira.
capacidade de utilizar uma grande quantidade de
deixas simbólicas, tanto de tipo auditivo quanto visual. O Sistema Brasileiro de Televisão – SBT – por exemplo, tem
Enquanto a maioria dos meios técnicos restringe a nos enlatados mexicanos, americanos e venezuelanos
artigos

artigos
variedade de deixas simbólicas a um único tipo de seu grande forte, com novelas “açucaradas e
forma simbólica (a palavra falada ou escrita), a televisão melosas”, além de diversos seriados americanos que
tem uma riqueza simbólica com as características da acabam caindo no gosto popular, como ”Chiquititas”,
interação face a face: os comunicadores podem ser “Carrossel” e, “A Usurpadora”. “Mulher com Aroma de
vistos e ouvidos, movimentam-se através do tempo Café”, “Um Maluco no Pedaço”, “Chaves” “Chapolin”
e do espaço da mesma forma que os participantes entre outras não menos exóticas (BERNO, 2003, p. 2).
na interação social cotidiana, e assim por diante.
Contudo, a variedade de deixas simbólicas disponíveis Também obteve sucesso com Maria do Bairro, Marimar e Maria
aos espectadores é diferente das que são acessíveis
aos participantes de uma interação face a face. É Mercedes, com média de 12 a 24 pontos no Ibope (COSTA, 2000, p. 78
diferente porque a televisão focaliza a atenção dos apud VIEIRA, 2013, p. 14). Depois da trilogia foi exibida pela primeira
receptores para certas características em detrimentos
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de outras e é capaz de utilizar um conjunto de técnicas vez no Brasil “A Usurpadora”, que consolidou a década de 1990 como
(flashbacks, mixagens, o uso de máquina arquivada, a de fixação da teledramaturgia mexicana no país. A novela é de
etc.) que não são características da interação face

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1998 e foi ao ar pela primeira vez no Brasil em 1999 (ALENCAR, 2005). As questões fundamentais do feminismo estão focadas
na identidade e na posição culturais: o que significa viver
A característica, percebe-se com a reexibição de 2015, é a de que como mulher ou como homem? Como aprendemos
“ainda que os gêneros mantenham suas características basicamente a ser um ou outro? Até que ponto o gênero – nossas
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próprias identidades como homem ou mulher, nossas
universalizantes, num processo de reapropriação, permitem que sejam idéias sobre o que isso deve significar – moldam nossa
dinamicamente recriados (BORELLI, 1994, p. 131 apud SILVA, 2013, p. experiência de cultura? Essas questões alteram os
problemas fundamentais dos estudos de televisão – o
4). que estamos fazendo quando assistimos televisão? – e
Da narração, o melodrama de televisão conserva uma nos incentivam a questionar como a televisão trabalha
forte ligação com a cultura dos contos e das lendas, para estabelecer e promover não só identidades de
a literatura de cordel brasileira, as crônicas cantadas gênero, mas as relações culturais existentes, de modo
nas baladas e nos vallenatos. Conserva o predomínio geral (MUMFORD, 1998: 115 apud MEIRELLES, 2008, p. 2)
da narrativa, do contar a, com o que isso implica
de presença constante do narrador estabelecendo Diz-se que as telenovelas são um gênero que atinge
dia após dia a continuidade dramática; e conserva principalmente a população feminina. O potencial de consumo é
também a abertura indefinida da narrativa, sua
abertura no tempo – sabe-se quando começa mas não agente de influência, uma vez que os alvos principais das novelas são
quando acabará – e sua permeabilidade à atualidade donas de casa e pessoas de origem mais humilde, das classes D e E,
do que se passa enquanto a narrativa se mantém, e
as condições mesmas de sua efetivação (MARTÍN- que tem como principal meio de informação a televisão (ALMEIDA,
BARBERO, 1997, p. 307 apud VIEIRA, 2013, p. 17). 2007):
Deste modelo melodramático fica a expressividade da América A assistência masculina também instigou algumas
pesquisadoras, justamente porque os números e
Latina e seus dilemas no dramalhão, justamente porque é um gênero pesquisas contradizem o senso comum de que apenas
aberto às formas de viver e sentir da população. Se situa no campo mulheres vêem telenovelas. Os mecanismos de medição
da audiência já há algum tempo trazem a público a
do imaginário de uma sociedade pela relação que estabelece entre alta percentagem de audiência masculina, mas tal fato
lazer, entretenimento e sentimento, estimulados pelo clima gerado concreto não serviu em nada para desconstruir a certeza
de que novela é coisa de mulher. Principalmente para
pela telenovela: capaz de fornecer, de certa forma, pontos de vista os homens que, de acordo com pesquisa etnográfica
sobre como cada um de nós se coloca no mundo. O diálogo sustenta de Almeida (2003), demonstram-se defensivos ao falar
sobre esse tema e, quando o fazem, denotam sempre
esta tese, fixada pela característica do suspense, só acessível a quem que estão se referindo a um programa feminino, pois os
segue a trama e assiste ao próximo capítulo. Entretanto, seus produtos são o futebol ou o noticiário - ainda que
se reportem com interesse e envolvimento às narrativas
não se pode esquecer que essa cultura da telenovela melodramáticas (ALMEIDA, 2003; HAMBURGUER, 2005
é pautada na indústria e que se organiza a partir de um apud MEIRELLES, 2008, p. 12).
modelo de produção em massa, seguindo os cânones
já consagrados, inclusive fazendo uso da tecnologia de A telenovela mexicana, de certa forma, faz com que o público
ponta. No entanto, não se pode cair no reducionismo de
artigos

artigos
afirmar que a produção determine tudo. Certamente conviva com conteúdos muitas vezes diferentes do contexto onde
que as condições de produção exercem profunda está. Vale, mais uma vez, destacar a cultura de massa como fator
influência na concepção do produto, entretanto,
afirmá-las que são pura e simplesmente ideológicas determinante, já que a produção e difusão generalizada de bens
sem analisar profundamente seus modos de recepção, simbólicos favorece que este fenômeno aconteça – neste caso, na
é ingênuo (SILVA, 2013, p. 10).
transição Brasil-México de “A Usurpadora”. Almeida (2007) também
A busca por afirmação de padrões como os de casamento diz que
(insatisfação com ele, neste caso) e até de beleza (como em Betty, a a relação da novela com o dia-a-dia é evidente; trata-
Feia, sucesso mexicano reprisado pela RedeTV! Com bons índices de se de uma narrativa marcada pela cotidianidade. As
pessoas assistem às novelas em meio a seu cotidiano;
audiência. Deste ponto cabe pensar que:
C3

muitos assistem à novela das seis ou das sete ao passo


que preparam o jantar, arrumam a casa ou fazem os
afazeres domésticos. O público feminino, na média,

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tem maior envolvimento. nostalgias e utopias [...]. São muitos os que ficam
com saudade do passado, ou do futuro. Às vezes,
Constrói-se, a partir daí, uma “educação de sentimentos”, nos apenas negam o presente. Mas outras podem utilizar
a nostalgia ou a utopia para refletir melhor sobre o
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termos de Geertz (apud ALMEIDA, 2007), incorporada geralmente presente (FERNANDES, 2012, p. 10).
pelas gerações mais novas, que convivem a mais tempo com a TV e
são possíveis alvos da reprise da novela. Esta concepção é interiorizada
e assimilada no diálogo sentimental e afetivo, de proximidade,
estabelecido entre público e personagens “tratados de maneira muito
próxima como se fossem pessoas reais que vivem ali do lado, vizinhos, REFERÊNCIAS
conhecidos, amigos ou parentes, permite a comparação constante ALMEIDA, Heloísa Buarque de. Consumidoras e heroínas: gênero na
com suas experiências individuais” (ALMEIDA, 2007). telenovela. Rev. Estud. Fem. vol.15 no.1 Florianópolis Jan./Apr. 2007.
Muitas vezes, nessas aproximações as pessoas refletem Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
sobre suas vidas, suas escolhas, revêem seus pontos de
vista. A novela fornece um panorama que permite ao 026X2007000100011&script=sci_arttext>. Acesso em 10.ago.2015.
espectador um relativo “processo reflexivo do eu”  a
partir das formas de viver e de lidar com os afetos, com ALENCAR, Mauro. A telenovela como paradigma ficcional da América
as relações amorosas e familiares que vê representadas
Latina. XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação: 5 a 9
na narrativa, e a partir das quais discute e repensa as
suas experiências no campo dessas mesmas relações de setembro de 2005. UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
(ALMEIDA, 2007).
Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/107556379
Em 2015, na sexta reprise, “A Usurpadora” deu a vice-liderança 514525862227919082428423291947.pdf>. Acesso em 10.ago.2015.
de audiência ao SBT (FOLHA, 2015). Isso evidencia a formação de BERNO, Geovani. Televisão, educação e sociedade: uma visão crítica.
um sentimento que faz com que o público siga acompanhando a BOCC: Biblioteca Online de Ciências da Comunicação. Disponível em:
trama: a nostalgia. Conteúdos que resistem ao cruzamento grande <http://www.bocc.ubi.pt/pag/berno-geovani-televisao-sociedade.
de informações e à descentralização das sociedades modernas pdf>. Acesso em 10.ago.2015.
(FERNANDES, 2012).
COSTA, Cristiane. Eu compro essa mulher. Romance e consumo nas
Neste panorama, a formação de um imaginário coletivo, como telenovelas brasileiras e mexicanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
diz Martín-Barbero (2003), é também a criação de personalidades, 2000.
da constituição do público como sujeito, em uma “construção que
se narra” (CANCLINI, 1999, p. 163 apud FERNANDES, 2012, p. 3). Estes FERNANDES, Julio Cesar. Memória televisiva na construção do Imaginário
nacional: estudo da reexibição da telenovela “Vale Tudo” no Canal
artigos

dois tipos de representação formam uma comunidade imaginada,

artigos
que se baseia nas memórias do passado (FERNANDES, 2012, p. 3). De Viva. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares
certa forma, esta ideia ajuda a explicar o sucesso das telenovelas da Comunicação XVII Congresso de Ciências da Comunicação na
mexicanas – especificamente de “A Usurpadora”. A facilidade de Região Sudeste – Ouro Preto - MG – 28 a 30/06/2012. Disponível em:
assimilação em uma linguagem acessível é outro trunfo, que se baseia <http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2012/resumos/
nos clichês para atingir as demandas sentimentais e de entretenimento R33-1034-1.pdf>. Acesso em 14.ago.2015.
do público (BRITOS; SILVA, 2010; TORRES, 2003). É um divã coletivo da
FOLHA de S. Paulo. Quinta reprise de “A Usurpadora” garante
sociedade brasileira.
vice-liderança ao SBT. Folha de S. Paulo: São Paulo – Outro Canal:
C3

Ao falar da era da globalização e dos novos 31.mar.2015. Disponível em: < http://outrocanal.blogfolha.uol.com.
paradigmas de nações, Octavio Ianni (2000, p. 225)
aponta que: [...] esse é o ambiente em que germinam br/2015/03/31/sexta-reprise-de-a-usurpadora-garante-vice-lideranca-

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www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/qtv230920032.htm>.
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Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba: 2013. Disponível


em: <http://pt.scribd.com/doc/149684026/Novelas-Mexicanas-e-

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artigos

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Foto: Wagner Ferraz
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Artigo 8 REVERBERAÇÕES UTERINAS:


PROCESSO DE CRIAÇÃO SANTO/PROFANA NO ESPAÇO
INCORPORAL DA INSTALAÇÃO PERFORMÁTICA
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REVERBERAÇÕES Esp. Daniel Aires, UFRGS, Porto Alegre/RS1

UTERINAS: RESUMO: O presente artigo deflagra parcialmente o processo de


criação da obra “Reverberações Uterinas”2. Este manuscrito apresenta

PROCESSO
o relato do autor quanto à sua obra, seus procedimentos de criação
e problematização conceitual. Tem como embasamento conceitual/
metodológico a confrontação da figura feminina em uma perspectiva
santo/profana bem como a investigação de um útero conceitual

DE CRIAÇÃO
como espaço incorporal para a ação performática. A problemática
transita na proposição que move esta poética, ou seja, de que
maneira o santo e o profano articulam-se para (trans)formar o útero

SANTO/
em lugar incorporal? Justifica-se por palpar a interdisciplinaridade da
arte contemporânea borrando as fronteiras entre as linguagens que
compõe este fazer artístico. Conclui-se nos conceitos de restrição e
infinitude.

PROFANO Palavras-chave: Instalação; Performance; Dança; Útero; Incorporal.

NO ESPAÇO UTERINES REVERBERATIONS:


SACRED/PROFANE CREATION PROCESS IN THE EMBODIED SPACE

INCORPORAL OF THE PERFORMATIC INSTALLATION

DA INSTALAÇÃO
ABSTRACT: The current article partially sparks the creation process of the
artigos

artigos
artwork named “Uterine Reverberations”. This text presents the author’s
report regarding his artwork, its creation procedures and conceptual
problematization. It’s conceptually/metodologically based on the

PERFORMÁTICA
“confrontation of the female image in a sacred/profane perspective,
as well as on the investigation of a conceptual uterus as an embodied

1 Daniel Aires: Bailarino e coreógrafo, Bacharel em Artes Visuais pela Univer-


sidade Federal de Santa Maria (UFSM), Especialista em Dança pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestrando em Artes Cênicas PPGAC (UFRGS).
C3

2 Reverberações Uterinas trata-se de uma instalação performática, apresen-


tada como conclusão do curso de Artes Visuais UFSM no período 2015/1, sob orien-
tação de Suzana Gruber.

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space to the performatic action. The study’s problem transits in the vida, de ser colo, de ser gerável, embrionável, abrigável e habitável.
proposition that moves this poetics, that is, in what manners the sacred
and the profane articulate themselves to (trans)form the uterus in Nessa proposição de um estado latente de vida, espacial e
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a embodied place? This study justifies itself by reaching/touching dinâmico, o autor se convida a estar entregue e imerso nesse espaço,
the interdisciplinarity of the contemporary art, and by blurring the
atuando como fio condutor, destinado a ser de fato a obra viva
boundaries between the languages that composse this artistic making.
It concludes itself in the concepts of restriction and infinitude. e pulsante ao entrelaçar os espaços e situações que a obra pode
impulsionar. A presença do “EU corpo” se faz imprescindível para
Key-words: Installation. Performance, Dance; Uterus; Embodied space.
que os espaços fluam nesta ação, perpassem pelo artista/performer,
e esse, pelos elementos da instalação, cambiando e reinventando
Introdução novas possibilidades de situações.

O presente artigo revisita o trabalho de Conclusão do Curso Sobre essa perspectiva de estado vibrátil enquanto corpo e
de Artes Visuais UFSM, resgatando a imersão sensível nos campos de enquanto obra, Fabião (2010) discorre sobre esta possibilidade quanto
atuação com os quais o autor se constrói enquanto ‘ser’, em uma ao corpo cênico:
motivação de produção prático discursiva que busca transitar pelo [...] O corpo acontece em densidades
terreno da arte da performance, da dança, das artes visuais, de cambiantes. Estamos permanentemente vibrando,
uma vibração mínima. O adjetivo “vibrátil” nomeia não
técnicas circenses e de recursos visuais da cena (iluminação, projeção, apenas essa condição de combinarmos e cambiarmos
sonoplastia) servindo de aporte para esta inquietante produção de densidades permanentemente, mas também um
tremular contínuo, a oscilação entre ser e não ser,
sentido e de presença. Ancorado na multidisciplinaridade inerente entre vida e morte, entre arbítrio e determinismo que
ao processo de construção do artista e ao respaldo que essa encarnamos. A cena exacerba a condição vibrátil do
corpo [...] contra a noção de identidades definidas e
multiplicidade confere às produções em arte contemporânea. Deste definitivas, o corpo-campo é performativo, dialógico,
modo encontra na performance e na instalação a possibilidade de provisório [...] o corpo cênico dá a ver “corpo” como
sistema relacional em estado de geração permanente.
abarcar os elementos que constituem e formulam esta proposta. (FABIÃO, 2010, p.322, grifo nosso).

A obra traz vários elementos díspares (placas estofadas Ainda sobre o estado de corpo cênico para esta abordagem
em Capitonê, miniaturas de mantos sagrados, biombos, um sofá, considera-se necessário esclarecer que não há fala, tampouco textos
artefatos religiosos, etc.) que funcionam como peças autônomas ou encenações preestabelecidas. O “eu atuante” não tenta ser
quando extraídas do conjunto ou ainda como uma grande instalação personagem, nem está “representando” algo. Ele de fato busca ser
performática, - uma vez que esses elementos - figuram a proposta/ um corpo em troca de sentido, que questione a frieza que os objetos
intenção de revisitar simbolicamente os elementos que processaram as dispostos na composição possam trazer.
artigos

artigos
investigações e experimentações dicotômicas santo/profanas nesta
pesquisa - buscando estabelecer relações de tensão que inquietem Embora a obra assuma um caráter de espetáculo, devido a
e questionem a inércia do observador quanto aos padrões estético/ organização de seu arranjo (som e luz) e instalação em um ambiente
conceituais estabelecidos pela fé enquanto cultura de massa. (estrutura) de teatro, procura neutralizar proeminências técnicas
ou virtuosismos decorrentes das especificidades das linguagens3
O título “Reverberações Uterinas” busca conferir à obra um de maneira que esses códigos estarão presentes no corpo (já que
estado vibrante, contínuo do “aqui e agora” que se dá em uma esfera o constituem), mas sem que estes se coloquem em detrimento do
(continental) cuidadosamente trabalhada na concepção metafórica
do lugar útero, uma vez que esse lugar é vivo, irrigado, pulsante e traz
C3

3 Por exemplo o virtuosismo técnico inerente ao Ballet Clássico no uso de gran-


em si a essência do ser humano feminino, capaz de gerar a própria des saltos ou equilíbrios específicos, bem como posições de demonstração pura de
força e resistência nos aparelhos aéreos circenses.

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estado de presença para o instalação como um todo, para que se transfiguração de sua posição básica que a tornou
tão subversiva no exterior. A transfiguração é um
potencialize no estado cênico de experimentação. Assim, busca não conceito religioso. Significa a adoração do comum,
enquadrar esta abordagem performática como uma apresentação como em sua manifestação original, no Evangelho de
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São Mateus, ela significava adorar um homem como
de ballet, por exemplo, menos ainda como um número circense4, a um deus... Parece-me agora que parte da imensa
neste ponto estas duas linguagens se põe à disposição do conjunto e popularidade da “Pop” reside no fato de que ela
transfigurou coisas ou tipos de coisas que significavam
não o oposto, para evitar que sejam usadas, por exemplo, formações muito para as pessoas alçando-as a condição de
tradicionais de dança ou de números circenses. Deste modo contempla temas de arte elevada. (DANTO, 2006 p.86)
a valorização do corpo. Sob este aspecto concordamos com Fabião:
Nesta vontade inicial de que a instalação performática abrigue
[...] Um corpo cênico porque desautomatiza algo ou alguém, o artista questiona-se: que lugar era esse? - que quer
mecânicas perceptivas, cognitivas e comportamentais;
um corpo cênico porque investiga as dramaturgias abrigar, que quer conter algo ou alguém? A partir desse querer, de que
do corpo e a nervura da ação; um corpo cênico maneira faze-lo de fato existir. Nesse contexto Cauquelin (2008) ilumina
porque em estado de experiência e experimentação.
(FABIÂO, 2010. p.224). o propósito de tratar esse lugar de possível abrigo como um espaço
incorporal, sugerindo possíveis presenças nestes espaços, inclusive em
Articulações do corpo santo/profano
suas ausências, através de vestígios por exemplo. A próxima citação
Desestabilizar as distâncias entre o santo e o carnal e recombinar sugere um esclarecimento ilustrativo para tais proposições:
narrativas interiores acerca de uma figura imaculada, reavivar as [...] como, então, um espaço que, por definição,
incertezas das compreensões da vida é nada mais do que inverter-se pode conter, mas não contém corpo algum, pode
conter o mundo? [...] é chamado vazio um espaço
para a parte das histórias santas em que o santo é gente, é humano. que não contém corpo algum, mas que é capaz de
conte-lo[...] fora do mundo se funde o vazio infinito,
Posicionamo-nos a pensar, a discutir, a questionar, sobretudo que é o incorporal; o incorporal é aquilo que é capaz
de conter corpos ou de não conte-los. O incorporal
no que diz respeito a normatividade, a estaticidade das ideias, a tudo se torna, então, um lugar. Incorporais, o lugar e o
que está frio ou amornado. Nesse movimento o artista se permite a vazio são uma mesma coisa, que é chamada ‘vazio’
quando nenhum corpo a ocupa, e ‘lugar’ quando é
liberdade e segurança de que existem e podem ser explicitados em ocupada por algum corpo (CAUQUELIN, 2008 p.31,32).
multiplicidade de pensamento, ambiguidade, representação corporal,
a maneira de sugerir novas formas de pensar a cultura, a educação, Além disso, esclarecer conceitualmente a maneira de conter
o conhecimento, o poder e a representação. Acessa a profundidade algo por sua ausência levou o autor a estabelecer uma nova relação
cultural para diretamente interferir, revelar e desvelar convenções para com a figura feminina/santa: O útero feminino neste contexto
sociais ao reivindicar a existência, permanência e continuação de também é em si um incorporal, por sua estrutura biológica é capaz de
artigos

corpos transgressivos e o “estranho” na vida cotidiana.

artigos
abrigar um ser humano em fase embrionária/fetal.

Sobre este movimento de resistência, subversão e transfigurações Embora Cauquelin (2008) estabeleça relações de lugar, vazio
desprendidas nas abordagens que suscita, o artista acredita aproximar e corpo sob aspectos do Universo como referência, a aplicação que
sua pesquisa ao que essa conversa com a art pop definida por Danto estamos propondo assume ter como universo o próprio ser feminino,
neste contexto: enquanto gênero e enquanto corpo, estendendo para a suposição
[...] A pop art como tal foi uma realização da figura santa (corpo ficcional) a mesma abordagem de lugar,
propriamente americana, a creio ter sido a convergindo mais uma vez para as comparações/suposições que
cercam o sagrado feminino.
C3

4 Nesse contexto o Ballet e o Circo porque fazem parte da vivência do artista,


além disso, porque alguns aparelhos de acrobacias aéreas ajudam a compor a ins-
talação e serão usados em suspensões do corpo.

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O útero enquanto lugar performático estruturas que compõe a instalação, uma vez que para ele, carregam
características muito semelhantes às do espaço útero, traduzindo
O útero conceitual (instalação) passa a ser o ponto central ao
acolhimento, conforto, abrigo, além de fortemente suscitarem ao
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que precede e supõe o desenvolvimento da performance. Neste
feminino ou mais especificamente a sensualidade feminina. Além
ponto entender o espaço cênico e como ele pode ser uterino - no
disso, a cor que predomina na composição é o vermelho, em
sentido de ser receptáculo de vida, de ação, de performance – é dar-
diferentes nuances, revivendo a ideia inicial referente a carnalidade
se ao estado de fluxo no espaço tempo. Não se trata de um simples
e a visceralidade humana, opondo e questionando as características
jogo de elementos alegóricos a compor um cenário e sim de um
do santo/imaculado. Ver figuras 1 e 2.
espaço pensado como um todo que de fato gere as atitudes que
afetam o corpo cênico, oferecendo ferramentas para que trocas
sensíveis possam acontecer.

Para formular esta proposição de entendimento do útero


enquanto lugar fértil e criativo abordaremos alguns conceitos inerentes
a dança contemporânea, uma vez que a dança percorre espaços e
os habitam de maneiras mais descentralizadas e menos enquadradas
do que a dança clássica por exemplo, em seu acontecimento, se
insere, reconfigura os limites cênicos, segundo Louppe (2012) que o
disseca em um esmaecimento de fronteiras especiais, tomando-a
como um meio relacional entre corpo/movimento/espaço.
[...] trata-se de um espaço que o corpo encara como
outro corpo, um espaço como parceiro, onde o
corpo, se souber dominar os seus estados tensionais,
pode inventar consistências e esculpi-las. [...] Na sua
visão do espaço dinâmico, Laban já havia descrito
um intercâmbio activo entre o espaço e o sujeito. A
par do movimento dos corpos no espaço, existe o
movimento do espaço nos corpos. [...] O espaço torna-
se um parceiro afectivo, quase com a capacidade
de alterar os nossos estados de consciência. (LOUPPE,
2012. p.189)

Esse espaço de trocas contingentes que buscamos mensurar


artigos

artigos
para a instalação “Reverberações Uterinas” consiste em emancipar e
expandir a ideia de um útero real - não em como seria sua aparência Figura 1: “Reverberações Uterinas”. Foto/Registro do autor. Trata-se da primeira
instalação em espaço público, UFSM/2014.
- mas no que conceitualmente esse útero agrega à essa proposição:
um espaço de abrigo, confortável e acolhedor. Seguindo essas
características sensoriais, a tradução visual acolhida pelo autor
trata-se do uso de estofado capitonês5 para os revestimentos das

5 Capitonê é um tipo de acabamento que fora muito utilizado nos móveis


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da época Vitoriana, porém ainda é usado em outras relações de mobílias contem-


porâneas que buscam um toque de sensualidade aos ambientes. Consiste em um mando desenhos geométricos. O mais clássico e famoso móvel criado nessa linha é
estilo marcante, com botões que dão acabamento a superfície acolchoada for- o icônico sofá Chesterfield, revestido em couro e com acabamento Capitonês.

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é esse que mesmo propondo a santidade não deixa de ser corpo?


Abriga nele mesmo e na ação a proposição aurática de culto?
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As dúvidas desta construção movem mais do que as certezas,
pelo fato de entendermos as certezas como inertes, enquanto a dúvida,
a proposição e a subjetivação tendem a convergir ao movimento,
uma vez que tomadas as relações entre meio/corpo/observador, as
proximidades e distanciamentos oriundas do receptor e das imagens
geradas me colocam em estado vibrátil, tornando expandidas todas
as torrentes que me trouxeram até aqui.

Este vibrar, busca garantir a esta construção a verdade dessa


poética, onde a presença do corpo cênico não interessa à atuação
enquanto representação de um personagem, tecnicamente essa
performance traz alguns momentos fixos, coreografados, porém
algumas transições ocorrem sob a inconstância do improviso.

Posicionamento histórico da linguagem

A performance é entendida como linguagem a partir do século


Figura 2: “Reverberações Uterinas” (detalhe). Foto/Registro do autor.
XX (Cohem, 2013), demarcado como atividade de ideias organizadas
com o movimento futurista italiano na década de 1910, sucessor
As diversas linguagens que são deflagradas pelo percurso do ao que foi compreendido como o início da modernidade nas artes
autor compõe uma abordagem complexa para a construção deste cênicas com a apresentação de Ubu Rei, de Alfred Jarry, em 1896, no
trabalho. O envolvimento da dança, das artes visuais e de técnicas Théâtre de L’Ouvre em Paris que rompeu com os padrões estéticos da
circenses configuram uma “afinação” entre esses escopos a dar época.
carne a ação e ao estado de performance. Dá-se assim um estado de
O surrealismo toma a pintura, literatura e teatro de forma a
transladar por esses escopos guiado pela ideia de soma para talvez
abrigar a tática e ideologia à estética do escândalo, marcada por
assim encontrar um “lugar” coerente aos anseios e buscas do artista.
artigos

artigos
manifestações que difundiam o questionamento e provocação contra
Foi através da performance que o propositor galgou a as plateias nos anos 20, neste período além do movimento surrealista
construção deste lugar de encontros, de afetos constantes entre ele, é criada a Escola Alemã Bauhaus que desenvolve importantes
o espaço e as linguagens. experiências cênicas e promove workshops de performance. Com o
advento do Nazismo a escola é fechada em 1933 e deste modo o
A performance abriga em si toda a liberdade para a fluidez e
eixo de estudos da performance se desloca para a América com a
fruição da arte em movimento à que aqui se propôs, onde o corpo
criação da Black Montain College na Carolina do Norte em 1933.
do artista/performer pôde correr pelas diretrizes imagéticas que neste
trabalho falam de vida, de ciclo, de santidade, de carnalidade, de Da Black Montain College ascendem dois nomes importantes
C3

visceralidade, que sobretudo falam do (des)velar, onde o conceitual de seus contemporâneos até a atualidade. John Cage e Merce
e o representativo podem alfinetar um ao outro, afinal, que corpo

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Cunninghan. o artista e um nível de atenção muito grande para criar parentescos


[...] Cage tenta difundir os conceitos orientais entre cada ação, onde tudo ganhe nexo e possa ser observado como
para a música ocidental, incorporando aos seus obra.
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concertos silêncios, ruídos e os princípios zen da
imprevisibilidade. Cunninghan propõe uma dança fora
Os trechos reservados ao improviso em “Reverberações
de compasso (não segue a música que a orquestra)
e não coreografante, abrindo, nessa quebra, passos Uterinas” trazem em si movimentos investigados em sala de aula (de
importantes para o movimento da dança moderna[...]
dança), onde o artista se propôs a execução de algumas tarefas em
(COHEN, 2013. p.43)
laboratórios de criação, seguindo algumas diretrizes de composição
Na transição de décadas (50/60) os movimentos da contracultura como tempo, espaço, posições, transições. Essas lhe deram subterfúgios
e hippie, mantiveram o caráter do escândalo para chamar a atenção para transitar com a instalação e na obra como um todo, transitar
às suas condutas e ideologias que valorizavam a ação, o momento do como se transita na água, a nado, onde a braçada certeira fere cada
acontecimento. A partir deste momento a performance se destacava gota de um modo diferente, sempre novo, em um conjunto de mar
ao happening que também partia da premissa da ação, porém que também não se repete, ainda que seja sempre o mesmo.
essa ainda mantia sua característica de arte cênica (atuante/texto/ [...] A improvisação é uma dialética entre os recursos
público) enquanto aquela despontava para além do uso de várias profundos do bailarino, o acontecimento suscitado
pela experiência e o olhar que reflete e nos dá novas
mídias, a despreocupação com a tríade estrutural do happening.
perspectivas ou que, pelo contrário, desloca e recua
as fronteiras do possível com uma força renovada
Nas décadas de 70/80 a action painting sobressai às demais (LOUPPE, 2012, p.236)
produções tendo Jackson Pollock como principal expoente deste
movimento que valoriza o gesto, a ação do artista e coloca o corpo Ao falar em renovação, Louppe além de guarnecer às
como próprio objeto de sua arte. Ainda nesse período de valorização expectativas quanto a improvisação para o presente estudo,
da ação e do corpo do artista, tende-se para a experimentações ainda inquietaram a rememorar o sentido uterino dessa instalação
em performances mais sofisticadas e conceituais, incorporando performática, dialogando com os ciclos, com o fluxo e a santidade,
tecnologias e variados procedimentos estéticos. para úteros santos maculados, que se despem de suas camadas, que
desprezam suas mucosas quando não habitados. Ao se renovar de
A performance é entendida como linguagem experimental, improviso, todos os vícios se vão, vícios do movimento, da ação e
onde o artista põe-se a questionar, a esmaecer padrões de normas do próprio eu. Entregou-se o artista a esvair-se em sangue menstrual
comumente estabelecidas, é beber de uma fonte que não aceita divino, indócil como o mesmo costuma ser.
subestimações do ser, das inteligências e das capacidades
condicionantes, que foge dos clichês dramatúrgicos e da linearidade Além das características da movimentação (performance) e da
artigos

construção do espaço (instalação), existe outro elemento compositivo

artigos
que o público muitas vezes espera, entretanto por esse viés cabe
mencionar que uma performance pode ser concebida de inúmeras na obra que busca “amarrar” todos os elementos abordados
maneiras, ou seja, pode seguir uma estruturação de espetáculo, anteriormente: o som.
ensaiada em sua totalidade, composta pela linearidade aristotélica “Ouvi de baleias a sereias que me mordiscavam
de início, meio e fim ou ainda se entregar ao improviso, de acordo enquanto galgava o mar. Algumas tênues, sinceras,
outras agressivas tentando me desviar. Que prumo
com o processo e as vivências inerentes a cada artista. era esse que me manteve crente à ida? Sonar de arte
marítima. Despercebido nas distâncias de tantos cais.
Sob o aspecto do improviso, é comum pré julga-lo como o fazer Quem me ouve põe-se a deriva do instante, onda de
de qualquer coisa, porém cabe a contextualização da poiética do som, onda de mar” (Relato do artista, grifo nosso)
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artista, de forma que o fazer improvisado requer sensibilizações para


Para a presente pesquisa o autor trabalhou ainda com as ideias

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de apropriação e ressignificação, neste caso foram coletados sons da


internet, apropriados de vídeos pornôs, editadas, recortadas e coladas
à gravações de outras vozes específicas à compor a problemática da
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composição que neste momento deveria fazer referência ao sexo,
mácula fatal à figura santa.

O primeiro som é oriundo de filmes eróticos ou pornô,


especificamente o som dos gemidos de uma mulher durante o
ato sexual, esse som tem seu sentido rapidamente apreendido,
independe de idioma posto que não é fala, traduz e sugere em si
a geração de inúmeras imagens mentais referentes ao sexo, deste
modo entendemos que o som é gerador de imagens e sensações,
age subjetivamente pois não ilustra de fato o ato sexual.

O segundo som é o choro constante de um bebê, a reclamar


de alguma coisa. Um estridente de reclamações, a única maneira da
criança comunicar, inquietando os ouvidos de quem a socorra. Já o
terceiro som trás o alento do canto de uma canção de ninar, entoado
pela voz rouca de uma mulher de idade avançada. Simbolicamente Figura 3: “Reverberações Uterinas” de Daniel Aires.
essa cantiga encerra o ciclo iniciado no primeiro som, a interpretar a Registro fotográfico: Juliano Mendes

passagem do tempo na própria vida. O sexo fecundo, a resposta da


natureza ao coito com o choro inquieto do bebê, e o aconchego
sonoro de uma avó a cantar para uma criança.

Os três sons são marcantes para este trabalho e para tudo


que o move e por esse mesmo motivo serão “desmaterializados”,
mixados para que assim afrouxem as leituras diretas quanto ao som,
ressignificando assim, através de cada sensibilidade a identificação e
familiarização com o ruído que melhor sobressair ao todo.
artigos

Vale lembrar que esse novo som é o pano de fundo para abrigar

artigos
a obra, onde a movimentação performática não segue a música
e esta não obedece a literalidades representativas dos sentidos
abrigados nas mesmas.

Registros da instalação performática “Reverberações Uterinas”


C3

Figuras 4 e 5: “Reverberações Uterinas” de Daniel Aires.


Registro fotográfico: Juliano Mendes.

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Figura 8: “Reverberações Uterinas” de Daniel Aires. Registro fotográfico:
Juliano Mendes
Figura 6: “Reverberações Uterinas” de Daniel Aires.
Registro fotográfico: Juliano Mendes

Considerações finais

Ao longo deste processo de pesquisa desenvolvida na


Graduação em Artes Visuais, o autor pôde se entregar ao fazer
artístico e investigar com afinco e imersão, todas as possibilidades que
permearam seu próprio trajeto.

Em 2011 quando iniciou a graduação mencionada


anteriormente, o acadêmico se encantou em um sem fim de dúvidas
artigos

que o motivaram a seguir, crente de que algum dia teria um trabalho

artigos
que pudesse chamar de seu, que não precisaria ser inédito, mas que
fosse legitimamente seu.

Preferimos nos ater a sinceridade que este trabalho confessa.


“Reverberações Uterinas” nada mais é do que o desponte germinado
de muitas das polaridades habitam o artista. O santo, o profano, o
masculino e o feminino, seus detrimentos, o estudo do corpo ao qual se
dedica no lastro do tempo através da dança, da performance e das
C3

Figura 7: “Reverberações Uterinas” de Daniel Aires. Registro fotográfico: artes visuais, flexionando quando necessário os padrões que alguma
Juliano Mendes
linguagem pode impor.

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O artista acredito que sua pesquisa tenha encontrado na Perspectiva, 2013.


performance o ponto de amarra para o fechamento desse processo, FABIÃO, Eleonora. Corpo Cênico, Estado Cênico. Revista
arriscando dizer que esse “fechamento” trata-se na verdade da Contrapontos – Eletrônica, Vol. 10 – n. 3 (p. 321 – 326), setembro –
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abertura de um infinito de novas possibilidades para sua arte e para dezembro, 2010.
toda manifestação artística na qual possa estar inserido, por possibilitar LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Lisboa:
trazer para o corpo e para a ação tudo que antes estava inerte. Guide – Artes Gráficas, 2012.
PALUDO, Luciana. O Lugar da Coreografia nos Cursos de Graduação
Consideramos então as palavras de Caldas (2009) para definir o em Dança do Rio Grande do Sul, Brasil. Tese (Doutorado em
“encerramento restritivo” deste processo que culminou no trabalho de Educação) Programa de Pós Graduação, Faculdade de Educação,
conclusão de curso (TCC) e na Instalação performática insvestigada Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.
até aqui:
[...] Apresso-me em esclarecer: restrição e infinitude
não se contradizem. Matemáticos diriam muito
simplesmente: tomemos o conjunto dos números inteiros Artigo recebido em 13/07/2016
– nele há os números pares e os ímpares; limitemo-
nos então apenas ao conjunto dos números ímpares.
Intuitivamente, diríamos que seu conjunto é menor, Aprovado em 01/08/2017
já que está contido naquele. Mas, nós o sabemos,
ambos os conjuntos são igualmente infinitos. Assim se
passa com os dispositivos restritivos de composição:
eles produzem um infinito apenas enganosamente
“menor”. (CALDAS, 2009. p.2)

Que essa infinitude comentada por Caldas, possa ser sempre


gatilho para as vivências que se acolhem na arte contemporânea.
Onde essas produções, a cada tropeço, possam instigar e inquietar
novas abordagens e compreensões de transfigurações do banal.
Esperamos ainda que o processo de criação investigado aqui possa
de alguma forma ser didático ao pensamento da arte e para as
multidisciplinaridades as quais entregamos essa produção artístico-
acadêmica.
artigos

artigos
Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade


técnica. Porto Alegre: Editora Zouk, 2012.
CALDAS, Paulo. O Movimento Qualquer. In “Seminários de Dança – O
que quer e o que pode se [ess]a técnica?” – Org. Cristiane Woskiak,
Sandra Meyer e Sigrid Nora. Joinville, 2009.
CAUQUELIN, Anne. Freqüentar os Incorporais – Contribuição a uma
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teoria da Arte Contemporânea. São Paulo: Martins, 2008.


COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo:

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artigos

artigos
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Foto: Wagner Ferraz
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Artigo 9
NDO: IMBRICAÇÕES POÉTICAS PARA PENSARMOS UMA
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DRAMATURGIA DA DANÇA NO/DO TEMPO-GERÚNDIO

NDO: Bel. Thiago Torres, UFC, CE.1

IMBRICAÇÕES
Resumo: Este artigo surgiu a partir de questões dramatúrgicas da
criação de um trabalho cênico no curso de Bacharelado em Dança da
UFC e trata da relação que se constitui entre a dramaturgia da dança

POÉTICAS PARA
e o que nesta pesquisa chamamos de tempo-gerúndio: um tempo
na/da duração. No decorrer da escrita levantam-se questões sobre
como a relação entre o fazer dramatúrgico e o tempo, configurando-
se na duração, pode ser trabalhada como possiblidade poética

PENSARMOS
para um corpo dançante em cena. Neste trabalho, a escrita sobre a
dramaturgia da dança não somente reflete as buscas por questões
significativas das construções de sentido, mas busca pensar como,
em seu próprio fazer, no corpo ao dançar, revela-se também uma

UMA
construção processual de um olhar sensível à obra através das ações
do dramaturgismo em dança.

Palavras-chave: Cena; Corpo; Dramaturgia da dança; Tempo-

DRAMATURGIA
Gerúndio.

NDO: POETICS IMBRICATIONS TO THINK ABOUT A DANCE OF

DA DANÇA NO/
DRAMATURGY IN THE GERUND TIME

Abstract: This article arose from the dramaturgical issues of the creation
of a scenic work in the course of Bachelor of Dance of the UFC and

DO TEMPO-
deals with the relation that is constituted between the dramaturgy
of the dance and what in this research we call time-gerund: a time
artigos

artigos
in / duration. In the course of writing, questions arise as to how the

GERÚNDIO
relation between dramaturgic doing and time, forming in duration,
can be worked as a poetic possibility for a dance body in scene. In

1 Mestrando em Artes pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Bacharel


em dança pela UFC e dramaturgista de processo criativos, iniciou sua carreira na
dança em 2005. Dedica-se como artista-pesquisador ao estudo e à criação em
dança com foco na concepção na/da dramaturgia e suas poéticas do corpo em
cena. Atua junto ao UM coletivo Só onde desenvolve trabalhos de Dança-Teatro ao
lado de mais oito artistas-pesquisadores. Atualmente investiga os processos ligados
à temporalidade do inacabamento e suas relações acerca do corpo e suas drama-
C3

turgias inacabadas. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.


do?id=K4836310J8

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this work, the writing about the dramaturgy of dance not only reflects conexão com o tempo, mas, sabendo que cada relógio, cada corpo
the searches for significant issues of the constructions of meaning, but irá ter a sua própria noção temporal a partir das condições de seu
seeks to think how, in its own doing, in the body when dancing, also
cotidiano, problematizando o entendimento do que é o tempo.
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reveals a procedural construction of a sensitive look at Work through
the actions of dramaturgismo in dance.
É claro que, se o tempo é entendido como algo que
Keywords: Scene; Body; Dance of dramartugy; Gerund Time. não para de passar, é realmente difícil dizer o que ele
é (ou dizer que ele tem um “ser”, uma natureza em si).
Afinal, pensado como um fluxo contínuo, o tempo tem
a sua própria “realidade” furtada pelos instantes que
se sucedem, isto é, ele só pode existir à custa de ser
sempre o outro, já que cada presente que passa, um
Tempo-gerúndio: conceitos acerca do tempo na/da duração. novo se segue e, assim, indefinidamente (SCHÖPKE,
2009, p. 12).
Uma grande parte do mundo pode-se dizer, está regido por
Vejamos como isso se deu historicamente. Desde a 1°
uma lógica de pensamento a partir de um tempo cronometrado. Este
Revolução industrial, em 1750 na Inglaterra, as máquinas e o ritmo de
tempo faz das nossas relações, dos nossos modos de estar no mundo,
uma produção em série foram dando, ao longo dos séculos, outro
algo inteiramente dependente de suas variações regulares, a duração
sentido de tempo apreendido à corporeidade. Essa “aprendizagem
precisa de nossas ações marcada numa sequência coerente de
mecanizada” submeteu o corpo a absorver o tempo como algo que
sentido. Podemos entender que estamos intimamente ligados a esta
não se pode desperdiçar, cada segundo perdido já não vale mais para
variação, à mudança dos segundos, minutos, das horas imbricadas
uma devida valorização do fazer. Esse modo de apreensão do tempo,
ao entendimento desse tempo cronometrado.
construído sócio historicamente, faz do nosso cotidiano um lugar de
A ideia do tempo Khronos está ligada ao deus Cronos da permanência no tempo apenas como passagem, uma percepção
mitologia grega (o deus que gerava e devorava os seus filhos) e traz temporal enquanto algo passageiro e que, segundo Schöpke (2009),
para a concepção da cronologia, ciência que estuda o tempo, não deixa (segundo se diz) que nada dure para sempre.
uma função de determinar uma ordem de sentido histórica para os
Apesar desta concepção construída, há outra maneira de
acontecimentos. Na nossa atual condição de entendimento sobre o
apreendermos o sentido de tempo, sentido aqui, que nos interessa
tempo, a ideia de representação da cronologia acaba por tornar essa
principalmente no fazer dramatúrgico da dança2. A concepção e
concepção de tempo como “[...] um senhor impiedoso e impassível,
a compreensão de pensamento acerca do tempo como duração
um algoz, que rouba a nossa juventude e nossas alegrias” (SCHÖPKE,
nos impulsionam para um “crescer para dentro”, o crescimento dos
2009, p. 10).
acontecimentos, dilatando-se em si próprio, tendo, no caso da dança,
artigos

artigos
Essa representação temporal, atribuída pela sociedade ao a própria investigação dramatúrgica do corpo em movimento como
tempo, por uma necessidade de organização de sentido, acaba, por
sua vez, criando condições de regulamentar os acontecimentos dos 2 Tomemos a partir daqui o sentido atribuído à dramaturgia na contempo-
nossos cotidianos. Nestas condições, a compreensão de um tempo raneidade da dança como uma possibilidade que surge em meados dos anos 80
na Europa e disseminada no Brasil no início do ano 90, com mais influência entre
que passa, marcado pela variação numérica dos relógios, torna Rio de Janeiro e São Paulo. É pertinente ressaltar que os atributos empregados ao
o próprio tempo algo pluralizado. Podemos pensar que apesar de dramaturgista (pessoa que trabalha com a dramaturgia da dança), não somente
compete lidar com a narratividade (sentido mais ligado ao texto teatral), porém,
existir uma representação de um tempo que rege toda a sociedade, com o sentido mais amplo à dramaturgia atrelada ao corpo. Hoje, contamos com
cada pessoa tem a sua percepção temporal que se diferencia da esses ofícios: dramaturgo e dramaturgista, sendo que este último ainda questionado
sobre suas funções no processo criativo (nem sempre ligados à dança), operando
C3

percepção de outra pessoa. Todos nós pulsamos de modos diferentes, de maneira a questionar como “primeiro crítico do processo” ao lado dos diretores,
vivemos essas variações de modos diferentes. Podemos sim estar em intérpretes-criadores e coreógrafos, suas obras e os modos estéticos, políticos e éti-
cos de dar-se a ver em cena.

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a principal fonte de criação. Nesta investigação é preciso estar atento que dura em seu próprio fazer.
para o porvir, fazer do território artístico em dança um lugar aberto,
Mas o que podemos entender por esse tempo que dura? O
um lugar do acidente, um tempo do acontecimento na configuração
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que Deleuze (1983) nos apresenta enquanto duração é que ela pode
dramatúrgica da própria obra em criação.
ser apreendida como um Todo. Este não é dado e nem passível de
Desde o início do século XX, as reverberações sobre o ser dado. “[...] Se o Todo não é passível de ser dado é porque ele é o
tempo já se colocavam em questão nas artes. Podemos citar, dentre Aberto e porque lhe cabe mudar incessantemente ou fazer surgir algo
os artistas que foram por esse caminho, a obra “Dinanismo di um cane de novo; em suma durar.” (DELEUZE, 1983, p. 18).
al quinzaglio” (Giacomo Balla, 1912). Atrelado ao movimento futurista,
Ainda segundo o autor para apreendermos essa questão do
o autor faz de sua pintura uma situação não estática, pintando as
tempo enquanto duração, podemos pensar que nesse Todo existem
imagens do quadro a partir de uma perspectiva da imagem em
outras condições de duração que poderão influenciar mudanças de
movimento. Esta produção, talvez já traga em si um questionamento
modo qualitativo. Condições essas que Deleuze chama de movimento:
sobre o tempo, apresentando-o não como passagem, mas enquanto
“O movimento remete sempre a uma mudança” (DELEUZE, 1983, p. 9) e,
duração, refletindo, assim, o tempo do acontecimento. Uma pintura
no acontecimento dessas mudanças, “[...] as próprias qualidades são
que está acontecendo.
puras vibrações que mudam ao mesmo tempo em que os pretensos
Nesta escrita reflexiva, a proposta se configura como um elementos se movem” (DELEUZE, 1983, p. 9). Então podemos pensar
modo de pensar o tempo-duração para entender a dramaturgia que nesse Todo há acontecimentos que se movem e com eles geram-
da dança. Os conceitos filosóficos aqui apropriados interessam-nos se relações no próprio Todo.
tão somente como possibilidade de apreensão desta concepção
Se pensarmos, por exemplo, num espetáculo de dança onde
de tempo enquanto duração, mas na própria investigação de um
temos os corpos que dançam, a estrutura coreográfica, o cenário,
processo criativo em dança. Não cabe a este estudo fazer um tratado
o figurino, a luz e outros elementos, esses, chamaremos de objetos,
filosófico sobre as questões conceituais a serem tratadas no tema, mas
um conjunto fechado, onde a relação do Todo não pertence a esses
fazer destes conceitos, uma maneira de refletir sobre a criação da
objetos, mas ao Todo que aqui podemos pensar como a dramaturgia
dramaturgia da dança, fazendo ligações e interpretações a respeito
da dança.
do tempo-duração como uma ferramenta dramatúrgica para cena.

Desde a antiguidade, essas questões já se faziam presentes Através do movimento no espaço, os objetos de
um grupo mudam suas respectivas posições. Mas,
para os filósofos de modo que os desconcertava (SCHÖPKE, 2009). Ao através das relações, o todo se transforma ou muda
longo da história da filosofia, alguns pensadores se dedicaram a tal de qualidade. Da própria duração, ou do tempo,
artigos

artigos
podemos afirmar que é o todo das relações (DELEUZE,
estudo acerca de como esse tempo se dá no mundo em que vivemos.
1983, p. 18).
A exemplo deles, podemos citar Heráclito, Platão e Aristóteles, Santo
Agostinho, Bergson, Heidegger, Nietzsche e Deleuze, cada um deles Não se deve confundir aqui o Todo com os conjuntos desses
problematizando e nos oferecendo caminhos para refletir como o objetos. Esses conjuntos para Deleuze são artificialmente fechados,
tempo pode ser pensando nessas relações. são sempre conjuntos de partes, ou se pensarmos num espetáculo,
podemos chamar de cena. A dramaturgia do/no tempo que dura,
Algumas reflexões a partir de conceitos sobre o tempo
assim como o Todo, é aberta “[...] e não tem partes, exceto no sentido
enquanto duração de Henri Bergson (1859-1941) apropriados por Gilles
muito especial, pois ele não se divide sem mudar de natureza a cada
Deleuze (1925-1995) nos interessam como possibilidade de apreensão
C3

etapa de divisão” (DELEUZE, 1983, p. 19). É como se houvesse um fio


desta concepção para pensarmos aqui numa dramaturgia da dança
de costura e costuramos de modo que, ora viramos ao reverso, ora

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voltamos ao verso e esse fio ligasse as partes dessa costura. Pensando essa poética ou ferramentas das quais o corpo tece a sua criação em
aqui nesse fio de costura como a dramaturgia, ela estará sempre no dança é atravessada por algo que está, silenciosamente e em seu
entre, nos dois lados da obra, e só se dará a ver pelo próprio movimento tempo, pedindo para aparecer e constituir de forma potente a força
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da costura e pelos modos como a costura se constituirá na obra. O que este corpo em seu movimento pode, justamente, ressoar neste
Todo dessa costura não se pode definir pelos conjuntos, os materiais imaginário que Laurence Louppe cita.
utilizados, pois o próprio movimento muda na duração.
Aqui, o tempo em que a dramaturgia da dança solicita
Pensamos então a criação de temporalidades dessa aparecer não é necessariamente cronometrável, não existe um
dramaturgia da dança como o Todo “[...] que se cria e não para ponto certo ou exato onde ela se fará presente na obra, em corpo
de se criar numa outra dimensão sem partes, como aquilo que leva dançante. A dramaturgia, o sentido no/do corpo em movimento, está
o conjunto de um estado qualitativo a outro, como o puro devir a todo o momento, ora silenciosa ora em estado de efervescência,
incessante que passa por entre esses estados” (DELEUZE, 1983, p. 19). num tempo que dura no Todo da obra e que compreende não só
E ainda que pelo movimento, o Todo ou a dramaturgia se divida nos a obra em si, mas as relações de sensibilidade que esta causa para
objetos, os objetos se reúnem na dramaturgia: e justamente entre os além do espaço cênico.
dois, “tudo” muda.
A palavra duração entra nesse contexto da dança
contemporânea e dos estudos de poéticas dramatúrgicas como algo
que preenche as entrelinhas da obra deixando-a mais consistente e
Dramaturgizando a dança: a temporalidade poética da duração.
refinada. Subtende-se também que nessa poética da dramaturgia algo
Por pensar o tempo como uma constituinte de durações, está acontecendo no corpo do intérprete enquanto ele experiencia
podemos compreender que, nessa constituinte, criam-se possibilidades as movimentações em cena e que permite a esse corpo um debruça-
dramatúrgicas em dança. Desdobram-se, dessas relações, produções se junto à dança, no seu estado de presença cênica “[...] um corpo
de temporalidades numa dramaturgia que é acolhida por um tempo- que não é dado mas descoberto, ou que está ainda por inventar’’
duração cujas linhas geram, produzem no corpo “[...] um ‘eu’ em (LOUPPE, 2012, p. 73).
formação, um ‘eu’ que se constrói no contato com o mundo” (SCHÖPKE,
 A dramaturgia a qual permeia o corpo em movimento3
2010, p. 224). Enquanto pensamento sobre dança, podemos intuir
procura  lugares para habitar e se presentificar na obra cênica de
que esse “eu” em formação surge como corpo a movimentar-se em
modo que “[...] é da sua articulação que nasce o sentido; este, invisível,
cena e que faz de si, o tempo na dramaturgia, uma vez que “[...] é o
cruza o tempo em que o espetáculo se dá a ver com o espaço que em
movimento que dá sentido ao movimento” (GIL, 2002, p. 32). O corpo
ele acontece” (PAIS, 2004, p. 89). E dessa articulação em movimento
então traz para cena um desdobramento de si em seus modos de
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que a dramaturgia tece em cena faz do corpo um acontecimento,
fazer dança cuja constituição poética de sentidos no/do tempo se
dando a ver aquilo que se passa em dança e evocando sentidos,
dá de maneira silenciosa e potente em suas movimentações. 
lembrando que
Para Laurence Louppe (2012, p. 27), “A poética procura
circunscrever o que, numa obra de arte, nos pode tocar estimular No que se refere ao sentido, sobretudo na dança
contemporânea é evidente que nos encontramos
a nossa sensibilidade e ressoar no imaginário, ou seja, o conjunto longe de uma narratividade que se contentaria em
de condutas criadoras que dão vida e sentido à obra”. Assim, ao dispensar um referente, sendo o sentido, antes de mais,
esse objetivo não nomeado que a dança interroga
pensarmos uma Dramaturgia no/do tempo estamos tecendo uma sem descrever (LOUPPE, 2012, p. 32).
C3

linha que é “[...] a continuidade do que não é mais (o passado) no


que é (o presente)” (PUENTE, 2010, p. 39). Assim, podemos pensar que
3 Entenda-se aqui movimento como, também, uma ação de paragem.

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Para a dramaturgia se fazer presente enquanto vivido (SCHÖPKE, 2009, p. 226). 


dança é indispensável pensarmos sua imbricação com uma das
Se seguirmos nessa direção múltipla que se expande e se
constituintes da dança contemporânea: a temporalidade. Vale
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constitui em cena, suas linhas se modificam no próprio fazer da obra,
ressaltar que a dança é constituída por espaços-tempos: um vai
pois “[...] a obra deixa a sua marca em nós, como uma impressão digital
criando o outro ao mesmo tempo em que dança, não havendo assim
na memória do intelecto e dos sentidos: as linhas invisíveis e únicas da
uma separação entre eles. Mas, vamos deter aqui uma atenção a
experiência estética” (PAIS, 2004, p. 94). Sendo assim, a dramaturgia na
essas temporalidades que se arrastam na sua própria dilatação,
duração no/do corpo que dança “[...] é um fluxo contínuo e incessante
fazendo com que a dança e a dramaturgia andem imbricadas
do tempo vivido” (PUENTE, 2010, p. 41) e que nesse tempo vivido “[...]
para que, segundo Pais (2004), a duração do material, sua sensação
não existe duração fragmentada nem duração sem alterações, sem
estética, se ofereça à fruição. 
mudanças de estado.” (SCHÖPKE, 2009, p. 227). 
Podemos pensar nessa duração do material, que aqui
 A duração faz do tempo uma variante de sentidos, dos
chamamos de dança, em linhas sucessivas, um fluxo ininterrupto onde
sentidos do corpo, das “mutações de sentidos” (LOUPPE, 2012, p. 75,
seja “[...] impossível deter a duração” (PUENTE, 2010, p. 41) no qual se
grifo do autor). Estes atravessam o fazer dramatúrgico na cena e se
desdobram sentidos no corpo que se movimenta.
fazem mutantes, constituindo-se como um leque de possibilidades
dentro da poética do movimento da qual “Dançar consistiria assim,
[...] a consistência dramatúrgica que funda um
plano de composição se liga sempre à insistência de em tornar legível a rede sensorial que o movimento explora a cada
algo, insistência ora anunciada como projeto pelo
instante” (LOUPPE, 2012, p. 85). Ou seja, tomar presentificado em cena
regramento, ora silenciosa [...] uma linha abstrata,
uma textura recorrente, que variam de duração e se o tempo que se está vivendo.
acumulam ritmadamente em nós (CALDAS, Paulo,
2010, p. 14). A expansão dessa dramaturgia que acontece em cena no
corpo do interprete-criador é uma situação que está sempre no verbo
Por isso, existe uma insistência que permeia a temporalidade
gerúndio. A terminação “NDO” permite que a dança teça os seus
na duração não apenas “gratuitamente” como diz Caldas (2010),
próprios fazeres fazendo-os; que o corpo possa dançar seus gestos
mas se preocupando com o tempo que isso oferece ao corpo em
gestualizando-os e a dramaturgia, dramaturgizando-os. Na pesquisa
cena. Sendo assim podemos induzir que a dramaturgia constrói na sua
em questão, temos que estar atentos para perceber que esse modo de
própria duração, como cita Schöpcke (2009, p. 230) “[...] Sensações,
pensar a dramaturgia apresenta-se enquanto discurso. Atentos que a
sentimentos, evolições” e que nesse tempo-gerúndio não há um
cada escolha dramatúrgica feita pelo dramaturgista é, segundo Pais
só estado que deixe de variar enquanto se vive a duração.
(2004), um discurso que se pauta pelo movimento interno de um olhar
artigos

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Podemos pensar que se gera um tempo produzido no/ participante, que se constitui e é constituído à medida das trajetórias
em corpo, tempo esse em que a duração promove uma potência e desenvolvido a partir do processo no qual está incluso. 
trazendo para cena a sensação que dura no seu próprio fazer. Assim,
É tendo esse tempo NDO como possibilidades poéticas e
o tempo é entendido como uma linha tênue constituinte de durações: 
discursivas da dramaturgia que podemos descobrir e acessar estados
Bergson não sustenta que a duração (ou o tempo) de corpo para o desdobramento do sentido dando a ver suas mutações
seja uma linha reta. Para ele, a linha reta é uma em potência, suas mutações em presença, colaborando assim com
representação matemática. Afinal, a linha que se
mede é imóvel e o tempo é mobilidade. Ele não a dramaturgia como “[...] aquilo que invoca e ativa a dimensão de
nega que a duração se produz numa espécie de duração da experiência, a entrada no fluxo das matérias e corpos
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linha sucessiva, una e múltipla ao mesmo tempo, mas


não é a linha que é a duração de cada ser, e sim o em co-existencia relacional” (LEPECKI, 2010, p. 45) e que 

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O seu movimento conjunto constitui uma trajetória estruturas composicionais para dar a ver aquilo que se passa de
de participação decorrente da dramaturgia, não potente no corpo dançante. 
só porque esta reside às opções estéticas que
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compõem os materiais, mas também devido ao O tempo-gerúndio ou NDO acaba, por sua vez, imbricado
facto de o seu discurso invisível participar no visível
à dramaturgia da dança, evocando esses estados e permitindo que
através das relações de sentido (PAIS, 2004, p. 92). 
o próprio corpo seja o acontecimento em movimento. A duração
Isso se configura na duração como um corpo que em dessas temporalidades, evocadas pelos elementos que compõem
sua cuja experiência provoca, ao dançar, uma sensação estética uma obra de dança, faz  emergir  mudanças de estados. Vamos aqui
e de sentidos que se articulam ali mesmo, na cena. Essa dimensão, ressaltar a importância das mudanças de estado, destacando, para
podemos pensá-la como um tempo outro que se instaura naquele isso, o Fator Peso4 do corpo que dança.
devido espaço onde acontece a ação. A dramaturgia, em seu tempo
O peso do corpo propõe estados que corroboram para
durável, vai apresentando, sem nomear, as suas escolhas e o modo
essa temporalidade no gerúndio, pois, segundo Louppe (2012), é pela
como estas vão se articulando em cena, nessa dimensão. 
transferência de peso que todo o movimento se define, cria estados
Essa possibilidade de pensar o tempo-gerúndio ou a ação de atenção na própria percepção do corpo ao dançar. Sentir o
do que aqui chamamos de NDO é importante nessa investigação peso do corpo e suas articulações de sentido em cena permite uma
dramatúrgica, ele é um parceiro no que se considera a dança experiência cinestésica e estética que põe em evidência cada gesto
que está sendo construída em cena. É ainda neste território da que o corpo realiza. Para Louppe (2012, p. 104), “Contudo, o peso
experimentação em cena que corpos começam a ser gerados e não é somente deslocado: ele próprio desloca, constrói e simboliza, a
atravessados de durações, pois o corpo é um canal vivo da experiência, partir da sua própria sensação”, assim, podemos intuir que o peso do
não fica inerte  às suas intensidades enquanto se movimenta. A corpo em relação aos estados que provoca em cena acaba que por
dramaturgia, neste caso, prolonga-se dando sentido àquele corpo, conduzir a uma sensação de presença onde a dramaturgia na/da
preenchendo as lacunas e se construindo em sua estrutura dança se constrói em seu próprio fazer do movimento. 
composicional deste que está em cena “[...] consumindo-se no plano
A relação entre a duração e o peso do corpo carrega no
temporal do espetáculo [...] como também no tempo durante o qual
fazer da corporeidade dançante uma experiência que podemos
essas relações de cumplicidade existem” (PAIS, 2004, p. 84).
imaginar como a de um corpo plástico. Este ao dançar permite uma
Os estados provocados por essas temporalidades que poética onde a situação do corpo é maleável, como se fosse uma
emergem de uma ação de sentido da cena permitem que surja do massa de modelar com cujas possibilidades de criação de imagens o
corpo que dança próprio intérprete ou até mesmo o dramaturgista brinca.
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[...] então “outra cena” onde se desenrola um drama Da mesma forma que é possível sentir o tempo através
existencial e onde o movimento já não é suporte da mudança do peso, a resistência do corpo cria um
mimético de um referente já estruturado mas, espaço denso onde o corpo lê as suas próprias marcas,
muito pelo contrário, uma emanação (se não um espaço receptivo com propriedades tácteis
uma constituinte dessa mesma cena, em que o diversificadas (LOUPPE, 2012, p. 108).
corpo é simultaneamente agente de abertura e leitura
(LOUPPE, 2012, p. 61).
4 O Fator Peso, abordado nesta pesquisa, refere-se à denominação dada por
Podemos assim, pensar nessa relação onde tempo constitui Rudolf Laban (1879-1958) aos quatro fatores de movimentos (Peso, Fluxo, Tempo e
sentido e sentido constitui tempo; são processos de pensamentos que Espaço) observados por ele nas atitudes do corpo em movimento. O fator peso para
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Laban vai de leve a firme, possuindo suas gradações, informando, segundo Rengel
permitem essa possibilidade de a dramaturgia adentrar no entre das (2005), um aspecto mais físico da personalidade, trazendo sua intensão e sensação
do movimento.

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Essas mudanças perceptíveis são da ordem do sensível, Considerações para um movimento inacabado.
são experiências estéticas que a dramaturgia está a todo o
São nessas e a partir dessas relações do tempo-gerúndio como
momento articulando e dando consistência ao acontecimento
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uma abordagem ao conceito de Todo que podemos compreender
da obra. Mas a dramaturgia que está acontecendo em cena
como a dramaturgia se coloca em relação ao acontecimento do
não é apenas “produto” de um processo investigativo em dança,
corpo que está dançando em cena. Podemos pensar aqui este
o que podemos chamar de uma dramaturgia no gerúndio  é 
acontecimento como uma instauração de uma temporalidade onde
justamente o  Todo, a relação dos processos investigativos da obra
“O corpo é, antes de tudo, um acontecimento cuja identidade se
que está acontecendo sendo ela a própria, o próprio processo sendo
faz performativa” (PRIMO, 2014, p. 70). Ainda segundo Primo (2014)
apresentado no suposto produto.
é interessante destacar que a construção dessa identidade está em
Ao observarmos um trabalho de dança, o que podemos processo, “sem fim”,  inacabada  e em construção, assim como a
pensar é que ali, enquanto o corpo está dançando, apresenta-se dramaturgia no tempo-gerúndio e seu Todo também estão abertos,
uma dramaturgia cuja escolha é propor “[...] a percepção no seu inacabados. 
próprio processo” (LOUPPE, 2012, p. 27). É interessante pensarmos a
Como um corpo ao dançar está em construção, um
apresentação de uma obra de dança evitando cair nesse lugar da
pensamento dramatúrgico também se estabelecerá assim. Essa
dualidade Produto x Processo e, até mesmo, pensarmos a dramaturgia
construção, ou, para sermos mais fieis a perspectiva desta pesquisa,
da dança no tempo gerúndio como uma poética que “Por outras
esse construindo de uma cena é justamente aquele movimentar da
palavras, revela-nos o caminho seguido pelo artista para chegar ao
costura e da linha que vai para frente, mas sempre retornando ao
limiar onde o acto artístico se oferece à percepção, o ponto onde a
já percorrido para assegurar a consistência da costura.
nossa consciência a descobre e começa a vibrar com ela” (LOUPPE,
2012, p. 27). Nesse tempo da costura que a dramaturgia vai fazendo
em cena, ela nos traz desdobramentos da obra coreográfica;
A função do dramaturgista, neste caso, pode ser até um
desdobramentos do/no corpo em suas imbricações poéticas “[...]
pouco difícil, pois lhe é próprio articular a relação do Todo de
um temo que se desprenda da noção de linearidade: instante que
um trabalho de dança para adquirir uma consistência material
se desdobra em ainda-futuro e já-passado” (PRIMO, 2014, p. 70). Vale
cujo processo é o que está em cena. É possível aqui pensar que
enfatizar que o que estamos colocando aqui é uma possibilidade
a função do dramaturgismo em seu tempo gerúndio “É um modo de
poética de uma dramaturgia contemporânea em dança, mas, cada
estudar experiências partilhadas e, através delas, a transformação do
criador possui suas ferramentas de criar desdobramentos possíveis
sensível tanto para o bailarino como para aquele que testemunha a
para o seu trabalho, o que é de grande valor para dança. 
dança” (LOUPPE, 2012, p. 29).
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Este desdobramento dramatúrgico possível não traz uma
Ao nos apropriamos deste pensamento de Louppe o
sequência de acréscimos de cena à cena, mas um desdobrar delas.
trazemos para um estudo sobre a dramaturgia da dança, podendo,
É justamente colocar o corpo que dança, em sua duração, levá-lo a
então, conceber essa testemunha, a qual cita Louppe, aqui como
seu possível sem esquecer os resquícios do que, cronologicamente,
sendo o/a dramaturgista. E poder dizer, em diálogo com a autora que,
já passou. Desdobrar dramaturgicamente aqui está se fazendo por
além de ser “a primeira testemunha” ainda no momento da criação
elementos de cena que crescem em si, e essa duração não se diz
da obra, em seu estudo, ele põe em ação, justamente a relação do
necessariamente por um tempo lento, mas, que pode se apresentar
Todo em jogo como uma dinâmica das atitudes do sujeito dançante. 
em suas mais variadas temporalidades.
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É nesse desdobramento que pode a dramaturgia “quebrar

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sua cabeça” para resolver quais os sentidos que o trabalho está se mas pela intensidade da experiência que o conduz. Sendo assim, essa
fazendo, quais são suas escolhas. O que a obra emerge em sua duração poética dramatúrgica está para além de uma relação de sentindo
e que necessariamente não é para ser esquecido, mas sim, crescer do Todo das reações que duram na própria obra, mas está em estado
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nela mesma em sua constituição de sentidos? Como revela Gil (2002, de atenção para o que acontece ao seu redor, nas suas relações que
p. 51), “A dança compõe-se de sucessões de micro-acontecimentos duram em outros corpos. 
que transformam sem cessar o sentido do movimento”.
Para este pensamento contemporâneo em dramaturgia
Estar nesse tempo é constituir escolhas aonde as coisas vão da dança, cuja poética está a todo o momento durando em seu
se “dramaturgizando” em cena, ou seja, criando relações que vão ao próprio fazer dança, as imbricações dessas durações que se veem
encontro de outros corpos que naquele espaço também dançam. O em cena e que se percebem em outros corpos, nota-se também
corpo que dança em cena faz com que “Nenhum movimento acabe a importância de estar atento ao que chamamos de “depois que
num lugar preciso de uma cena objetiva. Esses limites do corpo do termina a obra”. Em alguns casos, devido a uma refinada pesquisa dos
bailarino nunca proíbem os seus gestos de se prolongarem para além elementos constituintes da obra, das articulações entre seus integrantes
da pele” (GIL, 2002, p. 50). e de uma íntima pesquisa dramatúrgica, nota-se a reverberação no
corpo mesmo após o seu término.
O  público,  nesse  caso  específico,  é também  onde  a
dramaturgia se instaura e se faz constituições de sentidos. Cada É trazendo esta proposta que colocamos a dramaturgia
pessoa que assiste a uma apresentação irá constituir o seu sentido da dança no tempo-gerúndio não apenas como um território
e não é obrigação do criador, ou do diretor, fazer com que elas instaurado no espaço cênico, mas, atentando que mesmo após
entendam a obra numa linha de sentido único de “início, meio e fim”. o “término cronológico” da obra, existe algo que se reverbera em
suas mais variadas manifestações. Sendo assim, podemos dizer que
Este tempo cronológico da obra existe, isso não podemos
dentro desta possibilidade dramatúrgica de criação de sentidos e
negar, mas fazer com que o público possa assistir a uma apresentação
sensíveis, é de uma percepção colocar suas reverberações para além
de dança contemporânea cuja intenção seja apenas experienciar
de seu tempo de execução onde
a sua duração é, aqui, poder colocá-lo em outra frequência, a
frequência da dança que ali se instaura: “Este diálogo variável,
O olhar e a escuta da obra arrastam-se numa
flutuante e profundamente circunstancial, ligado a uma experiência temporalidade que, mesmo posterior a sua finalização,
a revisita numa longa meditação desde as suas
dificilmente generalizável” que  “passa por um tecido conjuntivo de
premissas: o propósito secreto, o nascimento do
relações sensoriais entre a dança e a sua testemunha” (LOUPPE, 2012, material, a escolha das ferramentas, os processos de
elaboração (LOUPPE, 2012, p. 31). 
p. 32). 
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Quando a dramaturgia consegue agenciar as relações Apontar esta poética do tempo-gerúndio como um modo
que compõem a cena, não as deixando confusas, ela de se pensar dramaturgia da dança coloca em movimento essas
provavelmente conseguirá intervir no público, de modo a fazê-lo não relações que observamos em meio a processos de criação em
precisamente “entender” o que está acontecendo na cena, mas dança, de criação dramatúrgica em dança. Trabalhar com uma
sim de pulsar com a obra sentindo-a vibrando no próprio corpo. dramaturgia que dura em si é optar por fazer do corpo que dança
em cena, o corpo estando em cena. A duração é um crescer para
No momento em que a dramaturgia, em sua relação dentro, é a costura que avança tendo que voltar para seguir, é a
com o NDO, consegue esta delicadeza ela, tirando partido do que dramaturgia que se desdobra nela mesma para dar suporte aos
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afirma Louppe (2012), instaura a dança como poética do movimento, acontecimentos do corpo que dança. Esta dança está a todo instante,
não pela originalidade nem pela configuração espaço-temporal, digamos, se dramaturgizando. É colocando o corpo como “[...]

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um infinito aberto pelo próprio movimento que o corpo existe e se REY PUENTE, Fernando. O tempo. São Paulo: Editora WFV Martins
situa” (LOUPPE, 2012, p. 77).  Fontes, 2010. (Filosofias: o prazer do pensar/dirigida por Marilena Chaui
e Juvenal Savian Filho).
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Dramaturgizar é estar a todo o momento se colocando em
SALLES, Cecilia A. Redes da criação: construção da obra de arte.
situação de observador/observado, articular o Todo que é aberto, Vinhedo: Ed. Horizonte. 2006.
infinito,  é  assumir que nesta duração não há  uma colocação
SCHÖPKE, Regina. Matéria em Movimento - A ilusão do tempo e do
de um tempo processual cronológico, regrado. Aqui estamos
eterno retorno. São Paulo: Martins Martins Fontes, 2009.
justamente procurando articular o Todo dos possíveis, o Todo do
sentido, do sensível onde quem está dançando na duração provoca-
se criações, volições, não de um eu a dançar, mas um eu que Artigo recebido em: 25/06/2017
está dançando. 
Aprovado em: 20/01/2018

Referências bibliográficas

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In: DELEUZE, G. Cinema, a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense,
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C3
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artigos

artigos
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Foto: Wagner Ferraz
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Artigo 10
DANÇA DO VENTRE:
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O MOVIMENTO DO CAMELO E O CORE

Me. Joelene de Oliveira de Lima, UFRGS, Porto Alegre/RS1


Me. Carla Vendramin, UFRGS, Porto Alegre/RS2

Resumo: Este trabalho é resultado das pesquisas realizadas na disciplina

DANÇA DO
de Estudos do Corpo I do primeiro semestre do curso de Licenciatura
em Dança da UFRGS. Esta disciplina tem como foco principal a
prática como pesquisa, o desafio recebido foi escrever sobre uma
prática corporal individual, e as possíveis inter-relações com os estudos

VENTRE: O
do corpo. Neste trabalho especificamente, procurarei abordar a
anatomia do core e a importância da sua consciência para quem
pratica a Dança do Ventre. Irei analisar os movimentos executados e

MOVIMENTO DO
os benefícios para quem dança, e a relação respectiva entre o core
e a Dança do Ventre.

Palavras-chaves: referências anatômicas. consciência corporal.

CAMELO E O
Dança. dança do ventre.

CORE
BELLY DANCE:
THE MOVEMENT OF THE CAMEL AND THE CORE

Abstract: This paper is a result of the researches conducted during Body


Studies 1, course from the first semester of the Teaching Degree in Dance
artigos

artigos
at UFRGS. On this course, the focus is on the practice as a research, and
the challenge was to write about an individual corporal practice and
the possible interrelations with the body studies. This paper, specifically,
seeks to approach the core anatomy and the importance of this for
those who practice Belly Dance. Thus, the performed movements, the
benefits for dancers and the respective relation between the core and
Belly Dance will be analysed here.

1 Mestre em Educação/PUCRS, Graduanda de Licenciatura em Dan-


ça/UFRGS
C3

2 Mestre em Coreografia/Middlesex University, Graduada em Fisiotera-


pia/FEVALE e Professora do Curso de Licenciatura em Dança/ESEFID/UFRGS

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Através das práticas realizadas na disciplina passei a prestar


mais atenção às minhas práticas de dança e, passei a relacionar os
Keywords: anatomical references. body awareness. Dance. belly
conhecimentos adquiridos. Comecei a dar atenção a concentração,
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dance.
a consciência corporal, a respiração a partir das observações feitas
em aula. Como, por exemplo, da expansão da caixa respiratória e dos
movimentos do diafragma e especialmente aos grupos musculares
Conseqüências do aprendizado em Estudo do Corpo I
que são ativados durante a dança e percebi que praticamente todos
Os estudos realizados nesta disciplina são baseados na premissas os grupos musculares são estimulados e trabalhados na modalidade
da prática somática. Segundo Domenici somática é um campo de dança que pratico. Também passei a dar atenção à percepção
emergente de conhecimento de natureza interdisciplinar que surgiu das articulações e seus movimentos ao realizar os princípios básicos do
no século XX, protagonizado por profissionais das áreas da saúde, da ballet e da dança do ventre. Identifiquei que as minhas limitações não
arte e da educação. são articulares e sim de alongamento muscular e passei a trabalhar
Como se dá o movimento no corpo? Quais as relações meu corpo para adquirir um estado de melhor flexibilidade. O que
entre corpo e mente? O que é a percepção e como me deu esperança de executar os movimentos da dança com mais
ela opera? Quais as relações entre a percepção
e o movimento no corpo? Qual a importância das precisão e graça buscando aprimorar minha capacidade de alongar
emoções nesse circuito? Essas eram algumas das e respirar adequadamente.
perguntas para as quais esses pioneiros formularam
respostas inovadoras. (Dominici,2010)

Buscando entender os ensinamentos da autora, de que a A função da imagem na aprendizagem do movimento


experiência corporal (sensório-motora) é a base para a construção de
qualquer tipo de conhecimento e de que o corpo está diretamente No ensino da dança o uso de subsídios imagéticos, como aqueles
implicado no conhecimento do mundo, passamos a analisar os disponíveis com a ideokinesis, possibilita a realização de movimentos
nossos corpos e de nossos colegas anatomicamente ao executarmos à partir das suas relações sensoriais com o mundo que o cerca. Como
diferentes movimentos. Uma das referências usadas foi Feldenkrais, afirmou Gambini,
um método de educação somática que favorece o processo de “porque a arte é uma antiga e preciosa via de obtenção
aprendizagem dos movimentos. Fizemos o exercício do relógio, a de novos conhecimentos; realidades não nomeadas,
terrenos não mapeados, valores ainda sem contorno
proposta era de imaginarmos o centro da região pélvica e considerar e definição, sensações não catalogadas, estados de
o sacro como um relógio imaginário, com ponteiros que criam espírito incomuns, maneiras novas de estar no mundo
e de ser humano. A arte leva a essas dimensões, as
movimentos no sentido horário ou anti-horário. descobre, as inventa. (...) a arte cria realidades” (2010,
artigos

artigos
p. 172)
Posteriormente fomos desafiados a analisar a maneira como
experienciamos a dança em nosso cotidiano, para perceber como Relações com objetos, animais, areia, vento e cenários da natureza
estas experiências interferem determinantemente no que conhecemos. funcionam da mesma forma que o relógio de Feldenkrais citado no
A experiência é algo individual e pode ser compartilhada apenas começo do artigo. Estas imagens para os movimentos da Dança
parcialmente, ou seja, é impossível uniformizar o conhecimento de do Ventre colaboram para criar a diferenciação dos movimentos
cada corpo diante do mesmo objeto ou evento. Entendendo desta pélvicos. A bailarina faz uma relação imagética quando dá referência
forma que estamos em constantes mudanças e adaptações e que aos movimentos de seu corpo através da forma de caminhar de um
nosso corpo é um ambiente ativo, que constrói novos conhecimentos
C3

camelo ou de se deslocar de uma serpente.


e comportamentos na interação com o mundo, em tempo real.

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Quais são os músculos do core? para a saúde física do indivíduo já que é utilizada na execução de
praticamente todos os movimentos corporais. Além disso, determina,
Os movimentos na Dança do Ventre são altamente dependentes
em grande parte, a postura de uma pessoa.
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do core. Ele serve para estabilizar o tórax e a bacia e, quando pouco
desenvolvido, deixa-nos mais propensos a lesões da coluna. Por esta
razão a importância de aprender a dançar trazendo consciência
A Dança do Ventre como expressão de sentimentos e o movimento
postural para essa região.
corporal da região do core.
Os músculos do core encontram-se na zona abdominal, na
Kaha afirma que o ventre ou cintura são o centro de equilíbrio
metade inferior das costas e na região inferior da bacia, são eles: os
do corpo. Onde se situa os órgãos de eliminação de toxinas, o que
músculos do assoalho pélvico, transverso do abdômen, oblíquos do
representa fluência para o que não nos serve mais, a capacidade de
abdômen, reto abdominal e os eretores da espinha e multifídios. O
deixar ir fatos passados. Cita que os movimentos na dança do ventre
diafragma delimita internamente a parte superior dessa região. Os
de contrações, batidas, tremidos e ondulações trazem para a coluna,
músculos secundários, ou periféricos, fazem parte do quadril, como o
quadris e abdome concentração e força. Segundo Bencardini:
quadrado lombar e o glúteo mínimo e médio.
“A dança do ventre (Raks el Sharq, em árabe) é uma
forma de arte milenar, cuja origem é difícil de precisar
devido à escassez de registros a respeito. Sabe-se,
porém, que esta dança se desenvolveu como parte
da cultura árabe, sendo tardiamente incorporada
como uma prática corporal pelas ocidentais.”
(Bencardini,2002)

Ao dançar as bailarinas expressam a sua emoção e contentamento


em fazer parte do deserto e de toda a natureza que o cerca, no caso
das ocidentais, é como se vivessem em um Oásis imagético. Também
reverenciam o “sagrado feminino”, orgulham-se do grupo feminino
que fazem parte e de seu ventre capaz de gerar sua descendência.
Figura 1: Músculos do Core
Imgem disponível em: http://vidafit.com.br/blog/core-por-que-como-fortalecer/.
Acesso: 01/06/2016
Ondulações abdominais

As ondulações abdominais são chamadas de movimentos


artigos

artigos
Os músculos do core estabilizam a coluna vertebral, costelas
sinuosos na Dança do Ventre. As ondulações abdominais, geralmente
e pélvis de forma a resistir a uma força específica, seja estática ou
conhecidas como “camelo” e “serpente”, favorecem a sensação
dinâmica.
de conforto, e trabalham a capacidade de imaginar um camelo
“Do ponto de vista funcional, o trabalho para esta
parte do corpo deve ser feito com exercícios multi- caminhando com movimentos sinuosos ao por do sol no deserto.
articulares de forma a estimular os grupos musculares
envolvidos de uma forma conjugada, fugindo, assim, Os movimentos do camelo exigem da bailarina uma respiração
aos exercícios mais analíticos e que tratam cada diafragmática. O controle dos músculos abdominais vai sendo
músculo de forma isolada”. (Hass, 2011)
desenvolvido na medida em que se percebe o percurso que a forma
C3

O core pode ser associado como a origem funcional de realiza no abdômen e o controle da respiração acontece.
todo o corpo. É muito importante a consciência desta musculatura

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com o ventre, a coluna, braços, tronco e quadril. O corpo forma uma


“O aprendizado das ondulações abdominais da Dança onda, o movimento é pélvico ou ventral de dentro para fora, ou do
do Ventre requer tempo, paciência e persistência. A ventre de baixo para cima. A pelve se encaixa e desencaixa como se
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tendência é de trancar a respiração, o que irá dificultar
a execução do movimento: Para evitar este desconforto fosse cavalgar um animal como o camelo.
procure imaginar-se na postura sentada, tranquilamente,
sobre um camelo e deixe-se levar pelo movimento do
animal.” (Kaha, 2011)

A percepção da respiração é de fundamental importância, ela


deve ser diafragmática. No início, será um exercício mecânico e,
com o tempo, se tornará uma movimentação tão natural, que sua
respiração fluirá sem empecilhos durante a realização dos camelos e
serpentes. Segundo Kaha:

“As ondulações de corpo inteiro trabalham também a


coluna vertebral. No sentido metafísico a coluna verte-
bral representa o suporte estrutural do corpo, sendo as-
sim, associada a um suporte mais flexível para a vida.
Quando se trabalha as ondulações da coluna vertebral,
indiretamente, está-se trabalhando a habilidade de ser
mais flexível na vida”. (Kaha, 2011) Figura 2: Samia Gamal, bailarina e atriz egípcia
Imagem disponível em: http://paxma china.nyc/post/129007852920/
A ondulação abdominal no camelo ocorre unindo a contração ramblingsofanasshole-the-gorgeous-samia-gamal. Acesso: 01/06/2016
do alto abdômen, seu relaxamento simultâneo e a contração do
baixo abdômen, sucessivamente. Cria-se uma ondulação na região
O movimento do camelo pode-se dizer que é uma junção, de forma
abdominal, sem expandir o movimento nem para a região torácica
contínua, de cinco movimentos: elevação do busto, contração do
(busto) e nem para a região pélvica.
alto abdômen, contração do baixo abdômen, contração do assoalho
Algumas pessoas relatam desconforto após a realização do pélvico com relaxamento do mesmo e da pélvis. Ao seqüenciar estes
movimento. Para evitar esta sensação ressalto a importância de cinco movimentos, cria-se uma ondulação corporal completa.
realizar os deslocamentos da forma mais precisa possível. A execução
A união dos dois movimentos é realizada com flexão de coxo
correta do exercício pode até mesmo contribuir para diminuir as crises
femural, joelhos, tornozelos e com o relaxamento da pélvis, seguidos
de dor na coluna, massageando e permitindo diminuir o fluxo de
de contração pélvica, contração do baixo abdômen, contração do
tensões acumuladas na parte inferior (lombar) desta estrutura.
artigos

artigos
alto abdômen, elevação do busto. Este movimento também pode ser
As ondulações abdominais podem ser feitas de dentro para fora quebrado, retirando sua característica sinuosa e executando as cinco
ou de fora para dentro. Podemos chamar de “camelo” de dentro etapas separadamente, este é chamado de camelo quebrado.
para fora, também conhecido como “ondulação contrária”, e de
“serpente” quando o movimento vem de fora para dentro.

Aprendendo o Camelo
No processo de criação deste trabalho realizei além da pesquisa
O princípio da movimentação do camelo
teórica uma análise prática dos movimentos que meu corpo realiza ao
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O movimento do camelo é realizado pela bailarina ou bailarino executar o movimento do camelo. Analisei a seqüência prática criada

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por várias bailarinas e cito aqui o interessante trabalho de Kaha(2011). realizar esta respiração você vai fortalecer a musculatura da coluna
Ela criou uma seqüência prática no chão de preparação para o e exercício contribui para definir a musculatura abdominal e manter a
movimento, para que fosse possível também orientar alguém de forma saúde de seu corpo.
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teórica. Irei discorrer abaixo sobre a forma de fazer essa preparação,
como se estivesse orientando alguém para esse movimento.
Fazendo o Camelo e a Serpente em pé
Primeiramente se posicione no chão, de cúbito dorsal, sobre um
colchonete ou superfície forrada, com os joelhos flexionados, e os Depois que a bailarina experimentou a respiração diafragmática
pés separados, para haver um equilíbrio das pernas. As mãos devem na posição deitada, pode tentar, agora em pé, procurando desenhar
estar levemente pousadas sobre o abdome para que possam sentir uma onda com seu abdome. Para auxiliar nesta compreensão, faça
toda a atividade da região, e o corpo totalmente relaxado. Observe uso de um espelho e o coloque-o ao lado para se observar executando
inicialmente sua respiração. Deixe o ar sair e entrar livremente pelas o movimento ondulatório. O sentido da onda, que é desenhada fica
narinas. Só pelas narinas. A boca, os lábios e a língua devem estar ao critério da bailarina: se de baixo para cima ou de cima para baixo.
relaxados. Acompanhe os movimentos naturais de seu ventre. Imagine Independente da direção aproveita-se a ação da gravidade para
que você deseja limpar os seus pulmões. Realize a respiração trazendo ondular ainda mais. A posição deitada é ótima para o aprendizado
atenção para o diafragma. Como preparação para o movimento do das ondulações abdominais.
camelo, Kaha (2011, p. 113), propõe o seguinte exercício:

Preparação no chão para o movimento do camelo:


Considerações finais
1. Deite confortavelmente de cúbito dorsal;
2. Respire profundamente de forma relaxada; Os estudos realizados nesta disciplina proporcionaram um
3. Inspire imaginando que ele entra pela sua pelve e preencha conhecimento específico da anatomia do corpo aliado ao estudo
seu corpo expandindo o abdômen; prático do movimento para a dança, seja ela através da investigação
4. Tente segurar a respiração e conte até 5; do próprio corpo ou dos corpos dos colegas. Estes conhecimentos
5. Solte o ar lentamente relaxando toda a musculatura refletem diretamente no cotidiano dos estudantes que passam a ter
6. Repita o processo. modificada a sua consciência corporal e conseqüentemente, seu
estado de corpo para a dança. No caso deste trabalho o aprendizado
está relacionado à capacidade de estabilizar o Core na Dança do
Esta respiração é chamada de diafragmática. O diafragma
Ventre. O conhecimento de que o centro da força no nosso corpo,
funciona como uma membrana fazendo com que o abdômen se
artigos

artigos
em estado de alerta, age para dar segurança ao movimento, faz
expanda e se comprima conforme a respiração ocorre. Na inspiração
toda a diferença para uma execução harmoniosa.
ele desce, expandindo o abdômen e arrastando consigo a base do
pulmão, o que aumenta seu volume interno e a sucção do ar. Na
expiração, o diafragma vai para cima, comprimindo os pulmões e
Referências:
expulsando o ar. Tente mover apenas o abdômen, o restante do
corpo permanece imóvel, o corpo vai ondular naturalmente em BENCARDINI, Patrícia. Dança do Ventre Ciência e Arte. Ed. Texto
conseqüência da respiração novo, 2002
C3

O importante é aumentar a sua consciência corporal, observando CALAIS-GERMAIN, Blandine. Anatomia para o movimento: introdução
o que ocorre com seu corpo na medida em a respiração varia. Ao à análise das técnicas corporais, - Barueri, SP. Ed. Manole, 2010.

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DOMENICI, Eloisa. O encontro entre dança e educação somática


como uma interface de questionamento epistemológico sobre as
teorias do corpo. Revista Pro-Posições, v 21, n 2 (62), p 69-85. Campinas:
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2010.
FELDENKRAIS, Moshe - O poder da autotransformação: a dinâmica
do corpo e da mente - Editora Summus , 1977.

FELDENKRAIS, Moshe. Consciência Pelo Movimento. Ed. Summus, 1977

GAMBINI, Roberto Com a cabeça nas nuvens. In: Proposições, v.21,


n.2, ago/2010

HASS, Jacqui Greene. Anatomia da Dança. – Barueri, SP. Ed. Manole,


2011

KAHA, Luciaurea. (Simone Luciaurea Coelho) Dança do Ventre


e Geometria Pedagógica. Geometria Corporal Expressiva para
Professoras e Alunas. Ed. Clube de Autores, 2011.

Artigo recebido em 25/08/2016

Aprovado em 26/02/2018
artigos

artigos
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artigos

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Foto: Wagner Ferraz
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Artigo 11
ARTE, FOTOGRAFIA E MEMÓRIA
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B.ela. Cernaide Hubler, Universidade Feevale, Novo Hamburgo/RS1

Resumo: Esta pesquisa no campo das artes visuais tem como finalida-
de, o estudo da memória a partir do uso de fotografias. Esta pesquisa
investiga a contribuição dos retratos de família como ferramenta de
significação do tempo e da preservação das recordações. Nesta pes-
quisa tenciono afirmar a importância do uso de imagens, assim como
de elementos sensoriais, na ativação das lembranças. Ressaltando
também a necessidade de uma proximidade para um reconhecimen-
to, assim como para o avivamento das recordações. Relacionando as

ARTE,
memórias vividas e as memórias construídas. Questionando o objeto
fotografia como obra de arte, relacionando as questões emocionais e
as lembranças inseridas no contexto.

FOTOGRAFIA E
Palavras-chave: Fotografia. Memória. Tempo. Vestígio. Identidade.

MEMÓRIA FOTOGRAFICA ART AND MEMORY


Abstract: This research in the visual arts field aims, the study of memory
from the use of photographs. This research investigates the contribution
of family portraits as time meaning tool and the preservation of memo-
ries. In this research I intend to affirm the importance of using images as
well as sensory elements, the activation of memories. Also emphasizing
the need for proximity to recognition, as well as the revival of memo-
ries. Relating the vivid memories and built memories. Questioning the
artigos

artigos
picture object as a work of art, related emotional issues and memories
within the context.

Keywords: Photography. Memory. Time. Trace. Identity.

1 Cernaide Hubler, (Ivoti-RS, 1984) Artista Plástica. Realizou exposições coleti-


vas dentre elas: Marcando a Arte, Giro na Arte e encaixando a Arte no Atelier de
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Arte Plano B, 20x20 e XVIII Salão de Artes Visuais na Universidade Feevale, Participou
de Feira de Iniciação Cientifica. Na produção plástica a artista trabalha com foto-
grafia experimental e instalação, a partir da apropriação de fotografias.

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A fotografia perpetua o momento, paralisa o movimento, compartilha


um sentimento, registra um acontecimento.
1 FOTOGRAFIA, PRIMEIROS PROCESSOS
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A fotografia é utilizada em diversas aplicações, distintas entre
A fotografia, assim como outros meios de comunicação e ex-
sí. Armazenamento de dados e identificação são exemplos, com
pressão, sofrem aprimoramentos constantemente. A fotografia tem
finalidades variadas como análises ou registros científicos, históricos
sua origem ligada a problemas de reprodução técnica, especialmen-
entre outros. De modo geral podemos afirmar que, fotografamos
te ao processo de fixação e impressão de imagem. Um processo físico
para lembrar. Mesmo quando a fotografia não tem carácter pessoal/
químico capta a luz registrando a imagem, ou podemos ainda definir
emocional ela ainda traz consigo a função do lembrar e de criar
como um desenho feito com luz. Esse processo surgiu para que se
uma marca no tempo. A fotografia permite as pessoas lembrar-se
pudesse capturar imagens sem a necessidade de utilizar desenho ou
de acontecimentos passados, ficando conscientes de quem são, a
pintura, para registrar.
qual grupo pertencem e de que tem uma história, isso se torna real
Nas primeiras tentativas de registro as imagens tinham pouca através das memórias preservadas ou recriadas, pelas lembranças.
durabilidade, desaparecendo pouco tempo depois. Esse processo Rosangela Rennó nos fala sobre o lembrar: “Esquecer não coincide
foi aprimorado no decorrer dos anos, até alcançar uma duração exclusivamente com não lembrar, mas é também lembrar sem
muito longa (décadas) para as imagens registradas, isso ocorreu no atentar para o processo de individualização. Lembrar-se e negar
ano de 1826. As primeiras fotografias eram de baixa qualidade, com subjetivamente.” (RENNÓ, 1998, p.140).
muitos ruídos que dificultavam a visualização das mesmas. O processo
fotográfico evoluiu muito ao longo dos anos até a fotografia colorida Há em toda fotografia uma espécie de interrupção do tempo
e de alta qualidade, que temos a disposição atualmente. e, portanto, da vida. O momento ao ser registrado, não é vivido, con-
gelamos a ação em uma pose para o registro da fotografia, com a
Com o surgimento da fotografia, surge também uma finalidade de eternizar o momento, esquecendo-nos de vivê-lo. Toda
permanência da ausência. Um registro bem realista e com pouca fotografia cria um registro que interrompe seu tempo e de certa for-
perda de informação, de pessoas, lugares ou acontecimentos. ma “eterniza” o fato registrado, criando um sentimento de ausência.
Possibilitando o guardar de uma memória por um tempo mais longo. Ocorre um encontro entre a ausência e a presença, a distância e a
André Rouillé nos fala em seu livro sobre o registro fotográfico: “Se nas proximidade, a lembrança ou reconhecimento em relação a fotogra-
fotografias o homem não ocupa o mesmo lugar que o pintor em suas fia, gerando uma relação nostálgica entre a fotografia, o passado e
telas, se a fotografia harmoniza (bem) rastro e registro, nem por isso o presente.
ela captura partes do real, como pretende a doxologia.” (ROUILLÉ, A imagem fotográfica não é um corte nem uma captura
2009, p.76). nem o registro direto, automático e analógico de um
artigos

artigos
real preexistente. Ao contrário, ela é a produção de
No ato de fotografar, as imagens são deslocadas no tempo, um novo real (fotográfico), no decorrer de um processo
conjunto de registro e de transformação, de alguma
possibilitando a fotografia um guardar destas imagens assim coisa do real dado; mas de modo algum assimilável ao
como de um determinado tempo, que ampliam a memória dos real. A fotografia nunca registra sem transformar, sem
construir, sem criar. (ROUILLÉ, 2009, p.77).
acontecimentos. Possibilita o cultivo das lembranças que facilmente
poderão ser esquecidas. Na fotografia encontra-se a ausência, na Procuramos constantemente fugir da ausência. O uso de
morte do instante registrado, e em contra partida a vida, preservada imagens fotográficas auxiliam em uma retenção maior de informação,
na lembrança do momento capturado, ajudando a combater apesar de também sofrerem perdas, por sua composição pictórica, as
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o nada e o esquecimento, sendo uma maneira de prolongar um imagens demoram mais para perder totalmente a informação visual,
vínculo entre a imagem da fotografia e a memória de quem a olha. ocorre uma perda maior e mais visível quanto a cor, intensidade

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e vivacidade na fotografia. Porém estas perdas não impedem a Criamos assim uma seleção do tempo, o tempo da memória
reconstituição de uma memória, a perda que temos é quanto a leitura e o tempo do esquecimento: “A fotografia moldada é moldada por
que fazemos desta imagem, e é neste ponto que podemos sentir a uma psicologia da memória. Perder a memória não seria, então,
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melancolia e a nostalgia da morte mais irrequieta. avançar na idade, mas perder um rosto. Fora de foco, na sociedade,
é estar posto a margem.” (RENNÓ, 1998, p.139). Assim como afirma a
A condição da ausência se apresenta na falta do indivíduo,
autora, perder a memória é perder um rosto, pois este rosto é quem
mas podemos ainda pensar na condição de ausência pela falta
nos permite a identificação da identidade registrada. Sem este rosto a
de identidade ou de uma identificação. Nas fotografias antigas
memória não permanece completa, ela torna-se apenas um fato que
conseguimos, de forma geral, discernir uma situação, mas nem
a partir da morte de quem o retém, ele se estingue. Podemos prolongar
sempre podemos reconhecer uma pessoa. Isso pode ocorrer por
sua existência através da memória construída, porém, não seria uma
diversos fatores como a deterioração. Considerando essas condições,
memória concreta e verdadeira, seria apenas uma memória.
podemos levar em conta a ausência pela omissão de uma identidade
e não somente pela falta de um indivíduo, Samain nos fala sobre as Fotografar para recordar, porém, podemos recordar enquanto
faces ocultas: existirmos, a partir da morte das pessoas fotografadas e das que
As demais faces são as que não podemos ver fotografam não há mais como recordar. A partir deste ponto geramos
permanecem ocultas, invisíveis, não se explicitam, nossas memórias construídas, onde imaginamos os acontecimentos
mas que podemos intuir é o outro lado do espelho e
do documento, não mais a aparência imóvel ou a com base em informações recebidas a respeito de uma fotografia,
existência constatada, mas também, e, sobretudo, pessoa ou fato transcorrido.
a vida das situações e dos homens retratados,
desaparecidos a história do tema e da gênese da
A memória é essencial na condição humana, sempre houve uma
imagem no espaço e no tempo, a realidade interior da
imagem: a primeira realidade. (SAMAIN, 1998, p. 40). preocupação com a produção de informações, de transcendência
do tempo, servindo de marca da própria existência humana. Desde os
primórdios da humanidade, ainda sem uma ferramenta fotográfica o
1.1 MEMÓRIAS homem teve a preocupação e habilidade de criar marcas(imagens)
no tempo, eternizando sua existência, e preservando assim parte de
As memórias interligam passado e presente, nos possibilitando
suas memórias. O tempo se mostra impetuoso e sagaz, capaz de
ter um real entendimento da nossa identidade individual. Esta ligação
apagar toda e qualquer lembrança vivida e constituída, sem o uso
entre passado e presente se dá através das lembranças, que podem
de algum recursos que nos ajude a preservar estas lembranças, a
ser reais, contando os fatos como realmente ocorreram, ou ainda
conservação das vivências se torna mais penosa.
tratar de uma memória construída, criada através de informações
artigos

artigos
adquiridas e passadas de geração a geração, para prolongar um Não sabemos da real importância do acontecimento registra-
acontecimento ou lembrança. do, mas damos importância a eles por terem sido fotografados, pelas
emoções que se escondem nestas memórias. As imagens são silen-
Para podermos lembrar precisamos reter fragmentos. A
ciosas, mas capazes de transmitir emoção e sentimento, claro que de
fotografia é um fragmento e nos possibilita esta retenção de lembranças
forma muito particular e individual. Cada pessoa reage e vê uma fo-
através dos tempos. Desta forma podemos relacionar a ideia de
tografia de uma forma bastante singular. Esta visão também mostra-se
nostalgia e morte ao ato de fotografar. O instante fotografado acaba
diferente toda vez que olhamos para uma imagem, a lembrança será
no instante do registro, permitindo sentir a melancolia do momento ao
sempre revivida, criando assim uma emoção distinta toda vez que
olhar uma fotografia e lembrar-se daquele instante, assim como das
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olharmos uma fotografia. As imagens podem ser muito misteriosas,


pessoas registradas.
sem pronunciar uma única palavra, podem no entanto, nos provocar

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e conduzir a uma infinidade de discursos internos e em torno delas. Ao examinar uma fotografia, cada observador acaba
sempre relacionando-se consigo, procurando discernir
Assim Samain afirma que: em si mesmo o que talvez não percebesse sem a visão
daquela imagem. A ânsia de conhecer através de re-
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A imagem fotográfica tem múltiplas faces e realidades.
A primeira é a mais evidente, visível. É exatamente o tratos de família, principalmente, obedece a uma bus-
que esta ali, imóvel no documento (ou na imagem ca de identidade ligada aos desafios da metamorfose.
petrificada do espelho), na aparência do referente, (SAMAIN, 1998, p. 37).
isto é, sua realidade exterior, o testemunho, o conteúdo
da imagem fotográfica (passível de identificação), a Utilizamos da memória para ter um reconhecimento facial, a
segunda realidade, enfim. (SAMAIN, 1998, p. 40). identidade da pessoa registrada. Penso no real interesse que temos
Em registros de família temos essa emoção aflorada, ao olhar- ao olhar para uma fotografia. Queremos reconhecer a pessoa regis-
mos para uma fotografia. Mesmo não tendo vivido ou estado presen- trada. Através de sua identidade, buscamos o reconhecimento e uma
te na situação registrada, a emoção de ver aquele acontecimento proximidade com esta pessoa.
e senti-lo familiar, é possibilitado pela fotografia e pela nostalgia da Em O Fotográfico o autor Samain fala sobre a relação de iden-
situação. Por meio das imagens fotográficas descobrimos uma capa- tificação e as fotos de família.” Como ao olhar retratos, a pessoa que
cidade de alcançar camadas inteiras de emoção que encontram-se olha está sempre à procura de uma relação entre ela e a imagem,
ocultas em nossas memórias. Podemos ainda atingir a novos significa- cada uma vera parcelas e níveis diferentes da fotografia. A câmara
dos que naqueles momentos não estavam muito perceptíveis. Assim funciona como uma extensão do olhar.” (SAMAIN, 1998, p.34).
Felipe Chaimovich nos fala sobre a fotografia de família e memórias:
Ainda sobre os retratos de família Samain fala:
Um signo gráfico é sobreposto a imagem para consignar, A atração dos retratos de família correspondente,
sobre o retrato de família, que a fotografia é o laço pois, a uma necessidade de identificação com sua
afetivo que atravessara o tempo. O deslocamento imagem. A necessidade de ver como os outros nos
é do lugar no cérebro do arquivo da memória visual veem e procurar as ligações com o eu interior, que se
para a usina do esquecimento. O congelamento do dissocia através da busca de semelhanças e contrastes
tempo, reiterado nas operações físicas sobre o corpo nos outros e nas metamorfoses que o tempo inscreve
(desbotamento, cortes, recortes, projeções), aponta naquele presente atual ou transcorrido. (SAMAIN, 1998,
para uma lógica também fora da imagem. Onde p.36).
a fotografia seria agenciamento da morte (como
interpreta Roland Barthes 21), fragmentos fotográficos Essa busca é natural nos fotografias de familiares pois buscamos
e migalhas de desejo reintegram uma presença e,
finalmente, apontam para a construção do sujeito. uma identificação com algum parente, por algum aspecto de
O fetiche fotográfico incide sobre uma ideia de falta semelhança, pela necessidade de pertencer a algum lugar ou grupo,
justamente ali onde o Sujeito se constitui. Rosangela
Rennó produz, cruamente, identidades melancólicas, e assim poder ter uma história pessoal. Algumas lembranças podemos
imagens que reivindicam a nostalgia de um dia terem recriar ao ver uma fotografia antiga. Samain nos fala sobre isso em
artigos

sido alguém. (CHAIMOVICH in RENNÓ, 1998, p.127).

artigos
seu livro: “Através das imagens que nos restam e das histórias que nos
Toda identidade registrada já foi alguém em algum momento. chegam pelas tramas da rede familiar, construímos uma interpretação
Podendo estar preservada e retida em uma fotografia com memórias da figura e da atuação de nossos antepassados no tecido social e a
ou apenas em uma fotografia qualquer, sem lembranças nem transmitimos para as novas gerações.” (SAMAIN, 1998, p. 20). O autor
histórias. A fotografia de família retém essas memórias por um período descreve de forma bem simples os laços familiares que constituímos,
maior, pelos laços afetivos existentes entre quem olha a fotografia e dentro de nosso clã. Essa preservação e transmissão de informações
a pessoa registrada. Um rosto, em retratos de família, sempre se torna ocorre em partes para preservação das memórias e continuidade
semelhante a outro que conhecemos, ampliando assim está memória desta linhagem.
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afetiva. Assim nos fala Samain:


As ações registradas em retratos de família, também são de

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modo geral, semelhantes. O uso da fotografia no cotidiano é relativa- ser comparado ao ato de Duchamp ao expor um urinol como obra de
mente nova. Há décadas atrás a fotografia era um acontecimento arte. Marcel Duchamp cria o Ready Made, apropriação de um objeto
importante, não era uma coisa comum e habitual como hoje. Cada industrializado e apresentado como arte. Nesta categoria de arte (arte
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vez que um fotógrafo era chamado para registrar uma fotografia, era conceitual), o que importa são as ideias, reflexões e pensamentos do
um evento de suma importância que precisava ser preservado. artista, muito mais que o próprio objeto em sí. André Rouillé nos conta
como ocorreu a instituição da fotografia como arte:
Os fatos registrados historicamente mudaram para sempre a
percepção da fotografia, pois sabemos que a muitos anos, estudiosos Antes de desempenhar o papel de material da
arte contemporânea, a fotografia desempenhou,
relacionam as imagens fotográficas com a manutenção da memória. sucessivamente, o papel de rejeitada pela arte (com
o impressionismo), de paradigma da arte (com Marcel
A fotografia torna-se um fragmento do mundo, no registro de Duchamp), de ferramenta da arte (com Francis Bacon
e, de uma maneira diferente, com Andy Warhol), e
um fato histórico, assim como vestígio pessoal quando registro de ima- de vetor da arte (com as artes conceitual e corporal,
gens de família. Na verdade, a potência da máquina fotográfica in- e com a Land Arte). Foi somente por volta dos anos
de 1980 (como um eco as experimentações dos
duziu as pessoas a crerem que o tempo consiste em acontecimentos
vanguardistas do início do século, mas em condições
importantes, tornando-os dignos de serem fotografados. Criando ves- e sob formas totalmente diferentes) que a fotografia
foi adotada pelos artistas como verdadeiro material
tígios para preservar uma lembrança, pelo uso da fotografia.
artístico. (ROUILLÉ, 2009, p.20).
Sabemos que nosso cérebro retém informações referente a si-
Novas utilizações para objetos cotidianos, esta é a proposta
tuações transcorridas, as quais denominamos lembranças. Nossa me-
apresentada nesta pesquisa. A apropriação de fotografias de família.
mória é a responsável por reter e nos permitir “acessar” estas informa-
Minha pesquisa propõe justamente a ação de apropriação de imagens,
ções quando julgarmos necessário.
registradas por outros fotógrafos, e coloca-los em exposição como
Estímulos como música, aromas, lugares, pessoas, sabores ou obras de arte, por sua forma de apresentação distinta das habituais.
imagens (fotografias) são muito importantes para aflorar estas lem- Pois apropriação fotográfica torna-se um processo fotográfico a ser
branças retidas. Estas memórias podem ser revividas sempre que qui- reaberto, dando continuidade a fotografia já existente. Assim como
sermos, mas cada instante será sempre único, a lembrança reconsti- Cezar Bartholomeu nos fala sobre a obra Rever de Rochele Zandavalli
tuída, virá de forma diferente toda vez que ela surgir, por se tratar de “A fotografia servira a novo proposito, encontra-se sequestrada de
uma nova lembrança. sua utilidade.” (BARTHOLOMEU in ZANDAVALLI, 2012. p.7).

Podemos reviver memórias de forma sensorial, criando assim Questiono a relação entre identidade e identificação, pelo uso
uma associação de significados, considerando este fator como im- de retratos de família e a perda ou permanência da memória, rela-
artigos

portante, e assimilando com uma memória ou uma lembrança viven-

artigos
cionada a estes retratos. O tempo que carrega as memórias também
ciada, ativando assim nosso cérebro para reviver/relembrar uma me- é a responsável por apagá-las, podendo gerar um conflito temporal
mória através dos sentidos. através das lembranças preservadas e criadas. Santos e Dos Santos
nos falam em seu livro:

A recontextualização de uma realidade – que no


1.2 FOTOGRAFIA COMO ARTE
ato fotográfico atual apresenta como característica
A fotografia para muitos não é vista como arte, porém o modo das imagens a fragmentação e a descontinuidade,
de apresentação de uma fotografia, o olhar que determina o corte, a instabilidade de significação e as sequencias
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assim como o instante em que ocorre o registro, determinam se esta aparentemente desconectadas – produz significados
imagem se torna ou não arte. Expor uma fotografia como arte pode dinâmicos com os objetos. Os significados aparecem

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em procedimentos alegóricos de apropriação e transformação, de um objeto convencional, criado originalmente


montagem e, ao mesmo tempo que contestam a com finalidade comercial, para fora de seu contexto. Inúmeros são os
informação da imagem, subvertendo suas aparências, fatores que permitem esta transição, posso citar como exemplos fotos
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abrigam algo como um “jogo da memória”, danificadas pela passagem do tempo, desgaste na pigmentação
estimulando uma sensação de dejavú. (SANTOS E DOS
original das mesmas, rasgos, iluminação ruim, desfoque, dobras,
SANTOS, 2004, p.80).
ampliação, diminuição entre outros. Esses são alguns aspectos
Fotografias antigas, integram a vida e a cultura contemporânea, que eliminam uma fotografia do âmbito comercial. Um fotógrafo
a partir de seus novos significados atribuídos por uma nova perspectiva comercial, não poderia vender uma fotografia com uma rasgo, mas
dada pela sua apresentação, não convencional. Ao longo das por outro lado um artista plástico pode usufruir dessa peculiaridade da
últimas décadas, a arte tornou-se mais fotográfica e passou a ter fotografia para criar um trabalho.
uma aceitação maior, de obras compostas por fotografias, após uma
Quando estas fotografias circulam no meio familiar aumentam
reconfiguração das noções de arte existentes. Esta aceitação ocorreu
as esferas de criação, ao trabalhar determinados conceitos como,
de forma gradual.
memória e relações afetivas. Estes laços de afeto mostram-se mais
Muitos são os aspectos comuns entre fotografia e pintura, fortes e duradouro, possibilitando o viés das memórias construídas,
como, composição, cor, luz, formas. Mas quais seriam as diferenças e vividas e sensorialmente identificadas.
semelhanças entre fotografia e pintura? O que torna uma fotografia
uma obra de arte? Alguns dos aspectos que julgo importantes e
indispensáveis para esta distinção estão ligados a produção e a REFERÊNCIAS
finalidade da fotografia.
RENNÓ, Rosangela. Rosangela Rennó. São Paulo, SP, Editora da
Universidade de São Paulo (Artista da USP, 9), 1998.
Em minha pesquisa, a utilização de fotografias convencionais
de cenas cotidianas e corriqueiras, que são transformadas em obras ROUILLÉ, André. A Fotografia: Entre Documento e Arte Contemporânea.
de arte, através de um conceito, assim como, por meio, da forma Tradução: Egrejas, Constância. São Paulo, SP, Editora SENAC São
de apresentação destas fotografias. Isso pode extrair as fotografias Paulo, 2009.
do padrão cotidiano, transformando-as em obras de arte. O
redirecionamento de uma fotografia comercial, para um contexto SAMAIN, Etienne. O Fotográfico. São Paulo, SP, Editora Senac São
conceitual e sem alvejar um direcionamento financeiro. Paulo, 2005.

Outro fator que torna-se importante, é a emoção, o sentimento SANTOS E DOS SANTOS, Alexandre e Maria Ivone. A fotografia nos
artigos

artigos
envolvido na ação da criação da obra. Um dos fatores que torna processos artísticos contemporâneos. Porto Alegre, RS, Editora da
um trabalho obra de arte, é a capacidade de transmitir emoções, UFRGS, 2004.
de qualquer categoria, como raiva, angústia, alegria, saudade..., ZANDAVALLI, Rochele Boscaini. Rever. Porto Alegre, RS, Imago Escritório
arte sem sentimento pode tornar-se vazia, e não é o suporte ou a de Artes, Santander Cultural, Curadoria: Bartholomeu, Cezar, 2012.
técnica aplicada que determina ou transmite alguma emoção. Nesta
situação, a intenção do artista assim como sua visão, é o que torna
uma fotografia, arte. A técnica aplicada na produção do trabalho
Artigo recebido em 11/08/2016
não é o mais importante.
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Aprovado em 14/01/2018
Desta forma direciono uma pesquisa onde proponho uma

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ESPAÇO
artigos

artigos
LIVRE
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Foto: Wagner Ferraz
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sobre lendas, mitos, rumores e histórias (essas mesmas que referiste


com letra minúscula) que se contam sobre a casa, ouvidas de muitas
pessoas, algumas ainda vivas, outras não. Algumas afirmam de pés
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juntos boa parte dos fatos descritos no texto, mas, por óbvio, um texto

FALTA DE RESPEITO que fala sobre fenômenos supostamente sobrenaturais, ‘barulhos de


correntes’, não se quer como documento com validade científica ou
histórica. Ser hipnótico e fazer as pessoas ‘acreditarem’ em histórias
(ainda que ficcionais) faz parte do trabalho de uma categoria
profissional também muito massacrada, a dos artistas. Trata-se de um
Gui Malgarizi, Macarenando Dance Concept, Porto Alegre/RS1 trabalho de um grupo artístico, em uma casa cultural, de modo que,
com o mínimo de discernimento e leitura contextualizada, qualquer
um é capaz de entender a narrativa como ‘artística’ e não como
‘histórica’. Talvez tenhamos que acusar de falsidade ideológica
Vou contar uma situação ocorrida há poucas semanas,
também Homero, ao contar que a Guerra de Troia teve origem
enquanto nós da Macarenando Dance Concept estávamos com
na disputa entre deusas; Alexandre Dumas, ao colocar o Cardeal
todo o gás em duas produções: Abobrinhas Recheadas, obra que
Richelieu e Luís XIII ao lado de personagens incontestavelmente
mistura dança e comédia, para ser apresentada no Instituto Ling, e
fictícios; ou até mesmo os autores da Bíblia, que ao tratar de um fato
Casa do Medo, obra de “terror imersivo” realizada na Casa Cultural
histórico (êxodo do povo hebreu do Egito) nos contam que um homem
Tony Petzhold.
dividiu o Mar Vermelho com o poder dado por Deus. Toda literatura
Recebi a incumbência de responder às mensagens enviadas chamada de ‘romance histórico’ é pautada na mistura entre ficção
por um historiador sobre a Casa do Medo. Em suas análises, ele e História, sem limites definidos, levando o leitor a viajar e acreditar
considerava pouco plausíveis as histórias que estávamos contando, naquele mundo limiar, mas verossímil, sem que para isso tenham que
acusava nosso texto de capcioso, hipnotizador e mal escrito e nos indicar o que faz ou não parte da História comprovada e/ou oficial.
ameaçava (!!!) com um possível ajuizamento de ação por falsidade Imagina uma criança ouvindo os contos sobre monarquias ficcionais:
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ideológica caso ele não confirmasse os “dados históricos” em suas deixaríamos o ‘era uma vez em um reino distante’ para chegarmos
pesquisas. Finalizou com a frase: “não zombem da História, zombem das em ‘nada disso que eu vou contar é verdade, e não aconteceu
histórias”. Tais colocações não vieram sob forma de questionamento em um reino que não existe’. ‘Vou-me embora pra Pasárgada / Lá
ou problematização, mas em tom de ameaça e de superioridade – sou amigo do rei’ - pobre Manuel Bandeira, que não disse utilizar de
uma falta de respeito. Ficam aqui trechos da minha resposta: licença poética ao afirmar que era amigo de algum rei persa morto
há não menos que dois milênios. Poderíamos citar os filmes, novelas
“Caro Fulano, a respeito dos teus comentários, a Casa Cultural
e minisséries ‘de época’, se quisermos outros milhares de exemplos.
Tony Petzhold e o grupo responsável pela Casa do Medo,
Respeitamos a História e não usurpamos o posto que ela ocupa, ou
Macarenando Dance Concept, iremos esclarecer nossos pontos
deveria ocupar, em uma sociedade com memória; de outro lado, a
de vista, ainda que saibamos que não há necessidade disso.
abordagem artística de lendas e contos (ou ‘histórias’) também tem
O maior equívoco, ou ponto de conflito entre as nossas ideias, está
lugar na formação da imaginação do que o mundo poderia ter sido
em dizeres que foram publicados ‘fatos históricos’. Estamos falando
ou poderá ser (ou que nunca será). Não é nosso interesse zombar
da História - o que temos consciência em não termos feito - mas é
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1 Gui Malgarizi é diretor e dramaturgista da Macarenando Dance Concept.


Geminianamente renascentista, dramaticamente sensível e racionalmente sarcás-
ofensivo nos conclamar a zombarmos das ‘histórias’, ou seja, da Arte.
tico.

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Poderíamos buscar outras práticas, em vez de nos separarmos e nos dimensão social da obra artística, muitas vezes entendido como “a
odiarmos, processos que a História parece demonstrar serem nocivos arte só tem relevância quando se prestar a uma causa, ou tirar alguém
à noção de humanidade. Acreditamos que o viés artístico dado à da pobreza, ou educar para o pensamento ecológico”. Todos esses
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visão popular acerca fatos, locais e fenômenos pode contribuir para o objetivos são nobres, não há dúvida, mas não justificam a existência
interesse na História, e vice-versa, sem que um se sobreponha ao outro. da arte e nem legitimam qualquer expressão cultural como artística.
Por fim, a ameaça de processo judicial de falsidade ideológica é
A arte não está limitada ao critério de verdadeiro ou falso da lógica;
bastante intimidatória a um grupo de artistas, que tem na invenção e
não se pauta pelo bem ou mal da ética; não informa o que é ou
na criação de ideias a sua atuação profissional. É a mesma coisa que
não saudável para o corpo humano; não é justa ou injusta, lícita ou
ameaçar um historiador de não publicar uma descoberta, a fim de
ilícita, legítima ou ilegítima, possível ou impossível. Arte “é” – e não
preservar uma lenda que vem sendo contada a gerações. Mas não te
“tem que ser”. É terreno de liberdade humana que se constrói em
preocupa, pois já nos informamos: o texto deixa claro que é baseado
cada obra de cada artista, e é a partir de cada obra e de cada
em tradição oral e rumores, o que afasta o tipo criminal. Também não
artista que deve ser lida. É um desrespeito dizer que um médico está
se cogita em intenção de causar prejuízo a outrem (potencialidade
errado ao receitar um medicamento ao fundamento de que “Deus é
lesiva), elemento indispensável aos delitos de falso. Por fim, o texto,
quem tem o poder de decidir sobre a vida e a morte”. Assim como é
como integrante de obra artística ficcional (evento cênico), não está
desrespeitoso um gramático dizer para um mecânico que o conserto
submetido à chancela da ‘verdade’, estando dentro dos limites da
do carro foi mal feito, pois o profissional não sabe conjugar bem os
livre manifestação e expressão artísticas. No mais, esperamos que
verbos. Ou ainda um arquiteto dizer que a comida de um cozinheiro
não tenhamos roubado muito do teu tempo com outro ‘texto mal
é ruim, pois ela não está em afinidade com as linhas da decoração.
construído’ e desejamos que tua luta pelo respeito, reconhecimento
Que tal começarmos a olhar a arte do ponto de vista da arte, e não
e valorização da História seja bem-sucedida e voltada contra aqueles
da história, da medicina, do direito, da política, da politicagem, da
que realmente querem menosprezá-la. Atenciosamente.”
sociologia, da filosofia, da educação, da musculação, do comércio,
Não se interesse, não consuma, não viva a arte – caso não queira da economia, da publicidade, do design, da gramática, da farmácia
–, mas respeite-a. Se não a entende como campo de produção do social. Limitar a arte às finalidades de outros campos é limitar a sua
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conhecimento humano, ao menos a respeite enquanto trabalho de própria finalidade.
milhares de pessoas. E respeitar significa olhar para a arte a partir dela
própria e dar valor a esse ponto de vista, em detrimento de analisá-la
apenas a partir de outros campos, como a História.

Infelizmente, o caso acima não me parece exceção: todos os dias vejo


gente justificando ou detonando as obras artísticas a partir de critérios
exclusivamente não-artísticos. Questionam o porquê do investimento
público em arte, “já que ela não serve para nada” (sob um ponto
de vista econômico – e equivocado). Muitos dos bem-intencionados
alegam que tal obra “não acrescentou nada de bom para o mundo”,
logo “a obra é ruim”. Prestem atenção nos editais de produção
artística, que cobram dos proponentes dezenas de contrapartidas
pré-moldadas, muitas vezes alheias ao objeto artístico em si. Com a
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muito bem-vinda emergência de pautas sociais, fala-se do caráter ou

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Foto: Wagner Ferraz
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Lã e água
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Aline Daka, UFRGS 1

“Lã e água” é uma HQ esquiza com múltiplas entradas e saídas, e que


deve ser lida de forma aberta e em várias direções. É uma recriação
baseada no capítulo de mesmo nome do livro “Alice através do
espelho” de Lewis Carroll. Esse trabalho foi realizado no curso de
extensão “Quadrinhos e artes sequenciais” promovido pela UFRGS e
ministrado pela Profª Drª Paula Mastroberti, em 2015. Roteiro e arte
criados por Aline Daka.

Links:
www.flickr.com/photos/alinedaka/
http://dakhadessin.wix.com/aline-daka-hqcomics
www.notadotradutor.com
http://pararraioscomics.com.br/
http://meninavudu.wixsite.com/meninavudu
http://www.aura.art.br/artistas/aline-daka
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1 Aline (Daka) da Rosa Deorristt, UFRGS. Atua como educadora, artista vi-
sual, ilustradora e quadrinista. É formada em bacharelado em Artes Visuais pelo
Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012). Continuou
seus estudos na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, em Portugal
(2009/2010). Atualmente é graduanda em licenciatura em Artes Visuais, na Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul e mestranda no Programa de Pós-graduação
em Educação, na linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação, orientada
pela Profª Drª Paola Zordan. É ilustradora e curadora da (n.t.) Revista Literária em Tra-
dução. Participa do grupo de pesquisa ARCOE, Arte, Corpo e EnSigno e do M.A.L.H.
A., Movimento Apaixonando pela Liberação de Humores Artísticos. Tem exposições
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coletivas em arte no Brasil, em Portugal e na Espanha, uma individual e ilustrações


em livros e revistas de arte e literatura.

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para que sejam observados, contemplados por quem por ele transita.
Também peço que não pensemos em performance simplesmente
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como apresentação. Pensemos nas relações que se estabelecem

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MOVIMENTO ENTRE
entre objetos e corpos expostos e que se expõem, apresentados
e que se apresentam, significados e que se significam. Pensemos
mesmo na relação que vem a se estabelecer entre. Entre objetos,
Documentos de Transição, performance-exposição entre corpos, entre corpos e objetos, entre artistas, entre artes, entre
performance e exposição, entre performance-exposição e público,
de Michel Capeletti e Marina Camargo
entre movimentos. Pensemos, ainda, em movimento entre, pois, em
Documentos de Transição, foi possível visitar os lugares pelos quais o
bailarino e a artista visual transitaram, movimentaram-se.
por Alyne Rehm1
Lugares enquanto espaço, sim, mas, sobretudo, enquanto
movimento. Movimento que, em determinado momento, borra-se,
como uma imagem refletida em um espelho embaçado: não se
O movimento, qualquer movimento, sabe mais onde começa e onde termina a imagem; não se sabe
é a fuga de uma posição, da posição
mais onde estão suas bordas, seus limites, suas fronteiras. E, em algum
anterior do corpo.
instante, chegou-se a saber?! Tudo se mistura, desfazendo a ilusão de
Gonçalo M. Tavares2
completude. Indistingue-se o dentro e o fora, o direito e o avesso, o
que é de um e o que é de outro.
Em meio a diferentes materialidades significantes – vídeos, Indistinção essa que pode ser pensada como o atravessamento
performances, textos pessoais e teóricos –, a performance-exposição proposto por Bident (2016)4. O autor apresenta a expressão “teatro
Documentos de Transição3, apresentada entre as 18h e as 21h do dia atravessado” e argumenta que o “atravessado” é “a visão puramente
17 de setembro de 2016, na Galeria Península, em Porto Alegre/RS, abstrata de um espaço de representação em que intervêm corpos
buscou performar-expor a relação que se estabeleceu nos dois últimos
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e linguagens” (p. 51). Desse modo, a performance-exposição
anos entre Michel Capeletti e Marina Camargo durante o processo Documentos de Transição pode ser entendida a partir desse
de criação do espetáculo de dança contemporânea Enquanto as atravessamento, pois diferentes materialidades significantes, com
coisas não se completam. suas diferentes linguagens, se atravessam, movimentando os sentidos.
Mas antes de seguirmos, peço que não pensemos em exposição Sentidos que se dão no momento em que Michel e Marina entram
como costumeiramente se organizam as exposições: objetos, em contato um com o outro e organizam a performance-exposição
quaisquer que sejam suas ordens, disposto em pontos fixos no espaço de uma determinada forma e não de outra. Sentidos que se dão no
momento em que o público entra em contato com os vídeos, com os
objetos, com os textos, com as performances produzidas/escolhidas
1 Alyne Rehm é artista-pesquisadora em dança, doutoranda em Artes Cêni- pelos artistas e estabelece relação com o espaço e com tudo o que
cas (PPGAC/UFRGS) e graduanda em Dança (ESEFID/UFRGS).
Contato: alyne.rehm@gmail.com nele opera.
2 TAVARES, Gonçalo M. Atlas do corpo e da imaginação. Alfragide: Caminho, Assim, atravessado, também é o movimento que se estabelece
2013. p. 243.
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3 O material impresso que foi distribuído durante a performance-exposição


4 BIDENT, Christophe. “O teatro atravessado”. In: AJR, Brasil. V. 3, n. 1. p. 50-
encontra-se disponível em https://enquantoascoisasnaosecompletam.wordpress.
64. jan./jun. 2016.
com/documentos-de-transicao/ Acesso em 21/11/2016

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entre os artistas na medida em que se alimentam um do outro. Conforme Yanick Butel (2016)5, nunca falamos do objeto, mas da
Se alimentam, se misturam, se afetam, se borram no/do próprio nossa relação com o objeto: Como ele nos interpela? Como ele nos
movimento – de troca de correspondências, de referências, de ideias, faz agir e pensar? Desse modo, o que apresento sobre Documentos
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de dúvidas, de possibilidades. de Transição não é a performance-exposição em si, mas o que dela
ficou em mim a partir da relação que com ela estabeleci, pois, a
Movimento que se estende ao público: duas telas – cada
medida em que constituo sentidos, constituo-me enquanto sujeito.
uma passando um vídeo diferente; algumas peças espelhadas com
Dizer da performance-exposição, é dizer-me a partir dos lugares sociais
diferentes recortes dispostas ao longo de uma parede; uma mesa
e discursivos que ocupo, das formações ideológicas, imaginárias,
repleta de papéis; algumas intervenções performáticas. A exposição
culturais e discursivas nas quais me insiro, e, sobretudo, das relações
convocava os visitantes ao movimento: era preciso mover-se de uma
que estabeleço com o objeto em análise. Não há como dizê-lo sem
tela a outra para descobrir o que nelas se passava; era preciso mover-
dizer-me.
se ao longo da galeria para observar as diversas formas espelhadas;
era preciso mover-se em torno da mesa para acessar os documentos A performance-exposição, mais do que compartilhar com o
impressos; era preciso mover-se para assistir às performances. O público os materiais e os processos trocados entre Michel e Marina
movimento estava até mesmo no ato de montar, enquanto visitante, na estruturação do espetáculo, permitiu aos visitantes experimentar
como cada um bem entendesse, o seu dossiê, com os textos verbais os movimentos práticos e teóricos de Enquanto as coisas não se
e imagéticos escolhidos, na ordem desejada. Ou seja, não só o completam. Movimentos do olhar, do pensar, do experenciar. E
atravessamento entre os artistas informava sobre os sentidos possíveis também movimentos entre o olhar, o pensar, o experenciar.
da performance-exposição, mas os visitantes, a partir daquilo que
os atravessava, dentro e fora do espaço da galeria, apreendiam
diferentemente aquilo que Michel e Marina propunham, já que seus
próprios movimentos se atravessavam nessa constituição de sentidos,
nessa relação entre, nesse movimento entre.

Entretanto, dado o tamanho da galeria inversamente


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proporcional ao número de visitantes, nem sempre foi possível mover-
se na direção escolhida. Era preciso inibir um movimento e escolher
outro, ou ser escolhido por ele. Não foi porque eu decidi mover-me
no espaço e posicionar-me em frente a uma das telas expostas para
assistir ao vídeo em que Michel interagia com uma banda elástica
que eu pude fazê-lo. No caminho, entre um ponto e outro do trajeto,
alguém decidira a mesma coisa. Não apenas um alguém, mas alguns
alguéns. Quando cheguei próximo à tela, o número de pessoas em
frente a ela e a disposição em que se colocaram no espaço me
impediam de ver qualquer coisa. Movimentamo-nos. Movimentamos o
espaço. Meu movimento foi inibido por uma parede humana. Alguém
gargalhou. Mudei minha direção sem tê-la escolhido exatamente,
em busca da fonte do som que me atravessava. Voltei a mover-me.
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Desviando. Esbarrando. Decidindo e sendo decidida. 5 Yanick Butel, crítico teatral, em comunicação oral durante o Seminário Olhar
crítico sobre a cena contemporânea, realizado entre os dias 16 e 18 de agosto de
2016, no Instituto Goethe, em Porto Alegre/RS. Notas pessoais minhas.

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Foto: Wagner Ferraz
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de criação, é comumente confundido com o fazer cópia.

E diante deste posicionamento, ao ser convidado para participar


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da exposição “Criações: Brazilian Fashion in Belgium”, que ocorreu

Experimentos com
na Casa do Brasil em Bruxelas/Bélgica, no período de 10/03 a 05/04
de 2016, me coloquei a pensar no que e como desenhar, evitando
reproduzir modelos dados e/ou representações estereotipadas.

desenhos de Moda
Da criação

Quando me foi apresentada a proposta de integrar a referida


exposição, em um primeiro momento eu pensava que sabia o que
Anderson Luiz de Souza, UFRGS/FEEVALE, Porto Alegre/RS1 poderia ser feito, mas durante o processo de criação, percebi que eu
não fazia ideia do que eu viria a fazer. As únicas informações que eu
possuía bem claras e definidas eram que toda a proposta do trabalho
Do desenho de moda partiria de desenhos de moda, e que a proposta curatorial abordaria
a “Moda Brasileira na Bélgica” sendo que o tema a ser explorado por
As definições acerca do que pode vir a ser um desenho de moda são mim seria “Luxo Tropical”.
muito dinâmicas e não se tem como fixa-las à modelos de verdade,
se for levado em consideração que tais definições vão se adaptando A proposta inicial compreendia a criação de vinte desenhos no
e se modificando com o decorrer do tempo. Ainda mais, se também tamanho A2, mas no decorrer do processo de criação, as escolhas
for considerado, que o próprio termo moda traz em sua etimologia a tomadas e as ideias colocadas em prática foram tomando direções
ideia de mudança. inesperadas, e mostrando que o tempo estipulado não seria suficiente.
Os trinta dias que se tinha para a realização de todo o trabalho
Mudanças que, especialmente no caso da produção de desenhos,
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seriam mais que o suficiente para realização de desenhos de moda
se dão em virtude dos incontáveis acontecimentos que podem levar convencionais, mas não para os desenhos que efetivamente estavam
a composição de novos posicionamentos estéticos, que de modo sendo criados.
geral, se ligam aos valores culturais, tecnológicos e sociais de uma
época. (HOPKINS, 2011). O processo de criação iniciou com estudos de técnicas e materiais,
para definir o que seria efetivamente feito, então foram realizados
Desde a invenção do que se entende por moda, o desenho vem sendo desenhos de moda diretamente sobre papel branco no tamanho
explorado por inúmeras abordagens, e ao se apropriar de linguagens A2, iniciou-se com desenhos mais clichês, com figuras femininas
e técnicas oriundas do universo da Arte, a busca por maneiras de se alongadas, de silhueta esguia e representação realista nos detalhes da
expressar que evidenciem uma proposta individual e criativa com o figura humana, como rosto e membros, e também nos detalhamentos
desenho, é motivo de atenção, diante do fato de que o entendimento dos tecidos e texturas das vestimentas. Tecnicamente os desenhos
poderiam ser considerados bons, mas não apresentavam nada
1 Doutorando e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em de novidade, eram apenas “mais do mesmo”, representações de
Educação / UFRGS, na linha de pesquisa Filosofias de Diferença e Educação (2015).
estereótipos.
C3

Especialista em Arte Contemporânea e Ensino da Arte - ULBRA (2011). Graduado em


Moda (Bacharelado) CESUMAR (2006) - Maringá/PR e Graduando em Artes Visuais
(Licenciatura em andamento) UNIP. Mediante a frustração com os resultados iniciais, buscou-se trabalhar

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com algum material que pudesse imprimir desafios, que tirasse da Referências bibliográficas:
zona de conforto. Então, fez-se uso de papéis de molde extraídos de
HOPKINS, John. Desenho de moda. Porto Alegre: Bookman, 2011.
antigas revistas de moda brasileira, material que já havia sido usado
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uma vez em um outro trabalho com desenho. SOUZA, Anderson Luiz de. Desenhar com linhas: Criação de Figura
corpo. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Educação
Tal experimentação foi somada a uma variação do processo
PPGEDU/UFRGS, 2015. Dissertação de Mestrado.
empregado nos desenhos produzidos na dissertação de mestrado
intitulada “Desenhar com linhas: Criação de Figura corpo” (SOUZA,
2015), processo denominado na pesquisa como experimentação com
linhas, o qual consiste em um modo de pensar por imagens compostas
por linhas, sejam estas linhas criadoras de desenhos e/ou criadoras de
escritas. Partindo de uma proposta de trabalho que possibilitasse a
insurgência do erro, do acaso, da incerteza, da surpresa no processo
de criação.

Assim, ao experimentar com as linhas já traçadas em cada folha de


molde, brincando com os diferentes espaços, linhas e formas que cada
folha de papel apresentara, é que efetivamente se deu a criação dos
desenhos para a exposição.

Nenhum desenho foi esboçado antes ou previamente estudado,


cada um foi sendo feito diretamente sobre as folhas de papel.

A temática “Luxo tropical” foi explorada a partir da pesquisa de


imagens indígenas de diferentes tribos existentes no Brasil, como os
Kadiweu e Guaranis, elementos variados da flora nacional, como
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as bromélias e orquídeas, além da estrelícia que foi escolhida como
referência ao povo africano que muito contribui com a formação da
cultura brasileira, por ser uma planta originária da África do Sul, mas
muito popular atualmente na paisagem urbana.

Ao final dos trinta dias, haviam sido feitos onze desenhos, dos quais
nenhum resultou em representações específicas de signos da cultura
brasileira nem da cultura de moda, mas foram compostos por
informações pictóricas que pudessem remeter a muitos elementos Foto: Anderson Luiz de Souza
populares na cultura do Brasil, assim como sugerir uma figura vestida Anderson Luiz de Souza
em uma forma humana estilizada podendo ser entendidos como Experimentos com desenhos de Moda 02 (Detalhe)
muitas possibilidades de vir a ser. Técnica mista sobre folha de moldes
54cm x 40cm
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Foto: Anderson Luiz de Souza
Anderson Luiz de Souza
Experimentos com desenhos de Moda (Detalhe do papel utilizado)
Técnica mista sobre folha de moldes
54cm x 40cm
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Foto: Anderson Luiz de Souza
Anderson Luiz de Souza
Experimentos com desenhos de Moda 06
Técnica mista sobre folha de moldes
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54cm x 40cm
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Foto: Anderson Luiz de Souza
Anderson Luiz de Souza
Experimentos com desenhos de Moda 02 (Detalhe)
Técnica mista sobre folha de moldes
54cm x 40cm
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Foto: Anderson Luiz de Souza
Anderson Luiz de Souza
Experimentos com desenhos de Moda 08
Técnica mista sobre folha de moldes
54cm x 40cm
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Foto: Anderson Luiz de Souza
Anderson Luiz de Souza
Experimentos com desenhos de Moda 09
Técnica mista sobre folha de moldes
54cm x 40cm
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Foto: Anderson Luiz de Souza
Anderson Luiz de Souza
Experimentos com desenhos de Moda 01
Técnica mista sobre folha de moldes
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54cm x 40cm
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Foto: Anderson Luiz de Souza
Anderson Luiz de Souza
Experimentos com desenhos de Moda 03
Técnica mista sobre folha de moldes
54cm x 40cm
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Foto: Anderson Luiz de Souza
Anderson Luiz de Souza
Experimentos com desenhos de Moda 11
Técnica mista sobre folha de moldes
54cm x 40cm
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Foto: Anderson Luiz de Souza
Anderson Luiz de Souza
Experimentos com desenhos de Moda 04
Técnica mista sobre folha de moldes
54cm x 40cm
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Experimentos com desenhos de Moda 10
Técnica mista sobre folha de moldes
54cm x 40cm
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Foto: Anderson Luiz de Souza
Anderson Luiz de Souza
Experimentos com desenhos de Moda 05
Técnica mista sobre folha de moldes
54cm x 40cm
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Foto: Anderson Luiz de Souza
Anderson Luiz de Souza
Experimentos com desenhos de Moda 07
Técnica mista sobre folha de moldes
54cm x 40cm
C3

2015

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274 275
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Cartaz da exposição
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Foto: Wagner Ferraz
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S i l ê n
c i
o

Essas imagens são registros de uma ação que faz parte de uma
pesquisa em performance e dança.
Em “S i l ê n c i o”
corpo a dançar e corpo a fotografar sofrem a intervenção do
espaço e participam de forma a compor o processo de criação.
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Artista-docente: Carla Vendramin
Fotógrafa-performer: Lu Trevisan
Ano: 2015
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Foto: Wagner Ferraz
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atabalhoada, pra cima do ímpar. Nessa altura não olha pra trás,
mesmo tendo o pescoço protuberante de pele saliente, onde o girar
se tornaria força mínima e traria resultados legítimos... Enfim, somente
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Corpo brincante
se consome nos afazeres para desbravar outros números aos pés. Pulo
quatro.

O corpo longitudinal serviu para ir até a outra casa. A forma anfíbia


do número justificava o tamanho esforço e o perigo abismal que o
Guilherme Cruz, UNILA, Foz do Iguaçu/PR1 suor iria acarretar ao se alojar na fonte de seu orifício superior. Sugado,
chupado, atravessado, esbugalhou-se ao atingir o infinito. Não mais
arriscaria suas facetas em linhas macabras demarcadas de ponta
De seus pés deformados não havia forma para caber entre as patas dos cabeça. Era o grito de niñez. Faria outra vez o mesmo pedido para
animais. Nem se pareciam com o nariz do tamanduá. Aquilo, aqueles quem ficou observando. Um passo ameaçador perante ao erro,
dois membros estavam desaconjuntados do resto. Em comparação uniformemente contraindo ombro, pescoço e trapézio. Escarra alguma
eram pernas, mas em simetria eram a personificação de desenhos desculpa, já tomado pelo sangue, porque a movimentação lhe turva
feito por uma criança de cinco anos – com sua total percepção para as vistas e quem observava já inicia um ritual de tombamento. Agora
formas, perspectiva e veracidade. Existiam dedos, mas não eram em são todos contra ela, ficou concentrada no milésimo, respirou fundo
sua totalidade. Havia unhas, mas eram frágeis e escamosas. Vertia no segundo cravado, e atingiu o céu no minuto reposto. O projétil
água pelo esporão, e transfigurava feições humanas nas marcas brincante lhe atravessaria os pensamentos concretos.
deixadas na primeira casa.
O que sobrou foi um amontoado numa caixinha branca de alguns
Para o tempo que se seguia não podia juntá-las no mesmo espaço, centímetros.
esses dois membros tinham a força de uma intifada que viria arrebentar
Todo o dia doze de outubro, em sua cama depositam-se doces
o céu amarelado. O resto, que alguns poderiam chamar de corpo,
como memória. Muitas visitas acontecem durante todo o mês de
não controlaria essa imensa vontade de se equilibrar entre as longevas
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seu aniversário. O seu desenho predileto são repetidos em casas e
nuvens, mas ainda era infernal estar ali calculando míseros graus. Pulo
muros inacabados. Os muros viraram seu evangelho. O giz usado para
dois.
desenhar a brincadeira não resiste muito tempo, mas todos ali teimam
Forçosamente atira a pedra com uma das garras que ao mesmo em brincar sem o corpo. Um fim de corpo ausente é o indício que a
tempo tem a estrutura fibrilada de molusco que expõe os ossos. Como noite chegou e não mais se vê corpos brincantes nas ruas.
gravetos, em cima de cada antebraço desarticula veias porosas. Em
A vida se finda na chuva que limpa a calçada do céu escrito em
sua volta tudo é vermelho e azul, onde se faz frio e calor – um limbo
amarelo e vermelho.
continental (extraconjungal) entre o matagal – se formos pensar
nos deslizes que ocorreram nesses treze anos seria o nosso território
preferido.

Agora são duas casas na sua frente. Ímpar e par. De novo uma
dualidade. Rabisca um desenho no quadrado par e se joga,
C3

1 Pesquisador da área da Comunicação. Ouve e escreve histórias. Cronista


entre as pulsões da vida. Contos em: https://medium.com/@horizontevagant

C3
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Foto: Wagner Ferraz
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ENSAIO
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PERFORMÁTICO
“REVERBERAÇÕES
UTERINAS”
Daniel Aires-UFRGS-Porto Alegre/RS1

As fotografias a seguir compõe os registros do “Ensaio perfor-


mático Reverberações Uterinas”. Tratam do processo de investigação
corporal para o trabalho conceitual do útero como lugar incorporal.
Ancorado no conceito tratado por Anne Cauquelin, o artista visual/
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performer/bailarino pretende através do corpo, reverberar as sensa-
ções que partem do trânsito entre tempo-espaço no corpo cênico. A
problemática transita na proposição que move esta poética, ou seja,
de que maneira o santo e o profano articulam-se para (trans)formar o
útero em lugar incorporal?

Figura 1-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de


Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia.
C3

1 Daniel Aires: Bailarino/Coreógrafo/Performer/Pesquisador. Bacharel em Ar-


tes Visuais (UFSM), Especialista em Dança (UFRGS), Mestrando em Artes Cênicas (PP-
GAC-UFRGS).

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Figura 2-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de


Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia.

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Figura 3-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de
Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia.
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Figura 4-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de
Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia.

Figura 5-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de


Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia.
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Figura 6-Registro/ensaio para performance “Reverberações Uterinas”-2015 de


Daniel Aires. Foto de Estevan Garcia.

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Foto: Wagner Ferraz
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artista a seu tempo se encarrega de (ou ao menos deveria) tocar, ou


seguir, em frente o que foi construído no passado.
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Porém, antes, devemos observar esta linha histórica de

Transtexto
experimentos:

O comerciante, diplomata, poeta e político escocês Caleb


Whitefoord (1734-1810), por volta de 1760 passou a ler as notícias do
jornal não mais em colunas, mas seguindo a linha e pulando de coluna
Dan Porto1 para coluna. Chamou a técnica de Reading Cross, algo como Leitura
Santa Cruz do Sul, RS Cruzada.

Primeiro surgiu o mistério:

trans texto

a obra projeta

o seu próprio espaço

não é mais
Caleb Whitefoord, by Sir Joshua Reynolds, 1773. National Portrait Gallery.
lugar

autor
Sua produção ficou marcada pelo tom de humor que imprimia,
sentido
ou descobria, especialmente aos assuntos políticos. Embora Whitefoord
é o lugar presente tenha sido poeta, Giles Goodland, em seu artigo sobre a Reading
Cross, não acredita que tenha chamado de poesia o resultado dessa
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potência
técnica. Fez sim muito sucesso entre seus pares, mas mais como humor
de
do que poesia.
mistério
“O cometa está agora sobre a sua volta ao sol, de acordo com
um decreto do alto tribunal da chancelaria.”

Depois, os entrelaçamentos da teoria. No entanto, devo alertar “Ontem houve disputas violentas no conselho comum. Há algum
o leitor de duas coisas. A teoria é apenas teoria, ou seja, limitante e, por tempo o vulcão tem sido extremamente turbulento.”
assim ser, restritiva. Acredito que a boa teoria é aberta, compartilhada
“Lady M. Stanhope, filha do conde de H comprometeu-se a
e ininterrupta, pronta sempre a evoluir, porém, só por isso já assusta
comer uma perna de carneiro em uma sessão.”
aqueles habituados às caixas-pretas da regra. E a arte é viva. Cada
Por fim, Giles também sugere que Whitefoord tenha tomado
contato com a receita de Tristan Tzara para fazer um poema dadaísta,
1 Dan Porto, 32 anos, é escritor e artista curioso. Publicou Pequeno Manual
C3

do Vestibular (2009), Raridades (2011), Viver e ajudar a Viver (2014), Perfil Profissional que veremos a seguir.
(2014), Série Poética: Just it, Carménère, Xilema (2015), além de textos avulsos. Site:
www.danporto.com.

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O poeta romeno e criador do Dadaísmo Tristan Tzara (1896-1963) torna-se mais popular.
empregou uma técnica chamada Cut-up, ou découpé, em francês.
O pintor e escritor inglês Brion Gysin (1916-1986) descobriu a
Em sua Receita para fazer um poema dadaísta, ele registrou o passo-
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técnica pelo que comumente chamamos de acaso. Havia posto
a-passo.
jornais como forma de proteger a mesa enquanto cortava papéis com
Receita para fazer um poema Dadaísta uma lâmina. De repente percebeu que os jornais que também iam
Tristan Tzara sendo cortados, formavam camadas as quais, justapostas, criavam
imagens e textos interessantes. Brion chegou a publicar um livro com o
resultado da aplicação do Cut-up, Minutes to Go. Os primeiros recortes
Pegue um jornal. de Gysin nasceram na década de 1950 e influenciaram o trabalho do
Pegue uma tesoura. amigo William Burroughs.

Escolha no jornal um artigo com o comprimento que pensa dar ao O escritor e pintor William Burroughs (1914 – 1997) também
seu poema. trabalhou com a técnica de Cut-up. Embora o conceito seja atribuído
Recorte o artigo. aos dadaístas dos anos 1920, só veio a se tornar popular no final dos
anos 1950 e início dos anos 1960 com o trabalho de Burroughs, o
Depois, recorte cuidadosamente todas as palavras que formam o
artigo e meta-as num saco. Almoço Nu, de 1959.

Agite suavemente. Em parceria com Gysin, William Burroughs elaborou o livro The
Third Mind, uma mistura de ensaio, peças de Cut-up e uma entrevista
Seguidamente, tire os recortes um por um.
com o autor.
Copie conscienciosamente pela ordem em que saem do saco.

O poema será parecido consigo.

E pronto: será um escritor infinitamente original e duma adorável


sensibilidade, embora incompreendido pelo vulgo.
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Tristan Tzara, 1921. Man Ray.

Tzara chegou a criar um poema durante uma manifestação


dadaísta puxando palavras de um chapéu, como demonstração da
C3

The Third Mind, capa da edição norte-americana, 1978.


técnica. Porém, é só com Brion Gysin e William Burroughs que o Cut-up

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cujo trabalho de remix literário mais conhecido é o MixLit. Leonardo


começou a produzir em 2009 e segue trabalhando e pesquisando
sobre remixagem literária.
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Mas, neste século XXI, o responsável pelo resgate, pela
compilação e divulgação dessas técnicas é mesmo o norte-americano
Austin Kleon (1983 - ). O livro de Austin, Newspaper Blackout, de 2010,
foi o propulsor para o resgate das técnicas experimentais.

Esse olhar para o passado diz muito sobre o processo artístico, a


experimentação sempre esteve presente nos círculos criativos, aliás,
estes, ausentes neste nosso tempo muito individual. Foi um mergulho
proposital, muito embora pudesse, assim como acabo de criticar,
ter passado ao largo. Mas, diz o historiador francês Marc Léopold
Benjamim Bloch que “a incompreensão do presente nasce fatalmente
da ignorância do passado”.

Pois bem, passemos então à constituição do Transtexto.

Lembro-me que os espaços em branco na página sempre me


The Third Mind, Burroughs, 1978. chamaram a atenção, então os busquei no Transtexto e eles trouxeram
a canção 20 anos Blues, música de Sueli Costa e letra de Vitor Martins:
“O sangue jorra pelas veias de um jornal”.
E da amizade dos dois também nasceu o filme The Cut-Ups
(1966), dirigido por Antony Balch, roteiro de Burroughs e Balch e com
os dois amigos em cena, cuja montagem segue a mesma orientação
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da técnica em questão.

No entanto, talvez o trabalho mais extenso de remix literário seja


o do pintor britânico Tom Phillips (1937 - ). A partir de um romance
vitoriano, A Human Document, Tom criou seu trabalho A Humument,
ao qual se dedica desde 1966. A Humument já gerou, inclusive, peças
de ópera, como Irma: The Score.

Tom pinta, cola e desenha sobre as páginas, mas deixa parte


do texto à mostra em forma de balão. Personagens do romance
original aparecem na nova história, mas o protagonista é um novo
personagem chamado Bill Toge. O trabalho resultante de A Humument
também serviu para Tom ilustrar sua tradução de O Inferno, primeira
parte da Divina Comédia, de Dante.
C3

Nesse grupo, aparece o brasileiro Leonardo Villa-Forte (1985 - ), Transtexto # 51, Dan Porto, 2016. Divulgação.

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A polarização entre luz e sombra, mais que apenas duas manifesta ou secreta com outros textos”.
dimensões, me remetem aos ciclos naturais da vida. E assim, surgem as
A teoria de Gérard Genette produz eco no Transtexto surgido
cartas do Tarô: A Morte, O Carro, e O Mundo, cujos atributos principais
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do mistério, mas não só isso, ampara todos os estudos que geram
são modificar, direcionar e progredir, respectivamente. À propósito,
transformação (hipertexto) a partir do que já existe (hipotexto). Para
esta série quase se chamou ReMundo, em alusão ao progresso,
quem desejar mais informações, recomendo a leitura do material
mas desisti em função dos múltiplos aspectos associados à ideia de
indicado, haja vista que não é o interesse aqui construir teses
progresso, nem sempre e nem todos positivos.
acadêmicas, pelo contrário, é derrubá-las que é mais interessante.
Foi nesse ponto, ou em torno dele, melhor dizendo, que surgiu
Não há possibilidade de passar sem citar a influência minimalista,
o poema que abre este texto. Trans texto... Transtexto. Trans, do
que pode ser vista descaradamente nas peças de palavra única. O
latim além de, em troca de, através. E se impuseram os aspectos já
sentido e a significância do signo valem mais do que aparentam neste
presentes, iluminaram-se, a saber, o espaço, o momento presente e
tempo líquido, cuja linguagem se tornou mais imagem do que som.
talvez a dimensão mais importante e mais cara a mim, desde sempre,
o mistério. Vamos tomar espaço por papel, livro, jornal ou revista
que estou trabalhando, tamanho da página, desenhos, espaço
entrelinhas e entre palavras – entrepalavras? O presente, assim,
posto por característica, abarca e transborda o caráter orgânico da
experimentação. Todas as possibilidades existem naquele momento
e, caso passe, o momento seguinte gerará outro processo e outro
resultado. E, afinal, o mistério, o pedaço do processo que a razão não
corrompe, e não o faz porque não o alcança, o mistério permanece
inacessível mesmo quando se mostra. A luz que ilumina o mistério é
opaca, difusa, indireta, amarelada, quente. Não trato de inspiração
ou musas, quero que fique claro, o mistério é o caráter inexplicável,
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subjetivo e inalcançável.

E como parte do mistério, fluidamente, é mais ou menos


por aqui que aparecem Julia Kristeva, chegada de 1966, falando
de intertextualidade e, depois dela, Gérard Genette, este mais
próximo de mim, de 1982, a propor o termo transtextualidade. Para
ele, transtextualidade se refere a um grande grupo de relações
possíveis entre diferentes textos, dentre eles, a intertextualidade e a Transtexto Brilhar, Dan Porto, 2016. Divulgação.
hipertextualidade, aqui sim a parte que nos cabe, o hiper, o hipertexto.

Seu livro Palimpsestos – a literatura de segunda mão, ainda é E, obviamente, não pode haver experimentação poética sem
inédito no Brasil. No entanto, as pesquisadoras Luciene Guimarães e invocar a Poesia Concreta. O Transtexto encarna, assim como os seus
Maria Antônia Ramos Coutinho, ambas da UFMG, traduziram algumas antepassados, o experimentalismo, a transformação do poema em
partes em 2006. Genette começa desconstruindo o objeto da objeto visual, o protagonismo dos substantivos e verbos e o sintetismo.
C3

poética: “o objeto da poética não é o texto, é a transtextualidade, Às vezes somos deselegantes, em outras podemos ser esquinas sutis.
ou transcendência textual do texto: tudo que o coloca em relação,

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Tudo isso só é possível por conta da liberação do jogo. O lúdico


é fundamental para a transformação do hipotexto em hipertexto.
Para Genette, “nenhuma forma de hipertextualidade ocorre sem uma
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parte de jogo e o verdadeiro jogo comporta sempre um pouco de
perversão”. Perversão essa que me valho para manter a desfaçatez
de usar, e abusar, de toda a gama de transtextualidade, e não só
do hipertexto. Quero chegar, e chego, ao trans-transtexto, numa
perversão sem precedentes a misturar livros, páginas, trechos, sem
critério, no que se chamaria de perversão literária. Ótimo! Não se faz
boa coisa sem prazer.

“O espaço entre as palavras; a sombra; a luz; a refazenda da teia de


signos; é o que me seduz nesta técnica. Transtexto é a luz da minha
sombra. Quando eu mesmo estava na escuridão, a casa escura,
os sentidos borrados, a sujeira e o mofo ameaçavam destruir tudo,
como no arcano A Morte, ilumina-se a vida com a luz dos espaços em
branco, com o mistério do presente.

A palavra se coloca, quase impõe-se; interpõe-se, ou transpõe-


se, entre as manchas na folha. O papel bebe tinta e, em gargalhadas,
devolve a palavra a piscar, atrativa e sedutora.

Esse mistério do que já foi e morreu e se renova no Transtexto


alimenta a luz, ilumina a sombra. Deixei o jornal e venci a resistência
espaço livre

espaço livre
de trabalhar com páginas de livros. Foi e segue sendo o rompimento
de algo sagrado, porém era preciso desafiar o estabelecido.

Busquei não o mistério da poesia, mas da palavra, a ordem


orgânica no caos. Trabalhei com livros técnicos, poemas, textos
infantis, reportagens de jornal e revista, textos publicitários.

A combinação repetida das letras, sílabas e palavras passou


a pular do texto no primeiro olhar. Chega um ponto no qual você
identifica a linguagem quase como o código binário de programação.”
Dan Porto.
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Chá da noite

Chaleira a chiar,
Palmas tremulas a volta,
Frio no fogo me esquenta,
E eu a assobiar

Chuva nas chapas


Dança da colher no canecão
Murmúrios no estomago,
Doce açúcar quente apagão

Guedes Mechisso
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(Poemas de sonhos)
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Foto: Wagner Ferraz
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CORPO FLOR
Francine Cezar Bandeira, UFRGS, Porto Alegre/RS

O referido trabalho tem a flor como corpo a ser observado. Suas


especificidades, belezas, defesas. A flor como corpo sutil que carrega
história, que reproduz e seduz. O corpo que envolve, junto ao ar que
vagueia, refresca e testa o berço da terra. O corpo que expande e
se permite descobrir, se desvela e zela o silfo que veio a conduzir. A
fotografia tem um modo sensível de perceber o que não se enxerga,
é o olhar daquele tempo guardado no olho.

FOTOS:Francine Bandeira

FOTO 01: Túbulo. Francine Bandeira


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FOTO 02: Beldroega. Francine Bandeira
FOTO 03: Taraxacum officinale. Francine Bandeira
FOTO 04: Asas. Francine Bandeira
FOTO 05: Grão. Francine Bandeira
FOTO 06: Vida vinda. Francine Bandeira
FOTO 07: Benção. Francine Bandeira
FOTO 08: Boca. Francine Bandeira
FOTO 09: Sereno. Francine Bandeira
FOTO 10: Toque. Francine Bandeira
FOTO 11: Pax. Francine Bandeira
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FOTO 12: Vênus. Francine Bandeira

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