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Traduzir o outro

etnografia e semelhança
Marco Antonio Gonçalves

Traduzir o outro
etnografia e semelhança
© 2009 Marco Antonio Gonçalves

Produção editorial
Debora Fleck
Isadora Travassos
Marília Garcia
Valeska de Aguirre

Editora-assistente
Larissa Salomé

Produção gráfica
Isabella Carvalho

Revisão
Fernanda Machtyngier

Imagens
Laura Kaxináua (contra capa)
Marie Catarina Lagrou Gonçalves (capa)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Gonçalves, Marco Antonio


Traduzir o outro / Marco Antonio Gonçalves. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2009.
172p.
Inclui bibliografia

ISBN 978-85-7577-601-8

1. Antropologia - Filosofia. 2. Etnologia. 3. Tradução e interpretação - Aspectos


sociais. 4. Linguagem e cultura. I. Título.

09-3150. CDD: 306


CDU: 316

2009
Viveiros de Castro Editora Ltda.
R. Goethe, 54 – Botafogo, Rio de Janeiro RJ cep 22281-020
(21) 2540-0076 | editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
Sumário

Introdução 7

Parte 1: Analogia e escrita etnográfica


Tradução: “etnografia selvagem”, coautoriatextual e a
construção da língua-mito-mundoem Capistrano de Abreu 19
O ponto de vista indígena 21
O método e a escrita: Capistrano e seus índios 26
Experiência: Firth e os Tikopia 52
A carne e ossos: gêneros de etnografia em disputa 52
Do “nós os tikopia” ao “eu Raymond”:
rabalho de campo e subjetividade 54
A compulsão do descrever e o dever do narrar 59
Significado: a representação darepresentação em Roy Wagner 73
Da precisão de um conceito impreciso: cultura 73
Inovação cultural e a produção do significado 77
Metáfora, ação e transformação 81

Parte 2: Analogia e pensamento ameríndio


Zonas de contato: quando “cultura” se torna um
conceito nativo (os índios na contemporaneidade) 87
Alteridades em contraste: terras, estradas e artesanato 89
Do genérico e do singular: ser Paresi 93
Redescobrir o mundo através do outro: o eco-turismo 96
Objetos como artefatos da memória: os Paresi no Rio de Janeiro 99
Zona de contato: churrasco de domingo 103
Simultaneidade: “qualidades do ser”, ontologia
e alteridade ameríndia 105
Cromatismo: a semelhança e o pensamento
cromático ameríndio 113
O parecer 115
Descrições da semelhança 116
Parecidos, mas diferentes 118
Semelhantes e misturados 122
O pensamento cromático 126
Singularidade: pessoa, individuação e processos
de subjetivação em uma ontologia amazônica 135
Experiência pessoal 135
O pessoal e o social 140
A individuação como valor 143
Conceituando o pessoal e a pessoalidade 151
Bibliografia 159
Introdução

A analogia é a função mais alta da imaginação porque


ela conjuga a análise e a síntese, a tradução e a criação. É, ao
mesmo tempo, conhecimento e transmutação da realidade. Por
um lado é um laço que junta épocas e civilizações diferentes, por
outro é uma ponte lançada entre linguagens diversas.
Paz, O. 1972: 62-63 apud, Racine, 1989

Parece que a analogia está no centro da reflexão antropológica por evo-


car os princípios pelos quais a Antropologia se constrói: alegoria, semelhan-
ça, metáfora e comparação. A Antropologia como método e epistemologia
se funda nos mesmos parâmetros que regem o conhecimento estabelecido
pela analogia: a capacidade de buscar semelhanças entre coisas diferentes
ou desiguais. Assim, o pensamento antropológico é analógico, uma vez que
permite tanto ao autor como ao leitor, tanto ao antropólogo quanto ao na-
tivo, a possibilidade de estabelecer semelhanças entre coisas (Ceia, 2005).
Neste sentido, a etnografia, vocação da Antropologia, produz um exercí-
cio permanente de fazer relação entre pensamentos que são essencialmente
diferentes, construindo daí uma espécie de circuito integrado entre partes
(Strathern, 1991: 55).
É neste sentido de “conexão entre partes” através da escrita da etnografia
que se pode entender que a Antropologia conjuga uma modéstia excessiva
associada a uma grande pretensão: o que pode ser designado como a vocação
etnográfica e a vocação teórica da disciplina. Este modo característico de pro-
duzir conhecimento faz com que a Antropologia dialogue com, ou mesmo
contradiga, as teorias sociológicas a partir de situações etnográficas concretas
e particulares. Esta característica de lidar com o particular e o modo com que
realiza a pesquisa baseada no trabalho de campo parecem ser o que mais atrai
as pessoas para a Antropologia. Esta capacidade do etnográfo fazer amigos e
ser influenciado por eles definiria, assim, a “máxima” da Antropologia, que é,
justamente, uma modalidade de diálogo que engendra uma aparente proxi-
midade com a vida (dos outros e do próprio antropólogo). Se a Antropologia
pudesse ser comparada a um instrumento musical, eu diria que ela seria o
violão, um instrumento popular, fácil de “arranhar” (com pouco esforço é
possível tocar uns acordes e improvisar uma canção), mas muito difícil de
ser bem tocado. Assim, a Antropologia se constrói sobre esta tensão entre o

7
que chamamos etnográfico e conceitual (sem nunca caminharem separados),
tensão mesma que revela simultaneamente sua pretensão e modéstia, tensão
que pode tanto fazer desandar e desafinar uma etnografia como pode produ-
zir verdadeiras sinfonias.
A Antropologia desde sempre privilegiou a palavra do outro como fonte
de conhecimento. O trabalho de campo empreendido pelo antropólogo é,
na maioria das vezes, o método de aceder a estas palavras através de outras
palavras, as do antropólogo. Assim, a Antropologia se constrói pelo diálo-
go, conversa, tradução, citação, interpretação, crítica num incessante cru-
zamento de universos conceituais. Se as palavras dos outros têm um poder
de transformar as nossas palavras e vice-versa, é justamente pelo fato de que
são engendradas e fabricadas a partir de uma relação entre sujeitos, essência
mesma do fazer etnografia. Esta relação entre os conceitos que a Antropolo-
gia formula e a etnografia que originalmente os produziu é de tal ordem que
muitas das chamadas categorias nativas ganharam estatuto de conceitos e/ou
problemáticas da Antropologia.
As formulações de Malinowski apresentadas nas últimas páginas dos Ar-
gonautas do Pacífico Ocidental fazem, ainda hoje, eco sobre a relação entre
os conceitos do antropólogo e dos nativos. A partir da discussão dos fatos
etnográficos totem, mana, tabu e kula Malinowski atenta, justamente, para
a questão fundante da Antropologia, qual seja, de que os fatos etnográficos
observados nas tribos norte-americanas, na melanésia, na polinésia não são
fatos isolados, mas modelizações possibilitadas pelo processo de construção
de analogias entre múltiplos fatos que, sendo semelhantes, produzem uma
proposição teórica sobre o fenômeno em questão.
A Antropologia sempre enfatizou simultaneamente a questão da dife-
rença, da alteridade como garantia de construção de uma possibilidade de
conhecimento, e da semelhança, da analogia como possibilidade de “tradu-
tibilidade” da experiência etnográfica. Se a ênfase na diferença sempre foi
a tônica dos estudos antropológicos, queremos acentuar neste livro a sua
contra parte: a semelhança, concebida, aqui, como garantia dos processos
de cognição e conhecimento. Neste sentido, a busca de pontos de corres-
pondência entre mundos conceituais distintos seria, por assim dizer, uma
das questões centrais da etnografia. A concepção de tradução que constitui a
Antropologia moderna é justamente a possibilidade de produzir semelhan-
ças, articulações, correspondências, o que parece ser, em última instância, o
objetivo de toda e qualquer etnografia em cuja construção o antropólogo de-
sempenha o papel de tradutor de mundos outros para o seu próprio. Quan-

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do nos defrontamos com a história da Antropologia e seus desenvolvimentos
teóricos, percebemos que o debate gira em torno de possibilidades de tradu-
tilibilidade, gerando, consequentemente, uma reflexão sobre como se pode
proceder a esta tradução e quais são suas implicações para o estabelecimento
do sentido no modo como representamos e/ou apresentamos estes “outros”.
Chegamos aqui ao âmago da problemática antropológica: um modo de re-
fletir sobre a qualidade da tradução que evoca diversas conceituações sobre
o fazer antropológico e a forma como os antropológos constroem suas etno-
grafias. A partir do estabelecimento de semelhanças, os chamados nativos e
os antropólogos partilham não uma identidade de substância, mas relações
de correspondência, que permitem, assim, produzir um texto etnográfico
cuja função primeira é a de justamente criar a condição da “verossimilhança”
(Pina Cabral, 2003: 109) como possibilidade de compreensão. Neste
contexto, a escrita etnográfica estabelece um princípio de correspondência
em que a tradução não apenas cria um contexto de semelhança, mas esta-
belece uma compreensão criadora. A concepção mesma de tradução surge
como ponto de partida para o surgimento da primeira narrativa etnográfica
construída a partir do trabalho de campo e das expedições científicas ainda em
finais do século XIX. Refiro-me aqui à Etnologia Alemã de Adolf Bastian, Karl
von den Steinen e a do jovem Franz Boas, cujo paradigma influenciou defini-
tivamente o surgimento da Antropologia Americana enquanto possibilidade
de escritura do outro através do que se designava “fraselogia”. Um texto etno-
gráfico em que se valorava a tradução morfêmica e linear, derivado fortemente
da influência do romantismo alemão que percebia a língua como potência
reveladora de uma visão de mundo (Weltanschauungen). Lembremos aqui das
primeiras etnografias que apresentam enorme quantidade de frases traduzidas
morfemicamente, como as encontradas nas publicações do Bureau of American
Ethnology. Até este momento a possibilidade da etnografia como resultado direto
do trabalho de campo era derivada do universo da língua (paradigma que vai
influenciar gerações vindouras da chamada escola americana de Antropologia,
como Edward Sapir e, depois, os cognitivistas, como Ward Goodenough, e mes-
mo nos trabalhos de contemporâneos como Marshall Sahlins e Roy Wagner).
Pode-se dizer, com certa tranquilidade, que se Malinoswki não inventou o
trabalho de campo, fundou uma nova possibilidade de estabelecer o texto et-
nográfico inspirado francamente numa nova concepção de tradução ancorada
na ideia de autoria textual sob a influência do gênero romance (Thorton,
1983, 1985; Clifford, 1986, 1998), que passa a ser o gênero dominante
da narrativa etnográfica na Antropologia moderna.

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Tomando estas considerações como ponto de partida, este livro se divide
em duas partes. Na primeira abordo a questão do que designo “Analogia e
escrita etnográfica”, isto é, conceituações construídas pelas teorias antropoló-
gicas sobre as possibilidades de se estabelecer a semelhança, a correspondência
entre nós e os outros – tradução, experiência e significado. Já a segunda parte,
“Analogia e pensamento ameríndio”, procura apresentar resultados de minha
etnografia situando as possibilidades de tradução ao explorar o próprio con-
ceito de semelhança, de pessoalidade, individualidade e zonas de contato.
Vejamos os capítulos que compõem a primeira parte. No capítulo 1,
abordo as questões propostas pela etnologia alemã do final do século XIX a
partir de uma etnografia construída por Capistrano de Abreu sobre os Kaxi-
nauá. Percebe-se que todo o esforço de correspondência formulado por este
estilo de etnografia concebia a tradução livre como uma espécie de ‘traição’
de uma possível descrição do mundo cujo modo correto de ser apresentado
se baseava, antes de tudo, pela apreensão da língua. Partindo destas premissas
sobre o poder evocativo da língua-mundo, impôs-se o método da tradução
interlinear, morfêmica que redobra o universo da língua. Essa relação entre
língua/pensamento/cultura/visão de mundo estabelece influências que ligam
Capistrano de Abreu aos conceitos alemães de Völkergedanken (pensamento
dos povos), Weltanschauungen (visões de mundo) e Kultur (cultura) através
da Etnologia Alemã, aproximando-o, também, da abordagem boasiana de
Antropologia. A etnografia de Capistrano apresentava, na simultaneidade, a
forma (língua/gramática) e o conteúdo (cultura, pensamento) da narrativa.
A língua, a mitologia, o depoimento e a tradução interlinear era o modo de
se fazer etnografia e Antropologia antes do gênero que se impôs dominante nas
monografias em que as frases da língua indígena desapareceriam em favor do
surgimento de um autor, o antropólogo. Coerente com este estilo de produzir
a etnografia, Capistrano considerava seus informantes co-autores. Colabora-
ção que reforça sua definição de “etnografia selvagem” que é feita com (e não
sobre) os índios. Em contraste com este modelo de etnografia, surge posterior-
mente o que se designa por moderna etnografia, que surge a partir de outra
inspiração que tem como base uma percepção de língua que aceita a distinção
entre língua e cultura. Assim, a construção de um estilo etnográfico inglês ba-
seado em trabalho de campo na África se inspira diretamente no romantismo
das viagens e em autores literários (Thornton, 1983: 503). A ideia de
que o etnógrafo em última instância seria um artífice literário denotando uma
determinada concepção de etnografia se encontra claramente na formulação
malinowskiana quando afirma que ele próprio seria o “Conrad da Antropolo-

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gia” querendo, assim, estabelecer que ser etnógrafo é um modo de ser escritor
e tradutor de culturas (Stocking Jr., 1983: 104).
O capítulo 2 oferece uma releitura de Nós, os Tikopias de Raymond Firth,
propondo um retorno às questões cruciais para a Antropologia: o significado
de etnografia, de descrição, de apresentação dos dados, de interpretação, de
argumentação teórica. O texto de Firth, por ser inaugural de um estilo, ajuda
a compreender um sentido de etnografia e a instauração de princípios de cor-
respondência entre o pensamento nativo e do antropólogo. Esta reflexão sobre
Nós, os Tikopias procura explorar o sentido que Firth atribui a sua etnografia,
avaliando como esta forma de fazer Antropologia pode conhecer, como conhece
e de que modo constrói uma narrativa e interpretação sobre o conhecimento.
No capítulo 3 realizo um exercício de construção da problemática expos-
ta por Roy Wagner em seu livro Habu. The innovation of meaning in Daribi
religion (1972). Wagner, ao fazer uma etnografia da sociedade Daribi, propõe
uma nova forma de abordar a noção de cultura. Constrói uma “noção” de
cultura problematizando o universo das metáforas como locus privilegiado
de acesso às formas culturais. Assim, procuro apresentar a teoria da cultura
que ora aparece implícita, ora explícita na monografia de Wagner sobre os
Daribi da Nova Guiné. Partindo deste quadro conceitual, etnografia ganha
um novo sentido ao estabelecer um diálogo profícuo entre uma conceituação
nativa e uma conceituação dos antropólogos. Assim, é ao mesmo tempo uma
apresentação dos significados específicos que tornam este mundo apreensível
do ponto de vista conceitual e um modo de conceituar este mundo. Neste
sentido “... toda etnografia tem sua teoria... do mesmo modo que toda teoria
tem sua etnografia”(Wagner, 1972: 13). Sua preocupação, portanto, recai
na esfera das representações que, no seu entender, definem-se por princípio
como uma forma de criatividade. Representação envolve a apresentação de
elementos, ideias, objetos, imagens em forma de significação.
No capítulo 4, na segunda parte do livro, inicio uma reflexão a partir de
minha própria etnografia. Neste capítulo, apresento cinco cenários construí-
dos a partir das relações dos Paresi, grupo indígena de Mato Grosso, com os
brancos que ajudam a refletir sobre a construção do conceito de cultura pela
Antropologia e sua apropriação enquanto uma categoria nativa. O próprio
conceito de cultura passa a ser o que propicia uma correspondência entre os
Paresi e os brancos, incluindo aí a própria Antropologia. Inicio procurando
fornecer algumas formulações que orientaram a minha compreensão do con-
tato entre os Paresi e os brancos. Em primeiro lugar, destaco o trabalho de
Wagner (1986: 129) como um dos primeiros a desestabilizar o que se concei-

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tuava enquanto cultura ou sistemas estáveis de representações coletivas. Wag-
ner, ao sugerir que os significados culturais estavam “num constate fluxo de
contínua recriação”, dava um passo decisivo a uma reconceituação do que se
convencionou a chamar sistema interétnico e aculturação. A formulação “zona
de contato” (contate-zone) de Clifford (2000), derivada do livro Imperial Eyes
(1992), de Mary Louise Pratt, parece-me útil por ter a vantagem de não tomar
o “contato cultural” como uma forma progressiva, algumas vezes violenta, de
uma cultura tomar o lugar da outra. O que é enfatizado é um processo de par-
tilha e apropriação em perspectivas multidirecionais. A formulação “zona de
contato” nos permite escapar de uma redução do contato à definição de con-
juntos fechados que fazem trocas sempre desiguais que por sua vez instauram
relações estruturais de dominação e de resistência, produzindo necessariamen-
te relação entre classes e hierarquias étnicas. Esta busca de uma nova definição
sobre “o contato” lembra aquela formulada por Peter Gow (1991) a qual pensa
a relação interétnica como algo construído a partir da mútua inteligibilidade
ao invés de ser um espaço para contradições e paradoxos. Neste sentido, o con-
tato “articula” (termo que Clifford prefere usar) e não apenas “inventa” novas
tradições. O conceito de articulação, nesta nova acepção, parece ser útil pois
procura dar conta do encontro, relacionando o conhecido e o novo, os nossos
conceitos e os deles, as semelhanças e as correspondências.
O capítulo 5 parte de um filme realizado entre os Baniwa cujo perso-
nagem central, André Fernando, põe em evidência uma possibilidade de ser
e estar no mundo que desafia o nosso modo de pensar ocidental, em que
tomamos como contraditórias as identidades baseadas em ontologias e per-
cepções de mundos distintos. Portanto, a questão que move o pensamento
Baniwa – e por extensão o pensamento ameríndio – não se apoia no prin-
cípio do “ser ou não ser”, mas sim em um princípio no qual a diferença e a
alteridade engendram uma complexidade que envolve soma e síntese, adição
e não contradição. O ser, nesse universo, é resultado de processos, de relações
culturais e históricas na acepção que Strathern (2007) atribui à concepção
de socialidade. Assim, André Fernando experimenta, na simultaneidade, o
complexo de sua pessoa: presidente da Organização Indígena da Bacia do
Içana (Oibi), vice-presidente da Federação das Organizações Indígenas do
Rio Negro (Foirn), evangélico, liderança, intérprete de sua mitologia, sa-
bedor do catolicismo, implementador das estratégias de reflexão sobre uma
política de desenvolvimento sustentável para a região, empresário de visão
quando fala da exportação do artesanato do rio Negro para a cadeia de lo-
jas TokStok, vítima do veneno de seus inimigos que lhe querem mal, que

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invejam sua posição de liderança. Personagem fascinante, porque conjuga
os discursos político, social, cosmológico e mitológico para dar conta de
suas relações com os demais índios e com os brancos. O discurso de André
Fernando demonstra a complexidade do ser Baniwa hoje, a possibilidade de
pensar em conjunto, as diferentes ontologias que dão significado ao mundo
e que constroem de forma tensa, porém harmoniosa, a pessoa Baniwa: evan-
gelismo, pajés, venenos, política, cidade e floresta. Deste modo, esse filme-
etnografia engendra esse personagem delicado e intenso, que condensa todos
esses ingredientes, e a partir dele nos ajuda a refletir sobre o significado de ser
e não ser índio hoje, na contemporaneidade.
No capítulo 6 examino a noção pirahã igiábisai, que poderia ser descrita
como o “parecer” ou a “semelhança”, importante concepção que os pirahã
utilizam na construção de suas classificações sobre os seres e as coisas exis-
tentes no cosmos. Igiábisai estabelece a relação entre coisas, não por opo-
sição diferencial, mas por ligações baseadas em critérios de semelhança, de
contiguidade. Usando este princípio do “parecer”, os pirahã relacionam as
diferentes terras do mundo à terra que habitam, os animais existentes nos de-
mais patamares aos que existem em seu patamar, os seres das outras terras ao
ser humano, gente. A noção de igiábisai, de “parecer”, põe em relação todos
os elementos presentes no cosmos, evidenciando um modo singular do pen-
samento apresentar o mundo em que tudo se “parece” porém nada é exata-
mente igual. Esta forma do pensamento proceder, instaurada pelo “parecer”
remete-nos a uma outra noção, evidenciada por Lévi-Strauss nas mitológicas
quando procurava traçar as linhas mestras de um pensamento ameríndio,
qual seja, o cromatismo, definido a partir de sua conceituação musical, rela-
cionado aos pequenos intervalos, às contiguidades. Lévi-Strauss, ao se deparar
com o material mítico sul-americano, acentua a dialética entre os pequenos e
grandes intervalos, ou, para empregar termos apropriados à linguagem musi-
cal, entre o cromático e o diatônico. Embora acentue que a intenção última
do pensamento estaria ligada ao estabelecimento dos grandes intervalos e das
oposições mais fundamentais, isto é, ao modo diatônico, reconhece, também,
que o cromatismo é recorrente no pensamento ameríndio.
O capítulo 7 parte das proposições de Marilyn Strathern, especifica-
mente sobre o modo que repensa a teoria social (sobretudo os conceitos de
sociedade e indvíduo) a partir das conceituações dos melanésios. Em sua
percepção, o conceito clássico de sociedade estaria “obsoleto” (aqui ela está
engajada num debate com Durkheim) por ter sido constituído a partir de
um “anti-individual” no modo de representar o que é o social. Parafraseando

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Strathern quando procura conceituar relação social e socialidade (1996), o
individual é como um dos a priori kantianos, uma vez que sua conceitua-
ção é construída a partir do viés cultural ocidental que associa a ideia de
individual à de indivíduo, derivando uma percepção própria do pessoal na
construção dos sistemas culturais. Dumont (1978) e Mauss (2004), diga-se
de passagem, foram, sem dúvida, os primeiros a denunciar este viés ocidental
na percepção do individual. Seguindo estas concepções, percebemos que o
pessoal tomado como sinônimo do indivíduo foi de certo modo negligencia-
do enquanto podendo ter um rendimento conceitual positivo na formulação
das teorias, uma vez que a orientação da teoria sociológica buscava muito
mais a ideia de coletividade como sinônimo de sociedade, construída en-
quanto tribos, castas, grupos corporados que excluíam a experiência pessoal
ou a subsumiam enquanto uma determinação sociocultural (Rapport &
Overing, 2000). Vemos, neste caso, que a crítica ao conceito de sociedade
formulada por Strathern a partir dos melanésios produz, por sua vez, a crítica
ao conceito de indivíduo enquanto entidade discreta (aqui, no duplo sentido
da palavra de discrição e comedimento em relação às regras sociais). Deste
modo, iluminam-se outras áreas sensíveis de significação como o pessoal, o
singular, as emoções e as subjetividades daí derivantes (Rapport, 1994) e,
sobretudo, suas capacidades de produzir conceituações sobre o que chama-
mos “social”. Portanto, partindo da constatação da importância da conceitua-
ção do pessoal na forma como os amazônicos constroem seu conhecimento,
sua percepção e a forma como têm acesso ao mundo, procuro pensar como
esta singularização revestida de interpretações pessoais, de agências discretas,
especificidades e idiossincrasias podem ser conceituadas. Neste sentido, a
partir da formulação Pirahã e de outros contextos etnográficos amazônicos,
procuro conceituar positivamente e produtivamente o pessoal, o singular e o
discreto como formas constitutivas de produzir um sentido possível sobre o
que chamamos de sociedade e cultura ameríndia. Os Pirahã apresentam uma
forma peculiar de marcar o discreto, o singular, o pessoal que permite per-
ceber a importância desta forma de conceituação na construção do sistema
social. A experiência pessoal é uma forma privilegiada de se ter acesso ao que
poderia ser descrito como representações modelares da sociedade ou do cos-
mos. Este tipo de concepção conduz a uma conceitualização de sociedade ou
cultura que se apoia mais sobre o pessoal e sua autonomia na construção do
mundo do que em um paradigma saussuriano-durkheimiano que concebe a
parole subordinada a langue, o indivíduo à sociedade, percebendo o pessoal
como apenas uma manifestação do que seria o coletivo, o representacional, a

14
sociedade. A configuração etnográfica amazônica e os Pirahã, em particular,
permitem propor uma reflexão sobre o aspecto conceitual do pessoal e seu
rendimento na construção de uma percepção sobre o socius, isto é, como a
conceituação do pessoal é importante para produção dos significados.

***
Agradeço aos colegas do PPGSA/IFCS/UFRJ, que propiciam um am-
biente intelectual instigante e criativo. Em particular agradeço a Els Lagrou,
Emerson Giumbelli, Glaucia Villas Boas, José Reginaldo Santos Gonçalves,
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e aos demais colegas externos
que participaram dos Laboratórios de Análise Simbólica que muito me aju-
daram a formular as questões expostas neste livro: Marcos Veneu, Marcia
Contins, Márnio Teixeira Pinto, Ricardo Benzaquen de Araujo, Wilson Tra-
jano. Agradeço ainda a Antonella Imperatiz Tassinari, Eduardo Viveiros de
Castro, Jean-Pierre e Bonnie Chaumeil, Isabel Lustosa, Marcio Silva, Joan-
na Overing, Peter Gow, Philippe Descola, que me permitiram apresentar
alguns destes capítulos como “paper” em palestras na Reunião de Antro-
pologia do Mercosul (RAM), Associação Nacional de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (ANPOCS), École des Hautes Études en Sciences Sociales
(França), Univerty of St. Andrews (Escócia), Equipe de Recherche Amerin-
dienne (EREA, CNRS, França), Instituto Universitário de Pesquisa do Rio
de Janeiro (IUPERJ), Fundação Casa de Rui Barbosa. Agradeço, também,
a alguns colegas e amigos com quem pude discutir muitas das ideias sobre
minha etnografia Pirahã aqui apresentada: Aparecida Vilaça, Carlos Fausto,
Luiza Elvira Belaunde, Marcela Coelho de Souza, Marcio Silva, Marta Rosa
Amoroso, Tânia Stolze Lima.
Agradeço especialmente aos meus alunos Fabiene Gama, Rosilene Melo
e Roberto Marques, que fizeram uma leitura atenta e minuciosa deste texto
corrigindo e iluminando muitas das questões apresentadas.

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Parte 1

Analogia e escrita etnográfica


Tradução: “etnografia selvagem”, coautoria
textual e a construção da língua-mito-mundo
em Capistrano de Abreu1

... toda etnografia tem sua teoria... do mesmo modo


que toda teoria tem sua etnografia
Wagner, R., 1972: 13

O estilo de etnografia praticado por Capistrano,2 designado por ele mes-


mo como “etnografia selvagem” (Capistrano, 1969b: 137), revela uma
abordagem inovadora para a Etnologia no final do século XIX e nas primei-
ras décadas do século XX. Humboldt (Bunzl, 1996: 32-3) desenvolveu
uma teoria linguística que inspirou a Etnologia Alemã e, consequentemente,
a Franz Boas e a Capistrano: língua concebida enquanto uma capacidade de
individualizar uma forma e uma concepção de mundo. Deste modo, cada
língua teria sua própria forma interior e essa forma expressaria a visão de
mundo que têm seus falantes. Este paradigma linguístico que influenciou
uma geração de etnógrafos alemães marcou profundamente o modo como
se desenvolveu a etnografia no final do século XIX. Se a língua era o mundo,
a tradução livre poderia não apresentar o mundo tal qual era apreensível pela
língua, de forma que o método que se impôs foi o da tradução interlinear,
morfema por morfema redobrando o universo da língua. Quando muito,
1
As primeiras versões deste texto foram originalmente apresentadas no encontro da Associação de
Antropologia Americana – AAA (2002), no Laboratório de Análise Simbólica (2002) PPGSA-IFCS-
UFRJ e na Fundação Casa de Rui Barbosa em 2006.
2
Capistrano de Abreu (1853-1927) teve um papel destacado como historiador por ter estabelecido as
bases da nova história do Brasil a ser desenvolvida no século XX. Nasceu em Maranguape, no Estado do
Ceará e chegou ao Rio de Janeiro aos 21 anos, por intermédio de José de Alencar. Em 1875 ingressa na
carreira de jornalista e crítico literário. Trabalha como revisor na Gazeta de Noticias onde ganha o apelido
de “Peri de paletó surrado”. Neste período, “conhece senadores, convive com Machado de Assis com
quem compartilha aulas de alemão” (Amoroso, 1996: 183). Em 1879 tornar-se funcionário público
da Biblioteca Nacional. Em 1883 passa a ser professor de Historia do Brasil no Colégio Pedro II apresen-
tando a tese “O Descobrimento do Brasil”. Durante este período se dedicou também à crítica literária
publicando regularmente em jornais do Rio de Janeiro desde a década de 1870. Em 1887, elege-se para
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. “Entre 1881 e 1887 Capistrano de Abreu localiza, atribui
autoria e anota dezenas de manuscritos fundamentais para a história colonial do Brasil” (Amoroso,
1996: 183). De sua produção em história destacam-se os seguintes trabalhos: Ensaios e estudos que reúne
artigos, ensaios e prefácios e os livros Caminhos antigos e povoamento do Brasil, Capítulos de história colo-
nial e o Descobrimento do Brasil. Sua correspondência foi publicada em três volumes, em 1954.

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o que se fazia era glosa, anotações, mas jamais uma tradução livre. Pode-se
dizer que a escrita da etnografia se situava no universo da língua, em seu
aspecto de literalidade e não de tradutibilidade, uma vez que a tradução
poderia não expressar a visão de mundo de um povo. Essa relação entre
língua/pensamento/cultura/visão de mundo constrói um universo compar-
tilhado de influências e premissas que liga Capistrano aos conceitos alemães
de Völkergedanken (pensamento dos povos), Weltanschauungen (visões de
mundo)e Kultur (cultura) via a Etnologia Alemã, aproximando-o, também,
da abordagem boasiana de Antropologia.
A etnografia de Capistrano buscava, na simultaneidade, a forma (língua/
gramática) e o conteúdo (cultura, pensamento) da narrativa. A língua, a mi-
tologia, o depoimento, a tradução interlinear eram modos de se fazer etno-
grafia e Antropologia antes do gênero que se impôs dominante nas monogra-
fias em que a fala e a língua indígena desapareceriam em favor do surgimento
de um autor, o antropólogo ou o etnógrafo. Coerente com seu estilo de
fazer etnografia, Capistrano considerava seus informantes co-autores. Esta
colaboração reforçaria sua definição de “etnografia selvagem”, como aquela
feita com (e não sobre) os índios. Capistrano conscientemente buscava na
narrativa a expressão da etnografia: um modelo de etnografia para experts,
para entendidos. Uma narrativa que se distanciava dos relatos de viagem,
das impressões e descrições. Trilhando caminho inverso, aproximava-se da
língua, das frases, da palavra para chegar ao pensamento e à cultura do povo
estudado. Em contraste com esta percepção de etnografia, percebe-se que
a constituição da designada moderna etnografia só foi possível a partir de
outra inspiração que tivesse como base um paradigma de língua que aceitava
a distinção entre língua e linguística, língua e cultura e, a qual, transforma o
etnógrafo/antropólogo em tradutor.
Este capítulo procura analisar o texto etnográfico de Capistrano de
Abreu a partir de sua inserção em um debate antropológico e etnológico
mais amplo. Ao invés de considerá-lo sui-generis, como foi definido por
Baldus (1954: 16), explorarei seu texto buscando desvendar seu método de
coleta e interpretação dos dados linguísticos e etnográficos e as influências
teóricas que marcaram seu estilo de fazer etnografia.3 Sua experiência de tra-
balho com dois índios Kaxináwa e quatro Bakairi, que viveram por meses
3
Os artigos de Amoroso (1996) e Amoroso & Calávia (1995) foram o ponto de partida e a inspiração
deste capítulo. Ainda sobre o material etnográfico de Capistrano há um artigo de Erikson & Camargo
(1996) que partindo, das “adivinhações” recolhidas dos informantes Kaxináwa, avalia a frequência
deste estilo oral na Amazônia, mais especificamente entre os pano.

20
no Rio de Janeiro, permitiu a Capistrano construir um programa de inves-
tigação da língua e mitologia seguindo o paradigma da Etnologia Alemã.
A correspondência de Capistrano demonstra que Karl von den Steinen e
Paul Ehrenreich, proeminentes etnólogos alemães, exerceram uma forte in-
fluência em seu estilo de pensamento. De 1892 até 1925 Capistrano esteve
envolvido em um estudo profundo da língua e da mitologia que, segundo o
paradigma pelo qual se orientava, seria o principal material para se ter acesso
ao “pensamento” e à “cultura” das sociedades indígenas. É no conjunto de
sua correspondência (1.248 páginas impressas), no seu livro e ensaio sobre
os Kaxináwa, no ensaio sobre os Bakairi e nos seus Cadernos de Notas que se
encontra a maioria das referências que Capistrano fez aos seus informantes
e a seu método de trabalho. Procuro, assim, constituir e extrair deste vasto
material um quadro vívido de suas relações com os índios-informantes e suas
principais formulações sobre o significado de seu trabalho etnológico.

O ponto de vista indígena


Segundo Amoroso (1996), a obra historiográfica de Capistrano está pro-
fundamente marcada por sua percepção da Etnologia e da Sociologia4 de
sua época, fato que o permitiu exercer uma crítica rigorosa aos documentos
que lia e que editava sobre a História do Brasil. Pode-se argumentar que sua
obra etnológica estava determinada por uma concepção moderna de história
em que se opera uma conversão do “... historiador em um especialista, em
alguém cujo trabalho se caracteriza pela prática de um certo método, cha-
ve da verdade e da mentira, acessível apenas depois de árduo e demorado
aprendizado”(AraUjo, 1988: 31).
Neste contexto, a “História Moderna” de Humboldt, cujos princípios
metodológicos Capistrano seguia, influenciava uma concepção de etnografia
que pretendia ser uma “... verdade exata, rigorosa” (Araujo, 1988: 32-3).
Capistrano adotou o ponto de vista da etnografia indígena introduzindo
esta perspectiva no modo como construía sua História do Brasil. Assim, es-
tava permanentemente ocupado com os aspectos sociológicos da população,
de como se formou o Brasil a partir deste povoamento e das relações dos
diferentes grupos indígenas com os colonizadores. As diferenças indígenas
eram explicitadas, o índio não era um “tupi” idealizado do século XVI, mas
sim um contemporâneo sobre o qual Capistrano tomava conhecimento a par-
4
Araujo (1988: 34) chama atenção para a importância que a perspectiva sociológica veio a ter na obra
de Capistrano, sobretudo a influência de autores como Taine, Comte, Spencer e Buckle.

21
tir das novas fontes que surgiam produzidas pela chamada Escola Alemã de
Etnologia. Em seu livro Capítulos de História Colonial é notável a quantidade
de referências (mais de 150) aos índios e às suas relações com os europeus.
Considerando-os personagens ativos na formação do Brasil, Capistrano, ao
invés de fazer uma História, fazia na verdade uma Etnohistória do Brasil.
A polêmica com Sylvio Romero (Amoroso & Calávia, 1995:
252) sobre o lugar dos índios na sociedade brasileira demonstra o “ponto
de vista indígena” adotado por Capistrano. Em um ensaio crítico à obra de
Romero, ele (1969a) defendia o ponto de vista de que os Tupinambá, índios
que habitavam a costa quando do descobrimento do Brasil, e os Tupi em
geral tiveram grande influência na cultura nacional, nos aspectos linguísticos
e de miscigenação. A crítica a Romero consistia no fato de que este atribuía
aos negros maior importância que aos índios na formação do Brasil. Para
Capistrano, o erro de Romero reduzia-se a uma ilusão induzida pelo “aspecto
físico”, “a cor”, “a vista”, levando-o a crer que o Brasil era mestiço de negros
e brancos. Capistrano contra-argumentava que o índio em seu aspecto físico
se aparentava em muito com o europeu e por isso seus cruzamentos não po-
diam ser medidos pela cor resultante, algo fácil de identificar em relação aos
negros (1969a: 95-6). Concluía, assim, em favor da perspectiva indígena:
Os Tupinambá (...) foram decompostos radicalmente pelos portugueses. Os portugue-
ses passaram por mudanças muito menos graves, em presença dos Tupinambás. O ele-
mento aborígine é, se permitem a expressão, o veículo em que se dissolveu o elemento
português (1969a: 103).

E continua: “A antipatia do Dr. Sylvio Romero pelos Tupinambás e a


persistência com que lhes nega importância na formação do povo brasileiro,
explicam-se muito facilmente”(1969a: 107).
Neste ponto Capistrano sustentava que Romero confundia teoria literária
(era contrário ao movimento literário designado Indianismo) com o fato so-
ciológico, pois os Tupinambá, enquanto uma sociedade, não estavam no mes-
mo plano de relações que o Indianismo na literatura. Capistrano argumenta
em favor do Indianismo como força de expressão própria, procurando enten-
dê-lo sociologicamente como um movimento que mudava a perspectiva do
ser colonizado enquanto um ser inferiorizado. Amoroso chama atenção para
a importância do Indianismo de Gonçalves Dias e José de Alencar na obra de
Capistrano e identifica um programa comum de investigação histórica: “...
falar do Brasil era também falar dos índios”(Amoroso, 1996: 182). Nesse
contexto, o índio, suas “lendas” e seus “costumes” ganhavam valor tornando-

22
se uma metáfora para se pensar um Brasil independente. Capistrano defende,
sobretudo, José de Alencar e os primeiros escritores – Santa Rita Durão e Ba-
sílio da Gama – que instituíram o Indianismo, mas antes de ver estes autores
como causa do Indianismo, os vê como consequência. Assim, a partir de um
contexto histórico específico, a mudança de perspectiva da colônia, uma aspi-
ração de independência, pode surgir o Indianismo e não o contrário.
Segundo seu biógrafo, Hélio Vianna (1955), é a partir de 1890 que
se percebem profundas transformações na vida e na obra de Capistrano,
quando perde sua esposa e depois, em 1909, sua filha, Honorina, entra pa-
ra o convento das Carmelitas. Ele associa estes momentos ao seu interesse
pela etnologia e ao surgimento das singularidades de procedimento pessoal
que, a partir de então, marcariam o anedotário sobre seu caráter (Vianna,
1955: 35). Em 1888, aparece sua tradução das primeiras 115 páginas do
livro de Karl von den Steinen, O Brasil central (o original saiu em alemão em
1886). Foi neste momento, mais especificamente em 1891, que Capistrano
dá prova concreta do seu “nunca mais interrompido interesse pela etnogra-
fia brasílica” (Vianna, 1955: 35) ao iniciar a tradução para o Jornal do
Comércio do trabalho de Paul Ehrenreich sobre a “Divisão e Distribuição
das tribos do Brasil, segundo o estado atual dos nossos conhecimentos”.5 O
esforço de Capistrano para traduzir essa obra parecia se adequar a um pro-
jeto de divulgação deste novo ponto de vista sobre os indígenas brasileiros.
O trabalho de Ehrenreich, contemporâneo de Capistrano, consolidava uma
nova disciplina que se desenrolava no Brasil, da qual Capistrano, agora como
tradutor, não gostaria de ser apenas um seguidor solitário. Ele percebera, des-
de muito cedo, que Karl von den Steinen (1855-1928) seria o “decano dos
exploradores etnográficos da América do Sul” (Nordenskiold, 1930:
221; Roquette-Pinto, 1940: 83), um renovador da investigação cien-
tífica sobre os índios do Brasil, e que se operava com a obra de Steinen uma
revolução nos métodos de investigação etnológica. O próprio Karl von den
Steinen, em uma carta a Virchow, define de forma penetrante as questões
intelectuais que estavam em voga no final do século XIX no Brasil, dando-se
conta de sua inovação metodológica tão bem percebida por Capistrano:
Agradeço todos os dias aos deuses por ter me tornado pesquisador africano na América
do Sul. Há demasiado trabalho, mas o país está fora de moda e os brasileiros mesmos,
totalmente obcecados por seu tupi, somente se dedicam ao estudo do índio impresso
nos livros desde os tempos antigos... (1888, apud Thieme, 1993: 76).

5
Reproduziu esta tradução no ano seguinte na Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro.

23
Steinen, ao se caracterizar como um pesquisador “africano” na América
do Sul, enfatiza a necessidade da expedição etnográfica e do trabalho de cam-
po. Era preciso fazer no Brasil o que se fazia na África: estudar os nativos con-
temporâneos, sua língua e sua cultura. Com isso Steinen acentuava a contem-
poraneidade dos índios e a novidade da descoberta de outras culturas que não
a tupi para o entendimento da etnografia americana. Capistrano, sedento por
novidades e querendo fazer uso destas novas pesquisas nas suas interpretações
sobre o Brasil (Amoroso, 1996; Amoroso & Calávia, 1995: 252)
abraçava outra causa que não a tupi, procurando assim trazer novas regiões e
novas questões para a “etnografia brasílica”. Ao traduzir a proposta de Steinen
toma o lugar de seu divulgador, querendo, senão iniciar uma mudança, pelo
menos produzir uma influência na intelectualidade brasileira:
A etnografia já era, a esse tempo, preocupação permanente do escritor que tão má im-
pressão guardava da história proximamente vivida. Seria uma evasão para o crescente
pessimismo com que passou a ver toda a situação política do país. Seu primeiro traba-
lho original a respeito foi “Os Bakairi” (Vianna, 1955: 37).

Este trabalho, como reconhece Capistrano, apareceu como influência


direta do trabalho de Karl von den Steinen sobre os Bakairi, publicado em
1892. Entre 1892 e 1925 Capistrano estuda a língua Bakairi, trabalhan-
do com diversos índios ao longo de todo este período, como demonstram
as referências a este trabalho em sua correspondência. Publica apenas parte
dos resultados, e o restante do material que ele havia organizado (uma mo-
nografia de 400 páginas) se perdeu. A essa altura Capistrano já poderia se
considerar um etnólogo ou ao menos pleitear um título e uma filiação: em
1895 é admitido como membro correspondente da Berliner Gesellschaft fur
Anthropologie, Ethnologie und Urgeschichte, que, segundo Rodrigues (1970:
189), Capistrano considerava um de seus maiores títulos.
Entre 1906 e 1907 prossegue em seu trabalho de divulgação da etno-
grafia alemã, traduzindo dois trabalhos de Paul Ehrenreich: “A etnografia da
América do sul ao começar do século XX” publicado na revista do IHGB
e a “Etnografia Selvagem”, que aparece no Almanaque Brasileiro Garnier.6
Capistrano reconhecia explicitamente sua filiação a este conjunto de traba-
lhos que ajudava a propalar e em uma nota sobre a classificação da língua
dos Kaxináwa ao grupo Pano, quando da publicação em 1914 de seu livro
sobre a língua e narrativas deste grupo, informava que tal vinculação se devia
6
Araujo (1988: 33) situa a busca de novas fontes e as traduções realizadas por Capistrano no “ideal da
busca ‘moderna’ da verdade” condizente com as novas bases de uma “história moderna”.

24
às monografias de Ehrenreich, as quais havia traduzido, acrescentando que
antes destes trabalhos, “as questões etnográficas eram geralmente desconhe-
cidas no Brasil” (1941: 5).
A etnografia produzida por Capistrano era, do ponto de vista dos historia-
dores de então, um escapismo frente aos problemas da vida e não uma inten-
ção séria e escolha racional. Capistrano, em carta a seu amigo José Veríssimo,
se expressa do seguinte modo quanto a seus interesses para além da história:
Quando pensei em consagrar-me à História do Brasil, resultado de uma leitura
febricante de Taine, Bucckle e da viagem de Agassiz, feita ainda no Ceará, não me
lembro se pretendia abarcar toda a história. Mais tarde reconheci que era necessário
incluir a época contemporânea, mas minha curiosidade dispersou-me a atenção
por toda parte e agora posso dizer como Monte Alverne: é tarde! É muito tarde!
(Vianna, 1955: 98).

Os estudos etnográficos de Capistrano atraíram a crítica dos historiado-


res que os consideravam como uma divagação ou dispersão de interesse. Um
de seus contemporâneos disse: “Seu precioso tempo, cultura e mentalidade
vai gastando no estudo da língua dos índios caxinauás; melhor fora que o
fizesse em obra de mais utilidade e relevância (Rodolfo Teófilo, 1922 apud
Vianna, 1955: 99; Amoroso & Calávia, 1995: 251).
Em uma carta a seu amigo Mário de Alencar escrita em 1911, Capistrano
chega a refletir sobre seu trabalho com os índios pondo em cheque mesmo a
validade de seus anos de dedicação ao tema: “Para que se ocupar com índios? É
uma dissipação sem utilidade. Não sei bem o que você pretende procurar, mas
asseguro-lhe desde já que sairá desiludido” (Rodrigues, 1954, I: 228).
A partir de 1909 Capistrano se ocupa de outro grupo indígena: os
Kaxináwa, do Acre. Dois índios passam a viver com ele no Rio de Janeiro,
e “com esses documentos vivos”, trabalhou intensivamente por mais de seis
meses, principalmente na Fazenda Paraíso, de propriedade de seu amigo e
conterrâneo Virgílio Brígido, situada no município Fluminense de Carmo,
à margem do Rio Paraíba. Por muitos anos continuou em contato com os
dois índios, que acabaram por fixar residência no Rio de Janeiro. Os resul-
tados destas pesquisas foram publicados em artigos do Jornal do Comércio
em janeiro de 1910, dezembro de 1911 e janeiro de 1912. O volume que
reunia o material se perdeu num incêndio ocorrido na Imprensa Nacional
em 1911, do qual se salvaram apenas uma coleção de provas incompletas,
que serviram para Capistrano refazer todo o trabalho (Vianna, 1955:
53), publicando-o em 1914 (reeditado postumamente em 1941) sob o

25
título Rã-Txa hu-ní-kuí, que significa Rã-txa (língua), huní (gente) e kuí
(próprio ou verdadeiro).7

O método e a escrita: Capistrano e seus índios


Os Bakairi: Irineu, Antônio e Mogói
Se foi através de Steinen que Capistrano se encaminhou para a etnologia,
este não sabia a princípio os reais planos de Capistrano. Steinen o considerava
um historiador e foi assim que o tratou nas suas duas primeiras cartas, nas que
discute a forma que daria a seu livro sobre sua primeira expedição ao Brasil, ao
mesmo tempo que lhe pedia informações históricas sobre a região do Xingu.
Porém, na carta de 28 de setembro de1885, Steinen escreveu para Capistrano
agradecendo-o pelas informações recebidas e aproveitou para discutir com ele
a classificação linguística proposta por Martius, julgando-a equivocada,8 reco-
nhecendo que estas críticas partiram do próprio Capistrano (Rodrigues,
1954, III: 12-123). É na carta de 7 de dezembro de 1892 que ocorre o cha-
mado à etnologia e o momento da “conversão” de Capistrano. Steinen envia-
lhe o Die Bakairi-Sprache, A Língua Bakairi, dizendo-lhe que iria encontrar
dificuldade com os termos técnicos por se tratar de um livro para iniciados,
mas o enviava assim mesmo, pois poderia interessar a alguém no Brasil. Nes-
ta mesma carta Steinen discute a importância de se aprender as línguas para
se chegar a uma comparação das migrações dos grupos e do povoamento e
acrescenta ainda que ninguém havia feito isso com o tupi e que material não
faltava para quem desejasse acompanhar suas migrações e deslocamentos pela
América. Nesse momento tem início o interesse de Capistrano pelos Bakairi,
em particular, e pela Linguística e Antropologia de forma geral:
Ao mesmo tempo em que aparecia o livro do Dr. Steinen sobre a língua, estava aqui
um Bakairi trazido do Paranatinga pelo Dr. Oscar de Miranda, quando realizou sua
tão tormentosa viagem rio-abaixo até o Amazonas. Com o mesmo índio pode quem
escreve estas linhas estudar o livro do sábio alemão, vocábulo por vocábulo, e não
acha palavras bastantes para exprimir a admiração que lhe causam o exato da transcri-
ção fonética, agudeza com que foram penetradas as formas gramaticais, a intensidade

7
Em 1917 este livro sobre os Kaxináwa recebeu o prêmio D. Pedro II do IHGB, mas Capistrano não o
aceitou. passando-o adiante. Resultado deste episódio foi o apelido de “Esaú” que recebeu de Roquet-
te-Pinto por preferir “um prato de lentilhas a um prêmio do IHGB” (Roquette-Pinto, 1928).
8
Steinen fazia críticas à existência de uma família linguística “guck” proposta por Martius, que na ver-
dade nunca existiu, e ao seu modo de classificação e agrupamento das línguas ameríndias em famílias
e troncos (Schaden, 1955: 1157).

26
com que foi apurado tudo quanto nos materiais colhidos havia de aproveitável... Com
aquele índio, chamado Irineu, foram apanhados muitos textos – lendas, descrições,
tradições (Capistrano, 1969b: 139).

De seus estudos sobre os Bakairi resta apenas um único estudo publi-


cado na Revista Brasileira, 1, tomo III e IV, em 1895. Esta publicação de
36 páginas se divide em duas partes: “Língua” e “Concepção de Mundo”,
temas que já definiam uma percepção de Capistrano sobre o modo como
era construído o conhecimento etnográfico. Inicia a publicação procurando
descrever os livros de Karl von den Steinen sobre os Bakairi e a importância
de Steinen a quem não dispensa uma intensa adjetivação:
Dois livros são o fruto desta viagem: uma monografia sobre a língua dos Bakairi, pu-
blicada em 1892, a narrativa publicada em 1894, em volume ricamente ilustrado, bri-
lhantemente escrito, vigorosamente pensando em que se discutem assuntos capitais de
história primitiva da humanidade: para resumir tudo em uma palavra, a mais opulenta
contribuição moderna sobre quanto importa aos nossos silvícolas (idem, ibidem).

Deste modo, Capistrano associava o aspecto textual à construção de uma


etnografia, as transcrições são associadas diretamente às descrições etnográ-
ficas, às tradições e lendas, unindo de forma indissolúvel língua e cultura.
Seguindo os mesmos interesses da Etnologia Alemã, passa a descrever a língua
dos Bakairi em seus aspectos gramaticais e fonéticos e, posteriormente, à des-
crição de sua concepção de mundo, abordando desde a formação da natureza
humana, a partir da dualidade entre sombra e pele, lembrando que “corpo” e
“alma” parecem ser traduções inadequadas (idem: 157). Aborda a morte e os
espíritos do mundo a partir da dualidade do ser e destes “elementos” ou prin-
cípios que governam o pensamento Bakairi. Passa em seguida à descrição da
cosmogonia e dos princípios que estruturam o cosmos e os processos de trans-
formação. Neste momento usa a decomposição das narrativas como método
de descrição e gênero etnográfico, fornece uma tradução livre e uma associa-
ção de ideias propostas pelas narrativas míticas em estado bruto (que embora
não as apresente neste texto, refere-se a estas o tempo todo). Observamos
assim, tanto nos escritos sobre os Bakairi como sobre os Kaxináwa, o mesmo
estilo de produzir a etnografia a partir de dois gêneros interelacionados: as
“frases” que dão a unidade do pensamento, “brutas”, transcritas e traduzidas
e ao mesmo tempo um ensaio interpretativo baseado no “depoimento indíge-
na”, porém organizado por Capistrano, o que talvez ele próprio considerasse
ser apenas uma “tradução livre” do pensamento indígena. Na verdade, a ideia
de tradução, seja interlinear ou livre, definia este estilo de se fazer Antropolo-

27
gia e construir a etnografia peculiar à forma como os etnógrafos influenciados
pela Escola Alemã ao final do século XIX produziam seus trabalhos.9
Steinen se surpreende ao receber uma carta de Capistrano com uma
leitura cuidadosa e rigorosa de seu livro feita com a ajuda de um informante
Bakairi, o índio Irineu. Capistrano propõe tantas questões e de tal modo
elaboradas que obriga Steinen a ficar preocupado com a saúde do amigo,
incitando-o a “Não trabalhar demais!”. Steinen passa grande parte da carta
discutindo com Capistrano pormenores da língua Bakairi, procurando es-
clarecer os pontos complexos que Capistrano havia levantado. Steinen, ao
provocar Capistrano em carta anterior, dizia que umas dez ou onze pessoas
no mundo poderiam se interessar pelos escritos de um campo linguístico tão
isolado, não imaginava que Capistrano iria se converter com tamanho fervor
em uma destas pessoas que lhe tomariam a sério e levariam adiante seu pro-
jeto (Rodrigues, 1954, III: 128).
Em carta de 22 de fevereiro de 1893 a Mendes da Rocha, Capistrano diz
que continua
preparando o manuscrito para o prelo. Já está pronto o primeiro capítulo sobre as
partes do corpo, e vai bem adiantado o segundo, que trata de parentescos. Com este
começa o material novo que tenho colhido e consiste sobretudo em frases, descrições
de árvores e animais, e lendas. O Dr. Steinen reuniu todos os textos numa seção do
livro, e talvez este fosse o melhor meio; mas eu prefiro ir distribuindo-os pelo meio do
livro, porque quem quiser estudar a língua vai se familiarizando com ela. Além disso é
trabalho que fica feito de uma vez.

Referia-se aqui aos seus estudos com os Bakairi e vislumbrava uma possí-
vel publicação. Ainda na mesma carta afirmava que leu um artigo de Steinen
sobre “o modo de coletar as línguas selvagens”, o que teria facilitado sua em-
presa se o conhecesse antes (Rodrigues, 1954, I: 58). Escrevendo a José
Veríssimo em 28 de fevereiro de 1893, diz que
tenho adiantado muito os estudos de Bakairi. Já tenho umas 20 histórias, conheço uns
20 seres fantásticos de que von den Steinen nem teve notícia e tenho a história de Keri
e Kame, que é como a Gênesis deles, muito desenvolvida, quase completa. Creio que
ficará esta sendo a tribo se não melhor estudada, pelo menos a melhor documentada
do Brasil (Rodrigues, 1954, I: 190-1).

Em carta datada de 8 de março de 1893, diz que continua trabalhando


sobre o material Bakairi e que o primeiro e segundo capítulos estão prontos
9
A tradução parecia ser uma questão central da Antropologia em fins do século XIX e começo do
século XX e pode ser evidenciada nos trabalhos de Max Schmidt, Koch-Grünberg, Steinen, Boas e nas
publicações do Bureau of American Ethnology.

28
com novos acréscimos de seu informante Irineu. Informa que o terceiro ca-
pítulo será dos mais maçantes. A esta altura já havia coletado 4 mil frases e
com outros acréscimos, como descrição de animais, plantas e objetos etnográficos,
creio que chegarei a 5.000: é bastante. Se eu chegar, como pretendo e é fácil, a organi-
zar o glossário, posso deixar o Bakairi na certeza de não ter sido inútil o seu conheci-
mento (Rodrigues 1954, I: 60).

Em março do mesmo ano lê-se:


Meu trabalho com Irineu vai bem, por outra o livro não produziu efeito nem se tornou
necessário. Não sei mesmo se virá a tornar-se, porque o gênio e o gênero de contos
variam muito nas duas línguas e correspondentes nações.

Capistrano se refere aqui ao livro de Barbosa Rodrigues, às lendas tupi


por esse compiladas, cujo material comparava com os dados Bakairi. Nesse
momento está preocupado em comparar os Bakairi aos tupi, com o objetivo
de provar que não há nenhuma relação existente entre as duas línguas. Pre-
tende, assim, sair da tupinologia que dominava os meios intelectuais brasilei-
ros de seu tempo. É o que fica demonstrado em uma carta da mesma época
endereçada à H. von Ihering, à época Diretor do Museu Paulista. Relata
que lia os dados de Barbosa Rodrigues e de Couto de Magalhães e que não
encontrava nenhuma relação entre o Bakairi e a língua geral, nem mesmo no
conteúdo das lendas. Reforçava, deste modo, a hipótese de Steinen de que os
caribes e os tupi eram de troncos diversos, procurando ao modo de Steinen
estabelecer os possíveis “centros de irradiação” da cultura caribe em relação à
localização dos Bakairi (Rodrigues, 1954, I: 61).
Há um intervalo de 26 anos entre a última referência aos Bakairi até sua
reaparição como tema de trabalho, em 20 de fevereiro de 1920. Capistrano,
desde fins de 1918 e começos de 1919, retomava seu material passando tudo
a limpo em novos cadernos, organizando deste modo o material. Começou
uma organização temática: gravidez, casamento, pintura do corpo, festas, al-
mas, feiticeiros. Procurou distribuir os assuntos em dez capítulos. Lembrou-
se de seu primeiro informante Irineu e imaginou que estava morto. Chegou
à conclusão em carta da mesma época que as histórias Bakairi eram mais
variadas e mais interessantes que as dos Kaxináwa.
“A desgraça é que esqueci quase tudo e, como descuidei-me de fazer as
traduções enquanto Irineu morou comigo, as lacunas hão de ser numerosas”
(Rodrigues, 1954, III: 55). Seu desejo de retomar o estudo sobre os
Bakairi o fez pedir ao genro de Rondon, o Capitão Amarante, que trouxesse
um índio do Paranatinga. Em três meses chegaria o índio Bakairi ao Rio de

29
Janeiro. Capistrano se empolgou em fazer, então, a gramática completa do
Bakairi. Pediu uma fazenda emprestada a um amigo, para trabalhar com
o índio distante da cidade, onde, segundo ele, não era um lugar adequado
para índios viverem (Rodrigues, 1954, III: 58). Enquanto aguardava a
chegada do índio, estudou a fundo os materiais Bakairi. Escreveu de Poços
de Caldas a um amigo em 13 de fevereiro de 1921:
Caldeio-me e Bacairizo... Pedi a Calógeras que telegrafasse a Rondon sobre o Bakairi,
que o genro ofereceu arranjar por intermédio da Casa Orlando em Cuiabá. Aqui
encontrei o gerente, que ontem partiu para São Paulo... prometeu fazer o possível
para trazer o índio em maio ou junho, quando virá concluir o tratamento em Caldas.
Índio em cidade é como peixe fora d”água; para servir bem, deve ser levado para fora
(Rodrigues, 1954, II: 406-7).

Capistrano não media esforços para obter um índio Bakairi que o aju-
dasse a terminar seu trabalho. Em 25 de abril de 1921 escreve que
estive anteontem com Calógeras que me deu as primeiras notícias do Rondon. Este pro-
videnciou para vir não um, mas dois Bakairis. Não os trouxe ele próprio porque o mais
velho ainda não chegara do Ronuro, uma das cabeceiras do Xingu. Parece o mesmo
que acompanhou C. v. d. Steinen na descida do rio e deu o material em que assenta a
gramática impressa em 1892 pela qual orientei meus trabalhos. Se for, que coincidên-
cia! Sabê-lo-ei hoje mesmo. Rondon é meu vizinho, somos até muito amigos, embora
poucos encontros tenhamos tido, porque conheço desde meninos dois genros dele, um
dos quais esteve morando comigo enquanto conveio ao namoro. A vinda de dois índios
satisfaz-me pouco. Acomodar um já é difícil (Rodrigues, 1954, II: 208).

Em 22 de junho de 1921 os índios finalmente chegam:


Mal acabava de ler sua carta, entrou-me pelo quarto o capitão que de Mato Grosso
trouxe os dois índios. Recebi-os a Bakairi: maiwili, taxo, maiwili iwe, vieste avô, vieste
neto. Deviam responder ee, kaiwili, sim, vim. O mais velho é o mesmo índio que em
1884 desceu o Xingu com Carlos von den Steinen e fez depois com este a viagem a um
dos afluentes: ainda agora lá estava. Foi quem deu todos os elementos elaborados no
livro do alemão e agora poderá revê-los com mais vagares: este é do Paranatinga, uma
das cabeceiras do Tapajós. O outro é do Culuene, uma das cabeceiras do Xingu; por
isso, parece-me perfeita inutilidade, quinta roda de carro. Causou-me espécie a vinda
de dois em vez de um índio. Eu não quero mais novidades: quero apenas apurar os do-
cumentos apanhados, um só era suficiente e diminuiria as despesas. O Antonio, hoje
capitão do Paranantinga, não teve boa impressão do pobre Irineu, com quem trabalhei
no século passado. “Saiu de lá pequeno, não sabia nada, dizia erradamente tudo”. Iri-
neu figurava um estudante muito inteligente e aplicado, que concluiu com distinção
suas humanidades. Antonio era disposto a trabalhar; de vez em quando mostra sua
pontinha contra o Irineu, meu primitivo informante; mas tacitamente vai conhecendo
o seu valor. Escreverei suas histórias, mas em português. Lembrei ao Cícero, ao Ron-

30
don o emprego do fonógrafo, se as quiserem em Bakairi. Amanhã às 6 tomarei com os
índios o trem da Leopoldina, que às 10 nos porá na estação Moura Brasil, donde um
carro nos levará à fazenda do patrício amigo, às horas do almoço. Lá ficarei até con-
cluir. Tinha falado da demora de três meses; Antonio diz que, casado, com cinco filhos,
não poderá demorar tanto. Melhor (Rodrigues, 1954, II: 216-7).

Na “Véspera de S. João”, Capistrano já escrevia da fazenda: “... com dois


Bakairi arranjados pelo Rondon, vim ter a esta fazenda do Moura Brasil,
donde escrevo. A cidade representa um elemento estranho à psique selva-
gem, muito melhor lhe convém qualquer pedacinho de mato” (Rodri-
gues, 1954, II: 254).
Até o final de 1921 continua interessado em concluir seu trabalho sobre
os Bakairi, a gramática, a língua e a concepção de mundo. Rondon trouxe os
índios e Capistrano empregou o mesmo método de trabalho: sai da cidade,
produz um simulacro de aldeia ou de “campo” utilizando alguma fazenda de
um amigo e, assim instalado, inicia o trabalho nas frases e descrições. O traba-
lho se inicia mas logo surgem problemas: “Great expectations! Great expecta-
tions! Fiasco maior não se imagina. O Bakairi pegou gripe, ficou imprestável e
insuportável” (Rodrigues, 1954, II: 218). E finalmente, em menos de um
mês, os Bakairi precisam retornar, o que leva Capistrano a fazer uma avaliação
de seu trabalho e de seu método, que define como método de “confessionário”
opondo este ao de “missão”, atribuído, certamente, a Steinen:
Na próxima semana... irão os Bakairi de uma feita. Minha campanha, começada a 14
de julho, terá durado pouco mais de um mês. Lucrei bastante; quase todas as palavras
que ignorava fiquei sabendo; muitos dos lapsos do, aliás genial, livro de Carlos von
den Steinen puderam ser corrigidos, esclarecerei certos pontos de gramática. O estudo
da gramática é sempre aborrecido, porque a seu empirismo afiguram-se impossíveis as
coisas mais simples. Em suma, direi no prólogo, há dois modos de estudar uma língua
americana: o confessionário e a missão. Tendo usado do confessionário, vejo quanto é
imperfeito: as afirmações mais categóricas só adquirem valor, constatadas com o uso
cotidiano (Rodrigues, 1954, II: 219-20).

De posse dos novos dados e das correções proporcionadas pelos índios


Bakairi, Capistrano pensa novamente na publicação, realçando seu interesse
e sua paixão pela etnografia indígena, ao mesmo tempo que toma consciên-
cia de sua missão em concluir este estudo. Em 05 de fevereiro de 1923 es-
creve: “se o livro dos Bakairi – Bakáer”itano se chama – sair, poderei dormir
a meu gosto, cousa que ainda não fiz este século” (Rodrigues, 1954, II:
437). Por outro lado, Capistrano sabe de suas reais dificuldades em relação à
língua e pressente que precisa de um quarto informante. Solicita a Rondon
mais um índio Bakairi para ajudá-lo em sua tarefa:

31
Rondon está de partida para Mato Grosso; se ele me trouxer um índio, como vou
pedir-lhe, com mais comodidade trabalharei aqui do que lá. O índio servi-me-á de
vocabulário para as palavras, não muitas, cuja significação ignoro: novos ditados abso-
lutamente não quero (12 de março de 1923) (Rodrigues, 1954, II: 271).

À espera da chegada de mais um índio, Capistrano adiava seus planos


com a História Pátria e dizia que, embora devesse se preocupar este ano com
os materiais sobre a “visitação de Pernambuco”, precisava
olhar antes de tudo para o Bakairi. Foram tomadas providências para vir um do Para-
natinga, que servirá de vocabulário vivo. Teria de vir com Rondon, de viagem marcada
para 15, mas que teve de adia-la: não sei até que ponto isto influirá sobre o caso (8 de
março de 1923) (Rodrigues, 1954, II: 274).

Capistrano passa a morar em S. Vicente, litoral de São Paulo, onde espera


a chegada do índio.10 Enquanto espera, continua trabalhando seu material:
estou pegado no Bakairi, fazendo o que devia ter feito há muito tempo. Possuo um
exemplar do livro de Steinen com muitos acréscimos. Estou passando a limpo (...)
Ainda não estive com Rondon. Sei apenas que o índio só chegará mais tarde, até o fim
do mês ou até o princípio do ano. Quando chegar, já estará fora de casa três ou quatro
meses e impaciente para voltar: não poderei fazer o trabalho como queria (8 de nove-
bro de 1923) (Rodrigues, 1954, II: 284-285).

Finalmente chega o quarto informante Bakairi de nome Mogói para


passar uma longa temporada com Capistrano, que a partir daí não pára de
dar notícias de seu trabalho: “O Bakairi vai marchando... Comecei a com-
posição do Bakairi, mas vai muito devagar. Se estiver livre no fim do ano,
dar-me-ei por muito feliz (1924)”(Rodrigues, 1954, II: 296).
Em 30 de maio de 1924 escreve dizendo que os originais sobre os Bakai-
ri já estão na tipografia e que precisa “andar depressa porque em setembro
Rondon parte para Mato Grosso, e quero que leve o índio” (Rodrigues,
1954, II: 342). Em 8 de junho de 1924: “O Bakairi vai entrando no prelo.
Por um acaso raro, um dos compositores parece estar gostando da coisa, o que
facilitará tudo.”(Rodrigues, 1954, II: 302). Em 17 de agosto de 1924:

10
Nesta mesma carta Capistrano demonstra interesse em resolver um problema linguístico de São Pau-
lo, o caso dos Xavante. Pretende definir sua filiação linguística entre os Jê, Kaiapó, ou Guaicuru. Pede a
um primo de um fazendeiro do Paranapanema que encontra nesta viagem a S. Vicente para que reúna
uns índios em sua fazenda que estaria disposto a fazer esta viagem para trabalhar com esta nova língua
indígena. Sabe-se que após os Bakairi e os Kaxináwa, Capistrano, já em 1923 tenta realizar um terceiro
estudo com um informante Xavante. Encontra-se, hoje, os padrões de pintura corporal desenhados em
algumas fichas reunidas com seu material na biblioteca nacional (Amoroso & Calávia, 1995).

32
Continuo com o Bakairi. O Mogói não é um ideal, porque passou a puerícia numa
fazenda cuiabana e não se impregnou nas tradições tribais: como glossário é excelente,
poucas palavras ignora e vai-se interessando pelos fatos gramaticais de um e outro
idioma... O índio terá que tornar para a terra, a menos que não fique com Jaguaribe.
Um criado deste, que servia ao mesmo tempo de enfermeiro, despediu-se. O Bakairi
tem-no substituído: talvez prefira o povoado à aldeia (Rodrigues, 1954, II: 305).

Em 16 de agosto de 1924 Capistrano vai para São Vicente querendo


reinventar mais uma vez o “campo”, agora próximo ao mar; diz que o motivo
de sua viagem é
o Bakairi trazido pelo Amarante, a meu pedido. Acostumado à vida do campo, o índio
dá-se mal na cidade. Aqui tem a poucos passos o mar, aonde se banha à vontade. Há
muito onde andar. Matriculou-se numa aula noturna de São Vicente e está fazen-
do progresso... Meus trabalhos linguísticos marcham. Este ano espero alcançar minha
carta de alforria. Trabalho duas horas por dia [para] concluir um trabalho atrasado,
consagrar-me-ei somente à língua do índio (Rodrigues, 1954, III: 444-5).

A ocupação do índio no lugar de criado da casa de praia de seu amigo


Jaguaribe agrada a Capistrano, pois isso lhe dá tempo para fazer seu traba-
lho. Capistrano parecia obstinado em terminar o que havia começado em
1892 e por isso se dedica somente à língua indígena. No “dia do Ventre
Livre” de 1924 escreve que continua estudando com o Bakairi. “Mogói
é inteligente – já lê regularmente, está aprendendo a contar e a desenhar.
Ensinei-lhe como se apara pena, que ainda se usava na minha meninice”
(Rodrigues, 1954, II: 309). Já vislumbra quando o Bakairi vai deixá-lo
e que seu estudo estará quase pronto:
espero reexpedir o Bakairi em princípios de fevereiro (1925). Ainda teria muita coisa
a ensinar-me ficando mais tempo, mas é bom que volte, senão se estraga, como já
começou (id. II: 311).

Ainda no final deste ano de 1925, dois anos antes de sua morte, aos 72
anos, Capistrano continua, agora, sem informante, a trabalhar sobre o material
Bakairi e encerra seus comentários em 06 de dezembro de 1925: “... trouxe
alguns papéis de Bakairi para esta temporada; pretendo completar um capítulo
de textos e fazer uma revisão dos verbos (Rodrigues, 1954, II: 346).11

Os Kaxináwa: Vicente e Tuxinin


Entre os melhores amigos de Capistrano estava Luis Sombra, chamado ca-
rinhosamente de “marupiara”, que significa em tupi “Providência”(Vianna,
11
Este material Bakairi está até hoje desaparecido e inédito. Ver especialmente o artigo de Calávia (s/d).

33
1955: 90). Luis Sombra trouxe do Acre os dois índios Kaxináwa, primeiro
Vicente e depois Tuxinin, que seriam os informantes de Capistrano no estu-
do que empreenderia sobre a língua e cultura Kaxináwa a partir de 1907.
Em uma nota explicativa, Capistrano dá o contexto de seu trabalho:
“... bem alheio a línguas indígenas andava em fins do ano passado quando
chegou do território do Acre meu patrício Capitão Luiz Sombra, com um
índio anteriormente prometido” (1941: 5).
Capistrano definia este índio como “lendo mal, escrevinhando gostosa-
mente, compreendendo qualquer conversa; entendê-lo era mais difícil, devido
ao emperro da pronúncia” (Id., ibid.). Este índio teria vinte anos, estava há três
anos fora de sua terra, no rio Ibuçu, afluente do Muru, tributário do Taraua-
cá, no Acre. Assinava várias vezes por dia seu nome: Vicente Penna e Sombra
(Penna porque fôra batizado pelo Presidente Afonso Penna quando passou por
Manaus, e Sombra era o nome de seu protetor). Seu nome era Bô-rô.
Encontram-se na seção de manuscritos da Biblioteca Nacional quase
três dezenas de Cadernos de Notas de Capistrano versando sobre sua pesqui-
sa com Vicente e Tuxinin.12
O material Kaxináwa foi escrito e anotado diretamente na língua Kaxi-
náwa. Ordenados a partir de datas, pode-se perceber que os cadernos procu-
ram transpor passo a passo as dificuldades em compreender e grafar a língua.
Iniciam por uma localização dos Kaxináwa no espaço: nomes de rios, ca-
choeiras, nomes próprios, topônimos. Passam em seguida para frases soltas
e algum vocabulário e, depois, entram abruptamente nas narrativas e nos
mitos. Capistrano rapidamente passa a ser fluente na grafia do Kaxináwa e vai
enchendo as páginas dos cadernos com certa fluidez. Conforme os cadernos
se sucedem no tempo, encontram-se cada vez mais organizados. Os cadernos
ganham índices dos mitos e narrativas coletadas. Observam-se desenhos que
saltam aqui e ali, padrões de pintura corporal, traçados de rios, figuras de ani-
mais (tamanduá, onça), pequenos traços e interferência, como pontos produ-
zidos por Vicente e Tuxinin enquanto tentavam explicar parte das narrativas.
Em outros cadernos é possível encontrar anotações em português feitas por
12
Apenas um dos Cadernos, embora inicie com dados sobre os Kaxináwa, trata dos Bakairi. Nesta
parte do texto Capistrano faz comparações entre seu material coletado com Irineu Bakairi e os dados
de Steinen. Quando Steinen afirma ser Ikxniau o senhor da chuva, Capistrano discorda, relacionando a
chuva ao periquito, afirmando que incluíra neste capítulo a descrição de uma viagem que fez “Irineu a
[tamtatoada], onde pode ver a prisão em que a sucuri prendeu os meninos e lá viu o grande buraco que
o bico da arara cavou na pedra. E ainda teve outra felicidade maior, que foi a de descer o Pakumera, ver o
famoso salto, a [mamia] e a pedra que Ewaki deu a Keri e com a qual mataram Meru”. Capistrano queria
“presentificar” o mito com o testemunho do índio Irineu que pode observar aspectos de sua geografia.

34
Capistrano que já seriam o tratamento formal da língua, possíveis compara-
ções e análises sintáticas, inclusive a introdução de seu livro rascunhada.
Os Cadernos de notas de Capistrano demonstram seu desenvolvimento
no aprendizado da língua e da cultura Kaxináwa: das primeiras palavras às
frases soltas até os textos míticos ou simplesmente relatos na língua. O índio
ditava frases e as histórias. Seu método consistia em progredir cada vez mais
no ditado que o índio lhe aplicava diariamente.
A correspondência de Capistrano com os amigos ajuda a reconstituir seu
“trabalho de campo” com os Kaxináwa, iluminando aspectos de sua relação
com os índios, do seu método, da importância do trabalho que realizava.
Em 19 de setembro de 1909, escreve da Fazenda Paraíso dizendo ao amigo
Guilherme Studart que havia resolvido a
estudar a língua do Vicente. Pertencente ao grupo dos panos... Com este episódio
linguístico desviei-me inteiramente da história pátria; não continuei, como pretendia,
nem mesmo comecei a revisão e redistribuição do já feito. Às vezes lastimo, às vezes
dou por bem empregado o tempo. Se todos os anos tivesse um índio para me ocupar,
daria de mão às labutações históricas (Rodrigues, 1954, I: 182).

Dois meses depois, ainda da fazenda Paraíso, escreve ao seu amigo Luís
Sombra:
Tuxinin está produzindo: já contou a história da lua e mais duas, uma das quais por-
nográfica, e tem dado descrições de plantas e animais. Ontem Vicente também contou
a história da lua. A propósito não mande dinheiro para eles; não precisam e fazem
asneiras; já têm feito (Rodrigues, 1954, III: 17).

Em carta para José Veríssimo escreve sobre sua demora em Paraíso:


A culpa é do índio, ou antes, dos índios, porque agora tenho dois. A atmosfera aqui
lhes é congenial, e a flor, se não desabrocha, não murcha como lá... tenho organizado
um vocabulário com mais de três mil palavras... Colhi muito menos textos do que
esperava: descrições de festas, lendas, alguns mitos... Creio ter umas duas mil orações...
(Rodrigues, 1954: I: 197).

No ano seguinte, Capistrano tentou ajudar Vicente, seu informante, a


encontrar um emprego nos Bombeiros e o levou pessoalmente para fazer um
exame médico (Rodrigues, 1954, III: 17).
Escrevendo de Paraíso em 28 de janeiro de 1910, Capistrano atribui au-
toria a seus informantes a cada capítulo que organiza: Fraseologia, Vária, Et-
nográfica e Metafísica. Relaciona língua com o mundo e com o pensamento:
Meu trabalho pouco adianta; quase todos os textos estão ou devem estar compostos,
mas a revisão pouco avança, porque as novas provas saem tão erradas como as primei-

35
ras; quanto à tradução, à medida que meus estudos caminham, procuro torná-la mais
exata e mais rigorosa, e modifico-a continuamente. Ao mesmo tempo que a impressão
caminha, vou colhendo novos textos. O capítulo 1, Fraseologia, do Vicente, está com-
pleto; bem como o segundo, Vária, de Tuxinin. Para o terceiro, em que colaboraram
os dois, Etnográfica, tenho a esperança de obter mais alguma cousa: lendas creio que
tenho umas quinze, e pode ser que neste intervalo apareçam ainda mais outras; não há
três dias, Tuxinin contou-me uma das mais interessantes. O ultimo capítulo, Metafísi-
ca, é que sairá muito pobre; diz Tuxinin que Vicente não conta certas cousas com medo
das almas de lá. Ainda há crentes... (Rodrigues, 1954, II: 222).

Luís Sombra, o “protetor” de Tuxinin, é de quem Capistrano depende


para a realização de seu trabalho e por isso lhe deve muitas explicações:
Conforme ordem sua, Tuxinin vai sem almoçar. Foi assim impossível realizar meu pro-
grama de trabalho para hoje. V. não tem mais pressa em ver o fim da empresa do que
eu; basta que enquanto nela estiver metido, não posso tratar de outra coisa. Mas parece
que agora entramos na soca; essa semana que passou, Tuxinin contou três histórias
novas, Vicente começou uma, já resumida por Tuxinin, que dará talvez trinta páginas.
De sacrificar as novidades? Era meu desejo de terminar...; ainda tenho esperança de
consegui-lo, sacrificando embora a gramática; fique certo que não perco tempo, que
Tuxinin enquanto aqui está dá o mais possível, em geral vai comigo para a cidade e
vejo-o entrar nos bondes. Se às vezes chega mais tarde é porque o almoço se demora,
à espera de Honorina.13 Assim, tenha por mais algum tempo a paciência que até agora
tem mostrado. A matéria é muita; a princípio julguei que não passaria de duzentas
páginas, e muito compactas; agora não me admirará se passar de duzentas e cinquenta,
e sem a gramática e sem as notas. Felizmente meu vocabulário não pede senão revisão
que levará poucos dias... (Rodrigues, 1954, III: 18).

Em carta de 4 de outubro de 1910, continua explicando a Luis Sombra


os rumos de seu trabalho:
Mandei Tuxinin no dia 11 para Paraíso e só fui no dia 16... Não tenho perdido tem-
po; as histórias já passam de quarenta; ontem e anteontem Vicente contou-me duas,
que realmente sentiria não dar; ainda falta uma, que prometeu para minha volta. Esta
semana espero passar a limpo e acabar de traduzir todas. Depois disso podem vir no-
vas, nem me perturbam, nem me detém. A ultima parte, contendo descrições e frases
soltas, alonga-se ou estira-se à vontade. Ainda não peguei na gramática, mas depois
que apanhei o tipo sintático da língua tudo me parece fácil e vejo as coisas com uma
clareza que nunca julguei pudesse alcançar... meu vocabulário é o maior de todos até
aqui publicados sobre o grupo pano... (Rodrigues, 1954, III: 190-20).

Passados dois anos Capistrano ainda se vê às voltas com Tuxinin e a per-


missão de Luis Sombra para que continue o trabalho. Capistrano estava an-
13
Filha de Capistrano.

36
sioso, porque dependia de Tuxinin e da paciência de Sombra para concluir.
Assim escreve em 28 de dezembro de 1912:
... pretendo partir sábado e levar Tuxinin. Peço-lhe, porém, que consinta continue co-
migo até sua partida ou até a conclusão da obra. O trabalho extensivo está terminado.
A parte intensiva reclama a assistência dele, quer para corrigir o vocabulário, quer para
ser comentado quanto à gramática (Rodrigues, 1954, III: 21).

Ainda no final de 1912 Capistrano dá por terminados os originais Kaxi-


náwa “porque era preciso parar” e completa que “esta semana mesmo, cinco
anos depois, estará terminado o livro” (Rodrigues, 1954, III: 26). Passados
5 anos depois do livro publicado, em 1919, dá a última notícia sobre Tuxinin:
Conhece um senhor Luís Pena Sombra? Nascido creio a 10 de agosto de 1896, não sei
bem aonde? Casou, haverá dois meses. Soube-o porque anda agora tratando de carteira
de identidade para entrar para os Bombeiros e alistar-se como eleitor. Não adivinhas
que é? Tuxinin! Casou uma irmã da primeira mulher de Vicente, Amélia, que V. deve
conhecer, boa menina, lavadeira como a mãe, que vive do seu trabalho e pode bem
dar-se a este luxo de passar pela Pretoria. Veja como é fácil arranjar papéis falsos nesta
boa Terra! (Rodrigues, 1954, III: 43-4).

Vejamos, agora, a introdução de Capistrano ao livro no qual explicita seu


método e fornece mais dados que explicam ao leitor o contexto de seu trabalho,
as dificuldades em conseguir as informações, os problemas de interpretação e
os muitos equívocos que cometeu. Enfatiza a dificuldade de grafar o som a
partir de sua própria língua, no seu dizer: “achar uma transcrição adequada dos
sons”, colocando deste modo não apenas problemas linguísticos mas também
antropológicos que se converteriam mais tarde em questões epistemológicas
das duas disciplinas: o modo como se produzir o conhecimento, a tradução.
Constitui seu método a partir do momento em que procura explicar ao
leitor os limites do seu trabalho. Se é possível uma comparação cautelosa,
fazia o que Malinowski fez dez anos antes: explicitava seu método e construía
um modo de interpretação.
A vocábulos avulsos preferia frases, mas não manifestei tal desejo, não lhe dei uma só a
traduzir; do próprio índio partiu a ideia. Quando porém tratamos de vertê-las, Vicente
apenas dava o sentido aproximado, a tradução, mesmo vagamente literal, parecia-lhe
uma enormidade, e desanimava, e ficava triste, e dizia que não sabia mais nada etc. A
frase saía-lhe do cérebro como as barras de um linotipo. Correram alguns dias antes de
ir paulatinamente distinguindo as partes do todo. Mais tarde a dificuldade reapareceu
sob outra forma (1941: 6).

Capistrano nada mais faz que explicitar seu método construído a partir
da “experiência etnográfica” com seu informante. Ao invés do informante

37
evoluir das frases soltas à descrição dos animais e plantas, passo a passo, até
chegar às construções mais complexas e aos textos descritivos, como queria
Capistrano, começou pelo final: narrava os mitos diretamente. Decompu-
nha dos mitos a língua, as frases, as palavras, os morfemas. Esta primeira
parte durou um mês, e logo em seguida os dois viajam para a Bahia, pelo
Rio São Francisco, interrompendo o estudo por alguns meses. Recomeça
em julho, longe da Capital, e agora Capistrano tinha um dicionário dos
Shipibo,14 grupo pertencente também à família linguística pano, coletado
por um missionário espanhol que esteve no Ucayali, organizado e traduzido
por Steinen, com inúmeras notas em alemão. Novamente seu destino em es-
tudar línguas cruza com os interesses de Steinen, e Capistrano não o poupa
de elogios: “O verdadeiro formador da etnologia brasílica” (1941: 7). Este
pequeno dicionário, segundo Capistrano, “despertou com violência a memó-
ria latente do índio” (1941: 7). Assim, segue o mesmo método de trabalho
realizado com o Bakairi: traduz a palavra em castelhano e pede a resposta de
Vicente; se era igual a dos Shipibo, Capistrano já adotava a ortografia. Este
método surtiu rápido efeito na compreensão da língua Kaxináwa e a chave de
seu aprendizado estava mais uma vez na relação com seu informante: “Em tu-
do Bôrô deu mostras de grande capacidade linguística e trabalhou com prazer;
instintivamente percebeu as relações fonéticas dos dois idiomas” (1941: 7).
Embora estivesse animado com seu método, reconhecia suas dificulda-
des em dividir as frases e as orações quando fazia as versões:
Consultar o mestre não aproveita nas questões mais simples: ou queda-se calado, muito
absorto, pensando quiçá em coisas bem diversas, tempo sem tempo, ou à primeira suges-
tão, por mais absurda, acode logo aliviado e satisfeito: é mesmo, é mesmo! (1941: 7-8).

A construção do “informante” e as “relações com o antropólogo” ganham


nesta pequena introdução um estatuto de método. Vicente era o “mestre” e
Capistrano aprendia com ele algo que somente ele era capaz de ensiná-lo, de
cujo conhecimento era dependente para prosseguir sua investigação. Inver-
são surpreendente de papéis, entre aquele que ensina e aquele que aprende,
que faz precipitar um novo método de se conhecer. Com isso estava consti-
tuída a possibilidade de se produzir uma etnografia, instituía-se o lugar do
etnógrafo e o do informante, sem necessariamente implicar em uma hierar-
14
Erikson & Camargo (1996: 194) atribuem ao trabalho de Capistrano sobre os Kaxináwa a influên-
cia direta de Karl von den Steinen a partir da publicação deste dicionário Shipibo em 1904. Todavia, o
texto de Capistrano e sua correspondência indicam que o vocabulário Shipibo, influenciou seu méto-
do mas não sua escolha dos Kaxináwa, uma vez que já havia iniciado o trabalho com seus informantes
antes de ter conhecimento do dicionário Shipibo.

38
quia, concepção que motiva Capistrano a se referir explicitamente aos dois
Kaxináwa como co-autores do livro:
Dos dois Kaxináwa co-autores do livro, Bôrô assentou praça no corpo de Bombeiros,
já foi ferido em dois incêndios, trabalhou na extinção da Imprensa Nacional, casou,
enviuvou. O assentamento de praça separou-nos... depois de voltarmos do Paraíso,
hoje transferido a outros proprietários Tuxinin veio morar comigo. Esta circunstância
avolumou sua contribuição e com ela vocábulos e formas gramaticais variadas, além
de novas histórias que enriquecem o folclore, ou antes a fama dos Kaxináwa, para em-
pregar admirável termo proposto por Hüsing (Ehrenreich, Allg. Mytthologie, Leipzig,
1910). Se em vez de dois fossem três ou mais informantes, se em vez de dois adoles-
centes fossem velhos, naturalmente o aspecto de todo o livro mudaria, a mitologia
superior, os conceitos cosmogênicos, as noções astronômicas assumiriam maior realce,
(B. e T. não deram um só nome de estrela); as tradições históricas não apareceriam com
tantos hiatos, ou antes com verdadeiros rombos... (1941: 627).

Ainda sobre seus informantes, Capistrano nos diz:


Tuxinin se destaca pelo conhecimento de nossa língua, tão completo como se a sugasse
com o leite materno; Bôrô tem instintos de linguista: lida qualquer palavra dos missio-
nários, quase sempre enunciava no mesmo instante o correspondente Kaxináwa, o que
nunca Tuxinin conseguiu. Tuxinin daria detetive ou repórter admirável, porque suas
faculdades de marupiára não diminuíram. Luiz Gonzaga Tuxinin Sombra, como ficou
chamando-se depois de batizado (chamar-lhe Luiz é conquistar seu coração), torna
agora para a companhia do padrinho e está em vésperas de partir para o Ceará. Quanto
a Bôrô, se tivesse algum valor este livro, com seu auxílio começado e sustentado sem
desfalecimento, desejaria que lhe servisse de título de promoção a cabo ou sargento no
Corpo de Bombeiros (1941: 628).

Capistrano, em uma nota abordando suas dificuldades em compreender


a língua e a cultura Kaxináwa, diz que bem certo é o provérbio: “Estar na
aldeia e não ver as casas” (1941: 8). Considerava-se de fato na “aldeia”, no
universo da cultura e da língua Kaxináwa e queria uma profundidade de ex-
plicações e de compreensão somente exigida por uma concepção etnográfica
que não se satisfaz com análises superficiais de uma etnologia comparativa,
mas de uma etnografia específica e particular. O estar na aldeia e não ver as
casas faz pensar em outro ponto importante, qual seja, a viagem não se dá no
espaço e através da expedição mas na relação com os informantes, na profun-
didade da compreensão de sua língua e cultura. Observa-se a mesma concep-
ção de trabalho de campo produzido por Boas, que caracterizava seu trabalho
com informantes valorizando esta profundidade da pesquisa no compreender
a língua e a cultura. Deste modo, o objetivo de Boas era “sentar com um bom
informante e encher os cadernos de campoto e, depois, voltar para casa” (Ja-

39
cobs, 1959: 127 apud Berman, 1996: 217). O que confirma sua seguin-
te assertiva em relação ao que considerava trabalho de campo: “Eu tive um
dia miserável hoje. Os nativos estavam fazendo novamente Potlash. Eu não
pude ter nenhum informante... O trabalho aqui teve que esperar” (Boas,
10/12/1986, in Rohner, 1969: 38 apud Berman, 1996: 215).
Capistrano iniciara seus estudos sobre os Kaxináwa apenas com Vicente,
juntando-se mais tarde Tuxinin, que à época teria mais ou menos treze anos,
sem “o mínimo sotaque, um cearense perfeito”(1941: 8). Capistrano se ques-
tiona se Tuxinin saberia algo da língua Kaxináwa. Tuxinin jura a Capistrano
que não sabe mais nada e era notável, segundo Capistrano, sua indiferença à
língua materna: “Veio para junto de Bôrô e em poucos dias a poder de paciên-
cia o palimpsesto revelava-se: então comunicou um pouco o azougue ao paren-
te”. Capistrano no corpo do texto diferencia os textos proferidos por Tuxinin
e por Bôrô. Tuxinin, sendo mais comunicativo, era mais preciso no descrever
o vocabulário. Agora, Capistrano passava uma temporada no seu “campo”,
Fazenda Paraíso. Lá os índios, no entender de Capistrano, “sentiram-se menos
desenraizados e a planta silvestre, mirrada a meio, refloriu (1941: 9).
Antes de terminar a pequena introdução, diz que se os cearenses “devasta-
ram e devassaram o Juruá”, agora, por seu intermédio, outro cearense, restará
ao menos “alguma coisa do pensamento indígena prestes a fenecer” (1941: 9).
Está claro aqui o modo como estava tratando do “pensamento indígena”, no
sentido literal, língua e cultura, o espírito cultural a partir dos mitos e da lín-
gua. Termina a introdução com uma citação da carta de Pero Vaz de Caminha
sobre a relação com os índios: “Logo de uma mão pela outra se esquivavam
como pardais no cevadouro, e homem não lhe ousa falar rijo para que não se
esquivem mais e tudo se passa como se eles querem por bem amansar”.
Era Caminha, velho conhecido das fontes históricas, que ensinava a Ca-
pistrano o modo de se relacionar com os índios, de trazê-los ao convívio:
ficar o mais próximo até que eles não se esquivem mais e possam ficar “man-
sos” para, no caso de Capistrano, ensinar-lhe sua visão de mundo. Metáfora
que permite pensar a relação com o outro, a forma como se constrói o co-
nhecimento na etnologia e a relação construída com os nativos.
O livro Rã-txa hu-ní-ku-í tem 630 páginas, constituídas por 5.926 frases
numeradas. Porém, não se trata apenas de um conjunto de mitos ou narra-
tivas, mas de uma organização das frases, informações em temas e subtemas:
iniciando por “Preliminares” (sons, partículas, pronomes afixos, adjetivos,
orações, verbos), em que há uma descrição da língua Kaxináwa a partir de
um ponto de vista formal, e seguindo-se os capítulos mais temáticos, como

40
“Vida da Aldeia” (as aldeias de Ibuaçu, mudança de aldeia, peruanos e brasi-
leiros, uma guerra), “Alimentação” (tempo de fome, roçado, pescaria, caçada
de cabeças, pescaria em lagoa grande), “Festas”, “Vida Sexual”, “Vida, Mor-
te, Feiticeiros”, “Anedotas”, “Kaxináwa Transformados em Bichos”, “Bichos
Encantando em Kaxináwa”, “Bichos entre Si”, “Kaxináwa e Bichos”, “Kaxi-
náwa entre Si”, “Feiticeiros e Espíritos”, “Astronomia”, “O Fim do Mundo
e o Novo Mundo”, “A Dispersão”, “Vocabulário Brasileiro–Kaxináwa, Voca-
bulário Kaxináwa-Brasileiro”. A separação em temas e subtemas parece sig-
nificar a intenção do autor em organizar o conhecimento sobre os Kaxináwa.
Saindo da dispersão dos cadernos de notas, que são anotados linearmente,
tudo foi organizado a partir da perspectiva dos problemas etnológicos, das
palavras chaves que poderiam compor um conhecimento organizado.
As frases, escritas em Kaxináwa com tradução interlinear em português
na mesma página, são arroladas de forma contínua, seguindo uma nume-
ração, e Capistrano informa onde terminam e começam as histórias. Rara-
mente acrescenta notas ao que é descrito e não faz tradução livre. Ao final
do capítulo, Capistrano pode se referir a algum aspecto etnográfico que ne-
cessita de esclarecimento ou quando informações dos próprios índios foram
acrescentadas aos textos. Em algumas ocasiões o texto em português precede
o texto indígena, seguindo a forma como Tuxinin o apresentou, às vezes pre-
cisava recapitular em português o mito antes de narrá-lo em sua própria lín-
gua. No “Posfácio”, dedica-se à comparação de seu estudo sobre os Kaxináwa
com as questões linguísticas correntes e com as discussões sobre as línguas
pano; compara os Shipibo, Conibo, os dialetos pano da Bolívia, citando os
lingüistas influentes da época e captando suas principais discussões.
Theodor Koch-Grünberg escreve a primeira resenha do livro de Capis-
trano definindo-a como
obra de alto valor científico, quase sem paralelo na linguística e etnografia sul-ameri-
canas. O maior e melhor material que jamais se publicou sobre língua sul-americana
de índios, e ao mesmo tempo uma excelente monografia da vida econômica, dos usos
e costumes e do folklore; monografia cujo valor cresce por ter sido ditada ao autor
por homens pertencentes à tribo e, portanto, até certo ponto, composta por índios
(Koch-Grunberg, 1941: 633).

E continua:
Passa diante de nossos olhos toda a vida material e intelectual dos Kaxináwa. Ficamos
tendo notícia da rigorosa divisão de trabalho entre homem e mulher, dos trabalhos de
plantação, das particularidades da vida dos animais, da caça e da pesca, do preparo de
armas e utensílios, preparo da alimentação vegetal, tratamento do algodão, jogos de

41
crianças e diversas danças. Ficamos conhecendo as aldeias junto do Ibuaçu, a vida dos
moradores e como se faz a mudança de uma dessas aldeias. Ouvimos a narração de bri-
gas com outra tribo nauá etc. Descrição minuciosa se faz da perfuração do septo nasal,
nos meninos, por meio de espinhos da palmeira pupunha, e jejuns que se prendem a
esse ato, as pinturas da pele, usos por ocasião do casamento, gravidez e nascimento.
Um capítulo trata dos sonhos bons e maus, da doença e morte, de enterro do homem
e da mulher, luto do viúvo, da viúva, execução de um feiticeiro e outras histórias de
feitiços, do poder do feiticeiro sobre as almas... Seguem-se numerosos contos e lendas,
transformação de homens em animais e outras pequenas narrativas de acontecimentos
sobrenaturais; finalmente uma série de mitos referentes à cosmogonia que se caracteri-
zam pela originalidade e às vezes por certo encanto poético (id., 1941: 634).

Ao final do artigo deseja que


... a bela obra encontre em seu próprio país muitos continuadores. A seus conterrâneos
compete salvar para a ciência e para posteridade a cultura intelectual dessas tribos que
tende a desaparecer no que tem de mais característico (id., 1941: 635).

O texto de Koch-Grünberg não questiona e não duvida que o texto de


Capistrano seja um trabalho de etnologia, não separa a linguística da etno-
grafia. Aliás, sua leitura e seus comentários demonstram que pôde conhecer
muito sobre os Kaxináwa, seu pensamento, o aspecto material e intelectu-
al de sua cultura, através da leitura das 5.926 frases. Vale salientar que até
aquele momento não havia ainda sido instituída na Antropologia uma forma
padronizada de apresentar uma etnografia, um modelo de monografia domi-
nante. Capistrano apresenta os “dados brutos” (a língua e a fala Kaxináwa) por
meio de sua organização, seus temas, pretendendo dar a conhecer por tortuo-
sas frases todo o modo de pensar e agir Kaxináwa no mundo. Koch-Grünberg
sabia “ler” este modo de se construir a etnografia naquela época, ditado pelas
exigências intelectuais da concepção que cultura e língua tinham na escola
de Etnologia Alemã.15 Os trabalhos do próprio Koch-Grünberg, os de Max
Schmidt, os de Karl von den Steinen, os de Boas e de alguns expoentes do Bu-
reau of American Ethnology16 sobre mitologia partiram desta concepção de
15
Amoroso chama atenção para um fato importante que parece ter incidido sobre a má recepção da
Etnologia Alemã pelas gerações futuras de etnólogos: “A crítica à visão etnocêntrica da etnologia alemã
que atuou no final do século XIX com as populações das terras baixas sul-americanas tem encoberto
as consideráveis conquistas desta primeira geração de estudos especificamente etnológicos no Brasil”
(Amoroso, 1996: 192). Para vislumbrar sua contribuição às ideias etnológicas, é antes de tudo
necessário perceber seu contexto sociológico e a relação com o texto etnográfico que produziu.
16
O Bureau of American Ethnology, órgão do Smithsonian Institution, passa a aceitar trabalhos de
fora do Bureau, publicando The Central Eskimo e Tsimshian Mythology, de Boas, que depois segue o ca-
minho de trabalhar com textos míticos, discursos linguísticos, incorporando textos nativos. O projeto
de colaboração indígena não parecia ser uma coisa ocasional de transformar o nativo em antropólogo,

42
língua como veículo da cultura. Se estes trabalhos, hoje, parecem “ilegíveis”
(frases na língua nativa traduzidas interlinearmente, morfema por morfema),
esse era o modo corrente de se ter acesso ao conhecimento etnográfico, como
demonstra a leitura de Koch-Grünberg do material Kaxináwa. Levando-se
em conta que a forma como se produz etnografia pode estar relacionada a
gêneros discursivos (Clifford & Marcus, 1986), a tradução interli-
near era o modo de se fazer etnografia acentuando uma colaboração estreita
entre etnógrafo e informante. Esta colaboração, ou co-autoria, com os ín-
dios, invertia a clássica fórmula do conhecimento na Antropologia produzi-
do pela relação antropólogo/informante. A “etnografia selvagem” enquanto
possibilidade foi aventada por Lévi-Strauss (1973) ao refletir sobre o futuro
da Antropologia, encorajando os próprios nativos a se tornarem linguistas,
filólogos e historiadores de sua própria cultura. Não foi outra coisa que su-
cedeu no âmbito do Bureau of American Ethnology, ao incorporar índios
em seus quadros a exemplo de Francis Le Flesch (filho de um chefe Omaha),
James Murie (índio Skidi Pawhne) e Geoge Hunt (índio Tinglit-Kwakiutl),
colaborador de Franz Boas (Mead, 1960).
Porém, Koch-Grünberg chama atenção, em seus comentários, para a po-
tencialidade de a partir das narrativas e dos mitos reconstruir a etnografia.
Existem no trabalho sobre os Kaxináwa narrativas míticas e narrativas de expli-
cações etnográficas reunidas em um mesmo plano. Capistrano não fazia uma
separação entre mito, lenda e narrativas. As narrativas abordam assuntos como
parto (se o homem pode ver ou não, como é feito etc.), a dieta alimentar da
mulher grávida (quais animais pode ou não comer, como deve se comportar).
Nesse sentido, a etnografia é a narrativa, não importa se mítica ou não, trata
de questões do mundo material ou do sobrenatural, revela uma forma de en-
tendimento e apreensão da cultura Kaxináwa. É, literalmente, uma etnografia
da narrativa. Extraem-se das narrativas os dados e questões que possibilitam a
compreensão da cultura. Assim, a narrativa dos índios, ao misturar passagens
e citações de mitos e histórias, revela dados e informações etnográficas de toda
ordem. Porém, era preciso saber “ler” este material saído diretamente da “boca
do índio”, levá-lo a sério para extrair dele uma visão completa de sua cultura e
de seu pensamento, o modo como este pensamento se expressava. Capistrano
conscientemente interferia na organização dos temas e no modo como eram
apresentados, mas buscava na narrativa a expressão da etnografia.
uma vez que se adequava a um projeto e a uma perspectiva de se fazer etnologia que culminaria com as
parcerias entre George Hunt (Tlingt-Kwakiutl) e Boas e Alice Fletcher e Francis La Flesche (Omaha).
Embora esta tenha sido a primeira vez que aparecia o nome de um índio como co-autor, já havia, an-
teriormente, existido colaborações institucionalizadas com os informantes (Bunzel, 1960: 227).

43
A reação de Steinen ao livro de Capistrano ajuda a precisar este ponto.
Steinen recebe a obra no mesmo ano de sua publicação, comentando-a em
carta a Capistrano:
Que admirável esforço, que idealismo altruísta denota sua obra Kaxináwa, com o
título impronunciável! Quantos serão os que saibam avaliar, pelo menos até certo
ponto, o enorme trabalho contido nessas 600 páginas, e para os quais o Sr. o realizou?
Conto nos dedos das mãos e dos pés, e temo não ir muito além dessas 20 pessoas!
(Rodrigues, 1954, III: 130).

Steinen diz que se envergonha de que seria um dos que poderiam enten-
der o seu esforço, mas estava se dedicando naquele momento ao estudo das
ilhas do pacífico. Identificando-se com Capistrano, afirma que ambos tinham
a tendência de “cavar o chão em outro lugar”. Nesse sentido, o esforço de Ca-
pistrano, mesmo para a época, era considerado solitário, algo que poderia ser
compreendido por poucos que saberiam ler e apreciar seu trabalho e mesmo
entendê-lo. Um estilo etnográfico para experts, para selvagens, num certo sen-
tido. O interesse da Etnologia Alemã era marcadamente a mitologia, a narra-
tiva indígena, e não a organização social tomada enquanto objeto autônomo,
isolável analiticamente, concepção que, sem dúvida, refletiu o modo como se
construiu uma concepção e um estilo de etnografia (Taylor 1984: 227).
Em contraste ao estilo de etnografia produzido pela influência da Etnologia
Alemã, observe-se, no mesmo período, a construção de um estilo etnográfico
inglês baseado em trabalho de campo na África que se inspira diretamente no
romantismo das viagens e em autores literários (Thornton 1983: 503).
A ideia de que o etnógrafo em última instância seria um artífice literário de-
notando uma determinada concepção de etnografia encontra-se claramente
na formulação malinowskiana, quando afirma que ele próprio seria o “Con-
rad da Antropologia”, querendo, assim, estabelecer que ser etnógrafo era um
modo de ser escritor (Stocking Jr. 1983: 104).
No contexto de influência da Etnologia Alemã e suas ressonâncias sobre
o trabalho de Capistrano, narrativa e etnografia eram quase sinônimos e se
podia depreender de uma o sentido da outra, sendo a língua pura interme-
diação e forma de acessibilidade a este plano. Registravam-se frases saídas da
boca do informante, como uma “etnografia selvagem”. Vejamos um trecho:
1285. ãibô tôya iáix”piiç”maki.
1286. iaix xakayaki, piiçmaki, kini möra hiwökoe, piiç”maki.
1287. awarã piiç”maki, öwapakoe, piiç”maki.
1285. mulher prenha tatu come não.

44
1286. tatu cascudo é, come não, buraco dentro mora, come não.
1287. anta come não, grande muito é, come não.

Este gênero buscava, simultaneamente, a forma (língua/gramática) e o


conteúdo (cultura, pensamento) da narrativa. Era assim que Capistrano pen-
sava seu trabalho:
Dois índios do Rio Ibuaçu, afluente do Muru, tributário de Tarauacá, trazidos para
esta cidade, em milhares de frases citadas na língua materna, logo transcritas e traduzi-
das, deram notícias dos costumes, tradições e mitos de seu povo... Considerá-los repre-
sentativos do conjunto, sobre seus dizeres construir generalizações amplas ou proferir
sentença definitiva, destoaria das boas normas da crítica. Pode-se, porém, aceitar seus
depoimentos, para começo do inquérito... (1969c: 174).

Esse trabalho, intitulado “Depoimentos dos dois índios sobre a cultura


Caxinauá” e publicado originalmente em artigos do Jornal do Comércio entre
1910 e 1912,17 procura refazer o caminho inverso: partindo da mitologia ou
das narrativas, passar para a etnografia nos moldes descritivos, refraseando as
narrativas. Vejamos a mesma passagem da narrativa apresentada acima, que,
agora nesse ensaio, aparece do seguinte modo:
O tempo da gestação é de privação para ambos. A mulher grávida não come qualquer
caça, o varão não come qualquer caça. A mulher grávida jejua: não come tatu, não
come anta, não come veado, não come macaco prego... O homem é obrigado à mesma
abstinência... O motivo de tais privações consiste na crença comum aos povos naturais
de que a alimentação comunica ao feto as qualidades dos animais vivos. Bôrô dá a
razão de alguns destes tabus: “A mulher grávida não come tatu: o tatu tem casco, tem
casa; não come anta, a anta é muito grande, comendo anta o menino cresce muito, não
pode nascer, morre no ventre da mãe, a mãe morre” (1969c: 185-6).

Nessa outra forma de apresentar seu material, o texto aparece dividi-


do em três partes: a primeira se refere às questões materiais e costumes do
grupo a segunda aborda a morte e alguns aspectos dos espíritos e sobrena-
turais encontrados em partes da mitologia; e a terceira descreve a língua e
a relação com os informantes. Capistrano não deixa de fazer da frase pro-
fissão de fé: “A frase é a realidade: a unidade do rãtxa hu-ni ku-í, a língua
dos Kaxináwa”(1969c: 211). Desse modo, construiu dois textos diferentes,
um composto por frases, transcrições e as respectivas traduções interlineares,
somando um total de 630 páginas; outro conciso, de 47 páginas, em que
17
Quando publicou, em 1910, parte da mitologia Kaxináwa no Jornal de Comércio queria que esse
trabalho chegasse ao Congresso de Americanistas em Buenos Aires no mesmo ano, o que demonstrava
seu interesse em estabelecer um debate com a etnologia da época e se inserir neste campo como etnó-
grafo e linguista (Capistrano, 1941: 9).

45
descreve e intercala suas interpretações com os “depoimentos” dos nativos,
construindo um outro gênero de apresentação do material etnográfico e o
modo como constrói sua interpretação.

Língua/mundo: Capistrano e a tradição germânica


O interesse pela Etnografia “não teve nada de episódico e se vinculava
precisamente ao saber histórico de Capistrano” (Amoroso & Calávia,
1995: 251). Isso significa que nutrindo interesse especial pelo pensamento in-
telectual alemão, Capistrano seria naturalmente guiado para o tema da etno-
grafia e o modo que ela era conduzida pelos Alemães do final do século XIX.
Cedo, Capistrano se interessa pelo Estudo da língua alemã: “Fi-lo por-
que certos livros alemães satisfaziam algumas curiosidades de meu espírito,
e esperar que fossem traduzidos importava na melhor hipótese uma demora
de anos” (Rodrigues, 1954: XLV).
Sua biblioteca “revela a predominância da formação alemã: não só os his-
toriadores e geógrafos alemãs que ali figuram, como Ratzel, Ranke, Mommsen,
Meyer, G. Friederici, O Dicionário das Ciências Sociais, Sombart e outros; são
os teóricos como Kemmerich e Riess, os psicólogos, filósofos e antropólogos,
como Wundt, os juristas, como Putchta, Liszt e Kohler” (Rodrigues,
1954: XLV). Capistrano traduz Wappaeus em 1884 e Kirchhoff em 1909.
Como corolário desse seu interesse surge, naturalmente, a leitura da pro-
dução da Etnologia Alemã via Karl von den Steinen e Paul Ehrenreich, uma
vez que faziam a ponte entre o mundo do pensamento alemão e os indígenas
brasileiros. Afonso D’E. Taunay ([1937]1979), em seu prefácio ao livro de
Baldus intitulado Ensaios de Etnologia Brasileira apresenta as filiações etno-
lógicas da época. Associando Capistrano de Abreu à Karl von den Steinen,
Paul Ehrenreich, Koch-Grünberg e Fritz Krause,18 identifica, assim, o início
profissional da etnologia alemã e seu campo de exploração no Brasil.
As expedições ao Xingu marcam a chegada das ideias etnológicas pro-
duzidas na Alemanha ao Brasil. Steinen organiza duas expedições, uma em
1884 e outra em 1887,19 tendo em sua companhia Paul Ehrenreich e o ge-
18
Fritz Krause foi o único de sua geração que trabalhou com as peças etnográficas recolhidas por estas
expedições que estão depositadas nos museus da Alemanha. Krause deixou uma obra importante sobre
os Karajá (1940-1944[1911]).
19
Baldus aponta o ano de 1887 e a viagem ao Xingu empreendida por Steinen o inicio das expedições pu-
ramente etnográficas na América do sul. Com Karl von den Steinen surgiram uma geração de etnógrafos
viajantes que a partir de então se ocupariam do Brasil como campo de estudo da etnologia: Paul Ehrenrei-
ch, Max Schmidt, Koch-Grünberg, Fritz Krause e mais tarde Curt Unkel (Nimuendajú). Assim Steinen
instala na etnografia brasileira o ponto de vista científico da etnologia moderna. (Baldus, 1940: 8-9).

46
ógrafo Peter Vogel. As duas outras expedições alemãs ao Brasil estiveram a
cargo de Herrmann Meyer (1895, 1898), que teve como companheiros de
viagem o antropólogo Karl Ranke e Theodor Koch-Grünberg. Em 1901
chegava mais uma expedição chefiada por Max Schmidt, que realizou mais
cinco expedições até 1926 (Schaden, 1993: 111).
Foi a partir da ideia de Adolf Bastian de organizar grandes coleções etnográ-
ficas no Museu de Berlim que as expedições ao Brasil foram incentivadas, dan-
do, assim, origem a uma linhagem de etnólogos que se sucederam nas diferen-
tes expedições, imprimindo um estilo de descrição e apresentação da etnografia.
Baldus destaca como expoentes desta escola os trabalhos de Koch-Grünberg
(cuja instrução universitária era essencialmente filológica) e os de Capistrano,
como dedicados a trabalhar com os textos indígenas (Baldus, 1954: 13-5).
Além de organizar coleções, as expedições alemãs, estimuladas e orientadas por
Steinen, revelavam a importância de se realizar uma etnologia de campo voltada
para problemas concretos e em profundidade (Nordenkiold, 1930). Por
exemplo, o plano de Max Schmidt, orientado por Steinen, era o de fazer um
trabalho de campo prolongado, uma pesquisa em profundidade. Se o plano
falhou por razões de logística, Steinen ressalta, em sua resenha à publicação dos
resultados desta expedição, que Schmidt tinha a intenção de se fixar em apenas
uma tribo, demorando-se por maior espaço de tempo e “com trabalho regular
de estacionamento (sic), penetrar no mundo mental dos índios ainda isolados”
(Steinen, 1906: 234 apud Schaden, 195: 1159).
Karl von den Steinen chega à etnologia pelas mãos de Bastian20 e com-
partilha suas ideias sobre a unidade física do homem independente de raça
ou cor, sobre a elementargedanke (elementar é a ideia de divino, o que toma
aspectos variados é a configuração do divino adaptada às condições do meio),
sobre Völkergedanke (“ideia dos povos”, expressão que se iguala ao conceito
de “visão de mundo”) (Thieme, 1993: 43).
Schaden (1955: 1153) define a influência de Bastian no trabalho de
Steinen: “... não rezava religiosamente pela mesma cartilha de Bastian, mas
de algum modo estava interessado no problema das origens, quer das insti-
tuições, de técnicas ou, ainda, de formas de pensamento”.
Schaden acrescenta que Steinen não poderia ser rotulado simplesmente
como um evolucionista, pois sua preocupação com a história cultural, com
as origens através das causações externas e internas, com a reconstituição das
20
Steinen encontra Bastian em Honolulu, no Havaí, e desse dia em diante passa a ser etnólogo seguindo as
“tarefas altas, raras” que sugeria Bastian: a de salvar os documentos de incomensurável valor que estavam se
transformando pelo contato e se perdendo, as culturas chamadas primitivas (Thieme, 1993: 45).

47
rotas migratórias e com o quadro etno-linguístico e sua relação ao espaço geo-
gráfico o levaram a problematizar outras questões. Steinen estava, sobretudo,
interessado nos “processos mentais dos indígenas”, o que Schaden associa
a sua formação em psiquiatria. Desde cedo reconheceu a importância dos
estudos linguísticos no conjunto das investigações etnológicas e, por isso,
buscou uma formação em linguística mais séria (Koppers, 1934: 36-40).
“O espírito carismático de Adolf Bastian pairava sobre toda uma geração
de pesquisadores” (Schaden, 1993: 115). Bastian estava preocupado com
as Weltanschauungen, “concepções de mundo”, e associava isso, sobretudo, aos
mitos: daí a conexão entre língua, mito e concepção de mundo (Viertler,
1993: 218). A partir de Bastian e das ressonâncias do pensamento romântico
alemão em sua obra chegamos a Boas, à Etnologia Alemã e às possíveis conexões
com os trabalhos etnológicos de Capistrano. Stocking Jr. (Stocking Jr.,
1982: 214) refaz estas conexões que remontam de Herder, Bastian a Boas.
Notáveis semelhanças podem ser percebidas entre o trabalho etnográfico
de Capistrano, os da Escola de Etnologia Alemã produzidos no Brasil e as pro-
duções etnológicas de Boas. Havia, de fato, segundo, Stocking Jr., influências
herdadas do universo intelectual alemão que orientavam naquela altura a pro-
dução da etnografia, sobretudo quanto à ênfase na mitologia, língua e folclore:
... existe um bom número de razões para ênfase de Boas sobre o folclore... Ao mesmo
tempo esta ênfase é uma clara herança de Bastian, que no começo deu um certo caráter
à etnologia boasiana. A concepção de Bastian de Völkergedanken e Weltanschauungen,
ou visão de mundo, sua tendência de perceber a cultura material como reflexo do
mundo das ideias e, ainda, sua ênfase no estudo da mitologia continuam ser ressonân-
cias na obra de de Boas (Stocking Jr., 1982: 224).

O diálogo de Steinen com seus contemporâneos aparece nos seus temas


de pesquisa. As vinculações com os interesses de Boas no que se refere a uma
teoria da arte primitiva estão presentes nestes primeiros trabalhos dos etnó-
logos alemães no Brasil. Steinen (1940[1894]: 299-378) estava preocupado
com os padrões dos desenhos xinguanos, com o modelo e com o seu signi-
ficado. Debatia com a “teoria da estilização”, teoria que, no dizer de Wundt
(1921: 214 apud Schaden, 1955: 1159):
Foi utilizada para interpretar toda a ornamentação dos povos primitivos, também nos
casos em que não havia possibilidade alguma de se apontarem formas intermediárias
que tornassem provável uma transição entre as formas.

Max Schmidt (1904, 1942 [1906]), enquanto sucessor de Steinen, levou


ainda mais adiante a discussão sobre a “estilização”dos desenhos, os aspectos ge-

48
ométricos, a técnica, a natureza como fonte dos padrões, a elevação do desenho à
categoria de símbolo. Koch-Grünberg e Krause (1940-1944[1911]) defendiam
o ponto de vista de Schmidt e o próprio Steinen o adotou posteriormente:
Havia uma discussão na época sobre as teorias do desenho, uma defendia a prioridade
da figura geométrica (obtida pela técnica do trancado, ora como simples garatujas
produzidas em obediência a “impulso lúdico”), outros tomando o desenho naturalista,
comunicativo e representativo, como ponto de partida de uma longa série de progres-
sivas estilizações (Schaden, 1955: 1162).

Estes interesses remetem às questões que Boas (1914) discutia quando


escrevia sobre arte primitiva, integrando esses temas à etnologia alemã: era
preciso investigar a relação entre arte e forma geométrica para se chegar ao
modo pelo qual o pensamento primitivo operava. Retornamos, aqui, à linha
mestra de investigação que orientava a etnologia de formação alemã: os pro-
cessos mentais dos indígenas.
Mesmo não havendo relações acadêmicas ou intelectuais diretas entre
Boas e Capistrano, a não ser mediadas por Karl von den Steinen, havia pro-
jetos comuns em etnologia e etnografia e o saber compartilhado em apreciar
as mesmas obras. Capistrano escreve a João Lúcio de Azevedo e Paulo Prado
dando informações sobre suas relações com Boas:
Franz Boas, um dos primeiros etnógrafos, escreveu-me sem conhecer, pedindo que
arranjasse algumas assinaturas de 50 dólares para a obra em que Steinen gastou mais de
vinte anos e que não encontrava editor (Rodrigues, 1954, II: 283).
Franz Boas é universalmente conhecido como uma das maiores autoridades em questões
antropológicas. Carlos von den Steinen, a quem se refere, fez duas expedições à nossa
terra e lançou as bases da etnografia científica do Brasil. Peço-lhe que se interesse pela
causa, lance uma derrama entre os amigos e mande a Franz Boas uma ordem prestigiosa
para facilitar a impressão da obra, que deve ser genial (Rodrigues, 1954, II: 438).

Mais tarde Capistrano diz que conseguiu arranjar oito ou nove assina-
turas, e por isso recebe uma carta de Steinen agradecendo-o com um “elogio
de arromba”. 21 Em um plano mais geral, a conexão entre Boas e Capistrano
pode ser estabelecida pela concepção de língua e cultura expressa por Boas a
nível teórico e por Capistrano a nível etnográfico: “... língua é a individuali-
dade de um povo...” (Boas, [1904] 1989: 29).
Bunzl reconhece a relação entre o ponto de vista de Herder e Humboldt
e as influências em Boas e de um modo geral as influências desses pensadores
21
“Tolle et lege: Wie oft habe ich, Ihrer gedacht als eines der besten und liebens-würdigsten Menschen
denen ich in der Welt begegnet bin...” (Rodrigues, 1954, II: 283) (“Tolle et lege: quantas vezes
pensei em você como uma das melhores e mais amáveis pessoas que conheci no mundo”.).

49
para o pensamento intelectual alemão vindouro, o mesmo que deu início à
Etnologia Alemã. Herder pensava que
englobando um único genius, ou Geist, cada Volk forma um todo orgânico, os valores,
crenças, tradições e língua só podem ser entendidos a partir do seu interior quando se
entra no ponto de vista de seus membros. História como um processo observável ocorre
não em nível universal, mas entre entidades sociais particulares (Bunzl, 1996: 20).

Humboldt (1988) desenvolveu uma teoria linguística que se assemelha


à de Boas e à de Capistrano. Uma definição resumida do conceito de língua,
para Humboldt, pode ser a que língua é uma energia em que se encontram
separadas a matéria fônica, a conceitual e a forma da linguagem, que são as
palavras e seu encadeamento sintático. Porém, o que parece ser mais im-
portante no conceito que Humboldt empresta à língua é sua capacidade de
individualizar uma concepção de mundo” (Bunzl, 1996: 32-3).
Segundo Bunzl, embora uma ligação similar entre língua e caráter nacio-
nal seja derivada também de Herder, Humboldt desenvolveu este ponto de
forma mais sistemática. Bunzl aponta como Adolf Bastian, um dos primeiros
a se inspirar na tradição humboldtiana e faz uma junção entre as tradições dos
irmãos Humboldt (Wilhem e Alexander). No que tange a questão da seme-
lhança de seu conceito de Völkergedanken e o conceito Nationalcharakter de
Humboldt, parece ter havido uma influência direta (Bunzl, 1996: 49).
Boas, quando escreve sobre os Kwakiutl, tem a parceria de George Hunt,
um nativo na língua e juntos constituem uma obra cuja maior parte é forma-
da por textos: cinco volumes de mitos e outras narrativas escritas de forma
“crua” em que a língua aparece como carro chefe e veículo de todo aquele uni-
verso, apresentando de uma só vez a língua, a visão de mundo e os detalhes da
cultura Kwakiutl (Berman, 1996). A partir da concepção de língua/cultura
e do método de trabalho empregado pode-se fazer uma relação entre Boas,
Steinen e Capistrano. Steinen, com seu livro de 400 páginas sobre a língua
e cultura Bakairi, publicado em 1892, e Capistrano, com a língua e cultura
Kaxináwa. Embora as comunicações e as interleituras não sejam evidentes
neste caso, há um substratum metodológico comum a estas produções que
está baseado em um universo compartilhado de influências advindas da tradi-
ção germânica proveniente de Herder, Humboldt e Bastian. A máxima dessa
corrente etnográfica era a de captar a “cultura como ela parecia para o índio
ele mesmo”, o que justificava a parceria e a colaboração com os nativos. Para
Boas, essa parecia ser a forma como enfrentava seu problema metodológico
central: a questão do relativismo (Berman, 1996: 217). Estavam postos,

50
assim, os problemas e as dificuldades encontradas no método que Capistrano
também desenvolvia no seu trabalho etnográfico: a profundidade da análise,
a tradução, a especificidade e individualidade das línguas e dos povos.
Amoroso & Calávia, refletindo sobre a oposição entre viagem etnográ-
fica e trabalho com informantes, acentuam que o trabalho de Capistrano
enquadrava-se em
uma época em que a grande viagem era ainda o modelo de estudos antropológicos,
quando estava para se firmar a norma do trabalho de campo prolongado, a pesquisa de
Capistrano segue um caminho aparentemente fácil, mas raramente praticado (Amo-
roso & CaláviA, 1995: 253).

Observa-se que nesse estilo de construção de etnografia partilhada por


Capistrano o enfatizado não era necessariamente a viagem, mas os estudos
levados a cabo com informantes. Menos que a observação empírica, o que se
destacava nesse tipo de abordagem era o estudo do kulturgeist, o espírito da
cultura, da língua, e, por isso, valorizam-se os informantes e os dados cole-
tados de sua boca. Steinen e Capistrano estavam em posições opostas apenas
do ponto de vista da viagem, mas não do método. Steinen sempre contou
com informantes, como foi o caso do Bakairi que o acompanhou nas suas
duas expedições e dos Paresi que foram trazidos até Cuiabá para servirem de
informantes e com quem Steinen coletou dados sobre língua e mitologia. A
profundidade exigida por esse estilo de se fazer etnografia requeria uma re-
lação de colaboração entre um informante e o etnógrafo. Enquanto Steinen
estava na aldeia, Capistrano estava longe dela, mas ambos viam as casas.

51
Experiência: Firth e os Tikopia22

Os Katcina entraram na Kiva sem máscaras, eu tive um


grande choque: eles não eram os espíritos. E os reconheci todos, e
me senti bem mal porque toda a minha vida me foi dito que os
Katcina eram os deuses. Eu estava sobretudo chocado de ver os pais
e os tios do clã dançar em katcina. Mas foi ainda pior ver meu
pai! (passagem escrita por um jovem índio hopi quando o ritual de
iniciação em que tomava parte termina e descobre que os adultos
que ostentavam as máscaras Katcina eram seus tios e seu pai)
Mannoni, O. 1969: 12

Ao ler Nós, os Tikopias, proponho um retorno às questões fundamentais


para a Antropologia: o significado de etnografia, de descrição, de apresenta-
ção dos dados, de interpretação, de argumentação teórica. O texto de Firth,
por ser inaugural de um estilo, ajuda a compreender um sentido de etnogra-
fia. Esta reflexão sobre Nós, os Tikopias procura explorar o sentido que Fir-
th atribui sua etnografia, avaliando como essa forma de fazer Antropologia
pode conhecer, como conhece e de que modo constrói uma narrativa e inter-
pretação sobre o conhecimento. Questões como a constituição de um estilo
de descrição e de apresentação do material e sua consolidação enquanto um
modo de fazer etnografia é o que orienta esta apreciação crítica.

A carne e ossos: gêneros de etnografia em disputa


Uma etnografia apresenta muitos fatos de diferentes maneiras. Os fatos
pelos fatos, os fatos justificando uma interpretação, a interpretação baseada
em uma teoria, a teoria baseada em um fato etc. As etnografias, muitas vezes,
são lidas buscando-se algo “por trás dos fatos”, a justificativa de uma inter-
pretação, o sentido da argumentação. Outras vezes uma etnografia pode ser
simplesmente lida, isto é, ao se colocar ausente a obsessão da classificação a
posteriori, a busca das concepções que nortearam a interpretação dos fatos,
a atribuição ao autor de uma super-racionalidade, de um controle absoluto
dos fatos e de suas interpretações.
O Prefácio de Malinowski ao livro de Firth empresta uma direção a estas
preocupações. “Baseado no conhecimento pessoal dos nativos”, frase que
22
Uma versão reduzida deste texto foi publicada em Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 57, p.
176-188, 2001.

52
expressava a nova fórmula de fazer Antropologia na década de 1930, Mali-
nowski saúda Firth por sua contribuição à Antropologia e por seu modo de
conduzir a etnografia. Malinowski quer enfatizar que Firth trata de muitos
aspectos ao tratar do parentesco – o parentesco para os tikopia tem a mesma
função da troca trobriandesa, do kula: articula uma narrativa, pretexto para
se abordar múltiplas facetas do social. Dessa perspectiva, a etnografia revela
um estilo: a preocupação com a narração de uma experiência em que o et-
nógrafo participa da descrição. Estilo que revela a vocação de uma etnografia
moderna ou mesmo a invenção da etnografia enquanto linguagem, aquilo
que nos permite ter acesso às questões da Antropologia.
Malinowski acentua as três qualidades essenciais que notabilizariam o
trabalho etnográfico como pertencendo ao gênero: “a solidez de julgamen-
to”, a “clareza de argumentação” e a “sinceridade de estilo”(1998: 15). Essas
qualidades fazem com que Nós, os Tikopias, de Firth, ainda hoje possa ser
lido, embora esteja longe dos tikopia que atualmente habitam uma ilha da
Polinésia. Essa qualidade da descrição era uma pretensão consciente de cons-
trução da etnografia, desejo de imortalizar uma cultura, uma consciência de
que “escreviam” literalmente as culturas.
O texto que Firth estabelece está pontuado por trechos abundantes da
fala nativa. Firth faz uma apologia da literatura e da história oral, ressaltando
a importância das narrativas tikopia como literatura. Ao apresentar as canções
funerárias escreve: “Esses contos e canções são a matéria-prima de que pode
brotar uma literatura nacional – quando algum dia um poeta polinésio buscar
inspiração nos temas antigos de seu povo, como Gogol, em Taras Bulba, re-
montou ao saber cossaco da Ucrânia...”(1998: 390). Firth vai revelar essa “lite-
ratura não escrita” dos tikopia e para isso usa o parentesco como fio condutor,
um mote para abordar muitos outros aspectos da cultura, como as canções, os
rituais, o estilo de vida, as relações pessoais, os sentimentos, a paisagem etc.
Malinowski, em seu prefácio, chama, também, a atenção para a posi-
tividade do “empiricismo radical” de Firth, definindo-o como o dever de
qualquer construção de uma etnografia: “O espírito radicalmente empírico,
a riqueza de documentação concreta colocam diante de nós a vívida presença
de homens e mulheres.”(id.: 16). Defende esse estilo de escrita e produção
de conhecimento – o “espírito radicalmente empírico”, a “documentação
concreta” –, contrapondo-se ao que chamava de “uma indigestão de novas
teorias antropológicas” e aos “novos padrões [que] vão sendo erguidos em
intervalos de meses e a realidade da vida humana vem sendo submetida a
algumas ridículas e alarmantes manipulações”. Malinowski fazia uma crítica

53
ao excesso de teorias e à pouca articulação com a etnografia, orientada para
os dados e para construir um vívido retrato da vida tribal. Não poupa ironias
aos termos e conceitos utilizados por Bateson (1958), Mead (1935), Bene-
dict (1934) e a esse estilo de fazer etnografia: “são feitas tentativas de analisar
culturas em termos de cismogênese, ou de definir o “gênio” individual sin-
gular de cada sociedade particular como apolíneo, dionisíaco ou paranóide, e
coisas do gênero. Sob o destro toque de um escritor as mulheres de uma tribo
parecem masculinas, enquanto em outro os homens desenvolvem qualidades
femininas, quase à beira do parto” (id.: 16). Malinowski defende o estilo em-
pregado por Firth na etnografia tikopia, opondo ficção a descrição. Define
seu estilo como uma “peça de erudição genuína, baseada na experiência real
de uma cultura e não em algumas poucas impressões ficcionais” (id.: 16).
Malinowski, valorando sua definição de etnografia critica os estudos
“modernos” e propõe um retorno (em 1936) à etnografia strictu senso: contra
as modas e aqueles que produzem “uma confusão de slogans ou rótulos, uma
fábrica de atalhos impressionists, ou reconstruções conjecturais. A Antropo-
logia cultural é uma ciência social...”(id.: 19). Menos que uma vaga atual pós-
moderna, o prefácio de Malinowski nos deixa antever que havia desde sempre
um debate em torno do significado de etnografia. Parece que a definição do
que seja etnografia, congênita à origem da disciplina, funda a discussão do
que significa a Antropologia. Dessa forma, Nós, os Tikopias nos conduz à re-
flexão sobre o sentido da etnografia e a constituição da Antropologia.

Do “nós os tikopia” ao “eu Raymond”:


trabalho de campo e subjetividade
O trabalho de campo que deu origem ao livro foi realizado apenas du-
rante um ano, entre julho de 1928 e julho de 1929, em Tikopia, ilha da Poli-
nésia que à época contava com “1.200 nativos saudáveis e vigorosos” em um
universo “quase intocado pelo mundo exterior”, em que “o povo de Tikopia
administra seus próprios negócios...”(id.: 88).
O frontispício que abre o livro é o de “Um aristocrata tikopia. Pa Fenua-
tara da chefia de Kafika é um homem excepcionalmente inteligente. Aqui ele
aparece vestido para uma dança, com cabelo solto e ornado com uma folha de
dracena, colares de alga marinha no pescoço e na testa”. Este tipo de designa-
ção, que também era comum a Malinowski, produz já uma estranheza: o que
significaria um aristocrata nos termos tikopia? Por que o uso de uma tal desig-
nação? Por que usar esta categoria para explicar uma hierarquia tikopia? O livro

54
de Firth, a começar pelas fotos e suas legendas, nos faz pensar sobre a Antro-
pologia, seus limites, possibilidades de tradução, as categorias que usa, o modo
como apresenta seus resultados e as pontes que a Antropologia estabelece entre
os ingleses e os tikopia ao usar palavras como “aristocratas”, por exemplo.
Nós, os Tikopias, não é fortuito. Tradução de uma expressão nativa que está constante-
mente nos lábios do próprio povo, corresponde a essa comunidade de interesse, essa
autoconsciência, essa individualidade fortemente marcada na aparência física, nas rou-
pas, na língua e nos costumes os quais eles tanto prezam (id.: 76).

Esta primeira definição é importante para que não haja má interpretação


sobre o título do livro, querendo fazer significar mais do que significa. Nós, os
Tikopias faz sentido para os nativos e não é um artifício do antropólogo que
quer atribuir uma “totalidade” ao povo que estuda ou construir um “nós” a
partir de sua “autoridade” etnográfica.
O objetivo do livro é a “análise sociológica da vida familiar e do parentes-
co” (id.: 76) ou “o lugar primordial do parentesco na vida social tikopia”(id.:
81). Firth apresenta uma visão definida do significado do parentesco, as teo-
rias correntes na Antropologia e o que isso implicava em termos conceituais
para definir por contraste suas preocupações. Estava interessado no grau de
observância das regras, e por isso eram fundamentais as informações que
arrolavam no texto: a descrição. Queria observar e descrever a prática do
parentesco, e não o aspecto abstrato das regras e do sistema.
Firth expõe o que se tornou lugar comum sobre o trabalho de campo e
a prática antropológica: o estranhamento, a dificuldade em entender e dar
sentido à experiência. Escreve: “Em suas primeiras experiências no campo, o
antropólogo vê-se constantemente a braços com o intangível. A realidade da
vida nativa prossegue em torno dele, mas ele mesmo ainda não está em foco
para vê-la. Ele sabe que a maior parte do que registra no início será inútil:
ou será definitivamente incorreto, ou tão inadequado que deve ser mais tarde
descartado”(id.: 84). E continua “...mesmo o mais simples registro do que pa-
recem ser os “fatos” de uma cultura nativa envolveu uma considerável soma de
interpretação...”(id.: 85). Faz uma reflexão importante sobre o que é um fato
e o que é uma interpretação. Firth parecia defender a ideia de que somente o
etnógrafo, aquele que fez a pesquisa, é quem sabe distinguir um fato de uma
interpretação, e nesse sentido, as reinterpretações dos “fatos” por outras pessoas
são apenas possíveis quando se assume explicitamente o caráter interpretativo
de tal empreendimento. Sabia que isolar um fato de uma interpretação na
construção de uma etnografia era tarefa quase impossível, o que desautoriza o

55
tratamento do material etnográfico enquanto “material empírico”, “material
bruto” que pode ser reinterpretado. Sobre este ponto reside o estatuto de etno-
grafia, dados e interpretação que Firth está tentando constituir.
Firth usa considerável massa de exemplos ao longo do texto: o livro tem
755 páginas (na tradução brasileira), mas poderia, talvez, ter tido 2.000 ou
10.000; fato que nos faz refletir sobre os limites deste estilo descritivo, sobre
o necessário e o supérfluo numa argumentação. Firth adota o padrão da des-
crição, em tempo real, da vida cotidiana.
Narra a estranheza dos nativos diante das moedas inglesas e como ele
explicava seu valor, fazendo-as equivaler a bens que os nativos conheciam.
Narra como os nativos não se convenciam com suas explicações e jogavam
fora as moedas inglesas dizendo: “pedaço de ferro inútil” (id.: 91). Firth
junta humor à descrição. Assumindo um tom irônico cria situações como se
fosse o primeiro a estar ali, como se antes dele os nativos não soubessem o
que significavam as moedas inglesas e seu valor (id.: 91).
Firth pagava com machados, facas, tabaco, arroz a construção de sua
casa e os trabalhos realizados pelos nativos. Justifica o pagamento de in-
formantes como a única possibilidade de realizar o trabalho de campo. A
inicial desconfiança dos nativos se transforma em confiança via trabalho de
campo prolongado. Em sua apresentação sobre o trabalho de campo estão
todos os ingredientes de como se fazer a pesquisa. Parece uma reedição da
“Introdução aos Argonautas...” se bem que ao estilo de Firth, que acentua a
ponderação, a humildade e a modéstia. A dificuldade em obter informações
e em estabelecer o diálogo com os nativos é a tônica de seu relato, questões
que aparecem em quase todas as pesquisas de campo: desconfiança, vigilân-
cia, reticência. Firth defende o “mimestismo” como técnica fundamental do
trabalho de campo: “comi sua comida, obedeci ao tapu, participei do sistema
de trocas e, acima de tudo, falei com aprovação do que via, os chefes e os
anciões abriram seus acervos de saber”(id.: 93). Enfatiza-se assim o tornar-se
parecido com os nativos como chave para o conhecimento antropológico.
O “mimetismo” significa tornar-se aceito, sentir a vida real, se inserir no
cotidiano, em suma, participar. Mas como poderia ser diferente? Será que
o antropólogo poderia ficar alheio de tudo que se passa e não participar da
cultura nativa? Desde que a Antropologia mudou seu paradigma sobre o es-
tatuto do “selvagem” e do “primitivo”, desde o momento em que os nativos
são “razoáveis” ou “iguais a nós próprios”, o trabalho de campo e a observa-
ção participante surgem como “algo natural”, portanto, por que não fazer
o que os nativos fazem? Por que não imitá-los? É neste sentido que Firth

56
narra sua participação na vida diária como algo surpreendente, parecendo
com isso querer atestar que não seria normal se não fosse um antropólogo,
isto é, se não tivesse um sistema de crenças próprio da Antropologia que
lhe assegurasse essa possibilidade de participar mimeticamente da vida tribal
com a intenção de ser aceito e compartilhar uma visão de mundo. Mas Firth
também desconfia da frase “foi aceito pelos nativos como um deles”(id.: 95).
Para ele era impossível o “tornar-se nativo”, e nesse sentido, “ter-se tornado
um membro da tribo”, ou ser “visto pelos nativos como um deles”, eram ape-
nas frases proferidas por aqueles europeus que estavam prontos “a se gabar de
conhecer o que o nativo pensa, de estarem qualificados a representar o ponto
de vista nativo” (id.: 95-6), mas não frases próprias para os antropólogos.
A “primeira impressão” sobre os tikopia define um estilo de descrição:
No frio da madrugada, minutos antes do alvorecer, a proa do Southern Cross rumou
para o horizonte oriental, onde se vislumbrava uma tênue silhueta azul-escura. Len-
tamente, esta se avolumou, tornando-se uma áspera massa montanhosa que se erguia
abruptamente do oceano... O sombrio dia cinzento com suas nuvens baixas fortaleceu
minha horrível impressão de um pico solitário, selvagem e tormentoso, impelido para
o alto numa imensidão de águas.
Cerca de uma hora depois, estávamos junto à costa e podíamos ver canoas chegando
ao sul, na parte externa do recife, onde a maré era baixa. As embarcações equipadas
com auterrigues arrancaram para a frente, os homens dentro dela nus da cintura para
cima, vestidos com tecido de casca de árvore, grandes leques enfiados por dentro dos
cintos, anéis de casco de tartaruga ou rolos de folhas nos lóbulos das orelhas e no nariz,
barbudos e com cabelos compridos caindo frouxamente nos ombros. Alguns baixaram
os pesados remos, outros tinham disposto cuidadosamente esteiras de folhas de pândano
nos bancos laterais, outros empunhavam grandes porretes ou chuços” (id.: 83).

Para saber o que os nativos trajavam, se seus remos eram pesados ou não,
se tinham anéis feitos de cascos de tartaruga e rolos de folhas nos lóbulos das
orelhas, se usavam grandes leques enfiados por dentro dos cintos, vestidos com
tecidos de casca de árvore, era necessário, sem dúvida, mais que uma visada de
longe, de cima de um navio para as canoas dos nativos. A descrição de um “pri-
meiro encontro” parece proposital, uma demonstração da consciência da nar-
rativa, da construção da experiência, estilo francamente assumido por Firth.
Após a “primeira impressão”, Firth enfatiza o temor de seu “ajudante”,
outro nativo, quando avistou do convés a praia de Tikopia. Firth tinha um
“criado pessoal”, um rapazinho de Java que “conhecia os costumes dos bran-
cos” e ajudava na produção de comida. Firth teria preferido um tikopia, mas
“conseguir um tikopia que conhecesse os costumes dos brancos era impossível.
Eu queria portanto um menino que fosse instruído, mas um polinésio, por
causa de sua capacidade de se adaptar à fala e à cultura dos tikopias”(id.: 94).

57
O temor de seu ajudante passa a ideia do temor do desconhecido, de
uma diferença radical, o que soa, às vezes, exagerado em sua narrativa. Em-
bora saiba quem são os tikopia, antes mesmo de chegar lá, quer produzir a
sensação do encontro com os “polinésios primitivos”, longe da civilização.
A diferença radical enquanto uma exotização garantida pelo “estranhamen-
to” produz, por sua vez, o acesso ao conhecimento, marca registrada na des-
crição de Firth. Porém, o “estranhamento” parece ser uma opção consciente,
algo efetivamente construído.
Um nativo diz para Firth: “Amigo, eu lhe contei segredos de meu kava;
minha ora (vida) e a de meu povo e essa terra tikopia irão com você. Eu me
sentarei aqui e vigiarei; se o mal recair sobre essa terra, saberei que foi por in-
termédio de seus atos”. Mais do que qualquer outro cientista, o antropólogo
depende da confiança de seu material humano e tem sempre de enfrentar a
dúvida sobre até que ponto ele está traindo essa confiança pela publicação
do que lhe foi dito. Sonegar parte de seus dados significa distorcer o quadro
que está tentando fazer” (id.: 93-4). Como modo de ultrapassar o dilema
entre o compromisso com a Antropologia e com os nativos que estuda, Firth
procura fazer um “registro exato e científico”, uma avaliação precisa das ins-
tituições e modos de vida desse povo. A ciência foi a saída encontrada para
poder revelar os “segredos” tikopia.
Reconhece os limites do trabalho de campo e considera a subjetividade
algo determinante da pesquisa. O que designa por subjetividade é a par-
ticipação na sociedade tikopia, acompanhar os rituais, os funerais, ter seu
diário de campo, tudo aquilo que, uma vez que participa, pode interferir
na qualidade de seus dados. Não confunde subjetividade com intimidade e
por isso atribui um sentido à subjetividade: algo individual ou único, aquilo
que pertence apenas unicamente ao pensamento humano, em oposição ao
mundo físico. Subjetividade assume no texto de Firth uma dimensão concei-
tual, filosófica enquanto um modo de conhecimento das ciências sociais não
conotando intimidade ou pessoalidade.
Firth descreve sua primeira impressão sobre os tikopia mesmo à custa
de estereótipos, como um momento antes da transformação que se daria
em seu ponto de vista sobre os nativos a partir da convivência diária. Quer
guardar essa impressão antes de “desvanecer no reino das ideias aceitas”
(id.: 96): “... homens com a aparência selvagem, com bastas cabeleiras seme-
lhantes a uma longa e fulva crina, uma pele bonita muitas vezes amarela ou
amarelo-laranja graças à tintura de açafrão...”
Por que faz questão de narrar suas primeiras impressões? Para que isso é
relevante? Firth se via obrigado a falar sobre tudo que viu e ouviu, não omitir

58
nada, tinha um compromisso com a “verdade dos fatos”, com a honestida-
de científica, agia como se estivesse diante de um confessionário. Descre-
ve a estatura dos nativos, sua constituição física, seu cheiro, seus músculos,
postura corporal etc (id.: 97). Detalhes que variam conforme as descrições,
indo do realismo ao impressionismo: “escuros e atarracados melanésios”(id.:
96); “A constituição física desse povo é magnífica. Os homens têm membros
musculosos e torneados, e eu costumava admirar a musculatura dos bíceps
bem-proporcionados. Não há nenhuma massa disforme de músculo protu-
berante; seu movimento é visto sob a pele macia apenas quando um objeto é
agarrado ou levantado”(id.: 97); “O povo todo tem uma boa postura, mas os
chefes e seus filhos são os que revelam maior dignidade...”(id.: 97).
Toda e qualquer afirmação que faz é precedida de exemplos e ilustrações,
um método demonstrativo da ciência natural que transposto para a ciência
social resulta em excesso de informações e institui um “método confessional”.
Firth diz que um dia o “feitiço virou contra o feiticeiro” quando entrou
numa casa e uma mulher quase cega disse: “Que cheiro forte de homem bran-
co!” (id.: 97). Ficou desconcertado e depois se lembrou de que tinha passado
citronela em seu corpo para evitar mosquitos. Nessa “experiência divertida”
Firth parecia achar natural ele estranhar o cheiro dos tikopia e não o inverso,
daí sua expressão de “o feitiço virou contra o feiticeiro” quando seu cheiro foi
considerado forte. Retornemos à questão do critério do que é ou não relevan-
te descrever ou revelar na experiência entre os tikopia e o que a Antropologia
deve saber. Malinowski soube de algum modo conservar em seu diário no
sentido estrito do termo as fronteiras entre a intimidade e a subjetividade.
Para Firth, desde o momento em que ele, um cientista, estava entre os nativos,
tudo era subjetividade e por isso deveria ser revelado, como o compartilhar de
uma experiência no sentido estrito do termo.

A compulsão do descrever e o dever do narrar


Seguindo a compulsão e o dever de narrar a experiência, Firth descreve a
“limpeza pessoal” dos tikopia, o banho, o modo de cuspir, o lugar da defeca-
ção etc. Os pés e as mãos dos tikopias são descritos com a seriedade de quem
revela algo extremamente importante para o mundo:
As mãos de muitas dessas pessoas são finas e bem-feitas... Os pés dos nativos são grandes, e a
pele da sola é bastante grossa. De modo geral, é marcada profundamente, como um pedaço
de borracha frisada, por causa do caminhar constante nos recifes de coral... Um dos aspec-
tos mais interessantes das características físicas dos tikopias é a forma curiosa da cabeça.

59
As cabeças pareciam achatadas. Firth mediu várias cabeças de homens,
descrevendo-as com minúcias.
“É interessante notar, de passagem, que observei em inúmeros indivíduos
que a pele normalmente oculta sob a tanga era um pouco mais clara do que a
das superfícies expostas do corpo. A textura da pele é razoavelmente fina”(id.:
102). Esse tipo de observação do que parecia óbvio, uma pele exposta ao sol
e outra oculta sob a tanga têm colorações diferentes, prova a necessidade da
descrição e o lugar que ocupa na construção de uma etnografia.
Firth quer relatar cientificamente o que viveu e observou entre os tikopia,
passar a dimensão total de sua experiência etnográfica; etnografia significa,
agora, literalmente “escrita da cultura através da experiência”. Neste sentido,
o tom literário e a adjetivação que usa em suas descrições produzem, inten-
cionalmente, o efeito de tornar os tikopia vívidos. Vejamos alguns exemplos:
“Uma pálida coisinha, com solenes olhos negros, minúsculas pernas finas
e grandes e desconfortáveis lesões de bouba, ela sabia engatinhar, mas não
andava, apesar de seus dois anos” (id.: 242).
O modo como descreve as crianças tikopia revela o método que emprega
em sua descrição. A experiência etnográfica faz com que Firth “estranhe” o
que lhe parece mais próximo: as crianças tikopia são tratadas como “mar-
cianos”. A descrição é iniciada por uma total “estranheza” Firth descreve as
expressões de “ge gu ga ga ga ga” como se ouvisse pela primeira vez os sons
emitidos por um bebê:
Anotei alguns exemplos dos sons emitidos por Tekila quando estava com cerca de um
ano. Uma expressão frequente era um grito de “du e”, que ele proferia, aparentemente
sem referência específica, enquanto zanzava alegremente por ali. “Ge gu ga”e “ga ga ga
ga” eram outras coleções de sons que usava com frequência do mesmo modo. Quando
apontava para um objeto, dizia “di dai dó” e, quando via alguém comendo um coco,
gritava “mama” (id.: 244).

Quando descreve geográfica e morfologicamente a Ilha de Tikopia faz


descrições abstratas e metafóricas: “Tikopia pode ser descrita adequadamen-
te pelo símile de uma tigela rasa, velha, quebrada e coberta de musgo, com
uma borda irregular lascada, da qual um dos lados é muito aberto e o interior
parcialmente cheio de água”(id.: 107)
Seu estilo oscila entre muitas formas de descrição: realista, impressionis-
ta, viajante, técnica. Quando descreve a Ilha, seu texto pende para as descri-
ções dos viajantes: “O litoral é curvo... protegido por franja de recifes... que
fica quase nua com a maré baixa...”(id.: 107) Descreve cada um dos lados da
Ilha (norte, sul, leste e oeste) com sua variedade de plantas e de paisagem.

60
Ao mesmo tempo, Firth diz que “a Antropologia moderna se libertou
do íncubo dos relatos de viajantes, na medida que reconhece que o pai ‘sel-
vagem’ é tão capaz de afeição para com os filhos quanto um pai de uma
comunidade européia atual.”
Firth se expressa contra os relatos dos viajantes mas usa da mesma fór-
mula dos relatos, ou da mesma estrutura, para tornar os “selvagens” razoá-
veis, para provar que os sentimentos entre pais e filhos realmente existem.
Quer provar que mesmo os “canibais podem ser bondosos em seu círculo
familiar”. Firth diz que é preciso inculcar esta boa nova na “mente popular”.
Nesse sentido, parece que tem a pretensão de escrever para milhares de pes-
soas. A que público seu livro se destina?
“O velho quadro do pai selvagem, brutal e insensível com o filho não
tem, portanto, lugar na galeria dos tipos tikopias” (id.: 262).
Insurge-se contra os viajantes e contra os preconceitos sobre o selvagem,
coisa que a Antropologia hoje em dia nem cogitaria em dar conta e explicar,
embora os preconceitos ainda permaneçam no senso comum. O que parece
ter mudado foi a consideração do público a que se destina o trabalho antro-
pológico. Na época de Firth, ele escrevia para ou pelo menos tinha em mente
o mesmo público dos viajantes.
Descreve tudo o que vê numa busca de inteligibilidade: “pândanos –
uma palmeira que, em sua nudez e angulosidade, apoiada por múltiplas raí-
zes nuas à maneira de tripés, parece a inspiração de um artista moderno”(id.:
109). O livro, deste ponto de vista, é um excesso de descrição encarnando
a ideia da radicalidade de uma concepção de etnografia em que tudo parece
ser relevante e aquele que narra assume o dever da descrição, de tornar real e
visível para outrem o que este não pôde ver e viver. Foi Firth, o antropólogo,
quem se deslocou até lá, um “lugar distante”, “inacessível”, “exótico”, “dife-
rente”, e por isso tem a obrigação de tornar tudo isso vívido para outrem que
apenas receberá essa experiência pela leitura. Parecia haver neste momento
do desenvolvimento da Antropologia uma consciência do poder que os de-
talhes exercem na narrativa, uma opção de fazer o leitor experimentar aquele
mundo que passa a ter vida no relato do antropólogo.
Uma longa descrição a seguir demonstra a importância e o tempo gasto
com a observação da paisagem, a obsessão pelo detalhe, o desejo de fazer
com que o leitor possa, de fato, experimentar o universo narrado:
A agreste beleza da paisagem Tikopia é realçada em certas horas do dia pelo magnífico
jogo de cores. À tardinha, os tons do mar variam de um cinza-metálico, no qual a luz
se reflete através do verde-claro das águas do recife na costa interna, a um verde mais

61
escuro junto à ponta do recife e um azul-anil mais além. Algumas vezes, quando o céu
está tormentoso, o mar apresenta matizes plúmbeos da mesma tonalidade. Numa tarde
sombria, o branco ofuscante total da linha da arrebentação contrasta violentamente,
quase dolorosamente, com o negro-tinta do mar, e depois, num dia ensolarado, a água
revela uma brilhante tonalidade ultramarina. O mar em seus aspectos incontáveis foi um
fascinante objeto de estudo para mim. Para o ouvido, havia sempre o som da arrebenta-
ção, seu barulho constante variando com o vento e a maré. Uma noite foi especialmente
notável. Era um céu tormentoso e havia uma faixa preta de nuvens impenetravelmente
densa logo acima do horizonte, que estava limpo. A nuvem ocultava tão completamente
o pôr-do-sol que trouxe a escuridão antes do crepúsculo. Então, exatamente quando o
sol estava para se pôr, ele irrompeu inteiramente, e com a margem inferior afundando
sob o horizonte e a parte superior oculta pelas nuvens, lançou uma lúgubre cor verme-
lha sobre o mar, sobre as paredes das casas e os troncos das árvores, enquanto a terra já
começara a se envolver nas sombras e a luz vermelha do crepúsculo com um céu fais-
cante em torno do sol chamou a atenção dos próprios nativos. Eles pararam para olhar,
embora não tenham atribuído a isso um significado especial. Em geral, as diferenças
mais sutis e realmente mais bonitas de matizes escapam à sua observação.
Outra noite que observei foi de um tipo mais tranquilo. Além da branca praia inclinada,
estava o mar verde-claro do recife fundindo-se num profundo cinza-azulado a pouca
distância da praia... (id.: 114-115).

Firth insiste na descrição do mar por mais 15 linhas. Os detalhes na


descrição do pôr-do-sol e das cores do mar põe o leitor no lugar do obser-
vador, isto é, um esforço deliberado do autor em localizar o leitor de modo
que possa entrar no cenário de Tikopia, captar os tons da paisagem onde se
desenrolará a narrativa. Pela quantidade de exemplos que utiliza e pelo seu
incansável argumento descritivo, Firth trava uma batalha com o leitor, não
pondera sobre o que seria contingente, descartável e o necessário em uma
etnografia. Mas afinal de contas, Firth é um escritor ou um etnógrafo? Parece
que é um etnógrafo, pois apresenta um projeto claro de descrição. A etno-
grafia é vista enquanto uma experiência em seu sentido literal, vivida por um
indivíduo que a partir dela está compelido a narrar tudo o que viveu e ob-
servou e tem como missão converter o leitor em antropólogo, pela descrição
que, nesse contexto, significa a transmissão da experiência. Desse ponto de
vista a descrição é um moto-contínuo, o texto não para, adentra, aprofunda,
observa, deriva para mais e mais descrições.
Firth descreve a “virtude talismânica atribuída a frases inglesas” (id.:
126) mas não diz por que os tikopia tinham esta atitude diante de tais sen-
tenças, por que queriam guardar secretamente, individualmente, o conheci-
mento de frases e palavras da língua inglesa. A descrição e a informação têm
preponderância em relação à explicação na construção de sua etnografia. O
tamanho do livro é testemunha dessa opção. Em certas passagens o livro

62
assume o tom de um relatório de pesquisa; em outros, de diário de campo.
O livro revela um hibridismo de gêneros. Firth parece ter uma ambição de
escritor, embora valorize a “descrição objetiva”:
É tentador fazer uma descrição do alvorecer em Tikopia em termos entusiastas de luz
e de cor. Mas é difícil evitar a banalidade no caso de uma alvorada tropical quando
o cientista tenta ombrear com os escritores de ficção e belas-letras, dos quais, afinal,
não se espera uma estrita neutralidade de observação e um delineamento corretamente
contido do fenômeno. Basta dizer que a cena da madrugada, depois que a escuridão já
se dissipou e as nuvens acima da elevação de Mauna passaram do vermelho enfuma-
çado para o dourado, costumava me compensar amplamente do despertar prematuro
que tinha de praticar durante a estação ritual.

Ao descrever a vida aldeã posiciona-se do ponto de vista de um escritor,


fala dos sons que derivam os sentimentos e sensações, das luzes que marcam
o romper do dia. Descreve como num filme, cena por cena, fotograma por
fotograma – encarnando a personalidade de escritor-etnógrafo.
Nada escapa à sua observação: sons, cheiros, impressões. O nascer e o
pôr-do-sol, a lua cheia, o frio, o calor, os ventos, as marés, a noite, o dia e
a tarde servem para evocar situações e são usados, com frequência, para en-
cadear a descrição. Inicia a narrativa com informações de caráter mais geral
e logo em seguida passa a uma descrição detalhista, em que o essencial, às
vezes, se perde. Seu método de descrição quer dar conta do vivido. Diante
de tal tarefa, sua descrição parece empobrecida, embora tenha descrito em
detalhes e minúcias aquilo que se propõe a narrar ou interpretar. O que quer
descrever é como se desenrola a vida dos tikopia, por isso se queixa da “falta
de espaço para descrever integralmente as minúcias da vida, mesmo de uma
única casa durante um único dia”. Diante das quase 800 páginas de seu livro
pode-se perguntar: quanto mais espaço Firth gostaria de ter para a descrição?
Quais as minúcias que ele desejaria descrever que não foram descritas? Vê-se,
assim, que a descrição não é um adorno da etnografia, mas seu fundamento.
Observa-se o recurso da subjetividade para entender o costume dos nati-
vos. Firth se colocava todo o tempo participando do ambiente: “É surpreen-
dente como o próprio antropólogo logo se acostumou a tratar o mata paito à
maneira dos nativos” (id.: 168). Firth se coloca em relação com os tikopia e o
livro bem poderia se chamar “Eu e os tikopia”. É Firth quem toma a iniciativa
no processo de conhecimento; conhecimento que depende de sua experiência
de campo. Firth não faz o tipo do “observador mosca” que voa ao redor dos
nativos e apenas os observa. Ao contrário, ele interfere e sabe que sua interfe-
rência é produtiva, pois seu conhecimento é parte da experiência. Portanto,

63
Firth usa suas atuações para extrair informações, interpela os nativos, inter-
fere, questiona, atrapalha. O caso do gramofone ilustra esta interação: seu
gramofone faz barulho e perturba um ancião, e a partir deste incidente Firth
descobre que o espaço denominado mata paito, onde estava o gramofone,
deve ser respeitado e tem uma significação especial na construção de uma
casa tikopia (id.: 170). Ao medir as cabeças quebrou o tapu, isto é, o fato
de tocar nas cabeças dos homens poderia subtrair sua ora (vida, substância
anímica), e daí foi obrigado a interromper as medições e mais uma vez revela
sua fórmula do fazer etnografia, quebrando as regras, a interação com os
nativos o faz descobrir coisas. Firth participa de tal modo da vida diária dos
tikopia que chega mesmo a interferir em uma briga de casal (id.: 229).
Firth era diligente, não estava “pisando em ovos” no campo com re-
ceio de não estar se comportando adequadamente. Usava conscientemente
a premissa do “eu e os tikopia” para conhecer o universo pesquisado. “Des-
cobre” as regras pela experiência ou pelo menos é assim que apresenta suas
descobertas. Descobre o tapu (tabu) do filho tocar o pai (id.: 282) a partir do
momento que ele próprio dá unguento para o filho esfregar nas costas do pai
e este recusa a fazê-lo por causa do tapu. Este é o seu método de conhecimen-
to, o que revela o sentido da experiência em uma concepção de etnografia em
que o antropólogo está presente todo o tempo.
“Certa ocasião, eu estava anotando... quando....”, esta é uma forma de
narrativa recorrente adotada por Firth, colocando-se como observador par-
ticipante no processo de conhecimento. Uma dimensão da etnografia e da
narração que explora constantemente. Firth é parte da experiência, introduz
o gramofone para duas assistências diferentes e percebe a evitação de obsce-
nidade ligada ao sexo a partir das piadas proferidas (id.: 423). Ao invés de
simplesmente escrever sua interpretação, descreve como chegou a essa inter-
pretação nos cânones da ciência: descreve todo o fenômeno e o que induziu
o fato de sua percepção. Ele é o laboratório de suas próprias experiências,
seus erros de comportamento são acertos antropológicos:
certa noite, logo depois que fui morar em Ravena, fui bastante incomodado por al-
guns dos jovens da aldeia no momento em que revelava algumas fotografias. Perdi a
calma, fui até a porta da minha casa e amaldiçoei-os enquanto fugiam, imitando a
frase nativa comum que eu ouvira. As pessoas que estavam sentadas à sombra das ár-
vores junto à praia ouviram em silêncio. Não disseram uma palavra e entrei, satisfeito
com a impressão que havia causado. Na manhã seguinte, Seremata entrou e, depois
de algum tempo, disse: “Amigo, seria bom que você aprendesse a falar direito nossa
língua. Quando uma pessoa amaldiçoa, faz assim”– e prosseguiu com a ilustração. Era
a seguinte a questão que ele apontou: para pessoas que estão a certa distância, deve-se

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dizer: Kai te mo ratou mana”, “Que seus pais comam porcaria”, e não “te mana”, “o
pai” como de costume. “Amigo”, disse ele, “éramos nós que você estava amaldiçoando
a noite passada” (id.: 426).

Os detalhes fazem parte da narrativa e dão forma ao seu estilo. Não são,
do ponto de vista de Firth, supérfluos ou aleatórios; esboçam uma perspecti-
va teórico-conceitual da constituição da etnografia. Vejamos:
É de manhãzinha na casa do Ariki Kafika, em Uta, onde ele está vivendo durante a tempo-
rada cerimonial, junto com alguns membros de sua família, enquanto os restantes ocupam
as moradias habituais nas aldeias da praia. O chefe e sua gente estão dormindo, ele em sua
própria esteira-cama de pândano no lado da casa onde fica o mata paito, que está de frente
para o lago, em cuja direção repousa sua cabeça no descanso de madeira de abas elevadas.
A seus pés, no tuaumu, está estendida sua esposa, com a cabeça apoiada no pedaço retan-
gular de tecido de casca de árvore, que é o travesseiro apropriado para mulher (id.: 182).

Quando a luz acinzentada da manhã se infiltra na casa, uma criança e um jovem des-
pertam e, momentos depois, os outros (id.: 182).

O chefe volta, com o corpo seminu, cor de chocolate, úmido, os cachos grisalhos des-
penteados ainda pingando, e senta-se em sua postura habitual, com as pernas cruzadas
sob o beiral, no seu lado costumeiro da cabana (id.: 183).

O zunido da fibra na água constitui outro dos sons característicos da hora da refeição dos
tikopias, pelos quais o apetite determina quanto tempo falta para ser satisfeito (id.: 192).

O ralador tem o nome de te tue.... A operação produz um dos sons mais característicos
da casa tikopia, a áspera raspagem, brr-brr-brr, no ferro-ralador, seguida por breve
intervalo enquanto a metade do coco é girada nas mãos, da esquerda para direita, e
depois o tríplice ruído dissonante (id.: 192).

Os detalhes fazem parte do argumento, o constituem: o barulho dis-


sonante do ralador as técnicas de ralar o coco são apresentadas através de
imagens e sons.
Passemos, agora, ao cerne de sua argumentação: o estudo do parentesco.
O parentesco é percebido pelo prisma da alimentação, do comportamento,
das relações pessoais. Firth se baseia nas relações mobilizadas pelo compar-
tilhar uma casa, um roçado, desenvolver atividades domésticas no ato de
dormir e comer. Desse modo, seu interesse reside no que pode ser designado
por “a infra-estrutura das relações de parentesco”.
“Os comentários sobre a composição e a textura cremosa de um prato
feitos por quem o recebe revelam a importância da cozinha nas relações so-
ciais” (id.: 197). Firth quer ressaltar a profundidade das relações sociais e um

65
modo de abordar o parentesco, diferente de Radcliffe-Brown,23 ao estilo da
“cultura”, e não das “relações sociais”.
Apresenta as receitas tikopia (id.: 197-208), os nomes das comidas e seu
modo de preparo. Descreve minuciosamente o preparo do pudim de coco:
o modo como é descascado, ralado, amassado e assado. Firth reconhece que
esta descrição é fundamental para o entendimento do parentesco. Sua de-
finição de parentesco se distancia do tecnicismo normalmente empregado
através de categorias, terminologias, classes.
Descreve a residência e alimentação como as dimensões observáveis do
parentesco. Esse ponto parece importante em sua abordagem: a ênfase recai
no modo como os nativos fazem as coisas e se comportam socialmente. A
residência e o alimento enquadram o tratamento do parentesco e são, desse
ponto de vista, o modo correto de abordá-lo (id.: 212) a tal ponto de permi-
tir a Firth constituir um quadro denominado “alimentação e parentesco” em
que as relações e os grupos sociais estão referidos e interligados (id.: 213).
A cultura material, a residência e a alimentação são mais importantes
que a nomenclatura. Firth trabalha com situações contextuais, com exem-
plos específicos, não hipotéticos.
Seu objetivo geral é “determinar a estrutura normal da família em Tiko-
pia; analisar suas funções, particularmente com respeito à posição dos filhos;
mostrar como a estrutura familiar emerge na vida social mais ampla, como
se relaciona com outras instituições sociais. Os tipos de parentesco a serem
estudados são aqueles entre membros da própria família, entre membros de
uma família e outros na vida doméstica, entre a família enquanto unidade e
outras famílias na mesma posição, entre a família e os grupos de parentesco
dos quais ela é parte constituinte, como a “casa” e o clã” (id.: 215).
Para Firth, é necessário produzir mais que gráficos, diagramas, genea-
logias e censos (id.: 216) – é preciso um estudo cultural do parentesco. Está
mais preocupado com a prosa do que com a gramática. Se interessa (id.: 223)
pelo que define como sendo o informal e o formal no relacionamento com os
parentes, e não pelas relações sociais propriamente ditas. Está mais inclinado
à percepção dos “sentimentos” do que dos “direitos” que o parentesco engen-
23
Radcliffe-Brown, A. R. 1952 [1924]. “The mother”s brother in South Africa”. Structure and func-
tion in primitive society. London: Routledge & Kegan Paul; 1952 [1933]. “Primitive law”. Structure
and function in primitive society. London: Routledge & Kegan Paul; 1952 [1933]. “Social sanctions”.
Structure and function in primitive society. London: Routledge & Kegan Paul; 1952 [1935]. “On the
concept of function in social science”. Structure and function in primitive society. London: Routledge
& Kegan Paul; 1952 [1935]. “Patrilineal and matrilineal succession”. Structure and function in primi-
tive society. London: Routledge & Kegan Paul.

66
dra. Por esse motivo, torna-se difícil uma síntese do que significa o parentesco
tikopia. A própria teoria de Firth é dependente da descrição, dos detalhes, da
“carne” do parentesco. Não existe um “modelo”, uma “estrutura social”, mas
sim uma abordagem cultural ou manifestações culturais do parentesco.
Firth passa ao leitor mínimos detalhes da relação dos pais com os filhos:
“Quando ele é balançado delicadamente de um lado para o outro, com o
rosto apoiado na face da mãe, enquanto essa emite com os lábios suaves “br-
r-r-r” vibratórios para acalmá-lo”(id.: 236). “Assim, empoleirada, uma crian-
ça faz lembrar forçosamente os filhotes de um antropoide” (id.: 238). “A
impressão que se tem é a de um pássaro alimentando seu filhote” (id.: 237).
Detalhes que submetidos, hoje em dia, a outro estilo etnográfico ficariam,
talvez, relegados ao diário de campo. Uma questão que se coloca a partir do estilo
que Firth adota é a do estatuto da descrição na constituição de uma etnografia.
O lugar que a descrição ocupa depende da perspectiva teórica adotada.
No caso de Firth, há uma preocupação com a totalidade, como se tudo, abso-
lutamente tudo fosse inescapável e fundamental. Uma Antropologia em que
o objetivo maior é a descrição no sentido de reconstruir, intencionalmente, o
vivido, a experiência. O detalhe se destaca em detrimento de uma percepção
mais conceitual da sociedade. Para Firth o detalhe é o que funda a etnografia,
não é mera ornamentação que se usa para exemplificar um aspecto conceitual.
“Mas o uso do termo ‘sentimento’ neste livro implica não uma realidade psi-
cológica, mas cultural” (id.: 259). Firth queria realmente fazer uma Antropologia
do afeto e não uma Antropologia do direito. O afeto ou sentimento significa este
situar-se na cultura e nos costumes. Por isso ele faz essa divisão entre uma Antro-
pologia do sentimento, que estaria aparentemente contra uma Antropologia do
direito, partilhada por exemplo por Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard. Por isso,
o estilo de Firth é menos conceitual e privilegia a narrativa, a descrição.
Ainda quando descreve o “sentimento filial” (id.: 268) enfatiza o contexto
como fundamental, fugindo assim do universo generalista das regras, dos di-
reitos e deveres; aposta no “sentimento”, pois este retrata a variação individual,
pessoal da experiência, método que comanda a construção de sua etnografia.
Uma outra recorrência em seu texto é a expressão “Naturalmente, há
exceções a isso” (id.: 286). Quando afirma uma relação padronizada, recorre
às exceções, ao que contraria a regra que quer apreender ou apresentar. Um
esforço deliberado contra qualquer abstração. Firth não fala de uma socieda-
de tikopia, quer constituir uma narrativa com pessoas de carne e osso; não
generaliza, simplesmente nomeia os indivíduos, cria personagens, captura
não somente o essencial, mas, sobretudo, o particular.

67
A vida familiar da criança nos seus primeiros anos, o cuidado dispensado a ela por sua
mãe e seu pai e o grau de afeto recíproco entre os pais e os filhos constituem o aspecto
mais pessoal da relação de parentesco. Este varia de indivíduo para indivíduo, mas
apresenta um padrão bastante constante, que pode ser considerado uma norma social
das relações menos formais da vida (id.: 272).

Se o individual é perseguido, isso não significa que não ache importante


apreender um padrão. Firth apresenta o padrão e não a caricatura. O padrão
se estabelece de forma complexa numa relação dialética entre o essencial e
o particular. Este é o poder de sua etnografia, a partir do material etnográ-
fico, dos fatos e casos, chega a um padrão estabelecido pela variação. Esse
método exige a descrição, os detalhes, uma longa narrativa da experiência:
devem-se abordar as questões por múltiplos ângulos, mesmo que se queira
definir um padrão da cultura.
A generalização é assim um ponto de extremo cuidado: Firth narra o
que observou e ouviu, descreve a experiência e assim produz sua etnografia.
Por exemplo, quando descreve a relação irmão-irmão e não pode dizer muito
sobre a relação irmã-irmã indica, apenas, que talvez possa se aplicar o mesmo
padrão das relações entre os irmãos, reconhece que sobre este ponto pode
falar muito pouco (id.: 291).
Em outro momento, quando faz a correlação entre residência e amizade
nas relações familiares, diz que “a generalização sobre esse ponto não deve ser
levada muito longe, pois não há uniformidade de prática nessa matéria” (id.:
279). O problema da generalização, para Firth, aparece no cuidado com que
sempre aponta seus limites a partir de casos concretos, atividade que define
para ele o próprio conceito de etnografia.
Firth percebe desde aquela época a importância dos parentes maternos
em um sistema patrilinear (id.: 312) – isso deriva, portanto, não de uma
análise formalista do parentesco, mas de sua análise “sentimental” –; a par-
tir da etnografia tudo parece menos caricatural, formal e conceitual do que
o esquema proposto por Radcliffe-Brown. Os dados revelam, através dessa
dimensão da etnografia, que nada é tão absoluto como quer fazer crer uma
Antropologia formalista que nascia àquela época (vide a crítica de Malino-
wski no prefácio a Nós, os Tikopias).
A força de sua etnografia é a de justamente recusar um formalismo abs-
trato quando se trata do parentesco – a “figura do irmão da mãe” enquanto
uma abstração é questionada, e Firth admite que existem muitos “irmãos da
mãe” que implicam graus diversos de proximidade (id.: 313). Mais uma vez
Firth procura tornar complexo o que apresenta através da etnografia.

68
O que é interessante no método de Firth para compreender o parentesco
é que as categorias ou os kintypes são dissecados quanto à sua significação
cultural – primos cruzados, pai, mãe, tio materno, sobrinho, irmão/irmã etc.
Deste modo, Firth usa os próprios discursos nativos sobre a significação dos
termos e graus de parentesco:
Meu primo cruzado é realmente importante. Eu não tenho uma fala ruim com ele. Ele
não tem uma fala ruim comigo. Porque ele é o filho da irmã do pai. Não se deve bater
na irmã do pai, não se deve ter fala ruim com ela. Com ela só se tem fala boa. A base
da irmã do pai é o pai.

Esses termos são preenchidos culturalmente, não são objetos de uma análi-
se formal na qual se vislumbram apenas as relações sociais. Essa perspectiva que
adota ao tratar do parentesco não constituiu um “estilo” na Antropologia; pelo
contrário, parece ter sido desqualificada pela vertente formalista que se conso-
lidou como o modo “correto” de abordar o parentesco, criando uma sinonímia
entre relações sociais e parentesco, esvaziando seu conteúdo cultural. No capí-
tulo sobre os parentes paternos e maternos, Firth analisa outras formas de se re-
ferir aos parentes que não simplesmente a terminologia e designa tal referência
por “metáforas do parentesco”, termos que descrevem relações. Firth faz uma
exegese do significado de determinadas expressões que não são propriamente do
domínio do parentesco, mas conexas a ele, agregando outros significados. Por
isso, chega à conclusão de que os tikopia “não se contentam em usar de maneira
invariável um único conjunto de termos de parentesco” (id.: 331).
No capítulo sobre a linguagem do parentesco Firth faz uma análise, em
contexto, das expressões linguísticas do parentesco. Toma uma frase em que
aparece o termo de parentesco procurando entender seu significado: Firth
reconhece, assim, o “estudo descritivo” do parentesco como seu método (id.:
351), isso é, estudava ou descrevia um sistema não se propondo a fazer uma
comparação entre terminologias. Definia outra direção que não a seguida
por Radcliffe-Brown. Enfatizava uma perspectiva distinta na abordagem do
parentesco não tratando do que era, à época, considerado “realmente impor-
tante” nos estudos de parentesco: as terminologias e as relações sociais.
Quando Firth apresenta os termos (id.: 360) ao invés de, simplesmente,
afixar uma lista de vocativos e referenciais às posições terminológicas, descre-
ve cada um dos termos e o seu uso, observando as exceções de uso e/ou os
usos recorrentes e seus contextos. Demonstra, assim, a força de sua proposta
substancialista do parentesco, recusando interpretar o material tikopia de
um ponto de vista formal.

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Chama atenção para a residência e sua importância na constituição do
parentesco (id.: 370). Agrega o constituinte social nas configurações do paren-
tesco, entrando no mundo das relações pessoais e não no das “relações sociais”
que constituem a abstração do parentesco. O que Firth insiste em demonstrar
é a fluidez dos termos de parentesco, isso é, não podem ser percebidos como
derivações de relações sociais, enquanto emblemas de relações. Aponta para a
liberdade individual de criar o parentesco, para o parentesco despregado da re-
presentação biológica, inserido completamente na sociedade e na cultura. Esse
aspecto é demonstrável no modo como os tikopia redefinem os parentes na
ausência de um parente verdadeiro que cumpre aquele papel social (id.: 374).
Quando analisa a “cooperação e reserva nas relações matrimoniais” (id.:
411) dá ênfase à consanguinidade na construção das relações de parentesco ao
invés de privilegiar a afinidade; pensa o sogro como avô dos filhos e não como
um afim. De fato, a teoria nativa tikopia atesta essa supremacia da consanguini-
dade sobre à afinidade. Esse aspecto demonstra que Firth não quer adotar uma
“teoria” do parentesco geral e abstrata que valide sua interpretação; pelo contrá-
rio, constrói a significação do parentesco a partir do material tikopia.
A sutileza da percepção do parentesco via a etiqueta do falar, como Firth
demonstra em seus exemplos à página 420, aponta que não está preocupado
em apreender sistemas, mas sim apresentar como os fatos ocorrem no discur-
so e no comportamento tikopia.
A afinidade (id.: 421) e tudo o mais que envolve o universo do paren-
tesco é apreendido em termos comportamentais, quase uma Antropologia
fenomenológica no sentido literal, um estudo dos fenômenos, da ação, do
acontecimento. Firth adota o ponto de vista da ordem dos fenômenos ob-
servados, descreve os acontecimentos com precisão de cientista, como se ob-
servasse e descrevesse uma reação química ou uma aglomeração molecular.
Seu estilo é o da descrição dos fenômenos tomados numa experiência. Seu
método é uma espécie de “regras da prática”: ao descrever comportamentos
entre afins, por exemplo, deduz daí alguma regularidade (id.: 422).
A lente de Firth é microscópica. Sua preocupação é com o particular,
com a experiência. Ao abordar o problema do incesto (id.: 433) quer observar
como ele se manifesta em sociedades específicas. Por ser contrário às especula-
ções teóricas sobre o incesto, apresenta os dados tikopia; este é o seu método:
uma anatomia do problema, disseca cada situação e apresenta as possibilidades
de interpretação. Nesse sentido, os tikopia não encarnam simplesmente uma
aventura do particular, uma das manifestações possíveis do universal. Seu mé-
todo valoriza o particular porque crê que esta é única forma de compreensão.

70
Nesse contexto, a descrição e a narrativa etnográfica investindo no pessoal e no
individual asseguram a compreensão almejada por Firth.
No amontoado de teorias que se acumulam em torno dos problemas da proibição do
incesto e dos regulamentos da exogamia, dificilmente se encontra uma que se baseie
numa análise empírica das condições de uma comunidade específica: o comportamen-
to de pessoas e grupos reais. Nesse capítulo tentei apresentar algum material desse tipo,
definir a situação de incesto numa comunidade, dar objeções nativas a ele e mostrar
como o mecanismo funciona em casos concretos. Quanto mais dados tiverem sido
aduzidos sobre outras comunidades, talvez se descubra que as atitudes de exogamia-
incesto não são redutíveis a uma fórmula simples. Estou pronto a ver demonstrado que
a situação de incesto varia de acordo com a estrutura social de cada comunidade, que
ele tem pouco a ver com a evitação de relações sexuais como tais, mas que sua correla-
ção real deve ser buscada na manutenção de formas institucionais na sociedade como
um todo, e do interesse específico de grupos em particular.

O parágrafo acima resume o sentido da argumentação de Firth, sua teo-


ria, o que pensa sobre os dados, sua intuição de que a proibição de incesto era
um problema sociológico, e não uma questão de evitação sexual.
Quando analisa a noção de paito, a casa tikopia, trata sempre de um caso es-
pecífico, narra a história de uma casa e os acontecimentos que sucederam a partir
de sua herança, descrevendo a continuidade de uma casa no tempo (id.: 458).
Firth apresenta as categorias nativas como produtoras de novos significa-
dos, adotando-as como conceitos, como o paito, para ir além dos conceitos
do antropólogo. Aposta mais nos conceitos nativos do que nas definições
de clã, ramagem, família, patrilinear, matrilinear, que são sempre parciais e
incompletos quando contrastados com seus dados.
Uma frase que orienta seu estilo etnográfico é: “durante minha perma-
nência em Tikopia...”. Com isso, Firth mostra o que significa para ele o tem-
po que permaneceu no campo e as informações que obteve. Usa essa frase
para expressar que é tudo o que pode falar sobre o assunto; ao invés de usar
o tempo de permanência em campo e sua experiência como “autoridade”,
usa o argumento da “humildade etnográfica”, reconhecendo os limites de seu
registro. Firth não quer fazer um sistema, quer apenas tornar sua experiência
possível de ser descrita e compreendida. Por isso narra o que viu, o que as
pessoas fazem e pensam. Não trata da sociedade tikopia, mas de pessoas que
constituem uma “comunidade de interesse”.
Suas últimas palavras são reveladoras sobre o modo como procedeu ao
construir uma interpretação sobre os tikopia, ao mesmo tempo em que faz
uma reflexão sobre o conhecimento antropológico: “Do que as ciências so-

71
ciais de hoje necessitam sobretudo é de uma metodologia mais refinada, tão
objetiva e desapaixonada quanto possível, na qual, ainda que a admissão de
hipóteses devidas ao condicionamento e ao interesse pessoal do investiga-
dor influencie suas descobertas, esse viés seja enfrentado conscientemente, a
possibilidade de outras hipóteses iniciais seja percebida e sejam admitidas as
implicações de cada uma no curso da análise”(id.: 732).

72
Significado: a representação da
representação em Roy Wagner24

A hubris especial do antropólogo que analisa o


significado cultural é a consequência de sua relação
com a representação da representação, o problema de
iluminar outra criatividade através de sua própria.
Wagner, R. (1972: 4)

Este capítulo se constitui em um exercício de construção da problemática


exposta por Roy Wagner em seu livro Habu. The innovation of meaning in
Daribi religion (1972). Wagner, ao fazer uma etnografia da sociedade Daribi,
propõe uma nova forma de abordar a noção de cultura. Constrói uma “noção”
de cultura problematizando o universo das metáforas como locus privilegiado
de acesso às formas culturais. Assim, procuro apresentar a teoria da cultura
que ora aparece implícita, ora explícita na monografia de Wagner sobre os
Daribi da Nova Guiné. Contextualizo as preocupações de Wagner com as
da chamada escola de Antropologia Simbólica ou Cognitiva via os textos
de Schneider e Goodenough. Em seguida, explicito a proposta teórica de
Wagner ao tratar a cultura Daribi. Tentarei, também, apontar algumas seme-
lhanças e diferenças entre a abordagem de Wagner e a de outros autores sobre
“noção” de cultura, sobretudo Sahlins e Geertz. Ressaltamos, porém, que
não faremos um exercício de comparação sistemática, mas sim uma tentativa
de entender um tipo particular de “noção” de cultura, e é neste sentido que
o contraste de “noções” deve ser compreendido.

Da precisão de um conceito impreciso: cultura


“Parece que não chegamos ainda a uma definição concisa, clara, ampla
e delimitada de cultura”. Essas palavras constam do prefácio que Kroeber es-
creveu por ocasião da republicação de seu artigo “O Superorgânico” (1947)
1970). Expressam suas preocupações acerca da imprecisão na definição de
um conceito de cultura: o que está em jogo quando se fala em cultura? Co-
mo se constrói esse conceito? Do que se está falando?

24
Um versão preliminar deste ensaio foi publicado no Boletim do Laboratório de Pesquisa Social, Rio
de Janeiro – UFRJ, v. 1, p. 1-19, 1988.

73
Se cultura é aquilo que particulariza um povo, uma tribo, um grupo
social, é, também, algo abstrato, genérico. Ao se falar em cultura, temos duas
questões distintas e ao mesmo tempo interelacionadas: a cultura como consti-
tuinte dos nativos – nesse caso, específica – e um conceito ou uma “noção” de
cultura construída pelos antropólogos capaz de dar conta de uma especificida-
de. Essa “noção” proposta pelos antropólogos parece que não pode ser concisa
e clara por definição, uma vez que é produzida a partir de múltiplos diálogos
com múltiplas diferenças. Uma “noção” de cultura não é construída num
vacuum, ao contrário, ela espelha e reflete as diferenças. Um conceito de cul-
tura, por mais que almeje ser abrangente, transforma-se sempre em um modo
particular de conceber e explicar diferenças. Tanto é assim que uma “noção”
só ganha alguma especificidade quando privilegia certos temas, eleitos como
centrais, para o entendimento do que se designa cultura. Assim, a “noção” de
cultura se constitui via comportamento, língua, transmissão de conhecimen-
to, interpretação, mudança, significado etc. Adotando-se um desses como o
“mais importante” para se entender cultura, estabelece-se limites pela inclusão
e exclusão de determinados temas, forjando-se a própria “noção” de cultura.
O que se tem, na realidade, é um “campo da cultura” em que essas “noções”
ganham concretude e por onde a Antropologia se movimenta. Nesse sentido,
o que interessa aqui é, partindo de um tipo de abordagem da cultura, explici-
tar uma “noção” e, na medida do possível, contrastar “noções”. Portanto, mi-
nhas reflexões incidem sobre um conjunto de autores, cuja produção, apesar
de suas diferenças, está vinculado a uma mesma problemática: a questão do
significado e do símbolo como definidores de uma “noção” de cultura.
A Antropologia Simbólica ou Cognitiva tem como precursores alguns
antropólogos americanos, em particular Goodenough e Schneider em suas
preocupações sobre a formalização dos materiais etnográficos. Alguns sub-
domínios como a etnociência, etnossemântica e análise componencial surgi-
ram como proposta programática para a coleta e análise dos dados empíricos.
Evidentemente, deve-se admitir que uma metodologia de coleta e organiza-
ção dos dados implica, necessariamente, uma teoria implícita e um conjunto
de hipóteses que versam sobre a relação entre linguagem, regras cognitivas,
princípios e códigos culturais. Em última análise, o objeto dessa corrente
de pensamento valorizava o discurso nativo observando a construção de sua
lógica, enfatizando a importância dos seus significados ao mesmo tempo em
que problematizava o conhecimento da Antropologia enquanto detentora da
função de representação desse pensamento nativo.
Partindo deste quadro conceitual, a etnografia ganha um novo sentido
ao estabelecer um diálogo profícuo entre uma conceituação nativa e uma

74
conceituação dos antropólogos. Assim, é ao mesmo tempo uma apresenta-
ção dos significados específicos que tornam esse mundo apreensível do ponto
de vista conceitual e um modo de conceituar esse mundo. Nesse sentido “...
toda etnografia tem sua teoria... do mesmo modo que toda teoria tem sua
etnografia”(Wagner, 1972: 13).
Se a conceituação sobre o material nativo por um lado declara sua impor-
tância e proposta de diálogo, por outro pode transformar a análise por demais
formal, sistêmica e, muitas vezes, impenetrável.25 Essa seria a percepção de
Goodenough quando propõe que a descrição de uma cultura seja feita de for-
ma “emic”, isto é, baseada nos conceitos e categorias nativas. O antropólogo,
de posse dessa descrição, pode, então, recorrer ao “etic” (aos conceitos e às
categorias do antropólogo) para uma comparação e, só assim, contribuir para
uma ciência geral da cultura (1970: 112). Esse tipo de preocupação parece
sugerir que seria possível uma separação estrita entre as categorias do antro-
pólogo e a dos nativos, como se as categorias nativas pudessem gerar uma
descrição completamente “emic”, coincidente com o pensamento nativo.
Vejamos como a proposta de Goodenough é por demais formal. Em
um artigo (1957) no qual reflete sobre a relação entre língua e cultura ele
propõe uma equivalência lógica entre o estudo de uma língua e o estudo
de uma cultura. Percebe a cultura como uma gramática lógica, como um
código ou conjunto de regras estruturadas que, por sua vez, gera comporta-
mentos culturalmente apropriados. O modelo linguístico, quando utilizado
dentro de suas limitações, mostra-se produtivo ao tratar de algumas questões
relativas à cultura, mas, quando usado buscando-se uma identidade total
com a cultura, parece pecar pelo excesso de formalismo, pois aprender uma
língua não significa, necessariamente, aprender uma cultura. Schneider, em-
bora partilhe de algumas preocupações desenvolvidas por Goodenough, vai
marcar presença neste debate ao formular uma primeira crítica a esse tipo de
abordagem da cultura via os símbolos e significados. Da sua perspectiva, as
tentativas de entendimento dos símbolos e significados de uma cultura re-
duziam as crenças de um povo a silogismos. Na introdução ao livro Symbolic
Anthropology (1977), faz uma declaração de princípios da Antropologia sim-
bólica.26 Parte do pressuposto de que as pessoas em qualquer cultura agem
com base no seu conhecimento sobre o mundo e sobre os homens. Crenças
25
Veja-se aqui, por exemplo, os trabalhos de Goodenough (1968) e de Lounsbury (1968) sobre sis-
temas de parentesco.
26
Nessa introdução, Schneider faz uma exegese dos trabalhos realizados com essa preocupação, bem
como demarca posições no interior da chamada Antropologia simbólica.

75
formam um sistema ordenado de proposições, isso é, mantêm relações umas
com as outras (Schneider, 1977: 3). Há, portanto, uma equivalência en-
tre crença e cultura. Ao definir cultura como sistema de crenças, Schneider,
diferentemente de Goodenough, não está interessado na linguagem como
expressão da cultura, mas na metalinguagem, ou seja, em uma linguagem
sobre a linguagem existente em qualquer sistema de crenças. Apesar de lan-
çar mão do uso da linguagem, propõe que se ultrapasse seu plano ordinário
na direção da metalinguagem: algo que está por sobre, encoberto, que tem
significado. Se cultura é, então, sistema de crenças – que não se expressa via
linguagem, mas sim através da metalinguagem –, metalinguagem parece ser
significação, o locus do sentido. Logo, cultura significa.
Podemos identificar nas propostas de Schneider uma tentativa de estabe-
lecer um diálogo com as preocupações da Escola Sociológica Francesa, em par-
ticular com os trabalhos de Durkheim & Mauss (1981) e Lévi-Strauss (1976,
1981) acerca do simbolismo. Evoquemos, agora, o ancestral mítico do simbo-
lismo, pelo menos na Antropologia, que é o totemismo. Totemismo, enquanto
um fenômeno classificatório que faz conexão entre homens e animais ao pôr
em relação uma série cultural e outra natural, foi compreendido como algo que
explicitava o modo de operar do pensamento. Assim, o elemento essencial para
a compreensão do totemismo é sua capacidade de metaforização, a metalin-
guagem de que Schneider nos fala. O totemismo é, portanto, uma metáfora na
medida em que ele próprio não significa, engendra uma significação a partir da
correlação de diferenças. Vemos, aqui, colocado o problema da Antropologia
cognitiva ou simbólica: a preocupação com a interpretação dos símbolos e dos
significados. O que está em jogo para Schneider é uma tentativa de definição
da “noção” de cultura: o estudo antropológico da cultura é a necessidade de en-
tendimento dos símbolos e dos significados. Estamos, desse modo, na ordem
da metáfora, da simbolização, da significação.
As ideias de Roy Wagner sofreram grande influência de toda a produção
da chamada escola simbolista. Wagner, por seu lado, vai explorar mais a fun-
do a questão do significado quando procura trabalhar a questão da metáfora.
Ao mesmo tempo que realiza uma penetrante análise do simbolismo e do
significado na cultura Daribi, formula uma teoria da cultura produzindo,
assim, uma outra “noção”. Vamos a ela.

76
Inovação cultural e a produção do significado
O livro de Roy Wagner, Habu: the innovation of meaning in Daribi reli-
gion (1972), mais do que uma etnografia da sociedade Daribi ou um estudo
particular do seu sistema religioso é, antes de tudo, uma proposta teórica
original a partir de uma especificidade etnográfica. A experiência cultural
que serve às formulações de Wagner é o povo Daribi do leste da Nova Guiné,
com quem realizou trabalho de campo durante dois anos na década de 1970.
O argumento central do livro é que o significado numa cultura é produto
de relação e mudança e se assenta na constituição de metáforas engendradas
pela síntese de significados. Partindo dessa argumentação, o autor concebe
cultura como um universo aberto-fechado, continuamente modificado pelas
sequências dos eventos (leia-se metáforas). A “noção” de cultura não é, por-
tanto, pensada a partir de uma ordenação lógica, de um sistema fechado que
internamente tem proposições consistentes. Para Wagner, a inovação meta-
fórica é consequentemente inovação cultural tomada como algo intrínseco,
dado e constante em qualquer sistema cultural.
Para ilustrar sua teoria, Wagner descreve as várias formas nas quais o
significado é expresso no sistema cultural Daribi. Assim, na parte primeira
– “ideologia e inovação” – trata da ideologia Daribi via sua articulação a
formas míticas. Ideologia é, também, explicada como um complexo de me-
táforas envolvendo troca e comida. Introduz-se a inovação metafórica como
contrária à ideologia, procurando explorar estilos significantes de inovação
na esfera do poder. Seguindo o mesmo processo, busca entender a lógica da
nominação em que identidade ganha uma nova significação como sendo
produto de uma inovação metafórica e não como algo residual e irredutível.
Na segunda parte de seu livro trata especificamente do que designa como
“invenção da imortalidade”. Explora o tema da mortalidade expresso em
conjunção com ideias cosmológicas e a conceitualização do espaço. Aborda o
problema da personificação como uma relação de inovação pelo ser humano
o que introduz estilos de personificações dos espíritos entre os Daribi. Ao
final de seu livro trata do ritual Habu. Apresenta o rito coletivo de enterra-
mento como uma realização ideológica da mortalidade, procurando explicar
o desenvolvimento do significado da cerimônia Habu como uma possessão
inovativa que trabalha contra o que designa por ideologia. O que parece ser
essencial na religião Daribi é a produção dos constrangimentos, constituídos
pelas inovações, que atentam contra o estado mortal do homem. No ritual
Habu ou na “invenção da imortalidade” os participantes convocam os espí-

77
ritos para a presença dos mortais, havendo, assim, uma reconciliação com
os terrestres. Durante todo o percurso o tema recorrente é a concepção de
cultura como algo aberto-fechado em que são exploradas as consistências e
contradições da cultura Daribi.
Fugiria ao alcance deste capítulo uma apreciação interna, propriamente
etnográfica, da obra de Wagner. Detenho-me, apenas, nas suas formulações
sobre a teoria da cultura que possibilita sua interpretação da cultura Daribi.
Explicitemos a construção de sua teoria. Inicia o texto enfatizando que quan-
do a Antropologia transforma uma cultura particular em seu objeto de estu-
do, procura mostrar seus termos culturais enquanto fixados, não em mudan-
ça, buscando ordená-los logicamente em um sistema fechado. Nesse sentido
formula uma visão crítica à concepção que estabelece uma distinção entre so-
ciedades “frias” e “quentes”, nas quais somente as “quentes” incorporariam de
forma sistemática os eventos. Wagner crê que tal visão nada mais é que uma
racionalização pois nada impediria que se descrevesse uma sociedade “quente”
(ocidental) através dos rituais e uma sociedade “fria” (tribal) através dos even-
tos. Sua preocupação, portanto, recai na esfera das representações que, no seu
entender, definem-se por princípio como uma forma de criatividade, que foi
melhor desenvolvida em seu artigo “Culture as Creativity”(1977).
Representação envolve a apresentação de elementos, ideias, objetos,
imagens em forma de significação. Tal significação é expressa através da me-
diação de palavras ou de outras formas simbólicas de uma cultura. Nesse
sentido, as representações são “máscaras” que qualquer expressão de signifi-
cado deve assumir. O significado é sempre expresso sob formas simbólicas e
somente invocado ou construído através de símbolos. Assim, símbolos são
básicos no princípio de significação. Para haver significação é necessário o
estabelecimento de um contraste entre significante e significado (como entre
as palavras e as coisas a que elas se referem). Essa relação é necessária para
uma expressão simbólica do significado, mas não a única coisa que o expres-
sa. Vejamos o que mais expressaria o significado na concepção de Wagner.
Os significados lexicais, gramaticais, contêm uma arbitrariedade, por-
tanto, são sempre tautológicos, podendo ser expressos em fórmulas do tipo:
isso é um cachorro porque é um cachorro em oposição a um gato. Para Wag-
ner é assim que construímos um sistema classificatório, sempre buscando
significados tautológicos. Entretanto, são os significados não tautológicos os
mais interessantes para se pensar o modo de representação e apresentação de
um sistema cultural, visto que são produzidos através da inovação dos signi-
ficados justamente pelos processos de metaforização. Para Wagner, a signifi-

78
cação metafórica envolve uma não-arbitrariedade e uma indeterminação da
relação entre significante e significado. Assim, a metáfora coloca o elemento
significado em relação ao sistema de significados, enquanto a significação
lexical registra meramente o seu significado convencional. Nesse sentido, o
papel da significação lexical seria o de isolar os elementos, enquanto que o
da metáfora, colocá-los em relação. Vemos, aqui, a importância que relação
assume enquanto definidor de uma possibilidade de apreensão de um siste-
ma cultural. Desse modo, é nas formulações metafóricas que os significados
lexicais podem ser utilizados para significar algo mais do que suas definições
lexicais. A metáfora engendra uma nova relação, constituindo, portanto, um
novo significado. Seguindo a teoria proposta por Wagner, graças ao processo
de metaforização tem-se uma inovação sobre os significados. A contínua for-
mação de metáforas tem o efeito de colocar significados estabelecidos numa
relação de significação. Porém, com o uso contínuo e a repetição as metáforas
tendem a cair novamente no significado lexical como traços analógicos en-
tre significante e significado. Mas logo sobrevêm processos metafóricos que
põem em relações tais significados, gerando novas significações.
Portanto, qualquer significado cultural é gerado através de oposição me-
tafórica, mas nem todas as relações de significado são dadas em oposição.
As metáforas, quando combinadas, geram um sistema consistente de sig-
nificados mas não estão em oposição umas com as outras. Tais metáforas
existem numa relação de complementaridade. Wagner denomina o grupo
de metáforas complementares através de uma redefinição do conceito de
ideologia. A ideologia, nesse contexto, corresponde a um domínio particu-
lar envolvendo um grupo coerente de conceitos que lhe dão significado. A
ideologia social Daribi, por exemplo, inclui uma série de significados e suas
elaborações dizem respeito às relações sociais Daribi e suas instituições. A
ideologia, nesta acepção, expressa as proposições centrais e os interesses de
uma cultura. Tomando a ideologia como constituída de metáforas, qualquer
inovação metafórica é construída através da metaforização de metáforas: a
metáfora é utilizada na formação de outras metáforas. Esse uso de uma rela-
ção para produzir outra relação provoca, permanentemente, uma interação
dialética entre os significados envolvidos.
Recapitulando: o significado criado pela formação de metáforas envolve os
elementos formais de uma cultura, e as relações entre metáforas dentro de uma
cultura podem ser complementares (consistência) ou de inovação (contradição).
Enquanto um grupo de metáforas complementares, cujos significados
são consistentes, constitui a ideologia, os distintos grupos de metáforas com-

79
plementares ou ideologias entram em relação inovativa. A relação gera me-
taforização e isso gera a contradição dos significados, o que garante que os
sistemas sempre possam ser inovativos e criativos. A criação dos significados
imprime um ritmo na atividade humana e na produção da vida Daribi e é
por isso mesmo que os significados não formam um sistema fechado. Para
Wagner, os significados são como a vida em uma sociedade: abertos-fecha-
dos. Assim, as ações humanas são aditivas, seriais e cumulativas e toda rela-
ção individual engendra uma relação particular para com a vida do indivíduo
ou do grupo e, dessa forma, acrescenta sempre algo em um sentido literal
ou figurado. Nesse sentido, qualquer ação habitual ou repetitiva expande a
cultura do agente. Isso é percebido na conversação Daribi na qual sempre,
por definição, se acrescenta algo de novo a uma conversa. Por conseguinte,
a natureza da conversação requer a expansão do conhecimento dado através
de novas relações (isto é, metáforas).
A necessidade para a inovação cultural, postulada por Wagner, é carac-
terística de toda atividade cultural. É uma necessidade cultural para atribuir
significado a todo ato sucessivo, evento, e para formular o significado em
termos de referentes conhecidos ou contextos. Desta forma, a metáfora pode
ser aquilo que tem sido repetido milhões de vezes ou pode ser uma criação
original. Em ambos os casos, ela adquire essa força expressiva através do con-
traste que apresenta e a analogia que este contraste explicita.
Partindo do pressuposto de que o grande dogma que todas as culturas
se colocam é a questão da mortalidade, Roy Wagner centra sua problemática
no ritual Habu. A inevitabilidade da morte se constitui no maior poder de
construção inovativa sobre esse tipo de limitação humana. A criação de deu-
ses e espíritos como onipresentes, oniscientes e imortais seria a manifestação
de inovação sobre o estado de mortalidade humana. A metáfora permite que
deuses e espíritos sejam representados antropomorficamente. A personifica-
ção é uma forma de metaforizar, representando pessoas ou objetos na forma
de outros elementos culturais. A formação de metáforas toma lugar como
uma parte do curso normal dos eventos de uma cultura. O contraste dos
significados que essas expressões metafóricas explicitam surge aparentemente
como um paradoxo. Porém, essas contradições somente assumem a forma de
um paradoxo quando as pensamos como simultaneamente válidas e temos
como ponto de partida um sistema consistente sem pensar necessariamente
em suas relações dialéticas.
Portanto, a ideia central de Wagner é a de que aquilo que chamamos
“cultura” está em permanente processo de criação, inovação, e seu alarga-

80
mento contínuo envolve sempre a concepção de transformação, seja cognitiva
ou física. A criação assume justamente a forma de transformação, sendo esta,
talvez, a única coisa “essencializável” da cultura. A transformação se realiza
através da inovação metafórica ao acentuar as contradições entre os signifi-
cados estabelecidos em uma cultura. Do mesmo modo que as metáforas ma-
nipulam signos, estes não são os únicos que exprimem significados, uma vez
que na concepção de Wagner as ações, os estilos de vida e, sobretudo, as re-
lações entre pessoas são formas de se construir a metaforização. Desse modo,
regras de parentesco, amizade e cortesia metaforizam os atos específicos dos
indivíduos em termos culturais. Alguém se torna pai, um amigo ou um bom
anfitrião pela personificação da regra. Assim, personificação é o equivalente
da metaforização das regras sociais. Porém, Wagner enfatiza que sua intenção
não é compreender as regras sociais, mas sim seus significados.

Metáfora, ação e transformação


Imagine-se o leitor subitamente transportado para um atol de coral no Pacífico, sen-
tado numa roda de nativos e escutando a conversa deles. Vamos supor ainda que há
um intérprete ideal ao seu alcance, o qual, tanto quanto possível, pode transmitir o
significado de cada frase proferida, palavra por palavra, de modo que o ouvinte está na
posse de todos os dados linguísticos disponíveis. Faria isso com que o leitor entendesse
a conversa ou mesmo uma só frase proferida? Certamente que não.

Conclui Malinowski em um artigo sobre o significado em línguas pri-


mitivas ((1922) 1972: 299). Argumenta sua proposição com um exemplo de
uma conversa ouvida entre os nativos das Trobriand
Tasakaulo Kaymatana
Corremos Madeira-frente
Yakida Tauólo
Nós-próprios Remamos
Ovanu Tasivila
Em lugar Viramos
Tagine Soda
Vimos Companheiros nossos
Isakaulo Ka”u”uya
Ele corre Madeira-atrás
Oluvieki Similaveta
Além Braço-mar-deles
Pilolu
Pilolu

81
Malinowski observa que a tradução feita palavra por palavra soa incom-
preensível. O que significa “madeira-frente”? Uma metáfora que associa ca-
noa à sua posição na disputa. Esse significado não estava dado no nível da
linguagem mas da metalinguagem, da cultura. O exemplo de Malinowski
nos faz perceber a importância atribuída à metáfora para a compressão do
que se designa “cultura”. Metáfora estaria a meio caminho entre as palavras
e o sentido, aquilo que particulariza. O significado de “madeira-frente” ul-
trapassa a cadeia sintagmática para alcançar uma associação paradigmática,
tornando-se símbolo. Essa argumentação reforça o argumento de Roy Wag-
ner. Entretanto, Wagner vai mais além. Não se restringe às metáforas no sen-
tido linguístico, como tropo em que a significação original de uma palavra
é substituída por outra, mas entende metáfora no seu sentido cultural, quer
com humanos, quer com objetos.
Clifford Geertz formula uma crítica contundente à chamada Antropo-
logia cognitiva, mais particularmente ao trabalho de Goodenough (1978:
21): um subjetivismo extremo casado a um formalismo excessivo. Contras-
tando suas posições às de Roy Wagner, podemos observar alguns pontos em
comum. Para ambos, cultura se apresenta como uma “teia de significados”,
ou, como algo decifrável, como sistema simbólico. Em suas abordagens estão
preocupados com a etnografia, não com o intuito de revelar o ponto de vista
nativo, mas sim de “situar-se” no discurso nativo e interpretá-lo. A diferença
crucial entre ambos se manifesta na maneira de valorizar o que é importante
para a compreensão da cultura. Geertz valoriza a etnografia enquanto ex-
periência pessoal, participativa, calcada nas ações. A via privilegiada para o
entendimento das formas culturais é atentar “para o comportamento, e com
exatidão, pois é através do fluxo do comportamento – ou mais precisamente
da ação social – que as formas culturais encontram articulação. Todavia, nes-
ses casos o significado emerge do papel que desempenham no padrão de vida
corrente...” e continua: “Quaisquer que sejam, ou onde quer que estejam
esses sistemas de símbolos ‘em seus próprios termos’, ganhamos acesso em-
pírico a eles inspecionando os acontecimentos e não arrumando entidades
abstratas em padrões unificados” (1978: 27-8).
Wagner se afasta dessa proposição ao procurar resolver a antinomia entre
pensamento e ação. A discussão sobre observar o que os nativos fazem ou o
que eles pensam como formas particulares e legítimas de se chegar à compre-
ensão da cultura está dissolvida por Wagner. O fluxo de comportamento e a
vida corrente não são mais ou menos significativos do que as noções cosmo-

82
lógicas. Todas essas atividades só são feitas – mesmo existem – porque, antes
de tudo, significam. Ações sociais são personificações, isso é, metaforizações
das regras sociais. Metaforizar implica, sempre, uma relação, ou seja, relacio-
nar coisas através da ação ou do pensamento. Geertz parece valorizar as ações
como se contivessem algo de “mais realidade” por ser acessível. Para Wagner,
pensamento e ação estão no mesmo nível.
Uma outra abordagem interessante de ser contrastada à de Wagner é a de-
senvolvida por Sahlins no seu livro Historical Methaphors and Mytical Realities
(1983). O ponto de contato entre Wagner e Sahlins é o interesse em pensar a
mudança cultural e como essa se processa. Ambos se preocupam com a questão
do significado e o sistema simbólico. Sahlins desenvolve seu argumento anali-
sando a chegada de Capitão Cook às ilhas havaianas e o seu assassinato levado
a cabo pelos nativos. Procura analisar esse evento observando como introduz
uma mudança no sistema cultural havaiano. A chegada de Capitão Cook foi
interpretada pelos nativos, devido a certas circunstâncias, como a chegada de
um deus havaiano. Foi uma causalidade, um evento que se transformou em
realidade mítica para os nativos. A partir desse evento a cultura havaiana se
transforma. Sahlins propõe como teoria geral que toda cultura, na sua ten-
tativa de interpretar os eventos, tem de contextualizá-los, e o resultado desse
procedimento é um rearranjo na estrutura cultural anterior. Dessa forma, toda
vez que um sistema cultural é posto em ação ele se reproduz e se modifica ao
mesmo tempo. É na ação que um valor de um signo é experimentado como
um interesse, não só determinado pela sua relação com os outros signos mas
também pelo seu lugar no esquema intencional do sujeito. Sahlins privilegiou
um evento vindo do exterior por oferecer circunstâncias excepcionalmente
favoráveis para a sua argumentação. Nesse sentido, a cultura está sempre em
mudança, em transformação via a ação que coloca em movimento os signos.
Wagner se aproximaria da primeira assertiva, qual seja, que a cultura está em
transformação permanente. Ressaltaria, porém, que a ação não é a única va-
riável desse processo. Retornamos, assim, ao mesmo problema: a antinomia
entre ação e pensamento. Para Sahlins, os eventos estão trabalhando contra a
estrutura, e ao serem produzidos pelas ações são como signos reinterpretados,
gerando, assim, uma mudança. Wagner concebe o evento como produto da
estrutura: a metáfora é a própria formulação do evento. Dessa forma as estru-
turas culturais têm, intrinsecamente, o poder de transformação.
Retomemos, agora, o exemplo oferecido por Malinowski. Os nativos
estão remando em canoas. Estão se relacionando, estão disputando, estão
agindo. Expressam sua ação em forma de metáforas, tanto nas palavras co-

83
mo nos atos, pois estão metaforizando suas relações uns com os outros no
momento em que remam acentuando o lugar da “disputa” no sistema cultu-
ral trobriandês. Portanto, a percepção da metáfora enquanto um elemento
intrínseco aos sistemas culturais que se constroem e se modificam por meio
delas, quer metaforizando ações ou pensamentos, abre uma via interessante
para se entender “cultura”.

84
 Parte 2

Analogia e pensamento ameríndio


Zonas de contato: quando “cultura” se torna um
conceito nativo (os índios na contemporaneidade)27

Metáforas, analogias, abstrações, especializações: todos os


tipos de improvisações semânticas são circunstanciais... Os sig-
nificados são submetidos a riscos subjetivos, quando as pessoas, à
medida que se tornam socialmente capazes, deixam de ser escra-
vos de seus conceitos para se tornarem seus senhores.
Sahlins, M. (1990: 11)

Neste capítulo apresento cinco cenários construídos a partir das relações


dos Paresi, grupo indígena do Mato Grosso, com os brancos que ajudam a
refletir sobre a construção do conceito de cultura pela Antropologia e sua
apropriação enquanto uma categoria nativa. Inicio procurando fornecer al-
gumas formulações que orientaram a minha compreensão do contato entre
os Paresi e os brancos. Em primeiro lugar destacaria o trabalho de Wagner
de 1986 (1986: 129) como um dos primeiros a desestabilizar o que se con-
ceituava enquanto cultura ou sistemas estáveis de representações coletivas.
Wagner, ao sugerir que os significados culturais estavam “num constate fluxo
de continua recriação”, dava um passo decisivo a uma reconceituação do
que se convencionou a chamar sistema interétnico e aculturação. A formu-
lação “zona de contato” (contate-zone), de Clifford (1997, 2000), derivada
do livro Imperial Eyes (1992), de Mary Louise Pratt, me parece útil por ter a
vantagem de não tomar o “contato cultural” como uma forma progressiva,
algumas vezes violenta, de uma cultura tomar o lugar da outra. O que é enfa-
tizado é um processo de partilha e apropriação em perspectivas multidirecio-
nais. Uma perspectiva do contato que busca entender o que se designa por
dimensões interativas e improvisadas dos encontros culturais. A formulação
“zona de contato” nos permite escapar de uma redução do contato à defi-
nição de conjuntos fechados que fazem trocas sempre desiguais que por sua
vez instauram relações estruturais de dominação e de resistência, produzindo
necessariamente relação entre classes e hierarquias étnicas. Essa busca de uma
nova definição sobre “o contato” lembra aquela formulada por Peter Gow
(1991) na qual pensa a relação interétnica como algo construído a partir da

Este trabalho foi originalmente apresentado no Laboratório de Análise Simbólica do PPGSA-IFCS-


27

UFRJ em 2003.

87
mútua inteligibilidade, ao invés de ser um espaço para contradições e para-
doxos. Assim, o contato “articula” (termo que Clifford prefere usar) e não
apenas “inventa” tradições. O conceito de articulação, nessa nova acepção,
parece ser útil, pois procura dar conta do encontro relacionando o conhecido
e o novo, os nossos conceitos e os deles, as semelhanças.
Tenho acompanhado, nos últimos 20 anos, a trajetória do grupo indíge-
na Paresi, do Mato Grosso, com quem realizei trabalho de campo nos anos
1980 e depois retornei mais recentemente, já em 2001. Todo antropólogo
que faz pesquisa de campo entre populações indígenas no Brasil sabe o quan-
to os “brancos”, e as relações com eles, são um objeto privilegiado de reflexão
dos índios. Não me refiro propriamente a uma cosmologia do contato no
sentido do lugar do branco em seu universo cosmológico (categorias, mito
de origem etc.) mas as “falas” do dia-a-dia em uma aldeia indígena estão
fortemente marcadas por uma preocupação, diria mesmo, uma elaboração
permanente sobre o que significa ser branco, não necessariamente como ca-
tegoria genérica e abstrata, mas enquanto pessoas que produzem relações e
estratégias de construir uma articulação específica. Embora essas falas e re-
presentações sobre os brancos produzidas no dia-a-dia invadam e dominem,
muitas vezes, grande parte do tempo de pesquisa do antropólogo, esses temas
não são necessariamente discutidos pela Antropologia ou não são transforma-
dos em objeto de reflexão. Tanto aqueles que estudam especificamente “con-
tato” e “relações interétnicas” quanto quem se propõe a estudar a “sociedade”
indígena tendendo a prestar atenção nas cosmologias parecem não tomar a
problemática contemporânea dos índios como um verdadeiro objeto de re-
flexão. A contemporaneidade seria um momento particular na construção
dessas relações que mudam incessantemente seus significados, momento que
é condensado no período do trabalho de campo que sempre engendra uma
“problemática contemporânea”. Os que se interessam pelas relações interét-
nicas querem mapear estratégias de ação dos índios relacionadas a demandas
da sociedade de um ponto de vista global, como terra e território ocupado, os
conflitos daí decorrentes, a política local, as agências de contato e as relações
sociais entre índios e brancos enquanto sociedades, grupos, coletividades ou
mesmo totalidades que se representam na esfera dessas relações. Uma outra
vertente que se preocupa em estudar os valores da “sociedade” nos seus pró-
prios termos está mais propensa em determinar, em um sistema cosmológico
dado, o lugar do branco e as narrativas e mitologias sobre o branco e o conta-
to. Nesse sentido, o discurso cotidiano aparece mais como queixa ou insatis-
fação dos índios frente ao contato irreversível e inelútável com os brancos.

88
Por perceber mudanças significativas na construção do discurso Paresi no
dia-a-dia das relações com os brancos e pelo próprio alcance temporal de mi-
nha pesquisa, construo alguns cenários que nos servem de guia nesta reflexão.

Alteridades em contraste: terras, estradas e artesanato


Na década de 1980, quando se deu a demarcação do território Paresi,
eram frequentes as invasões de fazendeiros e a estrada BR-364 (Cuiabá –
Porto Velho) cortava a reserva indígena. Um posto de gasolina funcionava
em frente à aldeia Rio Verde, às margens da estrada. As relações com os bran-
cos se inseriam nesse contexto: fazendas vizinhas que invadiam as terras e, às
vezes, também empregavam os Paresi no trabalho de desmatamento. Alguns
índios que experimentaram ser empregados das fazendas não demonstravam
contentamento. Tinham clareza da exploração a que estavam submetidos
naquele trabalho como diaristas, arrancando tocos de árvores depois das
grandes queimadas. Havia um cálculo Paresi de trabalharem para satisfaze-
rem necessidades muito específicas. Poderia se dizer que os Paresi, naquele
momento (como ficou demonstrado em Costa, 1985), controlavam de al-
gum modo o contato com os brancos e as relações advindas daí de forma que
produziam estratégias bem claras de escolha de qual forma iam se relacionar
com os brancos. Nesse mesmo contexto logo perceberam que a Estrada BR-
364 era uma fonte inesgotável de passagem de pessoas e consequentemente
uma fonte de venda de seus produtos. Havia um público que queria consu-
mir o que eles produziam, o “artesanato do índio”, como diziam. Naquele
momento os Paresi detectaram muito bem o interesse de seu público-alvo e,
a partir dessa relação, passaram a produzir, ou literalmente, criaram o que
seria o seu artesanato para a venda. Passaram a desenvolver artefatos apenas
para venda na estrada. Produziram um artesanato que constava basicamente
de um rearranjo dos materiais que tinham à disposição em seu território.
Desse modo, reinventaram o arco, que agora era feito com madeira da pal-
meira paxiúba (bastante fraca para ser usada como um arco) e enfeitado com
penas de arara e tucano no centro. As flechas eram confeccionadas com uma
taquarinha do mato próximo à aldeia e ganhavam um colorido especial com
as penas de arara. Criaram o espanador, um dos objetos mais caros para a
venda, confeccionado com penas de ema, enfeitado com penas coloridas
tendo o cabo produzido a partir do pé de veado. A bola de mangaba que é
usada em jogo de bola de cabeça foi colorida com tinta xadrez e aumentada
em tamanho, transformando-se em um brinquedo para os filhos dos bran-

89
cos. Outro produto proveniente da demanda dos brancos foi a confecção de
um leque de pena de papagaio, tendo ao mesmo tempo utilidade prática e
decorativa. Os colares e pulseiras foram confeccionados a partir de modelos
expostos na loja da Funai, Artíndia, em Cuiabá.
Os Paresi tinham a exata consciência da criação de seus artefatos para
venda, como demonstra a fala de um índio:
primeiro era branco soldado que abriu estrada, procurava índio, queria ver nós, daí queria
qualquer coisinha feita por índio. Depois veio caminhoneiro, passageiro. Tudo pedia pra
comprar. Daí... a turma da aldeia fez espanador, botou cabinho, juntou as penas de ema...
Daí pra frente quem quis foi aprendendo, foi só inventando (Costa, 1985: 341).

Os Paresi se dirigiam até os pontos de venda usando suas bicicletas com


todo artesanato bem acondicionado na garupa e lá ficavam por alguns dias
à espera de passageiros dos ônibus e dos caminhoneiros que paravam nessas
localidades, que eram os compradores potenciais. Quando parava um ônibus
ou caminhão, eles se dirigiam até os passageiros do veículo e diziam “com-
prem artesanato do índio, ajuda o índio, tem espanador, tem leque, tem arco,
tudo baratinho”. Sempre procuravam colocar o preço uns 20% acima do que
realmente queriam vender, pois já sabiam do processo de regatear, coisa que
não os agradava. Pediam para eu escrever em papel os preços como etiquetas.
Queriam amenizar o contato com os brancos o máximo possível, se relacio-
navam de forma bastante calculista, sabendo o que precisavam vender para
comprar o que desejavam consumir na cidade mais próxima: calça de tergal
azul marinho, camisa social branca, sapato Vulcabrás, bicicleta Monark e ca-
tracas fabricadas na Tchecoslováquia para substituírem as nacionais, pois para
os Paresi, que usavam a bicicleta como meio de transporte, não eram boas.
O conjunto do artesanato Paresi exposto nos postos de gasolina, sobretu-
do para os antropólogos e museólogos, declarava por si só sua inautenticidade;
um conjunto eclético, quase kitsch, uma criação livre Paresi sobre o tema do
índio genérico, aquilo que assegurava que eram índios, como se dizia na época
“com grau bastante elevado de contato interétnico” ou “com grau considerável
de mudança em sua cultura tradicional”. De uma perspectiva, seu artesanato
era cópia de artefatos da loja da artíndia, artefatos induzidos pelo gosto alheio,
dos agentes da Funai e ditado pelo gosto dos caminhoneiros e passageiros de
ônibus que circulavam pela BR-364. Da perspectiva dos passageiros e cami-
nhoneiros eram “coisas de índio”, como dizia o informante acima, parecia
que compravam objetos da cultura indígena em geral ao comprarem aquele
artesanato. Para os museus era algo inautêntico, inventado por uma demanda
alheia, pura interferência, uma forma de os Paresi sobreviverem dignamente

90
da venda desses bens. Para os Paresi era claramente uma invenção, nunca
venderam os artefatos como sendo peças tradicionais de sua cultura, nunca
enfatizaram esse aspecto, eram “souvenir” de índio. Certa vez, presenciei uma
conversa de um caminhoneiro com um índio que vendia artesanato na es-
trada. O caminhoneiro questionava a qualidade do arco exposto para venda,
empunhando o arco perguntava para o índio o que ele ia fazer com aquele
arco que parecia não prestar para caçar. O índio respondeu que era para ele
pendurar na parede de sua casa. O caminhoneiro, não satisfeito com a res-
posta do índio, questiona para que ele ia pendurar um arco na parede de sua
casa. O índio responde que era para enfeitar, é bonito, é colorido, tem pena
de arara e tucano. O caminhoneiro fala que queria um arco de verdade, um
original, aquele que o índio fazia para ele próprio, resistente. O índio fala que
este é muito caro, o mesmo preço de uma espingarda nova. O caminhoneiro
diz que ele está “maluco”... O índio diz terminando a conversa: “Eu não! E pra
que você quer um arco de verdade se você não sabe caçar com ele?”
Nesse tempo, os brancos para os Paresi, os de suas conversas cotidianas,
eram os compradores de artesanato, os fazendeiros que invadiam suas terras
e os caminhoneiros desavisados que tentavam cortar caminho pela reserva
indígena fugindo do mal estado da BR-364 na época da chuva e acabavam
por chegar a alguma aldeia. Durante o meu período de campo nos anos
1980 um dos pedidos dos índios foi uma corrente de 5 metros e um cadea-
do. Embora achando estranho o pedido, quando de minha viagem à cidade
mais próxima comprei o que fora solicitado e entreguei ao chefe da aldeia.
Logo em seguida os índios fecharam a estrada com a corrente, impedindo
assim a passagem de qualquer veículo. A intenção era estabelecer um pedágio
na aldeia para os carros que por ventura por ali passassem, e que não eram
poucos naquela época do ano. Os Paresi construíram uma estratégia para
instituir o pedágio ao invés de cobrar simplesmente a passagem com uma
taxa fixa, havia um complexo jogo que visava uma proposta de pagamento
por parte do caminhoneiro. Próximo à aldeia havia uma ponte estreita que
cruzava o Rio Sacre. A porteira foi posta depois da ponte, como forma de
assegurar que um caminhão não teria condição de manobrar e retornar caso
não concordasse com o pedágio estipulado. Quando o caminhoneiro dava
por si estava diante da corrente e do cadeado, olhando para as duas grandes
casas em formato elíptico, entre elas um grande pátio, o que produzia a ine-
quívoca impressão, para quem quer que fosse, de estar no “meio dos índios”,
em uma aldeia indígena. Nesse contexto, o chefe da aldeia mandava sua mãe,
uma anciã de 87 anos que tinha conhecido Rondon, dar as boas vindas ao

91
caminhoneiro. Ninguém saía da casa, a mulher ia até o caminhão, sempre
vestindo um pequeno saiote deixando os seios à mostra. Falava sem parar na
língua Paresi, gesticulando muito. Não havia caminhoneiro que não entrasse
em pânico. Nessa altura, vinha outra mulher, mais nova, que ficava dizendo
algumas poucas palavras em português, com cara de poucos amigos, fazendo
gestos para ele voltar, que ali era uma aldeia de índios, terra de índio, e que
os brancos não podiam passar ali etc. Mas voltar como? O caminhoneiro se
perguntava, vendo aquela ponte estreita. Nesse momento sai um homem,
um jovem de 20 anos, de dentro da grande maloca e começa acalmar o
caminhoneiro; ele fazia o papel do índio que estava ali para compreender a
situação e ajudá-lo, de ser o intérprete neutro da conversação que ia se dar.
O índio argumentava que ali era terra de índio e que o chefe da aldeia era
muito brabo e que não permitia que ninguém passasse por ali, tinha raiva de
branco... Eis que surge, então, o “chefe brabo”, que sai da casa, gesticula e
fala somente na língua Paresi, aumentando o pânico do caminhoneiro. Nesse
momento a intermediação do jovem índio parecia ser a salvação do cami-
nhoneiro, que a essa altura já estava convencido de que os índios estavam
resguardando suas terras, e eram “índios de verdade”, guerreiros e dispostos a
tudo para impedir que passassem por seu território. A partir daí tinha início
a negociação da passagem pelo o preço de um pedágio. No final da história o
chefe estava calmo, havia feito uma concessão para aquele bom caminhonei-
ro, recebia o dinheiro e dava umas dicas para o caminhoneiro não se perder
no território e como poderia encurtar seu caminho para sair em um trecho
mais adiante da BR-364.
Os Paresi usavam estratégias bem marcadas do que significava ser índio
naquele contexto. Os atributos eram a imprevisibilidade; o índio não confiá-
vel e bravo, que estava disposto a tudo para preservar sua terra e seu território
da invasão de estranhos. Esse discurso engendrava os Paresi produzidos pela
demarcação de identidades políticas no confronto entre índios e brancos. Evi-
dente que tudo isso era, também, verdade; porém verdades sempre parciais
e construídas pelos Paresi ao representarem a si próprios com os atributos da
cultura indígena ou daquilo que sabiam ser as representações dos brancos a
sua volta sobre o que significava a cultura indígena ou ser índio genérico.
Observa-se que a relação com os brancos estava mais pautada naquilo
que os Paresi depreendiam do que os brancos pensavam sobre eles e nas suas
expectativas, do que baseadas em uma concepção do lugar do outro ou da al-
teridade naquele sistema cosmológico ou de como os brancos eram um caso
particular da categorização de outro. O mesmo se dava com a venda do arte-

92
sanato: encenavam e faziam uma relação que pressupunha conhecer o ponto
de vista do outro sobre eles próprios, de forma a construir uma forma de
interação baseada nessa expectativa. Os Paresi não estavam com isso afirman-
do uma identidade de índio genérico e nem mesmo estavam ali inventando
sua cultura indígena através dos artefatos que produziam e vendiam. Do seu
ponto de vista, simulavam ser “índio de verdade” na aldeia quando do pedá-
gio ou quando vendiam coisas de índio, mas tinham a consciência de estar de-
volvendo a imagem de índio ou do que significava a cultura indígena para os
brancos. “Índio” ou “cultura indígena” era uma invenção dos brancos; podia
ser divertido e lucrativo ao mesmo tempo e era só isso, não tinha nenhuma
materialidade para os Paresi, não estava repousado em nenhum modo de ser
daquela sociedade, dos rituais ou dos mitos e muito menos em sua cultura
material. Os Paresi faziam seus rituais, suas festas, contavam os seus mitos,
comiam beiju, tocavam suas flautas, caçavam, pescavam mas tudo isso não era
concebido como “atividades culturais” ou algo que fosse específico do modo
que eles faziam as coisas que lhe dava uma especificidade, não havia algo que
pudesse ser identificado para eles como sendo a cultura Paresi ou que existisse
uma diferença entre o tradicional e o espúrio no que eles faziam. Assim o “ser
índio” e a “cultura indígena” eram alheios ao universo Paresi, que remetia ao
mundo dos brancos e não ao mundo dos Paresi. Porém, essa questão vai se
transformar completamente ao longo da década de 1990.

Do genérico e do singular: ser Paresi


Um outro cenário. Estamos agora em 1992, quando recebo um tele-
fonema em minha casa. Era uma índia Paresi que nunca tinha vivido na
aldeia, filha de um índio que fora telegrafista da época de Rondon que tinha
se casado com uma mulher branca e sempre vivera em Cuiabá. Essa jovem
fazia o curso de história na universidade de Cuiabá quando se defrontara
com a chamada da questão indígena e, passara, então, a se interessar pelos
Paresi. Depois de uma visita à aldeia para encontrar os seus parentes ressitua
sua identidade e passa a partir daí a assumir sua identidade de índia Paresi.
Procura, então, desenvolver “projetos” junto à sua “comunidade”, categorias
que surgiam naquele momento, de significação bastante complexa e ainda
não bem avaliada pelo pensamento antropológico contemporâneo. A índia
passa a morar em uma aldeia indígena e acaba se casando com o chefe de
posto da Funai com quem teve um filho. Sua história conjugal não vai bem,
ela deixa a aldeia e passa a morar na cidade, hoje reside e trabalha em Cuiabá
e se dedica a realizar projetos de educação indígena.

93
No momento da Eco-92, tinha se descoberto índia e queria fazer um Mu-
seu Paresi. Aproveitava sua estadia no Rio de Janeiro para que eu a ajudasse a
realizar esse projeto: sentamos e discutimos suas ideias para organizar seu traba-
lho. O projeto ficou pronto e impresso e a partir daí ela poderia solicitar recur-
sos junto às agências de financiamento. A temática era a celebração da cultura
Paresi, sua especificidade e sua riqueza e a necessidade de sua preservação para
as futuras gerações. O Museu era o local natural para se recolher os objetos da
cultura, as gravações das canções e dos mitos, enfim, abarcava a totalidade da
cultura Paresi enquanto uma entidade singular e autêntica, resgatando tudo o
que ainda não havia se “conspurcado” pelo contato com os brancos.
Durante sua estadia em minha casa para fazer o projeto, surge um fotó-
grafo americano, que conheceu durante a Eco e que tirou dezenas de fotos
de seu filho (considerado por ele um “belo modelo indígena”). O fotógrafo
apresentou um contrato em inglês para ela assinar que versava sobre os di-
reitos de imagem de seu filho e o quanto ganharia pelas vendas das fotos
por essa agência americana de fotografia. A última vez que vi essa índia foi
em uma foto na revista Veja, abraçada com a primeira dama, à época, Ruth
Cardoso, sendo a representante de uma organização das mulheres indígenas,
em um encontro de mulheres em Brasília em 1998.
Foi a partir desse momento, início dos anos 1990, que se colocava para
os Paresi a ideia de um Museu, a ideia de preservação de sua cultura. Sua cul-
tura passava a ser um objeto de reflexão para eles nessa nova possibilidade de
relação com os brancos. Se até então a relação com os brancos estava pautada
pelos conflitos políticos advindos do significado de índio denotar acesso a
terra, os Paresi experimentariam agora outra perspectiva do que significava
ser índio. A ideia do Museu estimulou os debates em várias aldeias sobre on-
de iria ficar localizado, como fazer, quem iria trabalhar e de que modo seria
constituído, embora nenhum projeto tenha sido concretizado. Estava então
lançada a ideia da especificidade cultural Paresi e de sua riqueza cultural,
os Paresi adquiriam essa conceituação de “cultura”, do “tradicional”, mas
certamente com outros significados. Do ponto de vista Paresi parecia haver
de fato uma preocupação marcante com a distintividade, com a singulari-
dade, numa perspectiva Paresi de afirmar todo o tempo esta especificidade
de aldeia, de pertencimento a subgrupos distintos, de afirmar as diferenças
dialetais e a diferença dos objetos que identificavam os diferentes tipos de
Paresi. Essa concepção da especificidade do ser Paresi combinada com a espe-
cificidade da cultura Paresi contida na proposta de construção de um Museu
levava a reivindicação de que cada aldeia Paresi queria ter o seu Museu; a

94
proposta não era mais de um museu Paresi, mas de museus paresis. A ideia
de cultura enquanto especificidade ecoava e reforçava a ideia Paresi sobre a
diferença, produzindo o super específico. E a ideia de distinção ia longe, os
índios, em parceria com a secretaria de educação de Mato Grosso, produzi-
ram as cartilhas em língua Paresi, mas tratava-se de três cartilhas diferentes,
com pequenas diferenças dialetais, que não representavam mais os Paresi mas
sim o falar dos Waimaré, dos Kaxíniti e dos Kozárine. Estavam dispostos a
dissolver o rótulo cultural Paresi. A intenção parecia ser o de destruir genera-
lidades e se buscar, cada vez mais, particularidades, que eram então exaltadas:
nem índio genérico e nem mesmo, simplesmente, Paresi. A noção de cultura,
agora pareicizada, ia mais além, tratava-se de uma celebração das diferenças.
E com isso o significado político dos brancos explodia em muitos brancos
diferentes, pessoas distintas, com intenções variadas. O contato passava do
conflito ao encontro. Nesse novo contexto, os Paresi pretendiam encontrar
com brancos e com suas especificidades, conviver, se relacionar e até mesmo
namorar com os brancos. Havia uma explosão de diferenças.
Em minha última viagem aos Paresi, em 2001, hospedei-me em uma
casa tradicional, enorme, que fora construída por ocasião de um encontro
promovido por uma ONG e a Funai entre diferentes povos indígenas com
interesse explícito de trocar experiências culturais, modos de ser e pensar as
questões culturais, uma espécie de festival relativista para acentuarem suas
especificidades. Se antes a diferença era posta em lugares onde residia o pe-
rigo da alteridade (o canibalismo e a guerra), agora pareciam concordar que
existia uma multiplicidade de diferenças, as quais deviam ser celebradas. A
identidade de índio genérico, reivindicador de terras e de bens dos brancos
parecia coisa do passado e não encontrava mais eco no discurso Paresi. Agora
os Paresi estavam convencidos de que existia algo que era realmente especí-
fico Paresi e que os diferenciava dos outros, aquilo que diziam ser o seu “ca-
pital”, aquilo que aprendiam nos cursos de produção de projetos realizados
por ONGs e pela Funai. O “projeto”, em si mesmo, assumia esse caráter de
especificidade. Nesse contexto de celebração das particularidades, as pergun-
tas que fazia aos Paresi a partir de meus interesses de pesquisa, por exemplo,
quando pedia maiores explicações sobre um objeto ou perguntava por que as
mulheres não podiam ter relações sexuais nos dias que preparavam a bebida
fermentada, a resposta era sempre precedida de uma introdução que enfati-
zava que a explicação para tais fenômenos culturais era extremamente com-
plicada e que demandava um aprendizado bastante complexo para realmente
se entender. Nesse novo contexto, os Paresi estavam encantados com a sua

95
complexidade cultural, tratada como algo de difícil significação que assumia
um tom de sagração de sua cultura. Utilizavam mesmo a palavra sagrado
para tudo que se referisse aos seus rituais e à sua mitologia. Agora sua cultura
poderia ser dissecada por eles mesmos a partir do que perguntávamos, que-
riam gravar em fita e vídeo os detalhes das explicações que davam.

Redescobrir o mundo através do outro: o eco-turismo


Voltemos à casa em que estava hospedado e ao índio que era dono da
casa. Ele tinha a clara intenção e devida persistência em realizar um projeto
de eco-turismo em sua aldeia e, para tanto, me elegeu como interlocutor
privilegiado para a apresentação de suas ideias e planos. Em breve iria a
Cuiabá realizar um “Curso de Produção de Projetos”. Estava muito feliz com
a possibilidade de poder aprender a fazer seus projetos e experimentava ali,
comigo, uma forma de falar exaustivamente sobre seus planos. Montava ce-
nários todos os dias sobre seu projeto de eco-turismo: onde os turistas iam
ficar abrigados, onde iam construir a outra casa tradicional, talvez um pouco
mais afastado da aldeia, talvez uns bangalôs, imaginava o que os índios da
aldeia poderiam fazer para mostrar sua cultura aos turistas: danças, rituais,
passeios pela floresta para mostrar seu conhecimento sobre a natureza. Or-
ganizava visitas virtuais às roças, explicava cada um dos produtos e às vezes
testava comigo alguns de seus passeios, como a ida à mata para mostrar uma
planta com a qual se produzia um remédio para febre e dor de garganta.
Discursava sobre a importância do conhecimento sobre cada planta, cada
animal do território e não parava de elogiar as belezas das águas dos rios,
da floresta, das cachoeiras que, se ainda eram consideradas pela “tradição”
perigosos lugares de encontrar espíritos malignos, assumiam na perspectiva
do turista uma beleza indescritível. Estava, assim, encantado com tudo à sua
volta como fosse ele próprio um turista e estivesse vendo pela primeira vez
todo o seu ambiente a partir de uma outra perspectiva, resignificando tudo
o que via em termos de belezas naturais de seu território. Montava virtual-
mente, também, o programa dos turistas na aldeia, os banhos de cachoeira, a
comida que comeriam (experimentar o beiju, a chicha de mandioca), poder
ver como cantavam e sabiam seus mitos. Nas suas visitas virtuais ao território
Paresi se referia à necessidade de se filmar, de se documentar todo aquele co-
nhecimento mostrado para os turistas, para que fosse criado um acervo sobre
a cultura Paresi que seria abrigado, naturalmente, em um Museu que faria
parte do complexo de eco-turismo Paresi. Nesse mesmo contexto narrava

96
outro projeto de que tinha participado recentemente e ainda estava engaja-
do, que era resultado de sua associação com um grupo de teatro da cidade
de Tangará da Serra, o que resultou na transformação do mito de origem
Paresi em uma encenação teatral; alguns índios em conjunto com o grupo de
teatro adaptaram o mito ao cenário e as roupas, fantasias, que caracterizavam
os personagens da mitologia. Enquanto narrava essa experiência, pegava as
fotografias da peça e o texto mostrando detalhes de cada um dos personagens
e o que representavam na mitologia. Ao narrar esse episódio ficava orgulhoso
dessa, literalmente, representação que se apresentava para plateias de todo o
Brasil e não somente apenas no estado de Mato Grosso. Para ele era uma pro-
va do que significava a cultura Paresi nessa nova articulação e encontro com
os brancos. No contexto da narrativa sobre a encenação mítica, dizia que os
Paresi haviam perdido com a demarcação das terras o lugar sagrado do qual
o mito se referia em que estava situada a pedra original de onde haviam saído
seus ancestrais. O lugar a que se referiam era conhecido pelo nome de “Ponte
de Pedra” e estava definitivamente fora do território Paresi: hoje pertence a
um fazendeiro. Relata que estava preparando um pedido formal, através de
um processo de revisão das terras Paresi, que incluía essa pedra como parte
do seu território. Essa demanda não era político-econômica como as áreas
de caça, coleta ou terras para a agricultura de subsistência. Tratava-se de uma
reinvidicação cultural no pleno sentido da palavra, para os Paresi e para os
brancos. Na pedra estava materializada a mitologia e a essência do ser Paresi,
a sua origem por excelência. Assim, nos mostrava mais fotos da pedra e da
região onde estava situada e o dossiê que preparavam para enviar à Funai
e à Procuradoria Geral da República propondo a anexação dessa pedra ao
território Paresi. Nesse momento eu interferi, perguntado a ele o quanto
distava essa pedra de sua aldeia. Ele disse se tratar de uns 200 quilômetros.
Percebendo, ele mesmo, a enorme distância entre aquela pedra e sua aldeia,
acrescenta em seguida que na prática isso lhe parecia impossível, mas que
se não pudessem anexar aquele vasto território, pelo menos eles poderiam
delimitar aquele pequeno terreno onde estava situada a pedra como área
Paresi e que lá deveria ter uma placa com dizeres que ali, naquele preciso local,
os ancestrais Paresi saíram da terra. Evidentemente que um passeio até a pedra
que deu origem aos Paresi estaria incluído em seu roteiro eco-turístico. Aliás,
não tive mais notíciais do projeto de eco-turismo a não ser por imagens
veiculadas pelo programa Esporte Espetacular da Rede Globo, em 2004, que
mostravam os turistas ecológicos, guiados pelos Paresi, praticando rapel na
cachoeira próxima à aldeia.

97
Esse discurso empreendido por nosso amigo Paresi sobre eco-turismo pa-
rece bem longe daquele proferido por Clastres no início dos anos 1970 quando
publica, em 1971, o artigo “O ponto alto da excursão”, na revista Les Temps
Modernes, em que relata um cenário imaginário ou real de uma guia turísti-
co levando turistas para um passeio em uma aldeia indígena na fronteira do
Brasil com a Venezuela. A narrativa de Clastres acentua o caráter vexatório da
situação, descrevendo os índios como submetidos pelo interesse no dinheiro
a esse contato turístico-comercial. Clastres projetava sobre a reação dos índios
todo seu desprezo por aqueles turistas que conspurcavam a cultura indígena
ao transformarem os índios em objeto, em uma quase mercadoria que, pa-
ra Clastres, encarnavam a autenticidade mais inautêntica possível. O mesmo
sentimento, acentuado por Clifford, é professado por Lévi-Strauss em Tristes
Trópicos, quando oferecia um retrato de ruína e decadência cultural no qual
as autênticas diferenças humanas estavam se desintegrando e desaparecendo
em uma cultura da mercadoria expansiva que tornava as culturas do globo, no
melhor das hipóteses, colecionáveis enquanto obras de arte ou folclore. Essa
percepção entrópica, como lembra Gonçalves (1998: 11) estava no “coração
da experiência etnográfica... presente nos escritores e artistas modernistas, da
busca de uma experiência autêntica. Ao mesmo tempo que se articula a consci-
ência de que essa experiência não é possível no mundo moderno.”
No contexto Paresi, realizar o projeto de eco-turismo, encenar uma peça
de teatro levando sua cultura para apresentar aos brancos era, decididamen-
te, a celebração do encontro de culturas, mas não aquele encontro da acul-
turação reportado pela a Antropologia da décadas de 1940 e 1950, menos
ainda poderia ser considerado um encontro da fricção interétnica, marca dos
estudos da décadas de 1960 e 1970 e ainda, muito menos, a construção de
identidades interétnicas que demarcam os contornos políticos da alteridade
entre índios e brancos. Não parecia ser, também, uma invenção do ser índio
através de atributos culturais genéricos que marcou os estudos dos anos 90.
O movimento Paresi visando a representação do específico e do particu-
lar, daquilo que seria Paresi, não lembra a emergência étnica dos índios do
nordeste, por exemplo. Os Paresi não precisavam provar que eram índios
genéricos; pelo contrário, queriam deixar justamente de sê-los ao afirmar sua
especificidade, ao aprofundar os processos de diferenciação.
Nesse novo contexto, o artesanato não poderia mais ser algo espúrio ou
alheio aos Paresi, tratava-se, agora, de “objetos”, “peças” que representavam uma
especificidade. Encontravam-se na aldeia à disposição para compra bordunas de
guerra desenhadas e pintadas, redes de tucum e de algodão, uma quantidade

98
enorme de cestos trançados com inúmeros padrões de desenhos, arcos tradi-
cionais e flechas de caça, cocares rituais, bolas de mangaba brancas sem tintura
xadrez e até mesmo o escudo de caça. Tratava-se dos objetos Paresi e não mais
de artesanato. Inclusive o preço havia se alterado consideravelmente e os objetos
eram extremamente valorizados como algo específico e único dos Paresi.
Outro contraste significativo que percebi, que distinguia estes dois mo-
mentos da articulação dos Paresi com os brancos, era o modo como pousa-
vam para as fotografias. Na década de 1980 solicitavam fotos pousadas com
a melhor roupa que tinham: os homens com a calça de tergal azul marinho,
camisa social branca de manga curta, meias pretas e sapato vulcabrás, bem
penteados com biocreme; as mulheres com seus melhores vestidos, com o
cabelo arrumado, meia três quartos branca e um sapato colegial preto, usan-
do batom e maquiando o rosto. Na última viagem de 2001 as fotos também
foram solicitadas, e, quando me dei conta, as mulheres estavam despidas, se-
minuas, apresentando o saiote “tradicional” que apenas tinha visto nas fotos
de Rondon do começo do século; estavam pintadas com urucum, com colares
e carregando cestos na cabeça. Uma família inteira se adornou e saiu da casa
em grupo pedindo outra fotografia, e, assim, se sucediam as fotos pousadas, os
homens empunhando bordunas e cocares, com o corpo pintado e adornado
ao estilo Paresi. Tanto para mim quanto para os índios aquelas fotos pareciam
encenar “o tempo do marechal Rondon”, como os próprios índios se referem.
O tempo de Rondon parece que era percebido como metáfora da cultura Pa-
resi, daquilo que queriam celebrar naquele momento. Rondon e o seu tempo
passam a ser a “época de ouro” dos Paresi, tempo com o qual querem hoje se
articular e por isso desejam visitar as “coisas” que Rondon trouxe para o Rio de
Janeiro que estão no Museu Nacional, o que motivou uma viagem de um ca-
sal Paresi ao Rio de janeiro e uma estadia em minha casa em junho de 2001.

Objetos como artefatos da memória: os Paresi no Rio de Janeiro


Quando fui buscá-los no aeroporto, vinham acompanhados por um
comissário de bordo que os estava trazendo. O comissário parecia estar se
divertindo, estava envolvido em uma conversa animada com o índio, que
lhe explicara em detalhes onde morava, que ele era “Paresi do Mato Grosso”
e o havia convidado para visitar sua aldeia e conhecer como viviam os Paresi.
O índio chegou bem paramentado, usando faixas na cabeça e nos braços, e a
índia exibia seus colares e carregava um cesto com padrões de desenho que,
indubitavelmente, demonstrava que tinham uma singularidade. Ao chega-

99
rem em minha casa ficaram logo desapontados e decepcionados, pois não
encontraram nenhum artefato Paresi pendurado nas paredes e logo me ques-
tionaram por que ali, logo ali, os Paresi não estavam representados, já que
havia artefatos de outras culturas indígenas, africanas, balinesa, asiáticas etc.
Eu explicava que tinha guardado, e muito bem guardado, os artefatos Paresi:
não peças individuais mas a coleção de objetos que tinha e que todos em bre-
ve iriam fazer parte do acervo do Museu do Índio. E acrescentava que, jus-
tamente, por se tratar de uma coleção, eu não poderia expô-los na parede da
minha casa. Minha explicação não desfez por completo sua decepção e tam-
bém não os convencera, insistiam que tínhamos que ter pelo menos algumas
peças ali expostas, queriam estar representados, e em seguida acrescentaram
que iriam fazer muitos objetos tradicionais para que pudéssemos divulgar a
cultura Paresi, pois se encontrava pouco representada. Argumentava que já
haviam percorrido vários lugares, tinham visto muita coisa de outros povos e
não viam nada dos Paresi, concluindo que essa situação teria que mudar. O
mesmo discurso foi proferido quando visitaram o Museu do Índio e o Mu-
seu Nacional e não encontraram nenhuma peça dos Paresi na exposição, o
que era motivo de indignação pois, como diziam, os Paresi deveriam estar ali
representados, fariam peças tradicionais, como as de antigamente, da época
de Rondon, para que todos soubessem quem eram os Paresi.
Nessa viagem dos Paresi ao Rio de Janeiro gostaria de destacar um momen-
to importante que foi o de sua visita ao Museu Nacional para ver a coleção Pa-
resi, cuja maioria das peças fora trazida por Rondon e por Roquette-Pinto. Os
Paresi já sabiam que iriam encontrar lá as “flautas sagradas” e esse era o ponto
alto da visita, pois desde a aldeia eles condenavam veementemente que as flautas
fizessem parte da exposição e do acervo do Museu Nacional porque, segundo
eles, foram roubadas e levadas sem autorização para fazer parte da coleção.
A museóloga, na reserva técnica do museu, com luvas brancas ia reti-
rando dos armários de aço um a um os objetos da coleção cuidadosamente
embalados. Desempacotava as peças como joias raras, mostrando aos índios
que estavam sentados do outro lado da mesa. O casal estava visivelmente
fascinado com o ritual incessante do vai e vem dos objetos, de seu desempa-
cotamento e empacotamento. Comentavam, davam explicações sobre cada
objeto, o nome que tinha na língua Paresi, como era feito aquele trançado
ou aquela pintura e quais os materiais utilizados, como se usava e em que
situação, e às vezes demonstravam o seu uso. O índio, quando viu uma faixa
de cabeça tecida com um outro padrão de desenho, comparou com a faixa
que usava e disse que agora ia fazer igual a do Museu. Nesse momento foi

100
interpelado pela museóloga, que passou a ver em detalhes a faixa que usava
dizendo para ele que aquela sua faixa, que era feita hoje, era muito boa e
que ele não devia querer fazer igual à de antigamente, pois tudo mudava, e
disse a primeira sílaba de evo(lução) não completando a palavra pois naquele
contexto poderia ser considerada politicamente incorreta, ainda mais tendo
antropólogos como testemunha. Corrigiu-se dizendo que tudo se transfor-
mava e que as coisas não param no tempo, os estilos são sempre novos etc.
O índio não ficou convencido com sua explicação e disse que ia fazer assim
mesmo. Esse foi o começo de um debate que se iniciava ali entre a museóloga
e o índio: ele queria fazer alguns objetos iguais aos que via no museu, dizia
que ia fazer lá na aldeia e depois mandaria para o Museu novamente. Parecia
pouco preocupado com a representação dos Paresi e mais com os seus ob-
jetos, aqueles feitos por ele próprio e que estariam no Museu. A museóloga
insistia que ele não devia voltar a fazer coisas de antigamente, o que importa
é o que eles fazem hoje, “isso é que é Paresi”, argumentando que o novo tam-
bém era interessante e que se ele fosse fazer como antigamente a cultura atual
estava correndo o risco de se “perder”. Em suma, o novo não podia ser uma
cópia ou imitação do tradicional. O diálogo dos índios com a museóloga
propunha desafios para se compreender a perda da cultura, agora o que ia se
perder era o que foi um dia considerado inautêntico. Agora, a transformação
do tradicional que era o autêntico modo de se fazer os objetos Paresi. Os
Paresi se sentiam desconfortáveis com toda essa conceituação, construída em
paradoxos, do que seria a cultura Paresi.
O ponto alto da apresentação foi quando a museóloga avisou que ia
trazer as flautas. Nessa hora, a índia se retirou da sala mas permaneceu a uma
distância que lhe permitisse ouvir as flautas; se não podia vê-las, era impor-
tante escutá-las. O índio tocou por algum tempo as flautas e depois saímos
para encontrar a índia. O comentário pós-audição das flautas centrava-se na
emoção que ela sentiu no momento em que as ouvia, as flautas eram pessoas,
como ancestrais, como parentes deles e por isso ficavam muito emocionados.
Declaravam em seguida que essas flautas haviam sido roubadas pelos mis-
sionários e entregues ao Museu, afirmavam assim que as flautas não faziam
parte da coleção que Rondon trouxera para o Rio de Janeiro no começo do
século. Diziam textualmente que Rondon não faria tal coisa pois sabia da im-
portância que isso tinha para os Paresi. Assim, Rondon era considerado um
conhecedor da cultura Paresi. Diziam que esses objetos não deveriam nunca
ter ficado expostos por tantos anos, pois as pessoas que os viam também po-
deriam sofrer malefícios e não sabiam como ainda poderia existir o povo do

101
Rio de Janeiro, que viu durante mais de 50 anos as flautas expostas na vitrine
do Museu Nacional. Os missionários que roubaram as flautas eram critica-
dos duramente por terem desrespeitado a cultura Paresi. O importante a re-
ter por agora são as representações sobre Rondon. Rondon foi quem entrou
oficialmente em contato com os Paresi no começo do século XX, quando o
seu território foi cortado pelos fios do telégrafo, quando os Paresi se tornaram
telegrafistas e guarda-linhas, ajudando Rondon a consolidar sua empreitada
civilizatória pelo interior do Brasil. As fotos da Comissão Rondon são bem
conhecidas pelos Paresi: mulheres vestidas com seus saiotes, os homens com
o estojo peniano, todos nus e felizes recebendo os objetos (facas, miçangas,
espelhos, roupas) do próprio Rondon. Muitas fotos de aldeias e dos objetos
Paresi ilustram os livros da Comissão. Rondon sempre foi um personagem
do mundo dos Paresi. No contexto da luta pela identidade política de índio,
no sentido de reinvidicação territorial, nos anos 1980, Rondon não gozava
de boa reputação. Era comum ouvir que os problemas dos Paresi começa-
ram com Rondon, quando abriu a penetração para a região, e, desde então,
o território paresi vem diminuindo. Hoje Rondon parece significar coisa
muito diversa: é representante de uma época que os Paresi descreviam como
época de pujança populacional, alimentar, cultural. Tempo em que realiza-
vam grandes festas para cantar e contar seus mitos. Tempo que não estavam
misturados, que não existia o Paresi mas sim as identidades mais específicas
Waimaré, Kozárine, Kaxíniti. Tempo de expressão máxima das singularida-
des culturais. Rondon passou a significar hoje, no presente, quem primeiro
deu valor aos objetos Paresi, trazendo-os para o Museu, exibindo-os para os
brancos, aquele que representava os Paresi longe do seu território, mostrando
sua cultura e constituindo sua especificidade. Foi justamente essa definição
de que Rondon era uma pessoa muito importante na articulação entre os
Paresi e os brancos que fez com que tudo de mais importante que existe no
Rio de Janeiro fosse pelos nossos amigos Paresi, associado a Rondon: o Pão
de Açúcar, o Cristo Redentor, o Parque Lage, o Jardim Botânico, o Museu
Nacional, eram todas obras atribuídas a Rondon. O índio não dispensava
elogios a Rondon quando via a estátua do Cristo Redentor, dizendo que só
mesmo Rondon seria capaz de fazer tal coisa, dada a grandiosidade da obra.
Para corresponder a essa importância de Rondon, a cidade do Rio de Janeiro
e os cariocas imortalizaram-no em estátuas. Todas as estátuas que viram não
foram construídas por Rondon mas eram o próprio Rondon. Mesmo que se
argumentasse que de fato a estátua do Museu do Índio era o Rondon, mas
que as outras eram de outros generais e marechais não surtia nenhum efeito;

102
estavam decididos a continuar a ver cada estátua como a encarnação do Ma-
rechal Rondon. Assim tudo parecia ser materializável, não apenas os objetos
dos Paresi mas também as obras grandiosas de Rondon e ele próprio. Dessa
perspectiva, o Rio de Janeiro parecia aos olhos dos índios um museu ao vi-
vo da grandiosidade rondoniana e todos celebrávamos este herói civilizador
que foi o primeiro a entender a cultura Paresi, a distingui-la, a precisá-la, a
representá-la, e, portanto, estava dada mais uma vez a articulação entre os
Paresi e nós através de Rondon, do que era mutuamente inteligível.
Nesse contexto da celebração das diferenças, os brancos passam a não
mais ser alvo de estratégias específicas e de racionalidades de contato, dissol-
ve-se a ideia de “sociedade branca” enquanto uma totalidade homogênea, e
em seu lugar surgem pessoas, culturas, diferenças com quem se encontram,
conversam, vivem, se relacionam. A diferença foi conquistada, as discussões
na aldeia às vezes assumem um discurso tradicionalista no sentido de refor-
çar a cultura tradicional, evitar a perda da identidade Paresi enfatizando que
deveriam ficar mais em suas aldeias, estudar em suas aldeias, aprender a lín-
gua, iniciar processos de revitalização cultural que justificam o “fazer proje-
tos” para ONGs, revitalizar sua cultura que está na iminência de ser perdida
na próxima geração e, podem mesmo, criticar aqueles que visitam a aldeia
apenas no fim de semana e aqueles que namoram ou se casam com brancos.
Mas parece que longe de serem tradicionalistas, ou melhor, quanto mais as-
sumem o discurso tradicionalista, mais aparecem em estreito contato com os
brancos, em conversa e articulação. Parece que perceberam que cultura não
tem nada a ver com relações sociais concretas: pode-se falar a língua Paresi e
ao mesmo tempo estudar em uma escola pública de Tangará da Serra e ence-
nar na mesma escola sua mitologia, podem ingressar no mercado fonográfico
regional constituindo duplas sertanejas e gravar Cds de sucesso, podem tocar
violão, se casar com branco, viver como branco mas continuar a ser cultural-
mente distintos, não mais como índios mas como Paresi. Parece que cultura
se tornou literalmente um bem, algo materializável, que pode ser trocado,
representado, essencializado independente de qualquer forma de interação
social. E enquanto se tem a posse desse bem, ele não pode ser perdido.

Zona de contato: churrasco de domingo


Encerramos este capítulo com um último cenário, que nos fornece um
vívido quadro da dimensão da contemporaneidade Paresi. O ano de 2001.
Aldeia Paresi do Formoso. Havia chegado o dia de meu retorno para o Rio,

103
mas o carro que ficara de me buscar não apareceu. Resolvi sair a pé buscan-
do algum meio de transporte no caminho. Depois de uma caminhada de
12 quilômetros cheguei a uma aldeia cujo líder era meu conhecido de longa
data, que me convidou para ficar um pouco mais e almoçar com eles e que
depois tentaria me ajudar a chegar até a cidade. Fiquei sentado em um grande
banco na parte de fora da casa, numa espécie de cozinha, e dali avistava o que
se passava no pátio da aldeia. Eis que chega uma motocicleta guiada por um
rapaz branco que transportava no bagageiro um grande isopor com carne,
cerveja e refrigerante. Ele morava e trabalhava na cidade de Tangará da Serra e
era namorado da filha do líder da aldeia. O rapaz trouxe, também, uma bola
de futebol, e logo depois de entregar a carne e as cervejas para o futuro sogro,
organizou um time com os adolescentes e crianças da aldeia. O líder da aldeia
liga seu cd player no mais alto volume e me exibe sua coleção de cds de música
sertaneja. Começam os preparativos para o churrasco. Era domingo, natural-
mente. Enquanto isso, o rapaz branco e a filha do líder namoram sentados no
chão, dão as mãos, conversam e trocam brincadeiras e confidências. A eles se
juntam alguns parentes da moça e todos conversam animadamente. No meio
do grupo percebo que há um rapaz Paresi que tinha as sobrancelhas raspadas
e feitas com lápis preto, estava maquiado e exagerava em sua afetação femini-
na. Parecia ser um travesti. Não travestis saídos de rituais de travestismo à la
Naven ou de inversão de papéis sexuais. Era simplesmente um homem Paresi
que adotara sua condição de transexualidade. Pergunto para o líder da aldeia
quem era o rapaz e ele diz que é filho de uma Paresi que mora em outra aldeia
e estava ali passeando, mas que passava a maior parte do tempo na cidade.
Nesse momento, o líder começa a dizer para mim em um tom de discurso
que eu precisava ajudar os Paresi a conseguir os projetos, sobretudo, o de eco-
turismo, para mostrar às pessoas a cultura Paresi. Como acentua Clifford,
tradicionalmente a mudança foi interpretada como desordem, como caos, perda de
autenticidade, porém, nesta intermistura global de culturas de que nós somos teste-
munhas nesse século, a autenticidade das culturas pode não ser perdida não pelo modo
que imaginamos que elas sejam.

Assim, o cenário que via naquela aldeia parecia ter saído do livro Routes,
de James Clifford, que apontava para este mundo dos deslocamentos, do fa-
zer e refazer as culturas e os lugares, fazia-me quase acreditar, se também não
fosse mais uma narrativa, que poderia existir uma “Antropologia feita nos ae-
roportos” enquanto metáfora dos encontros, e que estava indubitavelmente
diante de um cenário pós-moderno na contemporaneidade Paresi.

104
 Simultaneidade: “qualidades do ser”, ontologia
e alteridade ameríndia28

...a partir do catolicismo, do evangelismo e da tradição


Baniwa pode surgir uma coisa diferente...
André Fernando Baniwa

André Fernando, personagem central de um filme sobre os Baniwa,29 põe


em evidência uma possibilidade de ser e estar no mundo que desafia o nosso
modo de pensar ocidental, em que tomamos como contraditórias as identida-
des baseadas em ontologias e percepções de mundos distintos. Portanto a ques-
tão que move o pensamento Baniwa – e por extensão o pensamento ameríndio
– não se apoia no princípio do “ser ou não ser”, mas sim em um princípio
no qual a diferença e a alteridade engendram uma complexidade que envolve
soma e síntese, adição e não contradição. O ser, nesse universo, evocando aqui
um conceito da antropóloga inglesa Marilyn Strathern, é divíduo e não indiví-
duo, isto é, resultado de processos, de relações culturais e históricas.
André Fernando experimenta, na simultaneidade, o complexo de sua
pessoa: presidente da Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi), vice-
presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn),
evangélico, liderança, intérprete de sua mitologia, sabedor do catolicismo,
implementador das estratégias de reflexão sobre uma política de desenvol-
vimento sustentável para a região, empresário de visão, quando fala da ex-
portação do artesanato do rio Negro para a cadeia de lojas TokStok, vítima
do veneno de seus inimigos que invejam sua posição de liderança. Perso-
nagem fascinante porque conjuga os discursos político, social, cosmológico
e mitológico para dar conta de suas relações com os demais índios e com
os brancos. Stella Oswaldo Cruz Penido nos apresenta nesse bem-sucedido
filme-etnografia esse personagem delicado e intenso, que condensa todos
esses ingredientes, e a partir dele nos ajuda a refletir sobre o significado de
ser e não ser índio hoje, na contemporaneidade.
28
A primeira versão deste texto foi publicada na Revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio
de Janeiro, v. 14, n. 1, 2007.
29
Koame wemakaa pandza kome watapetaaka kaawa – Baniwa, uma história de plantas e cura. DV-
CAM (72 min.). Direção de Stella Oswaldo Cruz Penido. Realização: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz,
Rio de Janeiro, 2005.

105
A pesquisa que deu origem ao filme foi realizada com os Baniwa dos
rios Içana e Aiari da região do rio Negro, entre 2002 e 2005. Os Baniwa são
formados por seis mil pessoas vivendo em 94 assentamentos na fronteira do
Brasil com a Colômbia.
O filme inicia com o benzedor Felício Fontes narrando o mito de ori-
gem dos Baniwa, a origem das nações indígenas que habitam a região do rio
Negro. Uma imagem da pedra de onde saíram todas as nações faz coincidir
cinema e mito na busca da materialização da narrativa. Felício complementa
dizendo que antigamente o benzedor era gente, agora é pedra. André Fer-
nando narra duas versões sobre o surgimento dos brancos. Na primeira, os
brancos surgiram da mesma maneira que os índios, da espuma branca forma-
da pela cachoeira. Portanto esses brancos “são nossos parceiros hoje”, os que
procuram conversar, ajudar e defender os índios, pois tiveram sua origem na
mesma água das corredeiras. A segunda versão enfatiza que os brancos sur-
giram de um episódio que envolveu traição, briga, morte e transformação.
Uma cobra grande tinha como amante a mulher de um índio. O índio mata
a cobra com uma flecha, da cobra surgem os vermes brancos, os quais dão
origem aos brancos. André Fernando conclui que esses são os “brancos que
nunca vão gostar de nós”, aqueles que invadem suas terras e que serão, eter-
namente, os inimigos: “a briga nunca vai acabar”.
As duas narrativas sobre a origem dos brancos procuram dar conta do
significado de ser branco hoje e das relações estabelecidas entre índios e bran-
cos. Uma distinção importante que esclarece sobre as diferentes imagens dos
brancos na contemporaneidade: aqueles que os índios conhecem pelo nome,
com quem compartilham os mesmos interesses políticos e que são simples-
mente seus amigos; e os outros que são considerados pertencentes a uma
categoria de alteridade, a denotar inimizade e antagonismo. Portanto, o mito
produz uma versão para a origem dos brancos querendo, justamente, dar
conta dessa nova relação com eles, que inclui a amizade, o companheirismo,
a partilha de projetos comuns, e escapa assim de uma percepção abstrata da
alteridade que os associava a Outros distantes.
Uma sequência de planos apresenta o cotidiano de uma aldeia Baniwa:
mulheres fazendo beiju, crianças carregando lenha, homens tocando flautas e
dançando em uma casa. André Fernando apresenta a cena a partir de um dis-
curso nativo-antropológico que procura descrever os Baniwa como uma socie-
dade composta por muitos clãs, enfatizando que entre eles existe forte hierar-
quia e que um deles é liderança da guerra e dos rituais. E continua a explicar tal
fenômeno da hierarquia político-social dos clãs tendo o seu próprio caso como

106
exemplo. Desde 1992 ele é uma das lideranças indígenas do rio Negro, fato im-
portante na conquista da demarcação das terras e, também, no incentivo para
que os índios trabalhassem em projetos de medicina alternativa tradicional.
A diretora pergunta: “Os mais velhos te veem como liderança?” André
Fernando diz que antigamente a criança nascia líder, bastava olhar para o seu
cordão umbilical para saber se ela seria chefe da aldeia, e que hoje a questão
da liderança é copiada dos brancos, a partir da noção política de eleição.
Reconhece que os chefes eleitos manipulam um conhecimento que não é
apenas de sua sociedade, mas do encontro e da relação com os brancos.
A professora Baniwa exemplifica a dualidade da tensa relação entre um
interior e um exterior, a partir da qual se produz o ser Baniwa contemporâ-
neo: as disciplinas ligadas aos brancos formam o núcleo comum (matemática,
português, ciências, geografia), aquilo que expressa o modo da “vivência” dos
brancos, seus costumes e suas crenças; já as diferentes histórias dos velhos são
consideradas como a “biblioteca”, os arquivos do povo Baniwa. Um plano de
um menino a pesquisar plantas tradicionais, os remédios, ilustra a cena. Os
alunos se transformam em pesquisadores de sua própria cultura, descobrindo
novos significados pelo diálogo com os mais velhos, num incessante reapren-
dizado de sua cultura. Assim, meninos e meninas aprendem, na escola, como
construir uma cultura Baniwa com base em percepções que, embora diferen-
tes, não são necessariamente contraditórias: meninos vestidos com máscaras
de papel apresentam cada um dos animais da floresta, como o tatu e a tar-
taruga, e logo em seguida manipulam computadores e rádios. A professora
conclui dizendo: “Nossa cultura está sendo modificada, mas não vai acabar”.
André Fernando assume o discurso político que se insere nessa nova
modalidade de contato com os brancos, em que é porta-voz de uma nova
condição social. Fala sentado em uma cadeira, tendo como pano de fundo
não a natureza amazônica real, mas uma pintura, uma grande tela sobre uma
pretensa “natureza amazônica”. Produz, assim, um discurso político-estraté-
gico-institucional que mostra para o branco que os índios estão organizados
social e politicamente, como produto direto da relação com os brancos, e
que o filme, ele mesmo, é mais uma das ritualizações dessas relações.
Nesse novo contexto das relações com os brancos surgem sequências da
arte Baniwa, a produção dos seus belos cestos para o mercado de consumo.
Imagens de um grande depósito acentuam a produção dos cestos em escala
industrial: eles são transportados por um carrinho e acomodados em pratelei-
ras. A cena seguinte mostra um casal numa grande loja, comprando o cesto
em importante centro urbano. André Fernando assume o discurso de um líder

107
empresarial e afirma que o artesanato deve ser bem feito, ter bom acabamento
(ser bem amarrado) e padrões de desenhos que representem a tradição Baniwa,
pois desse modo é possível colocá-lo no mercado de consumo. Para ele, é de su-
ma importância “acompanhar o mercado”, “saber mudar para se adaptar”, “se
não morremos”. Metaforicamente, o cesto parece encarnar a mesma questão
do ser Baniwa hoje, isto é, saber lidar com a “tradição”, ou melhor, repensar
e atualizar a “tradição” com base nas relações políticas, sociais e econômicas
com os brancos. Um homem de 75 anos relembra os tempos antigos, antes
de os padres salesianos chegarem à região do rio Negro. Recorda da aldeia de
outrora, e sua narrativa é coberta por imagens das décadas de 1930 e 1940,
com trechos de filmes da Expedição de Fronteiras e fotos antigas da Missão
Salesiana. O homem diz que não falava o português nem o nheengatu quando
encontrou os padres, em 1940; somente baniwa e cubeo, esta última a língua
de sua mãe. Narra as investidas dos padres para convencer sua mãe a deixá-lo
estudar na Missão, para aprender “as coisas dos brancos”. O padre dava uma
razão prática para o aprendizado do português: em pouco tempo os brancos
chegariam definitivamente à região, e se os índios soubessem falar esse idioma,
não seriam enganados. Seu pai era contrário e perguntava ao padre quem cui-
daria de seu filho se ele contraísse gripe ou sarampo. O padre respondeu que
lá existia a Santa Casa – e o entrevistado acrescenta que naquele hospital tinha
muito remédio: “Bons mesmo, não são como os remédios de hoje”. Quando
perguntado diretamente pelo padre se queria ir para a Missão, aceitou a pro-
posta e recebeu “dez ternos de roupas”. Seu discurso parece querer enfatizar
uma escolha, ou seja, ele foi de livre e espontânea vontade para São Gabriel,
para estudar e aprender as coisas do branco. Em seguida, aponta as contra-
dições dessa relação com os padres: “O padre fez isso porque queria educar,
civilizar, mas como em 1500, eles vieram é roubar a terra da gente”.
Tratando desse universo contraditório, os planos seguintes destacam os
índios ao redor de uma mesa com comida e bebida, rezando o pai-nosso.
Agora André Fernando se apresenta ornado com um grande cocar e inicia
discurso sobre o movimento indígena dizendo que “uma das pautas” era
justamente a medicina tradicional. Acrescenta que ela está viva, mas que
ninguém falou abertamente sobre a medicina tradicional até que a univer-
sidade se interessou pelo projeto. André explica para uma plateia Baniwa as
atividades do projeto e conclui (a partir de uma pergunta feita pela diretora
do filme) afirmando que as explicações vêm das histórias que contam para
explicar um acontecimento, por isso não existe uma palavra específica para
designar medicina tradicional.

108
Acrescenta que o projeto causou um ótimo impacto para os Baniwa,
pois hoje as pessoas discutem mais essas questões ligadas à medicina tradicio-
nal e as mulheres, os professores e os alunos estão pesquisando o tema. Cenas
de plantas e modos de uso se sucedem.
Surge mais uma vez o termo “antigamente”, a anunciar o discurso so-
bre a chegada dos brancos e os males do contato. Antigamente os Baniwa
tinham o controle das doenças, não havia médico, não havia epidemia, não
havia contato. Depois surgiram o sarampo e a catapora, que não eram doen-
ças dos índios mas “doenças importadas para cá”. Emerge então a questão de
como incorporar os conhecimentos do benzedor e do pajé nesse programa de
atenção à saúde indígena, que conta com médicos vindos do Rio Grande do
Sul, enfermeiros do Paraná e dentistas de São Paulo. Como é possível deixar
de incorporar o conhecedor tradicional, o pajé e o curador?
Surge um agente de saúde indígena enfatizando a seriedade de ser pajé:
“[para] estudar pajé, [a pessoa] tem que ser comportada mesmo, tem que
aguentar jejum de cinco anos, não pode comer assado, fazer sexo, não pode
tomar bebida quente e não pode brincar com outras pessoas”. Conta que se
convenceu da verdade curativa do pajé ao assistir uma sessão de cura: pode-
se limpar bem o local da sessão, mas quando o pajé cura, aparece uma pedra
ou um pedaço de pau que ele mostra como causa da doença. Foi assim que
ele passou a acreditar, mas ressalva que “não é todo pajé que sabe curar e tem
pajé que sabe enganar, quer ganhar e não curar”.
Entra em cena André Fernando encarnando o personagem de paciente
de um pajé. Ele entra na mata e tira uma raiz, que dá para André Fernando
usar com remédio contra mánhene. André Fernando explica que o diagnóstico
surge do conhecimento mitológico, das histórias. Se o pajé diagnostica o mal
como mánhene, sabe qual é a planta que cura. Mánhene é a “última doença do
mundo”, foi criada por Kowai, o demiurgo Baniwa. Kowai retirou um pouco
de cabelo de sua axila e o transformou em veneno para este mundo. E assim
como criou a doença, criou também seu remédio da cinza do seu cigarro.
André Fernando conta sua experiência com a doença, quando baixava
de canoa para a cidade acompanhando seu tio, que o curou dando-lhe uma
planta que trazia na canoa: “Era mánhene, não era outra coisa”. Já foi acome-
tido quatro vezes pelo mal. Conta que quando viajava de barco grande teve
um sonho no qual estava vivo, mas seu corpo se encontrava num túmulo.
Quando o barco parou numa cidade da Colômbia, ele foi a uma feira pró-
xima ao porto procurar algo para comer, e lá encontrou um pajé (não sabe
identificar de que etnia) que, ao vê-lo, sabia tudo sobre sua vida e lhe disse

109
que estava doente: os inimigos de André Fernando sabiam que ele estava
por lá e não queriam que ele retornasse. O pajé leu sua mão e pediu que ele
fizesse um trabalho para se livrar da doença e se curar. Surge assim a ideia do
veneno associada à inveja, à inimizade, à disputa política num mundo em
que as qualidades das relações implicam diretamente o bem-estar ou o mal-
estar físico-psíquico das pessoas.
O senhor de 75 anos aparece dizendo que o que impede que a Oibi vá
“para frente” são duas coisas: a inveja e o veneno. Acentua, assim, a lógica in-
dígena da percepção das relações sociais e suas relações com os poderes pato-
gênicos, que dão conta da complexidade do ser e estar no mundo Baniwa.
André Fernando discursa, como vice-presidente da Foirn, sobre o Pro-
grama Regional de Desenvolvimento Sustentável da Região do Rio Negro e
conclui que o movimento indígena trouxe uma “liberdade” que implica dire-
tamente uma não-discriminação: “Nós sofremos muita discriminação, mas o
movimento abre para a liberdade”. Na cidade, mostra sua casa de três quartos,
bem equipada e mobiliada. Conta que durante quatro anos morou na casa
do pai porque não tinha tempo para fazer sua própria casa. Diz que procura
sempre explicar para seus filhos o que significa o seu trabalho: “Estamos aqui
na cidade por um tempo, essa coisa de liderança pode mudar e, por isso, nós
comemos como Baniwa e falamos Baniwa. No caso de voltarmos para a aldeia,
as crianças não sofrerão um choque alimentar e cultural”. Continua refletindo
sobre as possíveis contradições entre seu discurso e sua prática: “Se eu luto por
uma escola diferenciada lá na aldeia, isso é uma contradição porque nós esta-
mos aqui na cidade... um risco para a liderança de falar e não praticar... filho
de uma liderança... não sabe falar Baniwa... isso seria muito ruim”.
Sua esposa diz que não se acostuma com a cidade, tem medo que os
carros atropelem seus filhos, que alguém faça mal a eles. Vai até o quintal
da casa e mostra remédios para dor de barriga. Pega outra planta e diz que é
contra a inveja. Dá para o seu marido usar dentro de uma bolsa quando vai
às assembleias indígenas e quando viaja, “porque muitas pessoas querem mal
a ele”. Acrescenta que, por esse motivo, André Fernando está sempre doente:
“As pessoas pensam que ele está ganhando muito dinheiro e, com inveja,
fazem mal. Ele tem dor de cabeça, o coração bate muito forte, fraqueza...”.
André Fernando diz ser previsível que qualquer pessoa, nesse trabalho de
liderança, passe por sofrimentos, seja perseguido ou atacado.
Para os Baniwa, “as pessoas só entram na coisa se tem um pagamento,
mas encarar o desafio de construir as coisas, não encaram não”. Portanto,
para esse líder o sofrimento faz parte de sua construção política, seja na

110
relação com o mundo dos brancos, ou na relação com o mundo indígena.
A professora afirma que, antigamente, apenas os velhos sabiam fazer o mal,
mas o faziam somente quando se tratava de algo muito grave. Hoje em dia,
acrescenta, “qualquer um por qualquer coisa está botando veneno, sopran-
do... a gente tem que ter sempre cuidado, não é como antigamente...”.
Um plano nos leva até uma igreja evangélica e ficamos sabendo que atu-
almente 80% dos Baniwa são evangélicos. Explica-se que a doutrina come-
çou a ser pregada por uma americana chamada Sophia Miller, que evange-
lizou primeiro os vizinhos Curripaco. E assim como o discurso sobre o pajé
exige provas de sua veracidade, a evangélica também foi testada. Duvidando
de seu poder, os índios envenenaram sua comida mas ela sobreviveu, dando
provas, então, de que era poderosa. Como consequência, o evangelismo im-
perou entre os Baniwa. O próprio André Fernando se assume evangélico. A
diretora do filme pergunta se há conflitos entre as práticas dos evangélicos,
os católicos e a cultura tradicional Baniwa. André Fernando vê a diferença
cultural não como contradição mas como adição – “a partir do catolicismo,
do evangelismo e da tradição Baniwa pode surgir uma coisa diferente” – e re-
conhece que todos erraram quando não procuraram compreender a tradição
Baniwa e integrá-la ao projeto evangélico ou católico.
O que se percebe no discurso de André Fernando, o que nos leva a refle-
tir sobre a nova configuração das relações entre índios e brancos no Brasil, é
que há uma agência no processo de construção dessa relação com o outro: o
evangelismo agora é deles, não é simplesmente algo de fora; a busca da tra-
dição, das plantas que curam, não é apenas de um projeto universitário, mas
é parte dos interesses dos Baniwa, que incorporam e refletem essas relações
a partir de um simbolismo complexo que leva em conta inúmeros fatores:
história das relações interétnicas, cosmologia Baniwa, relações sociopolíticas
com o interior e o exterior da sociedade.
Os planos finais do filme demonstram a complexidade de ser Baniwa ho-
je, a possibilidade de pensar em conjunto, as diferentes ontologias que dão
significado ao mundo e que constroem de forma tensa, porém harmoniosa, a
pessoa Baniwa: evangelismo, pajés, venenos, política, cidade e floresta. O pajé
conta que sonhou com André Fernando e que, em seu sonho, o líder estava no
meio de um rio nadando quando um peixe o pegou. Confirma que sua doença
é “um veneno para matar mesmo, mánhene”. Conclui que se existe o veneno e
também sua cura, justificando assim seu trabalho: “Alguma pessoa cura, nem
todo mundo cura... só na pajelança. A gente entra na boca dele e pega lá, ele

111
lá dentro, o mánhene”. Descreve o uso do paricá, que é crucial para ver onde
está a doença. Cheira-o quatro vezes, e na última vê tudo: onde começa, o que
deram para ele, o que está matando seu paciente, o que o está envenenando.
O pajé diz que vai ajudá-lo com rezas. André Fernando descreve seus
sintomas: tem dor de cabeça e o coração treme. Conclui que a doença de-
saparece com o tratamento, mas o inimigo, jamais. O pajé sopra André
Fernando com a fumaça do tabaco e o benze com rezas. Termina dizendo:
“É somente isso, a doença é forte, mas não vai acontecer nada”.

112
Cromatismo: a semelhança e o pensamento
cromático ameríndio30

As diferenças se tornam infinitesimais, tendendo a se con-


fundir em uma quase identidade; e encontra-se aqui a imagem
precedente evocada pelo filme cinematográfico que decompõe o
movimento em unidades tão pequenas que os quadros consecuti-
vos tornam-se indiscerníveis e parecem se repetir (...)
Lévi-Strauss, 1971: 602.

Iniciemos este capítulo examinando a noção Pirahã igiábisai, que pode-


ria ser descrita como o “parecer” ou a “semelhança”, importante concepção
que os pirahã31 utilizam na construção de suas classificações sobre os seres e
as coisas existentes no cosmos. Igiábisai estabelece a relação entre coisas, não
por oposição diferencial, mas por ligações baseadas em critérios de semelhan-
ça, de contiguidade. Usando o princípio do “parecer”, os pirahã relacionam
as diferentes terras do mundo à terra que habitam, os animais existentes nos
demais patamares aos que existem em seu patamar, os seres (abaisi, kaoaiboge
e toipe) das outras terras ao ser ibiisi, ser humano, gente. A noção de igiábi-
sai, de “parecer”, põe em relação todos os elementos presentes no cosmos,
evidenciando um modo singular de o pensamento apresentar o mundo em
que tudo se “parece” porém nada é exatamente igual.
Os animais, a vegetação e os seres dos demais patamares do cosmos são
distorcidos, reduzidos, aumentados, prolongados, estendidos e transforma-
dos. Efeitos em suas superfícies que propõem desafios a uma classificação.
Os animais e os seres que lá habitam são concebidos como extensões dos
que existem no patamar de referência, no mundo pirahã; por isso, as pessoas
dizem que a anta do patamar de cima é branca e grande, a do patamar de
baixo é vermelha e pequena, mas não deixam de ser “antas”; o rio é redon-
do como um lago, mas é “rio”; a água é grossa e doce, mas continua sendo
“água”. Mas se existem coisas “parecidas” com nomes diferentes, o que faz da
30
Este trabalho foi originalmente apresentado no Encontro da Anpocs (2001), em Conference on
Hunting and Gathering (Chags, 2002, Edinburgo), e na Reunião de Antropologia do Mercosul
(2003, Florianópolis).
31
Povo de língua Mura que habita a Amazônia meridional mais especificamente o rio Maici e Marme-
los, afluente do Madeira. Sua população é de 300 pessoas espalhadas em 7 localidades.

113
água, “água”, do rio, “rio”, da anta, “anta”? Essa atribuição de identidade es-
tabelecida entre elementos do patamar de referência e elementos que existem
nos demais patamares faz com que os patamares possam se comunicar por
meio de uma operação baseada na semelhança, ao mesmo tempo que essa
semelhança constitui as diferenças.
Desse modo, nas descrições dos demais patamares, o recurso utilizado
para relacionar coisas distintas é o princípio igiábisai (“parece”), termo que
surge com bastante frequência quando se escuta a língua pirahã. Funciona
como um elo entre objetos diferentes, permitindo, assim, que se construam
novas relações e se produzam novos sentidos: a areia da praia é grossa e “pa-
rece” farinha; a areia da praia é preta e “parece” café; a nuvem “parece” papel.
O “parecer” faz com que as coisas somente ganhem sentido pela compara-
ção, pela relação. Assim, é possível tornar uma anta de cima “parecida” com
uma capivara do patamar de referência. Os animais que vivem nos demais
patamares são “parecidos” aos encontrados no patamar pirahã. Através de
um processo singular, pela marcação de semelhança entre os animais dos
respectivos patamares, estes se tornam diferentes. Os animais são “pareci-
dos”, não são iguais, ou seja, os animais dos demais patamares possuem ca-
racterísticas próprias, sinais, que os distinguem dos animais encontrados no
patamar Pirahã. Os animais podem se juntar aos outros animais a partir de
semelhanças, estabelecendo uma continuidade. Diferença não significa, no
pensamento pirahã, não-igualdade, do mesmo modo que semelhança (igiá-
bisai = “parece”) não quer estabelecer identidade entre coisas.
Essa forma do pensamento proceder instaurada pelo “parecer” nos reme-
te a uma outra noção, evidenciada por Lévi-Strauss nas mitológicas quando
procurava traçar as linhas mestras de um pensamento ameríndio, qual seja,
o cromatismo, definido a partir de sua conceituação musical,32 relacionado

32
Faço um pequeno resumo sobre o cromatismo na música a partir da leitura de alguns textos: no
século XX, Schoenberg e seus discípulos levaram adiante as conquistas wagnerianas e abandonaram
a tonalidade, abolindo a hierarquia entre os graus da escala. Assim, eles tinham os doze semitons da
escala cromática, a quem atribuíram direitos iguais, sem tônica nem dominante. Por ser a negação da
tonalidade, o sistema foi chamado de atonalidade. O cromatismo, traduzido em “atonalidade”, pode
produzir uma impressão anárquica ao propor que os 12 semitons da escala cromática tenham o mes-
mo valor. A organização do material sonoro fornecido pelo sistema tonal resultava numa procura de
equilíbrio e linearidade do discurso musical. Como consequência dessa procura de equilíbrio, a obra
clássica se apresentava como sendo de natureza totalizante e centralizada. Por esse motivo, as melodias
atonais ou cromáticas podem parecer desconcertantes a um ouvido habituado com a música tonal, dos
grandes intervalos. O cromatismo estabelece como necessário o uso das notas intermédias da escala, os
semitons, que, na música diatônica, permanecem à margem da configuração normativa. Ver Barraud
(1946, 1975); Bennett (1986); Enciclopédia Einaudi (1985).

114
aos pequenos intervalos, às contiguidades. Lévi-Strauss, ao se deparar com o
material mítico sul-americano, acentua a dialética entre os pequenos e gran-
des intervalos, ou, para empregar termos apropriados à linguagem musical,
entre o cromático e o diatônico. Embora acentue que a intenção última do
pensamento estaria ligada ao estabelecimento dos grandes intervalos e das
oposições mais fundamentais, isso é, ao modo diatônico, reconhece, também,
que o cromatismo é recorrente no pensamento ameríndio. Nessa acepção, o
aspecto cromático que o pensamento ameríndio às vezes assume é considera-
do por Lévi-Strauss como um “embelezamento” do diatônico (2004a: 286).
Acentuando a relação entre os pequenos intervalos, o pensamento ameríndio
passa a operar a diferença através da contiguidade e da semelhança, encadean-
do uma série de mediações até atingir os grandes intervalos. Viveiros de Castro
chamou atenção para a mesma questão dos pequenos intervalos e das media-
ções, ao caracterizar a cosmologia Yawalapiti como tendo uma propriedade
contínuo-gradativa expressa na “ênfase sobre uma organização espacial con-
cêntrica (versus uma organização diametral), na não-separação radical entre as
esferas da natureza e da cultura...” (Viveiros de Castro, 1987: 51).
Postas as questões mais gerais, quais sejam, o princípio igiábisai que
opera a partir da semelhança, o problema dos pequenos intervalos e o cro-
matismo e a propriedade contínuo-gradativa de estruturação de algumas
cosmologias (questões que serão retomadas no final deste capítulo), passo,
agora, a apresentar a etnografia pirahã.

O parecer
Inicio por uma exposição mais detalhada do significado de igiábisai e
seu contexto linguístico.
“Igíábi é um verbo (EVERETT, K, 1988: 102). Vejamos como é usado pa-
ra descrever um objeto ou para estabelecer comparações entre coisas ou seres:
“agí nahióo “ogi ái “i”i pee “igiábií
caminho avião grande ser enfático água parecer
“A pista é grande, parece o rio”
kappiga”ai giisai “igiábií
papel isso parece
“Isso parece papel”
giopaí gáihi kapió”io “igiábií
cachorro aquele outro parece
“Aquele cachorro é parecido com o outro”

115
O contraste com outro conceito, o de “aisigiai, nos ajuda a entender
melhor o significado do “parecer”. “Aisigiai define não coisas que se parecem,
mas as próprias coisas:
gahio “aisigiai
avião mesmo
“O mesmo avião, não outro, esse aí”
kagahoe “aisigisai
canoa mesma
“A mesma canoa, não outra, essa aí”
Outras noções, como as de opihi e ege, nos ajudam a precisar melhor o
princípio “igiábisai. Opihi quer dizer “sombra”. Quando querem descrever
a sombra de alguma coisa, usam o sufixo pehi; por exemplo: ooopehi (mão-
sombra), iiiopehi (árvore-sombra). O termo também pode ser empregado
em referência a pessoas: Maisopehi, a sombra de Maiso. Opihi, numa com-
paração feita por um informante, é como se fosse uma “marca” superposta
a alguma coisa, uma extensão de uma matéria sobre outra, como o efeito da
tinta sobre o papel. Mas o ponto que parece fundamental é a ideia aí con-
tida de identidade entre opihi, a sombra, e a matéria que a produz. É nesse
sentido que as pessoas definem a sombra como uma extensão da matéria,
utilizando-se de outra noção, a de ege. Ege significa “próprio”, “mesmo”. É
usado, também, em igual contexto que sombra (opihi), mas seu poder con-
ceitual é mais preciso, pois faz a associação direta entre a matéria e a marca
que está sendo produzida. Diz-se da sombra de Maiso: Maisoege, isso é, não é
outra que a própria Maiso. Essas noções de sombra e de mesmo, em contras-
te, ajudam a precisar o princípio “igiábisai, o de “parecer” ou “semelhança”,
atribuindo-lhe um sentido de não significar “o mesmo” ou “o próprio”, mas
ser um recurso para estabelecer relações entre coisas distintas.

Descrições da semelhança
Veremos a seguir na descrição dos patamares como o princípio de “pare-
cer” expressa uma concepção da cosmologia.33 O xamã, ao narrar sua percep-
ção dos patamares, opera esse princípio que dá sustentação e possibilidade
de presentificá-los.

Em trabalhos anteriores tratei de forma mais completa da descrição do cosmos, ilustrando-a com
33

maior número de exemplos (Gonçalves, 1993, 1993b, 2001).

116
O patamar subterrâneo foi descrito por um xamã como um dos mais
belos do Cosmos, devido ao grande número de árvores frutíferas: a floresta
“parecia” um pomar repleto de laranjas, abacaxis, mamões, goiabas, cajus e
inajás pequenos e saborosos.
O patamar de cima é frio, dispõe de grandes praias, um rio largo e ra-
so, de água vermelha e “parece o rio Madeira”, mas repleto de corredeiras e
cachoeiras fluindo em sentido contrário aos rios do patamar Pirahã. Ali so-
mente as castanheiras se destacam: pela sua altura sobressaem na vegetação,
que é toda baixa. Igagai, ser que habita esse patamar, atribui às castanheiras
a designação etoipohoa, diferentemente dos Pirahã, que chamam de tsehe as
castanheiras de seu patamar. Diferentes designações, pois, na percepção Pi-
rahã, são castanheiras distintas, uma branca e outra verde, característica que
não influi no fato de se “parecerem” com castanheiras. Igagai é alto, tem
olhos fundos, uma barba tão comprida e cerrada que “parece” não ter boca;
Igagai come, também, o urubu que no seu patamar “parece” o mutum.
No segundo patamar subterrâneo, a referência é um ser do sexo femi-
nino: Eohoe. Ela não tem pelos no corpo, é careca, usa um “aplique”, um
chapéu denominado mooge que “parece cabelo”, uma abundante cabeleira
vermelha que cobre todo o corpo, da cabeça aos pés. Trata-se de uma mulher
gorda, alta, corpulenta mas sem seios, com quadris largos, fartas coxas, uma
gigantesca vagina, rosto anguloso com pequenos olhos e duas orelhas verme-
lhas. Os olhos de Eohoe são tão pequenos que “parecem” os olhos do boto
que habita o patamar Pirahã. Eohoe se alimenta basicamente de uma fruta
que “parece” o caju. Cultiva grandes roças de caju, que chama de miuua: um
caju gigante. Ingere somente alimentos de cor vermelha; esta é a cor que, do
seu ponto de vista, torna um alimento comestível. No entanto, os alimentos
que ingere são, originalmente, de cor branca, como o caju. Para contornar
esse problema, utiliza-se do urucum para tingi-los. Usa um terçado gigante e
uma flecha grande, em forma de arpão. Fabrica, também, uma linha de pes-
ca, que “parece náilon”. O que resta dos vegetais são árvores altas, sem folhas,
retas, “parecem tábuas feita com moto-serra”. A terra é branca, designada
pelo nome apoabi. Os lagos são pequenos, denominados tsipisi; têm a água
tão doce que “parece mel, uma água grossa”. As praias são estreitas e de areia
grossa, “que parece farinha”, de cor vermelha.
Ao se referir ao rio do primeiro patamar subterrâneo, descrevem-no co-
mo um rio que não é comprido, é redondo, “parece” um lago com pouca
água. A floresta é formada por árvores grossas, baixas e brancas.

117
Vê-se que a ênfase do pensamento Pirahã não recai nas antíteses, opo-
sições ou contrastes de ideias. O igiábisai opera as comparações, enquanto
figura de linguagem, aproxima as coisas e os seres através da semelhança e
contiguidade. O princípio “parecer” permite uma apresentação exuberante do
Cosmos, em que palavras como comprido (pi”i), curto (tseioíhii), estreito ou
pequeno (oíhi/kóíhihi), fino (aaíbi), grande (ogií), grosso (ibigái) abundam,
destacando a multiplicidade de comparação de formas dos seres e das coisas.

Parecidos, mas diferentes


Iniciemos por um resumo da cosmografia Pirahã: 34
A geografia do Cosmos pirahã não foge às representações correntes em
muitas das sociedades das terras baixas da América do Sul: o Cosmos repre-
sentado por meio de “pavimentos sobrepostos” – céu, terra e subterrâneo.O
Cosmos pirahã é apresentado estratigraficamente: camadas de terra que, so-
brepostas umas às outras, produzem verticalmente planos paralelos que não se
comunicam a não ser pelos seres que os habitam. Cada um deles é habitado
por determinados seres. Nesse modelo, o patamar intermediário é habitado
exclusivamente por seres ibiisi; os demais o são pelos abaisi e pelos ibiisi, exce-
to o patamar imediatamente abaixo do intermediário, que abriga, também, os
kaoaiboge e os toipe. Ibiisi é uma designação genérica para “ser humano”: são
ibiisi os Pirahã, os brancos e os outros índios. O que define um ibiisi é o fato
de ele possuir um corpo com uma forma específica. Os abaisi têm a mesma
forma geral dos ibiisi (são antropomorfos), mas é imperfeitamente realizado.
À exceção do patamar intermediário, habitam as demais camadas de terra.
Os kaoaiboge e os toipe são transformações póstumas dos ibiisi, o que garante
um destino post-mortem a um ibiisi. Estão associados à morte e à escatologia
individual, habitando o patamar imediatamente abaixo do intermediário.
O ibiisi é produto de uma relação entre a mulher e os animais e/ou ve-
getais. A mulher experimenta o efeito de uma ação perpetrada pelos animais
e/ou vegetais, ação não completada, malsucedida – “não passou de um sus-
to” –, que, por isso mesmo, dá vez à concepção, produzindo um novo ibiisi.
O ibiisi, assim constituído, poderá sofrer outras transformações que, em se
concretizando plenamente, irão originar um abaisi, ser cuja forma corporal é
o resultado de uma ação completada, bem-sucedida. Os ibiisi poderão ainda
dar origem a dois seres: kaoaiboge e toipe, que encarnam, por assim dizer, o
negativo e o positivo da ação e da reação. Os kaoaiboge são as presas poten-
34
A cosmografia pirahã foi descrita e analisada em Gonçalves, 1993, 2001.

118
ciais, enquanto os toipe são os predadores. Vemos, assim, uma continuidade-
gradativa entre os seres do cosmos a partir de sua forma corporal ou da
corporalidade: do ibiisi (corpo humano) ao kaoaiboge/toipe (corpos-almas),
passando pelos abaisi (corpos imperfeitos).
Se os ibiisi podem ser encontrados em todos os patamares, os Hiaitsíihi se
diferenciam dos demais por habitarem o patamar intermediário. O que há de
comum entre os patamares é serem compostos pela mesma substância, terra,
e o fato de todos serem habitados por seres ibiisi. Assim, em cada uma das
camadas do Cosmos vive “gente” que se “parece” com os Pirahã. Da mesma
forma com que se autodenominam Hiaitsíihi, significando um tipo de ibiisi –
aquele que ocupa o patamar de referência –, atribuem nomes aos demais ibiisi
que compõem o Cosmos: Tseaiso é ibiisi do segundo patamar celeste; Ahua-
ehiai é o do primeiro patamar celeste; e Pauai e Sahiuge são, respectivamente,
os ibiisi do primeiro e segundo patamares subterrâneos. Nessa concepção es-
tratigráfica da cosmografia Pirahã opera o princípio da semelhança, o parecer
funda essa percepção. Todos os patamares têm terra, água, animais, humanos,
os ibiisi, e seres abaisi. Todos se “parecem” como dizem os Pirahã mas não
são extamente iguais. Em cada patamar existem os seres humanos, os ibiisi,
ibiisi que se “parecem” mas são necessariamente ibiisi diferentes. A existência
desses ibiisi é uma pré-condição para a existência do Cosmos: onde há terra,
há ibiisi. Se insistimos em perguntar sobre esses outros ibiisi, as pessoas não
se recusam a responder, dizem simplesmente: “Hiaitsíihi igiábisai” (parecem
Pirahã), porém, recebem nomes e classificações diferenciadas. Essa multipli-
cidade de ibiisi no cosmos parece ter dois significados: primeiro, a garantia
de uma homogeneidade, de uma mesma base, daquilo que se assemelha, que
liga; uma referência necessária sobre a qual se instaurará a diferença. Segun-
do, em decorrência disso, a produção de uma multiplicidade através da qual
essa diferença se ramificará e se desdobrará. Os Pirahã insistem em acentuar e
evidenciar toda e qualquer diferença, mas para isso, colocam como necessário
um referencial, uma semelhança, algo que opere a partir de uma base de com-
paração, nesse caso, os ibiisi e o patamar dos Hiaitsíihi. Aqui, o conceito de
ibiisi que liga os diferentes patamares parece ser um princípio, uma garantia,
para se construir um Cosmos diferenciado.
Os Pirahã têm duas formas genéricas para classificar os demais ibiisi que
habitam o seu patamar, os outros índios e os brancos. A primeira forma, Hiait-
síihi kapiú”iai (isso é, Hiaitsíihi (pirahã)/outro), é empregada para designar
genericamente as demais sociedades indígenas. A outra designação é aooe, uti-
lizada para os brancos, no sentido de não-índio, que não se “parece com os
Pirahã”, podendo abranger os americanos, alemães, italianos, brasileiros.

119
Ibiisi são seres que têm uma forma corporal específica (completa e per-
feita), são uma espécie de modelo para a constituição das formas e dos seres
que estão no Cosmos: os abaisi são seres imperfeitos em sua forma corporal.
Os abaisi são seres deformados, seus corpos são construídos pela comparação
com os corpos dos ibiisi, pela semelhança que acentua a diferença. Ao falarem
sobre os abaisi, as pessoas descrevem suas diferenças em relação aos ibiisi,
acentuando-lhes os hábitos alimentares e os defeitos físicos. Observa-se, as-
sim, que o estabelecimento da diferença e semelhança entre os ibiisi e os abaisi
segue o mesmo princípio da distinção entre os animais que habitam os pata-
mares do Cosmos (esse tema será tratado no próximo item deste trabalho).
O contraste entre os abaisi e os ibiisi é estabelecido a partir das marcas
corporais que os primeiros portam. Usa-se como parâmetro a imagem corpo-
ral dos ibiisi. Assim, o abaisi Iabuhua tem o pé curto, não possui o peito do pé.
Ooge tem a mão grande. Ioigaitahoa tem pelos compridos nos dedos da mão.
Uaauge tem os dedos da mão grossos. Kohoibiihi tem um pé virado para trás,
o que o faz mancar. Ahoetoi não tem uma parte da perna. Hiabi não apresenta
uma das falanges nos dedos da mão, o que faz parecer que seus dedos foram
cortados. Koiohoa não tem uma das nádegas. Hiape tem os testículos peque-
nos. Aibigai tem o pé gordo, inchado. Ebahui”ui tem cheiro forte, “parece per-
fume”. Piau não dispõe de uma das mãos. Maigepoha tem pelos na barriga e
não possui um dos dedos do pé. Aitoe não tem um pedaço do pé. Apisuge exibe
um braço inchado. Apaitahoasai tem o cabelo bem comprido e de cor verde;
o nome acentua uma particularidade de sua forma corporal (apaitai = cabelo;
ahoasai = verde). Taoaaoohoe é um abaisi desprovido da cartilagem do nariz. A
maioria dos nomes que os abaisi possuem descrevem seus defeitos físicos.
A classificação dos abaisi com base numa referência aos ibiisi privilegia,
por um lado, o que os ibiisi têm, apontando para uma falta nos corpos dos
abaisi e, por outro, aponta para o que os abaisi têm e que, por sua vez, os
ibiisi não possuem.
Embora abaisi e ibiiisi sejam seres distintos, é possível construir uma
aproximação entre eles pelo “parecer” em que um ibiisi se parece com um
abaisi: seja no aspecto da forma corporal enquanto semelhança, seja no as-
pecto de suas qualidades intelectuais de “fazer as coisas bem feitas”. Os Pi-
rahã, hoje, admitem que existe um tipo de ibiisi no Cosmos que “sabe fazer
tudo devagar” e que produz as coisas bem feitas. São os diaponeso (“japo-
neses”) que “sabem fazer bem as coisas”. Toda vez que veem uma máquina
fotográfica, um gravador, um motor de popa, um relógio, exclamam: “ja-
ponês faz bem devagar, sabe fazer bem as coisas”. Comparam a capacidade

120
dos japoneses com a dos demais ibiisi não Pirahã que conhecem, brasileiros,
americanos, chegando à conclusão de que os japoneses encarnam a expressão
máxima da ideia do experimento e do fazer devagar, do fazer bem as coisas.
Os japoneses “parecem” abaisi.
Do mesmo modo que o conceito de abaisi, os conceitos de kaoaiboge e
toipe se encarnam, também, em seres. Os kaoaiboge e os toipe são os seres que
mais se “parecem” com os Hiaitsíihi: “Eles têm pernas, braços, sabem pescar,
“parecem” ibiisi”. No processo de transformação dos seres kaoaiboge e toipe
observa-se também o mesmo recurso à semelhança e ao parecer. Os Pirahã
materializam o processo de transformação em kaoaiboge e toipe da seguinte
forma: cada nome de abaisi que um ibiisi porta dá origem a um kaoaiboge e
um toipe. Os ibiisi ganham muitos nomes de abaisi durante sua existência e,
em função de cada um desses nomes, podem se transformar. Assim, um ibiisi
se prolonga em múltiplos kaoaiboge e toipe. Desde o momento em que um
ibiisi tem um nome de abaisi, os xamãs passam a acompanhar suas transfor-
mações. Os kaoaiboge e toipe, em estado de latência, liberam-se nos momen-
tos em que o ibiisi está no estado de não-consciência, ou seja, enquanto está
dormindo ou quando está acometido por uma grave doença.
Existem dois processos de transformação responsáveis pela produção dos
kaoaiboge e dos toipe. O primeiro se denomina igaitai igiábisai (virar o pare-
cido, não o mesmo, visto que é outro kaoaiboge) e o segundo é denominado
igaitai kapiú”iai (virar outro ou diferente). Kapiu”iai (outro) ou hiapiú”iai
(no sentido de alguém, outro) são derivados da palavra ka – píoi (ka -pessoa;
píoi– outro) (Everett, K. 1988: 33).
Tais processos de transformação entram em operação em momentos dis-
tintos da fase de transformação dos kaoaiboge e dos toipe. Vejamos. O fato
de um ibiisi possuir um nome de abaisi garante que ele deixe de ser “apenas
corpo” e possa gerar o par kaoaiboge e toipe. Desse modo, existe um kaoaibo-
ge e um toipe para cada nome de abaisi que o ibiisi porta. O kaoaiboge sofre
agressões por parte dos toipe, não daquele toipe que é seu par e que está,
também, associado ao mesmo nome de abaisi, mas por toipe de outros ibiisi,
com outros nomes de abaisi. O kaoaiboge vive três vidas ou pode sofrer três
mortes; a cada uma delas, transforma-se, pelo processo de igaitai igiábisai
(virar parecido), em um outro kaoaiboge, até que a terceira morte o trans-
forma em onça pintada. Os Pirahã descrevem as sucessivas transformações
dos kaoaiboge até chegarem a ser onça imortal. O sangue é a substância que
permite a transmutação de uma forma em outra. Os kaoaiboge vivos pegam
um pouco do sangue daquele que morreu e vão passando-o, em camadas,

121
sobre uma tábua larga, de forma a desenhar um corpo, depois o retiram da
tábua e sopram por um orifício, enchendo-o de ar. Sopram (apiigé; ap – lá-
bio; iigé – juntar/fazer) (kaoaiboge apiigé – “fazer kaoaiboge do sopro”) até
a massa de sangue se transformar num novo kaoaiboge, epara que possam
respirar por conta própria. Quando escutam o suspiro, sinal de vida, batem
duas vezes nas costas do novo ser para que ele fale. A primeira frase que diz
é: “tse soa kapiú”iai” – “eu agora sou outro”. Porém, produzido pelo processo
de tornar-se parecido, isso é, pelo princípio igaitai igiábisai.
O toipe inicia suas transformações de outro modo. A primeira morte
o transforma, através do processo de igaitai kapiú”iai (virar outro), em um
ser denominado kobiai. Trata-se de um super-toipe, mais agressivo. O kobiai
quando morre, através, também, do processo de “virar outro”, transforma-se
em kaoaiboge, e, daí por diante, sofre as mesmas transformações do kaoaibo-
ge: experimenta três mortes sucessivas, até se tornar onça.
Essa associação da morte às transformações relacionadas ao suporte cor-
poral parece importante, pois enfatiza uma noção de corporalidade e de me-
tamorfose presente e constituinte dos processos de transformação que se dão
a partir do ibiisi, suporte corporal por excelência, por onde todas as transfor-
mações se iniciam e por onde os distintos seres do Cosmos têm origem.
Ainda outra diferença estabelecida pela semelhança pode ser observada
entre os toipe, transformação do corpo depois da morte, e os Parintintin,
sociedade indígena vizinha dos Pirahã. Os Parintintin, vizinhos dos Pirahã,
são designados pelos termos toipehi (“ele toipe”) ou toipeigiabisai (“ele pa-
rece com toipe”). Apesar de haver a marcação que permite estabelecer uma
diferença entre os toipe enquanto transformações dos Pirahã e os toipehi que
são os Parintintin, é comum as pessoas se referirem a ambos utilizando-se
de um mesmo termo, chamando-os, simplesmente, toipe, deixando, assim,
que o contexto do discurso faça a diferenciação. Vê-se, assim, que os toipe
transformações e os toipe ibiisi, os Parintintin, são pensados da mesma for-
ma: sempre prontos para a guerra, pintam-se de preto, matam e comem seus
inimigos, apesar de serem diferentes na essência.
Portanto, os seres ibiisi, abaisi, kaoaiboge e toipe se equivalem, o “pare-
cer” produz as semelhanças entre as coisas, pela comparação, pela relação.

Semelhantes e misturados
Os animais que vivem nos demais patamares são “parecidos” com os do
patamar pirahã. Situando-se nesse plano, as pessoas dizem que o queixada do
patamar de cima parece a capivara de seu patamar, por ter o mesmo tipo de

122
pelo; a anta lá de cima, à diferença daquela do patamar intermediário, tem
o couro branco e é pequena; a piranha que vive no rio de cima é grande, de
escamas pretas, o que a faz “parecer” com o peixe carapitanga, que habita o
rio do patamar Pirahã.
Por apresentarem semelhanças que estabelecem diferenças, os animais
ganham distintas classificações. Assim, maiose, designação para o peixe pi-
ranha, não se aplica à piranha do patamar de cima, designada iaiiai”o. O
tucunaré é chamado pelos Pirahã de kagepai; no patamar de cima é chamado
de kaau”ge, em função de ser muito grande e por “parecer” com o pirarucu
do patamar Pirahã. A onça preta lá de cima tem o corpo grande e o seu couro
parece com o do veado. A onça vermelha é chamada pelos Pirahã de miisai;
lá em cima tem as costelas grandes e o traseiro pequeno, por isso é designada
natohoa. A onça pintada do patamar de cima “parece” o maracajá do patamar
intermediário. Um informante acrescenta que “os peixes lá de cima são di-
ferentes: o pacu tem cabeça comprida, o tucunaré tem cabeça curta, a traíra
tem a cabeça pontuda. A paca é tão grande que parece um porco do mato.”
Os nomes atribuídos aos animais dos demais patamares do Cosmos sig-
nificam, evocam sua forma corporal, dão conta de sua superfície. Tomemos
o urubu como exemplo. O urubu preto, natural do patamar Pirahã, é desig-
nado kaitsiabi. Na terra de cima, existem dois urubus, ou melhor, animais
que se “parecem” com os urubus do patamar Pirahã: um que tem a cabeça
preta, designado pelo nome de apabiopai (“cabeça preta”), em função deste
traço físico; o outro tem penas brancas e bico vermelho, designado como
etaoiibii (“nariz vermelho”). Quando esses animais são vistos no patamar
Pirahã, as pessoas dizem que atravessaram a terra de cima para passear aqui
em baixo. Por passearem, vez por outra, no patamar Pirahã, os urubus rece-
beram outras classificações: o de “cabeça preta” é classificado por Opo, de-
signação que acentua o fato de não ter orifícios laterais na cabeça; o branco
é classificado pelos Pirahã pelo nome apaose, descrevendo, assim, uma de
suas características físicas: a de não possuir penas na cabeça. O exemplo do
urubu põe em relevo a maneira como os pirahã constroem a diferença entre
os animais que habitam os distintos patamares do Cosmos, demonstrando o
uso do conceito igiábisai (“parecer”).
No primeiro patamar subterrâneo, a sucuriju é preta e chamada de
Miopai”ai (“preta”); a onça pintada tem maior número de pintas pretas, pos-
sui um olho grande: daí seu nome ser kosogiai (“olho grande”). À exceção de
alguns animais, como o cachorro, a arara e a sucuriju, a maioria dos animais
desse patamar é de pequeno porte. Os queixadas habitam os campos e são

123
pequenos; designados por etaohoasai (“focinho comprido”). O cachorro é
grande e parece uma anta; mora na floresta. É chamado de aaoehiai (“pata
grande”). A onça se assemelha a um gato-do-mato. As sucurijus são grandes
o bastante, permitindo que os kaoaiboge façam canoas com seu couro. A
galinha é vermelha, pequena, “parece” inhambu, seu habitat é a floresta. As
cobras são tão pequenas que não crescem mais do que 10 cm, “parecendo”
minhocas. A arara é tão grande, que pode capturar e comer os kaoaiboge e
toipe que lá vivem. É verde, tem garras gigantescas e alça voo com um kaoai-
boge preso às suas garras. Os tucunarés têm a cabeça grande e o corpo peque-
no, são designados kagepai apaoge (“cabeça grande”). O pacu é chamado de
peepogapai, alimento preferido dos kaoaiboge. A piranha é grande, sem den-
tes, “parece” o peixe carapitanga. Apaohoasai (“cabeça verde”) é o nome dado
ao surubim, que é grande, com olhos e boca pequenos. Tsiapauge (“traseiro
grande”) é o nome que os kaoaiboge atribuem à anta de seu patamar; possui
a pele vermelha, o traseiro grande e as unhas de um vermelho tão vivo, que
as pessoas dizem: “parece que a anta pinta as unhas com esmalte”. Um dos
abaisi do patamar subterrâneo faz essa anta gigantesca, “tão grande, que sua
carne pode ser consumida durante três meses”. Os toipe, apesar de viverem
no mesmo patamar dos kaoaiboge, utilizam-se de outra classificação para os
mesmos animais. Dessa forma, a anta, que eles designam pelo nome de Tsia-
pauge, é chamada pelos toipe de Koge (“olho grande”).
O que parece tornar os animais distintos é a maneira como são clas-
sificados no patamar de referência e nos demais patamares. Nesse caso, a
forma corporal dos animais motiva os nomes, enquanto no patamar pirahã
os nomes são imotivados. A classificação nos demais patamares faz equivaler
os nomes às coisas. Os nomes dos animais, por exemplo, são partes deles,
descrevem uma percepção do olhar, de sua forma corporal. Uma classificação
que gera nomes-coisas: “focinho comprido”, “orelha vermelha”, “cabeça pre-
ta”, “pata fina”, “couro branco”, “cabeludo”, “careca”. Kabatse é o nome atri-
buído à anta no patamar dos Pirahã. Kabatse não é nada além de kabatse, um
nome que, quando evocado, não permite reconhecer coisa alguma da forma
corporal da anta. Nos demais patamares, a anta não é chamada pelo nome
kabatse, mas por um que a particulariza, que fala de sua forma corporal, de
algo que se “parece” com kabatse, mas que não é exatamente igual à kabatse.
Vejamos, agora, as descrições da anta e da capivara nos respectivos pa-
tamares:
A anta do segundo patamar celeste é chamada de aaoge. Alimenta-se apenas
da fruta pequiá; tem a boca pequena, muitos dentes pequenos. Os olhos são

124
grandes, tem uma das orelhas compridas voltada para cima, e a outra, também
comprida, mas voltada para baixo; sua pele é preta, tem o ânus grande e, por isso,
defeca muito. Tem o pênis comprido, contrastando com minúsculos testículos.
A anta do primeiro patamar de cima tem os olhos puxados, compridos,
focinho largo, dentes grandes, cérebro pequeno, orelhas duras e compridas,
voltadas para cima; seu couro é vermelho, o rabo pequeno, o pênis comprido
e não tem testículos; possui pernas e patas grandes, unhas moles e quebradi-
ças; por isso, deve pisar somente em terreno macio. Seu nome é toibe.
A anta do primeiro patamar subterrâneo é chamada de tseoge. Tem olho
pequeno, boca comprida, pescoço grande e voltado para cima, não tem cé-
rebro, o que faz com que sua cabeça seja oca. Não tem orelhas, sua pele é
preta e o pelo que a recobre é fino e ralo. O rabo é curto e sem osso; seu
corpo também é sem osso, por isso é mole, feito somente de carne. Seu pênis
é pequeno, assim como os testículos.
A anta do segundo patamar subterrâneo é chamada de etaobiai. Tem
olhos grandes, boca pequena abaixo do queixo, cabeça comprida, uma única
orelha grande e sua pele é branca. Tem o ânus do lado direito do corpo, na
altura de uma das pernas. Seu pênis é comprido e a urina não sai pelo orifício
da glande, mas por um outro, que fica no meio do pênis, o qual nunca fica
ereto. Apresenta um rabo pequeno.
A capivara do segundo patamar celeste é chamada de aaogeu. Tem ore-
lhas grandes, sendo que uma é furada, cabeça pequena, boca comprida, pes-
coço grande, dentes grandes iguais aos de uma onça. Tem patas dianteiras
compridas, unhas grandes e uma única pata traseira. Sua pele é preta, com
o dorso coberto por pelos compridos; o rabo é comprido; tem um grande
ânus, sinal de que defeca muito; seu pênis é pequeno.
A capivara do primeiro patamar celeste é chamada piaue. Tem olho pe-
queno, que lembra o do tamanduá, cabeça diminuta, boca pequena com
dentes que se “parecem” com agulhas, de tão finos; dispõe de três pernas,
sendo duas dianteiras com unhas grandes e uma única traseira, grossa e sem
unhas. Não tem orelhas; possui corpo pequeno e, por isso, “parece” uma
paca. A pele é branca; nas extremidades do corpo apresenta uma cor averme-
lhada; sua carne é muito dura.
A capivara do primeiro patamar subterrâneo tem o nome de etabiisai.
Possui olhos, boca e cabeça grandes. É destituída de dentes, por isso “parece”
um tatu. As pernas são compridas, seu rabo é pequeno, seu ânus é bem gran-
de, e a pele tem cor esverdeada. A carne é bem mole e quase não tem ossos.

125
A capivara do segundo patamar subterrâneo se chama piauope”ai. Tem
olhos pequenos, orelhas compridas, unhas grandes e pernas pequenas. Possui
apenas uma pata traseira. Seu pelo é duro e curto. O pênis é pequeno e seus
testículos são grandes.
Embora existam diferenças notáveis entre os animais no patamar Pirahã
e nos demais patamares do Cosmos, também há ligações entre eles. Isso pos-
sibilita que as pessoas façam declarações do tipo: “a anta do patamar de cima”
ou “a cutia do patamar subterrâneo”, ligando uma anta do patamar de refe-
rência a outra que habita o segundo patamar celeste. Descrições distintas, que
parecem separar cada vez mais os animais, conseguem estabelecer vínculos
entre eles, criando, assim, uma especificidade na diversidade. A anta do pa-
tamar de referência parece ser o modelo desse animal, daquilo que possibilita
distingui-la de uma capivara ou de um queixada. Há algo que define as fron-
teiras, demarcando a especificidade desse animal, e isso é utilizado para defi-
nir os demais animais dos outros patamares. Assim, por mais que as antas dos
demais patamares se pareçam com a anta do patamar de referência, há algo
que possibilita estabelecer uma diferença que é justamente a semelhança entre
elas. Por isso a anta do patamar celeste “parece” um tamanduá, tem o pescoço
de onça, as patas de um veado, mas continua a ser definida como anta.

O pensamento cromático
Podem-se observar alguns pontos de contato entre esta concepção Pi-
rahã e a que os Yawalapití formulam através do uso que fazem dos modifica-
dores (sufixos acrescentados a certas palavras). O sufixo mina (semelhante;
não idêntico a um modelo) se aproxima do conceito igiábisai pirahã quando
estabelece uma relação entre coisas que se correspondem, mas que não são
idênticas. A classificação dos animais e dos demais seres dos outros patamares
do Cosmos lembra o uso do modificador kumã pelos Yawalapití, visto que
apresenta aqueles seres como “superabundantes”, atribuindo-lhes um “esta-
tuto de monstruosidade/alteridade” (Viveiros de Castro, 1987: 47).
Viveiros de Castro, analisando os modificadores, acentua que esses estabe-
lecem a distância metonímica ou a diferença metafórica entre tipo ideal e o
fenômeno atual apoiado na diferença contínua entre arquétipo e atualização
(1987: 45). Estes modificadores indicam o “outro”, “o próprio”, o “inferior”,
o “semelhante” – alteração da natureza, adequação entre o tipo ideal, não
adequação por carência, proximidade. Para Viveiros de Castro, trata-se de
relações complexas que jogam com a oposição forma/essência, segundo um

126
sistema de gradações, demonstrando a importância para a construção dessas
cosmologias de uma propriedade contínuo-gradativa. O mesmo se passa en-
tre os Waujá descritos por Barcelos Neto (1999: 74; 2000: 49):
Os termos mona e kumã atuam como modificadores linguísticos da natureza das coisas
e seres do mundo, ordenando-os em uma escala contínua das subcoisas às supercoisas...
[indicam] a existência de uma ontologia contínuo-gradativa entre os grupos arawak do
alto Xingu.

Ainda no contexto Waujá, observa-se o mesmo processo de diferenciação


operado pela cosmologia pirahã baseado na identidade corporal e na seme-
lhança essencial entre os seres que se transformam dando origem a uma clas-
sificação baseada “na interseção das substâncias vitais dos seres que mantêm
relações de identidade corporal entre si”, como por exemplo o “porco”, o “por-
co monstro” e “gente-porco” (1999: 99, 141-2). Observa-se ainda, de modo
bastante acentuado, a importância do cromatismo e das “pequenas diferenças”
na construção da música Waujá, como demonstra Piedade (2004: 217-8):
No pensamento musical Wauja, não é o canto que se destaca do fundo homogêneo
e contínuo, como no diatonismo ameríndio, mas sim o próprio cromático-contínuo
que se detém junto ao canto, como que preenchendo seus intervalos. No plano frontal
está o tema (os motivos-de-tema), e, no plano de fundo, sua projeção na continuidade,
como um cantus firmus às avessas, seguindo e ecoando as notas (os dedos) do flautista
mestre, o kawokatopá.

Seguindo estas mesmas pistas proporcionadas por uma análise profunda da


música Waujá, Piedade (2004) deriva da estrutura musical uma percepção filo-
sófica do pensamento no qual se percebe a importância da similaridade, da repe-
tição, do cromático enquanto algo que produz a diferença no modo dos Waujá
conceituarem seu mundo, em que o diferente sai do mesmo, do similar, do
repetido e do parecido é possível gerar a diferença (Piedade, 2004: 203).35
A mesma formulação é evocada por Lagrou (2002: 34) a propósito dos
Kaxinawa, na qual se observam processos de produção e reprodução da al-
teridade através da semelhança em que “as diferenças não constituem oposi-
ções entre termos mutuamente exclusivos, mas são de natureza gradual”.
Bastos (1978) chama, também, a atenção para esse caráter do “parecer”
e da “semelhança” enquanto um critério de comparação importante para
35
Severi (2004, 2007) produz uma conceituação sobre “saliência” que posteriormente é aprofundada
em suas conferências no seminário Arte, Imagem, Memória (2007, Museu Nacional, UFRJ) em que
procura justamente dar conta da “pouca diferença” nos sistemas classificatórios como produtores da
“diferença”. Ver também Cesarino (2006), que retoma as discussões de Severi sobre paralelismo e
saliência nos cantos xamânicos ameríndios.

127
atribuição de diferenças para os kamayurá. Procurando explicitar o valor do
“igual”, do “semelhante” e do “diferente”, aborda a categoria semelhante na
língua kamayurá que estaria entre o igual e o diferente: teríamos yoyowite
(igual); awite (semelhante); atyte (diferente). Esse conjunto instaurado pela
semelhança produz outras gradações, ampliando o conjunto de referência
ao acrescentar “muito diferente”, “quase igual” (1978: 85), o que atesta a
importância da semelhança e da contiguidade na construção do sistema de
comparações kamayurá: “Enquanto, de um lado, na comparação paradigmá-
tica, a semelhança é o mecanismo básico, na sintagmática, é a contiguidade
que é criterial...” (1978: 87).
Parece ser justamente esse aspecto da semelhança enquanto produtora
de diferença que Seeger (1987: 10) quer chamar atenção quando nos fala
que os Suyá “comparam um homem e a criança que recebe seu nome a um
duplo arco-iris, idênticos mas diferentes em tamanho”.
A partir das fecundas hipóteses levi-straussianas contidas na tetralogia
Mitológicas, podem-se reconhecer chaves de leitura instigantes para se pensar
o universo mitológico ameríndio como constituído, necessariamente, por
relações de transformação. Assim, o pensamento ameríndio é apresentado
com base em fragmentos religados pela comparação, revelando um verdadei-
ro sistema em que as narrativas se interpenetram, o que possibilita desvelar
códigos e temas conceituais que acentuam não apenas uma relação genético-
histórica entre mitos, mas também demonstram a propriedade de determi-
nadas feições e problemas que o pensamento ameríndio assume. Se Lévi-
Strauss seguia claramente as questões postas em “Algumas formas primitivas
de classificação”, inclusive revistando as mesmas referências etnográficas, há,
com o advento do projeto das Mitológicas, uma guinada em suas preocupa-
ções na direção de perceber as classificações a partir de um outro material
etnográfico que não era mais o australiano, mas sim as mitologias dos índios
sul-americanos. O que parece estabelecer o corte radical e a descontinuidade
entre Lévi-Strauss e o projeto Durkheimiano é o abandono por completo do
conceito de sociedade na acepção proposta e defendida pela chamada escola
sociológica francesa. Lévi-Strauss, ao trabalhar com o material etnográfico
da América do Sul, entrou em um universo bastante diferente das questões
evocadas até então por outros materiais etnográficos, acabando por adotar
um ponto de vista da etnografia sul-americana. Ao construir as Mitológicas,
Levi-Strauss embarca em uma viagem em que cada vez mais o material et-
nográfico e as classificações dos ameríndios expressas a partir de seus mitos
o levam por caminhos novos e fazem uma espécie de contra-argumento aos

128
argumentos centrais de Durkheim e Mauss, que estavam pelo menos em la-
tência no espírito de Lévi-Strauss, quais sejam: o dualismo australiano e seus
múltiplos, as grandes oposições engendrando e constituindo a Diferença, o
absolutismo do conceito de sociedade.
Lévi-Strauss nos conduz rio abaixo, em sua canoa mitológica, fazendo-
nos visitar muitas paisagens, percorrer atalhos por um caminho-temático
principal, que geralmente coincide com os títulos pertencentes às Mitológicas
(O cru e o cozido; Do mel às cinzas; A origem dos modos à mesa). Se a mitologia
é o guia natural de Lévi-Strauss, os múltiplos temas abordados e os desvios
percorridos vão aos poucos se juntando e, no fim das contas, os fios soltos
se atam novamente, passando a ser um recomeço, porém, a partir de outro
ponto de vista. Lévi-Strauss demonstra que, dependendo da perspectiva que
se tome, o sentido do mito transforma a percepção do significado de natu-
reza e de cultura. Assim, natureza e cultura são ferramentas conceituais mais
do que significados cristalizados (2006: 273).
Atravessando um continente, Lévi-Strauss encontra relações entre pensa-
mentos que põem em evidência os mesmos ingredientes e os mesmos proble-
mas. Os mitos revelam uma propriedade continental, histórica, geográfica e,
sobretudo, estrutural no seu sentido mais pleno: “Já que a rã norte-americana
ladra de crianças transforma uma mulher que toma um animal como amante,
os frutos selvagens, que ela também aprecia muito, equivalem ao mel sedutor,
que ocupa a mesma posição nos mitos da América do Sul em relação a uma
rã ladra de crianças, e que, sendo um sedutor natural e alimentar, é o equiva-
lente no sentido próprio do animal erótico” (2006: 59). Pode-se, assim, com-
parar com base no mesmo código coisas que parecem estar muito distantes,
como o mel e os frutos silvestres (2006: 57-8), mas que revelam afinidade:
são perigosos mas atraentes, podem ser tóxicos ou deliciosos, daí uma deter-
minada ambiguidade com sua classificação e, por isso mesmo, a importância
que assumem para uma simbolização no pensamento ameríndio.
Dessa maneira, a estrutura das Mitológicas tende a coincidir com o pró-
prio universo mitológico ameríndio, pois procura abranger sociedades que
manifestam seu modo de ser por meio de um conjunto de mitos que com-
põem um sistema fechado.
As Mitológicas poderiam também ser lidas como uma composição musi-
cal, cujo tema evidencia as linhas mestras do pensamento ameríndio e o seu
modo de operação. Assim, o dilema apresentado pelo pensamento mítico é
o mesmo proposto pela música, a passagem do cromático ao diatônico, dos
pequenos e dos grandes intervalos (2006: 172). Lévi-Strauss, ao se deparar

129
com o material mítico americano, acentua a dialética entre os pequenos e os
grandes intervalos: o cromático relacionado às contiguidades e o diatônico,
às oposições que engendram a “boa diferença”. Embora Lévi-Strauss enfatize
que a intenção última do pensamento estaria ligada ao estabelecimento dos
grandes intervalos e das oposições mais fundamentais, isso é, ao modo dia-
tônico, reconhece que o cromatismo é recorrente no pensamento ameríndio.
Acentuando a relação entre os pequenos intervalos, o pensamento ameríndio
passa a operar a diferença por intermédio da contiguidade e da semelhança,
encadeando uma série de mediações até atingir os grandes intervalos.
Em Do Mel às cinzas, (2004b: 95) Lévi-Strauss chamou atenção para a ló-
gica das classificações estabelecidas pela semelhança entre os Bororo. Encon-
tram-se na Enciclopédia Bororo (Venturelli, Ângelo J.; Albiseti, César, 1962:
829) inúmeros exemplos do uso de uma classificação através do sufixo réu
que opera com a noção de semelhança entre animais e coisas, por exemplo:
kídoguroeréuge – kidoguroe (abelhas borás) réu (semelhante à). Assim, tem-se
a classificação de um animal que é “parecido” ou “semelhante” (porém essen-
cialmente diferente) às abelhas borás. A enciclopédia Bororo está repleta des-
sas formulações constituídas a partir do réu, da semelhança, nos mais diversos
contextos: okíwa = capivara; okiwaréu = animal semelhante à capivara; kia-
oréu = “parece cabelo de anta”, nome dado a uma vegetação do tipo cerrado
fechado; kuoréu = parece o jaó (kúo), nome atribuído a uma pequena palmei-
ra (1962: 762); ipoceréu = “parecido com o pau preto” (ipo = pau, ce = preto,
réu = parecido), para designar irara (1962: 644). Outro exemplo retirado da
Enciclopédia Bororo é o uso do morfema wu, que significa literalmente conti-
guidade, mas pode ainda ser usado como “parecido”, “próximo”: no contexto
de designação do segundo dedo do pé, diz-se “aquilo que está próximo ou
que se “parece”, mas não é igual, ao primeiro dedo do pé” (1962: 679). Iwu,
palavra usada para designar o corpo humano, pode ser definido como “aquilo
que parece árvore ou está próximo da forma árvore” (i = árvore).
Assim, os três volumes que compõem as Mitológicas mostram que o mo-
do de proceder do pensamento ameríndio percorre posições intermediárias
entre os opostos. Planos de mediação que se interpõem entre elementos,
transformando o que seria um dualismo (alto/baixo; céu/terra; vivos/mortos
etc.) em processos contínuos de diferenciação e instaurando tríades ou ca-
deias de semelhanças a partir dos “pequenos intervalos”. Boa parte da produ-
ção etnológica contemporânea tem se dedicado a essas questões dos elemen-
tos mediadores (no parentesco, nas ideias cosmológicas, na mitologia, na
arte) que produzem as contiguidades-diferenciais no processo de se produzir

130
a diferença. Lévi-Strauss enfatiza que a semelhança ou a “pouca diferença”
entre um caititu e o queixada, com a qual os mitos trabalham, reforça a ideia
de que a semelhança entre os dois porcos selvagens é extremamente signifi-
cativa para se estabelecer uma diferença (2004a: 112; 2004b: 83). A partir de
traços mínimos, como comprido, curto etc., surge o “parecido” para estabe-
lecer a diferença (2004b: 82). Pássaros próximos, como maritaca, periquito
e papagaio, produzem as diferenças entre seco e úmido, chuva e estio, savana
e floresta (2004b: 70-1). A semelhança entre a ema e a seriema engendra a
polarização das duas estações do ano (2004b: 130).
O mesmo processo pode ser observado nos mitos que Lévi-Strauss apre-
senta sobre a origem das mulheres. Partindo das semelhanças entre as mulhe-
res, de uma comparação no interior do próprio universo feminino, é por onde
o pensamento ameríndio produzirá a diversidade entre elas: gordas, magras,
jovens, velhas, bonitas, feias. O que chama a atenção é que para se produzir
diferenças, no conjunto das mulheres, o desafio do mito é o de justamente
criar as diferenças no interior de um conjunto de semelhanças, não acentuar as
diferenças entre homens e mulheres, por exemplo (2004a: 119-122).
Muitas vezes parte-se de um sistema polar constituído, como por exem-
plo entre a onça e o homem caçador, que para operar necessita ser interposto
por um sistema de pequenos intervalos. Não basta que o caçador cace o jaguar
para ser um bom caçador, é necessário caçar todas as espécies animais, isto
é, faz adentrar no sistema a ordem das espécies (os pássaros, os ratos, a paca
até chegar à anta). Assim, as oposições polares necessitam de uma mediação
processual e contígua (2004b: 146-7).
O que comer e o modo como comer ligam os três primeiros livros das
Mitológicas, pondo em evidência a simbolização e a força de expressão do
sentido que a predação tem no pensamento ameríndio. E neste mundo de
mediações, o cromático ressurge na reflexão que o mito 361 (2006: 38) pro-
põe, em que a lua tem duas esposas com o mesmo nome, mas ambas estão
situadas em espaços distintos – uma alimenta bem o marido e a outra não.
A questão essencial dos irmãos gêmeos é posta a partir dos intervalos
mínimos que produzem a diferença: aparentemente iguais e semelhantes, mas
essencialmente diferentes (2006: 37). Abundam, também, nas Mitológicas
exemplos de gêmeos (2004a: 204-205, 285), cuja semelhança é a garantia pa-
ra se criar diferenças entre os eles, que passam a ser mais velhos ou mais jovens,
mais e menos espertos, um preguiçoso e outro desajeitado. A semelhança dos
irmãos de mesmo sexo, mas não gêmeos, é outro recurso recorrente para se ins-
tituir uma diferença: um irmão é mais forte do que o outro, mais destro, mais

131
rápido. Agregam-se diferenças a um dos irmãos acentuando uma distinção,
aumentando o intervalo entre eles. Lévi-Strauss se pergunta por que os mitos
necessitam duplicar personagens como cunhadas, irmãs, esposas; por que esse
pensamento recorre a uma duplicação de posições “parecidas” ou semelhantes.
Para o autor, as duas cunhadas, no contexto de Do mel às cinzas, demonstram
justamente a dualidade do mel, como alimento e como conotação sexual fi-
gurada. Duas irmãs, por causa da semelhança que apresentam, denotam duas
qualidades distintas do mel, uma sexual e outra alimentícia. Essa duplicação
dos personagens enfatiza uma ambiguidade que, segundo Lévi-Strauss, parece
ser uma propriedade intrínseca da função simbólica. Nos mitos, tal ambigui-
dade se expressa por um código retórico que joga perpetuamente com a opo-
sição da coisa e da palavra, do indivíduo e do nome que o designa, do sentido
próprio e do figurado. Os personagens, embora semelhantes e duplicados, não
ocupam as mesmas posições (2004b: 170).
O arco-íris resolve uma contradição para Lévi-Strauss (2006: 101), mas,
por outro lado, poderia estar ligado ao cromático e, por esse mesmo moti-
vo, estaria associado ao acaso ou à ordem do acontecimento (e quem sabe à
morte?), visto que aparece e desaparece: “os mitos sul-americanos situam o
arco-íris, ou a cobra arco-íris, na origem do veneno de pesca e das epidemias,
devido ao caráter maléfico que o pensamento indígena atribui ao cromatis-
mo, tomado no sentido de reino dos pequenos intervalos. Por efeito de uma
simples variação de afastamento entre seus termos, esse reino gera um outro:
o dos grandes intervalos” (2004b: 267).
A ordenação dos animais em alguns mitos (2006: 113-4) faz-se pela con-
tiguidade – voltamos, então, às questões acerca do contínuo e do descontínuo.
A contiguidade cromática dos animais produz, por sua vez, outra contiguida-
de, expressada no decorrer dos dias, do tempo, e que se realiza em pequenos
ou grandes intervalos mediante a relação entre astros, sol, lua e constelações
(ver, especialmente, 2006: 326 e 382). Pode-se perceber essa maneira de pro-
ceder do pensamento ameríndio nos exemplos extraídos de um esboço cons-
truído a partir de valências semânticas em torno do sol e da lua, configurando
pares de oposição: sol macho versus sol fêmea, sol tolo versus sol canibal, lua
macho versus lua fêmea. Tal concepção revela uma das condições em que ope-
ra o pensamento ameríndio: a ideia de que o um contém o outro. A alteridade
não se constrói por pares de oposição em que o eu estaria em oposição a um
outro, mas, de fato, o eu se constrói e depende do não-eu, e não do outro co-
mo figura ontológica de alteridade para se constituir a diferença. A qualidade
cromática desse pensamento leva Lévi-Strauss a reconhecer a potência criativa

132
da mitologia, no sentido de que não se trata de uma mera reflexão sobre como
funciona o universo. Os mitos avançam para um mundo imaginário tão po-
tente que se pode, a partir daí, fazer as mais diversas associações, como ocorre
a Lévi-Strauss quando associa as imagens produzidas na mitologia ameríndia
ao imaginário criado nas pinturas de Hieronymus Bosch. Como exemplo,
cita a imagem evocada em um mito: “o macaco é também um homem e um
jaguar; martela insistentemente o seu próprio nariz” (2006: 115).
O autor, assim, rende-se às propriedades do pensamento mitológico,
que instaura séries metonímicas transformadas em séries metafóricas, ou
vice-versa. Isso evidencia o problema ontológico do pensamento ameríndio,
qual seja, a relação entre contínuo e descontínuo, cromático e diatônico, pe-
quenos e grandes intervalos, metonímia e metáfora. O pensamento mítico,
ao refletir, por exemplo, sobre a questão de como se casar apresenta o proble-
ma da alteridade ameríndia expressa em muitos mitos (2006: 88, 98, 127,
154, 161) a partir da exogamia e da endogamia, do próximo e do distante,
do código sociológico e do código astrológico (sol e lua); questões centrais
que nos reenviam à complexidade de ser um e/ou ser outro, o que evoca a
questão da simultaneidade, da proximidade e da distância (2006: 173).
Outro aspecto importante que surge na tetralogia Mitológicas, especial-
mente no terceiro volume, é que a explicação sociológica depende de outras
varáveis, como os códigos astronômicos, anatômicos, geográficos e cosmoló-
gicos. Isso mostra a complexidade do pensamento ameríndio, que não está
encapsulado em razões sociológicas, mas se realiza como possibilidades de
interposições de códigos e camadas que se entrecruzam. Exemplo disso é a
mulher cortada em pedaços (2006: cap. 1) – seus pedaços estariam, por assim
dizer, entrecruzando os códigos anatômico e astronômico, em que a descon-
tinuidade do corpo gera a descontinuidade dos astros. Pode-se, ainda, cami-
nhar num sentido contrário, quando a percepção da diferença entre os astros
faz o código astrológico produzir uma diferença social, o que nos faz concluir
que os sistemas de diferenças são um método para que o pensamento possa
emergir e se manifestar. Mesmo sendo tais diferenças, num primeiro momen-
to, mínimas ou contíguas (2006: 271-2), elas têm a potência de instaurar a
diferença necessária para que o pensamento possa apresentar o mundo.
Ao final da Mitológica 3, Lévi-Strauss retorna à questão dos modos à
mesa, evocando as regras da civilidade quando constrói seu famoso triângu-
lo culinário estabelecendo uma relação complexa entre três eixos: o cru, o
cozido e o podre. Porém, como o pensamento ameríndio opera pela lógica
do sensível, sobre os grandes intervalos gerados se precipitam múltiplas in-

133
termediações (assado, defumado e ensopado), de forma que tudo se remete,
novamente, à questão do contínuo e do descontínuo como modo estrutu-
rador desse pensamento. Assim, o cromatismo, mesmo tendo como função
última gerar intervalos maiores e ser percebido como algo negativo por estar
mais próximo do contínuo, parece ser o princípio e o meio de o pensamento
ameríndio se estruturar, o que cria dificuldades para o estabelecimento de
dualismos puros, grandes intervalos definidos e inequívocos.
Encerro este capítulo com uma pequena história que, ao meu ver, ilus-
tra a importância dos pequenos intervalos no pensamento ameríndio. Uma
índia Paresi estava passando uns dias no Rio de Janeiro e fomos passear no
Jardim Zoológico. Durante o passeio nada lhe chamava a atenção em espe-
cial, percorria as jaulas dos tigres e leões, passava pelos elefantes e girafas sem
grande interesse, até se deparar com a avestruz. Sacou pela primeira vez sua
máquina fotográfica e bateu as únicas cinco fotografias do passeio. Para se
entender esse acontecimento através da lógica da semelhança e da contigui-
dade, devo ressaltar que a ema é o animal mais importante para os Paresi.

134
Singularidade: pessoa, individuação e processos de
subjetivação em uma ontologia amazônica36

(...) só existe mundo para alguém


Lima, T. S., 1996: 31

Em outras construções do tapirapé também se marca o


beneficiário da ação: “é doce para mim”, “cheguei para vocês”,
“choveu para nós”. As ações são, assim, expressas tendo como
centro de referência o falante, sua inclusão ou exclusão no even-
to, e a relação entre ele, o ouvinte e o mundo circunstante. O
interessante é que a gramaticalidade tapirapé torna essencial
aquilo que para outras línguas é acessório. Em português, ale-
mão, francês, eu não preciso me contextualizar em relação aos
circunstantes, nem ao alcance do evento: eu apenas chego (não
preciso chegar para alguém); chove, talvez em algum lugar (mas
não para alguém); morre-se (mas não de alguém). Em tapirapé,
a lanterna acende para alguém, chega-se para alguém, vai-se
para alguém, morre-se de alguém.
Yonne Leite, 1998: 97

Experiência pessoal
A maior parte da reflexão antropológica contemporânea sobre os ama-
zônicos, embora enfatizando questões ligeiramente distintas, se construiu em
torno de uma crítica às etnografias anteriores que enfatizavam a “flexibilidade”
e a “individualidade”. O aspecto enfatizado da “frouxidão”, da “flexibilidade”
e, consequentemente, do caráter individualizante dos ameríndios deu, então,
lugar a uma descrição da sociedade e filosofia ameríndia apoiada nas represen-
tações sociais da pessoa, do corpo, da substância, da morte, do canibalismo,
discussões emolduradas a partir da problemática da identidade e da alteridade.
Não obstante esse esforço de constituir uma sociedade ameríndia a partir de
seus próprios interesses, a partir da positivação de temas e questões que seriam
propriamente ameríndias, a questão da experiência pessoal e da flexibilidade
36
Este texto foi originalmente apresentado no Amerinidan Seminar da Universidade de St. Andrews
(2005), no Seminário da Equipe de Recherche em Etnologie Amerindiene, CNRS (2006), no Semi-
nário dirigido por Phillipe Descola na École des Hautes Etudes em Science Sociales (2006) e uma
primeira versão foi publicada na Revista Amazonia Peruana, Peru – Lima , v. 30, p. 159-184, 2007.

135
insistia em aparecer em muitas etnografias, o que nos reenvia à questão de co-
mo conceituar a pessoalização, o discreto e o singular traduzido em termos de
acontecimentos e histórias particulares dos eventos que parecem estar mesmo
enraizados na forma como os ameríndios conceituam seu mundo e o tornam
apreensível. Um pensamento que para se construir enfatiza o detalhe e a espe-
cificidade e carrega nas marcas da experiência pessoal a forma de se manifestar
sobre as coisas e o mundo em que o discreto e as interpretações pessoais tor-
nam este mundo apreensível por esta forma de lhe dar conceituação.
As Mitológicas de Lévi-Strauss (1964-1970) dão o maior testemunho
dessa forma de o pensamento ameríndio se manifestar. Os mitos são inteli-
gíveis não por uma moral da história ou por sua mensagem, mas por uma
decomposição em seus detalhes, insignificantes acontecimentos pessoaliza-
dos que se apresentam no mais absoluto grau de singularidade. Lévi-Strauss
entendeu imediatamente que os mitos poderiam ser apenas compreensíveis
nesse nível dos acontecimentos e nessa multiplicidade de singularidades.
Muitos antropólogos que estudaram as sociedades amazônicas chama-
ram atenção, embora com ênfases diferentes, para a questão da importância
da pessoalidade ou singularidade nas sociedades e cosmologias ameríndias.
Viveiros de Castro (1985) chamou nossa atenção para as pessoalidades
Araweté em uma passagem de seu livro que descreve como o “difícil começo”
(“teneteamo”), ao abordar a dificuldade dos Araweté para iniciar a organi-
zação de uma atividade. Cada pessoa impõe seu ritmo e sua marca na estru-
turação da organização, gerando um alto coeficiente de pessoalidade, como
uma orquestra sem maestro tentando tocar uma sinfonia. Esse “difícil co-
meço”, para os Araweté coloca em evidência um pressuposto igualitarismo,
gerando uma “liberdade do agente” em um mundo sem hierarquia, acentua
por outro lado uma ênfase na singularização, em um universo povoado por
pessoalidades, não traduzíveis umas nas outras (como deveria pressupor o
igualitarismo), gerando uma multiplicidade de singularidades, cujos acordos
são negociações contextuais ao invés de relações sociais padronizadas.
Descola (2005: 178) aponta igualmente para o fato de os ameríndios
privilegiarem, na construção de sua socialidade, uma relação que se estabe-
lece via pessoa/pessoa: “... é possível de estabelecer com essas entidades (as
plantas e os animais) relações de pessoa a pessoa – de amizade, de hostilidade,
de sedução, de aliança ou de troca de serviços – que diferem profundamente
da relação denotativa e abstrata entre os grupos totêmicos e as entidades na-
turais qui lhes servem de epônimos”.

136
Peter Rivière, chamando atenção sobre o mesmo problema, descreve a
sociedade guianense como sendo “... não mais do que um agregado de re-
lações individuais negociadas” (1984: 102). Overing (1989, 1996), ao con-
ceituar o Itsotu Piaroa como uma “pluralidade de similaridades singulares”,
redefine a própria concepção de “comunidade ameríndia” em que, justa-
mente, a multiplicidade de singularidades que a compõem tem um papel
importante na estruturação da forma como é pensada e, como são postas em
prática as relações sociais no universo amazônico. Traduzindo o conceito de
“performativo” usado por Sahlins (1987: xi-xiii) para o universo amazônico,
Overing chega ao conceito de “generative”, que acentua a importância do
que designo por “pessoalidade” para estas ontologias, uma vez que é o ato
apropriado que cria as relações. Nesse sentido, as relações são construídas por
escolhas e desejos e são sempre negociadas. Modo característico de construir
relações sociais que Overing conceitua como “autonomia pessoal”, isso é,
uma capacidade específica, sempre pessoalizada, para produzir coisas cul-
turalmente aceitáveis. A expressão Piaroa ta”kwakomenae exprime, segundo
Overing, a forma de construir o individual, ao agregar pessoalidade à percep-
ção do que é culturalmente aceitável, em outras palavras, quando o cultural
ele mesmo é expresso pelo pessoal, pelo singular.
Sobre a importância da conceituação da experiência pessoal na formula-
ção cultural, Carneiro da Cunha (1978: 113) aponta a fabulação na escato-
logia Kraho enquanto espaço privilegiado para a criação, percebendo que “a
escatologia não é apenas o reflexo da sociedade que a originou, mas também
e principalmente uma reflexão sobre ela.”
Kracke (1979) demonstra que para os Kawhib, a liderança, o recruta-
mento de membros para um grupo, a organização das ações que envolvem
cooperação, a manutenção da harmonia dentro do grupo depende mais do
que designa “relações emocionais e psicológicas” do que propriamente rela-
ções jurais. Levando ainda mais longe a proposta de construção do mundo
social Kwahib a partir de uma epistemologia baseada nas subjetividades pes-
soais, demonstra que as narrativas oníricas são ao mesmo tempo um campo
de experiência pessoal significativa e fonte de conhecimento (Kracke, 1991:
203, 1987: 71). Os sonhos, na sua manifestação enquanto narrativa, unem
experiência pessoal e informações culturais.
Ellen Basso apontou em The Last Canibal a importância da conceituação da
experiência pessoal nas histórias para os Kalapalo que não se sustentavam no fato
de representar uma nova ideologia ou um grupo de imagens coletivamente acei-

137
tas que animam a vida social, mas, pelo contrário, que pelo fato de descreverem
experiências de pessoas que procuram caminhos e exploram alternativas para
suas vidas é que justamente são interessantes para os Kalapalo (1995: 149).
Mesmo em narrativas que parecem fixas, como os mitos e os cantos,
observa-se um importante processo de subjetivação pessoal, refletido, muitas
vezes, na evocação da narrativa em primeira pessoa. Oakdale (2002: 165-6)
observou que embora os cantos para os kayabi sejam construídos por metá-
foras fixas, seu sentido é captado apenas a partir de um recurso interpretativo
de quem está traduzindo ou mesmo de quem está encunciando o canto.
Nesse sentido, vê-se que os cantos dependem de uma interpretação das me-
táforas para serem compreendidos, além de referências contextuais. O cantor
narra sua própria história de vida, uma viagem que fez para São Paulo, e
relata sua experiência com os brancos através das metáforas da árvore e dos
oropendulas. O mesmo se passa nos cantos Kaxinauá descritos por Lagrou
(2007) em que a interpretação das metáforas é chave na forma como os can-
tos são apreendidos, demonstrando que para serem entendidos, dependem
de uma conceituação pessoal. Urban (1989: 40; 1996: 49) observa que entre
os xavante a narração do mito em primeira pessoa produz um quase estado
de transe, quando o narrador passa a experimentar a narrativa e vivê-la de
um modo acentuadamente pessoalizado.
Partindo da constatação da importância da conceituação do pessoal na
forma como os amazônicos constroem seu conhecimento, sua percepção e
a forma como têm acesso ao mundo, procuro pensar como essa singulariza-
ção revestida de interpretações pessoais, de agências discretas, especificidades,
idiossincrasias podem ser conceitualizadas. Nesse sentido, a partir da formu-
lação Pirahã, e de outros contextos etnográficos, procuro conceituar positiva-
mente e produtivamente o pessoal, o singular e o discreto como formas cons-
titutivas de produzir um sentido possível sobre o que chamamos de sociedade
e cultura ameríndia. Os Pirahã apresentam uma forma peculiar de marcar o
discreto, o singular, o pessoal, a qual permite perceber a importância dessa
forma de conceituação na construção do sistema social. A experiência pessoal
é uma forma privilegiada de se ter acesso ao que poderia ser descrito como
representações modelares da sociedade ou do cosmos. Ao acentuar a impor-
tância do pessoal, posso dizer que a sociedade ou a cultura, para os Pirahã, é
conceituada nas histórias narradas, imersas na pessoalidade do narrador.
Esse tipo de concepção conduz a uma conceitualização de sociedade ou
cultura que se apoia mais sobre o pessoal e sua autonomia na construção do
mundo do que em um paradigma saussuriano-durkheimiano que concebe a

138
parole subordinada a langue, o indivíduo à sociedade, percebendo o pessoal
como apenas uma manifestação do que seria o coletivo, o representacional,
a sociedade. A configuração etnográfica amazônica e os Pirahã em particular
permitem propor uma reflexão sobre o aspecto conceitual do pessoal e seu
rendimento na construção de uma percepção sobre o socius, isso é, como a
conceituação do pessoal é importante para a produção dos significados.
A ideia central aqui é a de justamente enfatizar o aspecto pessoal da cria-
ção, o aspecto discreto da individuação que é encontrado em muitos campos
da cultura Pirahã: a produção corporal que se inicia com o ato da concepção
em que um evento único produz um novo corpo e um nome singular reme-
tido àquela pessoa; nos sonhos que são elaborações de experiências vividas
partilhadas socialmente através de sua evocação narrativa; no xamanismo, ou
seja, como pessoas produzem a partir de seus discursos e atos a cosmologia. O
xamanismo Pirahã (e talvez de outros povos amazônicos) parece ser uma exa-
cerbação da experiência pessoal, desafiando uma interpretação mais represen-
tacional e coerente da sociedade através de categoriais analíticas dicotômicas e
estáveis. Assim, o xamanismo é uma conceituação pessoal ao juntar, de uma só
vez, linguagem, estética, ética, política, relações sociais acionadas de um ponto
de vista singular, o do xamã. Ser xamã nesse contexto seria algo literalmente
experiênciado, pessoalizado. Isto significa dizer que para os Pirahã as expe-
riências no mundo modelam os conceitos sobre o mundo (Meloe, 1983,
1989). Os xamãs entram em contradição entre si sobre as modulações repre-
sentacionais que o mundo pode assumir. Produzem uma Antropologia radi-
calmente pessoal construída por indivíduos nativos. Nesse sentido, o detalhe,
a narrativa, as palavras proferidas e o contexto passam a ser pré-requisitos para
se ter um ponto de vista sobre o mundo que não tem como objetivo precípuo
a modelização de uma sociedade ou de uma cultura, mas se apóia, sobretudo,
em experiências individuais e eventos únicos vividos pelos narradores.
A experiência através da subjetivação da pessoalização tem lugar privile-
giado no esquema conceitual Pirahã, pois, deixando de representar (mediar
o pensamento e o ato), presentifica o Cosmos. A experiência pessoal descreve
o Cosmos, vincula palavras e objetos, observações e sua explicação, o pensa-
mento e o ato, criando e recriando um mundo que se apresenta sempre ina-
cabado, em eterno processo de construção. O Cosmos é, assim, dependente
de alguém que o vivencie, que o experimente, para que possa ganhar estatuto
de discurso organizado.

139
O pessoal e o social
É necessário, pois, reconhecer que pensar a experiência pessoal, a pessoa-
lidade ou a individuação sempre foi um desafio para a teoria antropológica.
A construção do conceito de representação produziu a própria ideia de que
o pessoal e a individuação estavam estruturalmente ausentes do que seria
a conceituação sobre sociedade ou cultura. Foi com Durkheim que veio a
ser reconhecida a irredutibilidade do “social” em relação ao psicológico, ao
biológico e ao pessoal. Durkheim afirmava em 1898 que “il est trop clair que
toute vie commune est impossible s’il n’existe pas d’intérêts supérieurs aux intérêts
individuels”(1898: 4).
O “social” passa a ser considerado um domínio que ultrapassa os indiví-
duos e seus atributos psicológicos. A representação sendo produto do social
seria a prova de que uma sociedade não é uma coleção de indivíduos e que
qualquer ideia ou prática social não deve ser explicada em termos dos desejos
e interesses pessoais. Procurando acentuar a irredutibilidade do social e a fuga
da experiência pessoal, Durkheim elabora uma série de dicotomias que mar-
cam estruturalmente o seu pensamento e a forma como deve ser interpretada
uma sociedade. Segundo Steven Lukes (1985), a obra de Durkheim pode ser
pensada como uma reação às tendências individualistas, pessoalizantes das
sociedades modernas. Segundo Lukes, Durkheim procura responder em sua
obra justamente o que possibilita às sociedades modernas, divididas por con-
flitos de classes, de grupos, de indivíduos, isto é, sociedades engendradas pelo
individualismo, permanecer enquanto sociedades? Como pode haver socieda-
de com contradições, incoerências e fragmentações representacionais?
Para Durkheim, a resposta a essas questões deverá ser articulada em tor-
no de uma série de noções dicotômicas sustentadas pela noção de “consciên-
cia coletiva” que seria “o conjunto de crenças e sentimentos comuns à média
dos membros de uma única sociedade e que constitui um sistema com uma
vida própria” e que posteriormente é substituído pela noção de “representa-
ção coletiva”, que seria a essência da vida social. As representações coletivas
são socialmente geradas, têm origem social. O que é importante de ser assi-
nalado é que as representações coletivas têm uma realidade autônoma, elas
não se confundem com as características individuais advindas da experiência
pessoal. Segundo Durkheim, se um fenômeno tem características distinti-
vas ou sui generis, ele não pode ser explicado em termos de seus elementos
constitutivos. Assim, diz ele, “fatos sociais são sui-generis no sentido de que
não podem ser explicados em termos de fatos sobre indivíduos”. Essa é uma

140
outra importante noção no pensamento de Durkheim: a de “fato social”. A
qual deve ser estudada “como coisa”, isso é, deve ser vista como realidade ex-
terna ao indivíduo e independente do observador. A crítica de Caille (1998)
é capital para se entender a dimensão cultural da definição de fatos sociais
enquanto coisas e as implicações para a conceituação do individual e do pes-
soal na obra de Durkheim:
os fatos sociais não podem mais ser realmente considerados como coisas, uma vez
que (...) a oposição entre coisas e pessoas só tem sentido e alcance aos olhos do nosso
Direito moderno, e que em toda parte, fora dele, é a mescla das dimensões reais e
pessoais que predomina.

Marcel Mauss (2004), reconhecendo que o indivíduo era uma percep-


ção do individual pelo ocidente, prefere estabelecer que embora o indivíduo
seja uma entidade universal, ele é por definição constuído culturalmente.
A noção de pessoa maussiana deriva dessa percepção sobre o individual ou
como forma de ultrapassar o individual no sentido de que até mesmo o indi-
vidual é constituído cultural e socialmente. Assim, na acepção maussinana, o
individual ou o indivíduo se opõe à pessoa, no sentido de que o conceito de
pessoa parece ser a fórmula encontrada por Mauss para elevar o individual a
uma categoria universal e, consequentemente, a uma formulação represen-
tacional. Essa percepção crê no indivíduo enquanto uma entidade que pode
ser conceituada culturalmente dando origem a noção de pessoa que é mais
uma percepção do indivíduo “cross-culturall” do que uma conceituação sobre
o pessoal ou a pessoalidade.
Vemos assim que o conceito clássico de sociedade (Strathern, 1996)
era definido como anti-individual na forma como representava o social. Nes-
sa formulação, o individual era algo a ser superado, ultrapassado, quando se
buscava uma representação modelar dos valores sociais. Parafrasendo Stra-
thern no que se refere à sua conceituação sobre relação social e socialidade
(1996), o individual pode ser considerado um dos a priori kantianos, uma
vez que sua conceituação era construída a partir do bias cultural ocidental
que associava a ideia de individual à de indivíduo, derivando uma percepção
própria do pessoal na construção dos sistemas culturais. Dumont (1978) foi,
sem dúvida, um dos primeiros a denunciar esse viés ocidental na percepção
do individual, mas sua conceituação sobre a sociedade moderna contribuiu
também para pôr em segundo plano a preocupação sobre a conceituação
do pessoal. Para Dumont, o individualismo seria a expressão máxima de
distintividade, da incessante criação de diferenças conceitualizável apenas

141
na sociedade moderna, pois se apoia justamente na ideia, também moderna,
de que existe um substrato comum de não-distintividade, quer dizer, uma
ideologia igualitária que produz um sentido de partilha de mesma essência,
embora as aparências sejam por necessidade e por definição transformáveis.
Essa percepção da ideologia moderna do individualismo foi construída qua-
se como em negativo da hierarquia das castas na Índia, transformando-se em
hipérbole do que seria a sociedade tradicional, o holismo ou o que muitas
vezes foi compreendido como um mundo sem espaço para a conceituação
do pessoal e do discreto ou em que o singular e a experiência pessoal eram
apenas considerados como fatos da “parole” e não da “langue”; eram apenas
acontecimentos, e não estrutura. Dumont (1978), seguindo os passos de
Mauss (2004), trata do indivíduo ou da individuação enquanto uma entida-
de universal restringida a concepções culturais, e por consequência o indivi-
dualismo seria a concepção cultural do pessoal no ocidente. Circunscrito à
concepção cultural do que seria o pessoal, sua reflexão se situa mais no plano
das categoriais do espírito humano, suprimindo ou reduzindo o pessoal e o
processo de singularização a um papel secundário na significação social.
Ainda hoje, na conceituação sociológica contemporânea, percebe-se o a
priori do indivíduo moderno rondando essas reflexões. O conceito de “theory
of structuration”, de Giddens (1979), ou o de “habitus” formulado por Bour-
dieu (1977: 78) refletem sobre a importância da conceituação do pessoal na
cultura, sociedade ou numa estrutura social. A própria procura para provar a
existência da vida social para além dos assim chamados “random individual
acts”, buscando-se determinações de forças sociais que estariam em primeiro
plano de interesse, revela, por si só, o lugar do pessoal nesses esquemas con-
ceituais. Mesmo que se reconheça, como fazem Giddens (1979) e Bourdieu
(1977), a agência humana (human agency) interagindo e transformando a
estrutura social, os atos e a experiência pessoal são pensados a partir de um
bias da própria cultura do individualismo moderno, refletidos como “randon
acts” ou como “individual agents” reproduzindo uma estrutura ou mesmo
transformando-a. Os atos e os pensamentos advindos da experiência pessoal
estariam sempre orientados para a formação de “valores sociais”. As ações do
dia-a-dia reforçariam e reproduziriam as expectativas do que os sociólogos
designam por forças sociais ou estrutura social.
Portanto, vemos, nessa rápida digressão a algumas passagens da teoria
social, que o pessoal tomado como sinônimo do indivíduo foi de certo modo
negligenciado enquanto podendo ter um rendimento conceitual positivo na
formulação das teorias, uma vez que a orientação da teoria sociológica bus-

142
cava muito mais a ideia de coletividade como sinônimo de sociedade, cons-
truída enquanto tribos, castas, grupos corporados que excluíam experiência
pessoal ou a subsumiam enquanto uma determinação sociocultural (Rap-
port & Overing, 2000). A crítica ao conceito de sociedade (Stra-
thern, 1996) e à representação (Rabinow, 1999; Rapport, 1994)
produz, por sua vez, a crítica à ideia do indivíduo enquanto entidade discreta
(aqui, no duplo sentido da palavra de discrição e comedimento em relação
às regras sociais). Assim, iluminam-se outras áreas sensíveis de significação,
como o pessoal, o singular, as emoções e as subjetividades daí derivantes
(Rapport, 1994). Nesse contexto, a experiência pessoal pode suportar um
discurso possível sobre a cultura e a sociedade. Pode-se pensar a pessoalidade
enquanto uma construção de subjetivação singular de experiências, de mo-
mentos que não se repetem e cuja interação e pensamento sobre o social se
realizam por e através da forma de subjetivar essa pessoalidade.

A individuação como valor


Os Pirahã são 250 pessoas, falantes da língua Mura, que habitam várias
aldeias espalhadas nas margens do rios Maici e Marmelos, na amazônia me-
ridional brasileira.
Essa caracterização etnográfica enfocará apenas o que considero crucial
para se pensar a produtividade da conceituação sobre o pessoal (Gonçal-
ves 1993, 2001), como a singularidade corporal associada à concepção, os
nomes próprios, as transformações do corpo e a emergência de seres singu-
lares no cosmos, como os abaisi, os kaoaiboge e toipe, os sonhos, o xamanis-
mo e as narrativas do xamã, as relações de predação e contra-predação dos
animais, vegetais e humanos. Aparentemente díspares, esses temas apare-
cem inter-relacionados, demonstrando a importância do acontecimento, do
evento e da experiência na cosmologia Pirahã.
Iniciemos pela ideia de singularidade corporal associada à concepção.
O simbolismo do corpo entre os Pirahã segue de perto a concepção en-
contrada em muitas sociedades ameríndias: o corpo é pensado enquanto um
“envelope”, aquilo que envolve princípios vitais, no caso Pirahã, o sangue e
o sêmen. O significado da palavra ibiisi (“invólucro do sangue”) parece asso-
ciar o sangue a uma determinada forma corporal. Embora os animais portem
sangue (bii), não são classificados como ibiisi. Ibiisi são seres que têm uma
forma corporal específica (referida como completa ou perfeita).

143
O ato da concepção, aquilo que possibilita a geração de um novo ibii-
si, está dissociado da relação sexual. Quando uma mulher percebe que está
grávida, e o sinal mais evidente é a interrupção da menstruação, ela procura,
juntamente com o marido e parentes próximos, recapitular os episódios re-
centes que poderiam ter ocasionado a concepção. O momento da concepção
é descrito como um “susto”; a expressão maiaga (medo) corresponde à situ-
ação em que ela se surpreende com algo, provocando, assim, a concepção.
Os “sustos” são suscitados por situações bastante diversas: ora um peixe que
pula da água numa viagem de canoa, ora uma fruta que cai de uma árvore,
por vezes um animal que correu subitamente em sua direção, uma picada
de marimbondo, um alimento quente que lhe queima a mão, um galho de
árvore que despenca, um tiro de espingarda, um prato que se quebra ao cair.
Depois da concepção, da instauração da possibilidade de surgimento de um
novo ibiisi no mundo, inicia-se o processo de fabricação do corpo, quando o
intercurso sexual colaborará para a sua produção.
Todos os ibiisi tiveram um momento inicial, aquilo que possibilitou sua
existência, o que “assustou” uma mulher, fazendo-a conceber. Dessa forma,
qualquer pessoa sabe o que permitiu a constituição de seu corpo e pode des-
crever o evento e a coisa que o produziu. O evento inicial será associado a um
nome que a pessoa portará e que irá descrever aquilo que desencadeou sua
concepção: Iahau (boto) é produto do “susto” que o boto deu em sua mãe;
Toiapa (sucuriju) é o nome de um rapaz cuja mãe teve medo de uma sucuriju;
Pa”ai (jatuarana) é o nome de um corpo resultante da relação maiaga (susto)
que uma mulher estabeleceu com um peixe jatuarana. Os nomes ibiisi (kasi
ibiisi – “nome de corpo”) demarcam o momento da concepção de um corpo;
nomes que as pessoas carregam por toda a vida, até a extinção de seus corpos.
Os ibiisi, por serem produtos de uma singularidade, de um evento único
que envolveu não uma espécie animal ou vegetal, mas indivíduos específicos
de uma espécie, numa situação própria vivida por uma mulher, são, assim,
seres particulares dotados de uma singularidade característica inscrita nos
seus corpos. O conceito ibiisi não simplifica ou homogeiniza uma classe de
elementos (corpos) que se assemelhem; aponta mais para as diferenças do
que para as semelhanças. Cada ibiisi é um ser particular, produto e resultado
de um acontecimento, sempre diferente. Uma forma de conceituação de um
“totemismo individual”, que combina um indivíduo animal ou vegetal com
uma pessoa (Lévi-Strauss, 1975: 26).
Cada pessoa pode ser considerada um ícone de uma relação específica.
Além de o feto marcar uma relação específica através de sua fabricação pelos

144
genitores, o feto é produto direto, um ícone da relação da mulher com os
elementos que produzem o susto, no sentido de que o evento enquanto par-
ticularidade funda a possibilidade do corpo.
É nesse sentido que se explica o horror à gemeleidade, pois um mesmo
acontecimento resultando em corpos idênticos implicaria nomes idênticos,
abolindo, assim, qualquer possibilidade de diferenciação. Ser ibiisi é acima de
tudo ser produzido por um acaso, por um conjunto de diferenças, por situações
que não se repetirão da mesma maneira no tempo e no espaço. Ser ibiisi é ser
um acidente, um ser único que, portanto, só existe enquanto singularidade.
Não basta que haja o susto, o estado de medo (maiaagá – mai, medo;
aagá, ter) para que a mulher conceba; é necessário uma condição prévia. A
primeira menstruação é o sinal de que a mulher já pode conceber. Os Pirahã
dizem que a mulher só produz ibiisi porque sai sangue de sua vagina. Essa
condição feminina indicada pelo sangramento parece ser o que assegura a
produção e reprodução dos corpos. É particularmente significativo o fato de
o momento mais propício ao ato da concepção, do acidente na interação da
mulher com o mundo, ser aquele em que ela está menstruada.
Na fabricação do corpo, o sangue da mulher participa na produção de
outros elementos: placenta (apaohoe) e cordão umbilical (pacu). A placenta
é concebida como o companheiro do ibiisi, aquilo que morre para que ele
possa existir. Após o nascimento do ibiisi, a placenta e o cordão umbilical
são postos para secar ao sol; são, então, enterrados no mesmo local em que o
ibiisi nasceu. A placenta e o cordão umbilical se transformam em kaoaiboge
e toipe, isso é, tem o mesmo destino dos ibiisi, dos corpos. A placenta é con-
cebida como um produto da mulher, do seu sangue, um excesso que quase
chegou a se tornar corpo, como enfatizam os Pirahã. Por isso todos os ibiisi
estão irremediavelmente associados à sua placenta. O enterro da placenta é o
evento que marca o nascimento do ibiisi e aquele que liga uma pessoa ao lo-
cal de enterramento de sua placenta, ao mesmo tempo que produz uma ou-
tra singularidade no ibiisi. A maneira como os Pirahã constroem a pergunta
“Onde você nasceu?” revela a importância da placenta e o modo como a
percebem: “Higoo apaohoe hoikaiipa” (“Onde foi enterrada sua placenta?”).
Ainda no contexto dos nomes de corpo, temos uma maior singulariza-
ção quando um nome é atribuído a uma parte específica do corpo: ao pênis
e à vagina. Os cônjuges efetuam essa particularização atribuindo um nome
para o sexo do parceiro. Assim, antes do casamento, apenas nome de corpo,
depois, nomes de sexo: nomes de vulva e nomes de pênis. Esses nomes se
modificam a cada casamento; singularizam não somente o ibiisi, mas as re-

145
lações estabelecidas por ele. Os nomes de sexo que um ibiisi porta contam
a história de suas relações sexuais e, consequentemente, de seus casamentos,
dos vários parceiros que teve durante a vida.
Uma outra forma de marcar a singularidade do ibiisi é o modo como
descrevem as prescrições alimentares. Ao invés de demarcarem fronteiras en-
tre o comestível e o incomestível, entre classes de pessoas que podem ou não
comer determinados alimentos, relacionam individualmente cada pessoa à
determinadas prescrições, construídas a partir da experiência em comer ani-
mais e vegetais específicos.
Os Pirahã admitem que são uma coletividade de corpos (ibiisi) denomi-
nados Hiaitsíihi, um tipo específico de corpo que habita o patamar interme-
diário do cosmos. Nos demais patamares do cosmos existem outros corpos,
ibiisi, com outras designações. Não obstante a singularização dos ibiisi hait-
siihi como um tipo de corpo que habita o cosmos, os Pirahã concebem eles
próprios, os Hiatsíihi, como uma soma e mistura de singularidades, resultan-
tes da mistura de vários outros corpos (ibiisi) que vivem no seu patamar: os
índios Torá, Tenharim, Diarrói, Kwahib, Mura e os brancos. Por conseguinte,
se ser Hiaitsíihi evoca a ideia de semelhança, de fazer as coisas de um determi-
nado modo, evoca também uma mistura de singularidades.
Vejamos agora a singularidade do abaisi, ser que habita os outros pata-
mares do cosmos. Há uma vinculação entre os ibiisi e os abaisi: estes são, na
verdade, produzidos a partir de alguma interferência nos corpos dos ibiisi.
Quando o ibiisi sofre um dano, algo que altera sua forma corporal, surge,
então, o abaisi um ser que guardará para sempre as características corporais
alteradas naquele corpo. Essa alteração da forma corporal do ibiisi gerando o
abaisi pode ser descrita enquanto um processo de transformação, entendido
aqui como transgressão, desordem e, ao mesmo tempo, criação. O abaisi é,
portanto, o resultado de uma alteração acidental na forma do ibiisi, do corpo.
Nesse sentido, os abaisi resultam de uma transformação do corpo, corres-
pondem a uma alteração física produzida por um acontecimento que lhes
deu origem. Todas as vezes em que as pessoas se defrontam com um abaisi,
indagam: “hi goo kaisigiai hi” (“Qual é o seu nome?”). Querem saber o nome
para identificar sua origem e o evento responsável por sua produção. Assim,
o abaisi Iabuhua tem o pé curto; Ooge tem a mão grande. A maioria dos no-
mes de abaisi descrevem seus defeitos físicos. Evidencia-se a mesma lógica do
acontecimento como necessária para a conceituação dos seres ibiisi e abaisi.
Os abaisi encarnam ao mesmo tempo a fórmula da extrema singularidade
e da multiplicidade, uma fusão entre o indivíduo e a classe. Todos os indiví-

146
duos que pertencem à mesma classe abaisi são, por definição, iguais, têm uma
mesma marca que os particulariza. Todos os indivíduos da classe Pahaibiihi
são altos e têm o cabelo preto. Os Tahoe são altos e têm o cabelo vermelho,
e cada um se apresenta a partir de suas singularidades corporais. Além de os
abaisi serem descritos através de suas marcas corporais e pelo lugar que habi-
tam no cosmos, são também particularizados pelo tipo de bebida e comida
que consomem, pelos seus adornos corporais e pelas canções que entoam.
A primeira vez que uma pessoa recebe um nome de abaisi é sinal, tam-
bém, de que está ganhando a possibilidade de não ser apenas corpo (ibiisi).
Com o nome de abaisi, o ibiisi adquire, ainda em latência, a capacidade de
se transformar em kaoaiboge e toipe. Os nomes de abaisi são achados pelos
xamãs em seus contatos com os abaisi e, posteriormente, fixados pelo cônju-
ge. Cada casamento produz novos nomes de abaisi.
Os seres Kaoaiboge e Toipe são as transformações póstumas, destino dos
Pirahã. Os Pirahã descrevem o processo de transformação em kaoaiboge e toipe
da seguinte forma: cada nome de abaisi que um corpo (ibiisi) porta dá origem
a um kaoaiboge e um toipe. Os ibiisi ganham muitos nomes de abaisi durante
sua existência (a cada casamento, por exemplo) e, em função de cada um,
podem se transformar. Assim, um ibiisi se prolonga em múltiplos kaoaiboge e
toipe. Desde o momento em que um ibiisi tem um nome de abaisi, os xamãs
passam a acompanhar as transformações e as andanças pelo cosmos de seus
kaoaiboge e toipe. Os kaoaiboge e toipe, em estado de latência, liberam-se nos
momentos em que o ibiisi está no estado de não-consciência, ou seja, enquan-
to está dormindo ou quando está acometido por uma grave doença.
É o sono, e não o sonho, que se torna responsável pela liberação dos kaoaibo-
ge e toipe. Enquanto as pessoas estão dormindo, seus kaoaiboge e toipe vagam pelo
patamar Pirahã, interagindo com os demais kaoaiboge e toipe dos outros ibiisi.
Nessas ocasiões, estão sujeitas a sofrer ações capazes de apressar suas transforma-
ções, até chegarem ao último estágio: assumir a forma de uma onça imortal.
Quando o ibiisi morre, os kaoaiboge e toipe, que ainda não se transfor-
maram completamente, que não viveram, até o fim, as suas próprias vidas
e que, portanto, estão em latência no ibiisi, são liberados definitivamente,
passando a habitar não mais o patamar dos Pirahã, mas o primeiro patamar
subterrâneo. A partir desse instante, passam a viver suas próprias transfor-
mações, seus destinos, que serão acompanhados pelo xamã. Quando o xamã
viaja para o patamar subterrâneo, entra em contato com esses seres, e muitos
deles comparecem ao patamar Pirahã.

147
O processo de transformação em kaoaiboge e toipe se dá a partir dos
nomes de abaisi que uma pessoa porta. Assim, as transformações se multi-
plicam, tornando ainda mais complexo esse sistema de transformações que
engloba a vida e a morte do ibiisi. O modo como são conduzidas as transfor-
mações desses seres acentua a importância da singularização do corpo (ibii-
si), pois na verdade um ibiisi dá origem a uma multiplicidade de singulari-
dades, os kaoaiboge e toipe se ramificam e se transformam em outros tantos
que marcam mais uma vez a história singular daquele ibiisi. Na verdade, as
transformações de um corpo, desde o ato de sua concepção e depois, dando
origem aos seres abaisi, kaoaoboge e toipe, produzem a história particular de
um corpo, o que lhe originou, seus casamentos, suas relações com animais e
vegetais e com os demais seres do cosmos.
Se é durante o sono que se dá a liberação dos kaoaiboge e toipe, quando
estes passam a construir suas histórias singulares vinculadas ao corpo que lhe
deu origem, é durante o sonho que a pessoa pode ter uma experiência que seria
como uma síntese da conceituação do pessoal. Os Pirahã não costumam con-
tar os sonhos de outras pessoas, mesmo que sejam capazes de reproduzi-los em
detalhes. O sonho é, portanto, uma experiência pessoal, a narrativa construída
fala de um ser específico que viveu aquela experiência, e a pronominalização
do “eu”, enquanto agente de uma experiência, se impõe na forma da narrativa.
Os Pirahã produzem uma narrativa na qual a experiência pessoal é central,
uma narrativa onírica pessoal que descreve relações particulares com os seres
abaisi, kaoaiboge e toipe, com os animais, com as demais pessoas, marcando
assim um momento no processo da existência do sonhador e de suas relações
com os seres do mundo conceitualizados a partir da experiência onírica.
O experimento e a experimentação fazem parte de uma epistemologia
Pirahã que valoriza o evento, o acontecimento, o estar (mais do que o ser) no
mundo. O experimento permite a criação de novas coisas: as pessoas experi-
mentam construir casas diferentes, confeccionar novos colares, pescar de uma
determinada maneira, comer alimentos que antes não consumiam. É necessá-
rio experimentar, produzir uma primeira vez, para que sejam instituídos uma
forma e um modo de se fazer as coisas. O “experimento” permite a permanente
criação e a invenção do cosmos a partir de pontos de vistas particulares. A for-
ma como os Pirahã engendram e constroem relações com os animais e vegetais
a partir de relações recíprocas de predação e contra-predação pode, também,
ajudar na conceituação do pessoal, uma vez que as relações dos Pirahã com
esses seres não podem ser simplesmente descritas como sendo entre humanos
e os mundos animal e vegetal, mas sim entre pessoas e seres particulares que

148
tiveram uma interação específica. É durante a sessão de xamanismo que a in-
teração ganha concretude. O xamanismo ocorre na época da seca, sobretudo
quando os Pirahã ocupam as praias que despontam ao longo dos rios Maici e
Marmelos. É realizado durante a noite, quando um dos xamãs entra na mata
e “troca de lugar” com os mortos, com os seres que habitam os demais pata-
mares do cosmos e/ou com as transformações de animais mortos pelos Pirahã.
O resultado dessa “troca de lugar” engendra uma série de acontecimentos, que
estruturam um discurso singular referido àquele momento particular e único
de sua execução; discurso esse que narra a história de um episódio.
O xamanismo Pirahã dá pouca ênfase à cura e se ocupa mais em descre-
ver, de um ponto de vista particular, encontros específicos. Deu-se, assim,
no caso de uma taquara que foi arrancada para servir de ponta de flecha e
para a fabricação de colares. Passados alguns dias, a taquara transformada
compareceu à sessão de xamanismo:
– Algum Pirahã me arrancou e me cortou. Eu vim atrás dele agora. Disse
para não mexer comigo; não fazer flecha, não fazer colar. Eu vou furar aquele
que me cortou. Quem me trouxe, quem me arrancou? – Perguntava a trans-
formação do ser da taquara.
O mesmo se passou em outra sessão ritual, quando um tracajá e uma
anta compareceram transformados, querendo se vingar daqueles que haviam
iniciado uma ação contra eles. Vejamos:
– Eu sou aquele tracajá que Hiabi matou e comeu; virei kaoaiboge: sou baixo
e ando sobre dois pés. Cuidado comigo porque sou forte, sei brigar. A anta vem
atrás de mim, vocês a mataram também. Agora ela é kaoaiboge.
Chegou a anta kaoaiboge e disse:
– Meu nome é Aiaitaube. Este é o meu nome. Chega de me comer, eu
sou corajoso, eu quero brigar. Aquele que me matar vai defecar igual a mim
e, por isso, vai morrer. Agora eu vou dormir.
É importante salientar que o próprio discurso produzido na sessão de
xamanismo põe em evidência o encontro de diferentes percepções sobre o
cosmos e, por isso, é um momento de interação criativa, por excelência. As-
sim, o xamanismo é o espaço de criação e de fabulação não menos conceitual
porque individualizado. As sessões descrevem acontecimentos particulares,
elaborações específicas de determinadas situações vividas pelas pessoas e de
suas ações no mundo que produzem os seres que comparecem às sessões.
O xamã é aquele que “fala” e também aquele que “conta”, e o verbo
“ahoa empregado para sua atuação tem este duplo significado, o de falar e
contar. O xamã é quem enuncia um discurso sobre a cosmologia. Porém,

149
discursos distintos que assumem diferentes percepções. Enquanto os seres
do cosmos estão no patamar Pirahã durante a sessão do xamanismo, o xamã
“troca de lugar” com eles e passeia por “outras terras”. Nesse contexto, o
xamã presentifica literalmente a percepção dos demais seres e, é dessa pers-
pectiva, dos abaisi, dos kaoaiboge, dos toipe, dos animais que o cosmos é
recriado na sessão de xamanismo. Destaco aqui que a noção de perspectiva e
de ponto de vista (Viveiros de Castro, 1996; Lima, 1996), mais do
que a de perspectivismo, parece ser fundamental na forma como os Pirahã
conceituam o mundo, uma vez que se trata, de pontos de vista particulares,
ou melhor, ponto de vista literalmente “encorporados”.
Se o xamã Pirahã é de fato um tradutor, no sentido de que totaliza os
pontos de vistas dos seres do mundo a partir de seu próprio ponto de vista
sobre o mundo, torna explícitos, na forma que apresenta o mundo, os pro-
blemas da tradução. Assim, a tradução que faz é sua própria conceituação
pessoal, baseada em sua experiência; uma pessoalidade que implica tornar
essa traduação radicalmente singular (Carneiro da Cunha, 1998).
Depois da sessão, o xamã assume sua própria percepção do cosmos, a
do ibiisi, do ser humano, quando então enuncia o discurso sobre o que pre-
senciou nos demais patamares do cosmos. Conta o que viu nas outras terras.
Assim é que se constrói o conhecimento e são difundidas as informações. O
discurso após a sessão se constrói a partir de comparações, do “parecer”, cons-
truindo ligações entre o seu patamar e os demais, entre os distintos seres que
os habitam. O xamã conta o que viu, narra sua experiência, descreve o que
presenciou, as paisagens e os seres. A descrição dos patamares nunca se com-
pleta, está sempre à espera de outras informações para detalhar um ponto ou
aprofundar um tema. Assim, não há descrições prontas sobre cada um dos pa-
tamares; ao contrário, elas variam conforme o narrador. O discurso do xamã
após a sessão nada mais é que a conceituação do pessoal, engendra um ponto
de vista particular sore o mundo. O “experimento” e a ideia de “parecer” ex-
pressam uma determinada forma de criar pessoalidade na descrição dos pata-
mares. O parecer opera por comparação entre as coisas e por isso depende de
quem estabelece a comparação. O “parecer” põe em relação todos os elemen-
tos presentes no cosmos, evidenciando um modo singular de o pensamento
apresentar o mundo em que tudo se “parece” porém nada é exatamente igual:
a areia da praia é grossa e “parece” farinha; a areia da praia é preta e “parece”
café; a nuvem “parece” papel; a água de cima é grossa e “parece” mel.
Forma privilegiada de expressar as ideias, o “parecer” permite assim uma
apresentação discreta do cosmos, em que palavras como comprido (pi”i),

150
curto (tseioíhii), estreito ou pequeno (“oíhi/kóíhihi), fino (“aaíbi), grande
(“ogií), grosso (ibigái) abundam, destacando a multiplicidade de suas formas
e a singularidade de seus personagens e de suas paisagens. Assim, os animais,
a vegetação e os seres dos demais patamares do cosmos são distorcidos, redu-
zidos, aumentados, prolongados, estendidos e transformados.
Em suma, nessa acepção, a cosmologia surge conceituada a partir de
pontos de vistas particulares, o dos xamãs, que produzem significados basea-
dos em suas experiências, criando valores novos e interpretações sem, neces-
sariamente, excluir incoerência e contradições de seus discursos. Penso que o
que chamamos de cosmologia é somente possível de ser apreendida a partir
dessa conceituação sobre o mundo em que o pessoal e o singular têm um
papel preponderante.

Conceituando o pessoal e a pessoalidade


Penso que essa forma de apreender e apresentar os valores, as noções e os
conceitos a partir do singular, conceituando o pessoal, ultrapassa o material
Pirahã e vai ao encontro a outras formas amazônicas de construir e pensar a
experiência, o acontecimento, o evento e a individuação.
No caso Piaroa, por exemplo, o ruwang, ao construir narrativas parti-
culares, como a que explica que a doença de um homem foi produzida pelo
contato com a urina do queixada enquanto ele tomava banho, acentua a
relevância de um ponto de vista particular, do qual provém seu poder e seu
efeito (Overing, 1995). Do mesmo modo, os Piaroa declaram essa inten-
ção de conceituar a partir do pessoal e do singular quando atribuem que as
coisas feitas por uma pessoa são seu “thought”(a”kwa), e por essa razão as coi-
sas funcionam: um pote pode cozinhar, uma arma pode matar e até mesmo
a criança é um “thought” dos seus pais (Overing, 1996). Assim, é no coti-
diano, através desses “atos pessoais”, que se produz um sentido para as coisas,
na forma como são referidas a um ato particular que envolve um criador e a
própria criação, isso é, o momento constitutivo de sua pessoalização.
A recorrência da evocação das “estruturas performativas” de Sahlins
(1987) para a paisagem amazônica chama a atenção, mais uma vez, para a
importância de os atos criarem relações, no sentido de que os atos (predação
ou produção) fazem com que surjam sujeitos, pessoalizados, singularizados
pelos próprios atos que lhes deu origem. As coisas e os seres são criados não
simplesmente por relações, mas por atos apropriados. (Overing, 1996).
Por isso a importância do cotidiano e das relações íntimas, carregadas de

151
pessoalidade, que são capazes de engendrar relações derivadas de atos que
produzem singularidades e pessoalidade, criando a vida social através da ex-
periência. Por isso mesmo o parentesco amazônico pode ser percebido lite-
ralmente como um sistema de subjetividades (Gow, 1997), uma vez que o
parentesco é ao mesmo tempo produto e produtor da história.
Essa mesma percepção talvez possa ser estendida para a conceituação dos
objetos na Amazônia. As pessoas empregnam as coisas de pessoalidade (“exis-
tencialidade”) no momento mesmo de sua fabricação. Para os Pirahã, a palavra
kaisai (kai,fazer; sai,nominalizador: kaisai = fabricador) é usada no contexto
de fazer uma criança ou fazer objetos. Desse modo, Kaisai, o fabricar, implica
na ideia de impregnar o que é produzido, uma consubstancialização que pro-
duz corpos ou objetos. E não seria por outro motivo que os Piaroa dizem que
os “thoughts” produzem também crianças (Overing, 1997).
Desse modo, os objetos acumulam, via seu criador/possuidor, um quan-
tum de pessoalidade, já que está referido a um sujeito que lhe deu “vida”,
“existência” e, talvez, seja por este motivo que são destruídos quando da mor-
te de seu criador/possuidor. Deixam de ter existência quando não se referem
mais àquele que lhe empresta pessoalidade. Se na Melanésia as coisas são o que
“embody the relational capacity of persons” (Weiner, 2001: 4), isso é, sendo
parte das pessoas podem ser destacadas (detachable) e quando vão em direção
a outras pessoas, via troca, guardam sua condição de parte da pessoa que a
possuía, o que faz do próprio ato da troca nada mais do que bens que conec-
tam pessoas e fazem relações. É nesse sentido que Wagner (1991: 165) atribui
aos bens fabricados/possuídos o valor de serem “relacinais e implicados na
congruência que sublinha o refazer da forma humana, sentimento e relações”.
Strathern acentua que para os Melanésios o importante é a “capacidade de
relações e não os atributos das coisas”(Strathern, 1988: 179). A pessoa é
constituída por um compósito de relações, ultrapassa as fronteiras do corpo,
constituído enquanto uma ideia de unidade e, assim, elas e os objetos seriam a
objetificação das relações que uma pessoa engendra. Por isso, a pessoa, “sendo
múltipla, é, também, partível, uma entidade que pode ser disposta de parte na
relação com o outro”(Strathern, 1988: 185). A caracterização da socia-
lidade Melanésia, fundada numa determinada concepção do que seja relação,
produz uma pessoa partível, um “divíduo” relacional.
Da mesma forma que a ideia do “dividual” na Melanésia, a subjetivação da
pessoalidade na Amazônia acentua, também, a essência relacional de se cons-
truir a socialidade. Porém, na Amazônia a relação é o produto direto da possi-
bilidade de pessoalização, ou seja, de se empregnar algo (pessoas ou objetos) de

152
subjetividade, de torná-los não apenas sujeitos genéricos, mas pessoas singula-
res subjetivadas, o que seria a garantia e a possibilidade de uma relação.
Se a máxima amazônica é tornar os mortos em outros (Carneiro
da Cunha, 1978), essa transformação exprime a importância da dessub-
jetivação de uma pessoalidade. A forma de canibalismo funerário, a ideia de
comer por compaixão, analisada por Conklin entre os Wari, acentua o cará-
ter pessoalizado daquele ser morto, enfatizando que não se está comendo um
corpo humano genérico mas um ser singular, que o ato da ingestão retira sua
subjetividade pessoalizada, uma forma de “d-existencialização”, cujo proces-
so engendra o processo de esquecimento baseado na destruição de sua subje-
tividade pessoal no mundo. Destruída sua pessoalidade, retirada sua subjeti-
vidade, esse morto deixa de ser lembrado, pois sua memória personificaria a
todo momento aquela singularidade. O processo de “d-existencializar” uma
singularidade subjetiva pode ser percebido na forma como se expressa um
informante de Conklin quando associa o enterramento à tristeza. O enterra-
mento em oposição ao canibalismo funerário seria o ícone sempre presente
do morto, o que lhe permitiria ser lembrado, enquanto a destruição do corpo
pela devoração é o que permite o esquecimento (Conklin, 1995: 88).
Taylor (1993: 654-5) aponta para o paradoxo proposto entre o lembrar
e o esquecer o morto na Amazônia e sua vinculação com processos de pes-
soalização: ao mesmo tempo que o morto permanece pessoalizado, o morto
é “des-lembrado”(disremebering) pelos vivos, que suprimem seu nome, sua
imagem e sua história. O morto deve deixar de ser familiar para ocupar um
outro lugar, o de parceiro social.
A noção de esquecimento é central para que o morto possa ser lembrado
como um parceiro social e não uma pessoa singular vivente. O que parece
ser crucial na argumentação de Taylor é que tanto o esquecimento quan-
to a lembrança apontam para conceituações de pessoalidade, uma vez que
o morto, por seu esquecimento, não é posto numa categoria anônima de
“membros do clã” por exemplo e sua lembrança não produz um “herói histó-
rico” ou um exemplo. A pessoalização está presente em ambas as formas de se
proceder, apenas o processo de des-lembrar ou esquecer d-existencializa uma
imagem e, por conseguinte, uma presentificação de sua pessoalidade através
do seu nome, de sua experiência pessoal, de sua história. Neste novo registro,
o morto pode se transformar, passa a ser um outro, porém, não menos pesso-
alizado por isso, que atua em um outro registro de relações.
O problema do esquecimento do morto para os Pirahã foi formulado a
partir da morte de três pessoas numa família: primeiro a mãe, depois o filho

153
pequeno e posteriormente o pai. Uma cadeia de mortes produzidas pelo
não esquecimento. Depois da morte da mãe, o bebê não conseguia esquecer
dela e morreu de tristeza, e seu pai, mais tarde, morre também, porque não
conseguia esquecer de ambos, filho e esposa mortos. A lembrança presentifi-
cava o morto, tornando-o perigoso, atentando contra a vida daqueles que se
lembravam dele. Nessa acepção, a lembrança dos mortos pelos vivos é peri-
gosa, como se anunciasse sua presença entre os vivos e não permitisse que se
transformasse em outras formas que poderiam manter contato com os vivos
em outra base de vínculo em que a transformação kaoaiboge e toipe aponta
para transformações corporais e estados de ser distintos dos viventes, embora
ainda pessoalizados e referidos àquele corpo vivo que lhe deu origem.
A subjetivação na Amazônia, construída conceitualmente a partir das
noções de perspectivismo (Viveiros de Castro, 1996) e de animismo
(Descola, 2005), acentua que os animais são concebidos ou tornados su-
jeitos, o que qualifica uma possibilidade de relação com os humanos. No caso
Pirahã, a pessoalidade é gerada a partir de processos que produzem existencia-
lidade, através da experiência, das coisas e dos seres. Nesse sentido, não se tra-
ta de apenas uma espécie (animal ou vegetal), humanos ou objetos enquanto
sujeitos genéricos, mas sim processos de criação e destruição (transformação)
que produzem subjetividades pessoais (Descola, 2005: 178). Assim, não é
o tapir em geral que produz malefícios mas um tapir específico que fez parte
de uma narrativa particular, que fez parte de uma experiência, foi caçado ou
morto por alguém em particular. Do mesmo modo, uma flecha ou um arco
está impregnado de existencialidade, no sentido de que é produto de uma in-
terferência pessoal que lhe dá um sentido próprio, retirando-o de uma noção
de espécie genérica, ou sujeito genérico, atribuindo-lhe um sentido de subje-
tividade pessoal relacionável. Um ponto importante é que se o que é ingerido
deve ser de-subjetivado (Fausto, 2002), a retirada de seu aspecto subjetivo,
de agente, enfatiza por outro lado um ato particular, a predação, um encontro
específico que produziu uma pessoalidade em que uma singularidade predada
ganha existencialidade. Dessa forma a predação não é um ato genérico contra
animais, mas um ato pessoal que singulariza aquele ser particular que ganha,
por sua vez, uma força reativa. A ética alimentar Pirahã, quando privilegia
os peixes em geral e outros animais com pouco sangue, está de algum modo
conceituando genericamente a virtualidade da subjetivação desses seres e o
seu perigo, mas ao mesmo tempo conceitua o ato pessoal do predador como
aquele que produz a contrução da pessoalidade ao instaurar regimes de subje-

154
tivação, o que resulta, por sua vez, em regimes de relações construidas a partir
de atos singulares derivados da experiência pessoal.
Parece que a relação entre sujeito-objeto não é evidente nesse contexto,
uma vez que a virtualidade conceitual, o a priori, é sempre a relação entre
sujeitos. Nesse sentido, pode-se afirmar com Weiner que “subject-object re-
lationships do note exhaust our ways of beig-in-the-world” (200: 78) e que este
valor do ser no mundo deriva da experiência e da forma de subjetivação e
conceituação do mundo.
Retomo aqui um problema proposto por Thorstein Veblen (1914: 58-9)
revisto por Diggins (1977: 129) quando discute o animismo e a origem da
alienação. Veblen aponta para duas formas diferentes de se construir a rela-
ção quando se parte de duas concepções distintas de formular a questão em
relação às coisas (animais, vegetais, objetos), ou seja: “What can I do with it?”
ou “What can it do on its own?”. Duas formas de se construir uma relação
social: as coisas como apenas efeito de uma ação humana ou as coisas como
sujeitos na interação com os humanos. A segunda alternativa, considerada
por Veblen como a forma animística de construir relação social, enfatiza o
aspecto de relatedeness do animismo já apontado também por Bird-David
(1999). Em um universo povoado virtualmente por pessoas (humanos, ani-
mais e coisas), o que existe é um mundo relacional que somente pode entrar
em operação no nível da experiência. Se a indistinção é generalizada, a dis-
tintividade e a singularidade são garantidas pela experiência que subjetiva
uma pessoalidade apontando não para a possibilidade da relação social entre
pessoas e coisas, mas para a qualidade dessa relação social, qualidade que é
conceitualizada a partir de uma experiência, do ser no mundo, que pessoali-
za e qualifica os sujeitos que interagem nesse mundo. Nesse sentido não é a
condição propriamente de sujeito estendido a todos os seres que seria o sui-
generis ou a raison d”etre dos amazônicos, mas sim a qualidade dessa relação
de sujeito acionada de um ponto de vista da experiência que constitui sin-
gularidades subjetivadas e, portanto, relacionáveis. Em suma, o processo de
othering (alteração), tornar-se outro, não é uma des-subjetivação do sujeito
(Kelly, 2001) tomado enquanto categoria genérica e virtual, mas sim uma
desubjetivação de uma singularidade, de uma pessoalidade.
Taylor (1995: 206) nos adverte, a partir do material Jivaro, que a questão
da pessoalidade estaria ancorada no senso de singularidade da forma. Entre-
tanto, isto não significa que os Shuar “experienciam eles mesmos como uma
genérica singularidade”. Se a singularidade é reconhecida na forma corporal,

155
ela não dá aos Shuar subjetividade. Chegamos aqui ao problema central de
como associar pessoalidade à subjetividade. Para os Pirahã, como para mui-
tos amazônicos, a questão se apresenta a partir de lógicas complementares; se
o universo ganha sentido de semelhança e consequente subjetivação genérica
via uma substância vital (etoibii), comum a todos os elementos e seres do
cosmos, por outro lado há um acentuado esforço de se criar pessoalidade,
especiação através das formas corporais distintas no mundo (segue-se aqui o
mesmo princípio do perspectivismo [VIVEIROS DE CASTRO, 1996], que
extrai sua maior implicação de que a diferença está no corpo). No entanto,
os Pirahã acentuam que se existem seres e elementos homólogos ou análogos
(instituídos pela noção do “parecer”[igiabisai]), não existem seres exatamente
iguais. Assim, semelhança não seria o equivalente de indiferença, pelo contrá-
rio, o semelhante ou o parecido institui em nível infraestrutural a singulariza-
ção dos seres e elementos do cosmos, seguindo a máxima Pirahã de que “nada
é igual mas tudo se parece”; um sistema classificatório orientado em produzir
não apenas diferenças mas singularidades, pessoalidades. As singularidades
são produtos diretos de uma relação (os corpos e suas criações, destruições e
transformações) entre outras tantas singularidades. Nesse sentido, para se ins-
tituir uma pessoalidade é necessário um evento, uma experiência, uma atua-
ção no mundo que implica inserir a criação e destruição dos seres e elementos
em regimes de subjetividade. Portanto, subjetividade, para os Pirahã só pode
ser pensada através de sujeitos encorporados, pessoalizados. Tornar-se sujeito
não é apenas uma forma de o pensamento proceder a uma classificação, mas
uma forma de produzir uma pessoalidade a partir de uma experiência. Por-
tanto, pessoalização produz subjetivação.
Assim, o processo de pessoalização, de existencialização criando subjeti-
vação, faz com que objetos, animais, inimigos, humanos e não-humanos, se
tornem sujeitos (tomados aqui como pessoas, singularidades) relacionáveis.
Mais do que estender humanidade para as fronteiras do que seria conside-
rado não-humano, os amazônicos estariam empregnando o mundo de sub-
jetividades a partir de uma lógica da pessoalização, o que Gow (1991: 151)
precisamente denominou de “a importância das relações pessoais e da expe-
riência em uma epistemologia”. Por este motivo, é praticamente impossível
na Amazônia definir conceitos puros e inequívocos de um ponto de vista
abstrato como a conceituação de inimigo, animal, afim, parente, sujeito,
objeto, humano. É necessário, sempre, recorrer a uma forma de pessoali-
zação, particularização, para que essas entidades ganhem sentido através da
experiência. Assim, é possível perceber que para os amazônicos a questão de

156
fundo que ocupa seu pensamento e que povoa sua apresentação do mundo
é o modo como se empregna (e se retira) existencialidade às coisas e aos
seres, formas de se construir ou não relações, isso é, o modo como tornam
coisas e pessoas singulares, portanto subjetivas, através de um processo de
pessoalização que transforma afins em parentes (Overing,1975); mortos
em “outros” (Carneiro da Cunha, 1978); pássaros femininos e pás-
saros masculinos em homens e mulheres (Bealunde, 2001); parentes em
humanos (Gow, 1997); inimigos em familiares (Fausto, 2001); animais
e vegetais em sujeitos (Descola, 1986); objetos (com sua agência) em su-
jeitos (Lagrou, 2007); humanos em deuses (Viveiros de Castro,
1986). Nesse contexto, relação e subjetivação significam gerar processos de
pessoalização, de construir singularidades que dependem da experiência. As
relações sociais não prefiguram, mas são configuradas a partir dos processos
de existencialização das coisas e das pessoas ao se construirem as marcas da
pessoalidade na Amazônia.

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