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verve

verve
Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

6
2004
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº6 (outubro 2004 - ). - São Paulo: o Programa, 2004-
Semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do


Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Co-
ordenadoras: Teresinha Bernardo e Silvana Tótora.

Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol
Acácio Augusto S. Jr., Andre R. Degenszajn, Edson Lopes Jr., Edson Passetti
(coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Francisco E. de Freitas, Guilher-
me C. Corrêa, Heleusa F. Câmara, José Eduardo Azevedo, Lúcia Soares da
Silva, Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Rogério H. Z. Nascimen-
to, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago Souza Santos.

Conselho Editorial
Adelaide Gonçalves (UFC), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick
(UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Guilherme Castelo Branco (UFRJ),
Margareth Rago (Unicamp), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora
(PUC-SP).

Conselho Consultivo
Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ),
Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti
(PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara
(UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Maria
Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam,
Paulo-Edgard de Almeida Resende (PUC-SP), Plínio A. Coelho (Editora Ima-
ginário), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto
Carioca de Criminologia).

ISSN 1676-9090
verve
revista de atitudes. transita por limiares e ins-
tantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou progra-
mador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberda-
de. verve é uma labareda que lambe corpos,
gestos, movimentos e fluxos, como ardentia.
ela agita liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
Desenhos e colagens de Lia Chaia.
Intervenção gráfica de Arnaldo Antunes “Página do Orácu-
lo”, p. 169.
SU M Á R I O

O incômodo
Oswaldo Giacoia Junior 11

História anômala e políticas de subjetivação


Alexandre de Oliveira Henz 25

Do incômodo das imagens à


inquietação do pensamento
Márcio Alves da Fonseca 47

Intensidades abolicionistas e
a cruel exposição da peste
Salete Oliveira 61

A beleza terrível
Contador Borges 81

Canibal
Dorothea Voegeli Passetti 103

Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis


Thiago Rodrigues 129

Incomodando
Silvio Ferraz 159

Revolta, ética e subjetividade anarquista


Nildo Avelino 171

O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade


Paula Sibilia 199
Devires minoritários: um incômodo
Silvana Tótora 229

Um incômodo: a acomodação
Guilherme Castelo Branco 249

O inumano
Manuel da Costa Pinto 261

A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade


Margareth Rago 279

Uniformidades e anarquia
Edson Passetti 299

Tecnologias de si
Michel Foucault 321
o nu-sol apareceu no interior do programa de estu-
dos pós-graduados em ciências sociais da puc-sp, que
em 2003 completou 30 anos. para saudar as pessoas que
habitam este lugar de inovações, generosidades e deba-
tes propusemos o colóquio um incômodo.
durante aqueles dois dias, em abril, as conversações
e experimentações artísticas que lá ocorreram foram
transpostas para um cd-rom, e cada freqüentador foi pre-
senteado com uma cópia.
no início deste ano, relembramos que desde o pri-
meiro número de verve temos em mente produzir edi-
ções especiais. a ocasião apareceu e fizemos do sexto
número esta versão do colóquio.
convidamos lia chaia para desdobrar sua original in-
tervenção imagética e sonora em instantes que mar-
cassem a passagem de incômodos. embaralhamos as
imagens e as distribuímos pela revista de maneira que
elas possam também ser redimensionadas, lidas a par-
te ou agrupadas por cada leitor.
arnaldo antunes redimensionou sua presença para
uma peça única.
e trouxemos um michel foucault, inédito em portu-
guês, com tecnologias de si.
um incômodo foi um jeito que o nu-sol encontrou para
se abalar. gostamos. em abril de 2004, fizemos kafka-
foucault, sem medos, publicado pela ateliê editorial de
são paulo. para o próximo ano pretendemos realizar mais
um colóquio. isso tem nos trazido saúde. é apenas um
jeito, não é um programa, um plano e muito menos um
projeto.
“aquilo que vem ao mundo para nada perturbar não
merece respeito nem paciência” (rené char, “fúria e
mistérios”).
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um incômodo
queríamos encontrar uma situação que rangesse. pro-
pusemos situações com artistas, filósofos, ensaístas e
pesquisadores sobre o que não cessa, transtorna, per-
turba existências e provoca abalos, desestabilidades,
contestações e afirmações; o que incomoda por não ca-
ber num conceito e por provocar o riso.
outras subjetividades, reviravolta nas imagens, a
peste e o abolicionismo penal; a beleza terrível, canibal,
as drogas e as liberações e as inquietações; o corpo hoje,
a importância de permanecer menor, as rebeldias anar-
quistas; o acomodado, o inumano, a mulher cordial e as
uniformidades. estas foram as respostas que recebemos.
outras tantas, lidas e formuladas pelo ato de abalar es-
tabilidades, poderão advir das práticas de cada um para
fora destas páginas. em cima da hora, tecnologias de si.
interessa-nos somente inventar espaços para
heterotopias, lugares que dispensam o consolo no futu-
ro.
para não dizer que se falou pouco de kafka, diante do
gato, um rato.
pequena fábula, traduzida por modesto carone, para
o volume “narrativas do espólio”:
“’ah’, disse o rato, ‘ o mundo torna-se a cada dia mais
estreito. a princípio era tão vasto que me dava medo, eu
continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que
finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as
paredes, mas essas longas paredes convergem tão de-
pressa uma para a outra, que já estou no último quarto
e lá no canto fica a ratoeira para qual eu corro’ — ‘você
só precisa mudar de direção’, disse o gato e devorou-o”.

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O incômodo

o incômodo

oswaldo giacoia junior*

Imaginemos uma nova visita de Zaratustra ao país da


formação, ou melhor, da semi-formação. Como por oca-
sião de suas anteriores aventuras, certamente o filósofo
teria mergulhado em profunda meditação, de que sua pro-
bidade intelectual teria emergido com a seguinte apóstro-
fe dirigida a seus insólitos habitantes: “Eles têm algo de
que estão orgulhosos. Como chamam isso que os infla de
orgulho? Chamam-no formação (Bildung), é isso que os
distingue dos pastores de cabra. Por isso, desagrada-lhes
ouvir, referida a eles, a palavra ‘desprezo’. Vou falar, pois,
ao orgulho deles. Vou falar-lhes do mais desprezível: o últi-
mo homem1”.
A figura do último homem é a caricatura satírica do
orgulhoso ideal que animava a crença da moderna
Aufklärung; ora, é esse ideal que, na pós-modernidade
da terra da semi formação, tornou-se figura do mundo.
Há alguns poucos séculos, a consciência filosófica era
animada pela convicção de que, nas vicissitudes da his-
tória, era preciso reconhecer a laboriosa e heróica pe-
regrinação do gênero humano, na curva de um progres-

* Professor no Depto. de Filosofia do IFCH/Unicamp.


verve, 6: 11-22, 2004

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so infinito, em busca do fim último de sua existência: a


conquista da felicidade e da bem aventurança sobre a
terra, o advento glorioso do primado universal da razão
e da justiça.
Aquilo que, na fase áurea do Esclarecimento ainda
podia aparecer como representação ideal de um
escatológico final dos tempos, como a realização da es-
sência verdadeira da humanidade, transformou-se em
nossos dias no insípido e prosaico fim das ideologias, na
débacle das grandes narrativas. E, no entanto, visto na
perspectiva de Zaratustra, esse acabamento significa
justamente o movimento, o vir-a-ser histórico em que
a verdade daquele ideal se realiza de modo pleno, sem
deixar para trás nenhum resíduo, ou virtualidade: o úl-
timo homem é a efetividade sinistra do projeto politico
da modernidade, isto é, a tirânica realização da
hegemonia dos anões uniformes.
Essa bizarra atrofia que a figura do último homem
protagoniza, é a incômoda paródia do enredo escrito pela
Ilustração, pois que ela é o resultado de um movimento
subterrâneo, que acompanha em surdina a litania do
fim da história, bem como a eufórica marcha triunfal
da ideologia do progresso: o auto-rebaixamento do ho-
mem. De maneira análoga à Dialética do Esclarecimento
em que Adorno e Horkeimer desvendavam a imbricação
entre mito e a racionalidade, ou melhor a conversão do
esclarecimento em mito, Nietzsche denuncia o profun-
do enraizamento da cientificidade moderna — que se
colocava como o princípio programático da consciência
esclarecida — ao mesmo ideal ascético, que ela preten-
dera destronar, revelando, com isso, sua esotérica cum-
plicidade na tarefa de aviltamento do homem e da terra.
“Pensa-se, de fato, que porventura a derrubada da as-
trologia teológica signifique uma derrubada daquele ideal

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O incômodo

[ascético OGJ.]?.. Quem sabe o homem ficou menos ne-


cessitado de uma solução no além para seu enigma da
existência porque essa existência aparece desde então
ainda mais arbitrária, mais confinada, mais dispensá-
vel na ordem visível das coisas? Não está precisamente
o auto-apequenamento do homem, sua vontade de auto-
apequenamento, desde Copérnico, em um incessante
progresso? Ai, a crença em sua dignidade, unicidade,
insubstitutibilidade na hierarquia dos seres se foi —
ele se tornou animal, animal sem alegoria, restrição e
reserva, ele que em sua crença anterior era quase Deus
(‘filho de Deus’, ‘homem-Deus’) ... Desde Copérnico o ho-
mem parece ter caído em um plano inclinado, — agora
rola cada vez mais depressa, afastando-se do centro —
para onde? Para o nada? Para o ‘perfurante sentimento
de seu nada’?...”2
É esse inarticulado sentimento de inferioridade que
a figura do último homem dramatiza. Para trazê-lo à
consciência de si, Zaratustra vai falar do que mais pre-
zam os homens modernos, sua cultura (Bildung), porque
à contra-corrente dela que vem à luz seu auto-desprezo,
sua vontade de auto-rebaixamento: “Toda ciência (e de
modo nenhum somente a astronomia, sobre cujo humi-
lhante e rebaixador efeito Kant fez uma confissão digna
da nota, ‘ela anula minha importância’...), toda ciência,
tanto a natural quanto a desnaturada — chamo assim a
autocrítica do conhecimento —, tende hoje a dissuadir
o homem do apreço que teve até agora por si, como se
este nada mais tivesse sido do que uma bizarra vaida-
de: poder-se-ia até mesmo dizer que ele tem seu próprio
orgulho, sua própria forma acre de ataraxia estóica, esse
laboriosamente conquistado autodesprezo do homem,
como sua última, mais séria pretensão de manter em
pé o apreço por si mesmo (com razão, de fato: pois aque-

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le que despreza é sempre alguém que ‘não desaprendeu


a prezar’...)”3.
Zaratustra invoca, pois, o mais entranhado e parado-
xal do homem moderno, seu laboriosamente conquista-
do autodesprezo. É para fazê-lo que apela ao que pode
haver de mais desprezível, ao último homem. “Ai, chega o
tempo do homem mais desprezível, o incapaz de se des-
prezar a si mesmo. Olhai: mostro-vos o último homem”4.
O último homem é último não somente porque se auto-
compreende como fim em si — e não mais como travessia
para a outra margem, como corda estendida entre o ani-
mal e o Além-do-Homem, como caminho de auto-supera-
ção. Ele é último porque inverteu a relação entre apreço e
depreciação, na medida em que desaprendeu o grande des-
prezo, ou auto-desprezo. Mesmo outrora, sob o signo e a
inspiração de Deus, quando a alma olhava depreciativa-
mente para o corpo — então considerado elemento indig-
no e impuro — desse desprezo brotava, antiteticamente,
da aspiração e anseio pelo sublime, por uma figura ‘mais
elevada’ — in hoc signo vinces.
O último homem, todavia, representa a plenitude da
auto-satisfação, incapaz de se desprezar a si mesmo, por-
tanto, impotente para toda auto-superação. O último ho-
mem alegoriza o auto-comprazimento na mediocridade,
esta é a forma acabada do amesquinhamento geral do tipo-
homem, a encarnada impotência para lançar a flecha de
sua nostalgia na direção de um mais elevado anseio, o
abastardamento do ideal de felicidade e bem-aventurança:
“Que é amor? Que é criação? Que é nostalgia? Que é
estrela? — Assim pergunta o último homem, e pisca os
olhos. A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita
o último homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe é
indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais
tempo vive. ‘Nós inventamos a felicidade’ — dizem os últi-

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O incômodo

mos homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões


onde é duro viver, pois a gente precisa de calor. A gente,
inclusive, ama o vizinho e se esfrega nele, pois a gente
precisa de calor. Adoecer e desconfiar, consideram-no pe-
rigoso: a gente caminha com cuidado. Louco é quem con-
tinua tropeçando com pedras e com homens! Um pouco de
veneno, de vez em quando, produz sonhos agradáveis. E
muito veneno, por fim, para ter uma morte agradável. A
gente continua trabalhando, pois o trabalho é um entrete-
nimento. Evitamos, porém, que o entretenimento canse.
Já não nos tornamos nem pobres, nem ricos: as duas coi-
sas são demasiado molestas. Quem ainda quer governar?
Quem ainda quer obedecer? Ambas as coisas são demasi-
ado molestas (...). Nenhum pastor e um só rebanho! Todos
querem o mesmo, todos são iguais: quem sente de outra
maneira, segue voluntariamente para o hospício (...). A
gente ainda discute, mas logo se reconcilia, senão se es-
tropia o estômago. Temos nosso prazerzinho para o dia e
nosso prazerzinho para a noite, mas prezamos a saúde.
‘Nós inventamos a felicidade’, dizem os últimos homens e
piscam o olho”5.
A felicidade, tal como a desejam os últimos homens
a saber, bem estar, conforto assegurado, tranqüilidade
e tédio com boa consciência — simboliza a ascendên-
cia de um tipo de homem, uma figura histórica do huma-
no que pretende se fazer passar pelo homem. Nietzsche
revela tal estratégia em ação no caso exemplar das di-
versas variantes do utilitarismo inglês — um caso de
ideologia pseudo-científica, dominante no século XIX
(apenas então?): “Em última instância, todos eles que-
rem que se dê razão à moralidade inglesa: na medida
em que é justamente desse modo que melhor se serve
a humanidade, ou ao ‘proveito geral’, ou à ‘felicidade da
mairoria’, não!, à felicidade da Inglaterra; eles gostari-
am de demonstrar para si mesmos, com todas as suas

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forças, que o aspirar à felicidade inglesa, quero dizer ao


comfort e fashion (e, em última instância, a um posto
no Parlamento) é também, a uma só vez, o justo cami-
nho da virtude, mais ainda, que toda virtude que até
agora existiu no mundo consistiu justamente nessa
aspiração”6. Talvez a realidade que tenhamos conquis-
tado hoje seja apenas uma universalização desse ideal
de bem aventurança, a saber: a efetiva planetarização
do shopping center 24 horas, pela Internet.
Com efeito, essa miopia que afetava os utilitaristas
ingleses constiui, em verdade, o Zeitgeist da modernidade,
cuja existência se prolonga em nosso mundo pós moder-
no. Ainda hoje vige a unanimidade em que comungam os
assim chamados livre-pensadores de todos os tempos:
“Aquilo a que gostariam de aspirar com todas as suas for-
ças é à universal e verdejante felicidade do rebanho em
verdes pastagens, plena de segurança, livre de perigo, re-
pleta de bem estar e de felicidade na vida para todo o mun-
do: suas duas canções e doutrinas mais repetidamente
entoadas se chamam: ‘igualdade de direitos’ e ‘compaixão
com tudo aquilo que sofre’- e o próprio sofrimento é consi-
derado por eles como algo que tem de ser eliminado”7. Ou
seja, a segurança, o conforto, o plácido bem estar, a au-
sência de atrito constituem o objeto do desejo — uma as-
piração universal que denuncia a completa impotência
para o sofrimento.
E, com isso, a felicidade — a finalidade última de todas
as ações morais —, acaba rebaixada , enfim, à condição de
adiposo e tranqüilo contentamento de merceeiros: a cons-
ciência moderna e pós-moderna aliam-se, desse modo,
na pacíficadora boa consciência, que se deleita na plácida
calmaria dos verdes prados.
Esse tipo de ‘virtude’ não pode ser considerada como
um dado da natureza. Ela é um produto da história, efeito

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O incômodo

de uma longa disciplina, que investe os corpos, de um


penoso aprendizado — mais ainda, de uma pedagogia polí-
tica do moderno ethos; esta, por sua vez, é forte o suficien-
te para alinhar a filosofia prática de Kant aos valorosos
representantes das ‘idéias modernas’, pois esse ideal nar-
cótico de felicidade tem como sua condição uma transfi-
guração filosófica do tédio.
“Aqui está a primeira pedra de tropeço, o tédio, a unifor-
midade, que traz consigo toda atividade maquinal. Apren-
der a suportar isso [uniformidade e tédio, OGJ.] e não so-
mente suportar, mas aprender a ver o tédio envolto por um
estímulo superior: essa foi até agora a tarefa de todo siste-
ma de ensino mais elevado. Aprender algo que não nos in-
teressa; reconhecer justamente aí seu “dever”, nessa ati-
vidade “objetiva”; aprender a avaliar separados um do outro
o prazer e o dever — essa é a inapreciável tarefa e realiza-
ção do sistema de ensino mais elevado. Por causa disso, o
filólogo foi até agora o educador em si: porque sua atividade
fornece o modelo de uma monotonia da atividade que atin-
ge o grandioso: sob sua bandeira o discípulo apreende a “tra-
balhar como um boi”: primeira pré-condição para uma apti-
dão inicial para o maquinal cumprimento do dever (como
funcionário do estado, cônjuge, aprendiz de burocrata, lei-
tor de jornais e soldado). Ainda mais que qualquer outra, tal
existência necessita, talvez, de uma justificação filosófica
e uma transfiguração: por parte de alguma infalível instân-
cia, os sentimentos agradáveis têm de ser, em geral, desva-
lorizados como sendo de nível inferior; o “dever em si”, tal-
vez até o pathos da reverência em face a tudo o que é desa-
gradável — e essa exigência falando imperativamente,
como além de toda utilidade, divertimento, finalidade ... A
forma de existência maquinal como a suprema, a mais digna
de honra, idolatrando a si mesma. ( —Tipo: Kant como fa-
nático do conceito formal ‘tu deves’)”8.

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Percebe-se pois, que esse movimento atinge tamanha


profundidade, ameaçando tornar-se irreversível, justamen-
te porque se fundamenta na formidável potência da una-
nimidade moral, do politicamente correto: a dominação
mais efetiva, mais medular, mais capital e capilar não é a
que se faz com violência e ruído, mas a que se insinua no
plano tácito e diáfano das estimativas de valor, portanto,
no campo das interpretações: “Descobrimos que a Europa
tornou-se unânime em todos os juízos capitais, inclusive
naqueles países onde domina a influência da Europa: sa-
bemos aquilo que Sócrates pensava não saber, e que a
velha e célebre serpente prometeu um dia ensinar – ‘sa-
bemos’ hoje o que é o bem e o mal’”9.
Porque estão pacificados nesse ideal, os últimos ho-
mens tornaram-se incapazes de distanciar-se de sua pró-
pria acomodação. Niguém mais se admira, ninguém mais
se surpreende com nada, desapareceu a capacidade do
espanto, de tal modo que não se pode mais ter consciência
da própria degradação. É por causa disso que, para
Nietzsche, um único aceno de esperança ainda pode ser
vislumbrado naqueles que são de outra crença. Nos
antípodas dos niveladores, daqueles que pregam e reali-
zam o rebaixamento de valor do homem, de sua medio-
crização, descortina-se um remoto horozonte para uma
outra forma de comunidade, para um ‘nós, com nossas
esperanças’:
“Para novos filósofos, não resta outra escolha; para es-
píritos suficientemente fortes e originários como que para
impelir em direção a valorações opostas e transvalorar,
para inverter ‘valores eternos’; para precursores, para ho-
mens do futuro, que atem no presente a coação e o nó, que
constranjam a vontade de milênios a percorrer novos ca-
minhos” 10.

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O incômodo

Cultivar esses novos filósofos — eis uma tarefa que


exige uma pedagogia política antagônica àquela dos
niveladores de todas as confissões. Aqueles que são de uma
crença inversa, que “abrimos nossos olhos e nossa cons-
ciência para o problema de saber em que lugar e de que
modo a planta ‘homem’ veio até hoje crescendo em altura
da maneira mais vigorosa, opinamos que isso sempre ocor-
reu em situações opostas, opinamos que, para que isso se
realizasse, a periculosidade de sua situação teve antes
que aumentar de maneira gigantesca, que sua energia
de invenção e simulação (‘seu espírito’—) teve que se de-
senvolver sob uma pressão e uma coerção prolongadas,
até converter-se em algo sutil e temerário, que sua von-
tade de vida teve que intensificar-se, até chegar à vonta-
de incondicional de poder”11.
Essa pedagogia política, que prepara para uma inver-
são da crença dominante, tem como condição aquele ges-
to simbólico de ‘abrir um olho e uma consciência’, ou seja,
de despertar para uma nova sensibilidade em relação ao
sofrimento: “A disciplina do sofrimento, do grande sofri-
mento —não sabeis que somente essa disciplina criou
até agora todas a elevações do tipo homem?”12 É isso que
surpreende, que choca nossa pacificada auto-
compascência, que incomoda, que escandaliza nossa má
consciência filistéia.
Pensar essa figura dos antípodas da unanimidade no
politicamente correto — aqueles novos filósofos de que
fala Nietzsche — na chave interpretativa de uma
idealização reacionária e anacrônica, do saudosismo aris-
tocrático, significa perder de vista aquilo que ela essen-
cialmente sugere: a saber, que a consciência filosófica é
coetânea do espanto, que ela nasce e se nutre da admira-
ção. Que o filósofo é justamente aquele que se situa em
conflito com sua sociedade e com o seu tempo — que o
espanto e o incômodo são os gestos filosóficos originários:

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pensemos no conflito entre Heráclito e a Éfeso de seu


tempo, sem nos esquecermos que, para Nietzsche,
Heráclito de Éfeso constitui talvez a realização suprema
da filosofia.
Para o cultivo dessa sensibilidade renovada, seria ne-
cessário recuperar dois tipos de sentimento a que o ho-
mem moderno já não tem mais acesso: em primeiro lugar
o asco pela banalização do humano, por sua transforma-
ção em engrenagem impessoal e descartável, a ser
consumida e indefinidamente reposta na maquinaria glo-
bal dos interesses e rendimentos em que se transformou
a terra.
Em segundo lugar, a compaixão pelo que ainda resta de
trágico e de belo na epopéia humana, de fermento de auto-
superação. “E Zaratustra falou assim ao povo: É tempo que
o homem fixe sua própria meta. É tempo que o homem
plante a semente de sua mais elevada esperança. Seu
terreno é ainda bastante fértil para isso. Mas algum dia
esse terreno será pobre e manso, e dele não poderá brotar
já nenhuma árvore elevada. Ai, chega o tempo em que o
homem deixará de lançar a flecha de sua nostalgia mais
além do homem, e no qual a corda de seu arco já não sabe-
rá vibrar! Digo-vos: é preciso ter ainda um caos dentro de
si para poder dar à luz uma estrela dançarina. Digo-vos:
vós tendes ainda caos dentro de vós. Ai, chega o tempo em
que o homem já não dará à luz nenhuma estrela”13.
Para tanto, é necessário dirigir as esperanças para
aquele tipo antagônico desse tempo que não mais se es-
panta, que não mais incomoda, que não mais suporta ser
incomodado. Por isso, Nietzsche recorre àquele cujo ofício
é o incômodo: “A mim quer me parecer sempre mais que
o filósofo, como um necessário homem do amanhã e depois
de amanhã, sempre se encontrou e teve de se encontrar
em contradição com seu hoje: seu inimigo foi, a cada vez,

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O incômodo

o ideal de hoje. Até agora, todos esses extraordinários pro-


motores do homem — que são denominados filósofos e
que raramente sentem a si mesmos como amigos da ver-
dade, porém antes como desagradáveis loucos e perigosos
pontos de interrogação —, encontraram sua tarefa, sua
dura, involuntária, incontornável tarefa, e, afinal, a gran-
deza de sua tarefa, em ser a má consciência de seu tem-
po. Ao colocar justamente no busto da virtude do tempo o
bisturi da vivissecação, eles delataram qual era o seu se-
gredo; saber de uma nova grandeza do homem, um novo,
não percorrido caminho para seu engrandecimento. Eles
desvelaram, a cada vez, quanta hipocrisia, quanta como-
didade, quanto de se deixar levar e deixar-se cair, quanta
mentira se esconde sob o mais venerado tipo de sua
moralidade contemporânea, quanta virtude estaria sobre-
vivida, a toda vez, disseram eles: ‘temos que ir para lá,
para adiante, onde o seu vós hoje menos vos sentis em
casa”14.
Tomando de empréstimo um conceito de Heidegger, que
implica num acurado diagnóstico de nosso tempo, pode-
mos dizer que, em nossos dias, o antigo maravilhamento,
o espanto diante do real, de que sempre se originou o au-
têntico gesto filosófico, assumiu a forma do sentimento de
horror. Talvez aquela nova sensibilidade, de que tratou
Nietzsche, se expresse hoje justamente no fato de ser ater-
rorizador que ninguém mais se espante — de que nos dei-
xemos penetrar pelo conformismo e pela adaptação, a pon-
to de permanecer ofuscada toda e qualquer possibilidade
que não a eterna repetição do mesmo. É horrível que jus-
tamente isso não nos incomode mais.

Notas
1
F. Nietzsche. Also Sprach Zarathustra. in Ed. G. Colli e M. Montinari Sämtliche
Werke. Kritische Studienausgabe (doravante KSA), vol. 4. Berlin, New York,
München, de Gruyter, DTV. 1980, p. 18. Não havendo indicação em contrário,

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todas as citações de obras de Nietzsche se referem a essa obra, e as traduções são de


minha autoria.
2
F. Nietzsche. Para a Genealogia da Moral, III, 25. Trad. Rubens Rodrigues Torres
Filho. in F. Nietzsche: Obra Incompleta, Coleção Os Pensadores, 1ª ed., São Paulo:
Abril Cultural, 1974, pp. 328s.
3
Idem.
4
F. Nietzsche. Also Sprach Zarathustra, op. cit., p. 18.
5
Idem, pp. 19s.
6
F. Nietzsche. Para Além de Bem e Mal, 228 in KSA, op. cit., pp. 163s.
7
Idem 44, op. cit., pp. 60s.
8
F. Nietzsche. Nachgelassene Fragmente. Fragmento no. 10 [11], vol.12, in KSA, op.
cit., outono de 1887, p. 459.
9
F. Nietzsche. Para Além de Bem e Mal, 202 in KSA. vol. 5, p. 124.
10
Idem, 203, op. cit., pp. 126s.
11
Idem, 44, op. cit., pp. 60s.
12
Idem, 225, op. cit., pp. 160s.
13
Idem.
14
Idem, 212, pp. 145s.

RESUMO

Noção de último homem em Nietzsche e o desafio à ruptura com a


tradição filosófica que acomoda o tédio na boa consciência.

Palavras-chave: Filosofia, incômodo, Nietzsche.

ABSTRACT

Nietzsche’s notion of the last man and the challenge to the severance
of philosophical tradition that places tedium in good consciousness.

Keywords: Philosophy, annoyance, Nietzsche.

22
verve
História anômala e políticas de subjetivação

história anômala e
políticas de subjetivação

alexandre de oliveira henz*

História criação sem criador. História de rebanho.


História bovina. História ruminação. História com tem-
po e a tempo. História de passeios e peles de cobras dei-
xadas pra trás. História perdulária. História de dores,
sofrimento, lamúria. História de não caber. História por-
tátil. História de contar e contadores. História pequenís-
sima, fragmento e quase frase. História, sem fim,
infinitazinha. História pipocando, cutucando. História
de não dormir, insônia madrugada adentro. História de
se perder, sem caráter e moral da história. História sem
contra. História sem coração. História de crueldade, ale-
gria. História do falso e da ilusão. História do enfraque-
cimento. História sem esperança e saudade. História
em cena sem vida real ou fingimento. História sem ver-
gonha, escancarada, enfiada. História sem verdade. His-
tória máscara superficial, sem atrás. História do esque-
cimento, de estômago frágil, de vomitar. História sem
sexo moderno com nem duas caixinhas nem três. His-

* Psicólogo e filósofo, professor no Departamento de Psicologia da Universi-


dade Federal de Santa Maria/RS. Doutorando no Programa de Estudos Pós-
Graduados em Psicologia Clínica da PUC/SP.
verve, 6: 25-44, 2004

25
6
2004

tória nem Eu nem Nós. História sem prescrição e pros-


crição. História sem tampão portátil. História sem ro-
mantismo de festim e arma só para polir. História todo
mundo, ninguém. História fendida. História ferida sem
cura. História sábia clandestina. História de paradeiro.
História sem jardim do sossego. História sem futuro nem
segunda sessão. História de morte, guerra, sem paz eter-
na. História de tamponamento, vazamento, transborda-
mento sem hidráulica nem encanador. História nunca
mais.
História recolhida pelo helenista Marcel Detienne em
que apresenta a Ilha das mulheres: “Posidônio afirma que
há no Oceano uma pequena ilha, por ele situada na
embocadura do Loire, e não de todo em alto mar; que
essa ilha é habitada pelas mulheres dos ‘namnetas’,
mulheres possuídas por Dioniso e dedicadas a apaziguar
esse deus por meio de ritos e toda sorte de cerimônias
sagradas. Nenhum macho pode pôr o pé na ilha. Em
contrapartida, as próprias mulheres, que são todas es-
posas, atravessam as águas para se unirem aos mari-
dos, e regressam em seguida. Manda o costume que uma
vez por ano elas retirem o telhado do santuário e colo-
quem um outro no mesmo dia, antes do pôr-do-sol, cada
uma trazendo sua carga de material. Aquela cujo fardo
cai no chão é estraçalhada pelas outras que passeiam
seus membros em volta do santuário, gritando o evoé.
Não cessam enquanto seu delírio (lúttê) não termina. E
sempre acontece que uma ou outra caia e tenha de so-
frer igual destino”1.
As imagens desta versão insular de Dioniso2 nos re-
metem a uma polissêmica, cuja força irrompe de súbito
permanecendo incompreensível, alheia a qualquer clas-
sificação. Assim, que provocações nos propõe esta his-
tória? Que questões, o Dioniso que chamou a atenção
do filósofo Posidônio de Apanéia pode trazer a uma abor-

26
verve
História anômala e políticas de subjetivação

dagem das políticas de subjetivação na contempora-


neidade?
Um primeiro aspecto significativo na Ilha das mulhe-
res possuídas por Dioniso que se apresenta como uma
figura curiosa sobre os efeitos momentâneos de estabi-
lidade, refere-se ao fato de serem mulheres casadas que
cumprem regularmente seus deveres conjugais nos li-
mites do domicílio, do continente. Existe ao mesmo tem-
po, por parte delas, ritos e cerimônias e, poderíamos di-
zer, estratégias e políticas que buscam apaziguar o caos
Dionisíaco desfavorecendo a evocação de outras inten-
sidades, o arrombamento do mesmo, da forma que é tam-
bém um dos motes dos versos de Willian Blake quando
indica: “a forma humana, uma forja de fogo, a figura
humana uma fornalha lacrada, o coração humano, sua
garganta faminta”3.
Mas mantendo a fornalha lacrada nessa estranha
versão de Dioniso, o deus entre suas mulheres insiste
nas formas, proteções, telhados que devem ser feitos e
desfeitos no espaço de um dia, um trabalho sob a luz do
sol4. Na troca da cobertura do santuário, um acidente,
um acaso que produz5, faz estourar um corpo, deforma-
ção de uma forma, fornalha aberta por um Dioniso dos
esgaçamentos, das dilacerações que carrega a outros
lugares, deus que faz os fiéis tropeçarem. Mesmo per-
manecendo todo um ano em aparente apaziguamento,
lembra em um só dia, aos esquecidos, que ele é o es-
trangeiro no interior, o disruptivo que nos habita e que
continua implacável.
A mulher fulminada por Dioniso deixa cair seu fardo
(se pensarmos no século XIX, a forma-homem que pesa
sobre o homem) e na dilaceração de seus membros jor-
ra no tempo fora dos eixos, tempo de transmutação.

27
6
2004

Lançando setas na direção dos telhados6 da forma-


homem e das promessas de segurança, nos fala
Nietzsche, num de seu textos mais insolentes: “a visão
do homem agora cansa”7. Nós sofremos do homem. O
que é que ele está querendo dizer? O que nos cansa e o
que nos faz sofrer é o fato de que o homem se tornou
este verme manso, incuravelmente medíocre e insos-
so. É o diagnóstico de Nietzsche da cultura ocidental. O
pior é que essa mesmice, este apequenamento do ho-
mem, este apaziguamento de Dioniso, este nivelamento
do homem, tornou-se a meta da nossa civilização e não
um acidente de percurso.
Assim, Nietzsche conclui que o homem está doente.
Mas no que consiste a doença do homem? A doença do
homem consiste precisamente nesta forma medíocre
que ele assumiu, nesta forma que é expressão de uma
negação da vida. Em suma, a doença do homem chama-
se homem. Essa forma impotente que na Ilha das mu-
lheres não é mantida, porque ali um acidente, um aca-
so, produz rupturas, isto é, movimentos de já ser ‘outro’
no jogo constante do mesmo e do outro. “Ao acaso
irresistível de um fragmento de céu aberto em um te-
lhado”8 temos a fratura do tempo domesticado, a irrupção
da multiplicidade dionisíaca da vida, o desencadeamento
de novas formas do viver.
O que Nietzsche insiste é que este homem manso,
morno, monótono, que faz questão da sua mesmice, esse
homem igual a si mesmo, idêntico a si e que quer se
perseverar como tal é um produto da história9. Esse ho-
mem não é natural, foi criado, produzido ao longo dos
séculos, ele foi domesticado desta maneira, existindo
interessantes descrições sobre a violência que foi ne-
cessária para domesticá-lo e dar-lhe essa forma man-
sa, medíocre, insossa, essa forma que o homem tem

28
verve
História anômala e políticas de subjetivação

hoje10 e que é reafirmada através de estratégias e polí-


ticas de manutenção dos telhados.
Evidentemente outras questões poderiam ser libadas
pela sabedoria trágica narrada por Detienne. A própria
vizinhança entre saúde e loucura na agonística de for-
ças impalpáveis, mas intensamente ativas e interativas
que nos falam e levam tanto à rasteira do deus que faz
saltar como potência de vida — o grande livramento de
Nietzsche —, quanto ao destroçamento de si —
nomadismo incondicional na embriaguez fatal de Dioniso
—, que conduz à loucura11. Pois, o que seria, na noite,
um deus sem telhado, um Dioniso a céu aberto? Saber
trágico que flagra o capitalismo contemporâneo alimen-
tando a sua própria utopia: a utopia de uma vida que
escapa a essa “miséria”, o ideal de uma vida consumi-
dora sem dor, inteiramente passada na tranqüilidade e
na proteção uterina dos telhados. O grande sonho de
proteção ininterrupta sincrônica com a promessa de
segurança em que os países pobres e ricos resumem
hoje toda a sua política12.
Diagnosticando esses perigos Nietzsche lembra: “a
fôrma aprisionou a vida”. A forma-homem aprisionou a
vida. Neste caso seria preciso livrar-se do homem para
liberar a vida. Isso não quer dizer literalmente matar
pessoas, destroçá-las e correr com os seus pedaços em
volta de um santuário, como na alegoria indicada na
história, mas sim se desfazer da forma-homem que pesa
sobre os homens. Mas como liberar essas forças aprisi-
onadas sob a carcaça da ‘forma aprisionadora’ na Ilha
das mulheres? Talvez seja preciso dizer que aí, também,
se requer muita violência. Como imaginar que se pos-
sa desfazer da forma-homem e das políticas de
subjetivação que aí ressoam com menos violência do
que foi preciso para estabelecer a forma-homem? Tal-

29
6
2004

vez alguns indícios nos possam ser dados pelo escritor


judeu-polonês Bruno Schulz quando refere:
“Nenhum mal existe em reduzir a vida a formas no-
vas. O assassinato não é um pecado. Muitas vezes não
passa de violência necessária perante entorpecidas e
refratárias formas que deixaram de ser interessantes.
Pode até ser um mérito quando cometido em benefício
de uma experiência interessante e vital. E este é o pon-
to de partida para uma nova apologia do sadismo. O meu
pai não cansava de glorificar este elemento extraordi-
nário. Não há matéria morta — ensinava ele. A morte
não passa de aparência onde se ocultam desconhecidas
formas de vida”13.
Assim, haveria por um lado uma forma-homem que
a nossa modernidade cristalizou e, por outro, haveria
as múltiplas forças que essa forma-homem moldou, apri-
sionou. Essas forças, essas afecções Dionisíacas da Ilha
das mulheres separadas de tudo o que é humano dema-
siado humano, poderiam ser chamadas de forças
inumanas.
De um lado, temos esse formato, mantido por este
estranho Dioniso, no qual nós nos reconhecemos como
humanos, pelo menos por um certo tempo (período de
um ano na história em questão). De outro lado, temos
essas forças que nos atravessam, colocando em xeque
constantemente essa forma humana a qual nós nos afer-
ramos cada vez mais14. Quanto mais as forças colocam
em xeque essa forma, mais nós fazemos questão dessa
forma para nos proteger dessas forças; quanto mais nós
sentimos essas forças ameaçando desmanchar essa for-
ma, mais nós nos agarramos a essa forma e cristaliza-
mos coisas. Perigo de uma dilaceração, estouro de um
corpo na Ilha das mulheres, deformação da forma-homem.

30
verve
História anômala e políticas de subjetivação

Apresentarei a seguir, algumas questões entre as


configurações trágicas da Ilha das mulheres e uma polí-
tica de subjetivação na perspectiva do indivíduo. A no-
ção de indivíduo pressupõe o mínimo de interioridade,
contorno, autocentramento. Seria possível afirmar que
essa noção pressupõe uma identidade, uma identidade
consigo, mas com uma reapropriação daquilo que difere
de si mesmo. O indivíduo reapropria-se do que é dife-
rente dele nessa estrutura autocentrada de contorno
delimitado e uma idéia de identidade referencia isso
tudo. Na Ilha das mulheres temos algo mais complexo e
que está menos referido à identidade própria do que a
uma certa relação com a exterioridade. Este si na histó-
ria em questão está mais relacionado com a exterio-
ridade, com as forças presentes nessa exterioridade. É
algo menos individual, menos privado 15 e menos
reapropriador, como uma das Duas noites nesse fragmen-
to de Maurice Blanchot:
“A primeira noite é acolhedora. Novalis endereça-lhe
seus hinos. Pode-se dizer dela: na noite, como se ela
tivesse uma intimidade. Entra-se na noite e nela se
repousa pelo sono e pela morte. Mas a outra noite não
acolhe, não se abre. Nela, está-se sempre do lado de fora.
Tampouco se fecha, não é o grande castelo, próximo mas
inaproximável, onde não se pode penetrar porque a saí-
da estaria guardada. A noite é inacessível, porque ter
acesso a ela é ter acesso ao exterior, é ficar fora dela e
perder para sempre a possibilidade de sair dela. Essa
noite nunca é a noite pura. É essencialmente impura.
Não é esse belo diamante do vazio que Mallarmé con-
templa, para além do céu poético. Mas é a verdadeira
noite, é noite sem verdade, a qual, entretanto, não men-
te, não é falsa não é a confusão onde o sentido se deso-
rienta, que não engana mas da qual não se pode corri-
gir os enganos. Na noite encontra-se a morte, atinge-se

31
6
2004

o esquecimento. Mas essa outra noite é a morte que


não se encontra, é o esquecimento que se esquece, que
é, no seio do esquecimento, a lembrança sem repou-
so”16.
Para nos avizinhar da outra noite anunciada por
Blanchot (nela, está-se sempre de fora) é interessante
pensarmos em uma representação gráfica, o desenho
de uma dobra, feita por G. Deleuze em seu livro Foucault17
que refere o modo como ele leu a questão da subjetivi-
dade. O desenho nos fala também da linha do fora. O
que existe no fora? O fora possui forças, singularidades,
velocidade selvagem. Deleuze apresenta-nos, entre ou-
tras questões, os planos do saber, do poder e, como últi-
mo ponto do seu gráfico, da subjetividade. A subjetivida-
de é uma inflexão da linha do fora, é uma desaceleração
do fora. A subjetividade é o fora recurvado, encurvado,
infletido. A subjetividade possui uma relação estreitís-
sima com a outra noite, mas, ao mesmo tempo, no dese-
nho de Deleuze, é apresentado um gargalo, um telhado
do santuário da Ilha das mulheres, mais ou menos
obstruído porque precisamos de uma pequena obstru-
ção em relação a ele, senão seria uma permeabilidade
absoluta à noite que nos tornaria inviáveis como seres
operativos.
A outra noite, o fora, o céu aberto de Dioniso durante a
noite, o que são? Não são articulações, são as diferen-
ças. São as diferenças ou as singularidades na sua ve-
locidade selvagem. Então, a noite me habita ou me atra-
vessa, eu sou apenas uma inflexão dela. Nesse sentido,
a noite não está necessariamente exterior.
Para Deleuze, a subjetividade é uma dobra do fora. O
que é o fora? Um campo pré-pessoal, inumano (talvez de
um outro modo ainda povoado pelos deuses intra-mun-
danos da tragédia grega)18. É uma multiplicidade de for-

32
verve
História anômala e políticas de subjetivação

ças, sua velocidade infinita, sua invisibilidade. É esse


campo de potências é a verdadeira noite, é noite sem ver-
dade, a qual, entretanto, não mente. E a dobra que referi
inicialmente, que é? A dobra é como uma dobra de teci-
do. Uma prega de tecido. A dobra não é diferente do teci-
do, ela acontece no tecido. Não tem, de um lado, a dobra,
de outro lado, o tecido. Ela dobra do tecido, é uma curva-
tura, é uma certa curvatura do fora, é uma certa inflexão
do fora, é uma maneira, por exemplo, de ver que essa
velocidade das forças talvez se tornem um pouco mais
lentas. Essas partículas se desaceleram da sua veloci-
dade infinita quando sofrem essa inflexão subjetiva.
Essa inflexão do fora, essa desaceleração, cria uma
certa interioridade, um certo campo interno de res-
sonância. Mas isso aí não é uma interioridade fechada
em si, mesmo porque é justamente uma dobra do fora. É
uma espécie de envergamento do fora. Claro, tem aí um
‘certo’ si, mas esse si não tem nada a ver com aquele
que é totalmente individuado, centrado em si mesmo,
contraposto ao mundo e idêntico a si mesmo.
O que aproxima a outra noite, o fora, o céu aberto da
Ilha das mulheres, do universo dos gregos anteriores a
Sócrates valorizado por Nietzsche, é esse mundo povoa-
do por deuses intra-mundanos em que há a ordem hu-
mana e a ordem religiosa, dos deuses, embora já em
algum nível discriminadas mas, indissoluvelmente,
imbricadas uma na outra. Um mundo ainda repleto de
mistérios e um mundo ao qual o homem não controla,
um mundo cujo sentido lhe escapa por todos os lados. O
trágico de Nietzsche aproxima-se da Segunda noite de
Blanchot porque se faz na ambivalência onde o sentido
está sempre flutuando de um lugar para outro. Haverá
sempre a ordem humana e a religiosa (com seus deu-
ses de múltiplos matizes), uma certa configuração do
dentro e do fora se confrontando como porta-vozes de

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6
2004

dois discursos diferentes que produzirão flutuações de


sentido de um lado para o outro.
Os trabalhos de helenistas como Pierre Vidal Naquet
e Jean Pierre Vernant, entre outros, indicam sobre a
noção de “eu” individuado, que ele está sempre em
individuação, tal e qual o frágil santuário aparentemente
estável de Dioniso:“O eu não é nem delimitado nem
unificado: é um campo aberto de forças múltiplas, diz H.
Frankl. Sobretudo, essa experiência é orientada para o
exterior, não para o interior. (...) O sujeito não constitui
um mundo interior fechado, no qual deve penetrar para
se encontrar, ou antes para se descobrir. (...) A sua cons-
ciência de si não é refletida, dobrada sobre si, encerra-
mento interior(...)”19.
Contemporaneamente, Deleuze acompanhou o tra-
balho de Foucault na descrição o mundo grego. Foucault
mostra como os gregos desdobravam sua força em todos
os seus hábitos, na cidade, na alimentação, na sexuali-
dade, eles dobravam as forças de tal modo que criava-se
um si, mas esse si não era uma redoma contraposta.
Era uma certa maneira de fazer ressoar alguma coisa
numa espécie de auto-afetação. Esse si é uma maneira
de afetar-se. Isso se relaciona com toda a temática do
Foucault20 que impregna os últimos livros voltados à
questão das práticas de si. Os gregos preocupavam-se
com um certo cuidado de si, na existência, nas práticas
em relação à alimentação, à sexualidade ou à conduta
na cidade. Era uma espécie de existência estética, como
fazer de si mesmo uma obra, o que é tema constante
nos trabalhos de Foucault.
De qualquer maneira, esse cuidado de si que os gre-
gos exercitaram muito, não tem nada a ver com a idéia
que geralmente nós temos do si psicologizado, porque o
que concebemos como o exercício do si, a introspecção,

34
verve
História anômala e políticas de subjetivação

é a promessa de nossa apelação conosco mesmo. Des-


cobrir o que nos aliena de nós mesmos, a nossa manei-
ra de nos relacionarmos (a nós mesmos) separados de
nós mesmos, ou seja, nós tentamos na perspectiva do
indivíduo descobrir nossa ‘verdade interna’. Contempora-
neamente são comuns verbalizações como: “eu preciso
encontrar o que eu tenho mais lá dentro no fundo que é
eu mesmo, minha identidade que está recoberta por um
monte de coisas, assim da minha história familiar e
muitas outras então eu preciso de algum jeito remover
e encontrar de novo o meu si verdadeiro”21.
A experimentação dos gregos era totalmente diferen-
te. Não se tratava de reencontrar o si verdadeiro, mas
produzir uma forma de existência com essas forças do
si, que fosse uma bela obra e uma bela dobra. Como do-
brar a vida de um jeito bonito? Dobrá-la como obra de
arte.
Ainda no tensionamento com a referência identitária,
a persistência da subjetividade em sua figura moderna,
a ignorar as forças que a constituem e desestabilizam,
nos indica Novalis em um de seus fragmentos:“o mun-
do interior é, por assim dizer, mais Meu do que o exteri-
or. Ele é tão íntimo, tão secreto — quereríamos viver
inteiramente nele — ele é tanto uma pátria. É pena
que ele tal como os sonhos, seja tão incerto. Será ne-
cessário que precisamente o melhor, o mais verdadei-
ro, nos pareça tão aparente — e que o aparente nos pa-
reça tão verdadeiro? O que é exterior a mim está preci-
samente, em mim, é meu — e inversamente”22.
Vivemos ainda a brincadeira de descobrir a nossa
verdade interna mais recôndita, ficando nesse jogo do
mistério velado e desvelado, tentando descobrir, e quanto
menos se descobre, mais interessante fica, e mais há
gozo com esse insondável que é a nossa interioridade

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6
2004

recôndita. É um jogo com si mesmo, baseado na idéia de


que: a gente vai se reapropriar de si”, mesmo que reco-
nheçamos essa reapropriação como impossível, não
importa, o jogo está montado, é uma espécie de promes-
sa de desalienação. Como estamos desalienados conosco
mesmo, vamos reapropriar, e onde havia inconsciência
haverá consciência, redescoberta de si mesmo. Essa
matriz possui amplas relações com o que Nietzsche
chamou de humano, demasiado humano, com a figura do
indivíduo moderno porém, é absolutamente de um ou-
tro registro a outra noite, o fora e o que nos conta a Ilha
das mulheres
Assim retornando a Blanchot, algumas das pergun-
tas trágicas da segunda noite serão: Que outras manei-
ras há de dobrar e desdobrar as forças, da morte que não
se encontra, o esquecimento que se esquece, que é, no seio
do esquecimento, a lembrança sem repouso de forças que
nos espreitam? Que maneiras presentes e futuras de
desacelerar essas forças que nos circundam e atraves-
sam? Que outras maneiras de abrir-se a elas nos espe-
ram?
No dizer de Nietzsche, uma das mudanças de pergun-
ta (segundo ele é preciso mudar o lugar da questão) da
segunda noite e que problematiza o humano não seria
como reconduzir uma dobra mal feita à dobra bem feita,
como era a velha pergunta moralizadora do projeto mo-
derno. Toda questão é: Que múltiplas maneiras de do-
brar estão aí virtualmente presentes? Quais as outras
possibilidades, quantas maneiras de dobrar desconhe-
cidas? Quer dizer, essas inúmeras outras maneiras de
dobrar não são uma questão de verdade, (que para um
pensador trágico como Nietzsche não é uma boa ques-
tão). As dobras estão para ser experimentadas ou in-
ventadas. Não é de estranhar que Deleuze tenha cha-
mado os conceitos nietzschianos de categorias do in-

36
verve
História anômala e políticas de subjetivação

consciente e o próprio inconsciente de um protocolo de


experimentação das outras tantas dobras por vir. Por
conseguinte, a questão para a perspectiva do indivíduo
não é descobrir a verdadeira dobra. É abrir-se para as
possibilidades, as múltiplas dobras virtualmente presen-
tes.
A Ilha das mulheres e seu universo trágico tem uma
relação íntima com uma exterioridade inumana, com
uma multiplicidade pré-pessoal, com a linha do fora na
relação com as diferenciações. O si não pensado em re-
lação à segurança e a uma identidade que ele tem como
centro, mas à luz das diferenciações, das metamorfoses
multifacéticas que ela vive, com todas as estranhezas
ali embutidas.
Para Nietzsche, assim como na história apresenta-
da por Detienne não existe uma vontade una da qual
nós seríamos cada um expressão individualizada, o que
existe são múltiplas forças em luta. O mundo, o si é uma
pluralidade de forças em luta e essas forças se juntam,
aglomeram-se, criam aglutinações de forças. O mundo,
a Ilha das mulheres é uma pluralidade de forças em com-
bate. E existem, fundamentalmente, dois qualias de for-
ça. O primeiro tipo de força apenas preserva o que pos-
sui. É um tipo de força conservadora, da qual todos nós
temos traços: conservar o que temos, nossas relações,
nossas lembranças, nossas casas. Porém, há um outro
tipo de força que é totalmente diferente. Não é uma for-
ça de conservação. Esse outro tipo de força tem por dire-
ção não conservar, mas ir além, superar-se. Esse se-
gundo tipo de força quer ampliar o que tem e não con-
servar. Ampliar a própria perspectiva, experimentar a
própria potência, desfazer telhados. Experimentar, ir
além daquilo que, atualmente, faz, pensa e pode. É um
tipo de força ativa segundo Nietzsche. Sua característi-
ca é arriscar tudo. O fundamental da outra força é con-

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2004

servar tudo, força reativa. Então, essa força que se ar-


risca, que vai além, não quer submeter-se a nada. É
uma força mais agressiva, mais conquistadora, quer
sempre novas direções. Esta força é uma força não de
conservação, mas de metamorfose. É uma força plásti-
ca, mutante, quer a mudança e a transformação. Ela se
apropria de tudo o que pode a sua volta, com esse vetor,
ainda que no mais das vezes, onde e quando não espe-
ramos.
Se a força reativa quer se conservar e manter tudo
como está, a força ativa é uma força criadora, inventa
novas direções, sentidos, conexões de vida, novos valo-
res, percepções, perspectivas de vida, novos sentimen-
tos.
A perspectiva em Nietzsche é a do criador. O artista
diante da sua matéria prima, um pintor, um artista plás-
tico domina sua matéria prima. Mas o sentido de domi-
nar é precisamente o de dar uma nova forma. Dominar
não significa dar ordens, mas construir uma nova for-
ma, uma nova sensibilidade, uma nova perspectiva. Um
artista se apropria da argila e, nesse sentido, ele a
metamorfoseia, ele cria algo inédito. A isso se dá o nome
de vontade de dominação, isto é, a força domina o seu
entorno. Dominação tem esse sentido plástico em que
um artista domina a sua matéria de trabalho. Segundo
Nietzsche, a vida tem essa característica também, de
uma força que se apropria do mundo para inventar no-
vos sentidos, novas perspectivas e novas direções. As
primeiras forças, chamadas forças de conservação, são
muito importantes, se não conservássemos o que te-
mos, seria muito difícil inventar qualquer coisa. Nós
precisamos conservar os traços mnêmicos ligados à
consciência do corpo, pois as forças de conservação são
como patamares de estabilização necessários para a
vida. Porém, isto é apenas sobrevivência porque para

38
verve
História anômala e políticas de subjetivação

Nietzsche a vida é também força ativa, inventiva, cria-


dora de novas formas, o que vem a ser propriamente a
potência segundo o autor. Obviamente tudo isso está
distante da dominação como hierarquia, do Estado, pois
potência significa ter a potência de criar, é ter a potên-
cia de inventar, apesar da força do rebanho.
Há toda uma valorização desta força criadora e afir-
mativa, uma força que afirma a multiplicidade. Uma
força que afirma a diferenciação de viver, de pensar, de
sentir, há toda uma valorização em Nietzsche da
afirmatividade não unificadora da vida, como refere em
Além do bem e do mal:
“Há uma ‘moral dos senhores’ e uma ‘moral de es-
cravos’; acrescento de imediato que em todas as cultu-
ras superiores e mais misturadas aparecem também
tentativas de mediação entre as duas morais, e, com
ainda maior freqüência, confusão das mesmas e
incompreensão mútua ,por vezes inclusive dura coexis-
tência — até mesmo num homem, no interior de ‘uma’
só alma”23.
Então, para Nietzsche convivem dois modos, até
mesmo no interior de uma mesma pessoa. O modo se-
nhor é o que vai ao limite do que pode e desdobra toda a
sua potência. E o modo escravo de operar é aquele que
está separado da sua força.
Assim, a vontade de potência é sempre apresentada
como diferença. Diferença do quê? Diferença de arris-
car tudo o que tem, o que se é o que se conquistou, o que
está muito estabilizado. Forças de abandonar esta for-
ma já cristalizada para inventar uma outra forma? Em
outras palavras a vontade para Nietzsche quer potên-
cia. Mas, a potência é a potência de criar. A vontade é
totalmente arriscada, aventurosa, atirada, e sobretudo
uma vontade expansiva. É um querer expansivo. É a

39
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2004

potência de experimentar, experimentar o quê por exem-


plo? Todos aqueles “deuses trágicos” que me habitam e
que eu nem sei que me habitam, todas as potencia-
lidades que estão presentes na vontade de ultrapas-
sagem, uma potência de experimentação em que eu me
lanço para além desta forma humana.
Ainda nesta perspectiva, Nietzsche vai utilizar o ter-
mo Super-Homem que não é a pregação de alguém se-
melhante ao herói estadunidense, mas uma experimen-
tação criadora o suficiente a ponto de dilacerar esta for-
ma humana, para experimentar uma potência
desconhecida, afirmando a vida.
A vida (compreendia como potência infinita de cria-
ção) repugna a perspectiva mesquinha e burguesa vivi-
da, no limite apenas utilitário da adaptação comandada
pela carência, para fins de conservação e reprodução da
espécie. A vida, bem como o conjunto da natureza, não
é o cenário pacífico da acomodação às necessidades. A
vida ao contrário é agon, campo de luta e desiquilíbrio
de forças, a vida não é avara de suas formas, mas
‘gastadeira’, perdulária e expansora. E é neste sentido
que viver não é sobreviver, pois sobreviver é conservar-
se e viver para Nietzsche, é precisamente ultrapassar-
se, experimentar outras perspectivas, outras maneiras
de ser, de sentir, de pensar, de se relacionar. A questão
fundamental para Nietzsche é criação de novos valores,
procurando saber se nós estamos querendo e em condi-
ções de criar novas direções; se estamos, muitas vezes,
na proximidade da alteridade radical, escolhendo e em
condições de criar, ou de conservar o mesmo.
Como ter olhos para isso? O que está acabado? O que
está nascendo hoje? Nós muitas vezes não temos olhos,
porque está se gestando uma nova maneira de perce-
ber, de sentir, de enxergar.

40
verve
História anômala e políticas de subjetivação

É necessário uma nova sensibilidade para enxergar


o que está se desfazendo, o que está se gestando, não só
para as formas acabadas , mas para as forças todas do
campo que vão gestando novas formas. Claro que esse
campo é muito mais invisível, é mais imperceptível. Às
vezes, é mais molecular. É político antes de tudo.
Há múltiplas coisas que nós não vemos, não toca-
mos. Mas por quê? Será que essas coisas não estavam
ali? Se estavam ali é porque não houve abertura sensi-
tiva, perceptiva? E, evidentemente, não são coisas para
iluminados ou videntes. A pergunta é: como se aproxi-
mar do invisível? O invisível não é um segredo que se
oculta por trás, é o que está aí o tempo todo, para o que
nós não temos olhos, porque nós, como alguns persona-
gens de tragédias24 percebemos as formas acabadas,
temos muita dificuldade de perceber todas as fissuras,
os movimentos, os desfazimentos.
“O que muda para os pássaros, a época em que tro-
cam de plumagem, é a adversidade ou a infelicidade, os
tempos difíceis, para nós, seres humanos. Uma pessoa
pode ficar nesse tempo de muda; também pode sair dele
como que renovada”25.
É preponderante uma política de subjetivação que no
tempo de muda, evita sair dele, tentando reduzir tudo a
modorras e mesmices. É importante colocar-se dispo-
nível a outras maneiras de operar, para além dos efei-
tos de ótica das identidades ficcionais, pôr-se, como a
vida, generosamente em debandada, como uma deban-
dada de pássaros.
A versão insular de Dioniso (a Ilha das mulheres), a
outra noite de Blanchot, o fora de Foucault-Deleuze lan-
çam-nos em muitas perspectivas possíveis nos elemen-
tos de construção e corrupção, saúde e loucura, vida e
morte, apontando a uma experimentação com histórias

41
6
2004

e fragmentos anômalos como prazer de assumir dife-


rentes formas, prazer de ir se construindo e se destru-
indo ao longo da vida. Convidando-nos a políticas que se
aventurem por dentro e por fora das necessidades prag-
máticas e subjugadas de nossa inteligência e sensibili-
dade, rompendo com o que está acabado, visualizando o
que vem vindo, desfazendo essa forma e produzindo ou-
tras formas, imprevisíveis, indeterminadas.

Notas
1
M. Detienne. Dioniso a céu aberto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988, pp.
76 e 77.
2
É interessante atentar para o fato de que o deus dos santuários e templos é
tipicamente Apolo e que Dioniso “prefere” as florestas e cavernas.
3
William Blake apud G. Bataille. A literatura e o mal. Porto Alegre, LP&M,
1989, p.84.
4
O trabalho das mulheres deveria ser realizado antes do pôr do sol e o telhado
refeito antes dos perigos de um santuário exposto ao fora, a uma noite sem telhado.
5
O acaso constitui na perspectiva de Nietzsche o princípio que rege o mundo.
6
Sobre os telhados e uma política de subjetivação trágica ver: “A princesa, que
morava num palácio com telhado de vidro, estava brincando de jogar pedras no
telhado do vizinho. Fazia isso exatamente porque quem tem telhado de vidro
não joga pedra no do vizinho”. As ressonâncias de Nietzsche na obra de Fernanda
Lopes de Almeida. A princesa dos cabelos azuis e o horroroso homem dos pântanos. São
Paulo, Editora Ática, 1993, p. 16.
7
F. Nietzsche. A genealogia da moral. São Paulo, Ed. Moraes, 1991, p. 35.
8
M. Detienne, op. cit., p. 92.
9
Ver especialmente os trabalhos do historiador judeu-alemão Norbert Elias. O
processo civilizador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, 2 vols.
10
A respeito da ‘forma homem’, não como um dado natural mas sim produzida
a ferro e fogo ao longo dos séculos como moldagem civilizatória, apequenamento,
domesticação e por conseguinte criação da própria noção de ‘interioridade’;
assim como a violência posta no estabelecimento destas formatações ver as
descrições interessantes e terríveis em F. Nietzche, op. cit., especialmente I:41,
II:3, III:14.

42
verve
História anômala e políticas de subjetivação

11
Várias e fecundas questões sobre saúde e loucura na articulação com a epo-
péia e o trágico podem ser inferidas do capitulo III “As bençãos da loucura” in
E. R. Dodds. Os gregos e o irracional. Lisboa, Portugal, Ed. Gradiva, 1988, pp.
75-113.
12
Jacques Rancière. “A máquina e o feto”, Folha de S. Paulo, 26/01/2003.
13
Bruno Schulz. As lojas de canela. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1996, pp. 48 e 49,
e em especial o capítulo “O tratado dos manequins, ou o segundo Gênesis”.
14
Esses temas são abordados por G. Deleuze. Foucault. São Paulo, Brasiliense,
1986. Bem como por M. Foucault em Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977.
15
Sobre a esfera do privado e a ‘privação’ ver Hannah Arendt. A condição
humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997, assim como, Steven Lukes.
El individualismo. Barcelona, Ed. Península, s/d; que tematizam de diferentes
maneiras, a faceta de privação que tem a palavra ‘privado’ e que significa
literalmente o estado de quem está privado de algo, inclusive da sua potência,
daquilo que ele pode, segundo Nietzsche. Sabendo-se que entre os gregos quem
levava uma vida exclusivamente privada, quem como o escravo não tinha
acesso a esfera pública, ou quem, como o bárbaro, optava por não criar essa
esfera, não era plenamente humano. Contemporaneamente não pensamos no
significado de ‘privação’ quando utilizamos esta palavra, o que se deve em
parte a enorme naturalização e fortalecimento da esfera privada a partir do
final do século XVIII.
16
M. Blanchot. O espaço literário. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1987, p. 164.
17
“Diagrama de Foucault” in G. Deleuze, op.cit., p. 128.
18
Sobre esta questão ver “Ártemis ou as fronteiras do outro” in J. P. Vernant. A
morte nos olhos - figuração do outro na Grécia antiga - Ártemis e Gorgó. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1991.
19
J. P. Vernant. “O Indivíduo na cidade” in P. Veyne et alli. Indivíduo e poder.
Lisboa, Ediçôes 70, 1988, p. 38.
20
Ver especialmente M. Foucault. História da sexualidade: O uso dos prazeres, vol.
II. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984, e M. Foucault. História da sexualidade
O cuidado de si, vol. III. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1985.
21
Fala ficcional de muitos e de ninguém não há referência a uma pessoa, o autor.
22
Novalis. Fragmentos de Novalis. Lisboa, Assírio e Alvim, 1992, p. 105.
23
F. W. Nietzsche. Além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. São
Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 172.
24
Sobre o trágico, a visão e a cegueira, o visível e o invisível ver Sófocles,
“Édipo Rei” e “Édipo em Colono” in A trilogia Tebana. Rio de Janeiro. Jorge

43
6
2004

Zahar Editor, 1989, e R. M. Rilke “Notas marginales a F. Nietzsche, El


Nacimiento de la Tragédia” in Er, Revista de Filosofia. Sevilha, Ed. Er, Revis-
ta de Filosofia, 1995.
25
V. van Gogh. Cartas a Théo - Antologia. Porto Alegre, L P&M, 1997, p. 21.

RESUMO

A partir de uma perspectiva deleuziana, analisar algumas políti-


cas de subjetivação na contemporaneidade.Utilizam-se histórias
anômalas como dispositivos de problematização. A anomalia pemite
evocar um emaranhado de diferenças, ao invés de um fluxo. Permi-
te igualmente um repensar radical da história do mundo e da his-
tória da subjetiviade.

Palavras-chave: diferença, políticas de subjetivação, histórias anô-


malas

ABSTRACT

From a Deleuzian perspective, analyze some politics of


subjectivization in the present. Anomalous histories are argued as
devices of problematization. Anomaly allows to evoke a tangle of
differences, in permanent transformation instead of a flux. It also
allows a radical rethinking of the world´s history as well the
history of subjectivity.

Keywords: difference, politics of subjectivization, anomalous


histories.

44
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento

do incômodo das imagens


à inquietação do pensamento

márcio alves da fonseca*

Em que medida o pensamento, para inquietar-se,


precisa ser incomodado? Em relação a inúmeras filoso-
fias talvez fosse possível afirmar, sem muito equívoco,
que o pensamento, para inquietar-se, quase sempre
precisa ser incomodado, ou ainda, que quanto mais o
pensamento for incomodado, tanto mais poderá vir a
inquietar-se. Neste sentido, uma interrogação acerca
da relação entre a inquietação do pensamento e algu-
ma forma de incômodo que estaria em sua causa ou
origem pode ser interessante.
Por uma razão bastante precisa, certamente pode-se
referir à filosofia de Michel Foucault a fim de se explo-
rar um pouco esta idéia. A razão não é outra senão o
fato desta filosofia constituir-se em um esforço contí-
nuo de “problematização”. Com efeito, a relação entre
alguma forma de incômodo e a inquietação do pensa-

* Professor no Departamento de Filosofia da PUC/SP. Autor de Michel Foucault


e a constituição do sujeito (EDUC, 1995) e Michel Foucault e o Direito (Max Limonad,
2002).
verve, 6: 47-58, 2004

47
6
2004

mento pode ser percebida de modo singular nos traba-


lhos do filósofo.
Não foram poucas as vezes em que Foucault referiu-
se a este “modo de ser” de seu pensamento. Em uma
entrevista concedida a François Ewald, em 1984,
publicada em Dits et Écrits com o título “O cuidado da
verdade”1, dirá que a noção que serviu de forma comum
aos estudos que realizou desde a História da loucura ha-
via sido a noção de problematização: “problematização
não quer dizer representação de um objeto preexistente,
nem criação pelo discurso de um objeto que não existe.
[Problematização] é o conjunto das práticas discursivas
ou não-discursivas que faz com que algo entre no jogo
do verdadeiro e do falso, jogo que o constitui [este algo]
como objeto para o pensamento (seja sob a forma da re-
flexão moral, do conhecimento científico ou da análise
política, etc.)”2.
Neste sentido, problematizar é remeter algo — pen-
samento ou ato, noção ou situação, quer se refiram aos
domínios da moral, do conhecimento científico ou da
política — para o “jogo do verdadeiro e do falso”, é, por-
tanto, desestabilizar, tirar do repouso, submeter a um
movimento.
Também em 1984, em um debate com Dreyfus e
Rabinow3, Foucault afirma que o trabalho do pensamen-
to seria um trabalho de problematização e de perpétua
reproblematização. E este esforço de reproblematização
partiria do reconhecimento do princípio de que o homem
é um ser pensante, sendo o pensamento não aquilo que
nos faz acreditar no que pensamos ou admitir o que fa-
zemos, e sim o que nos faz problematizar aquilo mesmo
que somos. O trabalho do pensamento não seria denun-
ciar o mal que habitaria secretamente em tudo o que
existe, mas pressentir o perigo que nos ameaça em tudo

48
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento

o que é habitual, [o trabalho do pensamento] é tornar


problemático tudo o que é sólido4.
Assim, recusando as designações que normalmente
lhe eram atribuídas (idealista ou niilista, anti-marxis-
ta ou neoconservador), Foucault identifica sua filosofia
a uma certa atitude, “atitude que seria da ordem da
problematização”5, entendida como a elaboração de do-
mínios de fatos, práticas e pensamentos que permitem
colocar problemas, questionar o que somos e pensamos,
o modo como agimos e como nos entendemos, enfim,
tudo aquilo que nos é habitual.
Deste modo, a filosofia como problematização reme-
te incessantemente à inquietação do pensamento. Ela
é da ordem da provisoriedade das conclusões e não da
estabilidade das certezas. Sua índole é arriscar-se, des-
locar-se continuamente, tatear e experimentar, não
admitindo descanso, não se ancorando em qualquer “por-
to-seguro”. É uma filosofia do pensamento inquieto.
E como não tender ao descanso? Como não procurar
repouso em alguma certeza? Como manter o pensamen-
to continuamente inquieto? Ao configurar-se como
problematização, ao pretender construir-se como uma
filosofia do pensamento inquieto, ela deve, de algum
modo, incomodar e deixar-se incomodar. Ela deve saber
incomodar para poder inquietar continuamente o pen-
samento.
Ora, a leitura atenta dos livros, dos cursos e dos ou-
tros escritos de Foucault revela um pensamento que,
em não poucas vezes, incomoda. E o faz duplamente:
incomoda tanto pelo conteúdo daquilo que diz, quanto
pela forma segundo a qual diz o que diz. Talvez fosse até
mais adequado afirmar que a filosofia de Foucault inco-
moda precisamente porque não comporta uma separa-

49
6
2004

ção rigorosa entre “o que diz” e o “como diz”, em outras


palavras, entre “conteúdo” e “forma”.
Ao referir-se ao “estilo” desta filosofia, Francesco
Paolo Adorno6 faz menção a Paul Valéry, para quem a
filosofia seria tanto um problema de conteúdos e de ar-
gumentações lógicas quanto um problema de forma, não
havendo, assim, uma separação rigorosa entre estes dois
aspectos do pensamento7.
Ora, nos diversos escritos de Foucault explicita-se
uma implicação interessante entre forma e conteúdo
do pensamento. Nestes escritos, não se trata de encon-
trar uma determinada forma que seria tão somente o
“modo de apresentação” de uma idéia ou um conteúdo.
Em Foucault, a forma não deve ser entendida como um
mero modo pelo qual determinado conteúdo é expresso.
Diferente disto, forma e conteúdo determinam-se es-
sencialmente, ou seja, o conteúdo não seria o mesmo
— seria outro — se a forma não fosse a mesma — se
fosse outra — e inversamente.
É neste sentido que Michel de Certeau pode afirmar
em seu texto A Invenção do cotidiano8, que um dos funda-
mentos da reflexão de Foucault está na forma tomada
por seu pensamento, está na organização lingüística das
imagens que o compõem. Certeau entende estar em jogo
nos escritos de Foucault uma manipulação da lingua-
gem que tem a tarefa estratégica de desestabilizar a
posição lingüística do destinatário, seduzi-lo, fasciná-lo
(...)9. Talvez fosse possível acrescentarmos, incomodá-
lo.
Considerando esta espécie de coincidência entre for-
ma e conteúdo em Foucault e considerando a proble-
matização — que supõe a permanente inquietação do
pensamento — como o “modo de ser” de sua filosofia,
pode-se pensar que uma das muitas possibilidades de

50
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento

compreensão de seus escritos seja o estudo das ima-


gens ali presentes e o incômodo que estas imagens pre-
tendem provocar, incômodo que desestabiliza o pensa-
mento, que o retira do repouso, que ameaça tudo que se
lhe apresenta como certo.
Se esta hipótese faz sentido, a compreensão de um
pensamento que pretende realizar um trabalho de cons-
tante problematização talvez dependa, em certa medi-
da, da compreensão desta interessante relação entre o
incômodo das imagens que aparecem em seus textos e
a inquietação do pensamento que estas imagens provo-
cam. Portanto, a consideração da série “incômodo das
imagens” — “inquietação do pensamento” — “filosofia
como problematização”, parece ser uma das possibilida-
des de compreensão do modo peculiar de se implicarem,
no pensamento de Foucault, forma e conteúdo. Se ao
constituir-se como problematização, a filosofia supõe a
inquietação permanente do pensamento e se, em gran-
de medida, o caminho para esta inquietação é a cons-
trução de imagens que incomodam, então o esforço em
acompanhar algumas destas imagens, o esforço para
apreender esta “forma” do pensamento de Foucault não
será, na realidade, diferente do esforço para se enten-
der o que este pensamento tem a dizer, ou seja, não
será diferente do esforço para se apreender seu “con-
teúdo”.
Nesta medida, muitas destas imagens — imagens
que desestabilizam e que provocam um deslocamento
em relação àquilo que é habitual — podem ser lembra-
das. Retomemos, apenas a título de ilustração, algumas
delas. Logo no início de História da loucura, por exemplo,
Foucault faz a caracterização da Nau dos Loucos10. Re-
portando-se a composições literárias de naves romanes-
cas e satíricas inspiradas no ciclo dos argonautas,
Foucault descreve estas naus, que teriam conhecido

51
6
2004

uma existência real, como sendo embarcações que


transportavam sua “carga insana” de uma cidade para
outra. Esta figura da nau é explorada em todo seu signi-
ficado simbólico e prático. Ela remete à posição do louco
no limiar do mundo medieval e renascentista, ao seu
estado de “prisioneiro-livre” — ele aparece ali como pas-
sageiro por excelência, como “prisioneiro da passagem”
—, remete também à longa história das ligações entre
loucura e falha moral, que terão na água um elemento
de purificação ou de cura. Esta curiosa figuração repor-
ta-nos a uma percepção em que loucura e razão, de cer-
to modo, coexistem, dialogam, percepção da loucura bas-
tante diferente da clássica e da moderna.
Em História da loucura as imagens incômodas se
multiplicam, inquietando continuamente o pensamen-
to. No final do livro, a descrição da liberação dos
acorrentados de Bicêtre por Pinel11, por exemplo, coloca o
leitor diante da percepção moderna da loucura, em que
esta (loucura) será aprisionada na estrutura objetivante
da doença mental. Ali, o jogo criado entre a imagem da
“libertação” dos loucos realizada por Pinel e o seu “apri-
sionamento” na categoria objetivante da doença men-
tal é também um exemplo da relação peculiar entre o
incômodo das imagens e a inquietação do pensamento
em Foucault.
O incômodo causado por estas imagens, e que se re-
pete em relação a muitas outras — em textos como His-
tória da loucura, O Nascimento da clínica e As palavras e
as coisas — conduz à inquietação de nosso pensamento,
de modo particular, inquietação em relação aos domíni-
os e formas de saber que falam sobre o homem, inquie-
tação quanto às condições de aparecimento destes sa-
beres, quanto ao seu modo de distribuição, quanto à sua
pretensão de descrever o que somos.

52
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento

Ao lado destas, muitas outras imagens criadas por


Foucault incomodam, e por este incômodo conduzem a
uma interrogação sobre os mecanismos e as estratégi-
as de poder que atuam sobre os indivíduos e que os cons-
tituem. São imagens que incomodam porque revelam
os diferentes modos de intervenção de poder que, ao lado
das estratificações de saber, formam a rede de relações
que constituem uma subjetividade normalizada.
Vale lembrar, por exemplo, as dezenas de imagens
que compõem as análises de Foucault acerca do cruza-
mento dos discursos psiquiátricos e das práticas judici-
árias presentes nos cursos do Collège de France de 1971
a 1975.
Em Os anormais12 (1975), os laudos psiquiátricos em
matéria penal — e as imagens criadas em torno de sua
narração — são o fundo sobre o qual Foucault procurará
construir uma genealogia das noções de “normal” e
“anormal” a partir das figuras do monstro humano, do
onanista e do incorrigível. É assim com a narrativa dos
casos da mulher de Sélestat, que mata a filha e come a
coxa da menina cozida com repolho; com o caso de
Henriette Cornier, mulher que corta a cabeça de um
bebê, filha de sua vizinha, sem nenhuma explicação;
assim também com a caracterização do casal monstru-
oso formado por Luis XVI e Maria Antonieta, expressões
da figura do monstro político, marcada pelos temas do
incesto e da antropofagia; do mesmo modo com a descri-
ção do caso do soldado Bertrand, utilizado por Foucault
para discutir o problema da interpretação dada pela psi-
quiatria do século XIX sobre a mecânica do instinto se-
xual em face de outros instintos; da mesma forma com
a referência à figura de Ubu, que serve para caracteri-
zar a expansão do que Foucault chama de “poder psiqui-
átrico”.

53
6
2004

Outras imagens incômodas, que também conduzem


uma interrogação acerca dos mecanismos de poder, apa-
recem nos escritos dos anos 70. Em Vigiar e punir13, por
exemplo, como não considerar a descrição do suplício de
Damiens, narração do ritual punitivo que em oposição
à descrição dos mecanismos disciplinares constitutivos
de uma anátomo-política dos corpos — cuja expressão
mais evidente aparece na descrição dos dispositivos
panópticos — serve para denotar as diferenças essenci-
ais entre a forma poder soberano e os mecanismos do
poder normalizador?
Nesta mesma direção, estão as inúmeras apropria-
ções literárias, como por exemplo, a do texto As jóias
indiscretas, de Diderot, que em A Vontade de saber14 ilus-
tra a injunção no Ocidente moderno de “tudo se falar”
acerca do sexo. Estão também as descrições de espaços
e ambientes, como aquela da sala de julgamento do Im-
perador Romano Sétimo Severo, realizada por Foucault
no curso de 1980 (Du gouvernement des vivants), para
apresentar a implicação entre os elementos poder/di-
reito/verdade, implicação que seria definida naquele
momento como fundamental para a compreensão de
grande parte de seus escritos.
São todas imagens que, num certo sentido, incomo-
dam. Isto pela estranheza ou desconforto que causam,
pela força ou gravidade das situações a que remetem,
ou ainda pela sutileza e simplicidade com que expres-
sam idéias muitas vezes difíceis de se conceituar. Por
vezes são imagens que suscitam mais diretamente in-
terrogações acerca dos saberes que nos definem, por
vezes são interrogações acerca dos mecanismos e dos
modos de intervenção de poder que nos constituem.
Mas há também, em Foucault, imagens que condu-
zem a um tipo de interrogação um pouco diferente das

54
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento

anteriores. Elas se referem, por sua vez, a formas de


constituição de si apoiadas em práticas que, de algum
modo, permitem o exercício da liberdade. Neste novo
domínio de preocupações, a que se convencionou cha-
mar de “domínio da ética”, as figuras também são nu-
merosas em textos como O Uso dos prazeres e O Cuidado
de si, bem como nos últimos anos de cursos do Collège
de France. Assim, no curso de 1982, intitulado A
Hermenêutica do sujeito15, por exemplo, aparecem ima-
gens como a da “metáfora da navegação”, trazida por
Foucault a fim de ilustrar uma categoria discutida na-
quele momento do curso, a categoria do “retorno a si” ou
da “conversão a si”16 que, segundo suas análises, teri-
am fornecido um novo conteúdo, no pensamento
helenístico, ao velho imperativo “cuidar de si mesmo”.
Assim como a navegação, o movimento do “retorno a si”
comportaria, portanto, a idéia de um trajeto, de um des-
locamento efetivo de um ponto a outro; comportaria a
idéia de um deslocamento marcado por um objetivo, uma
meta, um alvo; comportaria ainda a idéia de um retorno
a um lugar de partida; bem como a idéia de uma trajetó-
ria repleta de riscos e de perigos; comportaria também
a idéia de que esta trajetória, para ser concluída, impli-
ca um saber, uma técnica, uma arte.
Estas rápidas referências a algumas das imagens que
compõem os escritos de Foucault têm apenas a inten-
ção de ilustrar a hipótese de que a filosofia como
problematização, neste filósofo, constrói-se, em grande
medida, apoiada na relação entre o incômodo das ima-
gens presentes em seus escritos e a inquietação do pen-
samento que provocam, de tal forma que o primeiro des-
tes elementos — o incômodo das imagens — não se es-
gota no que poderia ser entendido como a mera “forma”
do seu pensamento, nem o segundo — a inquietação do
pensamento — seria, por assim dizer, o seu “conteúdo”.

55
6
2004

Em Foucault, ao contrário, incômodo das imagens e in-


quietação do pensamento são, a um só tempo, “forma” e
“conteúdo” de uma filosofia que pretende ser uma atitu-
de contínua de problematização.
Por meio deste jogo entre incômodo das imagens e
inquietação do pensamento somos confrontados a uma
filosofia que pode ser dita “uma empresa de proble-
matização”. Esta é a expressão utilizada por Foucault,
numa entrevista de 198417, para definir o programa do
GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões). Nesta en-
trevista, seu interlocutor pergunta por que as questões
que aquele movimento havia colocado não tinham sido
retomadas da mesma forma mais tarde, em relação a
outros domínios de experiência da vida social. Foucault
responde a esta questão afirmando que o GIP havia sido
“uma empresa de problematização”, (...) “um esforço para
tornar problemáticas e para se duvidar das evidências,
das práticas, das regras, das instituições e dos hábitos
que tinham se sedimentado há muitas décadas; e isso
a propósito da prisão, mas, através dela, a propósito tam-
bém da justiça penal, da lei e, mais genericamente, da
punição”18. Neste sentido, pode-se compreender a expe-
riência do GIP como uma espécie de “ação incômoda”,
uma vez que seu esforço se constituiu em tornar duvi-
dosos e problemáticos os hábitos, as evidências, as prá-
ticas, as regras sedimentadas.
Em Foucault, é possível então falarmos em imagens
incômodas, que de algum modo provocam pensamentos
inquietos e que, por sua vez, são capazes de produzir ações
incômodas. E através desta idéia, talvez possamos com-
preender um pouco melhor o sentido de uma filosofia cujo
conteúdo e forma reportam-se à problematização.

56
verve
Do incômodo das imagens à inquietação do pensamento

Notas
1
M. Foucault. “Le souci de la vérité”, in Dits et Écrits, IV, Paris, Gallimard,
1994, pp. 668-678.
2
M. Foucault. Idem, p. 670.
3
M. Foucault. “À propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail en
cours”, in Dits et Écrits, IV, op. cit., pp. 609-631.
4
Cf. M. Foucault. Idem, p. 612.
5
Cf. M. Foucault. “Polémique, politique et problématique”, in Dits et Écrits,
IV, op. cit., pp. 591-598.
6
F. P. Adorno. Le style du philosophe. Foucault et le dire-vrai. Paris, Éditions Kimé,
1996.
7
Cf. P. Valéry. Oeuvres complètes, vol. I. Paris, Gallimard, 1960, apud F. P.
Adorno. Le style du philosophe, op. cit., p. 13.
8
Cf. M. de Certeau. de L’invention du quotidien, Paris, Gallimard, 1990, apud F.
P. Adorno. Le style du philosophe, op. cit., p. 16.
9
Cf. M. de Certeau. L’invention du quotidien, apud F. P. Adorno. Idem, p. 16.
10
M. Foucault. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, Ed. Perspectiva,
1987. 2a ed., pp. 9s.
11
M. Foucault. Idem, pp. 463s.
12
M. Foucault. Os Anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Trad. de
Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
13
M. Foucault. Vigiar e punir. Tradução de Ligia M. P. Vassallo. Petrópolis,
Vozes, 1999, 21a edição.
14
M. Foucault. A Vontade de saber. Trad. de Maria Theresa C. Albuquerque e J.
A. G. de Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1997, 12a ed., pp. 75s.
15
M. Foucault. A Hermenêutica do sujeito. Curso no Collège de France (1982). Trad.
de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins
Fontes, 2004.
16
M. Foucault. Idem, pp. 302-303.
17
M. Foucault. “Interview de Michel Foucault”, in Dits et Écrits, IV, op. cit., pp.
688-696.
18
M. Foucault. Idem, pp. 688-689.

57
6
2004

RESUMO

Os recursos utilizados por Michel Foucault em seus trabalhos


(livros, conferências, cursos, etc) para sugerir os temas que quer
abordar são inúmeros. Dentre eles, a construção de imagens atra-
vés de descrições, narrativas e análises ocupa um lugar importan-
te. Quer no início quer no decurso de muitos de seus textos, tais
imagens não apenas ilustram as idéias tratadas, mas se integram
em uma rede discursiva que terá o efeito de prender o leitor em
sua trama. Pensar no sentido de algumas dessas imagens incô-
modas, bem como refletir sobre sua relação com a inquietação de
nosso pensamento é o objeto do artigo.

Palavras-chave: Michel Foucault, imagens, inquietação.

ABSTRACT

There are several resources used by Michel Foucault in his works


(books, conferences, lessons, etc) to suggest the subjects of his
approaches. Among them, the construction of images through
descriptions, narratives and analyses plays an important role.
Either in the beginning or in the extent of many of his texts, such
images not only illustrate his ideas, but also integrate a discursive
network, which intends to capture the reader in its tissue. The
aim of this article is to discuss the meaning of some of these
images and their relation with the inquietude of our thought.

Keywords: Michel Foucault, images, unrest.

58
verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste

intensidades abolicionistas
e a cruel exposição da peste

salete oliveira*

A peste em estilhaços
A peste. Há pestes. A peste empesteia a peste.
Empesteia o ar. O homem teme a peste. O homem com-
bate a peste. A peste empesteia o homem. A peste
empesteia a atmosfera.
Há peste e pressão na atmosfera. Pressão atmosféri-
ca. Na pressão atmosférica há gravidade e peste. Na ór-
bita da atmosfera o homem combate a peste com gravi-
dade. O homem grave, a peste aguda.
Há a peste. Há o corpo.
O corpo em peste por Antonin Artaud:
“Antes de caracterizar qualquer mal-estar físico ou
psicológico, manchas vermelhas espalham-se pelo cor-
po, manchas que o doente só percebe, de repente, quan-
do tornam-se pretas. Ele nem tem tempo de se assustar,

* Doutora e pesquisadora no Nu-Sol, professora na Faculdade Santa Marcelina


e professora-pesquisadora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciênci-
as Sociais da PUC/SP pelo PRODOC-CAPES.
verve, 6: 61-78, 2004

61
6
2004

sua cabeça começa a ferver, a tornar-se gigantesca pelo


peso, e ele cai. Então apodera-se dele uma fadiga atroz, a
fadiga de uma aspiração magnética central, de suas mo-
léculas cindidas em dois e atraídas para sua aniquila-
ção. Seus humores descontrolados, comprimidos, em de-
sordem, parecem galopar através de seu corpo. Seu estô-
mago sobressai, o interior de seu ventre parece querer
sair pelo orifício dos dentes. Seu pulso, que ora diminui
até tornar-se uma sombra, uma virtualidade de pulso,
ora galopa, segue a efervescência de sua febre interior, o
borbulhante desnorteamento de seu espírito. Este pulso
que bate através de golpes precipitados como seu cora-
ção, que se torna intenso, pleno barulhento; este olho
vermelho, incendiado e a seguir vítreo; esta língua que
arqueja, enorme e grossa, primeiro branca e depois ver-
melha, a seguir preta, como se fosse de carvão e toda
rachada, tudo isto anuncia uma tempestade orgânica sem
precedentes. E logo os humores sulcados pela terra pelo
relâmpago, como um vulcão trabalhado pelas tempesta-
des subterrâneas, procuram a saída para o exterior. No
meio das manchas, aparecem pontos mais ardentes, ao
redor desses pontos a pele se ergue em pelotas como se
fossem bolhas de ar sob a epiderme da lava, e essas bo-
lhas são cercadas por círculos o último dos quais, como
um anel de Saturno ao redor do astro em plena
incandescência, indica o limite extremo de um bubão. O
corpo fica sulcado por bubões. Mas assim como os vul-
cões têm seus lugares prediletos para aquecer a terra,
os bubões também têm lugares especiais no corpo hu-
mano. A dois ou três dedos da virilha, sob as axilas, na-
queles locais preciosos onde glândulas ativas realizam
fielmente suas funções, aparecem os bubões através dos
quais o organismo se livra ou de sua podridão interior
ou, conforme o caso de sua vida. Uma conflagração vio-
lenta e localizada num ponto indica na maioria das ve-
zes que a vida central nada perdeu de suas forças e que

62
verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste

uma diminuição do mal ou mesmo sua cura é possível.


Assim como o cólera branco, a peste mais terrível é a
que não divulga suas feições”1.
Explorar a peste em estilhaços é apenas um jeito es-
pecífico de tocar na exterioridade do corpo, sem preten-
der desvendar profundidades de qualquer ordem, pois o
desvendamento e a profundidade fazem parte de um dis-
curso de vontade de verdade pautado, ora na soberania
do significado, ora na soberania do significante2. Situar-
se na exterioridade da peste, ou ainda, genealogica-
mente, na exterioridade do acidente é um arremesso da
vontade envolvida com a história marcada no corpo3. Não
é preciso mais do que um corpo metido no espaço para se
conhecer a história, pontual, pequena, um detalhe pre-
cioso, o acaso no disparate. E conhecer deste modo é sa-
ber apenas aquilo e daquilo que o corpo experimenta.
Trata-se de um conhecimento cruel, interessado em ex-
por, expondo-se. Não há outra maneira. E esta exposição
em nada se confunde com o procedimento de se deixar
apanhar, de permitir a construção de uma identidade para
melhor caber na ordem das coisas, possibilitando, simul-
taneamente, ser identificado para assemelhar-se ao ino-
cente, otário, mártir ou herói. Não. Esta exposição espe-
cífica diz respeito a algo próximo daquilo que Artaud
explicita na crueza de Heliogabalo, um jovem de 14 anos,
um insurreto, pois, sua inssurreição ele pratica, antes
de mais nada contra si próprio.
“(...) Espreme a ordem estabelecida, as idéias, as no-
ções comuns das coisas. Pratica a anarquia minuciosa e
perigosa, pois expõe-se aos olhos de todos. E isso é de um
anarquista corajoso”4.
A política treme. Apavora-se diante da ameaça de ru-
ína de seu significado e seu significante, eternamente
remetidos a variações de grau entre quantidade e quali-

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6
2004

dade, regimes de governo, hierarquias de poder, formas


de soberania, confinamentos justos e injustos, julgamen-
tos propícios e inconvenientes. O insuportável para a po-
lítica diz respeito ao espaço das intensidades. Diante de-
las é o abalo, o sobressalto da respiração de um corpo
incidido pela peste. O descompasso sôfrego de um pulsar
na fissura. De um corpo que diz na superfície de sua pró-
pria fratura. O contratempo da dança na ruína da lingua-
gem. A intensidade cruel de um corpo que dança na
exterioridade de sua devastação. Uma tempestade sem
precedentes.
A morte de Heliogabalo por Antonin Artaud:
“É então que a guarda em armas se volta contra
Heliogabalo. Procura-o por todo o palácio. Júlia Soémia
acorre. Encontra Heliogabalo. Grita-lhe que fuja. Acom-
panha-o na fuga. Os gritos dos perseguidores vêm de to-
dos os lados, as suas pesadas correrias fazem estreme-
cer as paredes, um pânico indescritível apodera-se de
Heliogabalo e da sua mãe. Aonde quer que estejam vêem
a morte. Fogem pelos jardins que dão para o Tibre, pela
linha de sombra dos grandes pinheiros. Num recanto afas-
tado, depois de espessas filas de buxo odorante e de car-
valho verde, abrem-se ao vento as latrinas da tropa, es-
cavadas como sulcos que arassem a terra. O Tibre está
demasiado longe. Os soldados, a um passo. Doido de medo,
Heliogabalo salta para as latrinas, mergulha no
excremento. É o fim. A tropa, que o viu, cerca-o. E a sua
própria guarda o agarra pelos cabelos. É uma cena de
magarefe, uma carnificina repugnante, uma velha ima-
gem de matadouro. Os excrementos misturam-se com o
sangue no gume das espadas que devastam as carnes de
Heliogabalo e da sua mãe. Depois, içam os corpos,
carreiam-nos à luz de archotes, arrastam-nos pela cida-
de diante da populacho aterrorizada, diante das fachadas
das casas patrícias que abrem as janelas para aplaudir.

64
verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste

Uma multidão imensa marcha agora para o cais, sobre o


Tibre, no rasto daquela pobre massa de carne exangue e
suja. ‘Atirem-nos ao esgoto’ clama agora a populacho que
aproveitou a liberalidade de Heliogabalo, que a digeriu
velozmente. ‘Para o esgoto os dois cadáveres, Heliogabalo
ao esgoto!’ Farta do sangue e da visão obscena dos dois
corpos nus que mostram destruídos todos os seus órgãos,
mesmo os mais secretos, a tropa tenta agora introduzir o
corpo de Heliogabalo na primeira boca de esgoto que en-
contra. Mas, embora delgado, ainda é muito largo. Há que
solucionar. A Elagabalus Bassianus Avitus, dito
Heliogabalo, já fora acrescentado o nome de Varius, por-
que provindo de múltiplos sêmens nascera de uma pros-
tituída; deram-lhe ainda o nome de Tiberiano e Arrasta-
do, porque foi arrastado e atirado ao Tibre depois de ten-
tarem metê-lo por uma boca de esgoto; mas a boca de
esgoto não lhe deu passagem, ainda tinha as espáduas
muito largas, e então decidiram limá-lo. Assim, parti-
ram-lhe a pele, pondo à mostra o esqueleto que queriam
intacto; com o que ainda poderiam ter-lhe posto nome de
Limado e Polido. Mas uma vez limado, continua largo, e
atiram-no ao Tibre, que o arrasta para o mar, seguido, a
alguns redemoinhos de distância, pelo cadáver de Júlia
Soémia. Assim acaba Heliogabalo (...) mas em rebelião
declarada”5.
Interessa experimentar lidar na mistura imprevisível
— pois a peste não se aparta da mistura —, num certo
tipo de amálgama heterogêneo da peste devastando um
corpo e dos efeitos de contenção da política sobre o corpo
de Heliogabalo que ousou instaurar a anarquia, que atra-
vessa seu corpo, no corpo da cidade. O corpo em peste e o
corpo anárquico de Heliogabalo enunciam o transtorno
proveniente da vida tomada em suas intensidades
irredutíveis.

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6
2004

E se por acaso, há uma imensidão daqueles que ro-


gam pela segurança na política e vêem nas políticas de
segurança o refúgio mediano para a salvação diante da
peste, vale lembrar que não cessam de existir os inten-
sos insubordináveis que fazem de suas vidas e seus cor-
pos instrumentos cruéis que sabem, tal qual Artaud, que
“morrer de peste não é pior do que morrer de mediocrida-
de”6.

Estilhaços sobre a cidade


Foucault, ao resenhar o livro Diferença e repetição, de
Gilles Deleuze, enfatiza, com muito humor, como a in-
tensidade é o insuportável para a filosofia tradicional e
sublinha, de forma apaixonada, a subversão provocada
por uma filosofia intensa.
A intensidade por Michel Foucault:
“Chega então o momento de errar. Não como Édipo,
pobre rei sem cetro, cego interiormente iluminado; mas
vagar na festa sombria da anarquia coroada. Pode-se en-
tão a partir daí pensar a diferença e a repetição. Ou seja
— em vez de representá-las — fazê-las e jogar com elas.
O pensamento no ápice de sua intensidade será ele pró-
prio diferença e repetição; permitirá distinguir o que a
representação buscava reunir, ele atuará a perpétua re-
petição da qual a metafísica obstinada buscava a origem.
Não mais se perguntar: diferença entre o que e o quê?
Diferença delimitando que espécies e repartindo que
grande unidade inicial? Não mais se perguntar: repeti-
ção do que, de qual acontecimento ou de que modelo pri-
mário? Mas pensar a semelhança, a analogia ou a iden-
tidade como tantos meios de velar a diferença e a dife-
rença das diferenças; pensar a repetição, sem origem do
que quer que seja e sem o reaparecimento da mesma
coisa. Pensar antes as intensidades (e mais cedo) do que

66
verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste

as qualidades e as quantidades; (...) mil pequenos sujei-


tos larvários, mil pequenos eus dissociados, mil passivi-
dades e pululações lá onde, ontem, reinava o sujeito so-
berano. Sempre se recusou, no Ocidente, a pensar a in-
tensidade. (...) Não devemos nos enganar quanto a isso.
Pensar a intensidade — suas diferenças livres e suas
repetições — não é uma insignificante revolução em fi-
losofia. (...) É recusar, enfim, a grande figura do Mesmo
que, de Platão a Heidegger, não parou de aprisionar em
seu círculo a metafísica ocidental. É tornar-se livre para
pensar e amar o que, em nosso universo ruge desde
Nietzsche; diferenças insubmissas e repetições sem ori-
gem que sacodem nosso velho vulcão extinto” 7.
O que Foucault aponta como o insuportável para a filo-
sofia tradicional é possível ser estendido para a política.
No entanto, a intensidade está associada à crueldade. A
peste instaurada na cidade esboroa a ordem soberana da
política. Ela extrapola as fronteiras do território sobera-
no. A peste se converte em risco incomparável pois ela é
um perigo à moral. É isto que a diferencia de uma epide-
mia. A peste não poupa nem a política nem a moral. A
peste não poupa ninguém. Nem a si própria. Ela se faz
em corpos, fogo, ar, água e lugar.
A peste na cidade por Antonin Artaud:
“Uma vez estabelecida a peste em uma cidade seus
quadros regulares desmoronam, não há mais lixeiros,
nem exército, nem polícia, nem prefeitura; surgem fo-
gueiras para a queima dos mortos, conforme a disponibi-
lidade de braços. Cada família quer ter sua fogueira. A
seguir, a madeira, o lugar e o fogo escasseiam, há lutas
entre famílias ao redor das fogueiras, logo seguidas por
uma fuga geral, pois os cadáveres já são em números
excessivo. Os mortos atravancam as ruas, em pirâmides
instáveis que os animais roem aos poucos. O fedor sobe

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6
2004

pelo ar como uma labareda. Ruas inteiras são fechadas


pelo amontoamento dos mortos. Nesse ponto, as casas
começam a se abrir e pelas ruas espalham-se, gritando
pestilentos delirantes, com o espírito tomado por pavoro-
sas imagens. (...) Outros empestados que, sem bubões,
sem dores observam-se orgulhosamente em espelhos, e
sentem-se estourando de saúde, caem mortos, as mãos
na bacia, cheios de desprezo pelos outros pestilentos.
Sobre os regatos sangrentos, espessos, nauseabundos,
cor de angústia e de ópio que brotam dos cadáveres, pas-
sam estranhas personagens vestidas de cera, com enor-
mes narizes, olhos de vidro e calçadas com uma espécie
de sandália japonesa feita com uma dupla camada de
madeira, uma horizontal na forma de sola e a outra ver-
tical, e que as isola dos humores infectos; elas passam e
psalmodiam litanias absurdas, cuja virtude não as impe-
de de por sua vez tombarem nos braseiros. Esses médi-
cos ignaros com isso mostram apenas o medo e a pueri-
lidade que os acometem. Nas casas abertas, a ralé imu-
nizada, ao que parece, por sua frenética cupidez penetra
e se apodera de riquezas que, ela sabe, não lhe serão de
nenhum proveito”8.
O alarido interminável e o silêncio estancado. Eis o
descompasso irremediável instalado na política. A peste
sacode as demarcações arbitrárias entre geografia, ter-
ritório e política, provocando uma mistura de contrários.
Não se trata de sobrepor construções abstratas da cida-
de-organismo e do organismo-corpo, pois corpo e cidade
são tomados no mesmo tom. E o que lhes inscreve uma
forma aguda repleta de marcas definitivas faz parte de
um certo tipo de furor incontrolável.
Há de se construir politicamente o medo do contágio
por contato direto. O medo deve ser erigido como a face
mais benevolente capaz de partilhar seu tempo
indissoluto com a esperança na política apaziguadora. A

68
verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste

peste atingiu a política, e está a um passo de atingir a


moral, sua irmã predileta. Mas é inútil. A peste não tem
origem nem fim. Ela não parte de um fora, entendido sem-
pre como o Outro, para atingir o interior na sua verdade
soberana, compreendido como o Mesmo a ser preserva-
do. A peste se insinua sub-repticiamente e demole o re-
gime da representação. Há muito, a peste já havia corro-
ído a moral. A peste não vem de lugar nenhum, ela já
estava aqui. Habita em intensidades. A intensidade é o
insuportável para a política.

Intensidade em cisalhas
O teatro e seus gestos por Antonin Artaud:
“E nesse momento instala-se o teatro, isto é, a
gratuidade imediata que leva a atos inúteis e sem pro-
veito para o momento presente. Os últimos que ainda
vivem se exasperam: o filho, até ali submisso e virtuoso,
mata o pai; o recatado sodomiza seus próximos. O liberti-
no torna-se puro. O avarento joga seu ouro pela janela. O
guerreiro heróico incendeia a cidade que ele outrora sal-
vou. O elegante se enfeita e vai passear nos ossários.
Nem a idéia da ausência das sanções, nem a da morte
próxima bastam para motivar atos tão gratuitamente
absurdos por parte das pessoas que não acreditavam que
a morte pudesse pôr um termo a tudo. E como explicar
esse aumento da febre erótica entre pestilentos curados
que, ao invés de fugir, ficam onde estão tentando conse-
guir uma volúpia condenável com moribundos ou mes-
mo mortos semi-esmagados pela montanha de cadáve-
res onde o acaso os alojou”9.
O teatro da crueldade é o duplo da peste. Tessitura
tramada em gestos duplos. Não há direito, não há aves-
so. Apenas o redobrar e o esgarçar de cada gesto. O

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estancamento e o agitar de contrários, que jamais vão


caber na dicotomia da moral normalizadora.
São os duplos gestos da peste instalados por Artaud. O
filho mata o pai; o recatado sodomiza o vizinho; o liberti-
no torna-se puro; o avarento joga fora o ouro; o guerreiro
incendeia a cidade que salvou; o elegante passeia nos
ossários. Não se trata do furor assassino que se esgota,
mas de uma diferença sutil, que provém do furor do ator
trágico, que não cessa e atravessa o espaço incendian-
do-o e abrindo feridas, fazendo-se ferida e fissura. Não
caber em si mesmo.
Os duplos que aponta Foucault ao afirmar a
dissonância da intensidade num embate de forças
incidindo na demolição da representação. Livrar-se do
mensurável no jogo das igualdades, do qualitativo e o con-
tínuo; recusar o negativo que implica rejeitar de um só
golpe as filosofias da identidade e da contradição; com-
plementos recíprocos dos metafísicos e dos dialéticos;
escarnecer de uma só vez as filosofias da evidência e da
consciência. Tornar-se livre. Não é fortuito que Foucault
chame a filosofia intensa de teatro atual e ao reavivar
vulcões extintos, pois eles não estavam extintos, precise
este gesto como o vagar na festa sombria da anarquia
coroada, fazendo uma referência explícita ao sub-título
de Heliogabalo de Artaud.
Os duplos gestos de Heliogabalo, que imprimem o rit-
mo de sua crueldade e anarquia.
“Um estranho ritmo intervém na sua crueldade: este
iniciado faz tudo com arte e a dobrar. Quero dizer: sobre
dois planos. Todos os seus gestos têm duas caras.
Ordem, Desordem
Unidade, Anarquia
Poesia, Dissonância

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verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste

Ritmo, Discordância
Grandeza, Puerilidade
Generosidade, Crueldade”10
Onde se apregoa a cura sob a forma de salvação a in-
tensidade cruel instaura o descompasso inacessível da-
quilo que não pode ser agarrado. Que se faz vários, fugidios.
Esgarça seu próprio nome. Afronta estabilidades remeti-
das a diversos arranjos de centralidade de poder. Solapa
o sossego da vida confortada nas migalhas de gestão da
morte em nome da preservação da espécie. Crueldade
generosa no espaço do excesso, da desmesura que espar-
rama o jamais contível. Fartura. Fratura. Fissura. Movi-
mentos da peste duplo da crueldade, suscitados pela vida
de gestos trágicos.
Não caber em si mesmo. Tornar-se livre. Arreba-
tamento dissonante. Voracidade de vida. Apetite. Entre-
laçamento fatal de vida e morte. Fertilidade. Secreções,
suores, excrementos, odor de sexo, pele, mucosa, san-
gue, saliva, muco da vagina, sêmen do pau, febres eróti-
cas, lágrimas de dor e alegria, banquetes entre amigos,
aromas de iguarias, risos escancarados, sem subterfúgi-
os, sons inaudíveis, gestos largos e imperceptíveis,
contundências, delicadezas, leveza, dança. O elegante se
enfeita e passeia sobre os ossários.

O aprisionamento da intensidade, a órbita de gravida-


de do direito penal e sua dissolução
A construção da prisão moderna foi a resposta disci-
plinar que a moral do confinamento deu para a peste.
“A peste (pelo menos aquela que permanece no estado
de previsão) é a prova durante a qual se pode definir
idealmente o exercício do poder disciplinar. Para fazer

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funcionar segundo a pura teoria dos direitos e as leis, os


juristas se punham imaginariamente no estado de na-
tureza; para ver funcionar suas disciplinas perfeitas, os
governos sonhavam com o estado de peste. No fundo dos
esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por to-
das as confusões e desordens; assim como a lepra, do
contato a ser cortado, está no fundo do esquema de ex-
clusão”11.
Vale lembrar, a partir de Foucault, que os efeitos mo-
rais e políticos de combate à peste resultaram em um
modelo de organização médica baseada na ordem militar
que estabeleceu os contornos do confinamento. Diferen-
te do modelo anterior implementado a partir da lepra com
base religiosa, delineada por mecanismos de expulsão.
Este modelo oriundo da peste calca-se em uma
interceptação do corpo pelo tríptico, lei, contenção da
transgressão e castigo decodificado sob a forma de pre-
venção, cujos desdobramentos têm por meta a defesa da
sociedade.
Trata-se neste caso do expurgo intra-muros, não mais
como exclusão e sim como agrupamento interior, envol-
vendo uma análise minuciosa da cidade, caracterizada
pelo registro permanente. Situa-se neste ponto preciso a
emergência do conceito de segurança frente ao conceito
de periculosidade. Deflagra-se o grande tribunal
inventariador de desvios, tudo o que for considerado pes-
tilento, perigoso ganha estatuto de anormal.
A dissonância polivalente introduzida por Antonin
Artaud:
“Numa vida [a de Heliogabalo] cuja cronologia é im-
possível e onde os historiadores, que lhe assinalam toda
uma série de crueldades não datadas, vêem um mons-
tro, vejo eu, uma natureza de uma plasticidade prodigio-

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verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste

sa, que sente a anarquia das coisas e se rebela contra as


coisas” (Artaud, 1991: 100).
Diante da dissonância trazida por Artaud é possível
apresentar outras a partir da perspectiva abolicionista
penal.
Louk Hulsman destaca a atenção que o abolicionismo
deve dedicar à própria linguagem, quando traça estraté-
gias fora da lógica penal. Isto implica contestar a nature-
za ontológica do crime — que, segundo Hulsman, é o pres-
suposto básico para a legitimidade da política criminal e
do sistema penal —, levando a discussão para um campo
distinto, no qual importa formular respostas para o que
passa a ser designado por ele de situação-problema, sen-
do que esta permite assumir uma postura de exterio-
ridade que tece a perspectiva abolicionista.
A órbita de gravidade do sistema penal e sua ruptura
por Louk Hulsman:
“Do mesmo modo que foi preciso vencer a força da gra-
vidade para explorar o mundo exterior à Terra, é preciso
sair da lógica do sistema penal para poder conceber uma
sociedade em que este tenha desaparecido. Os conceitos
e a linguagem do sistema penal nos retém em seu terri-
tório o que faz ser necessário um esforço mental bastan-
te considerável para conseguir desfazer-se deste campo
de gravitação. Queira-se ou não, quando se fala de ‘cri-
me’ ou de ‘delito’ surge imediatamente uma imagem: a
de um sujeito culpado. Se, pelo contrário, utiliza-se o ter-
mo ‘evento’, a expressão ‘situação problema’ ou qualquer
outra de significação neutra, então se abre um espaço
no qual podem coexistir interpretações diversificadas. Se
substituímos os termos ‘delinqüente’ e ‘vítima’ pela ex-
pressão ‘pessoas implicadas em um problema’, evitamos
que se imputem mentalmente a estas pessoas etiquetas
pré-fabricadas (...) e as convertam ipso facto em adversá-

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6
2004

rios. Deste modo se abre um âmbito no qual se podem


encontrar respostas muito distintas daquelas do modelo
punitivo. Apenas quando se sai da dialética penal se pode
romper com o ciclo ‘delinqüência-prisão-reincidência-
prisão’ que se apresenta como invencível na lógica pe-
nal”12.
Este detalhe sutil que Hulsman aponta e problematiza
em torno da linguagem se mostra como um elemento de
intensa potência no abolicionismo, pois possibilita o in-
vestimento em um combate que estabelece ressonânci-
as com a prática genealógica de estancamento das pala-
vras como exercício de mapeamento de uma determina-
da lógica e sua conseqüente demolição, se a escolha for
realmente trafegar a partir de outros referenciais dis-
tintos daqueles arrumados e dispostos na sintaxe da su-
jeição.
A armadilha da gravidade do sistema penal por Louk
Hulsman:
“Sem dúvida isto se explica pela própria gênese do sis-
tema penal, que foi idealizado em uma época de transi-
ção entre a sociedade religiosa e a sociedade civil e que
segue sendo devedor do modelo escolástico, por isso mes-
mo aparece também impregnado da cosmologia medie-
val. Uma verdade definida de uma vez por todas e impos-
ta verticalmente, juízes encarregados de distribuir uma
justiça tão absoluta quanto serena, um determinado so-
frimento imposto como réplica aos atos considerados maus
que há de ‘purificar’, uma filosofia maniqueísta que divi-
de os homens entre bons e maus, em inocentes e culpa-
dos, tal como tem sido sempre e é, todavia hoje a lógica
do sistema penal vigente em nossas sociedades, que não
é senão a lógica do Juízo Final na qual o Deus onipoten-
te, onisciente e justiceiro dos escolásticos foi substituído
pelo Código Penal e o tribunal de cassação”13.

74
verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste

A proposta de Hulsman não é um mero jogo de retóri-


ca. Evidencia a trama da sintaxe que faz parte da grande
armadilha tecida pelo discurso da reforma, que ao tran-
sitar perpetuamente no interior da lógica do sistema pe-
nal, perpetua-se através do eterno rearranjo de seus ele-
mentos, cultivando a infindável troca de sinais entre a
providência divina e a providência da razão.

Resposta-percurso, a crueldade abolicionista, o


abolicionismo também é a peste
A armadilha da gravidade da justiça e a crueldade
abolicionista por Edson Passetti:
“O homem é finito e inexiste a grandeza na suposta
infinitude iluminista. Ele ficou refém da administração,
o procedimento que tomou o lugar de deus, de um deus
que ao ser morto foi transformado em um fato religioso.
As respostas trazidas pela filosofia e pela ciência foram
novas, mas as perguntas permaneceram teológicas. Agora
quem ordena a ordem é um procedimento sigiloso, buro-
crático e jesuítico. Deus teve de ceder lugar à onipotên-
cia da ciência. Trocamos de providencialismo e foram
instituídos dois universais rivalizando para ser a única
centralidade dos seres vivos, quando são o duplo da mes-
ma unidade. A ciência e a religião responderam que so-
mos iguais na cova, aumentando os vermes dos cemité-
rios, e nos fazem crer iguais no paraíso celestial ou na
utopia terrena. Querem nos legar um lugar seguro, uni-
ficando procedimentos (...) O abolicionismo é uma unida-
de da série liberdade que não encontra o absoluto, mas
se dirige ao infinito com conciliações. Ele não pode ser
encontrado em todos os lugares, nem provém de todos os
lugares; ele promove acontecimentos”14.
Acontecimentos cruéis. A peste-acontecimento. Não
há modelos, anteparos, tribunais, redes de segurança.

75
6
2004

As intensidades abolicionistas desafinam, reverberam


tons cruéis.
Resposta-percurso em Heliogabalo por Antonin Artaud:
“E a anarquia levada ao ponto em que Heliogabalo a
leva, é poesia realizada. (...) A poesia é multiplicidade tri-
turada e incendiada. E a poesia que estabelece a ordem,
suscita primeiro a desordem, a desordem dos aspectos
incendiados; provoca o choque dos aspectos que leva a
um ponto único: fogo, gesto, sangue, grito. Trazer a poe-
sia e a ordem a um mundo cuja simples existência já é
um desafio à ordem, é levar à guerra e à permanência da
guerra, é fundar um estado de crueldade incidida, é sus-
citar uma anarquia sem nome, a anarquia das coisas e
dos aspectos que acordam antes de soçobrarem de novo e
se fundirem na unidade. mas aquele que acorda esta
anarquia perigosa é sempre sua primeira vítima”15.
O abolicionismo exige estar disponível para ele. Ele
provém de cada pessoa. Incide, antes de mais nada, no si
que não cabe em si. Diferente da posição do devoto que
se coloca à disposição de uma receita, de um código, de
uma bula, seja ela qual for, para virar o Outro ou o Mes-
mo. A resposta-percurso abolicionista se tece em sua
própria superfície. Não há começo, meio e fim.
A noção de resposta-percurso é deliberadamente
inacabada em duas dimensões, já que por um lado não é
começo nem fim, mas um instrumento capaz de cons-
truir outras respostas, e por outro lado não traz em si
uma saída definitiva passível de ser universalizada como
modelo exemplar. A resposta-percurso propicia a demoli-
ção da órbita da gravidade da prática de modelo de diver-
sas ordens. Não interessa mais escutar, escutar e repe-
tir. Interessam gritos precisos lá onde eles vibram, gri-
tos imprecisos em silêncios inundantes, cores e
movimentos.

76
verve
Intensidades abolicionistas e a cruel exposição da peste

Para o abolicionismo os sins neste tipo de resposta


compõem com experiências libertárias que arruínam
teorias e centralidades e, ao passar ao largo do ideal de
felicidade, proporcionam experiências estéticas capazes
de valorizar vidas e obras, não no que lhes falta, mas no
que lhes excede e escapa.
Interessa afirmar o fim do encarceramento de jovens
no Brasil. Para um abolicionista cruel, intenso e em pes-
te este é um incômodo inominável.
Só interessa viver o que precisa ser vivido. Não há
nada para ser salvo. O elegante se enfeita e passeia so-
bre os ossários.
No mais, só há o vazio. O cu do vazio ecoando os gestos
de Heliogabalo, este jovem anarquista que acorda a feri-
da e a faz fissura, interessado em ouvir e dizer: Contem-
porizar, submeter-se é consagrar a derrota sem defender a
vida.

Notas
1
A. Artaud. O teatro e seu duplo. São Paulo, Max Limonad, 1984, pp. 30-31.
2
A este respeito ver M. Foucault. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola,
1996.
3
Esta concepção de história é tratada com vigor por M. Foucault em “Nietzsche,
a genealogia e a história” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
4
A. Artaud. Heliogabalo, ou o anarquista coroado. Lisboa, Assírio e Alvim, 1991, p.
97.
5
Idem, pp.129-131.
6
A. Artaud. Eu, Antonin Artaud. Lisboa, Hiena, 1988.
7
M. Foucault. “Ariadne enforcou-se” in Arqueologia das ciências e história dos
sistemas de pensamentos, Col. Ditos e escritos. vol. II. Rio de Janeiro, Forense,
2000, pp. 143-144.
8
A. Artaud. op.cit, 1984, pp. 34-35.

77
6
2004

9
Idem, pp. 35-36.
10
Op. cit., 1991, pp.121-122.
11
M. Foucault. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 176.
12
L. Hulsman & J.B. de Celis “Argumentos para uma sociedad sin penas” in C.
Ferrer (org.) El lenguage libertário. Montevideo, Nordan Comunidad, 1993, pp.
189-190, grifos do autor.
13
Idem, p. 187.
14
E. Passetti. “Kafka e a sociedade punitiva” in E. Passetti et al. (orgs.) Conversa-
ções abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo,
IBCCrim, PEPG-Ciências Sociais PUC-SP, 1997, pp. 177-185.
15
A. Artaud, op. cit., 1991, p. 100.

RESUMO

A crueldade artaudiana interessa ao abolicionismo penal, cuja uma


das exigências é estar atento à linguagem e seus gestos. As atitu-
des abolicionistas são heterogêneas e promovem misturas; tal qual
a peste, suas diferentes intensidades arruínam a ordem da políti-
ca e da moral.

Palavras-chave: abolicionismo penal, crueldade, peste.

ABSTRACT

The Artaudian cruelty is subject of interest to penal abolitionism,


which one of its demands is to be alert to language and its
gestures. Abolitionist attitudes are heterogeneous and promote
mixtures; alike the pest, its diverse intensities destroy the order
of politics and moral.

Keywords: penal abolitionism, cruelty, pest.

78
verve
A beleza terrível

a beleza terrível

contador borges*

A imagem é um enigma, diz Maurice Blanchot. Ela


treme, oscila, mas de algum modo nos serve de acesso à
“realidade do irreal”, pois captura nosso olhar em sua tela
e o faz errar sobre ela, o olhar e sua exigência: ver, mas
não simplesmente ver; olhar, mas na medida extrema
em que, olhando, ele se perde, e, por assim dizer, se des-
realiza.
Se a imagem é um enigma, o que dizer da beleza de
um rosto, de um corpo? Ela certamente não é natural:
está, há muito, afastada da natureza. Ou talvez sempre
esteve, porque sua percepção já implica uma certa sen-
sibilidade codificada, uma tentação simbólica. E se não é

* Poeta, ensaísta e tradutor. Publicou os livros de poesia Angelolatria (1997) e


O reino da pele (2003); traduziu Aurélia, de Gérard de Nerval, (1991), O nu
perdido e outros poemas, de René Char (1995), e A filosofia na alcova, de Marquês
de Sade (1999), entre outros, todos pela editora Iluminuras. Tem colaborado
com artigos, poemas e traduções em várias revistas e jornais no Brasil e no
exterior.
verve, 6: 81-100, 2004

81
6
2004

natural, até que ponto seria real? Sua “realidade”, no


fundo, não se sustenta, já que não se pode tocá-la, quan-
do muito apreendê-la. O que é tocar um rosto, um corpo,
a nudez que deles emana, essa luminosidade oscilante
que ainda persiste apesar de toda banalização, de toda
fabricação do nu como produto de consumo, esse nu reta-
lhado em pedaços ou fetiches cuja topografia desoladora
lembra a figura mapeada de um boi na porta das chur-
rascarias? Não se trata, afinal, do mesmo gesto de inci-
tar o apetite à devoração compulsiva? Mas este “nu per-
dido”, exilado de si mesmo, certamente não possui a nu-
dez essencial que aqui se visa, e cujo sentido milagrosa-
mente resguarda uma relação profunda com o erotismo,
com o sagrado.
O que vem a ser, enfim, a beleza de um corpo quando
se admite atingir com os dedos tão somente sua carne,
sua materialidade, se o que lhe confere sentido perma-
nece intocável? Não seria um pouco isso o que entende-
mos por “beleza”? A despeito de todo aparato conceitual
erguido à sua volta, seu significado, este objeto que foge,
a beleza, talvez seja, por isso mesmo, a mais enigmática
das imagens.
Por imagem, a imago, entenda-se o simulacro, todo
prolongamento de algo, seu duplo, e que de algum modo o
imita, ou seja: representação, retrato, fantasma, aparên-
cia, reflexo. Mas, principalmente, em sua acepção pri-
meira: imagem, forma, aspecto. A imagem de um rosto,
de certo modo, está colada nele, é o véu de sua pele, a
ponto de o rememorarmos pela imaginação caprichosa.
Quantos rostos jamais esquecemos? Quantos não cinti-
lam no panteão de nossas imagens recônditas?
Um rosto, para nós, talvez seja aquilo de que se esque-
ceu a nudez. O rosto, a parte mais emblemática do huma-
no, parece jamais desapegar-se de sua própria imagem.

82
verve
A beleza terrível

Um rosto raramente é banal porque nos parece sempre


carregado de sentido. É a esfera escópica por onde comu-
nicamos com o outro nossas impressões recíprocas, nos-
sos pertences simbólicos, nossos desejos e fantasmas.
Cada rosto, nesse sentido, encerra um segredo e com-
preende, não apenas uma única imagem, mas várias,
pois diversos são os olhares que recaem sobre ele. A sub-
jetividade, o desejo, determinam por sua vez o modo pelo
qual o olhar fabrica as imagens de um rosto. Estará de
fato a beleza, como reza o ditado, “nos olhos de quem a
vê”?
O que a modernidade parece ter ressaltado sobre a
beleza em cores fortes na literatura e nas artes, é que o
enigma de que falamos se deve fundamentalmente ao
seu caráter ambivalente. Autores como Poe e Baudelaire
ressaltam um aspecto ligado à beleza, tão essencial quan-
to ela, e que aos poucos vem à tona do fundo de seu se-
gredo como um devir ao mesmo tempo maligno e imperi-
oso que a corrompe tenazmente e a excede, abrindo seu
sentido para o horror e para a morte.
***
Durante as filmagens de Sauve qui peut (la vie), Jean-
Luc Godard comenta esta frase de Rilke com a atriz
Isabelle Huppert: “a beleza é o começo do terror que so-
mos capazes de suportar”, dizendo-lhe em seguida que
“sua beleza tem algo a ver com o seu medo”. A atriz con-
fessa que nem sempre se sente bela e que se angustia
quando a filmam de seu lado menos atraente, mas que
também se assusta quando se vê muito bonita. O cine-
asta então responde: “Ah, você sempre sente medo...”1
No extremo, por que haveria esta sensação de terror di-
ante da beleza? E qual seria o ponto, a fronteira além da
qual a beleza tornar-se-ia insuportável, perdendo com isso
seu sentido?

83
6
2004

Que sentido é este que se pode apreender do que é


belo, senão o de que ele está ligado inexoravelmente a
um destino maligno? Sem dúvida, a idéia de belo aí im-
plícita e que repercute modernamente, nada tem a ver
com o sentido platônico ou metafísico em que a beleza é
uma idéia ligada ao Bem, e que, entre todas as substân-
cias perfeitas, reserva-se o privilégio de ser a mais evi-
dente e a mais amável. Com efeito, em Plotino, o “Bem”
ou as essências ideais, unificadas em Deus, imantam
todas as coisas no sentido da beleza.
Muito diversa é certa significação da beleza que conta-
mina o espaço artístico e literário da modernidade, tão
bem definida nessa fórmula de Baudelaire: “o belo no hor-
rível”, e que repercute no poema de Rilke. Assim, a bele-
za, desde a antigüidade (e mesmo constituindo-se em sen-
tido corrente entre os modernos), entendida como algo
“agradável à vista”, transforma-se num monstro ambiva-
lente, uma espécie de Janus de duas faces, a divindade
romana que presidia a passagem do tempo e das estações,
simbolizando o começo e o fim. Na literatura e nas artes
esta ambivalência parece justamente assinalar o trânsi-
to entre estes dois aspectos, o terror e a beleza, abrindo-os
a uma significação maior e mais profunda em que jogam
os elementos sombrios do erotismo e da morte.
Em um texto célebre, “O pintor da vida moderna”,
Baudelaire apresenta uma teoria do belo contrariando a
visão única e absoluta da beleza. Para o poeta, a beleza
produz uma impressão única mas constitui-se essenci-
almente de um duplo aspecto: o belo é feito de um ele-
mento eterno, invariável, e de um elemento relativo, cir-
cunstancial, conforme as manifestações da própria épo-
ca no que possam significar a moda, a moral, a paixão2. E
assim, retomando as duas faces de Janus, pacificação
para dentro e a ameaça para fora.

84
verve
A beleza terrível

Tal dualidade na arte, acrescenta o poeta, é uma con-


seqüência fatal da dualidade do homem3. Haverá, por-
tanto, um aspecto ideal e permanente da beleza e outro
sujeito às intempéries do tempo, bem como agente
disseminador de seus efeitos. Se o significado do belo
depende do equilíbrio entre ambos, é possível identificar
na produção literária e artística moderna, em Baudelaire
sobretudo, certa preponderância do último, entendida
nesta percepção de que o elemento relativo introduz um
movimento incontrolável, que parece assim antecipado
pela sensação do terror. O que este tipo de arte parece
elucidar é justamente o trânsito entre um elemento e o
outro, criando um efeito de dissonância no sentido da
beleza que acaba revelando, não somente a temporalidade
e seus signos, mas principalmente seus efeitos de
corrupção e degenerescência. Daí o sentido de “beleza
terrível”, que comunica algo que a potencializa, mas tam-
bém que a ultrapassa. Ela é, pois, o signo de um excesso,
sendo que neste excesso reside a força de sua imagem e
o incômodo de seu enigma. Não é à toa que em Bataille,
a beleza é um objeto que invariavelmente pede para ser
profanado.
A máscara ideal da beleza se mostra com isso tênue e
diáfana, falsamente perene, retórica e moralizante, pois
rapidamente deixa transparecer o movimento irrefreável
da corrupção e da morte. O elemento eterno da beleza se
revela portanto ilusório, e o elemento circunstancial passa
a ser propriamente o que fundamenta o sentido da bele-
za moderna.
Deixemos afluir outro olhar sobre a teoria
baudelairiana do belo, refletido no Espelho da tauroma-
quia, de Michel Leiris. No duplo sentido da beleza
baudelairiana, Leiris aponta a erupção de uma ferida ou
fenda (fêlure). Esta fenda, tanto em Leiris quanto em
Bataille, é aberta pelo erotismo.

85
6
2004

Reencontramos aqui o viés pelo qual o erotismo e as


representações da sexualidade se manifestam na histó-
ria da literatura e da arte. Em Bataille, a fenda, em prin-
cípio, é desordem, desequilíbrio, mas também permite
um acesso a uma ordem soberana. Não é esse o ponto
máximo que a beleza atinge? Quando sua evidência é
tamanha e sua afirmação tão vigorosa que ela se vê
ameaçada? Tal movimento, por entropia da imagem e
sobretudo pela intencionalidade do olhar moderno, faz
proliferar o sentido da beleza ligada ao terror, o qual, para
além de toda ameaça, pode deformá-la em horror e mor-
te. Mas é a modernidade, sobretudo na leitura de Leiris,
que interfere no equilíbrio da beleza e acelera as forças
degenerativas do elemento temporal. Este é relativo, tran-
sitório, exatamente porque introduz na beleza o fator
corrupção. Por outro lado, esse processo acionado pelo olhar
moderno é o que impede que se caia numa “beleza abs-
trata e indefinível” e se perpetue indefinidamente a si-
tuação da “mulher antes de seu primeiro pecado”, nas
palavras de Leiris4. Ou seja, é o erotismo (e no extremo,
a libertinagem) que corrompe a beleza ao mesmo tempo
em que a transgride e a completa. À beleza é inevitável
tanto a degradação quanto o pecado, e o horror mais abje-
to. Belo, nesse sentido, é tudo aquilo que sugere degra-
dação. Nesta concepção de beleza, modernidade e erotis-
mo são sinônimos de corrupção e degenerescência. O
porquê dessa associação talvez se deva ao fato de que,
segundo Foucault, nossa sexualidade, depois de Sade e
da morte de Deus, foi absorvida no universo da lingua-
gem5. Isso fez com que se introduzissem com ela outros
elementos como a abjeção e os poderes do horror e da
violência. Entenda-se aqui, portanto, corrupção e
degenerescência enquanto elementos conjugados num
movimento que faz da beleza, de seu sentido, uma expe-
riência de transgressão. Em outras palavras: é a consci-
ência da transgressão e da violência, do terror e da ação

86
verve
A beleza terrível

devastadora do tempo, que parece ter motivado o olhar


moderno a produzir obras em que o elemento terrível se
sobrepõe ao da estabilidade ideal.
Se a corrupção é inevitável, exigida até pela erupção
do novo, do desconhecido (“no fundo do desconhecido en-
contrar o novo”, como diz o poema de Baudelaire), o uso
do artifício é necessário e se torna um fator determinante
para que se restabeleça o equilíbrio da beleza e seu en-
canto, mas cujo sentido parece agora assumir certo
artificialismo, certa precariedade, apresentando a
dualidade como “questão de estilo”. A beleza com isso se
torna “cínica” e ciosa de seu cinismo estetizado. Ela é
uma máscara que o portador se orgulha em ostentar, por-
que embora represente o elemento ideal e estático do
belo, se sujeita ao gosto do tempo, suas frivolidades, seus
“maneirismos”, apelos típicos da expressão de uma épo-
ca, sintomas da inflexão de Cronos sobre os homens.
Eis o sentido da maquiagem em Baudelaire. A
maquiagem aproxima a mulher da estátua e, conseqüen-
temente, de um ser divino e superior 6. O que é a
maquiagem e todo o esforço da cosmética senão uma ten-
tativa de simulação? Seu mister é disfarçar o trânsito da
beleza à degenerescência. A maquiagem é um artifício
pelo qual a beleza se conserva idêntica a si mesma. A
alteridade é um valor temerário ao elemento estático da
beleza. Toda indústria do cosmético age nesse sentido,
como se a corrupção pudesse ser detida, evitada. Embora
atue sob o signo do momento, a cosmética visa a manu-
tenção do elemento eterno e abstrato da beleza. Nesse
aspecto, a maquiagem é irreal. Em Baudelaire, no en-
tanto, ela é muito mais que um disfarce da degeneres-
cência da vida, é um modo de o artista travestir-se para
ironizar a morte. E assim fazendo, quem sabe, eternizar-
se como um emblema radiante no fundo dos corações
decadentes.

87
6
2004

Entretanto, por mais que o elemento ideal e invariá-


vel da beleza produza seu efeito nos corpos belos e jovens,
o elemento circunstancial encarrega-se perversamente
de deteriorar este corpo e revesti-lo com seu manto de
ironia dolorosa, mas que ao mesmo tempo é uma espé-
cie de gozo. Assim sendo, nenhuma beleza é possível sem
a intervenção de um elemento acidental ou de infelici-
dade, já que a infelicidade é gerada pela reação do sujei-
to diante dessa contingência: um sujeito marcado pelo
vazio ou fenda aberta pelo erotismo. De modo algum o
olhar moderno, sobretudo no século XIX, deixará de levar
em conta o fator temporal como influente em todas as
coisas. Há que se retirar “o belo de sua estagnação glaci-
al”, na expressão de Leiris. Eis porque, para Baudelaire,
a infelicidade (malheur) talvez seja uma condição funda-
mental para a beleza.
Como se vê, Baudelaire elogia o artifício, faz apologia
da roupa, dos acessórios, dos cosméticos, da moda, por-
que são signos de transitoriedade. Os fenômenos transi-
tórios, ao contrário do elemento ideal e estático da bele-
za, revelam-se extáticos, exuberantes, embora decaden-
tes e indicadores de degenerescência. A beleza com isso
se torna um signo saturado, corroído em seu âmago, pro-
duzindo o infortúnio. A infelicidade é essa consciência
do trágico na arte, consciência de que a beleza está con-
denada ao horror e à morte, assim como o sujeito à mais
completa indiferença. Daí o efeito de “dissonância” do
caráter dúbio da beleza, ao mesmo tempo “ardente e tris-
te”, voluptuosa e amarga.
A gênese dessa idéia baudelairiana talvez esteja em
Edgar Allan Poe. Num ensaio clássico, A filosofia da com-
posição, o autor norte-americano declara ser a beleza “sua
província”, isto é, seu campo de ação e conhecimento.
Para Poe, a tonalidade (tone) essencial da beleza é a me-
lancolia, a tristeza (sadness). A melancolia, portanto, “é o

88
verve
A beleza terrível

mais legítimo dos tons poéticos”7. O que determina aqui


o sentido exterior da beleza é a expressão, ou melhor: a
natureza melancólica do sujeito poético, angustiado com
o horror e a morte. O fundamento da beleza se mostra
assim vinculado a esta subjetividade. É o poeta e/ou ar-
tista que, refratários ao aspecto ideal, imutável da bele-
za, imprimem na sua carne o valor degenerante do tran-
sitório. Em conseqüência, a queda do indivíduo no mal é
tão inevitável quando a da “casa de Usher”, no célebre
relato do autor norte-americano.
Em Baudelaire, ainda se faz sentir o poder corrosivo
do mal em comprometimento com a moralidade cristã.
Seus escritos confirmam-no: o pecado “ocupa nossos es-
píritos e trabalha nossos corpos”, no poema introdutório
das Flores do mal8 Tal exigência irá determinar sua re-
lação com a beleza em cujos “objetos repugnantes en-
contramos atrativos”9. O lugar da beleza se revela, por-
tanto, o mesmo do horror. No poema “Le lecteur”, o pior
“monstro”, no entanto, não são os horrores bestiais e
hediondos, mas aquele estado de alma associado à me-
lancolia, ao tédio (ennui), conhecido do leitor, este “hipó-
crita” reflexo do poeta, e por isso mesmo seu “semelhan-
te e irmão” na dor, na melancolia e na decadência da
vida. Eis o verdadeiro terror para o sentimento do poeta
e seus contemporâneos cujo espírito traduz em seus po-
emas, na apreensão de que o sujeito está em crise e
em vias de desaparecimento. Na aparência, para esta
sensibilidade, a ameaça de algo insuportável talvez seja
pior do que o insuportável em si mesmo, como o horror
e a morte, porque neles o sujeito já está perdido para
sempre. O horror e a aversão que ele inspira, por sua
vez, são elementos valorizados nessa estética justamen-
te porque, tematizados, permitem criar o vazio neces-
sário para o culto da melancolia, do tédio e da infelicida-
de. Assim, em “Hino à beleza”, esta surge do abismo e

89
6
2004

tem um olhar “infernal e divino” que derrama “confusa-


mente o benefício e o crime”10. Na seqüência, a “beleza”
do poema “caminha sobre os mortos”, beleza de cujas
jóias o “horror não é a menos encantadora”11. Toda a
ação da beleza in persona, se faz no poema sob o signo da
corrupção e da morte. Diante dela, enfim, “o amoroso
ofegante” (....) “tem o ar de um moribundo acariciando
sua tumba”. O século XIX, afinal, foi aquele que
redescobriu os “monstros”12.
Mas por que razão esta literatura se apraz tanto em
conspurcar a beleza associando-a ao crime, misturando-a
com a realidade abjeta da morte? Isso tanto ocorre que, no
limite, é o horror e a violência do erotismo que lhe confe-
rem sentido. Quem ao ler os poemas de Baudelaire, ou de
Augusto dos Anjos, poderia pensar diferente? São estes os
elementos valorizados pelo texto, já que a beleza, “mons-
tro enorme, aterrorizante, ingênuo, abre “a porta / de um
infinito que eu amo e que jamais conheci”13. Caberia en-
tão nos perguntar qual a natureza desse infinito? Seria a
mesma que, segundo Bataille, nos comunica a nudez, e
nos angustia com a experiência do erotismo e da morte?
A propósito, é freqüente em Baudelaire a ligação do
erotismo com a morte. No poema “Uma carcaça”, este
despojo encontrado pelo sujeito poético, “num leito se-
meado de seixos”, é visto em analogia a uma figura “de
pernas para o ar, como uma mulher lúbrica”14. Tal acha-
do poético poderia servir de ilustração para uma frase
lapidar de Sade: “Não há melhor meio de se familiarizar
com a morte do que o de ligá-la a uma idéia libertina”.
Assim, neste sentido de beleza expresso pela literatu-
ra e pela arte, o que conta, não é propriamente a estabi-
lidade do equilíbrio entre elementos antagônicos, o que
poderia apontar para uma estagnação da beleza em fun-
ção de seu aspecto ideal, mas, ao contrário, o movimen-

90
verve
A beleza terrível

to terrível do devir na medida em que desencadeia e pro-


move o fator de corrupção e o sentido da morte, trazendo
à tona o conteúdo do horror e da abjeção recalcados pela
cultura ocidental.
“Beleza é exuberância”, diz William Blake. A beleza
está do lado do luxo, do excesso; é da ordem dos gastos
inúteis como o riso, as lágrimas, o erotismo e a poesia.
Em Bataille, o proibido é o domínio do trabalho, da pro-
dução e do consumo. Mas os homens não se limitam a
produzir. Eles são dominados por um princípio de perda
que os leva ao excesso, no luxo, nas guerras, nos espetá-
culos, nas artes, na atividade sexual perversa. Tal ener-
gia constitui-se na “parte maldita”. A transgressão é o
que libera esta reserva, este excedente. Assim também
a morte, que para Bataille segue uma outra economia,
mais além da economia, pois é excessiva e inesgotável.
A morte excede sempre. Nesse aspecto, se pode dizer que
existe um elo estreito entre a beleza e a morte.
Se no dizer de Baudelaire, “o belo é sempre o efeito de
um cálculo difícil e terrível”, o horror é quando este cál-
culo deixou de fazer sentido ou foi além de seus limites.
No extremo, o horror e a beleza são dois lados opostos de
um mesmo movimento excessivo, para além de todo li-
mite. Em sendo a beleza o objeto irresistível de uma ima-
gem excessiva, parte de seu enigma talvez se deva ao
fato de que ela parece conter em si mesma algo que por
sua própria natureza não pode ser contido: a fluência pura
do excesso. Daí o medo, o terror que ela evoca, ainda que
suportável num primeiro momento.
Falar da beleza de um corpo é falar de erotismo. E o
erotismo inevitavelmente representa para o sujeito uma
experiência de limites, uma experiência de morte. O ero-
tismo é o movimento que leva o sujeito a cindir-se, a
perder-se. Por isso, o erotismo corrompe a beleza. Ele faz

91
6
2004

aflorar o horror pela fenda aberta no sujeito em gesto radi-


cal e violento. Segundo uma intuição de Bataille, o erotis-
mo é a saída infame do horror15. Em se tratando de erotis-
mo, o aspecto do horror já está implícito no belo. Seria o
horror também uma forma deteriorada do belo, a beleza
levada ao extremo? Assim, a beleza de um corpo carrega
em si mesma o germe de sua transgressão ou profanação.
O gesto transgressor é o devir da beleza.
Quanto maior é a beleza, afirma Bataille, mais vigoro-
sa é a experiência da profanação. Isto porque um excesso
só responde a outro, para fundir-se nele e realizar este
imperativo do homem: exceder-se por uma força cega que
se potencializa ainda mais quando ele transgride.
O sentido da beleza, para Bataille, nasce de uma
ambivalência, já que a beleza é um objeto que se afasta da
animalidade, do aspecto sagrado oculto sob as vestes e que,
no fundo, a própria beleza denuncia. A beleza exige profa-
nação, para que este movimento, excedendo os limites,
produza um sentido último: a violação do sagrado. E profa-
nar a beleza, sujá-la, é tocar a região sagrada dos genitais
simbolicamente carregada de morte. O erotismo é uma
tensão entre a beleza e a morte. Seu ponto máximo é a
experiência da transgressão, na qual o sujeito se desloca
de um pólo a outro num movimento de fusão e continuida-
de. Na prancha de Manuel Deutsche, “A morte em franga-
lhos abraça uma jovem”, temos uma ilustração precisa
dessa experiência transgressora. Não é um mero esque-
leto que aí representa a morte, mas um corpo em adianta-
do processo decomposição. Enquanto beija a jovem na boca,
ele toca em seu sexo. Aqui se encontram todos os ele-
mentos da profanação da beleza e sua passagem ao horror
e à morte, assim como também jogam na imagem o terror
insuportável e o desejo desnudado do sujeito. Nada inspira
tanto horror quanto um cadáver. Diante de sua presença,
diz Bataille, ninguém fica indiferente. Mas se os ossos de

92
verve
A beleza terrível

um cadáver são suportáveis e assimiláveis culturalmen-


te, dado sua limpeza, seu aspecto “solene”, a podridão, o
corpo em decomposição, são insuportáveis. A visão dos ossos
angustia, mas tais objetos estão longe do excesso de viru-
lência ativa da podridão16. Como se sabe, o mais execrável,
por vezes, é o mais desejável. Eis o sentido do horror.
Uma incorporação desses elementos pode ser vista na
poesia de Artaud, onde, de acordo com Julia Kristeva, um
“eu” é invadido pelo cadáver. Com efeito, é o cadáver hu-
mano que permite a máxima concentração de abjeção e
fascinação17.
O movimento da transgressão do erotismo e da morte é
bem evidenciado por Georges Bataille em seus poemas e
relatos repletos de angústia, apontando sempre para o va-
zio absoluto. Neles sobejam imagens excessivas onde es-
tão presentes a dor, o êxtase, a morte e outros elementos
da experiência erótica. Estes textos sombrios guardam algo
de trágico, de um tempo obscuro, condenado ao abismo,
sem qualquer esperança.
“Eu te encontro na estrela
eu te encontro na morte
és gelo em minha boca
tens o odor de uma morta

Teus seios se abrem como a cova


e riem para mim do além
tuas longas coxas deliram
teu ventre é nu como um ralo

és bela como o medo


és louca como uma morta” 18

93
6
2004

Neste poema lúbrico da experiência erótica, no qual a


beleza só existe em comparação com a morte, o sublime
também se faz presente. Nele, ao mesmo tempo em que
a morte mimetiza os elementos do texto, a linguagem
poética erotiza a morte. O erotismo com isso “enlouque-
ce” a linguagem, esvazia o sujeito e suspende a reflexão.
A imagem “teu ventre é nu como um ralo” mostra bem a
função da nudez em Bataille. A nudez é esse objeto
inapreensível que ao mesmo tempo nos abre para a ex-
periência do erotismo e nos comunica com a morte. A
nudez pede fusão, continuidade, assim como a poesia e a
morte.
A transgressão do horror recusa a neutralização da
morte e reabre o vazio que o discurso da proibição tenta
encobrir. Trata-se de reabrir a ferida, a fenda, retornar à
linha de falha que permite e exige a comunicação19. Daí
esta frase de Bataille: “Posso dizer que a repugnância,
que o horror é o princípio de meu desejo (...):”20 E tal de-
sejo é o que “abre em mim um vazio não menos profundo
que a morte”21.
O horror é o que perturba e ameaça a ordem da bele-
za. Ele a invade, como a morte invade a vida, infectando-
a, infestando-a. A sujeira é, assim, uma espécie de pre-
paração para a morte. Ela nega o sujeito, e segundo Julia
Kristeva, nos coloca nos limites de nossa condição de
humanos”22.
Em seu artigo “a linguagem das flores”, Bataille co-
menta que a verdade destes seres vegetais é ocultada
por aquilo que eles exibem de mais superficial, como o
perfume e as cores das pétalas, resultando disso toda
simbologia ligada ao amor e à vida. No entanto, “a flor
trai rapidamente as exigências humanas, quando sua
maravilhosa corola apodrece e a flor se revela frágil e
fétida como o corpo humano”23.

94
verve
A beleza terrível

Por analogia com as flores, a pele é uma fronteira que


separa o exterior harmonioso e belo do interior repug-
nante, constituído de uma maçaroca de nervos, vísceras,
vasos linfáticos, órgãos, sangue, secreções, e outros com-
ponentes do organismo. O interior do corpo é tido como
horrível e repelente. Para Freud, a visão da carne interi-
or é uma visão de angústia, o inverso da forma humana,
a essência do disforme. O “abjeto é uma fronteira”, diz
Julia Kristeva24; o abjeto está por baixo da superfície da
pele. A pele nos defende, nos resguarda do horror dessa
parte que não interessa ser vista. A nós, basta que funci-
one. Revirá-la significa ameaçar o corpo de alguma for-
ma. Por sinal, ele só se expõe desse modo em casos de
cirurgia, acidente ou de morte na mesa de autópsia. Pa-
radoxalmente, no entanto, é dentro do útero materno que
a vida começa. O rebento vem do horror das entranhas,
em meio a outros fluxos interinos como a urina, o
excremento, o sangue. Ele também é “expulso” do orga-
nismo à maneira destes líquidos e do sangue menstrual.
O filho, eliminado pelo organismo da mãe, vem do mes-
mo lugar imundo (e por isso mesmo sagrado) e é da mes-
ma natureza do sangue, e do esperma. O nosso horror
diante da sujeira e da abjeção, de acordo com Julia
Kristeva, revela no fundo o recalcamento de um desejo
ligado ao corpo materno. De modo que tocar a sujeira é o
mesmo que tocar este corpo proibido e sagrado.
Como vemos, o corpo, por dentro e por fora, está sem-
pre em constante relação com a sujeira e o horror. O
horror pleno é um dos devires da beleza.
“O belo é o que nos desespera”, diz Paul Válery. Este
momento é quando a beleza atinge provavelmente o má-
ximo de si. Quando ela se torna insuportável é porque já
deixou de ser beleza e se tornou outra coisa.
***

95
6
2004

Se a beleza é o começo do terror que podemos supor-


tar, o horror pleno, seu devir imediato, é insuportável;
ele é o limite onde nenhuma beleza é mais possível, a
não ser, é claro, como forma de arte. Isto, provavelmen-
te, porque a arte é o terreno próprio da transgressão. Em
tese, tudo nela é possível, os maiores horrores e aberra-
ções. A arte tudo incorpora, criando as condições formais
de sua materialização. Mas num território onde tudo é
possível, o poder transgressor tende a esvaziar-se, a per-
der a força na medida em que não encontra mais obstá-
culo, lei a ser transgredida. Neste aspecto, todas as fron-
teiras já foram tombadas pela arte. Suas vias de excesso
já foram por demais exploradas. O surrealismo, por sinal,
realizou uma dessas últimas operações abrindo-se ao
manancial do sonho, do inconsciente.
De modo geral, o século XX, segundo Foucault teria
descoberto e posto em evidência os “gastos que consu-
mam e consomem”, e assim forjado categorias “análogas
ao gasto, ao excesso, ao limite, à transgressão...”25 A lite-
ratura (Artaud, Céline, Bataille), a arte (Picasso, os
expressionistas), teriam se utilizado desses procedimen-
tos em sua estética. O século XX parece ter radicalizado
também essa tendência já assinalada pelos românticos
e por Baudelaire em especial, segundo a qual o horror é o
sentido imanente da beleza.
O “belo no horrível”. Desse gesto transgressor nascem
muitas obras da modernidade. Não se tratou, é claro, de
se opor simplesmente beleza e horror ou belo e feio como
duas faces antagônicas e excludentes do bem e do mal.
Em não havendo feiúra (laideur) nem mal, comenta
Bataille, a verdade da arte Moderna faz da ordem “espiri-
tual” um sentido primeiro. Esta arte não é nem demoní-
aca, nem algo que se oponha a isso, mas religiosa no
sentido que entendia Apollinaire: para além do bem e do

96
verve
A beleza terrível

mal, na ingenuidade onde se acha arruinada a oposição


do belo e do horrível26.
O sentido do belo na arte moderna reencontra, por-
tanto, o domínio religioso do sagrado, do sacrifício. Isso
explicaria o forte elo entre certa corrente da arte moder-
na com a arte e as religiões primitivas. Veja-se o impac-
to obtido com as máscaras africanas na obra de Picasso,
no início do século XX. Nesse ponto, já estamos num
mundo aberto pelo vazio deixado pela morte de Deus, pela
emergência da sexualidade, a qual, segundo Foucault nos
deixou nos limites do nosso pensamento27. Eis o mundo
retratado pela literatura e pela arte, onde a experiência
da violência excessiva das imagens, da transgressão e
da morte são a tônica, onde o erotismo e a dimensão sa-
grada arcaica encontram sua via de expressão e se inse-
rem na experiência moderna.
O horror, as deformações promovidas pelo expres-
sionismo representam a desenvoltura de um procedimen-
to que leva o aspecto circunstancial e impuro da beleza
às últimas consequências, se pensamos sempre no fator
desencadeante de corrupção e degenerescência que ele
introduz nas imagens. Esta arte traz à tona os conteúdos
recalcados da abjeção e do horror. É comum nas telas de
Kokoschka, por exemplo, a transfiguração da figura hu-
mana, rostos que parecem cobertos de pústulas. Lá fervi-
lham elementos que, à maneira de uma lepra, corrom-
pem e arruinam o sentido de um bem ideal e abstrato
ligado à beleza. Eis o procedimento mediante o qual a
arte engaja suas formas no dilaceramento do humano
no sentido do horror e da morte, muito explorado no sé-
culo XX, anunciando inclusive os horrores reais das duas
Grandes Guerras. No limite, a arte moderna exacerba as
formas do horror elevando-as à condição máxima de sua
estética porque elas provavelmente encarnaram o sen-
tido mais profundo de sua época, marcada como vimos,

97
6
2004

pelo vazio de Deus e pela emergência violenta da sexua-


lidade. As formas do horror erótico que de um modo ou de
outro evidenciam-se na arte ocidental desde o
maneirismo, pelo menos, passando depois pela valoriza-
ção do corpo interno explorado pelos anatomistas e barro-
cos do século XVII, na modernidade apoderam-se violen-
tamente da figura humana, para desfigurá-la a ponto de
tornar este corpo estranho a si mesmo. Mas esta estra-
nheza, que de alguma forma revela uma dimensão pro-
funda do humano, a arte traz à tona. É certo, porém, que
o horror e a violência mais crua, resistindo à represen-
tação da arte, acabando sendo neutralizados, estetizados.
Ao viabilizar o movimento de transgressão em solo neu-
tro, a arte ao mesmo tempo nos reaproxima da dimensão
profunda da abjeção, do horror e de outras formas de ero-
tismo, a arte diminui seu impacto sobre nós, suavizando
seu sentido essencial. É certo que a arte derruba frontei-
ras, mas também parece evidente que a dimensão pro-
funda e arcaica do homem, a despeito de tantos apelos,
não abandona completamente seu subsolo.
Se a beleza mostrou definitivamente sua outra face
com a experiência moderna, é porque se tornou insupor-
tável para o homem ignorá-la. Ele sentiu de perto o poder
dessa imagem e sua ameaça terrível. Talvez por isso
mesmo, a partir de então, tenha passado a olhar de fren-
te justamente aquilo que no fundo não queria ver.

Notas
1
J-L. Douin. Jean-Luc Godard. Paris, Rivages, 1989, p. 83.
2
C. Baudelaire. “Le peintre de la vie moderne” in Oeuvres complètes. Vol. II.
Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1976, p. 685.
3
Idem, p. 686.
4
M. Leiris. Miroir de la tauromachie. Paris, Fata Morgana, 1981, p. 36.

98
verve
A beleza terrível

5
M. Foucault. “Prefácio à transgressão” in Estética: Literatura e Pintura,
Música e Cinema. Col. Ditos & Escritos III. Rio de Janeiro, Forense Univer-
sitária, 2001, p. 45.
6
C. Baudelaire, op. cit., p. 717.
7
E. Allan Poe. “The philosophy of composition” in The complete works, vol.
V. Boston and New York, Colonial Press Company, p. 163.
8
C. Baudelaire. “Les fleurs du mal” in Oeuvres completes, Vol. I. Paris,
Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1976, p. 5.
9
Idem.
10
Ibidem, p. 24.
11
Ibidem.
12
Sobre esta afirmação ver Victor Brombert. Flaubert. Paris, Seuil, p. 122.
13
C. Baudelaire, op. cit., 1976, p. 24.
14
Idem, p. 31.
15
G. Bataille. “Les larmes d’Éros” in Oeuvres completes, vol. X. Paris, Gallimard,
1987, p. 618.
16
G. Bataille. “L’érotisme”, op. cit., p. 65.
17
J. Kristeva. Pouvoirs de l’horreur. Paris, Seuil, 1980, p. 175.
18
G. Bataille. “L’archangélique” in Oeuvres complètes, vol. III. Paris, Gallimard,
1987, p. 85.
19
A. Arnaud e G. Excoffon-Lafarge. Bataille. Paris, Seuil, Écrivains de
toujours, 1978, p. 112.
20
G. Bataille, op. cit., p. 65.
21
Idem.
22
J. Kristeva, op. cit., p. 11.
G. Bataille. “Le langage des fleurs” in Oeuvres complètes, vol. I. Paris,
23

Gallimard, 1987, p. 176.


24
Idem, p. 18.
25
M. Foucault, op. cit., p. 44.
26
G. Bataille, “La laideur belle ou la beauté laide dans l’art et la littérature” in
Oeuvres complètes, vol. XI. Paris, Gallimard, 1987, p. 421.
27
M. Foucault, op. cit, p. 45.

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6
2004

RESUMO

Análise de imagens na literatura e arte modernas nas quais a


beleza estabelece conexões com o horror, a transgressão e o ero-
tismo.

Palavras-chave: erotismo, beleza, transgressão.

ABSTRACT

Analysis of images in modern literature and art in which beauty


establishes connections with horror, transgression and erotism.

Keywords: erotism, beauty, transgression.

100
verve
Canibal

canibal

dorothea voegeli passetti*

Havia uma mulher que sempre comia o próprio filho re-


cém-nascido. Quando a criança nascia, ela mesma lavava,
cortava a barriguinha do nenê, preparava como caça e assa-
va. Lambia os beiços. Dizia:
— Que gostosa essa comida, que criança gostosa!
Engravidou muitas vezes, sempre comia o filho. Seus
parentes a viam comer o filho, jamais criava o bebê.
— Por que essa mulher vive comendo criança?
Era assim, a mulher só vivia comendo seus filhos. O nome
dela era Iñ-ga-kãi.

Índios Gavião-Ikolen de Rondônia

* Professora no Departamento de Antropologia e no Programa de Estudos


Pós-Graduados em Ciências Sociais, pesquisadora do NEAMP (Núcleo de
Estudos Arte, Mídia e Política) e do Núcleo de Estudos de Etnologia Indígena,
Meio Ambiente e Populações Tradicionais, PUC/SP.
verve, 6: 103-126, 2004

103
6
2004

A palavra canibalismo direciona a atenção para uma


animalidade supostamente superada e quase extinta pela
nossa auto-domesticação. A ocidentalização do planeta e
o crescente domínio sobre a natureza que a acompanha
produziu a sensação de que a espécie humana cada vez
mais parece querer prescindir do sangue em suas veias
e substituí-lo por algo mais limpo, mais civilizado e
descartável. Mas, mesmo nos distanciando idealmente
da natureza, é impossível esquecer que somos, apesar
de tudo, seres de carne e osso.
Não foi o acaso que fez com que a palavra comer signi-
ficasse, além de ingerir comida para alimentar-se,
transar, copular, comer alguém. Mas comer alguém pode
significar, além de tudo, degluti-lo, ingerir sua carne fei-
to canibal num festim antropofágico. O fato é que alimen-
tar-se e manter relações sexuais tem a ver com a vida.
Além de se traduzirem nos prazeres da carne, são atos
indispensáveis à reprodução da espécie e se, no imagi-
nário asséptico, seriam atos superáveis por formas arti-
ficiais de reprodução — dos alimentos sintéticos à
clonagem —, a prática vegetariana seria um progresso
civilizatório. A assepsia portanto seria, nessa maneira
de ver as coisas, o que mais nos distanciaria de nossa
natureza carnal e animal. Ser mais civilizado exigiria
afastamentos da carne: de nossa própria e, principalmen-
te, da dos outros.
Contudo, a palavra comer tem esse duplo sentido não
só no português, mas em muitas outras línguas, inclusi-
ve em diversas indígenas. Claude Lévi-Strauss alerta
para o fato que “entre as regras de casamento e as proi-
bições alimentares existe, em primeiro lugar, uma liga-
ção de fato”1. Ele exemplifica a afirmação com o caso dos
maridos entre os Tikopia e os Nuer (povos que vivem em
locais bem distantes um do outro) não comerem os ani-
mais e as plantas proibidas às suas mulheres, pois o ali-

104
verve
Canibal

mento ingerido contribuiria para a formação do esperma


e, agindo assim, evitariam introduzir o alimento proibi-
do no corpo da mulher durante o coito. Conclui que “es-
sas aproximações nada mais fazem que ilustrar, em ca-
sos particulares, a analogia profunda que, em todo o mun-
do, o pensamento humano parece fazer entre o ato de
copular e o de comer, a tal ponto que um grande número
de línguas os denominam com a mesma palavra”2. Os
exemplos se multiplicam, mas bastam mais dois: em
yoruba, conta Lévi-Strauss, um mesmo verbo refere-se a
comer e copular e, “na língua dos Koko Yao, da península
do Cabo Iorque, a palavra kuta kuta tem o duplo sentido
de incesto e canibalismo, que são as formas hiperbólicas
da união sexual e do consumo alimentar”3.
A presença da animalidade amedronta pela sua proxi-
midade à antropofagia e ao incesto, as duas grandes trans-
gressões da cultura, os excessos da carne, a forma mais
íntima que poderia existir entre dois que se unem em atos
de deglutição, seja pela forma do alimento, seja pelo sexo:
comer um igual — outro humano —, unir-se sexualmente
ao mais próximo — pai/filha, mãe/filho, irmão/irmã.
O binômio canibalismo-incesto pode ser desdobrado
em mais uma transgressão relacionada à comida sexual
que, em muitas sociedades e em alguns setores da nos-
sa, mesmo hoje, é qualificada como desvio por não se
relacionar à reprodução: o homossexualismo. O perigo
não está, nesse caso, associado à proximidade do
animalesco, uma vez que o argumento lança mão de ló-
gica contrária: o homossexualismo é “anormal” porque
se desvia da “natureza” e, natureza, aqui, obviamente
significa reprodução através do ato sexual entre um ma-
cho e uma fêmea, ou seja, o casal hetero. Naturaliza-se
a cultura reduzindo as relações amorosas à reprodução.
O mesmo pode ser dito sobre as justificativas para o ca-
samento monogâmico, ou sobre os limites de idade con-

105
6
2004

siderados por nossos padrões como aceitáveis para alguém


manter uma vida sexual ativa, aquele no qual homens e
mulheres são férteis: nem antes, nem depois. Mas nem
sempre é assim.
A substância visível mais evidente e significativa des-
sa animalidade carnal é o sangue e, em especial, o san-
gue humano. Inúmeros tabus cercam a aproximação ao
sangue, substância perigosa da vida. A maior contami-
nação, obviamente, estaria diretamente relacionada à
reprodução: o sangue menstrual e, pior, o do parto4. Mi-
tos, tabus e proibições de toda espécie abundam em to-
das as sociedades, pois parece que a concentração de
energia vital contida nesse sangue poderia ser nefasta
aos que se aproximassem dele, como se o contato tirasse
um pouco da vida de quem ousasse fazê-lo. A mulher
menstruada torna-se, assim, perigosa. Há pouco tempo
atrás, na nossa sociedade, estar menstruada — incomo-
dada — a impedia de realizar diversas atividades corri-
queiras, de tomar banho a cozinhar, pois seu estado vul-
nerável poderia contaminar os outros. Imagine-se, en-
tão, o que poderia acontecer se ela ousasse ter relações
sexuais com um homem..., a animalidade estaria evi-
dente: sexo com sangue é coisa de bicho no cio.
Mas esses perigos, agora, se foram; e não foram. A
praga que assola homens e mulheres dos anos 1970 em
diante, a AIDS, tornou a vida sexual higienizada. A ca-
misinha evita a contaminação do vírus e, de qualquer
modo, toda a contaminação, até aquela de um sangue
menstrual. Acostumamo-nos tanto a esses intermediá-
rios assépticos entre um corpo humano e outro, ou entre
o corpo e a comida, que nem mais nos questionamos a
quem deve proteger. No supermercado, o açougueiro usa
uma luva para preparar a carne que compramos no bal-
cão. Usa a mesma luva para embalar, pesar, etiquetar,
operar os botões da máquina-balança, pegar uma carne

106
verve
Canibal

na geladeira, tirar o suor ou o cabelo da testa, cortar,


jogar pedaços de sebo num recipiente, e assim vai de
pedido em pedido. Estaria se protegendo do sangue ou
protegendo a carne de contaminações do meio? E a mu-
lher que escolhe frutas, ali ao lado, usando um saco plás-
tico como luva? O que ela pensa estar protegendo? Esta-
ria menstruada, ou só com nojo daqueles produtos da
natureza, talvez ainda com um pouquinho de terra, e que
foram manuseados por tantas outras pessoas antes dela?
Ela certamente usa camisinha.
***
As incontáveis sociedades, objeto de pesquisa e refle-
xão antropológicas atestam que a regulação dos prazeres
da carne é assunto que envolve bem mais que formas
variadas de satisfação de desejos individuais. Qualquer
que seja a regra, ela institui o parentesco e possibilita a
passagem da consangüinidade à aliança, como sabemos
desde que Lévi-Strauss5 evidenciou o papel fundamental
da proibição do incesto — a única proibição universal —
na consolidação da cultura. Grupos de parentes consan-
güíneos associam-se através da circulação de suas mu-
lheres, criando possibilidades de trocas econômicas e
relações políticas. No domínio da cultura — das trocas e
dos sistemas simbólicos — as regras ampliam e moldam
as relações para com o Outro. A grande regra, isto é, a
proibição do incesto, instaura a cultura porque a partir
dela se delimita grupos de parentesco que necessaria-
mente devem interagir. Muito mais que obrigação de não
mais se fechar, ela cria possibilidades para que os gru-
pos encontrem formas de troca e aliança.
O extremo complementar dos prazeres da carne, o
canibalismo, não escapa às regras e, para tal, realiza-se
segundo rituais que estabelecem quem é comido, como,
quando e por quem. Entre incesto e canibalismo há, por-

107
6
2004

tanto, nesse plano, uma diferença fundamental: o inces-


to é e sempre foi universalmente proibido, mas o caniba-
lismo não. O fato da proibição do incesto instituir a cultu-
ra o faz universal, e não será necessário comprovar
empiricamente que as sociedades o proibiram desde sem-
pre por saberem que não é possível haver sociedade sem
tal proibição. Ela possibilita a passagem da Natureza para
a Cultura. O canibalismo, contudo, é divisor de outras
águas: de um lado os selvagens e de outro aqueles que se
convencionou identificar por civilizados. A proibição do
canibalismo seria, portanto, a passagem do Selvagem ao
Civilizado? Assim como ao se criar a cultura a natureza
não é abolida, a civilização também não consegue extin-
guir o que há de selvagem em cada um. Se lembrarmos
da noção de pensamento selvagem de Lévi-Strauss, tal-
vez fique mais fácil entendermos que, como o pensamen-
to selvagem é o pensamento em estado selvagem, mesmo
em sociedades ocidentais ou globalizadas nas quais do-
mina o pensamento domesticado, o estado selvagem é
uma forma de experiência mesmo na civilização. Não
há, portanto, uma linha divisória, dois domínios separa-
dos, mas sim predisposições.
Foi pensando nessas duas formas que Lévi-Strauss
propôs uma outra oposição: “[...] Ficaríamos tentados a
contrapor dois tipos de sociedades: as que praticam a
antropofagia, isto é, que enxergam na absorção de certos
indivíduos detentores de forças tremendas o único meio
de neutralizá-las; e as que, como a nossa, adotam o que
se poderia chamar de antropoemia (do grego eimen, ‘vo-
mitar’). Colocadas diante do mesmo problema, elas esco-
lheram a solução inversa, que consiste em expulsar es-
ses seres tremendos para fora do corpo social, manten-
do-os temporária ou definitivamente isolados, sem
contato com a humanidade, em estabelecimentos desti-
nados a este fim. Na maioria das sociedades que chama-

108
verve
Canibal

mos de primitivas, tal costume inspiraria um profundo


horror; em seu entender, isso nos marcaria com a mes-
ma barbárie que seríamos tentados a imputar-lhes por
causa de seus costumes simétricos” 6.
Bárbaros somos nós, portanto. Ou selvagens. Mas, sel-
vagens ou civilizados, antropofágicos ou antropoêmicos,
isso não significa que, em qualquer uma das modalida-
des, tanto o incesto quanto o canibalismo não sejam pra-
ticados, transgredindo as limitações ou proibições impos-
tas pelas diversas culturas e constituindo-se como dois
grandes incômodos.
Os Guayaki, caçadores pesquisados por Pierre Clastres7,
na década de 1960, no Paraguai, temerosos em parecer ao
etnólogo como um povo mais próximo da natureza que da
cultura, selvagens comedores de gente, custaram a reve-
lar seu segredo. Não que eles mesmos se sentissem como
homens de segunda, mas como muitos outros povos indí-
genas, aprenderam a recusar certas classificações, uma
vez que a partir de meados do século XVI, reconhecer a
prática antropofágica era assinar a sua própria sentença
de morte. A guerra aos índios passou a ser proibida, a não
ser que fossem acusados de canibalismo. Aí, podiam ser
caçados, mortos ou escravizados, e assim se resolvia o pro-
blema da mão de obra barata nas colônias.
Eduardo Viveiros de Castro analisa a história da proibi-
ção do canibalismo no Brasil, evidenciando acontecimen-
tos semelhantes a partir dos discursos jesuítas que se pre-
ocupavam com a inconstância da alma selvagem. Para os
missionários, era quase impossível moldar a alma indíge-
na de uma parte dos povos com os quais mantinham con-
tato e que deveriam tornar cristãos. Segundo a concepção
de Antonio Vieira, alguns eram duros de converter, mas
quando isso ocorria não havia mais perigo de volta ao pa-
ganismo. Outros, como os Tupinambá, eram inconstan-

109
6
2004

tes, uma vez que mostravam indiferença ao dogma cris-


tão: nada havia para ser substituído, nenhum dogma ocu-
pava o lugar daquele que os padres queriam ensinar. O
obstáculo seria, para o padre Vieira, o que identificava como
maus costumes: “canibalismo, guerra de vingança, bebe-
deiras, poligamia, nudez, ausência de autoridade centra-
lizada e de implementação territorial estável”8.
Esses dois povos — os Guayaki da década de 1960 e os
Tupinambá do século XVI — podem exemplificar o que se
costuma chamar por endo e exocanibalismo, dois pólos
cuja distinção, como também já alertou Lévi-Strauss,
pode ser enganadora. “Entre essas duas formas extremas
surgem inúmeros tipos intermediários, e o contraste
inicial é abolido”9. Num dos pólos, no endocanibalismo,
come-se os membros da própria sociedade ou de seu gru-
po e no outro, no exocanibalismo, ocorre o contrário: come-
se apenas os estrangeiros.
Os Tupinambá, canibais que fizeram a fama dos povos
do Brasil no século XVI, aguçaram o interesse de pensa-
dores e escritores sobre a antropofagia desde então. Mis-
sionários e viajantes, os cronistas os conheceram e os
descreveram com um requinte de detalhe que não per-
mite dúvidas sobre como era a antropofagia que atraía
sentimentos dos mais variados, desde a repulsa até a
atração pelo indomável e honrado guerreiro exótico.
Michel de Montaigne que, com seu ensaio “Dos Cani-
bais” inaugurou, em 1580, a reflexão sobre o Outro e, a
partir dela, o estranhamento em relação a sua própria
cultura, foi um dos entusiastas desses guerreiros: “não
vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem desses
povos e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que
não se pratica em sua terra”10. Mas os cronistas dos sé-
culos XVI e XVII não partilhavam dessas idéias. Em mis-
são religiosa ou não, os relatos se referem ao canibalis-
mo e aos povos que o praticavam com horror e descre-

110
verve
Canibal

vem os rituais antropofágicos de maneira muito exata e


coincidente. Ao menos, quanto aos Tupinambá, com os
quais os colonizadores tiveram inicialmente contato mais
próximo, marcado por intensas relações guerreiras, não
há dúvidas: eles executavam e comiam seus inimigos
num ritual que era realizado seguindo-se uma rígida eti-
queta, motivados pela vingança. Menos que a manuten-
ção do canibalismo, o que os Tupinambá não abriam mão
perante as pressões portuguesas era da vingança, a par-
tir da qual alimentavam sua rede de relações. “Afinidade
relacional, portanto, não identidade substancial, era o
valor a ser afirmado”11.
Os cronistas Jean de Léry, André Thevet, Hans
Staden12, entre outros, descrevem o ritual do qual todos
da aldeia participavam, bem como convidados de outras
localidades. A vítima podia passar um bom tempo como
hóspede cativo, bem alimentado e com uma mulher como
companhia, e muitas vezes presenteado pelo seu captor
a um outro homem (chefe, sogro, aliado). A festa era
regada de bebida especialmente preparada pelas mulhe-
res e consumida já desde o dia anterior. Pintado para a
ocasião, era levado ao centro do terreiro e amarrado, onde
travava o célebre diálogo com seu executor: “ ‘Sim, aqui
estou eu, quero matar-te, pois tua gente também matou
e comeu muitos dos meus amigos’. Responde-lhe o prisi-
oneiro: ‘Quando estiver morto, terei ainda muitos ami-
gos que saberão vingar-me’ ”13. Era assado num moquém,
depois de ter sido cortado em pedaços e esfolado. A gordu-
ra que escorria durante esse processo era recolhida pe-
las velhas, que a consumiam com especial prazer. Das
vísceras faziam um mingau, comido por mulheres e cri-
anças, e estas últimas também recebiam toda a carne
da cabeça. O único a não comer a carne era o executor,
que compensava sua abstinência com a honra de, a par-
tir da sua pancada com o ibirapema (o tacape) no crânio

111
6
2004

da vítima, incorporar seu nome e, com isso, aumentar


seu prestígio, sabendo que futuramente seria também
vingado por um inimigo.
Se a antropofagia tupinambá passou a ser conhecida
como aquela em que se devorava o inimigo pela vingan-
ça, não devemos confundi-la com um ódio pelo outro que
apenas se resolvia aniquilando-o através da ingestão. A
alteridade capturada e ingerida recriava constantemen-
te a cadeia de relações que mantinha a sociedade viva.
O canibalismo foi, portanto, a forma peculiar que essa
sociedade encontrou para manter-se através do inter-
câmbio com os outros.
A versão complementar de canibalismo, na qual se
come os de dentro da própria sociedade, pode ser
exemplificado pelos Guayaki. Eles comiam todos os seus
mortos e, em caso de morte de um inimigo, ele também
não escapava. Mas, ao contrário do que muitas vezes se
pensa, a antropofagia não é o motivo da morte: nem aqui,
nem entre os Tupinambá, e provavelmente em povo in-
dígena algum; não se mata com o fim exclusivo de comer
a vítima. A carne humana não é o equivalente a uma
carne de caça, em busca da qual o guerreiro ou caçador
empreende sua expedição.
Conforme relata Clastres, entre os Guayaki também
comia-se toda a carne e a gordura era igualmente apre-
ciada, sugada nos pincéis com os quais era apanhada
quando escorria pelas ripas do moquém. A exceção era o
órgão sexual feminino, que era enterrado. A cabeça, co-
zida, era comida por velhos e velhas e proibida aos jovens
caçadores, e o pênis, igualmente cozido, era dado às
mulheres grávidas, para que seus bebês nascessem do
sexo masculino, futuros caçadores. Os ossos eram que-
brados para se extrair o tutano, delícia das velhas. Ao
final de tudo, o crânio ainda devia ser quebrado e quei-

112
verve
Canibal

mado. O restante do moquém era deixado no local, a não


ser no caso de criança, quando seria destruído. Os úni-
cos que não ingeriam a carne moqueada (ou cozida em
panela de barro, quando era de criança muito pequena) e
sempre neutralizada com palmito, eram os parentes mais
próximos — pai, mãe, filhos e irmãos — especialmente
do sexo oposto. “As mais severas proibições não são ja-
mais transgredidas: não se verá jamais um irmão comer
uma irmã, um pai comer a filha, uma mãe comer seu
filho e reciprocamente. Os membros da família do sexo
oposto não se comem entre si. Por que? Porque comer
alguém é, de uma certa maneira, fazer amor com ele.
[...] Proibição do incesto e tabu alimentar se recobrem
exatamente no espaço unitário da exogamia e da
exocozinha”14 .
Os Guayaki comiam seus mortos porque temiam suas
almas. Se isso não for feito, a alma separada do corpo
morto busca um novo corpo, vivo. Mas, com o canibalis-
mo, a alma que busca o novo corpo encontraria seu anti-
go, despedaçado e comido, transformado em restos de co-
mida. Sem espaço próprio para ficar, a alma seria obriga-
da a assumir que é apenas um fantasma, e tomar seu
rumo para o país dos mortos, seguindo a fumaça do crâ-
nio que queima.
Um dado suplementar que une os canibalismos
Tupinambá e Guayaki é que em ambos os casos comer
carne humana é, sem dúvida, uma delícia. Dos
Tupinambá resta um diálogo travado entre Hans Staden,
artilheiro alemão cativo e constantemente ameaçado de
ser devorado, e o chefe Cunhambebe, que ameaçava exe-
cutar uns prisioneiros e em favor dos quais Staden esta-
va intercedendo. “Cunhambebe tinha à sua frente um
grande cesto cheio de carne humana. Comia de uma
perna, segurou-m’a diante da boca e perguntou-me se
também queria comer. Respondi: ‘um animal irracional

113
6
2004

não come um outro parceiro, e um homem deve devorar


um outro homem?’ Mordeu-a então e disse: [...]‘Sou um
jaguar. Está gostoso’”15.
Entre os Guayaki não há quem não goste. “Seria pou-
co dizer que apreciavam a carne humana, eles eram doi-
dos por ela. Por quê? ‘Ee gatu’, explicavam, ‘é muito doce’,
melhor ainda que carne de porco selvagem. O que mais
se aproxima dela, do ponto de vista do sabor, é a carne de
porco doméstico dos brancos. Mas, acima de tudo, há gor-
dura. Um homem é mais gordo que qualquer animal da
floresta; entre a pele e a massa muscular, há sempre
uma camada espessa de ‘kyra’, e isso é realmente bom.
‘Kyra gatu! Gordura boa!’, comentavam meus informan-
tes brincalhões beliscando-me o bíceps. ‘Gaiparã! Jypi
pute! Está magro! Bem seco!’, eu respondia, e todo mun-
do caía na gargalhada”16.
Essa exaltação dos prazeres da carne aparece tam-
bém na literatura do argentino Juan José Saer, autor
que afirma não reconstruir o passado, mas construir uma
visão do passado, uma imagem ou idéia que não diz res-
peito a nenhum fato preciso. Investiga, no romance O
Enteado17, a memória ocidental sobre o convívio com os
povos indígenas de um passado colonial e o imaginário
criado a respeito de alguns aspectos fundamentais de
suas existências remotas. Esses aspectos são conden-
sados na descrição de festins desmesurados de uma tri-
bo fictícia do rio da Prata nos quais todos, salvo as usuais
exceções, atiravam-se ao canibalismo e a relações se-
xuais fora de qualquer regra obedecida em dias de vida
social normal. As vítimas do moquém são estrangeiros
brancos, devorados uma vez por ano, ao mesmo tempo
em que relações sexuais de todas as formas imagináveis
ocorrem entre os índios. Depois de dois ou três dias, tudo
volta à ordem e a inversão dá lugar a uma vida pacata.
São festanças de prazer, orgias da carne. Ali, matava-se

114
verve
Canibal

gente para comer a carne humana, nada além. É isso


que o senso comum ocidental afirma e, parece, é dessa
exacerbação do prazer que se ressente, numa vaga lem-
brança de um passado ancestral da humanidade no qual
haveria uma suposta ausência de regras: aquelas que
fundam a cultura e as civilizações.
Essa parece ser, de fato, a diferença entre o canibalis-
mo selvagem e os outros, civilizados. Para os ocidentais,
mata-se para comer a carne, ou mata-se e depois acres-
centa-se mais um componente de violência extrema, a
ingestão da carne da vítima assassinada, num gesto cri-
minoso. Michel Foucault analisa a caracterização desse
ato como praticado por um monstro moral e o associa ao
incesto. “O par antropofagia-incesto, as duas grandes con-
sumações proibidas, parece-me característico dessa pri-
meira apresentação do monstro no horizonte da prática,
do pensamento e da imaginação jurídicos do fim do século
XVIII”18. O monstro é o do abuso do poder, personificado
pelo casal Luis XVI e Maria Antonieta, como aparecem
nos livros e panfletos revolucionários da época: ávidos de
sangue, o chacal e a hiena. Ela, estrangeira que suga o
sangue do povo francês, além de mulher escandalosa, de-
pravada e libertina. Ele, o déspota. Personificam o “lado
canibal, antropofágico do soberano ávido do sangue de seu
povo”19, que rompe o pacto social e afirma seu interesse
pessoal. A outra apresentação do monstro aparece na lite-
ratura contra-revolucionária, monarquista: é aquele que
rompe o pacto pela revolta, a partir de baixo, do povo que
violenta, dilacera, corta, sangra, assa corpos humanos em
praça pública, faz patês, obriga filhos beberem o sangue
para salvar a vida de seus pais. De um lado a depravação e
a libertinagem dos reis, de outro a violência do povo.
São eles, os monstros antropofágicos do povo revoltado
e os monstros incestuosos do déspota, os formadores da
temática jurídico-médica do monstro e da economia do

115
6
2004

poder de punir no século XIX. Hoje, abundam casos reais


e criados pela ficção sobre essas fomes populares e esses
apetites despóticos. O livro Hungry Ghosts – Mao’s Secret
Fanmine (Fantasmas Famintos – A Escassez Secreta da
Era de Mao) do jornalista britânico Jasper Becker relata
a morte de cerca de 30 milhões de chineses entre 1958 e
1962 em função da campanha “Um salto para a frente” do
Estado chinês, que lançou a população a uma fome ta-
manha que, “no noroeste da China, ‘crianças eram aban-
donadas ao longo da estrada, em valas cavadas no solo’,
como última esperança de que algum viajante as desco-
brisse e delas se apiedasse. O canibalismo, de acordo com
entrevistados, tornou-se uma prática alastrada”20. Lem-
brando o terror durante a Revolução Francesa, notícias
de jornal afirmam que grupos armados do Movimento pela
Libertação do Congo (MLC) e outros menores, apoiados
por Uganda, são responsáveis por “canibalismo, estupros
em massa, tortura e seqüestros, [...] usados como armas
por rebeldes em regiões remotas do Congo (ex-Zaire) ha-
bitados sobretudo por pigmeus. [...] Eles picam o coração
e outros órgãos de suas vítimas e forçam as famílias a
comê-los”21. Aqui, no Brasil, lê-se a seguinte notícia so-
bre um acerto de contas entre grupos de prisioneiros
durante uma rebelião, em março de 2001, na Penitenci-
ária de Ribeirão Preto: “uma das vítimas do motim teve o
coração retirado, assado e, segundo informações de agen-
tes, teria sido servido aos detentos, enquanto eles bebi-
am pinga”22.
Hilda Hilst relata, na crônica “Presidente, abre o olho:
tão comendo gente!”23, o caso de uma teta achada num
lixo hospitalar em Olinda e devorada por famélicos.
Polígono das Secas, de Diogo Mainardi24, começa com a
história de Manoel Vitorino que cai numa vala profunda
com o cadáver de seu filho e se alimenta de sua carne
para não morrer de fome. No teatro pudemos assistir, em

116
verve
Canibal

2002, à montagem da peça “Os Solitários”25 com o texto


Pterodátilos, de Nicky Silver, na qual uma mãe e um filho
sobrevivem a um acidente aéreo numa ilha deserta gra-
ças ao canibalismo, prática que continuam exercendo
após retornarem para casa, onde devoram o macho do
lar, marido e pai. Antropofagias, todas, produzidas pela
fome. Mas há algo além de fome.
Atualmente o canibalismo reaparece também no uni-
verso indígena, mas dessa vez invertido: na mitologia do
Norte da Amazônia contemporânea, o antropófago é o bran-
co, monstro do terror. Michael Taussig já havia mostrado
isto em Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem26,
ao descrever a forma do terror implantada na exploração
de borracha no Putamayo, da qual o canibalismo foi um
componente importante, constante ameaça nas vidas dos
índios escravizados. A mitologia do contato pesquisada
atualmente fornece diversos exemplos. Os Macuxi, povo
que vive em Roraima e na Guiana, contam uma história
narrada para Paulo Santilli, em 1990, pelo ancião macuxi
Leonardo. Ele diz lembrar ouvir o velho pajé Jasmim con-
tar a história ao seu pai, quando ele ainda era menino
pequeno, que foi pego por soldados para trabalhar, junta-
mente com seu cunhado. Chegando ao local foram colo-
cados numa casa na qual não havia nada e ali espera-
ram, trancados, recebendo comida diariamente. Não fa-
ziam nada, só engordavam. Depois de uma semana
levaram o cunhado, dizendo que iria trabalhar, mas ele
não voltou. Quando perguntou, responderam “ta lá traba-
lhando ainda, ta trabalhando. Mas mentira deles, eles
tinham matado ele, já comeram ele. Daí ele conheceu,
porque ele é pajé, né! Ele conheceu, ele pensou muito”27.
Passados mais uns dias, quando perguntou do cunhado,
avisaram que viria no dia seguinte e que aí seria a vez
dele. “Mas ele, ele tá sabendo. Anoiteceu, ele pediu taba-
co pra fumar, deram tabaco pra ele, e tem água pra ele

117
6
2004

beber aí também dentro da casa. Anoiteceu. Aí ele pen-


sou muito: Não, eu vou-me embora hoje. — Ele disse, o
pajé disse: Embora hoje, eu vou escapar desses aí, eles já
comeram meu cunhado. Daí ele aguou o tabaco, no copo,
ele tomou... ele trabalhava batendo a folha aqui, quando
ele faz pajé, né, com a folha batendo assim para ele su-
bir. Lá ele tirou a roupa dele, agora com aquele ele bateu,
com roupa dele foi batendo, foi cantando ali, ele cantou,
cantou, cantou. Não sei como pajé fica para ele subir. Aí
ele subiu, ele subiu e saiu lá pra cima. Ele saiu, quando
ele saiu ele virou aquele Wataima (estrela cadente), ele
subiu, virou Wataima e veio embora por cima, de lá ele
veio, veio [...] Eu caí aí meu filho, ele disse pra finado
meu pai. Sentou ali, atrás daquela serrota ali: — Daí eu
vim a pé, cheguei aqui de pé, aqui em casa, cheguei, eu
escapei desse branco. Quase que me comia. Assim eu vi
ele contar pro finado meu pai. E comeram cunhado dele.
Ele não fora pajé, eles tinha comido ele também”28.
Conforme Santilli, os Macuxi pensam o universo divi-
dido em três planos: o terrestre, no qual vivemos, o sub-
terrâneo, onde vivem os Wanabaricon, pequenos seres
semelhantes aos humanos, e o céu, no qual há diversos
seres. Tanto os subterrâneos quanto os celestes vivem à
semelhança dos Macuxi — plantam, caçam, pescam e
constroem aldeias — e não mantém nenhum tipo de re-
lação com os humanos. O problema está mesmo na ter-
ra: aqui, além dos humanos e animais, existem os
omá:kon, seres selvagens que habitam as serras, áreas
rochosas e matas, têm unhas e cabelos longos e fala
inarticulada, manifestando-se como animais de caça, e
os makoi, seres aquáticos que se manifestam como di-
versos tipos de cobras. Esses seres antropófagos atraem
os humanos com sexo e comida, os caçam para aprisio-
nar suas almas e assim os fazem adoecer e morrer, e
apenas os xamãs podem vê-los e neutralizá-los com suas

118
verve
Canibal

armas sobrenaturais, resgatando as almas aprisionadas


dos humanos e evitando que morram. Para realizar es-
sas operações baseadas em cantos, o xamã vive e se
locomove em espaços intermediários, entre a terra e o
céu ou entre a terra e as profundezas da água.
Santilli conclui que entre os Macuxi as relações soci-
ais são mantidas equilibradas a partir da reciprocidade
interna. Fora do domínio da sociedade reina a predação e
apenas o xamã tem condições de movimentar-se nesse
terreno perigoso. Quando essa predação não é atribuída
aos seres sobrenaturais ou até à natureza, os agentes da
economia extrativista desempenham simbolicamente a
função, na qualidade de brancos predadores fora de limi-
tes da sociedade e, desta forma, de canibais.
Esse canibalismo praticado pelo outro, o branco, inva-
dindo e dividindo o lugar ocupado pelos seres canibais
exteriores ao mundo social macuxi, pode ser visto como
complemento das categorias clássicas do canibalismo
criadas pela antropologia. Obviamente, do ponto de vista
do branco, esse canibalismo seria uma forma de
exocanibalismo — comer o outro — e certamente da clas-
se do canibalismo europeu dos poderosos, como apontou
Foucault em Os Anormais. Real ou simbólico, é um cani-
balismo do terror que provoca o efeito do imobilismo
estarrecedor perante o perigo mortal e inevitável: não
fosse a prevenção pela fuga dos soldados, todos seriam
comidos, apesar do esforço dos xamãs que só sabem sal-
var-se a si mesmos, no caso de canibais humanos.
Se a proibição ao canibalismo indígena do século XVI
resultou na morte dos canibais ou na escravidão deles, a
escravidão recente de grupos indígenas é interpretada,
por eles, como morte por canibalismo branco.
Inversamente do que ocorria entre os antigos
Tupinambá, não parece haver entre os Macuxi alguma

119
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2004

forma de positivação do canibalismo. Se ali o canibalis-


mo foi uma forma necessária de existência da sociedade
que se afirma no intercâmbio antropofágico com as ou-
tras sociedades — inclusive aquelas dos brancos — as-
sim provocando seu (quase) extermínio, os Macuxi ex-
pulsam a prática canibal para fora da vida. Ela é, apenas,
a responsável por todas as mortes: aquelas provocadas
pelas doenças adquiridas em função do rapto das almas
humanas pelos seres sobrenaturais e as provocadas pela
antropofagia do branco, a antropofagia do trabalho escra-
vo, do terror.
A positividade da antropofagia tupinambá era a vida
social e o prazer inerente à vida. Não só adoravam co-
mer a carne humana como ensinavam a alguns bran-
cos, menos preconceituosos, a compartilhar desses pra-
zeres. O testemunho de Staden recusando o manjar ofe-
recido por Cunhambebe é um indício dessa possibilidade29.
Os brancos não foram imunes a essas tentações no pas-
sado e esse prazer parece estar presente até hoje, ao
menos, como vaga lembrança de uma transgressão sa-
borosa às vezes revivida na ficção como monstruosidade
criminosa. Ruben Fonseca cria, no conto “A natureza em
oposição à graça”, a situação em que o tímido Raimundo
relata ao policial como assassinou Sérgio, um grandalhão
esportista que o chama de raquítico à beira da piscina do
condomínio, enquanto envia olhares comprometedores
para a sua namorada, Alessandra, que finalmente con-
segue conquistar, fato que ele começa a adivinhar a par-
tir do momento em que a namorada comenta a beleza
dos cílios do brutamontes. Numa noite Raimundo é abor-
dado por um misterioso velho, um bruxo, que lhe diz que
seu medo para enfrentar o admirador de Alessandra advém
de sua alimentação de legumes e verduras. Falta-lhe
sangue:

120
verve
Canibal

“Ouça, jovem ignorante, o homem é um animal que


só adquiriu coragem quando deixou de comer raízes e
outras porcarias arrancadas da terra e começou a inge-
rir carne vermelha. Dize-me o que comes e dir-te-ei quem
és, até os cozinheiros sabem disso. Uma gazela come
verduras — e o leão? O leão come a gazela, você tem que
decidir se quer ser zebra ou tigre, há quanto tempo você
não come carne? [...] Se você quer resultados a curto pra-
zo, ele disse, tem de beber o sangue do inimigo e se pre-
cisar matar o inimigo para beber o sangue dele, mata o
inimigo, o melhor é isso mesmo, matar o inimigo e be-
ber o sangue dele, e depois comer a carne dele, era as-
sim que se fazia antigamente, muito antigamente. E não
se mata o inimigo e bebe-se-lhe o sangue apenas para
deixar de ter medo dele, é para não se ter mais medo de
ninguém e de nada.”
Raimundo convida Sérgio para pescar, numa noite,
no alto de um precipício. Uma pedra grande o ajuda. “Pe-
guei a pedra e bati com força na cabeça de Sérgio. Ele
caiu, sangrando muito, e despencaria no precipício, se
eu não o segurasse, colocando o meu corpo sobre o dele.
Colei a boca no ferimento da cabeça de Sérgio, para
sugar o sangue que escorria. Não senti nenhum nojo,
era como se fosse suco de tomate. Sorvi o sangue dele
durante uns dez minutos, enquanto sentia, com a ponta
dos dedos, a sedosidade dos seus longos cílios. Depois eu
o empurrei e ele rolou pela escarpa. Ouvi o ruído do corpo
batendo na água, ao afundar.
Ele escorregou? perguntou o tira.
Escorregou, eu não podia fazer nada, a não ser pedir
socorro, esperar os bombeiros.
O laudo do legista registra que as pálpebras do morto
foram arrancadas, disse o tira.

121
6
2004

Deve ter sido um peixe, eu disse.


O tira olhou para mim, viu à sua frente um homem
seguro e tranqüilo.
Muito obrigado pela sua cooperação, ele disse.
Saí da delegacia e a polícia nunca mais me incomo-
dou.” 30
Nessa versão do assassino canibal ou em outras, nas
quais o monstro é apresentado de forma mais violenta e
requintada, como na série dos filmes sobre Hanibal the
Canibal, iniciada pelo filme O silêncio dos inocentes, a
carne, o sangue, são apreciados como iguarias. Lembram
os casos de amor incestuoso entre irmãos que não se
sabiam irmãos pois, ao menos em algumas vezes, são
situações nas quais comensais se deliciam sem saber
que aquela carne, na realidade, é de gente. Uma varia-
ção dessa situação está no pequeno conto “Alegrias da
carne” de Rubens Figueiredo31: um churrasco familiar
no qual uma garota sempre é encarregada de cuidar da
grelha e das carnes e um tio, solidário, bom chur-
rasqueiro, mas bêbado, tenta consolá-la, uma vez que ela
prefere fazer outras coisas. Com o avançar da hora e das
cervejas ele perde o equilíbrio e se apóia justamente na
grelha encandescente. É levado ao pronto-socorro, e a
menina volta à sua tarefa, vira bifes e acrescenta car-
nes, sem deixar de observar que entre elas ficou um pe-
daço, não muito grande, da mão do tio. Sua vingança pela
tarefa de churrasqueira, que a deixa engordurada e
esfumaçada, é guardar o segredo para si.
Agora, um pedacinho do conto “Os Canibais”, do cuba-
no Pedro Juan Gutiérrez32:
“— Companheiros, prestem atenção. Este cidadão foi
surpreendido por uma patrulha hoje de tarde, no momen-

122
verve
Canibal

to em que saía do necrotério com este saco de fígados


humanos...
O murmúrio dos vizinhos interrompeu o policial.
— Deixem eu terminar. Este cidadão é funcionário do
necrotério faz dois meses e desconfiamos que ele sub-
traiu fígados de cadáveres em outras ocasiões, para ven-
der no mercado negro como se fosse fígado de porco. Pre-
cisamos de testemunhas...
Outra vez o murmúrio do povo. Uma velha foi a pri-
meira a falar:
— Ai, filho da puta! Que desgraça! É verdade, seu guar-
da, é verdade que ele vendia fígado para a gente! Esse
filho da puta não tem mãe!
Isabel e eu nos olhamos. Me pus a rir às gargalhadas.
Isabel fazia caretas de nojo.
— Olhe, Isabel, já está comido e cagado. Esqueça. Além
disso estava uma delícia. Muito saboroso.
— Não seja animal, Pedro Juan!”

Selvagens ou civilizados, não poderemos deixar de ser


animal pelo sangue que corre nas veias e abre apetites.
Moldados pela cultura, somos natureza nessas experiên-
cias e vivências carnais, inegáveis, fundamentais para
a vida, mesmo se aparecem como simbolismo, imaginá-
rio, recriando memórias de tempos em que homens e
animais conviviam em outros patamares e que nos co-
míamos, sem hesitação. Por mais que a higienização tire
o gosto do sangue e da vida, o canibal vive, pulsando, mi-
núsculo e incomensurável.

123
6
2004

Notas
1
C. Lévi-Strauss. O pensamento selvagem. Campinas, Papirus, 1989, p. 121.
2
Idem, p. 122.
3
Ibidem.
4
A antropologia debruçou-se sobre esse simbolismo do sangue produzindo estu-
dos hoje clássicos como o de G. Balandier. Antropo-Lógicas. São Paulo, Cultrix /
Edusp, 1976, especialmente seu primeiro capítulo “Homens e mulheres ou a
metade perigosa”. Da produção brasileira, destaca-se o livro de J. C. Rodrigues.Tabu
do corpo. Rio de Janeiro, Achiamé, 1975.
5
C. Lévi-Strauss. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, Vozes, 1976.
6
C. Lévi-Strauss. Tristes Trópicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pp.
366-367.
7
P. Clastres. Crônica dos índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do
Paraguai. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995.
8
E. Viveiros de Castros. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma
selvagem” in A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São
Paulo, Cosac & Naify, 2002, pp. 188-189.
9
C. Lévi-Strauss. “Canibalismo e disfarce ritual” in Minhas palavras. São Paulo,
Brasiliense, 1986, p. 140.
M. Montaigne. “Dos canibais” in Ensaios, col. Os Pensadores. São Paulo, Nova
10

Cultural, p. 101.
11
E. Viveiros de Castro, op. cit., p. 206.
12
Para evitar dúvidas, todos os relatos foram acompanhados de farta ilustração.
Os filmes Como era gostoso meu francês de Nelson Pereira dos Santos (1971) e Hans
Staden de Luis Alberto Pereira (1999), podem ser entendidos como a contrapartida
contemporânea dessa iconografia.
13
H. Staden. Duas viagens ao Brasil – arrojadas aventuras no século XVI entre os
antropófagos do Novo Mundo. São Paulo, Sociedade Hans Staden, 1942, p. 182.
14
P. Clastres, op. cit., pp. 234-235.
15
H. Staden, op. cit., p. 132. Viveiros de Castro, em seu ensaio, apresenta diversos
relatos sobre as virtudes da carne humana registrados, entre outros, por Anchieta,
Azpicuelta, Blázquez, o próprio Staden, mas também encontra manifestações de
repugnância.
16
P. Clastres, op. cit., pp. 229-230.
17
J. J. Saer. O Enteado. São Paulo, Iluminuras, 2002.

124
verve
Canibal

18
M. Foulcault. Os Anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 122. Esse tema
do binômio antropofagia-incesto foi curiosamente retomado por Lévi-Strauss e
Foucault ao mesmo tempo. Foi o assunto da aula no Collège de France de Foucault
em 29 de janeiro de 1975 (publicada em Os Anormais) e do curso de Lévi-Strauss
no mesmo Collège, no ano letivo de 1974-75, intitulado “Canibalismo e disfarce
ritual” (publicado em Minhas palavras). O livro de Balandier, Antropo-Lógicas, que
trata em seu primeiro capítulo das mulheres, foi originalmente publicado em
1974.
19
Idem.
N. Eberstadt. “Canibalismo do grande salto para trás”, Folha de S. Paulo, 29/06/
20

1997.
21
“Guerra no Congo teve canibalismo, diz ONU”, Folha de S. Paulo, 16/01/2003.
22
“Selvageria marca motim em Ribeirão Preto”, O Estado de S. Paulo, 30/03/
2001.
23
H. Hilst. “Presidente, abre o olho: tão comendo gente!” in Cacos e Carícias:
crônicas reunidas (1992-1995). São Paulo, Nankin, 1998.
24
D. Mainardi. Polígono das Secas. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
25
Os Solitários, com Marieta Severo, Marco Nannini e outros, direção de Felipe
Hirsch, é composto pelos textos Pterodátilos e Homens Gordos de Saia do norte-
americano Nicky Silver, e foi apresentado no teatro Alfa e depois no Teatro
Sérgio Cardoso, em São Paulo, em 2002.
26
M. Taussig. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem – um estudo sobre o terror e
a cura. São Paulo, Paz e Terra, 1993.
27
P. Santilli. “Trabalho escravo e brancos canibais” in B. Albert & R.Ramos
(orgs.) Pacificando o branco – cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo, Ed.
UNESP / Imprensa Oficial do Estado, 2002, p.498.
28
Idem, p. 498-499.
29
Viveiros de Castro fornece informações na mesma direção: “As cartas jesuíticas
abundam em queixas sobre os maus cristãos que estariam going native, casando
poligamicamente com índias, matando inimigos em terreiro, tomando nomes
cerimonialmente, e mesmo comendo gente” (op. cit., p. 207, nota 20).
30
R. Fonseca. “A natureza em oposição à graça” in Secreções, excreções e desatinos.
São Paulo, Companhia das Letras, 2001, pp. 37-48.
31
R. Figueiredo. “Alegrias da carne”, Folha de S. Paulo, 25/08/2002.
32
P. J. Gutierrez. “Os Canibais” in Trilogía suja de Havana. São Paulo, Companhia
das Letras, 2001, pp. 325-332.

125
6
2004

RESUMO

Canibalismo e incesto formam um par, dois grandes incômodos


que se confundem no verbo comer: alimento e sexo, prazeres da
carne. O canibalismo, praticado ritualmente por muitas socieda-
des indígenas, transforma-se em prática criminosa quando é ex-
pulso para o domínio da natureza, da animalidade e da anormali-
dade, produzindo a divisão selvagem-civilizado. O incesto, sem-
pre proibido, é a marca da cultura sobre a natureza. Ambos atraem
nossa atenção, alimentando imaginários baseados em apetites an-
cestrais. O canibalismo (o principal tema abordado aqui) reaparece
em noticiários policiais-psiquiátricos e de crimes de guerra como
terror, assim como fascina em expressões de literatura, teatro,
cinema e das artes, talvez por conseguir lembrar que — apesar
de tudo — jamais deixará de correr sangue em nossas veias.

Palavras-chave: canibalismo, incesto, arte

ABSTRACT

Canibalism and incest compose a duo, two great annoyances that


become indistinct in the verb “to eat”: food and sex, pleasures of
the flesh. Canibalism, undertaken ritualistically by several
indigenous societies, is transformed into criminal action when it
is expelled to natures’s domain, of animality and anormality,
creating the division between savage and civilized. The incest,
always forbidden, is the trace of culture over nature. They both
catch our attention, feeding imaginaries based on ancestral apettites.
Canibalism (the main subject addressed here) reappears in police-
psychiatric and war crimes news as terror. It also facinates us in
expressions of literature, theatre, cinema and arts, perhaps by
remembering that, despite everything else, the blood will never
cease to run within our veins.

Keywords: canibalism, incest, art.

126
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

drogas e liberação: enunciadores


insuportáveis

thiago rodrigues*

Persegui demais o mal


Busquei demais ter um corpo limpo
Antonin Artaud

Êxtase & medo


Fala-se em legalização, descriminalização, flexibi-
lização das leis antidrogas. Os protestos contra a proibi-
ção das substâncias psicoativas se fazem por meio da
apresentação de visões alternativas, novos receituári-
os, projetos outros para enfrentar o que não foi possível
pelo banimento e pelo expurgo. O presente regime in-
ternacional sobre psicoativos é o da política de guerra às
drogas, na qual a produção, circulação, venda e consu-
mo de um significativo rol de compostos que agem sobre
o sistema nervoso central estão sob forte controle legal.

* Cientista político, poeta, pesquisador no Nu-Sol. Publicou Política e drogas nas


Américas (Educ/FAPESP, 2004); Narcotráfico, uma guerra na guerra (Editora
Desatino, 2003).

verve, 6: 129-156, 2004

129
6
2004

As regras desse controle estão cristalizadas na Conven-


ção Única sobre Drogas Narcóticas da ONU, celebrada
em 1961, e que é o documento-síntese de todos os trata-
dos antipsicoativos acordados desde a primeira década
do século XX. A pretensão dos Estados que se reuniram
em Nova Iorque para discutir a Convenção Única era o
de construir pautas rígidas que classificassem todas as
drogas psicoativas segundo um critério elementar: po-
tencial para uso médico. O tratado estabeleceu, assim,
listas que instituíam a legalidade ou não de um com-
posto pelo seu pretenso “uso médico”. Os alucinógenos,
como o LSD, a mescalina e a maconha, foram completa-
mente vedados. Como também o fôra a heroína. Para a
morfina e cocaína, certa liberdade para aplicações mé-
dicas. Barbitúricos e anfetaminas, sintetizadas por gran-
des indústrias farmacêuticas transnacionais, foram
brindados com mais tolerância por serem tidos como
importantes para o tratamento de certos males.
O argumento do “uso médico”, enfim, aplicado como
determinante na proibição ou legalidade de psicoativos,
gerara acirradas polêmicas ao longo dos anos de prepa-
ro para o encontro, pois não havia consenso entre os
especialistas da Organização Mundial da Saúde sobre
quais substâncias deveriam ser consideradas benéfi-
cas ou maléficas à saúde1. Talvez os técnicos da ONU
tenham sido assolados pelo princípio médico da Anti-
güidade Clássica que atribuía a uma droga proprieda-
des curativas ou venenosas dependendo da quantidade
aplicada2. Como justificar a proibição completa do LSD,
droga de baixa toxicidade, e amparar a legalidade do ál-
cool? Havia, contudo, um a priori. Algumas substâncias
deviam ser banidas e a justificativa científica para tan-
to necessitava ser construída. Os argumentos médicos,
sempre solicitados como produtores de provas para o di-
reito penal, foram convocados uma vez mais para legiti-

130
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

mar uma decisão; um veredicto com intencionalidades


políticas.
Não se desenhava a proibição às drogas naquele 1961.
O proibicionismo vinha sendo erguido em códigos naci-
onais e em tratados internacionais desde a passagem
do século XIX para o XX. A costura das normas antidrogas
não tem um princípio demarcável, único. Ela tem ori-
gens pequenas, descentralizadas no espaço, distribuí-
das nos anos. A proibição tem começos ínfimos. As leis
restritivas não foram meras obras de burocratas, mas
antes, responderam a demandas sociais precisas. Cla-
mores por repressão que foram sendo alçados ao pata-
mar de políticas de governo, tomando a forma de leis
que instituíam, por sua vez, meios para sua aplicação.
Os Estados Unidos foram o país no qual essas procedên-
cias da ilegalidade podem ser mais claramente identi-
ficadas por intermédio de um rastreamento interessa-
do nos brados proibicionistas e na história da sua am-
plificação aos mecanismos de governo.
Quando a Harrison Narcotic Act, primeira lei proi-
bicionista estadunidense, foi editada em 1914, o per-
curso que conduzira à norma era então um longo traje-
to. Para investigá-lo seria preciso retornar, ao menos,
às pressões políticas exercidas pelas ligas de temperan-
ça, organizações não-governamentais avant la lettre que
cresceram pelas redes de igrejas e associações protes-
tantes. Grupos religiosos, como a Antisaloon League ou
a Sociedade para a Supressão do Vício, foram constituí-
dos na segunda metade do século XIX e levaram adian-
te a bandeira da abstinência, tão cara aos puritanos. O
alvo primordial das ligas era o extermínio dos hábitos
considerados nocivos para o corpo e para a alma. A
Antisaloon League, em especial, esforçava-se para que o
governo do país ordenasse o fechamento dos bares, “an-
tros” que conjugavam jogo, prostituição e álcool. Com o

131
6
2004

passar dos anos, as ligas passaram a contar com repre-


sentação política, com deputados, senadores e titulares
de cargos executivos comprometidos com essa base elei-
toral. No mercado de votos da democracia estadunidense,
as organizações puritanas foram bem sucedidas porque
representavam os valores e anseios de grande parte dos
eleitores. Ao ser lançada na esfera política de discus-
sões, a questão das drogas evidenciou um dos mais po-
derosos embates entre linhas de pensamento e ética
nos EUA. Formado sobre o solo movediço das tradições
puritana e liberal, o país viu com o debate sobre a proi-
bição ou não dos psicoativos, mais um episódio do cho-
que entre tais perspectivas. De um lado, o puritanismo
abstêmio, de outro, o princípio liberal da autonomia para
as decisões de cunho privado.
No entanto, o primado liberal da liberdade confinada
ao espaço privado não foi resistente às investidas
proibicionistas. Ao contrário, a concepção liberal de que
um ato privado que resulte em prejuízo a outrem deve
ser coibido foi uma passagem larga para que as petições
antidrogas ganhassem relevo. Isso porque, para os
proibicionistas, o uso de drogas era, a um só tempo, fon-
te de degradação pessoal e social. Um indivíduo intoxi-
cado era ameaça considerável a toda ordem social, pela
propagação “do crime”, dos “atos desvairados”, dos “maus
exemplos”, da “degenerescência dos valores” resultante
de seu hábito. A condenação moral à prática de se em-
briagar tomava contornos mais amplos, cristalizando-
se em leis. E o código legal estadunidense universalizava
mais um conjunto de valores morais parcamente
laicizados na forma da Lei.
A construção de normas restritivas ao ciclo produ-
ção/venda/uso de substâncias psicoativas se deu por
intermédio dos argumentos médico-sanitários que iden-
tificavam no consumo de drogas um grave perigo

132
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

epidemiológico3. Os esforços deveriam ser feitos para


impedir que compostos até então pouco regulamenta-
dos, como a cocaína e a heroína, se disseminassem pela
sociedade. O único modo legítimo para intoxicar-se era
aquele com a chancela médica. A relação entre médi-
cos e seus pacientes passou a ser mediada pelo Estado,
num movimento que limitou de um lado a liberdade do
profissional em receitar psicoativos, mas que, de outro,
consolidou o monopólio da classe médica sobre as práti-
cas curativas.
No entanto, a roupagem científica camuflava mal o
impulso puritano a fomentar as iniciativas proibicio-
nistas. A mais antiga exigência dos grupos abstêmios
— a proibição do álcool — venceu as últimas resistênci-
as na Suprema Corte, em 1918, sendo aprovada, em
1919, por meio do Volstead Act. A Lei Seca contemplou a
força social proibicionista ao banir todas as etapas da
comercialização de bebidas alcoólicas em território
estadunidense. Durante sua vigência, a Lei Seca não
erradicou o hábito de beber álcool e, em conseqüência,
fomentou um poderoso negócio ilegal que alimentou
máfias e motivou o agigantamento burocrático-repres-
sivo do Estado norte-americano. Ao ser abolida, em 1933,
a Lei Seca deixa como rastro organizações ilegais bem
sedimentadas e escritórios antidrogas, como o Federal
Bureau of Narcotics (FBN), dotados de grandes orçamen-
tos. O relaxamento com relação ao álcool não significou
uma postura similar com as demais drogas psicoativas;
maconha, cocaína e os opiáceos receberam leis especí-
ficas ainda mais rígidas que seguiam os passos das ini-
ciativas internacionais dos EUA. Fora de suas frontei-
ras, a diplomacia estadunidense promovia encontros
destinados à elaboração de normas que envolvessem
mais Estados no diapasão proibicionista. Num jogo com-
plementar entre as iniciativas domésticas e externas,

133
6
2004

o campo das demandas sociais puritanas foi sendo ab-


sorvido pelas estratégias governamentais sem perder,
contudo, seu lastro.
A legislação antidrogas nos Estados Unidos foi
instigada por uma cruzada moral que acabou por ser
encampada pelo governo devido às potencialidades polí-
ticas que o proibicionismo apresentava. O espaço de clan-
destinidade produzido pelas leis de psicoativos tornou-
se um profícuo ambiente para a captura de grupos soci-
ais indesejados ou tidos pela ordem como “perigosos”.
Nos EUA, o uso de drogas esteve vinculado a comunida-
des específicas por meio de estereótipos alimentados
pela parcela branca e protestante do país4. Os mexica-
nos eram considerados consumidores ávidos de maco-
nha; os negros eram vistos como adeptos da cocaína; os
chineses, habituados ao ópio e os irlandeses, devotos do
álcool. Em todos os casos, e a despeito dos efeitos distin-
tos provocados por estes psicoativos, os usuários eram
percebidos como violentos e selvagens. A lassidão sexu-
al e a agressividade criminosa atribuídas às drogas
psicoativas eram imediatamente relacionadas ao “com-
portamento social” dos estratos mais pobres e minoritá-
rios dos Estados Unidos5. Com o lançamento do mercado
destes compostos na ilegalidade, os braços desta econo-
mia passaram a ser largamente convocados entre as
classes menos privilegiadas. As leis antidrogas, assim,
inauguraram o tráfico de drogas e, por extensão, uma
nova categoria de criminoso: o traficante.
Um inédito campo de combate na perpétua guerra
que o Estado sustenta contra os indivíduos e grupos
dissonantes e, portanto, perigosos à ordem ampliou-se
com a proibição às drogas. O Estado Moderno deve man-
ter estratégias amplas de controle social que, como
mostrou Michel Foucault6, preocupam-se a um só tem-
po em atentar para o indivíduo e para a população, com-

134
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

preendendo a dinâmica de ambos dentro de uma


governamentalidade. A estatística, ciência do Estado por
excelência, passa a contabilizar viventes e mortos para
uma prática de governo que não se limita a reprimir
seus súditos, mas que investe no controle pelo ofereci-
mento de vida. Na Europa Ocidental, a passagem do sé-
culo XVIII para o XIX será marcada pela confecção de
aparatos de Estado interessados na ordenação e no
esquadrinhamento das cidades e espaços públicos em
nome da salubridade e do bem-estar geral7. Com isso, o
controle social não sobrevive apenas em atitudes nega-
tivas (perseguição, aprisionamento), mas também, em
ações positivas (vacinações, em massa, campanhas de
alfabetização, leis assistencialistas). À vigilância poli-
cial agregou-se a vigilância sanitária reguladora do corpo
e dos espaços. Essa tática de governo, de olhar particu-
lar e totalizante, foi chamada por Foucault de biopolítica.
Segundo o filósofo, a biopolítica foi “a maneira pela qual
se tentou, desde o século XVIII, racionalizar os proble-
mas postos à prática governamental, pelos fenômenos
próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em
população: saúde, higiene, natalidade, raças”8.
O Estado e a teoria da soberania que o sustenta não
implodem com a biopolítica, mas são instrumentalizadas
em seu interior novas técnicas pautadas pela lógica de
um poder disciplinar. Não cabia mais punir o agressor à
ordem com um suplício público, mas produzir indivíduos
docilizados politicamente e ativos economicamente.
Trabalhar sem contestar. Para Foucault, o discurso da
disciplina não será o “da regra jurídica derivada da so-
berania, mas o da regra ‘natural’, quer dizer, da ‘nor-
ma’”9. A malha tecida pelas ciências humanas conferi-
rá aos homens e situações, novas categorias: normais
ou anormais. A aferição da normalidade põe em marcha
saberes clínicos operando em consonância com as de-

135
6
2004

mais técnicas de gestão dos corpos. A sociedade é


medicalizada e o Estado é colonizado por dispositivos de
governamentalidade.
Na passagem do século XIX para o XX, o controle de
drogas psicoativas — tendo como epicentro os Estados
Unidos — passa a fazer parte do espectro mais amplo
das técnicas de controle e gestão dos indivíduos e da
população. A Proibição emerge como um recurso poten-
te acionado no quadro maior das estratégias de
governamentalidade. De um lado, milhares de usuários
são localizados como anormais, situação que os torna
excrescências morais e antígenos à segurança sanitá-
ria geral. De outro, os indivíduos responsáveis pelo
gerenciamento da economia ilegal das drogas, se trans-
formam em agentes do vício e da degradação pessoal e
social. Consumidores e traficantes formam, desse modo,
um par indissolúvel, ambos visados pelos aparatos de
segurança e pela ojeriza social.
A Proibição interessou ao Estado norte-americano,
pois os grupos que ocuparam as posições do lado da ofer-
ta de psicoativos eram justamente segmentos conside-
rados perigosos: negros e imigrantes de diversas proce-
dências. A perseguição a tais populações sob a chance-
la da guerra às drogas configurou um recurso adicional
de controle social que não passou desapercebido pelo
governo. Pelo prisma dos consumidores, a vedação do
uso contentou a moralidade puritana que pôde ver, as-
sim, a incontinência pecaminosa tornada crime. O Es-
tado assumiu, nesse momento, o papel de agente mora-
lizador a purificar a sociedade dos vícios e da degrada-
ção, reprimindo negociantes e usuários de substâncias
proibidas. Pelo lado governamental, a possibilidade de
investir em hábitos privados significou a expansão do
raio de vigilância sobre os indivíduos e suas existências.

136
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

A construção do proibicionismo não foi, portanto, uma


imposição estatal, tampouco se restringiu aos Estados
Unidos. A regulamentação ampliada dos psicoativos in-
ternacionalizou-se na esteira dos encontros diplomáti-
cos convocados pelos Estados Unidos10. A participação
em tais encontros não indicou a mera submissão dos
países participantes às determinações estadunidenses.
Em diversos deles, um ritmo próprio de repressão ao
consumo de drogas psicoativas caminhava em paralelo
à cristalização da Proibição nos Estados Unidos.
No Brasil, até que a primeira lei proibicionista fosse
promulgada em 1921, muito havia ocorrido nas relações
entre usuários de drogas e partidários de uma socieda-
de “livre de vícios”. Em centros cosmopolitas, como a São
Paulo dos anos 1910, o consumo de drogas importadas,
como a cocaína e a heroína, foi tolerado pelo Estado e
pelas sentinelas morais enquanto se restringiram aos
jovens filhos da oligarquia cafeeira. Quando o hábito dis-
seminou-se entre prostitutas, pequenos fora-da-lei,
cafetões e cafetinas, os brados antidrogas começaram a
ser ouvidos na imprensa paulistana e nos círculos con-
servadores, como a Loja Cruzeiro do Sul, espécie de
maçonaria nacionalista instalada na capital do estado11.
Junto à recriminação aos “vícios elegantes” havia a con-
denação do uso de maconha associado a negros, cabo-
clos e seus cultos sincréticos. Assim, o momento no qual
inúmeras substâncias passaram à ilegalidade no país
significou uma versão brasileira do impulso moralista
sendo colonizado e colonizando o Estado na forma de es-
tratégias de controle social. A partir da proibição às dro-
gas, estratos que já recebiam atenção especial das for-
ças policiais passaram a ser alvos potencializados das
técnicas de governo e vigilância.
A questão do controle de drogas nas décadas iniciais
do século XX emerge como um grande tema de saúde e

137
6
2004

segurança públicas. O uso desmedido de psicoativos pas-


sou a ser coibido para evitar epidemias ou degeneres-
cências físicas e mentais nos usuários e, também, para
reprimir os negociantes de tais “venenos” pelo crime de
os disponibilizar à sociedade. O consumidor foi
encampado pelos códigos penais como uma figura mis-
ta entre o doente e o criminoso, ao passo que o trafican-
te recebia a clara definição de delinqüente. As âncoras
dessa ampla penalização repousam, no entanto, nas prá-
ticas moralistas que, tanto nos EUA como no Brasil, de-
ram impulso para a Proibição e foram, com a adoção de
leis restritivas, incorporadas pelos Estados em seus es-
forços para governar os vivos. A sociedade sã insurgiu-
se contra a “degradação moral e cívica” por meio de de-
terminações proibicionistas prenhes de positividades
enquanto garras para capturar indesejáveis, dissonantes
e “perigosos”.

Os gestos toleráveis
A partir dos anos 1980, a política de guerra frontal à
economia ilegal das drogas, disseminada pelo globo em
moldes estadunidenses, passou a enfrentar resistênci-
as localizadas. Alguns Estados, como a Holanda e a Suí-
ça, flexibilizaram suas leis antidrogas, identificando a
implausibilidade de se erradicar o uso, e por extensão, o
consumo de psicoativos12. A motivação para tais refor-
mas legais foi proveniente de grupos de usuários orga-
nizados (como o Junkiebond holandês) e de especialis-
tas (cientistas sociais, psicólogos, médicos) que passa-
ram a pregar medidas alternativas à penalização dos
usuários de substâncias ilícitas. Mesmo nos Estados
Unidos, comissões e conselhos de estudiosos iniciaram
um processo de reavaliação das diretrizes governamen-
tais sobre combate ao narcotráfico e ao consumo de dro-

138
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

gas proibidas. Em 1996, o Council on Foreign Relations


(Conselho de Relações Exteriores), centro de pesquisa
sediado em Nova Iorque, organiza um encontro com a
participação de profissionais e acadêmicos das mais di-
versas procedências para criticar os rumos tomados
pelos governos estadunidenses desde a declaração de
“guerra às drogas” proferida pelo governo de Richard
Nixon, em 1972. A síntese dos ítens discutidos veio a
público no ano seguinte13, trazendo como principal men-
sagem a necessidade de uma reforma sutil no proibicio-
nismo. O mote que incitou a discussão foi a constatação
de que a “guerra às drogas”, como política deliberada de
ataque à oferta e à interceptação dos carregamentos de
psicoativos, fracassara em seu intento: o tráfico conti-
nuava a crescer, assim como o número de usuários no
Estados Unidos. Para os especialistas reunidos pelo
Council, a tônica das iniciativas governamentais deve-
ria ser direcionada para a demanda por drogas
psicoativas, por meio de campanhas de orientação a jo-
vens e apoio ao tratamento daqueles que desejassem
se “desintoxicar”. Em outras palavras, os milhões de
dólares anuais dispensados pelo governo estadunidense
para combater organizações narcotraficantes no país e
fora dele, seriam mais bem empregados se destinados
ao cuidado com os usuários e com os possíveis futuros
consumidores.
O proibicionismo não é, de forma alguma, contestado
em seus princípios. As drogas ilícitas deveriam assim
permanecer e o consumo desses compostos teria de ser
desencorajado ainda com mais determinação. A crítica
era destinada à ênfase militarista da “guerra às drogas”
e não à Proibição. Na lógica dos participantes do foro, o
único caminho consistente para eliminar o uso de
psicoativos era impedir a constituição de novos consu-
midores. A permanência do narcotráfico, segundo essa

139
6
2004

avaliação, decorria da desatenção governamental ao


usuário, já que lhes parecia evidente que sem procura
não há oferta. As ações preventivas, no entanto, não
eram uma completa novidade nos Estados Unidos; ao
menos, desde 1983, programas educativos em escolas
públicas foram elaborados para expor os perigos das dro-
gas. Naquele ano, o departamento de política de Los
Angeles pôs em prática um projeto de orientação sobre
drogas para colégios chamado Drug Abuse Resistence
Education – D.A.R.E. (Educação para a Resistência ao
Abuso de Drogas)14. Disseminado posteriormente pelo
país, o D.A.R.E. levou às classes de 5a e 6a séries polici-
ais uniformizados que se propuseram a explicar aos alu-
nos os efeitos maléficos dos psicoativos e as táticas para
evitar a armadilha das drogas15. A experiência dos edu-
cadores fardados foi exportada para outros países, como
o Brasil, onde policiais militares vêm, desde o final da
década de 1990, participando de projetos similares16. No
discreto reformismo proibicionista, as críticas se
direcionam ao modo de manutenção do combate às dro-
gas, mas não ao combate em si. As substâncias perma-
necem banidas pelas avaliações de cunho médico-psico-
social que ocultam mal os veios moralistas nelas
identificáveis.
Formas mais contestadoras ao proibicionismo podem
ser encontradas no heterogêneo conjunto de iniciati-
vas conhecido como redução de danos. Aplicadas em al-
guns países, principalmente europeus, desde os anos
1980, as políticas de redução de danos partem de um
princípio oposto ao da proibição no que concerne ao uso
de drogas psicoativas. Para seus partidários, a meta
proibicionista de banir o uso de drogas das sociedades é
um objetivo inalcançável. A demanda sempre existirá,
pois “não há na história uma sociedade que não tenha
usado substâncias psicoativas”17. Frente à impossível

140
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

redução do uso, a realizável redução de prejuízos ao usu-


ário.
O primeiro alvo das políticas de minimização dos da-
nos foi os usuários de drogas injetáveis. A expansão dos
casos de AIDS, em meados da década de 1980, motivou
a defesa por parte de médicos e ativistas holandeses e
ingleses, a adoção de programas estatais de troca de
agulhas. Os usuários poderiam encontrar ajuda em es-
tabelecimentos ou unidades móveis oficiais que forne-
ceriam novas agulhas e seringas e poderiam prestar
apoio psicológico, testes de pureza da heroína adquirida
ilegalmente, exames para detectar o HIV, além de even-
tuais indicações para tratamentos de desintoxicação.
Montados nas malhas assistenciais do welfare state, as
iniciativas de troca de agulhas justificavam-se a partir
do pragmatismo redutor de danos: frente à impossibilida-
de em impedir que usuários injetem heroína, que ao
menos passem a injetar com maior segurança.
As políticas de redução de danos foram concebidas
como uma estratégia para atrair o usuário de drogas
injetáveis por meio de uma abordagem que não o consi-
derasse um criminoso, mas alguém que inspirava cui-
dados. Os consumidores usuais destas substâncias pas-
sam a ser tidos como indivíduos “com hábitos de mal
adaptação que precisam de tratamento”18. Desse modo,
é possível notar a migração que houve de uma visão
estritamente penalizadora para outra que investe na
terapeutização de comportamentos. Pequeno desloca-
mento, as propostas redutoras de danos não se apresen-
taram como ruptura ou afronta direta ao regime legal
da Proibição.
Encarada como uma alternativa para a política de
drogas, as indicações para minimizar prejuízos do uso
de psicoativos não são, necessariamente, posturas fa-

141
6
2004

voráveis ao consumo destes compostos. Ao contrário,


autores como Marlatt19 e Lurie20 fazem questão de fri-
sar que as políticas de redução de danos não formam
um corpo de idéias favoráveis ao uso de drogas, tampouco
à flexibilização demasiada das leis antipsicoativos. Se-
gundo esses especialistas, a Proibição é nociva porque
desconsidera o usuário em sua dimensão pessoal, con-
siderando-o um mero infrator. A atenção que uma pers-
pectiva redutora de danos assume para com o usuário
teria a grande vantagem de romper com a estigmatização
do consumidor que o lança em circuitos marginais e
em padrões “pouco saudáveis” de intoxicação. Nesse
sentido, as leis antidrogas devem ser transformadas,
principalmente, no que diz respeito à sua aplicação so-
bre os usuários. Assim, as políticas de redução de danos
não têm dificuldades em defender a descriminalização
das substâncias psicoativas ilícitas.
A reforma legal que implemente a descriminalização
de psicoativos proibidos abranda o modo como os indiví-
duos flagrados com drogas ilícitas são tratados juridica-
mente. A legislação estabelece quotas consideradas para
“uso pessoal” que identificam o usuário; qualquer indi-
víduo que leve consigo quantidade acima do permitido
pela lei, são considerados traficantes. Flagrado por um
policial, o indivíduo classificado como “usuário” pode ser
obrigado a prestar serviços comunitários, pagar multas
administrativas, comparecer a grupos de educação so-
bre drogas ou, se avaliado como “adicto” pela Justiça,
ser internado para tratamento compulsório de desinto-
xicação. Países como a Inglaterra e a Holanda têm leis
abrandadas no sentido da descriminalização para a
maconha, mas mantém o proibicionismo para outras
substâncias como a heroína, a cocaína e as drogas sin-
téticas como o LSD e o ecstasy. Em Portugal vigora, des-
de 2002, uma nova lei que descriminalizou o uso de to-

142
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

das as drogas ilícitas instituindo sanções alternativas


ao encarceramento.
A tendência das leis proibicionistas reformadas vem
sendo o relaxamento das leis que penalizam o usuário
acompanhado do endurecimento nas leis contra o
narcotráfico. A manutenção da produção e da comercia-
lização de psicoativos como crime propicia cenários nos
quais o mercado negro permanece intocado e os consu-
midores não deixam de ser assediados, ainda que de
modo distinto21. Para os negociadores de drogas ilegais,
continuam cabendo as mesmas medidas de repressão
policial que movimentam as engrenagens governamen-
tais e a busca de alvos entre os segmentos “perigosos”
da população; para os usuários, não há mais o encami-
nhamento para o sistema prisional, mas o controle se
dá em novos termos, por meio de uma vigilância médi-
co-jurídica que o lança em outros campos de regulamen-
tação.
O deslocamento realizado pela descriminalização de
psicoativos é perfeitamente assimilável dentro de um
ambiente legal proibicionista; pois institui padrões mo-
dificados e novas gradações de controle sobre todos os
envolvidos com substâncias ilícitas. Os defensores das
políticas de redução de danos podem se satisfazer com a
descriminalização porque não há uma defesa explícita
do uso de drogas em tal postura. O uso de drogas é nota-
do como uma fatalidade, não como desejável ou, sim-
plesmente, como um dado social. Situação alguma se-
ria mais ideal que a total abstinência: dano algum ocor-
reria, medida alguma para minimizar sofrimentos seria
necessária. No entanto, a abstinência é uma utopia; a
utopia das políticas de redução de danos. Inalcançável,
a redução do uso deve ser substituída como objetivo pela
melhoria nas condições de consumo. O proibicionismo
visa um impossível “mundo livre das drogas”, portanto,

143
6
2004

há que se encarar a inevitabilidade do uso de drogas e


trabalhar para minorar prejuízos ao indivíduo e à socie-
dade. Desse modo, apenas um proibicionista ortodoxo
pode encontrar alarme nas propostas de redução de da-
nos.
Análises mais críticas aos efeitos da Proibição che-
gam a pleitear a urgência da legalização das drogas, re-
forma legal mais profunda que colocaria os psicoativos,
hoje banidos, em uma situação similar aos dos legais
álcool e tabaco. Em linhas gerais, os argumentos pró-
legalização giram em torno da avaliação de que “a proi-
bição e a aplicação da proibição impõem custos sociais
que superam o valor das metas que ambiciona a proibi-
ção [os custo sociais do uso de drogas]”, além de “criar
um mercado negro ameaçador (...) sem diminuir consi-
deravelmente a quantidade de drogas consumidas”22. A
percepção preliminar é muito próxima daquela que fa-
zem os proibicionistas do Council on Foreign Relations e
os partidários da redução de danos, pois se fia na noção
de que a política de tolerância zero contra o uso e o mer-
cado de drogas ilícitas não produziu o resultado espera-
do da queda do consumo e fim do narcotráfico.
Defensores mais ousados das políticas de redução de
danos, como Marks23, chegam a pleitear a legalização
das drogas como meio para a consecução das metas de
diminuição de prejuízos sociais e individuais. Essa le-
galização deveria ser, no entanto, conduzida com firme-
za pelo Estado, por intermédio de mecanismos de con-
trole eficazes de fiscalização da produção e da comer-
cialização de psicoativos. A modalidade de legalização
estatizante, como a defendida pelo autor, prevê um mer-
cado lícito para as substâncias psicoativas hoje ilegais
sob total controle do Estado: da produção à venda ao con-
sumidor, o processo seria comandado por agências es-
tatais criadas para esse fim. A garantia do acesso a dro-

144
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

gas de boa qualidade aliada aos preços acessíveis e à


ausência de punição ao hábito de se intoxicar, levaria
os usuários à esfera legal do consumo de drogas, ma-
tando o narcotráfico por inanição. A desarticulação do
mercado clandestino traria um considerável ganho em
termos de segurança social, pois vedaria a principal fon-
te de lucros de incontáveis organizações ilegais, ao
mesmo tempo em que poria fim à violência dos comba-
tes entre polícia e narcotraficantes. Além disso, a lega-
lização estatizante faria de todo ponto de venda oficial
de psicoativos um centro de educação visando
“conscientizar” sobre o uso destes compostos.
Em um caminho mais radical, há aqueles que, como
os economistas neoliberais da Escola de Chicago, pre-
gam a legalização sem controle estrito do Estado. Dessa
perspectiva, as substâncias psicoativas são vistas como
uma mercadoria amplamente desejada e que deve ser
regulada pelas forças de mercado, sem intromissão es-
tatal. Lastreia essa premissa o princípio liberal que re-
conhece o indivíduo como unidade racional que tem o
direito de eleger as práticas que lhes digam respeito,
sem prestar contas disso a outrem ou ao Estado. Qual-
quer hábito privado, ainda que nocivo ao indivíduo, é
válido desde que assim permaneça. Nesse sentido, toda
gestão externa à vida privada é intolerável. Cabe ao Es-
tado intervir quando o exercício da liberdade de um su-
jeito afrontar o espaço de liberdade de outro sujeito. Em
uma palavra, os danos que alguém causa a si estão no
soberano plano das escolhas individuais, campo vedado
à normatização exterior. Os prejuízos àqueles que vi-
vem com o usuário de psicoativos podem existir, mas
por si só não justificam uma proibição ampla e univer-
sal que avilte a supremacia do indivíduo em eleger os
caminhos para si. A legalização liberal responde às pre-
ocupações dos entusiastas da redução de danos com uma

145
6
2004

lógica menos humanitária e aos defensores da legaliza-


ção estatizante, com argumentos anti-autoritários.
Em todos os casos mencionados — proibicionismo
com enfoque na demanda, políticas de redução de da-
nos, descriminalização, legalização estatizante ou li-
beral — percebe-se um ímpeto que contesta em graus
variados o proibicionismo. No entanto, nenhuma das
propostas foge à mesma lógica em que repousa a Proi-
bição; todos estão no campo da normatização. As indi-
cações para reforma da repressão total ao narcotráfico
e ao consumo de drogas psicoativas transitam ainda
no campo da legalidade, sugerindo alterações também
universais. O inconteste avanço com relação à Proibi-
ção esbarra na vontade de produzir outras estruturas e
padrões que não se pode perceber como necessariamen-
te favoráveis ao consumo de drogas. Nas medidas de
redução de danos, o fatalismo referente ao uso de dro-
gas norteia as ações; nas reformas de descrimina-
lização, o usuário é enredado por redes mais sutis que
as grades do sistema prisional, mas não deixa de sê-lo;
na defesa da legalização pela via do monopólio estatal,
há a possibilidade de um controle potencializado dos
usuários e na legalização liberal, uma redução do uso
de psicoativos em termos utilitários e individualistas.
O direito, terreno onde se cristalizam as demandas
morais, segue sendo o agenciador a mediar a relação
entre os indivíduos e as drogas psicoativas; razão pela
qual se pode pressupor o porquê da grande difusão des-
tas visões alternativas como legítimos vetores críticos
ao proibicionismo.

Éticas & incômodos


O psicanalista estadunidense Thomas Szasz, ao ques-
tionar a proibição das drogas psicoativas, enfatizou a

146
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

necessidade de que se fosse além da mera reformulação


em termos legais do controle de drogas. Para Szasz há
pouca diferença entre os proibicionistas e os defenso-
res da legalização, pois estes últimos se arvorariam a
regulamentar o que já é extremamente restrito, como
se algo já “legal pudesse ser legalizado”24. O autor cha-
ma a atenção para o fato de que as políticas de legaliza-
ção criariam uma espécie de “socialismo químico”25, com
o Estado monopolizando todo o circuito de produção e
venda de psicoativos; situação que instauraria outras
modalidades de vigilância sobre os consumidores. Filiado
ao que se poderia chamar de liberalismo radical, Szasz
nutre profunda ojeriza pela substituição de uma legis-
lação negativa por outra positiva: muitas semelhanças
existiriam entre uma situação legal em que o Estado
interfere nas condutas individuais e nos grupos sociais
tidos como ameaçadores com a justificativa de aplicar a
Proibição e um ambiente no qual o consumo fosse per-
mitido sob determinadas circunstâncias ditadas por um
Estado agigantado. A planificação química levaria adian-
te a apropriação que os Estados ocidentais realizaram
da medicina como recurso fundamental para o
esquadrinhamento social, formando o que Szasz chama
de “Estados Terapêuticos”26. Em termos foucaultianos, o
proibicionismo agrega à marcha da governamentalização
do Estado, técnicas de disciplinarização ampliadas que
reforçam as positividades de um aparato de governo que
se coloca como fornecedor de saúde e bem-estar, ga-
nhando livre passagem nas mais sutis táticas de vigi-
lância e condicionamento dos sujeitos sujeitados27. A
legalização, por seu turno, não levantaria as guardas
deste Estado provedor de vida, mas, em sentido oposto,
tornaria mais sofisticada a normalização dos corpos ao
produzir novos lugares, circuitos e identidades.

147
6
2004

Uma reforma progressista destinada a descrimina-


lizar um leque de substâncias psicoativas sem abdicar
da reprovação médico-jurídica, não produziria mais que
uma outra modalidade de encarceramento: o usuário
identificado como um doente não deixa de ser enqua-
drado como um anômalo social; não mais o criminoso,
mas o empestado, que deve ser isolado para que não
cause mal a si e à sociedade. Confinado não na prisão,
mas no hospital psiquiátrico, o paciente da sociedade deve
sofrer intervenções saneadoras que o restabeleçam para
sua ótima reinserção entre os corpos saudáveis e produ-
tivos. A lógica, como se nota, é a mesma dos reformadores
das prisões que pregaram, nos séculos XVIII e XIX, a
urgência em transformar as masmorras em humanitá-
rias fábricas de novos cidadãos. Nesse sentido, a cons-
trução de novas leis não desmonta, mas, ao contrário,
reforça e legitima padrões outros de controle e confina-
mento.
As novas modalidades de intervenção podem se dar
por meio de leis abrandadas se for levado em conta, como
afirma Gilles Deleuze, que à sociedade disciplinar des-
crita por Foucault — aquela em que a produção de sub-
jetividades se dá em mecanismos como a prisão, a es-
cola, a família e o exército — sobrepõe-se uma socieda-
de de controle que “funciona não mais por confinamento,
mas por controle contínuo e comunicação instantâ-
nea”28. Numa sociedade de controle os sujeitos não são
conformados em definitivo; são submetidos e vigiados
por intermédio da formação permanente, num processo
que os transforma em uma cifra a transitar por fluxos
cibernéticos. Não mais o operário da fábrica, mas o ge-
rente da empresa; não mais o estudante graduado, mas
o aluno eterno que necessita reciclar-se; não mais so-
mente um número na cédula de identidade, mas tam-
bém as senhas sem as quais nada se acessa. Nesse

148
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

ambiente do controle perpétuo, o regime das prisões —


forma mais bem acabada da ortopedia disciplinar — pode
ceder espaço para “penas ‘substitutivas’, ao menos para
a pequena delinqüência, e [à] utilização de coleiras ele-
trônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em
certas horas”29. Não é preciso manter o indivíduo sob os
olhos de um outro, na posição de vigia. Os recursos
tecnológicos presentificam o big brother de George Orwell
ou a versão eletrônica do panóptico de Jeremy Bentham
e, desse modo, aquele que deve ser controlado não deixa
de sê-lo por não estar atrás dos muros da prisão.
A partir dessa perspectiva, tem-se que as drogas en-
tendidas pelos especialistas do Estado como leves não
levariam a nada mais grave do que crimes brandos. Os
mais ousados progressistas defendem, até mesmo, a
flexibilização para as drogas ditas pesadas, como a he-
roína e a cocaína, desde que haja uma supervisão estri-
ta do aparato médico estatal. Assim, o ajuste penal pode
transcorrer sem causar surpresas, uma vez que estão
em movimento novos recursos para rastrear e mesmo
confinar temporariamente (os tratamentos de desinto-
xicação compulsórios). As críticas ao proibicionismo
impressas nos discursos pela descriminalização e pela
legalização (estatizante ou liberal) são assimiláveis por-
que transitam num repertório que não é estranho ao
que sustenta a Proibição. Vibrando no mesmo diapasão,
defensores da descriminalização, da redução de danos e
das modalidades de legalização jogam com o mesmo re-
curso do regime contra o qual se opõe, pois exigem o
soerguimento de um corpo jurídico de novas formas e
cores, mas ainda um código normativo amplo e regula-
dor. As forças sociais progressistas pregam a necessi-
dade imperiosa em regulamentar em outros termos as
relações entre usuários e os psicoativos hoje banidos; o
que significa novas leis que permitam o acesso às dro-

149
6
2004

gas. Tais leis, no entanto, teriam o mesmo perfil das


leis proibicionistas, já que seriam universais e imposi-
tivas. Os partidários das leis reformadas poderiam con-
tra-argumentar afirmando que a flexibilização das leis
é menos autoritária que a Proibição, pois deixariam a
cargo do indivíduo a eleição sobre usar ou não substân-
cias psicoativas. De fato, há poucas atitudes mais
impositivas do que o proibicionismo, entretanto, a eco-
nomia das penas, ponto de apoio do direito, não se aba-
la, mas antes, reafirma-se como foro legítimo para a de-
liberação das questões sociais e dos desejos individu-
ais. O que se questiona aqui, portanto, é a validade em
se construir leis universais no lugar de uma já pre-
existente.
Ao se perguntar como seria possível legalizar algo já
legalizado, Szasz provocava a reflexão exatamente des-
te ponto. A Proibição foi, em si, um grande movimento
que trouxe para o âmbito das regulamentações legais
temas que antes do início do século XX passavam ao
largo das preocupações jurídicas. Relações não previs-
tas em lei, mas existentes e difundidas socialmente,
foram encampadas pelas normas e, por conseguinte, pelo
Estado. O campo do uso de psicoativos foi, talvez, um dos
últimos a ser colonizado pela medicalização da socieda-
de, pela intervenção ampliada dos mecanismos de con-
trole governamentais sobre os indivíduos e sobre os gru-
pos sociais. Estratégia prenhe de possibilidades para o
reforço da necessidade do Estado em garantir a ordem
pública, a disciplina das coisas, a pacificação dos des-
contentamentos e a manutenção da propriedade. Se,
como afirma Foucault, “a classe no poder se serve da
ameaça da criminalidade como álibi para endurecer o
controle da sociedade”30, a Proibição produziu delinqüen-
tes do lado dos consumidores e dos negociadores de
psicoativos, fato que ativa um filão fértil para a repres-

150
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

são e o policiamento das populações. Diante do impasse


colocado pelas propostas de reforma legal que não abdi-
cam da vigilância — nem a desarticulam —, Szasz de-
fende o caminho da deslegalização: a legalização é até
tolerada pelo estadunidense como uma estratégia, se a
meta for a abolição das leis sobre drogas31. Nem proibir,
tampouco permitir; simplesmente desregulamentar.
O argumento histórico levantado pelos entusiastas
da redução de danos e da legalização, de que não há so-
ciedade humana que não tenha estabelecido relações
com alguma droga psicoativa, ressurge com outro po-
tencial. O uso de psicoativos é e foi parte dos repertórios
culturais de diversos povos, fato que desencoraja a con-
secução de qualquer proposta que vise a supressão defi-
nitiva da ebriedade química entre os homens. Esse fato,
no entanto, não significou o desmembramento das co-
munidades, a desestruturação da vida social. No entan-
to, uma mesma mirada histórica que se interesse tam-
bém pelas relações de poder que perpassam os contro-
les sobre drogas psicoativas, traz à vista incríveis
potencialidades para a gestão de vidas individuais e de
grupos sociais. Não é hermético ou de difícil assimila-
ção notar a Proibição como técnica de governo dos vivos;
entretanto, é preciso rastrear suas procedências e tal
ímpeto leva invariavelmente ao campo da moral.
A defesa da legalização ou de transformações legais
intermediárias é plausível não só porque se propagam
no mesmo espaço e lógica do proibicionismo, mas tam-
bém porque não afrontam o rechaço moral à intoxica-
ção. Sob as camadas de discursos médicos e jurídicos
jaz a reprovação moral aos psicoativos; sob a articula-
ção entre a necessidade em salvaguardar a salubridade
e a segurança públicas, encontra-se a vontade de prote-
ger a moralidade pública. A batalha contra as drogas
psicoativas é uma luta aparentada àquela contra o sexo,

151
6
2004

na medida em que o alvo, o grande incômodo é o prazer


em vida. As “desintegrações de lares”, as “destruições
de vidas” e tragédias similares soam no diapasão da re-
provação ao gozo de si. A satisfação que provém do dis-
por de si parece intolerável a qualquer campo de
moralidade, já que a moral exige padrões de comporta-
mento universais. A emergência de condutas criadas
na localidade que prescindam de normas globais — e,
portanto, normalizações — é insuportável para as
moralidades, pois rompe com o padrão, com a previsi-
bilidade de comportamentos.
A liberação das drogas significa a deslegalização, a
desnormatização, mas não a inevitabilidade do
desregramento. A desmesura e a continência são am-
bos comportamentos possíveis no campo das opções par-
ticulares. Indivíduos abstinentes, usuários comedidos
e aqueles sem controle existem em tempos de Proibi-
ção Universal e não desapareceriam num mundo sem
regulamentação legal. As escolhas sobre si, apesar das
conformações que visam disciplinar o corpo e apaziguar
os instintos, seguem vivas e irrepresáveis. A relação de
alguém com uma substância psicoativa pode ter
incontáveis motivações; pode ser um contato religioso
ou ritual, um signo de identidade grupal ou simples
hedonismo. Os usos não são passíveis de catalogação,
nem são necessariamente libertários ou autoritários.
Entretanto, é possível conceber que as regras a nortear
o consumo destes compostos possam se dar na localida-
de, sendo formuladas pelos interessados diretos. As re-
gras locais, diferente das leis proibicionistas ou progres-
sistas, são flexíveis, maleáveis, forjadas pelos indivídu-
os que vivenciam concretamente a situação sobre a qual
pensam e regulamentam. Não há, portanto, a trans-
cendentalidade da norma, a metafísica do direito.

152
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

A noção de bem-comum desvanece na medida em


que éticas locais32 estabelecem seus parâmetros, suas
linhas de condução. A ausência de receituário quando
se pensa em liberação ou abolição das leis anti ou pró-
drogas transtorna tanto como ouvir uma língua da qual
se compreende pouco. É um transtorno de linguagem,
um abalo a noções cristalizadas, um rasgo profundo e
quase ininteligível.
Todavia, a escolha sobre o que fazer de si independe
de rupturas legais. Aliás, esse trabalho de agir sobre
sua própria existência compondo um trajeto que se su-
bleve contra as formatações externas começa com uma
decisão. Decidir sobre si é uma atitude, não uma modi-
ficação legal, não um novo cânone moral. Não é, desse
modo, uma utopia, uma projeção para um mundo vindo
após um ato heróico ou redentor. As práticas de si são
dadas no particular de cada existência33, são confeccio-
nadas por poucos e para poucos. Dependem das ações e
das posturas inventadas por cada um, não de uma cria-
ção proveniente de cima e destinada a todos. O que fa-
zer com a desmesura, com a incontinência? É o mesmo
que se questionar sobre o que fazer com a morte. Na
contramão, poder-se-ia perguntar: o que fazer com a
vida? O você faz de si?
A eliminação do sofrimento é uma das utopias
humanistas mais fortes e presentes. A dor do outro é
insuportável para a sensibilidade ocidental e, como con-
seqüência, o incontornável compadecimento. Quando
Antonin Artaud vociferava contra a proibição do ópio afir-
mando que “os perdidos estão por natureza perdidos” e
que, por isso, “todas as idéias de regeneração moral nada
farão por eles”34, afirma que a ânsia de salvação vibra
na mesma freqüência da preocupação humanista com
as mazelas sociais e que não há proibição que barre os
intuitos daqueles que querem destruir-se. Pode-se sus-

153
6
2004

tentar, em adição, que a ilegalidade leva a um obscu-


rantismo que pode, ele sim, levar à destruição não vo-
luntária: numa bala que atinge um soldado do tráfico,
na overdose que mata um usuário de heroína.
A reprovação moral às drogas é um episódio da ojeriza
à gestão de si. Agir para a produção de uma ética de si,
em termos foucaultianos, é mais e menos do que defen-
der o uso de psicoativos. Num mundo em que a norma é
abolida em cada um de nós, não há espaço para preconi-
zar o uso ou o não uso. O padrão cede lugar às condutas
e às relações que são estabelecidas entre aqueles que
decidiram não ser o que se espera, mas o que se quer
ser. Não num futuro, mas no incômodo que se dá no
presente, ao lado, dentro, fora, pelas minhas frestas.

Notas
1
W. McAllister. Drug diplomacy in the XXh century. Londres, Routledge,
2000.
2
A. Escohotado. Historia elemental de las drogas. Barcelona, Anagrama, 1997.
3
T. Szasz. Nuestro derecho a las drogas. Barcelona, Anagrama, 1993.
4
E. Passetti. Das ‘fumeries’ ao narcotráfico. São Paulo, EDUC, 1991; e A.
Escohotado. Historia de las drogas, vol. 2., Madrid, Alianza, 1998.
5
T. Szasz. op. cit.
6
M. Foucault. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1997; e “A gover-
namentalidade” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1998.
7
M. Foucault. “ O nascimento da medicina social” in Microfísica do poder.
Rio de Janeiro, Graal, 1998.
8
M. Foucault. “Nascimento da biopolítica” in Resumo dos cursos do Collège de
France. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, p. 89.
9
Idem. “Soberania e disciplina” in op. cit., 1998, p. 189.
10
W. McAllister. op. cit.
B. Carneiro. A vertigem dos venenos elegantes. São Paulo, Dissertação de
11

mestrado, PUC-SP, 1993.

154
verve
Drogas e liberação: enunciadores insuportáveis

12
G. A. Marlatt. “Redução de danos: uma breve história” in G. A. Marlatt
et all.. Redução de dano. Porto Alegre, Artmed, 1999.
13
M. Falco. Reflexiones sobre el control internacional de las drogas. México,
Fondo de Cultura Económica, 1997.
14
É importante notar que a sigla D.A.R.E. significa, em inglês, “desafio” ou
“ousadia” e seus verbos correspondentes.
G. A Marlatt. “Princípios e estratégias de redução de danos” in G. Allan
15

Marlatt et all. op. cit.


16
G. Corrêa. “Escola-droga” in Verve, n 1. São Paulo, Nu-Sol, abril 2002.
J. Marks. “Dosagem de manutenção de heroína e cocaína” in M. Ribeiro
17

& D. Seibel (orgs.). Drogas: hegemonia do cinismo. São Paulo, Memorial da


América Latina, 1997.
K.Wingardt & G. A. Marlatt. “Redução de danos e políticas públicas” in
18

G. A. Marlatt et all. op. cit., p 254.


G. A. Marlatt. “Princípios e estratégias de redução de danos” in G. A.
19

Marlatt et all., op. cit.


20
P. Lurie. “Redução de danos: a experiência norte-americana” in M. Ribei-
ro & D. Seibel (orgs.), op. cit.
21
M. Kleiman & A. Saiger. “Impuesto, regulaciones y prohibiciones: vuelve
a formularse el debate por la legalización” in P. Smith (org.). El combate a las
drogas en América. México, Fondo de Culura Económica, 1993.
22
M. Kleiman & A. Saiger. op. cit., p. 292.
23
Idem.
24
T. Szasz, op. cit., p. 152.
25
Idem, p. 148.
26
Ibidem.
27
M. Foucault. “O nascimento da medicina social”, op. cit.
28
G. Deleuze. “Controle e devir” in Conversações. São Paulo, Editora 34, p.
216.
29
Idem. “Post-scriptum: sobre a sociedade de controle” in Conversações, op.
cit., p. 225.
30
M. Foucault. “A prisão vista por um filósofo” in Estratégia, Poder-saber,
col. Ditos & Escritos IV. Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 157.
31
T. Szasz, op. cit., p. 206.

155
6
2004

32
E. Passetti. Éticas dos amigos: invenções libertárias da vida. São Paulo, Imagi-
nário, 2003.
M. Foucault. História da sexualidad2: o uso dos prazeres,vol. 2. Rio de Janeiro,
33

Graal, 2001, p. 30.


34
A. Artaud. “Seguridad general: la liquidación del opio” in Textos. Buenos
Aires, Aquarius, 1971, p. 79.

RESUMO

Análise da gestação e cristalização do proibicionismo de substân-


cias psicoativas; os desdobramentos de sua lógica presentes nas
políticas de redução de danos, descriminalização e legalização. O
incômodo provém da liberação de si.

Palavras-chave: drogas, proibicionismo, liberações.

ABSTRACT

Analysis of the construction and establishment of the psicoactives


substances’ prohibitionism; the continuity of its logics in harm
reduction, discriminalization and legalization policies. The
annoyance comes from the liberation of the self.

Keywords: drugs, prohibitionism, liberations.

156
verve
Incomodando

incomodando

silvio ferraz*

O que faz com que a gente comece a escrever uma


música?
Quando é que se começa a escrever qualquer coisa?
O que faz com que a gente queira sair da cama de ma-
nhã?
Seria isso o incômodo?
Talvez.
Como entender incômodo? Prefiro talvez pensar em
inquietação.

Algo me inquieta. Alguma coisa me tira da cama, algu-


ma coisa me leva a não ficar parado, a me mexer, e logo.
Mas e se essa alguma coisa for grande demais? Daí eu
fico parado e não faço nada. Enrolo na cama o que posso.
Deixo o dia passar entre os dedos e nem quero pensar
nisso. Olho e olho pro papel de música e não escrevo nada.

* Compositor e professor no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comu-


nicação e Semiótica da PUC/SP.

verve, 6: 159-168, 2004

159
6
2004

Sento-me ao piano e começo a tocar qualquer coisa. Como


se aquilo fosse aplacar essa inquietação, essa coisa que
quer existir, mas fica pesada demais pra existir.
Fazer música é viver o tempo todo este incômodo. O
que é esse incômodo, essa inquietação? Ela é a diferença,
ela é o movimento, a condição de realizar potências, a con-
dição da idéia. Essa inquietação é a linha de fuga que
emerge em meio à ciranda diária de demarcar lugares,
de deixar rastros e rastros expressivos de um território
demarcado. A inquietação é uma das manifestações des-
se desenho constante, incessante, mas descontínuo, de
ritmo irregular e insistentemente passageiro.
Ser afetado por uma inquietação é notar, é ver a tal da
linha de fuga, da linha que traça o percurso centrífugo:
deixar de ficar aqui parado e me sentar ao piano e come-
çar a tocar algo e escrever uma linha ou outra, depois
atender ao telefone e daí escrever uma carta pra alguém,
ler um trabalho infernal, ler outro trabalho infernal e ir a
uma reunião imaginária, terminar um projeto e daí es-
crever mais uma linha de música e tocar mais um pouco,
enfiar a mão nos bolsos e dar um dinheiro à empregada
pra comprar alguma coisa imensamente necessária para
o almoço, acender uma lâmpada porque ficou escuro, apa-
gar a lâmpada por que não é tão necessário assim e sair
de casa pra tomar um café ou quem sabe dar uma volta no
parque encontrar com alguém, ter mil idéias e compor
muitas muitas músicas andando pelo parque querer vol-
tar pra casa pra registrar tudo, voltar e tomar um banho,
terminar o banho e dar um cochilo e daí lembrar que é
hora de ir jantar, ou que é hora de ir dar aula, ou que é
preciso sair? pra uma nova reunião infernal com algum
estudioso sério das comunicações e ouvir no rádio do car-
ro algum cantor fingindo que é moderno e manifestando
suas vontades de ter dinheiro, vontade de ter sucesso, von-
tade de vender muitos discos e deixar o pai, a mãe, o ir-

160
verve
Incomodando

mão satisfeito e poder convencer algumas meninas de que


aquilo sim é que é música, aquilo sim é que é cantar e
você ali desligando o rádio infernal do carro e parando por-
que finalmente chegou onde tinha que chegar e chegan-
do lá ter mais e mais idéias de uma música que talvez
seja escrita um dia sabe-se lá quando, mas é claro que
será escrita quando você tiver tempo e vai ter tempo de-
pois que ler todas as teses que tem que ler, depois de ler
as dissertações e aprovar e desaprovar alunos em cerimo-
niais de qualificação e de defesa e em comissões de bol-
sistas e logo lembrar que tudo aquilo não pode ser feito
porque tem um projeto importante a ser levado adiante.
Essa é a linha de fuga, isso é o sair do centro e entrar a
todo tempo em uma nova ciranda, em uma nova cantiga
de roda, em um novo ritmo circular que crava um centro,
que se vale de uns movimentos e de algumas coisas que
estão ali por perto (jogar a mochila na poltrona da sala
depois largar uma calça amarrotada na maçaneta do ba-
nheiro e sair por aí deixando marcas e marcas) tudo de
modo a contracenar o centro, o giro e os outros centros e
outros giros que nos levam a um novo centro, um novo
giro.
Mas tem uma hora em que a gente pára. Tem um mo-
mento em que sentar ao piano não é só sentar-se ao pia-
no e não rapidamente sair dali como se algo estivesse in-
comodando mais ainda. É ficar quase que imóvel, esco-
lher umas notas, tamborilar um pouco, ouvir um som, rodar
em volta dele, rodar um pouco mais e daí começar a dese-
nhar alguma coisa. Uma nova brincadeira. Ao invés de
correr de um lado para o outro é como se tudo se fechasse
em um único plano: o piano, os dedos, a madeira do piano,
o cheiro da poeira que assentou com os dias sem tocar,
um pouco do barulho que vem de fora. Mas é só um pouco
deste barulho e se o barulho aumenta vem uma força que
faz com que a janela seja fechada, com que haja forças

161
6
2004

para se levantar, ir até a varanda, dar uma olhada para


fora, fechar a porta de correr e voltar para o piano. O movi-
mento é outro. Não é mais de abrir é de fechar, é de viajar
sem sair do lugar. Visto de longe parece que o barato é
fazer um lugar, desenhar um cantinho. É assim que a
criança parece fazer quando canta uma cantiga pra si mes-
ma. Mas se para a criança aquilo era o suficiente para
fazer um muro, para desenhar um entorno, não é sempre
assim que as coisas acontecem. Eu desenho um muro,
um muro feito de notas que soam ao piano, ou mesmo que
soam em minha cabeça, ou que ressoam junto com a ma-
quina de fazer bolhas do aquário, ou por que não um carro
que passa na rua. Mas desenhado o muro a viagem pede
para continuar. É toda uma potência que encontra lugar
para acontecer. Acontecer logo antes que alguém tenha o
poder de interromper tudo: um telefonema de alguém que
pede dinheiro, o computador anunciando que mais um e-
mail acaba de chegar, a porta… a campainha da porta,
para alguns o interfone… pode ser que comece a soar em
breve. O tempo é pouco se visto assim. O tempo é pouco e
é preciso enfiar em meio disto um pouco de tempo puro,
de um tempo sem medida, de um tempo sem espera, de
um tempo sem expectativa, sem previsão de um fim. Um
infinito, como um deserto que se desenha na superfície
do pedaço de papel que olho de relance e me deixo levar,
ou as dunas e altas montanhas do brim da calça redobra-
do. Preciso deste tempo puro, deste pouco de duração. An-
tes que alguém traga de volta o tempo cheio de estrias do
relógio, o tempo cheio de marcações e marcações, e no-
mes, e estratégias, e vícios e caminhos já percorridos que
se impõem para serem percorridos de novo. O muro pode
jogar tudo pra fora, mas o muro não tem força suficiente
para ficar de pé. Preciso fortalecer o muro. Volto para o
piano. Volto a tocar as notas que desenhavam melodias
circulares, fazendo pequenas marcas no espaço e eu ouço
cada marca. Elas não são mais dedos no teclado, não são

162
verve
Incomodando

mais relações tão simples. Elas são marcas, são marcas


que de quando em quando se afastam e se tornam de uma
força irreconhecível, eu até posso contar com elas e elas
são tão grandes que nem sequer consigo saber do que se
trata. São muito grandes. E nessa grandeza sinto-me fora
de casa, me sinto com aquela vontade estranha de sair
dali, de dormir, de deixar tudo viajar, mas de outro jeito. E
nessas eu mesmo vou e pego no telefone, ligo para alguém
depois abro todos os e-mails que ficaram suspensos e res-
pondo tudo com pressa. Queria poder voltar para o piano,
mas tem muita coisa me impedindo. Volto… se a força é
grande eu volto. Volto e vejo tudo aquilo que está ali no
papel. Aquilo é claro, que consegui anotar de tudo aquilo
que se perdeu enquanto tocava meio desapercebido via-
jando nas linhas curvas que desenhavam a melodia. Não
é mais um jogo de dedos, não é mais um jogo de sons. Eu
então toco tudo de novo e fico ali esperando compreender
tudo que fizeram antes. Um peso. Colocar um pouco de
peso, dar uma pequena, mesmo que passageira consis-
tência para tudo aquilo. Lembro dos pássaros e de como
sua plumagem colorida pelas forças dos hormônios se tor-
na uma qualidade específica daquele indivíduo pássaro,
qualidade que o permitirá acasalar-se, que o permitirá es-
pantar seus inimigos e garantir assim sua sobrevida,
mesmo que transitória. Nada disso que faço me pertence,
assim como a cor não pertence ao pássaro, ela é uma pla-
ca, um cartaz que anuncia o pássaro. Mas não resisto, vou
dormir.
Desenha-se um ritmo quando passo de um lugar a ou-
tro, quando saio do piano, me deito um pouco, volto ao pia-
no, desenho uma melodia, reescrevo tudo no papel, apago
tudo que escrevi, resolvo ler umas partituras de Beethoven,
depois Chopin, depois Jobim, e assim vai até que retomo
uma linha do que vinha escrevendo e desisto de tudo. Por
hoje chega. Cheguei no ponto final, é a fadiga. Tudo isso é

163
6
2004

um ritmo, a membrana de um movimento roçando na


membrana do outro movimento, os dois pulsantes, os dois
em movimentos constantes de sístole e diástole, vai e vem,
irregular. O ritmo não é o ritmo do movimento em que
estou, mas o ritmo entre os movimentos, o pulsar das mem-
branas.
E se estou escrevendo sobre incômodo, e prefiro falar
em inquietação. Falo do incômodo que todo mundo tem, e
não do incômodo que a gente causa. Um fala de uma po-
tência que se realiza o outro fala de um poder que se im-
põe. Mas não quero falar do poder que se impõe. O poder de
interromper uma potência que se atualiza. O poder de
impedir que algo venha a aparecer. Diferente da potência
que é sempre voltada para frente, sempre voltada para o
futuro. A potência de atualizar. Mas nada se atualiza sozi-
nho. Não vem uma música sozinha, do nada. Ela pode vir
de uma técnica, sobretudo de uma técnica que não tenho.
Não tenho a técnica e umas notas soam em minha cabe-
ça. A inquietação me parece vir a todo tempo. Estar inqui-
eto e em movimento, estar o tempo todo sobre uma linha
de fuga, saltando com cavalos no precipício, saltando com
cavalos a fina camada que me segura em um lugar. As
notas todas jogadas no papel, os sons todos circulando em
minha cabeça, e de repente a sensação de que tudo está
solto, de que todo aquele movimento está solto, que nada
se segura por ali. Então noto um outro movimento, noto
um ritmo que se desprendia das paredes dos movimentos
contíguos. As notas todas confusas no papel, para que
mesmo? Passo então à mesa, desenho alguma coisa que
as ordene, vejo-me frente a uma longa fileira de verdades
e estratégias históricas, e do outro lado uma fileira de
experimentalismos que pedem por uma história. Como é
que faço pra jogar tudo isto fora? Nem a história nem o
modismo, nem a determinação do passado nem a do pre-
sente. Como ficar aberto no futuro? Mas tudo que está junto

164
verve
Incomodando

se relaciona, queiramos ou não. Sempre há relação. Dei-


xo tudo ali, marca da imperfeição, marca da falta de técni-
ca, marca de um trabalho abandonado no meio e mil ve-
zes retomado sem que a lógica da unidade ou da explica-
ção viesse participar. Deixar tudo em aberto como em um
rascunho de Rembrandt, como em uma carta mal redigida,
como em um livro abandonado. É preciso organizar? Não.
Simplesmente passo direto e faço daquela confusão o meu
território, faço do amontoado de notas uma linha por onde
passear e ser aprendida. E tanto o organizado quanto o
disperso, de súbito, pedem que eu fuja dali. Tudo perde
sua função, tudo se torna expressivo. E eu apenas reúno
as forças, reúno as linhas, ponho umas ao lado das outras,
faço com que elas se visitem, se conheçam, se toquem,
troquem de idéias, e depois voltem ou não aos seus luga-
res.
Deleuze diz que a arte não espera o homem para co-
meçar. O que quer dizer isso? Ela começa sempre, ou ela
simplesmente começa sem que saibamos onde, quando,
por que, e no meio de quem. Seus ciclos não são os do
homem. Não há acordar pela manhã, alimentar-se e vol-
tar a dormir pela noite. Não é o mesmo ciclo. É outro, outro
em que o homem não participa com os seus ciclos. O per-
sonagem deste ritmo não é um eu que vive, quase que
um relógio solto, é o próprio movimento que é o persona-
gem, é o próprio ritmo que é um personagem. E nesses
ciclos, nesses começares e recomeçares faço minha op-
ção. Deixo a marca do tempo, consigo escrever apenas
curtas anotações, pequenas cirandas, pequenas cantigas
rodando rapidamente e por muito pouco tempo em torno
de algum lugar. Uma assinatura? Não, não chega a ser
nem assinatura. Deleuze fala de assinatura, fala de estilo
e fala de dar uma consistência. Fujo até mesmo da con-
sistência, tamanha a inquietação. É como se todo um monte
de vidas, um monte de tempos, um monte de coisas estra-

165
6
2004

nhas quisesse passar por mim naquele pequeno momen-


to, naquela pequena dobra de tempo em que escolhi justa-
mente pra me esconder. E até mesmo enquanto escrevo
este texto fico pensando em quanta coisa deixei pelo meio
do caminho, em quantas coisas foram largadas. Tudo sem
consistência, tudo quase que sem nexo, tudo em uma es-
crita rápida e que não tem sequer estilo, não deixa sequer
marcas, não serve nem como cartaz, nem como placa: aqui
está uma escrita! Nem isso. Agindo rápido assim não dou
tempo para que nenhuma coisa se associe ao que estou
escrevendo em minha música, nem ao que estou tocan-
do, nem ao que estou ouvindo, nem ao que estou tentando
pensar e muitas vezes anotar na margem de uma partitu-
ra, num pedaço de papel velho, num monte de pequenos
papeizinhos espalhados pela casa, espalhados pelo tempo.
Você percebe que aqui não tem código nenhum, que nada
quer dizer nada.
“Logo pela manhã ela chegou em casa tirou o casaco e
jogou no sofá da sala, pegou da mochila e largou na cadei-
ra da cozinha, olhou para suas coisas, foi até o banheiro e
deixou marcas e marcas. Tudo sem nenhum propósito,
ela só foi andando e marcando, andando e largando peque-
nas coisas, pequenos pertences. Não tardou muito a fazer
com que os outros que ali estavam se enfezassem, recla-
mando da falta de espaço, da desorganização. Ela mesma
se deu conta e passou a recolher tudo até que se viu fora
dali. Já havia saído dali. Foi embora com todas suas coisas
sem conseguir nunca mais largá-las onde quer que fosse.
Significados! Significados! Largar era criar significados e
isso não lhe fazia bem”.
Mas uma coisa é certa, quando toco eu crio uma dis-
tância, crio uma distância… tudo que possuo: distâncias.
O brinquedo de girar das notas em torno de um eixo fez
distância, de direção fez-se dimensão, abriu um espaço
naquele vinco de tempo e de lugar, um vinco em meio ao

166
verve
Incomodando

descontínuo que tem uma dimensão. Que dimensão é essa?


Uma dimensão sem medida, um tempo sem medida; tem-
po puro, duração, espaço puro, dimensão. E isto é abrir um
espaço para o que gostaria de sentir como diferença: não
difere de nada, difere em si, é pura diferença, um dia quem
sabe descubra-se do que difere, e daí em diante não será
mais diferença, será a velha semelhança disfar-
çada em seu negativo. E neste jogo de achar a diferença
vem uma idéia: quem é que junta tudo isso? Quem é que
junta todas as partes aparentemente soltas? A diferença
em si, a própria diferença que retorna enquanto condição
de trazer mais e mais diferença. É o abrir-se do jogo para
fora dele que faz com que exista uma consistência em
tudo que estava sendo feito assim, como um movimento
de largar os casacos por aí. Quem deu uma consistência
ao movimento foi justamente aquele curto espaço de tem-
po, aquela pequena reentrância na qual um movimento
puro e simples, movimento com a função de se livrar do
peso das coisas que trazia, de livrar-se do peso da inquie-
tação, de se livrar de um incômodo… foi nesse pequeno
ponto sem medida que aquilo que não tinha forma, que
não tinha permanência tornou-se expressivo, marcou um
lugar, tornou-se um cartaz. E criou um outro tipo de dis-
tância. O que junta não é a unidade, não é o jogo de dife-
renciar algo de algo e dar permanência a um ciclo que já
se fechou. Preciso da permanência do ciclo aberto. O que
junta, consolida alguma coisa, um movimento, é um pe-
daço de lugar. Pedaço de lugar em que as coisas se ligam
sem que precisem ter uma coerência, sem que precisem
falar a mesma língua, significar uma coisa só. Sem que
precisem ter uma função naquele conjunto. Fazer uma
casa, espaços vazios, espaços cheios, coisas sobrepostas,
articuladas umas às outras. Uma porta; um quadro; uma
mesa; alguém que passa correndo; uma pequena imagem
de santo; o barulho do gorgulhador do aquário; as pedras da
calçada; a janela aberta e depois fechada, aberta e depois

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2004

só fechada pela metade; uma garrafa de água solta, larga-


da na mesa. As coisas sobrepostas e intercaladas, inter-
caladas e criando intervalos: o tempo de ir da cozinha até
a sala, o giro que é preciso se fazer em torno do sofá; a cor
da parede que divide uma sala da outra.

RESUMO

Música narrativa em sua fugidia criação.

Palavras-chave: música, diferença, inquietação.

ABSTRACT

Narrative music in its scaping creation.

Keywords: music, difference, unrest.

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verve
Incomodando

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2004

170
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

revolta, ética e subjetividade anarquista

nildo avelino*

Há em nossa sociedade uma demanda constante de


adesões e de mobilizações massivas tornadas “midiá-
ticas” e “burocratizadas”, demanda que tem por finali-
dade sensibilizar a opinião, emocionar, indignar, ape-
lar à solidariedade de todos e cada um. A exposição
espetacular da exclusão social, de pessoas devastadas
pela miséria, pela fome, pela guerra, pelas epidemias,
enfim, há uma massa de sofrimentos que alimenta
campanhas e solicita adesões, exige lágrimas, recla-
ma indignações e nos pretende tornar doadores com-
pulsivos.
Verdadeira laiscização da caridade, os jogos televisi-
vos suscitam a compaixão e o desejo de ajudar. Porém,
o objeto desta solidariedade não é mais o sofrimento do
próximo como ocorria outrora, mas o sofrimento geral
de toda gente; não se trata mais “... de dar a alguém
que se conhece e menos ainda de esperar algo de um
reconhecimento que nunca será recebido pessoalmen-
te. O dom tornou-se um ato que liga sujeitos abstratos,

* Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, pesquisador no Nu-Sol e secretário


do Centro,de Cultura Social de São Paulo.

verve, 6: 171-196, 2004

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6
2004

um doador que ama a humanidade e um donatário que


encarna por alguns meses, o tempo de uma campanha
de donativos, a miséria do mundo”1.
Há também nessas mobilizações algo que beira to-
talitarismo. É que elas reclamam um conformismo pré-
vio em relação às verdades que veiculam e provocam
adesões irrefletidas que pressupõem o apagamento de
todo registro ético. Trata-se de ver, portanto, um outro
aspecto dessas adesões massivas e involuntárias que
diz respeito à dominação ou, em todo caso, a uma for-
ma de dominação. É preciso ver nelas a legitimação de
uma realidade histórica e conceitual com efeitos de
poder, legitimação de verdades que estão sempre liga-
das às instâncias de poder; e legitimação, enfim, que,
longe de ser ocasional, está no cerne da nossa tradição
ocidental da constituição do sujeito moderno e que, fi-
nalmente, encontra nessas adesões apenas um dos
seus efeitos sociais mais imediatos.
Quero mencionar aqui alguns dos aspectos dessa tra-
dição para que possamos inserir nessa discussão um
questionamento postulado por Michel Foucault no qual
consiste em saber: “de que maneira e até onde seria
possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que
já se sabe?”2. A pergunta liga-se diretamente às for-
mas de subjetivação, as maneiras pelas quais os indi-
víduos se tornam sujeitos de uma conduta.
Na genealogia do sujeito moderno Foucault distin-
guirá dois registros em nossa tradição ocidental. O pri-
meiro é relativo à antiguidade clássica e alcança os
primeiros séculos do paganismo romano. Nele a cons-
tituição do sujeito é marcada pela existência de práti-
cas refletidas e voluntárias destinadas a fundar um
estilo de existência que fosse mais próximo possível
das proposições da filosofia entendida como sabedoria

172
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

prática. Foucault chamou essas formas de subjetivação


de “artes de existência”, por que elas diziam respeito a
um sujeito auto-constituinte, quer dizer, estavam na or-
dem do “pensar diferentemente”. O outro registro diz
respeito à concepção constituída pelo cristianismo, de
uma subjetividade cujo fundamento estaria na renún-
cia, deslocando o eixo da experiência ética do cuidado
de si para o mundo da transcendência como busca da
verdade por meio da revelação divina. Um dos efeitos
da renúncia cristã será a subjetividade concebida como
interioridade e consciência de si, como prática de pu-
rificação da alma traduzida pelo desprendimento da in-
dividualidade de suas referências terrenas. A noção
de verdade será, doravante, permeada pelo dispositivo
da culpa e da penitência, e o desdobramento ético e
filosófico desse registro subjetivo será não apenas uma
modalidade reflexiva da subjetividade com Descartes,
no século XVII, como a formulação da categoria de lei
moral em Kant no século XVIII, sendo possível afirmar
que “... essa concepção original de subjetividade e de
experiência ética, construída pelo cristianismo, seria
a condição de possibilidade para a constituição da filo-
sofia do sujeito que marcou o Ocidente de Descartes a
Hegel”3. Nesse registro o sujeito ocupa a posição de
objeto de um domínio de saberes que lhe é exterior e
que funda sobre ele uma relação de dominação; por
conseguinte, esse registro se inscreve na ordem do “le-
gitimar o que já se sabe”.
Esse último registro é o que teve pertinência histó-
rica, tendo as suas técnicas de produção do sujeito se
reelaborado e se aprimorado ao longo dos tempos. Es-
sas técnicas, por sua vez, provocaram práticas cultu-
rais de classificação, exclusão, disciplinarização e con-
trole que nos deram não apenas a nossa visão de mun-
do sobre as coisas como também os corpos que

173
6
2004

possuímos; em outras palavras, essas técnicas inscre-


veram em nosso corpo e em nossa alma as verdades
pelas quais zelam; verdades que, por exemplo, institu-
íram a loucura como experiência negativa privando-a
de uma positividade existencial. A importância que
possui o estudo desse procedimento é percebida ao se
ler que o objetivo dos trabalhos de Foucault foi o de “criar
uma história dos diferentes modos pelos quais, em
nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujei-
tos”4. Não é, portanto, o poder, mas o sujeito que consti-
tui o tema geral de suas pesquisas, ainda que a ques-
tão do sujeito envolva complexas relações de poder e
verdade, o foco de suas preocupações intelectuais e
políticas está na constituição do sujeito “naquilo que
ele considera a maior ameaça, esta estranha, de certo
modo improvável, mistura de ciências e práticas soci-
ais desenvolvidas ao redor da subjetividade”5.
Com efeito, dessa estranha mistura resultou histori-
camente um tipo de poder que se aplicou à vida cotidi-
ana das pessoas, um poder que colocou como problema
do governo a correta disposição dos homens visando
conduzi-los a um fim conveniente; enfim, um poder que
após estabelecer-se sobre o território, adotou como ob-
jeto de seu saber um conjunto mais imprevidente, de
qualquer forma, mais inopinado e descuidado: os indi-
víduos. De algum modo o governo passou a cuidar da
sua correta disposição, estabelecendo saberes que ti-
veram em vista categorizá-lo, marcá-lo na sua individu-
alidade, prendê-lo a uma identidade, na qual lhe foi im-
posta uma lei reconhecível por ele e pelos outros: “É uma
forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos. Há dois
significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém
pelo controle e dependência, e preso à sua própria iden-
tidade por uma consciência ou autoconhecimento.

174
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e tor-


na sujeito a”6.
Na atualidade, a luta contra as formas de sujeição,
contra as formas de submissão da subjetividade, tem
se tornado cada vez mais importantes. Se por um lado
essas lutas sempre ocuparam um lugar importante ao
longo da história, por outro é em nossa atualidade onde
elas estão na iminência de desempenhar um papel pre-
ponderante.
Para isso Guattari chamou atenção. O grande movi-
mento desencadeado pelos estudantes chineses não fôra
acompanhado por apenas palavras de ordem de demo-
cratização, mas foi também “... todo um estilo de vida,
toda uma concepção das relações (a partir das imagens
vinculadas pelo Oeste), uma ética coletiva, que ai é pos-
ta em questão”. Assim como no Leste Europeu, “... a
queda da cortina de ferro não ocorreu pela pressão de
insurreições armadas, mas pela cristalização de um
imenso desejo coletivo aniquilando o substrato mental
do sistema totalitário pós-estalinista”7.
Esses acontecimentos, pelas formas que assumiram,
por suas estratégias e modos de expressão, autorizam
afirmar que a história contemporânea está imersa em
lutas por “reivindicações subjetivas”: movimentos
antipsiquiátricos, de liberação sexual, ecologistas,
autonomistas, feministas, etc, que provocaram uma
verdadeira renovação das lutas sociais a partir dos anos
1960. Muitas vezes ambíguas e conservadoras, em todo
caso são lutas contra aquilo que liga o indivíduo a si
mesmo submetendo-o aos outros, lutas contra as di-
versas sujeições, contra as formas de subjetivação e
submissão que governam a individualidade; potencial-
mente políticas, essas lutas possuem a originalidade
de afirmar o direito de ser diferente e de enfatizar “tudo

175
6
2004

aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente indi-


viduais”. Elas são a recusa daquelas abstrações que
ignoram quem somos individualmente, assim como da-
quelas investigações científicas e administrativas que
pretendem determinar o que somos. Em suma, são lu-
tas anárquicas e minoritárias que têm como desdo-
bramento a emergência de saberes sujeitados; que pro-
vocam a redescoberta de críticas descontínuas e locais,
de saberes não-conceituais, e por isso historicamente
sujeitados e hierarquicamente menores, mas conteú-
dos históricos que foram sepultados e que vêm à tona
naquilo que Foucault chamou de “insurreição dos sa-
beres sujeitados”8.
O reaparecimento desses saberes provoca, por sua
vez, um tipo de crítica que faz suspender os efeitos das
teorias totalizantes e globais, permitindo recolocar
essa crítica numa perspectiva singular e local: na pers-
pectiva do delinqüente, do doente, etc. Essa crítica
reaviva aquilo que estava em jogo nesses saberes,
reaviva o saber histórico de suas lutas, a memória dos
combates e combatentes, o “saber das pessoas”; nes-
tas batalhas subjetivas “Trata-se, na verdade, de fazer
que intervenham saberes locais, descontínuos,
desqualificados, não legitimados, contra a instância te-
órica unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizá-
los, ordená-los em nome de um conhecimento verda-
deiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria
possuída por alguns”9.
Frente a uma atualidade que postula o apagamento
ético em constantes adesões irrefletidas, o importante
não é descobrir o que somos, mas recusar o que somos,
provocar a reviravolta desses saberes que pretendem,
a partir do exterior, impor-nos sua verdade e sua lei. É
preciso “imaginar e construir o que poderíamos ser para
nos livrarmos deste “duplo constrangimento” político,

176
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

que é a simultânea individualização e totalização pró-


pria às estruturas do poder moderno. A conclusão se-
ria que o problema político, ético, social e filosófico de
nossos dias não consiste em tentar liberar o indivíduo
do Estado nem das instituições do Estado, porém nos
liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individuali-
zação que a ele se liga. Temos que promover novas for-
mas de subjetividade através da recusa deste tipo de
individualidade que nos foi imposta há vários séculos”10.
Novas formas de subjetividade que provoquem rup-
turas contra as identidades secularizadas do nosso pre-
sente: eis um tipo de pesquisa que provoca incômodos.
Com efeito, a genealogia do sujeito moderno empreen-
dida por Foucault fere de morte a leitura transcenden-
te da verdade contida na tradição do pensamento oci-
dental; a filosofia que se restringia ao trabalho da
exegese dos diversos sistemas, passa a ter uma inci-
dência sobre a atualidade, e a atividade filosófica pode
atuar como “trabalho crítico do pensamento sobre o pró-
prio pensamento”11.
Birman12 faz lembrar que, quando Foucault formula
a existência de tecnologias de si, enuncia também que
a subjetividade não constitui um dado ou origem, mas
uma produção e um devir. A subjetividade sendo múl-
tipla e plural e não possuindo qualquer fixidez, encon-
tra nos modos de subjetivação uma dimensão onde a
produção de sujeitos é da ordem do devir-produção. A
análise assim formulada revela, de outro lado, a incon-
sistência ontológica do sujeito, já que as subjetivida-
des antes de possuírem uma substância que as torna
invariante e universal, são forjadas a partir de regis-
tros éticos e estéticos com desdobramentos políticos e
sociais.

177
6
2004

Sob essa perspectiva veremos no anarquismo a pro-


dução de uma ampla problemática a respeito da auto-
formação do indivíduo e sobre o governo que o indiví-
duo deve exercer sobre si mesmo; problemática que
envolve relações entre revolta e ética anarquista, pro-
voca práticas culturais e constitui formas de subjetivi-
dades cujo valor está no afastamento em relação às
instâncias de poder.
O desenrolar da problemática da constituição de uma
ética e uma estética de si no anarquismo devemos bus-
car na própria atitude que o anarquista mantém con-
sigo mesmo e com os outros. Uma das primeiras con-
seqüências que se pode tirar dessa atitude anarquista
é que nela a persuasão é insuficiente. Não basta estar
convencido do ideal, é preciso querê-lo e desejá-lo a
ponto de transformar a própria existência pessoal atra-
vés de critérios de estilo, através de uma estilização
do pensamento. Opera-se, nesse sentido, uma efetua-
ção da lógica e do pensamento anarquista em vontade:
a morte daquilo que é da ordem do ideal e que diz res-
peito ao dever; e o nascimento do que é da ordem do
vital e que diz respeito ao querer. Essa efetuação do
pensamento em vontade possui como operador ético a
revolta.
Com efeito, é na revolta que se dá um estado de ten-
são que exclui o indivíduo de toda autoridade que lhe é
exterior, provocando a ruptura necessária entre a mo-
ral e suas instituições, e deixando livre curso para a
emergência de novas experiências subjetivas. A revol-
ta pressupõe o afastamento dos “objetivos dominantes”
e dos “padrões vigentes” que passam a ser considera-
dos arbitrários, fazendo-os perder com isso seu poder
de sujeição e sua legitimidade. É desta forma que a
revolta evolve uma “transvaloração”: na sua sociologia
do comportamento desviante, Merton colocou a revolta

178
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

num plano distinto dos outros tipos de reações por tra-


tar-se do rompimento com o sistema normativo vigen-
te13. Assim também, como na definição de Camus, o
homem revoltado é, primeiramente, aquele que diz
“não!”. Onde a revolta, nascida também do espetáculo
da des-razão diante de uma condição injusta e incom-
preensível, se efetuará no indivíduo sujeitado de uma
maneira solitária como o grito: “A revolta clama, ela
exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe
finalmente aquilo que até então se escrevia sem tré-
gua sobre o mar. Sua preocupação é transformar”14.
Porém, sendo uma característica da revolta a recu-
sa do intolerável, ela não se abstém, ela não renuncia,
trazendo consigo um certo valor em cujo movimento
há sempre uma adesão integral do revoltado a uma
certa parte dele mesmo, fazendo-o contrapor o que é
preferível ao que não é. Um certo ímpeto que retira o
indivíduo de um estado de impotência para um estado
de potência e que se inicia sob a forma de uma resis-
tência irredutível, para tornar-se valor pessoal preferí-
vel a tudo, e que acaba por fazer o revoltado colocar “...
esta parte de si próprio, que ele queria fazer respeitar,
acima do resto”15.
Neste sentido a revolta não pode sustentar nenhum
ideal abstrato, já que ela exige que seja levado em con-
ta aquilo que no revoltado não pode ficar limitado ao
plano das idéias, por tratar-se daquela “parte ardorosa
que não serve para nada a não ser para existir”.
Esta dimensão imanente da revolta situa o indiví-
duo fora do sagrado. Mais do que isso; Camus vai dis-
tinguir dois universos possíveis e ao mesmo tempo
opostos: o do sagrado e o da revolta; e perguntará: “Lon-
ge do sagrado e de seus valores absolutos, pode-se en-
contrar uma regra de conduta?” A questão assume

179
6
2004

grandes proporções, pois a revolta vai provocar uma


reviravolta no cogito cartesiano: para existir é preciso
revoltar-se e colocar-se fora do sagrado e da trans-
cendência que a revolta repele pelo sentimento do in-
tolerável causado pela experiência do sofrimento e do
escândalo.
Podemos afirmar, em primeiríssima aproximação,
que a revolta é um ato de conhecer na experiência do
insuportável, como na metáfora nietzschiana da borbo-
leta: “Compreender tudo isso pode causar dores pro-
fundas, mas depois há um consolo: elas são as dores do
parto. A borboleta quer romper seu casulo, ela o gol-
peia, ela o despedaça: então é cegada e confundida pela
luz desconhecida, pelo reino da liberdade. Nos homens
que são capazes dessa tristeza — poucos o serão! —
será feita a primeira experiência para saber se a hu-
manidade pode se transformar, de moral em sábia”16.
É assim que a revolta se constitui em uma porta
aberta para experiências subjetivas dessujeitadas. Essa
“estranha ascese da revolta” devemos buscar nas rela-
ções com a ética anarquista. Há sobre isso uma pri-
meira reflexão na obra de Augustín Hamon, que coloca
entre os caracteres constitutivos da personalidade anar-
quista, o espírito da revolta: “O anarquista socialista é
um indivíduo revoltado”17.
Na problemática da constituição de uma ética do su-
jeito anarquista, a revolta cumpre a função de liberar
o indivíduo dele mesmo, de desligá-lo de uma identida-
de subjetiva que o mantinha sob um estado de domi-
nação e que, doravante, tratar-se-á de negá-la em toda
sua dimensão existencial. Por essa razão, a revolta não
deve ser confundida com insurreição ou revolução,18
que trazem em si uma conotação política ou social: a
revolta é “uma transformação nas circunstâncias que

180
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

entretanto não são provocadas por ela mas pela própria


insatisfação dos homens. A [revolta] não é um levante
armado mas um levante de indivíduos” que, ao contrá-
rio da Revolução, “nos leva a não aceitar mais a idéia
de que alguém pode determinar por nós mesmos [as
condições de vida]”19. Dessa forma, a revolta acarreta a
derrubada da ordem vigente sem, no entanto, ter isso
em vista; ela não conduz a um “novo regime” social ou
político como faz a revolução, daí a crítica de Stirner:
“A revolução não se dirige contra a ordem em geral,
mas contra a ordem estabelecida, contra um estado de
coisas determinado. Ela derrubou certo Governo, não o
Governo [...]. Na revolução não foi o indivíduo quem lu-
tou e cuja ação teve valor histórico, e sim um povo: a
nação soberana fez tudo”20. Na revolta a ordem é derru-
bada pelo seu abandono, elevando-se o indivíduo revol-
tado acima de seus princípios e fazendo-o desapegar-
se de tudo o que o tornava escravo a esse princípio.
No anarquismo, essa reflexão vai encontrar um lu-
gar especial nos escritos de Proudhon e Malatesta, o
primeiro pensará a imanência anarquista que encontra
grande repercussão na concepção malatestiana da
anarquia.
Com efeito, Malatesta não apenas irá explicar o nas-
cimento da anarquia pelo que chamou de “rebelião
moral”, negando o vínculo de seu surgimento a qual-
quer sistema filosófico, como também vai declarar a
auto-suficiência do anarquismo do ponto de vista mo-
ral, desvinculando-o de quaisquer aportes científicos
ou ideológicos; essa perspectiva autárquica permitirá
a Malatesta conceber a “anarquia como uma forma de
convivência social” e o “anarquismo como o método para
realizar a anarquia mediante a liberdade, sem gover-
no, ou seja, sem órgãos autoritários”21.

181
6
2004

Nessa concepção da anarquia como arte de viver é


que se dão mais intensamente as relações entre re-
volta e ética. Ao liberar-se, pela revolta, do sistema
conceitual que o prende a uma identidade, o indivíduo
é levado a chamar para si o governo e a responsabili-
dade de seus atos. Isso tem por efeito uma faculdade
ética como conteúdo moral, que Proudhon denominou
moral imanente; assim, em oposição à tradição ociden-
tal que remonta a Platão e que derroga o conteúdo mo-
ral na transcendência, no anarquismo ele é imanente
ao indivíduo.
A formulação do plano de imanência proudhoniano
está na base de sua crítica ao cristianismo que se es-
tende à filosofia e à moral, à essa “multidão de refor-
madores que, mesmo separados da Igreja e do próprio
teísmo, permanecem fiéis aos princípios de subordi-
nação externa, colocando no lugar de Deus a Socieda-
de, a Humanidade, ou qualquer outra Soberania, mais
ou menos visível e respeitável”22. Para Proudhon, a re-
ligião fornece uma razão, uma autoridade e uma base
à Justiça, sem a qual a sociedade não subsistiria. Ela
habita todos os conceitos fundamentais, as primeiras
hipóteses da razão, ainda formuladas em lendas poéti-
cas e narrações maravilhosas que, sustentada pela fra-
queza de espírito dos filósofos, instalou-se na consci-
ência dos homens: “Sabe-se por qual salto de peixe (saut
de carpe) o incomparável Kant, após ter derrubado na
sua Crítica da razão pura todas as pretensas demons-
trações da existência de Deus, a reencontrou na razão
prática. Descartes, antes dele, chegara ao mesmo re-
sultado; e é maravilhoso ver os últimos discípulos des-
ses metafísicos acrobatas rejeitarem a autoridade da
Igreja, a revelação de Jesus, de Moisés, dos patriarcas,
de Zoroastro, dos Brahms, dos Druidas, todos os siste-
mas religiosos, e afirmarem em seguida, como fato de

182
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

psicologia positiva, a revelação imediata de Deus nos


espíritos. Segundo esses senhores, Deus se manifesta
diretamente a nós pela consciência; isto que se cha-
ma senso moral é a impressão mesma da Divindade.
Somente por ela eu reconheço a obrigação de obedecer
à Justiça, eu sou, segundo eles, ‘crente apesar dos
meus dentes’, adorador do Ser-Supremo, e partidário
da religião natural. O Dever! É suficiente que eu pro-
nuncie esta palavra para atestar, contra meu desejo,
que eu sou duplo: Eu, incontinente, ligado ao dever; e o
Outro, quer dizer Deus, que formou essa relação, que
se estabeleceu no meu espírito, que possui todo meu
interior, que, no momento em que me imagino acima
da lei moral fazendo ato de autonomia, me conduz, sem
que eu me aperceba, para sua imperiosa sugestão”23.
É dessa forma que sem a noção de Deus ou de provi-
dência não haveria lugar nem para a lei nem para obri-
gação moral propriamente dita, e é por meio dessa no-
ção, por analogia a ela, que chamamos leis a vontade
de homens que possuem autoridade de nos recompen-
sar e de nos punir. Por isso, para Proudhon, a transcen-
dência não lhe aparece apenas como um conjunto de
teorias, mas como um modo de ser e atuar, uma práti-
ca social que justifica uma política, provoca uma ação
e incide diretamente na orientação de uma sociedade.
A transcendência consolida a subordinação social ao
lhe dar um princípio superior a ela na forma do Estado,
e assim como a igreja sustentava que a verdade e a
justiça emanavam de Deus, os legisladores sustentam
que emanam do Estado: o crente ontem subordinado
ao sacerdote é hoje o cidadão subordinado aos legisla-
dores. Ao afirmar a transcendência do sagrado a reli-
gião instauraria uma relação de autoridade e obediên-
cia entre deus e homem, entre saber e não-saber; é
também o princípio que fundamenta a política e do qual

183
6
2004

resulta a separação entre governo e governados; com


isso a religião não apenas postula a necessidade do
governo, como também a sujeição do indivíduo por in-
termédio da disciplina.
Ao contrário, Proudhon caracteriza a imanência como
a faculdade de reconhecer a lei e de fazê-la sua, a lei
serve à imanência como a instrução do mestre serve
ao aluno; o conhecimento do justo e do injusto resulta
dessa faculdade. Portanto, “cada um se encontra juiz,
em última análise, do bem e do mal, e se constitui em
autoridade frente a ele mesmo e dos outros. Se julgo
por mim mesmo que tal coisa é justa, é em vão que o
príncipe e o padre me afirmarão a justiça e me ordena-
rão segui-la: ela segue injusta e imoral, e o poder que
pretende me obrigar é tirânico”24. Na imanência, a jus-
tiça é definida como a faculdade de sentir e de afirmar
nossa dignidade, e por conseqüência de querê-la e
defendê-la, tanto na pessoa alheia como em nossa pró-
pria pessoa.
Duas hipóteses, portanto, que sob a ciência da mo-
ral se partilha o mundo: da transcendência ou Revela-
ção que porta a subordinação do indivíduo ao governo;
e da imanência ou Revolução que porta o indivíduo ao
governo de si por si mesmo.
No plano moral a imanência anarquista resulta em
conteúdo ético expresso na atitude que tem por efeito
a coerência entre pensamento e vida. Trata-se, por-
tanto, de um tipo de atitude cujo pensamento postula e
acompanha uma verificação existencial, na qual a for-
mação de um saber parte de um imediato sentimento
da vida: com efeito, a anarquia apenas se realiza na
sua dimensão existencial, em que os princípios adqui-
rem valores que são atestados no comportamento, do

184
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

contrário o anarquismo se anularia num verbalismo,


tornando-se prisioneiro da palavra.
Essa é uma forma de subjetividade na qual o indiví-
duo é levado a intensificar as relações que ele tem con-
sigo mesmo e que vai postular o “exemplo como sendo
a melhor das propagandas”, porque é no exemplo que
está a “vida vivida” do anarquista como sendo a mais
eficaz expressão em detrimento do mais completo sis-
tema ou programa de idéias. É a “atitude anarquista”
que transpõe o que é meramente eidético, aquilo que
diz respeito às essências, e inaugura sua existência,
seu uso e disposição ética.
Aqui situamos a vida e a obra de Errico Malatesta,
que delineou em seus escritos e na sua trajetória exis-
tencial o que ficou conhecido como voluntarismo anár-
quico: a dimensão ética na qual é valorizada a atitude
anarquista, o comportamento antiautoritário e de soli-
dariedade.
Para Malatesta, antes de mais nada, os anarquistas
devem estar convencidos da prioridade absoluta do va-
lor desempenhado pela vontade, em seguida, que este
valor é condicionado por eventos exteriores nem sem-
pre controláveis; dessa forma, saberiam que meios au-
toritários realizam processos autoritários. Prenuncia-
se o que se tornará o núcleo de todo o seu pensamento,
esboçado, inicialmente, no Agitazione em plena crise
de fim de século. A partir de 1897 Malatesta definirá a
validade da idéia anárquica como derivação da univer-
salidade dos seus valores propositivos, isto é, como um
conjunto de motivações que correspondem a uma as-
piração; derivando disso que o anarquismo não é fun-
dado sobre um ser, mas sobre um querer ser, para ele:
“O anarquismo, em suma, é antes de tudo uma ética e
como tal se realiza sobre a base de uma vontade positi-

185
6
2004

va de ação voltada para a transformação da realidade.


Daí a necessidade de colocar em primeiro plano a ques-
tão moral como critério discriminador para definir a
idéia anárquica como idéia ética por excelência; uma
definição, ao mesmo tempo, que quer ser também uma
distinção a respeito de outras possíveis identificações
do anarquismo”25. Anarquia se torna ética que se ex-
pressa no comportamento anarquista. Uma ética que
julga imprescindível a negação de todo fanatismo e sec-
tarismo causadores de exageros e alimentadores da ten-
dência, sempre presente nos homens, de tomar os mei-
os pelos fins; tendência que, no calor da batalha, faz
com que os indivíduos percam o controle sobre si mes-
mo. Controlar a si mesmo, sustentar o comportamento
anárquico frente a toda vicissitude é, portanto, man-
ter-se no caminho que leva a anarquia. Isso fica claro
quando Berti sublinha a crítica malatestiana feita, si-
multaneamente, aos terroristas e tolstoianos, preci-
sando que ambos, partindo de princípios antagônicos,
chegam a conseqüências práticas iguais: “Uns não he-
sitariam em destruir meia humanidade para fazer tri-
unfar a idéia; outros deixariam que toda humanidade
padecesse sob o peso dos maiores sofrimentos para não
violarem um princípio”26. Com essa reflexão Malatesta
abandonaria definitivamente todo determinismo his-
tórico e naturalístico, negando não apenas a herança
do catastrofismo marxista como também as concepções
de fundo positivistas, incluindo aquela kropotkiniana,
que terminavam por colocar em segundo plano o fator
ativo da vontade enquanto elemento resoluto para rea-
lização positiva e criativa do socialismo; o problema
social se lhe apresentava agora como “problema de von-
tades contrapostas”.
Um querer revolucionário, uma vontade que possui
como motor a revolta. Em 1900 Luigi Fabbri escreve no

186
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

L’Agitazione um artigo reprovando e julgando politica-


mente contraproducente o atentado que matou o presi-
dente dos EUA, William Mc Kinley, dizendo que a ele
sucedeu Roosevelt, permanecendo tudo como antes,
exceto para os anarquistas, sobre os quais desabou a
represália. Escreve Malatesta: “Pode ser que L’Agitazione
tenha razão. Mas não se trata de uma questão de tática.
Trata-se agora de uma questão maior: do espírito revo-
lucionário, daquele sentimento quase instintivo de ódio
contra a opressão, sem o qual nada significa a letra morta
dos programas, por mais libertárias que sejam as afir-
mações propostas; daquele espírito de combatividade, sem
o qual também os anarquistas se domesticam. É estul-
tice, para salvar a vida, destruir as razões do viver. Para
que servem as organizações revolucionárias, se deixa-
se morrer o espírito revolucionário?”27.
Por fim, é possível localizar essa problemática nas
práticas culturais ocorridas nos anos pós-1930 em São
Paulo, quando o refluxo do movimento operário provo-
cado pela tríplice conjugação repressão-trabalhismo-co-
munismo, fariam com que as energias libertárias fos-
sem direcionadas para outros focos de militância que
não o sindicato propriamente dito. Sem dúvida, esses
focos sempre existiram como invenções culturais
libertárias tendo o sindicato como grande baluarte de
suas lutas, o que ocorrerá neste período será a reto-
mada destas práticas mais ou menos à margem do sin-
dicato e, mais particularmente, a partir de uma
problematização do sindicalismo revolucionário como
forma de resistência anarquista.
Dentro da problematização do sindicalismo durante
a década de 1930, os anarquistas atribuíram o proces-
so de “degeneração” dos sindicatos em órgãos de cola-
boração entre as classes a dois motivos fundamentais:
de um lado, a investida comunista da “frente única”

187
6
2004

inspirada no bolchevismo russo, esforçava-se pela or-


ganização centralista e disciplinada dos sindicados su-
bordinados à sua seção central (a CGT); de outro, a
implementação das regulamentações trabalhistas nos
moldes do governo fascista, com a criação do MTIC e da
Lei de Sindicalização, vão consolidar as investidas go-
vernamentais ocorridas após as jornadas de julho de
1917, encontrando no trabalhismo e no chamado
sindicalismo amarelo contrapontos aos princípios de ação
direta e de autonomia do sindicalismo revolucionário.
A partir da formação do PCB, em 1922, os anarquis-
tas tiveram que enfrentar as forças capitalistas e ca-
tólicas cujo principal concorrente eram os comunistas,
que pregavam o caminho único dirigido pelo partido, com
delegação de poderes e viam na colaboração de classes
circunstâncias úteis de luta, assim como na legisla-
ção trabalhista um instrumento válido para o conflito
de classes.
Juntando-se a isso, o golpe de 1930 será acompa-
nhado de grandes mudanças implementadas por Getú-
lio Vargas; com ele se dá a criação do Ministério do
Trabalho em 26 de Novembro e em 19 de março de 1931
é decretada a Lei de Sindicalização, instituindo o sin-
dicato único e tornando o desejo comunista do bloco
sindical uma realidade.
Apesar da sua persistência em manter os sindica-
tos livres de toda e qualquer influência ideológica, os
anarquistas assistem a uma crescente adesão à via
oficial que era, sobretudo, consentida e apoiada pela
concorrência comunista, trotskista e católica. Esse
estado de coisas vai provocar uma reação dentro do pró-
prio movimento que será levado a redimensionar sua
luta devido ao refluxo do movimento operário.

188
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

Isso é claro quando Florentino de Carvalho lança o


seguinte questionamento divulgado pela A Plebe, afir-
mando que havia chegado, “(...) cada vez mais, a con-
clusão de que o sindicato operário é uma agremiação
insipiente, de funções muito restritas, e a luta, e bem as-
sim, as aspirações sindicais estão longe de preencher as
necessidades requeridas pelas reivindicações capitais e
decisivas do proletariado. E muito mais longe ficam como
forças propulsoras, se marcham a esmo, movidas pelos
insignificantes valores específicos”28.
As palavras de Florentino contrastam com as “ida-
des do ouro” do sindicalismo: não obstante seu engaja-
mento no meio sindical, o “balanço” de seu entendi-
mento revela uma mudança que estaria operando nos
meios e táticas do movimento anarquista.
Inicia-se então, pelas páginas de A Plebe, uma
problematização do sindicalismo revolucionário como
forma de resistência anarquista. Em 29/04/1933 A Ple-
be anuncia a realização de mais uma reunião “prepa-
ratória para a formação de grupos de Ação e Cultura
Proletária, que, à margem dos sindicatos organizados,
atuarão na obra de propaganda, procurando influir com
a palavra, com a pena e com a ação revolucionária nos
movimentos de organização proletária”. Esses grupos
têm como finalidade, preparar militantes, educar e es-
clarecer o proletariado na sua finalidade revolucioná-
ria, fazendo, por meio das pequenas agrupações, o que
o sindicato, pela sua base de lutas econômicas não pode
fazer, isto é: “o preparo dos trabalhadores para a con-
quista da riqueza social, a sua habilitação técnica para
a posse das fábricas, dos campos e das oficinas, o seu
preparo revolucionário para a obra de expropriação da
burguesia. O seu fim não é absorver a luta do sindica-
to, mas completar a sua missão revolucionária. [...] Na
última reunião ficou resolvido que os grupos serão

189
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2004

constituídos com o máximo de 15 pessoas, constituin-


do-se depois a Federação de Grupos, que terá repre-
sentação junto à Federação Operária de São Paulo”29.
Em outro artigo A Plebe dizia que era preciso dar
“algumas palavras de incentivo com o fim de procurar
orientar aqueles que, mesmo estando filiados em qual-
quer sindicato queiram fazer obra de propaganda de
modo a animá-los para a luta indicando-lhes o cami-
nho a seguir. [...] Os grupos de afinidade devem ser
agrupações de indivíduos afins mais ou menos consci-
entes de penetrar na alma da dor universal”30.
Associação de indivíduos afins que, à margem dos
sindicatos, atuarão como seu complemento no objetivo
de “preparar militantes, esclarecer e educar o proleta-
riado na sua finalidade revolucionária”: essa será uma
constante preocupação dessa época. O apelo já não é
aos “operários em geral” para que se associem por ca-
tegoria profissional, mas ao indivíduo consciente e afim
para que, por meio de suas pequenas agrupações, pos-
sam fazer aquilo que os sindicatos estão impedidos de
fazerem. Não se trata apenas de “conclamar as mas-
sas”. Certamente se irá apelar a elas em circunstân-
cias determinadas, porém é preciso perceber que essa
também foi uma época de adesões massivas e involun-
tárias31. E tais fatos questionavam as possibilidades efe-
tivamente revolucionárias do sindicato como órgão
transformador da sociedade e, frente ao desânimo da
luta sindical, uma recorrida forma de resistência anar-
quista foram os chamados “grupos por afinidade”.
Por ora, o termo que os denomina não possui impor-
tância, mas o fato desses grupos serem fundados den-
tro de interesses peculiares e do relacionamento en-
tre seus associados ser muito intenso; esses grupos
tinham em vista buscar que cada um descubra o ambi-

190
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

ente que lhe convenha, que cada um possa trabalhar


segundo suas idéias e seu temperamento, e encontre
na associação, não um limite a sua liberdade, se não o
modo de fazer mais eficaz sua atuação, mais verdadei-
ra sua liberdade. Foram essas associações que permi-
tiram a intensificação das relações que o indivíduo é
levado a manter consigo mesmo e com os outros, exer-
cendo-as num movimento recíproco. O grupo foi o meio
pelo qual essa “cultura de si” tornou-se prática social.
Tudo indica que aquelas funções de militância pú-
blica estejam longe de esgotarem as reais possibilida-
des desses grupos. Que eles tinham um papel impor-
tante dentro do próprio âmbito de instâncias particula-
res e estratégicas de formação individuais, é o que se
percebe quando Malatesta lamenta “que haja, ainda
entre nós, quem não pense com a própria cabeça e es-
pere a opinião de fulano ou beltrano, quando a lógica
das idéias professadas deveria bastar para decidi-lo; e
reconhecemos o perigo sempre presente dos maus pas-
tores. [...] quanto mais há companheiros desorganiza-
dos e isolados, mais prepondera a influência do orador
e do periodista e, não achando resistência nem obser-
vação eficaz na coletividade, pode degenerar em auto-
ridade efetiva e nefasta. No fim de contas, a base de
tudo é sempre a consciência do indivíduo, de cada in-
divíduo; e esta consciência tanto mais se desenvolve e
se eleva quanto mais são os contatos, as discussões,
as coisas feitas em comum”32. Em relação a isso, é cu-
rioso ver na trajetória do militante anarquista Oresti
Ristori um desenvolvimento pessoal que, no curto es-
paço de oito anos, o retira de uma qualificação prece-
dente de “discreta inteligência”, “cultura muito limi-
tada” e alfabetização de “apenas ler e escrever”, para
uma outra qualificação de “engenho não comum, vivo,
e, em especial modo, assimilador”, que se apreendia

191
6
2004

em seus artigos escritos em italiano, espanhol e fran-


cês33. Não é possível pensar uma tal transformação sem
práticas e técnicas de si, sem o desenvolvimento de
uma cultura de si.
E, mais uma vez, é preciso insistir que essas asso-
ciações ganharam uma maior realidade a partir da
problematização do sindicalismo revolucionário, apon-
tando que: “O sindicato, (...) agindo nos limites do sis-
tema de salários e, ao mesmo tempo, colaborando com
os capitalistas na vida e desenvolvimento das respec-
tivas indústrias, não é suscetível de transformação no
sentido da subversão do regime econômico (...) [e que a
obra das agrupações anarquistas deveria ser feita] de
forma que, em lugar de reproduzir mentalidades de
pobres, crie homens de pensamento esclarecido com
princípios definidos e convicções profundas, senhores
da filosofia e da ética anarquista”34. E que, ainda, ape-
nas por meio dessas associações é que se garantiria a
efetuação daqueles trabalhos de exposição tendo “em
vista formar consciências, que se multipliquem, e não
formar rebanhos que obedeçam ao mando de qualquer
palavra de ordem”35.
É preciso apreender nessas associações que elas fun-
cionaram como o locus privilegiado para aqueles exer-
cícios cujo objetivo é reativar os saberes do anarquismo,
fazê-los presente, refletir sobre eles, assimilá-los, en-
fim, estar preparado para enfrentar a realidade. Essas
associações possibilitaram e incentivaram modos de
subjetivação dos saberes anarquistas; elas reuniriam
práticas discursivas, de leituras, de escrita, e tudo o
mais que se fazia sob a insígnia do autodidatismo, e
neste sentido cumpriram uma função assinalada por
Foucault de etopoiética: elas foram os operadores da
transformação do discurso anarquista em ethos, reu-
nindo e captando aquilo que se pôde ouvir, ler ou avis-

192
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

tar, com a finalidade de constituir a si mesmo como


sujeito portador de saberes e condutas singulares.
Elas também constituíram uma resposta às formas
de sujeição do indivíduo em determinada época, uma
estratégia que tentou neutralizar os efeitos de um po-
der que pretendeu manter o indivíduo preso a uma in-
dividualidade sujeitada. Seu aparecimento está conec-
tado a um momento histórico em que o anarquismo no
Brasil, suas preocupações e táticas, tornou-se funda-
mentalmente ético, contrariamente ao tipo de luta sin-
dicalista precedente, que se ligava a uma base de mas-
sas por questões essencialmente econômicas.

Notas
1
M. Godelier. O enigma do Dom. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001,
p. 12.
2
M. Foucault. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Vol. II. Rio de Janeiro,
Graal, 1994, p. 13, grifos meus.
3
J. Birman. Entre cuidado e saber de si – sobre Foucault e a psicanálise. Rio de
Janeiro, Relume Dumará, 2000, p. 85.
4
M.Foucault. “O Sujeito e o Poder” in H. L. Dreyfus & P. Rabinow. Michel
Foucault, uma trajetória filosófica - Para além do estruturalismo e da hermenêutica.
Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995, p. 231.
5
P. Rabinow. Antropologia da Razão. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999, p.
31.
6
M. Foucault. “O Sujeito e o Poder”, op. cit., p. 235.
7
F. Guattari. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo, Ed. 34, 1992, p.
12.
8
F. Ewald e A. Fontana in M. Foucault. Em defesa da sociedade. São Paulo,
Martins Fontes, 1999, p. 11.
9
Idem, p. 13.
10
M. Foucault, “O Sujeito e o Poder”, op. cit., p. 239.
11
Idem., op. cit., 1994, p. 13.

193
6
2004

12
J. Birman, op. cit., pp. 80-82.
13
R. K. Merton. Sociologia – teoria e estrutura. São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1970,
p. 267.
14
A. Camus. O homem revoltado. Rio de Janeiro, Record, 1999, p. 21.
15
Idem, p. 27.
16
F. Nietzsche. Humano, demasiado humano – um livro para espíritos livres. São
Paulo, Cia. Das Letras, 2001, p. 82.
17
A. Hamon. Psicolojia do anarquista-socialista. Lisboa, Guimarães & Cia. Edi-
tores, 1915, pp. 57-58.
18
Na transcrição feita por G. Woodcock, Os grandes escritos anarquistas. Porto
Alegre, L&PM Editores, 1998, pp. 156-157, “Revolução e Insurreição”,
Max Stirner coloca em oposição essas duas noções. Entretanto, Thiago S.
Santos, “Ode à petulância” in Verve, 2004, nº5, pp. 301-305, chamou aten-
ção dizendo que “Barrué se mostra um atento leitor ao dar a devida impor-
tância aos sentidos etimológicos. Atenção presente quando Stirner trata da
questão da revolução-insurreição. Segundo Barrué, ele empresta a palavra
francesa révolution, de origem latina. À “palavra Revolução Stirner opõe
Emporung, cujo sentido habitual é revolta, rebelião”. Desse modo, enquanto
a revolução vem colocar uma nova ordem nas coisas, seja por meio de um
novo Estado ou da manutenção da idéia de sociedade, a insurreição pretende
que o indivíduo se eleve, e não seja dominado por qualquer ordem”.
19
M. Stirner. “Revolução e Insurreição” in G. Woodcock, op. cit.
20
M. Stirner. El único y su propriedad. Valência, F. Sempere y Cia. Editores, s/
d, pp. 152-153.
21
E. Malatesta. “Pensiero e volontà”, 01/09/1925 in V. Richards. Malatesta,
vida e ideas. Barcelona, Tusquets Editor, 1977, p. 24.
22
P.-J. Proudhon. De la justice dans la révolution et dans l’Église: études de philosophie
pratique. Tome I. Paris, Fayard, 1988, p. 169.
23
Idem, pp. 176-177.
24
Ibidem, p. 181.
25
G. Berti. Errico Malatesta e il movimento anarchico italiano e internazionale
(1872-1932). Milão, Franco Angeli, 2003, p. 235.
26
E. Malatesta. “Errori e rimedi” in G. Berti, op. cit., p. 237.
Idem, “Arrestiamoci sulla china: a proposito dell’attentato di Buffalo” in G.
27

Berti, op. cit., p. 330, grifos nossos.


28
F. Carvalho. “Carta aberta”, A Plebe, nº 11, 28/01/1933, grifos meus.

194
verve
Revolta, ética e subjetividade anarquista

29
“Núcleos de ação e cultura libertária”, A Plebe, nº 22, 29/04/1933.
30
“Pela formação de agrupações libertárias”, A Plebe, nº 23, 06/05/1933.
31
“A atitude dos anarquistas frente à Revolução de 30, de modo semelhante
ao que ocorrera diante da rebelião tenentista em 1924 e também da Revolu-
ção Constitucionalista de 1932, apresentava-se inicialmente como uma rea-
ção de indiferença. Devido ao caráter político-partidário desses aconteci-
mentos, os anarquistas, que se firmavam como apolíticos, viam simples troca
de governantes que não afetaria a condição operária”, R. de Azevedo. A
resistência anarquista: uma questão de identidade (1927-1937). São Paulo, Arqui-
vo do Estado/Imprensa Oficial, 2002, p. 58.
32
E. Malatesta apud L. Fabbri. Malatesta. Buenos Aires, Americalee, [194-],
p. 321.
33
Cf. C. Romani. Oreste Ristori – uma aventura anarquista. São Paulo,
Annablume/Fapesp, 2002.
34
“Do comitê de relações dos grupos anarquistas”, A Plebe, nº 51, 23/12/
1933.
35
“Como encarar a obra de organização dos grupos”, A Plebe, nº 49, 09/11/
1933.

195
6
2004

RESUMO

Aborda a constituição da subjetividade anarquista por meio da


noção de estética da existência de Michel Foucault e da conexão
revolta-ética, e a repercussão no anarquismo brasileiro.

Palavras-chave: estética da existência, revolta, anarquismo no Bra-


sil.

ABSTRACT

The author addresses the development of the anarchist subjectivity


through the Michel Foucault’s concept of aesthetic of existence
and the connection revolt-ethics, and the repercussion in Brazilian
anarchism.

Keywords: aesthetic of existence, revolt, anarchism in Brazil.

196
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

o corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

paula sibilia*

Começando pela biotecnologia e avançando velozmente


rumo à nanotecnologia, tratamos a matéria como informa-
ção. Essa redução ao nível molecular irá nos permitir digitar
as moléculas no computador para criarmos o produto de con-
sumo desejado. Este irá se apresentar, emulando o funcio-
namento do mundo biológico.
R.U. Sirius

A forma viva leva a sua atrevida existência na matéria,


paradoxal, lábil, insegura, rodeada de perigos, finita, pro-
fundamente irmanada com a morte.
Hans Jonas

* Mestre em Comunicação, Imagem e Informação (UFF), e doutoranda em


Comunicação e Cultura (ECO-UFRJ) e em Saúde Coletiva (IMS-UERJ). É
autora do livro O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais (Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2002).
verve, 6: 199-226, 2004

199
6
2004

O ideário da tecnociência contemporânea — com a


teleinformática e as biotecnologias balizando a rota —
está se expandindo pelo tecido social, cada vez com mais
veemência, atingindo as áreas mais diversas e turvando
muitas definições que outrora pareciam claras. Durante
milênios vigorou, na tradição ocidental, uma distinção
radical entre physis e techne (em termos gregos) ou natura
e ars (em termos latinos). Natural e artificial. De um lado,
o ser que é princípio do seu próprio movimento; de outro
lado, as operações humanas para utilizar, imitar e am-
pliar o escopo do natural. Dois mundos nitidamente dife-
renciados. Hoje, porém, a fronteira entre ambos está se
dissipando, e os discursos das mídias, das artes e das
ciências estão engendrando um novo personagem: o ho-
mem pós-orgânico.
Do que se trata? Para começar a abordagem do assun-
to, o melhor talvez seja recorrer a alguns dos muitos fe-
nômenos inquietantes que assinalam essa tendência e
estão inundando o nosso cotidiano, permeando o imagi-
nário contemporâneo e desestabilizando as velhas
cosmovisões. Um exemplo é o caso da jovem eleita Miss
Brasil em 2001, cujo título foi questionado quando veio a
público que seu corpo fora submetido a uma longa série
de cirurgias plásticas, revelando-se como uma constru-
ção da tecnociência — uma obra de arte talhada com
bisturis e modelada em silicone — em vez de um autên-
tico expoente da “beleza natural feminina”. Estranheza
semelhante é suscitada pelos projetos de clonagem ani-
mal e humana e pelas experiências transgênicas, que
dão à luz a tomates com genes de salmão, milho com
genes de vagalume e porcos com genes de galinha. E,
também, pelas tendências virtualizantes da teleinfor-
mática: pessoas que se relacionam por meio da Internet,
por exemplo, prescindindo do encontro físico dos corpos
para criarem laços afetivos. Cabe refletir, também, so-

200
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

bre os chamados “produtos orgânicos”, que ocupam um


espaço específico (e reduzido) nos supermercados, com
uma aura sofisticada que justifica seu preço maior, insi-
nuando de alguma maneira que todos os demais alimen-
tos teriam algo de não(pós?)-orgânico.
O que é essa organicidade, essa “natureza” originária
da qual todos os casos acima mencionados estariam se
distanciando? Em que consiste essa característica que
parecia definir a vida e o propriamente humano, mas agora
começa a perfilar-se como ultrapassada?

Metáforas cosmológicas: impõe-se um upgrade


Para responder às perguntas do parágrafo anterior, é
necessário mergulhar brevemente no século XVII, a fim
de resgatar um gesto fundamental na história das idéias
que esculpiram a tradição ocidental. Naquela época lon-
gínqua, novas cosmologias brotaram da física e da astro-
nomia, sacudindo a imagem do mundo vigente até o mo-
mento. Em seguida, tais idéias foram apropriadas pelos
filósofos para re-explicar o homem, a vida e o universo
em termos mecânicos. Desse processo resultou a fértil
metáfora do homem-máquina, que procurava decifrar o ser
humano com o instrumental da ciência da época, isto é:
dissecando seus mecanismos e observando suas engre-
nagens em funcionamento. Assim, o Tratado sobre o ho-
mem de René Descartes, por exemplo, jamais poderia ter
prescindido das inúmeras analogias de máquinas hidráu-
licas, relógios e autômatos na tentativa de definir o corpo
humano.
No final do século XX, de modo semelhante, a tecno-
ciência de alcance molecular começou a estimular a re-
visão dos conceitos filosóficos herdados daquela antiga
visão do mundo, disseminando suas propostas e ambi-
ções para fora dos laboratórios e tingindo o universo com

201
6
2004

suas novas idéias. Hoje, as ciências da vida se aliam à


teleinformática de maneira cada vez mais intrincada,
numa junção das duas vertentes mais significativas dos
saberes hegemônicos contemporâneos. Com seu
paradigma digital, sua tendência virtualizante e seu
embasamento na informação imaterial, ambos os tipos
de saberes e ambos os conjuntos de técnicas estão sendo
aplicados aos corpos, às subjetividades e às populações
humanas, contribuindo para a sua produção.

Carne e microchips
Em mais de um sentido, de fato, os computadores e as
novas técnicas biológicas estão intimamente aparenta-
dos. No nível econômico, esses dois poderosos campos da
tecnociência estão unindo esforços e investimentos, atra-
vés da fusão de companhias de ambas as origens e da
participação conjunta em diversos projetos de pesquisa.
A área da biotecnologia, caracterizada por uma prolifera-
ção de empresas novas e pequenas porém muito pródi-
gas no desenvolvimento de tecnologias inovadoras e des-
cobertas surpreendentes, requer um poder de proces-
samento computacional e uma capacidade de armaze-
namento em bancos de dados cada vez maiores. Os gi-
gantes conglomerados da informática descobriram o ni-
cho de mercado e começaram a se associar ou a adquirir
as pequenas empresas já existentes, abrindo também
novos departamentos dedicados às Ciências da Vida. Mas
a fusão não está ocorrendo apenas no terreno dos negó-
cios: os dispositivos em desenvolvimento são autênticos
exemplos de uma hibridização profunda, que mistura
matérias orgânicas e inorgânicas nos próprios aparelhos
que estão sendo fabricados. Já existem, por exemplo, os
chamados biochips ou wetchips (chips úmidos). Trata-se
de uma nova classe de microprocessador, em cuja com-

202
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

posição intervêm circuitos eletrônicos e tecidos vivos. Os


dois tipos de componentes se conectam logicamente e
intercambiam dados, porque ambos operam de acordo com
a mesma lógica: a da informação digital.
Cientistas israelenses descobriram que uma molé-
cula de DNA (a estrutura química que codifica os genes
dos seres vivos) é capaz de armazenar bits e processar
instruções lógicas, podendo integrar os circuitos de um
computador. No sistema que foi assunto de capa da re-
vista Nature no final de 2001, cada conjunto de seis pares
de bases nitrogenadas da cadeia de DNA corresponde a
um bit. Por outro lado, a tecnologia de “chave biológica”
desenvolvida na Universidade de Boston permite comu-
tar os genes entre as posições ligado (on) e desligado (off),
através de produtos químicos ou alterações de tempera-
tura. A partir daí é possível operar uma correspondência
entre tais posições binárias dos genes, por um lado, e,
por outro, os zeros e uns que constituem a linguagem
básica dos computadores. “Embora a comutação seja bas-
tante lenta em comparação com a dos computadores tra-
dicionais, a descoberta é importante por demonstrar que
as células também podem ser programadas de tal ma-
neira que estarão aptas para conduzir a outras opera-
ções úteis”, conclui o artigo que anunciava a novidade
no jornal The New York Times, em junho de 2000.
Atualmente, os chips de DNA são fabricados por em-
presas como Motorola e Affymetrix, aliando vidro e silício
a milhares de fragmentos de material genético humano.
Tais dispositivos são utilizados para efetuar diagnósticos
mais precisos de doenças como a diabetes e o câncer. No
horizonte, a meta é detectar tumores e outros problemas
de saúde antes de os sintomas aparecerem, inclusive
antes mesmo de eles surgirem, bastando apenas ler as
instruções inscritas no código do paciente. A tecnologia
avança rapidamente neste campo, com fortes investimen-

203
6
2004

tos e certo furor na cotação das ações das companhias da


área. As terapias genéticas, tanto as preventivas quanto
as corretivas, a e-medicine e a “medicina personalizada”
(que se propõe a criar drogas específicas a partir do
genoma de cada indivíduo, contemplando a inserção de
células programadas no DNA) figuram entre os frutos do
recente matrimônio entre as empresas de teleinfor-
mática e as de ciências da vida. Daqui a pouco, como diz
um livro de divulgação popular sobre a genética, “toda
uma seqüência de DNA será tão fácil de ler como o código
de barras nos produtos à venda nos supermercados”1. A
analogia mercadológica não deve passar desapercebida,
pois ela toca o âmago das novas configurações de saber e
de poder.

A desmaterialização do corpo
A passagem da metáfora do homem-máquina — na qual
se apoiava o arcabouço da ciência moderna — para o mo-
delo do homem-informação parece dar conta de um mate-
rialismo levado até as últimas conseqüências. No en-
tanto, a materialidade da substância com a qual são cons-
tituídos todos os seres vivos é ambígua: afinal, o DNA é
um código, é pura informação. As instruções contidas nos
genomas das diversas espécies, inclusive a humana, es-
tão sendo decifradas nos laboratórios por meio de equipa-
mentos específicos denominados “seqüenciadores auto-
máticos de DNA”, e toda uma aparelhagem computacional
capaz de processar uma enorme quantidade de dados. A
informação obtida dessa forma é digital: meras cadeias
de zeros e uns feitos de luz. E nelas reside o “segredo da
vida”, de acordo com o paradigma hegemônico do saber
contemporâneo.
Nos laboratórios onde ocorrem as pesquisas e desco-
bertas da biotecnologia, como já fora mencionado, os ma-

204
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

teriais genéticos estão se fundindo com os dispositivos


informáticos. Logo, não são apenas “as coisas da mente”
que estão sendo representadas cada vez mais por meio
de bits e bytes, como lembra uma figura ícone da
cibercultura, o norte-americano R.U Sirius2. As reflexões
aqui esboçadas sugerem que “as coisas do corpo” tam-
bém ingressaram nesse processo de digitalização uni-
versal. O materialismo da genética, portanto, pode ser
enganador, pois para essa disciplina científica o funda-
mento da vida reside em uma série de instruções
digitalizadas: longas seqüências de letras A, T, C e G,
processadas por meio de uma parafernália informática
que funciona sem cessar, 24 horas por dia. Os organis-
mos não entram nos laboratórios da biotecnologia; eles
ficam do lado de fora. Basta os pesquisadores contarem
com um fragmento minúsculo do DNA extraído de uma
célula qualquer do corpo e conservado numa geladeira.
Uma vez seqüenciado o código, até mesmo essas molé-
culas tornam-se dispensáveis, pois o “segredo da vida” já
passou para as mãos da tecnociência.
De outro lado, as tendências virtualizantes da telein-
formática parecem ancorar-se, igualmente, em bases
“etéreas”. Elas privilegiam o pólo imaterial do velho
dualismo cartesiano, potencializando a mente e descar-
tando o corpo como um mero obstáculo demasiadamente
material. É comum encontrar, entre os entusiastas des-
se ramo da tecnologia atual (tanto na área artística da
cibercultura quanto na área acadêmica das pesquisas
científicas), apelos em favor da hipertrofia da mente e do
abandono do corpo. “Os seres humanos se tornarão um
único e grande cérebro pelo qual as coisas voarão a toda
velocidade”, pontifica o mencionado R. U. Sirius, e pros-
segue: “isso acontecerá, provavelmente, antes de aban-
donarmos os nossos corpos físicos”. No mundo volátil do
software, da inteligência artificial e das comunicações

205
6
2004

via Internet, a carne parece incomodar. A materialidade


do corpo é um entrave a ser superado para se poder mer-
gulhar no ciberespaço e vivenciar o catálogo completo de
suas potencialidades.
Com sua vocação transcendentalista, os projetos da
inteligência artificial que hoje estão em andamento em
diversas instituições científicas do mundo se propõem a
escanear o cérebro humano e fazer download da mente,
a fim de conquistar a imortalidade encarnada em um
computador, livre de todos os riscos e dos avatares sus-
peitos do corpo orgânico. Para vários pesquisadores des-
sa disciplina de candente atualidade, como Hans
Moravec, Marvin Minsky e Raymond Kurzweil, a defini-
ção do ser humano se apóia em seu lado incorpóreo, a
mente, desdenhando o corpo como um mero empecilho
para a sua expansão ilimitada no tempo e no espaço. Para
todos eles, contudo, a tecnologia informática logo irá su-
perar tal limitação, concedendo imortalidade à mente na
sua hibridização com o software — o tom profético e o
estilo enfático, aliás, também são características com-
partilhadas por certos cientistas dessa área.
Teimosamente orgânico, porém, o corpo humano re-
siste à digitalização, recusa a submissão total às mode-
lagens das tecnologias da virtualidade. Contudo, persiste
nesse imaginário o sonho de abandonar o corpo para
adentrar um mundo de sensações digitais. Um universo
“virtual”, que tem a luz elétrica como matéria-prima e
pretende ignorar as limitações que constringem o corpo
vivo. Surge assim, paradoxalmente, no cerne de uma so-
ciedade em feroz corrida tecnológica, avidamente
consumista e adoradora da “boa forma” física, um novo
discurso da “impureza” ligado à materialidade corporal.
É possível mergulhar mais fundo nessa direção. Na
física contemporânea, que perscruta todos os elementos

206
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

do real em nível microscópico, a matéria deixa de ocupar


um lugar no espaço e passa a ser estudada como uma
forma de energia. E essa energia imaterial costuma adqui-
rir, cada vez com maior freqüência, a face da informação,
que se apresenta como uma metáfora todo-poderosa e de
longo alcance. “A noção de informação hoje tende a se
generalizar, em detrimento da de massa e da de ener-
gia”, constata Paul Virilio em A arte do motor3. As confir-
mações desse deslocamento estão por toda parte, por
exemplo: “o principal acontecimento do século XX é a
superação da matéria”, sentencia um dos tantos mani-
festos que a nova “era da informação” tem inspirado en-
tre seus adeptos e que circulam agilmente pelos mean-
dros virtuais da Internet4.

Ultrapassar a condição humana


Apesar de serem propostas bastante diversas, todos os
casos aqui comentados fazem parte do mesmo paradigma
tecnocientífico. Seu objetivo último coincide: ultrapas-
sar os limites da matéria, transcender as restrições ine-
rentes ao organismo humano à procura de uma essên-
cia virtualmente eterna. Essas ânsias de superar as li-
mitações do corpo material denotam uma certa
repugnância pelo orgânico, uma espécie de aversão pela
viscosidade do corpo biológico. Apesar da crescente pre-
ponderância da cultura do fitness, do bodysm e do healthism
— ou, talvez, como mais um ingrediente dessa tendên-
cia — o corpo recebe uma grave acusação: é limitado e
perecível, demasiadamente orgânico, e portanto fatal-
mente condenado à obsolescência. Impõe-se, então, o im-
perativo do upgrade tecnocientífico.
“Ultrapassar os parâmetros básicos da condição huma-
na — a sua finitude, contingência, mortalidade, corpora-
lidade, animalidade, limitação existencial — aparece como

207
6
2004

um móbil e até como uma das legitimações da tecno-


ciência”, confirma o sociólogo português Hermínio Martins,
autor de alguns ensaios bastante esclarecedores sobre a
filosofia que alicerça a tecnociência contemporânea5. Tan-
to nas promessas quanto nas realizações dos programas
biotecnológico e teleinformático aqui percorridos percebe-
se claramente essa intenção de superar a condição hu-
mana ultrapassando as falências inerentes ao corpo orgâ-
nico. Assim, são desafiados os limites espaciais e tempo-
rais ligados à materialidade corporal, recorrendo ao arsenal
de tecnologias da virtualidade (que prometem acabar com
as distâncias, as fronteiras geográficas e outras restri-
ções espaciais) e da imortalidade (declarando guerra ao en-
velhecimento, às doenças e à própria morte, todas restri-
ções temporais).
Já não basta, simplesmente, melhorar as condições de
existência e lutar contra as forças hostis da natureza, como
propunha o projeto científico moderno. O novo sonho apon-
ta para bem mais longe: visa à transcendência da humani-
dade. À luz dessa meta, o corpo que interage intimamente
com essas vertentes da tecnociência é conformado por in-
formação. Deixando para trás o modelo mecânico do corpo-
máquina, as novas configurações corporais da era pós-in-
dustrial inspiram-se no modelo da informação digitalizada.
Assim, anunciam e buscam uma possível dispensa dos su-
portes orgânicos e materiais, para poderem atravessar tem-
pos e espaços sem qualquer restrição.

Metafísica high-tech
Esse embasamento do humano em um substrato pu-
ramente imaterial não é algo novo na história das idéias
ocidentais. No século XVII, além do homem-máquina, o
mundo viu emergir uma série muito poderosa de concei-
tos e metáforas: o dualismo corpo-mente, uma força que

208
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

vem constituindo as subjetividades ocidentais pelo me-


nos ao longo dos últimos quatro séculos. Amalgamando
antecedentes das filosofias platônica e cristã com as no-
vidades científicas da época, foi precisamente René Des-
cartes quem definiu o homem como um misto de duas
substâncias completamente diferentes e separadas: por
um lado, o corpo-máquina, um objeto da natureza como
outro qualquer, que podia e devia ser examinado com o
método científico (res extensae); por outro lado, a misteri-
osa mente humana, uma alma pensante cujas origens
só podiam ser divinas (res cogitans). O filósofo notou que
— diferentemente do corpo, com sua prosaica materia-
lidade — o fluxo de idéias, sensações, desejos e reflexões
que emanavam da alma não parecia ocupar espaço ne-
nhum. Contudo, apesar da sua qualidade etérea e vaga-
mente incompreensível, essa “substância imaterial” pos-
suía uma importância fundamental para o ser humano:
“penso, logo existo”. A essência do homem era, portanto,
pura substância imaterial. De acordo com a perspectiva
cartesiana, pelo menos em teoria a mente poderia so-
breviver sem qualquer suporte físico, incluindo o cérebro
humano. “Eu poderia supor não possuir um corpo”, racio-
cinava o filósofo; mas era impossível admitir a própria
existência prescindindo do pensamento, fruto do “espíri-
to incorpóreo”, a alma, a mente, a consciência. Para Des-
cartes, portanto, o corpo não faz parte da essência do ser
humano; é dispensável, na medida em que o pensamen-
to dele independe: “sou realmente distinto do meu corpo
e posso existir sem ele”, concluía na sexta e última das
Meditações Metafísicas6.
Essa idealização metafísica do ser humano parece res-
surgir hoje em um cenário aparentemente inesperado:
o das redes informáticas, em plena consonância com o
novo paradigma tecnocientífico. Neste neo-cartesianismo
high-tech, a velha oposição corpo-alma corresponderia ao

209
6
2004

par hardware-software. E a balança se inclina, também nes-


te caso, para o pólo imaterial do software. Pois, com sua
proposta de dissolução da matéria na luz, nos impulsos
elétricos que constituem o cerne tanto das máquinas quan-
to dos organismos depurados e hibridizados pela
tecnociência, a nova perspectiva parece estar levando às
últimas conseqüências a transmutação dos átomos em
bits anunciada pelo “guru digital” Nicholas Negroponte. Em
seu best-seller Being Digital, publicado em 1995 e imedia-
tamente traduzido para várias dezenas de línguas, o famo-
so diretor do MediaLab do MIT (Instituto Tecnológico de
Massachusetts) explicava que os bits constituem “o DNA
da informação”, e pressagiava a iminente conversão de
todos os elementos constitutivos da realidade material
nessa substância virtual7.
Hoje se realiza um processo que foi sendo incubado
nas últimas décadas: a informação perdeu seu corpo.
Como constata Katherine Hayles em seu estudo sobre a
construção do imaginário pós-humano na ciência e na
literatura, foi operada uma cisão conceitual entre a in-
formação e o seu suporte material, desqualificando este
último e convertendo a primeira numa sorte de “fluido
desencarnado” que é capaz de transitar entre diferentes
substratos sem perder sua forma e seu sentido8. Dessa
maneira, a informação adquiriu uma relevância univer-
sal como denominador comum a todas as coisas — tanto
vivas quanto inertes — e uma supremacia sobre a maté-
ria. Quando essa noção atingiu o domínio do ser huma-
no, foi inevitável assumir que o corpo orgânico não faz
parte da sua “essência”. Ao contrário, a encarnação bio-
lógica dos homens seria um mero acidente histórico em
vez de uma característica inerente à vida. E mais: se a
“essência” da humanidade for de fato informática, então
não há diferenças radicais entre computadores e seres

210
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

humanos, pois ambos compartilham a mesma lógica de


funcionamento.
Tal operação conceitual desembocou na atual prolife-
ração de metáforas ligadas ao universo digital que se es-
palham por todos os âmbitos, com a imaterialidade da
informação como um ingrediente fundamental dessa re-
tórica. Nos discursos publicitários, nas telas do cinema,
na literatura e, inclusive, em alguns textos teóricos, su-
bitamente a realidade inteira pode se revelar como um
programa informático que está sendo executado em um
computador cósmico. Assim, a tecnociência contempo-
rânea estende em todas as direções seu horizonte de
digitalização e de dissolução das matérias mais diversas
em feixes de bits: nos sinais eletrônicos que se apresen-
tam como um “fluido vital” universal, capaz de sustentar
tanto as máquinas quanto os organismos virtualizados.
Mas há uma certa resistência: o corpo biológico ainda se
ergue. E a sua materialidade se rebela; por vezes, ele
parece ser orgânico, demasiadamente orgânico. A tei-
mosia do sensível persiste, o homem parece estar enrai-
zado em sua estrutura de carne e osso. Ao menos — tal-
vez caiba acrescentar — por enquanto.

Digitalização do humano e pós-evolução


De acordo com estimativas publicadas na revista
Scientific American, a “evolução tecnológica” é dez milhões
de vezes mais veloz do que a “evolução biológica”. E o fu-
turo se anuncia ainda mais vertiginoso: neste século,
segundo o especialista em inteligência artificial Raymond
Kurzweil, os avanços tecnológicos da humanidade pro-
metem dobrar a cada dez anos, de maneira exponencial.
Nesse ritmo, os velhos mecanismos da Natureza não po-
diam senão se tornarem ultrapassados, obsoletos. No
nascente século XXI, a atualização tecnocientífica dos

211
6
2004

organismos vivos já não obedecerá (ou, pelo menos, não


exclusivamente) às ordens arcaicas e vagarosas da evo-
lução natural descrita pelos biólogos do longínquo século
XIX, seguindo a trilha aberta por Charles Darwin. Abre-
se, agora, um novo caminho, que aponta para a evolução
pós-biológica ou pós-evolução de caráter informático e
genético: o homem lança mão dos saberes tecno-
científicos para operar seu próprio upgrade.
As terapias genéticas prometem revolucionar a me-
dicina com a prevenção e até mesmo a “correção” dos
“erros genéticos” detectados nos códigos dos pacientes.
Tais técnicas poderão ser aplicadas tanto em nível
somático (afetando somente o indivíduo em tratamento)
quanto em nível germinativo (operando nas células se-
xuais e embrionárias, habilitando assim a transmissão
do novo traço para toda a descendência do organismo al-
terado). Por outro lado, a engenharia genética oferece um
catálogo de “tecnologias da alma”, surgidas de um campo
de saber que hoje recebe atenção permanente da mídia:
a genética comportamental. Esta disciplina se propõe a
identificar as supostas relações existentes entre um de-
terminado gene e um certo traço da subjetividade (inte-
ligência, ansiedade, preguiça, desejo sexual, ambição,
pessimismo, etc.), utilizando a estatística como método
básico para estabelecer as correspondências. Seu objeti-
vo final coincide com o da genética médica: diagnosticar,
prevenir e eventualmente “ajustar” determinados “er-
ros” inscritos nos códigos genéticos dos indivíduos. As-
sim, alterando a informação contida no DNA seria possí-
vel, por exemplo, transformar um criminoso — potencial
ou real — em um “homem honesto”. O desafio está lan-
çado: se a propensão à violência é controlada pelos genes,
por que não intervir para corrigi-la? Do mesmo modo, se
ela é transmitida geneticamente, por que não praticar
logo uma terapia em nível germinativo, ao invés de limi-

212
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

tar-se à extirpação somática no indivíduo, para assim eli-


minar o “gene violento” de toda a descendência do sujeito
e livrar-se para sempre desse grave problema social?
Além das trocas e alterações na informação genética,
que apontam para a modelagem dos corpos e das subjeti-
vidades, a tecnociência contemporânea também facilita
a inserção subcutânea de componentes não-orgânicos,
hibridizando os corpos com materiais inertes. Trata-se
do processo que Paul Virilio denominou endocolonização
e que caracteriza a conquista do interior do organismo
humano por parte da tecnociência mais recente: da apa-
relhagem videoscópica utilizada para o diagnóstico e o
tratamento de diversas doenças até as experiências mais
inovadoras de cirurgias sem cortes por meio da inserção
de dispositivos nanotecnológicos. Cada vez mais
introjetados, transparentes e diluídos em trocas íntimas
e fluidas, os agentes artificiais se misturam com os or-
gânicos, dissolvendo as fronteiras e tornando obsoleta a
antiga diferenciação, visto que ambos os tipos de elemen-
tos compartilham a mesma lógica da informação digital.
Assim, hoje são criados materiais inéditos, híbridos de
ambos os mundos, representados pelos microchips com
componentes orgânicos e pelos implantes biônicos. Es-
tes últimos se apresentam como capazes de devolver a
visão aos cegos e a possibilidade de andar aos para-
plégicos, graças à implantação cirúrgica de micro-
processadores no cérebro e outros dispositivos teleinfor-
máticos ligados aos nervos, aos músculos ou a órgãos
específicos. Soluções semelhantes estão sendo testadas
para tratar de doenças como a epilepsia e os males de
Parkinson e Alzheimer; e, inclusive, de distúrbios ner-
vosos como a obsessão compulsiva, a síndrome do pânico
e a depressão.
Em seu livro mais recente, The Singularity is Next, o
mencionado Kurzweil afirma que a evolução tecnológica

213
6
2004

logo será tão rápida e profunda que representará “uma


ruptura no tecido da história humana”. Tal desconti-
nuidade histórica ocorrerá, segundo o autor, por causa
do apagamento da linha que costumava separar os seres
humanos dos dispositivos informáticos: “ela ficará cada
vez mais tênue, à medida que computadores do tamanho
das células — os nanobots — permitam aos cientistas o
desenvolvimento de modelos do cérebro humano basea-
dos em computadores, além do aperfeiçoamento das men-
tes através de pequenos implantes digitais”. Assim, com-
binando as diversas habilidades dos homens com a velo-
cidade, a precisão e a capacidade de processamento dos
computadores, a inteligência humana poderá ser
incrementada: “o cérebro humano não terá mais um li-
mite estabelecido pela natureza”, conclui Kurzweil. Além
dos implantes de memória artificial, o cientista destaca
a possibilidade de introduzir dados no cérebro através de
canais neurais diretos. Dessa forma, seria possível au-
mentar a própria capacidade de armazenar informações
a velocidades inusitadas, deixando obsoletos os árduos
processos de aprendizado tradicionais. Como resultado
dessa fusão entre o órgão cerebral e os circuitos eletrô-
nicos, é oferecida uma possibilidade sedutora: a de efe-
tuar um upgrade sistemático da alma, a partir da varie-
dade de menus oferecidos no mercado.

A compatibilidade entre homens e computadores


Se somente agora essa interação orgânico-eletrônica
está se realizando nos laboratórios, há muito tempo que
ela vive no imaginário da ficção-científica: na última dé-
cada, a idéia foi recriada em filmes como eXistenZ, Johnny
Mnemonic, Matrix, O vingador do futuro e Estranhos praze-
res9. Ultrapassando os limites da ficção, todavia, o cien-
tista britânico Kevin Warwick oferece um exemplo per-

214
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

feito dessa novíssima compatibilização entre homens e


computadores. Ele próprio explica o objetivo das experi-
ências em andamento na Universidade de Reading, ba-
seadas na implantação de um microchip em seu braço
para comunicar seus nervos com um computador: “Cap-
taremos em meu sistema nervoso os sinais físicos pro-
duzidos por sensações como a dor, a raiva, o medo e a
excitação sexual. Depois os devolveremos ao sistema
nervoso e observaremos os resultados. Será possível re-
criar a dor, por exemplo? Cremos que sim. Poderemos
enviar impulsos eletrônicos para inoculá-la, como uma
espécie de anestesia local? Seria muito útil se pudésse-
mos inserir um chip nos corpos das pessoas que sofrem
de dores constantes para eliminá-las de forma eletrôni-
ca e dispensar assim os calmantes químicos, com todos
seus efeitos negativos. Procuraremos também enviar
sinais de uma pessoa para outra, de um sistema nervoso
para outro, através da Internet, a fim de conhecer os efei-
tos provocados pelos impulsos alheios. Eu tenho certeza
de que a criação eletrônica de estados de ânimo será pos-
sível em um futuro muito próximo, talvez daqui a dez
anos”10.
Assim, utilizando um léxico e uma retórica comuns
ao reino biológico e ao informático, o homem contempo-
râneo se torna compatível com os computadores. A lógica
digital envolve a ambos e os interconecta. Se essa inter-
conexão é viável, então também serão possíveis a
interação, a troca de dados e a operação conjunta entre
os dispositivos informáticos e os órgãos corporais. Na
Universidade de Califórnia, por exemplo, foi desenvolvi-
do um implante do tamanho de um grão de arroz: após a
inserção subcutânea, ele é capaz de operar como inter-
mediário na comunicação entre os nervos e as mais di-
versas peças eletrônicas implantadas no organismo, per-
mitindo efetuar todos os processos computacionais no

215
6
2004

interior do corpo e dispensando a necessidade de fios e


próteses externas.
A integração de circuitos eletrônicos no corpo huma-
no — por meio de próteses e implantes conectados ao
organismo para restaurar funções danificadas —
corresponde à biônica, um dos ramos da medicina que
gera mais expectativas na atualidade por conta de alguns
avanços surpreendentes registrados nos últimos anos e
das promessas que reserva para o futuro próximo. A dis-
ciplina mereceu um dossiê completo da revista Science
em fevereiro de 2002, no qual nove especialistas sinteti-
zaram os projetos e as conquistas mais importantes da
área. Uma equipe médica dos Estados Unidos, por exem-
plo, divulgou uma experiência de implantação de chips
microscópicos no globo ocular de um homem com proble-
mas na retina, na tentativa de reverter sua cegueira. Do
mesmo modo, existem experiências tendentes a restau-
rar o sentido auditivo em pacientes surdos, também por
meio de próteses biônicas e implantes eletrônicos em-
butidos no corpo.
Confiantes no ritmo em que avançam a miniaturi-
zação dos componentes eletrônicos, a criação de materi-
ais biocompatíveis e os conhecimentos sobre genética e
engenharia de tecidos, os cientistas acreditam que as
próteses informáticas para diversos fins abandonarão o
terreno puramente experimental e estarão disponíveis
no mercado já na próxima década. Por causa disso, atual-
mente, várias dezenas companhias biomédicas estão in-
vestindo centenas de milhões de dólares na pesquisa que
conduzirá ao desenvolvimento de novas técnicas e
próteses biônicas. Por enquanto, um dos acontecimen-
tos mais festejados foi a criação da primeira mão artifici-
al que permite ao portador utilizar os canais nervosos
existentes para controlar cinco dedos protéticos coman-
dados por um computador. A comunicação com o disposi-

216
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

tivo se efetua por meio de sinais elétricos emitidos pelos


músculos e tendões do usuário, permitindo a realização
de tarefas complexas como tocar piano e digitar no tecla-
do. A prótese informática foi desenvolvida por uma equi-
pe da Universidade de Rutgers (EUA) liderada por William
Craelius, quem considera que “as tecnologias biônicas
podem restaurar quase qualquer função perdida, pelo
menos em algum grau”11.
Nesse projeto de digitalização do humano, corpo e men-
te se tornam programáveis. Como resume Davi Geiger,
pesquisador em inteligência artificial no MIT: “somos sim-
plesmente uma máquina, um tipo muito especial de má-
quina similar a um computador, com programas desen-
volvidos ao longo da evolução das espécies”. Extrapolando
a metáfora até implodi-la, o cientista conclui que não
existe nenhum tipo de informação que não possa ser pro-
cessado no computador-homem; a única limitação resi-
diria “no tamanho da memória, do processador e dos pro-
gramas nele instalados”12. O único obstáculo para atin-
gir a compatibilidade absoluta, portanto, nessa perspectiva
de equivalência total entre computadores e homens, pa-
rece ser o estágio ainda insuficiente de desenvolvimen-
to tecnológico. Sabe-se, entretanto, que a capacidade da
aparelhagem informática aumenta de maneira
exponencial e suas potencialidades não têm limites: elas
são, por definição, infinitas. “O número de transistores
que podemos incluir dentro de um circuito integrado se
duplica a cada 18 meses”, confirma em depoimento à
revista Science o cientista responsável pela invenção da
primeira mão biônica. E prossegue William Craelius: “nes-
se ritmo, o processamento para a atividade biônica com-
plexa poderá ser implantado no cérebro ou em qualquer
outra parte do organismo daqui a dez anos”. Nesse hori-
zonte de universalismo infinitista, pode-se dizer que tudo
e todos — todas as coisas e todos os seres vivos — pode-

217
6
2004

rão ingressar na ordem digital. Tudo pode ser convertido


em informação. Tudo pode ser processado, à medida que
se estende o projeto de digitalização dos reinos orgânicos
e inorgânicos.

O imperativo da reciclagem
Amparada na alquimia digital, enfim, a nova
tecnociência parece ter condições de oferecer o instru-
mental necessário para realizar o tão desejado sonho de
modelar os corpos e as almas, gerando os mais diversos
resultados ao gosto do consumidor. Auto-produzir-se e vi-
ver eternamente: duas opções que hoje são oferecidas no
mercado. Graças ao acúmulo de saberes e técnicas, os
discursos da tecnociência expulsam a velhice e a morte
do neoparaíso humano. Enfraquecidas as restrições im-
postas pela velha Natureza, com suas severas leis colo-
cadas em xeque, o sujeito contemporâneo é incitado a
gerir seu próprio destino, tanto em nível individual como
da espécie.
As derivações dessa proposta são, basicamente, duas.
De um lado, abre-se o caminho rumo à realização do so-
nho individualista e narcisista por excelência: o da auto-
criação — a proposta, idealizada e perseguida com fervor
pelos modernistas, de fazer de si mesmo uma “obra de
arte”13. Contudo, os alcances e limites de tais sonhos hoje
são demarcados, em grande parte, pelas diretrizes do mer-
cado que impelem os sujeitos a se tornarem “gestores de
si”, administrando suas potencialidades a partir das es-
colhas de produtos e serviços oferecidos pelas empresas.
De outro lado, é inegável a importância desta questão
em nível macro-social: o replanejamento da espécie hu-
mana, possibilitado pela pós-evolução auto-dirigida, é um
tema extremamente problemático que carrega obscuras
conotações éticas e políticas. A responsabilidade pela

218
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

produção de corpos e subjetividades da população global


parece cair, hoje em dia, nas mãos de uma tecnociência
que opera conforme a lógica cega do capital, minguando a
capacidade de ação dos organismos públicos, das instânci-
as políticas tradicionais e dos Estados-Nação; instituições,
todas elas, que costumavam orquestrar o biopoder carac-
terístico das sociedades industriais. Nesse contexto, um
espectro torna a assombrar o mundo: o da eugenia. Os pro-
jetos de aprimoramento da espécie humana com base no
novo arsenal tecnocientífico despertam inquietantes ecos
totalitários que pareciam já esquecidos; agora, porém, eles
retornam numa nova versão: globalizada, sem referênci-
as nacionalistas ou raciais explícitas, e comandada com
mão firme pelas tiranias e alegrias do mercado.
Novas estratégias de biopoder configuram, hoje em dia,
outras formas de dominação e de produção subjetiva, apon-
tando para um novo modelo de humanidade: desprovido
das profundezas do inconsciente, do compromisso social
e do peso da história. A mutação envolve um forte apego
aos valores associados ao mercado, como rentabilidade,
eficiência, visibilidade e performance, no intuito de pro-
porcionar soluções técnicas a todos os problemas (sejam
eles da alma, do corpo ou da sociedade), na busca prag-
mática de resultados rápidos, tangíveis e mensuráveis.
Assim, uma gama diversificada de serviços com boa re-
lação custo-benefício é oferecida aos consumidores, acom-
panhando a decadência da força biopolítica das institui-
ções estatais e a disseminação da lógica da empresa por
todo o tecido social. Desse modo, os novos saberes colo-
cam no mercado uma série de dispositivos de prevenção,
que permitem a cada sujeito — ou obrigam-nos — a ad-
ministrar os riscos inerentes à sua informação orgânica
pessoal a partir do conhecimento de suas próprias ten-
dências, propensões e probabilidades. Uma informação
vital que é decifrada por meio de um complexo instru-

219
6
2004

mental tecnológico de tipo digital. Terapias preventivas,


enfim, cujo objetivo biopolítico é o controle da vida.
Detecta-se, portanto, uma transição para um novo re-
gime de poder: uma passagem da vigilância disciplinar
analisada por Michel Foucault para essa gestão privada
dos riscos. Novas “terapias para os normais” se generali-
zam, dissolvendo o sujeito da sociedade industrial para
conformar outros modos de subjetivação. Nesse movimen-
to, os indivíduos são impelidos a se tornarem gestores de
si, planejando as próprias vidas como os empresários de-
lineiam as estratégias de seus negócios, avaliando os
riscos e fazendo escolhas que visem maximizar sua “qua-
lidade de vida”, otimizando seus recursos pessoais e pri-
vados, e gerenciando as opções de acordo com parâmetros
de custo-benefício, performance e eficiência. Desse modo,
os sujeitos contemporâneos procuram enfrentar a tragé-
dia da própria obsolescência, assumindo as ferozes exi-
gências da “competitividade”. A própria saúde é um capi-
tal que os indivíduos devem administrar, escolhendo con-
sumos e hábitos de vida e calibrando os riscos que deles
podem decorrer. Mais uma vez, é a lógica da empresa
espalhando-se por todas as instituições e conquistando
novos espaços. Pois, no mundo contemporâneo, só os pa-
ranóicos sobrevivem — parafraseando o famoso executi-
vo da Intel, Andrew Grove14. Ou seja: aqueles sujeitos
que demonstram uma capacidade de se adaptarem às
mudanças constantemente exigidas pelo capitalismo pós-
industrial dos fluxos globais, aqueles que conseguem se
auto-programar a partir dos veredictos da tecnociência
ligada ao mercado. Enfim: sujeitos eficazes, flexíveis e
recicláveis. As medidas preventivas e a gestão dos riscos,
portanto, canalizam das forças vitais conforme as exi-
gências da nova formação política, econômica e social.
Todos os membros da espécie humana têm probabili-
dades de adoecer e morrer, todos possuem erros nos có-

220
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

digos, todos são virtualmente doentes, todos estão conde-


nados à obsolescência e, por causa disso, devem se sub-
meter à economia dos riscos; assim como na sociedade
industrial todos os sujeitos deviam ser vigiados e corrigi-
dos, o tempo todo, para serem enquadrados na esteira da
normalidade. Hoje é função de cada indivíduo conhecer
suas tendências e administrar seus riscos, numa forma
de auto-policiamento privado que implica o dever de lu-
tar contra o próprio destino, ultrapassando os limites da
própria configuração biológica com a ajuda da tecno-
ciência. É assim que o biopoder propaga atualmente o
imperativo da saúde e da vida eterna no campo de bata-
lha pela produção de corpos e subjetividades, na tentati-
va de evitar que os erros inscritos como probabilidades
nos códigos genéticos se efetivem — tanto nos organis-
mos quanto no corpo social.
Esse imperativo da saúde incita a obsessão pelo cuida-
do do corpo e à procura por “estilos de vida saudáveis”.
Copiosamente alardeado nos mídia, tanto no jornalismo
quanto na publicidade, tal imperativo chega a adquirir
tons agressivos, em ocasiões, com um certo “terrorismo
visual” que vai se intensificando nas propagandas. Um
bom exemplo é fornecido, no Brasil, pela campanha de
prevenção das doenças vinculadas ao fumo por meio da
impressão de imagens explícitas sobre os malefícios do
cigarro no verso das embalagens de todas as marcas
comercializadas no país. Assim, o sujeito atingido pelas
novas modalidades biopolíticas de formatação subjetiva
metaboliza o imperativo da saúde: assumindo-se como
gestor de si, minimiza ou maximiza os riscos provavel-
mente inscritos em sua predisposição genética, ao
combiná-los com um estilo de vida saudável ou perigoso.
Pois, em pleno processo de formatação do homem pós-
orgânico, a tecnociência adverte: quem não conseguir
atingir a categoria de pós-humano, selando o pacto de

221
6
2004

transcendência com suas sedutoras promessas e seus


árduos imperativos, pode estar condenado a virar sub-
humano.

Dos “corpos dóceis” aos “corpos ligados”


Quando Paul Virilio descreve o “homem superexcitado”
como um tipo característico da subjetividade contempo-
rânea, assinala a ênfase voltada para os nervos: um ter-
ritório privilegiado do estresse e de outros distúrbios típi-
cos da contemporaneidade, tais como a depressão, a
anorexia, a síndrome de pânico e os comportamentos com-
pulsivos e obsessivos15. Compatível com os circuitos ele-
trônicos da aparelhagem digital — assim como o código
genético cifrado no DNA —, o sistema nervoso estrutura
os corpos informatizados da sociedade pós-industrial. Ele
é o alvo fundamental dos psicofármacos e outras “tecnolo-
gias da alma” que se propõem a estimular e tranqüilizar
os nervos superexcitados dos sujeitos do mundo atual,
investidos pela figura do consumidor e impelidos à
reciclagem acelerada contra a ameaça permanente de
obsolescência.
Nas configurações atuais dos corpos e subjetividades,
em mais de um sentido, parece que os nervos alterados —
assim como os genes alteráveis — venceram os músculos
cansados da antiga sociedade industrial. Na mutação
daquela formação social para a contemporânea, acompa-
nhando o deslocamento do foco da produção para o consu-
mo no capitalismo mais recente, os corpos dóceis (e úteis)
inspirados no modelo mecânico do robô parecem cada vez
mais se “digitalizar”. Perderam atualidade aqueles cor-
pos-máquina cujo cenário por antonomásia era o interi-
or das fábricas: organismos equipados com próteses de
madeira ou de metal (ou a elas equiparáveis) que acen-
tuavam seus movimentos rígidos e ritmados pela cadên-

222
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

cia mecânica. Figuras firmemente assentadas no ima-


ginário ocidental, plasmadas em filmes clássicos como
Metrópolis e Tempos modernos e em toda uma saga literá-
ria16.
Assistidos pelas novíssimas próteses teleinformáticas
e biotecnológicas, e por toda a retórica e o imaginário
que as acompanha, os organismos contemporâneos trans-
formaram-se em corpos ligados, ávidos, antenados, ansi-
osos, sintonizados — e, também, sem dúvida, úteis. Cor-
pos acoplados à tecnologia digital, estimulados e apare-
lhados por um instrumental sempre atualizado de
micro-dispositivos não-orgânicos. Corpos cuja “essência”
é considerada imaterial: pura informação composta de
luz elétrica que eventualmente poderia ser transferida
para um arquivo de computador, ou alterada em sua base
gênica como uma correção de um suposto erro no código,
ou hibridizada com os bits de outros organismos ou dis-
positivos eletrônicos — à maneira de uma transmutação
que aponta, sempre, para o upgrade em nome da perfor-
mance e da eficiência.
Não se trata mais, portanto, daqueles corpos laborio-
samente convertidos em força de trabalho, esculpidos em
longas e penosas sessões de treinamento e disciplina
para saciar as demandas da produção industrial; aquelas
almas dolorosamente submetidas às sondagens
psicoanalíticas, impelidas ao auto-conhecimento profundo
da sua intimidade. Em lugar dessas configurações, agora
emergem outros tipos de corpos e subjetividades: auto-
controlados, inspirados no modelo empresarial, imbuídos
a administrarem seus riscos e seus prazeres de acordo
com seu próprio capital genético, avaliando constante-
mente o menu de produtos e serviços oferecidos no mer-
cado, com toda a responsabilidade individual necessária
em um mundo onde impera a lógica automatizada do self-
service. Corpos permanentemente ameaçados pela som-

223
6
2004

bra da obsolescência — tanto do seu software mental como


do seu hardware corporal — e lançados, por isso, no turbi-
lhão do upgrade constante, intimados a maximizarem a
sua flexibilidade e a sua capacidade de reciclagem. Enfim:
corpos investidos pelo impulso de ultrapassagem de to-
dos os limites, que marca os saberes e as ferramentas
da nova tecnociência.
Os debates em torno destes assuntos costumam exa-
lar pretensões de “neutralidade” ou “naturalidade”. Cre-
mos que se impõe, ao contrário, a necessidade de politizar
a problemática aqui exposta. Em vez de nos acomodar-
mos, então, incomodar-nos. Quais são as implicações
políticas destes processos? Os limites do possível expan-
dem-se em novos desdobramentos, ou se esgotam no de-
serto de uma mesmice asfixiante? As potências da vida
se enriquecem nestes movimentos, ou são fatalmente
cerceadas? Abrem-se novas opções de resistência e de
criação, ou fecham-se todos os caminhos que poderiam
conduzir ao “outramento”? Crescem as possibilidades
tecno-demiúrgicas de produção de si mesmo e de cons-
trução de novos mundos? Ou, pelo contrário, esfacelam-
se as dimensões pública e política, face à utopia do con-
forto e às tiranias do upgrade impostas pelas demandas
do capital? Não há respostas simples e unívocas para tais
questões. O mero fato de podermos formulá-las, entre-
tanto, talvez esteja assinalando a possível emergência
de algumas linhas de reflexão. E, é claro, um certo incô-
modo.

Notas
1
D. Hamer & P. Copeland. El misterio de los genes. Buenos Aires, Ed. Vergara,
1998, p. 296.
2
R. U. Sirius. “¿Hablas en serio?” in El paseante. Madrid, Ed. Siruela, v. 27-28, pp.
82-85, 2001.

224
verve
O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade

3
P. Virilio. A arte do motor. São Paulo, Estação Liberdade, 1996.
4
A Magna Carta for the knowledge age, assinado por um grupo de figuras proeminen-
tes na divulgação e teorização das novas tecnologias: Esther Dyson, George
Gilder, George Keyworth e Alvin Toffler; disponível em www.pff.org/
position.html.
5
H. Martins. Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social. Lisboa, Ed. Século XXI,
1996, p. 172.
6
R. Descartes. Meditaciones metafísicas. Navarra, Ed. Folio, 1999.
7
N. Negroponte. Ser digital. Buenos Aires, Editorial Atlántida, 1995.
8
K. Hayles. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and
informatics. Chicago, The University of Chicago Press, 1999.
9
eXistenZ (David Cronenberg, EUA, 1999); Johnny Mnemonic (Robert Longo,
EUA, 1995); Matrix (Andy e Larry Wachowski, EUA, 1999); O Vingador do
Futuro (Paul Verhoeven, EUA, 1990); Estranhos Prazeres (Kathryn Bigelow, EUA,
1995).
K. Warwick. Entrevista pessoal via e-mail, 13 nov. 2001. Mais informações em
10

www.kevinwarwick.org.
11
W. Craelius. “The Bionic Man: Restoring Mobility”. Science. 8 fev. 2002.
12
D. Geiger. “Inteligência artificial: máquina pode pensar?” in O homem máquina.
Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil, 2001, pp. 18-19.
13
Uma das representantes mais célebres da body-art de orientação tecnológica, a
francesa Orlan, pratica cirurgias plásticas em seus próprios rosto e corpo, conver-
tendo as salas de operações em cenários performáticos e veiculando as experiên-
cias em discursos sobre a “auto-produção estética”. A artista define os resultados
das intervenções cirúrgicas como “arte carnal”, variantes radicais do “auto-retra-
to”.
14
A. Grove. Só os paranóicos sobrevivem. São Paulo, Editora Futura, 1997.
15
P. Virilio. “Do super-homem ao homem superexcitado” in A arte do motor. São
Paulo, Estação Liberdade, 1996.
Metrópolis (Fritz Lang, Alemanha, 1927); Tempos modernos (Charles Chaplin,
16

EUA, 1936).

225
6
2004

RESUMO

Paira sobre os homens uma incômoda ameaça: o risco de cair na


obsolescência. Seduzidos e pressionados pelos ímpetos
mercadológicos, os corpos contemporâneos devem se tornar com-
patíveis com os computadores e com uma miríade de dispositivos
baseados na lógica digital – assim como os sujeitos da sociedade
industrial sofreram um longo processo de ortopedização que aca-
bou sincronizando seus ritmos com as engrenagens da paisagem
mecânica. O novo contexto coloca em cena uma versão atualizada do
velho dualismo cartesiano, que se projeta na cisão hardware/
software. Assim, impõe-se uma série infinita de upgrades tecno-
humanos, que tornam obrigatória a reciclagem constante do software
(mente/código) e do hardware (corpo/organismo). A força da
organicidade, porém, ainda persiste. Mas onde reside o maior incô-
modo? Nessa teimosa persistência da carne, ou em seu trêmulo
sucumbir às investidas da tecnociência aliada ao mercado?

Palavras-chave: tecnologia, informação, upgrade

ABSTRACT

An annoying threat hovers mankind: the risk of falling into


obsolescence. Seduced and pressured by marketing motivations,
contemporary bodies should become compatible to computers and
with a myriad of devices based on digital logic — in the same way
as the subjects of industrial society have suffered a long process
of formatting that ended up synchronizing their pace with the engines
of mechanic landscape. The new context introduces an updated
version of the old Cartesian dualism, which is projected in the
division hardware/software. Therefore, an infinite series of techno-
human updating is imposed, which makes it compulsory the constant
recycling of software (mind/code) and of hardware (body/organism).
Although, the power of organic still persists. But where does the
greatest annoyance can be found? In this stubborn persistency of
the flesh or in its feeble collapse before the attempts of techno-
science and market?

Keywords: technology, information, upgrade

226
verve
Devires minoritários: um incômodo

devires minoritários: um incômodo

silvana tótora*

Pensar e agir como minoria é tanto um ato de resis-


tência como uma invenção-experimento. Trata-se, para
usar um termo de Deleuze, de um “pensamento do Fora”,
um pensamento “máquina de guerra” contra o “aparelho
de Estado”. Pensamento da imanência, liberto do para-
digma lógico da verdade, que suscita problemas fazendo da
criação do conceito a condição de sua crítica e a constru-
ção de novas possibilidades de pensar e de existência.
A “ciência nômade de máquina de guerra” é da ordem
do devir, portanto não se deixa fixar em um modelo ou
paradigma, tampouco se constitui em um saber. Seguir
os fluxos imanentes à realidade sem aprisioná-los em
qualquer representação transcendente impossibilita a
essa ciência formatar-se em um saber-poder. Seu efeito
no campo social, que as “ciências régias ou de Estado” ten-
tam conter, é abalar as representações que se rotinizam
em convenções formais promovendo a adaptação ao que é
odioso.

* Professora no Depto. de Política, Programa de Estudos Pós-Graduados em


Ciências Sociais e Vice-Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Gradua-
dos em Ciências Sociais da PUC/SP.
verve, 6: 229-246, 2004

229
6
2004

Deleuze cria o termo “noologia” para designar o estudo


da imagem do pensamento1. O pensamento “máquina de
guerra” não constitui outra imagem, mas sim uma potên-
cia na destruição da imagem e suas cópias. Construir
um pensamento que não se firma em “uma imagem
tranquilizadora da representação”2, em que a diferença é
pensada sob uma quádrupla sujeição: ao que é idêntico,
semelhante, análogo e oposto3, com a finalidade de con-
trolar, domesticar as diferenças, prevenindo-se contra as
distribuições nômades.
O pensamento nômade não permite ser capturado pelo
poder, porque, em vez de formar uma imagem, é desprovi-
do de um centro ou de convergências globalizantes, é um
pensamento-acontecimento que não se deixa fixar, “se-
guindo” o movimento imanente da realidade. Suscita pro-
blemas que remetem a soluções não científicas, a cargo
das atividades coletivas.
Pretende-se, neste texto, diferenciar a multiplicidade
do pluralismo presente em uma tradição do pensamento
liberal, que não abandona a forma-Estado, nem a repre-
sentação. O pluralismo, no discurso liberal, não se
desvincula da moral e da verdade, como parâmetro para
exorcizar diferenças que não são totalizáveis.
Remeter-se ao pensamento de Nietzsche, Deleuze e
Foucault é olhar a política a partir de um outro plano que
não a forma-Estado, criando novos problemas que passam
por devires-minoritários, múltiplos, mutáveis e que esca-
pam a toda forma de poder-saber constituído.

Pluralismo: domesticação
O discurso de Hobbes dirige-se àqueles que desejam a
estabilidade sob a égide de um governo com poder para
criar leis como critérios do que se deve ou não fazer. Viver

230
verve
Devires minoritários: um incômodo

sob a proteção de um Estado, “Deus terreno”, que estabe-


lece o que é justo e injusto, ou seja, do que é conforme ou
contrário à regra. Para Hobbes, uma vez que a natureza
humana não muda e tampouco pode ser educável, é im-
possível firmar-se um pacto social baseado na dependên-
cia mútua de seus concidadãos. O contrato hobbesiano é
político, fundando ao mesmo tempo súditos e soberano re-
presentante. O pensamento político moderno dirige-se aos
homens capazes de maioria, ou seja, de acordos e consen-
sos sob regras comuns válidas para todos, sejam estas re-
gras estabelecidas por representantes ou diretamente.
Rousseau, embora criticando a representação política, pois
a “vontade geral” não se representa, afirma a impossibi-
lidade da existência de uma sociedade sem um ponto co-
mum em que todos os interesses concordem4.
Rompendo com o caráter abstrato das teorias do direito
natural anteriores às instituições governamentais, a teo-
ria utilitarista de Stuart Mill concebe o homem como ser
progressivo. Ao atribuir à natureza do homem a qualidade
de se desenvolver, Mill dedica-se a demonstrar a utilidade
das instituições livres na promoção do desenvolvimento
humano. A democracia liberal representativa seria a for-
ma de governo mais adequada para “desenvolver nos mem-
bros da comunidade as várias e desejáveis qualidades mo-
rais e intelectuais”5. Combinando a participação do homem
comum nos governos locais e indiretamente na escolha
dos representantes, Mill aposta nesta via para educar o
cidadão, estimulando o interesse pelos negócios públicos,
pelas ações dos governantes e, sobretudo, forjando a cons-
ciência de pertencer à grande comunidade política.
O pensamento de Mill filia-se a uma tradição do pensa-
mento liberal preocupada em frear a expansão da inge-
rência do poder governamental, impedindo que o indiví-
duo ou os grupos possam gozar da liberdade. O pluralismo
de Mill visa assegurar não só a representação das minori-

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as na esfera central do poder político, propondo o escrutí-


nio proporcional, mas também obstaculizar a tirania da
opinião pública e dos valores dominantes. Só a liberdade
política não é suficiente, é necessário combiná-la com a
liberdade civil.
Porém, o pluralismo de Mill não dispensa um princípio
regulador da liberdade individual: o ajustamento do inte-
resse individual ao coletivo. A interferência do poder so-
bre a ação de um indivíduo justifica-se somente para im-
pedi-lo de causar danos a outrem. Segundo Mill, “a única
liberdade que merece esse nome é procurar o próprio bem
pelo seu próprio método sem causar danos a terceiros”6.
A afirmação de um princípio geral, conforme enuncia
Mill, visa não só reprimir os excessos, mas também dar à
sociedade a justa medida. Daí ser necessário que “nor-
mas gerais” sejam observadas para dar a medida da con-
duta de uns para com os outros7. Na razão utilitária o cri-
tério para estabelecer-se uma ação é ou não conveniente
ao ajuste da liberdade individual e o interesse coletivo
reside em uma longa experiência de práticas sociais. “O
que se procura tolher são coisas experimentadas e conde-
nadas desde o começo do mundo, coisas que a prática
mostrou não serem úteis ou convenientes à individuali-
dade de ninguém”8. O longamente experimentado adqui-
re caráter de uma verdade moral ou prudencial. O
pluralismo, neste caso, limita e seleciona aqueles que
estão de acordo com os valores firmados pela experiência.
O cultivo da individualidade independente do costume
e da tradição é um requisito para a liberdade, embora Mill
não deixe de afirmar a observância das normas gerais
impostas pela coletividade. Como conciliar obediência e
liberdade? Mill não resolve essa contradição. O autor se-
gue exaltando as iniciativas e autonomia de escolhas en-
quanto estímulo para o desenvolvimento das faculdades

232
verve
Devires minoritários: um incômodo

humanas. Fortalecer os talentos individuais, que distam


da opinião das “massas mediocrizantes” aferradas ao cos-
tume, é o caminho para o avanço da humanidade e o pro-
gresso de um povo. Os impulsos e desejos não são prejudi-
ciais às ações, desde que regrados pela consciência. São
as consciências fracas que não são capazes de compatibi-
lizar os impulsos pessoais com o amor à virtude e o domí-
nio de si.
O homem “como ser intelectual e moral”9, segundo Mill,
“é capaz de retificar os seus enganos pela discussão e a
experiência”10. Movido pela vontade de verdade, o “método
racional” para alcançá-la é permitir a discussão e a refu-
tação. A verdade é o prêmio para aqueles que se lançam
ao choque das opiniões contrárias. O caminho para o “co-
nhecimento completo”11 é ouvir os representantes de cada
variedade de opinião. Depois de muito discutir e experi-
mentar, a verdade se revela pela dificuldade em ser con-
testada.
Multiplicar interpretações não significa ouvir todos os
lados, ou, como diz Mill, “os representantes de todas as
opiniões”, como se aumentar o número de pontos de vista
fosse o caminho para se aproximar da verdade. O choque
de opiniões contrárias não deixa de ser outra forma de
totalização, pois as diferenças se desdobram em oposições
reversíveis em um mesmo todo. É comum, nessa perspec-
tiva, fazer-se síntese dos vários pontos de vista, o que de-
nota seu caráter de variação do mesmo, a filiação a um
centro comum, pois um fenômeno não é um mesmo que
se expõe a diversos pontos de vista. Trata-se de perspecti-
vas distintas que se configuram em histórias diferentes
que se confrontam sem se deixar totalizar.
Outra via se abre, diversa desse pluralismo liberal: a
da multiplicidade. Trata-se de um modo diferencial de fa-
zer emergir interpretações diferentes. A multiplicidade

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envolve relações de força e um terreno de luta em que as


distintas interpretações se confrontam e não se somam,
ou se ampliam, ou se esclarecem com vistas a um “co-
nhecimento mais completo”. Distinguir conceitualmente
multiplicidade e pluralismo objetiva diferenciar as rela-
ções de forças que não se deixam totalizar ou se referir a
um centro, abertas aos fluxos moventes e mutáveis. Sem
princípio ou finalidade, os acoplamentos das séries diver-
gentes se dão pelo “meio”, por ressonância que se desdo-
bram em outras diferenças.
O pensamento liberal insiste no pluralismo de opini-
ões, do agir e de se associar, sem contudo deixar de deli-
mitar o campo do tolerável e a recognição de valores vali-
dados pela experiência. O pluralismo reverte-se em um
modelo de partilha de poderes que integram as partes ao
todo. Princípios morais universalizantes definem a boa
convivência em uma sociedade, sendo que o liberalismo
demarca o cultivo da liberdade individual desde que se pre-
servem os direitos e interesses alheios. As normas gerais
são defendidas para que se possa garantir uma previsibi-
lidade nas ações humanas. Princípios universais e nor-
mas gerais, traduzíveis ou não em leis, são indispensá-
veis ao caráter previdente de um modo de pensamento
que domestica as diferenças, responsabilizando e punin-
do as transgressões.

Multiplicidade: o combate
Nietzsche lança um novo problema que permite outra
via de interpretação dos valores. O autor insurge-se con-
tra aqueles que justificam o que está posto, dirigindo sua
crítica aos ingleses, particularmente aos utilitaristas.
Como genealogista, ele remete ao elemento diferencial
dos valores. Trata-se de um novo “método de interpreta-
ção e avaliação”, que faz incidir sobre os valores as rela-

234
verve
Devires minoritários: um incômodo

ções de forças e a vontade de potência. Fazer a história


das lutas e não a descrição de fatos em nome de uma obje-
tividade científica. Nietzsche investe contra o positivismo
moderno que substituiu os valores transcendentes para
os reencontrar como forças que sustentam o mundo atu-
al. Pôr em questão os valores estabelecidos, destruí-los,
referindo-se às próprias condições de sua criação. A
genealogia diz respeito ao questionamento do “valor dos
valores”12.
Querer a verdade, seja como valor utilitário progressivo,
seja pela fidelidade ao “fato”, situa-se no terreno da moral.
Tomando a vida como critério de avaliação, a vontade de
verdade, no sentido que se propõe a ciência, é afirmar ou-
tra coisa diferente da vida, da natureza e da história. Moral
é toda forma de proceder em busca do verdadeiro, justifica-
do pelo desejo de não se enganar ou querer enganar os ou-
tros13. O desejo de verdade traduz a crença na existência de
uma essência, uma significação oculta a ser interpretada
segundo seus fins últimos. Ora, uma aliança com a vida é
dispor-se para o inesperado, o intempestivo, ao que extra-
via, o que ilude, o que muda de direção, sem uma finalida-
de última. Por isso, Nietzsche afirma: a vida é imoral, “nada
é verdadeiro, tudo é permitido”14. Declara guerra contra
toda a pretensão de se criar uma justa medida, liberando-
se para a experimentação.
À fidelidade ao fato defendida pelos positivistas como
estratégia de justificar os valores existentes, Nietzsche
contrapõe-se afirmando que interpretar é “violentar, ajus-
tar, abreviar, omitir, preencher, imaginar, falsear, ...” 15.
Interpretar, nesse sentido, é transvalorar os valores esta-
belecidos e inventar novos valores que são os da vida; e a
vida é vontade de potência, o querer expandir, diferenci-
ar-se. O desejo de se conservar, ou a busca de estabilida-
de, traduz uma vontade fraca, nem por isso menos ambi-
ciosa de poder. Aliás, diz Nietzsche, “quanto menos se sabe

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comandar mais se aspira a fazê-lo, e a fazê-lo severa-


mente”16.
A vontade de se conservar é a restrição do instinto
vital, pois tudo que vive quer expandir-se, tornar-se mais
forte. A natureza é transbordante, marcada pelo excesso
e não pela escassez. Conhecer não é tornar as coisas
familiares, submetidas ao “órgão mais frágil e falível”17
que é a consciência. É o instinto do medo que movimen-
ta o desejo de tornar o estranho conhecido. Nessa dire-
ção, conhecimento e consciência são forças de conten-
ção da vida. Os experimentadores e inventores deixam
fluir a natureza indomesticável. Os artistas da vida —
“inconscientes e involuntários”18 — são os que imprimem
formas e inventam novas tábuas de valores que são os da
vida. Foi contra essa liberdade que se ergueram o Estado
e a consciência. Segue-se, daí, todo o cortejo de respon-
sabilidade e punição.
As forças estão sempre em relação, agindo ou resistin-
do. Os corpos, sejam político, social ou biológico, são o re-
sultado de forças que os atravessam. Como a expansão é
própria das forças, exprimindo sua vontade de potência, a
relação entre elas é de combate. A genealogia faz entrar
em cena as lutas e as relações de forças, confrontando
com a vontade de verdade da ciência. A genealogia, longe
de ser o estudo de uma essência originária, ou significa-
ção oculta, é o procedimento de fazer emergir as forças,
bem como a vontade de potência que as impulsiona, pro-
duzindo formas singulares e diversas de submissão. A his-
tória, nesse sentido, é a “emergência de interpretações
diferentes”19.
Seguindo essa via, Foucault afirma ser as “genealogias
anticiências”20, seu alvo é o combate aos efeitos de poder
de um discurso que se declara científico. As genealogias,
ao explicitarem as relações de forças, desafiam os sabe-

236
verve
Devires minoritários: um incômodo

res que se pretendem totalizadores, que hierarquizam,


ordenam e filtram, subjugando a multiplicidade e a dis-
persão dos saberes em nome de um discurso verdadeiro e
unitário. O problema para o genealogista é fazer emergir
as lutas, os saberes que na batalha foram silenciados,
desqualificados ou domesticados. “Dessujeitar os saberes
históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e
de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário,
formal e científico”21, eis um dos empreendimentos da
genealogia para Foucault.
Segundo Foucault, Nietzsche como genealogista “recu-
sa a pesquisa da origem”22, ou seja, de uma essência ori-
ginária das coisas, uma verdade que possibilite um
parâmetro ideal para servir de medida/fundamento ao
devir histórico. Essa forma de saber, através do recurso da
construção de um veio comum que encapsula a diversida-
de em uma totalidade, permite deslocamentos em direção
ao passado sem ferir uma continuidade no presente. Ser-
ve, também, aos temerosos, que só se sentem seguros
naquilo que reconhecem como idêntico a si mesmos. A
genealogia dirige-se aos “começos inumeráveis”, explo-
dindo as sínteses, as referências que buscam traçar coor-
denadas e um sentido supra-histórico. Seguindo a disper-
são, os acidentes e os pequenos desvios, o genealogista
encontra-se com inúmeros acontecimentos.
Nietzsche, de acordo com Foucault, diferencia o estudo
da proveniência daquele da origem que marca um pensa-
mento tradicional em busca de parâmetros ideais e uni-
tários. Nessa direção, afirma Foucault, “a pesquisa da pro-
veniência não funda, muito pelo contrário, ela agita o que
se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava uni-
do; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em
conformidade consigo mesmo”23. Com esse procedimento,
o genealogista reintroduz no devir tudo o que fora aprisio-
nado em identidades fixas.

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Seja com os genealogistas, Nietzsche e Foucault, seja


com os cartógrafos, Deleuze e Guattari, o que está em jogo
é a dissolução das identidades, a abertura aos fluxos
mutáveis, sem referências que tornem as coisas objetos
de reconhecimento ou recognição por um sujeito do co-
nhecimento. O que ressoa entre eles é uma forma nôma-
de, experimental e minoritária de pensamento, que não
se deixa totalizar. A emergência da multiplicidade con-
frontando-se com o pluralismo, tão em voga no discurso
atual, configura-se como um pensamento de combate.
As totalidades englobantes neutralizam a virulência da
multiplicidade numa forma de pluralismo, ou seja, o que é
múltiplo se afirma de uma unidade prévia, a partir da qual
se hierarquizam os saberes, ou se selecionam os interlocu-
tores. O pluralismo domesticado, diferentemente da
multiplicidade, faz convergir os saberes às exigências da
ordem estabelecida e seu ideal é a reprodução dos poderes
existentes. No pluralismo predomina a defesa do consen-
so e/ou de divergências que se dicotomizam e unificam.
Como as operações do bom senso, o pluralismo, presente
no discurso da atualidade, opera segundo uma partilha de
poder-saber entre vários componentes. Previdente, essa
distribuição visa conjurar a diferença. As multiplicidades
são diferenças que não pressupõem nenhuma identidade
a priori. Mais do que isso, não convergem, mas divergem
dos valores e dos poderes instituídos.
Denominamos de pluralismo o que Deleuze e Guattari24
denunciam como “pseudomultiplicidades arborescentes”25,
distinguindo-as das “multiplicidades rizomáticas”. As
multiplicidades-acontecimentos são o modo de ser tanto
do pensamento como da sociedade, da história e da vida.
A representação “arborescente” como modelo de pensa-
mento procura bloquear o livre desenvolvimento das
multiplicidades reais, traçando eixos de ordenação que se
afirmam de uma unidade prévia, faz representar uma re-

238
verve
Devires minoritários: um incômodo

lação do Uno como sujeito e como objeto, dicotomizando e


unificando. Essa forma de pensamento hierarquiza, iden-
tifica e neutraliza as multiplicidades nômades, ou de devir,
em sistemas sedentarizantes por pontos e filiações.
Romper com o modelo dualista de pensamento, em que
os termos — sejam dois ou mais — se organizam a partir
de identidades dicotômicas e unificadas, é abrir-se para
as multiplicidades-acontecimentos. Indivíduos ou coleti-
vidades, afirma Deleuze, são feitos de linhas diversas. A
primeira espécie de linha é a de segmentaridade dura, ou
molar, que fixa as identidades, o gênero, a classe, a profis-
são, as instituições, ou seja, caracteriza segmentos bem
definidos. Uma segunda espécie de linha compreende a
de segmentaridade flexível, ou molecular, que atravessa a
sociedade, os indivíduos e os grupos. As linhas moleculares
não são segmentos, mas sim fluxos, micro-devires. Infixas,
mutantes, as linhas moleculares fluem em zonas limia-
res características dos processos de transformações, sen-
do que seu tempo-espaço é o do acontecimento. Uma ter-
ceira espécie de linha, é a linha de fuga ou linha de rup-
tura. As três linhas são imanentes, constitutivas da
sociedade, grupos e indivíduos. O estudo dessas linhas é
a cartografia26.
Uma sociedade ou “agenciamento coletivo” se define
por suas linhas de fuga27. “O agenciamento — afirmam
Deleuze e Guattari — é todo conjunto de singularidades e
de traços extraídos do fluxo”28. Agenciar é um processo de
diferenciação que recorta os fluxos e efetua novas confi-
gurações e, nesse sentido, corresponde sempre a uma
invenção.
Deleuze confere primazia às linhas de fuga, como ele
mesmo diz, para garantir o “direito do intempestivo”. As
linhas de fuga conjugam todos os movimentos de
desterritorialização, campo de intensidades infixas que

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configuram um “campo de consistência” ou “máquina


mutante”. Nas linhas moleculares, as desterritorializações
“são relativas, sempre compensadas por reterrito-
rializações que lhes impõem voltas, desvios, equilíbrio e
estabilidade”29. Nas linhas molares as reterritorializações
se acumulam para constituir um “plano de organização”
ou “máquina de sobrecodificação”.
As linhas de segmentaridade dura, ou molar, são
agenciamentos de “máquinas binárias” bem diversas,
como classes sociais, homem-mulher, público-privado,
raças, etc. Essas máquinas são dicotômicas e operam
diacronicamente, funcionando com distintos dispositivos
de poder. Foi a analítica desses dispositivos que permitiu
a Foucault, segundo Deleuze, inovar a análise da política,
revelando a heterogeneidade dos mecanismos de poder e
suas estratégias e rompendo com as abstrações jurídicas
de Estado, lei e contrato. “Sobre a linha de segmentaridade
dura, afirma Deleuze, deve-se distinguir os dispositivos de
poder que codificam os segmentos diversos, a máquina
abstrata que os sobrecodifica e regula suas relações, o
aparelho de Estado que efetua essa máquina”30.
A máquina de sobrecodificação é a que confere a or-
dem de uma dada sociedade, seus enunciados e saberes
dominantes e a organização de seus segmentos. O Estado,
embora nem sempre se confunda com a máquina abstra-
ta de sobrecodificação, é a sua forma de agenciamento
concreto31. Diferentemente das segmentaridades duras,
os segmentos moleculares procedem “por limiares consti-
tuindo devires, blocos de devir, marcando contínuos de
intensidade, conjugações de fluxos”32. A máquina abstra-
ta não é de sobrecodificação, mas sim mutante, “marcan-
do suas mutações a cada conjugação”33. O plano de
imanência, próprio das máquinas mutantes, difere do pla-
no de organização das máquinas de sobrecodificação, sen-
do que o agenciamento se dá por individuações, por acon-

240
verve
Devires minoritários: um incômodo

tecimentos. Não se trata de um dualismo de máquinas e


planos, mas de uma multiplicidade de dimensões que
implicam várias direções no âmbito de um agenciamento.
As máquinas coexistem e concorrem em um “campo per-
pétuo de interação”. O que é possível comparar em cada
caso é o movimento de desterritorialização das linhas
moleculares e de reterritorialização das molares34.
A multiplicidade de máquinas e planos que coexistem,
combatem e rivalizam se confirma na existência de dois
gêneros de ciências: uma “ciência régia” ou do Estado,
cujo procedimento consiste em “reproduzir”, isto é, “a per-
manência de um ponto de vista fixo exterior ao objeto”35; e
uma “ciência nômade” que “segue” os fluxos abertos, sin-
gulares, mutáveis, inventando problemas. O Estado, afir-
mam Deleuze e Guattari, sempre esteve em relação com
um Fora, sejam as “máquinas mundiais” sejam as mino-
rias nômades, segmentárias ou moleculares. As frontei-
ras entre ambas são permanentemente móveis. Se o Es-
tado não pára de capturar, sedentarizar e organizar os flu-
xos nômades — que se renovam em linhas de fuga —,
também a “ciência régia” procede da mesma forma com a
ciência nômade, apropriando-se do seu conteúdo que, por
sua vez , “não pára de fazer fugir os conteúdos da ciência
régia”36.
O que rivaliza os dois modelos de ciência é que as ciên-
cias nômades suscitam problemas e não soluções, o que
obstaculiza seus efeitos de poder, ou sua dificuldade em
se fazer autônoma e se fixar no poder. “No campo de
interação das duas ciências, afirmam Deleuze e Guattari,
as ciências ambulantes [ou nômades] contentam em in-
ventar problemas cuja solução remeteria a todo um con-
junto de atividades coletivas e não científicas”37.
Tendo em vista as linhas, suas múltiplas dimensões e
direção, Deleuze afirma que “toda política é um campo de

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experimentação ativa”38. Todos os processos de invenção


ou experimentação são devires, movimentos de fuga às
condições existentes, à sua forma atualizada e territoria-
lizada. Os acontecimentos são devires que se concreti-
zam em ocorrências históricas individuais ou coletivas
sem, contudo, serem totalmente integráveis ou se con-
fundir com elas, mantendo sua face trans-histórica de
metamorfose, como puro devir. Se a política é uma expe-
rimentação é porque não se pode prever a direção que to-
mará uma linha, pois em uma sociedade tudo escapa e,
portanto, é possível definir uma sociedade por suas linhas
de fuga, contra-efetuação em acontecimentos-devires.
Pensar a política por acontecimentos implica se livrar
das formas fixas de identidade subjetivas, sejam partidos,
indivíduos e raças, sejam oposições e dualismos. Pensar e
agir por acontecimento força a um devir-outro, estar no
“meio” trocar o É pelo E, fazer do múltiplo um substantivo.
“Uma multiplicidade, diz Deleuze, está somente no E”39. O
E não é a simples soma de elementos, mas dá às relações
uma outra direção, que se instala em uma linha de fuga:
fuga das identidades, lançar-se ao aberto, conexão por com-
posição em um plano de imanência.

Devir-minoria: multiplicidade de fuga


Todo devir é um devir-minoritário, é traçar uma linha
de fuga do padrão ou modelo estabelecido, ou seja, da mai-
oria. Fugir, nesse sentido, não é se recusar à ação e
tampouco se evadir da realidade, mas um ato de criação
— um experimento-invenção. Criar é começar algo novo,
um deslocamento em direção aos fluxos mutáveis. Por isso,
uma minoria nunca se deixa sedentarizar e também não
constitui um conjunto fechado sobre si; e porque não se
deixa fixar, seu movimento está sempre em conexão com
outros devires-minorias.

242
verve
Devires minoritários: um incômodo

O que distingue uma minoria de uma maioria não é o


número, mas sim “fazer valer a potência do não
numerável”40. Ora, numerar supõe fixação identitária; ser
minoria, pelo contrário, é diferenciar, subtrair-se, promo-
ver desvios, é inumerável porque é um contínuo devir-
outro. O inumerável é a conexão entre dois conjuntos sem
se identificar com nenhum deles, é o que escapa traçan-
do uma linha de fuga41.
Um devir-outro não é imitar as formas estabelecidas
ou reconhecer-se no outro, mas conjugar fluxos desterrito-
rializados, encontrar-se pelo “meio”. “O devir-mulher,
devir-negro, devir-índio, etc. não é tornar-se mulher, ne-
gro, índio, tampouco agir como se fosse o outro por imita-
ção”, mas, nas palavras de Deleuze, “um encontro entre
dois reinos, um curto-circuito, uma captura de código onde
cada um se desterritorializa”42. Trata-se de atingir uma
zona de vizinhança, fazendo valer a potência do indefini-
do, isto é, deixar-se determinar apenas pelo devir. Torna-
se um outro e não o outro, o indefinido que, longe de ser
uma generalidade, constitui-se em potência singular.
Só se conectam devires-minoritários, pois uma com-
posição se faz a partir de fluxos que se desterritorializam.
“Um fluxo [afirma Deleuze] é algo intensivo, instantâneo
e mutante, entre uma criação e uma destruição. Somen-
te quando um fluxo é desterritorializado ele consegue fa-
zer sua conjugação com outros fluxos, que se dester-
ritorializam e vice-versa” 43. As formas identitárias,
dicotômicas, unificam-se sem dispensar mecanismos de
centralização que articulem as partes ao todo. É identifi-
cando que o aparelho de Estado realiza a captura.
Um devir-minoritário não é o mesmo que assegurar a
identidade para as minorias — excluídas do Estado, dos
direitos de cidadania. Movimentos de busca de identidade
ou se fecham em grupos isolados, ou reivindicam o reco-

243
6
2004

nhecimento de direitos iguais, ou seja, fazer parte de uma


maioria. Não se pode ignorar que grupos minoritários, tão
logo se sentem fortalecidos em sua identidade, buscam
fixá-la na forma Estado.
Uma minoria nunca define um estado, conjunto
numerável, identitário, mas um movimento, um devir.
Trata-se de desfazer as formas fixas que identificam indi-
víduos ou grupos. Abrir-se às forças e linhas do devir que
nos atravessam e que não têm princípio nem fim. Devir é
estar “entre”, é nomadizar, é sempre uma multiplicidade
de fuga e, como tal, é uma “experimentação vida”44. Como
toda experimentação, ultrapassa a possibilidade de pre-
ver, ou seja, saber antes o que vai acontecer. Experimen-
tar é uma forma singular, um novo começo.

Notas
1
G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. São Paulo, Editora 34, vol. 5, 1997, p. 46.
2
Deleuze G. Diferença e repetição. São Paulo, Graal, 1988.
3
Trata-se de uma filosofia da representação em que as diferenças se subordinam
à identidade no conceito pelo sujeito pensante, à semelhança no objeto, à
analogia no juízo, à oposição no predicado. São as quatro raízes do princípio da
razão. Qualquer diferença que escape a esses princípios será considerada “des-
mesurada, incoordenada, inorgânica”. G. Deleuze, idem, p. 415.
4
J. J. Rousseau. Do contrato social. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 49 (Cole-
ção Os Pensadores).
5
S. Mill. Considerações sobre o governo representativo. Brasília, UnB, 1980, p. 19.
6
S. Mill. Sobre a liberdade. Petrópolis, Vozes, 1991, p. 56.
7
Idem, p. 119.
8
Ibidem, p. 123.
9
Ibidem, p. 63.
10
Ibidem, p. 63.
11
Ibidem, p. 64.

244
verve
Devires minoritários: um incômodo

12
F. Nietzsche. A genealogia da moral. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 12.
13
F. Nietzsche. Gaia ciência. Lisboa, Guimarães Editores, 1996, § 344.
14
F. Nietzsche, Genealogia da moral. Op. cit. p. 138.
15
Idem, p. 139.
16
F. Nietzsche. Gaia ciência. Op. cit., § 347.
17
F. Nietzsche. Genealogia da moral. Op. cit. p. 73.
18
Idem, p. 75.
19
M. Foucault. “Nietzsche, a genealogia e a história” in Microfísica do poder. Rio
de Janeiro, Graal, 1993, p. 26.
20
M. Foucault. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 14.
21
Idem, p. 15.
22
M. Foucault, “Nietzsche, a genealogia e a historiai”. Op. cit. p. 16.
23
Ibidem, p. 21.
24
G. Deleuze e F. Guattari. “Introdução: Rizoma” in Mil platôs. Rio de Janei-
ro/ São Paulo, Editora 34, vol. 1, 1995.
25
Idem, p. 16.
26
G. Deleuze e C.Parnet. Diálogos. São Paulo, Escuta, 1998, pp. 145- 170.
27
Idem, p. 158.
28
G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. Vol. 5. Op. cit. p. 88.
29
G. Deleuze e C. Parnet. Op. cit., p. 159.
30
Idem, p. 151.
31
Ibidem, p. 150.
32
Ibidem, p. 151.
33
Ibidem, p. 151.
34
Ibidem, p. 155.
35
G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. Vol 5, Op. cit. p. 40.
36
Idem, p. 34.
37
Ibidem, p. 42.
38
G. Deleuze e C. Parnet. Op. cit., p. 159.
39
Idem, p. 71.

245
6
2004

40
G. Deleuze e F. Guattari. Mil platôs. Vol. 5. Op. cit. p. 174.
41
Idem, p. 173.
42
G. Deleuze e C. Parnet. Op. cit. p. 57.
43
Ibidem, p. 63.
44
Ibidem, p. 61.

RESUMO

Pensamento nômade como incômodo, diante dos saberes régios.


Pensamento de combate. Máquina de guerra, que investe na
multiplicidade, e não no pluralismo, pois evidencia neste a preser-
vação da forma-Estado. Como investimento em liberdades,
Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari interrompem os desdo-
bramentos totalizantes do pensamento liberal.

Palavras-chave: devir, multiplicidade, pluralismo.

ABSTRACT

The nomad thought as an annoyance before regal knowledge.


Combat thoughts. War machine that goes through multiplicity and
not pluralism; showing how pluralism keeps the state-form
working. By investing in liberties, Nietzsche, Foucault, Deleuze
and Guattari stop the totalizing continuities of liberal thought.

Key words: becoming, multiplicity, pluralism.

246
verve
Um incômodo: a acomodação

um incômodo: a acomodação

guilherme castelo branco*

Uma música infantil fala do incômodo, numa ordem de


grandeza crescente: um elefante incomoda muita gente,
dois elefantes incomodam muito mais, três elefantes inco-
modam muita gente, quatro elefantes muito mais, enfim,
em ordem aritmética, muitos elefantes incomodam muita
gente. A música que fala desse incômodo com os elefantes,
por sinal bastante escassos aqui nos trópicos, se repetida à
exaustão, incomoda e é um incentivo à irritação. Os gran-
des paquidermes, todavia, não poderiam ser os campeões
na brava arte de incomodar. Imaginemos os ratos, nos es-
gotos e subterrâneos da cidade, pensemos também nos ra-
tos de superfície, e toda a fauna de seres asquerosos da
urbe e do campo, bem menores que elefantes, para nos lem-
brarmos de que muita coisa incomoda. Os animais, e por
extensão, os vegetais e minerais, no fim das contas, podem
causar incômodo, mas não causam tanto incômodo assim.
O que incomoda são coisas variadas, de diferentes na-
turezas e gêneros: o mundo que nos cerca, as estruturas
sociais, os aparelhos de Estado, a ordem familiar, as orga-
nizações políticas, as conjunturas econômicas (sempre pes-

* Professor no Departamento de Filosofia da UFRJ.


verve, 6: 249-258, 2004

249
6
2004

simistas), o zumbido dos mosquitos, o cotidiano que plasma


os sonhos e leva à perda de toda esperança no porvir, a dor
de ver tanta gente sendo morta de modo estúpido e brutal,
ver pessoas se desgastando e desperdiçando a si mesmas
por nada ou por muito pouco, o congestionamento, a falta de
dinheiro, etc; inúmeras são as motivações para que a gen-
te se incomode.
Os agentes do incômodo são inumeráveis; os incomo-
dados, infinitos. Entretanto, os incomodados, na imensa
maioria dos casos, não se retiram, não são exterminados,
não realizam nenhuma operação estratégica especial para
se livrarem do que os incomoda. Na maioria dos casos, quan-
do o incômodo é alicerçado nas desigualdades sociais, polí-
ticas, jurídicas, institucionais, eles suportam. Chegam a
suportar, como as bestas de carga, tal peso de incômodo,
que tornam aturáveis situações absolutamente desneces-
sárias e evitáveis, tais como viver em campos de concen-
tração, participar de guerras. Muitos bandeiam-se para o
lado dos que incomodam, tal como ser agente voluntário de
controle social, ser psiquiatra internador convicto, ser car-
cereiro orgulhoso de sua tarefa, etc. É a civilização. Dema-
siado civilizados nos tornamos. Freud não descobriu a pól-
vora. Civilização e mal-estar sempre estiveram imbrica-
dos.
A vida civilizada traz paradoxos: leva ao empobrecimen-
to pessoal e à auto-aniquilação tanto quanto pode trazer
formas de vida inventivas. Tanto é que podemos viver em
casas de acordo com nossos estilos e conforme nossos re-
cursos. Tanto é que podemos viver segundo nossas regras
próprias, nossas invenções, nossos comandos e mandamen-
tos. Pois em toda capacidade de autodeterminação, de au-
tonomia, quando existe tal potência nos nossos horizontes
existenciais, estão investidos muitos prazeres, gozos, usu-
frutos da vida. Pena que tão poucos ajam e façam algo dessa
ordem, devido à sua própria condição, pois a massa de ex-

250
verve
Um incômodo: a acomodação

cluídos e alijados é enorme. Todavia, o mais estranho é ver


que muitas pessoas, com possibilidade real de levar uma
vida mais livre e autônoma, descartam de suas vidas todo
potencial contestatário e criativo.
Em si mesmo, sentir incômodo é um sentimento que
tem seu lado positivo. Urgiria, para o incomodado, fazer algo
para eliminar a fonte de tal sentimento. Se temos diante
de nós ou em nós coisas que nos incomodam, bastaria en-
contrar a saída, no prazer, na tranqüilidade, na serenidade,
em grandes intensidades para fora dos padrões de compor-
tamento corriqueiros, pouco importa. Assim seria, mas não
é. Espantoso fato da vida, os tempos modernos criaram
tecnologias, dispositivos, métodos de levar a viver o incô-
modo no incômodo, sem que o incômodo seja percebido como
tal. Estranho nosso tempo; vive-se a administrar, isto é,
tornar insípido, o tempo, o dinheiro, o dia-a-dia, o bom-gos-
to, a dor, o sexo, a palavra. Tudo comedido. Tudo dominado.
No labirinto do desentendimento humano, o anjo rebelde
se debate em busca de uma saída, mas no mundo
administrável a saída é não sair; basta ficar o mais quieto
possível e administrar tudo que é visto como demasiado e
excessivo, de maneira a se gerir um estilo de vida confor-
mado, acomodado.
Desde o período heróico da arte contemporânea, que po-
demos definir, um pouco arbitrariamente, como sendo aque-
le que vai de Lautreamont a Bataille, passando por Breton e
Artaud, ficou claro que o modo de vida moderno era insípi-
do. Que poderia ser pior ainda no porvir, cronificando a cha-
ga da insensatez da conformidade pequeno-burguesa.
Rimbaud, ainda bem jovem, quando fala de seus amigos de
escola e da pequena cidade em que vivia, afirma: “...deixo
que me conversem; desenterrei velhos imbecis do colégio:
tudo que posso inventar de estúpido, de sujo, de mal, em
ação e em palavras, eu passo para eles: pagam-me com
cerveja e vinho”1. Fala Rimbaud de algo bem conhecido de

251
6
2004

todos nós; dos ganhos e benefícios secundários da vida me-


díocre, da vida acomodada, obtidos devido a se andar no bom
caminho, de fazer o que todos fazem, ainda que esse bom
caminho seja um faz-de-conta, seja hipocrisia ou semblent.
Todavia, quando Rimbaud faz essa crítica ao modo de vida
pequeno-burguês, não permanece num lugar ressentido;
na verdade, Rimbaud é arrebatado por um chamamento,
que o leva para além do razoável: “Quero ser poeta e traba-
lho para me tornar Vidente: o senhor não compreenderá
nada e eu não saberei como lhe explicar. Trata-se de che-
gar ao Infinito pelo desregramento de todos os sentidos. Os
sofrimentos são enormes, mas é preciso ser forte, nascer
poeta, e eu me reconheci poeta. Não é culpa minha, abso-
lutamente”2.
Os artistas contemporâneos perceberam a necessidade
de irromper no desconhecido, de desbravar novos territóri-
os da linguagem, ainda que às expensas do despedaçamento
do Eu, cartesiano ou não, ainda que sondando abismos que
fragmentam toda representação habitual, acima de todo
compromisso com as ordens cognitivas e especializações.
Arte e alta magia se imbricam, tornando pequenas a ciên-
cia, a filosofia, a religião instituída, a arte subjetiva e com-
portada. Ao se perceber como vidente, Rimbaud, tomado aqui
como simples exemplo, sabe que é compelido a uma expe-
rimentação artística onde todo um universo de co-possibi-
lidades e de coexistências de coisas, reais ou irreais, ma-
teriais e imateriais, comparecem através dele, apesar dele,
e mesmo sem ele. Trata-se de um desvelamento arreba-
tador do Real, bem maior que a realidade limitada na qual
os saberes convencionais se apoiam. Percebe, num mes-
mo golpe, que a experiência artística tem um componente
existencial e social indiscutível: o artista é e tem que ser
um estranho iluminado, que vivencia uma iluminação pro-
fana, bem entendido, que o destaca necessariamente das
formas de viver instituídas. O artista é vidente, profanador,

252
verve
Um incômodo: a acomodação

mago, desbravador. O autêntico artista traz para o mundo


um pedaço de fogo sagrado. Ele vive aqui e alhures, e, por
isso mesmo, não poderia ter um modo de vida burguês ou
assemelhado, com seus valores e normas. O artista é um
ser diferente por ter uma relação com a linguagem total-
mente diferente e, por extensão, por possuir uma outra
vivência dos códigos sociais.
Nem todos os artistas contemporâneos partilharam ou
partilham desse espírito livre e independente. Mas sem
dúvida, a maioria deles, ao menos os que deixaram para a
posteridade marcas inequívocas, assumiu o espírito novo
ou a vanguarda com um modo libertário de ser e de viver.
Michel Foucault denomina esse estilo de vida libertário de
“vida artista”, e entende que é um modo de resistência ao
poder, especial e digno de nota, que faz parte da luta pela
autonomia, com o objetivo de livrar o sujeito dos controles e
técnicas de normalização postos em jogo pelo conjunto
multiforme das instituições contemporâneas. O modo de
vida artista se contrapõe ao estilo de vida burguês; veja-
mos: “o prazer por si pode assumir, perfeitamente, uma for-
ma cultural, como o prazer pela música. E deve-se compre-
ender que se trata, nesse caso, de alguma coisa muito dife-
rente do que se considera interesse ou egoísmo. Seria
interessante verificar como, nos séculos XVII e XIX, toda
uma moral do ‘interesse’ foi proposta e inculcada na classe
burguesa — por oposição, sem dúvida, a todas as artes de si
mesmo que poder-se-iam encontrar nos meios artístico-
críticos; a vida ‘artista’, o ‘dandismo’, constituíam outras
estéticas da existência opostas às técnicas de si que eram
características da cultura burguesa”3. Não seria descabido,
dessa maneira, falar de uma real oposição entre vida
assujeitada e vida livre, desde que tendo no horizonte as
determinações históricas, políticas e sociais com as quais
todo indivíduo tem que lidar.

253
6
2004

Dentre as características que fazem a burguesia e, por


extensão, as classes sociais a ela vinculadas e dependen-
tes, se pensarmos em valores e padrões de comportamento
mais usuais, a acomodação tem se revelado a mais empe-
dernida e persistente. Como caracterizá-la, de modo bre-
ve? Como uma escolha, estratégica e calculada, de viver de
acordo a uma certa “ignorância”. Para tentar abordar essa
escolha pelo “desconhecimento que evita problemas e dá
muitos benefícios”, vou me utilizar, seguindo sugestão de
Michel Foucault, de algumas considerações kantianas.
Kant escreve sobre essa ignorância, com muita pertinência,
no Was ist Alflkärung, texto de 1784, quando fala do estado
de menoridade, e vale a pena seguir suas considerações.
Cito: “A menoridade é a incapacidade de se servir de seu
próprio entendimento sem ser dirigido por outra pessoa.
Ela deve-se a nossa própria culpa quando resulta não de
uma falta de entendimento, mas de uma falta de resolução
e de coragem para se servir dele sem ser dirigido por um
outro”4. É de se notar que Kant não afirma que a menori-
dade é mera expressão da falta de entendimento, mas que
ela é produto de uma deliberação, de uma escolha estraté-
gica, pela qual os indivíduos, de um só golpe, delegam poder
e submetem-se a algum padrão de autoridade. O que ca-
racteriza a menoridade é a escolha decidida de não se ou-
sar ser livre, deixando toda decisão e responsabilidade nas
mãos de outros. Todo menor é aquele que delega poder de
deliberação, de decisão, de ação. E isso independe, claro, de
idade. Kant continua: “a preguiça e a frouxidão são as cau-
sas que explicam porque um número tão grande de homens,
enquanto que a natureza os libertou, há muito tempo, de
toda direção externa (naturaliter maiorenes ), permaneçam,
entretanto, por livre vontade, durante toda a sua vida, me-
nores; e também porque seja tão fácil para outros de afir-
marem como seus tutores. É muito cômodo ser menor”5.

254
verve
Um incômodo: a acomodação

O tom do texto kantiano é indignado, possui passagens


muito irônicas ao falar dos menores, ou acomodados, como
pacatas criaturas, tímidas, temerosas de pensar, decidir,
até de andar. Esse recurso à autoridade, em todos os cam-
pos da vida, segundo Kant, livraria os indivíduos (menores)
da fastidiosa tarefa de pensar e de se conduzir, fazendo com
que eles vissem toda ousadia e autodeterminação como
penosas e perigosas. Triste destino da máxima socrática,
desde o século XVIII: “eu sei que nada sei” converteu-se no
lema daqueles que nada querem saber além da conta ban-
cária, das aparências, da propriedade, do direito de heran-
ça. Aí, não tem dúvida: os membros das camadas burgue-
sas querem saber; todavia, como muitas vezes não sabem
tanto como deveriam ou poderiam, acabam por engordar a
conta bancária de outros, mais bem informados ou esper-
tos, em certas passagens críticas da vida institucional ou
em certas épocas da vida pessoal.
Por outro lado, a “ignorância” dos membros da pequeno
burguesia e da burguesia, tem alcance político inequívoco:
todos evitam arriscar-se em tematizar e/ou em se envol-
ver com assuntos e práticas considerados cabíveis ou a
autoridades competentes ou a pessoas fora dos padrões da
normalidade, que se arriscam para além do esperado. Nes-
se particular, a acomodação tem forte caráter estratégico:
tem a deliberada intenção de deixar aos decisores,
governantes, aos políticos, aos padrões, ou às “oposições
isoladas”, a tarefa de levar a cabo e de discutir certas ope-
rações “delicadas”, necessárias para que o mundo siga como
está, na ordem pedida e estabelecida. No caso dos assuntos
delicados e práticas fora dos padrões de normalidade, os que
se aventuram nesses campos numa posição de resistên-
cia sabem dos riscos que correm: práticas corretivas, puni-
tivas, prisão, internamento psiquiátrico; em certos casos,
a morte. O outro lado da moeda, seria se criar um silêncio
sobre o que poderia incomodar, através de uma ignorância

255
6
2004

‘real’ e constitutiva da própria subjetividade, é fazer do pro-


cesso de acomodação um processo de normalização. Daí de-
correm indivíduos que não andam fora da linha e não falam
demais, que são os bons moços, os felizes assujeitados. Os
normalizados não são nem loucos, esquerdistas, anarquis-
tas, terroristas, bandidos, nem pesquisadores e defensores
da sociabilidade libertária... Enfim, a boa gente acomoda-
da apercebe-se de que sua sujeição aos padrões de norma-
lização é condição necessária para a preservação do bem-
estar, linha mestra dos valores em curso no mundo social
contemporâneo. O bom comportamento recebe, por sua vez
uma boa paga, como uma vida sem vicissitudes e sem mai-
ores ameaças ou riscos. Neste mundo dos assujeitados, feito
em nome do bem-estar, em nome do bom comportamento,
em nome do silêncio, a melhor coisa a fazer é culpar os
elefantes pelo incômodo: são eles, sobretudo eles, que inco-
modam muita gente.
Enganam-se os que pensam que a operação produtiva
do poder, ao constituir subjetividades normalizadas, tem
como efeito real a instalação de uma atmosfera familiar,
íntima, centrada na preocupação com o mundo imediata-
mente próximo. O egoísmo, característico da moral do inte-
resse burguesa, é de tal monta, que acaba por esfacelar o
próprio mundo familiar, que vive das aparências de um
mundo sem grandes conflitos; na prática, os conflitos são
de grande escala, a ponto de serem muitos os saberes e
profissionais que intervém constantemente na célula fa-
miliar, em especial médicos, psicólogos, religiosos e até
mesmo livros de aconselhamento (o que é uma demons-
tração cabal da crítica kantiana: a família é incapaz de re-
solver até mesmo os seus problemas, e todos nela perma-
necem menores).
Dados de pesquisa recente, realizada pelo LAPS/
FIOCRUZ, vem demonstrar que a família burguesa ou pe-
queno burguesa brasileira solicita internação de um de

256
verve
Um incômodo: a acomodação

seus membros, em especial quando dispõe de recursos, em


três casos principais: quando tem comportamento sexual
demasiado inusual, quando torna-se demasiado generoso
com os outros, quando decide mudar o curso de sua vida e
virar artista. O núcleo familiar, no caso do artista, somente
se tranqüiliza quando surge reconhecimento público, com
sucesso financeiro. Enquanto o sucesso não vem, ele é um
candidato constante à indigência e ao internamento psi-
quiátrico. No outro caso, o do excesso de prodigalidade, cabe
notar um antigo provérbio do nordeste, que afirma que o
sujeito está verdadeiramente louco somente quando ras-
ga dinheiro. No caso de sexo bizarro, excessivo, explicitado,
dispensamos comentários: já se falou muito nesse assun-
to.
A acomodação, assim cria uma lei do silêncio e impõe
padrões de comportamento através dos quais se evita todo
contato possível com parcelas significativas da realidade e
das subjetividades. A autonomia e a liberdade são merca-
dorias de troca nesse negócio, cujo preço é se abrir mão da
coragem de desejar e de pensar. Para finalizar, lembro a
todos uma expressão, que sintetiza o modo de acomodação
em curso no Brasil, que tem força de lei e afeta todas as
classes sociais: “manda quem pode e obedece quem tem
juízo”.
Isso me faz lembrar Henfil, nas cartas que publicou quan-
do da época em que morou nos Estados Unidos, e de sua
constatação óbvia, e porque óbvia muito inteligente, sobre
o regime político em vigor na América, que vale hoje para o
mundo, quase trinta anos depois: “ditadura do capital”.

Notas
1
A. Rimbaud. A correspondência de Arthur Rimbaud. Porto Alegre, L&PM, 1983, p. 33.
2
Idem, p. 34.

257
6
2004

3
M. Foucault. Dits et Écrits, vol. IV. Paris, Gallimard, 1994, p. 629.
4
I. Kant. “Réponse à la question: que’ est-ce lês lumière?” in Critique de la faculte de
juger. Paris, Gallimard, 1985, p. 497.
5
Idem.

RESUMO

Trata-se de perceber, a partir de uma perspectiva libertária —


segundo o ponto de vista da autonomia, liberdade, e auto-governo
— o que é incômodo, uma vez que trivial e esperável, no mundo
das escolhas sociais e históricas. A acomodação torna-se uma
escolha que se faz de chofre, adequada como é com o modo de ser
contemporâneo, onde a sociedade de controle estabelece prêmios
para os assujeitados, de todas as idades. O mundo das escolhas
fáceis, oferecidas pelas ordens sociais, não se mostra tão eviden-
te e cômodo, como qualquer pessoa, com um mínimo de perspicá-
cia, pode entender.

Palavras-chave: autonomia, liberdade, acomodação.

ABSTRACT

The article seeks to demonstrate, from a libertarian perspective —


according to the point of view of autonomy, freedom and self-
government — what is annoyance, since trivial and expectable, in
the context of social and historical choices. The accommodation
becomes a choice that one immediately makes, appropriate as it is
to the way of being contemporary, where the society of control
establishes prizes for the subjected ones, of any ages. The world
of the easy choices, given by the social orders, does not show
itself so evident and comfortable, as any person, with a minimum
of shrewdness, can understand.

Keywords: autonomy, freedom, accommodation.

258
verve
O inumano

o inumano

manuel da costa pinto*

Procuramos o Bem através do Mal. De Baudelaire a


Artaud, de Dostoiévski a Céline, de Mallarmé a
Beckett, a modernidade nos acostumou conviver com
anti-heróis que buscam a transcendência e o sublime
através da abjeção e da auto-imolação. O grotesco, o
estranho, o disforme, o onírico, o desviante e o perver-
so são modos de, a um só tempo, presentificar a expe-
riência do choque que está no cerne da condição mo-
derna e de abalar nosso sistema de representações,
constituindo, pela enunciação do não-sentido, um sen-
tido renovado, conseqüente com a perda de um funda-
mento único para o existente.
Esta crise do fundamento único (político, moral, re-
ligioso, metafísico) se confunde com a própria moder-
nidade e com sua progressiva guinada estética (a tran-
sição da representação da verdade para as verdades da
representação). Como diz Jean Starobinski em
Montaigne em Movimento, “o discurso da ciência moder-

* Editor , ensaísta e crítico no jornal A Folha de S. Paulo, jornalista e mestre em


Teoria Literária pela USP, autor de “Albert Camus - Um Elogio do Ensaio”
(Ateliê Editorial).
verve, 6: 261-276, 2004

261
6
2004

na se desenvolverá (...) em uma polêmica incessante


contra as ilusões da percepção sensível e da imagina-
ção indisciplinada (...); o progresso do saber dará ori-
gem a uma confiança cada vez mais segura em rela-
ção aos poderes da consciência, armada do instrumen-
to matemático e do método experimental. (...) O
sensível, todavia, não pode ser apagado: é a experiên-
cia primeira. Mesmo quando triunfava, no século XVIII,
a ‘verdade lógica’, foi preciso que a linguagem filosófi-
ca constituísse uma nova categoria — a da ‘verdade
estética’ — para atribuir uma legitimidade (certamen-
te inferior) ao que a natureza ou a arte oferecem à
percepção direta de nossos sentidos. (...) Precisamente
no momento em que se impunha incontestavelmente
a abordagem ‘copernicana’ da realidade física, a litera-
tura recebeu o estatuto que a caracteriza na idade mo-
derna: é o testemunho de uma ‘experiência interior’,
de um poder da imaginação e do sentimento, sobre os
quais o saber objetivo não tem poder”.
Aquilo que Starobinski diz sobre Montaigne vale
para toda a modernidade, para um tipo de escrita que
— a despeito do gênero literário ao qual pertença —
está impregnada pela tensão entre a desesperança fi-
losófica de compreender a essência do mundo e repre-
sentações literárias que circulam ao redor desse vazio
ontológico (o caráter irredutível da experiência interi-
or e, por extensão, a realidade fugidia do mundo exteri-
or), nomeando-o, trabalhando-o estilisticamente e res-
taurando, na superfície da obra, uma precária unidade
de sentido, cuja nostalgia e impossibilidade animam o
movimento da própria escrita.
Essa “conversão estética”, que Starobinski identifi-
cou em Montaigne, pode ser encontrada tanto no
niilismo perspectivista ou na filosofia da não-identida-
de quanto na absolutização do fenômeno estético con-

262
verve
O inumano

tida nas idéias de Novalis (“A poesia é a religião origi-


nal da humanidade”) e dos primeiros românticos (que
são, literariamente, os precursores da crise da razão
que atinge seu apogeu no fim do século XIX). Na verda-
de, ao sugerir que existe uma linhagem de escritores
que dramatizam a busca dos fundamentos dos seres e
das coisas e os abismos de sua impossibilidade, estou
pensando nos escritores que abordaram — de maneira
mais ou menos explícita — um tema recorrente na li-
teratura ocidental: o tema da morte de Deus.
Presente em diferentes autores de diferentes épo-
cas, o tema da morte de Deus pode ter diferentes
conotações. Há, por exemplo, o topos romântico — ana-
lisado por Octavio Paz em Os Filhos do Barro — pelo qual
poetas como Jean Paul ou Nerval anunciam, numa cla-
ve paródica em relação à religião, o desaparecimento
de Deus na cena espiritual, que passa a ser ocupada
(ou criada) pela mitologia pessoal de autores como
Blake, Coleridge, Hölderlin, etc. Matando ou satani-
zando a divindade, o poeta romântico diviniza a poesia:
“O poeta desaloja o sacerdote e a poesia se converte
numa revelação rival da escritura religiosa”, conclui
Paz.
Mas há também uma conotação que corresponde a
um espectro mais amplo: aqueles autores que — des-
confiando dos poderes do conhecimento para atingir as
essências e recusando-se a substituir o saber ines-
sencial da filosofia e da ciência pela “verdade” estética
— depositam a última esperança de transcendência
numa autoridade divina cuja morte, quando se anun-
cia, só pode ser contemplada com um frêmito de pavor
metafísico. O sentimento de solidão perante um céu
vazio e as paisagens abandonadas pela graça, a devo-
ção a cosmologias imaginárias, a construção de cate-
drais invisíveis, o sofrimento sem remissão e o gozo

263
6
2004

sem porvir, as contrições da razão, o apego desespera-


do a um corpo que apodrece, a corrupção moral de um
mundo sem salvação, o impulso irresistível em dire-
ção a um absoluto no qual não se crê — são sentimen-
tos que estão no cerne de um certo tipo de literatura
em que as aventuras da forma sempre traem as medi-
tações da moral e em que, inversamente, as aflições
espirituais se desencadeiam a partir do contexto
ficcional que as encena.
É no âmbito dessa aflição existencial que nasce a
representação literária da morte de Deus como uma
espécie de emblema de uma determinada condição mo-
ral e de uma determinada estrutura epistemológica do
homem diante do mundo. O autores que mais explici-
tamente formularam esse tema foram Nietzsche (so-
bre quem falarei mais à frente) e Dostoiévski.
No caso do escritor russo, pode-se dizer que a se-
qüência central de sua obra, a cena que articula re-
trospectivamente toda a evolução de seus romances e
contos, está naqueles capítulos de Os Irmãos Karamazov
que compreendem o encontro de Ivan e Aliocha no
traktir “A Capital” e a parábola “O Grande Inquisidor”.
Não cabe aqui esmiuçar as diferentes possibilida-
des de interpretação destes episódios, mas talvez seja
suficiente dizer que a personagem de Dostoiévski pos-
tula ali a insuficiência do saber humano para resolver
as mais importantes questões espirituais e, assim, faz
com que todas as nossas ações dependam da existên-
cia de um Deus que não existe ou que, na hipótese de
existir, deverá ser negado. Para Ivan Karamazov, a in-
teligência está submetida “inteiramente à geometria
euclidiana” e, portanto, não pode compreender que o
sofrimento sobre a Terra seja justificável por um mundo
que está para além das leis espaciais que a regem.

264
verve
O inumano

Sua resposta é uma rejeição daquilo que se pretende


feito à imagem e semelhança de Deus: “Houve um ve-
lho pecador no século XVIII que declarou: Si Dieu
n’existait pas, il faudrait l’inventer. E com efeito, o ho-
mem inventou Deus. (...) Quanto a mim, já resolvi há
muito tempo não perguntar mais a mim próprio se foi
o homem que criou Deus ou se foi Deus que criou o
homem. (...) Assim, pois, eu aceito Deus de boa vonta-
de, e também Sua sabedoria e Seus desígnios, que nós
não conhecemos absolutamente”. E, depois de citar as
atrocidades que acometem os inocentes, Ivan conclui:
“Recuso-me categoricamente a aceitar o mundo de
Deus; sabendo que ele existe, não o admito entretan-
to”.
Tal rejeição assume duas feições ao longo do roman-
ce. A primeira é a afirmação pura e simples de que Deus
não existe e que, portanto, “tudo é lícito” (frase que Ivan
dissera na reunião com o starets Zossima e que Aliocha
relembra ao final do encontro entre ambos), lançando o
homem no mais profundo abismo moral. A segunda é a
afirmação de que, mesmo que admitamos a existência
de Deus, seus desígnios permanecerão ocultos, de modo
que nossa liberdade para hesitar entre o Bem e o Mal é
a fonte da maior aflição — à qual os inquisidores rea-
gem oferecendo-nos uma servidão feliz, uma utopia ne-
gativa que já estava prefigurada nos devaneios de per-
sonagens demoníacas como o “homem subterrâneo” de
Memórias do Subsolo, o Raskólnikov de Crime e Castigo e
o Stavroguin de Os Demônios.
É claro que não se pode tomar a personagem pelo
autor/narrador e que o apólogo de Ivan Karamazov não
se confunde com a voz de Dostoiévski, mas o fato é que
a representação mais geral de Os Irmãos Karamazov co-
loca como eixo central do romance um problema que
percorre toda a obra do escritor: de um lado, colhe as

265
6
2004

conseqüências morais do ateísmo, explorando ao má-


ximo esse cenário do qual Deus se retirou sem deixar
substituto; de outro, convida à reação assassina con-
tra uma divindade que — ainda que existente —
aprofunda o sofrimento dos humilhados e ofendidos.
Pelas mesmas razões, o maior romance de
Dostoiévski é uma espécie de pedra angular de toda
uma tradição de escritores “deicidas”. Os Irmãos
Karamazov concentra, em maior ou menor grau, as prin-
cipais variações do tema da morte de Deus que percor-
rem a história da literatura e do pensamento ociden-
tais. Estão ali, claramente, a sensualidade herética de
Sade, a melancolia desesperada de Leopardi, a santi-
dade laica de Camus e o misticismo niilista (ou seria
um ceticismo místico?) de Cioran. Mas, assim como
esses autores vivenciam a experiência da falta de fun-
damento e elaboram o luto da perda de Deus (às vezes
ostentado sob um véu de luxúria, como no caso de Sade),
há uma outra categoria de autores que, procurando
restaurar a ordem perdida através da arte ou do exer-
cício da razão, acabam aprofundando as fendas sobre
as quais se erguem edifícios destinados a reconciliá-
los com o mundo. A justificação do Mal em Santo Agos-
tinho, a cosmologia poética criada por Dante para mi-
tigar num plano poético ideal a crise do modelo teológi-
co de apreensão do mundo, a religião natural de
Montaigne, o deísmo de Diderot e os paraísos subterrâ-
neos do próprio Dostoiévski são expressões daquela
nostalgia da identidade que vem sempre de par com a
consciência de sua impossibilidade. As tentativas que
eles fizeram de “salvar Deus” muitas vezes aprofundam
sua perda — o que pode ser vivido com pavor e patetismo
(casos de Agostinho, Dante e Dostoiévski), mas tam-
bém pode revelar as intenções ocultas de uma “apolo-
gia deicida” (casos de Montaigne e Diderot).

266
verve
O inumano

Esse breve (e certamente impreciso) panorama mos-


tra até que ponto a necessidade de um fundamento para
o humano acompanha a reflexão filosófica e a repre-
sentação literária. Obviamente, o tema da morte de Deus
é um caso limite — que, no entanto, está no coração da
obra de um autor central para a filosofia contemporâ-
nea como Nietzsche.
De alguma forma, o “deicídio” de Nietzsche é com-
plementar ao de Dostoiévski. Neste, Deus é inaceitá-
vel por razões morais, mas, ao mesmo tempo, sua
desaparição é sentida como uma tragédia para o ho-
mem. No caso do pensador alemão, os ídolos religiosos
foram banidos pelo homem moderno, pelo Iluminismo
confiante no progresso da ciência e desconfiado das su-
perstições, mas sobrevivem na forma de abstrações
(Bem, Mal, Verdade, Falsidade, Justiça, Virtude) que
impossibilitam a reconciliação trágica do homem con-
sigo mesmo — algo que só poderá acontecer com a
morte de Deus, que Nietzsche anuncia em A gaia ciên-
cia.
Seja como for, estes casos paroxísticos de crise da
metafísica ou de tentativa de superação da metafísica
apontam para um projeto claro: a preservação ou insti-
tuição da autonomia do humano e de suas esferas mo-
rais e existenciais. Divinizar a poesia ou dessacralizar
Deus, reivindicar o direito humano de substituir Deus,
mesmo que ao preço da submissão a uma natureza cor-
rompida e destrutiva (Sade), ou ao preço de uma
refundação política violenta do mito de Prometeu (caso
dos niilistas russos) — todas essas propostas estético-
literárias oscilam entre o reles e o sublime, mas há
nelas uma fidelidade ao humano, a fidelidade a um além
do homem formulado pelo próprio homem (Nietzsche)
ou a fidelidade a um homem que está aí, com sua face
abjeta e contraditória.

267
6
2004

A insubmissão e a perversão mais radical são, pa-


radoxalmente, formas de defender a criatura contra o
criador — e, mesmo quando estamos num registro dis-
tante dessas reverberações metafísicas, sente-se que
há uma sacralidade profana na subversão, como acon-
tece, por exemplo, com um escritor como Céline. Seu
elogio da abjeção e sua confissão de egoísmo estavam
destinados a ridicularizar todo e qualquer programa
estético-político — e, no entanto, há tanta verdade nes-
se reconhecimento da mesquinharia e da covardia
universais que a obra de Céline consegue o milagre de
atingir o sublime através da sordidez, preservando
intactas as iluminações de seu bas fond existencial e
os encantamentos de sua prosa talhada por espasmos
de agonia.
Dos dadaístas aos surrealistas, de Artaud a Bataille,
de Kafka a Beckett, nosso século iconoclasta é pródigo
de seres insubmissos e espíritos revoltados que rei-
vindicam a verdade da transgressão: o estranho, o gro-
tesco, o outro advogam uma ampliação dos limites da-
quilo que é tolerável pela razão, até o ponto em que a
própria razão é forçada a recensear seus domínios e a
assimilar essa “perversidade polimorfa” como sendo sua
segunda natureza. Através do Mal, enfim, chegamos
ao Bem.
***
Há algo de incômodo — já que esse é o nosso mote —
nessa epifania, nessa reconciliação com o mundo atra-
vés da negatividade. Sartre notou isso em seu livro so-
bre Baudelaire. Afinal, por que se insurgir contra o
mundo, por que fazer profissão de fé no anátema, por
que celebrar missas negras, por que glosar esse espe-
táculo de silêncio, dor, opacidade e desrazão se, ao fi-
nal, os objetivos dessas heresias e dessas litanias do

268
verve
O inumano

Mal não diferem muito dos objetivos da moral e da


espiritualidade convencionais? Se o exercício do Mal
pelo Mal nos conduz a uma forma secularizada de Bem,
esse exercício não difere em essência e necessidade —
mas apenas como acidente e contingência — da busca
do Bem em sentido metafísico ou idealista.
Tal incômodo, porém, logo se dissipa se pensarmos
que esse Mal libertador e essa verdade da transgres-
são culminam não em uma restauração da ordem do
espírito, de uma abstração que renega o humano, mas
numa fidelidade ao homem e a suas representações,
numa ética da escrita. Pois é pela experiência da es-
crita, pela poiesis, pelo fazer poético, pelo ato de fabri-
car algo a partir de nossa dimensão limitada e mortal,
que alternamos à incompreensível ordem divina uma
outra ordem, humana, demasiado humana — a ordem
das palavras, que certamente comporta transcendência
(um além do homem), mas sempre a partir da
imanência da linguagem. É nessa direção, aliás, que
aponta a resposta de Bataille a Sartre em A literatura e
o mal.
Há, porém, um incômodo que me parece mais radi-
cal, justamente porque é a negação não da metafísica,
do idealismo ou dessa imagem idealizada que afasta o
homem do homem (negação que, afinal, culmina numa
positividade). A história da literatura apresenta alguns
casos raros em que a linguagem afirma sua insufici-
ência absoluta, enuncia a inutilidade da arte e, por
meio desta, a inviabilidade fundamental do homem.
Essa dupla recusa da vida e de suas formas de repre-
sentação encontra expressão paroxística em Pascal e
Tolstói, na condenação jansenista de toda existência
mundana e na condenação da arte como forma de per-
petuação da inutilidade humana.

269
6
2004

Pascal e Tolstói — autores tão díspares entre si —


esvaziam todo e qualquer projeto de superação das con-
tingências pela práxis e de refundação do sentido pela
linguagem. Eles são, respectivamente, referência obri-
gatória para a separação razão pura/razão prática e
para a consumação e apoteose do romance (essa epo-
péia do espírito); ao mesmo tempo, são incômodas ex-
pressões de anti-modernidade no coração da
modernidade: Pascal e Tolstói não ultrapassam a
desrazão essencial da existência por meio da
transcendência espiritual, da idéia de liberdade ou da
estetização, mas pela aniquilação simbólica (e pesso-
al) de qualquer laço de sociabilidade ou linguagem que
preserve a memória do humano.
Bem entendido, a anti-modernidade de Pascal e
Tolstói não é de forma alguma algo que esteja no cen-
tro de suas obras. Se eles são um incômodo para essa
modernidade que, de alguma forma continua a nos se-
duzir e que é o ar que respiramos, é porque há neles,
em germe, um projeto de negação da autonomia do
humano, do caráter prometeico que reconhecemos
como nossa arché, como aquilo que nos dá forma, fun-
ção, matéria e finalidade.
Admitamos, por um momento, que Pascal e Tolstói
sejam essencialmente modernos.
A leitura que se faz de Pascal à luz da filosofia e da
lingüística contemporâneas, por exemplo, vai bem além
do sentido apologético de seus Pensamentos. Como ob-
serva Gérard Lebrun, ao substituir a ordem do mundo
por uma ordem sobrenatural (a “ordem da caridade”),
Pascal não estava se curvando à ortodoxia cristã, mas
revelando que nada estaria ao alcance do homem pela
razão — a não ser as propriedades físicas e inessenciais
dos objetos do mundo. “Esse antimetafísico permane-

270
verve
O inumano

ceu obcecado pelo ideal de uma segurança que a


metafísica — ele foi o primeiro a vê-lo — não podia mais
trazer ao homem ocidental. E não é de forma nenhu-
ma desvalorizar a fé cristã de Pascal ligar essa necessi-
dade à força do seu investimento religioso: ele cha-
mou de ‘Jesus Cristo’ o único centro que permanecia
possível. (...) Se Pascal se submete, é a uma religião
que recriou na medida das suas necessidades; se ele
se abandona a Deus, é que encontrou um referencial
na antropologia agostiniana. A fé de Pascal foi para ele
um meio de expressão e não uma ‘última instância’
que teria condicionado seu pensamento e sua vida. Foi
a mutação que ele operou da metafísica em religião
que fez dele um Moderno no coração da idade clássica”.
As conseqüências da hermenêutica pascaliana para
a filosofia são bastante conhecidas. Antecipando Kant,
ele anuncia o fim da metafísica e circunscreve a razão
à descrição dos fenômenos do mundo natural, confe-
rindo a suas meditações um fundo moral que — como
um reflexo invertido desse mundo físico e “homogêneo”
— encontra em Deus um ponto fixo que organiza e tra-
duz sua verdade ontológica. E se esta é uma ontologia
negativa, apenas entrevista, à qual o homem se agar-
ra como consolação e aprendizado de sua condição mi-
serável, isso não oblitera o caráter moral e, portanto, a
finalidade antropológica de sua apologia religiosa.
Da mesma maneira, pode-se dizer que os principais
livros de Tolstói reafirmam o primado do humano. A
própria escolha do “romance” (esse gênero burguês,
esse épico do indivíduo) denota a adesão do escritor à
pluralidade e à irredutibilidade da alma. Encontramos
em Tolstói temas presentes nas obras de Rousseau,
Schiller ou Stendhal (o “bom selvagem”, a aspiração ao
sublime, as verdades parciais da vida afetiva). Uma obra
como Ana Karênina reúne em suas personagens — e

271
6
2004

muitas vezes em uma única personagem — todo o mo-


saico possível de acepções do humano: os abismos in-
teriores de desejo e culpa, os determinismos materi-
ais e a tentativa de transcendê-los social e espiritual-
mente, as utopias políticas e religiosas, a fronteira
tênue entre sanidade e demência, renúncia e ciúmes.
Tolstói é o remate perfeito da épica burguesa, da arte
como percepção do drama humano em sua totalidade
fraturada — e seu repúdio ao estilo “mal-acabado” dos
romances de Dostoiévski, por exemplo, demonstra o
quanto havia de preocupação estética, de l’art pour l’art,
nessa obra que se propunha flagrar os conflitos políti-
cos de seu tempo (como é o caso de Guerra e Paz).
No entanto, também é preciso admitir que Pascal e
Tolstói são essencialmente anti-modernos.
“A conversão verdadeira consiste em aniquilar-se”,
escreve Pascal em seus Pensamentos. Deus é a única
certeza que poderia nos oferecer um alívio. Todas as
demais certezas (das matemáticas, da física, da subs-
tância extensa) são ontologicamente mudas: “O silên-
cio eterno desses espaços infinitos me apavora.” E em
nenhum momento ele admite perder a possibilidade
dessa certeza: melhor seria perder o homem. É essa a
ética inumana da aposta pascaliana. Existem apenas
duas possibilidades razoáveis: 1) Deus existe e, se apos-
tarmos nele, ganhamos tudo (a salvação); 2) Deus não
existe e, mesmo que apostemos nele em vão, não per-
demos nada. A alternativa não-razoável seria apostar
na concupiscência, no amor pela criatura, e constatar
no além-túmulo que Deus existe, ganhando a dana-
ção. Logicamente, portanto, o razoável é optar pela da-
nação na terra, na renúncia da vida em vida: a aposta
pascaliana é uma forma de terrorismo lógico que assi-
mila a conversão à aniquilação.

272
verve
O inumano

Tudo o que é certo é nada, menos Deus, que é tudo,


ainda que seja incerto. Por isso, no opúsculo intitulado
Sobre a conversão do pecador, Pascal insiste em que
uma alma está convertida no momento em que “consi-
dera as coisas perecíveis como (...) já perecidas”, no
momento em que “começa a considerar como um nada
tudo aquilo que deve retornar ao nada, o céu, a terra,
seu espírito, seu corpo, seus parentes, seus amigos,
seus inimigos, seus bens, a pobreza, a desgraça, a pros-
peridade, a honra, a ignomínia, a estima, o desprezo, a
autoridade, a indigência, a saúde, a doença e a própria
vida”.
Numa reunião dos aforismos pascalianos sobre os
costumes e os poderes, André Comte-Sponville escre-
veu esta frase admirável: “O extraordinário em Pascal
(...) é que ele não crê em nada: nem na justiça, nem
nas leis, nem na tradição, nem no progresso. A fé o
protegia de nossa superstições: ele só acreditava em
Deus; o resto lhe aparecia sob a luz mais impiedosa,
desprovido, não certamente de razão (qual o efeito sem
causa?), mas de toda justificação ou legitimidade ab-
solutas” (Pensamentos sobre a Política; grifo meu). Ha-
veria forma mais eloqüente de definir a recusa radical
do humano que subjaz à antropologia de Pascal?
Essa defesa da aniquilação parece de maneira mui-
to mais nuançada em Tolstói. Não encontramos em
Tolstói um programa de degradação sistemática da vida
em sociedade. Pascal falava para os libertinos; Tolstói
era um libertino arrependido (talvez um libertino apo-
sentado...). O autor de Ressurreição estava preocupado
com o desenraizamento do povo russo e pregava o re-
torno à simplicidade da igreja primitiva e aos valores
da vida camponesa — uma fuga do mundo tematizada,
por exemplo, em um livro como Padre Sérgio. Em Tolstói,
as crises religiosa, política (sua renúncia aos privilé-

273
6
2004

gios de nobre latifundiário) e até mesmo estética (sua


rejeição da arte ao final da vida) podem ser interpreta-
das como expressão das frustrações de uma utopia ins-
pirada em Rousseau. A crítica ao “homem inútil” con-
tida em A Morte de Ivan Ilitch deságua no vazio sem con-
solo do humanista confrontado com a morte e com um
mundo que lhe escapa por entre os dedos. Enquanto
escreveu, Tolstói jamais conseguiu se libertar de seu
próprio talento literário, em nenhum momento ele con-
sentiu em transgredir as regras da grande arte como
forma de superação de suas limitações: quando a arte
se demonstrou incapaz de transformar o mundo, abdi-
cou dela. Mesmo Ana Karênina, que deveria ser uma
condenação da vida “mundana”, se desdobra em dois
enredos paralelos (a história da adúltera Ana Karênina
e do camponês aristocrático Liévin) que resultam numa
sinfonia perfeita, uma sinfonia como as de Beethoven.
Mas é justamente esse gênio da música que se
transforma em um dos alvos de sua catilinária contra
a arte supérflua, a arte distanciada do povo, a arte que
ele degrada no libelo O que é a arte?. E é justamente
Beethoven que fornece o mote para A Sonata a Kreutzer,
a novela sobre um episódio de traição e crime passional
em que Tolstói proclama o caráter nocivo das relações
“artificiais”, dos saberes que garantem as relações se-
xuais como um fim em si mesmas (a medicina e seus
métodos contraceptivos) e das artes que encarecem
esses jogos de salão, essa coreografia dos corpos.
Há um moralismo tosco, “evangélico”, em A Sonata
a Kreutzer. Mas há também um naturalismo ambíguo
que percorre essa novela envolvente na trama e repul-
siva no conteúdo. Para Tolstói, os encantamentos da
vida em sociedade contrariam a natureza (a narrativa
é pródiga em aproximações entre os atavismos huma-
nos e a vida animal), mas, ao mesmo tempo, a nature-

274
verve
O inumano

za humana se divorcia da natureza tout court pelos seus


objetivos (progresso, elevação espiritual, Bem, verda-
de). Ou seja, os objetivos “naturais” do homem são uma
negação da própria idéia de sociabilidade e, no limite,
da própria perpetuação do homem: “A Humanidade po-
dia desaparecer”, sugere a Pozdnichev (personagem
central de A Sonata a Kreutzer), ao condenar a procria-
ção como um fim desnaturalizado pela concupiscên-
cia.
***
A radicalidade do espírito moderno está na demoli-
ção de todo fundamento, cujo emblema mais forte é o
da morte de Deus, que afirma o primado do humano, a
verdade de nossas certezas provisórias, nossa
positividade negativa. O que seria, então, o avesso do
moderno? Seria talvez a morte do homem (não no sen-
tido foucaultiano, mas no sentido jansenista), o prima-
do de um Deus ressurrecto, a verdade indiferente de
nossas certezas teológicas. Pascal e Tolstói: dois cren-
tes contra o homem, dois apóstolos do inumano.

275
6
2004

RESUMO

A necessidade do fundamento para o humano, na literatura oci-


dental, encontra em percursos de escritores “deicidas”, uma
problematização no limite. De tal forma que Deus, no Ocidente,
evidencia a grande encruzilhada filosófica que deverá ser con-
frontada para pensar o humano: se Deus é moralmente condená-
vel, a sua inexistência está no cerne da moderna tragédia humana.

Palavras-chave: literatura, humano, modernidade.

ABSTRACT

The necessity of a definition for the human condition, in Western


literature, provokes radical questionings made by deicide writers.
In the West, God is the philosophical measure that have to be
faced in order to establish the “human”: if God is morally wrong,
His inexistence is on the core of modern human tragedy.

Key words: literature, philosophy, modernity.

276
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade

a “mulher cordial”:
feminismo e subjetividade

margareth rago*

Nós podemos ir a qualquer lugar, menos para casa


Gloria Wekker

Décadas depois da incorporação dos estudos feminis-


tas e das discussões sobre a categoria do gênero nos
debates acadêmicos e nas disputas políticas, é possível
referir-se ao momento atual das lutas e reivindicações
feministas como “pós-feminismo”, entendendo o conceito
não como um marco temporal que indicaria um tempo
depois, implicando um momento pré e um pós, mas a
partir da instauração de novas configurações nas
problematizações e relações que se travam no interior
deste movimento.
Nessa proposta de falar em “pós-feminismo”, não pres-
suponho evidentemente o fim do feminismo, acreditan-
do que estaríamos vivendo num período posterior das
lutas sociais e políticas das mulheres, segundo um re-
corte temporal que operaria com a linha da continuida-

* Professora no Departamento de História da Unicamp.

verve, 6: 279-296, 2004

279
6
2004

de histórica, como se as conquistas feministas já tives-


sem sido todas elas alcançadas e consagradas. Muito
pelo contrário, recorro, nessa direção, a Rose Braidotti,
para quem “as feministas estão em uma ótima posição
para saber que a desconstrução do sexismo e do racis-
mo não acarreta automaticamente sua ruína...”1
Entendo, assim, inspirando-me também em Michel
Foucault, que é possível perceber no contexto atual das
batalhas feministas, uma nova relação que o feminis-
mo estabelece consigo e nas imagens de si que projeta
para o mundo2. Na atitude de meta-crítica, esta relação
se caracterizaria por um dobrar-se sobre si mesmo, isto
é, pela reflexão crítica sobre o próprio feminismo e por
sua historicização, num movimento de avaliação e ba-
lanço de suas conquistas, avanços, limites e impasses,
seja no campo das práticas, seja no do pensamento.
Portanto, essa relação diferenciada também pode ser
vista como efeito das próprias árduas lutas travadas
pelas mulheres, ao longo dos últimos trinta ou quaren-
ta anos. Resulta de muitas conquistas, a partir das quais
um determinado patamar foi atingido, o qual poderia ser
caracterizado por alguns aspectos, dos quais destaco
quatro: a transformação nacional e internacional da
própria imagem do feminismo, hoje reconhecido como
um dos maiores e mais bem sucedidos movimentos do
século XX, a exemplo das referências feitas a esse pro-
pósito pelo historiador inglês Eric Hobsbawm, em seu
famoso livro A Era dos Extremos3; o reconhecimento da
importância do feminismo brasileiro, como movimento
social relativamente avançado em relação ao dos ou-
tros países, não só da América Latina; a desestigma-
tização da imagem da “feminista”, outrora associada às
figuras negativas da feiura e da velhice, ou taxadas de
“sapatão” e “mal-amadas”, desde seus inícios no século
XIX; a maneira pela qual o feminismo se reconfigura e

280
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade

generaliza amplamente, atingindo setores muito jovens


da população, como moças de 15 e 16 anos.
Em relação a esse aspecto, vale notar que, hoje, não
apenas as mais jovens entram de outro modo no merca-
do de trabalho e no mundo público e social, isto é, com
muito mais autonomia do que as mulheres experimen-
taram nessa idade em décadas anteriores, como tam-
bém se encontram em condições de estabelecer rela-
ções de gênero bastante relaxadas e bem menos
hierarquizadas, se compararmos novamente com aque-
las vivenciadas pelas que tinham vinte anos, na década
de 1960. A juventude pós-feminista, em boa parte
educada por pais anti-autoritários, sobretudo nas cama-
das médias e mais intelectualizadas da população, man-
tém relações mais libertárias com o corpo, o sexo, o ou-
tro, a natureza e a vida. De certo modo, o discurso femi-
nista, tanto quanto o ecológico, o étnico, para não falar
do anarquista e socialista em geral foi incorporado em
muitas dimensões, produzindo importantes efeitos na
sensibilidade e no imaginário social, tanto quanto na
vida cotidiana.
Portanto, é possível afirmar que há um reconheci-
mento social, na atualidade, de que as lutas feministas
afetaram positivamente a maneira pela qual se deu a
incorporação das mulheres no mundo do trabalho, num
momento de ampla modernização sócio-econômica no
Brasil, desde os anos setenta, e que contribuiu para que
houvesse uma grande mudança nos códigos morais e
jurídicos, nos valores, nos comportamentos, nas rela-
ções estabelecidas consigo e com os outros, nos siste-
mas de representações e no modo de pensar. Especial-
mente a partir da constituição de um novo olhar sobre
si e sobre o outro — e, nesse sentido, penso num pro-
cesso de feminização cultural em curso, o mundo tem-
se tornado mais feminino e feminista, libertário e soli-

281
6
2004

dário ou, em outras palavras, filógino4, isto é, amigo das


mulheres e do feminino, o que resulta decisivamente
do aporte social e cultural das mulheres no mundo pú-
blico.
Certamente, não deixo de considerar as constantes
denúncias de violência sexual e moral praticadas con-
tra jovens, as inúmeras formas de desqualificação e de
humilhação a que são submetidas as mulheres cotidia-
namente, permanências que revelam que as conquis-
tas estão longe de terem sido esgotadas. Embora seja
visível que um determinado patamar de aquisições foi
estabelecido, as negociações de gênero ainda estão muito
longe de se encerrarem.
No entanto, quero aqui privilegiar um outro aspecto
que me parece menos discutido e que adquire sentido
quando se aceita que, com todas as suas dificuldades e
limitações, o feminismo criou um modo específico de
existência, — muito mais integrado e humanizado, já
que desfaz oposições binárias como a que hierarquiza
razão e emoção —, inventou éticamente e tem operado
no sentido de renovar e reatualizar o imaginário políti-
co e cultural de nossa época. Gostaria de examinar,
mesmo que brevemente, a questão da crítica do sujeito
e a da produção de subjetividade, na contemporaneidade,
perguntando pelos modos de constituição de si propos-
tos pelo feminismo.

Novas imagens do feminismo


Dentre as suas inúmeras críticas, o feminismo in-
vestiu incisivamente contra o sujeito, não apenas ten-
do como alvo a figura do homem universal, mas visando
a própria identidade da mulher. Desnaturalizando-a,
mostrou o quanto a construção de um modelo feminino
universalizante foi imposta historicamente pelo discur-

282
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade

so médico vitoriano, pelo direito, pela família, pela igre-


ja, enfim, pelo olhar masculino reforçado principalmen-
te nos centros urbanos, pelos estímulos da indústria de
consumo. Já são inúmeros os estudos, pesquisas, livros,
publicações e revistas que desconstroem as muitas lei-
turas sobre o corpo e a fisiologia da mulher, sobre seus
sentimentos, desejos e funcionamentos físicos e psíqui-
cos, subvertendo radicalmente a ordem masculina do
mundo, especialmente ao desconectar a associação
estabelecida entre origem e finalidade, que justificava
a definição de uma suposta essência feminina a partir
de sua missão para a maternidade.
Contudo, ao criticar esse ideal de feminilidade, que
vigorou até as décadas de 1950/60, que dessexualizava
a mulher e que valorizava a associação romântica do
feminino com a esfera do mundo privado, o feminismo
também abriu mão do corpo, da beleza, da estética e da
moda, considerados reificadores, apropriando-se para-
doxalmente do modo masculino de existência que ques-
tionava e, ao mesmo tempo, desconstruía. A feminista
apareceu, então, na figura da “oradora”, da mulher que
rompe o espaço público e toma a palavra, denunciando e
revolucionando como os homens. De Olympe de Gouges
às sufragettes, socialistas e anarquistas, como Emma
Goldman e Federica Montseny, chegando ainda à “quei-
ma de sutiãs” em praça pública, desde o final dos anos
sessenta, elas se opuseram à figura conservadora e san-
tificada da “mãe”, enaltecida pelo discurso rousseauísta,
provando que poderiam igualar-se, no espaço público,
aos seus opositores, com muita competência5.
Refiro-me a um passado relativamente recente, mas
agora já passado, em que a dimensão desconstrutivista
prevalecia nas percepções do feminismo. Isto porque as
próprias mulheres que se identificam como feministas
têm criado, desde então, novos padrões de corporeidade,

283
6
2004

beleza, cuidados de si, propondo outros modos de consti-


tuição da subjetividade, ou o que bem poderíamos cha-
mar de estéticas feministas da existência6. Embora — e
felizmente — já não seja possível definir um sujeito
único do feminismo, pode-se afirmar que as feminis-
tas, de modo geral, estão preocupadas tanto com o refi-
namento do espírito, quanto com a beleza coporal, a saú-
de, a agilidade, a elegância e a moda, na construção de
si e de uma nova ordem social e sexual.
Portanto, a feminista deixou de ser a “oradora” públi-
ca de outrora, avessa à maternidade, enquanto que ser
mãe também deixou de implicar necessariamente a
perda do desejo sexual. Mostrando que poderiam existir
modos diferentes de organizar o espaço, outras “artes
de fazer”7 no cotidiano, da produção científica e da for-
mulação das políticas públicas às relações amorosas e
sexuais, a crítica feminista evidenciou que múltiplas
respostas são sempre possíveis para os problemas que
enfrentamos e que outras perguntas deveriam ser colo-
cadas femininamente, isto é, a partir de um pensamento
que singulariza, subverte e diz de onde fala.
A crítica feminista foi radical ao buscar a libertação
das formas de sujeição impostas às mulheres pelo
patriarcalismo e pela cultura de consumo da sociedade
de massas e, se num primeiro momento, o corpo foi
negado ou negligenciado, como estratégia mesma des-
sa recusa das normatizações burguesas, desde os anos
oitenta, no Brasil principalmente, percebe-se uma mu-
tação nessas atitudes e a busca de novos lugares para o
feminino, o que implica a emergência de novas formas
de feminilidade, de novas concepções de sexualização,
beleza e sedução, inclusive corporais, que poderiam
aproximar-se, como mencionamos acima, daquilo que
Foucault definiu como “artes da existência”, isto é, téc-
nicas de constituição estilizada da própria subjetivida-

284
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade

de desenvolvidas a partir das práticas de liberdade. Para


Joel Birman, aliás, essa década marca o retorno triun-
fal de Carmen, personagem sensual, sedutora, quente,
erotizada, com seu vestido decotado e vermelho, radi-
calmente oposta à mulher assexuada e santificada do
imaginário ocidental tradicional, seja da mãe abnega-
da, seja da feminista ressentida e masculinizada, ou a
“oradora”, a que se refere Joan Scott8. Como diz esse
autor:“(...) Carmen se apresenta agora também sem-
cerimônia e resplandecente na sua sublime beleza, não
apenas para assumir inteiramente como também para
viver radicalmente as possibilidades entreabertas por
suas paixões. O excesso é a marca fundamental da per-
sonagem, sem dúvida”9.
É possível observar, pois, uma certa erotização tam-
bém no feminismo. Nesse sentido, a mãe pós-moderna
integrou a figura da “mulher independente”, pois além
de emancipada e, muitas vezes, chefe de família, ela
quer gozar sexualmente. Ademais, num outro polo, cons-
tata-se que até as prostitutas se tornaram feministas,
recusando sua antiga identidade construída a partir de
parâmetros estabelecidos pela medicina vitoriana e pela
antropologia criminal, para se pensarem como “traba-
lhadoras do sexo”, sem a presença dos antigos gigolôs e
cafetões. Se o feminismo não soube trabalhar a questão
da prostituição, procurando muito mais contorná-la do
que enfrentá-la diretamente, se o abismo que separou
militantes feministas e prostitutas poucas vezes foi
transposto, não há dúvida de que as “mulheres públi-
cas”, como antigamente se chamavam, souberam mui-
to bem incorporar várias das proposições e práticas ex-
perimentadas e defendidas por aquelas.
Certamente esses não foram os únicos saldos, em
termos da produção da subjetividade, trazidos pelo femi-
nismo. Aqui, abordo o lado conservador desse processo,

285
6
2004

uma vez que esse movimento também produziu aque-


las que copiaram e traduziram o modelo retrógrado do
“coronel urbano”, dando vida à figura da “mulher cordi-
al”, que até há pouco tempo não constava do repertório
brasileiro das subjetividades femininas. O “homem cor-
dial” era uma figura essencialmente masculina.

A “mulher cordial”
Antes de avançar a discussão e para evitar confu-
sões, gostaria de fazer alguns esclarecimentos. Enten-
do a cordialidade definida por Sérgio Buarque de Holanda,
em sua pioneiríssima obra Raízes do Brasil10, de 1936,
como a expressão de uma maneira de ser que nada tem
a ver com a bondade e a tradicional passividade atribu-
ídas ao povo brasileiro, como explica seu autor: “Seria
engano supor que essas virtudes (a lhaneza no trato, a
hospitalidade, a generosidade) possam significar “boas
maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões le-
gítimas de um fundo emotivo extremamente rico e
transbordante”11.
Trata-se, antes, de uma subjetividade privatista, que
se manifesta através de comportamentos e práticas de
apropriação privatizadora do mundo público, práticas de
apossar-se do espaço, fazendo do público o “quintal da
própria casa”, como observaram vários autores. Para
Holanda, o pater poder inconteste e ilimitado, o predo-
mínio da família e da casa-grande sobre o Estado e a
vida pública, a ditadura do campo sobre as cidades, a
extensão do poder da esfera privada impediram a forma-
ção do conceito de cidadania, no país. Foram sempre
muito grandes os obstáculo para se mudar “a mentali-
dade criada ao contato de um meio patriarcal, tão oposto
às exigências de homens livres e de inclinação cada
vez mais igualitária”12.

286
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade

Portanto, a subjetividade cordial opõe-se radicalmente


àquela desejada e prometida pelo feminismo, que se
constituiria a partir de uma intensificação dos cuida-
dos de si, muito próxima à perspectiva desenvolvida por
Foucault, e que se caracterizaria por uma abertura em
relação ao outro e pela capacidade de estabelecer novos
vínculos de sociabilidade, baseados no reconhecimento
da diferença, na amizade e na solidariedade13. Para esse
filósofo, esse trabalho de reinvenção de si implica uma
dimensão intersubjetiva, pois o indivíduo se constitui
na relação com o outro, e não isoladamente, e funda-
mentalmente comporta uma atitude ética, pois se trata
do exercício da liberdade.
Nessa direção, a feminista abrigaria uma subjetivi-
dade libertária, capaz de demarcar os limites entre os
seus interesses pessoais e os do público, ao contrário
da personalidade narcísica e egocêntrica, isto é, daque-
la que confunde e sobrepõe o privado no público, como
alerta Richard Sennett, ao discutir a falência do “ho-
mem público” e a descrença no político, no mundo con-
temporâneo14.
Na linha de raciocínio que estou desenvolvendo, por-
tanto, a feminista teria uma função social especial no
sentido de ajudar a refazer as sociabilidades públicas,
cada vez mais desgastadas e destruídas pela privatização
do cotidiano, isto é, pela desvalorização da política e pela
sobreposição, no mundo público, do modelo da amizade
constituído pela referência familiar, isto é, na esfera da
vida privada. Esse modelo, como bem conhecemos, se-
leciona alguns pares para serem considerados “amigos”,
a partir da referência dessexualizada da fraternidade,
excluindo todo o resto como inimigos em potencial. Por-
tanto, não pode servir de base para a constituição de
novas redes de relações de amizade, como adverte o fi-
lósofo Francisco Ortega:

287
6
2004

“A amizade é um fenômeno público, precisa do mun-


do e da visibilidade dos negócios humanos para flores-
cer. Nosso apego exacerbado à interioridade, a ‘tirania
da intimidade’, não permite o cultivo de uma distância
necessária para a amizade, já que o espaço da amizade
é o espaço entre os indivíduos, do mundo compartilhado
— espaço da liberdade e do risco — , das ruas, das pra-
ças, passeios, dos teatros, dos cafés (...)”15.
É a partir dessas referências que me refiro, aqui, às
mulheres que adotaram o modelo masculino do “homem
cordial” e tornaram-se “coronelas” — palavra que ainda
não consta de nossos dicionários, pois o fenômeno é re-
cente —, em suas instituições, casas, escolas, escritó-
rios, universidades, ongs, de uma maneira profunda-
mente nociva às concepções formuladas pelo movimen-
to feminista. Afinal, a “mulher cordial” é sedentária e
reafirma o lar, ao invés de abandoná-lo. E como diz Rose
Braidotti, na esteira de Deleuze, é preciso “abandonar
o lar”, lugar privilegiado da constituição de identidades
normatizadas, “porque o lar é freqüentemente local do
sexismo e racismo — um local que nós precisamos
retrabalhar política, construtiva e coletivamente. Ao que
eu acrescentaria, com Deleuze e outros, identidades fi-
xas devem ser abandonadas, como o local sedentário,
que produz paixões reativas tais como ganância, para-
nóia, ciúme edipiano e outras formas de constipação
simbólica”16.
Essa questão é fundamental, a meu ver, pois o femi-
nismo firmou um compromisso social, principalmente
num país em que nasce pelo impulso e pela iniciativa
de mulheres ativistas de esquerda, de presas políticas e
de exiladas envolvidas com as lutas pela redemocra-
tização e pela mudança social, ou seja, cercado por figu-
ras que lutaram pela definição de uma identidade pú-
blica e ética da mulher prioritária à privada.

288
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade

Assim, se no Brasil, o feminismo nasce e se caracte-


riza como um movimento de esquerda, independente do
grupo político e partidário que apoie ou pelo qual seja
apoiado, é de se perguntar como pode ter produzido e
reproduzido figuras tão conservadoras e autoritárias,
inspiradas na cordialidade da “casa-grande”, se já nos
anos trinta, um historiador liberal como Sérgio Buarque
acreditava que o “homem cordial” estava em vias de
extinção, com a modernização dos costumes e a demo-
cratização cultural? Minha pergunta, nesse sentido,
pode ser formulada nos seguintes termos: como foi e
tem sido possível a existência dessa forma de subjetivi-
dade narcisista entre as feministas, se estas mesmas
estiveram criticando incisivamente as relações de po-
der e as formas de sujeição de e entre homens e mu-
lheres? Como o feminismo pôde acolher um modelo mas-
culino de relação, baseado na exploração e opressão
entre mulheres e fortalecer aquelas que se beneficiam
de determinadas situações e status para afirmarem
hierarquias entre as próprias mulheres? Hierarquia e
feminismo deveriam ser termos antitéticos, como nos
ensinou o feminismo libertário do passado, através das
experiências de figuras como Emma Goldmann, Luce
Fabbri, Maria Lacerda de Moura, as “Mujeres Libres”
espanholas e tantas outras. Em se tratando da constru-
ção de novas formas de vida em sociedade, mais
humanizadas e solidárias, já sabemos que não é sufici-
ente um mundo feminista, se não for libertário.
É claro que até recentemente a questão da produção
de subjetividade não havia adquirido a visibilidade e
importância que assume nos debates contemporâneos,
no Brasil e no mundo. Contudo, isso não significa que
não se criticassem as figuras autoritárias de nosso uni-
verso social e político, especialmente marcado pelo
clientelismo, ou que não se buscassem novos modos de

289
6
2004

experiência. Negando as práticas e visões masculinas


autoritárias, aquelas que abraçaram a causa da eman-
cipação feminina lançaram críticas contundentes às
formas hierárquicas e excludentes de organização soci-
al e cultural, insistindo e visando promover uma ampla
transformação nas relações sociais e de gênero.
Mas, desde que se tem falado nas “relações de gêne-
ro”, deslocando-se deste modo da “filosofia do sujeito” para
a “pensamento da diferença”, fortemente marcado pe-
las teorias pós-coloniais, por filósofos pós-estruturalis-
tas como Foucault, Deleuze e Derrida e por talentosas
intelectuais feministas como Luce Irigaray e Julia
Kristeva, como aceitar essas formas de sujeição que são
impostas a outras e a si mesmas e que manifestam
movimentos repetidos de uma reterritorialização pro-
fundamente indesejável? Afinal, em nossos tempos, já
não é necessário masculinizar-se — e aliás a própria
masculinidade deixa de definir-se pelo tão criticado
“coronelato” — para adentrar na esfera pública, e nem
as que se definem como lésbicas necessariamente va-
lorizam exclusivamente o masculino. Vale notar como
o próprio movimento gay se masculinizou, enquanto o
feminismo se feminizou. Ou nos hibridizamos...
Pergunto-me como se coloca para o feminismo brasi-
leiro, entre teóricas e militantes, a questão da figura-
ção de novas subjetividades, questão que certamente
não afeta apenas o Primeiro Mundo, se não se visam
apenas transformações das condições de exterioridade.
Como pergunta a historiadora Tânia Swain, preocupa-
da em desconstruir a suposta identidade-essência fe-
minina: “Quem somos ‘nós’”, assim, encerrados em cor-
pos sexuados, construídos enquanto natureza, passagei-
ros de identidades fictícias, construídas em condutas
mais ou menos ordenadas? Quem sou eu, marcada pelo
feminino, representada enquanto mulher, cujas práti-

290
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade

cas não cessam de apontar para as falhas, os abismos


identitários contidos na própria dinâmica do ser?”17
Rose Braidotti, por sua vez, aproximando-se de
Deleuze, em sua defesa das subjetividades nômades,
propõe: “...figurações de subjetividade móveis, comple-
xas e mutantes estão aqui para ficar. Falando como uma
mulher feminista branca, anti-racista, pós-estrutura-
lista, européia, eu apoio figurações de subjetividade
nômade, para agir como uma desconstrução permanen-
te do falologocentrismo eurocêntrico. Consciência nô-
made é o inimigo dentro desta lógica.”
É nessa lógica, a meu ver, que as discussões sobre
as relações de gênero têm sentido, como um modo de
escapar da filosofia do sujeito e das armadilhas da afir-
mação das identidades, para entrar num novo campo
epistemológico e político, capaz de se abrir para a for-
mulação de novas perguntas e respostas, ou antes, para
novos modos de existência. É, ainda, nesse sentido, que
o diálogo com Foucault e Deleuze, entre outros filósofos
contemporâneos, tem sido fundamental para o feminis-
mo, pela profunda crítica que lançam ao pensamento
cêntrico e à ciência ocidental, fundados na lógica da iden-
tidade, assim como pelas saídas que apontam.
Perguntando “o que o feminismo tem a oferecer ao
futuro do pensamento? O feminismo teria um futuro no
pensamento?”, Elisabeth Grosz afirma a necessidade de
reconceitualização do que o feminismo entende por sub-
jetividade, já que discorda que se trata de libertar as
mulheres, pois reconhecer identidades seria defender
uma política servil:
“O feminismo (...) é a luta para tornar mais móveis,
fluidos e transformáveis, os meios pelos quais o sujeito
feminino é produzido e representado. É a luta para se
produzir um futuro, no qual as forças se alinham de

291
6
2004

maneiras fundamentalmente diferentes do passado e


do presente. Essa luta não é uma luta de sujeitos para
serem reconhecidos e valorizados, para serem ou se-
rem vistos, para serem o que eles são, mas uma luta
para mobilizar e transformar a posição das mulheres, o
alinhamento das forças que constituem aquela ‘identi-
dade’ e ‘posição’, aquela estratificação que se estabiliza
como um lugar e uma identidade.”
Muito próximo a Foucault e Deleuze, trata-se então
de recusar o que somos, as subjetivações femininas ou
masculinas que nos são impostas pelo Estado e, portan-
to, a identidade-mulher-santificada, tanto quanto a sub-
jetividade cordial, retrógrada e autoritária.
O feminismo tem uma dimensão política profunda-
mente crítica e libertadora, que não pode ser negligen-
ciada, afinal foram e têm sido imensas as suas contri-
buições, especialmente ao questionar as formas e as
práticas masculinas de um mundo que, misógino, é
opressivo para as mulheres e ao mostrar como a ciên-
cia fundamentou essas concepções, com seus concei-
tos sedentários, mascarando sua realidade de gênero.
Portanto, o feminismo trouxe esperança, juntamen-
te com novas imagens do pensamento, ao revelar que o
mundo também poderia ser outro, isto é, feminino e
filógino, e que as mulheres não são apenas sistemas
reprodutivos passivos, nem natureza transbordante e
incontrolável ameaçando destruir a cultura, com seu
desejo ninfomaníaco e selvagem, como sugerem várias
peças e filmes, a exemplo de Salomé e O Anjo Azul.
O feminismo deixou claro, ainda, que as feministas
são capazes de inventar novos mundos, organizar de
modo não-elitista, dar respostas diferentes das já conhe-
cidas e que não satisfazem apenas a alguns setores so-
ciais e sexuais. Mostrou que as mulheres podem criar

292
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade

novas ciências — novas formas de produção de conheci-


mento, as epistemologias feministas, transversais, pois
as mulheres estão em todas as classes e grupos soci-
ais, orientadas por agendas feministas, como observa
Sandra Harding.
Finalmente, o feminismo não visou apenas o benefí-
cio das mulheres, pois atingiu e desestabilizou também
a solidez da identidade masculina do guerreiro, em opo-
sição ao modelo aristocrático de masculinidade da “so-
ciedade de corte”, e reforçada pelo sucesso de Tarzan,
desde os inícios do século XX18. Expondo a unilateralidade
e limitação dessa identidade masculina, que exclui tudo
o que é considerado culturalmente feminino, como as
emoções, os sentimentos, a fragilidade e a possibilida-
de de experiências e vivências mais reais, porque mais
integradas psiquicamente, forçou a busca de novas for-
mas de redescrição de si também para os homens. Como
afirma aquela autora: “Portanto, nessa linha de raciocí-
nio, as mulheres não são as agentes exclusivas do co-
nhecimento feminista. O pensamento feminista deve
fundamentar suas análises críticas da natureza e das
relações sociais no âmbito das vidas das mulheres. En-
tretanto, os homens também precisam aprender como
fazer o mesmo a partir das suas condições históricas e
sociais particulares, agindo como homens traidores da
supremacia masculina e das relações de gênero con-
vencionais”19.
O feminismo, tanto enquanto teoria, como enquanto
prática, teve e tem uma função social eminentemente
política, por seu potencial profundamente subversivo,
desestabilizador, crítico, intempestivo, assim como pela
vontade que manifesta de tornar o mundo mais huma-
no, livre e solidário, seguramente não apenas para as
mulheres. Por tudo isso, não pode recuar diante do enor-
me desafio que é uma avaliação contínua das próprias

293
6
2004

subjetividades e dos estilos éticos e estéticos de exis-


tência que promove, impedindo a ação das forças reter-
ritorializantes paralizadoras, pois modos feministas de
existir só devem se tornar incômodos enquanto movi-
mentos intensos de afirmação da vida.

Notas

1
R. Braidotti. “Diferença, diversidade e subjetividade nômade”, Revista on-
line Labrys, estudos feministas, n.1-2, julho-dez. 2002; Tânia Navarro Swain,“As
teorias da carne: corpos sexuados e identidades nômades”, Revista on-line
Labrys, estudos feministas, ns. 1-2, jul.-dez.2002.
2
M. Foucault. “Qu´est-ce que les Lumières?” in Dits et ecrits. Paris, Gallimard,
1994.
3
E. Hobsbawm. A era dos extremos. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p.
304.
4
Veja-se a respeito M. Rago. “Feminizar é preciso. Por uma cultura filógina” in
Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Sead, 2002.
5
J. Scott. “Fantasy echo: história e a construção da identidade” in Revista on-
line Labrys, estudos feministas, números 1-2, jul.-dez. 2002.
6
Reporto-me obviamente ao conceito de M. Foucault desenvolvido na Histó-
ria da sexualidade: o uso dos prazeres. vol II, Rio de Janeiro, Graal, 1984.
7
No sentido utilizado por M. de Certeau em A invenção do cotidiano. Petrópolis,
Vozes, 1994.
8
J. Birman. “Se eu te amo, cuide-se” in Cartografias do feminino. Rio de Janeiro,
Editora 34, 1999.
9
Idem, p.67.
10
S. B. de Holanda. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1982.
11
Idem, p. 107. O autor prossegue, em nota de rodapé: “Cumpre ainda acres-
centar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e
convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente,
sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial
quanto a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim
da esfera do íntimo, do familiar, do privado”.

294
verve
A “mulher cordial”: feminismo e subjetividade

12
Idem, 104. Veja-se M. Rago. “Sexualidade e identidade na historiografia
brasileira” in Maria Andrea Loyola (org.) A sexualidade nas Ciências Humanas.
Rio de Janeiro, Editora da UERJ,1998, pp. 175-200.
M. Foucault. História da sexualidade: o cuidado de si. vol. III, Rio de Janeiro,
13

Graal, 1985.
14
R. Sennett. O declínio do homem público. S. Paulo, Companhia das Letras, 1989.
15
F. Ortega. Genealogias da Amizade, São Paulo, Iluminuras, 2000, p. 161.
16
Braidotti. Op. cit.
17
Swain. Op. cit.
18
E. Badinter. XY, La identidad masculina. Barcelona, Editorial Norma, 1993.
S. Harding. Whose Science? Whose knowledge? Ithaca, New York, Cornell
19

University Press, 1991, p. 311.

295
6
2004

RESUMO

A atualidade do feminismo apresenta-se como pós-feminismo reve-


lando novas relações que são possíveis no interior deste movi-
mento. A emergência, no Brasil, de novas formas do feminino,
próximas do que Foucault chama de artes da existência, e que
interrogam a universalização da mulher como reação ou repetição
do homem.

Palavras-chave: feminismo, subjetividade, Foucault.

ABSTRACT

The contemporariness of feminism presents itself as a post-feminism,


which reveals new relations that can be developed inside this
social movement. The emergence, in Brazil, of new forms of feminism
related to Foucault’s arts of being. This perspective queries the
universalisation of woman as a reaction or repetition of man.

Key words: feminism, subjectivity, Foucault.

296
verve
Uniformidades e anarquia

uniformidades e anarquia

edson passetti*

Crianças indo para a escola uniformizadas, é uma


imagem que atravessa lembranças e o dia-a-dia. Cri-
anças uniformizadas entrando e saindo da escola,
aprendendo a obedecer, a formar uma identidade, com-
pondo um rebanho. Às vezes, dentre elas, a ovelha ne-
gra, o lobo. Uniformizadas desde pequenas, crescem
até se tornarem adultas, atravessando os esportes, as
fábricas e escritórios, laboratórios, hospitais, semi-
nários e conventos, prisões. Crianças, jovens e adul-
tos, uniformizados aprendem a trabalhar, a buscar a
cura do corpo ou do espírito e por quem cuide de suas
almas. Educados, eles sabem respeitar os castigos e
temem as penas aos delitos cometidos. Procuram ser
obedientes e responsáveis. Aguardam pelos pastores
que zelam pela permanência da uniformidade, pelo vo-
luntário assujeitamento ao superior de cada patamar
da hierarquia que consagra a soberania da autorida-

* Professor no Departamento de Política e no Programa de Estudos Pós-


Graduados em Ciências Sociais e Coordenador do Nu-Sol (Núcleo de
Sociabildade Libertária) da PUC/SP.

verve, 6: 299-318, 2004

299
6
2004

de central. Atuam em busca de direitos e querem me-


lhorar de vida.
Crianças indo para escolas sem uniformes, vagan-
do pelas ruas surpreendendo num furto ou assalto,
numa brincadeira circense nas esquinas com o se-
máforo fechado, também estão em nossa vida diária
transitando a pé, de ônibus, trem, lotação ou automó-
vel. Elas estão, escaparam ou foram expulsas da esco-
la. Aprenderam a obedecer de maneira diversa no in-
terior de uma educação pelo castigo. Umas, por ade-
são ou omissão, introjetaram valores disseminados por
adultos; outras, aprenderam a obedecer por meio de
sofrimentos físicos regulares aplicados ao corpo. Para
umas o castigo corporal ou moral é um dispositivo ter-
minal, a fronteira inevitável da eficaz educação fami-
liar e escolar; para outras o castigo físico é a expres-
são do quanto se é intolerável diante da ordem. De
ambos os lados, convivemos com realizações do casti-
go, como pedagogias que ensinam as crianças, na fa-
mília e nas escolas, a aprender a viver em sociedade,
zelando pela autoridade central. O superior deve ser
desejado e alcançado por meio do respeito às normas
e leis: é mantendo hierarquias e consolidando a au-
toridade central que se perpetua a saúde da socieda-
de, do país. A criança educada pelos valores superio-
res inicia e conclui sua vida perpetuando a era dos
servos voluntários!
Max Stirner1, no final da primeira metade do sécu-
lo XIX, mostra que a criança busca instintivamente
um objeto. Ela luta por ele, explicita sua força e, si-
multaneamente, restringe seu uso à aquisição do ob-
jeto. Conquistá-lo é o seu desejo e prazer. Não há jul-
gamento sobre esta disputa. O vencedor de hoje pode
ser um derrotado num instante seguinte, em que os
mesmos corpos disputam outro objeto. Trata-se de uma

300
verve
Uniformidades e anarquia

prática que inventa o guerreiro e evita a criação do


dominador e do seu subjugado. É uma luta entre cor-
pos como parte da vida isenta de defesa a um valor
superior. Entre crianças, a luta pelo objeto envolve a
força e o cessar da força num exercício descontínuo
que favorece o impedimento do vencedor contínuo e
da perpetuação da guerra. As regras móveis por elas
inventadas fazem com que cada uma se veja como
única, legisladora que se dispensa de representação.
Não sendo idênticas ou semelhantes rejeitam a cons-
tância da força física como elemento determinante; a
força é parte da vibração dos seus corpos. Não há cri-
ança maior ou mais forte fisicamente que consegui-
rá dominar as demais, pois a mobilidade das regras
favorece a inclusão ou a secessão, sem que isso traga
marcas que não sejam as da própria batalha. Aparta-
das dos valores superiores, na luta por um objeto, as
crianças evitam um sistema de dominação. Elas se
afirmam como guerreiras na luta e contornam as con-
dições para emergência da servidão. Constroem a vida
como jogos de crianças, como sabemos desde Heráclito.
Os jogos de forças inventados e que decorrem da
convivência com outras crianças fazem da busca pelo
objeto desejado um percurso prazeroso, no qual mui-
tas vezes o próprio objeto é substituído por outro. É
uma luta como jogo sem finalidade maior, sentido ou
meta que indiquem um apaziguamento dos instintos
pelo exercício de uma razão universal. Sob o comando
dos valores superiores dos adultos, a brincadeira de
guerra pela vida se transforma em guerra justa para
dominar a vida. Aos poucos, as artimanhas da razão
apartam os pequenos guerreiros para os educar como
futuros cidadãos, soldados, trabalhadores que recebem
ordens. Em lugar dos impulsos da força de cada um,
domina a soberania da palavra universal construindo

301
6
2004

os donos dos objetos, segundo juízos dos valores supe-


riores consagrados pelo sistema de recompensa e pu-
nição, caracterizando o ciclo da sociabilidade autori-
tária, no qual somos alvo da força de um superior e ao
mesmo tempo fazemos do outro o alvo de nossa força.
É aprender a obedecer por palavras, atos e castigos
para construir o outro como Eu. Nossas identidades
devem estar fundadas em semelhanças em direção a
uma formação universal benéfica ao indivíduo e à so-
ciedade, em sua defesa e como anteparo aos pais, aos
professores, ao Estado. Todos, sem distinção de san-
gue ou classe devem aprender a seguir seus superio-
res e mandar nos que estão abaixo, em nome do direi-
to, da religião, da impessoalidade, do egoísmo e do al-
truísmo, do individualismo e do coletivismo. Forma-se,
assim, uma sociabilidade bem demarcada por uma
naturalização do mando, na educação de cada um pela
punição como parte da tradição dos costumes. É pre-
ciso perpetuar a duplicidade súdito-soberano, uma tra-
dição na modernidade sob reforma constante. A moder-
nidade é a era do amor ao castigo, da boa educação, da
sapiente obediência, da desesperada busca por se tor-
nar adulto o mais rápido possível e da inevitável con-
dição material que exige que algumas crianças se tor-
nem adultos responsáveis em pouco tempo. Algumas
serão localizadas como perigosas, possíveis delinqüen-
tes, com comportamentos desviantes, anti-sociais,
marcadas, separadas e decifradas em nome da boa
sociedade a ser preservada.
A educação familiar e escolar voltadas para forma-
ção humanista e de inserção futura no mercado de
trabalho moldam os valores superiores provenientes
de autoridades centralizadas fortalecendo a utopia de
adultos por meio da mobilidade social. Aos poucos, a
força inicial de cada criança vai sendo domesticada,

302
verve
Uniformidades e anarquia

em nome do consenso e do diálogo, por condutas ori-


entadas por idéias abstratas, educando-a para a for-
mação segundo a moderna utilidade. Trata-se de um
processo que aciona a força física ou moral do pai, da
mãe, dos parentes, preceptor, professor, clérigo ou leigo
responsável: a força do castigo educa, engrandece a
moral e baliza os devidos comportamentos. Faz con-
cretizar o cidadão ético responsável.
No trajeto para a vida adulta, a adolescência é para
cada única criança sua experiência trágica. É o mo-
mento que exige a abdicação definitiva da luta pelo
objeto para se entregar ao culto aos valores maiores,
assumindo uma identidade de assemelhado, um sol-
dado para a guerra justa. Os que se revoltam contra o
modelo da criança como miniaturização do adulto e
sua correlata imagem de jovem responsável, muitas
vezes são tidos como problemáticos, doentes, anormais
e mesmo precoces marginais, necessitando de trata-
mentos que vão do atendimento psicológico particular
à internação em instituições repressoras. A juventu-
de, segundo Max Stirner, é um momento decisivo para
cada único, diante da imposição racional universal
dos valores pretendendo docilizar a contundente exis-
tência dos indomáveis instintos. É o instante em que
a sociedade nos exige comuns: a tragédia atinge cada
jovem em qualquer classe social. É preciso ser egoís-
ta alerta Stirner diante deste abstrato bem coletivo
ou social defendido pelos crentes na superioridade te-
ológica e racional que consagra a importância do Es-
tado. A juventude sinaliza o momento esperado de cada
um diante da adesão à razão superior, sua crisma à
adesão, ao reconhecimento que o superior nos traz
paz por meio da domesticação dos inferiores instin-
tos. Devemos estar aptos para a convivência. É a oni-
potência da razão diante da inevitabilidade do sexo,

303
6
2004

do incontrolável, do indomesticável, do inominável,


que localiza, confina, separa e expõe o anômico e o
perigoso.
De maneira sutil ou brusca a adolescência é com-
posta de instantes que explicitam os domínios e as
resistências, o furor e a calmaria, as paixões e as du-
rezas, os múltiplos amigos, a potência do sexo, o tesão
e a tensão razão/instinto jamais solucionada e se vê
impelida a transformar a tragédia em ideal ascético.
Devem desaparecer a criança, o jovem e o guerreiro,
para aparecer o soldado que morre pelo povo, o bata-
lhador e responsável cidadão contemporâneo.
Neste momento acontece o alinhavo dos recortes
de cada existência. Para cada um resta uma definiti-
va chance num dramático ciclo em busca da felicida-
de. Jovens das diversas classes sociais, em especial
os miseráveis, ficam expostos a prisões e à morte pre-
coce em nome da boa formação de adolescentes, o fu-
turo de uma nação, do povo, da propriedade.
A população se tornou propriedade do Estado mo-
derno que dela dispõe segundo os fluxos dos momen-
tos, sob a forma de biopolítica. Uma lei geral se esta-
belece, a lei do castigo e das moderações e tolerânci-
as, na qual cada um deve aprender que o mundo é dos
mais fortes, dos mais preparados, dos mais inteligen-
tes. O Estado espera o melhor de cada potencial cida-
dão. Por isso lhes garante direitos e ama seus devotos.
É ameaçando punir e vigiando que se previne a socie-
dade do perigo, educam-se os mais fracos e se cuida
humanitariamente dos desiguais. Aos que extrapolam,
a prisão, mesmo sendo um fracasso e transformada
de ideal da reeducação em depósito de corpos indese-
jáveis, permanece como uma eficaz imagem do limi-
te da punição2.

304
verve
Uniformidades e anarquia

Diante das uniformidades e continuidades apresen-


tadas por família, escola e leis, as autoridades superi-
ores e suas misericordiosas sentinelas acham-se ca-
pazes de educar cada criança ou jovem em nome do
UM (deus, rei, tirano, raça, senhor, povo, proletaria-
do), o ápice da centralidade governando os outros e
normalizando comportamentos pacificadores de ins-
tintos negativos. Crianças, jovens, índios, negros,
mulheres, velhos, operários, escriturários, foram sen-
do apanhados gradativamente como objeto de investi-
gação científica, de normalizações, objeto de investi-
mento da razão em nome da liberdade e autonomia de
cada sujeito livre que admite e engrandece sua con-
dição de súdito.
Crianças sorridentes e coradas na janela lateral
de um automóvel; crianças atordoadas e atordoantes
numa perua escolar, crianças de olhos arregalados nos
ônibus, trem e metrô; jovens cabisbaixos bem vesti-
dos, em bandos promovendo algaravias, jovens cabis-
baixos magros, surrados, em bandos promovendo fur-
tos e assaltos; eles são expressões inconciliáveis com
a civilidade que se pretende eterna, uniformizadora
por meio do castigo e que pode dispor da vida de quem
discorda da construção de uniforme como um bem uni-
versal.
A cultura do castigo, diante da desigualdade natu-
ralizada e sob perspectiva de soluções sociais, perpe-
tua sua continuidade por meio de reformas que vão do
assistencialismo à compensação, difundindo o desejo
reformista. Para suprir a falta é preciso repor, com-
pletar, acomodar, ajustar medidas, orçamentos e idéi-
as. Modificam-se leis, certos delitos são suprimidos e
substituídos por outros a serem penalizados como se
houvesse uma ontologia do crime.

305
6
2004

Crianças e jovens devem aprender a respeitar; esta


é a lei da autoridade superior, da uniformidade a qual-
quer instante e sob quaisquer circunstâncias. Dian-
te desta continuidade, atuam as descontinuidades nas
honrosas lutas inventadas pelos pequenos guerreiros
pelos seus objetos, com suas regras maleáveis de con-
vivência, o desconhecimento do culto ao UM, a vida
na experiência livre das conservações e de suas uto-
pias. Para as crianças inexiste a sociedade, apenas a
associação livre de pessoas únicas e guerreiras.
Não soa estranho que Max Stirner tenha respondi-
do de imediato tanto contra o Estado moderno quanto
à sua substituição pela Sociedade como fizeram os so-
cialistas — criticando abertamente a metafísica do
anarquista Proudhon tomado por ele como liberal so-
cial — com a noção de associação de únicos, uma as-
sociação de amigos, podemos completar, lembrando ao
lado com Nietzsche, que o amigo é o melhor inimigo:
aqui não há leis fixas, constantes, imutáveis. Aban-
donando a maioridade, o universalismo e a uniformi-
dade sem culpas, Stirner reconhece, instintivamen-
te, que diante da relação maior-menor é preferível ser
menor sem almejar maioridades 3 e pensar criança
diante dos idealismos e dos materialismos adultos
universalistas que massacram os jovens iracundos.

Todos, alguns, muitos e uns


A partir de Etienne de la Boétie, uma série de au-
tores problematizam o soberano não só como o gover-
no do Um. Dimensionam a condição de servidão vo-
luntária do súdito na qual se prefere aderir ao sobera-
no, renunciando a si mesmo. Diante da uniformidade
política fundada no exercício legítimo da autoridade
central, a revolta de alguém, contra a condição na qual

306
verve
Uniformidades e anarquia

o superior governa (rei, aristocracia ou povo) e o re-


banho (de escravos ou cidadãos) se conforma, inventa
uma experiência de vida na descontinuidade. São re-
voltas do único contra o UM, de grupos contra o sobe-
rano, de classe contra o Estado (autoritário ou demo-
crático), enfim, desde a modernidade, querendo um
príncipe, seguindo Maquiavel, ou um sujeito livre de
soberano, como sugeriu La Boétie no século XVI e
anarquistas no XIX, não há regime, de um rei, de al-
guns aristocratas ou vanguardas, de muitos cidadãos
livres no Estado, de todos os socialistas, portanto de
um, alguns, muitos e todos, que não esteja abalado
pela revolta de cada único diante da autoridade fun-
dada na tradição, na força superior, no indivíduo, no
coletivo.
O regime de todos é sinônimo de tirania (todas as
vontades são dali dirigidas pelo exercício arbitrário de
falar em nome dos outros), de monarquia (para frente
e para atrás da adesão hobbesiana à conservação da
espécie) ou ausência de regime (a utopia socialista
por meio da tomada do Estado). Fundamentam-se na
crença numa exclusiva autoridade central que pre-
serva ou inova, que pretende eternizar-se ou ser meio
para uma infinita condição evolutiva superior. Por
mais que se esforcem os teóricos e os governantes,
convencendo ou punindo, reeducando ou matando, fa-
zem do regime de todos uma utopia, um consolo.
Os aristocratas, apesar da cantada decadência, se-
duziram muitos estudiosos e foram referências his-
tóricas às continuidades das dominações políticas,
como no evento capitalismo/burguesia. Os intérpre-
tes universalistas buscaram no agrupamento forma-
do pelos especiais (pela tradição, sangue, propriedade
ou razão verdadeira) justificativas para necessidades
e domínios superiores fundados em legitimidades a

307
6
2004

governos que oscilaram entre aristocracia e oligar-


quia, e na razão moderna com a soberania popular,
entre elites ou vanguardas. O governo de alguns como
o aristocrático (positivo) possui seu reverso, o oligár-
quico, formando governos de minorias numéricas para
minorias. Entretanto, no governo democrático em que
a autoridade emana do povo como representação de
muitos, forma-se uma maioria a ser governada por al-
guns, as elites.
Sabe-se pela teoria dos regimes políticos que os ti-
pos são idealizações e que acontecem na história de
maneira mista. Eles apenas enfatizam a situação de
força que prepondera. Do anarquista Pierre-Joseph
Proudhon ao liberal Max Weber, sabemos que os estu-
dos dos regimes são mais contundentes quando ao lado
da tipologia como instrumento de análise se atenta
para a impossibilidade de encontrar na história o tipo
ideal. Proudhon sinalizou para o descarte de qualquer
idealização ainda que inspirada na realidade, enquan-
to Weber lançou mão da idealização para atingir a com-
preensão na história na qual a inevitável relação en-
tre autoridade e liberdade se ajusta regulamentada
pelo Estado. Proudhon também defendeu, no século an-
terior a Weber, que a referida relação é indissociável,
mas indicou que segundo a predominância de um dos
princípios, no caso o da liberdade sobre o da autorida-
de, a existência ultrapassa a inevitabilidade de Esta-
do e da centralidade de poder, afirmando, então, uma
descontinuidade na uniformidade. De maneira que,
se para Weber a democracia parlametar é o ápice da
razão moderna, inclusive em função dos fenômenos
de massa, para Proudhon a democracia moderna é a
condição em trânsito para o regime da liberdade, da
Anarquia. Entende-se desta maneira porque os anar-
quistas são simpáticos à idéia de democracia e críti-

308
verve
Uniformidades e anarquia

cos à democracia representativa como seqüestro da


vontade pessoal. Compreende-se, também, que o alvo
anarquista é o liberalismo e o regime da propriedade.
Para os anarquistas, o socialismo estatal como si-
nônimo de comunismo é o regime de mais autoridade,
é ditatorial e efêmero. Ainda que anarquistas e socia-
listas estatistas seguidores de Marx estejam no mes-
mo âmbito do discurso igualitário e socialista, distin-
guem-se radicalmente. O comunismo para Proudhon é
potencialização da propriedade patriarcal e da tirania,
jamais levando à sociedade igualitária. Os anarquis-
tas, portanto, nada têm a dizer a respeito das lutas entre
as vanguardas esclarecidas do socialismo e as eficien-
tes elites liberais. Weber e Lenin duelaram no século
XX pela supremacia de uma sobre a outra, segundo a
defesa da propriedade capitalista ou socialista e suas
efetivas produtividades. Pouco importam as vitórias
proclamadas pelos seguidores de um ou outro lado. Elas
permaneceram efêmeras e circunstanciais. Cada vi-
tória deu a um ou outro seu momento de glória e man-
teve intacta a uniformidade do governo de alguns (eli-
te ou vanguarda), num governo de muitos (a democra-
cia) ou de todos (socialismo).
Com La Boétie, nos primórdios modernos, e depois,
desde o século XIX, com Proudhon, os libertários apa-
receram para discorrer sobre a possibilidade da soci-
edade sem Estado. Isso não estava mais restrito ao
âmbito das idealizadas sociedades primitivas, dos
nomadismos do passado e das utopias. No momento
presente ou no futuro, segundo a vontade de pessoas
livres, pode-se falar e fazer anarquia. O paraíso, que
estava no céu e na Terra desde os liberais, e na Terra
e não mais no céu com os socialistas estatistas, dei-
xa de ser a metáfora preferencial. O anarquismo de
Proudhon tanto quanto a reviravolta de Stirner sina-

309
6
2004

lizam para a vida livre sem que uma revolução deter-


minista e providencial aconteça para fundar igualda-
des, sem que uma razão superior nos conduza e in-
terprete: a vontade de igualdade sucede a qualquer
instante.
A razão moderna e científica se afirmou apoderando-
se da majestade teológica para se mostrar capaz de do-
mesticar os instintos. Foi o atestado de maioridade do
homem livre diante das religiões e dos comandantes
que evitavam auscultar as pulsações dos seres vivos.
Expressou o universal terreno que liberta cada um da
servidão material ou política, instituiu a lei e a repre-
sentação como maneiras de compreensão do todo (o Es-
tado) por cada parte (o indivíduo e as instituições), cola-
borando para a primazia do governo das partes repre-
sentadas diante da ameaça da ditadura do todo onipotente
e consciente (Estado socialista, Estado fascista e regi-
mes ditatoriais em geral). A razão moderna não procu-
rou suprimir arbitrariamente o universal teológico.
Mostraram isso Marx e Proudhon, enfatizando a compo-
sição direito universal e religião livre como partes
indissociáveis na defesa da propriedade privada afir-
mando a inevitável desigualdade e formalizando a igual-
dade política ou emancipação política4. O Estado tanto
quanto as religiões estavam preservados. Um como for-
ma hierárquica de continuação da autoridade centrali-
zada, as outras livres da tirania do domínio de uma reli-
gião soberana. A libertação das verdades propiciou, ao
chamado mundo livre, as múltiplas formas combinadas
de governos com ou sem associação com religiões. Nos
termos do século XIX, tanta vontade de verdade não con-
teve socialistas e anarquistas que fundaram as verda-
des da emancipação humana como estágio seguinte a
ser alcançado diante da emancipação política que se con-
cretizava.

310
verve
Uniformidades e anarquia

Tanta vontade de saber fez irromper na continui-


dade estatal (de liberais e conservadores) ou na sua
descontinuidade como meio (dos socialistas, conquis-
tando o Estado para levar à emancipação humana por
meio do planejamento da produção organizado cienti-
ficamente pelas vanguardas) ou fim (dos anarquistas,
abolindo simultaneamente propriedade e Estado) bri-
lhantes conclusões como: o capitalismo é eterno por-
que não há uma determinista lei socialista da histó-
ria ou ainda, que inevitabilidades científicas sinali-
zam para a sociedade igualitária. As utopias de cada
um e para todos permanecem sendo seus referidos
consolos, sem dúvida, com esplendor menos reluzen-
te que os religiosos.
Do ponto de vista político, depois de idas e vindas, a
democracia passou a ser reconhecida como o melhor
dos regimes. No passado defendida pelos liberais, res-
saltando suas imperfeições (dentre outras: o povo
transformado em massa, a ditadura da opinião públi-
ca, o desgaste da representação, as inevitáveis cor-
rupções no Estado, as morosidades judiciárias, a es-
calada da violência urbana e a inevitável miséria). No
presente advogada pelos liberais, conservadores e ex-
socialistas ou neosocialistas, formando, agora, uma
calorosa recepção aos antigos e abomináveis reformis-
tas sociais-democratas. E assim, com o fim do socia-
lismo estatista, enquanto pretensão à hegemonia pla-
netária, a democracia se transformou em via de re-
gra no regime para todos.
Seja pela adesão dos neosocialistas, pelo reconhe-
cimento dos anarquistas para atingir a sociedade igua-
litária, pelos liberais de ontem e hoje e até os conser-
vadores, a democracia passou a ser inquestionável di-
ante de qualquer adjetivo que acompanhe o subs-
tantivo. Se assim for, estamos diante de uma encru-

311
6
2004

zilhada já conhecida, um eterno retorno ao mesmo


Estado ou não-Estado, uma oposição entre absolutos?
O indivíduo moderno rompeu com o absoluto divi-
no, sem com isso abandonar a religião. Novas religi-
ões da razão apareceram, incluindo a da consciência
superior chefiada pelos sacerdotes cientistas da soci-
edade. O rompimento formal com o divino não promo-
veu o rompimento com o absoluto, com as religiões,
com a cultura da hierarquia. A oposição entre a razão
moderna e a teologia constitui-se num novo artifício
no interior do discurso hierarquizador. Da mesma
maneira, a oposição entre as verdades Estado e não-
Estado não ultrapassou a obviedade em opor Estado a
Sociedade. O discurso socialista (estatista ou anar-
quista) contrapôs Sociedade (atingida após a tomada
violenta do Estado pelo partido da revolução e sua van-
guarda científica, ou pela abolição do Estado por meio
de revolução violenta ou pela federalização política e
mutualismo econômico entre as associações) a Esta-
do, e nesta inversão forjou suas utopias. Da ajuda es-
tatal à ajuda mútua, os socialistas tomando ou abo-
lindo o Estado, não conseguiram pensar senão noutra
Sociedade, nova fusão entre razão individual e o cole-
tivo, outro absoluto (onde predominou indivíduo, ago-
ra prevalece coletivo). Como críticos da metafísica que
mostravam afinidades entre Estado moderno e reli-
gião, por suas próprias vias tortas, também afirma-
ram outro absoluto, nova continuidade, inventaram
uma nova religião para todos fundindo cristianismo e
humanismo. É muita utopia para pouco incômodo.
Fim de século XX: diante dos egoísmos burgueses,
os altruísmos socialistas estatistas se dissiparam e
ambos se combinaram no ajuste por meio de uma jus-
tiça social escorada na filantropia privada e pública,
fazendo crer numa eternização do capitalismo, do Es-

312
verve
Uniformidades e anarquia

tado, da democracia, da vontade de paz para outras


guerras, dos direitos perante a inevitável miséria e
das distribuições da renda à merenda e ao uniforme
da criança escolarizada. Colocaram-se eqüidistantes
quanto ao conceito que abarca tal situação: aos que
defendem a globalização, os que lutam por uma outra
globalização. Outra vez se dispuseram em opostos po-
sitivos e negativos, girando em torno dos mesmos ele-
mentos. Os anarquistas, por seu lado, após terem sido
decretados mortos com o final da Guerra Civil Espa-
nhola e ressuscitados depois de 1968, voltaram aos
fluxos contemporâneos da política para colaborarem
com o desassossego.
A uniformidade de Estado convive até hoje com o
incômodo que foi sua recriação como uniformidade de
Sociedade. Querer fazer crer que isso acabou e que o
inevitável se instituiu com o capitalismo e a demo-
cracia em escala evolutiva até atingir os Estados ori-
entais, fundados em tradicionalismos superáveis pelo
convencimento ou pela belicosidade, como se diz en-
tre pessoas comuns: é fazer água. A democracia, pa-
radoxalmente, é a comodidade e o incômodo do capita-
lismo atual. É um obstáculo aos impérios e às suas
expansões, e um artifício circunstancial vivenciado
por socialistas aguardando o momento exato para dar
o bote e realizar a verdadeira justiça social, desarti-
culando, progressivamente, a propriedade privada. É
uma realidade propícia para os anarquistas inventa-
rem suas associações.
O regime socialista, o governo de todos pela repre-
sentação do partido e sua vanguarda, cedeu o lugar ao
governo de muitos, a democracia, que representa a
todos e que governa por meio de alguns (as elites eco-
nômicas, sociais, políticas e militares). Nesta supos-
ta descontinuidade o indivíduo livre e autônomo per-

313
6
2004

manece sendo uma utopia, um ideal para o qual nos


destinamos, o Bem que devemos almejar. Eu e você
morremos, então, felizes, com a consciência tranqüi-
la, sabendo que no futuro outros viverão este ideal.
Disseram, no século XIX, Proudhon, Marx e
Nietzsche: a democracia será a religião do rebanho
no próximo século. Proudhon procurou libertar-se do
absoluto, das substâncias e causas, dos sobrenaturais,
das idealizações e teorias, voltando-se para análises
por meio do método serial, investindo em estudar as
séries autoritárias e libertárias, em afirmar que uma
revolução nada mais é do que reposição da autoridade
central. Marx mostrou como a democracia faz viver o
domínio burguês, a forma ideal do regime para Estado
capitalista por fazer crer na igualdade formal que le-
gitima a desigualdade, difundindo a universalidade da
lei e do direito. Nietzsche procurou mostrar como o
cristianismo se transformou em democracia, e pon-
to5.
Todos, muitos e alguns... Etienne de La Boétie, com
seu escrito de jovem, O discurso da servidão voluntá-
ria, para os jovens, dizia que qualquer regime do Um é
sempre uma tirania. Onde ficaram os anarquismos?
Os anarquismos são criações de anarquistas que vi-
vem a Anarquia, um regime de liberdade. Não há o
anarquismo como se propaga, mas anarquismos, di-
ferentes, coexistindo, inventando a vida. Os anarquis-
tas não são apenas agitadores de rua, bem humorados
incômodos aos homens de governo6, agentes do pas-
sado, grandes homens responsáveis pelo início do mo-
vimento operário no Brasil, os iludidos integrantes de
movimentos pré-políticos, espectros do passado... Não
tentem matá-los em nome do saber ou da prática mais
justa. Eles sempre voltam, porque nunca saíram de
circulação... Expressam a inocuidade das tiranias. Con-

314
verve
Uniformidades e anarquia

tra eles não há vacina, desinfetante, consolo ou força


física. A liberação, quando prevalece diante da liber-
tação, sinaliza para experiências de vida e os anar-
quismos, livres das suas sentinelas que guardam os
escritos dos principais formuladores como livros sa-
grados, a qualquer momento são invenções libera-
doras. Traduzindo os ensinamentos em cultos, são
agentes libertadores em nome do absoluto Sociedade
igualitária, e quer queiram ou não, inscritos na uni-
formidade, muitas vezes pretendendo substituir os
sacerdotes, os cientistas e os professores universitá-
rios, com suas singelas devoções. A atualidade dos
anarquismos não está no seu passado, mas na sua
interpelação no presente.
Não há um anarquismo correto ou anarquistas mais
anarquistas que outros. Diferentes, eles se associam
para inventar a vida, coexistindo, inventando éticas
dos amigos como abrigos precários. Mesmo entre os
que esperam pela Sociedade, o que distingue os anar-
quistas dos demais socialistas é que eles inventam
associações para a vida no presente. Podem estar em
movimentos de contestação, mas não é essa a atitu-
de que os faz anarquistas. Nesta guerra pela existên-
cia são guerreiros que não objetivam subalternizar
os outros. Uns não pretendem ser mais verdadeiros
que outros. Formam associações, quiçá federações fun-
dadas na ajuda mútua, em associabilidades libertárias.
A anarquista Emma Goldman, no seu Living my life,
disse que os anarquistas são aristocratas, como
Nietzsche. Não de sangue ou dinheiro, mas como o fi-
lósofo, de inovação e poesia. Aristocrata sem o ser,
experimentando ser criança, vai formando uma asso-
ciação não mais de alguns, incluindo a vanguarda, mas
apenas de uns. Nem longe nem perto do mundo novo
ou da utopia, sem tempo para o tempo e sem perda de

315
6
2004

tempo, no espaço de agora, nestes outros espaços, nesta


urgente ágora heterotópica.
Um anarquismo atual pretende o pensar criança,
analítico, buscando objetos, força inventiva, como as-
sociação de únicos, livre do Eu me governando, atin-
gindo a Sociedade como alvo. Não pretende ser identi-
ficado. Está vivo e único. Está dentro e fora dos anar-
quismos. Estamos todos vivos. Somos uns incômodos.
Jovens universitários sentados em fileiras, dia após
dia ouvindo, opinando e seguindo seus mestres. Isto
não é uma lembrança!

Notas
1
M. Stirner. El único y su propiedad. México, Juan Pablos Editor, 1976; O falso
princípio de nossa educação. São Paulo, Imaginário, 2000; “Algumas observações
provisórias a respeito do Estado fundado no amor”. São Paulo, Verve, 2002, nº
1, pp. 13-21.
2
“O sistema penitenciário, quer dizer, o sistema que consiste em internar
pessoas, sob uma fiscalização especial, em estabelecimentos fechados, até que
elas se emendem — isso é ao menos o que se supõe —, fracassou totalmente.
Esse sistema faz parte de um sistema mais vasto e mais complexo que é, se o
senhor quiser, o sistema punitivo: as crianças são punidas, os alunos são puni-
dos, os operários são punidos, os soldados são punidos. Enfim, se é punido
durante toda a vida”. M. Foucault. “Prisões e revoltas nas prisões (1973)” in
M. B. Motta (org.) Estratégia, poder-saber, Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro/São
Paulo, 2003, p. 65.
3
G. Deleuze. Para uma literatura menor. Falando de Kafka, também, Georges
Bataille (A literatura e o mal. Porto Alegre, LP&M Editores, 1989, pp. 129-148)
o vê como autor que não teme a criança diante da autoridade do pai, a autori-
dade eficaz: “você só pode tratar uma criança conforme sua própria natureza,
com energia, ruído e cólera...” (apud Bataille, p. 135), reconhecendo sua própria
crueldade, acrescentaria Antonin Artaud. Os comunistas, segundo Bataille,
tendem a ver Kafka como autor menor (criança) em relação ao adulto revoluci-
onário comunista, o ápice da razão, por abandonar o leitor à sua própria con-
clusão. Kafka é menor como literatura que não pretende maioridade e literatu-
ra como infância reencontrada, como pretende Bataille. “Diante da necessida-

316
verve
Uniformidades e anarquia

de da ação, impõe-se a honestidade de Kafka, que não concedia direito algum”


(Bataille, idem, p. 10).
4
“O direito é a política: no fundo foi a burguesia que, por razões políticas e
sobre a base de seu poder político, definiu os princípios do que se chama
direito”. M. Foucault, idem, p. 142.
5
P.-J. Proudhon.O princípio federativo. São Paulo, Imaginário/Nu-Sol, 2000; K.
Marx. A questão judaica. São Paulo, Editora Moraes, s/d; F. Nietzsche. Genealogia
da moral. Lisboa, Guimarães Editores, 1992.
6
Por encontrar-nos na PUC-SP, gostaria de lembrar, brevemente, dois episódi-
os. Cena 1: Em 1977, as forças repressoras do Estado invadiram a PUC-SP e
espancaram estudantes que se reuniam para retomar a antiga UNE – União
Nacional dos Estudantes. Cena 2: Mais tarde, estas mesmas forças, incendia-
ram o TUCA (fato jamais provado na justiça). Cena 3: Um ano após estes
acontecimentos, estudantes anarquistas que realizavam a autogestão na sua
associação visitam o Coronel Erasmo Dias, em seu gabinete e o presenteiam
com bandejas contendo bombas de chocolate. Cena 4: 2003, Fórum Social Mun-
dial, PUC-RS, uma jovem do Confeiteiros sem fronteiras lança uma torta no rosto
do presidente de um partido político, sinalizando ser a pessoa parte dos Três
patetas, seriado estadunidense que mostra estapafúrdias relações vividas pelos
personagens. Cena Final: Nem o Cel. Erasmo Dias, nem o presidente do refe-
rido partido apreciaram os gestos. Ambos alegaram, nas duas datas, que vivía-
mos numa democracia plena.

317
6
2004

RESUMO

Não há nada mais cômodo do que o regime da uniformidade. O


incômodo como uma criança é a prática do desassossego, uma
experimentação de liberdade.

Palavras-chave: anarquistas, liberdade, incômodo.

ABSTRACT

There is nothing more accommodated than the regime of uniformity.


The annoyance, like the child, is the practice of unrest, an
experimentation of liberty.

Keywords: anarchists, freedom, annoyance.

318
6
2004

320
verve
Tecnologias de si

tecnologias de si, 19821

michel foucault

I
Quando comecei a estudar as regras, os deveres e as
proibições da sexualidade, assim como as interdições e
restrições associadas a ela, eu não estava apenas preo-
cupado com as ações permitidas ou proibidas, mas com
os sentimentos que estavam sendo representados, os
pensamentos, os desejos experimentados, as incursões
para buscar em si qualquer sentimento oculto, qualquer
movimento da alma, qualquer desejo disfarçado sob for-
mas ilusórias. Há uma diferença significativa entre a
interdição da sexualidade e outras formas de interdi-
ção. Diferente de outras interdições, as sexuais estão
constantemente ligadas à obrigação de dizer a verdade
sobre si.
Dois fatos podem ser contrapostos: primeiro que a
confissão desempenhou um importante papel nas ins-
tituições penais e religiosas, para todos os pecados, não
apenas para o sexo. Contudo, a tarefa de analisar o de-
sejo sexual de alguém é sempre mais importante do que
analisar qualquer outro tipo de pecado.

verve, 6: 321-360, 2004

321
6
2004

Eu também estou ciente da segunda contestação: a


de que o comportamento sexual, mais do que qualquer
outro, foi submetido a severas regras do segredo, da de-
cência e da modéstia, de tal modo que a sexualidade
está relacionada, de um modo singular e complexo, à
proibição verbal e à obrigação de dizer a verdade, de es-
conder aquilo que se faz e de decifrar quem se é.
A associação da proibição com o forte estímulo a falar
é uma característica constante da nossa cultura. O tema
da renúncia à carne estava ligado à confissão do monge
ao abade, dizendo a este tudo o que aquele tinha em
mente.
Eu concebi um projeto estranho: não o estudo da evo-
lução do comportamento sexual, mas a projeção de uma
história do elo entre a obrigação em dizer a verdade e as
proibições sobre a sexualidade. Eu perguntei: como o
sujeito tinha sido forçado a decifrar a si mesmo em re-
lação ao que era proibido? O que está em questão é a
relação entre ascetismo e verdade.
Max Weber formulou a questão: se alguém pretende
comportar-se racionalmente e regular a ação de outro a
partir de princípios verdadeiros, qual parte de si mesmo
ele deve renunciar? Qual é o preço ascético da razão? A
que tipo de ascetismo alguém deve se submeter? Eu for-
mulei a questão oposta: como algumas formas de inter-
dição demandaram certos tipos de conhecimento sobre
si? O que alguém deve saber sobre si para que esteja
disposto a renunciar a qualquer coisa?
Assim, cheguei à hermenêutica das tecnologias de
si na prática pagã e no início do cristianismo. Encontrei
algumas dificuldades neste estudo porque estas práti-
cas não são tão conhecidas. Em primeiro lugar, o cristi-
anismo sempre esteve mais preocupado com a história
de suas próprias crenças do que com a história das prá-

322
verve
Tecnologias de si

ticas reais. Segundo, tal hermenêutica nunca foi orga-


nizada em um corpo doutrinário como a hermenêutica
textual. Terceiro, a hermenêutica de si tem sido con-
fundida com as tecnologias da alma — concupiscência,
pecado, e desgraça. Quarto, uma hermenêutica de si
tem sido difundida na cultura ocidental por meio de di-
versos canais e integrada a várias formas de atitude e
experiência, o que tornou difícil isolá-la e separá-la das
nossas próprias experiências espontâneas.

Contexto do estudo
Meu objetivo por mais de vinte anos tem sido esboçar
uma história das diferentes maneiras com que os indiví-
duos desenvolvem conhecimentos sobre eles mesmos em
nossa cultura: economia, biologia, psiquiatria, medicina
e penologia. A questão principal não é aceitar ingenua-
mente esse conhecimento, mas analisar essas denomi-
nadas ciências como “jogos de verdade” muito específi-
cos, relacionados a técnicas particulares que os seres
humanos utilizam para entenderem a si próprios.
Como contexto, devemos entender que há quatro gru-
pos principais de “tecnologias”, cada um deles uma ma-
triz de razão prática: (1) tecnologias de produção, que
permitem produzir, transformar ou manipular as coi-
sas; (2) tecnologias dos sistemas de signos, que permi-
tem utilizar signos, sentidos, símbolos ou significação;
(3) tecnologias de poder, que determinam a conduta dos
indivíduos e os submetem a certos fins ou dominação,
objetivando o sujeito; (4) tecnologias de si, que permi-
tem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou
com a ajuda de outros, um certo número de operações
em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta
e modo de ser, de modo a transformá-los com o objetivo

323
6
2004

de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sa-


bedoria, perfeição ou imortalidade.
Estes quatro tipos de tecnologia dificilmente operam
separadamente, apesar de cada uma delas estar as-
sociada a certa forma de dominação. Cada um implica
certos modos de treinamento e modificação dos indiví-
duos, não apenas no sentido óbvio de aquisição de cer-
tas habilidades, mas também de aquisição de certas
atitudes. Gostaria de mostrar tanto sua especifi-
cidade como sua interação constante. Por exemplo,
pode-se ver a relação entre a manipulação das coisas
e a dominação em O capital, de Karl Marx, em que cada
técnica de produção requer modificação na conduta in-
dividual — não apenas de habilidades, mas de atitu-
des.
As duas primeiras tecnologias, geralmente, são uti-
lizadas no estudo das ciências e da lingüística. São as
últimas duas, as tecnologias de dominação e de si, que
mais me chamaram atenção. Eu tentei construir uma
história da organização do conhecimento relativo tan-
to à dominação quanto a si mesmo. Por exemplo, eu
estudei a loucura não em termos do critério das ciên-
cias formais, mas para demonstrar como um tipo de
gerenciamento dos indivíduos, dentro e fora de asilos,
tornou-se possível por esse estranho discurso. Esse con-
tato entre as tecnologias de dominação sobre os outros
e as tecnologias de si, eu chamo de governamentali-
dade.
Talvez eu tenha insistido demasiadamente na tecno-
logia de dominação e poder. Estou cada vez mais inte-
ressado na interação entre si e os outros, e nas
tecnologias de dominação individual, a história de como
um indivíduo age sobre si mesmo, na tecnologia de si.

324
verve
Tecnologias de si

O desenvolvimento das tecnologias de si


Pretendo esboçar o desenvolvimento da hermenêutica
de si em dois contextos diferentes, historicamente con-
tíguos: (1) a filosofia greco-romana nos primeiros dois
séculos d.C. do início do império romano e (2) a espiritu-
alidade cristã e os princípios monásticos desenvolvidos
nos quarto e quinto séculos do final do Império Romano.
Ademais, eu pretendo discutir a questão não apenas
teoricamente, mas em relação a um conjunto de práti-
cas da antiguidade tardia. Essas práticas foram consti-
tuídas em grego como epimeleisthai sautou, “cuidar de
si”, “o cuidado de si”, “preocupar-se, cuidar de si mes-
mo”.
O preceito “preocupar-se consigo mesmo” era, para
os gregos, um dos mais importantes princípios das cida-
des, uma das principais regras para as condutas sociais
e individuais, e para a arte da vida. Esta noção está hoje
para nós obscura e enfraquecida. Quando alguém é ques-
tionado “qual é o princípio mais importante na filosofia
antiga?” A resposta imediata não é “cuidar de si”, mas o
princípio délfico gnothi sauton (“conhece-te a ti mesmo”).
Talvez a nossa tradição filosófica tenha enfatizado
em demasia o último e esquecido do primeiro. O princí-
pio délfico não era um princípio abstrato acerca da vida;
era um conselho técnico, uma regra que deveria ser
seguida para a consulta ao oráculo. “Conhece-te a ti
mesmo” queria dizer “não se considere um deus”. Ou-
tros estudiosos sugerem que isso queria dizer “esteja
ciente do que realmente pergunta quando consultar o
oráculo”.
Nos textos gregos e romanos, a obrigação de conhe-
cer a si mesmo esteve sempre associada ao outro prin-
cípio, o de cuidar de si. E foi este princípio que colocou a
máxima délfica em operação. Está implícito em toda

325
6
2004

cultura grega e romana e tem sido explícito desde


Alcibiades I, de Platão. Nos diálogos socráticos, em
Xenofonte, Hipócrates e na tradição neoplatônica de
Albinus em diante, o indivíduo deveria cuidar de si. O
indivíduo deveria ocupar-se de si antes que o princípio
délfico entrasse em ação. Havia uma subordinação do
segundo princípio em relação ao primeiro. Eu tenho três
ou quatro exemplos disso.
Na Apology, 29e, de Platão, Sócrates se apresenta aos
juízes como um mestre de epimeleia heautou. Vós estais
“envergonhados de preocuparem-se em obter riqueza,
reputação e honra”, ele lhes disse, mas não vos ocupais
convosco, ou seja, com “sabedoria, verdade e a perfei-
ção da alma”. Ele, por sua vez, vela pelos cidadãos asse-
gurando-se para que se ocupem deles mesmos.
Sócrates diz três coisas importantes a respeito desse
convite a outros para que se ocupem de si mesmos: (1)
sua missão lhe foi conferida pelos deuses, e ele não a
abandonará até seu último suspiro; (2) para essa mis-
são, ele não exige nenhuma recompensa; ele é desinte-
ressado; ele o faz por benevolência; (3) sua missão é útil
para a cidade — mais útil do que a vitória militar de Ate-
nas em Olímpia — porque ao ensinar as pessoas a cuida-
rem de si, ele os ensina a cuidar da própria cidade.
Oito séculos depois, encontra-se a mesma noção e a
mesma frase no tratado de Gregório de Nyssa, Sobre a
Virgindade, mas com um significado totalmente diferen-
te. Gregório não escrevia sobre o movimento no qual
um indivíduo cuida de si e da cidade, mas sobre o movi-
mento no qual renuncia ao mundo e ao casamento, se-
para-se da carne e, com a virgindade do coração e do
corpo, recupera a imortalidade da qual havia sido priva-
do. Ao comentar a parábola do dracma (Lucas 15: 8-10),
Gregório incita o indivíduo a acender o lampião e virar

326
verve
Tecnologias de si

a casa do avesso até encontrar, brilhando nas sombras,


o dracma perdido. Para recuperar a eficácia que Deus
conferiu à alma do indivíduo e que o corpo obscureceu, o
indivíduo deve cuidar de si mesmo e investigar cada
canto de sua alma (De Virg. 12).
Podemos ver que o asceticismo cristão, como a filo-
sofia antiga, coloca-se sob o mesmo signo do cuidado de
si. A obrigação de conhecer a si mesmo é um dos ele-
mentos centrais de sua preocupação. Entre esses dois
extremos — Sócrates e Gregório — o cuidado de si não
se constituiu apenas como princípio mas como uma prá-
tica constante.
Poderia citar mais dois exemplos. O primeiro texto
epicurista que serviu como um manual da moral foi a
Carta a Meneceu (Diógenes Laërtius 10.122-38). Epicuro
escreve que nunca é muito cedo ou muito tarde para
ocupar-se da alma. Deve-se filosofar quando se é jovem
e também quando se é velho. Esta era uma tarefa que
deveria ser levada ao longo de toda a vida. Ensinamentos
sobre a vida cotidiana eram organizados em torno do
cuidado de si para ajudar cada membro do grupo com o
trabalho mútuo da salvação.
Outro exemplo vem de um texto alexandrino, Sobre a
Vida Contemplativa, de Philon de Alexandria. Ele descreve
um obscuro e enigmático grupo na periferia da cultura
helênica e hebraica chamado Therapeutae, marcado por
sua religiosidade. Esta era uma comunidade austera,
devota à leitura, à meditação terapêutica, à reza indivi-
dual e coletiva e a encontros para um banquete espiritu-
al (agapê, “celebração”). Essas práticas derivaram da ta-
refa principal, o cuidado de si (De Vita Cont. 36).
Este é o ponto de partida para possíveis análises do
cuidado de si em culturas antigas. Eu gostaria de anali-
sar a relação entre cuidado e conhecimento de si, rela-

327
6
2004

ção encontrada nas tradições greco-romana e cristã entre


o cuidado de si e do muito conhecido princípio “conhe-
ce-te a ti mesmo”. Assim como há muitas formas de
cuidado, há diferentes formas de si.

Resumo
Há diversas razões do porquê o “conhece-te a ti mes-
mo” obscureceu o “cuida de si mesmo”. Primeiro, houve
uma profunda transformação nos princípios morais na
sociedade ocidental. Nós acreditamos ser difícil basear
moralidade rigorosa e princípios austeros no preceito
de que devemos cuidar de nós mesmos mais do que qual-
quer outra coisa no mundo. Estamos mais inclinados a
entender o cuidado de si como imoralidade, como uma
forma de escapar de todas as regras possíveis. Herda-
mos a tradição da moralidade cristã que faz da renúncia
de si condição para a salvação. Conhecer a si mesmo
era paradoxalmente o caminho para a renúncia de si.
Nós também herdamos uma tradição secular que
respeita o direito externo como base para a moralidade.
Como o respeito de si poderia então ser a base para a
moralidade? Somos os herdeiros de uma moralidade
social que busca regras para comportamentos aceitá-
veis em relação aos outros. Desde o século XVI, críticas
à moralidade estabelecida têm sido feitas em nome da
importância de reconhecer e conhecer a si mesmo. Por-
tanto, é difícil ver o cuidado de si como compatível com
moralidade. “Conhece-te a ti mesmo” obscureceu o “cuida
de si mesmo” porque nossa moralidade, a moralidade do
ascetismo, insiste que o si é o que deve ser rejeitado.
A segunda razão é que, em filosofia teórica que vai
de Descartes a Husserl, o conhecimento de si (o sujeito
pensante) assume uma importância crescente como o
primeiro passo na teoria do conhecimento.

328
verve
Tecnologias de si

Em suma: houve uma inversão de hierarquia entre


os dois princípios da antiguidade, “cuida de si mesmo” e
“conhece-te a ti mesmo”. Na cultura greco-romana o
conhecimento de si surgiu como conseqüência do cui-
dado de si. No mundo moderno, o conhecimento de si
constitui o princípio fundamental.

II
A primeira elaboração filosófica da preocupação com
o cuidado de si que eu gostaria de mencionar é encon-
trada em Alcibiades I, de Platão. A data desse escrito é
incerta e talvez seja um diálogo platônico apócrifo. A
minha intenção não é estudar datas, mas apontar a prin-
cipal característica do cuidado de si, que está no centro
do diálogo.
Os neoplatônicos no terceiro ou quarto século d.C.
demonstram a relevância atribuída a esse diálogo e a
importância que assumiu na tradição clássica. Eles pre-
tendiam organizar os diálogos de Platão como pedagogia
e como a matriz do conhecimento enciclopédico. Eles
consideravam Alcibiades o primeiro diálogo de Platão, o
primeiro a ser lido, a ser estudado. Chamava-se arché.
No segundo século, Albinus afirmou que todo jovem ho-
mem dotado que quisesse se distanciar da política e pra-
ticar a virtude deveria estudar Alcibiades. Este fornecia
o ponto de partida e um programa para toda a filosofia
platônica. “Cuida de si” foi seu primeiro princípio. Eu
gostaria de analisar o cuidado de si em Alcibiades I em
relação a três aspectos.
1. Como essa questão é introduzida neste diálogo?
Quais as razões que levam Alcibiades e Sócrates à no-
ção do cuidado de si?

329
6
2004

Alcibiades está prestes a ingressar em sua vida pú-


blica e política. Ele deseja falar ao povo e ser o todo-pode-
roso na cidade. Ele não está satisfeito com seu status
atual, com seus privilégios de nascimento e de heran-
ça. Ele deseja adquirir poder pessoal sobre todos os ou-
tros, dentro e fora da cidade. Nesse ponto de intersecção
e transformação, Sócrates intervém e declara seu amor
por Alcibiades. Alcibiades já não pode ser o amado, mas
deve se tornar o amante. Ele precisa tornar-se ativo no
jogo político e no jogo do amor. Assim, há uma relação
dialética entre o discurso político e o erótico. Alcibiades
realiza sua transição de uma maneira específica tanto
na política como no amor.
A ambivalência é evidente no vocabulário político e
erótico de Alcibiades. Em sua adolescência, Alcibiades
era desejado e tinha muitos admiradores; porém, agora
que sua barba estava crescendo, seus amantes desapa-
receram. Antes, ele os havia rejeitado no auge de sua
beleza pois queria ser dominante, não dominado. Na sua
juventude, ele não queria ser dominado, mas agora de-
seja dominar os outros. Esse é o momento em que sur-
ge Sócrates, que é bem sucedido onde os outros falha-
ram: ele fará Alcibiades submeter-se, mas em um ou-
tro sentido. Eles fazem um pacto — Alcibiades irá
submeter-se ao seu amante, Sócrates, não no sentido
físico, mas espiritual. A intersecção entre a ambição
política e amor filosófico é o “cuidado de si”.
2. Nessa relação, por que Alcibiades deveria preocu-
par-se consigo mesmo, e por que Sócrates preocupa-se
com a preocupação de Alcibiades? Sócrates indaga
Alcibiades sobre sua capacidade pessoal e sobre a natu-
reza de sua ambição. Ele saberia o significado das re-
gras jurídicas, da justiça ou da concórdia? Alcibiades
claramente não sabe coisa alguma. Sócrates o convida
a comparar sua educação à dos reis da Pérsia e Esparta,

330
verve
Tecnologias de si

seus rivais. Os príncipes espartanos e persas têm pro-


fessores de sabedoria, justiça, temperança e coragem.
Em comparação, a educação de Alcibiades é como a de
um escravo velho e ignorante. Ele não conhece essas
coisas e, assim, não pode dedicar-se ao saber. Porém,
afirma Sócrates, não é tarde demais. Para ajudá-lo a
ganhar vantagem — para adquirir technê — Alcibiades
deve se concentrar, cuidar de si mesmo. Mas Alcibiades
não sabe no que deve concentrar-se. O que é esse co-
nhecimento que busca? Ele está constrangido e confu-
so. Sócrates o convoca a ter coragem.
No 127d de Alcibiades encontramos a primeira ocor-
rência da frase epimeleisthai sautou. O cuidado de si re-
fere-se sempre a um estado político e erótico ativo.
Epimeleisthai expressa algo muito mais sério do que o
simples fato de prestar atenção. Envolve diversas coi-
sas: preocupar-se com suas posses e sua saúde. É sem-
pre uma atividade real, e não uma simples atitude. Esta
expressão é utilizada em relação à atividade de um fa-
zendeiro cuidando de seus campos, de seu gado, de sua
casa, ou em relação ao trabalho de um rei em cuidar de
sua cidade e seus cidadãos. Ou, ainda, ao culto aos an-
cestrais ou aos deuses, ou a um termo médico que tra-
duza o fato de cuidar. É muito significativo que o cuida-
do de si em Alcibiades I seja relacionado diretamente à
pedagogia deficiente, que diz respeito à ambição políti-
ca e a um momento específico da vida.
3. O restante do texto é dedicado a uma análise des-
sa noção de epimeleisthai, “preocupar-se com si mesmo”.
O texto está dividido em duas questões: O que é este si
que se deve cuidar, e em que consiste este cuidado?
Primeiro, o que é o si (129b)? Este é um pronome
reflexivo que possui dois significados. Auto significa “o
mesmo”, mas também conduz à noção de identidade.

331
6
2004

Este segundo significado altera a questão “o que é o si”


para “qual é o fundamento no qual poderei encontrar
minha identidade?”
Alcibiades tenta encontrar o si em um movimento
dialético. Quando se cuida do corpo, não se cuida de si.
O si não é vestimenta, ferramenta ou posses. Ele deve
ser encontrado no princípio que utiliza esses instrumen-
tos, não um princípio do corpo, mas da alma. É necessá-
rio se preocupar com a alma — essa é a principal práti-
ca do cuidado de si. Este é o cuidado da prática e não o
cuidado da alma como substância.
A segunda questão é: como devemos cuidar desse
principio da prática da alma? Em que consiste esse cui-
dado? É necessário saber em que consiste a alma. A
alma não pode conhecer a si mesma, a não ser ao olhar
para si em um elemento similar, um espelho. Assim,
ela deve contemplar o elemento divino. É nesta contem-
plação divina que a alma poderá descobrir regras que
sirvam de base para o comportamento justo e para a
ação política. O esforço da alma em se conhecer é o prin-
cípio no qual a ação política justa pode se fundar, e
Alcibiades será um bom político na medida em que con-
temple sua alma no elemento divino.
A discussão freqüentemente gravita em torno e é for-
mulada nos termos do princípio délfico “conhece-te a ti
mesmo”. Cuidar de si consiste em conhecer-se a si
mesmo. O conhecimento de si torna-se o objeto da bus-
ca do cuidado de si. Ocupar-se de si e as práticas políti-
cas estão vinculados. O diálogo se encerra quando
Alcibiades compreende que deve cuidar de si por meio
do exame de sua alma.
Este texto inicial elucida o pano de fundo histórico do
preceito do cuidado de si e estabelece quatro problemas
fundamentais que perduram ao longo da antiguidade,

332
verve
Tecnologias de si

apesar das soluções frequentemente apresentadas di-


ferirem daquelas contidas em Alcibiades, de Platão.
Primeiro, há o problema da relação entre ocupar-se
de si e a prática política. Nos últimos períodos helênico
e imperial, a questão é apresentada de maneira alter-
nativa: quando é o melhor momento para afastar-se da
prática política e voltar-se aos cuidados de si?
Segundo, há o problema da relação entre ocupar-se
de si e a pedagogia. Para Sócrates, o cuidado de si é o
dever de um jovem, porém mais adiante no período
helênico, o cuidado de si é visto como dever permanen-
te por toda a vida.
Terceiro, há o problema da relação entre ocupar-se
de si e o conhecimento de si. Platão priorizou o princípio
délfico “conhece-te a ti mesmo”. A posição privilegiada
do “conhece-te a ti mesmo” é uma característica de to-
dos os platônicos. Depois, nos períodos helênico e greco-
romano, essa questão sofre uma inversão. A ênfase não
estava mais no conhecimento de si, mas no cuidado de
si. A este último, lhe foi atribuída proeminência como
uma questão filosófica.
Quarto, há o problema da relação entre ocupar-se de
si e o amor filosófico, ou a relação para com o mestre.
Nos períodos helênico e imperial, a noção socrática
do “cuidado de si” tornou-se um tema filosófico comum
e universal. O “cuidado de si” foi aceito por Epicuro e
seus seguidores, pelos cínicos, e por alguns estóicos
como Sêneca, Rufus e Galen. Os pitagóricos atentaram
à noção de uma vida comunitária ordenada. O tema do
cuidado de si não era um conselho abstrato, mas uma
prática difundida, uma rede de obrigações e serviços
para a alma. Segundo Epicuro, os epicuristas acredita-
vam que nunca era tarde para ocupar-se de si. Os estói-
cos diziam que se deve assistir a si mesmo, “retirar-se

333
6
2004

para dentro de si e lá permanecer”. Luciano parodiou


essa noção. Esta era uma prática largamente difundida
que gerou competição entre os retóricos e aqueles que
se voltaram contra si, particularmente sobre a questão
do papel do mestre.
Havia charlatões, certamente. Mas alguns indivídu-
os acreditaram. Era de entendimento comum que era
bom ser reflexivo, ao menos um pouco. Plínio aconse-
lhava um amigo a reservar alguns momentos ao dia,
várias semanas ou meses, para um retiro dentro de si.
Este era um lazer ativo —estudar, ler, preparar-se para
o infortúnio ou a morte. Era uma meditação e uma pre-
paração.
A escrita era também importante na cultura do cui-
dado de si. Uma das principais características do cuida-
do era tomar notas de si para que fossem relidas, escre-
ver tratados e cartas a amigos para ajudá-los e cultivar
cadernos com a finalidade de reativar para si as verda-
des necessárias. As cartas de Sêneca são um exemplo
dessa prática de si.
Na vida política tradicional, a cultura oral era pro-
fundamente dominante e, portanto, a retórica era fun-
damental. Porém, o desenvolvimento de estruturas ad-
ministrativas e a burocracia do período imperial aumen-
taram a quantidade e o papel da escrita na esfera política.
Nos escritos de Platão, diálogos cedem espaço ao pseudo-
diálogo literário. Mas com o advento da era helênica, a
escrita prevalece e a dialética real transfere-se para a
correspondência. O cuidado de si torna-se constante-
mente ligado à prática da escrita. O si é algo para se
escrever a respeito, um tema ou objeto (sujeito) da prá-
tica da escrita. Esta não é uma característica moderna,
nascida da Reforma ou do romantismo; é uma das mais
antigas tradições ocidentais. A escrita já era bem esta-

334
verve
Tecnologias de si

belecida e profundamente enraizada quando Agostinho


iniciou suas Confissões.
O novo cuidado de si envolvia uma nova experiência
de si. A nova forma de experiência de si será vista nos
séculos I e II quando a introspecção torna-se cada vez
mais detalhada. Uma relação desenvolvida entre a es-
crita e a vigilância. Prestava-se atenção às nuances da
vida, ao estado de ânimo, e da leitura, e, assim sendo, a
experiência de si foi intensificada e ampliada pelo ato
de escrever. Um vasto campo de experiências se abre,
onde antes não existia.
É possível comparar Cícero aos posteriores Sêneca
ou Marco Aurélio. Vemos, por exemplo, a preocupação
meticulosa de Sêneca e Marco Aurélio com os detalhes
da vida cotidiana, com o movimento do espírito, com a
auto-análise. Todos os aspectos do período imperial es-
tão presentes nas cartas de Marco Aurélio de 144-45
d.C. a Fronto:
Saudações, meu mais querido dos mestres.
Nós estamos bem. Eu dormi relativamente tarde
devido ao meu leve resfriado, que agora parece ter
diminuído. Assim, das 5 da manhã às 9, passei parte
do tempo lendo Agricultura, de Cato, e a outra parte,
graças aos céus, escrevendo coisas mais agradáveis
do que ontem. Então, depois de rezar, eu aliviei mi-
nha garganta, não vou dizer que pelo gargarejo —
apesar da palavra gargarisso ser encontrada, acredi-
to eu, em Novius, dentre outros lugares — mas pela
ingestão de mel com água até a goela e cuspindo no-
vamente. Após cuidar de minha garganta, fui até meu
pai para acompanhá-lo em um sacrifício. Então, fo-
mos ao refeitório. O que você acha que eu comi? Um
pedaço de pão, apesar de ter visto outros devorando
feijões, cebolas, e arenques cheios de ovas. Depois

335
6
2004

disso, trabalhamos duro na colheita de uvas, fazendo


um bom exercício, estávamos felizes e, como diria o
poeta “ainda deixando alguns cachos pendurados como
sobras da colheita”. Depois das 6 voltamos para casa.
Fiz algum trabalho, mas sem propósito algum. De-
pois, tive uma demorada conversa com minha mãe,
sentada na cama. Minha conversa foi assim: “o que
você acha que meu Fronto está fazendo agora?” Então
ela: “e o que você acha que minha Gratia está fazen-
do? Então eu: “e o que você acha que o nosso passari-
nho, nossa pequena Gratia, está fazendo?” Enquanto
falávamos dessa forma e disputávamos quem de nós
amava mais o outro, o sino tocou, uma intimação de
que meu pai havia ido para o seu banho. Então, janta-
mos depois de tomarmos banho na sala de extração de
óleo; não quero dizer tomar banho dentro da sala de
extração de óleo, mas quando tomamos banho, janta-
mos lá, e desfrutamos do som dos pica-paus brincando
uns com os outros. Depois de voltar, antes de me virar
e cair no sono, faço minha lição e dou a meu querido
mestre um relatório das atividades do dia; e se eu
pudesse sentir mais saudade, eu não hesitaria em
enfraquecer um pouco mais. Adeus, meu Fronto, onde
quer que esteja, meu querido, meu amor, meu delei-
te. Como estão as coisas entre nós? Eu o amo e você
está longe.

Esta carta apresenta uma descrição da vida cotidia-


na. Todos os detalhes do cuidado de si estão presentes,
todas as coisas sem importância que ele fez. Cícero conta
apenas coisas importantes, mas na carta de Marco Au-
rélio esses detalhes são importantes, pois eles são o
próprio indivíduo — o que ele pensou, o que ele sentiu.

336
verve
Tecnologias de si

A relação entre o corpo e a alma é também interes-


sante. Para os estóicos, o corpo não era tão importante,
mas Marco Aurélio fala por si, de sua saúde, do que co-
meu, de sua dor de garganta. Isso é muito característi-
co da ambigüidade sobre o corpo e este cultivo de si.
Teoricamente, a cultura é orientada pela alma, mas
todas as preocupações com o corpo assumem uma gran-
de importância. Em Plínio e Sêneca, há grande hipo-
condria. Eles se recolhem a uma casa no campo. Eles
desenvolvem atividades intelectuais, mas também ati-
vidades rurais. Eles comem e participam de atividades
dos camponeses. A importância do retiro rural contida
nessa carta é a de que a natureza ajuda o indivíduo a
colocá-lo em contato consigo.
Há também uma relação amorosa entre Aurélio e
Fronto, relação entre um homem de 24 anos e outro de
40. Ars erotica é um tema de discussão. O amor homos-
sexual era importante nesse período e estendeu-se no
monasticismo cristão.
Finalmente, nas últimas linhas, há uma alusão ao
exame de consciência no final do dia. Aurélio vai dor-
mir e olha em seu caderno para ver o que irá fazer e em
que medida correspondia ao que havia feito. A carta é
uma transcrição desse exame de consciência. Valoriza
aquilo que foi feito, não o que foi pensado. Esta é a dife-
rença entre a prática nos períodos helênico e imperial
e a posterior prática monástica. Em Sêneca, também,
há apenas ações intencionais, não pensamentos. Há,
de fato, uma antecipação da confissão cristã.
Esse gênero de cartas revela uma face distinta da
filosofia da época. O exame de consciência se inicia com
a escrita dessa carta. A escrita de diários surge, poste-
riormente, na era cristã e concentra-se na noção de
combate da alma.

337
6
2004

III
Em minha discussão de Alcibiades, de Platão, desta-
quei três temas principais: primeiro, a relação entre o
cuidado de si e o cuidado com a vida política; segundo, a
relação entre o cuidado de si e a educação deficiente; e
terceiro, a relação entre o cuidado de si e o conheci-
mento de si. Embora tenhamos visto em Alcibiades a
estreita relação entre “cuidar de si mesmo” e “conhe-
cer a si mesmo”, o cuidado de si foi eventualmente ab-
sorvido pelo conhecimento de si.
Podemos ver esses três temas em Platão, também
no período helênico, e quatro ou cinco séculos depois
em Sêneca, Plutarco, Epíteto e outros. Se os problemas
são os mesmos, as soluções e temas são diferentes e,
em alguns casos, opostos ao significado platônico.
Primeiro, preocupar-se com si mesmo nos períodos
helênico e romano não é exclusivamente uma prepara-
ção para a vida política. O cuidado de si tornou-se um
principio universal. Deve-se deixar a política para me-
lhor cuidar-se de si.
Segundo, o cuidado de si não é apenas obrigatório
aos jovens preocupados com sua educação; é um modo
de vida para todos ao longo de suas vidas.
Terceiro, mesmo que o auto-conhecimento desem-
penhe um papel importante no cuidado de si, este en-
volve também outras relações.
Gostaria de discutir brevemente os primeiros dois
pontos: a universalidade do cuidado de si independente
da vida política, e o cuidado de si ao longo da vida.
1. O modelo pedagógico de Platão foi substituído por
um modelo médico. O cuidado de si não é um outro tipo

338
verve
Tecnologias de si

de pedagogia; este deve se tornar um cuidado médico


permanente. O cuidado médico permanente é uma das
principais características do cuidado de si. O indivíduo
deve se tornar o médico de si.
2. Já que devemos nos cuidar ao longo da vida, o obje-
tivo não é mais preparar-se para a vida adulta, ou para
uma outra vida, mas preparar-se para uma realização
plena da vida. Esta realização só está completa no mo-
mento imediatamente anterior à morte. Essa noção de
uma alegre aproximação da morte — da velhice como
plenitude — é uma inversão dos valores tradicionais
gregos de juventude.
3. Por último, há as diversas práticas que surgiram a
partir do cuidado de si e a relação do auto-conhecimen-
to com estas práticas.
Em Alcibiades I, a alma tinha uma relação espelhada
com ela mesma, que se refere ao conceito de memória
e justifica o diálogo como um método para descobrir a
verdade na alma. Porém, do tempo de Platão à era
helênica, a relação entre o cuidado de si e o conheci-
mento de si se alterou. Podemos notar duas perspecti-
vas.
Nos movimentos filosóficos do estoicismo no período
imperial há uma concepção diferente de verdade e me-
mória, e um outro método de exame de si. Primeiro,
vemos o desaparecimento do diálogo e a importância
crescente de uma nova relação pedagógica — um novo
jogo pedagógico em que o mestre/professor fala e não
faz perguntas e o discípulo não responde, mas ouve e
fica em silêncio. A cultura do silêncio torna-se cada vez
mais importante. Na cultura pitagórica, discípulos fica-
vam em silêncio por cinco anos devido a uma regra pe-
dagógica. Eles não faziam perguntas ou falavam duran-
te as lições, mas desenvolveram a arte da escuta. Essa

339
6
2004

era a condição indispensável para conquistar a verda-


de. Nesta tradição instaurada no período imperial, ve-
mos o início da cultura do silêncio e da arte da escuta,
ocupar o lugar do cultivo do diálogo, como em Platão.
Para aprender a arte da escuta, devemos ler o trata-
do de Plutarco sobre a arte de escutar a conferências
(Peri tou akouein). No início do tratado, Plutarco afirma
que, após o período escolar, devemos aprender a ouvir o
logos ao longo de nossa vida adulta. A arte da escuta é
crucial para distinguir a verdade da dissimulação e a
verdade retórica da mentira no discurso dos retóricos.
O ato de ouvir está ligado ao fato do discípulo não estar
sob o controle dos mestres, mas ele deve ouvir o logos.
Ele deve ficar em silêncio durante uma conferência e
pensar sobre ela depois. Essa é a arte da escuta da voz
do mestre e da voz da razão dentro de si.
O conselho pode parecer banal, mas penso ser im-
portante. Em seu tratado Sobre a Vida Contemplativa,
Philon de Alexandria descreve banquetes do silêncio e
não banquetes devassos, com vinho, rapazes, bacanal e
diálogo. Há, em vez disso, um professor que apresenta
um monólogo sobre a interpretação da bíblia e uma in-
dicação precisa sobre como as pessoas devem escutar
(De Vita Cont. 77). Por exemplo, eles devem assumir sem-
pre a mesma postura ao escutar. A morfologia dessa
noção é um tema interessante no monasticismo e, pos-
teriormente, na pedagogia.
Em Platão, os temas da contemplação de si e cuidado
de si estão relacionados dialeticamente por meio do di-
álogo. No período imperial temos os temas, de um lado,
da obrigação de escutar a verdade e, de outro, da obriga-
ção de olhar e escutar a si mesmo pela verdade interi-
or. A diferença entre as duas eras é um dos grandes
sinais do desaparecimento da estrutura dialética.

340
verve
Tecnologias de si

O que era o exame de consciência nesta cultura, e


como alguém olha para si mesmo? Para os pitagóricos,
o exame de consciência estava relacionado à purifica-
ção. Assim como dormir estava relacionado à morte como
uma forma de encontro com os deuses, era preciso se
purificar antes de dormir. A lembrança dos mortos era
um exercício para a memória. Mas no período helênico
e no início do período imperial, pode-se observar esta
prática adquirindo novos valores e significação. Há di-
versos textos relevantes: De Ira e De Tranquilitate, de
Sêneca, e o início do quarto livro de Marco Aurélio, Pen-
samentos.
De Ira (livro 3) de Sêneca, contém alguns traços da
tradição antiga. Ele descreve um exame de consciên-
cia, recomendado pelos epicuristas, cuja prática teve
origem na tradição pitagórica. O objetivo era a purifica-
ção da consciência utilizando um instrumento mnemô-
nico. Faça o bem, faça um bom exame de si, e terá um
bom sono seguido de bons sonhos, que é o contato com
os deuses.
Sêneca utiliza uma linguagem jurídica e tudo indica
que o si é ao mesmo tempo o juiz e o acusado. Sêneca é
o juiz, que processa o si, tornando o exame uma forma
de julgamento. Mas ao olhar de perto, este se difere de
um tribunal. Sêneca utiliza termos relacionados à prá-
tica administrativa, não jurídica, como quando um con-
tador olha os livros ou quando um mestre de obras exa-
mina um edifício. O auto-exame está sendo avaliado.
Falhas são simplesmente boas intenções que não se
realizaram. A regra é um meio para se fazer algo corre-
tamente, sem julgar aquilo que ocorreu no passado. Pos-
teriormente, a confissão cristã buscará as más inten-
ções.

341
6
2004

A visão administrativa de sua vida, muito mais que


o modelo jurídico, é o que importa. Sêneca não é um
juiz incumbido de punir, mas um administrador que
avalia situações. Ele é um administrador permanente
de si mesmo, não um juiz de seu passado. Ele vê que
tudo foi feito corretamente de acordo com as regras, mas
não com a lei. Não são suas falhas reais, mas a sua
falta de sucesso que o reaproxima de si. Seus erros são
de caráter estratégico, não moral. Ele deseja realizar
um ajuste entre aquilo que gostaria de ter feito e aquilo
que fez, reativar as normas de conduta, não escavar sua
culpa. Na confissão cristã, o penitente é obrigado a me-
morizar as leis, mas o faz com o objetivo de descobrir
seus pecados.
Para Sêneca, esta não é uma questão de descobrir a
verdade sobre um assunto, mas de se lembrar da verda-
de, de recuperar uma verdade que havia sido esqueci-
da. Segundo, o sujeito não se esquece de si, de sua na-
tureza, de sua origem, ou de sua afinidade sobrenatu-
ral, mas das normas de conduta, do que ele deveria ter
feito. Terceiro, a recapitulação dos erros cometidos no
dia é a medida da diferença entre aquilo que foi feito e
aquilo que deveria ter sido feito. Quarto, o sujeito não é
a base de operação para o processo de decifração, mas é
o ponto onde as normas de conduta se aglutinam na
memória. O sujeito constitui a intersecção entre as
ações que devem ser reguladas e regras para aquilo que
deve ser feito. Isso é muito diferente da concepção pla-
tônica e cristã de consciência.
Os estóicos espiritualizaram a noção de anachoresis,
a retirada de um exército, o esconder de um escravo
fugido de seu mestre, ou a retirada em direção ao cam-
po, longe das cidades, como na retirada de Marco Auré-
lio. Uma retirada para o campo torna-se um retiro espi-
ritual para dentro de si. Esta é uma atitude genérica e

342
verve
Tecnologias de si

ao mesmo tempo uma ação diária precisa; um indiví-


duo retira-se para dentro de si para descobrir — mas
não para descobrir falhas ou sentimentos profundos,
apenas para lembrar regras de ação, as principais leis
do comportamento. É uma fórmula mnemotécnica.

IV
Eu falei de três técnicas estóicas de si: cartas a ami-
gos e a revelação de si; exame de si e da consciência,
incluindo uma revisão do que foi feito, daquilo que de-
veria ter sido feito, e uma comparação entre as duas.
Agora, eu gostaria de tratar da terceira técnica estóica,
askêsis, não uma revelação do si secreto, mas uma lem-
brança.
Para Platão, o indivíduo deve descobrir a verdade que
se encontra dentro dele. Para os estóicos, a verdade não
está dentro do indivíduo, mas no logoi, os ensinamentos
dos professores. O indivíduo memoriza aquilo que ou-
viu, convertendo as afirmações que ouve em normas de
conduta. A subjetivação da verdade é o objetivo dessas
técnicas. Durante o período imperial, o indivíduo não
podia assimilar princípios éticos sem um quadro teóri-
co como a ciência, como, por exemplo, em De Rerum
Naturae, de Lucrécio. Há questões estruturais subja-
centes à prática do exame de si toda noite. Eu gostaria
de sublinhar o fato de que no estoicismo não é a decifra-
ção de si, nem os meios de revelar um segredo, que
importam; é a memória daquilo que fez e daquilo que
teve que fazer.
Na cristandade, asceticismo sempre se refere a cer-
ta renúncia de si e da realidade, pois na maior parte do
tempo o si é parte de uma realidade da qual se deve
renunciar para obter acesso a um outro nível de reali-

343
6
2004

dade. Esse movimento para alcançar a renúncia de si é


o que distingue o asceticismo cristão.
Na tradição filosófica dominada pelo estoicismo,
askêsis significa, não a renúncia, mas a progressiva
consideração de si, ou o domínio de si, obtido não por
meio da renúncia da realidade, mas pela aquisição e
assimilação da verdade. Esta tem como seu objetivo fi-
nal, não a preparação para outra realidade, mas o aces-
so à realidade desse mundo. A palavra grega para desig-
nar isso é paraskeuazô (“preparar-se”). A askêsis é um
conjunto de práticas pela qual o indivíduo pode adquirir,
assimilar e transformar a verdade em um permanente
princípio de ação. Aletheia torna-se ethos. Este é um pro-
cesso de tornar-se mais subjetivo.
Quais são as principais características da askêsis?
Elas incluem exercícios nos quais o sujeito se coloca
em uma situação na qual ele pode verificar se pode con-
frontar os acontecimentos e utilizar os discursos com
os quais está munido. Esse é um caso de testar a prepa-
ração. Essa verdade está assimilada o bastante para se
tornar ética, para que possamos nos comportar como se
deve quando um acontecimento se apresenta?
Os gregos caracterizavam os dois pólos desse exercí-
cio pelos termos meletê e gymnasia. Meletê significa “me-
ditação”, de acordo com a tradução do latim, meditatio.
Ela tem a mesma raiz de epimeleisthai. É um termo re-
lativamente vago, um termo técnico emprestado da re-
tórica. Meletê é o trabalho realizado com o objetivo de
preparar um discurso ou uma improvisação, refletindo
sobre termos e argumentos úteis. Foi necessário ante-
cipar a situação real por meio do diálogo no pensamen-
to. A meditação filosófica é um tipo de meditação que é
composta pela memorização de respostas e reativação
dessas memórias, colocando o indivíduo em uma situa-

344
verve
Tecnologias de si

ção em que ele imagine como reagiria. O indivíduo jul-


ga as razões que deveria utilizar em um exercício ima-
ginário (“Vamos supor...”) com a intenção de testar uma
ação ou acontecimento (por exemplo, “Como eu reagi-
ria?”). Imaginar a articulação de possíveis acontecimen-
tos para testar sua reação — isso é meditação.
O mais famoso exercício de meditação é o premeditatio
mallorum, praticado pelos estóicos. É uma experiência
ética, imaginária. Sua aparência é uma certa visão som-
bria e pessimista do futuro. Esta pode ser comparada ao
que Husserl afirma em relação à redução eidética.
Os estóicos desenvolveram três reduções eidéticas
da adversidade futura. Primeiro, não é uma questão de
imaginar o futuro provável, mas de imaginar o pior ce-
nário possível, mesmo que haja poucas chances de se
confirmar — o pior como certeza, como atualização do
que pode acontecer, não como um cálculo de probabili-
dade. Segundo, o indivíduo não deve vislumbrar as coi-
sas em sua potencialidade de acontecimento em um
futuro distante, mas como algo que já está em curso de
se realizar. Por exemplo, não imaginar que um indiví-
duo pode ser exilado, mas imaginar que este já está exi-
lado, sujeito à tortura e que está morrendo. Terceiro, o
objetivo não é experimentar um sofrimento mudo, mas
se convencer de que esses males não são reais. A redu-
ção de tudo que é possível, de todas as durações e infor-
túnios, não revela algo negativo, mas aquilo que deve-
mos aceitar. Consiste em ter simultaneamente o acon-
tecimento futuro e presente. Os epicuristas eram hostis
a tal idéia, pois a consideravam inútil. Eles acredita-
vam que era melhor relembrar e memorizar prazeres
passados com o objetivo de obter prazer de acontecimen-
tos presentes.

345
6
2004

No lado oposto está gymnasia (“treinamento”). Se, por


um lado, meditatio é uma experiência imaginária que
treina o pensamento, gymnasia é o treinamento em uma
situação real, mesmo que induzido artificialmente. Há
uma longa tradição por trás disso: abstinência sexual,
privação física e outros rituais de purificação.
Estas práticas de abstinência têm outros significa-
dos além da purificação ou o testemunho de forças de-
moníacas, como em Pitágoras e Sócrates. Na cultura
estóica, sua função é estabelecer e testar a indepen-
dência do indivíduo em relação ao mundo exterior. Por
exemplo, em De Genio Socratis, de Plutarco, o indivíduo
se entrega a práticas esportivas intensas. Ou, ainda,
submete-se à tentação colocando-se diante de apetito-
sos pratos para, então, os recusar. O indivíduo, em se-
guida, chama seus escravos, dá-lhes os pratos e come a
refeição que havia sido preparada para eles. Outro exem-
plo é a décima oitava carta de Sêneca a Lucílio, na qual
este se prepara para um grande banquete por meio de
atos de mortificação da carne para convencer a si mes-
mo de que a pobreza não é um mal e de que ele pode
resistir a ela.
Entre esses extremos de treinar no pensamento e
treinar na realidade, meletê e gymnasia, há uma série
de possibilidades intermediárias. Epíteto nos fornece o
melhor exemplo do meio termo. Ele pretende cuidar eter-
namente das representações, técnica que encontra seu
ápice em Freud. Há duas importantes metáforas de seu
ponto de vista: o vigia noturno, que não permite a en-
trada na cidade de ninguém que não se identifique (de-
vemos ser “vigias” sobre o fluxo do pensamento); e o cam-
bista, que verifica a autenticidade do dinheiro, exami-
na, pesa e averigua. Nós devemos ser cambistas de
nossas próprias representações de pensamento, testan-

346
verve
Tecnologias de si

do-os atentamente, certificando-os, seu metal, seu peso,


sua figura.
A mesma metáfora do cambista é encontrada nos
estóicos e na literatura cristã antiga, porém com dife-
rentes significados. Quando Epíteto afirma que alguém
deve ser um cambista, ele quer dizer que assim que
uma idéia vir à mente, este deve pensar nas regras que
devem ser utilizadas para avaliá-la. Para João Cassiano,
ser um cambista e analisar seus pensamentos possu-
em significados totalmente diferentes: o indivíduo deve
tentar descobrir se, na raiz do movimento que lhe trás
as representações, há ou não luxúria e desejo — se seu
pensamento inocente possui origens malignas, se há
algo intensamente sedutor que está subjacente, talvez
encoberto, a moeda de seu pensamento.
Há dois grupos de exercícios em Epíteto: o sofístico e
o ético. O primeiro, são exercícios trazidos da escola:
jogos de pergunta e resposta. Este deve ser um jogo éti-
co, ou seja, deve ensinar uma lição moral. O segundo,
são exercícios ambulantes. O indivíduo sai para passe-
ar e testa suas reações a esse passeio. O propósito de
ambos os exercícios é o controle das representações, não
a descoberta da verdade. São lembretes sobre a obedi-
ência às regras diante da adversidade. Os testes de
Epíteto e Cassiano descrevem detalhadamente uma
máquina pré-freudiana de censura. Para Epíteto, o con-
trole das representações não significa a descoberta, mas
a recordação de princípios de ação e, portanto, a verifi-
cação, por meio do auto-exame, da capacidade dos indi-
víduos em governarem suas próprias vidas. É uma for-
ma de auto-exame permanente. O indivíduo deve ser
seu próprio censor. A meditação sobre a morte é o ápice
de todos esses exercícios.

347
6
2004

Além das cartas, do exame, e da askêsis, nós deve-


mos evocar uma quarta técnica do exame de si: a inter-
pretação dos sonhos. Esta técnica teria um destino im-
portante no século XIX, mas ocupou uma posição relati-
vamente marginal na antiguidade. Os filósofos possuíam
uma atitude ambivalente diante da interpretação dos
sonhos. A maioria dos estóicos era crítica e cética a res-
peito de tal interpretação. Mas ainda há sua prática po-
pular e generalizada. Houve especialistas capazes de
interpretar os sonhos, incluindo Pitágoras e alguns es-
tóicos, além de alguns especialistas que escreveram li-
vros para ensinar as pessoas a interpretar seus própri-
os sonhos. Havia uma enorme quantidade de escritos
sobre como fazê-lo, mas o único manual sobre os so-
nhos que permaneceu foi A interpretação dos sonhos, de
Artemidoro (segundo século d.C.). A interpretação dos
sonhos era importante, pois na antiguidade o significa-
do dos sonhos era um presságio dos acontecimentos fu-
turos.
Eu citaria outros dois documentos sobre a importân-
cia da interpretação dos sonhos para a vida cotidiana. O
primeiro é de Synesius de Cyrene, no quarto século d.C.,
que era um homem muito conhecido e dedicado. Ape-
sar de não ser cristão, pediu para tornar-se bispo. Seus
comentários sobre os sonhos são interessantes, ainda
que a adivinhação pública fosse proibida para que o im-
perador fosse poupado de más notícias. Portanto, o indi-
víduo deveria interpretar seus próprios sonhos; deveria
ser um intérprete de si. Para isso, ele deveria lembrar-
se não apenas de seus sonhos, mas dos acontecimen-
tos anteriores e posteriores. Ele deveria registrar os
acontecimentos diariamente, tanto da vida diurna,
quanto da vida noturna.
Os Discursos Sagrados, de Aelius Aristides, escritos
no segundo século, registra seus sonhos e explica como

348
verve
Tecnologias de si

ele os interpreta. Acreditava que na interpretação dos


sonhos nós recebíamos conselhos dos deuses sobre re-
médios para as doenças. Com esse trabalho, nós estamos
na encruzilhada de dois tipos de discurso. A matriz dos
Discursos Sagrados não é a escrita das atividades diári-
as de um indivíduo, mas a dedicação ritualística de pre-
ces aos deuses que o curaram.

V
Eu pretendo examinar a estrutura de uma das prin-
cipais técnicas de si no início do cristianismo e em que
esta consistia como jogo de verdade. Para isso, necessi-
to analisar a transição da cultura pagã para a cristã, na
qual é possível observar continuidades e descontinu-
idades precisas e bem definidas.
O cristianismo pertence ao campo das religiões de
salvação. É uma dessas religiões que tem como objetivo
conduzir o indivíduo de uma realidade à outra, da morte
à vida, do tempo à eternidade. Para alcançar isso, o cris-
tianismo impôs um conjunto de condições e regras de
comportamento para certa transformação de si.
O cristianismo não é apenas uma religião da salva-
ção, é uma religião confessional. Ela impõe severas obri-
gações de verdade, dogma e cânone, mais do que o fa-
zem as religiões pagãs. Obrigações de verdade em cre-
ditar nisto ou naquilo foram, e ainda são, muito nume-
rosas. O dever de aceitar um conjunto de obrigações, de
assumir certos livros como verdades absolutas, de acei-
tar decisões autoritárias em matéria de verdade, de não
apenas acreditar em algo, mas demonstrar o credo, e de
aceitar a autoridade institucional, são todas caracterís-
ticas do cristianismo.

349
6
2004

O cristianismo exige outra forma de obrigação para


com a verdade, diferente da fé. Cada indivíduo tem o
dever de saber quem ele é, ou seja, de tentar descobrir o
que acontece em seu interior, de assumir seus defei-
tos, reconhecer as tentações, localizar os desejos, e to-
dos são obrigados a revelar esses segredos, seja a Deus
ou a outros membros da comunidade; e, portanto, de
prestar testemunho, público ou privado, contra si mes-
mo. As obrigações de verdade da fé e o si estão ligados
um ao outro. Esse vínculo permite uma purificação da
alma que seria impossível sem o conhecimento de si.
As coisas são diferentes nas tradições católica e pro-
testante, mas as principais características de ambas
são um conjunto de obrigações de verdade em relação à
fé, aos livros, ao dogma, e um outro em relação à verda-
de, ao coração e à alma. O acesso à verdade não pode
ser concebido sem a pureza da alma. Esta é a conseqü-
ência do conhecimento de si e uma condição para en-
tender o texto; Agostinho diz: Quis facit veritatem (fazer a
verdade dentro de si, obter acesso à luz).
Eu gostaria de analisar as maneiras pelas quais a
igreja, em seu intuito de obter acesso à luz, concebeu a
iluminação como revelação de si. O sacramento da pe-
nitência e a confissão dos pecados são inovações consi-
deravelmente tardias. Os cristãos dos primeiros sécu-
los possuíam maneiras diferentes de descobrir e deci-
frar a verdade sobre eles mesmos. Uma das duas princi-
pais formas dessas revelações pode ser caracterizada
pela palavra exomologêsis, ou “reconhecimento do fato”.
Mesmo os padres latinos utilizavam essa expressão em
grego sem tradução precisa. Para os cristãos, isso sig-
nificava reconhecer publicamente a verdade de sua fé
ou reconhecer publicamente que eles eram cristãos.

350
verve
Tecnologias de si

A palavra possuía ainda um significado de penitên-


cia. Quando um pecador busca a penitência, ele deve
solicitá-la ao bispo. No início do cristianismo, a peni-
tência não era um ato ou um ritual, mas um status
imposto sobre um indivíduo que houvesse cometido gra-
ves pecados.
Exomologêsis era um ritual de reconhecimento de um
indivíduo como pecador e penitente, o qual possui diver-
sas características. Primeiro, o indivíduo era penitente
por um período de três a dez anos, e essa condição o
afetaria para o resto de sua vida. Havia a prática do je-
jum e também regras sobre vestimenta e proibições
sobre o sexo. O indivíduo era marcado de tal forma que
ele não podia viver da mesma forma que outros. Mesmo
após sua reconciliação, ele era sujeito a diversas proi-
bições. Por exemplo, ele não poderia se casar nem tor-
nar-se padre.
Nesta condição encontra-se a obrigação da exomo-
logêsis. O pecador busca sua penitência. Vai ao bispo e
pede que lhe imponha o status de penitente. Ele precisa
explicar porque quer esse status e quais são os seus
erros. Isso não é uma confissão, mas uma condição do
status. Mais tarde, no período medieval, exomologêsis
passou a ser um ritual que ocorria no término do perío-
do de penitência, imediatamente anterior à reconcilia-
ção. Essa cerimônia colocou o pecador entre os outros
cristãos. Sobre essa cerimônia de reconciliação,
Tertuliano afirma que, maltrapilho, vestindo uma ca-
misa feita de pêlos e coberta de cinzas, o pecador ergue-
se humildemente diante da igreja. Depois, ele atira-se
ao chão e beija os joelhos de seus irmãos (On repetance
9-12). Exomologêsis não é um comportamento verbal, mas
o reconhecimento dramático do status de penitente de
um indivíduo. Muito tempo depois, em Epístolas,
Jerônimo descreve a penitência de Fabiola, uma senho-

351
6
2004

ra romana. Durante esses dias, Fabiola estava no mes-


mo nível dos penitentes. Pessoas se lamentavam junto
a ela, adicionando dramaticidade à sua punição públi-
ca.
O reconhecimento também designa todo o processo
que o penitente experimenta nesse status ao longo dos
anos. Ele é o elemento agregador de comportamentos
penitenciais manifestos, de autopunição, bem como da
revelação de si. Os atos pelo qual o indivíduo pune a si
mesmo são indistingüíveis daqueles em que ele revela
a si mesmo. A autopunição e a expressão voluntária de
si estão coladas. Esse vínculo é evidente em diversos
escritos. Cipriano, por exemplo, versa sobre exibições
da vergonha e da modéstia. A penitência não é nomi-
nal, mas dramática.
Comprovar o sofrimento, demonstrar vergonha, hu-
mildade e modéstia — essas são as principais caracte-
rísticas da punição. A penitência no início do cristia-
nismo é um modo de vida que transparece a todo mo-
mento a obrigação da revelação de si. Ela deve ser
representada visivelmente e acompanhada por outros
que reconhecem o ritual. Essa condição permaneceu
até os séculos XV e XVI.
Tertuliano utiliza o termo publicatio sui para carac-
terizar exomologêsis. Publicatio sui refere-se ao auto-exa-
me diário de Sêneca, que era, entretanto, totalmente
privado. Para Sêneca, exomologêsis ou publicatio sui não
implicam uma análise verbal de fatos e pensamentos; é
apenas uma expressão somática e simbólica. Aquilo que
era privado para os estóicos, era público para os cris-
tãos.
Quais eram suas funções? Primeiro, era uma forma
de livrar-se dos pecados e recuperar a pureza adquirida
no batismo. Segundo, tinha também o intuito de mos-

352
verve
Tecnologias de si

trar o pecador como ele é. Este é o paradoxo no coração


da exomologêsis; ela livra dos pecados e revela o peca-
dor. A principal parte do ato de penitência não era dizer
a verdade sobre o pecado, mas revelar a verdadeira es-
sência pecadora contida no pecador. Não era uma ma-
neira do pecador explicar seus pecados, mas sim uma
forma de apresentá-lo como pecador.
Por que essa exposição deveria apagar os pecados? A
exposição é o coração da exomologêsis. No cristianismo
dos primeiros séculos, autores cristãos haviam recor-
rido a três modelos para explicar a relação paradoxal entre
livrar-se dos pecados e revelar-se.
O primeiro é o modelo médico: o indivíduo deve re-
velar suas feridas para que possa se curar. Outro mo-
delo, menos freqüente, era o julgamento a partir do
modelo do tribunal. O indivíduo sempre cede ao juiz
confessando seus erros. O pecador age como o advoga-
do do diabo, tal como faria o diabo no Juízo Final.
O modelo mais importante utilizado para explicar
exomologêsis foi o modelo da morte, da tortura, do martí-
rio. As teorias e práticas sobre a penitência foram ela-
boradas em torno do problema do homem que prefere
morrer a comprometer ou abandonar sua fé. A forma
pela qual o mártir encara a morte é o modelo para o
penitente. Para o decaído ser reintegrado à igreja, ele
precisa se expor voluntariamente a um martírio ritual.
A penitência é o resultado da mudança, da ruptura con-
sigo, do passado, do mundo. É uma forma de demonstrar
que se é capaz de renunciar à vida e a si mesmo, para
demonstrar que se é capaz de encarar e aceitar a mor-
te. A penitência de um pecado não tem como alvo o es-
tabelecimento de uma identidade, mas serve para mar-
car a recusa de si, a ruptura consigo mesmo: ego non
sum, ego. Essa fórmula está no coração do publicatio sui.

353
6
2004

Representa uma ruptura do indivíduo com a sua identi-


dade passada. Estes gestos ostensivos têm a função de
revelar a verdade sobre o estado de ser do pecador. A re-
velação de si é ao mesmo tempo a autodestruição.
A diferença entre as tradições estóica e cristã é que
na tradição estóica o exame de si, o julgamento e a dis-
ciplina mostram o caminho para o conhecimento de si
por meio da sobreposição da verdade sobre si através da
memória, ou seja, por meio da memorização das regras.
Na exomologêsis, o penitente sobrepõe a verdade sobre
si por meio da ruptura violenta e da dissociação. É im-
portante enfatizar que essa exomologêsis não é verbal. É
simbólica, ritual e teatral.

VI
Durante o quarto século encontramos uma tecnologia
muito diferente para a revelação de si, exagoreusis,
muito menos famosa do que a exomologêsis, porém mais
importante. Esta é remanescente de exercícios verbais
em relação ao professor/mestre das escolas filosóficas
pagãs. Nós podemos observar a transferência de diver-
sas tecnologias estóicas de si para técnicas espirituais
cristãs.
Pelo menos um exemplo do exame de si, proposto por
João Crisóstomo, era exatamente a mesma forma e a
mesma característica administrativa que a descrita por
Sêneca em De ira. De manhã, devemos contabilizar nos-
sos gastos e, à noite, devemos nos interrogar acerca da
prestação de contas sobre nossa conduta, a fim de de-
terminar o que nos é vantajoso e o que nos é prejudici-
al, com rezas em vez de palavras indiscretas. Este é exa-
tamente o exame de si como concebido por Sêneca. É
também importante notar que esse exame de si é raro
na literatura cristã.

354
verve
Tecnologias de si

A prática elaborada e bem desenvolvida do exame de


si no cristianismo monástico é diferente do exame de
si de Sêneca, e muito diferente de Crisóstomo e da
exomologêsis. Essa nova prática deve ser entendida a
partir do ponto de vista de dois princípios da espiritua-
lidade cristã: o da obediência e o da contemplação.
Em Sêneca, a relação do discípulo com o mestre era
importante, porém instrumental e profissional. Esta era
fundada na capacidade do mestre em conduzir o discí-
pulo a uma vida feliz e autônoma, por meio de bons con-
selhos. A relação se encerraria quando o discípulo al-
cançasse essa vida.
Devido a uma extensa série de razões, a obediência
possui características muito diferentes na vida monás-
tica. Esta difere da relação greco-romana diante do mes-
tre no sentido em que a obediência não é baseada ape-
nas na necessidade de aprimoramento de si, mas deve
contemplar todos os aspectos da vida monástica. Não há
qualquer elemento na vida de um monge que escape a
essa relação total e permanente de obediência ao mes-
tre. Cassiano repete um antigo princípio da tradição ori-
ental: “tudo aquilo que um monge faz sem a permissão
de seu mestre constitui um roubo”. Neste caso, obedi-
ência é o total controle do comportamento pelo mestre,
não um estado autônomo definitivo. Este é um sacrifí-
cio de si, um sacrifício da vontade do sujeito. Esta é a
nova tecnologia de si.
O monge precisa da permissão de seu diretor para
tudo, até mesmo para morrer. Tudo aquilo que faz sem
permissão é furto. Não há um movimento sequer no qual
o monge é autônomo. Mesmo quando se torna diretor,
ele deve preservar o espírito da obediência. Ele deve
preservá-lo como um sacrifício permanente do controle

355
6
2004

total do comportamento pelo mestre. O si deve consti-


tuir-se como tal por meio da obediência.
A segunda característica da vida monástica é que a
contemplação é considerada o bem supremo. É obriga-
ção do monge orientar seus pensamentos continuamen-
te para o ponto que é Deus e de se assegurar de que seu
coração é puro o bastante para que possa ver Deus. O
objetivo é a contemplação permanente de Deus.
A tecnologia de si, desenvolvida a partir da obediên-
cia e contemplação nos monastérios, apresenta algu-
mas características peculiares. Cassiano apresenta uma
exposição razoavelmente clara dessa tecnologia de si,
um princípio do exame de si que ele emprestou das tra-
dições monásticas síria e egípcia.
Essa tecnologia de origem oriental do exame de si,
dominada pela obediência e pela contemplação, preocu-
pa-se muito mais com o pensamento do que com a ação.
Sêneca havia colocado ênfase na ação. Com Cassiano,
o objeto não são as ações passadas do dia, mas os pensa-
mentos presentes. Já que o monge deve voltar seu pen-
samento continuamente a Deus, ele deve explorar mi-
nuciosamente o curso desse pensamento. Esta explora-
ção, portanto, tem como objeto a discriminação perma-
nente entre os pensamentos que conduzem e aqueles
que não conduzem a Deus. Essa preocupação contínua
com o presente é diferente da memorização, de Sêneca,
dos fatos e suas correspondências com as regras. Os
gregos referem-se a esta situação com a palavra pejora-
tiva: logismoi (“cogitações, raciocínio, pensamento cal-
culista”).
Há uma etimologia de logismoi em Cassiano, mas eu
não sei se é válida: co-agitationes. O espírito é plukinetos
“movendo-se perpetuamente” (Primeira conferência de
Abade Serenus 4). Para Cassiano, a mobilidade perpétua

356
verve
Tecnologias de si

do espírito é sua fraqueza. Distrai o indivíduo de sua


contemplação de Deus (Primeira conferência de Abade
Nesterus 13).
A exploração da consciência consiste em tentar
imobilizá-la, em eliminar os movimentos do espírito que
desviam o indivíduo de Deus. Isso significa que deve-
mos examinar cada pensamento que se apresenta à
consciência para verificar a relação entre ação e pen-
samento, verdade e realidade, para ver se há algo nesse
pensamento que irá mover nosso espírito, provocar nos-
so desejo, desviar nosso espírito de Deus. A exploração é
baseada na idéia de uma concupiscência secreta.
Há três tipos principais de exame de si: primeiro, o
exame de si em relação a pensamentos em correspon-
dência com a realidade (Descartes); segundo, o exame
de si em relação à forma pela qual nosso pensamento
relaciona-se com regras (Sêneca); terceiro, o exame de
si com respeito à relação entre pensamentos ocultos e
uma impureza interna. Neste momento inicia-se a
hermenêutica cristã de si, com sua decodificação dos
pensamentos interiores. Isto implica que há algo es-
condido dentro de nós e que estamos sempre em uma
auto-ilusão que oculta os segredos.
Cassiano diz que para realizar essa busca devemos
cuidar de nós mesmos e atestarmos nosso pensamento
diretamente. Para isso, apresenta três analogias. Pri-
meiro, a analogia do moinho (Primeira Conferência do
Abade Moisés 18). Pensamentos são como grãos, e a cons-
ciência é o celeiro. O nosso papel, assim como o do mo-
leiro, é de separar os grãos ruins daqueles que podem
ser utilizados na produção de boa farinha e bons pães
para nossa salvação.
A segunda é a militar (Primeira Conferência do Abade
Serenus 5). Cassiano estabelece uma analogia com o

357
6
2004

oficial que ordena ao bom soldado marchar para a direi-


ta, e ao mal soldado marchar para a esquerda. Nós deve-
mos agir como o oficial que separa os soldados em duas
fileiras, a boa e a má.
A terceira apresenta a analogia do cambista (Primei-
ra Conferência do Abade Moisés 20-22). A consciência é o
cambista de si. Ele deve examinar as moedas, sua figu-
ra, seu metal, sua procedência. Deve pesá-las para ve-
rificar se foram mal utilizadas. Como há a imagem do
imperador na moeda, a imagem de Deus deve ficar em
nossos pensamentos. Devemos verificar, então, a qua-
lidade do pensamento: será real essa figura de Deus?
Qual o seu grau de pureza? Não estará misturado com o
desejo e a concupiscência? Assim, encontramos a mes-
ma imagem vista em Sêneca, porém com um significa-
do diferente.
O nosso papel é ser um cambista permanente de nós
mesmos, então como é possível fazer tal discriminação
e reconhecer se um pensamento é bom? Como essa “dis-
criminação” pode ser feita efetivamente? Há apenas um
único caminho: confessar todos os nossos pensamentos
ao nosso diretor, obedecer ao nosso mestre em todas as
circunstâncias, e engajarmo-nos na constante verba-
lização de nossos pensamentos. Em Cassiano, o exame
de si está subordinado à obediência e à constante ver-
balização dos pensamentos, o que é diferente do estoi-
cismo. Ao dizer a si mesmo, não apenas seus pensa-
mentos, mas também os menores movimentos de cons-
ciência, suas intenções, o monge situa-se em uma re-
lação hermenêutica em relação, não apenas ao mes-
tre, mas a ele mesmo. Essa verbalização é o critério ou
a moeda do pensamento.
Por que a confissão é capaz de assumir essa função
hermenêutica? Como podemos ser os hermeneutas de

358
verve
Tecnologias de si

nós mesmos ao relatar e transcrever todos os nossos


pensamentos? A confissão concede ao mestre um co-
nhecimento, graças a sua grande experiência e sabe-
doria, que lhe permite transmitir sábios conselhos.
Mesmo se o mestre, em seu papel como um poder
discriminatório, não diz nada, o fato do pensamento ter
sido exprimido fará com que este tenha um efeito
discriminatório.
Cassiano relata o exemplo do monge que roubou o
pão. Num primeiro momento, ele não consegue confes-
sar seu ato. A diferença entre bons e maus pensamen-
tos é que estes não podem ser expressos sem dificulda-
des, já que o mal é oculto e negado. O fato dos maus
pensamentos não poderem ser expressos sem dificul-
dades e constrangimentos, pode fazer com que não se
estabeleça a diferença cosmológica entre a luz e a es-
curidão, entre a verbalização e o pecado, entre o segre-
do e o silêncio, entre Deus e o mal. O monge, então,
prostra-se e confessa. Apenas a confissão verbal o livra
do demônio. A expressão verbal é o momento crucial (Se-
gunda Conferência do Abade Moisés II). A confissão é uma
marca da verdade. Essa idéia da verbalização perma-
nente é apenas um ideal. Nunca é completamente. O
preço da verbalização permanente foi transformar em
pecado tudo aquilo que não pode ser expresso.
Como conclusão, no cristianismo dos primeiros sé-
culos, há duas formas de revelação de si, de demonstra-
ção da verdade sobre si. A primeira é a exomologêsis, ou
a expressão dramática da situação do penitente como
pecador, que torna pública sua condição de pecador. A
segunda é aquela denominada na literatura espiritual
exagoreusis. Esta é uma verbalização analítica e contí-
nua do pensamento, conduzida em relação à obediência
total a outra pessoa. Essa relação é corporificada na re-
núncia da vontade própria e na própria renúncia de si.

359
6
2004

Há uma grande diferença entre exomologêsis e


exagoreusis; no entanto é preciso destacar o fato de que
há um importante elemento em comum: não se pode
revelar sem a renúncia. Exomologêsis tinha como mo-
delo o martírio; o pecador tinha que se matar por meio
do auto-flagelo ascético. Seja por meio do martírio ou
por obediência a um mestre, a revelação de si é a re-
núncia a si mesmo. Na exagoreusis, de outro lado, o in-
divíduo mostra que, pela verbalização permanente do
pensamento e pela constante obediência ao mestre,
renuncia a sua vontade e a si mesmo. Esta prática es-
tende-se do início do cristianismo até o século XVII. O
surgimento da penitência no século XIII é um passo
importante em sua ascensão.
O tema da renúncia de si é muito importante. Ao
longo do cristianismo, há uma correlação entre a reve-
lação de si, dramática ou verbal, e a renúncia de si.
Minha hipótese ao observar essas duas técnicas é a de
que a verbalização torna-se a mais importante.
Desde o século XVIII até o presente, as técnicas de
verbalização foram reinseridas em diferentes contex-
tos pelas denominadas ciências humanas com o objeti-
vo de utilizá-las sem a renúncia de si, mas para consti-
tuir, positivamente, um novo sujeito. Utilizar essas téc-
nicas sem renunciar a si mesmo constitui uma ruptura
decisiva.

Tradução do inglês por Andre Degenszajn.

Notas
1
Michel Foucault. “Technologies of the self ” in Luther H. Martin et al (orgs.).
Technologies of the self – a seminar with Michel Foucault. Amherst, University of
Massachusetts Press, 1988. 176 pp.

360
6
2004

362
verve

NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

hypomnemata
Boletim eletrônico mensal, 1999-2004

vídeos
Libertárias, 1999
Foucault-Ficô, 2000
Um incômodo, 2003

CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um
incômodo)

Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2003

1. a anarquia Errico Malatesta

2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston

3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.

4. municipalismo libertário Murray Bookchin

5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux

6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky

7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua portu-

guesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva

8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin

9. deus e o estado Mikhail Bakunin

10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin

11. escritos revolucionários Errico Malatesta

12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares

13. do anarquismo Nicolas Walter

14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau,

363
6
2004

Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero

15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton,

Schuster, Kyrou, Legrand

16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda,

Berkman

17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti

18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo

Colombo

19. o essencial proudhon Francisco Trindade

20. escritos contra marx Mikhail Bakunin

21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud

22. a instrução integral Mikhail Bakunin

23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino,

Enckell

24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag

25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón

26. a revolução mexicana Flores Magón

27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo

Livros

Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro,


Editora Revan/Nu-Sol, 2004.

Edson Passetti (org.). Kafka-Foucault, sem medos. São Paulo, Ateliê


Editorial, 2004.

Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone


Editora/Nu-Sol, 2003.

Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed.


Imaginário/Nu-sol, 2001.

364
verve

Publicações Libertárias em Língua Portuguesa

verve
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Novos Tempos
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365
6
2004

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Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.

Ex: Max Stirner. O falso princípio de nossa educação. São Paulo,


Imaginário, 2001, p. 74.

II) Para artigos ou capítulos de livros:

Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,


página.

366
verve

Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in En-


saios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores,
p.76.

III) Para citações posteriores:

a) primeira repetição: Idem, p. número da página.

b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.

c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor,


ano, op. cit., p. número da página.

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lo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.

V) Para obras traduzidas

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número


de páginas. Tradução de [nome do tradutor].

Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins


Fontes, 2000. Tradução de Salma T. Muchail.

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