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ÁLVARO CARLINI

CANTE LÁ QUE GRAVAM CÁ:


MÁRIO DE ANDRADE E A MISSÃO DE PESQUISAS
FOLCLÓRICAS DE 1938

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Departamento de História da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (USP), sob orientação
da Profa. Dra. Mary Del Priore

São Paulo
- 1994 -
2

AGRADECIMENTOS

A Mary Del Priore, mais que orientadora de pós-graduação, uma amiga que soube me auxiliar nas horas de
indecisão, recebendo-me com disposição e realizando observações críticas de extrema valia;
A José Américo Motta Pessanha (in memoriam), filósofo, ex-diretor do Centro Cultural São Paulo, que
compreendeu a necessidade premente de estudo e divulgação do acervo da Missão, permitindo sem entraves a
realização da pesquisa;
Aos amigos Tamiko Shimizu, Lenira Ribeiro Lima, Rita Magalhães Marques, Egle Alonso Leite, José Eduardo
Azevedo, Antônio Dantas Teixeira, funcionários do Centro Cultural São Paulo e da Discoteca Oneyda Alvarenga, que
me auxiliaram nos projetos desenvolvidos na institutição, colaborando para o livre acesso ao material pesquisado;
A Nilcéia Baroncelli, José Bento Faria Ferraz, José Saia, Márcia Fernandez, pelas valiosas informações
obtidas através de comunicações pessoais;
Aos Profs. Drs. Janice Theodoro da Silva e José Miguel Wisnik, pelas várias sugestões dadas durante o
exame de qualificação;
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo apoio financeiro concedido
através de Bolsa.
A todos amigos, Maria Baixinha, Samoca, Anzai, Paulo Castagna, Daniel, Bino, Ramoska, Léo, que me
suportaram durante os anos de obsessiva pesquisa, em que minhas conversas, mesmo nos períodos de relaxamento,
versavam quase que exclusivamente sobre a Missão e suas conseqüências;
A Vânia d'Almeida, um amor presente em minha vida, que soube suportar com paciência minhas angústias,
além de me auxiliar, colaborando na digitação da bibliografia e na revisão dos originais. A Felina Kiri, minha gata de
estimação que acompanhou “atentamente” a fase final de redação do trabalho.
3

APRESENTAÇÃO

Este não é um estudo realizado por historiador. O trabalho apresentado aqui é resultado de pesquisa em
história efetuada com o intuito de resgatar documentação ainda inédita, embora catalogada e sistematizada,
pertencente ao Acervo Histórico da antiga Discoteca Pública Municipal, seção da Divisão de Expansão Cultural do
Departamento de Cultura de São Paulo, atualmente com o nome de sua primeira diretora: Discoteca Oneyda
Alvarenga, localizada no Centro Cultural São Paulo, órgão da Secretaria Municipal de Cultura.
Idealizada por Mário de Andrade, a Discoteca Pública Municipal se responsabilizou pela realização da Missão
de Pesquisas Folclóricas, expedição etnográfica pioneira que percorreu, no primeiro semestre de 1938, o Nordeste e
Norte brasileiros com o objetivo principal de gravar em discos de acetato manifestações musicais dessas regiões.
Sendo músico de formação, me surpreendi com a quantidade e qualidade de documentação recolhida pela
Missão, em parte divulgada através de publicações especializadas, editadas com a coordenação eficiente de Oneyda
Alvarenga entre os anos de 1945-1956. Porém, surpresa maior tive ao perceber que este evento significante - seja
como marco na história da etnografia brasileira, seja como elemento importante para a compreensão de aspectos do
Modernismo Musical preconizado por Mário de Andrade - pouco havia sido dimensionado e analisado por estudiosos
no assunto. Não obstante algumas iniciativas nesse sentido, a história da Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938, de
seus antecedentes, o dia-a-dia da equipe durante a viagem da expedição e as conseqüências após o retorno a São
Paulo, era, e ainda é, praticamente desconhecida da maioria dos historiadores e interessados.
Com o objetivo de recontar a história pioneira da expedição, foi realizada uma revisão crítica no acervo original
preservado na Discoteca Oneyda Alvarenga, particularmente do material fonográfico e escrito, em grande parte ainda
em seu estado bruto de colheita. Entre 1988-1993, durante a pesquisa do dia-a-dia da equipe, quando foi transcrita
parte da documentação manuscrita, pude reorganizar também o acervo de discos de acetato registrados pela Missão e
pela Discoteca Pública Municipal. Esse trabalho resultou na regravação do material original em acetato - agora
acessível à consulta pelos estudiosos após um lapso de vários anos -, além da publicação de catálogo sobre o acervo
fonográfico.
A viagem da Missão de Pesquisas Folclóricas ocorreu no 1º semestre de 1938, período de grandes mudanças
político-sociais. A ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas havia sido decretada meses antes da partida da equipe,
em novembro de 1937, determinando o recrudescimento de práticas repressivas e coersitivas, que colaboraram
indiretamente para o afastamento de Mário de Andrade do Departamento de Cultura de São Paulo.
Neste trabalho foram feitas, deliberadamente, poucas articulações minuciosas com o corpo histórico em
questão, seja com o Estado Novo, seja com as atividades de Mário de Andrade ou do Departamento de Cultura de
São Paulo. Diante da riqueza e avalanche documental, julguei realizar uma melhor contribuição refazendo a trajetória
da viagem da Missão, expondo a documentação com alguma pertinência e coerência interna, não adentrando em
discussões históricas específicas que minha formação acadêmico-profissional inviabilizariam. Na realidade, falta-me
desenvoltura e profundidade de conhecimentos específicos para a análise histórica adequada dos diversos
componentes que se cruzam no cotidiano da Missão.
O objetivo desta pesquisa foi de menor dimensão, se restringindo ao cotidiano da Missão de Pesquisas
Folclóricas de 1938, sobretudo de como ocorreram as operações para a coleta de manifestações musicais, quais as
influências recebidas pela equipe para o procedimento metodológico adotado (ou a ausência dele), como se deram as
relações humanas entre os componentes da expedição, como se passou o cotidiano da Missão, onde dormiam,
quanto gastavam, como se alimentavam. Fazendo uso de adequada expressão cunhada por J. M. Wisnik, membro da
banca examinadora de qualificação, o objetivo deste trabalho foi procurar realizar uma “antropologia de
4

antropólogos”, percorrendo descritivamente o microcosmo da expedição, procurando relatar com minúcias seu dia-a-
dia. Longe de esgotar as possibilidades do tema, pretendi com essa dissertação fornecer fontes documentais que
permitirão a outros pesquisadores ampliar as vertentes de interpretação, investigando em perspectiva histórica o
evento Missão de Pesquisas Folclóricas.
Ao finalizar este trabalho, permanece a firme convicção de sua abrangência, utilidade e importância, pois a
documentação aqui exposta, além de praticamente inédita, relaciona-se de maneira global aos estudos históricos
sobre o período em questão - Estado Novo Getulista. Essa mesma documentação interessa àqueles que se dedicam a
estudar e analisar o Modernismo Musical de Mário de Andrade e a atuação do Turista Aprendiz à frente ao
Departamento de Cultura de São Paulo, contribuindo para recontextualizar a Missão de Pesquisas Folclóricas,
inserindo-a no quadro das iniciativas etnográficas e musicais pioneiras no Brasil.
5

ÍNDICE

CAPÍTULO I
ANTECEDENTES
1 - Folclore e Música Erudita.................................................................................................................................................7
2 - Estudo e aproveitamento do Folclore Musical no Brasil................................................................................................11
3 - A gênese da Missão de Pesquisas Folclóricas nas viagens do Turista Aprendiz.......................................................17
4 - O projeto de gravações em discos da Discoteca Pública Municipal: estabelecendo critérios e métodos para os
registros fonográficos da Missão...........................................................................................................................22
5 - Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF): contribuição para a metodologia de coleta etnográfica utilizada pela
Discoteca Pública Municipal..................................................................................................................................30
5.1 - O curso de Dinah Lévi-Strauss: Etnografia e Folclore..................................................................................30
6 - Camargo Guarnieri na Bahia - Influência de Mário de Andrade - informações metodológicas para a coleta musical
da
Missão....................................................................................................................................................................33
CAPÍTULO II
PREPARATIVOS
1 - As recomendações iniciais de Mário de Andrade: cuidado com os discos de acetato e a exclusividade na divulgação
dos resultados obtidos pela Missão.......................................................................................................................36
2 - Instruções gerais de Mário de Andrade: organização para a pesquisa de
campo.........................................................38
3 - Instruções específicas para a coleta da Missão: subsídios para “Na Pancada do
Ganzá”............................................40
4 - Colaboração de Oneyda Alvarenga: a orientação ao pesquisador e as fichas
catalográficas......................................42
4.1 - A Ficha de Campanha...................................................................................................................................42
4.2 - As Fichas de Local e de Repertório...............................................................................................................44
4.3 - Documentação e informes complementares às gravações..........................................................................45
5 - A escolha dos componentes da equipe técnica da Missão de Pesquisas
Folclóricas...................................................46
5.1 - A escolha do músico......................................................................................................................................48
5.2 - Martin Braunwieser........................................................................................................................................50
6 - As cartas de apresentação da equipe da Missão...........................................................................................................53
7 - Sobre a reconstrução cronológica da viagem da Missão: os documentos....................................................................55
7.1 - As cadernetas de campo e anexos...............................................................................................................57
7.2 - As correspondências......................................................................................................................................61
7.3 - A Hemeroteca: artigos de imprensa..............................................................................................................63
7.4 - A documentação burocrática.........................................................................................................................64
6

CAPÍTULO III
A VIAGEM DA MISSÃO DE PESQUISAS FOLCLÓRICAS
1 - As verbas e salários.......................................................................................................................................................65
2 - O DIA-A-DIA DA EXPEDIÇÃO
2.1 - De 1º a 12 de fevereiro: a bordo do Itapagé - primeiros levantamentos etnográficos e divulgação do evento nas
cidades-escalas do navio-vapor............................................................................................................................67
2.2 - De 13 de fevereiro a 7 de março: contatos com a oficialidade do Recife e primeiros trabalhos efetivos de
documentação etnográfica....................................................................................................................................73
2.3 - De 8 a 15 de março: viagem ao interior de Pernambuco...........................................................................................84
2.4 - De 16 a 25 de março: últimos trabalhos etnográficos em Pernambuco - remessa dos objetos populares à São
Paulo - preparativos para a viagem à Paraíba......................................................................................................90
2.5 - De 26 a 31 de março: contatos com autoridades paraibanas - coletas na capital João
Pessoa................................94
2.6 - De 1º a 24 de abril: viagem ao interior da Paraíba - a zona do sertão.......................................................................98
2.7 - De 26 de abril a 1º maio: retorno a João Pessoa - pesquisas etnográficas e preparativos a segunda viagem ao
interior da Paraíba................................................................................................................................................110
2.8 - De 2 a 13 de maio: segunda viagem ao interior da Paraíba - a zona do Brejo........................................................115
2.9 - De 13 a 31 de maio: últimas coletas na capital João Pessoa - afastamento de Mário de Andrade em São Paulo -
incertezas da continuidade da Missão.................................................................................................................127
2.10 - De 31 de maio a 16 de junho: a caminho de São Luís do Maranhão - A parada forçada em Jaicós no
Piauí.....................................................................................................................................................................136
2.11 - De 17 a 20 de junho: contatos com autoridades e trabalhos etnográficos realizados em São Luís do
Maranhão.............................................................................................................................................................156
2.12 - De 21 de junho a 21 de julho: trabalhos etnográficos em Belém do Pará, contatos com autoridades e
personalidades locais - a “filha da rainha Luzia” - retorno a São Paulo...............................................................160
CAPÍTULO IV
A DIVULGAÇÃO DOS RESULTADOS
1 - Registros Fonográficos: os discos das séries F e FM da Discoteca Pública
Municipal...............................................167
2 - Publicações da Discoteca Pública Municipal referentes ao acervo da Missão..
2.1 - Coleção “Arquivo Folclórico”: o projeto de transcrições musicais dos discos gravados pela
expedição...............................................................................................................................................172
2.2 - Coleção “Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro” ......................................................................174

CONCLUSÃO...................................................................................................................................................................177
ALGUMAS FONTES DOCUMENTAIS PERTENCENTES AO ACERVO HISTÓRICO DA DISCOTECA PÚBLICA
MUNICIPAL
a) Correspondências............................................................................................................................................179
b) Hemeroteca.....................................................................................................................................................180
BIBLIOGRAFIA
a) Livros...............................................................................................................................................................181
7

b) Artigos..............................................................................................................................................................186
8

CAPÍTULO I
ANTECEDENTES

1 - Folclore e Música Erudita

A partir da segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento em escala mundial do movimento
Nacionalista Romântico, o folclore musical passou a ser valorizado como campo de pesquisa e utilizado como fonte
para compositores com formação erudita na elaboração de suas obras.
A criação musical no decorrer do século XVIII, manifestou sistematicamente uma preocupação voltada para o
presente: os compositores, em geral, pouco se interessavam sobre a música elaborada em épocas passadas, ou
mesmo, com as possíveis evoluções técnicas que essas criações musicais porventura conduziriam.
A mudança de postura e conceituação frente ao passado cultural dos países pode ser verificada na segunda
apresentação d'A Paixão Segundo São Mateus, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Essa obra, que teve sua
primeira audição realizada em 1729, foi reapresentada cem anos após em récita dirigida pelo compositor Félix
Mendelssohn (1809-1847), na cidade de Berlim, Alemanha. A segunda execução d'A Paixão Segundo São Mateus foi
um destacado exemplo do crescente interesse geral pela música de épocas passadas, resultando posteriormente na
1
publicação da primeira edição completa das obras de J. S. Bach em 1850. O ano de 1829, data da segunda
apresentação d'A Paixão Segundo São Mateus, marcou o surgimento da área de Musicologia Histórica, fruto do
interesse provocado pelo Nacionalismo Romântico por obras musicais compostas em séculos passados. 2
Durante o período de fins do século XVIII e início do século XIX, ocorreu uma rápida expansão do interesse pelo
passado cultural das Nações, fruto das influências do pensamento Positivista e do Iluminismo. 3 Houve um incremento
das Ciências Naturais e Exatas, o que contribuiu para o desenvolvimento de métodos científicos de estudo e pesquisa
para todas as áreas.
Ao longo do século XIX, os ideais de ordem, equilíbrio, controle e perfeição, característicos do século anterior
durante o denominado período Clássico, foram sendo gradualmente substituídos por uma obscuridade intencional
definida pela sugestão ou alusão. Somente o sentimento, e não a razão, “(...) puede alcanzar lo infinito y vislumbrar la
trascendencia presente en todas partes (...)”. 4 A Arte Musical passou a ser considerada como “(...) el auténtico sonido
de la creación (...)”, 5 transparecendo sua máxima pureza na música instrumental, onde os sons expressavam a
essência da Arte:

“(...) Cuando se habla de la música como arte autónomo debería circunscribirse sólo a la música
instrumental, la qual, rechazando toda ayuda, toda intromisión de otro arte, expresa con nitidez lo
concreto, la esencia del arte, que sólo puede reconocerse en ella. Es la más romântica de todas las artes.
La música abre al hombre un reino desconocido; un mundo en que el abandona todos los sentimientos
que pueden ser determinados por conceptos para entregarse a lo inefable. (...)”. 6

Sob influência das concepções Positivistas, as noções de evolução e progresso do século XIX encontraram na
Música a arte exemplar. A Música, constituída de matéria-prima composta por sons e ritmos ordenados estabelecendo
uma linguagem não conceitual, possuía os melhores recursos para sugerir os pensamentos e sentimentos que vieram
a constituir os domínios próprios da estética do Romantismo. Dado seu poder de sugestão, a Música foi arte
dominante entre todas as artes do século XIX. 7
O movimento Nacionalista Romântico - século XIX e princípios do século XX - apontou para a Música de origem
popular como salvaguarda dos valores de cada nação. Dessa maneira, a pesquisa e o conseqüente estudo do
cancioneiro folclórico de cada cultura passaram a ser considerados campos privilegiados de atuação e aproveitamento
artístico para intelectuais e compositores interessados na questão nacional. Era na pesquisa da Arte popular onde
seria possível encontrar os elementos fundamentais para a construção do conceito de Nacionalidade em Música. 8 Ao
preconizar a liberdade, o movimento e a paixão, o movimento Nacionalista Romântico se fundamentou na música de
origem popular, indicando já naquele momento, a necessidade emergente de coleta e registro de manifestações
folclóricas.
O Nacionalismo foi uma importante influência na Arte Musical do século XIX. No entanto, é necessário fazermos
uma distinção entre o movimento Nacionalismo Romântico da primeira metade do século XIX, e o Nacionalismo que se
1
- GROUT, D.J. - “Historia de la musica occidental.” 2ª ed., Madrid, Alianza Editorial, 1984. p.600.
2
- idem, p.600.
3
- CONTIER, A.D. - “Brasil Novo, Música, Nação e Modernidade.”, São Paulo, Tese de Livre Docência, FFCLH/USP, 1988.
4
- MICHELS, U. - “Atlas de música, II - Parte histórica: del Barroco hasta hoy.”, Versão espanhola de Rafael Banús. Alianza
Editorial S/A, Madrid, 1992. p.437.
5
- idem, p.457.
6
- HOFFMANN, E.T.A. - “Schriften zür Musik.”, ed. por F.Schnapp. in MICHELS, U. - “Atlas de Música, II”, Alianza Editorial,
Madrid, 1992. O comentário de E.T.A. Hoffmann se refere à 5ª Sinfonia de L.V.Beethoven. O grifo é nosso.
7
- MICHELS, U. - op.cit.1992.p.457.
8
- CONTIER, A.D. - op.cit.1988.
9

desenvolveu em fins do mesmo século, depois de 1860. A influência estética do primeiro período do movimento
Nacionalismo Romântico pode ser constatada em países como as atuais Alemanha ou Itália durante seus processos
de unificação política.
A música erudita desenvolvida na região da atual Alemanha durante esse período era o que havia de mais
próximo a um estilo musical europeu internacional, segundo os pressupostos Românticos de Arte Musical Universal. 9
As evoluções e conquistas técnico-musicais desenvolvidas pelo Nacionalismo Romântico Musical Germânico,
encontraram o seu ponto culminante nas obras dos compositores Franz Liszt (1811-1886) e Richard Wagner (1813-
1883).
A técnica, estilo de criação e os desenvolvimentos técnico-formais dos trabalhos de Richard Wagner exerceram
tamanha influência sobre os compositores europeus da última metade do século XIX, que suas obras estabeleceram
uma hegemonia estética, adotada pela maioria dos compositores de outras Nações. A música de Richard Wagner
pode ser definida pela grandiloquência do estilo, pela utilização do leitmotiv - motivo musical condutor -, e pela forma
do Drama Musical. 10 Processo semelhante ao descrito ocorreu na Penísula Itálica, nas óperas desenvolvidas pelos
compositores G.Donizetti (1797-1848), V.Bellini (1801-1835), e principalmente, nos trabalhos de Giuseppe Verdi (1813-
1901). 11 A influência dos compositores italianos e alemães se alastrou pelo Continente Europeu e suas colônias
culturais.
A identidade, a criatividade do artista, o subjetivismo, o culto ao Músico Gênio - conceitos largamente difundidos
no Nacionalismo Romântico - mesclaram-se inicialmente com a própria concepção de obra de Arte; em um período
posterior, a obra musical erudita foi considerada como a própria imagem representativa da Nação. 12

“(...) El concepto estético que informa cualquier tipo de Nacionalismo es el de valorar y dar relieve a lo
característico de un país, por parte de sus naturales. Cabe considerar dos tipos de Nacionalismo, en el
ámbito de la Música: aquel en que lo nacional está en la materia prima de que se sirve el compositor,
caso que sólo puede ser apreciado cuando éste se comporta con arreglo a unas formas de hacer, a una
estética que, a su vez, han pasado a tener carta de naturaleza nacional. Este último tipo de Nacionalismo
ha sido patrimonio de aquellas naciones que han pesado tanto en la creación de una estética
determinada, le han infundido características tan propias que estética y nación han llegado a confundirse
en el aprecio de muchos. (...)”. 13

A segunda fase do Nacionalismo Romântico, desenvolvida a partir da segunda metade do século XIX, foi um
movimento de reação frente a hegemonia estética germânica e italiana. Se desenvolveu como movimento nacional em
países influenciados pelas obras e estilos de Wagner e Verdi. Este novo Nacionalismo Romântico identificou o estudo
e o aproveitamento do folclore de cada cultura como uma necessidade para a construção de uma Arte Musical
verdadeiramente representativa de Nação.
Dessa forma, a partir de 1860, ocorreram diversas iniciativas em escala mundial para o incremento de
pesquisas, estudos, e coletas de manifestações musicais populares de cada cultura, designando o folclórico como “(...)
salvaguarda dos reais valores e características de um povo (...)”. 14 Essa postura estimulou o estudo dos cantos
folclóricos pelos compositores eruditos em todos seus aspectos técnicos musicais: âmbito formal, melódico,
harmônico, tímbrico e rítmico. Por outro lado, incrementou o desenvolvimento de estudos etnográficos musicais: 15

“El Nacionalismo dio vida al folklorista, al amante de lo popular (no de lo populachero) - canciones,
danzas, costumbres -, de lo marginado por el tiempo, que investiga, recoge y seleciona materiales. (...) El
incorporó al vocabulario melo-armónico los arcaísmos folklóricos que la tonalidad bimodal clásica había
eliminado; aportación trascendente de la que se aprovecharía muy pronto otra concepción estética que
estaba al llegar: el Impresionismo. Fuera de esto, no innovó nada en quanto a tipos estructurales,
repertorio de acordes, sistematización tonal, etc. Se limitó, en consecuencia, a proporcionar el medio de
que el lenguaje del gran arte supiese de acentos antes desconocidos, de idiomas musicales hasta
entonces sin oportunidades para hacerse oír o sin cosas que decir lo suficientemente importantes para
16
que se les prestase atención más allá de sus fronteras patrias. (...)”.

Este movimento de idéias nacionalistas desenvolvido a partir de 1860, enfrentou diversas dificuldades
resultantes da ainda incipiente metodologia para a coleta etnográfica de manifestações folclórico-musicais.
Aproveitando formas musicais características do primeiro período do movimento Nacionalista Romântico, como o
Poema Sinfônico ou a Ópera, os compositores eruditos adeptos aos ideais desse novo Nacionalismo, careciam ainda
do real conhecimento do folclore musical de seus países. Faltava-lhes matéria-prima musical que subsidiassem

9
- idem, p.657-665.
10
- cf. CONTIER,A.D. op.cit.1988.
11
- GROUT, D.J. - op.cit.p.657-665.
12
- CONTIER, A.D. - op.cit.1988.
13
- ZAMACOIS, J. - “Temas de Estética y de Historia de la Música.” 2ª ed., Barcelona, Editorial Labor, 1984. p.162 - verbete 282.
14
- CONTIER, A.D. - op.cit.1988.
15
- GROUT, D.J. - op.cit.p.693.
16
- ZAMACOIS, J. - op.cit.1984. p.164. verbetes 285, 286.
10

estudos formais, estéticos, históricos e comparativos, possibilitando o fornecimento de temas musicais para a
elaboração de novas composições de natureza erudita, com a proposta de investigar os caracteres nacionais de cada
cultura. A ausência de coletas etnográficas, de estudo e divulgação da música folclórica, dificultou o desenvolvimento
pleno do novo Nacionalismo. 17
Iniciado na Rússia pelo compositor Mijail Glinka (1804-1857) -, a quem se atribui a frase “el pueblo inventa la
música; nosotros, los músicos, sólo la arreglamos” 18 -, e posteriormente se concretizando no Grupo dos Cinco - escola
nacionalista de composição integrada por M. Balakirev (1836-1910), A. Borodin (1836-1877), César Cui (1835-1918),
M. Mussorgsky (1839-1881) e N. Rimsky-Korsakov (1844-1908) - este Nacionalismo de reação se alastrou pela
Europa, influenciando compositores em todo o mundo: Tchechoslováquia (B. Smetana 1824-1884; A. Dvorak 1841-
1904); Noruega (E. Grieg 1843-1907); Finlândia (J. Sibelius 1865-1957); Inglaterra (E. Elgar 1857-1934); Espanha (F.
Pedrell 1841-1922). 19
As dificuldades enfrentadas por compositores eruditos e pesquisadores de cada país durante o período final do
século XIX,, preocupados com a questão nacional em música, podem ser assim sistematizadas, segundo A. Contier: 20

1) necessidade de registro e coleta do folclore de cada Nação;


2) preconceito comum das classes dominantes frente às manifestações artísticas das camadas subalternas, resultando
na ausência de política cultural nacional e a conseqüente falta de apoio estatal para o incremento das pesquisas
científicas e estudos etnográfico-musicais;
3) a ausência de discussão sobre pedagogia para o ensino da música, voltada para a formação virtuosística de
intérpretes instrumentais, principalmente do piano - símbolo do século XIX - e a conseqüente ausência de instrução
teórico-musical daqueles interessados no estudo e coleta do folclore;
4) a dificuldade de divulgação e publicação de coletâneas musicais para estudos e aproveitamento dos resultados
obtidos em coletas etnográficas, conseqüência do desinteresse das editoras especializadas em música.

As atividades musicais nacionalistas do início do século XX diferiram em vários aspectos daquelas


desenvolvidas durante o século anterior. Também privilegiando manifestações musicais folclóricas como campo de
pesquisa e atuação, as coletas etnográficas, estudos e aproveitamentos do material popular ocorreram de maneira
mais intensa, contribuindo para o estabelecimento de métodos científicos mais rigorosos e completos.
A música folclórica passou a ser coletada e registrada com o auxílio do fonógrafo, permitindo melhor exatidão
que aquela resultante da utilização exclusiva do processo de notação musical convencional. O material folclórico-
musical recolhido passou a ser analisado com objetividade metodológica científica, resultante das técnicas
21
desenvolvidas pela nova disciplina da Etnomusicologia.
Durante o século XIX, a maioria dos pesquisadores e compositores Românticos haviam ignorado as
“irregularidades” da música folclórica de seus países. Durante o processo de colheita, aproveitamento e estudo
musical, procuravam adaptar as melodias folclóricas ao “senso comum” e às regras de notação e grafia da música
erudita.
O conhecimento mais realista adqüirido durante o século XX, provocou o surgimento do respeito pelas
qualidades únicas da música folclórica das nações. Os compositores eruditos, por sua vez, além de absorverem os
acentos característicos desta música popular dentro de estilos formais já tradicionais, como o poema sinfônico ou a
ópera, também os utilizaram na criação de novas formas musicais, aproveitando o material folclórico para
especialmente analisar o sistema tonal, ampliando os limites da harmonia e da música erudita ocidental. 22
A Europa Central foi o cenário de alguns dos primeiros estudos científicos extensivos da música folclórica. Desta
região européia, assumiu significância marcante para a etnografia folclórico-musical os trabalhos dos pesquisadores e
compositores húngaros Zoltán Kodály (1882-1967) e Béla Bartók (1881-1945). 23
Bartók e Kodály realizaram coletas etnográficas musicais pela Hungria (1906) viajando nos anos seguintes às
regiões vizinhas: Romênia (1908); Bulgária, Ucrânia, Noruega (1912); Argélia (1913) e Turquia (1936). 24 Em todas as
regiões, registraram primeiramente por escrito - anotação musical direta - e mais tarde com o auxílio do fonógrafo, as
melodias de manifestações populares entoadas por trabalhadores e camponeses locais. Até 1934, haviam sido
gravados 1026 cilindros fonográficos, que após o processo de transcrição em notação musical - trabalho concluído por
especialistas somente depois do falecimento de Béla Bartók em 1945 -, resultaram na edição da maior coletânea de
cantos folclóricos da Hungria e regiões próximas, com cerca de 13.000 melodias populares registradas. 25
Béla Bartók escreveu cinco livros e inúmeros artigos sobre música folclórica e seu processo de coleta
etnográfica. Realizou ambientações musicais e compôs obras corais e orquestrais baseando-se em melodias

17
- MICHELS, U. - op.cit.1992. p.439
18
- citado em ZAMACOIS, J.- op.cit.1984.p.163, verbete 283
19
- GROUT, D.J. - op.cit. p.685.
20
- CONTIER,A.D. - op.cit.1988.
21
- GROUT, D.J. - op.cit.p.693.
22
- idem, p.726-729.
23
- idem, p.726-729.
24
- MICHELS, U. - op.cit.1992. p.529.
25
- idem, p.529.
11

populares por ele recolhidas, desenvolvendo um estilo musical próprio que fundiu elementos folclóricos com técnicas
da música erudita. 26
Com a experiência adqüirida a partir das viagens realizadas para coleta de material folclórico musical, Bartók e
Kodály teceram vá_ias considerações sobre aspectos da pesquisa etnográfica da música popular. Essas observações,
publicadas em artigos e estudos desde 1912, conferiram um aspecto algo definitivo para a metodologia de coleta
musical. 27
Entre as observações sobre as pesquisas etnográficas realizadas por Béla Bartók destacam-se:

1) a equivalente importância atribuída ao texto e linha melódica dos cantos folclóricos;


2) a necessidade de registro fonográfico e de transcrição musical em notação criteriosa dos cânticos;
3) a importância da nítida demarcação entre cantos folclóricos, populares e de autor popularizado;
4) a necessidade da pesquisa ser realizada em determinados locais, em um mesmo ambiente e em circunstâncias
concretas;
5) a necessidade de relacionar os cânticos com outros elementos folclóricos, históricos e etnológicos;
6) o indispensável caráter coletivo das expedições etnográficas, que deveriam ser realizadas com a colaboração de
folcloristas, sociólogos, linguístas, coreógrafos e músicos. 28

A nova postura de abordagem e pesquisa de manifestações folclóricas, com o objetivo de investigar os


elementos formadores da nacionalidade resultando no conseqüente aproveitamento em obras de caráter erudito,
característicos da segunda fase do movimento Nacionalista Romântico, influenciou compositores e pesquisadores de
todo o mundo. Este fator também contribuiu para revalorização geral do conceito de Arte e, em plano paralelo, ao
incremento das técnicas e da metodologia de coletas etnográficas, particularmente de manifestações musicais
folclóricas.

26
- RASCHELLA, R.V. in BARTÓK, B. - “Escritos sobre música popular.” 3ª ed., México, Siglo Veintiuno, 1985. Prefácio e
Introdução.
27
- RASCHELLA, R.V. idem ibidem.
28
- RASCHELLA, R.V. idem ibidem
12

2 - Estudo e aproveitamento do folclore musical no Brasil

A identidade nacional na música erudita produzida no Brasil foi uma questão intensamente debatida a partir de
1920, tendo como suporte, a exemplo do que ocorria no movimento Nacionalista Romântico em todo mundo a partir de
1860, a pesquisa do folclore musical e seu aproveitamento temático pelos compositores eruditos.
Foi a partir do movimento Modernista de 1922, “(...) considerado um contradiscurso face à mentalidade
Romântica e cosmopolita vigente (...)”, 29 que o folclore passou a ser valorizado como fonte essencial para a
elaboração de obras musicais eruditas. A pesquisa do folclore “(...) simbolizou o resgate de um passado histórico e
cultural, fornecendo matéria-prima para a construção do conceito de brasilidade na música. (...)”. 30
Ainda no século XIX, alguns compositores brasileiros preocupados com a questão nacional em música,
incorporaram elementos rítmico-melódicos de canções populares de domínio público em suas criações musicais de
natureza erudita, ainda se utilizando, porém, de formas musicais características do primeiro Romantismo. Assim, em
1860, Brasílio Itiberê da Cunha (1846-1913) compôs a primeira obra instrumental brasileira que se utiliza de tema
musical popular como base para a elaboração da composição: A Sertaneja, Opus 15, obra para piano com variações
sobre a melodia de Balaio, meu bem balaio, do folclore do Rio Grande do Sul. Em 1884, Alexandre Levy (1864-1892)
compôs a primeira obra orquestral com temática nacionalista: Variações Sobre Tema Brasileiro, baseado na canção de
origem ibérica Cai, cai balão ou Vem cá, bitu. 31
No entanto, a preferência musical cultivada pela elite brasileira durante a segunda fase do período Nacionalista
Romântico -segunda metade do século XIX e início de século XX -, se deu segundo modelos e padrões europeus. A
preocupação pela inserção do Brasil no conceito Positivista de Nação civilizada e autônoma, gerou na elite brasileira
um forte preconceito frente a música folclórica - anônima, espontânea e ligada ao cotidiano de uma comunidade sem
influências externas - e popular - surgida em grandes centros urbanos como o Rio de Janeiro e São Paulo, nas formas
do maxixe e do choro -, e de seu possível aproveitamento por parte dos compositores com formação erudita. 32
Não interessada por obras de compositores eruditos brasileiros que aproveitassem melodias populares ou
folclóricas, a elite brasileira seguiu ouvindo música européia em acordo com a noção de modernidade e civilidade.
Nesse sentido, apoiou e patrocinou financeiramente a vinda de espetáculos de compositores italianos, franceses e
alemães - considerados mais civilizados e cultos -, em detrimento daqueles produzidos no Brasil. 33 A recusa em
relação à música composta no Brasil - seja erudita, popular ou folclórica - foi caracterizada pela ausência de política
estatal e oficial de apoio e incentivo à produção artística e científica em geral. 34
Durante o período do final de século XIX, alguns intelectuais brasileiros preocupados com a questão nacional,
como Euclides da Cunha (1866-1909) e Sílvio Romero (1851-1914), valorizaram as falas artísticas preservadas nas
camadas populares, considerando a música como uma das fontes capazes de justificar a originalidade criativa do
povo. No entanto, o trabalho de coleta, registro, pesquisa e estudos em uma perspectiva científica de manifestações
folclórico-musicais brasileiras ainda estava em fase bastante incipiente:

“(...)
Segue a boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste e preguiçoso. Escanchado,
desgraciosamente, na sela, o vaqueiro, que a revê reunida e acrescida de novas crias, rumina os lucros
prováveis: o que toca ao patrão, e o que lhe toca a ele, pelo trato feito.
(...)
E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar merencório da cantiga, que parece acalentá-los, embalando-os
com refrão monótono:
E cou mansão
E cou... ê caõ
35
ecoando saudoso nos descampados mudos...”

Objeto de interesse desde a segunda metade do século XIX, o folclore musical brasileiro não foi durante esse
período e mesmo imediatamente depois, coletado ou estudado por pesquisadores com sólida formação musical
específica. Foram literatos que, na maioria das vezes, presenciaram o fato musical folclórico. Devido à ausência de
formação musical e à incipiente sistematização metodológica ainda em processo de definição, as melodias folclóricas
não eram apresentadas ou publicadas em notação musical. A maioria dos pesquisadores apresentavam em seus
trabalhos apenas o material poético - o texto entoado nas melodias -, de manifestações musicais populares. 36
29
- CONTIER, A. - op.cit.1988.
30
- idem ibidem
31
- idem ibidem
32
- idem ibidem
33
- idem ibidem
34
- CONTIER, A.D. - “Música e ideologia no Brasil.” 1ª ed., São Paulo, Novas Metas, 1978. 50p.
35
- CUNHA, E. - “Os Sertões (I).”, Texto integral, Ed. Três, 1973. p.139-140: Capítulo III: A arribada
36
- ALMEIDA, R. - “Inteligência do Folclore.” 2ªed., Rio de Janeiro, Americana, 1974.
13

Nesse sentido, podemos destacar uma das noventa obras de Sílvio Romero, muitas das quais direcionadas à
divulgação dos resultados de material folclórico coletado em pesquisas de campo realizadas por esse estudioso e
pesquisador: Cantos Populares de Brasil - 1ª edição em Lisboa (1883), 2ª e 3ª edições no Rio de Janeiro (1897), 4ª
edição em São Paulo/Belo Horizonte (1985). Esta obra foi a primeira publicação em forma de coletânea, apresentando
um estudo sistemático dos gêneros e cantos folclóricos do Brasil. 37
Trabalhos anteriores a Cantos Populares do Brasil - como os de Jean de Léry, Spix e Martius, Barbosa
Rodrigues -, e mesmo de autores contemporâneos - como Melo de Moraes Filho, Sant'Anna Nery, Alexina de
Magalhães, Nina Rodrigues -, apesar de apresentarem alguns exemplos com notação musical, não fizeram da música
folclórica objeto principal de estudo. Cantos Populares do Brasil foi um trabalho pioneiro nesse sentido, e mesmo sem
apresentar notação musical, foi considerada obra de importância capital no estudo do folclore brasileiro. 38
Cantos Populares de Brasil foi dividido em quatro capítulos, obedecendo à concepção de formação étnica do
povo brasileiro. O autor privilegiou os elementos culturais dos negros, os índios e portugueses como base da
criatividade musical da população mestiça gerada no processo de miscigenação - o brasileiro. Segundo Luís da
Câmara Cascudo, responsável pela apresentação da 4ª edição desta obra, “(...) a população de portugueses, índios e
negros no Brasil foi marcada pela melancolia e tristeza decorrentes do afastamento de seu lugar de origem,
contribuindo sobremaneira para a formação de uma música folclórica nacional (...)”. 39 Os elementos básicos
constitutivos da música proveniente de cada um desses povos foram aos poucos sendo assimilados e transformados
pela população mestiça considerada brasileira:

“(...) O português lutava, vencia e escravizava; o índio defendia-se, era vencido, fugia ou ficava cativo; o
africano trabalhava, trabalhava... Todos deviam cantar, porque todos tinham saudades; o português de
seus lares, dalém mar, o índio de suas selvas, que ia perdendo, e o negro de suas palhoças, que nunca
mais havia de ver.
Cada um devia cantar as canções de seu país.
De todas elas amalgamadas e fundidas em um só molde - a língua portuguesa, a língua do vencedor, é
[que] se formaram nos séculos seguintes os nossos cantos populares. (...)”. 40

Os dois primeiros capítulos de Cantos Populares do Brasil (I-Romances e Xácaras, II-Bailes, Cheganças e
Reisados), se referem exclusivamente a manifestações de música folclórica. Um documentário contendo 78 versos
poéticos/musicais, sem nenhum registro realizado em notação específica. Os capítulos seguintes (III-Versos Gerais,
IV-Orações e Parlendas), contêm dez documentos recolhidos pelo autor de manifestações da literatura oral, sem
associação com o fato musical.
Apontando para o elemento transformado e assimilado pela população mestiça como origem da brasilidade,
Sílvio Romero chamou atenção, em diversas ocasiões, para a necessidade de coleta e registro em notação musical de
manifestações folclórico-musicais que, já em fins do século XIX, estavam desaparecendo. Sílvio Romero alertou para a
necessidade de pesquisa em relação às influências africanas na cultura popular brasileira, exigindo o estudo da cultura
negra de forma completa e total, no mais curto prazo possível, antes que desaparecessem:

“(...) Quando vemos homens como Bleek, refugiarem-se dezenas e dezenas de anos nos centros da
África somente para estudar uma língua e coligir uns mitos, nós que temos o material em casa, que
temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas e a Europa em nossos salões,
nada havemos produzido nesse sentido. É uma desgraça. O negro não é só uma máquina econômica;
ele é antes de tudo, e mau grado sua ignorância, um objeto de ciências. Apressem-se os especialistas,
visto que os pobres moçambiques, benguelas, monjolos, congos, cabindas, caçanges... vão morrendo. O
melhor ensejo, pode-se dizer, está passado com a benéfica extinção do tráfico. Apressem-se, porém,
senão terão de perdê-lo de todo. E, todavia, que manancial para o estudo do pensamento primitivo! (...)”.
41

A extensa colaboração de Sílvio Romero, estudando as origens étnicas de formação do folclore brasileiro, além
de apresentar seu trabalho em forma de coletânea, o apontam como um dos pioneiros e principais estudiosos do
folclore musical nacional. Sílvio Romero pode ser considerado o primeiro pesquisador de campo realmente significante
no Brasil. Um pouco antes de falecer, em 1914, dono de uma enorme bibliografia, Sílvio Romero ainda sugeria

37
- ROMERO, S. - “Folclore Brasileiro: Cantos Populares do Brasil.” 4ª ed., Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, EDUSP, 1985.
306 p.
38
- CASCUDO, L.C. in ROMERO, S. - op.cit.1985. Prefácio. Convém lembrarmos a extensa colaboração para o estudo da
música folclórica brasileira realizada por MELO MORAIS FILHO (1844-1919), que em 1902 editou no Rio de Janeiro,
Serenatas e Saraus, em 3 volumes, com informações sobre bailes pastoris, reisados e cheganças, lundus e modinhas, entre
outras.
39
- idem, Prefácio
40
- ROMERO, S. - op.cit. 1985. Introdução, p.32.
41
- ROMERO, S. - “História da Literatura Brasileira.”, I, 141, José Olympio, Rio de Janeiro. p.62.
14

programas de pesquisas folclóricas, nos quais solitava que fossem escritos em notação musical os cantos populares
considerados importantes e que, como ele previa, desapareceram. 42
A passagem do século XIX para XX foi marcada por uma crescente crise mundial em níveis políticos, sociais,
econômicos e culturais, culminando com a deflagração da Primeira Grande Guerra. Durante esse período, dada a
emergência da situação, houve um grande incremento aos estudos científicos do folclore musical.
O interesse pelas culturas indígenas do Brasil, fruto da influência do conceito de exótico incentivado pelo
Positivismo, determinou a realização durante o início do século XX de algumas expedições etnográficas coletivas e
individuais.
Em 1907, uma comissão liderada pelo Marechal Cândido Rondon, com o objetivo principal de construir linhas
telegráficas que ligassem o Rio de Janeiro ao Mato Grosso, Acre e Amazônia, se transformou em uma expedição
etnográfica científica que recolheu dados geológicos, da fauna e flora, e das culturas indígenas dessas regiões. 43 O
material coletado pela expedição subsidiou o estudo e a publicação de diversas obras, além de fornecer dados e
objetos para as principais coleções do Museu Nacional do Rio de Janeiro. 44
Alguns anos depois, em 1910, o Marechal Rondon criava, juntamente com outros oficiais militares influenciados
pelo Positivismo, o Serviço de Proteção aos Índios, destinado a assegurar às populações indígenas o amparo do
Estado e o direito de viverem segundo seus costumes e tradições. 45
Um ano após, em 1911, foram realizados por Roquete Pinto no território de Rondônia os primeiros registros
fonográficos da música dos índios Nambikuaras. Em 1912, o material fonográfico gravado por Roquete Pinto,
juntamente com os filmes cinematográficos realizados pela expedição do Marechal Rondon, passaram a integrar o
acervo de pesquisa científica do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Roquete Pinto, pioneiro das experiências com os
meios de comunicação de massa, como o rádio (1923) e a televisão (1929), publicou os resultados dessa coleta em
seu livro “Rondônia”, 1ª edição em 1916, que contém alguns exemplos transcritos em notação musical. 46 O conteúdo
dos rolos fonográficos efetuados por Roquete Pinto em 1911, vieram a servir de inspiração e matéria prima musical
para algumas das composições de Heitor Villa-Lobos (1890-1959), como as Canções Típicas Brasileiras (1919) e
alguns trechos da série dos Choros, composta durante os anos de 1920-30. 47
No entanto, a coleta sistemática de folclore musical brasileiro, além do conseqüente estudo e aproveitamento de
melodias populares de maneira mais intensa pelos compositores com formação erudita, constituindo um projeto de
nacionalização da Arte Musical no Brasil, foram questões que passaram a ser mais intensamente debatidas após a
realização no Teatro Municipal de São Paulo da Semana de Arte Moderna de 1922.
A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o ponto de convergência dos nacionalistas brasileiros preocupados
com a criação de uma arte verdadeiramente nacional, representativa da brasilidade, apoiada no folclore rural, anônimo
e espontâneo. Concebida por intelectuais paulistas, particularmente Mário de Andrade (1893-1945), a Semana de Arte
Moderna marcou o momento de ruptura com os padrões estéticos europeus de expressão, “(...) incitando à busca e à
experimentação de formas artísticas significantemente brasileiras, pesquisadas e fundamentadas no Folclore (...)”. 48
A Semana de Arte Moderna promoveu uma série de debates que contribuíram para a cristalização de projeto
musical nacionalista, estruturado a partir do estudo e aproveitamento de fontes folclóricas brasileiras. Entre os debates
realizados durante a Semana de Arte Moderna, podem ser destacados segundo J. M. Wisnik: 49

1) Música Brasileira versus Música Européia;


2) Música Romântica (passado) versus Música Moderna (presente);
3) Música Programática versus Música Pura.

A Semana de Arte Moderna “(...) marcou o momento de reconceituação das Artes no Brasil, avançando do
academicismo ao modernismo, e coincidindo ou antecipando-se ao surgimento de várias obras literárias e de ensaios
(...)”. 50 Através desses trabalhos, os artistas e intelectuais brasileiros passaram a indagar o significado e sentido das
Artes no Brasil, utilizando-se de fontes populares e “(...) procurando expressar-se em padrões estéticos manifestados
pelo Futurismo italiano, pelo Surrealismo francês e nos movimentos Primitivista, Cubista e Expressionista (...)”. 51
A partir da realização da Semana de Arte Moderna e dos debates por ela promovidos, Mário de Andrade, um
dos principais articuladores do evento, passou a desenvolver seu projeto de nacionalização da música brasileira. A
necessidade de farta documentação folclórica recolhida com critérios e cuidados científicos, elemento fundamental
para a nacionalização da música erudita no Brasil, levou Mário de Andrade a realizar ele mesmo viagens de caráter

42
- CASCUDO, L.C. in ROMERO, S. - op.cit.1985. Prefácio.
43
- RIBEIRO, D. - “Aos Trancos e Barrancos: Como o Brasil deu no que deu.” Rio de Janeiro, Guanabara Dois, 1985. 238p.
44
- RIBEIRO, D. - op.cit.1985.
45
- idem ibidem
46
- PINTO, E.R. - “Rondônia.” 3ªed. aum. il. Biblioteca Pedagógica Brasileira. Série V, Brasiliana. vol.XXXIX, Cia.Ed.Nacional,
São Paulo, 1935.
47
- RIBEIRO, D. - op.cit.1985.
48
- CONTIER, A.D. op.cit.1988.
49
- WISNIK, J.M. - “O Coro dos Contrários: A Música em Torno da Semana de 22.” 2ªed., São Paulo, Duas Cidades, 1983. 188p.
50
- RIBEIRO, D. - op.cit.1985.
51
- idem ibidem
15

etnográfico pelo Nordeste e Norte do Brasil. Essas viagens do autor de Macunaíma ficaram conhecidas como as
viagens d'O Turista Aprendiz, sendo realizadas entre os anos de 1927-1929.
Com formação em Música completada no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, ministrando
posteriormente aulas de História da Música e piano na instituição, Mário de Andrade realizou em anos imediatamente
após a Semana de Arte Moderna de 1922, viagens com objetivos etnográficos por regiões afastadas dos grandes
centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo. Assim, data de 1924 a visita de Mário de Andrade ao Estado de
Minas Gerais, realizada juntamente com um grupo de amigos modernistas de São Paulo - entre eles Oswald de
Andrade, Tarsila do Amaral, Paulo Duarte -, acompanhados do poeta francês Blaise Cendrars. Essa viagem,
denominada pelo grupo de Viagem da Descoberta do Brasil, acompanhou em Minas Gerais um momento
tradicionalmente importante na região: a Quaresma e a Semana Santa. 52
Modificando o projeto nacional modernista esboçado durante a Semana de 1922, que teve “(...) a princípio
ênfase dada a aspectos estéticos e que progressivamente adquiriu um teor ideológico (...)”, 53 a Viagem da Descoberta
do Brasil não resultou em uma coleta de documentos musicais. As observações realizadas por Mário de Andrade
foram aproveitadas em seu ciclo poético Clan do Jaboti, de 1924, em que o autor estilizou as soluções técnico-literárias
populares, dedicando os poemas aos amigos Carlos Drumond de Andrade, Manuel Bandeira, entre outros:

“(...)
Enganada pelo escuro
Camalalô fala pro homem:
Arití, me dá uma fruta
Que eu estou com fome.
-Ah...
Estava com fome...
O homem rindo secundou:
-Zuimaalúti se engana,
Pensa que sou arití?
Eu sou Pai-do-Mato.
54
Era o Pai-do-Mato.”

Foi também por essa época que Mário de Andrade iniciou seu trabalho de coleta sistemática de documentação
musical folclórica, estudando e ampliando seus conhecimentos através de leituras específicas sobre Folclore.
Compreendendo as regiões Norte e Nordeste como ricos repositórios de tradição e cultura popular brasileira, Mário de
Andrade planejou em 1926, uma viagem etnográfica para coletas de documentos musicais. Seria a segunda Viagem
da Descoberta do Brasil, a ser realizada pelo mesmo grupo que empreendeu a visita a Minas Gerais, com exceção do
poeta Blaise Cendrars, e com uma postura de distanciamento favorável a uma pesquisa etnográfica mais sistemática.
Por vários motivos, a viagem foi adiada para o ano seguinte, 1927, com o roteiro agora se estendendo para a região
Amazônica, em uma época do ano importante, pois Mário de Andrade e o grupo lá chegariam em meados de junho,
55
período em que se realizam as principais danças dramáticas desta região.
A viagem à Amazônia acabou não se transformando no que foi planejado. O grupo que acompanharia este
trajeto, entre eles o deputado Paulo Duarte, ficou reduzido à presença de Dona Olívia Guedes Penteado, mecenas das
artes em São Paulo, e por sua sobrinha. Mário de Andrade não pôde desenvolver de maneira satisfatória seu projeto
etnográfico devido ao fato. Ficou atrelado, na maioria das vezes, a recepções oficiais e às relações de respeito e
cordialidade que envolviam homem e mulher:

“17 de julho - Vida de bordo. Amanhecemos em Três Casas, mas não desci, por ter saído da cabina,
depois da partida do bote. (...) Estou meio amolado... Paradinhas sem descer. Com mil bombas!
de-repente pus reparos que nesta história de viagem com mulher, afinal as coisas mais úteis que eu
poderia ver, não vejo, nesta pajeação sem conta...Por exemplo, ainda não visitei, de-fato, um seringal!
Vou reclamar do capitão Jucá, que imagina um bocado e me promete pro dia seguinte uma visita longa
56
num seringal de interesse. (...)”.

Realizada no período de maio a agosto de 1927, essa viagem foi marcada pela preocupação etnográfica,
demonstrando a Mário de Andrade a necessidade de colocar em andamento uma pesquisa sistemática na região.
Voltando a São Paulo, Mário de Andrade publicou suas notas de pesquisa e observações no recém-criado Diário
Nacional, órgão do Partido Democrático, sob o título de O Turista Aprendiz. 57

52
- cf. LOPEZ, T.P.A. - in ANDRADE, M. de - “O Turista Aprendiz.” - estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Porto
Ancona Lopez, São Paulo, Duas Cidades, 1976.
53
- CONTIER, A. - op.cit.1988.
54
- ANDRADE, M. de - “Poesias Completas.”, Círculo do Livro, 1976, p.166-167.
55
- cf. LOPEZ, T.P.A. in ANDRADE, M. de - op.cit.1976.
56
- ANDRADE, M. de - “O Turista Aprendiz.” São Paulo, Duas Cidades, 1976. p.159.
57
- cf. LOPEZ, T.P.A. in ANDRADE, M. de - op.cit.1976.
16

A viagem de maior interesse musical - a viagem etnográfica do Turista Aprendiz - foi aquela realizada à região
Nordeste durante o período de dezembro de 1928 a fevereiro de 1929. Desta vez sozinho, na qualidade de
correspondente do Diário Nacional, o Turista Aprendiz visitou os Estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte e
Paraíba. Convivendo com amigos nordestinos - Luís da Câmara Cascudo, Antônio Bento de Araújo Lima, Ademar
Vidal - Mário de Andrade trabalhou sobretudo na Paraíba e Rio Grande do Norte, recolhendo grande documentação
musical de cantadores convocados pelos amigos folcloristas.
Durante os meses de viagem, Mário de Andrade assistiu ensaios e representações de danças dramáticas,
estudou a religiosidade e a música de feitiçaria nacional do ritual do catimbó, passou o Carnaval no Recife, conheceu o
cantador de cocos Chico Antônio, ficando impressionado por sua capacidade de improvisação. Além da pesquisa
musical, Mário registrou em seu diário de viagem o interesse pela arquitetura, e suas preocupações pelas condições
58
de vida e trabalho do homem nordestino.
Os resultados etnográficos musicais da 2ª viagem de Mário de Andrade não foram publicados de imediato.
Aproveitando muitos elementos da pesquisa em suas conferências, artigos e ensaios, a intenção de Mário de Andrade
era a edição total dos dados em uma obra de estudo e divulgação que denominar-se-ia Na Pancada do Ganzá, em
uma referência a este instrumento de percussão extremamente popularizado na região do Nordeste brasileiro. 59
Trabalhando intensamente desde seu retorno em 1929 até 1935 na ordenação dos resultados das pesquisas,
com cerca de 1000 melodias de manifestações musicais populares por ele anotadas e, munindo-se de leitura
sistemática para estudá-los, 60 Mário de Andrade não chegou a publicar o Na Pancada do Ganzá. Falecendo antes da
conclusão dos originais, esta obra foi organizada e publicada, ainda que em partes, por sua amiga e colaboradora
Oneyda Alvarenga: Música de Feitiçaria no Brasil, Os Cocos, Danças Dramáticas do Brasil (3 vol.), As Melodias do Boi
e Outras Peças.
O projeto de Na Pancada do Ganzá, se editado em um único volume, conforme os planos originais de Mário de
Andrade, constituir-se-ia na maior coletânea de música folclórica brasileira até então reunida por um único
pesquisador. 61 Oneyda Alvarenga, responsável pela edição póstuma da maioria dos trabalhos, vai mais além:

“(...) Realmente, o fruto das pesquisas de Mário de Andrade constitui até hoje o maior e melhor acervo de
música folclórica brasileira registrado por um pesquisador sozinho e por grafia musical direta. É mesmo
possível ir além, dizendo apenas: o único grande acervo, porque se houver outros de tão largo vulto, não
abrangerão todo o país e a enorme variedade de seus aspectos musicais, [está] contido na coleção de
Mário de Andrade.(...)” 62

Este período também marcou uma intensa atividade de Mário de Andrade editando diversas obras no campo
musical: Em 1929, publicou a coletânea Modinhas Imperiais; em 1931, elaborou juntamente com o compositor Luciano
Gallet e Antônio de Sá Pereira a proposta de reestruturação de Instituto Nacional de Música no Rio de Janeiro; em
1932, publicou a segunda edição do Compêndio de História da Música; em 1934, editou uma série de artigos redigidos
para a imprensa, reunidos sob o título Música, doce Música; em 1935, já próximo de assumir a direção do
Departamento de Cultura de São Paulo, um estudo sobre reis de Congo foi publicado no Boletin Latino Americano de
Música, coordenado pelo musicólogo alemão Curt Lange, então residente no Uruguai.
Mário de Andrade estava consciente que a questão da nacionalização da música erudita brasileira não se
restringia somente ao aspecto da pesquisa etnográfica. Pelo contrário, a inexistância de pesquisas era um reflexo de
dificuldades em planos mais abrangentes:

a) político-ideológicos, resultando na falta de apoio e incentivo financeiro do Estado;


b) o congelamento da estética do Romantismo e os problemas decorrentes desse fator - como a pianolatria;
c) o desinteresse geral da classe dominante pela música com temática popular nacional;
63
d) a questão do ensino e da pedagogia musical;

A partir de suas reflexões, Mário de Andrade passou a depositar suas energias no projeto de criação do
Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo, oficializado em 1935.
Em 1936, já então empossado no cargo de Diretor do recém-criado Departamento de Cultura de São Paulo,
Mário de Andrade manifestar-se-ia através de artigo para imprensa, lamentando-se sobre a precária situação da
etnografia científica no Brasil, o que prejudicava os estudos específicos do folclore brasileiro, elemento fundamental na
construção do conceito de brasilidade segundo os pressupostos modernistas:

58
- idem ibidem
59
- ALVARENGA, O. (org.) in ANDRADE, M. de - “Os Cocos.”, introdução, estudos e notas de Oneyda Alvarenga, Duas Cidades,
1984. p.16.
60
- O exame da bibliografia sobre Folclore estudada por Mário de Andrade foi descrito e analisado por Oneyda Alvarenga na
apresentação do 1º tomo de “Danças Dramáticas do Brasil”, Itatiaia, 1982.
61
- ALVARENGA, O. (org) - op.cit.1984. p.16.
62
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1984. p.17-18. O grifo é de Oneyda Alvarenga.
63
- cf. CONTIER, A. - op.cit.1988.
17

“(...) Faz-se necessário e cada vez mais que conheçamos o Brasil. Que sobretudo conheçamos a gente
do Brasil. E então, si recorremos aos livros dos que colheram as tradições orais, e os costumes da nossa
gente, desespera a falta de valor científico dessas colheitas. São descrições imperfeitíssimas,
incompletas, a que muitas vezes faltam dados absolutamente essenciais. São selvas de quadrinhas bem
vestidas, numa língua muito correta, em que é manifesta a colaboração do recolhedor. São músicas
reduzidas a ritmos simplórios, não se sabe como recolhidas, a maior parte das vezes guardadas na
memória, e não colhidas diretamente do cantador popular.
O que vale tudo isso? Além de ser pouco em comparação com a riqueza absurda dos nossos costumes e
do nosso folclore, além de ser pouco, vale pouco. É uma documentação mal colhida, anticientífica,
deficiente. Há momentos em que o estudioso do assunto desanima ante esse montão de livros mal feitos
e tem a impressão desesperada de tudo deve ser repudiado, e nada pode servir como documentação.
(...)
A Etnografia brasileira vai mal. Faz-se necessário que ela tome imediatamente uma orientação prática
baseada em normas severamente científicas. Nós não precisamos de teóricos, os teóricos virão a seu
tempo. Nós precisamos de moços pesquisadores, que vão à casa do povo recolher com seriedade e de
maneira completa o que esse povo guarda e rapidamente esquece, desnorteado pelo progresso invasor.
64
(...).”

Com a criação do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, em 1935, Mário de Andrade teve a
oportunidade de colocar em andamento seu projeto para a fixação de uma cultura musical nacional. Como Diretor da
instituição, Mário de Andrade propôs a participação do Estado em apoio e amparo à pesquisa científica do Folclore e
da Música - a “força socializante” segundo ele 65 -, colaborando para o incremento das iniciativas de caráter
etnográfico, que determinassem a existência de acervos culturais para estudos e aproveitamento por compositores e
artistas em geral.
Entre as várias iniciativas promovidas pelo Departamento de Cultura de São Paulo, tendo à frente Mário de
Andrade no cargo de Diretor, destacaram-se aquelas direcionadas à música, à formação de pesquisadores
especializados e à coleta etnográfica constante: criação da Discoteca Pública Municipal (1935); curso de Dina Lévi-
Strauss e Sociedade de Etnografia e Folclore (1936); a viagem de Camargo Guarnieri a Salvador, Bahia (1937);
Missão de Pesquisas Folclóricas (1938).

64
- ANDRADE, M. de - “A Situação Etnográfica do Brasil.” in Jornal Síntese, Belo Horizonte, nº 1, Ano I, outubro 1936.
65
- ANDRADE, M. de - “Ensaio sobre a Música Brasileira.”, 3ª ed., São Paulo, Martins, 1972.
18

3 - A gênese da Missão de Pesquisas Folclóricas nas viagens do Turista Aprendiz

A idéia e planejamento da Missão de Pesquisas Folclóricas foi responsabilidade de Mário de Andrade, que logo
após o retorno da viagem ao Nordeste - a segunda viagem etnográfica do Turista Aprendiz realizada em fins de 1928 e
princípios de 1929 -, havia já constatado a necessidade de voltar à região para efetuar coletas mais sistemáticas,
gravando em discos o folclore musical da região. Durante essa viagem, o Turista Aprendiz em diversas oportunidades
observou as dificuldades que enfrentava para anotar musicalmente as melodias entoadas por cantadores populares,
seja no aspecto rítmico

“(...) O que faz com o ritmo não se diz! Enquanto os três ganzás, único acompanhamento instrumental
que aprecia, se movem interminavelmente no compasso unário, na pancada do ganzá, Chico Antônio vai
fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas que a notação erudita nem
66
pense em grafar, se estrepa. (...).”

seja no âmbito melódico, antevendo já a possibilidade de gravação fonográfica de seus informantes do


Nordeste:

“Ora está me parecendo que os coqueiros nordestinos usam também entoar com número de vibrações
que afastam o som emitido dos 12 sons da escala geral. O quarto-de-tom de que a música erudita não se
utilizou na civilização européia, esse estou mesmo convencido que os nordestinos dão. Já topei com ele
três feitas nesta viagem, entoado pela preta Maria Joana, cantadeira famanada de Olinda, e por um
catimbozeiro natalense. Mas pra decidir mesmo no caso de que trato carecia de aparelhos especiais que
não tenho aqui. (...).” 67

Nos anos após a realização da segunda viagem etnográfica (1928-29), Mário de Andrade desejou realizar outra
excursão ao Nordeste brasileiro, desta vez com o objetivo de complementar suas observações e notas para o
planejado volume de Na Pancada do Ganzá. Registrando em notação musical durante o breve período desta segunda
viagem etnográfica do Turista Aprendiz uma enorme quantidade de melodias folclóricas - aproximadamente 1000 -,
Mário de Andrade notou a carência de suas observações e notações, realizadas, segundo ele, com “afobação e
disparate”, considerando difícil a inclusão dos informes ainda incompletos em seu planejado estudo. Em
correspondência com Luís da Câmara Cascudo (1898-1984), folclorista do Rio Grande do Norte, que juntamente com
Antônio Bento de Araújo Lima (1902-1988), hospedou e auxiliou o Turista Aprendiz durante sua estadia naquele
Estado, Mário de Andrade observou que

“(...) Você compreende, maninho: não moro aí, por mais literatura que tenha d'aí não poderei fazer uma
obra completa. Aliás você mesmo viu a afobação e disparate com que andei colhendo os meus tesouros
de documentos. Estou cada vez mais convencido de que são tesouros porém sou obrigado a confessar
que não são perfeitamente sistemáticos. E a própria afobação da colheita fez com que houvesse falhas
nela. (...) Na Pancada do Ganzá além de título bonito como o quê, é modesto, me permite contar que em
dois meses e pico de passeio e amigos, inda achei tempo de amar a vida nordestina e revelar os tesouros
68
dela. (...)”.

Apesar de Na Pancada do Ganzá ter um planejamento considerado “modesto”, Mário de Andrade tinha grandes
objetivos para a obra, considerando que

“(...) nada impede que o livro saia, como pretendo, com muitíssimas, o mais que me for possível,
informações firmes sobre tudo. Mas não obriga a coisa completa e isso é que me agrada principalmente
nele, pois seria até ridículo imaginar que vou dar coisa completa. Estou convencido que vai ser coisa
grande e mesmo indispensável pra quem quiser saber de certas coisas. Mas definitivo não pode ser. Mas
hei-de fazer livro obrigatório pra toda biblioteca que se disser brasileira. (...)” 69

Com atividades profissionais sobrecarregando seu cotidiano após o retorno em 1929, Mário de Andrade se viu
obrigado diversas vezes a adiar a elaboração do livro e seu planejado retorno ao Nordeste. Em abril de 1930, em
correspondência a Câmara Cascudo, Mário de Andrade comentou as dificuldades para a elaboração da obra, devido
ao incremento de suas obrigações diárias:

66
- ANDRADE, M. de - “O Turista Aprendiz.” São Paulo, Duas Cidades, 1976. p.277. “Natal, 10 de janeiro, 23 horas”. O grifo é de
Mário de Andrade.
67
- ANDRADE, M. de - op.cit.1976. p.239. “Natal, 20 de dezembro, 22 horas.” O grifo é nosso.
68
- ANDRADE, M. de - “Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo.”, Belo Horizonte, Vila Rica, 1993. p.91.
Correspondência de 6 de agosto de 1929.
69
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.91. Correspondência de 6 de agosto de 1929.
19

“(...) Trabalho, sempre trabalho. Meu livro sobre aí avança lerdo, é uma desgraça. Porém as ocupações
aumentam duma maneira tão prodigiosamente prodigiosa que você não pode fazer idéia do rodamoinho
que sou agora. Faço 50 coisas inuteisinhas por dia, o que quer dizer que nada de importante pode
avançar. E ainda os amigos se queixam que não apareço nas festas! pudera! nem tempo para cinema
tenho mais e passo mês quasi sem ir nele que adoro. E não há rompimento possível com o ramerrão
porque ou são favores inadiáveis ou é a medonha questão de ganhar dinheiro, sempre dinheiro! (...). 70

Em 1931, Mário de Andrade planejou definitivamente sua volta ao Nordeste brasileiro, em viagem a ser
realizada no final do ano seguinte. Nesse novo empreendimento, o Turista Aprendiz seria acompanhado por um
pequeno grupo de amigos paulistas: o intelectual Alcântara Machado, a pintora Tarsila do Amaral e sua prima, Lolita
Bicudo. 71 Os sucessivos adiamentos da viagem de retorno aos Estados do Nordeste não foram considerados como
prejudiciais por Mário de Andrade, mas ao contrário, para ele “(...) isso até é milhor porque indo agora com meu
trabalho sobre cantoria d'aí em meio ia colher mais documentação que me obrigava a muito retrabalho e o que ainda
tenho por fazer é monstruoso. Como espero dedicar mais todo o ano que vem pro que já tenho, no fim do ano [1932]
só levarei pra aí coisas que careça esclarecer milhor, perguntas e documentos si carecer (...)”. 72
A nova viagem de Mário de Andrade com o grupo de amigos paulistas, tinha já um roteiro prioritário pré-
estabelecido, e era considerada por todos como certa a sua realização:

“(...) O certo é a viagem. Desembarcamos no Recife, alugamos o auto pra viagem toda, iremos pegar o
Ademar [Vidal] aderido na Paraíba, começo de dezembro de 1932, iremos a Natal, de lá, zona de
engenhos e salinas e o carnaubal do Assu e a serra do Martins (espero que sem tempestade) e de lá
sertão da Paraíba, tudo depois do tempo de festa, está claro, que é pra ver Pastoris, Cheganças, Bumba
e pelo sertão da Paraíba em viagem que espero acidentadíssima iremos a Paulo Afonso, donde
desceremos até os carijó que já estão preparando um Toré pra nós, e finalmente o carnaval do Recife.
(...).” 73

Em março de 1932, Mário de Andrade reafirmou a disposição de “(...) ida pro Nordeste no fim do ano”, o que
não ocorreria somente “(...) si Deus dispuser o contrário (...)” pois já estava “(...) tudo preparado, até o dinheiro da
viagem reservado, e rendendo juros na Caixa Econômica (...)”. 74 Por motivos não explicitados, a viagem foi
novamente adiada.
Em março de 1933, após haver redigido parte de Na Pancada do Ganzá, Mário de Andrade comunicou a
Câmara Cascudo várias mudanças no planejamento original da obra, solicitando ajuda dos amigos com a remessa de
melodias folclóricas - que deveriam ser anotadas com o máximo de rigor etnográfico possível -, e afirmando não ser de
“(...) todo impossível que eu pule até aí no fim do ano ou no princípio do ano que vem (...)”:

“(...) modifiquei um tanto a concepção primitiva do livro que está mais fácil, mais simples, menos
cientificamente pretencioso. Mas não quero ficar engasgado nele mais e o ano que vem, suceda o que
suceder escrevo o livro. Precisava da melodia de alguns romances, tanto dos tradicionais como dos de
agora. Mas sertanejos de preferência a litoranos [sic][;] da Paraíba trouxe as melodias ou alguns
romances contemporâneos [que] são linhas admiráveis, muito originais tanto no arabesco como nas
escalas estilizadas. Cocos tenho bastantes, [sic] me falta é mesmo romances, toadas sertanejas, aboios,
coisa longe da influência nem sempre salubre do mar. Diga ao Waldemar [de Oliveira?] que si por acaso
conseguir alguma coisa que me ajude por gratuita e amorosa camaradagem, registre a coisa, versos
musical [sic], lugar do cantador (seja erudito ou de povo), nome dele etc. e me mande de presente. Era
75
um ajutório enorme. (...).”

Em 1934, Mário de Andrade finalmente se dedicou de maneira intensa à redação do Na Pancada do Ganzá.
Agora de pena em punho, o Turista Aprendiz começou a dimensionar a gigantesca estrutura de sua proposta de
trabalho:

“(...) Realmente é um livro dificílimo de escrever, me atrapalho um bocado no excesso de notas que andei
tomando ao acaso das leituras, me tomam centenas de hesitações, de dúvidas, de desgarros, é o diabo.
Só tenho prontos até agora, cinco meses de trabalho, os congos e os Maracatus. 76 Assim já tenho agora

70
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.93. Correspondência de 24 de abril de 1930.
71
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.115. Correspondência de 11 de novembro de 1931.
72
- idem ibidem
73
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.115. Correspondência de 11 de novembro de 1931.
74
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.121. Correspondência de 26 de março de 1932.
75
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.127. Correspondência de 26 de março de 1933.
76
- Publicados in ANDRADE, M. de - “Danças Dramáticas do Brasil - 2º Tomo.” 2ª ed., Belo Horizonte, Itatiaia, 1982. p. 7-171.
20

a certeza que o livro me tomará no mínimo uns dois anos. Confesso que isso me assusta um bocado,
mas o quê hei-de fazer, não só a arquitetura é enorme como o tempo é pouco. (...)”. 77

Por constatar que Na Pancada do Ganzá constituir-se-ia em um extenso e complexo estudo sobre música
folclórica nacional, talvez um “(...) livro obrigatório pra toda biblioteca que se disser brasileira (...)”, 78 Mário de Andrade
preferiu adiar mais uma vez sua viagem de retorno ao Nordeste. Para ele, somente seria interessante se deslocar à
esta região brasileira após a elaboração de grande parte do Na Pancada do Ganzá, quando então aproveitaria o
ensejo para preencher as lacunas do trabalho. Nesse sentido, Mário de Andrade se justificou a Luís da Câmara
Cascudo:

“(...) Não pense que é desejo de não ir, nem mesmo que seja dificuldade material da viagem que me
amolece. Mas é que eu desejo ir levando o meu livro pronto, ou pelo menos pronto nas suas partes
essenciais, danças dramáticas e danças puras, cocos principalmente. Porquê minha viagem, minhas
viagens, minhas férias todas deste mundo, hélas! já não podem ser férias puras. São trabalhos outros, e
delas tenho sempre que tirar algum benefício que afinal das contas é menos meu que humano. E isso pro
seu espírito há-de justificar na certa o que eu estou dizendo. Não só tenho que fazer essa viagem pra
79
crismar o Nando e pra matar saudades, mas tenho que aproveitar também para fins etnográficos.
Principalmente folclóricos, nos assuntos a que me dediquei. E por isso é que quero estar com o material
principal já pronto, porquê assim irei pesquisar não apenas o já sabido como procurar o que falta, encher
lacunas, que são muitas do livro. (...) Ora a viagem marcada, diante do passo lerdo da construção, ficou
meio sim, meio não. Você sabe que uma viagem dessas não apenas fica dispendiosa, mas implica em
licenças e perdas grandes aqui, sobretudo nesta época de vacas magras em que os alunos arranjam
qualquer pretexto, eles ou os pais, pra abandonar o estudo ou procurar professores mais baratos. Não
posso viajar este ano e depois marcar nova viagem pro fim do ano que vem. Por tudo isso inda não posso
garantir a você que vá na certa este ano, não sei de nada ainda. Mas ou este ou no fim do ano que vem,
a viagem é certa e então nos abraçaremos. (...)” 80

Até março de 1935, Mário de Andrade trabalhou intensamente na redação de Na Pancada do Ganzá. O
propósito de concluir o quanto antes a elaboração da primeira versão da obra, viajando no final do ano ao Nordeste
para “(...) pesquisar não apenas o já sabido como procurar o que falta, encher lacunas, que são muitas do livro (...)”, 81
estava firmemente estabelecido, como ele relatou em correspondência a Câmara Cascudo:

“(...) Já estou me preparando pra viagem de fim de ano. Tenho escrito muito do meu livro, pelo menos
dum dos volumes, o que trata das danças-dramáticas. Estou acaba não acaba o estudo sobre o
Fandango justamente, e ainda este março quero ver se dou basta nas danças dramáticas todas com
exceção do Bumba, que esse me dará trabalho creio que pra uns três meses, a documentação é muito
grande. (...).” 82

Porém, em maio de 1935, com a criação do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo, e a
conseqüente nomeação como Diretor Geral e Chefe da Divisão de Expansão Cultural, Mário de Andrade passou a se
dedicar de maneira absoluta às necessidades emergentes e às exigências administrativas da instituição. O novo
adiamento da viagem ao Nordeste tinha agora uma justificativa muito forte para ele. Longe de se lamentar, o Turista
Aprendiz empolgou-se de maneira intensa com as potencialidades do Departamento de Cultura, particularmente a
possibilidade de colocar em andamento seus projetos voltados à Música - a força socializante -, e ao incremento dos
acervos documentais destinados à investigação dos aspectos formadores da brasilidade, que, a partir de então,
passariam a ser realizados com o apoio financeiro estatal:

“(...) minha vida foi tomada num turbilhão novo que a dominou completamente. (...) de repente fui
chamado, e tive o choque dum convite inesperado, não só no meu cargo já decidido [Chefe da Divisão de
Expansão Cultural], como me convidaram pra Diretor de todo o Departamento a se criar. De maneira que,
vinda a nomeação, a 30 de maio, não só me vi na Chefia de minha Divisão, mas com o serviço
apenasmente quadruplicado, como Diretor Geral, orientador, sistematizador, e o diabo, de todas as
quatro divisões do Departamento. Você [Câmara Cascudo] imaginará bem, que conhece São Paulo, o
horror de trabalhos e preocupações novas, que isso está me dando. Tive que largar de tudo, pra criar
todo um organismo, de que, praticamente, não estava nada feito, a não ser a Biblioteca Municipal. E aliás

77
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.130. Correspondência de 10 de maio de 1934.
78
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.91. Correspondência de 6 de agosto de 1929.
79
- Filho de Luís da Câmara Cascudo, apadrinhado por Mário de Andrade.
80
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.131. Correspondência de 10 de maio de 1934.
81
- idem ibidem
82
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.136. Correspondência de 1º de março de 1935.
21

antes ela não estivesse feita, porque justamente a sua reorganização está tão difícil que você não
imagina. (...).” 83

A redação de Na Pancada do Ganzá e de outros projetos literários de Mário de Andrade foram paralisados. A
organização da nova instituição cultural da Prefeitura de São Paulo absorvia completamente o cotidiano de Mário de
Andrade. Com prazer, Mário se entregava ao trabalho, pois esse era um projeto próprio mais abrangente, acalentado
durante anos e que agora se tornava realidade, sendo apoiado política e financeiramente pelo Estado, viabilizando o
desenvolvimento e a criação de organismos técnicos especializados e de acervos documentais públicos destinados
aos estudos e aproveitamento artístico:

“(...) Ah, você [Câmara Cascudo] nem imagina o que está sendo minha vida, uma ferocidade
deslumbrante, um delírio, um turbilhão sublime, um trabalho incessante, dia e noite, noite e dia, me
esqueci já da minha língua literária, a humanidade me fez até voltar a uma língua menos pessoal, já me
esqueci completamente de mim. Não sou, sou um departamento da Prefeitura municipal de S. Paulo. Me
apaixonei completamente. Também a coisa não era pra menos, bateu uma aura de progresso neste
84
município sofrido, veio um prefeito que topa com as coisas da cultura também, incrível! e me
chamaram pra dirigir a coisa, imagine só, numa terra em que tudo está por fazer! Tou fazendo. Sim. (...)”.
85

Até 1936, com apenas um ano de existência, o Departamento de Cultura de São Paulo já havia patrocinado
uma série de atividades. Destacaram-se entre eles: a criação da Discoteca Pública Municipal em setembro de 1935
como seção da Divisão de Expansão Cultural; o curso de Etnografia e Folclore ministrado por Dina Lévi-Strauss e a
conseqüente criação da Sociedade de Etnografia e Folclore, em 1936; a viagem do compositor Camargo Guarnieri à
Bahia para acompanhar as atividades do II Congresso Afrobrasileiro em 1937.
Também naquele ano de 1936, em correspondência a Câmara Cascudo, Mário de Andrade manifestou a idéia
de registrar fonograficamente as melodias folclóricas da região do Nordeste brasileiro. O extenso trabalho de coleta
musical realizado na segunda viagem etnográfica do Turista Aprendiz, entre 1928-1929, resultando na elaboração do
projeto de Na Pancada do Ganzá, poderia então ser complementado através de gravações de campo em discos de
acetato efetuadas pela Discoteca Pública Municipal, instituição orientada por Mário de Andrade e dirigida por sua
discípula e amiga Oneyda Alvarenga (1911-1984). Era a gênese da Missão de Pesquisas Folclóricas, planejada para
1937 contando com a participação efetiva na viagem do próprio Mário de Andrade. Outra vez, o Turista Aprendiz
explicou a Câmara Cascudo os motivos de mais um adiamento da viagem de retorno ao Nordeste:
86
“(...) Até chego agora a pedir pra você esperar mais um bocadinho prá crisma do nosso Fernando Luís.
É que me veio na telha a possibilidade, este ano não, mas o ano que vem, de dar um pulo até aí [para]
gravar discos populares. Si arranjar a verba, vou, si não arranjar, pedirei tristonhamente a alguém que
você me indique aí pra me representar na crisma e não atrasarei mais a justa vinda das benção [sic]
espirituais sobre quem tanto quero bem. (...).” 87

A idéia de realizar uma vasta coleta de documentos musicais registrados fonograficamente em gravações de
campo, particularmente na região do Nordeste do Brasil, foi acalentada durante muito tempo por Mário de Andrade.
Seu desejo de voltar à região para realizar coletas musicais mais sistemáticas e com maior largeza de tempo foi
expresso várias vezes nos anos subseqüentes à realização da segunda viagem etnográfica do Turista Aprendiz.
Porém, foi somente com a criação do Departamento de Cultura de São Paulo, e através Discoteca Pública Municipal,
que Mário de Andrade anteviu a possibilidade concreta de realização de seu antigo projeto.
O intuito de efetuar gravações em discos de folclore musical brasileiro, fornecendo subsídios materiais aos
pesquisadores e compositores para a investigação dos elementos formadores da brasilidade, foi um dos tópicos
norteadores na criação da Discoteca Pública Municipal, em setembro de 1935, como seção da Divisão de Expansão
Cultural do Departamento de Cultura de São Paulo. O objetivo de “(...) manter um serviço de gravação especialmente
88
destinado à música popular brasileira (...)” começou a ser realizado em 1937, com os registros fonográficos
efetuados em São Paulo documentando manifestações populares encontradas no Estado de Minas Gerais 89 -

83
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993.p.138-139. Correspondência de 17 de julho de 1935.
84
- prefeito Fábio da Silva Prado. O governador do Estado de São Paulo era o interventor Armando Salles de Oliveira.
85
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.140. Correspondência de 15 de abril de 1936.
86
- Filho de Luís da Câmara Cascudo, apadrinhado de Mário de Andrade, que até então não havia sido crismado dado os
sucessivos adiamentos da viagem de retorno ao Nordeste.
87
- ANDRADE, M. de - op.cit.1993. p.140. Correspondência de 15 de abril de 1936.
88
- Cópia dos Primeiros Regulamentos da Discoteca Pública Municipal, datado de 26 de setembro de 1935, Artigo 1º, item “i”.
89
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A - “Catálogo do Acervo Histórico Fonográfico da Discoteca Oneyda Alvarenga -CCSP.”, 1993.
Congada Mineira: Discos F.5-F.10, fons.4-14, 22-28 / Embolada, Cana-Verde, Taquaral, Modinha, Cateretê e Folia de Reis:
Discos F.7-F.8, fons.15-21.
22

congada, folia de reis, entre outras, na cidade de Lambari - e nos arredores da capital paulista (dança de Santa Cruz
em Itaquaquecetuba). 90
A planificação da Missão de Pesquisas Folclóricas, teve como objetivo fundamental incrementar o acervo da
Discoteca Pública Municipal com gravações de folclore musical brasileiro. A divulgação do acervo registrado pela
expedição, sob responsabilidade da Discoteca, contribuiria para suprir a carência de documentos musicais destinados
aos estudos etnográficos e ao aproveitamento artístico de melodias folclóricas pelos compositores eruditos.
Planejada para fins de 1937 e iniciada em fevereiro de 1938, a Missão de Pesquisas Folclóricas contaria com a
participação efetiva na expedição do próprio Mário de Andrade, que juntamente com outros especialistas indicados e
orientados por ele, realizariam a viagem etnográfica para documentação do folclore brasileiro, particularmente de
manifestações musicais encontradas nas regiões Norte e Nordeste do país. Porém, o acúmulo de atividades
burocráticas e administrativas à frente da Direção do Departamento de Cultura de São Paulo, somado às alterações
políticas ocorridas com a decretação do Estado Novo em novembro de 1937 - provocando indiretamente o
afastamento de Mário de Andrade da instituição -, vieram impedir a presença do Turista Aprendiz como componente
da expedição. Com a ausência de Mário de Andrade, grande orientador e incentivador dos estudos etnográficos
brasileiros, a Missão de Pesquisas Folclóricas enfrentou diversas dificuldades, como será posteriormente exposto. A
ausência de sua experiência e conhecimento em assuntos etnográficos, de seu renome pessoal e daquele alcançado
com as atividades desenvolvidas pelo Departamento de Cultura, além dos importantes contatos de Mário de Andrade
com folcloristas, intelectuais e autoridades políticas da região, prejudicaram os bons andamentos das coletas
etnográficas da expedição. Devido a isso, a Missão acabou por se transformar em uma expedição quase acéfala,
sujeita a vários tipos de improvisação e falhas metodológicas.
Com o afastamento da Direção do Departamento de Cultura em maio de 1938 - como conseqüência indireta da
decretação do Estado Novo -, Mário de Andrade não chegou a estudar o acervo coletado pela Missão. Esse trabalho
de estudo e divulgação do material recolhido pela expedição foi realizado parcialmente por Oneyda Alvarenga, em
publicações por ela coordenadas - as coleções do Arquivo Folclórico da Discoteca Pública Municipal e Registros
Sonoros de Folclore Musical Brasileiro - e obras de sua autoria, como o estudo Música Popular Brasileira, publicado
91
pela primeira vez em língua espanhola, em edição do Fondo de Cultura Económica, México, 1947.

90
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. Discos F.1-F.4, fons.1-4.
91
- A segunda edição do trabalho, em língua portuguesa, foi realizada em 1950, pela Livraria do Globo, Porto Alegre.
Recentemente, a Livraria Duas Cidades, São Paulo, publicou a terceira edição do livro.
23

4 - O projeto de gravações em discos da Discoteca Pública Municipal do Departamento de


Cultura de São Paulo: estabelecendo critérios e métodos para os registros
fonográficos da Missão de Pesquisas Folclóricas

“(...) Sr. Presidente: Vou agora dizer duas palavras sobre um outro raio de projeção do Departamento de
Cultura (...). Trata-se da parte musical como as outras, tratada com o maior carinho, o maior cuidado na
sua organização. (...)” 92

No discurso proferido na Assembléia Legislativa de São Paulo, em 6 de outubro de 1937, em que apresentava o
projeto de Lei que criou o Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico, o Deputado Paulo Duarte aproveitou a
oportunidade para fazer um balanço dos 2 anos de atividades e realizações do recém-criado Departamento de Cultura
da Municipalidade de São Paulo, chefiado por Mário de Andrade.
Oficializado em 1935 na gestão do Prefeito Fábio da Silva Prado e idealizado ao longo da década de 20 por um
grupo de intelectuais paulistas, entre eles Mário de Andrade, Rubens Borba de Moraes, Paulo Duarte e Sérgio Milliet, o
Departamento de Cultura de São Paulo estava estruturado em quatro Divisões, cabendo à Divisão de Expansão
Cultural a organização das atividades musicais. A Divisão de Expansão Cultural - também coordenada por Mário de
Andrade, era por sua vez composta de três Seções:

1-) Seção de Teatros, Cinemas e Salas de Concerto, dirigida por Paulo Magalhães;
2-) Seção Rádio-Escola, que não chegou a funcionar sendo extinta em 1938;
3-) Seção de Discoteca Pública Municipal, dirigida por Oneyda Alvarenga, aluna-amiga de Mário de Andrade.

Em seu discurso à Assembléia Legislativa, prosseguia Paulo Duarte procurando definir os objetivos
fundamentais para a criação e de atuação da Discoteca Pública Municipal:

“(...) O ponto central, a parte de importância essencial do programa que guiou a criação e guia as
atividades da Discoteca Pública Municipal é o serviço de gravação que ela mantém. Consta de três ramos
principais: o registro da música erudita paulista, o registro do folclore musical brasileiro e o Arquivo da
Palavra, este último abrangendo dois sub-ramos: o registro das vozes de homens ilustres do Brasil e os
registros destinados diretamente aos estudos de fonética.
Serviço de necessidade cultural urgente, principia a mostrar os resultados das primeiras tentativas. O
Arquivo da Palavra possue já uma série de discos duplos. Desses, quatorze formam uma série para
análise das diversas pronúncias regionais do Brasil. (...) Outros discos duplos pertencem à série de
93
homens ilustres do Brasil, e servirão também, indiretamente, para estudos de fonética. (...)”

Como pode-se perceber nesse trecho do discurso de Paulo Duarte, a orientação da Discoteca Pública
Municipal, ditada pelo Chefe da Divisão de Expansão Cultural - Mário de Andrade -, era fornecer material e subsídios
para estudos de caráter científicos, colocando a estrutura do Departamento de Cultura de São Paulo a serviço da
pesquisa e investigação dos aspectos formadores da nacionalidade.
Os discos da série AP (Arquivo da Palavra da Discoteca Pública Municipal), foram apresentados em julho de
1937, no I Congresso da Língua Nacional Cantada, organizado pelo Departamento de Cultura, reunido em São Paulo.
Esse evento contou com trabalhos realizados por filólogos, lingüistas e fonoaudiólogos de todo o país. Os seus Anais,
publicados em 1938, constituem até hoje ponto de referência fundamental para os interessados no canto em língua
94
nacional.
Os 14 discos que formam o sub-ramo do Arquivo da Palavra da Discoteca Pública Municipal destinado ao
estudo das pronúncias regionais do Brasil, tiveram um texto-padrão elaborado pelo poeta Manuel Bandeira com o
auxílio do filólogo Nicanor Nascentes, estruturado em frases soltas e sem seguimento lógico, com o intuito de dificultar
a memorização dos colaboradores para o registro fonográfico:
“(...) Véspera de Santo Antônio tomei o bonde de barcas próximo do Quartel General. Ao subir no estribo,
esbarrei numa mulher vesga.
No alto daquele morro tem um pau d'arco pequenininho.
Acompanhe sempre o menino: o príncipe é ruim.
O livro em que vem apontados por sua ordem os dias dos meses com os nomes dos santos, as luas, os
jejuns, se chama folhinha.
Por quanto o senhor vende o tordilho?

92
- “Contra o Vandalismo e o Extermínio.” - O Estado de São Paulo, 7 de outubro de 1937, p.10. A ortografia das citações foi
atualizada.
93
- idem ibidem, p.11.
94
- “Anais do I Congresso da Língua Nacional Cantada.”, São Paulo, Departamento de Cultura, julho de 1937. (publicado em
1938)
24

Quem desdenha quer comprar.


O que é que ele contou? Não sei não.
A pesca é uma indústria das mais rendosas.
Nesta questão estou de corpo e alma com o meu comprade.
Tio Pio 95 viu que a água do rio subiu muito.
(...)” 96

Os colaboradores provinham de 7 regiões fonéticas do Brasil - Norte, Nordeste (representados respectivamente


por paraenses e pernambucanos), Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul -, sendo,
segundo a nomenclatura utilizada, um culto e outro inculto de cada região. Os dois representantes, no entanto, eram
alfabetizados e os registros para os discos foram realizados através da leitura do texto padrão. 97
Por outro lado, para garantir um registro mais fluido e natural da fala dos colaboradores, evitando fatores que
poderiam influir na leitura - constrangimento diante do microfone, ação da forma escrita da palavra sobre dicção, entre
outros -, foram escolhidos textos de domínio geral, recaindo a escolha sobre aqueles que possuiam conteúdo religioso:
o Pai Nosso e a Ave Maria. 98
O outro sub-ramo da série de discos do Arquivo da Palavra que registrou as vozes de homens ilustres do Brasil,
contém alocuções do compositor Camargo Guarnieri, do pianista Souza Lima, da atriz Dulcina de Moraes, do
intelectual José de Alcântara Machado d'Oliveira, do pintor Lasar Segall e do jornalista Rubens do Amaral. Os textos
para os registros fonográficos possuiam temática relacionada com a área de atuação de cada personalidade, sendo
por eles redigidos. O tempo de duração de cada mensagem é de aproximadamente dois a três minutos. A série
Arquivo da Palavra da Discoteca Pública Municipal foi registrada em discos de acetado, de 78 rpm, com 10 e 12
polegadas. 99
Dando continuidade ao seu discurso na Assembléia Legislativa, prosseguia o Deputado Paulo Duarte:

“(...) Os registros de música erudita paulista contam no momento com vários discos duplos, com peças
representativas dos nossos melhores autores. Para que cumpram bem a sua função educativa, são
acompanhados de comentários impressos, contendo também análises musicais das peças, escritos em
português e traduzidos para o francês, tradução que visa a sua vulgarização no estrangeiro. Esses
discos, que serão sempre distribuídos a organizações culturais do país e do estrangeiro, já têm levado à
Europa e à América do Norte as primeiras amostras da escola paulista de música. (...)” 100

Até outubro de 1937, a Discoteca Pública Municipal havia registrado em estúdio de gravação 13 discos duplos
de 78 rpm, com obras de Carlos Gomes, 101 Camargo Guarnieri, Dinorah de Carvalho, Francisco Mignone, Agostinho
Cantu, Martin Braunwieser, entre outros, a maioria executadas pelo recém-criado Coral Paulistano (1936) do
Departamento de Cultura de São Paulo, sob a regência do compositor Camargo Guarnieri (1907-1993). 102 O Coral
Paulistano e o Coral Popular, criado em 1937 sob a responsabilidade do maestro Martin Braunwieser (1901-1991),
foram a cristalização de projeto de Mário de Andrade que apontava para esta forma musical, o canto coletivo, como a
grande força socializadora da música, capaz de integrar as várias regiões brasileiras sob um canto unitário e nacional.
103

Em seu Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928, Mário de Andrade incentivava os compositores brasileiros
em “(...) insistir no coral por causa do valor social que ele pode ter (...)”, afirmando que “(...) o coro umanimisa [sic] os
indivíduos (...)”. 104 Mais tarde, em 1933, em correspondência com Luís da Câmara Cascudo, Mário de Andrade
reafirmou essa opinião respondendo a consulta sobre um programa curricular:

95
- Manuel Bandeira faz uma alusão direta ao parente de Mário de Andrade, residente em fazenda próxima de Araraquara (SP),
onde o Turista Aprendiz costumava descansar pescando.
96
- “Pronúncias Regionais do Brasil.” in “Anais do I Congresso da Língua Nacional Cantada.”, São Paulo, Departamento de
Cultura, 1938. p.179-186.
97
- idem ibidem, p.179-186.
98
- idem ibidem, p.179-186.
99
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - “Catálogo Histórico-Fonográfico da Discoteca Oneyda Alvarenga.”, São Paulo, Centro Cultural
São Paulo, 1993. p.11-12, 143.
100
- “Contra o Vandalismo e o Extermínio.” - O Estado de São Paulo, 7.10.1937, p.11.
101
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit. 1993. p.9. Por ocasião das comemorações ao centenário de nascimento de Carlos
Gomes (1836-1896), em 1936, a Discoteca Pública Municipal registrou em 3 discos de acetato 78 rpm, 10 polegadas a
Sonata para Quinteto de Cordas, conhecida como Sonata “O Burrico de Pau”. A interpretação esteve a cargo do recém criado
Quarteto Haydn do Departamento de Cultura de São Paulo - integrado por Zlatopolisky (1º violino), Alfonsi (2º violino), Barbi
(viola), Corazza (cello) acompanhados de L.Presepe ao contrabaixo).
102
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993.
103
- ANDRADE, M. de - “Ensaio sobre a Música Brasileira.” 3ªed., São Paulo, Martins, 1972, p.64-65.
104
- ANDRADE, M. de - op.cit.p.64.
25

“(...) Há livros primários de canto orfeônico, do Fabiano Lozano, do João Gomes Junior, muito úteis e
bastante nacionais. Minha opinião é que vocês deviam desenvolver no máximo o canto orfeônico mas de
caráter nacional. É a forma primeira e última de música. (...)”. 105

As obras registradas pelo Coral Paulistano em 1937, cujos discos fazem parte da série ME (Música Erudita) da
Discoteca Pública Municipal, podem demonstrar uma aceitação do projeto de nacionalização da Música erudita no
Brasil, esboçado por Mário de Andrade no Ensaio sobre a Música Brasileira. Nesse trabalho, Mário de Andrade
defendeu o aproveitamento erudito do folclore musical brasileiro como suporte principal para a elaboração de
composições musicais.
Foi no Ensaio sobre a Música Brasileira, “(...) considerada pelos historiadores a primeira obra que direcionou os
estudos de folclore musical em uma orientação científica (...)”, 106 que Mário de Andrade esboçou e sistematizou seu
projeto para a nacionalização da música brasileira. Esse projeto de nacionalização estava fundamentado, segundo A.
Contier, “(...) na música pura em oposição à música descritiva ou programática do século XIX; na técnica
contrapontística de composição e, em especial, no aproveitamento de temas do folclore musical brasileiro (...). 107 No
mesmo trabalho, Mário de Andrade também estudou algumas das constâncias rítmicas, tonais-harmônicas e formais
de cantos folclóricos por ele recolhidos.
O intuito de fornecer um acervo musical folclórico, recolhido de forma criteriosa destinado ao estudo e ao
aproveitamento temático pelos compositores eruditos, era uma preocupação constante no trabalho e pensamento de
Mário de Andrade. A inexistência de documentação musical publicada em forma de coletânea, fruto da irregularidade
de expedições de caráter etnográfico para a coleta de material folclórico brasileiro, levou Mário de Andrade a
apresentar na segunda parte do Ensaio sobre a Música Brasileira, um documentário com 122 melodias de várias
regiões do Brasil, coletado em parte, diretamente da fonte popular. 108 É interessante notar que metade da obras
gravadas para a Discoteca Pública Municipal pelo Coral Paulistano em 1937 tiveram sua temática melódica extraída do
cancioneiro apresentado por Mário de Andrade na segunda parte do seu Ensaio. 109
O discurso de Paulo Duarte na Assembléia Legislativa de São Paulo especificava também outro direcionamento
dado às atividades do Departamento de Cultura e, neste caso em particular, à Discoteca Pública Municipal: o ideal de
divulgar manifestações musicais entre a população, educando-a segundo preceitos modernistas de construção da
brasilidade. Além disso, as composições musicais eruditas registradas nos discos 78 rpm serviriam de “(...) material
divulgador da música produzida no Brasil em países do exterior (...)”. 110
Sobre o resgate do folclore musical brasileiro, continuava o Deputado Paulo Duarte:

“(...) Os registros científicos do folclore musical brasileiro foram iniciados em maio de 1937. Contam com
vinte e oito fonogramas, sendo que a Discoteca Municipal principiará ainda no corrente ano uma viagem
de cinco meses ao nordeste, a zona musical folclórica mais importante do país, afim de colher material
para o seu arquivo etnográfico.
Os fonogramas incluem: uma congada mineira completa, a Dança de Santa Cruz realizada em
Itaquaquecetuba em maio de 1937 e várias danças e cantigas mineiras. Suponho não ser preciso insistir
sobre a importância da colheita urgente dessas manifestações que, infelizmente, tendem a desaparecer.
111
(...)”

Os registros musicais, uma vez coletados por especialistas, seriam

“(...) destinados não só à documentação folclórica como para servir os estudos dos musicistas
necessitados de uma fonte segura de expressão da música nacional.(...)” 112

Os registros de música folclórica realizados até aquela data foram efetuados na cidade de São Paulo. São eles,
mais especificamente: dança de Santa Cruz (Itaquaquecetuba-SP, em 2 e 3 de maio de 1937, 4 fonogramas); 113

105
- ANDRADE, M. de - “Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo.” Belo Horizonte, Ed. Vila Rica, 1993. p.126.
Correspondência de 26 de março de 1933.
106
- cf. CONTIER, A. - op.cit.1988.
107
- idem ibidem.
108
- ANDRADE, M. de - op.cit.1972. p.74-149.
109
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A., op.cit.1993. Seis dos doze arranjos corais gravados em 1937, em discos 78 rpm, pelo Coral
Paulistano, sob a regência de Camargo Guarnieri, possuiam temática extraída da segunda parte do Ensaio sobre a Música
Brasileira, de Mário de Andrade: -Arthur Pereira - “Cabocla Bonita”, com melodia colhida no Amazonas - Disco ME 4, lado A. /
-Arthur Pereira - “Tenho um vestido novo”, com melodia colhida em São Paulo - Disco ME 4, lado A. / -Souza Lima - “Samba
do Matuto”, com melodia colhida no Pernambuco - Disco ME 4, lado B. / -Dinorah de Carvalho - “Ou-lê-lê-lê!”, com melodia
colhida no Pernambuco - Disco ME 5, lado B. / -Agostinho Cantu - “Toada do Lauro Louro”, com melodia colhida no Rio
Grande do Sul - Disco ME 9, lado A. / -Martin Braunwieser - “Rochedo Sinhá” - melodia colhida no Rio Grande do Norte -
Disco ME 10, lado B.
110
- idem ibidem.
111
- “Contra o Vandalismo e o Extermínio.” - O Estado de São Paulo, 7.10.1937, p.11.
112
- idem ibidem, p.11.
113
- Cada fonograma corresponde a uma faixa de disco, e pode conter diversas melodias registradas ininterruptamente.
26

congada (Lambari-MG, 1 fonograma); embolada mineira (Lambari-MG, 1 fonograma); cana-verde (Lambari-MG, 1


fonograma); taquaral (Lambari-MG, 1 fonograma); modinha (Lambari-MG, 1 fonograma); cateretê (Lambari-MG, 1
fonograma); folia de reis (Lambari-MG, 2 fonogramas), 114 totalizando 28 fonogramas anunciados pelo Deputado Paulo
Duarte em seu discurso. 115
Os primeiros registros fonográficos realizados pela Discoteca Pública Municipal iniciaram a série de discos de
acetato, 78 rotações, 12, 14, 16 polegadas, contendo gravações de folclore musical brasileiro. Na classificação
elaborada por Oneyda Alvarenga, cada disco da série foi designado pela letra F (Folclore), seguida de numeração.
Dessa forma, os discos F.1-F.4 contêm a dança de Santa Cruz de Itaquaquecetuba; os discos F.5-F.10 registraram a
congada e outras manifestações de Minas Gerais. 116
Para a realização de suas primeiras gravações de campo, a Discoteca Pública Municipal adqüiriu durante o
período de fins de dezembro de 1936 a dezembro de 1937, os equipamentos necessários para a coleta fonográfica. 117
Além desses equipamentos, foram também comprados um aparelho fotográfico e outro cinematográfico, ambos
completos com os respectivos acessórios. 118
Os investimentos financeiros realizados pelo Departamento de Cultura de São Paulo, através da Discoteca
Pública Municipal para a aquisição dos equipamentos técnicos para a coleta de campo - uma considerável quantia de
aproximadamente 35:000$000 (trinta e cinco contos de réis) 119 - podem bem ilustrar uma das principais prioridades da
gestão de Mário de Andrade como Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo: o apoio financeiro do Estado no
sentido de incentivar todos os aspectos da pesquisa científica e atividade musical. A compra da aparelhagem de
gravação e documentação visou a realização de coletas etnográficas com critérios metodológicos definidos para o
registro fonográfico de folclore musical brasileiro. À frente do Departamento de Cultura de São Paulo, Mário de
Andrade procurou incrementar o acervo documental para o conhecimento e aproveitamento temático por compositores
eruditos, e o estudo dos aspectos formadores da brasilidade na arte musical.
A descrição dos equipamentos adquiridos pela Discoteca Pública Municipal durante 1936-1937, pode, por outro
lado, demonstrar a grande complexidade e diversidade da aparelhagem de gravação utilizada nos registros
fonográficos realizados em locais pouco apropriados e distantes de estúdios de gravação. Os novos equipamentos de
gravação adqüiridos para os trabalhos de campo da Discoteca Pública Municipal eram de origem e tecnologia norte-
120
americana, considerados como “(...) dos mais aperfeiçoados e modernos (...)” para a ainda incipiente indústria
fonográfica das décadas de 1930-40.
Dessa forma, foi importado dos Estados Unidos o equipamento gravador de 16 polegadas, marca Presto
Recorder, juntamente com os acessórios que garantiriam seu melhor desempenho: amplificador, pré-amplificador,
baterias de 6 volts (para locais sem energia elétrica), motor de 2 rotações, 2 microfones dinâmicos, um tripé para
suporte dos microfones, 2 jogos de cabos para microfone com 100 pés cada um, além de um par de fone de ouvido
para controle de gravação. Esses mesmos equipamentos, após algumas reformas, foram utilizados pela Missão de
Pesquisas Folclóricas em sua viagem de 6 meses às regiões Norte e Nordeste do País, em 1938.

114
- c.f. CARLINI, A. & LEITE, E.A., op.cit.p.5-6. As melodias mineiras da cidade de Lambari foram registradas na cidade de São
Paulo pela facilidade de gravação, pois não haveria necessidade de locomoção do aparelho pesado aparelho Presto
Recorder, recém adqüirido. Os registros fonográficos foram realizados quando um rancho mineiro de Congada veio à capital
paulista a convite do Departamento de Cultura de São Paulo para participar das festas do Divino Espírito Santo realizadas no
bairro de Santo Amaro.
115
- “Contra o Vandalismo e o Extermínio.”, O Estado de São Paulo, 7 de outubro de 1937. p.11
116
- Os discos da série F (Folclore) incluem aqueles coletados pela Missão de Pesquisas Folclóricas, correspondentes aos
discos F.11 (Canto de Carregadores de Piano do Recife - PE - fevereiro 1938) a F.179 (Toadas e Samba coletados na cidade
de Barão do Rio Branco - PE - março 1938).
117
- Notas nºs 6, 6.A, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 47, 51, de Aquisição de Bens Patrimoniais da Prefeitura do Município de São Paulo,
4ª via, datadas de 21.12.1936 a 17.12.1937: Nota nº 6 - 21.12.1936 - 1 gravador Presto Recorder de 16” com amplificador e
pré-amplificador; motores para 2 rotações; bateria 6 volts; 2 microfones dinâmicos; Tripé para suporte de microfones; 2 jogos
de cabos para microfone de 100 pés cada um; Par de fone para controle de gravação; Nota nº 6.A - 30.12.1936 - Despesas
de fretes marítimos e direitos alfandegários para a importação do aparelho Presto Recorder e demais pertences; Nota nº
11/12 - 10.4.1937 - Bateria de 6 volts, 300 ampéres para trabalhar ligada ao aparelho Presto Recorder tendo caixa de
madeira; Nota nº 13 - 10.4.1937 - Tungar [?] Westinghouse para carregar as baterias que trabalham junto com o gravador
Presto Recorder; Nota nº 14 - 10.4.1937 - Grupo Gerador de eletricidade a gazolina Farpower com caixa de madeira; Nota nº
15 - 10.4.1937 - Engrenagens para gravações do aparelho gravador Presto Recorder; Nota nº 16 - 26.4.1937 - Cronógrafo de
metal cromado marca Electra; Nota nº 47 - 28.10.1938 - Acumulador de 6 volts para trabalhar ligado ao motor do aparelho
Presto Recorder; Nota nº 51 - 17.12.1937 - 5 malas para aparelho gravador.
118
- Notas nºs 55 e 56, de Aquisição de Bens Patrimoniais da Prefeitura do Município de São Paulo, 31.12.1937: Nota nº 55 -
Camêra Rolleiflex mod.938 com lente; Estojo de couro de prontidão; Lente Herotar de Carl Zeiss; 2 jogos de lente Proxar;
Cabeça Panorâmica; Dispositivo Rolleichim (sic); 2 filtros amarelos; Tele-photo de 6 polegadas; 1 fotômetro Bewi-Elétrico.
Nota nº 56 - Aparelho cinematográfico Kodak modelo C/F.19; Projetor modelo E; Lente grande angular para cine; Filtro para
cine; 6 carretéis com protetores; 15 filmes cine S.S. 100 pés; 108 filmes 120 - 6 X 9; 10 filmes para Rolleickin.
119
- Somente para a realização da Missão de Pesquisas Folclóricas em 1938, foram reservados 60:000$000 (sessenta contos de
réis) - segundo a Portaria de Adiantamento nº 325, de 25.11.1937, processo nº 76.630/37. Essa verba, no entanto, iria custear
todas as despesas com transporte, alimentação, alojamento, salário dos 4 integrantes, entre outros gastos, durante os 6
meses de viagem da expedição.
120
- Luiz Saia em entrevista ao Diário Carioca (RJ) - “Uma Grande Obra em Favor da Cultura Nacional.”, 8.2.1938.
27

Em abril de 1937, foram realizadas duas adaptações no modelo original de fábrica do aparelho Presto Recorder,
e em dezembro desse ano, outra reforma, quando a máquina foi desmontada em 5 partes para facilitar a condução e
transporte pela equipe da Missão de Pesquisas Folclóricas. Segundo Benedito Pacheco - Técnico em Gravação,
consultor da Discoteca Pública Municipal, e posteriormente nomeado por Mário de Andrade como integrante da Missão
-, as alterações foram as seguintes:

“(...) À máquina [de gravação] foi adaptado um aspirador de pó para ela gravar em sentido contrário ao
que vem de fábrica. (...) As gravações nos discos de acetato eram feitas de dentro para fora. A máquina
ao cortar o acetato jogava o resíduo para dentro. Seria uma grande desvantagem no aproveitamento
desses discos gravados em sentido contrário. Para tanto, foi feita uma adaptação, colocando-se uma
rosca [em sentido contrário] à rosca que puxava a cabeça de gravação, original de fábrica, e adaptado
um aspirador de pó direcionado ao sulco de gravação, para a retirada dos resíduos.
(...)
Além do mais, tive de levar [durante a viagem da Missão] um gerador de corrente contínua. O aparelho
originalmente veio equipado para trabalhar com bateria, mas essas baterias... vocês conhecem o que são
essas baterias de carro? eu tinha que trabalhar com duas delas: com um peso enorme, ácido, perigoso,
além da bateria ter aquele problema da carga que se esgota e perde a potencialidade. Foi feita então
outra alteração na máquina de gravar: montamos um retificador dentro da máquina para ela poder
121
trabalhar com energia de rede ou com energia do gerador, que era de ordem alternada. (...).”

Além do fornecimento de documentos ao incipiente acervo fonográfico musical folclórico da Discoteca Pública
Municipal, as primeiras gravações experimentais em discos de acetato realizadas em maio de 1937 pela instituição, se
prestaram também como um “laboratório” para o melhor conhecimento do recém-adqüirido aparelho gravador Presto
Recorder, possibilitando uma avaliação de suas limitações e potencialidades. As conclusões extraídas das primeiras
experiências de gravações fonográficas colaboraram efetivamente ao fornecer subsídios para o estabelecimento da
metodologia que veio a ser utilizada pela Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938.
Em artigo editado em 1941, onde Mário de Andrade relatou os resultados de pesquisas etnográficas musicais
por ele realizadas sobre o Samba Rural Paulista, em agosto de 1937 - como conseqüência direta do curso de
Etnografia e Folclore ministrado por Dina Lévi-Strauss em 1936, analisado adiante -, o diretor do Departamento de
Cultura de São Paulo aproveitou a oportunidade para comentar os resultados das primeiras gravações experimentais
realizadas meses antes pela Discoteca Pública Municipal. A coleta musical do Samba Rural Paulista realizada em
1937 por Mário de Andrade foi efetuada por anotação manual direta - meios não-mecânicos -, no município de
Pirapora do Bom Jesus, próximo à capital paulistana.
As observações de Mário de Andrade sobre os resultados das gravações experimentais efetuadas em maio de
1937 pela Discoteca Pública Municipal, publicadas em seu artigo de 1941, referem-se à qualidade científica do
documento sonoro, especificamente à inibição e perda de naturalidade dos informantes populares diante de
microfones. Além disso, Mário de Andrade teceu comentários sobre a falta de definição tímbrica e clareza sonora do
registro fonográfico quando realizado para documentar manifestações musicais-folclóricas que, além de envolverem
grande número de participantes, contavam com a presença de muitos instrumentos de percussão:

“(...) Convém todavia não esquecer as deficiências das insensíveis máquinas registradoras. Pelas
experiências já feitas na Discoteca [Pública Municipal], para casos mais ou menos idênticos [ao samba
rural paulista], os cantadores, os solistas, as figuras vocalmente principais (...) perdem totalmente ou
quasi, a perfeição rítmica e a facilidade de entoar, quando parados e postos à parte da dança. Não é pois
possível, ou será dificílimo, pô-los junto a um microfone, pra que cantem fora da dança ou sem ela. É o
microfone que terá de ir até eles e não eles virem aos microfones. Mas, pressuposto um microfone móvel,
que pelo ar fosse conduzido junto à boca dos cantadores principais, e se movesse com estes, como
estes estão misturados na dança aos instrumentos de percussão e dominados pelo ruído, o insensível
microfone registraria tudo, um estrondo ritmado em que não se poderia distingüir bem a melodia e muito
122
menos o texto. A deficiência continuaria bem grande. (...)”.

Várias tentativas foram efetuadas pela Discoteca Pública Municipal para minimizar o registro do estrondo
ritmado causado pelos instrumentos de percussão. Ainda em 1937, em registros fonográficos experimentais,
procurou-se diminuir a presença sonora dos instrumentos de percussão nas gravações em discos de acetato por três
formas:

“(...) colocando-a num terceiro plano afastado, diminuindo-lhe a intensidade pela exclusão de instumentos
redobrados; e finalmente pedindo aos tocadores executassem com menos força as batidas.(...)”. 123

121
- Entrevista com Benedito Pacheco, realizada em 28 de junho de 1984, pela Equipe de Som da Divisão de Pesquisas do
Centro Cultural São Paulo, por Flávia C.Toni, Marcelo M.Brissac e Márcia Fernandes.
122
- ANDRADE, M. de - “O Samba Rural Paulista” in “Aspectos da Música Brasileira.”, 2.ed., São Paulo, Martins, 1975, p.153.
123
- idem, p.153.
28

No entanto, as gravações experimentais demonstraram que, apesar da obtenção de registros sonoros


tecnicamente melhorados, tais recursos terminavam por prejudicar a validade científica do documento, pois sua
utilização acarretava em perda na naturalidade dos informantes populares:

“(...) De tudo resultaram insuficiências novas: perda de realidade, enfraquecimento de movimento na


execução geral, hesitações rítmicas. (...)”. 124

Como decorrência das primeiras gravações experimentais realizadas pela Discoteca, Mário de Andrade
considerou que para a melhoria técnica do processo de registro fonográfico, principalmente em manifestações que
envolvessem grande número de participantes acompanhados de instrumentos de percussão, como ocorria, por
exemplo, com o Samba Rural Paulista, as gravações deveriam ser realizadas mantendo-se o microfone imóvel e
distanciado do evento sonoro:

“(...) Por agora, pelo menos, julgo que o melhor processo é colocar o microfone como se fosse um
observador humano qualquer, isto é, a distância pequena do samba, e registrar assim, com o microfone
imóvel. (...)”. 125

No entanto, Mário de Andrade concluiu que, para garantir a eficiência científica dos registros fonográficos,
haveria a necessidade de que esses fossem acompanhados de anotação musical direta - sem registro mecânico -, e
de observações realizadas por especialistas na área. Para ele, o registro fonográfico não era, especialmente em casos
de manifestações musicais com grande número de instrumentos de percussão, o mais importante e significante mas
constituía apenas um complemento das coletas por meios manuais - anotação musical direta. O registro fonográfico
seria dessa forma:

“(...) destinado a fixar o infixável por meios não mecânicos: timbre, sonoridade geral, possivelmente
algumas variantes, e [o] filme [cinematográfico, para] o aspecto geral e particularidades individualistas da
126
coreografia. (...)”.

As gravações em discos seriam particularmente importantes, segundo Mário de Andrade, para o momento em
que os informantes populares findavam uma melodia e passavam a escolher uma nova música. Nesse curto instante
de improvisação do grupo, de escolha de nova melodia, o registro fonográfico em discos seria imprescindível, pois o
recolhedor não disporia de tempo suficiente para realizar uma anotação musical direta confiável:

“(...) Há porém, nos sambas, jongos e certas manifestações da festa musical popular do Brasil, um
elemento em que a registração por meios mecânicos é a única possível e tem valor enorme. Me refiro à
consulta coletiva sobre o texto-melodia novo com que se vai sambar. (...) Nesses momentos de
verdadeira pesquisa popular é que as criações melódicas e textuais variam mais, aparecem mais ricas,
às vezes tiradas longas, de caráter improvisatório, bem bonitas. (...)
Reputo esses momentos irregistráveis por meios não mecânicos. Mesmo que fosse inventada uma
taquigrafia musical, ela não resolveria o problema, pois o recolhedor tem sempre que ouvir uma linha
melódica um certo tempo (...), estabelecer quais as figuras rítmicas estão sendo usadas, que compasso
fixar, etc. Ora essa observação, por mais curta que seja, vai impedir a registração imediata e sujeitará a
colheita às precariedades duma memória ainda por cima acossada pela necessidade de rapidez e que já
está no trabalho de guardar coisas novas (...) que estão aparecendo. Não tem ser que o faça com rigor
127
científico. (...)”.

Além do instante de improvisação e escolha de nova melodia popular, o registro fonográfico era extremamente
aconselhável quando registrasse manifestações musicais que não contivessem instrumentos de percussão. A
ausência da percussão garantiria um registro sonoro claro e definido, que associado com a notação musical realizada
no momento e a posteriori por especialistas - transcrição gráfica dos fonogramas -, asseguraria o rigor científico
necessário aos estudos e ao aproveitamento artístico. Os discos produzidos em tais condições foram considerados:

“(...) discos tanto mais úteis e valiosos que a ausência de percussão e de dança, permite ao microfone
dar timbre, texto e melodias isentos de ruídos perturbadores. (...)”. 128

Mário de Andrade concluiu que somente a associação do registro fonográfico em discos, realizado juntamente
com anotações musicais por meios não mecânicos, garantiria o rigor científico para a coleta documental da música

124
- idem, p.153.
125
- idem, p.153-154.
126
- idem, p.154.
127
- idem, p.154.
128
- idem ibidem
29

folclórica brasileira. Após ter realizado viagens para pesquisas etnográficas, particularmente aos Estados do Norte e
Nordeste brasileiros, e de haver publicado diversos trabalhos e ensaios sobre o assunto, Mário de Andrade ainda se
considerava um amador em estudos folclóricos:

“(...) De resto, e por infelicidade minha, sempre me quis considerar amador em folclore. Disso derivará
serem muito incompletas as minhas observações tomadas até agora. O fato de me ter dedicado a
colheitas e estudos folclóricos não derivou nunca duma preocupação científica que eu julgava superior às
minhas forças, tempo disponível e outras preocupações. Com minhas colheitas e estudos mais ou menos
amadorísticos, só tive em mira conhecer com intimidade a minha gente e proporcionar a poetas e
músicos, documentação popular mais farta onde se inspirassem. (...).” 129

No entanto, seu método de anotação musical das melodias por meios não mecânicos, quando realizado
diretamente de informantes populares, era extremamente elaborado, demonstrando sua preocupação e rigor com a
pesquisa etnográfica. Para coletar, em agosto de 1937, o Samba Rural Paulista encontrado na cidade de Pirapora do
Bom Jesus, Mário de Andrade realizou o trabalho em diversas etapas. Convém registrar esse método, na medida em
que tal processo, sob orientação de Mário de Andrade, foi semelhante ao utilizado pelo maestro Martin Braunwieser,
músico integrante da Missão de Pesquisas Folclóricas, e responsável, entre outras funções, pelas coletas musicais por
meios não-mecânicos efetuadas pela expedição: 130

“(...) Minha maneira pessoal de colher do natural estas peças [musicais do Samba Rural Paulista] foi a
seguinte: Fixar texto e melodia até sabê-los de cor, cantando-os mentalmente com os sambistas. Me
aplico a guardar o texto em primeiro lugar, fixando-lhe imediatamente as peculiaridades de pronúncia. Em
seguida, me aplico a reconhecer a identidade silábica desse texto dentro do ritmo-melodia. Feito isso está
decorada a cantiga, e se não tenho mais dúvida, em geral me afasto com rapidez da bagunça, pra que as
hesitações textuais ou melódicas de um e outro cantador menos atento (...) não venham perturbar em
mim o que já está colhido, decorado e identificado. (...) Pra escrever, grafo primeiro a melodia, depois lhe
ajunto o texto, mais fácil de decorar com exatidão fonética. Terminada a registração, comparo-a com o
que estou escutando, primeiro de longe, depois de perto, fazendo quando necessário as correções que a
131
verdade ouvida exige. (...)”.

A metodologia para a coleta do folclore musical brasileiro por meios mecânicos e não-mecânicos, adotada pela
Discoteca Pública Municipal, foi desenvolvida durante os anos de 1936-1937. Colaboraram nesse sentido as primeiras
experiências de registros fonográficos realizadas pela instituição, possíveis somente após a aquisição do equipamento
técnico de gravação em 1936. Além disso, como será visto adiante, foi igualmente essencial a preparação teórica e
formação científica de pesquisadores de campo habilitados para a pesquisa etnográfica. Essa instrução metodológica
foi transmitida em grande parte pela experiência de Mário de Andrade aliada ao curso de Etnografia e Folclore,
ministrado no segundo semestre de 1936 sob responsabilidade da etnóloga Dina Lévi-Strauss, a convite do
Departamento de Cultura de São Paulo.
Com algumas experiências etnográficas acumuladas, pôde a Discoteca Pública Municipal orientada por Mário
de Andrade, se responsabilizar pela realização da Missão de Pesquisas Folclóricas, em 1938. A planificação total da
expedição teve como objetivo fundamental o incremento do acervo de discos da Discoteca Pública Municipal,
colaborando para o fornecimento de documentos musicais folclóricos que subsidiassem a criação de obras de
natureza erudita. Uma vez coletado, o documentário musical seria divulgado pela Discoteca Pública Municipal que
também responsabilizar-se-ia pela preservação dos originais gravados, através da matrização em metal e cópia em
discos de vinil. O conteúdo musical dos discos (fonogramas = cada faixa de disco) seriam transcritos em notação
musical por especialistas e, posteriormente, publicados para estudos e aproveitamento artístico pelos compositores
eruditos.
Para a realização da Missão de Pesquisas Folclóricas - uma expedição etnográfica musical de grande porte, a
primeira a ser realizada no Brasil com esse intuito -, houve a necessidade de medidas e providências específicas
objetivando a preservação dos discos de acetato - material frágil que se desgasta rapidamente -, além do estudo e
divulgação do acervo folclórico musical brasileiro que seria recolhido pela expedição. Nesse sentido, é interessante
notar a intenção de Mário de Andrade em estudar ele mesmo o documentário folclórico recolhido, talvez aproveitando
os dados para complementar o planejado volume de Na Pancada do Ganzá.
No discurso à Assembléia Legislativa de São Paulo, em outubro de 1937, o Deputado Paulo Duarte anunciava a
realização da Missão para o final daquele ano:

129
- idem, p.145.
130
- Entre as outras funções de Martin Braunwieser como músico integrante da MPF estava a responsabilidade de conduzir o
microfone à boca dos cantadores, além de, juntamente com Luiz Saia - Chefe da Expedição - opinar e selecionar sobre quais
manifestações populares seriam alvo de coleta documental mais apurada.
131
- ANDRADE, M. de - op.cit. p.154-155.
30

“(...) sendo que a Discoteca principiará ainda no corrente ano uma viagem de cinco meses ao Nordeste, a
zona musical mais importante do país, a fim de colher material para seu fim etnográfico. (...)”. 132

A realização da Missão de Pesquisas Folclóricas, segundo Paulo Duarte, atenderia “(...) indiretamente ao apelo
lançado pelo Congresso Internacional das Artes Populares, reunido em Praga [1933], sob os auspícios do Instituto
Internacional de Cooperação Intelectual (...)”, 133 justificando a viagem da expedição, planejada para resgatar
manifestações folclóricas brasileiras ameaçadas pelo progresso:

“(...) A maioria dos cantos e melodias populares estão prestes a desaparecer. Sua conservação é de uma
grande importância para a ciência e para a Arte. O Congresso [Internacional das Artes Populares]
recomendou o seu registro fonográfico no mais curto prazo possível. As notações, por mais perfeitas que
sejam, não substituirão o registro fonográfico. (...)” 134

Anunciada para 1937, a Missão somente foi realizada no primeiro semestre de 1938. Mário de Andrade, ao
constatar as crescentes dificuldades políticas para a realização da expedição e, conseqüentemente, seu impedimento
para integrar a equipe da Missão de Pesquisas Folclóricas - formada por especialistas que seriam designados por ele -
, tratou de estabelecer, juntamente com Oneyda Alvarenga, os critérios de pesquisa e a metodologia, o roteiro de
viagem e as manifestações folclórico-musicais que deveriam prioritariamente ser registradas.
A necessidade e “(...) a importância da colheita urgente dessas manifestações populares que, infelizmente,
tendem a desaparecer.(...)”, apontadas no discurso de Paulo Duarte à Assembléia Legislativa, 135 refletem uma
questão problemática que ganhou proporções nas primeiras décadas do século XX: a dualidade crescente entre a
música folclórica rural, anônima, funcional, espontânea, “(...) salvaguarda dos valores ocultos e puros da nacionalidade
brasileira vista como um todo homogêneo (...)” 136 versus música popular urbana emergente nos grandes centros
como São Paulo e Rio de Janeiro, “influência deletéria” 137 no dizer de Mário de Andrade, fruto das “(...) camadas
subalternas influenciadas pelos imigrantes, impura, desorganizadora da visão centralizada e única da cultura nacional,
preconizada pelos modernistas da década de 20 (...)”. 138
Essa música popular brasileira, subsidiária da canção e das danças de salão européias, como o schottisch, a
polca, a mazurca, começou a fixar seus elementos próprios por volta de 1870. Sua evolução, primeiramente nas
formas da modinha e lundu, e posteriormente com a seresta e o choro, executados pelos pianeiros e chorões do Rio
de Janeiro - Chiquinha Gonzaga (1847-1935), Sátiro Bilhar (1860-1927), Anacleto de Medeiros (1866-1907), entre
outros -, acabou por influenciar compositores com formação erudita como Alexandre Levy (1864-1892), Ernesto
Nazareth (1863-1934), Heitor Villa-Lobos (1887-1959), provocando uma dicotomia na questão nacional, desde então
apoiada na produção musical folclórica e rural. 139
A situação recrudesceu na medida em que o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, em
particular o rádio em franca fase de implementação no Brasil, avançou, modificando e influenciando a população
habitante dos grandes centros urbanos:

“O rádio [durante o final da década de 20] efetivava-se como um meio de comunicação de massas. O
moderno veículo não chegava exatamente a destruir uma cultura preexistente. Na verdade, o rádio
transmitia, gerava uma nova cultura. De outra forma, a arte e o [novo] meio de comunicação de massas
não se opunham, ao contrário, se complementavam. Dava-se com o rádio o mesmo processo identificado
na literatura, que saía do círculo restrito dos iniciados, atingindo uma maior gama de público, numa [sic]
vulgarização da cultura com um sentido positivo. (...) Pelo aparelho radiofônico abria-se o espaço do
público, dilatava-se a abrangência da mensagem, complementava-se o sentido das vozes da
modernidade. (...) Mesmo tendo existido certas propagandas no período imediatamente anterior [década
de 20], isto não significava mudança importante como que se notou na década de 30, quando o rádio
140
perdeu seu caráter menor, para adqüirir força empresarial. (...)”

Várias foram as iniciativas do Departamento de Cultura de São Paulo para minimizar e tentar solucionar a
precária situação dos estudos etnográficos no Brasil, descrita e analisada criticamente por Mário de Andrade em
diversas oportunidades. Além da criação da Discoteca Pública Municipal, em setembro de 1935, podemos destacar a
fundação da Sociedade de Etnografia e Folclore em 1936.

132
- “Contra o Vandalismo e o Extermínio.”, O Estado de São Paulo, 7.10.1937, p.11.
133
- idem ibidem. p.11
134
- idem ibidem. p.11.
135
- “Contra o Vandalismo e o Extermínio.”, O Estado de São Paulo, 7.10.1937, p.11.
136
- CONTIER, A.D. - op.cit.1988.
137
- ANDRADE, M. de - op.cit. 1972.
138
- CONTIER, A.D. - op.cit.1988.
139
- cf. NEVES, J.M. - “Villa-Lobos, o Choro e os Choros.” Musicália S/A Cultura Musical, São Paulo, 1977.
140
- TOTA, A.P. - “A locomotiva no ar: rádio e modernidade em São Paulo (1924-1934).” Prefácio: Reinaldo Moraes. São Paulo,
Secretaria de Estado da Cultura/PW, 1990. p.80.
31

A Sociedade de Etnografia e Folclore, criada em 1936 após a conclusão de curso ministrado por Dina Lévi-
Strauss, teve como objetivo principal a formação de pesquisadores de campo especializados, que munidos de
informações metodológicas atualizadas, estivessem aptos para a melhor coleta etnográfica de folclore brasileiro,
realizada com rigor e precisão científica.
32

5 - Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF): contribuição para a metodologia de coleta


etnográfica utilizada pela Discoteca Pública Municipal

O objetivo de realizar gravações fonográficas de campo contendo registros de folclore musical brasileiro,
fornecendo um acervo documental aos pesquisadores e compositores para a investigação dos aspectos formadores
da nacionalidade, foi um dos tópicos norteadores na criação da Discoteca Pública Municipal. A orientação para o
procedimento metodológico adotado nas coletas realizadas por essa instituição foi em grande parte fornecida durante
o curso ministrado em 1936 por Dina Lévi-Strauss, patrocinado pelo Departamento de Cultura de São Paulo. Também
contribuíram enormemente nesse sentido, a vivência adquirida por Mário de Andrade durante suas viagens
etnográficas d'O Turista Aprendiz, entre 1927-29.

5.1 - O curso de Dina Lévi-Strauss em 1936: Etnografia e Folclore

O curso de Etnografia e Folclore ministrado pela etnóloga francesa Dina Lévi-Strauss em 1936, foi frequentado
por aqueles que tornar-se-iam os responsáveis diretos pelo êxito da Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938: Oneyda
Alvarenga (1911-1984), Chefe da Discoteca Pública Municipal vinculada à Divisão de Expansão Cultural do
Departamento de Cultura, a quem os integrantes da Missão respondiam diretamente; e Luiz Saia (1911-1975),
arquiteto, Diretor da 6ª Região do SPHAN em São Paulo, designado por Mário de Andrade como o Chefe da
expedição e porta-voz autorizado do Departamento de Cultura durante a viagem de 1938.
Dividido em 21 aulas, 141 o curso de Dina Lévi-Strauss reservou três sessões para tratar exclusivamente do
processo de coleta musical, seja ele realizado por meios mecânicos (registro fonográfico) ou não-mecânicos (anotação
direta). 142 Além disso, foram abordados durante o curso a maneira de estudar e classificar os instrumentos musicais
populares, tendo sido proposto por Dina Lévi-Strauss uma série de modelos de fichas de catalogação sobre o assunto.
Em relação aos meios mecânicos de registro, Dina Lévi-Strauss sugeriu a utilização de dois recursos: o
fonógrafo e o filme sonoro. Quanto ao fonógrafo, Dina Lévi-Strauss ressaltou algumas dificuldades resultantes de sua
utilização. Para ela, o fonógrafo era “(...) ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito. Mais imperfeito,
porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do aparelho e executar ou cantar. (...)”. 143 O
fonógrafo teria a vantagem de ser extremamente fácil de manejar, porém, “(...) apresentando o inconveniente de
encontrar resistência por parte do observado (...)”. 144
Em relação ao filme sonoro, sua inconveniência residia nos altos custos financeiros que um aparelho
cinematográfico implicava, tornando sua utilização “proibitiva”. Seu uso estaria restrito às “grandes e poderosas

141
- No resumo elaborado por Oneyda Alvarenga sobre o curso de Dina Lévi-Strauss - localizado no acervo da Sociedade de
Etnografia e Folclore, hoje preservado na Discoteca Oneyda Alvarenga (DOA) do Centro Cultural São Paulo (CCSP), armário
IX, escaninho 32-50, porém ainda em processo de catalogação - pode-se acompanhar os assuntos abordados durante as 21
aulas do curso, assim distribuídas: 1ª aula - conferência inaugural. / 2ª aula - Antropologia Física: a) Estudo dos caractéres
físicos do Homem; b) A fotografia; c) os olhos; d) pigmentação da Pele; e) A mancha mongólica. / 3ª aula - Antropologia
Física: a) Pesquisa da Mancha Mongólica (dados para fichas); b) Caracteres da face; c) Estudo do corpo; d) Instruções
práticas; e) Conclusões Gerais. / 4ª aula - Antropologia Física: a) As atitudes (durante o sono, trabalho, marcha, práticas
esportivas); b) Caracteres de mensuração; c) Como tomar medidas: Estatura, cabeça, face, nariz); d) Medidas sobre ossadas.
/ 5ª e 6ª aulas - O Folklore: a) Arte Decorativa (naturalista, simbólica, geométrica); b) Colheita do material; c) Análise dos
motivos decorativos. / 7ª aula - Análise do objeto decorado: a) Análise dinâmica e análise estática; b) O desenho. / 8ª aula - A
Música: a) Definições gerais; b) O fonógrafo e o filme sonoro; c) A anotação direta. / 9ª aula - Os instrumentos musicais: a)
Como e o quê estudar; b) As variações do mesmo instrumento; c) O emprego particular do instrumento; d) As fichas de
catalogação. / 10ª aula - Os Instrumentos Musicais: a) Classificação dos instrumentos. / 11ª aula - A Dança e o Drama: a)
Definições Gerais; b) Modelos de catalogação; c) Análise de fotografias. / 12ª aula - Os Jogos: a) Definições Gerais; b) Tipos
de jogos (recreação, movimento, agilidade manual, animais, cálculo, rodas); c) O jogo do barbante. / 13ª aula - Contos,
Lendas, Mitos, Provérbios: a) Definições Gerais; b) Métodos de medida; c) Representações naturais (tempo, geografia e
topografia, botânica). / 14ª aula - Cultura Material: a) Definições gerais; b) Medicina e higiene. / 15ª aula - Classificação dos
objetos: a) Cuidados a serem tomados; b) Modelos de ficha para catalogação; c) O estudo da habitação (tipos de materias). /
16ª e 17ª aulas - Plano da habitação e arranjo das diferentes partes: a) Fundação, chão, teto, paredes, disposição dos
cômodos, mobiliário; b) Diferentes tipos de habitação; c) Crenças que se referem à habitação; d) Grupamento das habitações.
/ 18ª aula - O Fogo, Armas e Instrumentos: a) Processos (sulcagem, serragem, giração, percussão, compressão); b) Armas e
instrumentos (classificação). / 19ª aula - O arco e a flecha: a) Processos de manufatura; b) Tipos de arco; c) Tipos de flecha. /
20ª aula - A tecelagem e a cerâmica: a) Classificação dos tipos de tecelagem (entrelaçado e espiralado); b) A cerâmica e sua
composição. / 21ª aula - A cerâmica (continuação): a) Fabricação; b) Cozimento; c) Forma; d) Decoração; e) Pintura; f)
Distribuição na América do Sul.
142
- 8ª, 9ª e 10ª aulas do curso de Etnografia e Folclore. Resumo elaborado por Oneyda Alvarenga.
143
- idem ibidem
144
- idem ibidem
33

expedições”. Em compensação, o uso do filme sonoro garantiria “anotações perfeitas” pois ocorreriam o registro “(...)
simultâneo de cantos, danças, instrumentos, personagens, enfim, de todo um conjunto completo (...)”. 145 Mesmo a
Missão de Pesquisas Foclóricas de 1938, que pode ser considerada uma “grande e poderosa expedição”, não utilizou
de filmes sonoros nos seus registros cinematográficos. Todos os registros realizados pela expedição foram feitos em
filmes de 16 e 32 mm, preto/branco e silenciosos.
Em relação aos registros não-mecânicos (anotação manual direta), Dina Lévi-Strauss ressaltou a necessidade
do folclorista possuir “(...) ao menos algumas noções rudimentares de música” para se “(...) recolher esse manancial
precioso que representam os cantos, as danças, as toadas populares (...)”. 146 Segundo ela, a maior dificuldade que se
encontrava no registro direto seria conseguir “(...) que um indivíduo cante ou execute sozinho o que está habituado a
cantar ou executar em conjunto(...)”. 147 Além disso, as definições de aspectos rítmico-melódicos estariam seriamente
prejudicadas caso o folclorista não dispusesse do que era denominado de “um bom ouvido musical”. Neste caso, o
pesquisador deveria dispor “(...) de um instrumento ou, na falta [deste], de uma simples gaita [sic] ou diapasão (...)”. 148
Uma vez obtida a reprodução da melodia com o auxílio de um instrumento, a canção deveria ser anotada
musicalmente. 149
Para determinação do pulso musical, Dina Lévi-Strauss aconselhou o uso do metrônomo, tomando-se o cuidado
de “(...) afastá-lo do sujeito para que ele não cante influenciado pelas batidas do aparelho (...)”. 150 A anotação musical
direta somente estaria completa se acompanhada de dados complementares, como “(...) se canto se acompanha de
instrumento ou não; o registro das palavras cantadas sílaba por sílaba; descrição da voz quanto à amplitude [sic] e
timbre; enfim tudo que acompanhe o canto, como a presença de sons sibilantes, guturais, etc (...)”. 151
Em relação ao estudo dos instrumentos musicais, Dina Lévi-Strauss aconselhou a elaboração de “(...) uma ficha
completa como para qualquer outro objeto etnográfico (...)”. Essa ficha conteria dados como o nome do instrumento -
“(...) em língua nacional ou indígena (...)” -, além de uma análise de suas formas e dimensões, abordando também a
“(...) natureza do material empregado na manufatura, a utilidade do instrumento musical e uma descrição sobre sua
técnica de fabricação (...)”. Deveriam ser estudados “(...) os cerimoniais presos ao instrumento, as restrições ligadas ao
seu emprego, como e quando é utilizado (...)”, procurando saber se o instrumento era “(...) empregado com um fim
verdadeiramente musical - produzir harmonia e melodia - ou se tem fim rítmico (...)”. 152
Para auxiliar o estudo dos instrumentos musicais, Dina Lévi-Strauss aconselhou a utilização de fotografias.
Essas registrariam o instrumento “(...) tal como é; se possível, também do instrumento em fabricação; dos executantes
durante a execução [sic], e fotografias especiais focalizando partes do corpo que entrem em jogo durante a execução,
como uma flauta de boca ou nariz (...)”. 153
Logo após a conclusão deste curso, que teve também como temática abordada as áreas de Antropologia Física
e Folclore além da Etnografia, foi criada, em novembro de 1936, por sugestão de Mário de Andrade, a Sociedade de
Etnografia e Folclore (SEF). 154
Uma das intenções da Sociedade de Etnografia e Folclore, criada em 4 de novembro de 1936, era exatamente
fornecer uma orientação metodológica e científica aos estudos específicos da área no Brasil, colaborando para a
formação de pesquisadores de campo e no incremento do acervo documental destinado aos estudos e aproveitamento
artístico baseado em temas de manifestações populares brasileiras. 155
Em 2 de abril de 1937, em uma de suas reuniões, foram discutidos e aprovados os Primeiros Estatutos da SEF,
sendo eleita sua primeira Diretoria composta por Mário de Andrade (Presidente), Dina Lévi-Strauss (1ª Secretária),
Lavínia da Costa Vilella (2ª Secretária) e Mário Wagner (Tesoureiro). Entre os 64 sócios fundadores da entidade
encontram-se Bruno Rudolfer, Claude Lévi-Strauss, Ernâni Silva Bruno, Fábio Prado, José Bento Faria Ferraz, Mário
de Andrade, Luiz Saia, Paulo Duarte, Camargo Guarnieri, Oneyda Alvarenga, Plínio Ayrosa, Rubens Borba de Moraes
e Sérgio Milliet. 156
Os resultados obtidos com o primeiro trabalho de pesquisa realizado pela SEF, em 1936, foram utilizados para a
elaboração de cartas folclórico-geográficas registrando a ocorrência de manifestações populares do Estado de São
Paulo. Após estudos e sistematização dos dados coletados, o trabalho de pesquisa e levantamento realizado pela SEF
foi enviado ao II Congresso Internacional de Folclore, ocorrido em Paris, em 25 de junho de 1937. A pesquisa
promovida pela Sociedade de Etnografia e Folclore teve como objetivo a verificação das proibições alimentares, das
danças populares e dos métodos de cura observados no interior de São Paulo. Para sua execução, foram enviados
145
- 8ª aula do curso de Etnografia e Folclore: A Música. Resumo elaborado por Oneyda Alvarenga.
146
- idem ibidem.
147
- idem ibidem
148
- idem ibidem
149
- idem ibidem
150
- idem ibidem
151
- idem ibidem
152
- 9ª e 10ª aulas do curso de Etnografia e Folclore: Os instrumentos musicais. Resumo elaborado por Oneyda Alvarenga.
153
- idem ibidem
154
- A documentação da Sociedade de Etnografia e Folclore, incluindo o resumo das aulas do curso ministrado por Dina Lévi-
Strauss, se encontra no Centro Cultural São Paulo, armário IX, escaninhos 32 a 50 da Discoteca Oneyda Alvarenga.
Atualmente, esse material se encontra em processo de indexação e catalogação.
155
- Boletim da Sociedade de Etnografia e Folclore, Ano I, nº 1, 1937.
156
- “Estatutos da Sociedade de Etnografia e Folclore.” Revista do Arquivo Municipal, Departamento de Cultura, São Paulo, nº 49,
1937. p.110-112.
34

questionários sobre os três tópicos do levantamento às instituições públicas de todo Estado e aos especialistas na área
do folclore. Mário de Andrade, na apresentação deste questionário afirmava ser “(...) inútil encarecer a necessidade
desta colaboração ao Congresso Internacional de Folclore (...)”, e continuava: “(...) São Paulo e o Brasil serão assim
representados dignamente pelas cartas geográficas paulistas, realizadas com a cooperação fraternal e altamente culta
de todos (...)”. 157 Cabe notar que ainda em 1936, o Departamento de Cultura de São Paulo já havia participado do I
Congresso Internacional de Folclore, enviando relatórios e mapas geográficos de manifestações populares observadas
em São Paulo, sendo apresentados por Nicanor Miranda - posteriormente Chefe da Divisão de Parques Infantis,
vinculada ao Departamento de Cultura de São Paulo -, e que foram “(...) alvos de expressivas felicitações por parte dos
organizadores do Congresso realizado em Paris.(...)”. 158
As atividades Sociedade de Etnografia e Folclore reduziram-se ao mínimo com a saída de Mário de Andrade da
direção do Departamento de Cultura em 1938. Apesar de ter sido extinta em 1941, quando era seu diretor Nicanor
Miranda, a SEF promoveu durante os anos de maior atividade, inúmeras reuniões abertas ao público, em que eram
apresentadas comunicações científicas sobre as atividades de pesquisa em folclore realizadas pelos seus sócios.
Além disso, a SEF editou um Boletim, publicado pela Revista do Arquivo Municipal, que informava as atividades
últimas da Sociedade e que contava com uma série de instruções metodológicas e sistematizantes para a coleta de
dados folclóricos, a ser efetuada pelos colaboradores voluntários da SEF espalhados pelo Estado de São Paulo. 159 O
Boletim da SEF era dirigido “(...) a quantos interessados da realidade nacional, amantes de nossa gente e suas
tradições (...)” e convidava aqueles que “(...) queiram se unir conosco para um trabalho realmente científico de folclore
cuja natureza ainda não foi aplicada no Brasil (...)”. 160
A SEF se tronou responsável pela formação de pesquisadores de campo especializados. A instituição
responsável pela coleta, estudo e divulgação da música folclórica brasileira era a Discoteca Pública Municipal, chefiada
por Oneyda Alvarenga, e orientada por Mário de Andrade. Além das atividades já mencionadas, como as gravações
dos discos que compõem as séries do Arquivo da Palavra (AP), Música Erudita (ME) e as primeiras gravações de
folclore - série Folclore (F) -, a Discoteca Pública Municipal também manteve um acervo de documentos musicais
folclóricos anotados por estudiosos e grafados, sem o registro mecânico, diretamente da fonte popular. Esses
documentos musicais, como já afirmara o Deputado Paulo Duarte em seu discurso à Assembléia Legislativa de São
Paulo, seriam utilizados para “(...) servir os estudos dos musicistas necessitados de uma fonte segura de expressão da
música nacional (...)”. 161 Para suprir esta parte do acervo da Discoteca Pública Municipal com documentos musicais
grafados manualmente, foi enviado a Salvador (BA) em 1937, o compositor Camargo Guarnieri (1907-1993).

157
- Questionário da Sociedade de Etnografia e Folclore, apresentado por Mário de Andrade, datado de 5 de abril de 1937.
158
- Boletim da Sociedade de Etnografia e Folclore, Ano I, nº1, 1937.
159
- Foram editados no total sete boletins da Sociedade de Etnografia e Folclore, datados de: outubro, novembro e dezembro de
1937; janeiro, fevereiro e março de 1938; e janeiro de 1939.
160
- “Boletim da Sociedade de Etnografia e Folclore.”, Revista da Arquivo Municipal, Ano I, nº1, 1937. p.1.
161
- “Contra o Vandalismo e o Extermínio.”, O Estado de São Paulo, 7.10.1937, p.11.
35

6 - Camargo Guarnieri na Bahia - Influência de Mário de Andrade - outras informações


metodológicas para a coleta musical da Missão de Pesquisas Folclóricas

Por ocasião do II Congresso Afrobrasileiro, em janeiro de 1937, o Departamento de Cultura de São Paulo,
através da Discoteca Pública Municipal, enviou a cidade de Salvador - Bahia, o compositor Camargo Guarnieri (1907-
1993) que, acompanhado do pianista Frutuoso Viana (1896-1976), recebeu a incumbência de registrar por anotação
manual direta as melodias populares para o acervo musical da Discoteca Pública de São Paulo.
Para melhor desempenhar as funções delegadas, Camargo Guarnieri recebeu instruções metodológicas de
Mário de Andrade sobre como proceder para efetuar a coleta musical de campo por anotação direta. A experiência de
Mário de Andrade adqüirida em suas viagens etnográficas pelo Nordeste e Norte do país, realizadas entre 1927 e
1929, se fez presente nessas instruções. As mesmas informações de Mário de Andrade foram também entregues ao
maestro Martin Braunwieser (1901-1991), músico integrante da Missão de Pesquisas Folclóricas e único especialista
162
na área que realizou a viagem da expedição em 1938.
Em um documento dividido em três tópicos (I-Facilidade de Colheita; II-Feitiçaria; III-Observações Gerais), Mário
de Andrade especificou ao compositor Camargo Guarnieri desde o tipo de material a ser empregado para a coleta
musical até o que ele considerava ser a melhor atitude adotada frente ao indivíduo pesquisado. Dessa forma, Mário de
Andrade aconselhou Camargo Guarnieri a “(...) ter sempre um só tipo de caderno de música para registrar melodias e
numerá-los na ordem de uso. As melodias também devem ser numeradas uma a uma, de 1 a...... dez mil (...)”. 163
Além dos cadernos de música, Camargo Guarnieri deveria levar um caderno de notas, “(...) desses de capa
flexível, para ajuntar todas as notas referentes a cada melodia colhida, pondo em cima dessas notas o número
correspondente à melodia (...)”. 164 Mário de Andrade foi enfático ao aconselhar o compositor a “(...) nunca tomar nota
em papel avulso (...)”, afirmando ser necessário “(...) trazer sempre consigo, até de smoking, tanto o caderno de notas
como o caderno de música e lápis-tinta (...)”. Era importante também “(...) carregar sempre um apontador de lápis ou
canivete (...)” para que, principalmente a música, nunca fosse escrita com “(...) lápis de ponta rombuda, ou lápis
comum, nem com caneta-tinteiro (...)”. 165
Para a anotação musical direta, Mário de Andrade determinou a Camargo Guarnieri as etapas a serem
cumpridas. Segundo ele, antes de começar a anotar a música, o compositor deveria incentivar o indivíduo a “(...) cantar
várias vezes a melodia, pra compenetrar-se bem do ritmo usado e pra ver si a melodia está bem fixa ou hesitante na
memória do cantador (...)”. 166 Camargo Guarnieri deveria “(...) distinguir bem melodia hesitante e melodia variada, pois
é comum no Norte, [sic] os cantadores variarem sobre a mesma melodia-tipo (...)”. 167
A anotação musical obedeceria a seguinte ordenação de etapas determinadas por Mário de Andrade: “a) colher
primeiro a melodia; b) Por-lhe o texto por debaixo; c) Ajuntar as anotações sobre execução: efeitos vocais,
portamentos, rubatos, peculiaridades rítmicas, caráter de afinação, instrumentos acompanhantes, etc. Significação das
palavras, palavras ignoradas do texto; d) Nome do indivíduo que deu a melodia; Onde nasceu; Idade certa (si puder
perguntar ou presumível); Cor, si sabe ler, si é rural ou urbano; Outros caracteres interessantes; e) Fotografar enfim o
indivíduo, si é popular (...)”. 168
Ao especificar o último item, Mário de Andrade solicitou a Camargo Guarnieri “(...) fotografar sempre, de corpo
inteiro, os colaboradores populares. Si possível só o busto também, para maior detalhe do rosto (...)”. 169 Deveriam ser
fotografados ainda, os instrumentos musicais “exquisitos” [sic], de fabricação popular, devendo ser acompanhados de
descrição pormenorizada. Além disso, Mário de Andrade determinou a aquisição de qualquer instrumento musical
“exquisito”, sempre que possível e com a atitude de “pechinchar” constantemente sobre a valor a ser pago. Quando a
compra fosse efetuada, Camargo Guarnieri preencheria uma ficha de objeto etnográfico, exatamente como o modelo
proposto por Dina Lévi-Strauss no curso de Etnografia e Folclore, em 1936. 170
Quanto as possíveis colaborações musicais de pessoas eruditas ou letradas, a recomendação de Mário de
Andrade a Camargo Guarnieri era “(...) colher sempre pra não ofender, mas sem se preocupar em fazer colheita
honesta (...)”. Mário de Andrade sugeriu a Camargo Guarnieri para que diferenciasse o documento musical coletado
pondo “(...) um sinalzinho qualquer, por exemplo, (...) um sinal na clave com um círculo nas pontas, e depois jogar fora
o documento (...)”. 171 Mário observou no entanto, que “(...) alguns documentos, mesmo escutados de pessoa erudita,

162
- O documento com as instruções metodológicas fornecidas por Mário de Andrade a Camargo Guarnieri está entre os originais
da Missão de Pesquisas Folclóricas, classificado como Doc.26: “Facilidade de Colheita”, do acervo histórico da DOA/CCSP.
163
- Documentos originais da MPF - “Cartas de Apresentação, instruções e notícias”, Doc.nº 26: “Facilidade de Colheita”, item 1,
armário IX, escaninho 7, da DOA/CCSP.
164
- idem ibidem, item 2.
165
- idem ibidem. Os grifos são de Mário de Andrade.
166
- Documentos Originais da MPF - “Observações Gerais”, Doc.nº 26, item 11.
167
- idem ibidem
168
- Documentos Originais da MPF - “Facilidade de colheita”, Doc.nº 26, item 3.
169
- Documentos Originais da MPF - “Observações Gerais”, Doc.nº 26, ítens 4 e 6. Os grifos são de Mário de Andrade.
170
- vide Capítulo I, ítens 5, 5.1
171
- Documentos Originais da MPF - “Observações Gerais”, Doc.nº 26, ítens 4 e 6.
36

podem ter valor: são as melodias populares que tem curso na cidade e entre gente alfabetizada, como as modinhas,
os lundus, as cantigas-de-roda, os acalantos (...)”. 172
Depois de anotada uma melodia proveniente de informante popular, Camargo Guarnieri deveria então “(...)
cantar a mesma pra que o cantador a aprove (...)” e, em seguida, “(...) cantar junto com ele, pra ver si está certo ou si
ele não faz alguma polifonia (...)”. 173 No caso de melodias construídas sobre a escala pentatônica, Camargo Guarnieri
deveria anotá-las “(...) com carinho, mesmo si cantada por doutores e gente letrada (...)”. O compositor deveria, se
possível, fazer “(...) pesquisas sobre a persistência da escala pentatônica e a com o quarto grau aumentado (...)”. 174
Com relação ao texto cantado nas melodias, Camargo Guarnieri “(...) deveria tomar sempre a significação das
palavras (...)” que não fossem compreensíveis, observando que, às vezes, “(...) uma palavra de texto sabido decór [sic]
está deturpada na memória do cantador (...)”. 175 Nesse caso, se a deturpação fosse fácil de compreender, Camargo
Guarnieri não deveria “(...) perguntar nada, nem dizer a palavra de modo correto porque isso envergonha o cantador
(...)”. 176 Nas oportunidades em que o cantador completasse de forma incompreensível o texto da melodia, Mário de
Andrade observou que “(...) certas deturpações de palavras são incompreensíveis para nós letrados, mas não para os
cantadores (...)”. 177 Essas observações de Mário de Andrade bem ilustram sua postura de respeito frente aos
informantes populares.
O comportamento a ser adotado por Camargo Guarnieri nas coletas musicais foi também especificado por Mário
de Andrade. Caso o compositor tivesse alguma dúvida, ele deveria perguntar, porém, “(...) com muito cuidado, sem
autoridade, com interesse e carinho (...)”, sempre demonstrando a “(...) máxima seriedade (...)”. Camargo Guarnieri
mudaria “(...) imediatamente de assunto sempre que o cantador hesitasse, fingindo que não percebeu a hesitação (...)”.
178

Os conselhos de Mário de Andrade objetivavam também estimular o indivíduo pesquisado, entrosando-o com o
pesquisador: “(...) Si o cantador disser alguma coisa engraçada, que ele cantador achar que é engraçada, então achar
muita graça também, pra animar e aplaudir o cantador (...)”. 179 Este mesmo procedimento deveria ser adotado para a
coleta de melodias pertencentes aos rituais de feitiçaria. Camargo Guarnieri deveria, “(...) diante do feitiçeiro, fingir
sempre que acredita em tudo quanto ele diz (...)”. 180
Quanto a coleta específica das linhas ou toadas dos ritos de feitiçaria, Mário de Andrade dividiu a pesquisa em
duas partes com igual importância: a coleta das melodias do cerimonial e das melodias pertencentes a cada uma das
entidades. Camargo Guarnieri deveria, em primeiro lugar, solicitar ao feitiçeiro para que este descrevesse “(...) toda a
cerimônia na ordem litúrgica, anotando as melodias cerimoniais de abertura, de saudação dos santos, das danças, dos
comes e bebes (si as houver) e de encerramento da cerimônia (...)”. 181 Em seguida, seriam anotadas as melodias das
entidades sobrenaturais, anexando “(...) a cada melodia de cada deus, o flos santorum, isto é, pra que serve o deus,
quais as doenças que cura, etc, e qual foi sua vida e o que representa (...)”. 182
Uma outra indicação de Mário de Andrade se referia às pesquisas específicas que deveriam ser realizadas
sobre o candomblé de caboclo, variante do candomblé negro que possui influência ameríndia. Camargo Guarnieri
recebeu a instrução de indagar a cada feitiçeiro “(...) sua opinião sobre o candomblé de caboclo, si acredita nele, si
vale de alguma coisa (...)”. Caso a resposta do feitiçeiro fosse afirmativa, o compositor solicitaria a “(...) descrição de
suas cerimônias, a enumeração dos deuses, seu flos santorum e melodias (...)”. 183
O catimbó, ritual de feitiçaria brasileira que já havia sido pesquisado por Mário de Andrade em sua viagem
etnográfica de 1929, 184 também foi objeto de instrução fornecida a Camargo Guarnieri. O compositor pesquisaria na
Bahia “(...) se são conhecidos os deuses do catimbó (...)”, verificando “(...) si esta palavra também é conhecida por lá, e
si quer dizer o mesmo que candomblé de caboclo (...)”. Também o coco, dança coletiva que mereceu a atenção de
Mário de Andrade durante a viagem etnográfica de 1928-29 aos Estados do Nordeste, deveria ser observado. 185
Como recomendação final dessa série de instruções fornecidas a Camargo Guarnieri, Mário de Andrade
observou que “(...) é tanta coisa a colher que certamente não haverá tempo para tanto (...)”, incentivando o compositor
a “(...) colher informações pormenorizadas sobre tudo, nomes de pessoas, residências, cidades onde se realizam tais e
tais coisas e trazer estas informações pra pesquisas ulteriores (...)”. 186
Camargo Guarnieri permaneceu na capital do Estado da Bahia durante o mês de janeiro de 1937, retornando a
São Paulo em princípios de fevereiro. Como resultado dessa viagem, o compositor trouxe consigo uma volumosa

172
- idem ibidem.
173
- idem, ítens 10 e 12.
174
- idem, ítens 10 e 12.
175
- idem, item 7.
176
- idem, item 7.
177
- idem, item 7.
178
- idem, item 7.
179
- idem, item 7. O grifo é de Mário de Andrade.
180
- Documentos originais da MPF - “Feitiçaria”, Doc.nº 26, item 1.
181
- idem, ítens 2, 3 e 4. O grifo é de Mário de Andrade.
182
- idem, ítens 2, 3 e 4. O grifo é de Mário de Andrade.
183
- idem, item 5. O grifo é de Mário de Andrade.
184
- cf. LOPEZ, T.P.A. in ANDRADE, M. de - “O Turista Aprendiz” estabelecimento do texto de Telê Ancona Lopez, São Paulo,
Duas Cidades, 1976. Introdução.
185
- Documentos originais da MPF - “Feitiçaria”, Doc.nº 26, item 7.
186
- Documentos originais da MPF - “Observações Gerais”, Doc.nº 26, item 14.
37

coleção de cantos de candomblés baianos, com aproximadamente 200 melodias. Esse material musical foi agrupado
por Oneyda Alvarenga, formando os Códices - pastas especiais de acondicionamento e preservação de partituras - de
nºs 3 a 5 do acervo da Discoteca Pública Municipal. 187
Em 1946, nove anos após a coleta, o material anotado e recolhido pelo compositor Camargo Guarnieri, após
organização efetuada por Oneyda Alvarenga, foi publicado no I volume da coleção do Arquivo Folclórico da Discoteca
Pública Municipal: Melodias Registradas Por Meios Não-Mecânicos. 188 Na apresentação do volume, a Chefe da
Discoteca Pública Municipal comentou algumas falhas metodológicas cometidas por Camargo Guarnieri em seu
trabalho de coleta musical. Essas lacunas de informação e sistematização metodológica podem, talvez, ser atribuídas
à escassez de tempo para a coleta de tão vasto material musical, conforme havia observado Mário de Andrade em
suas instruções fornecidas ao compositor.
Na apresentação do documentário musical anotado e recolhido por Camargo Guarnieri, Oneyda Alvarenga
comentou que “(...) em muitas das melodias de candomblés que compõem esta coleção, o recolhedor não indicou os
orixás a que pertencem (...)” 189 acrescentando, no entanto, que seria possível a dedução de algumas informações
extraídas dos títulos das melodias e de seus respectivos textos poéticos. Porém, Oneyda Alvarenga se eximiu de
prestar maiores esclarecimentos com a publicação de relação de características e atributos das entidades
sobrenaturais - o flos santorum -, se apoiando na planificação original da coleção do Arquivo Folclórico da Discoteca
Pública Municipal, que previa somente a exposição do documentário e não o seu estudo. 190
Além das melodias anotadas manualmente, Camargo Guarnieri trouxe consigo cerca de 100 fotografias que
complementavam o documentário musical. A maioria desses fotogramas foram registrados pelo próprio compositor;
vários outros foram efetuados por Edison Carneiro, estudioso do candomblé e residente na cidade de Salvador, Bahia.
No entanto, como comentou Oneyda Alvarenga, várias fotografias “(...) foram tomadas com grande erro de focalização
(...)”, 1 o que impediu a utilização completa do acervo fotográfico registrado pelo compositor. No I volume da coleção
do Arquivo Folclórico da Discoteca Pública Municipal - Melodias Registradas Por Meios Não-Mecânicos, foram
publicadas somente duas fotografias dos informantes, por serem necessárias ao controle científico do documentário
musical. 191
Cabe notar, no entanto, que mesmo com as falhas metodológicas observadas por Oneyda Alvarenga, a coleção
de melodias registradas por Camargo Guarnieri, juntamente com outros 3 documentários musicais que completam o I
volume da coleção do Arquivo Folclórico - coleção Mário de Andrade, coleção Oneyda Alvarenga e coleção Martin
Braunwieser - é, ainda hoje, material fundamental e de grande importância para o estudo do folclore musical brasileiro.
O planejamento metodológico adotado pela Discoteca Pública Municipal para as coletas de campo efetuadas
pela instituição, inclusive dos registros realizados pela Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938, foi fruto das
influências e experiências acumuladas com as primeiras gravações em discos realizadas em coletas de campo pela
Discoteca Pública (1937); pelo envio do compositor Camargo Guarnieri a Salvador-Bahia (1937); com o curso de Dina
Lévi-Strauss e a criação da Sociedade de Etnografia e Folclore (1936); vivência e preparação teórica de Mário de
Andrade, coordenando as atividades de coletas etnográficas da instituição.

187
- Atualmente parte integrante do Acervo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural São Paulo, Secretaria
Municipal de Cultura.
188
- ALVARENGA, O.(org.) - “Arquivo Folclórico da Discoteca Pública Municipal - I vol.: Melodias Registradas Por Meios
Não-Mecânicos.”, São Paulo, Departamento de Cultura - Discoteca Pública Municipal, 1946, p.159.
189
- ALVARENGA, O.(org.) - op.cit.1946, p.159-160.
190
- ALVARENGA, O.(org.) - op.cit.1946. p.160.
191
- idem, p.160 A/B.
38

CAPÍTULO II
PREPARATIVOS

1 - As recomendações iniciais de Mário de Andrade: cuidados com os discos de acetato e a


exclusividade no estudo e divulgação dos resultados obtidos pela Missão de
Pesquisas Folclóricas
Antes mesmo da escolha dos componentes que integrar-se-iam à equipe técnica da Missão de Pesquisas
Folclóricas, Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga - Chefe da Discoteca Pública Municipal, já haviam analisado e
estabelecido as medidas necessárias que deveriam ser observadas pelos futuros integrantes da expedição. Dois
aspectos mereceram atenção especial: a preservação dos discos de acetato que seriam gravados, e a necessidade do
novo acervo folclórico recolhido, pertencente à Discoteca Pública Municipal, não ser divulgado antes de sua
catalogação, sistematização e estudo prévio.
A preocupação em preservar os discos originais da coleta da expedição foi o objetivo de uma das instruções
escritas por Mário de Andrade fornecidas aos futuros integrantes da Missão. Os discos recobertos em acetato -
material extremamente frágil que não permitia a reprodução por grande número de vezes - deveriam ser matrizados
em metal e copiados em vinil após o término da expedição: 192

“(...) dos discos dizer que não podem ser reproduzidos, porque qualquer reprodução impede regravação
posterior pra tirar matriz. O músico deverá anotar cuidadosamente todas as peças discadas de valor
excepcional como beleza ou originalidade, pra serem futuramente regravadas pra tirar matriz. Essas
anotações é pra que nunca a gravação feita no lugar, ser executada antes de se proceder aqui em São
Paulo a reprodução da matriz. (...)”. 193

Os futuros integrantes da Missão, com intuito de estimular os informantes populares para a obtenção de
melhores resultados etnográficos, estavam autorizados, segundo seus critérios, a reproduzir uma melodia já gravada.
No entanto, esse procedimento deveria ser realizado apenas uma vez, devido a fragilidade do acetato, e com a
anotação por parte dos responsáveis pela expedição que informasse qual o fonograma já reproduzido:

“(...) si por experiência ou animação do grupo que se estiver gravando, for conveniente, lhes mostrar uma
gravação feita, mostrar só uma logo no começo e anotar qual a melodia já reproduzida. Isso é
conveniente, porque no geral anima muito os cantadores. Si pedirem os cantadores pra ouvir as outras,
disfarçar, ir deixando pra depois e no fim explicar que não pode porque perde o disco antes de tirar a
194
matriz de aço. (...)”.

A divulgação dos resultados obtidos pela Missão de Pesquisas Folclóricas ocorreria somente após estudos
prévios realizados pelos especialistas do Departamento de Cultura de São Paulo após o retorno da expedição. Para
evitar que o material folclórico resgatado fosse divulgado antes que se procedessem tais estudos, os futuros
integrantes da expedição receberam recomendações específicas de Mário de Andrade, proibindo-os de fornecer
cópias dos documentos musicais sem autorização prévia do Diretor do Departamento de Cultura. Os integrantes da
Missão poderiam somente fornecer cópias das melodias que não apresentassem nenhum aspecto de real interesse.
Estava vetada a cessão de melodias consideradas importantes. Tal proibição se direcionou particularmente aos
participantes do I Congresso da Língua Nacional Cantada, realizado em São Paulo, em julho de 1937:

“(...) Si o pessoal do Congresso [da Língua Nacional Cantada] ou alguém pedir cópias das melodias ou
de uma particular, dar a cópia só e exclusivamente no caso da melodia não ter importância, isto é, não
tiver caracteres técnicos musicais excepcionais ou curiosos, for na tonalidade comum e não tiver beleza
excepcional. No caso de ter, nunca recusar, prometer a cópia, ir se esquecendo de dá-la e acabar não
dando. No caso de ser apertado resolutamente pelo pessoal do Congresso e não haver meio de fugir,
então recusar resolutamente, mostrando que as melodias são colhidas por um intuito científico, a ele

192
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. No ano de 1992, através da contratação de estúdio de som, os discos originais
registrados pela MPF, em acetato, foram regravados em sistema DAT (Digital Audio Tape) além de copiados em fitas-cassete
de alta qualidade. Somente através deste processo é que os registros originais realizados pela MPF ainda não preservados
pela matrização puderam novamente ser devolvidos aos pesquisadores e público interessado. Esse projeto de preservação
foi coordenado por Álvaro Carlini, e contou com a preciosa colaboração dos funcionários da Discoteca Oneyda Alvarenga do
Centro Cultural São Paulo/SMC/PMSP.
193
- Documentos originais da MPF - “Nota Importante”, Doc. nº 21, sem data.
194
- idem ibidem.
39

pertencem e não podem ser cedidas antes de estudadas e a Missão não tem direito de dar documentos
sem licença especial da chefia do Departamento. (...)”. 195

O I Congresso da Língua Nacional Cantada realizado em julho de 1937, reuniu em São Paulo especialistas em
fonética, lingüística e filologia de vários Estados brasileiros, alguns deles visitados posteriormente pela equipe da
Missão, como Pernambuco, Paraíba e Pará. A recomendação de Mário de Andrade acima citada foi elaborada ainda
em 1937, ano no qual a Missão deveria iniciar a viagem aos Estados do Norte e Nordeste do país. O adiamento da
expedição foi decorrência da decretação do Estado Novo. Os futuros integrantes da expedição deveriam ter claro que:

“(...) Ora se está apenas colhendo as melodias, que só serão estudadas aqui em São Paulo, pelos
técnicos do Departamento, para publicação. Sem o estudo oficial, não é permitido à Missão, que é
emissária apenas, revelar e doar os trabalhos que está fazendo oficialmente, e não por iniciativa pessoal.
196
Tudo [deve ser] explicado aliás com muita delicadeza [e] cuidado. (...)”.

A possibilidade do acervo musical coletado pela Missão ser estudado de maneira quase exclusiva por Mário de
Andrade era bastante grande. A formação de músicos especializados em folclore brasileiro aptos para o estudo do
material recolhido pela expedição estava muito aquém do desejável. A carência de especialistas apontavam o Turista
Aprendiz como a pessoa mais indicada para a realização dos preparativos que habilitassem o acervo para publicação.
A falta de técnicos para trabalhos especializados sobrecarregava o cotidiano de Mário de Andrade como foi comentado
por ele ao recusar um pedido realizado pelo Diretor de SPHAN, Rodrigo Mello Franco de Andrade:

“(...) O Dep. de Cultura, é preferível você não mandar a ele a incumbência e sim ao Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo. Eis as razões. Tomando o D.C. a incumbência, quem a teria que desempenhar
seria da mesma forma este seu criado. E é justamente este seu criado que já não pode mais, agora não
posso mais. Tenho que entregar os pontos. Num D.C. especializado e com tão poucos especialistas,
tenho a certeza que você compreenderá bem os especialistas como estão sobrecarregados. (...) não
posso mais. O ano [1938] aparece pra nós trabalhosíssimo com a missão folclórica ao Norte, com o novo
gênero de grandes festivais teatrais, o novo salão de artes plásticas, a nova Casa de Cultura Operária (...)
197
- tudo iniciativas deste ano. Você vê que não é possível mesmo aceitar mais coisas. (...)”.

Com objetivo de formalizar a função de emissários do Departamento de Cultura de São Paulo, impedindo o
aproveitamento do material recolhido em proveito próprio e sem estudo prévio, os futuros integrantes da Missão
tiveram que assinar antes de sua partida um Termo de Compromisso elaborado provavelmente por Mário de Andrade,
onde se comprometiam a não divulgar, em hipótese alguma, o acervo folclórico que viria ser registrado. Nesses
documentos, cada integrante da expedição declarava “(...) reconhecer que toda documentação folclórica e etnográfica
(fonogramas, fotografias, filmes, instrumentos musicais, objetos de qualquer espécie, descrições, croquís, etc.) colhida
na referida viagem (...)” pertenciam ao Departamento de Cultura de São Paulo, se comprometendo a “(...) não revelar
de modo algum, oralmente ou por escrito, a quem quer que seja a referida documentação, e a só utilizá-la em
198
trabalhos (...) com autorização expressa do Diretor do Departamento (...)”.
Com a adoção de medidas que visavam garantir a preservação do material coletado e sua exclusividade de
estudo e divulgação, Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga - através da Discoteca Pública Municipal, passaram a
cuidar dos detalhes que colaborariam para a pesquisa musical e etnográfica propriamente ditas.

195
- Documentos originais da MPF - “Nota Importante”, Doc. nº 21, sem data.
196
- Documentos originais da MPF - “Nota Importante”, Doc.nº 21, sem data. Os grifos são de Mário de Andrade.
197
- ANDRADE, M. de - “Cartas de trabalho: coorespondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1936-1945.” Brasília:
Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Fundação Pró-Memória,1981.p.129. Correspondência de 26 de janeiro
de 1938.
198
- Documentos originais da MPF - “Recibos e Termos de Compromisso”, Doc. nºs 2 e 4. 17 de dezembro de 1937.
40

2 - Instruções gerais de Mário de Andrade: organização para a pesquisa de campo

Com precauções adotadas para a preservação dos discos e assegurando a exclusividade do estudo e
divulgação do material, Mário de Andrade tratou de definir de forma global quais os aspectos e características das
manifestações folclóricas deveriam ser prioritariamente pesquisados pelos integrantes da Missão de Pesquisas
Folclóricas.
Em documento intitulado “Pesquisas sobre cada caso de festa, cerimônia, bailado, dança”, Mário de Andrade
ordenou em oito tópicos os ítens de pesquisa. Assim, o primeiro passo deveria ser anotar as “(...) datas fixas em que
se realizam as manifestações; épocas, si forem móveis (...)”. Em seguida, as “(...) providências, costumes, atos,
pequenos elementos festivos preliminares, anteriores ao caso (...)”. Como terceiro passo, os pesquisadores realizariam
uma “(...) descrição pormemorizada do caso (...)”, onde seriam anotados, pela ordem, as melodias e seus textos, a
199
coreografia, o instrumental utilizado, e, finalmente, a descrição do evento.
O quarto item dessa instrução de Mário de Andrade orientava o pesquisador a relatar o “(...) local em que se
realiza o caso (...)”, informando se é realizado ao ar livre ou não. Em seguida, deveriam ser anotados os “(...)
elementos humanos, animais, vegetais e objetos que participam do caso e sua realização (...)”. O pesquisador deveria
investigar em seguida, todo os “(...) personagens com função individual, solista, especialista e o [próprio] ritual do caso
(...)”, informando a ligação de cada personagem com “(...) as funções sociais dos indivíduos que são levados a
encarnar essas personagens (...)”. Para finalizar, os pesquisadores relatariam a “(...) terminologia geral do caso”,
anexando “notas e noções úteis para sua compreensão(...)”. 200
Ao final dessa instrução, Mário de Andrade orientou os futuros integrantes da expedição para proceder a coleta
etnográfica exatamente na ordenação por ele proposta. Segundo ele, “(...) a descrição tomada antes leva o recolhedor
a um conhecimento perfuntório do caso suficientemente hábil pra controlar depois as falhas de memória das pessoas
pesquisadas, quanto a enumeração de personagens, terminologia, etc (...)”. 201
Além do objetivo de registrar e documentar as manifestações folclórico-musicais, os futuros integrantes da
Missão deveriam realizar um levantamento sobre a arquitetura popular e erudita das regiões Norte e Nordeste do
Brasil. As instruções sobre esse assunto foram também elaboradas por Mário de Andrade. Exercendo durante breve
período a função de Assistente Técnico da 6ª Região do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN),
que ele mesmo ajudara a projetar, Mário de Andrade já havia, em 1937, efetuado o tombamento dos monumentos
históricos do Estado de São Paulo para a instituição. A experiência adquirida durante esse período de trabalho para
esse órgão, veio a ser utilizada para algumas definições metodológicas de coleta da expedição de 1938.
Em instrução específica sobre arquitetura, Mário de Andrade orientou os futuros pesquisadores da Missão a
realizar uma “(...) relação completa de edifícios arquitetônicos de valor histórico ou artístico, anteriores a 1860 (...)”,
indicando monumentos como “(...) igrejas, capelas, cadeias, câmaras, casas grandes em fazendas, jardins tanto
202
públicos como particulares (...)” entre aqueles que deveriam preferencialmente ser pesquisados.
Os integrantes da Missão deveriam ainda “(...) pesquisar nos arquivos municipais e religiosos (...)” tentando
obter “(...) quaisquer dados relativos a essas construções (...)”, como, por exemplo, os “(...) nomes de engenheiros e
construtores (...)” responsáveis pela obra. Ao visitar os monumentos, a Missão deveria “(...) inventariar as posssíveis
obras-de-arte existentes nesses edifícios (...)”, como “(...) imagens, pinturas murais, quadros, alfaias, móveis, etc (...)”.
Além disso, os pesquisadores deveriam anexar “(...), si possível, fotos, desenhos (...)”, indicando também a “(...)
bibliografia a respeito desses monumentos”. Para complementar esse levantamento sistemático da arquitetura do
Norte e Nordeste brasileiros, os componentes da expedição deveriam “(...) pesquisar no povo lendas, tradições
históricas, supertições, milagres, etc relativos a esses monumentos (...)”.203
Para garantir a melhor preparação possível à equipe, Mário de Andrade selecionou alguns textos teóricos sobre
metodologia para coleta etnográfica, que seriam, mais tarde, estudados pelos integrantes da Missão de Pesquisas
Folclóricas. Assim, juntamente com as observações e orientações por ele elaboradas, os componentes da equipe
receberam 3 textos datilografados extraídos de volumes da biblioteca particular de Mário de Andrade:

a) um trecho do artigo de José Miguel de Barandiarán, da Sociedade de Eusko-Folclore (Espanha), denominado


“Breves Instrucciones Práticas para el Insvestigador Folklorista”, de 1921;
b) um artigo tecendo considerações entre o “Popular e Popularesco”, de F. Balilla Pratella, publicado na Rivista
Musicale Italiana em 1937;
c) breve nota sobre “Que é arte popular?”, de autoria de Albert Marinus, extraído de artigo em francês denominado
204
“Les Arts populaires et les Loisirs des Travaillers”.

199
- Documentos originais da MPF - “Pesquisas sobre cada caso de festa, cerimônia, bailado, dança.”, Doc. nº 17, sem data.
200
- Documentos originais da MPF - “Pesquisas sobre cada caso de festa, cerimônia, bailado, dança”, Doc. nº 17, sem data.
201
- idem ibidem.
202
- Documentos originais da MPF - “Pesquisas a fazer”, Doc. nº 17, item 1-A, sem data.
203
- Documentos originais da MPF - “Pesquisas a fazer”, Doc.nº 17, ítens 1-B, 1-C, 1-D, 1-E, sem data.
204
- Documentos originais da MPF - “Cartas de Apresentação, instruções e notícias”, Docs.nº 25, nº 28 e nº 29. Os originais
desses documentos se encontram preservados no Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
41

Após a definição dos ítens gerais de pesquisa para a expedição, Mário de Andrade detalhou, em um outro
documento, quais manifestações folclórico-musicais que deveriam priorizadas para a para os registros documentais da
Missão. Notar-se-á na análise do documento, seu interesse em complementar suas notas de pesquisas já realizadas
durante a segunda viagem do Turista Aprendiz, notas estas que integrar-se-iam no planejado volume de Na Pancada
do Ganzá.
42

3 - Instruções específicas para a coleta da Missão: subsídios para “Na Pancada do Ganzá”

As últimas instruções fornecidas aos futuros integrantes da Missão estão contidas em documento sem data,
intitulado Pesquisas Outras, dividido em 23 ítens. 205 Neste documento, Mário de Andrade indicou quais as
manifestações folclórico-musicais deveriam ser priorizadas para os registros documentais da expedição. Algumas
manifestações deveriam ser pesquisadas particularmente no Estado da Bahia, onde a expedição iniciaria suas
primeiras coletas etnográficas.
Assim, no primeiro item dos 23 tópicos que compõe o documento, Mário de Andrade apontou a necessidade da
expedição “(...) colher boa coleção de sambas rurais baianos (...) si possível, com o máximo de pormenores:
instrumentos acompanhantes, como se dança, si existe a umbigada (...)”. 206
No segundo item dessas instruções, Mário de Andrade solicitava à equipe da Missão “(...) fazer pesquisa bem
desenvolvida sobre si persistem na Baía [sic] certas danças dramáticas (bailados), principalmente os chamados
reisados (...)”, fazendo notar que a palavra reisado era “(...) às vezes substituída por reinado, pois dizem às vezes
Reinado dos Congos (...)”. Além disso, Mário de Andrade especificou quais entre os reisados seriam
“importantíssimos” de se documentar: “(...) do Pinicapau, da Burrinha, do Cavalo Marinho, do Seu Antônio Geraldo, do
Zé do Vale, do Mestre Domingos, e da Cacheada (...)”, acrescentando que, caso fossem coletados outros exemplos,
isto “(...) também seria bom (...)”. 207
Ainda no Estado da Bahia, a equipe da Missão deveria pesquisar sobre a presença do cabocolinhos, “(...)
bailados inspirados na tradição ameríndia, que têm nomes diferentes conforme a região (...)”. A expedição deveria “(...)
colher alguns (...)”, que “(...) no geral, são instrumentais, sem melodias cantadas (...)”. Mário de Andrade ainda indicou
duas variantes do nome cabocolinhos: os caboclos e o caiapós. 208
Como última instrução específica para a Bahia, a equipe da Missão deveria pesquisar se era conhecida nesse
Estado a “(...) Cantiga da Galinha Velha (...)”, melodia de roda infantil sobre a qual Mário de Andrade possuia
provavelmente um interesse especial. 209
Apesar das instruções, a Missão de Pesquisas Folclóricas não realizou nenhuma coleta etnográfica extensiva
no Estado da Bahia. Planejada para partir em fins de 1937, a viagem iniciou-se somente em princípios de fevereiro de
1938, como decorrência indireta da decretação do Estado Novo em novembro de 1937. Devido isso, o Chefe da
expedição, o arquiteto Luiz Saia (1911-1975) designado pessoalmente por Mário de Andrade, optou em seguir viagem
diretamente para o Nordeste, pois as principais cerimônias baianas ocorriam durante mês de dezembro, e as coletas
etnográficas, caso realizadas em período diferente, seriam de pequena monta e qualidade. Mais adiante, será
apresentada a análise sobre a escolha de Luiz Saia e dos demais componentes da Missão:

“(...) O fato de não se ter trabalhado na Bahia, grande repositório de costumes, se prende a estas
concentração de práticas tradicionais em determinadas épocas. O grande mês de festejos baianos é
dezembro e, noutro tempo, certamente seriam pequenos os resultados de uma pesquisa aí. É verdade
que muitas peças colhidas pela Missão não têm época determinada para a sua realização, como o côco e
poética popular, mas mesmo as seções de feitiçaria se concentram mais no mês de dezembro. E na
feitiçaria negra baiana é de grande importância o dia de Nossa Senhora (8 de dezembro) que
210
corresponde ao orixá Emanjá. Em torno das cerimônias a Emanjá se realizam grandes festejos (...)”.

No Estado de Pernambuco, a Missão deveria particularmente “(...) ir registrar o Toré dos índios (...)” pois além
da importância da manifestação, a expedição verificaria que “(...) as comunicações [com os remanescentes indígenas]
são relativamente fáceis (...)”. A pesquisa da expedição não se limitaria à faixa litorânea do Estado. Para o registro dos
romances, haveria a necessidade de viajar para o sertão: 211

“(...) Os romances vivem, creio, especialmente no sertão. Será necessário em alguns Estados, nos que
houver maiores facilidades de penetração, penetrar sertão adentro, por exemplo: Pernambuco, Ceará.
Talvez Paraíba pelos amigos que conto lá. (...)”. 212

No Estado do Maranhão, Mário de Andrade orientou as pesquisas da Missão junto às comunidades negras.
Segundo ele, “(...) contam que no Maranhão têm povoações quasi que exclusivamente negras que conservam usos e
costumes e cantigas muito afro ainda (...)”. Os integrantes da expedição deveriam “(...) indagar e si for verdade, ir

205
- Documentos originais da MPF - “Pesquisas Outras”, Doc.nº 23, sem data.
206
- idem ibidem item nº 1. O grifo é de Mário de Andrade.
207
- idem ibidem item nº 2.
208
- idem ibidem item 6.
209
- idem ibidem item 11.
210
- Documentos originais da MPF - Relatório de Luiz Saia sem identificação, sem data. Doc.nº 52. p.1.
211
- idem ibidem item 19. Entre os dias 9 e 12 de março de 1938, a MPF documentou algumas danças ritualísticas dos índios
Pancarus, no município de Tacaratu (PE).
212
- idem ibidem item 17.
43

estudar o caso e recolher documentação (...)”. Além disso, Mário acreditava que a equipe da Missão teria facilidade de
“(...) atingir os índios Urubus [sic] e outros (...), podendo então colher farta documentação musical. 213
A Missão deveria fazer todo o possível para “(...) estar no Maranhão em maio, proximidade da época do Boi-
Bumbá (que é como lá se chama, e no Pará, o Bumba-meu-boi), de forma a fazer todo o serviço lá por fins de maio e
começo de junho, pegando pois o Boi-Bumbá nos ranchos que o estiverem ensaiando, pra em seguida pular pra
Belém do Pará pra pegar lá o Boi-Bumbá, em quantos ranchos diferentes puder (...)”. Mário de Andrade alertou aos
integrantes da expedição que “(...) a data final do Boi-Bumbá é pelo S. João, 24 de junho (...)”. 214
Já no Estado do Pará, Mário de Andrade considerou que a pesquisa não deveria se estender de maneira
extensiva e prolongada pois o Turista Aprendiz acreditava que “(...) a música popular paraense era de pouca
importância musical (...)”. Dessa maneira, o que interessava para as coletas da Missão era (...) talvez a pagelança e o
Boi Bumbá (...)”. 215 Mário orientou a equipe para registrar “(...) alguma pagelança, que é a feitiçaria de lá (...)”,
acrescentando que a equipe deveria realizar “(...) pesquisas pra ver si pega o culto da cobra que lá talvez se chame
Vodú, pois possuo pessoalmente um texto de feitiçaria paraense (pagelança) em que esta palavra vodú aparece. É
caso único conhecido (...)”. 216
Quanto aos outros tópicos que compõe o documento, vale a pena registrar aqui na íntegra o conteúdo, pois eles
explicitam a linha geral de pesquisa adotada pela expedição, com as manifestações folclórico-musicais que deveriam
ser priorizadas. Dessa forma, as instruções restantes são as seguintes:
“(...)
3) O mais importante das danças-dramáticas brasileiras é o Bumba-meu-Boi. Si puder colher um
completo, ou vários completos, quantos puder, ou mesmo melodias soltas, com descrição de
personagens, as falas não cantadas, instrumentos acompanhantes, época em que é dançado (talvez
agora!). Será esplêndido.
4) Outra dança-dramática de origem afrobrasileira é Os Congos, ou Reinado dos Congos, ou Congada. Si
colher um completo também será o ideal.
5) Outras danças-dramáticas importantes são a Chegança dos Marujos e a Chegança dos Mouros, que
as vezes trazem nomes diferentes como Fandango, Barca etc. É importantíssimo colher a melodia ou
melodias tradicionais do romance da Nau Catarineta.
(...)
7) Ver si colhe a melodia das Taieiras.
8) Colher música de qualquer espécie referentes a boi. Ver si encontra os romances tradicionais sobre o
boi, como o Rabicho da Geralda, O Boi Espacio, o Boi Surubim.
9) Ver si colhe romances tradicionais como o Bernal Francês, D. Silvana etc. da boca de amas e negras
velhas.
10) Ver si colhe a melodia do Carpinteiro de meu pai ou Muleque de meu pai.
(...)
12) Ver si colhe canções referentes a Antônio Conselheiro, a Lampeão, ao Padre Cícero.
13) Ver si colhe melodias referentes ao Balaio Sinhá.
14) Ver si colhe cantos-de-trabalho referentes a mutirões, a plantação de cana e engenhos, a plantação
de cacau e sua indústria. E principalmenteas toadas de vaqueiros, chamadas aboios ou aboiados.
15) Ver si colhe canções de mendigos, principalmente Benditos de cegos.
16) Estudar quanto possível a distribuição geográfica de certas danças e peças como bailados (com suas
datas), cocos e sambas e batuques (ver no que se assemelham e diferem), danças-de-roda infantil,
acalantos, romances.
(...)
217
18) Pegar desafios cantados”.

Várias manifestações priorizadas por Mário de Andrade para as coletas da Missão foram coletadas pela equipe.
Durante os meses de viagem, a expedição documentou 48 manifestações folclórico-musicais entre os seguintes
gêneros: cantos de trabalho (carregadores de piano, aboios, carregadores de pedra), Cantos de Pedintes, Danças
Dramáticas (Reis de Congo, Bumba-Meu-Boi, Nau Catarineta, entre outras), Cantos puros não ligados a dança
(Embolada, Desafio, Martelo, Quadrão, Repente, entre outros), Cantos de Feitiçaria (Xangô, Catimbó, Babassuê,
Tambor-de-Mina, entre outros), Danças rituais de núcleos indígenas civilizados (Praiá e Toré), Danças coletivas (côcos
de várias modalidades), Danças solistas (carimbó), Jogos Infantis (Rodas) e de Música Instrumental Pura (solos de
viola). 218

213
- idem ibidem item 20.
214
- idem ibidem item 21.
215
- idem ibidem item 23.
216
- idem ibidem item 22. Os grifos são de Mário de Andrade.
217
- idem ibidem ítens 3-5, 7-10, 12-16, 18. Todos os grifos são de Mário de Andrade.
218
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.3-21.
44

4 - Colaboração de Oneyda Alvarenga: a orientação ao pesquisador e as fichas


catalográficas.

Como Chefe da Discoteca Pública Municipal, Oneyda Alvarenga elaborou três tipos diferentes de fichas
catalográficas - Ficha de Campanha, de Local e de Repertório - que tinham por objetivo nortear o trabalho do
pesquisador, além de facilitar a ordenação do material que viria a ser entregue à Discoteca. Pode-se verificar na
elaboração dessas fichas, a influência do curso de Etnografia e Folclore ministrado por Dina Lévi-Strauss em 1936
sobre Oneyda Alvarenga. Durante o curso, a etnóloga francesa dedicou pelo menos cinco aulas aos sistemas de
catalogação e análise de dados etnográficos. 219

4.1 - A Ficha de Campanha.


Segundo Oneyda Alvarenga, dos três modelos diferentes de fichas por ela elaborados, apenas a Ficha de
Campanha era verdadeiramente indispensável. Essa ficha conteria “(...) todos os dados necessários aos fichários
folclóricos da Discoteca (...)”. Os demais modelos eram fichas subsidiárias que poderiam “(...) ser abandonadas sem
prejuízo essencial quando o tempo ou as circunstâncias em que se realiza a pesquisa não o permitirem (...)”. 220
Nessa Ficha de Campanha, a mais completa de todas, o pesquisador deveria preencher, em primeiro lugar,
uma série de tópicos para controle do material, com dados sobre os informantes populares:

“1-) Local e data da coleta; 2-) Título da Melodia;


3-) Classificação e Gênero; 4-) Nome do informante;
5-) Local de Nascimento; 6-) Sexo, cor e idade;
7-) Grau de instrução; 8-) Posição social;
9-) Origem dos ascendentes até avós”. 221

Os pesquisadores foram orientados também a elaborar perguntas como: “(...) Tem viajado ou já morou em outro
lugar? Quando e quanto tempo? (...)” ou “(...) Onde, quando, como e de quem aprendeu o documento? (...)”. 222 Além
disso, na parte inferior da Ficha de Campanha, havia espaço reservado para informações complementares ao
documento e para a ordenação realizada posteriormente por Oneyda Alvarenga, como numeração de fotografias, dos
filmes cinematográficos, das fichas de repertório e local, das anotações efetuadas.
Segundo a chefe da Discoteca Pública Municipal, as informações consideradas “(...) mais ou menos irredutíveis
a um padrão (...)” deveriam ser anotadas no campo final da Ficha de Campanha, denominado por “Observações”.
Neste item, os integrantes da expedição descreveriam os “(...) dados físicos, psicológicos e intelectuais sobre os
informantes populares (...)”, 223 seguindo a seguinte ordem de prioridades:

“(...) os dados físicos são interessantes mas dispensáveis; dos psicológicos, é essencial apenas indicar o
embaraço ou acanhamento do informante e as circunstâncias em que se obtém dele colaboração mais
eficiente. Quanto aos dados intelectuais, interessa saber o grau geral de inteligência - muito inteligente,
inteligente, pouco inteligente, semi-idiota, idiota, caractéres psicopatológicos observáveis etc. - e o grau
de inteligência musical. Nesta última parte, o especialmente interessante será inquirir as pessoas do
grupo a que pertença o informante sobre a opinião que tem das suas aptidões musicais. Por exemplo:
“acha que Fulano toca ou canta bem? Aprende depressa as modas que ouve? Sabe inventar modas
bonitas? Atrapalha, modifica ou enfeita as coisas que ouve? - essencial para observações sobre a criação
224
poético musical popular. (...).”

Também no item “Observações”, deveriam ser anotados os dados referentes à manifestação musical
documentada e de suas particularidades, como:

“a) Descrição de instrumentos, material empregado, qualidade sonora, afinação fixa ou variável segundo
a peça, gênero ou tipo executado. Processos de execução instrumental ou vocal;
b) Descrição de danças e rituais;
c) Crendices ligadas ao documento;
d) Épocas, dias e horas especiais de execução do documento;
e) Descrição da indumentária e de objetos em conexão com o documento;

219
- Aulas nºs 7, 9, 10, 11 e 15. Vide Capítulo I
220
- Documentos originais da MPF - “Sugestões Para Pesquisas de Folclore Musical.”, Doc.nº 30, sem data. 8p.
221
- idem ibidem. p.3-4.
222
- idem ibidem. p.3-4.
223
- idem ibidem. p.3-4.
224
- idem ibidem. p.2. O grifo é de Oneyda Alvarenga.
45

f) Indicação si o texto do documento é fixo ou variável. No último caso, si é utilizado material poético
tradicional, de conhecimento geral ou improvisado
g) Julgamentos estéticos que porventura o informante possa emitir sobre o documento ou sobre a música
local (dispensável)”. 225

Para exemplificar o preenchimento da Ficha de Campanha, Oneyda Alvarenga se utilizou de suas observações
etnográficas efetuadas na cidade de Varginha em 1935. As notações musicais realizadas por ela foram publicadas no I
volume da coleção Arquivo Folclórico da Discoteca Pública Municipal: Melodias Registradas Por Meios Não-
Mecânicos, de 1946. 226

225
- idem ibidem. p.2-3. O grifo é de Oneyda Alvarenga.
226
- ALVARENGA, O. (Org.) - op.cit.1946. p.83-155. O modelo da Ficha de Campanha apresentado por Oneyda Alvarenga é o
seguinte: Lugar e Data - Varginha (Sul de Minas Gerais), 1935. / Título - A moda da saia curta. Classificação - Cateretê /
Informante - Maria Ordália / Lugar do Nascimento - Fazenda do Cel. Joaquim Pinto (Município de Varginha) /Sexo - Fem. /
Cor - Preta / Idade - Ignora. 30 a 35 anos aproximadamente. / Grau de Instrução - Analfabeta / Posição Social - Mulher de
trabalhador de roça; não exerce profissão / Origem dos ascendentes até avós - [em branco] / Tem viajado ou já morou em
outro lugar? Quando e por quanto tempo? - Morou, depois de casada, no sítio chamado Queiroz, em terras da família do
marido, município de Varginha, donde [sic] dista aproximadamente 2 léguas. Na ocasião da colheita do documento a família
tentava se fixar na cidade, o que não conseguiu, voltando para os Queiroz . / Onde, quando, como e de quem aprendeu o
documento? - Em Varginha, do irmão dela, o violeiro Zé Chica, que o trouxe “dos lado de lá” (São Paulo). / Foto nº - 1 / Filme
nº - 1 / Ficha de Local - 1 / Ficha de Repertório - 1 / Notação - 1 / Observações - Maria Ordália é irmã do violeiro Zé Chica, e
seu pai, diz ela, foi bom violeiro. Possui um repertório enorme. Canta sem acanhamento, sabe dar explicações claras, e
entende com facilidade o que se lhe pergunta. A fotografia nº 1 mostra-a na porta de sua casa nos Queiroz, um ranchinho de
sapé e pau a pique, todo esburacado, com chão de pedra socada. O doc. foi registrado cantado apenas a uma voz pela inf.
Entretanto, sua execução implica 2 vozes, a 1ª voz mais aguda acompanhada regularmente pela 2ª a uma 3ª abaixo. Depois
de grafado, foi cantado para ver si estava certo, e a inf. o acompanhou a uma 3ª abaixo. O acompanhamento tradicional dos
cateretês, diz a inf., é feito por violas, as quais podem se juntar também violão e sanfona, embora estes sejam pouco usados
para esse fim. A inf. descreve assim sumariamente a dança: damas e cavalheiros vis-à-vis. Só os violeiros cantam. Depois de
cada verso, os dançadores batem palmas e sapateiam. Das palmas as mulheres se abstêm. Uma vez em cada moda, o
violeiro que canta a 1ª voz puxa um passeado em círculo, seguido pelos dançadores. Sem momento pré-estabelecido, damas
e cavalheiros fazem uma roda uns em volta dos outros.”
46

4.2 - As Fichas de Local e de Repertório.

Para as Fichas de Local não houve necessidade de modelo exemplificador. Sua proposta era fornecer dados
essenciais, julgados a critério do pesquisador, sobre as características históricas, geográficas, e culturais de cada
localidade visitada pela expedição.
Já as Fichas de Repertório deveriam ser preenchidas exclusivamente pelo músico integrante da Missão de
Pesquisas Folclóricas. Segundo Oneyda Alvarenga,

“Uma vez recolhido [gravado] o doc., o músico da comissão fará uma notação rápida, 227 que constituirá
uma ficha organizada por título de documento. A cada novo inf. que interrogar, o pesquisador perguntará
si conhece o doc., dizendo-lhe o nome ou cantando-o, si preciso, para ele ouvir. Caso cada novo inf.
conheça a melodia tal como foi registrada a 1ª vez, bastará indicar seu nome, etc., na ficha; havendo
modificações de texto, grafe-se apenas o texto, com a nota esclarecedora e as referências necessárias
ao inf., marcando na ficha RP [Repertório], adiante de seu nome e entre parênteses, a letra T, para
mostrar que apenas o texto é conhecido diferente; si o inf. conhecer o doc. como pertencente a outro tipo
[gênero] musical, indique-se também a diferença, entre parênteses, adiante do seu nome; si existir
variação leve na música, o musicista fará simplesmente uma nova notação, também acompanhada dos
esclarecimentos; si a modificação fôr mais profunda, registre-se [sic:grave-se] então a variante. (...).” 228

Além disso, o trabalho em torno das Fichas de Repertório permitiria “(...) além do controle de difusão dos
documentos, uma vista sobre o estado, na ocasião da pesquisa, do repertório popular local, regional, nacional sobre o
uso vivo ou agonizante de um determinado documento (...)”. 229 Este levantamento seria realizado pelo exame das
idades dos informantes, significando que “(...) um documento conhecido de crianças, moços e velhos, é um documento
em plena vida (...)”, enquanto que “(...) uma melodia conhecida apenas por indivíduos de 50 anos para cima, está
agonizando (...)”. 230
A consciência das dificuldades que envolveriam o trabalho realizado com as Fichas de Repertório,
principalmente no tocante ao tempo necessário para seu preenchimento, levou Oneyda Alvarenga a aconselhar seu
uso somente para os “(...) documentos de positivo valor musical ou folclórico (...)”. Esta seleção de documentos
musicais se prestaria aos estudos não só de um determinado local como para toda uma zona folclórica pesquisada
pela expedição. 231
A Ficha de Repertório continha, na parte superior, um pentagrama onde deveria ser anotada a melodia,
juntamente com o número do fonograma a que se referia a notação musical, além do número correspondente à Ficha
de Campanha. Na parte inferior, deveriam ser anotados os dados relativos aos informantes populares, em particular
nome, cor, sexo e idade presumível. 232
Para a realização da Missão foram confeccionados 122 blocos de papel para pesquisas, com todos os modelos
de Fichas propostos por Oneyda Alvarenga. Curiosamente, poucas Fichas foram preenchidas durante a viagem da
expedição. Talvez devido ao tempo necessário para o seu preenchimento, talvez devido à abundância de
documentação folclórica a ser registrada, e ao pequeno número de integrantes da expedição, poucas foram as
observações realizadas nesse material pela equipe da Missão. A grande parte das anotações da expedição foram
efetuadas em cadernetas de campo, que serão objeto de análise posterior.

227
- Sobre a notação rápida, convém lembrar as observações de Mário de Andrade, citadas no Capítulo I, item 3.
228
- Documentos originais da MPF - “Sugestões Para Pesquisas de Folclore Musical.”, Doc.nº 30, sem data. p.6-7.
229
- idem ibidem. p.3-4.
230
- idem ibidem. p.3-4
231
- idem ibidem. p.3.
232
- idem ibidem. p.3.
47

4.3 - Documentação e informes complementares às gravações

Como documentação complementar às Fichas de pesquisa, em especial, aos fonogramas gravados, Oneyda
Alvarenga considerou indispensável a utilização de fotografias. Dessa forma, os informantes populares deveriam ser
fotografados “(...) no seu ambiente habitual (...)”. Em se tratando de vários elementos, era necessário “(...) tomar
fotografias de grupo e fotografias singulares (...)”. 233
Quanto aos instrumentos musicais, estes deveriam ser fotografados “(...) isolados e em várias posições si a sua
estrutura assim o exigir (...)”. Além disso, era aconselhável realizar fotografias “(...) com os executantes, na posição
habitual em que estes os empunham (...)”, registrando também “(...) detalhes técnicos característicos e essenciais da
execução (...)”. Sempre que fosse possível, os integrantes da Missão deveriam obter um exemplar dos instrumentos
musicais pesquisados, o que, no entanto, não dispensaria “(...) absolutamente a documentação fotográfica (...)”.
Quando fosse adquirido de instrumento musical de cordas, os pesquisadores não poderiam se esquecer de “(...)
obtê-lo perfeitamente encordoado (...)”. 234
As danças deveriam ser fotografadas com seus “(...) detalhes coreográficos marcantes (...)”. Quando isso não
fosse possível, o pesquisador preencheria a lacuna com “(...) croquis e descrições claras e minuciosas (...)”. Oneyda
Alvarenga aconselhou os integrantes da expedição a tentar obter dos próprios informantes os “(...) desenhos
explicativos de danças e cerimônias (...)”, e principalmente, a grafia dos textos das melodias registradas. 235
A influência do curso de Etnografia e Folclore ministrado por Dina Lévi-Strauss em 1936 se faz notar nas
recomendações metodológicas ditadas por Oneyda Alvarenga aos integrantes da Missão. Aluna assídua do curso,
Oneyda Alvarenga aproveitou várias das indicações ali apresentadas, tais como a elaboração de fichas contendo
dados específicos para cada assunto pesquisado, do uso de registros fotográficos enfocando os informantes populares
e diversos ângulos dos instrumentos musicais, além da necessidade de documentar por meios mecânicos e não
mecânicos as manifestações musicais populares.

233
- idem ibidem. p.8.
234
- idem ibidem. p.7-8.
235
- idem ibidem. p.7-8.
48

5 - A escolha dos componentes da equipe técnica da Missão de Pesquisas Folclóricas

Como visto, em sua idealização a Missão contaria com a presença e a coordenação do próprio Mário de
Andrade, que, acompanhado por especialistas por ele indicados, realizariam a planejada viagem etnográfica. A
presença de Mário de Andrade na expedição asseguraria a realização de coletas com critérios metodológicos precisos
resultantes das experiências vivenciadas pelo Turista Aprendiz em suas viagens etnográficas.
No entanto, sobrecarregado com as atividades administrativas do Departamento de Cultura de São Paulo, e
principalmente vivendo uma situação política pouco favorável após a decretação do Estado Novo em novembro de
1937, Mário de Andrade ficou impedido de realizar o empreendimento, apesar de seus esforços para conseguir a
licença necessária junto à Prefeitura paulistana. Devido às suas obrigações e à nova conjuntura política foi descartada
a possibilidade do Turista Aprendiz se juntar aos futuros integrantes da Missão de Pesquisas Folclóricas com o objetivo
de principalmente coletar com rigor científico material folclórico para pesquisa aos músicos e estudiosos do assunto, e
possivelmente servindo também a Mário de Andrade para complementar suas notas para o planejado volume de Na
Pancada do Ganzá.
Não obstante todas dificuldades, Mário de Andrade mesmo após a partida da Missão em 1938, considerava
ainda viável sua participação na viagem da expedição. No mesmo dia do início da viagem da Missão, 4 de fevereiro,
quando a equipe partiu de trem da estação da Luz em São Paulo com destino ao porto de Santos, Mário de Andrade
escreveu ao amigo Rodrigo Mello Franco de Andrade, Diretor do SPHAN, residente no Rio de Janeiro. Nessa ocasião,
a possibilidade de se afastar de São Paulo para se encontrar com a expedição no Nordeste, foi avaliada como um
refugo para suas preocupações administrativas e políticas, além de servir como um descanso considerado mais do
que necessário:

(...) Mas a verdade verdadeira é que no momento não posso mais, arrebento. Estou com um
esgotamento nervoso incrível, já pretendi descansar e o prefeito torceu o nariz. O único jeito é voar pro
Nordeste por uns vinte dias ou mais - mas não sei se será possível. E ainda por cima as inquietações que
236
são ferozes. Ferozes aqui. (...).”

A ferocidade dessas inquietações culminou com o afastamento definitivo de Mário de Andrade da direção do
Departamento de Cultura de São Paulo, em maio de 1938. Cabe ressaltar, no entanto, que Mário de Andrade manteve
a chefia da Divisão de Expansão Cultural, sob a qual estava administrativamente vinculado até de 13 de julho de 1938.
237
A partir dessa data, passou a residir no Rio de Janeiro, retornando a São Paulo somente em 1941. Segundo o
amigo Paulo Duarte:

“(...) A ditadura havia sido implantada no ano anterior, em novembro de 1937. O arbítrio passou a dominar
a vida pública. Aqueles que haviam criado o Departamento [de Cultura] passaram a ser presos ou
expulsos do país. Mário de Andrade foi posto fora e, na impossibilidade de permanecer até na sua
Divisão de Expansão Cultural, licenciara-se sem vencimentos e emigrara para o Rio de Janeiro onde,
com a proteção de Gustavo Capanema, ministro da Educação da ditadura e seu amigo, era admitido,
primeiro, como professor de estética da Universidade do Distrito Federal recém-criada e, depois, em
começo de 1939, chefe de Seção do Instituto do Livro (...)”. 238

Impedido de realizar seu antigo projeto de retornar ao Nordeste brasileiro, Mário de Andrade tratou de realizar
uma cuidadosa e criteriosa busca para encontrar os mais adeqüados integrantes para compor a equipe da expedição.
A ausência de Mário de Andrade e de sua experiência em coletas etnográficas musicais, além de conhecedor do
Nordeste, e de personalidades intelectuais e políticas da região, era preocupante, pois poderia prejudicar a obtenção
de melhores resultados etnográficos. A equipe da Missão deveria ser de confiança de Mário de Andrade, ter
experiência e conhecimento dos objetivos últimos para a realização da expedição; ter ciência da responsabilidade
aumentada pela sua ausência e da grandiosidade do empreendimento.
Juntamente com as coletas etnográficas que deveriam ser realizadas com critérios metológicos praticamente
definidos, a equipe da Missão deveria agora se responsabilizar pelo próprio sucesso do empreendimento e de suas
necessidades, como os contatos com personalidades políticas regionais, com a imprensa, com autoridades policiais -
para autorização na gravação dos rituais de feitiçaria então perseguidos pela polícia -, com transportes, alimentação,
hospedagem, entre outros. Durante a viagem da expedição, na medida do possível, a equipe obteria a ajuda de
amigos de Mário de Andrade residentes no Nordeste. Quando isso não fosse possível, eram os próprios componentes
da equipe que deveriam providenciar a execução do que quer que fosse necessário.

236
- ANDRADE, M. de - “Cartas de trabalho: coorespondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1936-1945.” Brasília:
Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Fundação Pró-Memória, 1981. p.130. Correspondência de 4 de
fevereiro de 1938.
237
- Portaria da Prefeitura do Município de São Paulo nº 3224, de 13 de julho de 1938, citado in TONI, F.C. - “A Missão de
Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura de São Paulo.”, São Paulo, Centro Cultural São Paulo, 1985. p.22-23.
238
- DUARTE, P. - “Mário de Andrade por Ele Mesmo.” São Paulo, Edart-São Paulo Livraria Ed., 1971. p.35-36.
49

A equipe técnica escolhida pessoalmente por Mário de Andrade para a Missão de Pesquisas Folclóricas foi
composta por quatro integrantes. Em princípio, dois componentes já estavam decididos: o amigo arquiteto Luiz Saia
(1911-1975), membro da Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF), diretor da 6ª Região do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em São Paulo, designado Chefe da expedição e porta-voz autorizado do
Departamento de Cultura de São Paulo durante a viagem da equipe; e Benedito Pacheco, colaborador da Discoteca
Pública Municipal, especialista em equipamentos de som, indicado como Técnico de Gravação.
A escolha de Mário de Andrade por Luiz Saia como Chefe da expedição se deveu aos seus conhecimentos
específicos de Folclore e à sua experiência em coleta de campo, resultado de pesquisas realizadas para a Sociedade
de Etnografia e Folclore da qual era membro fundador e ativo sócio colaborador, 239 e pelo Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Luiz Saia frequentou integralmente o curso de etnografia e folclore ministrado
por Dina Lévi-Strauss em 1936. Além de folclorista, era estudante de engenharia / arquitetura, demonstrando sempre
um interesse particular com manifestações de arquitetura popular. 240
Amigo pessoal de Mário de Andrade, Luiz Saia foi por ele designado para ser o “(...) diretor da Missão, e seu
responsável (...)”. Sendo Técnico Geral em Folclore, era Luiz Saia quem decidia “(...) pelos atos da Missão, das peças
a serem colhidas, sejam cantos, sejam bailados ou instrumentos ou ainda objetos de fatura popular (...)”. 241 A ele
coube também a responsabilidade e a difícil função de ser o interlocutor do Departamento de Cultura de São Paulo
junto às autoridades políticas e policiais dos locais que seriam visitados pela expedição.
Benedito Pacheco foi especialmente contratado para integrar a expedição, sendo designado Técnico de
Gravação. Sua escolha se deve ao fato de Benedito Pacheco ser um “(...) especialista em gravações em disco (...)”,
além de profundo conhecedor do aparelho de gravações Presto Recorder de propriedade da Discoteca Pública
Municipal, pois havia trabalhado com equipamento semelhante antes de sua indicação como integrante da equipe. 242
Não pertencendo ao quadro funcional do Departamento de Cultura de São Paulo, Benedito Pacheco formalizou
um contrato ad hoc para um período de oito meses, prazo no qual realizar-se-ia a viagem da Missão. 243 Durante os
trabalhos de gravação, Benedito Pacheco responsabilizar-se-ia pelos detalhes técnicos exigidos para o melhor registro
sonoro, como disposição do microfone imóvel, o nível de gravação, entre outros.
Com dois integrantes já decididos, Mário de Andrade procurou com afinco o profissional para a área
especificamente musical. Como expedição etnográfica que privilegiaria a coleta de manifestações folclórico-musicais, a
escolha do músico era talvez a de maior significância e dificuldade. Seria o músico o profissional responsável -
juntamente com Luiz Saia -, pela seleção e documentação criteriosa das manifestações folclóricas.

239
- Estatutos da Sociedade de Etnografia e Folclore in Separata da Revista do Arquivo Municipal nº XXXIX, São Paulo,
Departamento de Cultura, 1937, p.111.
240
- ANDRADE, M. de & ALVARENGA, O. - “Cartas.” São Paulo, Duas Cidades, 1983, Nota à carta de 18 de abril de 1938.
p.135-136.
241
- Documentos originais da MPF - “Exposição de atos e consequências da Missão Folclóricas atualmente em viagem pelo norte
do Brasil”, Doc. nº 30.
242
- idem ibidem.
243
- idem ibidem.
50

5.1 - A escolha do músico da Missão

A maior dificuldade de Mário de Andrade foi a designação de um músico habilitado para desempenhar as
tarefas que uma expedição etnográfica de grande porte exigiria. Profundo conhecedor do caráter essencialmente vocal
da música folclórica brasileira, Mário de Andrade tinha consciência que o profissional a ser escolhido deveria
necessariamente possuir sólidos conhecimentos específicos sobre música vocal e suas particularidades. Um músico
com formação restrita ao instrumento, sem conhecimento mais amplo sobre a voz e suas características, não estaria
apto, segundo ele, a selecionar, opinar, e principalmente registrar por anotação manual direta - meios não-mecânicos -,
qualquer manifestação popular vocal. 244
Parece indiscutível que a tendência natural da escolha de Mário de Andrade deveria recair sobre o compositor
Camargo Guarnieri (1907-1993). Em 1937, Camargo Guarnieri já havia sido indicado por ele para efetuar o registro
musical por anotação manual direta por ocasião do II Congresso Afrobrasileiro realizado em Salvador (BA), para o
incremento do acervo folclórico da Discoteca Pública Municipal. A experiência do compositor em coletas etnográficas e
a estreita ligação com o projeto de nacionalização da música erudita brasileira defendido por Mário de Andrade,
apontavam Camargo Guarnieri como o profissional mais indicado para integrar a equipe especialistas da expedição.
O relacionamento entre o compositor e o Turista Aprendiz remonta ao ano de 1927, quando ingressando como
aluno no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo conheceu Mário de Andrade como professor de piano. A
partir de então, se solidificou uma relação de amizade. Mário de Andrade se tornou com o passar dos anos, o principal
responsável pela formação estética musical de Camargo Guarnieri, lhe transmitindo os elementos de formação cultural
245
e o interesse pelo folclore musical brasileiro.
O vínculo de Camargo Guarnieri com a música vocal passou a ser mais estreito quando após a criação do
Departamento de Cultura de São Paulo, o compositor foi convidado por Mário de Andrade, em 1936, para reger o
recém-instituído Coral Paulistano. Este Coral, juntamente com outras criações do Departamento de Cultura - Coral
Popular, Quarteto Haydn, Trio São Paulo 246 -, incrementou a vida musical da cidade de São Paulo durante este
período.
Em 1937, à frente do Coral Paulistano, Camargo Guarnieri registrou as obras musicais a capella de
compositores paulistas - ou residentes em São Paulo -, para a Discoteca Pública Municipal. Essas gravações
constituíram parte da série de discos, 10 e 12 polegadas, 78 rpm, denominada por ME (Música Erudita) da Discoteca
Pública Municipal, destinada a divulgar a escola paulista de composição e divulgar as atividades musicais do
Departamento de Cultura de São Paulo. 247
No entanto, devido ao ascendente êxito profissional de Camargo Guarnieri como compositor, Mário de Andrade
não pôde afinal escolhê-lo para integrar a expedição. Ainda em 1936, em Concurso de composição musical
patrocinado pelo Departamento de Cultura de São Paulo, Camargo Guarnieri obteve a primeira colocação com a obra
“Coisas deste Brasil”, para coral a capella. No ano seguinte, 1937, Camargo Guarnieri foi novamente o primeiro
colocado, desta vez na categoria de música instrumental, com a obra “Flor do Tremembé” para 15 instrumentos
solistas e percussão, o que lhe garantiu, em 1938, uma bolsa de estudos para seu aperfeiçoamento musical em Paris,
França. 248 Na capital francesa, Camargo Guarnieri estudou Composição, Contraponto, Fuga e Estética Musical com
Charles Köechlin (1867-1950), além de Regência Orquestral e Coral com Franz Rühlman (1896-1945). Teve que
retornar antes do previsto, em 1939, devido à eclosão da Segunda Guerra Mundial. 249
Além da necessidade de possuir sólidos conhecimentos sobre música vocal, outro requisito norteava Mário de
Andrade para a escolha do músico que integrar-se-ia à expedição etnográfica: a exigência de profissional que fosse

244
- A necessidade do conhecimento específico acerca da música vocal e suas particularidades foi diversas vezes afirmado pelo
maestro Martin Braunwieser - o músico escolhido para a equipe da Missão -, durante entrevistas concedidas entre 1988 e
1991. A segunda entrevista foi efetuada por ocasião das comemorações dos 90 anos de nascimento do maestro,
completados em junho de 1991. Martin Braunwieser faleceu em dezembro de 1991.
245
- “Enciclopédia da Música Brasileira - erudita, folclórica e popular.”, vol.I, São Paulo, Art Editora, 1977, p.332-335.
246
- O Coral Popular, destinado aos cantores sem formação musical, foi regido em princípio pelo Maestro Martin Braunswieser.
Posteriormente, pelo Maestro Arquerons. A formação do Quarteto Haydn, atualmente Quarteto de Cordas da Cidade de São
Paulo, era a seguinte: Zlatopolsky (1ºviolino), Alfonsi (2ºviolino), Barbi (viola) e Corazza (violoncelo). O Trio São Paulo era
integrado por: Souza Lima (piano), Zlatopolsky (violino) e Corazza (violoncelo).
247
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.9-10. A relação dos registros musicais da série ME é a seguinte: ME.1-ME.3:
(1936) “Sonata para Quinteto de Cordas - O Burrico de Pau” de Carlos Gomes interpretada pelo Quarteto Haydn do
Departamento de Cultura; / ME.4, ME.5, ME.9, ME.10: (1937) “Coral Paulistano” sob regência de Camargo Guarnieri,
executando obras de Arthur Pereira, Souza Lima, Casabona, Dinorah de Carvalho, Camargo Guarnieri, Agostinho Cantu,
João Gomes de Araújo, Francisco Mignone e Martin Braunwieser; / ME.11-ME.18: (1938) “Maracatu de Chico Rei” de
Francisco Mignone, com a Kurwellensender Orchester de Berlim, sob a regência do compositor; / ME.19-ME.22: (1943)
“Treze Canções de Amor” de Camargo Guarnieri. Soprano - Cristina Maristany; piano - Camargo Guarnieri; / ME.22B: (1943)
“Cantiga de Ninar” - Camargo Guarnieri. / Violino - Eunice de Conte; piano - Camargo Guarnieri; / ME.23-ME.25: (1945) “Seis
Valsas para Piano” de autoria de Camargo Guarnieri, Dinorah de Carvalho, Artur Pereira, Francisco Mignone, Clorinda Rosato
e Souza Lima. Piano - Arnaldo Estrela. /
248
- Enciclopédia da Música Brasileira - erudita, folclórica e popular, vol. I, São Paulo, Art Editora, 1977, p.332-335.
249
- idem ibidem.
51

brasileiro, e que tivesse domínio e fluência na língua nacional. Não podendo contar com a presença do compositor
Camargo Guarnieri, Mário de Andrade passou a procurar outro profissional também habilitado para a tarefa.
A preocupação de Mário de Andrade com a fluência no idioma se devia ao fato de que sem a grande
familiaridade com a língua, o músico estaria limitado no processamento manual de notações musicais, na medida em
que a definição dos aspectos rítmicos de uma linha melódica entoada se realiza, em larga escala, pela divisão,
subdivisão e acentuação prosódica do texto cantado. 250 Esse mesmo ponto de vista, pode ser observado em um dos
textos teóricos selecionados por Mário de Andrade para estudo pelos integrantes da equipe.
Em artigo de 1922, de autoria do pesquisador basco José Miguel Barandiarán, presidente da Sociedade
Eusko-Folclore, entidade espanhola cujo objetivo era “(...) recoger todas las manifestaciones del alma popular vasca y
sobre esta base realizar estudios comparativos y de historia cultural, de psicologia, de arte, de literatura e de otros
ramos del saber (...)”, 251 a necessidade do conhecimento e familiaridade com o idioma da população que se pretende
investigar são apontados como aspectos indispensáveis para qualquer pesquisa etnográfica:

“(...) El que trate de realizar investigaciones folklóricas, ha conocer la lengua del pueblo con quien
necesariamente habrá de comunicar. Por excelente que sea la preparación del investigador, si desconoce
la lengua, no conseguirá mucho éxito, puesto que no podrá llegar al espíritu del pueblo. El empleo de
intérprete no és recomendable, porque el intérprete no conoce el alcance de la materia, ni sabe plantear
las cuestiones el la forma debida. (...)” 252

No entanto, apesar de intensos esforços, Mário de Andrade não conseguiu localizar nenhum profissional na
área musical que atendesse a totalidade os requisitos para integrar a expedição. A escolha final de Mário de Andrade
foi o maestro Martin Braunwieser (1901-1991), seu amigo pessoal, austríaco de nascimento e residente no Estado de
São Paulo desde 1928, quando então chegou ao Brasil. Apesar de não ser brasileiro nato, o que contrariou todas as
recomendações sobre o domínio necessário da língua nacional para o processamento das anotações musicais diretas,
a opção de Mário de Andrade por Martin Braunwieser apoiava-se no fato do músico possuir sólida formação musical e
profundo conhecimento da música vocal.
Além disso, Mário de Andrade levou em consideração o interesse de Braunwieser pela pesquisa etnográfica e
aproveitamento musical em obras de caráter erudito, colaborando para a construção do conceito de nacionalidade em
música. Esse interesse de Braunwieser já havia sido manifestado antes mesmo de sua chegada ao Brasil. Durante a
década de 1920, quando residia em Atenas, Grécia, Martin Braunwieser realizou por iniciativa própria pesquisas
musicais pelas regiões balcânicas, utilizando os resultados em composições de sua autoria:

“O antigo fascínio pelo Oriente de Martin Braunwieser, despertado durante os seus estudos em Salzburg
e relacionado com sua orientação espiritualista, levou-o em Atenas a interessar-se sobretudo pela Grécia
nos seus vínculos históricos com o Levante, constatados ainda em tradições musicais turcas. O mundo
cultural próximo de Constantinopla (...) exerceu sobre ele principal atração. (...) A esse fascínio orientalista
uniu-se sobretudo um interesse pela investigação musicológica, despertado pela atenção que os jovens
compositores gregos dedicavam ao folclore do país com intento de criarem um estilo musical próprio.
253
(...)”.

Desde de sua chegada ao Brasil em 1928, e da amizade que estabeleceu com Mário de Andrade no
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo a partir de 1931, Martin Braunwieser passou a ser um grande
defensor do projeto de nacionalização da música brasileira, estimulando seus alunos à prática da pesquisa e
interpretação de obras musicais de compositores nacionais.

250
- Um ótimo trabalho nesse sentido, estudando o vínculo da linha melódica com o texto literário da canção, é o de TATIT, L. -
“A Canção - Eficácia e Encanto.”, 2ª ed., Atual Ed., 1987. 67p.
251
- “Anuario de la Sociedad de Eusko-Folclore”, vol.II - dedicado a las Fiestas Populares, Seminário Conciliar de Vitoria,
Espanha, 1922, p.5.
252
- Breves Instrucciones Práticas para el investigador folklorista in “Anuario de la Sociedad de Eusko Folclore”, vol.I, Seminário
Conciliar de Vitoria, Espanha, 1921, p.11-29.
253
- BISPO, A. - “Martin Braunwiser - Contribuição ao Estudo da Influência Austríaca e Alemã na Música do Brasil no Século
XX.”, Consociatio Internationalis Musicae Sacrae / Institut Für hymnologische und Musikethnologische Studien, 1991. p.88-90.
52

5.2 - Martin Braunwieser

Nascido em 6 de junho de 1901, Martin Braunwieser realizou os primeiros estudos musicais no Mozarteum de
Salzburgo, Áustria, sua cidade natal. O contato com a arte musical remonta à sua infância quando, por intermédio de
seu pai, o músico Franz Braunwieser (1866-1947), participou das associações corais de Salzburgo como menino de
coro. Na adolescência, estudando flauta e viola, atuou como instrumentista em orquestras de igrejas da sua cidade. 254
Em 1917, Martin Braunwieser ingressou no Mozarteum de Salzburgo para iniciar os estudos musicais. Por essa
época, era diretor da instituição o musicólogo Dr. Bernhard Paumgartner (1887-1971) - um discípulo do grande
compositor e maestro Gustav Mahler (1860-1911) -, que permaneceu no cargo até 1938. Paumgartner foi o grande
mestre e mentor de Martin Braunwieser, influenciando-o e apoiando-o na carreira, além de devotar-lhe uma amizade
que perduraria toda vida. Como musicólogo, Paumgartner recebeu influências de seu pai, Hans Paumgartner, de
Guido Adler (1855-1941) e Eusebius Mandyczewski (1857-1927). 255
No Mozarteum de Salzburgo, Braunwieser foi aluno de viola da classe do Prof. Schweyda e de flauta da classe
do Prof. Anton Schöner, sendo orientado por Bernhard Paumgartner para as classes de música de câmara. Participou
de cursos sobre história da Arte e da Música. Além disso, como plano curricular obrigatório da instituição, Martin
Braunwieser deveria cantar na associação coral mantida pelo Mozarteum. Foi lá que aprendeu os elementos teóricos
sobre o canto e passou a desenvolver a técnica de regência para a formação coral. 256
Em 1926, com a crise econômica, sócio-política da Áustria, resultante da Primeira Guerra Mundial, Martin
Braunwieser deixou Salzburgo, e passou a morar em Atenas, Grécia. Nesse mesmo ano, foi convidado a dar aulas de
flauta no Conservatório Odeon, em Atenas. Ali conheceu sua futura esposa, a pianista de origem russa Tatiana
Kipman (1903-1988), que muito colaboraria para a difusão da obra de W. A. Mozart no Brasil. 257 Permanecendo por
dois anos na Grécia, Martin Braunwieser se transferiu para o Brasil em fins junho de 1928, residindo em princípio no
interior do Estado de São Paulo, na cidade de Bragança Paulista, e posteriormente se tranferindo para a capital. De
1928 a 1931, Martin Braunwieser atuou principalmente como instrumentista, ora flauta ora viola, em concertos
promovidos por instituições culturais sustentadas particularmente por imigrantes estrangeiros, criadas com o objetivo
de cultivar a música e outras Artes. Dessa forma, o primeiro concerto realizado no Brasil pelo casal Braunwieser foi
promovido pela Sociedade Democrática Italiana de Bragança Paulista, em 22 de setembro de 1928. A partir desse
recital, Martin e Tatiana deram início à proposta de divulgação da obra de W. A. Mozart no país, executando o
Concerto para Flauta em Sol Maior. 258
Em 1931, o casal Braunwieser transferiu-se para a capital paulista, onde Martin passou a ter atuação destacada
como regente coral e organizador de eventos e concertos para a colônia alemã da cidade de São Paulo. Em setembro,
realizou um concerto religioso para a Igreja Evangélica Alemã, onde incluiu o Ave Verum de W. A. Mozart, para coro e
acompanhamento de órgão. 259
Além de seus 2 instrumentos - flauta e viola utilizadas com grande freqüencia nos eventos musicais que
participava -, Martin Braunwieser se dedicou à regência coral e à formação de um madrigal -conjunto vocal a capella
com o máximo de 16 cantores -, passando a ser o condutor e orientador do grupo. Assim, em dezembro de 1931,
Martin Braunwieser à frente do Madrigal Braunwieser, realizou um Concerto Comemorativo de Mozart pela passagem
dos 140 anos da morte do compositor (1756-1791), no salão do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento. No
programa, além do Ave Verum para coro e órgão, foi apresentada a ópera Bastien e Bastienne. 260
Ainda em 1931, Martin Braunwieser foi convidado a ministrar aulas de flauta no Conservatório Dramático e
Musical de São Paulo. Foi lá que conheceu Mário de Andrade e se tornou seu amigo e admirador. A influência do
pensamento musical do Turista Aprendiz sobre Martin Braunwieser foi bastante grande. As atividades pedagógicas,
didáticas e artísticas de Braunwieser durante os anos de atuação junto ao Conservatório Dramático e Musical, podem
ilustrar de maneira definitiva sua compreensão e aceitação do projeto de nacionalização da música erudita brasileira.
Através da disciplina do Canto Orfeônico e, particularmente junto com um grupo de alunas do Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo, Martin Braunwieser preparou, em dezembro de 1933, o primeiro de uma série de
concertos e recitais constituídos somente com obras de compositores brasileiros. Entre os mais executados estavam
Barrozo Netto (1881-1941), Samuel Archanjo (1882-1957), Francisco Mignone (1897-1986), João Gomes Júnior
261
(1871-1963), e Camargo Guarnieri (1908-1993).
Em 1935, com a criação do Departamento de Cultura de São Paulo, Martin Braunwieser foi convidado por Mário
de Andrade para selecionar, juntamente com o compositor Camargo Guarnieri, as vozes que iriam compor as duas

254
- “Correspondência Musicológica”,orgão da Sociedade Brasileira de Musicologia e do Instituto de Estudos de Cultura Musical
no Mundo de Língua Portuguesa (Alemanha). nº 14, 6/91, p.16-23
255
- idem ibidem.
256
- idem ibidem.
257
- idem ibidem.
258
- idem ibidem.
259
- idem ibidem.
260
- idem ibidem.
261
- BISPO, A. - “Martin Braunwiser - Contribuição ao Estudo da Influência Austríaca e Alemã na Música do Brasil no Século
XX.”, Consociatio Internationalis Musicae Sacrae / Institut Für hymnologische und Musikethnologische Studien, 1991. p.169-
170.
53

novas instituições criadas pelo Departamento: o Madrigal e o Coral Paulistano. Em 1936, Martin Braunwieser foi
admitido na Municipalidade de São Paulo, contratado para exercer a função de Maestro-Substituto do Coral
Paulistano, permanecendo até 1938. Durante esse período, Braunwiser organizou e regeu durante meses, sem
remuneração, um Coral Infantil constituído por freqüentadores das Bibliotecas Infantis. 262
Em 1936, Martin Braunwieser foi escolhido por Mário de Andrade para reger o Coral Popular, instituição criada
pelo Departamento de Cultura vinculada à Divisão de Expansão Cultural, destinada a agregar e iniciar aqueles
interessados em canto coral que não possuíssem conhecimentos musicais ou treinamento vocal. 263 A criação do
Coral Popular era mais uma realização concreta do conceito de força socializante da música segundo pressupostos de
Mário de Andrade. O Coral Popular foi “(...) a primeira tentativa brasileira de reunir-se um coro popular, absolutamente
sem distinção de classes nem especificação musical. (...)”. Segundo ele,

“(...) a importância pois do Coral Popular, aquilo que deve principalmente tocar a compreensão dos
ouvintes, é seu valor social. Universalmente se sabe que o coro é o processo musical mais perfeito para
dispor o indivíduo em harmonia com os seus companheiros de organismo social. Não se trata de impor a
brutal e enceguecida unanimidade, mas sim de criar aquele unanimismo [sic] aquela consciência da
coletividade e do organismo social que leva o homem a um equilíbrio perfeito. (...) É preciso aproveitar as
dádivas da paz para reeducação do indivíduo, e nada como o coro para proporcionar tal reeducação. E é
264
com estas credenciais humanas que o Coral Popular se apresenta. (...)”.

A escolha de Braunwieser para o Coral Popular não se deu por acaso. Amigo pessoal de Mário de Andrade,
excelente pedagogo e orientador musical, Martin Braunwieser era também um ardoroso defensor do projeto de
nacionalização da música erudita brasileira preconizado pelo Turista Aprendiz. Martin Braunwieser atuou à frente do
Coral Popular desde sua criação em 1936 até 1937. A partir de então, se viu envolvido com outra Divisão do
Departamento de Cultura - a Divisão de Educação e Recreio -, responsável pela criação dos Parques Infantis da
Prefeitura de São Paulo. 265 Braunwieser foi nomeado Instrutor de Música dos Parques Infantis da capital,
respondendo administrativamente direto a Mário de Andrade, o diretor geral do Departamento de Cultura de São
Paulo.
A oportunidade para primeira apresentação pública do trabalho pedagógico e musical desenvolvido por Martin
Braunwieser nos Parques Infantis deu-se por ocasião do Congresso da Língua Nacional Cantada, em 1937. No dia 11
de julho, todas as crianças - a maioria proveniente de famílias de migrantes nordestinos -, dos três Parques existentes
na capital, realizaram sob orientação do maestro o folguedo folclórico completo da nau catarineta (dança dramática),
documentada por Mário de Andrade durante as viagens do Turista Aprendiz, entre 1927-1929. 266
A opção de Mário de Andrade por Martin Braunwieser como Músico para a Missão, se deve pois a 2 aspectos
fundamentais: a sólida formação musical e a perfeita sintonia de Braunwieser com o pensamento musical de Mário de
Andrade. A função de Músico integrante da expedição etnográfica era de grande importância pois o objetivo
fundamental da viagem era documentar da melhor forma possível as manifestações musicais folclóricas das regiões
Norte e Nordeste do Brasil.
Em 1938, Martin Braunwieser se naturalizou brasileiro, ao que tudo indica, para evitar as possíveis controvérsias
da escolha de um estrangeiro como membro da equipe etnográfica da Missão. Para minimizar a falta de domínio do
idioma, o que prejudicaria o bom andamento dos trabalhos, Mário de Andrade orientou os demais integrantes da
expedição a registrarem os textos das melodias gravadas mecanicamente, enquanto Martin Braunwieser se dedicaria,
entre outras funções, à coleta das linhas melódicas por meios não mecânicos, registrando também, a sua maneira, o
267
texto das canções.
Como ocupante da cargo de Músico integrante da Missão, Martin Braunwieser deveria decidir sobre “(...) o valor
musical das peças (...)”, resolvendo “(...) quais as mais fáceis por seu caráter técnico europeu (...)” que poderiam “(...)
ser escritas manualmente, economizando os discos virgens (...)”. Além disso, era Martin Braunwieser o “(...)
encarregado da movimentação do microfone nas gravações (...)”. 268
É interessante notar aqui que apesar de sua dificuldade em relação à língua nacional, a coleção de melodias
registradas manualmente por Martin Braunwieser durante a viagem da expedição é bastante vasta: 200 linhas
melódicas, dentre as quais se destacam as toadas de Xangô registradas nos meses de fevereiro e março de 1938, no

262
- BISPO, A. - op.cit.1991. p.241.
263
- CARLINI, A. - “O Maestro Martin Braunwieser.” in D.O.Leitura, São Paulo, 10 (110) julho de 1991, p.11-12.
264
- Texto de Mário de Andrade, no programa do 1º Concerto do Coral Popular, em 17 de novembro de 1936, in BISPO, A. -
op.cit.1991. p.242-243.
265
- Três eram os Parques mantidos pela Prefeitura de São Paulo: Parque Infantil Pedro II, Parque Infantil da Lapa e Parque
Infantil do Ipiranga. cf. BISPO, A. - op. cit. 1991 p.250, os Parques Infantís desenvolviam as seguintes atividades: clubes
infantís, representações de teatro, música coral infantil, ginática, além de oferecer serviço médico-dentário e alimentação
(copo de leite).
266
- BISPO, A. - op.cit.1991. p.251.
267
- CARLINI, A. - “O Maestro Martin Braunwieser.” in D.O.Leitura, São Paulo, 10 (110) julho de 1991, p.11-12.
268
- Documentos originais da MPF - “Exposição de atos e consequências da Missão Folclóricas atualmente em viagem pelo norte
do Brasil.”, Doc.nº 30, 23 de maio de 1938.
54

Recife (PE). O acervo musical grafado por Martin Braunwieser foi publicado em 1946, no I volume da coleção do
Arquivo Folclórico da Discoteca Pública Municipal - Melodias Registradas Por Meios Não-Mecânicos. 269
Com a equipe técnica já definida, restava apenas a escolha de um Auxiliar Geral para prestar a ajuda
necessária a todos outros integrantes da expedição quando esta fosse solicitada. O escolhido para a função foi
Antônio Ladeira, funcionário do Departamento de Cultura de São Paulo, empregado como servente a serviço da
Discoteca Pública MUnicipal. Antônio Ladeira ajudaria particularmente na movimentação dos aparelhos gravadores,
carregando-os nos trabalhos de campo que seriam realizados pela equipe. 270 No entanto, será possível observar na
reconstrução cronológica da viagem da Missão que as funções desempenhadas por Antônio Ladeira foram bem além
daquelas previstas inicialmente, assumindo importância relevante nos trabalhos etnográficos da expedição.
Os integrantes da Missão receberam de Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga todas as instruções sobre os
procedimentos para a pesquisa etnográfica. No entanto, apesar de partirem de São Paulo com funções determinadas
e metodologia definida, a equipe da Missão estava autorizada a agir segundo lhes ditava o bom senso e as
circunstâncias de cada ocasião. Segundo Luiz Saia,

“(...) dentro das instruções e fins, nos foi dada a mais inteira liberdade: a própria região e informes aí
obtidos deveriam, como realmente o fizeram, aconselhar o melhor itinerário e o manancial mais rico. (...)”.
271

Dessa forma, com a equipe técnica já constituída - Luiz Saia, Chefe da Expedição; Martin Braunwieser, Músico;
Benedito Pacheco, Técnico em Gravação; e Antônio Ladeira, Auxiliar Geral -, todos merecedores de confiança
absoluta - Mário de Andrade se preocupou minimizar as possíveis dificuldades que seriam enfrentadas pela expedição,
em grande parte como decorrência de sua ausência como integrante da equipe. Com esse objetivo, Mário de Andrade
redigiu cartas de apresentação com o intuito de facilitar os primeiros contatos da equipe junto aos seus amigos e
autoridades dos locais visitados pela expedição.

269
- ALVARENGA, O.(org.) - “Arquivo Folclórico da Discoteca Pública Municipal” - vol.I: Melodias Registradas Por Meios
Não-Mecânicos.”, São Paulo, Departamento de Cultura - Discoteca Pública Municipal, 1946, p.290-394.
270
- Documentos originais da MPF - “Exposição de atos e consequências da Missão Folclóricas atualmente em viagem pelo norte
do Brasil”, Doc.nº 30.
271
- SAIA, L. - “Escultura Popular Brasileira”, São Paulo, Edições Gaveta, 1944, p.9.
55

6 - As cartas de apresentação da equipe da Missão

Mário de Andrade redigiu cartas de apresentação e recomendação dos componentes da equipe,


particularmente em nome de Luiz Saia, o Chefe da expedição. Nessas cartas, redigidas com o intuito de facilitar os
contatos da Missão com seus amigos folcloristas do Nordeste e outras personalidades da área, Mário de Andrade
solicitava o empenho pessoal dos destinatários para o êxito etnográfico absoluto da viagem da expedição.
Além das cartas por ele redigidas, Mário de Andrade orientou Luiz Saia a procurar no Rio de Janeiro, cidade da
primeira escala do navio vapor Itapagé, seus amigos residentes na então capital federal. Através desses conhecidos
do Turista Aprendiz, Luiz Saia obteve também outras cartas de apresentação aos membros da expedição.
Entre os documentos redigidos por Mário de Andrade, se encontra um pequeno bilhete manuscrito, datado de
22 de janeiro de 1938, dirigido ao amigo folclorista do Rio Grande do Norte, Luís da Câmara Cascudo, escrito de
maneira íntima e coloquial:

“Cascudinho,
Aí vai o Luiz Saia com a Missão. Me ajuda que isto é coisa de vida ou morte pra mim. Qualquer dia
272
estouro por aí. / Abraços pra todos e me abraçe. / o seu Mário”.

Além desse bilhete dirigido a Luís da Câmara Cascudo, em que está manifesta a intenção de viagem da Missão
ao Estado do Rio Grande do Norte, Mário de Andrade redigiu duas outras cartas de apresentação. Na primeira delas,
destinada ao folclorista pernambucano Gonçalves Fernandes, escrita de maneira formal, datilografada e em papel
timbrado da Diretoria do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo, Mário de Andrade apresentava ao
“(...) ilustre autor dos Xangôs do Nordeste, o dr. Luiz Saia, chefe da Missão de Pesquisas Folclóricas, enviada ao norte
do Brasil pelo Departamento de Cultura de São Paulo (...)”, solicitando ao estudioso folclorista a “(...) generosidade de
sua assistência e conselho à Missão, para que possa ela gravar os cânticos de xangô e demais cerimônias
afrobrasileiras de Pernambuco, de que V.S. é tão profundo conhecedor (...)”. 273
A prioridade e intenção última para a realização da expedição foi expressa por Mário de Andrade na última das
cartas de apresentação por ele redigida. Nesse documento, sem destinatário definido, o Turista Aprendiz afirmou que
“(...) toda a documentação recolhida pela Missão será publicada para estudo e uso nacional (...)”, solicitando em nome
do Departamento de Cultura de São Paulo “(...) a assistência, o conselho, e a acolhida jamais recusada pela
generosidade nacional (...)” aos integrantes da Missão. Mário de Andrade estava “(...) certo de que será por todos
reconhecida a benemerência do trabalho que se propôs e que esta Missão realiza (...)”. 274
Além dessas cartas de apresentação, Mário de Andrade orientou Luiz Saia a procurar seu amigo paraibano
Antônio Bento de Araújo Lima (1902-1988), então residente no Rio de Janeiro. O Chefe da Missão de Pesquisas
Folclóricas deveria procurá-lo “(...) pela manhã quando ele está em casa (...)”, telefonando “(...) de minha parte
marcando encontro e pedindo cartas [de] apresentação [ao] nordeste, principalmente Ceará e Maranhão (...)”. No
verso desta orientação, há uma anotação de Luiz Saia que confirma o encontro dos dois: “(...) Antônio Bento - 5 1/2
embaixo do relógio da Galeria Cruzeiro (...)”. 275 Não foi localizada no entanto, nenhuma carta de apresentação
redigida por Antônio Bento Araújo Lima entre os documentos preservados no Acervo Histórico da Discoteca Oneyda
Alvarenga do Centro Cultural São Paulo, onde estão os originais da coleta realizada pela expedição.
Além de Antônio Bento Araújo Lima, Mário de Andrade instruiu Luiz Saia procurar no Rio de Janeiro, o poeta
Jorge de Lima (1893-1953), que também forneceria à expedição novas cartas de apresentação. A parada na cidade do
Rio de Janeiro era escala obrigatória do navio-vapor Itapagé, da Companhia Nacional de Navegação Costeira, que
conduziu a Missão aos Estados do Nordeste do Brasil. Os integrantes da expedição aportaram no Rio de Janeiro em 7
de fevereiro de 1938. No mesmo dia, Luiz Saia entrou em contato com Jorge de Lima para a obtenção das cartas de
apresentação. 276
Natural do Estado de Alagoas, o poeta Jorge de Lima forneceu a Luiz Saia 4 cartas de apresentação, todas
manuscritas em papel de receituário médico, datadas de 7 de fevereiro de 1938, onde pode-se ler impresso: “Dr. Jorge
de Lima - Doenças internas, Pelle, Syphilis - Residência: Travessa Umbelina, 14 - tel.25-3140 / Consultório: Praça
Floriano, 55 - 11 º andar - tel.22-9277 / das 15 horas em diante / Attende na União Beneficente dos Chauffeurs do Rio
de Janeiro / das 8 às 10 horas da manhã (...)”. 277
As duas primeiras cartas de apresentação de Jorge de Lima estavam destinadas aos seus amigos conterrâneos
folcloristas Álvaro Paes e Luiz Lavenêre. Nelas, Jorge de Lima apresentava Luiz Saia como Chefe da Expedição,
solicitando a ambos que “(...) com seu prestígio (...)” facilitassem “(...) a Missão dele no nosso estado (...)”. Pode-se

272
- Documentos originais da MPF - “Recibos e Termos de Comprimisso”, Doc.nº 1 - “Sem título”, 22 de janeiro de 1938.
273
- Documentos originais da MPF - “Cartas de Apresentação, instruções e notícias”, Doc.nº 12A, 24 de janeiro de 1938. Em
1938, Gonçalves Fernandes publicou seu estudo sobre práticas de feitiçaria do Nordeste: “O Folclore Mágico do Nordeste -
Usos, costumes, crenças & Ofícios Mágicos da populações nordestinas.” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S/A, 178p.
274
- Documentos originais da MPF - “Carta de Apresentação.” Doc. nº 12-B, 21 de janeiro de 1938.
275
- Documentos originais da MPF - “Cartas de Apresentação, instruções e notícias”, Doc. nº 13, sem data.
276
- Documentos originais da MPF - “1º Relatório e enumeração das despesas da Missão”, Doc.nº 44, 15 de maio de 1938.
277
- Documentos originais da MPF - “Cartas de Apresentação, instruções e notícias”, Docs.nºs 1, 2, 3 e 4, de 7 de fevereiro de
1938.
56

deduzir portanto, que o roteiro original da viagem da Missão incluía em seu itinerário o Estado de Alagoas, apesar de
não haver sido localizada nenhuma orientação específica para a pesquisa da expedição no Estado. 278
Grande amigo de Luís da Câmara Cascudo, Jorge de Lima a ele se dirige na terceira carta de apresentação,
escrita de maneira bastante amigável e informal: “(...) Luis da Câmara Cascudo, Caboclo velho, receba o meu amigo
Dr. Luiz Saia e facilite a Missão dele aí no seu estado (...)”. 279 Pode-se verificar novamente que o Estado do Rio
Grande do Norte estava entre aqueles que deveriam ser visitados na viagem da expedição.
No verso da carta de apresentação, Luiz Saia anotou o novo endereço de Luis da Câmara Cascudo na cidade
de Natal (RN), aproveitando o espaço restante da página para descrever e tecer comentários sobre aspectos da
arquitetura do Rio de Janeiro. Esses comentários são acompanhados por vários croquis, técnica de desenho que Luiz
Saia adotou em praticamente toda a viagem da expedição: para descrever a geografia das regiões percorridas, para
detalhar aspectos das manifestações folclórico-musicais documentadas, para esmiuçar a arquitetura popular, e mesmo
como forma de distração nas raras horas de folga no trabalho realizado pela expedição. 280
A última carta de apresentação redigida por Jorge de Lima a Luiz Saia destinava-se Epiphanio Doria,
pesquisador e folclorista do Estado de Sergipe. Como nas cartas anteriores, Jorge de Lima solicitava ao destinatário o
uso de seu prestígio profissional e do conhecimento das manifestações populares locais para facilitar o trabalho de
coleta a ser realizado pela expedição. Pode-se supor que também o Estado do Sergipe estava incluído no itinerário
original da expedição, apesar de não haver instrução específica para a coleta nesse Estado. 281
Em 8 de fevereiro de 1938, um dia após o encontro com o poeta Jorge de Lima, Luiz Saia obteve outras cartas
de apresentação, desta vez do eminente folclorista alagoano Artur Ramos (1903-1949) que, em 1938, passara a residir
no Rio de Janeiro com intuito de ministrar aulas de Antropologia e Etnografia na Faculdade Nacional de Filosofia da
Universidade do Brasil. Autor de diversos estudos sobre a influência da cultura negra para a formação da
nacionalidade, Artur Ramos forneceu a Luiz Saia 3 cartas de apresentação, todas também manuscritas em papel de
receituário médico - Arthur Ramos formou-se em 1926 pela Faculdade de Medicina da Bahia, dedicando-se nos anos
seguintes aos estudos sobre psicanálise e higiene mental -, e destinadas aos amigos nordestinos que, eventualmente,
pudessem a auxiliar a Missão em seu trabalho de coleta. 282
Dessa forma, todas 3 cartas de apresentação fornecidas por Artur Ramos a Luiz Saia possuem redação
semelhante, onde, após a apresentação do chefe da Missão aos amigos, Artur Ramos solicitava a atenção e o auxílio
para os integrantes da expedição, com o objetivo de facilitar o acesso às fontes de pesquisa para a documentação
etnográfica:

“(...) Quero lhe apresentar o Dr. Luiz Saia, Chefe da Missão de Pesquisas Folclóricas (Folk-lóricas), que o
Departamento de Cultura que o Mário de Andrade dirige em São Paulo, envia ao Norte, para gravar e
filmar cantos e danças populares nossos. Ficar-lhe-ei muito grato se o apresentar aos elementos aí, que
possam facilitar ao Dr. Luiz Saia, nas pesquisas que vai empreender. Muito grato e disponha do seu
283
amigo e admirador (...)”.

Pode-se verificar, após a exposição das cartas de apresentação fornecidas por Mário de Andrade, Jorge de
Lima e Artur Ramos, que, apesar do Turista Aprendiz não haver explicitado o itinerário original da expedição, este
provavelmente incluía os Estados de Alagoas, Sergipe e Rio Grande do Norte. Além desses, também o Estado da
Bahia estava entre aqueles que deveriam ser pesquisados originalmente pelos integrantes da Missão de Pesquisas
Folclóricas, segundo se depreende das últimas instruções específicas de Mário de Andrade aos integrantes da
expedição.
A Missão de Pesquisas Folclóricas, último trabalho de grande envergadura do Departamento de Cultura de São
Paulo, cujo objetivo primeiro foi incrementar o acervo folclórico e musical da Discoteca Pública Municipal, fornecendo
subsídios materiais aos estudiosos e compositores preocupados com a investigação e formação da nacionalidade
segundo os preceitos defendidos por Mário de Andrade, viajou durante o primeiro semestre de 1938 por 6 Estados do
Norte e Nordeste brasileiros - Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão e Pará -, documentando em discos,
fotografias, filmes cinematográficos e por anotações diretas, diversas manifestações folclórico-musicais brasileiras.
Para isso, se utilizou de metodologia resultante do curso de Etnografia e Folclore ministrado pela etnóloga Dina
Lévi-Strauss em 1936; dos conhecimentos práticos e teóricos de seu idealizador, Mário de Andrade; das primeiras
experiências de registros fonográficos efetuadas em 1937 pela Discoteca Pública Municipal.

278
- Documentos originais da MPF - “Cartas de Apresentação, instruções e notícias”, Docs.nº 1 e 4, de 7 de fevereiro de 1938.
279
- Documentos originais da MPF - “Cartas de Apresentação, instruções e notícias”, Doc.nº 2, de 7 de fevereiro de 1938.
280
- idem ibidem
281
- Documentos originais da MPF - “Cartas de Apresentação, instruções e notícias”, Doc.nº 3, de 7 de fevereiro de 1938.
282
- Enciclopédia da Música Brasileira - erudita, folclórica e popular, vol. I, São Paulo, Art Editora, 1977, p.641.
283
- Documentos originais da MPF - “Cartas de Apresentação, instruções e notícias”, Docs.nº 5, 6 e 7, de 8 de fevereiro de 1938.
57

7 - Sobre a reconstrução cronológica da viagem da Missão: os documentos

Os documentos prioritariamente utilizados para a reconstrução cronológica da viagem de 6 meses da Missão de


Pesquisas Folclóricas são formados por 4 grupos:

1) cadernetas de campo, em particular aquelas anotadas por Luiz Saia, Chefe da Missão, que além de conterem
dados sobre manifestações folclórico-musicais e seus informantes, anotações para controle do material coletado,
registros sobre arquitetura popular, aspectos da geografia e vegetação das regiões percorridas, contêm um diário
da viagem de 6 meses da equipe;
2) correspondências entre os integrantes da expedição e seus organizadores, Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga;
3) artigos e reportagens da imprensa dos locais visitados pela Missão e de periódicos que noticiam a realização da
expedição (hemeroteca);
4) documentação burocrática efetuada durante e depois da viagem da expedição, como prestações de conta e
284
relatórios de atividade.

Para a elaboração da reconstrução cronológica houve a necessidade de reorganização, transcrição e


cruzamento dessas diversas fontes, pois elas se encontravam em sua maioria, no estado original de coleta,
particularmente as cadernetas de campo. É interessante notar que somente os dados relativos aos informantes
populares e às manifestações folclóricas documentadas pela expedição, foram transcritos e datilografados por Oneyda
Alvarenga no processo de organização do novo acervo coletado pela Missão, pertencente à Discoteca Pública
Municipal. Oneyda Alvarenga não organizou ou classificou anotações de caráter pessoal, como o diário elaborado por
Luiz Saia ou as correspondências. Este fato pode sugerir que o significado do cotidiano da expedição, o dia-a-dia da
viagem, juntamente com a dimensão histórica do evento Missão de Pesquisas Folclóricas, estava colocado em um
plano secundário de importância por seus organizadores.
Apesar de ser uma iniciativa pioneira para a etnografia brasileira, a importância do evento Missão de Pesquisas
Folclóricas estava centrada no documentário folclórico que seria resgatado, e não no fato desta ser a primeira
expedição etnográfica musical de grande porte realizada no Brasil, integrada por especialistas munidos de tecnologia
avançada para época. A equipe da Missão era considerada, como havia afirmado Mário de Andrade em uma de suas
instruções aos componentes, apenas emissária do Departamento de Cultura de São Paulo, coletando informações que
285
seriam posteriormente estudadas pelos técnicos da instituição.
Os componentes da equipe da Missão incorporaram profundamente o caráter de emissários do Departamento
de Cultura de São Paulo. Além das poucas observações de caráter pessoal constantes no diário de Luiz Saia e das
correspondências, foram realizadas somente 4 fotografias registrando a viagem dos componentes da expedição, uma
delas efetuada durante a visita ao Recife (PE) em entrevista com dos integrantes concedida à Revista Fronteiras, em
fevereiro de 1938.
A totalidade de fotografias efetuadas pela expedição é de 964 unidades, a maioria absoluta registrando
aspectos de manifestações folclóricas, informantes populares, tipos humanos, arquitetura, geografia e vegetação. 286
Os 4 fotogramas que documentam a viagem da equipe, com exceção daquele efetuado para a Revista Fronteiras (foto
477), procuram registrar aspectos do processo de coleta da Missão:

- dois integrantes da equipe montados a cavalo percorrendo o interior do Estado de Pernambuco nas cercanias da vila
de Brejo dos Padres, município de Tacaratu - foto 478;

- uma cena da coleta de cocos, dança coletiva, na Praia de Tambau, João Pessoa, Paraíba, em que aparecem Luiz
Saia, Ademar Vidal (folclorista e Procurador da República no Estado da Paraíba), José Maris (Secretário do Interior
do Estado da Paraíba) e León F. Clerot (folclorista) - foto 534;

- outra cena de coleta, com Benedito Pacheco (Técnico de Gravação) junto ao aparelho gravador Presto Recorder
montado sob uma barraca e cercado de gente do povo, no bairro de Torrelândia, João Pessoa, Paraíba - foto 745.

O fotograma efetuado para a Revista Fronteiras (foto 477) foi realizado no Teatro Santa Isabel, Recife,
Pernambuco, em fevereiro de 1938, pelos fotógrafos do periódico. Este fotograma é o único documento que registra os
4 integrantes da equipe juntos, todos trajando terno, sentados lado a lado em postura oficial, na seguinte ordem da
esquerda para direita: Martin Braunwieser, Luiz Saia, Benedito Pacheco e Antônio Ladeira.

284
- Toda a documentação original da Missão de Pesquisas Folclóricas se encontra na Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro
Cultural São Paulo, constituindo parte do Acervo Histórico da instituição, pertencente à Prefeitura Municipal de São Paulo.
285
- vide item 1, capítulo II.
286
- Os negativos das fotografias registradas pela MPF, em acetato, formato 6 X 6 cm, estão na Discoteca Oneyda Alvarenga do
Centro Cultural São Paulo. Além desses, se encontram no mesmo local, cerca de 300 fotogramas efetuados em pesquisas
etnográficas musicais da Discoteca, anteriores e posteriores à MPF.
58

Todos os dados relativos às manifestações populares registradas pela Missão foram transcritos, organizados e
datilografados, tais como as informações sobre os cantadores e instrumentistas populares, descrições de coreografias,
indumentárias, instrumentos musicais, definições e descrições das características fundamentais das manifestações
folclóricas documentadas, anotações sobre poética popular e letras das melodias gravadas nos discos. Essas
informações, objeto de atenção e sistematização por Oneyda Alvarenga, foram em parte publicadas nos volumes das
coleções do Arquivo Folclórico 287 e Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro, 288 ambas editadas sob a
responsabilidade da Discoteca Pública Municipal, permanecendo o restante, apesar de transcrito e datilografado, ainda
inédito. 289
As anotações do diário de viagem redigido por Luiz Saia nas cadernetas de campo permaneciam ainda
manuscritas. Para a reconstrução do cotidiano da expedição houve a necessidade de transcrição, organização
cronológica e por vezes de “tradução” de alguns originais, pois a caligrafia de Luiz Saia, quando acossada pela
escassez de tempo, tornava-se de difícil entendimento. 290
Esse material, juntamente com as correspondências, os artigos de imprensa recolhidos pelos integrantes da
equipe e outros documentos avulsos, contém dados básicos que fundamentaram a reconstrução do dia-a-dia da
expedição possibilitando o redimensionamento histórico do evento a contextualização da Missão de Pesquisas
Folclóricas na história da cultura brasileira. 291

287
- ALVARENGA, O. (org.) - “Arquivo Folclórico” (2 vol.: Melodias Registradas Por Meios Não-Mecânicos 1946. 480p.; Catálogo
Ilustrado do Museu Folclórico, 1950. 560p.), São Paulo, Departamento de Cultura - Discoteca Pública Municipal.
288
- ALVARENGA, O. (org.) - “Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro” (5 vol.: Xangô, 1946. 149p.; Tambor-de-Mina e
Tambor-de-Crioulo, 1948. 92p.; Catimbó, 1949. 217p.; Babassuê, 1950. 136p.; Chegança de Marujos, 1956. 317p.), São
Paulo, Departamento de Cultura - Discoteca Pública Municipal.
289
- Vide CARLINI & LEITE - “Catálogo Histórico-Fonográfico Discoteca Oneyda Alvarenga”, São Paulo, Centro Cultural São
Paulo, 1993. 143 p. Apresentação: Os textos das melodias gravadas pela expedição, as anotações sobre poética popular,
informações gerais sobre as manifestações folclóricas documentadas, constantes das cadernetas de campo, foram
transcritas, datilografadas, organizadas e acondicionadas em pastas: as Pastas de Textos. As primeiras sistematizações dos
informes da coleta da expedição, com o cruzamento de diversas fontes originais, realizadas por Oneyda Alvarenga, foram
também transcritas, datilografadas, organizadas e acondicionadas em pastas: as Pastas de Dados.
290
- A péssima caligrafia de Luiz Saia foi objeto de irônico comentário de Oneyda Alvarenga em entrevista concedida em outubro
de 1980 para a Divisão de Pesquisas - Área de Música/Som do IDART. Indagada sobre as cadernetas de campo da MPF,
Oneyda Alvarenga comenta: “(...) As cadernetas de colheita que acho ah... não sei, você sabe a piada do cidadão que tinha a
letra tão ruim, tão ruim, que enquanto ele estava escrevendo, ele e Deus liam. Depois que ele parava de escrever, nem Deus
lia.(...)”. Entrevista de Oneyda Alvarenga, Arquivo Multimeio SMC/PMSP, TR-1038, p.19.
291
- Em 1984, a Equipe Técnica de Música e Som do Centro Cultural São Paulo, coordenados por Dorotéa Kerr e Flávia
Camargo Toni, realizou o levantamento, organização, numeração e indexação do acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas,
incluindo-se a hemeroteca, as correspondências e as cadernetas de campo, numeradas e indexadas, devolvendo
parcialmente o material à consulta pública. No entanto, restou a fazer as transcrições das cadernetas de campo e
correspondências organizando o acervo segundo um critério cronológico. Durante o levantamento de material para essa
Dissertação, boa parte do acervo foi por mim reorganizada, com o objetivo de estabelecer precisamente a cronologia e os
locais visitados pela MPF.
59

7.1 - As cadernetas de campo e anexos

Os integrantes da Missão registraram suas notas de pesquisa em 20 cadernetas de campo, 5 cadernos de


música e vários papéis avulsos, 292 contrariando as enfáticas instruções metodológicas de Mário de Andrade, que
ainda em 1937 havia recomendado ao compositor Camargo Guarnieri “(...) nunca tomar nota em papel avulso (...)”,
quando da pesquisa musical por ele realizada para a Discoteca Pública Municipal, por ocasião do II Congresso
Afrobrasileiro em Salvador (BA). 293 No entanto, cabe ressaltar que parte significativa dos documentos em papéis
avulsos não se referem especificamente ao cotidiano da Missão.
Várias informações sobre as manifestações folclóricas documentadas pela Missão foram fornecidas pelos
próprios populares em diversos tipos de suporte como papéis de embrulho, cadernetas de mercearia ou cadernos,
sendo doados à equipe da expedição e não por eles redigidos. Apenas uma pequena parcela dos documentos em
papel avulso foi utilizada para a reconstrução cronológica, como anotações contendo o endereço de informantes ou de
autoridades dos locais visitados pela equipe, além de outros lembretes.
As cadernetas de campo foram anotadas em sua maioria por Luiz Saia e Antônio Ladeira. Luiz Saia, Chefe da
expedição, redigiu suas notas de pesquisa e o diário da viagem em 12 cadernetas de campo classificadas
originalmente pelos números 1.A, 1.B, 1.C, 2.B, 3.A, 4.A, 5, 5.A, 6, 7, 8, 9, além de caderneta com a relação das
fotografias efetuadas pela expedição elaborada juntamente com Antônio Ladeira.
O diário redigido por Luiz Saia, elemento fundamental para a pesquisa e a reconstrução cronológica dos seis
meses de viagem da Missão, encontra-se disperso em 6 cadernetas (nºs 4.A, 5, 6, 7, 8, 9). Esse material, ainda inédito
permanecendo em seu estado original de coleta, foi transcrito e priorizado durante a pesquisa para a reconstrução
cronológica.
As demais cadernetas de campo redigidas por Luiz Saia contêm dados sobre as manifestações folclóricas e
observações gerais - dados sobre informantes populares, letras das melodias gravadas, arquitetura, entre outras
informações -, relativas à pesquisa efetuada e ao material coletado pela equipe, sendo portanto, considerados
documentos secundários para a reconstrução cronológica da viagem da expedição.
Antônio Ladeira, Auxiliar Geral da Missão, anotou as cadernetas de campo números 1.C, 2.A, 3.B, 4, 4.A e 5.A,
além de haver relacionado todos os objetos coletados pela expedição ou que a ela foram doados, como os fetiches
pertencentes ao ritual do Xangô oferecidos pelo Delegado João Inácio Ribeiro Roma da Delegacia de Investigações e
294
Capturas do Recife (PE), em março de 1938. Antônio Ladeira também coordenou a listagem das fotografias
efetuadas pela equipe e anotou as letras das melodias gravadas nos discos pela expedição em cadernos apropriados.
Benedito Pacheco, Técnico de Gravação, se responsabilizou em organizar a listagem de todas as melodias
documentadas registros fonográficos efetuados pela expedição, anotando as informações em duas cadernetas de
campo denominadas “Discos”. Nessas cadernetas, Pacheco descreveu o conteúdo de cada fonograma - faixa de disco
-, anexando o título da melodia gravada, o gênero folclórico ao qual pertencia, o número de catalogação original, o lado
e as dimensões dos discos de acetato (12, 14 ou 16 polegadas), além da instrumentação musical de cada documento,
sua data e o local de coleta. 295 Benedito Pacheco também realizou observações gerais sobre aspectos das
manifestações folclóricas registradas pela equipe, anotadas nas cadernetas de campo nºs 1.A, 1.B, 1.C e 5.A.
Martin Braunwieser, Músico da Missão, registrou por anotação musical direta as melodias que não foram
gravadas nos discos. O Maestro Braunwieser tinha a responsabilidade de coordenar, juntamente com Benedito
Pacheco, a utilização os discos de acetato levados pela Missão, economizando discos virgens através de grafia
musical direta. Era ele quem decidia “(...) o valor musical das peças (...)” e resolvia “(...) quais as mais fáceis que
poderiam ser escritas manualmente, economizando os discos virgens.(...)”. 296 As anotações musicais realizadas pelo
Maestro constam de 5 cadernos de música e de algumas Fichas de Repertório devidamente preenchidas. 297 Além
disso, no decorrer da viagem da expedição, Martin Braunwieser iniciou a organização das melodias gravadas

292
- A classificação original atribuída pelos integrantes da MPF é a seguinte: -Cadernetas de Campo: nºs 1.A, 1.B, 1.C, 2.A, 2.B,
3, 3.B, 4, 4.A, 5, 5.A, 6, 7, 8, 9, Discos 1, Discos 2, Objetos, Fotografias, Textos. -Cadernos de Música (anotados por Martin
Braunwieser): nºs 1 a 5.
293
- Vide Capítulo I, item 6.
294
- Documentos Originais da MPF - Ofício nº 317, Secretaria da Segurança Pública/Delegacia de Investigações e Capturas, 5 de
março de 1938, João Inácio Ribeiro Roma.
295
- Documentos Originais da MPF - Cadernetas de Campo “Discos”, nºs 1 e 2, organizadas por Benedito Pacheco. A Caderneta
nº 1 contém as mesmas informações que a de nº 2. Na primeira caderneta, Pacheco fez um rascunho para as anotações
definitivas na segunda caderneta.
296
- Documentos originais da MPF - “Exposição dos atos e conseqüencias da Missão (...)”. Doc.nº 30, Mário de Andrade, 23 maio de
1938.
297
- As 203 melodias anotadas manualmente por Martin Braunwieser durante a viagem da Missão estão publicadas em:
ALVARENGA, O. (org.) - “Arquivo Folclórico - I vol.: Melodias Registradas Por Meios Não Mecânicos.”, São Paulo,
Departamento de Cultura - Discoteca Pública Municipal, 1946. Coleção Martin Braunwieser.
60

fonograficamente, agrupando-as segundo a classificação de gênero folclórico, e realizando estudos prévios sobre
algumas manifestações. 298
As cadernetas de campo da Missão possuem as seguintes características:

1) Cadernetas nºs 1.A, 1.B, 1.C, 2.A, 2.B, 3.A, 3.B, 4, 4.A, 5, 5.A, 6, 7, 8 e 9; Caderneta com relação de objetos
recolhidos: formato horizontal, em papel pautado ao longo, 21,5 X 12 cm, 200 páginas. Todo esse material foi
manuscrito com caneta tinteiro ou a lápis, a maioria delas por Luiz Saia - Chefe da expedição. Em diversas
cadernetas, as anotações de pesquisas são interrompidas sem a utilização total das páginas;

2) Cadernetas Discos nºs 1 e 2, organizadas por Benedito Pacheco: formato vertical, em papel quadriculado, 11 X 16
cm, 165 páginas. A caderneta “Discos” nº 1 é um rascunho para as anotações finais realizadas na caderneta
“Discos” nº 2. Nas duas cadernetas, as anotações são interrompidas antes da utilização total das páginas;

3) Cadernos de “Fotografias” e “Textos”, organizados por Antônio Ladeira: formato vertical, em papel pautado, 32 X 25
cm, 300 páginas. Nos dois cadernos, as anotações são interrompidas antes da utilização total das páginas.

Na pesquisa desenvolvida para a reconstrução cronológica da viagem da expedição, verificou-se que as


informações relativas às manifestações folclóricas documentadas pela equipe foram anotadas de maneira pouco
organizada e criteriosa. Por vezes, os dados sobre os informantes, as letras das melodias gravadas, as anotações
sobre fotografias, e outras informações, foram registrados em uma mesma caderneta, sem seqüência cronológica, e
com caligrafia de difícil entendimento. O diário de Luiz Saia inicia-se somente a partir de 1º de abril de 1938, data do
início da primeira viagem da expedição ao interior do Estado da Paraíba (caderneta nº 4.A). Foram localizadas
somente informações dispersas nas cadernetas de campo sobre os dois primeiros meses de permanência em
Pernambuco, incluindo-se aí a viagem realizada ao interior do Estado, durante o mês de março de 1938.
A desorganização no preenchimento das cadernetas de campo e a ausência de informações mais precisas
sobre as manifestações documentadas pela Missão foi alvo de comentários de Oneyda Alvarenga, responsável pela
organização e divulgação posterior dos resultados obtidos pela expedição. No III volume da coleção Registros Sonoros
de Folclore Musical Brasileiro - Catimbó (1949), ela comentou:

(...) Como nas demais colheitas que realizou, a Missão deixou de ordenar e explicar suas observações
sobre os catimbós. O material informativo por ela trazido consiste, na sua quase totalidade, em rápidas
notas de Luiz Saia (Chefe da Missão), espalhadas pelas diversas cadernetas de colheita. Em raros
casos, Luiz Saia datilografou os dados obtidos, principalmente textos de cânticos, mas ainda sem
nenhuma sistematização e sem esclarecimentos mais precisos. Com essas notas esquemáticas e
esparsas, respigadas nas cadernetas de colheita, organizamos todos os fichários necessários, bem como
uma coletânea dos informes gerais, em cópias datilográficas fiéis, distribuídas em duas séries: “Textos”
299
(10) e “Dados” (2). (...)”.

Esse fato sugere duas considerações:

1ª Consideração: A precária preparação metodológica de Luiz Saia para a pesquisa etnográfica, que, não
obstante a orientação fornecida por Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga, e mesmo havendo cursado integralmente
as aulas de Etnografia e Folclore ministradas por Dina Lévi-Strauss (1936), demonstrou ser pouco eficiente. Os demais
integrantes da Missão fizeram menos quantidade de anotações, porém os dados de pesquisa foram registrados de
maneira mais criteriosa que a do Chefe da Expedição, com redação inteligível, mais ordenada, limpa e de fácil
entedimento.
Em favor de Luiz Saia, no entanto, há necessidade de se fazer algumas ressalvas, principalmente no que se
refere ao acúmulo de funções a ele designadas: com apenas 27 anos e sem nenhum conhecimento real das regiões
Nordeste e Norte do Brasil, como todos os demais integrantes da expedição, Luiz Saia foi encarregado da difícil tarefa
de ser o interlocutor do Departamento de Cultura de São Paulo junto às autoridades políticas e policiais dos locais
visitados pela Missão.
Em uma época conturbada politicamente, pois a ditatura do Estado Novo havia sido decretada meses antes da
300
partida da equipe, a tarefa de Luiz Saia foi bastante dificultada. Getúlio Vargas já havia nomeado os interventores

298
- Documentos Originais da MPF - 12 Relatórios de Martin Braunwieser, manuscritos. Martin Braunwieser publicou em 1946,
dois estudos no Boletin Latino Americano de Musica, tomo VI, Montevideo, Instituto Interamericano de Musicologia, editado
por Francisco Curt Lang: “Cegos pedintes cantadores do nordeste.”, pp.323-331; “O cabaçal.”, pp.601-606.
299
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit. 1949, p.10
300
- Segundo Thomas E. Skidmore (“Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964).”, 7ª ed., Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1982), p.60: “(...) Tanto antes quanto depois de 1937, Vargas fez uso freqüente dos interventores. Esse era o título (...)
dado a um governador de nomeação federal e que era também investido de poderes legislativos. Quando os Estados se
rebelavam, Vargas recorria a militares como interventores. Se bem que seu poder fosse limitado pela própria capacidade de
obter cooperação dos poderes locais, alguns dos interventores mostraram-se representantes muitíssimo bem sucedidos da
autoridade federal (...)”.
61

dos principais Estados do Nordeste visitados pela Missão: Agamenon Magalhães, Secretário da Fazenda de
Pernambuco, ideólogo e defensor nordestino da política Getulista; 301 e Argemiro de Figueiredo no Estado da Paraíba.
Nos momentos em que a Missão careceu de apoio material - como a cessão de transporte apropriado para a
viagem pelo interior dos Estados ou a autorização policial para documentar rituais de feitiçaria então proibidos e
perseguidos -, era Luiz Saia quem mantinha o contato oficial em nome da expedição e do Departamento de Cultura de
São Paulo com os políticos e autoridades policiais dos locais visitados. Cabe ressalvar, no entanto, que em diversas
oportunidades Luiz Saia foi auxiliado por estudiosos e amigos de Mário de Andrade residentes no Nordeste: Ascenso
Ferreira, Waldemar de Oliveira e Mário Melo em Pernambuco; Pedro Batista e Ademar Vidal na Paraíba. Ademar Vidal
exercia um cargo de significância política no Governo Paraibano - Procurador da República no Estado da Paraíba,
facilitando o desempenho da expedição por todo Estado.
Como será visto na reconstrução cronológica, a Missão realizou coletas mais proveitosas sob o ponto de vista
etnográfico e quantitativo no Estado da Paraíba. Em Pernambuco, apesar da equipe contar com alguma ajuda oficial,
os integrantes da expedição se viram às voltas com problemas resultantes da política local: o impedimento do contato
com os opositores do Estado Novo, como Gilberto Freyre. Além disso, para documentar o ritual do Xangô recifense, a
Missão enfrentou algumas dificuldades para obter a autorização junto às autoridades policiais locais.
Mesmo em sua viagem ao interior pernambucano, de 8 a 15 de março de 1938, a expedição contou com uma
série de problemas práticos, como o atraso de um dia do caminhão cedido pela Prefeitura do Município de Rio Branco
que possibilitaria o transporte da equipe para o registro do Praiá dos índios Pancarus, na vila do Brejo dos Padres; ou a
quebra da promessa realizada pelo folclorista e jornalista recifense Mário Melo que havia assegurado sua companhia
junto com a Missão na viagem à vila de Águas Belas, onde seria documentada a dança dos remanescentes indígenas
da região recomendada por Mário de Andrade. Todos esses fatores contribuíram negativamente para a coleta da
equipe no Estado de Pernambuco, prejudicando a qualidade e a quantidade dos documentos etnográficos recolhidos.
Já na Paraíba, o apoio e compreensão conquistado por Luiz Saia junto às autoridades foi decisivo para que a
coleta fosse mais significante do que em Pernambuco. Em entrevista a um periódico de João Pessoa, logo após ao
retorno da primeira viagem ao interior do Estado da Paraíba, em 25 de abril de 1938, Luiz Saia comentou a
compreensão e o apoio recebido das autoridades políticas locais:

“(...)
Acabamos de chegar do sertão paraibano e trazemos dele uma profunda impressão, um entusiasmo
aumentado pela gente nordestina, e um sincero reconhecimento às autoridades das cidades visitadas,
que dispensaram aos componentes da nossa Missão, a mais carinhosa acolhida. Quero mesmo frisar,
antes do mais, um ponto importante: é a compreensão e o espírito de colaboração que estamos
encontrando nas autoridades paraibanas, pois daí vem predominantemente o êxito que vimos obtendo
302
em nossos trabalhos. (...)”

O entusiasmo justificava-se pelos números. A quantidade de melodias e manifestações musicais documentadas


nos discos, filmes e fotografias, durante toda a estadia da Missão no Estado da Paraíba, supera a marca de 760,
envolvendo cantos de pedintes, aboios, cocos, catimbós, cabocolinhos, reis de Congo, entre várias outras.
A coleta significativa no Estado da Paraíba se deveu a dois fatores fundamentais:

1) a ajuda de Ademar Vidal, folclorista e Procurador da República na Paraíba, que se fez interlocutor das necessidades
práticas e materiais da expedição, adiantando e facilitando o contato do Chefe da Missão com as autoridades
locais;

2) a competição entre os Estados de Pernambuco e Paraíba pela primazia política e cultural do Nordeste, o que
colaborou e facilitou a obtenção do apoio oficial das autoridades paraibanas, permitindo que a equipe realizasse
coletas etnográficas sem nenhuma dificuldade e/ou impedimento material, com maior qualidade etnográfica e em
maior quantidade.

Além de toda responsabilidade oficial e política pelo sucesso da Missão, da pesquisa etnográfica propriamente
dita, Luiz Saia também respondia à imprensa e decidia “(...) pelos atos da Missão, das peças a serem colhidas, sejam
303
cantos, sejam bailados ou instrumentos ou ainda objetos de fatura popular (...)”. As notas realizadas por Luiz Saia
refletem o acúmulo de funções a ele atribuídas e seu desempenho na pesquisa etnográfica da expedição: uma
diversidade de temas abordados, anotações superficiais, dispersas e desorganizadas. Porém, cabe a ressalva: o diário
pessoal de Luiz Saia disperso em 6 cadernetas de campo, possui uma organização cronológica, não obstante a
ausência de anotações durante os dois primeiros meses da viagem. Já no aspecto diplomático e político da expedição,
a atuação de Luiz Saia foi determinantemente positiva.

301
- cf. RIBEIRO, D. - “Aos Trancos e Barrancos - como o Brasil deu no que deu.”, Rio de Janeiro, Ed.Guanabara, 1985. Vide
verbete 902 - O Autogolpe
302
- “Obteve pleno êxito no interior paraibano a Missão Folclórica da Municipalidade de São Paulo.” - A União, João Pessoa (PB),
datado de 27 de abril de 1938.
303
- Documentos Originais da MPF - Mário de Andrade in “Exposição dos atos e conseqüencias da Missão (de Pesquisas)
Folclóricas atualmente em viagem pelo norte do Brasil.”, Doc. nº 30, 23 de maio de 1938.
62

2ª Consideração: O preenchimento pouco satisfatório das cadernetas de campo talvez possa ser atribuído ao
pouco tempo disponível para a realização de pesquisas mais aprofundadas, além dos problemas práticos imprevistos.
A exigüidade do tempo acompanhou toda a viagem da expedição. Seus integrantes se ressentiram da falta de
maior tempo disponível para a realização de coleta melhor fundamentada e estruturada. Isso pode ser verificado nos
depoimentos de Martin Braunwieser, 304 de Benedito Pacheco, 305 e de Luiz Saia.
O Chefe da Missão assim se manifestou sobre a viagem da expedição pelo interior de Pernambuco e Paraíba:

“(...) A viagem pelo Estado de Pernambuco não se revelou todavia muito frutuosa na colheita de milagres,
pois percorremos à pressa, quase sem parada, o interior do Estado que é onde se localiza o manancial.
O Estado da Paraíba, onde a demora foi maior (mais de 2 meses) e as paradas mais cômodas, forneceu
a maior parte da centena de peças que hoje se encontram no Museu da Discoteca Pública de São
Paulo.” 306

Já o maestro Martin Braunwieser, Músico da Missão, em relatório entregue à Discoteca Pública Municipal sobre
os resultados etnográficos obtidos pela expedição na Paraíba, comentou:

“(...) Como técnico musical da missão folclórica do departamento de cultura da municipalidade de São
Paulo, tive o grande prazer de percorrer quase todo o trabalhoso e adiantado estado da Paraíba,
conhecido como um dos mais ricos do nordeste na expressão musical popular. Mas a riqueza e a
variedade do canto popular é superior do que em geral se sabe e fala. Mesmo durante a nossa rápida
viagem pelo interior da Paraíba - no máximo demoramos 2 a 3 dias em cada lugar, por falta de tempo
muitas vilas e cidades não pudemos visitar - encontramos e colhemos uma coleção admirável da música
307
popular (...).”

Além do escasso tempo disponível para pesquisas mais aprofundadas, a equipe da Missão enfrentou diversos
contratempos não planejados, como a ausência de transporte para algumas regiões; o demorado contato oficial com
autoridades de municípios distantes das capitais; a carência de estradas de rodagem apropriadas forçando a equipe a
deslocar-se por terrenos pouco usuais (leitos secos de rios), acarretando em sobrecarga e conseqüente quebra dos
veículos de transporte, como aquele ocorrido em Jaicós, no Estado do Piauí, em 6 de junho de 1938, que forçou a
parada da expedição por 72 horas. Esses imprevistos aliados ao pouco tempo disponível para pesquisas
aprofundadas pode ter acarretado as anotações pouco precisas realizadas pela expedição.

304
- Entrevistas de Martin Braunwieser concedidas em 1989 e 1991. Quando indagado sobre a extensão da viagem da MPF e o
tempo disponível para pesquisa, Braunwieser comentou: “(...) O tempo não dava para nada. Onde mesmo a gente trabalhava,
imagine... cada Estado é enorme. Não é brincadeira não! Só um pouquinho de tempo, um ou dois dias não dá prá nada!
Imagina lá, em dois, três lugares diferentes (...)”.
305
- Entrevista de Benedito Pacheco concedida à Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo, Seção de Música/Som, em
28 de junho de 1984, Arquivo Multi Meios SMC/PMSP, s/nº.
306
- SAIA, L - “Escultura Popular Brasileira.”, São Paulo, Edições Gaveta, 1944.
307
- Relatório sem número de classificação.: “A Música popular no estado da Paraíba.”, de Martin Braunwieser, p.1.
63

7.2 - As Correspondências

Este grupo de documentos é formado por 28 cartas, 16 telegramas e 6 documentos burocráticos emitidos e
enviados, a maioria deles, durante a viagem da expedição. Os destinatários e remetentes são principalmente Luiz
Saia, Martin Braunwieser, Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga - responsáveis diretos pelo êxito da Missão. Há
também correspondências redigidas por Ademar Vidal e Pedro Baptista do Estado da Paraíba, de informantes
populares ao Chefe da Missão, e de autoridades políticas solicitando apoio aos integrantes da expedição.
A maioria das correspondências foram datilografadas, o que facilitou muito o processo de pesquisa e
reconstrução cronológica. Do total de 28 cartas, 17 foram datilografadas à máquina, 9 são manuscritas e 2 contêm
trechos datilografados e manuscritos. Quanto aos 16 telegramas e outras anotações, 6 estão impressos em pequenas
tiras de papel colado, como eram enviados os telegramas à época da realização da expedição, 8 são manuscritos, 1
datilografado e 1 com anotações realizadas de maneira mista, ora impresso e ora manuscrito. Todos os 6 documentos
burocráticos classificados neste grupo de “Correspondências” foram datilografados.
Também nesse conjunto de documentos pode-se observar a carência de maior tempo disponível para a coleta
etnográfica da expedição, a exemplo do ocorrido com o grupo das cadernetas de campo. Desta vez, a falta de tempo
vêm aliada à necessidade de mais componentes para a equipe da Missão, o que possibilitaria a realização de tarefas
técnicas e práticas de forma mais rápida e completa. A exigüidade de tempo, a carência de mais elementos humanos,
acarretou por vezes, como veremos na reconstrução cronológica, um estado de ânimo exaltado entre os componentes
da equipe. Além disso, os mesmos problemas de ordem política observados nas cadernetas de campo, estão
espelhados nas correspondências, embora por vezes, de maneira dissimulada, devido à censura imposta aos Correios
pela Ditadura do Estado Novo:
308
“Cara Oneida. Abraço. Positivamente parece que estou em falta com você, mas não é assim não. Si
até agora não mandei o prometido é porque o trabalho de colheita absorve completamente o tempo da
gente. Mesmo relatório e prestação de conta tem que ser feito à noite e às pressas. O número de
pessoas pra trabalhar é muito pequeno e o trabalho por demais absorvente. Pelas cartas que tenho
escrito a Mário penso que você já tem uma idéia do que estamos colhendo. Em Pernambuco
trabalhamos bastante, tanto em Recife como no interior. É verdade que no começo se perdeu muito
tempo com certos inúteis que atrapalhavam a gente. O conserto possível foi “pirar” desse pessoal e fazer
o trabalho diretamente com o povo que fornecia o material de interesse. (...)” 309

Todo o conjunto de correspondências foi utilizado para a pesquisa da reconstrução cronológica.


Até 1984, esse material permaneceu apenas preservado na Discoteca Oneyda Alvarenga, sem nenhuma
organização cronológica ou classificação. Em trabalho efetuado pela Divisão de Pesquisa do Centro Cultural São
Paulo (CCSP) - Área de Música/Som, em 1984, 310 esses documentos foram acondicionados em envelopes pláticos,
numerados e colocados em pastas apropriadas. Apesar disso, não houve a preocupação de uma organização mais
apurada, com estabelecimento de ordem cronológica das correspondências, e nem mesmo uma orientação para a
organização lógica desta parte do acervo, com cartas-perguntas e cartas-respostas dispostas sucessivamente. Esta
deficiente organização realizada em 1984 agrupou somente alguns documentos pelos seus rementes, não
considerando o conteúdo ou a categoria da correspondência: carta ou telegrama.
Para a pesquisa da reconstrução cronológica da viagem da Missão, todos os documentos do grupo de
“Correspondências” foram novamente organizados, desta vez segundo a data de redação, e agrupados segundo seu
contéudo - categoria: carta / telegrama / documento burocrático -, além de serem reunidos por seus remetentes e
destinatários. A listagem completa dos documentos que compõe o grupo de Correspondências será apresentada na
Bibliografia dessa Dissertação.
É importante ressaltar que não foram localizadas todas as correspondências do acervo da Missão, preservado
na Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural São Paulo. Como exemplo, citamos a correspondência
mencionada por Luiz Saia em carta a Mário de Andrade, datada de 26 de fevereiro de 1938, relatando o
relacionamento do Chefe da Expedição com o mundo político do Recife. A resposta a essa carta não foi localizada
nem mesmo após consulta ao Instituto de Estudos Brasileiros - USP, onde se encontra o acervo pessoal pertencente a
Mário de Andrade:

“Caro Mário / No último domingo recebi telegrama seu. Ontem carta datada de 22 de fevereiro de 1938.
As minhas decisões, pelo menos pelos resultados até agora surgidos têm sido mais ou menos felizes.
311
Não se “arreceie” de vacilações de minha parte. Não me falta coragem. (...)”

308
- A grafia correta é Oneyda, no entanto, a exemplo de Mário de Andrade, Luiz Saia aportuguesou o nome.
309
- Corresp. Doc.36: Carta de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga, 28 de março de 1938.
310
- Coordenados por Dorotéa Kerr (organista) e Flávia Camargo Toni, atualmente pesquisadora do Instituto de Estudos
Brasileiros.
311
- Corresp.Doc. 35 - De Luiz Saia a Mário de Andrade, 26 de fevereiro de 1938.
64

Não há nenhuma correspondência ou telegrama de Mário de Andrade a Luiz Saia com as datas referidas na
missiva. Devido a isso, pode-se concluir que o acervo de correspondências da Missão está incompleto, com outros
documentos também perdidos ou extraviados.
Ainda sob a mesma classificação de Correspondências foram anexados pela Divisão de Pesquisas do CCSP, 6
documentos burocráticos que não se caracterizam por serem cartas pessoais ou telegramas mantidos pela equipe da
Missão e seus organizadores, e que, não obstante, subsidiaram a reconstrução cronológica da viagem:

-Corresp.Doc.29: Ofício de Encaminhamento da Discoteca Pública Municipal nº 270, 7 de junho de 1938, redigido por
Oneyda Alvarenga e dirigido a Luiz Saia;
-Corresp.Doc.30: Manifestação de Mário de Andrade (então Chefe da Divisão de Expansão Cultural) a Francisco Pati
(então Diretor do Departamento de Cultura) denominado “Exposição dos atos e conseqüencias da Missão (de
Pesquisas) Folclóricas atualmente em viagem pelo norte do Brasil”, datado de 23 de maio de 1938;
-Corresp.Doc.30A: Ofício de Encaminhamento da Discoteca Pública Municipal nº 271, 13 de junho de 1938, redigido
por Oneyda Alvarenga e dirigido a Francisco Pati (novo Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo;
-Corresp.Doc.44/45: 1º Relatório de Atividades da Missão de Pesquisas Folclóricas e relação das despesas efetuadas
pela equipe até 15 de maio de 1938, redigido por Luiz Saia;
-Corresp.Doc.46: relação de objetos ritualísticos coletados pela equipe e despachados por Luiz Saia para São Paulo,
datado de 26 de maio de 1938;
-Corresp.Doc.52: Breve avaliação sobre os processos de coleta e os resultados obtidos pela Missão, sem data, sem
identificação de autor mas provavelmente redigido por Luiz Saia;

Além dessa documentação original ainda inédita, foram utilizadas durante a pesquisa para a reconstrução
cronológica da viagem da expedição, as correspondências entre Oneyda Alvarenga e Mário de Andrade efetuadas
312
durante os anos 1936-1940, editadas em São Paulo, 1983. Segundo Oneyda Alvarenga, o material escrito entre
eles durante o período corresponde a uma “(...) segunda fase do nosso carteamento (...)”, onde o “(...) entrelaçamento
trabalho-estudo-vida aparece com maior franqueza (...)”. 313 Esta fase das correspondências entre Mário de Andrade e
Oneyda Alvarenga vai de “(...) 18 de junho de 1936 a 26 de dezembro de 1940, correspondendo, a partir de 1938 (...),
à derrocada do Departamento de Cultura e, em conseqüencia, à estada no Rio (...)” de Mário de Andrade. 314
Através das correspondências desse período (1936-1940), foi possível observar o relacionamento e vivência de
Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga em relação à atuação frente a Discoteca Pública Municipal, e em períodos
anteriores, posteriores e mesmo durante a realização da Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938.
Outro conjunto de documentos utilizado na reconstrução cronológica foram as cartas de trabalho entre Rodrigo
Mello Franco de Andrade, Diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e Mário de
Andrade, escritas durante os anos de 1936-1945, publicadas em Brasília, em 1981. 315 Durante a pesquisa, utilizou-se
somente as correspondências mantidas entre janeiro de 1938 a março de 1941, período no qual ocorreu a viagem da
equipe e o afastamento de Mário de Andrade da Direção do Departamento de Cultura.

312
- ANDRADE, M. de & ALVARENGA, O.: “Cartas.”, São Paulo: Duas Cidades, 1983. 308p.
313
- op.cit. 1983. p.11.
314
- op.cit.1983. pp.11-12.
315
- ANDRADE, M. de - “Cartas de trabalho: correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1936-1945.”, Brasília:
Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Fundação Pró-Memória, 1981.
65

7.3 - A Hemeroteca: artigos de imprensa

A Hemeroteca recolhida pela Missão de Pesquisas Folclóricas, preservada na Discoteca Oneyda Alvarenga do
Centro Cultural São Paulo, está constituída por 55 artigos de imprensa recolhidos pelos integrantes da equipe durante
a viagem da expedição; além de matérias jornalísticas que antecedem a partida da equipe, e de reportagens
comunicando o retorno da Missão a São Paulo contendo avaliações sobre os resultados etnográficos obtidos pela
expedição.
Desse total de 55 matérias jornalísticas, 36 artigos abordam especificamente a viagem da expedição e os
resultados por ela obtidos. As outras 19 reportagens, são de assuntos relacionados indiretamente com a coleta
etnográfica, ora fornecendo elementos com informações complementares, como a matéria Mocambos do Recife e do
Sertão, de Hildebrando Menezes, contendo dados sobre a técnica de construção e arquitetura de habitações
populares, publicada no Diário de Pernambuco em 16 de fevereiro de 1938 (Hemer.Doc.32); ora procurando justificar
as diversas dificuldades enfrentadas pela Missão, como a reportagem Saneando os nossos costumes, abordando e
elogiando a ação repressiva da Polícia que havia efetuado o fechamento de dois centros de Catimbó no Recife,
publicada no Jornal do Comércio em 22 de fevereiro de 1938 (Hemer.Doc.30).
Os 36 artigos que abordam especificamente aspectos da Missão de Pesquisas Folclóricas foram, em sua
maioria, redigidos por redatores e repórteres dos periódicos com informações fornecidas por Luiz Saia - Chefe da
expedição, porta-voz autorizado do Departamento de Cultura de São Paulo e responsável pelo contato oficial com a
imprensa. Outros artigos foram escritos pelos folcloristas e amigos de Mário de Andrade, colaboradores da expedição
e da imprensa: Mário Melo, para o Jornal do Comércio (Recife-PE); Waldemar de Oliveira, com a coluna Notas de Arte
também para o Jornal do Comércio (Recife-PE); Hildebrando Menezes, para o Diário de Pernambuco (Recife-PE);
Ademar Vidal, para A União, (João Pessoa-PB); Severino Alves Rocha, para A Imprensa (João Pessoa-PB); e Gastão
Vieira, para a Folha do Norte, (Belém-PA).
Entre as matérias jornalísticas, duas reportagens são escritas em primeira pessoa pelo próprio Luiz Saia. Os
dois artigos contêm informações redigidas ou fornecidas por Luiz Saia que subsidiaram posteriormente a redação dos
relatórios oficiais entregues à Discoteca Pública Municipal. No entanto, somente foi localizado e entregue à Discoteca
Pública Municipal, estando entre os documentos originais da expedição, o 1º Relatório e Enumeração das Despesas
da Missão de Pesquisas Folclóricas, redigido e datilografado por Luiz Saia em 15 páginas, correspondente ao período
de 1 de fevereiro a 15 de maio de 1938 (Corresp.Doc.44).
Mais uma vez, a exigüidade de tempo foi responsável por esse procedimento de Luiz Saia: sem o tempo
disponível para redigir os relatórios de viagem, Luiz Saia procurou registrar todos os dados observados durante a
realização da viagem em seu diário e em artigos publicados na imprensa. Dessa maneira, logo após o término da
viagem ao sertão paraibano, realizada entre 1º e 24 de abril de 1938, Luiz Saia publicou artigo redigido em primeira
pessoa em A União, jornal diário editado na capital João Pessoa, no dia 27 de abril de 1938, sob o título Obteve pleno
êxito no interior paraibano a Missão Folclórica da Municipalidade de São Paulo (Hemer.Doc. 45). Os dados dessa
matéria jornalística foram em parte inseridos por Luiz Saia no 1º Relatório e Enumeração de despesas da Missão de
Pesquisas Folclóricas (Corresp.Doc. 44); todas as observações pessoais de Luiz Saia sobre aspectos da viagem
foram por ele suprimidas, sendo anexadas ao documento apenas informações bastante sintetizadas.
O outro artigo publicado por Luiz Saia, em A Imprensa - João Pessoa, 1º de junho de 1938, sob o título de A
Contribuição da Paraíba ao Folc-lore Nacional (Hemer.Doc. 48), que contém informações sobre o restante da viagem
da Missão pelo Estado da Paraíba, além de uma avaliação pessoal de Luiz Saia sobre todos os resultados obtidos
nesse Estado brasileiro e em Pernambuco, foi somente utilizado em parte na elaboração do 1º Relatório; também
foram por ele suprimidas as informações de caráter pessoal.
A numeração e classificação estabelecida em 1984 pela Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo foi
mantida como referência na presente reconstrução cronológica. No entanto, a mesma falha de organização observada
no grupo de correspondências pode ser constatada em relação à Hemeroteca da Missão: os documentos foram
dispostos sem consideração em relação à cronologia dos eventos ocorridos durante a viagem da equipe.
Além disso, alguns documentos, apesar de possuírem o número de catalogação atribuído em 1984, não foram
localizados no acervo da Hemeroteca da Missão, estando provavelmente perdidos ou extraviados. Pelo menos 5
artigos de imprensa possuem numeração dupla. Os documentos não localizados possuem a seguinte classificação:
nºs 1, 2, 3, 5, 6, 7, 8, 21, 22, 23, 29, 39, 52, 53, 56, 57, 58, 59, 66 e 68, totalizando 20 artigos extraviados ou perdidos.
Os artigos que possuem numeração dupla são os de nºs 30, 32, 34, 36 e 49. Há ainda neste grupo de documentos
originais da expedição, 2 artigos que não possuem numeração alguma. A relação de todo esse conjunto de
documentos será apresentada na Bibliografia desta Dissertação.
66

7.4 - A Documentação Burocrática

Para a reconstrução cronológica da viagem da Missão foram também pesquisados os documentos burocráticos
expedidos e recebidos pela Discoteca Pública Municipal, hoje pertencentes ao Acervo Histórico da Discoteca Oneyda
Alvarenga do Centro Cultural São Paulo, relativos direta ou indiretamente com a realização da Missão de Pesquisas
Folclóricas de 1938. A maioria da documentação permanece inédita e somente uma pequena parte foi aproveitada por
Oneyda Alvarenga nas coleções de divulgação do acervo da Discoteca Pública Municipal, publicadas entre 1946-1956:
coleção Arquivo Folclórico (2 volumes) e Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro (RSFMB) (5 volumes).
Entre os documentos relativos indiretamente à realização da Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938 foram
consultados para a reconstrução cronológica as Notas Fiscais de Aquisição de Bens Patrimoniais da Prefeitura de São
Paulo, referentes ao período de 1936-1945, agrupadas em caderneta com capa de couro verde, assinadas por Mário
de Andrade (Diretor Deparatamento de Cultura) e Oneyda Alvarenga (Chefe da Discoteca), sem número de indexação.
316
Também foram consultados os primeiros regulamentos da Discoteca Pública Municipal, redigido por Oneyda
Alvarenga, datado de setembro de 1935, onde constam os objetivos e a finalidade da instituição. 317
Durante os 33 anos de atuação frente à Discoteca Pública Municipal, tendo se aposentado em 1969, 318 Oneyda
Alvarenga realizou várias anotações para o planejamento de preservação e divulgação do acervo pertencente à
instituição, inclusive daquele que foi recolhido pela Missão de 1938.
Essa documentação, elaborada durante os anos de 1945-1956, foi por vezes datilografada e preservada, não
obstante a ausência de catalogação, indexação e organização eficiente desta parte do acervo. Uma grande quantidade
de documentos burocráticos permanece manuscrita, em caligrafia de Oneyda Alvarenga, nos mais diferentes tipos de
suportes, como as anotações para as regravações dos discos em acetato planejadas para 1947, redigidas em papéis
almassos com o brazão da Prefeitura do Município de São Paulo no canto superior esquerdo; ou mesmo anotações
sobre os custos financeiros do trabalho de regravação, redigidas em pequenos pedaços de papel seda.
Todos esses documentos, no entanto, se ressentem de organização, não possuindo número de catalogação,
mesmo após o trabalho efetuado pela Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo em 1984. Para a
reconstrução cronólogica, houve a necessidade de reorganização e de nova sistematização, o que foi feito mantendo-
se a numeração ou a ausência desta intacta.
Do material burocrático especificamente relacionado com a Missão de Pesquisas Folclóricas foram consultados
particularmente para a reconstrução cronológica os 56 documentos que compõem a pasta Recibos e Termos de
Compromissos dos membros da equipe da Missão. Estes documentos, pertencente ao Acervo Histórico da Discoteca
319
Oneyda Alvarenga, se referem aos pagamentos efetuados mensalmente aos integrantes da equipe durante a
viagem, e ao compromisso firmado de não utilização do acervo coletado pela expedição sem a autorização prévia do
Diretor do Departamento de Cultura.

316
- Documentos burocráticos da Discoteca Pública Municipal, s/nº de catalogação.
317
- Documentos burocráticos da Discoteca Pública Muncipal - Cópia do Regulamento da Discoteca Pública Municipal, redigido
por Oneyda Alvarenga, setembro de 1935, s/nº de catalogação.
318
- cf CARLINI, A. & LEITE, E. - “Catálogo do Acervo Histórico-fonográfico da Discoteca Oneyda Alvarenga/CCSP.”, São Paulo,
CCSP, 1993. p.6-7.
319
- Escaninho XXV, armário 9, da Discoteca Oneyda Alvarenga do CCSP.
67

CAPÍTULO III
A VIAGEM DA MISSÃO DE PESQUISAS FOLCLÓRICAS

1 - As verbas e salários
Para a realização da expedição foi destinada uma verba total de 60:000$000 (sessenta contos de réis),
concedida ao Departamento de Cultura pela Câmara de Vereadores de São Paulo, e repassada em 28 de janeiro de
1938 para a Discoteca Pública Municipal sob responsabilidade de Oneyda Alvarenga. 320
Essa verba, que custeou as despesas da viagem da Missão quanto ao alojamento, transporte, alimentação,
pagamento dos salários dos componentes da equipe e quaisquer outros gastos que fossem necessários, foi dividida
em três parcelas iguais de 20:000$00 (vinte contos de réis) ficando sob a guarda de Luiz Saia que, como Chefe da
expedição, era quem administrava e gerenciava os gastos da equipe. No mesmo dia 28 de janeiro de 1938, Luiz Saia
recebeu a primeira parcela da verba na “(...) importância de 19:500$000 (Dezenove contos e quinhentos mil réis) (...)”
que custearam as despesas iniciais “(...) da viagem de pesquisas folclóricas e etnográficas ao nordeste brasileiro (...)”.
321

Quanto aos valores e a forma de pagamento dos salários, a importância variava de componente a componente.
Em correspondência de Oneyda Alvarenga a Luiz Saia, com o intuito de esclarecer as dúvidas sobre a questão dos
salários, informou a Chefe da Discoteca Pública Municipal:

“(...)
Antes de mais nada, liquidemos o caso dos cobres. O combinado aqui [em São Paulo], e que eu pensei
que o Mário [de Andrade] tivesse explicado a você, é o seguinte:
1) você se paga aí mensalmente os 500$000 (quinhentos mil réis) da sua gratificação;
2) O Pacheco e o Ladeira recebem aí de você, respectivamente, 200$000 e 150$000 por mês, pagando
eu aqui aos procuradores deles os 800$000 e 150$000 restantes;
322
3) O Braunwieser recebe de você 100$000 mensais. (...)”.

Além dos 500$000 réis de gratificação como Chefe da expedição, Luiz Saia também recebia salário de 120$000
como chefe de seção do SPHAN - São Paulo, totalizando 620$000 réis mensais. 323 José Bento Faria Ferraz,
secretário particular de Mário de Andrade e funcionário da Discoteca Pública Municipal, se responsabilizou de cuidar
da situação financeira de Luiz Saia em São Paulo, sendo por ele designado como seu procurador. 324
Benedito Pacheco, com contrato ad hoc firmado junto à Discoteca Pública Municipal por não ser funcionário
regular do Departamento de Cultura de São Paulo, nomeou como seu procurador o irmão, Fausto Pacheco:

“Autorizo o sr. Fausto Pacheco a receber mensalmente a quantia de 1:000$000 (Um conto de réis),
quantia estipulada no contrato feito entre mim e o Departamento de Cultura, para servir como Técnico de
Registro Sonoro na viagem de Pesquisas Folclóricas e Etnográficas que o mesmo Departamento
realizará no nordeste brasileiro. / 22 de janeiro de 1938 / Benedito Pacheco”. 325

O procurador legal de Antônio Ladeira, Auxiliar Geral, apesar de haver sido também nomeado, conforme
correspondência de Oneyda Alvarenga a Luiz Saia atrás citada, não foi identificado, pois não há nenhum documento
preservado no acervo original da Missão que o indique.
Merece destaque o valor da gratificação mensal do maestro Martin Braunwieser, de apenas 100$000 (cem mil
réis), correspondente a um quinto do salário de Luiz Saia como Chefe da expedição. Martin Braunwieser, designado
por Mário de Andrade como o Músico responsável da Missão, foi incorporado à equipe no último instante, tendo
aceitado o convite do diretor do Departamento de Cultura de São Paulo devido à amizade e ao sólido conhecimento
específico, particularmente com a música vocal. Destaca-se também o perfeito entendimento de Braunwieser com
pensamento musical de Mário de Andrade e com o projeto etnográfico da Missão de Pesquisas Folclóricas. 326
Uma hipótese pode ser levantada sobre o pequeno valor de salário atribuído ao maestro Martin Braunwiser
como integrante da equipe: o fato dele não ser brasileiro nato. É presumível supor que, para evitar quaisquer
comentários maledicentes ou de ordem política sobre a designação de um músico austríaco de nascimento para

320
- Recibo Doc.13: “Recebi do Sr.Diretor do Departamento de Cultura a importância de 60$000$000 (Sessenta contos de réis)
para custeio da viagem de pesquisas folclóricas ao Nordeste Brasileiro./ 28 de janeiro de 1938 / Oneyda Alvarenga / Chefe da
Discoteca Pública Municipal do Departamento de Cultura.”
321
- Documentos originais da MPF: Recibo Doc.15, de 28 de janeiro de 1938.
322
- Corresp. Doc. 21, de Oneyda Alvarenga para Luiz Saia, São Paulo, 5 de abril de 1938.
323
- idem ibidem
324
- idem ibidem
325
- Recibo Doc.10, 22 de janeiro de 1938,
326
- Vide Capítulo I, ítens 5 e 5.1
68

efetuar o registro de manifestações folclórico-musicais brasileiras, Mário de Andrade tenha proposto ao maestro um
salário de pequeno porte, se comprometendo, no entanto, a fornecer uma complementação financeira a ele quando a
equipe retornasse da viagem ao Nordeste. 327
Além dos salários dos componentes, da alimentação, do alojamento e do transporte, diversos gastos não
previstos ocorreram, sendo extraídos a princípio do bolso dos próprios integrantes da Missão. Para realizar a
aproximação mais amigável possível com seus informantes populares, era prática sistemática da Missão o
oferecimento de bebidas, na maioria das vezes aguardentes, e cigarros. Por vezes, houve a necessidade da equipe
financiar a aquisição do material necessário à restauração e conserto da indumentária dos grupos populares. No início,
esses gastos foram assumidos por Luiz Saia; depois, foram incorporados à verba oficial, sendo incluídos nas relação
de gasto da equipe, entregues à Discoteca:

“(...) Quanto ao dinheiro acho que você pode enviar imediatamente tudo o que sobrou do meu ordenado.
Muitos gastos estou pondo na minha conta, pois são de tal maneira feitos que não encontro jeito de
encaixá-los na prestação de contas, ainda que sejam feitos em benefício do serviço. Por exemplo, a
gente tem que se acamaradar com um fulano que pode ser útil ao nosso trabalho; conversa, conversa e
vem uma cerveja. Eu pago. O que posso fazer com isso? É verdade que em qualquer lugar do mundo eu
328
teria esses gastos e não tem importância. O porém é que meu dinheiro também acaba. (...)”

Os gastos inicialmente não previstos no orçamento da expedição passaram a ser oficialmente incluídos na
prestação de contas da Missão. A autorização e justificativa - um tanto paternalista - para tal procedimento foi
concedida por Oneyda Alvarenga, com aval de Mário de Andrade:

“(...) Não está nada interessante para você andar gastando dinheiro seu a benefício do serviço. É preciso
cuidar de uma saída para o caso. Afinal, uma pesquisa assim, gastam-se tanto essas pequenas coisas,
que a gente não costuma pôr em prestação de contas, quanto as outras despesas. Carecendo do povo, é
preciso agradar o povo. Como não gastar? (...)”. 329

A relação de despesas efetuadas pela Missão contém gastos pouco convencionais, e que serão, devido a esse
motivo, relacionados na reconstrução cronológica da viagem. Essas informações permitiram analisar aspectos do
procedimento metodológico para a coleta etnográfica, além de possibilitar a verificação dos gastos cotidianos
consumados pela equipe.

327
- Na segunda entrevista concedida em 1990, Martin Braunwieser afirmou que, mesmo para a época, “(...) 100$000 era meio
ordinário (...)”. No entanto, segundo ele, “(...) Mário de Andrade fez um acordo comigo, se comprometendo a complementar e
aumentar meu salário na volta a São Paulo (...).” Martin Braunwieser se naturalizou brasileiro em 1938.
328
- Corresp.Doc.36: de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga, 28 de março de 1938.
329
- Corresp.Doc.21: de Oneyda Alvarenga a Luiz Saia, 5 de abril de 1938.
69

2 - O DIA-A-DIA DA EXPEDIÇÃO

2.1 - De 1º a 12 de fevereiro: a bordo do Itapagé - primeiros levantamentos etnográficos e


divulgação do evento nas cidades-escalas do navio-vapor

“(...) Vamu dançá minha gente


Cum toda sastisfação
Pra mandá nossa cantiga
Lá pra civilização.

O São Paulo vae uvi


Coisa qui nunca uviu
O côco da nossa terra
Qui daqui nunca saiu. (...)

Seus dotô, homê do Sul


Nosso adeus vamu lhe dá
E leve nossa cantiga
330
Lá pro vosso lugá.”

A Missão de Pesquisas Folclóricas iniciou suas atividades em 31 de janeiro de 1938, segunda-feira. Nesse dia,
Benedito Pacheco, Técnico em Gravação, viajou sozinho para a cidade de Santos, litoral de São Paulo, com o objetivo
de fiscalizar o embarque do equipamento levado pela expedição, no navio-vapor Itapagé, da Companhia Nacional de
Navegação Costeira. Para a viagem, Benedito Pacheco dispôs da quantia de 24$900 réis, cedidos por Luiz Saia. 331
Como já visto, o material técnico empregado para a realização da expedição foi bastante volumoso: 6 malas e 3
baús que abrigavam o gravador Presto Recorder, amplificador, 50 caixas de agulhas de reprodução, microfones com
cabos e tripé, 237 discos virgens de 16, 14 e 12 polegadas, motor gerador de eletricidade (110 volts), pré amplificador,
blocos de papel para pesquisa, aspirador de pó, esquemas gráficos de funcionamento do gravador, 108 filmes para
fotografias, 15 filmes cinematográficos, câmera fotográfica Rolleiflex com estojo, filtros e lentes, aparelho
cinematográfico Kodak com filtros e lentes, além de 4 pastas de couros para transporte dos discos. 332
Ainda no início de janeiro, dia 8, uma pequena nota publicada na imprensa do Rio de Janeiro, comentava a
realização de mais este empreendimento e iniciativa do Departamento de Cultura de São Paulo, ressaltando a
importância e a atuação pública de Mário de Andrade:

“Ainda não terminou a extraordinária ressonância do Congresso da Língua Nacional Falada e Cantada,
que foi promovido pelo Departamento de Cultura de São Paulo, e este já cogita de outro empreendimento
não menos oportuno. É a organização de um grupo de especializados, que vá proceder in loco a estudos
sobre a arte nordestina de cunho popular, compreendidas nessa fórmula tanto as produções suburbanas
das capitais, como as das zonas sertanejas.
Tudo, aliás, que vai realizando o aludido setor da administração paulista, não faz senão refletir as
tendências do espírito do seu diretor, Mário de Andrade, cujo entusiasmo pela poesia e pela música
plebéias e primitivas da nossa terra é o principal fator do brilhante nome que ele desfruta.
O criador de Macunaíma, já teve ensejos de percorrer, ele mesmo, diversos pontos do Nordeste (...).
Fosse, portanto, um exemplar da categoria mais antipática de escritores - a dos que se fazem donos dos
assuntos - e iria sozinho, agora, com as credenciais e os recursos financeiros daquele cargo, prosseguir
na mesma obra de garimpeiro intelectual, imensamente útil à eclosão de uma arte em que se espelhem
com fidelidade o temperamento e a imaginação do nosso povo.
Ao revés disso, porém, Mário de Andrade procura elementos que, julgados de autoridade inexcedível,
considere idôneos para a formação dessa bandeira e assim exibe novo documento da pureza do seu
333
idealismo em assuntos artísticos”.

330
- Documentos originais da MPF - Letra da melodia de um coco, colhido em Tacaratu (PE), 10 de março de 1938. Anotação de
Luiz Saia; transcrição realizada por Oneyda Alvarenga - Texto nº 14 Pasta nº 2.
331
- Corresp.Doc.44: “1º Relatório...” p.1
332
- Documentos originais da MPF - “Relação de material técnico que vae ao nordeste na viajem de pesquisas folclóricas e
etnográficas.”, Doc.nº 6, assinado por B. Pacheco e A. Ladeira, 29 de janeiro de 1938. * Vide Capítulo I, item 4
333
- Hemeroteca Doc. s/nº: “Missão de folcloristas ao Nordeste” - Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 8 de janeiro de 1938.
70

Os outros componentes escolhidos para a bandeira, Luiz Saia, Martin Braunwieser e Antônio Ladeira, partiram
de São Paulo de trem com destino ao porto de Santos em 4 de fevereiro, sexta-feira. As passagens custaram 33$000
réis, além dos gastos de transporte em São Paulo (25$000) e com os carregadores de bagagem da Estação da Luz
(10$000). 334 No embarque foram se despedir da equipe da Missão, Mário de Andrade, o pianista Fructuoso Viana
(1896-1976), além das alunas particulares do maestro Martin Braunwieser, Suzy Nixon e Dinorá de Carvalho (1904-
1980). 335 A chegada a Santos foi no mesmo dia, e os três integrantes da Missão encontraram-se com Benedito
Pacheco hospedado no Washington Hotel. Os gastos com transporte, alimentação e gorjetas dadas na cidade de
Santos somam 47$200 réis. 336
Com partida programada para 5 de fevereiro, o navio-vapor Itapagé, por problemas técnicos não explicitados na
documentação original, saiu do porto de Santos com destino ao Rio de Janeiro somente no dia 6, domingo, às 14:00
horas. Durante a estadia na cidade, a equipe gastou 242$000 réis somente com a conta do Washington Hotel. 337 A
viagem demorou 17 horas, e a chegada ao Rio de Janeiro ocorreu às 6:30 horas do dia 7 de fevereiro. 338
Na então Capital Federal, guiando-se por instrução de Mário de Andrade, Luiz Saia procurou o poeta Jorge de
Lima, obtendo dele 4 cartas de apresentação a seus amigos e estudiosos de folclore do Nordeste. 339
No dia 8 de fevereiro, Luiz Saia procurou o médico e folclorista Arthur Ramos de quem obteve outras 3 cartas de
apresentação. 340 Além disso, também por recomendação de Mário de Andrade, o Chefe da Missão entrou em contato
com Antônio Bento de Araújo Lima, amigo do Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, e, através de sua
intervenção, conseguiu a divulgação do evento Missão de Pesquisas Folclóricas em jornal significante da capital.
Dessa maneira, em artigo publicado no Diário Carioca de 8 de fevereiro, redigido em forma de entrevista com
Luiz Saia, mas na realidade escrito por Antônio Bento de Araújo Lima com informações fornecidas pelo Chefe da
expedição, 341 os motivos para a realização da viagem etnográfica estão diretamente relacionados com o rápido
desenvolvimento do rádio, símbolo do progresso, e suas influências negativas para a música folclórica:

“(...) Com os progressos verificados no mundo moderno, principalmente trazidos pelo rádio, estão se
modificando rapidamente as nossas melodias populares tradicionais. Já se nota esse fenômeno nas
cidades e no litoral do país, onde a influência do rádio é mais direta.
Por isso mesmo, tendem a desaparecer, dentro de um futuro próximo, as velhas canções brasileiras
básicas para o estudo da nossa etnografia musical.
Torna-se por isso necessário fixá-las o quanto antes para que não se percam definitivamente da memória
das gerações. Ao mesmo tempo, faz-se necessário gravar pelos processos científicos modernos, as
nossas canções e danças afim de que, hoje como amanhã, se possa determinar com rigor como canta e
baila o povo.
Esse trabalho deve ser feito com urgência, porque talvez dentro de poucos anos, já não seja possível a
sua realização.
Prevendo esse fato, o Departamento Municipal de Cultura de São Paulo acaba de enviar uma missão
científica aos Estados do Nordeste e do Norte, a qual se encontra em trânsito nesta capital. É a primeira
vez que isso acontece no Brasil, razão pela qual a ida dessa missão científica marca uma era nova para a
342
cultura nacional. (...)”.

O artigo do Diário Carioca aborda, na voz de Luiz Saia, a disposição dos integrantes da expedição de servir “(...)
à causa da cultura nacional (...)”, segundo projeto de nacionalização das artes no Brasil esboçado por Mário de
Andrade:

“(...) O objetivo principal da Missão é a pesquisa do folclore musical. Para esse fim a Missão está
devidamente equipada. Dispomos de um aparelho dos mais aperfeiçoados e modernos, e de uma
máquina cinematográfica para filmagem de danças etc. 343 Contudo, o nosso campo de ação não se
restringe ao folclore musical. Estende-se, também, a colheita de material relativo a costumes, arquitetura,
334
- Corresp.Doc.44: “1º Relatório de Viagem e Enumeração das Despesas da MPF”, 15 de maio de 1938, 15p.
335
- Cad.de Campo s/nº, p.1 (Braunwieser)
336
- Corresp.Doc.44: “1º Relatório...” p.1
337
- idem ibidem
338
- Cad. de Campo nº 1.C, p.170
339
- Os destinatários das cartas de Jorge de Lima são: Álvaro Paes (AL), Luiz Lavenêre (AL), Epiphanio Doria (SE) e Luís da
Câmara Cascudo (RN). * Vide Capítulo II, item 6
340
- Os destinatários das cartas de Arthur Ramos são: Moacyr Menezes, Hosannah (?) e Diegues (?). * Vide Capítulo II, item 6
341
- Corresp. Doc.nº 31, de Luiz Saia a Mário de Andrade, 9 de fevereiro de 1938: “(...) Na entrevista que o Antônio Bento
publicou no Diário Carioca de 8 de fevereiro, 3º feira, saíram alguns trechos que talvez possam parecer a você, não digo
alguém daí, coisa minha. (...) Eu não tenho culpa delas. Dei os dados ao Antônio Bento e ele desenvolveu a redação da
entrevista a sua maneira. (...)”.
342
- Hemeroteca Doc.nº 9x - “Uma Grande Obra em Favor da Cultura Nacional” - Diário Carioca, Rio de Janeiro, 8 de fevereiro
de 1938. Em 13 de fevereiro, os jornais Gazeta de Notícias (Fortaleza-CE) e A União (Natal-RN) publicaram na íntegra o
mesmo artigo do Diário Carioca.
343
- Vide Capítulo I, item 4
71

enfim, a todas as modalidades da técnica popular. (...) Vamos trabalhar intensamente, certos de que
estamos servindo à causa da cultura nacional. (...)”. 344

A escala no Rio de Janeiro terminou no mesmo dia 8 de fevereiro, com o Itapagé partindo com destino a Vitória,
capital do Espírito Santo. Os gastos no Rio de Janeiro (41$100) se referem principalmente às despesas com
transporte, alimentação e gorjetas. 345
A bordo do Itapagé, Luiz Saia redigiu sua primeira correspondência como Chefe da Missão destinada a Mário
de Andrade, onde relatou com entusiasmo os contatos promissores realizados por ele, todos com promessa de ajuda
material e de apoio oficial aos trabalhos da expedição nos Estados do Norte e Nordeste.
É interessante notar na análise dessa correspondência uma das carências do preparo metodológico para a
pesquisa etnográfica da Missão: levando um equipamento técnico avançado para a década de 30, os integrantes da
expedição deveriam realizar no Rio de Janeiro um treinamento para a manipulação perfeita da máquina
cinematográfica Kodak o que, segundo consta, não foi realizado. O equipamento de cinema deveria ser utilizado
particularmente para o registro das coreografias existentes nas manifestações folclóricas brasileiras: 346

“Vitória, 9.2.1938 / Caro Mário / A viagem vai indo em ordem... em alguns senões: Não foi possível
encontrar no Rio o agente indicado pelo Instituto Fulgor para a retirada de uma peça da máquina
cinematográfica e treino de filmar. Penso que a solução para isto será falar para a Dona Oneyda ligar ao
Instituto Fulgor daí de São Paulo que me mandem a tal peça para Recife, com urgência, para o endereço
de um dos seus amigos de lá. (...)
O Jorge de Lima me deu várias cartas [de apresentação]. O Antônio Bento [de Araújo Lima] me
apresentou a um oficial de Gabinete do Ministro do Trabalho que prometeu encaminhar muita ajuda para
nós no Ceará, Piauí e Maranhão. O [Cândido] Portinari também ajeita uma porção de indicações. 347
Parece que neste setor a Missão também vai bem aparelhada. Devemos chegar no Recife antes do dia
15.
No mais, o Pacheco enjôa, o Martin olha o mar incansavelmente e Ladeira e eu vamos bem. / Abraços do
Saia. (...)”. 348

A falta da lente grande angular para o aparelho cinematográfico Kodak foi solucionada facilmente, pois Oneyda
Alvarenga enviou a peça à casa do folclorista recifense Ascenso Ferrreira já em fins de fevereiro. No entanto, ao que
tudo indica, os integrantes da Missão, especialmente Luiz Saia, não realizaram o treino de filmar, apesar da disposição
do Instituto Fulgor e dos representantes da Kodak no Brasil em ajudar a equipe também nos Estados nordestinos:

“São Paulo, 21 de fevereiro de 1938. / Caro Saia, / Li a carta que você mandou ao Mário: telefonei
imediatamente ao Instituto Fulgor e de lá me informaram que a peça que falta - a lente grande angular -
não demorará a me ser entregue. Manda-la-ei, assim que a receba, ao Ascenso Ferreira para que a faça
chegar até você. Quanto às instruções cinematográficas, disse-me no Instituto Fulgor que a Kodak
349
expediu ordem aos seus representantes no nordeste para que o auxiliem no que for necessário. (...)”.

Em outra correspondência de Oneyda Alvarenga a Luiz Saia, enviada quando a Missão já havia efetuado os
seus primeiros trabalhos de documentação etnográfica, inclusive com a câmera cinematográfica Kodak, a ausência do
treino de filmar está refletida nas observações da Chefe da Discoteca Pública Municipal, pois os resultados obtidos
com os filmes realizados pela equipe, apesar de aceitáveis, ainda deixavam a desejar:

“(...) Vi o filme dos Praiás. 350 Está bastante aceitável. O defeito sério a ser corrigido é a movimentação
brusca imprimida à máquina ao acompanhar a dança. A cena pula, o que prejudica muito a técnica do
filme, atrapalha a vista da gente e mesmo certa vezes, causa uma sensação desagradável próxima da
tonteira. Só por hoje. / Abraços / Oneyda.” 351

344
- Hemeroteca Doc. nº 9x - Diário Carioca (RJ), 8 de fevereiro
345
- Corresp.Doc.44: “1º Relatório...”, p.1.
346
- O aparelho cinematográfico Kodak utilizado pela MPF não realizava o registro sonoro mas apenas as imagens. Cabe
lembrar que em 1936, a etnóloga Dina Lévi-Strauss, em seu curso sobre Etnografia e Folclore, havia recomendado a
utilização de filme sonoro pois eles garantiriam “anotações perfeitas e simultâneas de cantos, danças, instrumentos (...)”. Vide
Capítulo I, ítens 5 e 5.1
347
- Não há nenhuma carta de apresentação redigida pelo pintor Cândido Portinari no Acervo Histórico da Discoteca Oneyda
Alvarenga.
348
- Corresp.Doc.31: De Luiz Saia a Mário de Andrade, 9 de fevereiro de 1938.
349
- Corresp.Doc.18: de Oneyda Alvarenga a Luiz Saia, 21 de fevereiro de 1938.
350
- A dança dos Praiás dos índios Pancarus, no sertão pernambucano, na vila do Brejo dos Padres, município de Tacaratu, foi
documentada entre os dias 11 a 13 de março de 1938.
351
- Corresp.Doc.24: de Oneyda Alvarenga a Luiz Saia, 28 de abril de 1938.
72

Partindo do Rio de Janeiro em 8 de fevereiro, a viagem do Itapagé à Vitória, a segunda escala do navio-vapor,
demorou 23 horas. 352 Durante o trajeto, os integrantes da Missão efetuaram diversas conversas com a tripulação do
navio, sempre buscando informações que poderiam ser de valia para coletas etnográficas posteriores.
Dessa forma, Antônio Ladeira registrou que na Bahia, em Salvador, a terceira escala do Itapagé, na “(...) Rua
Luiz Vianna em frente a espiríta Salamão (...)” [sic] havia algo de interesse “(...) para ser visto na volta (...)”. Segundo
esse informante não identificado, os integrantes deveriam também visitar em Salvador, uma “(...) imagem na Igreja do
Rosário (...)” e outra, esta de “(...) pedra pintada na igreja da Ordem 3ª do Carmo (...)”. Já Luiz Saia, em conversa com
o responsável pela perfumaria do navio-vapor Itapagé, também não identificado nominalmente, obteve a informação de
que na “(...) Sacristia da Catedral do Maranhão (...)” havia um “(...) Cristo de Marfim (...)” de interesse e que deveria ser
visitado. 353
A chegada a capital do Espírito Santo, em 9 de fevereiro, foi registrada por Luiz Saia em 3 fotografias, todas
procurando ilustrar aspectos gerais do porto de Vitória. 354 Sem contar com nenhuma personalidade significante no
estudo do folclore ou no mundo político, os integrantes da Missão aproveitaram o tempo realizando dois passeios por
essa capital: um de carro, onde foram gastos 15$000, e outro de barca, no valor de 12$000 réis. 355 A partida com
destino à terceira escala, em Salvador, Bahia, aconteceu no mesmo dia 9 de fevereiro, e a viagem foi realizada em 44
horas. 356
Na cidade de Salvador, em 11 de fevereiro, a equipe da Missão realizou algumas visitas às Igrejas da cidade.
Em uma delas, não identificada, Antônio Ladeira registrou a presença de “(...) um presépio com painel em madeira (...)”
onde haviam diversos componentes bastante tropicais: “(...) melancia, abacaxi, banana, maçã, vinho e um passarinho
no mesmo painel lateral (...)”, além de “(...) pandeiro, chapéu de palha, corneta e outros instrumentos possivelmente
musicais (...)”. 357 É interessante notar que, ao que tudo indica, não houve consulta a Martin Braunwieser para o
esclarecimento desses “instrumentos possivelmente musicais”.
Em outra igreja, na “(...) matriz da Rua dos Passos (...)”, Antônio Ladeira observou que na “(...) pintura do teto da
nave semi-circular (...)” figuravam “(...) elementos de arquitetura com mais 2 pavimentos e teto em perspectiva (...)”.
Ainda no mesmo edifício, Ladeira registrou que “(...) no painel central, há um carro de triunfo representando um papa
que leva na mão a eucaristia (...)”. 358 Já Luiz Saia, iniciou suas anotações sobre a arquitetura popular, seguindo seus
próprios interesses e as instruções específicas de Mário de Andrade. Dessa maneira, o Chefe da Missão anotou que
na “(...) Rua Dr. Seabra (perto do Largo chamado Sete portas) (...)” havia uma “(...) casa popular urbana de pau-a-
pique (...)”. Com perspicácia, Luiz Saia observou que “(...) pelos becos, verifica-se aqui [em Salvador] o uso interno de
adobe 359 na arquitetura popular (...)”. 360
Também em Salvador, a Missão comprou uma rede pela quantia de 20$000 réis. Esta rede, juntamente com
outra adquirida no dia 14 de março, na cidade de Caibeiras, Pernambuco, iria ser de grande valia para a equipe em
outras oportunidades durante a viagem. Segundo Luiz Saia, estas redes vieram a servir aos “(...) componentes [da
equipe] nos lugares... onde não haviam camas dormíveis (...)”. 361
Foi também em 11 de fevereiro, em Salvador, que os integrantes da expedição visitaram o Museu Nina
Rodrigues. Da instituição, a Missão recebeu a doação de 8 fotografias que documentam objetos de cultos
afrobrasileiros pertencentes ao seu acervo. 362 As demais fotografias realizadas pela equipe em Salvador,
documentam um ex-voto (milagre) na igreja da Penha (foto 597); as ruínas de uma igreja não identificada (foto 682); e
finalmente a Cruz do Pascoal (foto 691), que segundo Luiz Saia, estava localizada na “(...) Rua Deraldo Dias - fim da
Rua do Carmo (...)” que “(...) aparece atrás da Rua Joaquim Távora (...)”. 363
No mesmo dia 11 de fevereiro, sexta-feira, o Itapagé partiu com destino a sua quarta escala, na capital do
Estado de Alagoas. A viagem foi realizada durante 23 horas com o navio-vapor aportando no dia 12 de fevereiro na
cidade Maceió. 364

352
- Cad.de campo nº 1.C, p.170
353
- Cad.de campo 1.C, p.3-5.
354
- Documentos originais da MPF: Fotos nºs 556-558.
355
- Corresp.Doc.44: “1º Relatório...”, p.1.
356
- Cad. de Campo nº 1.C, p.170
357
- Cad.de Campo nº 1.C, p.3
358
- Cad.de Campo nº 1.C, p.4
359
- Segundo o Novo Dicionário Aurélio, adobe é um “pequeno bloco semelhante ao tijolo, preparado com argila crua, secada ao
sol, e que também é feito misturado com palha, para se tornar mais resistente; tijolo cru. (...)”. O grifo é nosso.
360
- Cad.de Campo nº 1.C, p.5
361
- Corresp.Doc.44: “1º Relatório...”, p.2.
362
- Documentos originais da MPF: Fotos nºs 521-528. Estas fotografias foram doadas já ampliadas em papel fosco, 12 X 18 cm.,
sem negativo.
363
- Cad.de Campo nº 1.C, p.5. Em relação ao acervo de fotografias realizadas e doadas à MPF, é necessário um esclarecimento:
nem todos os fotogramas e negativos foram identificados pela equipe da expedição ou no trabalho posterior de Oneyda
Alvarenga. Diversos fotogramas, apesar de originalmente numerados, estão classificados com a observação “sem
identificação”; por vezes sem indicação do local de coleta ou data precisa em que foi efetuado o registro. Devido a isso, é
possível que outras fotografias não identificadas tenham sido também realizadas na cidade de Salvador. Nesta reconstrução
cronológica, será apresentada somente a relação dos fotogramas positivamente identificados, isto é, com o registro completo
sobre o assunto, local e data de coleta.
364
- Cad.de campo nº 1.C, p.170
73

No porto da capital, o Itapagé realizou um desembarque de parte de sua carga. Prosseguindo em suas
anotações de interesse etnográfico, Luiz Saia observou que o trabalho de desembarque era “(...) feito por salveiro (...)”,
uma “(...) embarcação que usa vela (...)”. 365 Além disso, o Chefe da Expedição registrou em caderneta de campo que
os armazéns do porto de Maceió, chamados de “(...) trapiches (...)”, estavam destinados “(...) para guardar açucar e
peles de carneiro e cabras (grande criação deste aqui pelo interior) (...)”. 366 Luiz Saia obteve outras informações
etnográficas em conversas com o responsável pelo desembarque e com os trabalhadores portuários de Maceió.
Desses informantes, ele ficou sabendo que a “(...) Macumba em Maceió é interpretada como sendo feitiçaria
(...)” e que “(...) em Maceió dançam o samba e o coco nas festas dos Divino (...)”. 367 Também foi registrado por Luiz
Saia, segundo as informações fornecidas pelo pessoal do salveiro, quais danças e manifestações populares ainda
eram praticadas na capital das Alagoas: “(...) Samba / pastoris (Natal) / Chegança de marujo / Gandáia / Cabocolinho
(parece que desaparecido) / Cocô (a mais divulgada) / Bumba-meu-boi (parece que não tem) / A dança do Carnaval é
o Trovão (...)”. 368 Pelas informações, Luiz Saia pagou ao responsável do salveiro a quantia de 14$000 réis. 369
Em suas observações sobre a arquitetura, Luiz Saia anotou que em Maceió, “(...) nas residências, de um
pavimento surge larga ventilação nas bandeiras 370 das portas e janelas (...)”, anotando que “(...) o mesmo
procedimento surge também dentro, nas portas de ligação e para os quartos interiores (...)”. 371
Pela prestação de contas da Missão pode-se saber que em Maceió, Luiz Saia enviou um telegrama em 12 de
fevereiro, no valor de 10$500 réis. 372 No entanto, foi impossível identificar o destinatário, pois este documento não foi
localizado no acervo original preservado na Discoteca Oneyda Alvarenga. É, no entanto, lícito supor que este
telegrama tenha sido enviado para um dos folcloristas amigos de Mário de Andrade residente no Recife, com o objetivo
de comunicar a chegada da expedição ao Estado de Pernambuco, previsto para o dia seguinte.
Ainda em Maceió, em 12 de fevereiro, Luiz Saia comprou um jornal proveniente do Recife: a Folha da Manhã.
Neste periódico, um artigo assinado por “um observador social” anteciparia as dificuldades de ordem política e policial
que os integrantes da Missão viriam enfrentar na capital pernambucana, resultando em problemas para a
documentação fonográfica de rituais feitiçaria, então proibidos e perseguidos pela polícia recifense:

“O Delegado de investigações e capturas, dr. João Roma, empreendeu em larga escala, o saneamento
moral da cidade. Nesses últimos dias, tem dirigido a sua eficiente ação contra o baixo espiritismo, os
cultos exóticos, as seitas extravagantes que proliferavam, encharcando o ambiente suburbano do Recife.
De há muito, essa providência se fazia urgente. Em cada esquina ou beco dos arrebaldes, estava
instalada uma tenda de bruxaria, sortida dos mais bizarros apetrechos e roupagens simbólica dos oguns
e babalorixás que exploravam a ignorância, a crendice do povo. E essa exploração, assumia não raro, as
proporções da mais torpe e clamorosa expoliação. Remexendo os desvãos dessas cloacas e de todas as
373
abjeções humanas, as autoridades da Segurança Pública têm revelado coisas incríveis. (...).”

Entre as coisas incríveis reveladas pela Segurança Pública do Recife em suas batidas e diligências encontrava-
se Amaro Fundão, “(...) o discípulo mais amado do Bento Milagreiro, (...) que viveu por muitos anos nas cercanias de
Beberibe (...)”. Demonstrando o forte preconceito disseminado entre as classes dominantes em relação à raça e à
pobreza, o observador social descreveu Amaro Fundão como “(...) preto, estatura regular, magro, fisionomia comum,
angulosa, de negro desnutrido (...)”. Amigo dos agentes da polícia, o observador social procurou “(...) inquirir
ligeiramente o cafuso (...)” se surpreendendo com o que ouviu: “(...) Ignorante, dos pés à cabeça! mas dessa
ignorância larvada, que invade todo organismo, na jocosa expressão do Comissário Luiz Marques (...)”. 374
O apoio social para a repressão aos cultos de feitiçaria era manifesto e explícito. Além de ser sustentado, era
motivo de comparação negativa com a “inércia” que, segundo o observador social da Folha da Manhã, caracterizava o
mundo político do Recife anterior à decretação da Ditadura do Estado Novo em 1937:

“(...) Em Recife, no governo passado, a bruxaria era quase instituição oficial, cujos antros eram
assiduamente frequentados pelo grand monde, pelos papaes-ôdês da administração pública. E até
constituíam motivos de orgulho para o Estado (...). Nem se diga que o objetivo de quem assim se
acumpliciava com esses ajuntamentos fesceninos, era a observação e estudo desse trágico capítulo da
sociologia...
Prossiga, o Dr. Roma, na tarefa ingente de limpar a cidade desses pobres (...) porque eles não têm mais
o incitamento e solidariedade, a aliança da bruxa de Évora, que comparecia aos banquetes com três

365
- Cad.de Campo nº 1.C, p.7-9
366
- Cad.de Campo nº 1.C, p.9
367
- Cad.de Campo nº 1.C, p.7
368
- Cad.de Campo nº 1.C, p.8
369
- Corresp.Doc.44: “1º Relatório...”, p.1.
370
- Segundo o Novo Dicionário Aurélio, Bandeira é uma “folha ou caixilho, geralmente envidraçado, fixo ou basculante, colocado
no alto de portas e janelas para melhorar a iluminação e/ou ventilação de um espaço interno. (...)”. O grifo é nosso.
371
- Cad.de Campo nº 1.C, p.7-9
372
- Corresp.Doc.44: “1º Relatório...”, p.1.
373
- Hemereroteca Doc. nº 10x: “Uma Campanha Necessária”, Folha da Manhã, Recife (PE), 12 de fevereiro de 1938.
374
- idem ibidem.
74

grãos de milho no bolso do jaquetão e se vangloriava de ser intangível, por força do amuleto que trazia
preso ao colete, num dentinho de jacaré e uma figa de osso de gato defumado em araticum numa sexta-
feira, treze de agosto, à meia noite... Prossiga, sr. Delegado! A cidade toda está aplaudindo a sua
enérgica atitude. (...)”. 375

Com esse clima político-social pouco favorável às pesquisas etnográficas, particularmente dos rituais de
feitiçaria presentes no Recife, a Missão prosseguiu sua viagem com destino à capital pernambucana, a quinta escala
do navio-vapor Itapagé, no mesmo dia 12 de fevereiro. O trajeto foi realizado em 11 horas, com a equipe
desembarcando no Recife no dia 13 de fevereiro. 376

375
- idem ibidem.
376
- Cad.de Campo nº 1.C, p.170
75

2.2 - De 13 de fevereiro a 7 de março: Contatos com a oficialidade do Recife e primeiros


trabalhos efetivos de documentação etnográfica

Os integrantes da Missão de Pesquisas Foclóricas desembarcaram no Recife em 13 de fevereiro de 1938.


Como agradecimento aos serviços prestados pelo pessoal de bordo do Itapagé - que colaborou com a expedição
fornecendo inclusive algumas informações etnográficas -, Luiz Saia ofereceu a gratificão de 60$000 réis, dos quais
20$000 foram dados ao “fiel do navio”. 377
Na chegada ao porto da capital pernambucana, aguardavam o desembarque da equipe o escritor Ascenso
Ferreira e o jornalista Waldemar de Oliveira, personalidades significativas no mundo intelectual do Recife. Ascenso
Ferreira e Waldemar de Oliveira eram amigos de Mário de Andrade e se destacavam por valorizar e estudar
manifestações folclóricas brasileiras. Aconselhados por eles, cientes da delicada situação política local, além de “(...)
pezada as conveniências de representação da Missão (...)”, 378 os integrantes da expedição hospedaram-se no Hotel
Central, estabelecimento de prestígio na capital. Para o transporte da equipe ao hotel escolhido foram gastos 35$000
réis. 379 O equipamento técnico trazido pela expedição não foi desembarcado de imediato, mas somente no dia
seguinte, permanecendo enquanto isso a bordo do Itapagé.
No dia do desembarque no Recife, 13 de fevereiro, Luiz Saia tratou de enviar telegrama a Mário de Andrade
comunicando o local escolhido para a permanência da equipe durante a estadia na capital pernambucana: “(...)
Chegamos bem. endereço Hotel Central. Saia (...)”. 380 A escolha desse hotel foi considerada um ato político
importante, pois poderia colaborar como elemento de aproximação com as exigentes e conservadoras autoridades
políticas do Recife.
Em correspondência a Mário de Andrade, Luiz Saia comunicou que os integrantes da equipe estavam “(...)
politicamente instalados no Hotel Central (...)”, o que era uma “(...) granfinagem obrigatória porém de bons resultados
(...)”. 381 Os quatro componentes da expedição permaneceram instalados no Hotel Central até o dia 23 de fevereiro,
quando então se separaram para minimizar o “(...) bastante gasto do hotel (...)”. 382 Sendo um estabelecimento de
prestígio na capital pernambucana, as diárias de toda equipe no Hotel Central geravam gastos bastante altos,
sobrecarregando o orçamento da Missão.
A partir de 23 de fevereiro, “(...) foi resolvido que três componentes da Missão se localizassem numa pensão,
enquanto outro ficaria no Hotel... funcionando (...)”. 383 O escolhido para permanecer no Hotel Central foi Luiz Saia, o
Chefe da expedição. Os gastos com as contas de Braunwieser, Pacheco e Ladeira durante os 10 dias que
permaneceram no Hotel Central foram 849$500 réis, sendo também oferecido 70$000 réis como gratificação aos
empregados do estabelecimento. Para o transporte da bagagem dos três componentes da expedição para uma
pensão - a Pensão Cruzeiro - foram gastos 15$000 réis. 384
Naquele dia 13 de fevereiro, com a equipe instalada no Hotel Central, Luiz Saia procurou comprar os principais
jornais da capital. Este procedimento foi prática sistemática durante toda a viagem da expedição: os artigos da
imprensa viriam subsidiar os relatórios finais da expedição, além de procurar justificar os gastos e as dificuldades
enfrentadas pela Missão para a obtenção de registros etnográficos perante à direção do Departamento de Cultura, e
demais instâncias da Prefeitura de São Paulo.
Assim, no Diário de Pernambuco de 13 de fevereiro, um artigo noticiava a continuidade das diligências da polícia
do Recife contra os rituais de feitiçaria. Por essa reportagem, é interesssante notar a resistência dos cultos de feitiçaria
afrobrasileiros, que mesmo após a sua proibição, sendo perseguidos e caçados brutalmente, seus discípulos
encontravam-se em plena atividade, encontrando maneiras de escaparem das rondas da polícia:

“Fechados pela polícia vários xangôs - o que determinou a acão da Secretaria da Segurança ao Centros
de feitiçaria e de exploração da boa fé dos incautos
A Delegacia de Investigações, prosseguindo na campanha contra os xangôs, catimbós, cartomantes e
outros centros de exploração da boa fé popular, prendeu nestes últimos dias vários contraventores e
grande e variada cópia de material utilizado na feitiçaria.
Essa campanha recrudesceu depois que a delegacia se certificou de que os infratores, principalmente os
adeptos da seita africana [Xangô], se mostravam dispostos a burlar as determinações contidas na circular
do Secretario da Segurança, proibindo seu funcionamento.

377
- Corresp.Doc.44: “1º Relatório...”, p.1.
378
- idem ibidem
379
- idem ibidem
380
- Corresp.Doc.32: Telegrama de Luiz Saia para Mário de Andrade, 13 de fevereiro de 1938.
381
- Corresp.Doc.33 - de Luiz Saia a Mário de Andrade, 14 de fevereiro de 1938. O grifo é de Luiz Saia
382
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.1
383
- idem ibidem
384
- idem ibidem
76

Verificou a polícia que os Xangôs, depois da referida proibição, passaram a funcionar em sedes
diferentes e a altas horas da noite, sem o característico toque dos tambores. (...)” 385

Nas sistemáticas rondas policiais realizadas pela Secretaria de Segurança Pública recifense, eram apreendidos
e levados à Delegacia todos os objetos pertencentes aos cultos dispostos no terreiro, entre instrumentos musicais,
fetiches e imagens de santos cristãos. A presença de imagens cristãs nos centros de Xangô, fruto de sincretismo que
associa os santos católicos aos orixás e outras entidades místicas dos cultos afrobrasileiros, era considerada pelas
autoridades encarregadas das diligências policiais como “(...) um desrespeito à nossa tradição (...)”, pois os “(...) santos
das imagens do culto católico no Xangô, têm denominações extravagantes o que equivale a uma verdadeira
profanação (...)”. 386
A reportagem policial comunicava o fechamento de 22 Centros de xangô e catimbó recifenses. Alguns
sacerdotes desses cultos, citados nominalmente no artigo, foram posteriormente procurados pela equipe da Missão.
Com autorização prévia cedida pela Delegacia de Investigações e Capturas do Recife, a Missão obteve informações
sobre os cultos afrobrasileiros ao qual pertenciam. A equipe realizou inclusive a documentação etnográfica completa
de um desses Centros: o de Terreiro de Santa Bárbara, pertencente a Idida Ferreira Mulatinho, Guida Mulatinho, no
dia 26 de fevereiro de 1938. 387
Também no dia 13 de fevereiro, a Gazeta de Notícias, jornal diário de Fortaleza, Ceará, 388 e A Ordem,
periódico de Natal, Rio Grande do Norte, 389 reeditaram na íntegra a matéria jornalística anunciando a realização e a
partida da Missão, publicada pelo Diário Carioca, em 8 de fevereiro. A divulgação da presença da Missão de
Pesquisas Folclóricas no Nordeste foi gradualmente aumentando, sendo difundida pela região.
Ainda no dia da chegada, 13 de fevereiro, os integrantes da Missão iniciaram suas pesquisas. Por sugestão do
folclorista Ascenso Ferreira, 390 a Missão visitou os bairros de Paulista e Afogados, na periferia do Recife. No trajeto, a
Missão foi acompanhada por Waldemar de Oliveira, Ascenso Ferreira e Oscar Moreira Pinto, escritor e auxiliar político
do Interventor Agamenon Magalhães. 391 Nesses locais, a equipe teve a oportunidade de presenciar a apresentação
de maracatus - com os grupos de Maracatu do Cruzeiro do Forte e Maracatu Elefante e Leão Coroado. Sobre os
grupos de maracatu, Luiz Saia não gostou do que viu, julgando-os “(...) muito deformados e artificial de mistura com
partes de cabocolinho (...)”. 392 A manifestação folclórica de maior interesse etnográfico para Missão na capital
pernambucana era o Xangô, culto fetichista afrobrasileiro, então perseguido pela polícia. A cidade do Recife vivia uma
período de situação sócio-política bastante conturbada. Antevendo dificuldades maiores, Luiz Saia planejou uma visita
a João Pessoa, capital da Paraíba, com intenção de avaliar as condições políticas locais e em que medida as coletas
da Missão poderiam ser realizadas de forma mais adequada. Em correspondência a Mário de Andrade, Luiz Saia
afirmou que “(...) si não formos logo para a Paraíba, eu irei lá rapidamente (duas horas de jardineira) para verificar o
que é possível colher depois do Carnaval (...)”, 393 que realizar-se-ia entre 27 de fevereiro e 3 de março.
A decisão de encurtar a permanência em Pernambuco devido à delicada situação política - dificultando
especialmente a obtenção de autorização oficial prévia cedida pela polícia da capital, necessária para o registro dos
cultos de feitiçaria afrobrasileiros -, somente seria efetuada com o consentimento de Mário de Andrade. Em época
conturbada, não podendo expressar-se livremente por correspondência, Luiz Saia esquematizou - em carta para o
Turista Aprendiz de 16 de fevereiro, levada em mãos por pessoa de confiança indicada pelos amigos recifenses -, uma
maneira de obter a opinião do Diretor do Departamento de Cultura, sem causar maiores problemas junto às
autoridades do Estado Novo:

“(...) Na 6ª feira, dia 18 [de fevereiro], darei um pulo a João Pessoa. Si lá constatar que seja mais
produtivo, largaremos isto daqui para a volta e subiremos. Antes disso porém espero qualquer notícia
sua. Si você achar que as coisas devem ir do jeito que estou arranjando, dê um jeito de me passar um
telegrama em que esteja a palavra sim. Exemplo: Seu pai disse que sim. Sinão, isto é, si você achar que
devemos abandonar (...) e subir para a Paraíba, um telegrama com a palavra não me avisará disto.
394
(...)”.

Enquanto isso não ocorria, a equipe da Missão trabalhava na capital pernambucana. O dia seguinte à chegada
ao Recife, 14 de fevereiro, segunda-feira, foi bastante atribulado. Logo cedo, os integrantes da Missão cuidaram do

385
- Hemeroteca Doc. nº 11x, Diário de Pernambuco, 13 de fevereiro de 1938
386
- idem ibidem, 13 de fevereiro de 1938.
387
- No artigo, constam os nomes de Idida Ferreira Mulatinho (Guida), informante nº 49 da Discoteca Pública Municipal (DPM);
Apolinário Gomes da Motta, informante nº 64 da DPM; José Brito da Silva, informante nº 58 da DPM.
388
- Hemeroteca Doc. nº 13x - “Sobre a missão que virá ao Norte, estudar o nosso folk-lore musical” Gazeta de Notícias,
Fortaleza, CE, 13 de fevereiro de 1938.
389
- Hemeroteca Doc. 12x - “Para estudar o folklore musical do norte - virá ao norte u'a missão scientifica do Departamento de
Cultura de São Paulo” A União, RN, 13 de fevereiro de 1938.
390
- Corresp.Doc.44: “1º Relatório...”, p.1.
391
- Corresp.Doc.33: de Luiz Saia a Mário de Andrade, Recife, 14 de fevereiro de 1938,
392
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...”, p.1
393
- idem ibidem.
394
- Corresp.Doc.34 - de Luiz Saia para Mário de Andrade, Recife, 16 de fevereiro de 1938.
77

desembarque do equipamento técnico levado de São Paulo para as coletas etnográficas da expedição. Foram gastos
com isso 57$000 réis, entre despesas de desembarque (32$000) e gratificação a um carregador (25$000). 395
Em um primeiro instante, todo o material técnico foi levado para o próprio Hotel Central, apesar do local ser
julgado pouco apropriado por Luiz Saia. Em outra carta a Mário de Andrade, o Chefe da expedição comunicou que
aguardaria alguns dias, após o que procuraria outro local, talvez o “(...) Teatro Santa Isabel ou uma casa de grande
quintal (...)”, considerando ideal “(...) uma chácara (...)” onde os componentes da expedição teriam “(...) mais
facilidades para gravar (...)”. 396
Mais tarde, após negociações de Luiz Saia, o equipamento ficou definitivamente alojado durante a estadia da
equipe no Estado de Pernambuco, no Teatro Santa Isabel, cedido pelo seu responsável Samuel Campelo. 397 Nas
dependências do Teatro, a equipe da Missão gravou os cantos de carregadores de piano, entre 18 e 19 de fevereiro;
toadas de bumba-meu-boi, entre 21 e 22 de fevereiro; desafios cantados, em 24 de fevereiro; e finalmente as Toadas
de Xangô, em 26 de fevereiro. 398
Em 14 de fevereiro, Luiz Saia e os demais integrantes da expedição iniciaram os contatos oficiais com
autoridades políticas e policiais do Recife. Nesses encontros, com o intuito de obter particularmente a autorização
prévia para o registro etnográfico dos rituais de feitiçaria então proibidos, a Missão foi sempre acompanhada e
auxiliada de perto por Waldemar de Oliveira, Ascenso Ferreira e Mário Melo (Diretor do Instituto Histórico de
Pernambuco), todos amigos pessoais de Mário de Andrade.
Em carta ao Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, Luiz Saia relatou as primeiras atividades da
expedição aproveitando a oportunidade para contar - dissimuladamente devido à censura imposta aos Correios -, as
dificuldades com a situação política local enfrentada pela equipe da Missão:

“(...) Caro Mário. Abraços / Chegamos ontem no Recife, com uma viagem em ordem. O Ascenso e o
Waldemar estiveram na descida e vêm prestando a melhor assistência possível. O Mário Melo também
tem ajudado bastante.
399
(...) Já estive com o Manuel Lubambo que se dispôs a prestar toda a assistência possível. Entreguei
a ele a carta do Jorge de Lima, que, parece, foi mão na roda. Estive conversando com o interventor
[secretario da Fazenda Agamenon Magalhães] que idem demonstrou a melhor boa vontade. Se despediu
de mim dizendo que qualquer coisa pode ser pedida pela missão a qualquer das suas secretarias. Em
suma, as coisas vão bem encaminhadas nas rodas oficiais (...)”. 400

Na realidade, apesar de haver sido tratado cordialmente pelo interventor Agamenon Magalhães, Luiz Saia
rapidamente percebeu que a autorização para o registro da feitiçaria recifense não seria facilmente concedida. O
Chefe da Missão notou sem hesitar que as maiores dificuldades políticas seriam junto aos funcionários pertencentes
aos escalões menores do governo, pois o interventor Agamenon Magalhães isentou-se de uma participação efetiva em
favor dos trabalhos da Missão, designando um de seus secretários - Manuel Lubambo, editor da Revista Fronteiras -,
como seu representante. Em correspondência enviada através de amigo para evitar a censura aos correios, Luiz Saia
relatou a Mário de Andrade que

“(...) aqui no Recife foi absolutamente necessário entrar em contato com o mundo oficial. O Agamenon
me tratou muito bem porém parece que a política dele é deixar o barco ser levado pela corrente que
escolheu para as secretarias. Ele é mais ou menos um ponto morto que muito dificilmente poderá
resolver qualquer coisa diretamente [a] favor ou contra o nosso trabalho. Dos secretarios o que está mais
em contato com a batina é o Manuel Lubambo, com sua turma ultra-direita da Revista Fronteiras. Com a
carta do Jorge de Lima conversei com este último elemento do governo. Imediatamente ele me deu a
entender que si a Missão não quisesse ser embaraçada no seu trabalho aqui no Estado de Pernambuco
eu deveria me afastar o mais possível do Gilberto Freyre ou de qualquer outro elemento que não fosse da
turma de Fronteiras. Qualquer desobediência da minha parte em relação a este pedido prejudicaria
completamente o trabalho da Missão, pois os padres estão dando as cartas. Ora, esta turma católica é
ariana e erradíssima. Por imposição dela foram fechados os Xangôs e apreendido todo material das
401
seções (...)”.

A decisão de Luiz Saia para enfrentar a delicada situação política local foi procurar aproveitar ao máximo
qualquer ajuda oferecida pelo governo pernambucano à expedição, para depois, quando a Missão estivesse em sua
viagem de retorno a São Paulo, poder coletar da melhor maneira possível as manifestações restantes existentes no
Recife. Já a proibição oficial do encontro da Missão com Gilberto Freyre tentou ser contornada de maneira secreta.

395
- Corresp.Doc.44: “1º Relatório...”, p.1.
396
- Corresp. Doc.33: de Luiz Saia a Mário de Andrade, Recife, 14 de fevereiro de 1938.
397
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...”, p.2
398
- Cad. Discos nº 1 (Pacheco)
399
- Secretario da Interventoria de Pernambuco e editor da Revista Fronteiras, periódico mensal que ainda em fevereiro realizou
entrevista com integrantes da Missão. Hemeroteca Doc.55x.
400
- Corresp.Doc.33: de Luiz Saia a Mário de Andrade, Recife, 14 de fevereiro de 1938.
401
- Corresp.Doc.34: de Luiz Saia a Mário de Andrade, Recife, 16 de fevereiro de 1938.
78

402
Luiz Saia pretendia “(...) encontrá-lo discretamente e expor a ele a situação da Missão (...)”. No entanto,
antecipando-se ao Chefe da Missão, foi Gilberto Freyre quem foi ao seu encontro:

“(...) Esta carta já estava pronta quando tive a oportunidade de me avistar com o Gilberto. Ele me tratou
da melhor maneira possível e se dispôs a prestar assistência que a Missão querer dele. Compreendeu
perfeitamente a situação da Missão em relação a situação política e mesmo pediu que dissesse a você
que concorda plenamente com a solução que dei ao caso provisoriamente, colhendo tudo que for
possível com assistência oficial, e depois, na volta, colher o resto. Falou bem de você e se mostrou
interessado pelo trabalho do Departamento de Cultura. Por enquanto, portanto, estarei em contato
discreto com ele. Combinamos um jeito de trocarmos idéias sem que a Missão fique prejudicada com
isso. Ele pediu que mandasse um abraço dele a você, e dissesse que poderíamos contar com toda
403
colaboração possível.”

Luiz Saia, como representante do Departamento de Cultura de São Paulo e Chefe da expedição etnográfica, se
empenhou com afinco para obter junto às autoridades pernambucanas a autorização policial que tornasse viável a
realização de uma sessão de xangô especialmente para a equipe gravar em discos as linhas melódicas do ritual.
Enquanto as negociações com as autoridades policiais prosseguiam, a expedição ocupava-se em realizar o seu
primeiro trabalho de gravação.
Dessa forma, seguindo informações fornecidas por Waldemar de Oliveira e Ascenso Ferreira, Luiz Saia e os
demais integrantes da expedição contataram pessoas indicadas no Recife que, segundo se afirmava, ainda sabiam os
cantos de carregadores de piano, prática de música funcional que acompanhava o transporte do instrumento à casa do
proprietário. Com o desenvolvimento e o progresso provocando transformações no ambiente social, as melodias de
carregar piano estavam já à época da realização da Missão praticamente esquecidas. Mário de Andrade, em 1929, em
artigo publicado no Diário Nacional, chegou a priorizar a coleta musical desses cantos de trabalho praticamente
esquecidos, afirmando que

“(...) Até faz pouco, na Bahia, contam que os carregadores de piano cantavam junto uma melopéia ritual
quando transportavam o instrumento pela rua. Diziam que era pra não desafinar... Tenho forcejado pra
404
conseguir essa melopéia mas parece que ninguém não se lembra dela mais. (...)”.

Segundo as informações fornecidas pelos folcloristas recifenses, Luiz Saia deveria procurar “(...) carregadores
de piano na Capenga (...)” pois eles sabiam “(...) uns quatro cantos (...)”, mas poderiam também indicar outros
elementos para o trabalho de gravação. O encontro da Missão com os informantes populares de cantos de carregar
piano, deu-se no dia 17 de fevereiro, quinta-feira. Também na Capenga, “(...) localizada depois que passa o Parque do
Arupiu (...)”, 405 os componentes da Missão encontrar-se-iam com “(...) um velho sabedor de Fandango (...)”. 406 Esse
informante posteriormente forneceu para a equipe 3 fotografias documentando a dança dramática de que era
conhecedor. 407
Para realizar os registros fonográficos, fotográficos e cinematográficos a equipe da Missão procedeu, sempre
que possível, de maneira a garantir o melhor emprego da metodologia para documentação etnográfica, procurando
orientar seus registros no sentido da validade científica necessária. Assim, segundo Luiz Saia,

“(...) O processo utilizado para a colheita de peças tradicionais foi o seguinte: na medida do possível, os
pesquisadores [da Missão] assistiam a uma primeira representação da peça, colhendo então os informes
e indicações necessários para o controle da gravação, filmagem, fotagem e descrição delas. De posse
desses dados se procedia a uma meticulosa pesquisa oral depois da qual se fazia a colheita mecânica.
As linhas melódicas eram gravadas em faixas de discos de vários tamanhos. Cada disco pôde conter de
8 a 10 ou 11 faixas nos seus dois lados. Sistematicamente as melodias eram colhidas em duas, três ou
mais repetições, segundo a sua importância. Possibilitou esta técnica de gravação o [registro] do
processo tradicional dos cantadores que executam uma melodia repetindo-a um número indefino [sic] de
408
vezes (...)”.

A realização dos filmes cinematográficos visou documentar os aspectos gerais das coreografias folclóricas.
Dessa forma, “(...) a filmagem da coreografia foi executada de maneira a se poder conservar um documento onde
surgissem as partes essenciais das danças (...)”. Porém, cabe ressaltar que em algumas danças “(...) certos detalhes

402
- idem ibidem
403
- Corresp.Doc.34 - de Luiz Saia a Mário de Andrade, Recife, 16 de fevereiro de 1938.
404
- ANDRADE, M. de - “As melodias do boi e outras peças.”; preparação, introdução e notas de Oneyda Alvarenga. Duas
Cidades, 1987. Apêndice I p.369
405
- Cad.de Campo nº 1.C, p.16-17
406
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.1
407
- Documentos originais da MPF: Fotos nºs 499-501
408
- Corresp.Doc.52 - “Relató_io s/nº” p.1-2
79

como a repetição dos movimentos coletivos se deixou [de filmar] para anotar nas descrições (...)” escritas efetuadas
pela equipe da Missão. 409
No primeiro encontro da equipe com o grupo de carregadores de piano, em 17 de fevereiro, a Missão não teve a
oportunidade de assistir uma apresentação prévia das melodias. Mesmo assim, quase de maneira improvisada, a
equipe combinou com um grupo de 8 informantes - 7 cantores e 1 cantor solista - uma sessão de gravação que foi
marcada para o dia seguinte, 18 de fevereiro, sexta-feira, no Teatro Santa Isabel.
Em 18 de fevereiro pela manhã, os equipamentos técnicos da Missão, então ainda no Hotel Central, foram
transportados para o Teatro Santa Isabel. A quantia paga para o transporte foi 28$000 réis, dos quais 3$000 foram
dados como gorjetas àqueles que realizaram o trabalho. 410
Nesse dia 18 de fevereiro, as gravações realizadas pela equipe serviram para familiarizar os integrantes da
expedição com o aparelho Presto Recorder. A título de experiência e ajuste geral do equipamento, foi gravado
somente 1 disco de 12 polegadas, contendo 6 melodias. 411 Foram gastos nesse dia de trabalho o valor de 9$000 réis
como pagamento de aguardentes ao grupo de informantes populares. 412
Segundo depoimento de Martin Braunwieser, 413 a maior dificuldade desse primeiro dia de gravação foi
conseguir com que os informantes populares se recordassem das linhas melódicas, pois, acostumados a entoar as
cantigas somente quando estavam realmente carregando um piano, o grupo de informantes se ressentiu da ausência
do instrumento e da necessidade de caminhar, marcando o pulso rítmico das toadas. Com equipamento de gravação
montado no palco do Teatro Santa Isabel, a Missão solicitou ao diretor do Santa Isabel - Samuel Campelo - o
empréstimo do piano pertencente à casa de espetáculo, para auxiliar a memória dos cantadores.
Não obstante, ainda segundo depoimento de Braunwieser, houve a necessidade de ampliar a área destinada às
gravações para fora dos limites do palco, com o grupo de carregadores chegando inclusive a percorrer, de piano à
cabeça, a vizinhança do Teatro Santa Isabel. Nesse encontro com o grupo de carregadores de piano a Missão efetuou
11 fotografias, a maioria delas com o registro individual dos informantes. 414 Somente dois fotogramas documentam os
8 integrantes do grupo caminhando de piano à cabeça. 415
Em 19 de fevereiro, a expedição completou os trabalhos de gravação com o grupo de carregadores de piano,
documentando mais 19 melodias. Ao todo, foram registradas 25 toadas. 416 A relação das cantigas gravadas, os textos
cantados e os dados sobre os informantes foram registrados por Luiz Saia e Antônio Ladeira em 3 cadernetas de
campo. 417 Por essa colaboração, o grupo de carregadores de piano recebeu a quantia de 220$000 réis, dos quais
20$000 foram dados ao chefe e solista do grupo. 418
Em sua coluna Notas de Arte, publicada no Jornal do Comércio, o escritor Waldemar de Oliveira comentou esse
trabalho de coleta etnográfica da Missão, ressaltando a importância do acervo folclórico documentado pela equipe e o
descaso dos pernambucanos em registrar os cantos de carregadores de piano tão característicos do Recife:

“(...) Quando Luiz Saia aqui chegou, chefiando a comissão do Departamento de Cultura da
Municipalidade de São Paulo, disse-me, logo, que desejava colher uns cantos de carregadores de piano.
Ascenso [Ferreira] informou que o material era escasso. Discordei: ainda devia haver, por aí, muito velho
carregador se lembrando das ótimas coisas que cantavam em grupo, quando levavam um pleyel cascudo
por essas ruas afora.
Dito e feito. Saia me disse, ante-ontem, que já colheu 25 desses cantos. E estava radiante, com a
colheita!
E dizer-se que, aqui, nunca ninguém fez casos dessas coisas, tidas e havidas sem menor importância -
coisa velha e inútil que a tradição nunca mais tiraria do baú! Vêm agora esses rapazes e, norteados por
Mário de Andrade, caem de unhas e dentes, sobre essas coisas para nós absolutamente inúteis, senão
desprezíveis!
É possível que um dia, governo ou particulares interessados na fixação das nossas características
folclóricas, venham a atribuir aos cantos populares o valor que eles têm, sob tão diversos aspectos
419
(...)”.

Além dos trabalhos de gravação com o grupo de carregadores de piano, a equipe da Missão aproveitou a
oportunidade do contato direto com fontes populares para obter mais informações para a pesquisa etnográfica. Um
dos integrantes do grupo - José Brito da Silva - forneceu diversos dados sobre o culto de Xangô do qual era membro

409
- idem, p.1-2
410
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
411
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. op.cit.1993. p.41 Disco F.11, fons. 29-34
412
- Corresp.Doc.44. - “1º Relatório...” p.2
413
- 2º Depoimento de Martin Braunwieser concedido em 1990.
414
- Documentos originais da MPF: Fotos 93-104
415
- Documentos originais da MPF: Fotos 93 e 94
416
- Cad.de Campo “Discos nº 1” (Pacheco)
417
- Cads.de Campo nºs 2.A, p.65-93; 1.A, p.12-25; e 1.C, p.19-21. Essas informações foram transcritas e agrupadas por Oneyda
Alvarenga sob a catalogação de Texto 26 Pasta 3.
418
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
419
- Hemeroteca Doc.nº 33x: “Notas de Arte”, Jornal do Comércio, Recife, 26 de fevereiro de 1938.
80

ativo, indicando para a equipe da Missão a Mãe-de-Santo Guida Mulatinho, do Terreiro de Santa Bárbara, localizado
no bairro de Casa Amarela. De fato, dias após obter essa informação, Luiz Saia estabeleceu contato com Guida
Mulatinho, procurando obter informações a respeito do Xangô. Foi também através do grupo de carregadores de
piano, que a expedição obteve informações sobre Maria Plácida, dona de uma “(...) sede de cabocolinho (...)”
localizada na “(...) Rua 21 de abril nº 80 (...)”, no bairro de Afogados. 420
Nem mesmo um domingo foi dia de descanso para a Missão. Na verdade, desde sua partida de São Paulo, em
todas as oportunidades, a equipe da expedição aproveitou qualquer tempo disponível para efetuar anotações de
interesse etnográfico. Assim, 20 de fevereiro, domingo, Luiz Saia e os demais integrantes da equipe visitaram o Clube
Prato Misterioso e a Confeitaria Automática, obtendo pequenas informações de interesse. 421 Também nesse dia, a
Missão visitou a casa indicada de Maria Plácida, onde assistiram uma representação da dança-dramática do
cabocolinhos, ouvindo a “(...) descrição da guerra (...)” e notando a utilização curiosa da “(...) palavra toré (...)” naquele
contexto. 422
Em conversação com Maria Plácida e seus conhecidos, Luiz Saia ficou sabendo que esses informantes
conheciam também diversas linhas melódicas de bumba-meu-boi. Dessa maneira, após haver assistido uma sessão
prévia onde foram estabelecidos pela equipe as particularidades e necessidades técnicas para o registro fonográfico,
foi marcado para o dia seguinte, 21 de fevereiro, segunda-feira, novamente no Teatro Santa Isabel, uma sessão
especial de gravação.
Dessa maneira, em 21 de fevereiro, a Missão realizou as gravações de mais esta manifestação popular - o
bumba-meu-boi. Foram registrados 2 discos de diferentes dimensões - 12 e 16 polegadas -, contendo 9 toadas
gravadas ininterruptamente. 423 A relação e os textos das melodias foram registrados por Benedito Pacheco, Ladeira e
Luiz Saia em 3 cadernetas de campo. 424 Dos 5 informantes populares - Maria Plácida (voz), Maria Augusta (voz) e 3
outros não identificados (violão, ganzá e taró) -, foram efetuadas 5 fotografias. 425
Esse trabalho de gravação da equipe foi integralmente acompanhado pelo jornalista Waldemar de Oliveira, que
aproveitou a oportunidade para relatar o fato - com evidente entusiasmo -, para os leitores de sua coluna Notas de Arte
publicada no Jornal do Comércio. Vale a pena registrar aqui o artigo na íntegra pois o relato é minucioso, procurando
ilustrar o cotidiano da Missão e o gradual aperfeiçoamento metodológico e técnico dos componentes para o processo
de gravação e colheita etnográfica. Pode-se notar também a dimensão do impacto social causado pela realização da
expedição, seja por sua proposta nacionalista, seja pelos modernos equipamentos de gravação, em particular o
aparelho Presto Recorder:

“Quem penetrasse, por esses dias passados, na caixa do palco do Teatro Santa Isabel, assistiria um
espetáculo interessante: era a turma do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo,
colhendo material folclórico de Pernambuco. Um microfônio [sic] armado, no meio de palco; diante dele,
duas cantadoras; um pouco afastado, um negro beiçudo, agarrado a uma viola; ao fundo dois cidadãos,
um com um tambor, outro com um ganzá. Do outro lado, em cima de uma mesa improvisada, uma
porção de mecanismos, de fios, de pilhas, de “novidades”: era a máquina gravadora.
Luiz Saia vai de um lado para outro, explicando, acertando, reajustando o conjunto: está suado, cansado,
426
mas, não arreda pé... Ao seu lado, o Martin Braunwieser está de canhenho em punho, anotando uma
427
por uma das toadas. Os outros companheiros estão lá pegados com a maquinaria complicada,
milagre da engenharia moderna que permite encerrar, nos discos de ebonite [sic - acetato], as puras
vozes raciais que o tempo um dia apagará da memória dos homens.
E começa o trabalho, depois da explicações estafantes do Saia. São as toadas do Bumba-meu-Boi, bem
nosso, bem nordestino, bem pernambucano. As negras jogam em cima do microfônio as belas melodias
que nenhum lápis será capaz de fixar no pentagrama. O bombo corta a toada. O preto conta a sua
“história”... Elas voltam, monotonamente, as melopéias cansadas, de séculos adentro...
Para muita gente, o espetáculo é estranho, é singular: pois, vêm de longe para “isto” ?
É verdade. Estão gastando tempo e dinheiro. E mais tempo e mais dinheiro gastariam se fosse mais rica
a verdadeira mina que aqui descobriram nas vastas terras do nosso folclore. O material que os rapazes
do Departamento de Cultura de São Paulo estão colhendo constitui, realmente, um tesouro. Afinal eles
nada têm que ver com o fato de jamais termos feito caso desse tesouro. Se não sabemos explorá-lo, só
nos resta abrir-lhes as portas e agradecer o bem que nos vêm fazer, indicando-nos o valor dessas
428
jazidas”.

420
- Cad.de Campo 2.B, p.167
421
- Cad.de Campo 1.C, p.27
422
- idem, p.27
423
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.31. Discos F.14-15, fons.52-53
424
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 1.C, p.30-35 e 81-82 (Ladeira); Cad.de campo 2.A, p.3-45 (Saia)
425
- Documentos originais da MPF: Fotos 105-109
426
- Segundo o Novo Dicionário Aurélio, canhenho: s.m. caderneta
427
- Martin Braunwieser registrou apenas uma toada neste dia, publicada no Arquivo Folclórico da Discoteca Pública Municipal:
“Melodias Registradas Por Meios Não-Mecânicos.”, 1946, melodia nº 443, classificada como “pastoril”.
428
- Hemeroteca Doc. nº 31x: Valdemar de Oliveira, “Notas de Arte - A propósito...”, Diário do Comércio, Recife (PE), 23 de
fevereiro de 1938.
81

O trabalho de gravação das melodias de bumba-meu-boi conhecidas por Maria Plácida e seu grupo foi
finalizado somente no dia seguinte, 22 de fevereiro. Foram registradas mais 26 toadas de bumba-meu-boi, distribuídas
em 4 discos de 14 polegadas, totalizando 35 melodias em 6 discos. 429 Essa última sessão de gravação foi realizada
sem a presença de Luiz Saia, que no mesmo dia havia viajado para João Pessoa para ajeitar detalhes da viagem da
expedição à Paraíba, conforme havia previamente planejado. Como pagamento pela colaboração de Maria Plácida e
seus auxiliares, a Missão gastou 160$000 réis, entre o oferecimento de aguardentes, transportes e gratificações. 430
Em 22 de fevereiro, terça-feira, Luiz Saia viajou sozinho para João Pessoa, em rápida visita para se encontrar
com o escritor Ademar Vidal. Seu retorno ao Recife ocorreu em 24 de fevereiro. A intenção de Luiz Saia era acertar
detalhes, procurando realizar com o auxílio de Ademar Vidal os primeiros contatos oficiais da Missão com as
autoridades paraibanas. O objetivo maior era facilitar a viagem da equipe ao Estado, procurando garantir um ambiente
favorável para os trabalhos etnográficos. Além disso, Luiz Saia tratou de divulgar os trabalhos já realizados pela
Missão na capital pernambucana nos jornais de João Pessoa.
Assim, em entrevista publicada no jornal A União, por intermédio da influência de Ademar Vidal, Luiz Saia “(...)
disse que a sua visita agora à Paraíba era curta, pois deverá seguir hoje cedo para a vizinha capital do sul, a fim de
continuar o seu programa de ação ali, afirmando que tinha vindo preparar o ambiente para a próxima chegada a João
Pessoa da Missão de Pesquisas Folclóricas o que se realizará logo depois do Carnaval (...)”. 431
Luiz Saia procurou demonstrar pela entrevista concedida em João Pessoa que os trabalhos da expedição em
Pernambuco caminhavam muito bem, com os resultados até então obtidos no Recife sendo considerados mais do que
satisfatórios. Para isso, não titubeou em super-valorizar as gravações efetuadas, procurando talvez estimular antigas
rivalidades entre Paraíba e Pernambuco pela primazia cultural do Nordeste. Além disso, o chefe da Missão aproveitou
a oportunidade para relatar os futuros compromissos da expedição, afirmando que

“(...) a Missão já havia conseguido muita coisa interessante para o Departamento de Cultura de São
Paulo, inclusive uma vasta documentação sobre os Xangôs pernambucanos, um material abundante
sobre o canto de carregadores de piano, hoje já em declínio, canções do “bumba-meu-boi”, estando já
quase pronto tudo o que há em Recife sobre “Maracatus”, “Cheganças”, “Cabocolinhos” e outros blocos e
ranchos tipicamente regionais que abrilhantam excepcionalmente o carnaval de Pernambuco.
O Chefe da Missão de Pesquisas Folclóricas declarou que pretende ir até Águas Belas, onde
cinematografará e gravará os “Torés”, dança religiosa e guerreira dos índios que ainda existem naquela
432
parte do território desse Estado do Sul. (...)”.

Em 23 de fevereiro pela manhã, Luiz Saia retornou ao Recife, encontrando-se com seus companheiros de
viagem então já instalados na nova pensão - a Pensão Cruzeiro - com o intuito de minimizar os gastos da equipe.
Imediatamente, o Chefe da Missão telefonou ao Delegado João Roma, da Delegacia de Investigações e Capturas, e
soube que as conversações com as autoridades locais, intermediadas por Ascenso Ferreira e Waldemar de Oliveira,
haviam dado resultado positivo. A Missão de Pesquisas Folclóricas poderia então realizar a documentação etnográfica
completa do culto do Xangô recifense, além de poder resgatar da Delegacia qualquer dos objetos ligados ao culto,
recolhidos durante as diligências diárias da polícia.
No dia 24 de fevereiro, Luiz Saia retirou na Delegacia de Investigações e Capturas do Recife um cartão redigido
por João Roma, onde o Delegado, “(...) atendendo a solicitação do Departamento de Cultura da Municipalidade de São
Paulo (...)”, permitia o “(...) funcionamento, amanhã, [25 de fevereiro] de um xangô, para efeito de filmagem e gravação
433
(...)”. O momento era oportuno, pois a polícia recifense prosseguia com ferocidade a repressão aos cultos de
feitiçaria.
Como exemplo, em 21 de fevereiro, “(...) continuando as diligências sobre o fechamento de casas onde se
praticam o catimbó e o xangô, o comissário Alcindo Maranhão, em companhia dos investigadores nºs 176 e 190, à
noite de ontem, reiniciou esse serviço, prendendo os orientadores do baixo espiritismo e fazendo apreensão de vários
objetos (...)”. 434 A batida policial ocorreu no bairro de Casa Amarela, o mesmo local onde estava sediado o Terreiro de
Santa Bárbara, de Guida Mulatinho, futura colaboradora da Missão.
Na noite do dia 21, no entanto, o alvo era o Terreiro denominado por Adoradores das Trevas. Nesse centro, os
investigadores localizaram sua chefe Maria da Conceição, alcunhada por Sinhá, no momento em que ela estava
manifestada. Sem tempo para se recompor do transe, todos os objetos do culto foram apreendidos sem maiores
dificuldades:

“(...) Espalhadas pelos quatro cantos da sala das sessões, viam-se diversas imagens de santos antigos,
com as verônicas e os braços dilacerados e queimados, incluindo um Cristo crucificado, que tinha sob um

429
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.31-32. Discos F.15-18, fons.63-88
430
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
431
- Hemeroteca Doc. 32x - “Visitou ontem, esta capital, o Chefe da Missão de Pesquisas Folclóricas de São Paulo”, A União,
João Pessoa, 24 de fevereiro de 1938.
432
- idem ibidem.
433
- Corresp.Doc, s/nº, 24 de fevereiro de 1938.
434
- Hemeroteca Doc. nº 28x: “A polícia por dentro e por fora.” Diário da Manhã, Recife, 22 de fevereiro de 1938.
82

dos braços uma ave preta, sem olhos e um patuá pendurado na cruz indicando certamente um trabalho
feito contra alguém... Mais adiante, (...) diversas garrafas contendo baratas e outros insetos mortos,
grande quantidade de cobras secas e ervas desconhecidas para o fabrico de “despachos
especializados”, de onde se exalava um acentuado mal cheiro. (...)” 435

Temendo dificuldades maiores com as autoridades policiais, a Missão procurou rapidamente a mãe-de-terreiro
Guida Mulatinho, providenciando tudo para a realização de sessão de Xangô ali mesmo no bairro de Casa Amarela,
em 25 de fevereiro, sexta-feira, segundo autorização do Delegado João Roma. Nesse primeiro encontro, como prática
sistemática da equipe somente seriam “(...) anotados os informes e indicações necessários para o controle da
gravação, filmagem, fotagem e descrição (...)” do ritual. 436
Ainda em 24 de fevereiro, após visita à Delegacia de Investigações e Capturas para a seleção de objetos de
Xangô que seriam doados ao Departamento de Cultura de São Paulo, Luiz Saia adquiriu duzentas etiquetas para a
identificação do material, pagando 14$000 réis. 437 Além disso, a equipe da Missão aproveitou a presença do cantador
Sezário José de Ponte no Recife, gravando no Teatro Santa Isabel um disco de 12 polegadas contendo alguns
desafios, martelos, colcheias e outras toadas conhecidas por ele. 438 Com o cantador foram gastos 39$000 réis,
incluindo-se o pagamento pela colaboração, aguardentes durante a gravação, além de transporte ida e volta. 439
Em 25 de fevereiro, com autorização prévia do delegado João Roma, o terreiro de Guida Mulatinho funcionou
especialmente para a Missão, ocorrendo no entanto, de maneira imprevista, problemas com a polícia. A repressão
policial à feitiçaria atingira o patamar máximo. Ao contrário do combinado, alguns investigadores em ronda ignorando a
ordem expressa expedida pelo Delegado, interromperam a sessão especial de Xangô provocando pânico entre os
adeptos do culto. Segundo relato de Martin Braunwieser, alguns deles chegaram inclusive a tentar escapar da
diligência policial pulando pela janela ou correndo para a porta dos fundos. Os informantes populares somente se
acalmaram quando Luiz Saia, em conversa com os policiais em ronda, mostrou a autorização que permitia a
realização da sessão especial de do culto de feitiçaria. 440
Apesar do contratempo, os integrantes da Missão efetuaram diversas anotações para controle de
documentação, contratando em seguida os componentes do grupo de Xangô para realizar trabalho de gravação no
Teatro Santa Isabel, no dia seguinte, 26 de fevereiro, sábado. As observações do culto efetuadas no dia 25 foram
anotadas ora por Ladeira ora por Luiz Saia em somente uma caderneta de campo. 441 Nesse primeiro contato, Luiz
Saia adiantou a quantia de 30$000 réis a Guida Mulatinho como parte de pagamento. Também talvez como estratégia
de aproximação com os informantes populares, o Chefe da Missão ofereceu 5$000 para um dos integrantes do grupo
que estava machucado. 442
Em 26 de fevereiro, a equipe da expedição realizou a gravação das toadas de Xangô da mãe-de-santo Guida
Mulatinho do Terreiro de Santa Bárbara. Foram registradas no total 120 melodias, distribuídas 7 discos de 16
polegadas. 443 Além de canto solista com respostas corais, acompanhavam o grupo vários intrumentos de percussão:
3 engomes - espécie de atabaque -, 1 agogô e 1 xeré, tipo de chocalho. Do Xangô de Guida Mulatinho foram
efetuadas 14 fotografias, das quais 12 registram individualmente cada informante popular e 2 com uma vista geral de
todo o grupo. 444 Foram gastos com o grupo, a quantia de 377$500 réis, entre o pagamento pela colaboração
(350$000), além de aguardentes, águas, lanches e cigarros para os cantadores (27$500). 445
Também em 26 de fevereiro, um pouco depois da gravação das toadas de Xangô de Guida Mulatinho, Luiz Saia
escreveu uma longa carta a Mário de Andrade onde procurou relatar os trabalhos etnográficos realizados pela equipe.
Também nessa missiva, Luiz Saia fez um relatório da situação política vivenciada pela Missão até aquela data,
apresentando alguns problemas técnicos surgidos com a prática da coleta de informações. Notar-se-á, nas entrelinhas
desse documento, que Luiz Saia esforçou-se em demonstrar a Mário de Andrade que vinha desempenhando a função
de Chefe da expedição de maneira satisfatória, procurando mostrar seu preparo metodológico e bom manejo na
condução dos problemas políticos em favor da expedição:

“(...) até agora gravamos um total de 213 linhas melódicas distribuídas em 15 discos, alguns pequenos
e outros grandes. O material colhido está repartido entre toadas dos carregadores de piano, bumba-meu-
boi, martelo, mourão, desafio (poucos destes três últimos exemplos) e toadas de Xangô. A fidelidade
folclórica deste material está comprovada pelos conhecedores daqui. As toadas do pessoal do piano
foram gravadas com ritmo condicionado às passadas deles. Ficaram um dia inteiro carregando piano no
teatro Santa Isabel. As toadas de bumba-meu-boi me foram garantidas pelo Samuel Campelo, Ascenso

435
- idem ibidem
436
- Corresp.Doc.52 - “Relató_io s/nº” p.1-2
437
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...”, p.3
438
- cf CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993.
439
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.3
440
- Depoimento de Martin Braunwieser, 1988.
441
- Cad.de Campo nº 1.A, p.33-139.
442
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.3
443
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. Discos F.20-F.26, fons.94-107.
444
- Documentos originais da MPF: Fotos 110-123
445
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...”, p.3
83

[Ferreira], Waldemar de Oliveira e outras pessoas daqui. As toadas de viola parece que só tem valor
como documento; nada de beleza. Nas do Boi e dos carregadores de piano algumas são de grande
beleza.
Quanto ao Xangô, apesar da situação completamente desfavorável imperando aqui, pois foram fechados
os terreiros e apreendido o material do culto, consegui arrumar um no bairro mucambeiro de Casa
Amarela. Para isso, arrumei amizade com o Delegado de Polícia que também ofereceu pro
Departamento grande parte do material apreendido. Coisa de vasto valor. Acho que a gente pode
considerar o Museu [Folclórico da Discoteca Pública Municipal] com alguma riqueza em matéria de
material de Xangô [sic]. Coisa pra 300 peças diferentes; disso pra mais. Ainda não terminei a
classificação que está sendo feita à noite e dá grande trabalho.
Assisti a cerimônia mais ou menos completa. Tomei nota de todas as toadas e das situações
características. Com o mesmo pessoal que cantou e funcionou na sessão, arrumamos hoje a cantoria
para gravar. Uma trabalheira dos diabos pois o pessoal estava, no começo, cismado que era da polícia.
Valeu a pena pois algumas, muitas mesmo, das linhas melódicas me pareceram de primeiríssima ordem.
Estive em João Pessoa com o Ademar Vidal. Parece que aí a nossa situação vai ser de primeira ordem
pois quasi tudo já está arrumado. O Ademar é um bichão e me pareceu o que milhor compreendeu com
inteligência como devemos ser auxiliados. Os cabocolinhos de lá já estão arranjados para depois do
Carnaval. Gente de lá, arrumada pelo Ademar se prontificou a ceder automóveis e demais coisas
necessárias para o nosso trabalho. O bom é que eles paraibanos estão querendo que a Paraíba dê mais
material que os outros Estados. Alí seremos certamente recebidos oficialmente pelo Governo.
(...)
A respeito da gravação dos torés o negócio está entre irmos num caminhão que estou conseguindo com
o governo [pernambucano] ou irmos de trem até mais perto, possivelmente com passagem grátis
446
oferecida pelo Diretor da G.W. Arranjo do [Cândido] Portinari. O Mário Melo certamente irá conosco
447
(...)”.

Em 27 de fevereiro, domingo de Carnaval, Luiz Saia e os demais componentes da Missão procuraram conhecer
os grupos de maracatu e cabocolinhos em atividade durante a festa, dançando nas ruas do Recife. A intenção primeira
era cinematografar as coreografias e detalhes das danças. De um grupo de cabocolinhos não identificado, o Chefe da
expedição adqüiriu nesse dia parte da vestimenta característica pela quantia de 6$000 réis, comprada para o Museu
Folclórico da Discoteca Pública Municipal. 448
Durante a tarde de 27 de fevereiro, Luiz Saia e Martin Braunwieser encontraram-se com Mário Melo, amigo de
Mário de Andrade e diretor do Instituto Histórico de Pernambuco, com o objetivo de tratar das providências e
necessidades para a viagem à aldeia de Águas Belas, distante cerca 300 quilómetros do Recife. Mário Melo se
comprometeu a ajudar a Missão em sua viagem ao interior pernambucano, onde estavam os últimos remanescentes
indígenas do Estado, conhecedores da dança do Toré, manifestação folclórica cuja documentação fôra recomendada
por Mário de Andrade aos componentes da Missão. 449 Como será visto adiante, a viagem ao município de Águas
Belas acabou não ocorrendo.
Durante esse período de Carnaval, entre 27 de fevereiro a 3 de março de 1938, as atividades de campo da
Missão estiveram bastante diminuídas. Na realidade, com exceção da realização de um pequeno registro
cinematográfico - em que aparecem a dança do frevo, o grupo de cabocolinhos chamado Taperaguá (de Maria
Plácida) e o maracatu do Leão Coroado 450 -, Luiz Saia e os demais componentes da Missão dedicaram-se quase em
tempo integral à classificação dos mais de 500 objetos de Xangô doados ao Departamento de Cultura pelo Delegado
João Roma, da Delegacia de Investigações e Capturas do Recife.
Para melhor identificação dos objetos do culto, Luiz Saia entrou em contato com Apolinário Gomes da Mota - um
dos mais conhecidos babalorixás do Recife 451 -, além de Guida Mulatinho, mãe-de-terreiro e Ialorixá. Posteriormente,
entre os 16 de 26 de março, o Chefe da Missão contou com a colaboração de dois outros informantes de Xangô:
Antônio Romão e José Brito da Silva, que já conhecia os integrantes da Missão, pois participara das gravações
efetuadas com o grupo de carregadores de piano.
O trabalho de classificação dos objetos foi realizado no Hotel Central, onde Luiz Saia permanecia hospedado,
porém, a identificação do acervo pelos informantes populares ocorreu no Teatro Santa Isabel, para onde depois foi
levado o material de Xangô após ter sido retirado da Delegacia do Recife. A identificação dos fetiches de Xangô
somente foi finalizada após o retorno da Missão de sua viagem ao interior de Pernambuco, entre os dias 16 e 26 de
março. A julgar pela relação elaborada por Luiz Saia, onde prestou contas ao Delegado João Roma e pediu a

446
- G.W. - Great Western of Brasil Railway Company Limited.
447
- Corresp.Doc.35 - de Luiz Saia a Mário de Andrade. Recife, 26 de fevereiro de 1938.
448
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.3
449
- Vide capítulo II, item 3
450
- Documentos originais da MPF: Filme nº 5.A, P&B, silencioso, 0'48” (“Carnaval do Recife”)
451
- Oneyda Alvarenga, na coleção Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro - Xangô.”, vol.I, 1948, destinada a subsidiar
as audições dos discos relativos ao ritual, citou 3 obras que fazem menção ao Babalorixá: 1) FERNANDES, Gonçalves -
“Xangôs do Nordeste.”, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1937; 2) BASTIDE, R. - “Contribuição ao Estudo do Sincretismo
Católico - Fetichista.” 3) RAMOS, A. - 'O Negro Brasileiro.”, 2.ed., Cia Editora Nacional, 1940;
84

autorização para remessa do material à São Paulo, o trabalho de identificação e classificação foi intenso, pois a
coleção reunia cerca de 500 peças:

“Recife, 4 de março de 1938 / Ilmo. Sr. Dr. João Roma, / Cordiais Saudações. / Com a presente tomo a
liberdade de enviar-lhe uma relação das peças que foram recolhidas no edifício da Delegacia de Polícia
desta cidade, de acordo com nosso entendimento verbal.
A relação que segue anexa não inclui a totalidade das peças retiradas, pois parte das mesmas ficam sob
a guarda do Sr. Dr. Samuel Campelo que apresentará também uma relação. A indicação abaixo inclui
somente as peças fichadas e anotadas por mim e que aguardam autorização de remessa para São
Paulo.
- 220 peças de ferro usadas no culto de xangô. Estas peças de ferro foram identificadas pelo babalorixá
Apolinário. Se ligam ao culto de Ogum e Odé.
- 17 peças diversas. Neste número estão incluídos rabichos, ossos, quinquilharias usadas no culto de
xangô. Foram identificados pelo babalorixá Apolinário e [pela] Ialorixá Guida.
- 10 peças de metal. Aqui estão incluídos alguns instrumentos musicais, quadros de santo católico,
abebés, resplendores e um resplendor [sic]. Identificados pela Guida e Apolinário.
- 60 peças de madeira. Aqui se incluem espadas, abebés, pilões, setas, facões, sapatos de imagens,
bancos de pegí e um chifre de madeira.
- 62 peças pequenas de cerâmica, identificadas pelo babalorixá Apolinário como “brinquedos de orixá”.
- 43 “quartinhas” [sic] nomeadas com indicações de orixás. Identificadas pelo babalorixá Apolinário e
Ialorixá Guida.
- 6 alguidares de madeira e cerâmica. Identificados por Apolinário e Guida.
- 11 imagens de santos católicos apreendidos [pela polícia] nos pegís de xangô.
- 30 peças de papel escrito, referentes a pedidos a pais-de-santo etc.
- 30 peças de roupa dos filhos-de-terreiro. Identificação feita por Apolinário e Guida.
- 2 mestres de pegí do culto de xangô.
Todo o material fichado pela Missão comporta, portanto, 491 peças.
Sem mais, aguardando suas prezadas ordens e desde logo agradecendo toda a gentileza dispensada à
Missão Paulista de Pesquisas Folclóricas, subscrevo-me infinitamente grato e ao dispôr de VSa./Luiz
452
Saia.”

Além de colaborar na identificação e classificação dos objetos, José Brito da Silva e o babalorixá Apolinário
Gomes da Mota forneceram à equipe da Missão diversos esclarecimentos sobre cantos, coreografia e o culto de
Xangô, doando inclusive documentos em papel sobre aspectos da feitiçaria local. 453 Durante o trabalho de
identificação dos objetos, a Missão se responsabilizou pelos gastos com alimentação e transporte dos colaboradores,
pagando inclusive uma gratificação pelas informações recebidas. 454
Em 1º de março, terça-feira de Carnaval, Luiz Saia encontrou-se novamente com Mário Melo, acompanhado
dessa vez, pelo funcionário da Interventoria pernambucana e também escritor, Oscar Moreira Pinto. Sendo
personalidade significativa no mundo intelectual de Pernambuco, Mário Melo procurou interceder junto ao Governo
pernambucano em favor das necessidades material da expedição em sua planejada viagem ao interior do Estado.
Nesse encontro, durante uma ceia oferecida por Luiz Saia em que foram gastos a quantia de 132$000 réis, 455 o Chefe
da expedição ficou sabendo da possibilidade de conseguir o empréstimo de um caminhão, cedido pela Prefeitura do
município de Tacaratu, cerca de 500 quilómetros distante do Recife, localidade razoavelmente próxima à aldeia de
Águas Belas, onde deveriam registrar o Toré dos índios. Além dessa valiosa ajuda, a Missão poderia obter cartas de
apresentação da equipe, assinadas pelo interventor Agamenon Magalhães ou por outra personalidade significante do
mundo político pernambucano, recomendando e indicando a equipe da expedição aos prefeitos das cidades do
interior.
Entre 3 e 7 de março, Luiz Saia e os demais componentes da Missão iniciaram os preparativos para a viagem
ao interior. Como primeiras providências, foram comprados diversos tipos de materiais que poderiam ter utilidade
durante o trajeto: 1 quilo de arame (4$500), 1 pacote de naftalina (3$000), 1 funil (2$000), saco de estopa (3$500), 1
456
mobiloil para automóvel (38$700). Durante esse período, foram acertadas todas as contas com o alojamento da
equipe em sua estadia na capital, referentes até aquela data. Luiz Saia procurou também gratificar todos aqueles que
colaboraram com os trabalhos da expedição.
Assim, diárias de Luiz Saia no Hotel Central entre 23 de fevereiro a 7 de março somaram a quantia de 968$000
réis. Além disso, o Chefe da expedição gastou 75$000 dados como gorjetas aos funcionários do estabelecimento. A
permanência dos 3 outros integrantes da expedição na Pensão Cruzeiro - escolhida para minimizar os gastos da
equipe -, custou 490$000 réis dos quais 11$800 foram oferecidos como gratificações. 457

452
- Corresp.Doc. s/nº - “Relação de peças de Xangô”, Recife, 4 de março de 1938
453
- Cad.de Campo 1.B, p.1-93; 1.C, p.52-54; 2.B, p.23-37. Acervo Histórico da DPM: T59P7, T63P7, T45P4, T56bP6, T57P6.
454
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.3-4
455
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.3
456
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.3-4
457
- idem, p.3-4
85

Durante esse período, a equipe visitou diversas vezes o bairro de Casa Amarela, indo mais de uma vez à casa
de Maria Plácida, informante de cabocolinhos, bumba-meu-boi, e como será mais adiante, também de catimbó. Dela,
Luiz Saia comprou para o Museu Folclórico da Discoteca Pública uma vestimenta completa de cabocolinhos, pela qual
pagou a quantia de 110$000 réis. 458 O relacionamento do Chefe da Missão com a informante se estendeu por mais
tempo, chegando inclusive a ser estabelecido um certo grau de amizade.
Em 3 de março, após ter finalizado os trabalhos de gravação no Teatro Santa Isabel, Luiz Saia teve contato com
outro informante popular - Vicente Pereira Carvalho - um mestre de fandango (dança dramática). Dele recolheu, sem
realizar o registro fonográfico, dados gerais sobre a manifestação popular, como letras das toadas cantadas ou a
estrutura cênica e coreográfica do fandango, 459 realizando também registro fotográfico do informante. 460 Pela
colaboração, o Chefe da Missão pagou 30$000 réis, além de ter oferecido alimentação ao cantador (11$000). 461
Em 5 de março, a Missão recebeu a doação oficial da totalidade de objetos de Xangô recolhidos na Delegacia
de Investigações e Capturas. O precioso material etnográfico poderia agora ser remetido para São Paulo,
incorporando-se ao acervo da Discoteca Pública Municipal, onde seria estudado e divulgado:

“(...) Ilmo. Sr. Chefe da Missão de Pesquisas Folclóricas, / Com o intuito de facilitar à missão que chefiais
elemento e dados referentes ao culto de xangô, tomo a liberdade de oferecer-vos as quinhentas e
dezenove peças por cujo estudo e ordem, vos interessastes. / Aproveito a oportunidade para renovar
meus protestos de alta estima e distinta consideração. João Inácio Ribeiro Roma - Delegado.” 462

Após o término do trabalho preliminar de identificação e classificação desses fetiches, ocorrido somente após o
retorno da expedição do interior de Pernambuco, além de seu devido acondicionamento para viagem, a coleção de
fetiches de Xangô e outros objetos recolhidos pela Missão foi remetida em fins de março para São Paulo.
Em 7 de março, Luiz Saia cuidou da última providência necessária para a viagem ao interior de Pernambuco.
Acompanhado pelo escritor Ascenso Ferreira, Luiz Saia obteve do governo pernambucano as prometidas cartas de
apresentação da Missão aos prefeitos das localidades que seriam percorridas pela expedição.
Dessa forma, a Missão conseguiu 3 cartas de apresentação, redigidas para os prefeitos das cidades de Bom
Conselho, Garanhuns e Águas Belas. Ao contrário do previsto, esses documentos não foram assinados pelo próprio
Interventor Agamenon Magalhães, mas sim por um funcionário do segundo escalão - Arnóbio Tenório Wanderley -
Secretário do Governo pernambucano:

“(...) Em nome do sr. Interventor Federal, apresento-vos o dr. Luiz Saia, que vem fazendo em nosso
Estado observações de caráter cultural e de real interesse público. / Peço-vos facilitar, nesse município, o
463
êxito de sua missão. / Cordialmente, Arnóbio Tenório Wanderley - Secretário.”

Com todos os detalhes acertados, a Missão de Pesquisas Folclóricas partiu do Recife em 8 de março de 1938,
terça-feira, com passagens de trem oferecidas pela Great Western of Brasil, com destino ao município de Barão do Rio
Branco, onde encontrar-se-iam com Mário Melo - diretor do Instituto Histórico -, viajando em seguida para a cidade de
Tacaratu, em pleno sertão pernambucano.

458
- idem, p.3-4
459
- Cad.de Campo 1.B, p.51; 1.C, p.55-80. Acervo Histórico DPM: T10P1, T11P1.
460
- Documentos originais da MPF: Foto 124, inf.66
461
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.3
462
- Documentos originais da MPF - “Ofício nº 317 da Secretaria de Segurança Pública - Delegacia de Investigações e
Capturas.”, Recife, 5 de março de 1938.
463
- Documentos originais da MPF - Cartas de apresentação Docs. 8-10. Recife, 7 de março de 1938.
86

2.3 - De 8 a 15 de março: a viagem ao interior de Pernambuco

A viagem ao sertão pernambucano teve início no dia 8 de março, às 6 horas da manhã, quando os integrantes
da expedição partiram de trem com destino a Barão de Rio Branco, atualmente município de Arco Verde. As
passagens foram doadas pela Great Western of Brasil, em negociações realizadas pelo pintor Cândido Portinari junto à
diretoria da empresa sediada no Rio de Janeiro. 464 Durante o trajeto, efetuado em aproximadamente 10 horas de
viagem, a composição realizou rápidas escalas nas estações dos municípios de Vitória, Gravatá, Bezerros, Caruaru,
São Caetano, Belo Jardim, Pesqueira, e finalmente, Barão de Rio Branco (Arco-Verde). O desembarque da Missão
ocorreu às 16 horas. 465
Na chegada a Barão de Rio Branco, a equipe da Missão encontrou-se com Mário Melo, então acompanhado
pela cinegrafista brasileira Doralice Avelar, a quem o Diretor do Instituto Histórico de Pernambuco havia prometido
companhia em uma visita à cachoeira de Paulo Afonso. 466
A estadia da equipe em Barão do Rio Branco foi apenas uma escala para a viagem até o município de Tacaratu,
próximo da aldeia de Águas Belas e ao lado da aldeia de Brejo dos Padres, onde viviam os remanescentes dos índios
Pancarus, conhecedores de manifestação folclórica de interesse etnográfico - os praiás. 467
O transporte ao município de Tacaratu foi facilitado pela Prefeitura de Barão de Rio Branco, que ofereceu um
caminhão para a realização da viagem. Além disso, a equipe da Missão recebeu a ajuda de um cidadão tacaratuense -
Napoleão Xavier - que se dispôs a facilitar os contatos da expedição com informantes populares, chegando inclusive a
integrar-se à equipe durante a estadia da Missão em sua cidade natal. 468
Os gastos da Missão em Barão do Rio Branco se referem ao transporte da estação de trem a uma pensão local
não identificada, onde a equipe rapidamente descansou para então seguir viagem (25$000). Para os carregadores de
bagagem da estação, Luiz Saia ofereceu 15$000 réis. Também em Barão de Rio Branco, foi comprado 1 caixão com
palha (2$000) cuja utilidade não está especificada da documentação original. 469 Provavelmente esse material se
prestou ao transporte de objetos populares e/ou instrumentos musicais com estruturas frágeis e delicadas - cerâmica
ou uma viola -, recolhidos ou adqüiridos durante a viagem da expedição.
A expedição não realizou o pernoite em Barão do Rio Branco. No mesmo dia 8 de março, às 18 horas, com o
caminhão cedido pela Prefeitura local e acompanhados do colaborador Napoleão Xavier, a Missão partiu em viagem
com destino à Tacaratu, sendo seguidos por Mário Melo e Doralice Avelar em um automóvel. Para todas as viagens
realizadas em caminhão pela expedição, dada a configuração do veículo, houve a necessidade de distribuição dos
componentes. Assim, nesta viagem a Tacaratu, dois integrantes da Missão viajaram na boléia do caminhão, enquanto
outros dois componentes, acompanhados do colaborador tacaratuense, foram na cabine do veículo. 470
Para esta viagem a Tacaratu, a Missão pagou integralmente os gastos com a gasolina e o óleo do caminhão,
que foram realizados durante o trajeto em dois reabastecimentos - o primeiro no valor de 76$300 réis e o segundo,
61$000. 471
A chegada ao município de Tacaratu ocorreu às 4:30 horas do dia 9 de março, quarta-feira, após cerca de
outras 10 horas de viagem realizadas integralmente no caminhão. 472 Após a acomodação da equipe em um hotel
local, Luiz Saia em companhia de Napoleão Xavier tratou de realizar os primeiros contatos com as autoridades oficiais.
Dessa forma, tudo foi arranjado para os trabalhos de gravação na cidade, e particularmente, para a documentação
completa dos Praiás, dos remanescentes Pancarus, na aldeia de Brejo dos Padres, distante poucas léguas de
Tacaratu. 473
Com intuito de preparar os remanescentes Pancarus sobre a chegada da Missão à aldeia, prevista para o dia
seguinte quando a equipe utilizar-se-ia de outro caminhão desta vez cedido pela Prefeitura de Tacaratu, Luiz Saia
contratou um indivíduo (20$000), para viajar ao Brejo dos Padres e avisar os índios. O Chefe da Missão pagou
inclusive o aluguel de um cavalo para o transporte à aldeia (7$000). 474 Enquanto aguardavam o retorno colaborador, a
Missão trabalhou no município de Tacaratu.
Em 9 de março, a equipe gravou 1 disco de 12 polegadas contendo três tipos de cocos (dança coletiva) - coco
embolada, coco martelo e coco de roda. Os informantes para o registro fonográfico - Raymundo Cunha e Tiburtino
Fernandes da Silva, indicados por Napoleão Xavier -, se acompanharam durante a gravação com um reco-reco e por

464
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
465
- Cad.de Campo 1.C, p.170 (Ladeira); Cad.de Campo s/nº (Braunwieser)
466
- Hemeroteca Doc.nº 16x - “Percorrendo o sertão pernambucano - Mário Melo” Recife, Jornal do Comércio, 15 de março de
1938.
467
- Segundo Luís da Câmara Cascudo (Dicionário do Folclore Brasileiro, 1984), a festa dos Praiás ou Menino do Rancho
constitui na “(...) captura de um menino pelos mestres pajés, denominados “praiás”, levado para um rancho, começando
então a aprendizagem das tradições tribais, preparativos para a iniciação futura (...).
468
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
469
- idem ibidem, p.2-3
470
- idem ibidem
471
- idem ibidem.
472
- Cad.de Campo 1.C, p.170
473
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.4
474
- idem ibidem. “Gratificação avisador dos índios... 20$000”
87

palmas. 475 Os dados sobre os informantes e as letras das melodias foram anotadas por Benedito Pacheco e Luiz Saia
em duas cadernetas de campo. 476 Pela colaboração os informantes receberam 80$000 réis, chegando inclusive a
jantar juntamente com a equipe da Missão após os términos dos trabalhos de gravação (26$000). 477
Em 10 de março, quinta-feira, o planejado pela Missão era realizar a viagem a aldeia de Brejo dos Padres,
levando consigo todos os equipamentos técnicos trazidos pela expedição para o registro etnográfico dos Praiás. No
entanto, o motorista do caminhão cedido pela Prefeitura de Tacaratu atrasou-se no horário combinado para o encontro
com a equipe, impossibilitando os trabalhos junto aos índios Pancarus. Devido a isso, a Missão adiou a viagem a Brejo
dos Padres para o dia seguinte. 478 Ainda assim, Luiz Saia foi até a aldeia, confirmando a gravação para o dia seguinte
e pagando o almoço para o grupo indígena (70$000). 479 Mesmo atrapalhada em seus planos, a Missão não
desanimou, aproveitando todo o tempo disponível em outros trabalhos etnográficos.
Enquanto Luiz Saia procurava mais um trabalho de gravação para a equipe, Martin Braunwieser aproveitou para
anotar algumas cantigas de roda entoadas por Ivanise Brito, filha de João de Brito, um coletor estadual representante
na cidade. 480 Luiz Saia, então acompanhado de Napoleão Xavier, alugou um cavalo para percorrer as cercanias do
município (3$000). 481 Logo encontrou cantadores que, mediante o pagamento de aguardentes (3$000), entoaram
algumas linhas melódicas de interesse. Retornando imediatamente a Tacaratu, Luiz Saia tratou de providenciar o
transporte da expedição e dos equipamentos de gravação para junto dos informantes. Em primeiro lugar, a Missão
alugou um outro caminhão (20$000); em seguida, tratando-se de local de difícil acesso, foi necessário a auxílio de um
carro de bois (3$000). 482
Assim, foi acertado para o dia 10 de março, o registro fonográfico de mais um disco de 12 polegadas, desta vez
com exemplos de rojão da roça, emboladas, roda sertaneja, samba e coco, entoados por um grupo de 4 informantes
populares - todos violeiros, dois deles cantadores. 483 Os dados sobre os violeiros e a relação das toadas gravadas
foram anotados por Pacheco e Luiz Saia em duas cadernetas de campo. 484 Durante os trabalhos de gravação, foram
gastos 6$000 réis com o oferecimento de aguardentes para os cantadores, que receberam além disso 65$000 réis
como pagamento pela colaboração. 485
Também em 10 de março, no percurso pelas cercanias de Tacaratu, Luiz Saia iniciou a coleta de objetos de
fatura popular denominados por ex-votos ou milagres, depositados em 2 capelas. 486 Dessas capelas visitadas, o
Chefe da Missão registrou duas fotografias para controle do material recolhido. 487 O despertar do interesse do Chefe
da Missão pelos ex-votos está relatado na introdução de seu estudo sobre o assunto, publicado em 1944:

“A maioria das peças de escultura popular aqui apresentadas são ex-votos e pertencem ao Museu da
Discoteca Pública de São Paulo. Foram colhidos durante uma viagem de estudos feita pelo Norte e
Nordeste brasileiros por iniciativa do Departamento de Cultura de São Paulo, visando documentar o
folclore musical e mais o que este estivesse porventura relacionado. Para isso levamos, meus três
companheiros e eu, máquinas de gravação e aparelhos foto e cinematográfico. O que se pudesse
recolher de arte e técnica populares, além do nosso objetivo específico, ficava portanto inteiramente por
conta das circunstâncias. (...)
Pessoalmente me interessava estudar, nos momentos de folga, tudo quanto fosse coisa popular de valor
artístico ou documentário, especialmente arquitetura. Desde logo me larguei à prática aventurosa de
espiar, anotar, fotar casas velhas, capelas, arquitetura popular. Conquanto esperasse encontrar muita
pintura e escultura populares, devo confessar que nem eu nem os que me informaram antes e durante a
viagem sabiam nada acerca da tradição viva do milagre de madeira. O encontro deste material devi-o de
certo modo ao acaso, e sua pesquisa somente pôde se sistematizada depois de alguns indispensávis
488
contactos iniciais (...).”

No mesmo dia 10 de março, Mário Melo e a cinegrafista Doralice Avelar, que haviam programado acompanhar
os trabalhos da expedição na aldeia dos Pancarus seguindo depois com equipe para Águas Belas - onde por

475
- cf CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.59. Disco F.177, fons.1232-1236.
476
- Cad.de Campo 1.C, p.85-88 (Pacheco); Cad.de Campo 2.B, p.43-44 (Saia). Acervo Histórico DPM: T74P8 e T113P10.
477
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.4 “Ceia à noite com os rapazes da gravação...26$000”
478
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
479
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5 “Almoço pros índios (trabalho falhado por falta de transporte)...70$000”
480
- ALVARENGA, O. (org.) - “Arquivo Folcló_ico da DPM: Melodias Registradas Por Meios Não-Mecânicos”, 1946. Coleção
Martin Braunwieser, Melodias nºs 488-491 (cantigas de roda).
481
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5
482
- idem ibidem
483
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.59, 73. Disco F.177 A/B, fons.1231-1236
484
- Cad.de Campo 1.C, p.89-92 (Pacheco); Cad.de Campo 2.B, p.44-47. Acervo Histórico da DPM: T14P2, T15P2, T81P8.
485
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5
486
- Cad.de Campo 2.B, p.47: “(...) trabalhos em madeira (milagres) colhidos em Mirim (distrito de Moxotó) e cidade de Tacaratu
(...)” Objetos classificados originalmente por nºs 254-257; 259-275. Segundo Luís da Câmara Cascudo - Dicionário do Folclore
Brasileiro, 1984 - “O milagre é a representação do orgão ou parte do corpo humano curado pela intervenção divina e
oferecido ao santuário em testemunho material de gratidão (...)”
487
- Documentos originais da MPF: Fotos 646 e 684
488
- SAIA, L. - “Escultura Popular Brasileira.” São Paulo, Edições Gaveta, 1944. p.9
88

intermédio do diretor do Instituto Histórico de Pernambuco a Missão receberia a indicação e ajuda necessárias ao
registro etnográfico -, decidiram mudar seu roteiro de viagem, visitando a cachoeira de Paulo Afonso - sem interesse
etnográfico para a Missão -, e a aldeia de Brejo dos Padres sozinhos.
De volta a Tacaratu em 11 de março, Mário Melo e Doralice Avelar combinaram visitar a aldeia dos Pancarus
junto com a Missão. Durante a visita, por se tratar de trabalho etnográfico apurado que consumia grande parte do
tempo, Mário Melo e Doralice Avelar decidiram retornar ao Recife sem acompanhar a expedição a Águas Belas,
deixando a equipe sem o apoio pessoal necessário para o trabalho. Mário Melo deixou, no entanto, recomendações
expressas escritas à Missão:

“(...) Prometera à Missão de cultura folclórica [sic] acompanhá-la ao sertão, onde colheria material para o
fim que a trouxe ao Nordeste, e igualmente tomara com a cinematografista brasileira Doralice Avelar o
compromisso de levá-la à cachoeira de Paulo Afonso, para filmar essa maravilha da natureza (...).
Era de meu programa seguir por Garanhuns a Águas Belas para mostrar primeiramente o toré dos
[índios] fulniôs aos folcloristas. Estes preferiram ir primeiro a Tacaratu para apanhar a dança dos praiás
da tribo dos pancarus e, como não houvera eu ainda visitado a aldeia do Brejo dos Padres, bati palmas
ao itinerário.
O pessoal paulista não perde tempo. Onde chega arregimenta os cantadores da terra à cata de tudo que
lhe parece original.
Atingimos Tacaratu às 3 horas da madrugada. Na manhã seguinte, já a turma de São Paulo estava com
as máquinas de gravação armadas e a postos os melhores cantadores de samba, de coco, de toadas;
moças que ainda sabem modinhas antigas do tempo do romantismo; meninas que ainda cantam em
rodas “Ó ciranda, ó cirandinha”. (...)
Como aquilo parecia não ter fim e como não interessava aos paulistas a cachoeira de Paulo Afonso,
deixei-os na sua gravação e larguei-me para a cachoeira com a cinematografista. (...)
De volta a Tacaratu, [foi] traçado o programa de no dia seguinte irmos todos aos pancarus. O chefe da
tribo, fardado de capitão - calças kaki, blusa de mescla com três fitinhas brancas indicadoras de seu
posto, do que muito se orgulhava - estava na cidade a meu dispôr.
Os paulistas, porém, não haviam tomado todos os cantos que julgavam úteis [na cidade de Tacaratu] e
adiaram [a visita à aldeia]. Não contive minha ânsia e fui na frente com a cinematografista, passando o dia
no seio da tribo, (...) ouvindo seus cantos e vendo seus costumes, interrogando-os sobre suas
necessidades.
Como tenho grito de armas dos fulniôs de Águas Belas e precisava reduzir o tempo destinado ao sertão,
fiz uma carta ao [chefe?] dos caboclos para que estes satisfizessem os paulistas, explicando-lhes que
489
eram meus amigos e podiam neles confiar, e parti para o Poço da Cruz, de volta à capital (...).”

Em 11 de março pela manhã, sexta-feira, com o caminhão cedido pela Prefeitura de Tacaratu desta vez
chegando sem atraso, a Missão de Pesquisas Folclóricas viajou à aldeia de Brejo dos Padres, onde finalmente iniciou
os registros documentais dos praiás dos índios Pancarus. Nesse dia foram registrados 2 discos de 16 polegadas
gravados ininterruptamente. 490 Foram tiradas várias fotografias documentando a dança, aspectos gerais da aldeia e
seus tipos humanos característicos. 491 Martin Braunwieser aproveitou para registrar manualmente algumas melodias,
preservando os discos virgens conforme havia recomendado Mário de Andrade. 492 Os dados dos remanescentes
indígenas e sobre a manifestação dos praiás, foram registrados por todos, em duas cadernetas de campo e diversos
papéis avulsos, posteriormente datilografados. 493
Durante os trabalhos de gravação, o Chefe da Missão ofereceu uma refeição completa para todos da aldeia,
incluindo Mário Melo e Doralice Avelar, pela qual pagou a quantia de 50$000 réis. 494 Além disso, Luiz Saia adqüiriu
para o Museu Folclórico da Discoteca Pública Municipal de São Paulo uma série de apetrechos e instrumentos
musicais de interesse etnográfico, como uma vestimenta completa dos praiás (40$000), 4 cestos de umbu (6$000) e
ainda 2 “busos”, 495 pagando a quantia de 10$000 réis. 496
No intervalo do almoço servido aos índios Pancarus, Luiz Saia realizou - quase que por acaso -, sua primeira
coleta de milagres ou ex-votos, como ele relatou em seu livro de estudo sobre o assunto:

489
- Hemeroteca Doc.nº 16X - “Percorrendo o sertão pernambucano - Mário Melo” Recife, Jornal do Comércio, 15 de março de
1938.
490
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993, p.68-69. Discos F.27-F.28, fons.108-112
491
- Documentos originais da MPF: Fotos 125-139
492
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946. Coleção Martin Braunwieser, melodias nºs 444-459
493
- Cad.de Campo “Discos 1”(Pacheco); Cad.de Campo 1.C, p.95-106 (Ladeira). Acervo Histórico DPM: T51P6, D32P2, D11P1,
D10P1
494
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5
495
- Segundo Mário de Andrade (Dicionário Musical Brasileiro, 1989), búzio ou buzo é uma “espécie de buzina, que tem o
mesmo nome da concha de que é feita. Faz-se um furo na ponta estreita e se sopra por aí, produzindo som rouco.”
496
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5
89

“(...) Em Meirim, pequena vila do sertão pernambucano, tive o primeiro contato com a escultura que me
proponho estudar aqui. De passagem para um núcleo de remanescentes indígenas (...), num intervalo de
lanche, visitei a capelinha aí existente. A vontade de achar coisas me levou, como sempre, às procuras
mais indiscretas: remate dos muros da construção, caixas cheias não sei de que, atrás do altar...
Precisamente atrás do altar desta capela encontrei uma cabeça de madeira que no primeiro momento
julguei tratar-se de uma parte de santo de roca. Mas, segundo informou o cicerone improvisado
[Napoleão Xavier], era um milagre. Recolhi-o (...)”. 497

Em 12 de março, sábado, a equipe da Missão visitou por indicação de Napoleão Xavier, um lugarejo chamado
Folha Branca, nas imediações de Tacaratu. Aí, a expedição encontrou uma casa de processamento de farinha de
mandioca onde os trabalhadoras - um grupo de 5 mulheres - cantavam e dançavam. Imediatamente, a expedição
montou seus equipamentos de gravação, registrando em seguida 1 disco de 12 polegadas contendo 4 melodias. 498
Desse grupo de informantes e da casa de farinha foram tiradas 9 fotografias. 499 Pela colaboração com a Missão, as
cantoras receberam a quantia de 120$000 réis. Além disso, a equipe aproveitou para se alimentar comprando na casa
de farinha quatro refeições - frango acompanhado com umbu -, pela quantia de 12$500 réis. 500
A Missão teve oportunidade de acompanhar um momento bastante tradicional importante na região de Tacaratu
e redondezas, particularmente na aldeia de Brejo dos Padres, para onde a expedição se dirigiu em 13 de março,
domingo: a festa para a colheita do umbu -imbu, ombu ou ambu, fruto típico na região -, característica desde os
tempos do Brasil colônia. 501
Em 13 de março, sem os equipamentos de gravação, mas levando consigo as câmeras fotográfica e
cinematográfica, a Missão documentou a festa do umbu e mais alguns detalhes dos praiás. A festa do umbu, dividida
em várias etapas, pode ser descrita da seguinte maneira:

“(...) o primeiro imbu é amarrado por um fio suspenso entre duas varas, e os melhores flecheiros, diante
do povo reunido, atiram, um a um, para vará-lo. Varado o imbu, segue-se o divertimento ginástico do
cabo-de-guerra, entre os grupos do Sol e da Lua. Chegando a safra ao seu auge, segue um grupo de
moças e mulheres casadas para a colheita do imbu, e os homens, festivamente adornados, vão ao seu
encontro, regressando ao som de uma gaita de taquara e um apito feito do rabo do tatu-peba, os cestos
de imbus enfeitados de flores silvestres. Homens e mulheres pintam-se de barro branco (tauá branco). Os
cestos são dispostos no fim do terreiro, marcado cada qual com um distintivo de um candidato, e estes
502
correm até alcançar os cestos. Começa então a fase de flagelação com urtiga e cansanção, num baile
em que todos prestam ao seu companheiro próximo a graça de surrá-lo com as urtigas. Termina por uma
umbuzada geral. São estas as fases marcantes da festa do imbu, no sertão de Tacaratu,
Pernambuco”. 503

Para colaborar com a realização da festa do umbu, a Missão pagou a quantia de 132$000 réis, dos quais
35$000 foram dados aos índios que se auto-flagelaram com urtiga e cansanção durante o evento, e 32$000 réis como
pagamento ao chefe da aldeia pelos dois dias de trabalho junto à expedição. 504 Também em 13 de março, durante a
festa do umbu, Martin Braunwieser anotou 24 melodias entoadas nesta manifestação. 505 O filme cinematográfico
documentando a festa do umbu e os praiás foi realizado por Luiz Saia e posteriormente incorporado ao acervo da
Discoteca Pública Municipal. 506 Tendo já sido filmada, a Missão não se preocupou em documentar fotograficamente a
festa do umbu. Assim, somente um fotograma sobre o evento foi realizado, ilustrando a auto-flagelação de dois
indivíduos da aldeia do Brejo dos Padres. 507
Finalizando os trabalhos da Missão em 13 de março, Luiz Saia e Napoleão Xavier percorreram novamente as
cercanias de Tacaratu em busca de objetos de fatura popular. Foram alugados dois cavalos (12$000), contratado um
guia conhecedor da região (5$000) que possibilitou o resgate de mais uma série de objetos, particularmente de ex-
votos. 508 As coletas de milagres em Pernambuco resumiram-se em duas oportunidades. Dado o escasso tempo
disponível para efetuar a pesquisa, Luiz Saia empenhou-se mais intensamente no Estado da Paraíba, onde as
condições de trabalho da equipe foram mais propícias:
497
- SAIA, L. - op.cit.1944. p.9
498
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993, p.72, 79. Disco F.29, fons. 113-116
499
- Documentos originais da MPF: Fotos 140-144, 146, 502-503, 726
500
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5
501
- CASCUDO, L.C - “Dicionário do Folclore Brasileiro”, Itatiaia, 1984.
502
- A cansanção, planta da família das urticáceas, é caracterizada “(...) por pêlos urticantes e vesicantes, que agridem a pele
humana ao primeiro contato”. (“Novo Dicionário Aurélio”).
503
- ESTEVÃO, C. - “O ossuário da Gruta do Padre em Itaparica e algumas notícias sobre os remanescentes indígenas do
Nordeste.”, Boletim do Museu Nacional, XIV-XVII, 1942. p.160-163 citado in CASCUDO, L.C. - “Dicionário do Folclore
Brasileiro”, Itatiaia, 1984.
504
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5
505
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946. Coleção Martin Braunwieser, melodias 460-484.
506
- Documentos originais da MPF: Filme 5.b, P&B, silencioso, 6'20” (“Dança dos Praiás”)
507
- Documentos originais da MPF: Foto 145
508
- Cad.de Campo 3.A, p.15-47, objetos classificados pelos nºs 258, 276-282.
90

“(...) Na cidade de Tacaratu, onde ficamos aboletados, visitando um cruzeiro ao ar livre, no alto de um
morro próximo, achei uma regular quantidade de peças, umas já completamente desfeitas pelas
intempéries, outras meio queimadas e outras visivelmente novas. Colhi as que me pareceram mais
interessantes. A viagem pelo Estado de Pernambuco não se revelou todavia muito frutuosa na colheita de
milagres, pois percorremos à pressa, quase sem parada, o interior do Estado que é onde se localiza o
manancial. O Estado da Paraíba, onde a demora foi maior (mais de 2 meses) e as paradas mais
cômodas, forneceu a maior parte da centena de peças que hoje se encontram no Museu da Discoteca
Pública de São Paulo (...)” 509

Em 14 de março, a Missão iniciou a viagem de retorno à capital pernambucana. Os gastos efetuados pela
expedição referentes ao alojamento em Tacaratu somaram 354$000 réis; para um rapaz que tomou conta da
aparelhagem técnica durante a estadia da equipe na cidade, Luiz Saia ofereceu 35$000 réis. 510 O trajeto inicial - com
destino a Barão do Rio Branco, onde pegariam o trem de volta ao Recife -, foi inteiramente realizado com um
caminhão alugado pela equipe. 511 A partida de Tacaratu ocorreu às 15:30 horas; 512 a primeira escala foi o município
de Caibeiras (atualmente Caraibeiras) distante poucas léguas.
Em Caibeiras, a equipe localizou uma casa de tecelagem tendo a oportunidade de realizar pesquisas sobre o
processo de fabricação de redes. As anotações sobre a técnica utilizada e das partes componentes da máquina de
tear foram realizadas por Luiz Saia em uma caderneta de campo. 513 Antônio Ladeira se responsabilizou em fotografar
detalhes da máquina de tear, efetuando os registros em 5 fotogramas, além de realizar anotações para controle de
material pesquisado em uma caderneta de campo. 514
Além da aquisição de uma rede de dormir (20$000), a Missão aproveitou a escala em Caibeiras para saciar a
sede e a fome, comprando garrafas d'água e lanches para o restante da viagem (20$400). Além desses gastos, foram
dados 10$000 réis como pagamento pelas informações sobre a técnica de tecelagem e da máquina de tear. 515
A próxima parada ocorreu às 20:30 horas, no vilarejo de Espírito Santo, onde os componentes da expedição
jantaram e procuraram alojamento. Com a alimentação foram gastos 36$000 réis; no mesmo local onde foi realizado o
jantar da equipe, a Missão teve oportunidade de ouvir de uma cantadora - Anastácia Maria da Conceição, nascida em
1867 - exemplos de toadas populares: décima, martelo, rojão e carretilha. Os dados sobre a informante e as letras das
melodias foram anotadas por Luiz Saia em uma caderneta de campo. 516 As toadas cantadas não foram gravadas ou
anotadas pela Missão.
Após a chegada em Espírito Santo, por concenso de toda a equipe, os integrantes da Missão optaram em não
prosseguir viagem, realizando o pernoite no local e decidindo partir no dia seguinte pela manhã. Segundo o 1º
Relatório de Luiz Saia entregue para a Discoteca Pública Municipal, a opção em permanecer no vilarejo de Espírito
Santo se deveu ao horário - que obrigaria a expedição a viajar durante a madrugada -, e à região percorrida pela
Missão, considerada “(...) zona perigosa de cangageiros (...)”. 517
De fato, a região de Tacaratu e cercanias do sertão pernambucano está localizada próxima à divisa com os
Estados da Bahia, Sergipe e Alagoas - áreas de maior ocorrência do cangaço no Brasil. Naquele ano, as atividades
para repressão aos bandos cangaceiros que ainda resistiam eram intensas. Em junho de 1938, o bando de Lampião e
Maria Bonita foi exterminado pelo cabo João Bezerra em seu esconderijo em Angicos, sertão do Sergipe. Dois anos
depois, em junho de 1940, foi a vez do bando de Corisco, o Diabo Loiro ser exterminado, extingüindo de vez o
fenômeno do cangaço no Brasil. 518
Assim, pernoitando em Espírito Santo, a Missão partiu no dia seguinte pela manhã, em 15 de março de 1938,
terça-feira, às 6:00 horas. Com caminhão alugado pela equipe, a equipe da Missão deixou o vilarejo de Espírito Santo,
chegando ao meio-dia de volta ao município de Barão de Rio Branco, para embarque de trem com destino ao Recife.
519

Imediatamente após a chegada em Barão do rio Branco, a Missão passou a gravar cantadores arregimentados
antes mesmo da partida à Tacaratu. Como foi visto anteriormente, essa prática metodológica foi sistematicamente
utilizada pela equipe: ao chegar em qualquer lugarejo onde sabiam existir manifestação folclórica de interesse
etnográfico, a equipe da Missão arranjava tudo para efetuar os trabalhos de gravação em uma segunda oportunidade,
dispondo as coisas para fazer uma documentação completa sem imprevistos de última hora. Por outro lado, esse

509
- idem ibidem, p.9-10
510
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5
511
- idem ibidem
512
- Cad.de Campo 3.A, p.49
513
- Cad.de Campo 3.A, p.50-55. Acervo Histórico DPM: D17P1.
514
- Documentos originais da MPF: Fotos nºs 757-761. Cad.de Campo 1.C, p.109-110
515
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5
516
- Cad.de Campo 2.B, p.51-57
517
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
518
- cf. DORIA, C.A. - “O cangaço.”, coleção tudo é história, vol.6, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1981. 99p.
519
- Cad.de Campo 1.C, p.51; Cad.de Campo s/nº, p.74
91

procedimento visava a reunir a maioria dos cantadores de uma mesma região em um mesmo local, evitando com isso,
o transporte dos pesados equipamentos técnicos que a Missão carregava consigo. 520
Assim, nesse dia 15 de março, a Missão registrou no município de Barão de Rio Branco um disco e um lado de
disco de 12 polegadas com exemplos de aboios - canto sem palavras entoado pelos vaqueiros quando conduzem o
gado -, toadas, samba, coco e morão. Os aboios foram entoados por José Salvino da Silva, vaqueiro de uma fazenda
da região, que colaborou com a equipe indo à cidade sem o pagamento de gratificação alguma. 521 Já as outras
melodias foram cantadas pelos violeiros Manoel de Lima e Justino Bernardo de Almeida, 522 que receberam pela
colaboração 107$000 réis, além do pagamento de aguardentes durante a gravação (12$000). 523
Em 16 de março, quarta-feira, um pouco antes da partida do trem com destino ao Recife, às 8:30 horas, o Chefe
da Missão pagou o aluguel do caminhão que os transportou de Tacaratu à Barão de Rio Branco, no valor de 120$000
réis. Além disso, foram gastos 71$000 réis com o pernoite da equipe em um hotel de Barão do Rio Branco, dos quais
5$000 foram oferecidos como gorjeta. 524 A chegada da Missão ao Recife ocorreu no mesmo dia, às 18:00 horas. 525
No transporte da Missão da estação de trem da capital para os seus alojamentos - Hotel Central para Luiz Saia e
Pensão Cruzeiro para os outros -, foram gastos 55$000 réis, incluindo-se a bagagem pessoal de cada componente. A
aparelhagem técnica foi transportada para o Hotel Central somente na manhã do dia seguinte, ficando guardada na
estação de trem durante o dia 16 de março. 526

520
- Vide Capítulo I, item 4
521
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.25. Disco F.178, fons. 1237-1245. Acervo Histórico DPM: T87P9
522
- Cad.de Campo 3.A, p.61-64
523
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5
524
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5
525
- Cad.de Campo s/nº, p.74 (Braunwieser)
526
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.5-6
92

2.4 - De 16 a 25 de março: últimos trabalhos etnográficos em Pernambuco - remessa dos


objetos populares a São Paulo -preparativos para a viagem à Paraíba

Após a viagem ao sertão pernambucano, a Missão tratou de providenciar as últimas necessidades para a
partida definitiva à Paraíba, permanecendo no Recife até 23 de março, quarta-feira. Nesse dia, Braunwieser, Pacheco
e Ladeira partiram por trem com destino à capital João Pessoa, levando consigo as aparelhagens técnicas da
expedição. Luiz Saia viajou depois, em 26 de março, se encontrando com o restante da equipe instalada na capital
paraibana.
Durante o período de 16 a 25 de março, houve o empenho para finalizar o trabalho de identificação,
classificação e embalagem da coleção de objetos populares recolhidos pela expedição, preparando-a para remessa à
São Paulo. Essa tarefa foi considerada uma atividade prioritária para equipe.
Juntamente com o trabalho de identificação, a Missão realizou seus últimos esforços para a obtenção de
informes de interesse etnográfico, com particular enfoque sobre os rituais de feitiçaria proibidos pela polícia recifense.
Outro aspecto cuidado antes da partida definitiva à Paraíba foram as despedidas e agradecimentos oficiais da Missão
527
junto àqueles que auxiliaram a equipe no Recife e em Pernambuco.
Em 18 de março, Luiz Saia visitou mais uma vez o bairro de Afogados, indo a casa de Maria Plácida. Nesse dia,
já mais familiarizado com a informante após a realização dos primeiros contatos, o Chefe da Missão conseguiu
demonstrar a confiança conquistada obtendo de Maria Plácida dados sobre o núcleo de catimbó do qual era dirigente.
Esses dados foram inicialmente “desconversados” pela informante devido à forte repressão policial. O relacionamento
de Luiz Saia com Maria Plácida esteve retratado em uma comunicação do Chefe da expedição aos membros da
Sociedade de Etnografia e Folclore, com o título de Catimbós do Nordeste:

“(...) Desde os primeiros dias da minha chegada em Recife entrei em contato com Maria Plácida. Uma
noite estive em sua casa pra ver o cabocolinho Taperaguá, de que é dirigente. Depois ela cantou para
efeito de gravação e estudo um bumba-meu-boi completo e ainda visitei-a por mais uma vez. Chegou-se
mesmo a estabelecer certa camaradagem entre esta mestra e os componentes da Missão. Por muitas
vezes, durante as gravações e as conversas perguntei a Maria Plácida alguma coisa sobre catimbó e
xangô. Invariavelmente respondia contando um desconhecimento mais completo a respeito do assunto.
Foi no fim da nossa estada no Recife que Maria Plácida se resolveu revelar qualquer coisa do seu
catimbó. Em vésperas da nossa partida para a Paraíba, quando eu estava de cama, ela ditou e cantou as
dezessete linhas colhidas respectivamente pelos meus companheiros de viagem srs. Braunwieser e
528
Antônio Ladeira. Não fiz pessoalmente nenhuma pesquisa sobre este material e nem mesmo pude
conversar depois com a catimbozeira. A quase certeza de poder voltar ao Recife depois de viajar pelo
restante do Nordeste e Norte foi frustrada e, na viagem de volta pra São Paulo, parei ali um tempo
insuficiente para procurá-la. (...)” 529

Os textos dos cânticos de catimbó entoados por Maria Plácida foram anotados por Antônio Ladeira em uma
caderneta de campo, sendo posteriormente datilografados por Luiz Saia. 530
Além de Maria Plácida, a Missão procurou novamente os informantes de Xangô. Com gravações já realizadas,
o intuito agora era buscar auxílio para a identificação do vasto acervo de objetos de feitiçaria doados à Missão pela
polícia do Recife. Além disso, após o trabalho de identificação, Luiz Saia e Braunwieser realizaram pesquisas
específicas junto aos colaboradores: Saia, efetuando um detalhado painel com informações sobre o culto;
Braunwieser, transcrevendo em notação musical cerca de 100 melodias entoadas pelos informantes.
No período de 19 a 22 de março, a Missão e os informantes de Xangô encontraram-se todos os dias. Em 19 de
março, sábado, a equipe se deslocou até o bairro de Casa Amarela (8$000 para o transporte). 531 Ali, procuraram
novamente o babalorixá Apolinário Gomes da Mota, José Brito da Silva e Antônio Romão - todos ligados ao Terreiro de
Santa Bárbara de Guida Mulatinho, do qual se fizeram as gravações -, contratando-os para o serviço de identificação
dos objetos do culto e outros dados. 532
Na casa de Apolinário Gomes da Mota, pelo que se pode deduzir após exame na documentação original, a
Missão verificou que o babalorixá mantinha em sua residência, oculto aos olhos repressivos da polícia recifense, todas
suas atividades rituais de Xangô: Luiz Saia registrou em uma caderneta de campo, croquis de detalhes interiores e

527
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
528
- As melodias do catimbó de Maria Plácida não foram gravadas ou anotadas musicalmente. Para Oneyda Alvarenga
(“Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro - Catimbó.”, vol.III, 1949, p.205), Martin Braunwieser afirmou que “(...) não
colheu cântico de Maria Plácida; apenas fez tentativas de grafia, de que nada resultou por causa de imprecisão da informante
(...)”.
529
- Acervo Histórico DPM: T52P6 - “Catimbós do Nordeste.”, Comunicação inacabada de Luiz Saia à Sociedade de Etnografia e
Folclore, sem data, p.1-2
530
- Cad.de Campo 2.A, p.47-64. Acervo Histórico DPM: T41P4a
531
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.6
532
- idem ibidem
93

uma planta baixa da casa do informante. Nesses croquis, pode-se verificar que na parte posterior da residência estão
delimitados o terreiro e o espaço destinado aos instrumentistas do culto. Em uma sala reservada à direita, o altar
armado dedicado a Xangô - o peji. 533
Durante a tarde de 19 de março, no teatro Santa Isabel, a equipe da expedição e os informantes populares
deram continuidade na identificação e classificação da coleção de objetos ritualísticos, finalizando o trabalho iniciado
em princípios de março. 534 Além disso, Martin Braunwieser registrou por anotação musical direta, 8 cânticos
pertencentes ao culto, entoados pelo babalorixá Apolinário Gomes da Mota. 535
Em 20 de março, domingo, Luiz Saia amanheceu adoentado, ficando impossibilitado de realizar pesquisas de
campo. O Chefe da Missão ficou no Hotel Central, solicitando aos informantes populares que para lá se
encaminhassem. 536 Assim, em seu apartamento no hotel, Luiz Saia realizou pesquisas com José Brito da Silva e
Antônio Romão. Martin Braunwieser, prosseguindo na anotação musical de toadas de Xangô entoadas por Apolinário
Gomes da Mota, registrou do babalorixá mais 7 melodias características do ritual. 537 Enquanto isso, Benedito Pacheco
e Antônio Ladeira prepararam a coleção de objetos para a remessa a São Paulo, colocando etiquetas de identificação.
Em 21 de março, Pacheco e Ladeira trataram das exigências legais para o transporte dos equipamentos
técnicos da expedição a João Pessoa, levando o material para ser guardado na estação de trem do Recife. No
transporte à estação, foram gastos 35$000 réis. Para o armazenamento do material aguardando embarque foram
gastos 5$400 pagos para os “(...) selos [de] estatística (...)”. 538 Luiz Saia, ainda adoentado, permaneceu no Hotel
Central prosseguindo suas anotações sobre Xangô, agora com informações obtidas de José Brito da Silva. Martin
Braunwieser, após concluir o trabalho junto ao babalorixá Apolinário, passou a anotar as melodias entoadas por
Antônio Romão. Nesse dia, foram anotadas 30 melodias do ritual. 539 Pela colaboração com a equipe, José Brito da
Silva e Antônio Romão receberam cerca de 115$000 réis. 540
Em 22 de março, Luiz Saia já melhorara de saúde e pôde então cuidar de providências para o deslocamento da
equipe ao Estado da Paraíba. Enquanto Martin Braunwieser finalizava suas pesquisas musicais com Antônio Romão,
realizando a anotação de mais 29 toadas de Xangô, 541 o Chefe da Missão tratou de enviar 2 telegramas à capital João
Pessoa: o primeiro, à casa de Ademar Vidal comunicando-lhe a chegada de parte da equipe; o segundo, ao interventor
do Estado, Argemiro de Figueiredo. Este fato foi relatado com certa ironia por Luiz Saia no 1º Relatório: “(...) antes da
partida da Missão pra João Pessoa, de conformidade com o que combinara com Ademar Vidal, telegrafei ao Sr.
Interventor Argemiro de Figueiredo... saudando-o. (...)”. 542
Na manhã de 23 de março, às 5:00 horas, Braunwieser, Pacheco e Ladeira partiram de trem com destino à
capital João Pessoa, chegando às 12:30 horas. 543 Os gastos finais com a Pensão Cruzeiro, alojamento dos três
componentes da expedição desde o final de fevereiro, somaram a quantia de 230$000 réis dos quais 10$900 foram
oferecidos com gratificação aos funcionários de estabelecimento. 544 Luiz Saia permaneceu no Recife até o dia 25 de
março, providenciando o embarque da coleção de objetos doados e efetuando as despedidas e agradecimentos em
nome da equipe e do Departamento de Cultura de São Paulo.
Nos dias 23 e 24 de março, o Chefe da expedição esteve com José Brito da Silva e Antônio Romão para
finalizar suas pesquisas sobre o Xangô recifense. 545
Em 25 de março, Luiz Saia finalmente remeteu a coleção de objetos à São Paulo, pagando 400$000 réis, dos
quais 290$300 foram gastos com a remessa propriamente dita e, 109$700 réis com “(...) despesas de gratificação e
embalagem desse material (...)”. 546 Durante este dia, o Chefe da Missão esteve novamente com o babalorixá
Apolinário Gomes da Mota no Teatro Santa Isabel procurando acertar a última parcela do pagamento combinado para
a identificação dos objetos (20$000). Aos funcionários do Teatro, pela colaboração com a Missão durante a estadia em
Pernambuco, Luiz Saia ofereceu 80$000 réis. 547
Na noite de 25 de março, o Chefe da expedição com o intuito de agradecer oficialmente aqueles que
colaboraram com a equipe, ofereceu um jantar para alguns representantes de periódicos da capital. De um dos
repórteres, - identificado apenas por Epitácio - Luiz Saia obteve uma carta de recomendação da equipe ao coronel
José Pereira Lima, personalidade então influente no sertão paraibano. 548 Nesta última conversa com a imprensa

533
- Cad.de Campo 1.B, p.86-87. Segundo Luís da Câmara Cascudo (“Dicionário do Folclore Brasileiro”, 1984) Peji - “Altar
armado e dedicado a um orixá nos candomblés jeje-nagôs”
534
- Com exceção de pequenos lembretes, a Cad.de Campo 1.B está praticamente preenchida com a identificação e descrição
de objetos de Xangô.
535
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946 - Coleção Martin Braunwieser, melodias nºs 497-504
536
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
537
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946. Coleção Martin Braunwieser, melodias nºs 505-511
538
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.6 - “21-3 - Selos estatística transporte aparelhos João Pessoa....5$400”
539
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946. Coleção Martin Braunwieser, melodias nºs 512-541
540
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.6
541
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946. Coleção Martin Braunwieser, melodias nºs 542-570
542
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
543
- Cad.de Campo s/nº, p.74
544
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.6
545
- Acervo Histórico DPM: T58P7
546
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.6
547
- idem p.6
548
- Carta de apresentação Doc.nº 11 - de Epitácio a Coronel José Pereira Lima, Recife, 25 de março de 1938
94

recifense, Luiz Saia procurou agradecer a todos aqueles que colaboraram com o trabalho da equipe, incluindo o
Delegado João Roma e o colaborador tacaratuense Napoleão Xavier.

“(...) Antes de deixar o Estado de Pernambuco, onde a Missão por mim chefiada colheu vasto material
folclórico, graças à riqueza de colorido da paisagem humana da região nordestina e à carinhosa acolhida
que nos foi dispensada.
(...)
Se, da parte de todos aqueles com quem tive contato, pude receber um acolhimento amigo, não posso
deixar de mencionar, especialmente, certos nomes, sem ajuda dos quais, nada teria realizado a Missão.
(...)
Gratidão devemos à bondade do sr. João Roma e auxiliares, que nos proporcionaram a colheita de
valioso número de peças e material sobre as religiões negras do Recife.
Quero, sobretudo, deixar o testemunho da nossa gratidão e reconhecimento àqueles que nos assistiram
em todos os momentos, trabalhando conosco na procura do material bom, aconselhando e indicando:
Samuel Campelo e seus auxiliares do Teatro Santa Isabel; Waldemar de Oliveira; Ascenso Ferreira;
Oscar Moreira Pinto; Mário Melo. (...)
Da nossa viagem ao sertão pernambucano, não podemos deixar de fazer uma referência toda especial
ao sr. Napoleão Xavier que soube ser um cicerone dedicadíssimo, pondo à nossa disposição todo
prestígio que desfruta na zona que visitamos. (...)
Antes de terminar, quero deixar o nosso muito obrigado à imprensa e rádio do Recife que souberam tão
bem compreender os objetivos do nosso trabalho e nos auxiliaram com tanta eficiência e dedicação. (...)
Na Paraíba, para onde vamos agora, esperamos, também, colher muito material e encontrar a mesma
acolhida carinhosa que tivemos aqui. Sobretudo porque um sucesso da nossa missão tornará possível a
549
vinda de outras. E isto quer dizer: maior amizade entre o Norte e o Sul [do país].”

Durante o período de 16 a 25 de março, a identificação dos objetos de Xangô e a conseqüente remessa do


material à São Paulo foram consideradas atividades prioritárias para os componentes da Missão. As razões de tal
prioridade se deviam às pressões políticas que ocorriam distantes dali, em São Paulo.
Na capital paulista, Mário de Andrade passava a viver cada vez mais uma situação delicada como diretor do
Departamento de Cultura, sendo pressionado pela nova administração pública - encabeçada pelo então prefeito
Francisco Prestes Maia -, a abandonar o cargo que exercia. O Turista Aprendiz considerou a remessa da coleção de
objetos populares como um elemento importante justificar as atividades da Missão frente aos novos dirigentes políticos
pois a continuidade evento, seja pelos objetivos etnográficos, seja devido aos gastos que o empreendimento implicava,
estava sendo questionada:

“(...) A coleção de objetos de xangô dada a sua importância e possíveis reviravoltas, acho de toda
conveniência que você mande tudo imediatamente, pra ir sendo disposto aqui no Museu [Folclórico da
550
Discoteca Pública Municipal]. Preciso provar que a Missão está trabalhando bem (...).”

Com efeito, a necessidade de Mário de Andrade justificar a realização do evento, provando que a Missão estava
cumprindo de maneira satisfatória seus objetivos etnográficos, com pouco gastos financeiros, foram o resultado de
pressões políticas que questionaram injustamente os objetivos e as altas verbas destinadas à realização da expedição.
Próximo ao término da viagem da Missão, em fins de maio de 1938, quando mantinha apenas a chefia da Divisão de
Expansão Cultural do Departamento de Cultura substituído por Francisco Pati na direção da instituição, Mário de
Andrade ainda justificava a realização do empreendimento. Para isso, em manifestação escrita ao novo diretor do
Departamento de Cultura de São Paulo efetuada por solicitação do prefeito Prestes Maia, Mário de Andrade lembrou
que todas as verbas haviam sido reservadas no exercício administrativo anterior e que os resultados etnográficos
obtidos pela expedição até então (maio de 1938), eram de extrema valia para o conhecimento e os estudos de folclore
brasileiro, destacando entre eles, a coleção de objetos de Xangô conseguida através de doação à Missão:

“Divisão de Expansão Cultural - 23 de maio de 1938 - Exposição dos atos e conseqüências da Missão
Folclóricas atualmente em viagem pelo norte do Brasil. Sr. Diretor
Em obediência às ordens do Sr. Prefeito, vem esta chefia apresentar uma exposição detalhada dos
trabalhos da Missão de Pesquisas Folclóricas, enviada por esta Divisão (Seção de Discoteca Pública) ao
Nordeste e Norte do país. (...)
O Departamento de Cultura obteve da Câmara Municipal, no ano passado [1937], a verba de sessenta
contos de réis para financiamento da Missão. É com esse dinheiro retirado e já entregue à Missão, que
esta se move. Si houvesse excedente, este seria pago pelas sobras de verba de cincoenta contos que
temos para gravações afins e de música erudita paulista, no orçamento vigente. (...)

549
- Hemeroteca Doc. nº 41x - “Seguem, hoje, para a Paraíba, os membros da Missão de Pesquisa Folclórica de São Paulo.”,
Recife, Jornal do Comércio, 26 de março de 1938.
550
- Corresp.Doc.19 - de Mário de Andrade a Luiz Saia, 9 de março de 1938. Os grifos são de Mário de Andrade
95

Esta Chefia ousa apresentar as seguintes razões para que pelo menos esta Missão deva continuar seu
trabalho e terminá-lo:
1) Os dinheiros para elas conseguidos, já estão retirados e não implicam em mais nenhum ônus para a
Municipalidade. As despesas principais (seguro dos aparelhos, contratos técnicos) que foram as dos
preparativos da viagem, já foram feitas.
2) O rendimento científico da Missão tem sido simplesmente admirável. A primeira remessa de objetos
folclóricos, (para mais de trezentas peças pernambucanas), quase todos obtidos grátis [sic], enriqueceu
sobremaneira o acervo da Divisão. Quanto as canções, os documentos anexos mostram a riqueza obtida
em apenas dois meses de trabalho (...)”. 551

A coleção de objetos populares chegou em São Paulo em meados de abril de 1938, seguindo de imediato à
Discoteca Pública Municipal. O entusiasmo de Oneyda Alvarenga pela qualidade etnográfica do material foi enorme.
Frustrada por não compartilhar com Mário de Andrade a alegria de ver um acervo folclórico tão precioso - Mário estava
no Rio de Janeiro tratando das necessidades para seu “exílio” na cidade 552 -, Oneyda Alvarenga relatou em
correspondência sua admiração pela coleção de objetos recolhidos pela Missão:

“Mário, / vão aqui duas linhas apressadas, só para lhe contar que o material colhido pela Missão em
Pernambuco já chegou. A coleção é enorme e notável. Enquanto abria os caixotes lamentei você não
estar vendo também as descobertas sucessivas, porque juro que você faria a cara mais gostosa deste
mundo. O casal Lévi-Strauss ficou de queixo caído.
Deixei o material todo na sala da Sociedade de Etnografia e Folclore, por não ter outro lugar onde guardá-
lo. Está lá por cima das mesas. Tive o cuidado de fechar portas e janelas a sete chaves (...)”. 553

Oneyda Alvarenga, através da Discoteca Pública Municipal que chefiava, enfrentou sérios entraves políticos e
financeiros que impediram o estudo e divulgação imediata da totalidade do material resgatado pela expedição de 1938,
inclusive da coleção de objetos. Na realidade, desde o afastamento de Mário de Andrade, a Discoteca Pública
Municipal se ressentiu da falta de apoio oficial, tendo grandes dificuldades para manter seu espaço físico e lutar por
sua sobrevivência. Em 26 de março, Luiz Saia deixou Recife encontrando-se com seus companheiros de viagem em
João Pessoa.

551
- Documentos originais da MPF - “Exposição dos atos e conseqüências da Missão...” p.2-3. O grifo é de Mário de Andrade.
552
- CASTRO, M.W. - “Mário de Andrade - exílio no Rio.”, Rio de Janeiro, Rocco, 1989. p.20
553
- ANDRADE, M. de & ALVARENGA, O - “Cartas.”, São Paulo, Duas Cidades, 1983. p.135 - Correspondência datada de 18 de
abril de 1938.
96

2.5 - De 26 a 31 de março: contatos com autoridades paraibanas -coletas na capital João


Pessoa

Em 26 de março, sábado, Luiz Saia partiu do Recife com destino à capital João Pessoa, encontrando-se com
seus companheiros instalados oficialmente no Hotel do Estado. 554 Com o transporte para João Pessoa, realizado em
um ônibus-jardineira, além de um lanche consumido durante a viagem, Luiz Saia gastou 30$000 réis. 555 Antes da
partida do Recife, o Chefe da Missão acertou todas suas despesas efetuadas no Hotel Central, pagando a quantia de
494$000 réis como diárias, e oferecendo 60$000 como gratificação aos funcionários do Hotel. 556
Logo após a chegada, ainda pela manhã, os integrantes da Missão encontraram-se com Ademar Vidal - um
precioso colaborador da equipe durante a estadia da expedição no Estado da Paraíba. Nesse dia, segundo Luiz Saia,
“(...) este mesmo amigo da Missão proporcionou uma apresentação ao sr. Interventor [Argemiro de Figueiredo] e
secretários do Estado da Paraíba, dos quais vimos recebendo a assistência mais eficiente e produtiva (...)”. 557
Ainda em 26 de março, após a apresentação oficial da Missão às autoridades paraibanas, Luiz Saia tratou de
divulgar a presença da expedição no Estado concedendo entrevista em periódico da capital. No artigo, onde lembrou o
significado atribuído por Mário de Andrade à música paraibana, o Chefe da expedição procurou estimular ainda mais a
competição pela primazia cultural nordestina existente entre Pernambuco e Paraíba. Com tal atitude, Luiz Saia
pretendia criar um ambiente ainda mais propício à coleta etnográfica no Estado, favorecendo os trabalhos de
documentação. Para isso, a Missão contou inclusive com o apoio de uma estação de rádio da capital João Pessoa:

“(...) A Missão que se encontra no Nordeste há mais de um mês, esteve durante esse tempo em
permanência em Pernambuco, colhendo vasto material de arte e técnica popular, desde canto de
carregador de piano até processos primitivos de trabalho.
Em conversa conosco na noite de ontem, o dr. Luiz Saia disse que está muito curioso de observar e
colher tudo o que for expressivo no colorido da paisagem humana de nossa terra.
Mário de Andrade, diretor do Departamento a que pertence a Missão - nome por demais conhecido em
todo Brasil -, que aqui esteve nos começos de 1928, é um entusiasta da riqueza folclórica paraibana. Daí
a esperança de que a Paraíba seja um dos Estados nortistas [sic] que mais contribua para as pesquisas.
(...)
Iniciando desde logo os trabalhos, a Missão vai se pôr em contato hoje à tarde, mais ou menos às 14
horas, com um dos blocos de “cabocolinhos”, para filmagem de suas danças características.
Através da P.R.I.- 4 Rádio Tabajara da Paraíba, o Departamento de Publicidade e Propaganda do Estado
está convocando, desde ontem, todos aqueles que tenham uma contribuição regional a dar à Missão
Folclórica de São Paulo que, no seu objetivo, merece o mais decidido apoio dos nossos conterrâneos,
uma vez que a Paraíba, quanto maior for o material fornecido no vasto campo das danças, da música e
do canto tradicionais, mais se classificará entre as outras zonas a serem percorridas e pesquisadas (...).”
558

Em 27 de março, domingo, às 20 horas, segundo combinação prévia com Ademar Vidal, a Missão deveria
assistir ao ensaio de uma chegança de marujos - dança dramática, também conhecida por nau catarineta, barca ou
fandango - de João Pessoa. Como vinha ocorrendo sistematicamente desde o princípio nos primeiros contatos com os
informantes populares, a equipe da Missão procuraria ambientar-se com a manifestação folclórica e suas
peculiaridades, realizando anotações de controle para registro etnográfico posterior.
Na tarde de 27, Luiz Saia e os demais integrantes da Missão foram de automóvel à praia de Tambau (15$000),
próximo da capital, acertando com um colaborador local - João Medeiros Frazão - para arregimentar um grupo de
cantadores de coco (dança coletiva), com intuito de realizar a gravação das melodias e filmagem da dança dali poucos
dias. 559
Ainda em Tambau, a equipe visitou o Convento de São Francisco, construído no século XVIII. Nesse local, Luiz
Saia realizou anotações específicas sobre a arquitetura do edifício relatando em uma caderneta de campo, 560 a
existência de “(...) páteo todo azulejado e com 3 vidros de cada lado (...)”, de um “(...) cruzeiro de primeiríssima ordem
(...)”, de uma “(...) imagem muito boa (...)” colocada em um nicho lateral; mas também observou que, o coro no interior
da capela, “(...) pelo seu feitio magricelo e meio espevitado, é de época posterior a da feitura do restante que é
gorduroso e jesuítico (...)”. 561

554
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
555
- idem ibidem p.7
556
- idem ibidem
557
- idem ibidem p.2
558
- Hemeroteca Doc. nº 42x - “Pesquisando o Folclore Nortista / está nesta capital a Missão do Departamento de Cultura da
municipalidade de São Paulo.” João Pessoa, A União, 27 de março de 1938.
559
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2, 6
560
- Cad.de Campo 2.B, p.59-63
561
- idem ibidem
97

Apesar de ter agradado relativamente o Chefe da Missão, pode-se supor que o convento visitado pela Missão
seja o mesmo que deslumbrou Mário de Andrade, 10 anos antes, em sua segunda viagem etnográfica (1928-29), onde
o Turista Aprendiz chegou inclusive a afirmar que a construção era “(...) a igreja mais graciosa da arquitetura brasileira
(...)”:

“(...) Chego ao pátio do convento de S. Francisco e paro assombrado. (...) Do Nordeste à Bahia não
existe exterior mais bonito nem mais original que este. E mesmo creio que é a igreja mais bonita do Brasil
- uma gostosura que nem mesmo as sublimes mineirices do Aleijadinho vencem em graciosidade. Não
tem dúvida que as obras do Aleijadinho são de muito maior importância estética, histórica, nacional e
mesmo as duas S. Francisco de Ouro Preto e S. João del Rei serão mais belas, porém esta de Paraíba é
562
graça pura, é menina moça, é uma bonina. Sorri. (...)”.

Na noite de 27, no bairro de Torrelândia, periferia de João Pessoa, às 20:30 horas, a Missão assistiu ao ensaio
da chegança de marujos. O grupo de informantes populares - composto por 21 integrantes -, dançou, cantou e contou,
durante quase 3 horas e meia de ensaio, 563 as desventuras do “(...) enredo tragicômico de uma nau sem rumo (...)”.
564
As anotações desse ensaio foram realizadas por Luiz Saia em uma caderneta de campo, sendo posteriormente
datilografadas para o acervo da Discoteca Pública Municipal. 565 Com o grupo de chegança de marujos a Missão
acertou os detalhes, combinando os trabalhos de gravação para após o retorno da expedição de sua primeira viagem
ao interior da Paraíba, que seria realizada entre os dias 1º e 24 de abril.
Entre 28 e 29 de março, segunda e terça-feira, a equipe da Missão continuou seus contatos em busca de
manifestações folclóricas de interesse etnográfico. Conforme foi anunciado pela imprensa da capital na tarde de 28 de
março, a expedição encontrou-se com um grupo de cabocolinhos Índios Africanos, combinando sessão de gravação e
filmagem nos dias seguintes.
Em 28 de março, em correspondência a Oneyda Alvarenga, Luiz Saia comentou o planejamento de todas
atividades da Missão para a Paraíba. Nessa carta, além disso, Luiz Saia lamentou-se para Oneyda Alvarenga sobre o
pouco tempo disponível para pesquisas mais completas e sistemáticas; parte do empenho da Missão esteve sempre
comprometido com os chamados rebates falsos, grupos populares de poucas qualidades etnográficas. Ressalte-se
também o longo tempo consumido com apresentações da equipe a autoridades políticas locais:

“(...) Aqui em João Pessoa ainda nesta semana vamos gravar e filmar cabocolinhos e Nau Catarineta. O
bumba-meu-boi está quase arrumado. Viajaremos para o interior também. Ainda que não tenhamos
tomado completamente o pé daqui, parece que colheremos coisas interessantes. No começo é sempre
uma desgraça o rebate falso. O pessoal arranja cada coisa para a gente gravar!
(...)
Não pense que é vagabundagem não ter mandado [os relatórios] até agora. Grande parte do meu tempo
aqui é consumido nesse trabalho chato de visitas oficiais etc. No Pernambuco, por exemplo, nem tempo
consegui para ver a arquitetura, coisa que me interessa muito como você sabe. Segue nesta semana
uma relação das peças despachadas (cujo conhecimento vai anexo) pra que se possa aí dar um destino
a elas. Alguma falha nesta relação vai por conta do tempo precário e será consertada quando
chegarmos. Por enquanto o Museu [Folclórico da Discoteca] que vá se arranjando como puder com a
relação que mando. Não há outra maneira de se trabalhar. Ou se perde tempo em organizar o material
colhido diminuindo a quantidade dele, ou então se deixa uma organização melhor para mais tarde e se
colhe a maior quantidade possível. Acho indiscutivelmente mais certa a solução que escolhi: colher a
maior quantidade de material possível, ainda que não se lhes dê imediatamente uma organização
566
definitiva. Esta poderá ser efetivada quando aí chegarmos (...)”.

Em 29 de março, terça-feira, a Missão permaneceu no Hotel do Estado, onde realizou pesquisas com um poeta
popular - Manuel Pereira Lima - que fôra arregimentado à equipe por Ademar Vidal. Do informante, além de seus
dados pessoais, foram registrados apenas os versos de um desafio em viola entre um moço e um velho, anotados por
Antônio Ladeira em uma caderneta de campo:

“(...)
Leitor faz o obséquiu / Di lê muderadamente / Uns versos sobre o passado / E outro sobre o presente /
Uma discussão que tive / Com um velho inteligenti.

Nu ano próximo passado / Fui cantar em um lugá / Brinquei arranjei dinhêro / Levei a noute em farrá / E
disse no outro dia / Só saio quandu almoçá.

562
- ANDRADE, M. de - “O turista aprendiz.” 1976. “Paraíba, 30 de janeiro, [1929] 16 horas” p.313.
563
- Cad.de Campo 2.B, p.65
564
- cf. “Enciclopédia da Música Brasileira - erudita, popular e Folclórica.”, 1977.
565
- Cad.de Campo 2.B, p.65-92. Acervo Histórico DPM: T70P80
566
- Corresp.Doc.36 - de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga, João Pessoa, 28 de março de 1938.
98

Tinha um velho apriciando / O meu cantar arrepente / Eu cantei i namorei / Fumei bibi aguardente /
Depois eu disse na farra / Tempo bom é tempo presente. (...)”. 567

Em 30 de março, a equipe da Missão se deslocou com todos os equipamentos técnicos até a praia de Tambau,
onde gravou e filmou os cocos com suas coreografias características, realizadas por um grupo de 39 informantes. O
transporte utilizado na ocasião era de propriedade de João Gomes de Brito - motorista de caminhão contratado pelo
Governo do Estado da Paraíba, com veículo cedido à Missão para facilitar os trabalhos etnográficos da equipe. Com
esse veículo e seu proprietário - João Gomes de Brito -, a expedição realizou duas viagens pelo interior do Estado,
durante abril e maio. Como será visto, João Gomes de Brito foi de grande utilidade para os trabalhos da Missão,
tornando-se um amigo querido de toda a equipe.
Na praia de Tambau, foram gravados 5 discos de 12 polegadas contendo cerca de 30 exemplos de diversos
tipos de coco: segundo a construção poética do texto - coco martelo ou embolada - ou segundo a formação
568
coreográfica do grupo - coco de pareia ou coco de roda.
Devido à realização do filme cinematográfico registrando a dança, 569 Luiz Saia não se preocupou em efetuar
um documentário fotográfico extenso. O Chefe da expedição registrou somente três fotogramas: dois, mostrando o
tocador de ganzá do grupo, identificado por João Fulô, em atividade; e o outro, com detalhes dos solistas de dança, em
um coco de parelha. 570 Durante os trabalhos da equipe em Tambau, a Missão recebeu a visita oficial do Secretário do
Interior do Estado da Paraíba - Dr. José Mariz -, acompanhados por Ademar Vidal e León F. Clerot. 571
O grupo de coquistas da praia de Tambau era integrado por indivíduos provenientes de várias zonas próximas à
capital João Pessoa. Esse grupo de 31 informantes foi convocado às vésperas do trabalho de gravação e filmagem,
pela modesta soma de 5$000 réis por cabeça, por solicitação do Chefe Missão ao colaborador - João Medeiros
Frazão:

“À distincta Commissão Paulista / Eu João Medeiros Frazão, encarregado da brincadeira que vai se exibir
às 9 horas do dia nesta praia, tenho a satisfação de entregar meus serviços e esforço que prestei com
esta.
Certifico-vos que fui às seguintes zonas, Poço e Enxiada, Cabo Branco, conforme V.S. pediu para eu
communicar aos que se interessavam para esta. Encontrei só podendo vir com a gratificação pelo mínimo
de 5$000 cada, sitando ser dia de trabalho não podendo vir por menos, para alguns até esforço.
Ficando a fazer a relação na hora que estiverem no ponto determinado a função. Saúde e fraternidade /
572
João Medeiros Frazão”.

Os dados sobre os informantes, a relação e os textos das melodias, descrições sobre particularidades das
coreografias executadas, foram anotadas por Ladeira, Pacheco e Luiz Saia em três cadernetas de campo. 573 Os
gastos da Missão na praia de Tambau somam a quantia de 371$000 réis, dos quais 350$000 foram pagos com a
alimentação e gratificações aos coquistas, e 21$000 réis com 15 litros de gasolina para o transporte até o local. 574
Em 31 de março, quinta-feira, a Missão deslocou-se ao bairro de Torrelândia, em João Pessoa, para
documentar o grupo de cabocolinhos Índios Africanos, conforme combinação realizada dias antes. Durante o trajeto,
Luiz Saia teve oportunidade de observar um pouco da arquitetura da região, efetuando inclusive o registro fotográfico
de uma habitação popular das redondezas. 575
Do grupo de cabocolinhos Índios Africanos, a equipe gravou um lado de disco de 12 polegadas, contendo
exemplos da música instrumental - executada por 2 zabumbas, 2 ganzás e 1 pífano - e das embaixadas - parte falada
da dança dramática. 576 O maestro Martin Braunwieser também efetuou anotação direta de 12 fragmentos musicais
tocados pelo pífano, registrando algumas variações melódicas de trechos tocados pelo instrumento. 577
Além da realização do filme cinematográfico, 578 Luiz Saia também responsabilizou-se pela execução
documentário fotográfico da manifestação, registrando 7 fotogramas com detalhes da coreografia e do grupo de
informantes. 579 O Chefe da Missão registrou também nessa ocasião, um dos poucos instantâneos que documentam o
trabalho de coleta realizado pela equipe. Nesse fotograma, pode-se ver o Técnico de gravação, Benedito Pacheco
com fones de ouvido, à frente do aparelho Presto Recorder, montado sob uma árvore e cercado de gente do povo. 580
567
- Cad.de Campo 2.A, p.97-118 / Caderno “Textos” A. Ladeira, p.85-113. Acervo Histórico DPM: T34P3
568
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.45-46. Discos F.30-F.34, fons.117-141
569
- Acervo Histórico DPM: Filme nº 8.A, P&B, silencioso, 3'23” (“Coco - Dança”)
570
- Documentos originais da MPF: Fotos 147-149
571
- Documentos originais da MPF: Foto 534. Neste fotograma pode-se ver, da esquerda para direita: Luiz Saia, Ademar Vidal,
José Mariz e León Clerot. Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.2
572
- Corresp.Doc.8 - de João Medeiros Frazão a Missão, Tambau, 30 de março de 1938
573
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 1.C, p.120-134 (Ladeira); Cad.de Campo 3.A, p.67-85 (Saia)
574
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.7
575
- Documentos originais da MPF: Foto 728
576
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.38-39. Disco F.35, fons.146-147
577
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946. Coleção Martin Braunwieser, melodias nºs 406-417
578
- Documentos originais da MPF: Filme nº 6.A, P&B, silencioso, 3'15” (“Cabocolinhos índios-africanos”)
579
- Documentos originais da MPF: Fotos 152-157
580
- Documentos originais da MPF: Foto 745
99

Os gastos com o grupo de cabocolinhos Índios Africanos somaram a quantia de 211$200 réis, dos quais
200$000 foram oferecidos pela colaboração com a equipe da Missão; 11$200 réis, correspondem ao pagamento de
cigarros e aguardentes para os integrantes do grupo. 581
A partir de 1º de abril de 1938, sexta-feira, a Missão iniciou a primeira viagem pelo interior da Paraíba, realizada
no caminhão cedido pelo Governo paraibano, de propriedade de João Gomes de Brito, sendo acompanhada até o
município de Campina Grande pelo escritor e folclorista paraibano Pedro Batista. 582

581
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.7
582
- Pedro Batista é autor de um estudo sobre os cangaço na região: “Cangaceiros do Nerdeste.”, Paraíba, Liv. São Paulo, 1929.
279 p.
100

2.6 - De 1º a 24 de abril: viagem ao interior da Paraíba - a zona do sertão

Em 1º de abril, sexta-feira, às 19 horas, com o caminhão cedido pelo Governo da Paraíba dirigido por João
Gomes de Brito, a Missão partiu de João Pessoa, depois de ter tomado um “(...) ótimo caju com cana na casa do
Pedro Batista (...)”. 583 O escritor paraibano acompanhou de automóvel a equipe até o município de Campina Grande,
especificamente à Fazenda Pedreira, na vila de Corta-Dedo.
No trajeto, a Missão passou rapidamente pelos municípios de Santa Rita, Espírito Santo, Cobé, Pilar - “(...)
antiga aldeia indígena fundada pelos padres em 1670 (...)” -, e Itabaiana, onde a equipe realizou uma parada mais
demorada na residência do chofer João Gomes de Brito. A julgar pelas anotações no diário de Luiz Saia, a estrada até
o município de Itabaiana estava em péssimas condições. Em Cobé houve necessidade de uma rápida”(...) parada para
verificar as molas do caminhão (...)”, 584 pois a trepidação era muito grande.
A escala da Missão em Itabaiana foi em atenção ao motorista do caminhão João Gomes de Brito. A chegada
ocorreu às 21:15 horas. Segundo Luiz Saia, “(...) na casa do chaufeur, que fica ao pé da cadeia pública e à margem da
Estrada da G.W., paramos e entramos para tomar um café e pra ele se despedir da família (...)”. 585 A saída de
Itabaiana foi às 22:00 horas, “(...) depois de um café com batata doce, caju de São Tomé e peixe (curimatã) na casa do
chaufeur. (...)”. 586
A próxima parada foi no município de Ingá, às 23 horas, onde, segundo Luiz Saia, “(...) tivemos que parar
porque o caminhão não tinha mais luz (...)”, 587 talvez como resultado da intensa trepidação do veículo, conseqüência
do estado de conservação da estrada. Em Ingá, foi decidido que a equipe realizaria o pernoite, para retomar a viagem
no dia seguinte pela manhã: “(...) Paramos no Hotel Glória e aí lanchamos e dormimos (isto é, vamos dormir) 24 horas
(...)”. 588
Às 5:15 horas de 2 de abril, sábado, a Missão partiu de Ingá. Os gastos do alojamento no Hotel Glória somaram
42$500 réis, dos quais 4$000 foram oferecidos como gratificação aos funcionários. Um pouco adiante, 15 minutos
depois, a equipe parou em “(...) Fazendinha (venda de estrada), também chamada entrada do Sursão (...)” para
calibrar “(...) os pneumáticos (...)” do caminhão. Às 6:30 horas, a expedição chegou em Campina Grande. Logo na
entrada da cidade, a segunda maior em população no Estado e grande centro econômico na região, havia uma feira
popular. A oportunidade de verificar os elementos de interesse etnográfico naquela feira era muito boa. Os 4
integrantes da expedição, acompanhados de Pedro Batista e pelo motorista João Gomes de Brito, decidiram antes
mesmo de cuidar da hospedagem da equipe, realizar um passeio de observação.
Assim, Luiz Saia efetuou diversas fotografias enfocando aspectos gerais e localização da feira na cidade. 589
Nesta feira, o Chefe da Missão adqüiriu um punhal que serviria para qualquer eventualidade durante a viagem
(20$000). 590 Foram feitos pelo menos dois contatos da equipe com informantes populares para gravação posterior:
mendigos que entoavam cantigas pedindo esmolas e com alguns indivíduos cantadores de pastoril. Em ambos casos,
Luiz Saia chegou inclusive a dar uma pequena soma em dinheiro como forma de adiantamento pela colaboração
(4$900). 591 Apesar dos versos cantados terem sido anotados por Luiz Saia em uma caderneta de campo, 592 os
trabalhos de gravação não acorreram.
Após a visita à feira, os integrantes da Missão procuraram alojamento, indo se hospedar, juntamente com Pedro
Batista, no Campina Hotel. Aí, todos se banharam e tomaram seu café da manhã. Depois disso, o Chefe da expedição
procurou proceder como vinha fazendo em outras localidades visitadas pela equipe: conversar com as autoridades
locais e divulgar a presença da Missão pela região, procurando facilitar os trabalhos de coleta. Dessa maneira, Luiz
Saia se encaminhou à sede do principal periódico de Campina Grande e redondezas - o jornal Voz da Borborema -,
fornecendo as informações para uma reportagem em que procurava esclarecer as próximas atividades da equipe:

“(...) Procedente de João Pessoa, chegou hoje nesta cidade a Missão de Pesquisas Folclóricas do
Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo. (...)
Há cerca de um mês que [a Missão] se encontra no Nordeste, (...) recolhendo material de arte e técnica
popular, desde o canto de carregar piano até os cantares do povo nas suas várias ocupações de
trabalho.
É possível que a Comissão, na sua passagem pelo Cariri Velho, encontre alguma cousa de expressivo e
colorido pertinente à paisagem humana da terra campinense.

583
- Cad.de Campo 4.A, p.3
584
- idem ibidem
585
- idem, p.4
586
- idem, p.5
587
- Cad.de Campo 4.A, p.5
588
- idem ibidem
589
- Documentos originais da MPF: Fotos 504, 513-514, 517, 539, 544
590
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.7
591
- idem ibidem
592
- Cad.de Campo 4.A, p.7
101

A propósito da passagem por esta cidade a Missão (...) recebeu o nosso colaborador Dr. Hortênsio de
Souza Ribeiro telegrama do escritor Pedro Batista, avisando-o da vinda da missão folclórica paulista, a
qual deseja ir até Cabeça de Boi ouvir o cantador nortista Zé-da-Luz.” 593

Seguindo informações, Luiz Saia procurou nesse dia, o “(...) Comandante do 2º Batalhão de Polícia Major
Manoel Viegas (...)” por ordem do “(...) Comandante Tenente Coronel Delmiro de Andrade (...)” para obter informações
sobre “(...) dois cantadores soldados (...)”. 594 Esse contato do Chefe da expedição não resultou em nenhuma coleta de
documentos. Também em Campina Grande, Luiz Saia procurou providenciar o alojamento para a equipe em outras
localidades, conversando com “(...) Manuel Figueiras - chefe do Tráfego contra seca (...)”. 595 Com efeito, segundo o 1º
relatório entregue à Discoteca Pública Municipal, a equipe da Missão depois dessas conversações com Manuel
Figueira, teve alimentação e alojamento franqueados em diversos municípios da Paraíba, sendo ora auxiliada pelas
prefeituras locais e ora pela Inspetoria do Estado Contra as Secas:

“(...) A estadia nas cidades da Paraíba onde estávamos correu, em geral, por conta das respectivas
municipalidades, salvo nas cidades seguintes: Campina Grande, Sousa, Curema (nestas duas últimas
somente a refeição correu por conta da Missão, ficando hospedados em casa fornecida pela prefeitura e
Inspetoria do Estado Contra as Secas respectivamente), Itabaiana, Alagoa Grande e Baía da Traição.
(...)”.596

Em 3 de abril, domingo, visando preservar mais ainda as finanças da Missão, a equipe encerrou suas contas
com o Campina Hotel passando o dia em casa cedida pela prefeitura de Campina Grande. Os gastos com o
alojamento no Campina Hotel, incluindo o escritor Pedro Batista a quem a equipe ofereceu a diária, somaram 137$000
réis dos quais 7$000 foram oferecidos como gratificação.
Em 4 de abril, segunda-feira, às 7:30 horas, a expedição partiu de Campina Grande com destino à vila de Corta-
Dedo e à fazenda Pedreira. Em um automóvel provavelmente de propriedade de Pedro Batista, viajaram além do
escritor paraibano, Martin Braunwieser, Antônio Ladeira e Luiz Saia. Acompanhando o trajeto, vinham o motorista João
Gomes de Brito e Benedito Pacheco viajando no caminhão que carregava todos os equipamentos da expedição. Bem
próximo de Campina Grande, “(...) ainda no fim da cidade (...)”, o grupo passou por Boedengó, onde se localizava “(...)
uma pequena feira [com] muita comida (...)”. Às 8:15 horas, chegaram à vila Corta-Dedo, localizada em pleno sertão do
Cariri velho. Durante o trajeto, “(...) realizado por uma estrada muito boa (...)”, Luiz Saia anotou em seu diário
observações referentes à geografia da região percorrida: “(...) Esta zona porque passamos (assim como até Cajazeira)
é toda de canavial. Canavial é mais baixo que a caatinga e é mais sáfaro. Tem sobretudo muito seixo e imbuzeiro (...)”.
597

Antes de Corta-Dedo, “(...) num pedral chamado zamba (...)”, 598 a equipe teve oportunidade de verificar
diversas inscrições rupestres. Mesmo se tratando de assunto arqueológico distante dos objetivos folclóricos
etnográficos da Missão, Luiz Saia procurou registrar em croquis e fotografias todos os desenhos traçados nas rochas.
Dessa maneira, o Chefe da expedição indicou em uma caderneta de campo o local exato onde se encontravam as
inscrições; 599 registrou em um caderno específico - com folhas de seda separando papéis de textura mais espessa -,
croquis das desenhos feitos nas rochas. 600 Foram efetuadas 19 fotografias documentando aspectos gerais do local e
detalhes das inscrições rupestres. 601
Logo em seguida, a equipe da Missão se encaminhou para a fazenda Pedreira com o objetivo de gravar as
toadas de viola executadas por Zé da Luz, cantador e violeiro afamado pela região. Com Zé da Luz, a Missão gravou 2
discos de 12 polegadas, com 12 exemplos de música instrumental pura - valsas, marchas, baião, chótis, farinha e
oitava. 602 Os dados sobre o informante e a relação das melodias tocadas por ele foram anotados por Ladeira e
Pacheco em duas cadernetas de campo. 603 Foram realizadas duas fotografias para controle do material: a primeira,
do próprio Zé da Luz; a segunda, de sua casa na Fazenda Pedreira. 604
A viola tocada por Zé da Luz durante as gravações tornou-se objeto de interesse para a Discoteca Pública de
São Paulo após o término da viagem da Missão. Em agosto de 1938, quando enfim foram ouvidos os discos gravados
pela expedição, a Discoteca Pública Municipal - por intermédio de Luiz Saia -, desejou adqüirir o instrumento musical

593
- Hemeroteca Doc. nº 43x - “Está nesta cidade a Missão de Pesquisas Folclóricas de São Paulo.” Campina Grande, Voz da
Borborema, 2 de abril de 1938.
594
- Cad.de Campo 4.A, p.6
595
- idem ibidem
596
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.3
597
- Cad.de Campo 4.A, p.9
598
- idem ibidem
599
- idem, p.9-12
600
- O caderno de desenhos, com capa vermelha e 15 folhas, está preservaado junto às Pastas de Dados organizadas por
Oneyda Alvarenga, classificado por D2P1
601
- Documentos originais da MPF: Fotos 550, 568-579, 711-721
602
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.73-74. Discos F.34B-F.36A, fons.142-156
603
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 1.C, p.136-140 (Ladeira)
604
- Documentos originais da MPF: Fotos 150-151
102

para realizar estudos de seu timbre e sonoridade peculiares, além de sua incorporação ao acervo do Museu Folclórico
da instituição. Com esse intuito, Luiz Saia comunicou-se com João Gomes de Brito na Paraíba, pedindo-lhe a compra
e a remessa do instrumento a São Paulo. É interessante reproduzirmos aqui a série de correspondências entre o
Chefe da Missão e o motorista da expedição pois, entre outros elementos, esses documentos podem ilustrar a
importância atribuída ao estudo tímbrico das gravações realizadas pela equipe; o cuidado exigido para a embalagem e
empacotamento do instrumento, procedimento sistemático da Missão; o relacionamento amigável estabelecido entre
Luiz Saia e o motorista da expedição:

“São Paulo, 20 de outubro de 1938 / Meu caro amigo João Gomes de Brito. Um abraço. (...)
Eu não escrevi antes por causa das atrapalhações naturais que surgiram aqui depois de 6 meses de
ausência. E já devia ter escrito porque precisava que você fizesse aí um favor que vou pedir agora. É o
seguinte:
Você lembra daquela fazenda Pedreira no Corta Dedo (Cariri)? Certamente que lembra não? Lá tem
aquele violeiro Zé da Luz que tocou pra nóis [sic] gravarmos nos discos. O que eu quero de você é que
me compre aquela viola dele, encaixote direitinho com palha ou algodão se precisar e me despache pra
São Paulo pro endereço que darei nesta carta. Porém é absolutamente necessário que seja a mesma
viola que o Zé da Luz tocou pra nóis [sic] gravarmos. Outra não serve. E é também necessário que a dita
esteja encordada e pronta pra se tocar nela. Você veja quanto é tudo - compra da viola, encaixotamento,
despacho, trabalho seu e outras coisas que precisar - e me mande dizer por carta aérea que eu mandarei
um cheque com a importância. Si você não puder adiantar o dinheiro me escreva antes e então eu
mandarei mesmo antes. A viola você pode pagar até 60$000 ou 70$000. Si conseguir comprar ela por
menos é milhor. Sei que você tem jeito presses [sic] negócios e é por isso que venho amolar. E depois
pra você fica mais fácil porque está sempre viajando por aí.
Quando você encaixotar a viola não esqueça de arrumar direitinho no caixão e pôr bastante algodão ou
palha pra não estragar durante a viagem. Si fôr fácil me arranjar algumas daquelas cabeças de madeira
que eu procurava nos cruzeiros quando estive aí, ponha também dentro de um caixão e mande pra mim.
Insisto que a viola deve vir com as cordas completas e direitinho do jeito que o Zé da Luz usa pra tocar.
Não serve se as cordas forem colocadas por você ou alguma outra pessoa que não seja o Zé da Luz e
também si fôr outra viola. Não é que ela tenha grande valor em dinheiro mas é que ela tem um som
diferente das outras e a gente precisa estudar porque que o som é assim diferente. Quem devia ter visto
605
isso quando a gente estava aí era o Astríco que era o músico, mas ele não reparou nisso. Só agora
que o pessoal daqui ouviu os discos que gravamos na fazenda Pedreira e achou que o som daquela viola
era diferente. Então precisa estudar ela. O despacho dela pode ser feito de navio mesmo. (...)”. 606

Dois meses depois, em dezembro de 1938, João Gomes de Brito respondeu a correspondência de Luiz Saia. A
humildade do motorista da expedição durante a viagem à Paraíba pode ser notada na resposta e na grafia por ele
utilizada. Na realidade, o pedido de Luiz Saia para que a viola fosse enviada devidamente “(...) encordada e pronta pra
se tocar nela (...)” provocou confusão, pois, acertadamente, João Gomes de Brito e Zé da Luz não viam como o
instrumento musical poderia chegar afinado após seu transporte a São Paulo. Devido a isso, o motorista da Missão
não pôde atender de imediato a solicitação de Luiz Saia:

“Itabaiana, 23-12-1938 / Caro amigo Dr. Luiz Saia. Saudações.


Venho por meio desta dar-lhe minhas nutícias. Como seja o negócio da viola pois adias que tenho
vontade de lhe responder uma cartinha das datas 20 de outubro mais estando muito ocupado agora que
foi possível. Isto és... o cazo das demora também foi do assunto da viola que demore a me entender com
o José da Luz. Resolvi não embarcar a viola porque José da Luz disse que a viola só sustentava a
afinação vinte e quatro horas. E da vez que os snrs. eizirgiu que ela fosse afinada por José da Luz não
convém a viola hi porque é [o] mesmo que hi sem cordas. Agora se o snrs. quizer que a viola vás para
chegar a hi dizafinadas me responda que eu mandarei. Mais diz José d'Luiz que é o mesmo que hi sem
607
cordas. Portanto são essas razões que eu evitei as dispezas (...)”

A resposta de Luiz Saia, escrita em princípios de 1939, visou eliminar quaisquer dúvidas de João Gomes de
Brito em relação ao instrumento e sua afinação. O importante era a remessa da viola no mais breve período possível:

“São Paulo, 8 de janeiro de 1939 / Meu caro amigo João Gomes. Um abração e muito boas festas.
Recebi sua cartinha contando notícias e dando as razões pelas quais o pedido de compra daquela viola
ainda não foi satisfeito.

605
- “Astríco” é muito provavelmente uma corruptela de “austríaco”, talvez a forma encontrada pela simplicidade de João Gomes
de Brito para chamar Martin Braunwieser, austríaco de nascimento.
606
- Corresp.Doc.9 - de Luiz Saia para João Gomes de Brito. São Paulo, 20 de outubro de 1938.
607
- Corresp.Doc.11 - de João Gomes de Brito a Luiz Saia, Itabaiana, 23 de dezembro de 1938
103

A respeito da viola julgo bem a gente fazer da seguinte maneira: você comprará a viola do Zé da Luz tal
como ela se acha, com encordamento (si fôr possível ele que mande mais cordas para outro
encordamento sobressalente) afrouxado. Da forma que mandei dizer na minha primeira carta a viola deve
ser despachada num caixão. Não tem importância que ela não venha afinada (...)”. 608

Ainda no primeiro semestre de 1939, a viola de Zé da Luz chegou a São Paulo enviada por João Gomes de
Brito: “(...) faço-lhe um siente que lhe escrivi e mandei a viola (...)”. 609 Este instrumento musical foi incorporado ao
acervo do Museu Folclórico da Discoteca Pública Municipal, encontrando-se até os dias de hoje, preservado nesta
instituição. 610
Após a gravação das toadas de viola tocadas por Zé da Luz na fazenda Pedreira, em 4 de abril de 1938, a
Missão prosseguiu sua viagem pelo sertão paraibano. Os gastos na fazenda Pedreira somaram 125$000 reís,
divididos em gratificações, águas e pagamento aos informantes. Pela colaboração, o violeiro Zé da Luz recebeu a
quantia de 40$000 réis. 611
Às 13:00 horas, a equipe partiu da fazenda Pedreira, agora sem a presença do escritor Pedro Batista, com
destino ao município de Patos. Às 14:00 horas, a Missão chegou em Soledade, então uma pequena vila contituída por
“(...) uma rua logo perto do açude (...)” de mesmo nome. 612 Às 15:30 horas, a expedição chegou à Serra da Viração,
em um lugar onde “(...) 10 metros de um lado é Cariri e noutro [lado] é sertão (...)”. Aí, o caminhão parou um pouco
pois Luiz Saia achou o local “(...) magnífico para fotar (...)” 613 Às 22:30 horas, a equipe chegou ao Posto de Parada do
município de Salgadinho, onde, segundo Luiz Saia, tomaram um “(...) café sertanejo (...)” e pernoitaram. 614 As
características da região que a equipe se encontrava foram assim descritas pelo Chefe da expedição: “(...) aqui o vale
se acha brilhante fazendo um vale largo e às vezes arenoso. Logo antes disto tem à esquerda no pé da serra do
Teixeira a aldeia da Passagem. A técnica de pau a pique aqui ainda continua com pedra e predominância de paus de
fé. Surge algumas varandas. Daqui a Patos tem 5 léguas (...)”. 615
Em 5 de abril pela manhã, a Missão chegou à fazenda São José no município de Patos, onde pôde observar o
trabalho de três vaqueiros - Antônio Mendes, José Gomes Pereira (Zé Gago) e Joaquim Manuel de Souza (Joaquim
Preto) - reunindo o gado e praticando a vaquejada. Dos eventos e do local, a equipe efetuou uma farta documentação:
além de filme cinematográfico, 616 a Missão registrou 7 fotografias com detalhes dos informantes e da vaquejada. 617
Do grupo de vaqueiros foram gravados em um lado de disco de 12 polegadas, alguns exemplos de aboios. 618 Os
dados sobre os informantes, a relação das melodias registradas, além de um croqui (planta baixa) de uma casa na
fazenda, foram anotados por Pacheco, Ladeira e Saia em 3 cadernetas de campo. 619
Os integrantes da Missão passaram o dia na fazenda São José. Os gastos da equipe no local somaram
229$000 réis, divididos entre bebidas (3 sodas: 4$500); pagamento dos aboiadores (30$000); aguardente e vinho para
os vaqueiros (17$500); gratificação para um menino ajudante (2$000); refeições para a equipe na venda da fazenda
(15$000); e compra de uma vestimenta de couro pertencente a um dos vaqueiros (160$000). 620
No início da noite de 5 de abril, a Missão se dirigiu ao município de Patos, onde obteve alojamento franqueado
no Hotel Centenário. Ainda no dia 5, Luiz Saia e os demais integrantes da expedição foram recebidos pelo prefeito de
Patos - Dr. Clóvis Sátiro -, e por seu irmão e colaborador - Ernâni Sátiro. Através desses amigos, a equipe da
expedição procurou fazer contatos com populares da cidade, arregimentando manifestações folclóricas para
documentar. Dessa maneira, a equipe conheceu o representante de um grupo de bumba-meu-boi, com quem acertou
e combinou trabalhos de gravação para os próximos dias. Como adiantamento pelo trabalho, Luiz Saia ofereceu ao
grupo 90$000 réis. 621
A Missão também teve oportunidade de conhecer no dia 5 de abril, o violeiro afamado na região José Criança,
21 anos, filho e discípulo de Aleixo Criança então com 72 anos. Proveniente de Santa Luzia - lugar próximo do
município de Patos -, José Criança foi levado ao encontro da equipe por personalidades locais, entre eles o advogado
Ernâni Sátiro. Nesse primeiro contato, a equipe anotou vários versos entoados pelo cantador, combinando trabalho de
gravação para o dia seguinte. As anotações para controle do material foram realizadas por Antônio Ladeira e Luiz Saia
em duas cadernetas de campo, sendo depois datilografadas pelo chefe da expedição. 622 Martin Braunwieser teve

608
- Corresp.Doc.12 - de Luiz Saia a João Gomes de Brito, São Paulo, 8 de janeiro de 1938
609
- Corresp.Doc.15 - de João Gomes de Brito a Luiz Saia, Itabaiana, 11 de abril de 1939
610
- Vide ALVARENGA, O. (org.) - “Arquivo Folclórico vol.2: Catálogo Ilustrado do Museu Folclórico da Discoteca Pública
Municipal.”, Departamento de Cultura, 1950
611
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.7
612
- Cad.de Campo 4.A, p.13
613
- idem ibidem
614
- idem p.14
615
- idem ibidem
616
- Documentos originais da MPF: Filme 7.A “Vaqueiros na pega de bois”, P&B, silencioso, 0'48”.
617
- Documentos originais da MPF: Fotos 158-164
618
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.25. Disco F.36B, fons.157-165
619
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 1.C, p.141-147 (Ladeira); Cad.de Campo 4.A, p.15-17, 57 (Saia)
620
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.8. Esta vestimenta de couro ainda permanece inteiramente preservada no acervo
histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga - CCSP.
621
- idem ibidem
622
- Cad.de Campo 2.A, p.120-145 (Ladeira); Cad.4.A, p.19-55 (Saia). Acervo Histórico DPM: D27P2
104

oportunidade de registrar a melodia de um coco-embolada entoado por José Criança no primeiro encontro com a
Missão. O canto foi acompanhado por colaboradores, talvez funcionários do Hotel Centenário e integrantes da equipe,
que entoavam seu refrão. Uma versão letra foi anotada por Benedito Pacheco em uma caderneta de campo:

“Todos: Chôa azulão, chôa azulão, chôa azulão; passu preto anu mará.
Solista: Des amanhã eu vou m'imbora; / eu já sei quem mi domina, / qu'eu (a)dorava a dotô Crov(i) / i viva
dotô Arcind(u). / Eu vim di Santa Luzia / A Pato di majó Migué. Ois diputadu da leis / faça di eu que quizé.
Todos: Chôa azulão, chôa azulão etc.
Solista: Adeus todu pessoá, / qu(i) eu vou pra Santa Luzia, / qui lá é meu nascimentu / i lindus campu qui
mi cria. / Ai discupa ais ruda trova / di José Tomais di Assis / Si não mi faltassi a letr(a) eu mi jugava feliz.
Todos: Chôa azulão, chôa azulão etc.
Solista: Vim nu carru du corrêu / du sinhô José Serafim; / nu dia 5 du mêis, / eu m'abracei com as
patinh(as), / nu dia 6 eu vortarei / contenti, aleg(ri) (i) sorrindu, / pruqu'eu tenhu prazê di í / juntu com dotô
Alcind(u) di Santa Luzia; também di Sant'Antoniu da Boa Fé / vem um ingenhêru locá, o sinhô dotô
Samué.
Todos: Chôa azulão, chôa azulão etc.
Solista: Saúd(i) du pessoá. / Quem 'tá pidindu sô eu. / Foi uma pena lavad(a), / quem essi côco iscreveu;
eu não sei si vou m'imbora; / a tod(u) eu peç(u) licença. / Seu Pachecu um iscrivão, / fromad(u) na
cumpetenç(a); seu Pachecu, pra sê dotô / istudô na capitá, / i não si ordenô pá padre, / pruque não quis si
ordená.
623
Todos: Chôa azulão, chôa azulão etc.”.

Em 6 de abril, quinta-feira, Luiz Saia recebeu um telegrama de Ademar Vidal, enviado à residência Ernâni
Sátiro. Mesmo em João Pessoa, o folclorista paraibano ajudava a expedição fornecendo dados com o objetivo poupar
o pouco tempo disponível para as pesquisas da Missão. Ademar Vidal conseguira informações sobre o reis de Congo
realizado em Pombal, município visitado pela Missão logo após a cidade de Patos, entre 9 e 12 de abril:

“Favor comunicar engenheiro Luiz Saia que todo mês se realiza procissão pública acompanhada Rei
Congo com encenação completa pt já telegrafei avisando. Abraços Ademar Vidal.” 624

Além desse telegrama, Luiz Saia recebeu um outro enviado por Raul de Góis - secretário da Interventoria da
Paraíba -, comunicando ao Chefe da expedição a solicitação aos prefeitos de outras localidades do sertão do Estado
de boa acolhida para a equipe. Essa ajuda oficial prestada pela Interventoria da Paraíba foi de muita importância para
a expedição, pois todas cidades ou vilarejos citados no dito documento - exceção feita ao município de Piancó - foram
visitados posteriormente pela Missão:

“Acabo de recomendar em nome Governo missão Paulista aos prefeitos municípios Cajazeiras, Piancó,
Sousa, Pilar, Alagoa Grande, Areia, Alagoa Nova, Guarabira, Itabaiana, Mamanguape, Pombal, Patos.
625
Abraços. Raul de Góis - sec. Interventoria.”.

Com efeito, a ajuda oficial à Missão foi alvo de comentários de Ademar Vidal que, ainda em 5 de abril, telegrafou
a Mário de Andrade em São Paulo, comunicando os avanços positivos da expedição no Estado e a ajuda que vinha
sendo prestada à equipe pelo governo paraibano:

“Missão esteve capital e atualmente se encontra sertão Obtendo completo êxito pt Interventor Argemiro
Figueiredo vem prestando Missão todo apoio material e social pt Seguirei Rio dia 16 pt abraços Ademar
Vidal.”. 626

Ainda em 6 de abril, em novo encontro com José Criança, agora acompanhado por um ajudante, a Missão
gravou 4 discos de 14 polegadas com 20 melodias de cocos - cocos embolada, de parelha e martelo 627 Do cantador e
seu auxiliar, foram efetuadas 2 fotografias. 628 Também nesse dia, a equipe recebeu a doação oferecida pelo
colaborador Ernâni Sátiro, de cópias datilografadas de versos de desafios, repentes e toadas, cantados por alguns dos
violeiros mais importantes da região: Silvino Pirauá de Lima, Josué Rumano, Inácio da Catingueira, Manuel
Quilemente (Clemente), Manuel do Riachão, Maria Trubana. 629

623
- Cad.de Campo 1.B, p.95-96 / Acervo Histórico DPM: T78P8 / ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946. Coleção Martin
Braunwieser, melodia nº 419, p.302-303
624
- Corresp.Doc.1 - de Ademar Vidal a Dr.Ernâni Sátiro, Patos, 6 de abril de 1938
625
- Corresp.Doc.3 - de Raul de Góis a Luiz Saia, João Pessoa, 6 de abril de 1938.
626
- Corresp.Doc.37 - de Ademar Vidal a Mário de Andrade, João Pessoa, 5 de abril de 1938
627
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993, p.46-47. Discos F.37A-F.40A, fons.166-185
628
- Documentos originais da MPF: Fotos 165-166
629
- Acervo Histórico DPM: T36P3 (“O Conselho dos Noivos de Rumano”), T37P3 (“Versos de Silvino Pirauá de Lima”) T38P3
(“Versos de Emiliano de Oliveira”), T39P4, T40P4, T101P10 (“Desafios e outros versos”, “Repentes”)
105

Em 7 de abril, quinta-feira, a Missão trabalhou intensamente. O dia começou com a equipe gravando cantigas
de roda entoadas em brincadeiras de 12 meninas. 630 Com elas, a equipe registrou um lado de disco de 14 polegadas
contendo 5 melodias. 631 Foram realizadas 6 fotografias, algumas mostrando detalhes da roda formada pelas meninas.
632
Os dados sobre as meninas e a relação das melodias gravadas foram anotados por Benedito Pacheco em duas
caderneta de campo. 633 Martin Braunwieser também registrou 4 melodias de roda entoadas por uma das garotas -
Aurora Santos, 12 anos, natural do Rio Grande do Norte. 634 Como gratificação pela colaboração com a equipe, Luiz
Saia ofereceu ao grupo 12$800 réis. 635
De três diferentes grupos de violeiros cantadores, a Missão gravou nesse dia várias melodias de cocos, toadas,
chulas e canções. O trabalho de gravação foi realizado em 4 discos de 14 polegadas, contendo cerca de 30 melodias.
636
Dos informantes, a equipe realizou apenas uma fotografia de cada grupo somente para o controle do material. 637
Os dados sobre os cantadores e a relação das melodias gravadas foram anotados por Pacheco, Ladeira e Luiz Saia
em três cadernetas de campo. 638 No total, os cantadores receberam como pagamento pela colaboração 58$000 réis,
incluindo o oferecimento de aguardentes. 639
Ainda em 7 de abril, a equipe iniciou os registros com o grupo de bumba-meu-boi contratado no dia da chegada
em Patos. Nesse encontro, foi gravado apenas meio lado de disco de 14 polegadas, contendo toadas características
da dança dramática - Toadas do Mateus, do Caboclo do Arco e do Cavalo Marinho. 640 Além disso, Luiz iniciou o
registro cinematográfico em trabalho que seria finalizado juntamente com as gravações no dia seguinte. Também em 7
de abril, foram efetuadas 5 fotografias do grupo de bumba-meu-boi, documentando aspectos gerais da coreografia e
dos informantes. 641 Durante os trabalhos, o Chefe da expedição ofereceu aguardentes para parte do grupo de 14
integrantes (6$000). 642
Em 8 de abril, data programada para o reinício da viagem pelo sertão paraibano, a Missão finalizou os trabalhos
com o grupo de bumba-meu-boi de Patos. Foi gravado mais um disco de 14 polegadas - contendo 6 melodias -, 643 e
concluído o filme cinematográfico. 644 Para controle do material, todos os dados referentes aos informantes e às
melodias registradas foram anotados por Pacheco, Ladeira e Luiz Saia em três cadernetas de campo. 645 Como
pagamento pela contribuição, o grupo de bumba-meu-boi recebeu a quantia de 100$000 réis. 646
Também nesse dia, a Missão recebeu a visita do próprio cantador Aleixo Criança, então com 72 anos, que veio
de Santa Luzia para o conhecimento da equipe. Com esse poeta popular não houve tempo disponível para coleta mais
extensiva de documentos. Somente foi comprada pela equipe a viola de sua propriedade pelo valor de 35$000 réis,
para o acervo do Museu Folclórico da Discoteca Pública Municipal. Além dos gastos com a compra do instrumento
musical, o Chefe da expedição forneceu 20$000 réis como gratificação e despesas com transporte de Aleixo Criança.
647

Às 16:30 horas, a Missão retomou a viagem pelo sertão paraibano seguindo para o município de Pombal. 648
Aos funcionários do Hotel Centenário, que alojou a equipe durante sua estadia em Patos, Luiz Saia ofereceu 25$000
réis. 649 Logo na saída da cidade, a Missão parou em um cruzeiro para que o Chefe da expedição recolhesse mais
alguns ex-votos ali depositados. Dessa vez, foram coletados cerca de 30 cabeças de madeira, descritas e anotadas
por Benedito Pacheco em uma caderneta de campo. 650 Ao zelador do cruzeiro foi dada uma gratificação no valor de
10$000 réis. O local da coleta foi registrado por Luiz Saia em apenas 1 fotografia. 651
Durante o trajeto, a Missão passou rapidamente por Malta e pelo Açude do Condado, chegando ao município de
Pombal ao cair da tarde, perto da 18:30 horas de 8 de abril. 652 Mantendo sempre contato com a capital João Pessoa,
em particular com o amigo Ademar Vidal e com funcionários do governo paraibano, Luiz Saia recebeu logo na

630
- Cad.de Campo 4.A, p.75-77
631
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993, p.72-73. Discos F.40B, fons 186-190
632
- Documentos originais da MPF: Fotos 167-172
633
- Cad.de Campo “Discos 1”; Cad.de Campo 1.C, p.156-158; 162-163
634
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946. p.291, 343-346. Coleção Martin Braunwieser, melodias nºs 492-495
635
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.8
636
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A, - op.cit.1993. Discos F.41B, F.42-F.44, fons.191-198; 203-214
637
- Documentos originais da MPF: Fotos 171-172, 179
638
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 3.B, p.5-15 (Ladeira); Cad.de Campo 4.A, p.77 (Saia)
639
- Corresp.Doc.44 - “1 Relatório...” p.8
640
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op,cit.1993. p.32. Disco F.42B, fons.196-199
641
- Documentos originais da MPF: Foto 173-177
642
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.8
643
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.32. Disco F.45, fons.216-222
644
- Este filme cinematográfico não foi localizado no acervo Histórico da DPM. As indicações de filmagem estão anotadas por
Luiz Saia na Cad.de Campo 4.A, p.78
645
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 3.B, p.17-19 (Ladeira); Cad.de Campo 4.A, p.78-109 (Saia)
646
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.8
647
- idem ibidem
648
- Cad.de campo 4.A, p.113-115
649
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.8
650
- Cad.de Campo 1.C, p.149-154
651
- Documentos originais da MPF: Foto 547
652
- Cad.de Campo s/nº (Braunwieser), p.74
106

chegada à Pombal um telegrama de José Mariz - Secretário da Interventoria da Paraíba. Neste telegrama, José Mariz
felicitava a equipe da Missão pelos bons resultados etnográficos obtidos em Patos: “(...) Estimei resultados trabalhos
Patos pt Espero tenham bom êxito aí também pt Peço dizer se vão até Cajazeiras pt Saúdo todos componentes
bandeirantes (...)”. 653
A resposta de Luiz Saia seguiu em 9 de abril pela manhã: “(...) Estivemos trabalhando bem em Bumba pt Depois
seguiremos para Sousa Cajazeiras e Itabaiana pt Obrigado e abraços (...)”. 654 Em Pombal, o principal colaborador da
Missão foi o próprio prefeito da cidade - Sá Cavalcanti. Acompanhados por ele, os componentes da expedição
visitaram no dia 9 de abril, a Igreja Matriz de Pombal, efetuando o registro de 3 fotografias do edifício e seus arredores.
655
Nas proximidades da Igreja Matriz, a equipe fez contatos com diversos pedintes que por ali esmolavam. Com esses
populares, foi combinado trabalho de gravação para o começo da tarde.
Também em 9 de abril, através do auxílio e intercessão do prefeito Sá Cavalcanti que dias antes da chegada da
equipe havia contatado diversos cantadores populares -, Luiz Saia e os demais integrantes da expedição procuraram
os responsáveis pela dança dramática do reis de Congo, acertando detalhes para a gravação e filmagem da
manifestação para 11 de abril, segunda-feira.
Em Pombal, a Missão trabalhou intensamente. Entre os dias 9 e 11 de abril, a equipe gravou e documentou
vários cantadores. Com os mendigos e outros colaboradores das proximidades de Pombal, a equipe gravou 8 discos
de 14 polegadas contendo diversas melodias. Com esses mesmos informantes, a Missão também gravou outros
gêneros musicais, como sambas, marchinhas, morão, martelo, carretilha, galope, quadrão, glosas, toadas, cocos,
choros. 656 Luiz Saia registrou em 10 fotografias os grupos de cantadores e pedintes gravados. 657 Como pagamento
pelas colaborações foram gastos 195$200 réis, incluindo-se o oferecimento sistemático de aguardentes, cafés e
cigarros aos informantes. 658 Os dados sobre os cantadores e os pedintes de Pombal, juntamente com a relação de
melodias gravadas e seus respectivos textos poéticos foram anotados por Ladeira, Pacheco e Luiz Saia em três
cadernetas de campo. 659
Em 11 de abril, a Missão documentou a dança dramática do reis de Congo, com um grupo formado por 12
pessoas. Foi registrado um disco de 16 polegadas contendo as principais melodias, além das embaixadas - partes
dialogadas da manifestação folclórica. 660 Juntamente com as gravações, a equipe realizou um filme cinematográfico
661
e um completo registro fotográfico do reis de Congo de Pombal. 662 Os dados sobre os informantes e a relação das
melodias gravadas foram anotados por Pacheco e Luiz Saia em duas cadernetas de campo. 663 Como gratificação ao
grupo foram oferecidos 140$000 réis. 664 Finalizando suas atividades em Pombal, ainda em 11 de abril, o Chefe da
Missão concedeu entrevista à imprensa da capital João Pessoa, divulgando as atividades da expedição e anunciando
os próximos trabalhos da equipe. A matéria jornalística foi publicada em 13 de abril. 665
Às 8:40 horas de 12 de abril, terça-feira, a equipe partiu de Pombal com destino ao município de Sousa. Para
um funcionário da prefeitura de Pombal que colaborou com a equipe durante sua estadia na cidade, Luiz Saia ofereceu
30$000 réis. 666 Vinte minutos após a partida, a Missão chegou nas proximidades de Areal, “(...) confluência do [rio]
Piancó com o [rio] Piranhas (...)”, onde pôde visitar algumas habitações populares. Luiz Saia teve então oportunidade
de realizar anotações sobre a construção interna e a arquitetura de “(...) três mocambos (...): 667

“(...) A tapagem é de galhos folhados de marmelêra. Os esteios são de pereiro. As outras peças são
marmelêro e perêro. O masso de folhas passa por cima da ripa e algumas só passam por baixo para
fixar. Algumas dessas galhadas do teto são amarradas com a fibra mesmo. (...) Acima do fogão que
consta de algumas pedras, do portão entra um pau grosso [que] sustenta uma parte de caixão de
kerozene [sic] que é a prateleira. (...)”. 668

Após a travessia do rio Piranhas, a expedição chegou por volta das 11:00 horas, à renomada fazenda Acauã -
do século XVIII, local onde foi aprisionado o Frei Caneca, tombada pelo SPHAN - de propriedade de um engenheiro

653
- Corresp.Doc.4 - de José Maria a Luiz Saia, João Pessoa, 8 de abril de 1938
654
- idem ibidem, no verso. Manuscrito por Luiz Saia
655
- Documentos originais da MPF: Fotos 616, 687 e 690
656
- Cad.de Campo “Discos 1” (Benedito Pacheco)
657
- Documentos originais da MPF: Fotos 165-166, 180-183
658
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.8
659
- Cad.de Campo 1.C, p.148 (Pacheco); Cad.de Campo 3.B, p.21-98 (Ladeira); Cad.de Campo 4.A, p.110-111, 117-123, 151-
155, 157-163 (Saia). Acervo Histórico DPM: D7P1, D22P2, T16P2, T17P2, T18P2, T19P2, T20P2, T21P2, T77P8, T101P10,
T102P10
660
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.69. Disco F.53, fons.301-302
661
- Documentos originais da MPF: Filme 5.D, P&B, silencioso, 2'24” (“Rei do Congo - dança dramática”)
662
- Documentos originais da MPF: Fotos 184-196, 206-207
663
- Cad.de Campo “Discos n.1” (Pacheco); Cad.de Campo 4.A, p.110, 125-149 (Saia). Acervo Histórico DPM: T104P10
664
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.8
665
- Hemeroteca doc.nº 44X - “A contribuição da Paraíba para o folclore nacional.”, João Pessoa, A Imprensa, 13 de abril de
1938
666
- idem ibidem
667
- Cad.de Campo 4.A, p.165-167
668
- idem ibidem
107

civil - José Rodrigues Ferreira. José Rodrigues ofereceu nesse dia alimentação à Missão. Depois do almoço, a equipe
seguiu viagem chegando em torno das 13:00 horas no município de Sousa, distante cerca de 400 quilómetros da
capital João Pessoa.
Mesmo em trânsito pelo sertão paraibano, Luiz Saia sempre tratava de divulgar os resultados obtidos pela
equipe nos órgãos de imprensa da capital. Em 13 de abril, o jornal A Imprensa, de João Pessoa, publicou a entrevista
de Luiz Saia concedida quando a equipe ainda se encontrava na cidade de Pombal. Nessa reportagem, o Chefe da
expedição realizou um balanço das atividades efetuadas na Paraíba até então, anunciando também os trabalhos já
programados para a equipe na volta à capital:

“(...) Na Paraíba, onde nos encontramos há pouco dias, estamos pela colheita autorizados a afirmar,
serem ótimos os resultados das nossas pesquisas. Na capital já colhemos um cabocolinhos de grande
interesse e alguma coisa de cantos tradicionais. Em Tambau promovemos uma reunião de coquistas do
litoral e fixamos mais de uma vintena de coco paraibano. (...)
Relativamente à nossa viagem pelo interior do Estado muito já temos realizado e mais esperamos colher
ainda. As três zonas perfeitamente caracterizadas possuem uma forte tradição. No brejo teremos a colher
peças dramáticas importantes. No Cariri velho fomos encontrar coisa que, ainda sendo um bocado
apartado das nossas cogitações, colhemos por estarem perfeitamente enquadradas dentro do vasto
plano de estudos científicos promovidos e amparados pelo Departamento de Cultura da Municipalidade
de São Paulo. Refiro-me às inscrições rupestres encontráveis nos chamados tanques. Naturalmente
qualquer palpite sobre esse assunto só pode ser dado por um especialista. Limitamos a colher a
documentação.
Agora estamos no sertão paraibano e, graças ao apoio total [que] encontramos por parte do Sr.
Interventor Dr. Argemiro de Figueiredo e seu secretariado e prefeituras municipais, esperamos fixar
importantes aspectos tradicionais existentes no interior do Estado. As diferenciações existentes nessas
três zonas naturalmente surgirão na documentação de maneira muito precisa. Certas peças de extremo
interesse, como por exemplo o bumba-meu-boi, pretendemos gravar e filmar nessas três zonas. Um
estudo comparativo entre elas naturalmente revelará detalhes de muito interesse social. (...) De volta à
capital paraibana, colheremos material referente a nau catarineta (barca), bumba-meu-boi e talvez restos
de religiões primitivas localizáveis no catimbó. Ainda não posso dar uma resenha das nossas
possibilidades neste Estado, pois a todo momento surge material inédito. Posso garantir desde já, que a
669
nossa colheita aqui será bastante vultosa. (...)”.

Em 13 de abril, com a colaboração do prefeito da cidade - Eládio Melo - e seus funcionários, os componentes da
Missão começaram os trabalhos etnográficos em Sousa, realizando a gravação de melodias de diversas
manifestações folclóricas encontradas na região. Com dois cantadores - 1 cantor com ganzá acompanhado por um
auxiliar -, a Missão registrou 2 discos de 14 polegadas com exemplos de cocos (dança coletiva). 670 Com outro
cantador, a equipe gravou 4 discos de 14 polegadas com melodias de reisado (dança dramática). 671 Com um grupo
de cabaçal (música instrumental) constituído por 2 zabumbas e 2 pifes, a equipe gravou um lado de disco de 14
polegadas com 6 marchinhas características. Os dados sobre os informantes e a relação das melodias gravadas foram
anotados por Ladeira, Pacheco e Luiz Saia em quatro cadernetas de campo. 672 Os gastos com os grupos de
cantadores e instrumentistas somaram 72$000 réis. 673
Um importante contato da equipe em Sousa foi o colaborador Chico Pé-Torto, engraxate conhecido em toda a
cidade, responsável pela realização do reis de congo. Através dele, a Missão arregimentou três manifestações
populares características na região: reis de Congo, bumba-meu-boi, e a nau catarineta. Esses eventos folclóricos, de
grande porte e vulto, deveriam ser preparados e ensaiados para a Missão, que somente efetuaria trabalho de
gravação e filmagem em época posterior, quando da escala em Sousa no retorno da expedição à João Pessoa,
ocorrido em fins de abril.
Ainda no dia 13 de abril, Luiz Saia recebeu dois telegramas provenientes da capital: o primeiro de José Mariz -
secretário da Interventoria -, convidando o Chefe da expedição para proferir uma palestra após o retorno à João
Pessoa; 674 o segundo, de Ademar Vidal que, além de comunicar viagem ao Rio de Janeiro, solicitava a Luiz Saia
coleta específica de documentos folclóricos para seu próprio uso. Com esse intuito, o escritor paraibano instruiu o
Chefe da expedição através de uma carta com orientações deixada no hotel em João Pessoa. Os documentos
deveriam ser recolhidos pela Missão durante sua viagem à zona do brejo, realizada em maio de 1938. 675

669
- Hemeroteca Doc. nº44 - “A contribuição da Paraíba para o folclore nacional.”, João Pessoa, A Imprensa, 13 de abril de 1938
670
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.51. Discos F.58-F.59 A, fons.333-347
671
- idem ibidem, p.70-71. Discos F.59-F.62A, fons.348-383
672
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 3.B p.95-120 (Ladeira); Cad.de Campo 4.A, p.170-176; Cad.de Campo
5, p.1-30. Acervo Histórico DPM: D6P1, D23P2, D26P2
673
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
674
- Corresp.Doc.5 - de José Mariz a Luiz Saia, João Pessoa, 13 de abril de 1938.
675
- Corresp.Doc.6 - de Ademar Vidal a Luiz Saia, João Pessoa, 13 de abril de 1938. O conteúdo da carta de instruções de
Ademar Vidal será exposto adiante.
108

O dia 14 de abril, quinta-feira, foi reservado para a realização de um passeio da Missão à serra do Comissário,
próxima a Sousa. Partindo logo pela manhã com o caminhão de João Gomes de Brito, expedição chegou em torno
das 9:00 horas à sede fazenda Cachimbinha. Aí, em um oratório da casa sede da fazenda, Luiz Saia pôde observar
que, por ser Semana Santa, “(...) os quadros de Santos (...) estavam virados pra parede e as imagens do oratório
estavam cobertas com um pano. (...)”. 676 A Missão passou toda manhã na fazenda Cachimbinha, prosseguindo em
direção à serra do Comissário em torno das 11:30 horas. Durante o trajeto, Luiz Saia registrou em duas fotografias
uma casa popular construída na beira da estrada. 677 A chegada ao mirante e à capela localizada no topo da serra do
Comissário ocorreu às 14:00 horas. Nesse local, Luiz Saia recolheu mais alguns ex-votos e teve oportunidade de
realizar 5 fotografias: duas da capela, e três com aspectos da geografia observada na serra do Comissário. 678 A
equipe permaneceu no local até às 16:00 horas, chegando ao município de Sousa por volta da 22:00 horas após uma
outra escala na fazenda Cachimbinha. 679
Em 15 de abril, sexta-feira da Paixão, a equipe da Missão pouco trabalhou. Na realidade, o único trabalho
realizado nesse dia foi com o violeiro e cantador da vila de Lavandeira - José da Silva Sobrinho, próxima à Sousa. Com
ele, foram efetuadas anotações sobre diversas categorias de desafios e cocos cantados - gabinete, martelo simples,
solto, agalopado, em glosa, sete e meio, nove por três. Essas observações visavam o trabalho de gravação posterior.
Os dados sobre o cantador e as características das manifestações foram anotados por Luiz Saia em duas cadernetas
de campo, sendo depois datilografados. 680 Como pagamento pela colaboração, o Chefe da equipe pagou ao cantador
24$900 réis. 681
Em 16 de abril, sábado de Aleluia, a equipe realizou o registro fonográfico de modinhas e lundus entoados por
duas cantadoras convocadas pelos colaboradores de Sousa para o trabalho da Missão. Com elas, foi gravado um
disco e um lado de disco de 14 polegadas contendo cerca de 10 melodias. 682 Os dados sobre as informantes e a
relação da melodias gravadas foram anotados por Pacheco, Ladeira e Luiz Saia em três cadernetas de campo,
posteriormente datilografados. 683 Como pagamento pela colaboração, Luiz Saia forneceu às cantadoras 25$000 réis.
684
Além disso, também em 16 de abril, a Missão teve oportunidade de gravar alguns aboios entoados por 4 vaqueiros
da região. A equipe da Missão registrou um lado de disco de 14 polegadas, 685 efetuando uma fotografia dos
informantes para controle do material documentado. 686 Como gratificação aos aboiadores, Luiz Saia ofereceu 25$000
réis. 687
Às 16:30 horas de 16 de abril, a Missão partiu de Sousa com destino ao município de Cajazeiras. 688 Os gastos
com o alojamento da equipe em Sousa somaram 288$600 réis, incluindo-se o oferecimento de gratificação aos
funcionários do hotel. Antes da partida, o Chefe da Missão pagou a quantia de 35$000 réis como adiantamento ao
mestre de bumba-meu-boi da cidade. Além disso, como incentivo para o trabalho de arregimentação e ensaio dos
eventos folclóricos da região, realizado por Chico Pé-Torto, Luiz Saia ofereceu ao coloborador 30$000 réis. 689
A chegada ao município de Cajazeiras ocorreu por volta das 18:30 horas. No dia seguinte, domingo de Páscoa,
a Missão descansou não realizando nenhum trabalho etnográfico. Em 18 de abril, segunda-feira, Luiz Saia e demais
componentes da Missão visitaram a prefeitura da cidade, conhecendo o seu prefeito - Dr. Matos - que gentilmente se
dispôs a auxiliar a equipe no que se fizesse necessário. Do edifício da prefeitura Luiz Saia fez dois croquis - a planta
baixa e uma vista frontal do prédio. Além disso, o Chefe da Missão anotou em uma caderneta de campo que, sobre a
construção, “(...) dizem ser o prédio mais antigo da cidade (...)” tendo, segundo sua avaliação, “(...) entretanto menos
de 100 anos (...)”. 690
Luiz Saia nesse dia andou à procura de mais ex-votos visitando uma capela na periferia da cidade. Para o
transporte ao local indicado, o Chefe da expedição alugou uma bicicleta pagando a quantia de 5$500 réis. 691 A capela
visitada foi registrada em uma fotografia efetuada por Luiz Saia, 692 que, no entanto, não localizou nenhum objeto de
fatura popular com características significantes para ser recolhido.
Ainda em 18 de abril, a equipe efetuou os registros de um grupo de cabaçal de Cajazeiras, integrado por três
elementos tocadores de zabumba, caixa e pife. Com eles, foram gravadas 6 melodias registradas em um disco de 12

676
- Cad.de Campo 4.A, p.177
677
- Documentos originais da MPF: Fotos 624, 730
678
- Documentos originais da MPF: Fotos 560, 680-681, 685, 689
679
- Cad.de Campo 4.A, 178
680
- Cad.de Campo 4.A, p.180-186 e folha solta; Cad.de Campo 5, p.1-18. Acervo Histórico DPM: D3P2
681
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
682
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. Discos F.63-F.64A, fons.389-399
683
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 3.B, p.121-126 (Ladeira); Cad.de Campo 5, p.19-30 (Saia). Acervo
Histórico DPM: T103P10
684
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
685
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993 p.25-26. Disco F.64B, fons.400-405
686
- Doc.originais da MPF: Foto 198
687
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
688
- Cad.de Campo s/nº, p.74 (Braunwieser)
689
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
690
- Cad.de Campo 5, p.33-34
691
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
692
- Documentos originais da MPF: Foto 681
109

polegadas. 693 Os dados sobre os instrumentistas e a relação das músicas gravadas foram anotados por Ladeira e
Pacheco em duas cadernetas de campo. 694 Para controle do material documentado, Luiz Saia registrou os
instrumentistas em uma fotografia. 695 Como pagamento pela colaboração e pela aquisição de um pife pertencente ao
grupo de cabaçal foram oferecidos 70$000 réis. 696
O trabalho etnográfico mais significante em Cajazeiras foi aquele efetuado entre os dias 18 e 19 de abril com o
violeiro Manuel Galdino Bandeira e seu assistente Vicente José de Sousa, afamados pela região. Com eles, a Missão
teve oportunidade de registrar diversos exemplos de toadas populares caracterizadas segundo a disposição métrica
dos versos entoados - oitava, morão, pé quebrado, nove por três, galope, martelo solto, gabinete, décima, embolada,
rojão, carretilha e seis e meio. Essas melodias foram gravadas em 3 discos de 12 polegadas. 697 Além disso, a equipe
realizou anotações sobre a técnica de construção e detalhes da viola pertencente a Manuel Galdino Bandeira. Essas
observações, acompanhadas dos dados sobre os informantes, da relação das melodias gravadas e das características
dos gêneros de toadas foram anotadas por Pacheco, Ladeira e Luiz Saia em 3 cadernetas de campo, sendo
posteriormente datilografadas. 698 Os violeiros foram documentados em duas fotografias realizadas pelo Chefe da
expedição. 699 Como pagamento, Manuel Galdino Bandeira e seu assistente receberam 100$000 réis. 700
Durante a estadia em Cajazeiras, onde a Missão recebeu um apoio significante das autoridades locais, era a
intenção da Missão realizar uma visita à Joazeiro, no Estado do Ceará, o que no entanto não foi efetuada. Segundo
Luiz Saia, “(...) a turma de rapazes de Cajazeiras nos proporcionou uma acolhida realmente carinhosa. A nossa
vontade era aproveitar a proximidade para dar um pulo a Joazeiro do Padre Cícero. Porém Joazeiro é Ceará e a gente
tem que ir por partes. Aliás, já estávamos no décimo nono dia de viagem e precisávamos tratar do retorno. De
Cajazeiras partimos para Curemas (...)”. 701
Em 19 de abril, às 15:30 horas, a equipe partiu de Cajazeiras com destino ao município de Curemas, fazendo
uma parada de duas horas no açude da vila de São Gonçalo. A chegada a Curemas ocorreu às 18:30 horas. 702 O dia
20 de abril, quarta-feira, foi reservado para os contatos com as autoridades políticas do município, particularmente com
o chefe de Obras Dr. Amorim, personalidade significante na cidade. Esse colaborador da equipe proporcionou à
Missão o contato com diversos cantadores da região. 703 Os gastos da equipe em 20 de abril incluem um jantar
(25$000); a gratificação para um vigia que tomou conta do caminhão onde estavam os equipamentos (5$000); e o
pagamento de um pequeno ágio (5$000) para o desconto de um cheque do orçamento da Missão no valor de
500$000. 704
Em 21 de abril, com a ajuda do chefe de Obras Dr. Amorim, a equipe da expedição gravou vários exemplos de
cocos - solto, embolada, embolada, entrega - com 2 grupos de coquistas - um com 2 cantores se acompanhando com
ganzá; outro, com 3 informantes e acompanhamento de maracá. Cerca de 35 melodias foram gravadas em 5 discos
de 12 polegadas. 705 Com o mesmo grupo de 3 cantadores e maracá, a Missão registrou outras 35 melodias desta vez
de reisado (dança dramática), em 4 discos de 12 polegadas. 706 Além disso, 5 melodias de chulas e modinhas foram
registradas de outro informante se acompanhando de violão. 707 Todos esses informantes foram registrados em 3
fotografias realizadas por Luiz Saia. 708 Os dados sobre eles, os textos e a relação das músicas gravadas foram
anotados por Pacheco, Ladeira e Luiz Saia em três cadernetas de campo. 709 Como pagamento pelas colaborações, a
equipe gastou com todos os grupos cerca de 150$000 réis. 710
Em 22 de abril às 6:00 horas, a Missão partiu de Curemas iniciando o retorno a João Pessoa. Conforme o
previsto, a equipe realizou uma escala no município de Sousa para gravação e filmagem da nau catarineta, do bumba-
meu-boi e do reis de congo arregimentados pelos colaboradores da cidade. Os gastos da equipe em Curemas
referem-se somente a alimentação (73$000), tendo em vista que o alojamento foi franqueado pela Inspetoria do
Estado Contra as Secas, segundo arranjo de Luiz Saia com representante da entidade em princípios de abril. 711

693
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.38. Disco F.65, fons.406-411
694
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 3.B,p.40, 127-133, 140-141. Acervo Histórico DPM: D15P1
695
- Documentos originais da MPF: Foto 199
696
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
697
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. Discos F.65B-F.67, fons, 412-427
698
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 3.B, p.134-135 (Ladeira); Cad.de Campo 5, p.35-53 (Saia). Acervo
Histórico DPM: D16P1, D21P2
699
- Documentos originais da MPF: Fotos 200-201
700
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
701
- Hemeroteca Doc. nº 45x - “Obteve pleno êxito no interior paraibano a Missão Folclórica da Municipalidade de São Paulo”,
João Pessoa, A União, 27 de abril de 1938
702
- Cad.de Campo s/nº, p.74 (Braunwieser)
703
- idem ibidem
704
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
705
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.51-53. Discos F.68-F.72, fons.428-456; Disco F.76B, fons.494-499
706
- idem p.71-72. Discos F.68-F.71, fons.457-490
707
- idem p.45, 65. Disco F.77A, fons.500-504
708
- Documentos originais da MPF: Fotos 202-204
709
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 3.B, p.143-172 (Ladeira); Cad.de Campo 5, p.63-88 (Saia). Acervo
Histórico DPM: T111P10
710
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
711
- idem ibidem
110

A chegada ao município de Sousa ocorreu em torno das 9:00 horas da manhã. Na prefeitura, Luiz Saia se
encontrou com os colaboradores da Missão na cidade, o prefeito Eládio Melo além de Chico Pé-Torto, e através deles
foi notificado da ausência de um dos componentes do grupo de bumba-meu-boi contratado. 712 Devido a isso, a
gravação e filmagem da manifestação foi adiada para o dia seguinte. Além desse imprevisto, a Missão não pôde contar
com todos os figurantes para a representação da dança dramática da nau catarineta. A solução possível encontrada foi
realizar os registros fonográficos com o responsável pela bricadeira na cidade - Manoel Soares Silva. Segundo os
dados anotados por Antônio Ladeira e Luiz Saia, o informante possuía razoável grau de instrução, certo poder
aquisitivo, tendo inclusive viajado ao exterior: “(...) Branco. 34 anos (em 1938). Nascido em João Pessoa (...)
alfabetizado. Aprendeu a cantar a nau catarineta com os companheiros de Cabedelo (Paraíba). Viajou pelos Estados
Unidos e Buenos Aires (...)”. 713 Além dessas informações, Luiz Saia anotou que Manoel Soares Silva era “(...)
mecânico da Agência Ford de Sousa; em janeiro de 1938, durante 8 dias, participou da representação do bailado em
Campina Grande, fazendo a parte do contramestre; em Cabedelo, em 1936, participou de cinco representações da
mesma dança dramática (...)”. 714
Com Manoel Soares Silva, a equipe gravou 3 discos de 12 polegadas contendo cerca de 25 melodias de nau
catarineta. 715 Os textos das canções foram doados já escritos pelo informante em um caderno formado por folhas de
almasso. Complementando os dados, Luiz Saia anotou na última página do caderno que Manoel Soares Silva havia
“(...) copiado isto em Porto Alegre (RS) do Livro do Fandagui. [sic] O Livro foi comprado em Portugal a razão de
25$000 (em Lisboa). Copiou em 1928 (...)”. 716 A relação das melodias gravadas foi anotada por Pacheco e Ladeira
em duas cadernetas de campo. 717 Para controle do material registrado, Luiz Saia fotografou Manoel Soares Silva. 718
Não houve o pagamento de nenhuma gratificação ao informante.
Em 23 de abril pela manhã, a equipe da Missão gravou 13 melodias entoadas pelo grupo de reis de congo,
organizado pelo colaborador Chico Pé-Torto, em 2 discos de 12 polegadas. 719 Do grupo de 8 cantadores
acompanhados por violão, Luiz Saia realizou apenas 2 fotografias. 720 Os dados dos informantes, a relação e texto das
melodias gravadas além da descrição desta manifestação foram anotados por Luiz Saia, Pacheco e Ladeira em duas
caderneta de campo. 721 Além disso, o Chefe da Missão obteve um pequeno histórico do grupo de reis de Congos de
Sousa em conversa com o colaborador Chico Pé-Torto. As informações foram anotadas em uma caderneta de campo:

“(...) Depois de 1910 que começaram cantá Congo aqui em Sousa. Antes disso não havia. Foi um mestre
que trouxe pra cá isso. Era mestre Binidito Sigundo que veio du Recife. Deixou o Chico de cantar o
Congo por causa di anarquia há 8 anos. Depois disso não cantou mais. Os meninos do coro não sabiam
e foram ensinados pelo Chico agora.
Levava 12 pessoas - todos meninos e o reis que era o Chico Pé-Torto. Tinha rainha que era um menino
que já morreu. Vestiam saiota azul enfeitado com encarnado (um cordão azul e outro encarnado), meia,
capacete, [sic] maracá. Brincava nas salas e salões das casas. Reis e rainha ficavam sentados.
Secretário era um rapaz que tirava a embaixada - quando faziam a embaixada o secretário levava um
bilhete pro reis congo pidindo licença pra podê dançá, entregava a embaixada (o bilhete) os
embaixadores (dois meninos). Os embaixadores entregavam o bilhete ao reis pá puderem dançá. Aí
começava a cantá.
Durante a dança “botavam sorte”. Botá sorte é mandar o lenço pra voltá com dinheiro. Dançavam várias
722
noites numa só casa (...)”.

Logo após as gravações do reis de congo, a equipe da Missão passou a trabalhar com o grupo de bumba-meu-
boi de Sousa. O registro desta manifestação foi bastante completo: com o violeiro Manuel do Nascimento, Luiz Saia
realizou uma pesquisa sobre o instrumento musical, anotando detalhes da construção - tipo de madeiras utilizadas, a
nomenclatura de suas partes -, em uma caderneta de campo. 723 Foram gravados 4 discos de 12 polegadas contendo

712
- Cad.de Campo 5, p.91-92 (Saia)
713
- Cad.de Campo 3.B, p.177
714
- Nota de Luiz Saia transcrita por Oneyda Alvarenga e publicada no “Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro, vol.5:
Cheganças de Marujos.”, 1956. p.21
715
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.65-66. Discos F.77-F.79, fons.502-526
716
- Acervo Histórico DPM: T13A/BP2. Original manuscrito na pasta “textos trazidos pela MPF”, nºs 15 e 16. Na divulgação desta
parte do acervo recolhido pela Missão, coleção “Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro, vol.V: Chegança de
Marujos”, 1956, p.24, Oneyda Alvarenga comentou: “(...) As informações de Manuel Soares Silva, registradas por Luiz Saia
em T13AP2, contêm positivamente duas pêtas. A primeira é que esse documento não foi copiado de nenhum lusitano “Livro
de Fandango”, pela simples razão de que ninguém jamais teve notícia de alguma publicação portuguesa do texto da
Chegança de Marujos. (...)”.
717
- Cad.de campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de campo 3.B, p.173-177
718
- Documentos originais da MPF: Foto 205
719
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.69-70. Discos F.79-F.80, fons.530-542
720
- Documentos originais da MPF: Fotos 206-207
721
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 3.B, p.179-182, 187-201 (Ladeira), p.182-185 (Saia)
722
- Cad.de Campo 5, p.105-107. Acervo Histórico DPM: D29P2
723
- Cad.de Campo 5, p.93
111

14 melodias além das partes dialogadas entre as personagens. 724 Durante a exibição da dança dramática, Luiz Saia
realizou um filme cinematográfico com detalhes da encenação; ao final, documentou os 17 integrantes do grupo em 3
fotografias. 725 Os dados sobre os informantes, os textos e a relação das melodias gravadas foram anotados por
Ladeira e Luiz Saia em duas cadernetas de campo. 726 Como pagamento ao pessoal do bumba-meu-boi, Luiz Saia
ofereceu 180$000 réis, incluindo 35$000 dados ao indivíduo “(...) fazedor dos bichos do brinquedo do boi (...)” 727
No mesmo dia 23 de abril, em torno das 16:00 horas, a equipe da Missão partiu de Sousa com destino à capital.
Os gastos particulares da expedição em Sousa referem-se somente à alimentação (103$000) pois, como visto
anteriormente, a Missão obteve alojamento franqueado em casa cedida pela prefeitura do município. Às 16:30 horas a
equipe chegava às margens do rio Piranhas, onde houve necessidade de transporte para travessia. 728 Para aqueles
que auxiliaram a Missão da passagem do rio, Luiz Saia ofereceu 10$000 réis. 729 Após alguma demora na travessia do
Piranhas, a expedição prosseguiu a viagem chegando em torno das 23:30 horas ao município de Patos, onde realizou
o pernoite. Às 4:30 horas do dia 24 de abril, domingo, a equipe saiu de Patos para chegar à cidade de Alagoa Grande
por volta das 18:30 horas, depois de escalas nas cidades de Campina Grande e Alagoa Nova.
A partida de Patos ocorreu às 6:00 horas do dia 25 de abril e após breves paradas nas cidades de Areia,
novamente Alagoa Nova e Campina Grande, Itabaiana, Pilar, Espírito Santo e Santa Rita, a equipe da Missão chegou,
em torno das 22:00 horas, à capital João Pessoa. 730 Segundo entrevista de Luiz Saia concedida ao Jornal A União
dias depois da chegada à João Pessoa, durante o trajeto de volta a capital o Chefe da expedição realizou diversos
contatos com autoridades políticas dos municípios onde a equipe efetuou suas escalas. Essas conversações tinham
como objetivo facilitar trabalhos etnográficos posteriores e reforçar os agradecimentos da equipe com os seus
colaboradores:

“(...) Voltamos a Sousa para filmar e gravar o bumba-meu-boi e outras coisas que deixáramos
preparadas. Então tivemos o prazer de receber a gentilíssima visita do dr. Milton de Oliveira. À tardinha,
fomos abraçar os amigos e partimos rumo a Campina Grande. Na passagem do Rio Piranhas
encontramos e abraçamos o dr. José Mariz que estava a caminho de Sousa. Em Pombal tiramos um
dedo de prosa com o Sá Cavalcanti e quando atingimos Patos, já era tarde demais e só pudemos deixar
um abraço ao prefeito Clóvis e ao Ernani Sátiro. De madrugada, estavamos em Campina Grande, depois
de uma conversa com o dr. Hortênsio Ribeiro, rumamos para Alagoa Nova e Grande, e Brejo de Areia,
para combinar com os prefeitos dessas localidades o trabalho a realizar dentro de poucos dias, quando
também pretendemos fazer uma visita à serra do Fagundes, acompanhados gentilmente por Raimundo
Viana. Nesta zona [do Brejo] há muito a colher: bumba-meu-boi, juremeiros, cabocolinhos, coquistas e
cantadores. Lá para às onze horas atingíamos afinal esta capital, depois de uma viagem cansativa,
porém, riquíssima de colheita. Hoje descansamos e amanhã pretendemos entrar novamente em
731
atividade na fixação da barca e outras coisas nesta capital (...)”.

Após uma extensa excursão de 25 dias, a primeira viagem da Missão de Pesquisas Folclóricas ao interior da
Paraíba - pela zona do Sertão -, havia terminado.

724
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.32-33. Discos F.81-F.84, fons.543-555
725
- Documentos originais da MPF: Filme 7.B, P&B, silencioso, 5'17” / Fotos 208-210
726
- Cad.de Campo 5, p.94-105 (Saia); Cad.de Campo 3.B, p.187-201
727
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
728
- Cad.de Campo s/nº - p.74 (Braunwieser)
729
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.9
730
- Cad.de Campo s/nº, p.74 (Braunwieser)
731
- Hemeroteca Doc.nº 45x - “Obteve pleno êxito no interior paraibano a Missão Folclórica da Municipalidade de São Paulo.”
João Pessoa, A União, 27 de abril de 1938
112

2.7 - De 26 de abril a 1º de maio: retorno a João Pessoa - pesquisas etnográficas e


preparativos para a segunda viagem ao interior da Paraíba

Após o retorno da equipe a João Pessoa, em 26 de abril, terça-feira, Luiz Saia pôde ler afinal duas
correspondências a ele destinadas: a primeira, de São Paulo escrita por Oneyda Alvarenga em 7 de abril; a segunda,
de Ademar Vidal, redigida em 14 de abril, deixada pelo escritor paraibano à equipe em João Pessoa.
Na primeira carta, a Chefe da Discoteca Pública Municipal se fazia interlocutora de Mário de Andrade.
Juntamente com ele, Oneyda Alvarenga procurou expressar algumas preocupações referentes aos aspectos
cotidianos da expedição. Mesmo de longe, ela e Mário de Andrade buscavam orientar os caminhos da Missão no
tocante a:

1) melhor divulgação dos objetivos da Missão através da imprensa; divulgação dos resultados etnográficos já obtidos
pela equipe, apresentados em trabalhos especializados;
2) a conduta e comportamento político de Luiz Saia, representante do Departamento de Cultura de São Paulo, junto às
personalidades e autoridades do Nordeste;
3) orientação para os trabalhos etnográficos e atividades da expedição segundo regiões geográficas;
4) a preservação dos discos originais já gravados, tomando o cuidado de não ouví-los, devido o desgate do acetato e a
impossibilidade de transcrição musical sem antes confeccionar a matriz de metal.

Em 7 de abril de 1938, já dividido entre Rio de Janeiro e São Paulo - resultado dos vários problemas políticos
enfrentados com o afastamento do prefeito paulista Fábio Prado, devido a decretação do Estado Novo, culminando em
seu desligamento definitivo da direção do Departamento de Cultura de São Paulo -, Mário de Andrade solicitou a
Oneyda Alvarenga a redação de uma correspondência a Luiz Saia:

“São Paulo, 7 de abril de 1938. / Saia, / Mário está aqui de passagem, por dois dias apenas, devendo
732
regressar sábado ao Rio. Como ele não tem tempo, respondo eu a última carta que você lhe dirigiu.

a-) É preciso que você envie imediatamente o total das despesas feitas em Pernambuco, afim de que
possamos controlar aqui a parte financeira.
b-) Não cobre absolutamente o Mário Melo.
c-) Mande qualquer comunicação à Sociedade de Etnografia e Folclore.
d-) Si a pesquisa no Rio Grande do Norte não der muito resultado, siga imediatamente para o Ceará, não
esquecendo de registrar os Romances sertanejos. 733
e-) Temos lido algumas poucas notícias referentes à Missão. Mário considera de interesse você guardar
todas, afim de que seja juntadas ao relatório.
f-) A tal imagem do judeu (a de 5:000$000) [cinco contos de réis] interessa-o muito, e ele já está disposto
a dar por ela 2:000$000, aumentando assim o oferecimento anterior. 734
g-) Por telegrama fiz-lhe também, e de acordo com Mário, uma recomendação urgentíssima: Na última
carta você me conta que o “Martin leva um tempão para passar as melodias a limpo”. Ora, de maneira
nenhuma deve ser feita aí a notação [musical] dos fonogramas: 1º - O tempo perdido com isso é imenso.
2º - com essas audições para a grafia, os discos se consomem e ficarão prejudicados para a tiragem das
matrizes que pretendemos fazer. Portanto, que o Martin não grafe disco nenhum. O trabalho de notação
só deve ser feito quando o documento não tiver interesse para ser gravado e nos lugares em que, por
qualquer razão não possa ser feito o registro sonoro. Os discos só poderão ser executados uma vez
depois do registro para controle da exatidão e precisam chegar em São Paulo absolutamente perfeitos.
Não há tempo para conversa maior. Abraços. Oneyda.”. 735

A resposta do Chefe da Missão seguiu para São Paulo no dia seguinte, 27 de abril. Além de breve relatório de
atividades, Luiz Saia respondeu sinteticamente por ítens todas as questões abordadas na correspondência de Oneyda
Alvarenga. Além disso, Saia procurou justificar ao final da correspondência os resultados considerados pouco

732
- Corresp.Doc.36 - de Luiz Saia a Mário de Andrade, João Pessoa, 28 de março de 1938
733
- Nem Rio Grande do Norte nem Ceará foram pesquisados de forma extensiva pela equipe da Missão. Pelo que se pode
deduzir da documentação original, não houve nenhuma visita ao Rio Grande do Norte. Quanto ao Ceará, a equipe passou
rapidamente pelo seu território quando viajava a São Luís do Maranhão em fins de maio. Em nenhum dos dois Estados
ocorreram coletas etnográficas expressivas.
734
- A referência a tal imagem - uma Nossa Senhora em marfim -foi realizada pela primeira vez em correspondência de Luiz Saia
a Mário de Andrade, datada de 26 de fevereiro de 1938 (Corresp.Doc.35). É interessante notar que naquela ocasião a
possibilidade de Mário de Andrade se juntar à equipe da Missão era ainda considerarda bastante grande: “(...) Tem um judeu
aqui que me procurou para vender um marfim - Nossa Senhora - de 40 cms de altura. Coisa muito magnífica. Porém ele quer
5 contos. Tenho quasi certeza que deixará a imagem por um cheque de conto ou conto e pouco. Porém isto será negócio
para você fazer na sua vinda, pois é coisa de colecionador muito apaixonado ou muito rico (...)”. (o grifo é de Luiz Saia).
735
- Corresp.Doc.22 - de Oneyda Alvarenga a Luiz Saia, São Paulo, 7 de abril de 1938
113

satisfatórios obtidos em Pernambuco, alegando fortes motivos que somente poderiam ser relatados pessoalmente.
Apesar de não identificados na documentação original, é lícito supor que tais problemas foram resultado da nova
conjuntura política do Estado Novo em Pernambuco. O contraste com as dificuldades lá enfrentadas e o tratamento
dispensado à Missão pelas autoridades paraibanas foi motivo de ênfase pelo Chefe da expedição:

“(...) D.Oneida. Abraço. Chegamos ontem do interior do Estado da Paraíba, depois de uma viagem de 25
dias. Encontrei carta sua datada de 7/4. Aí vai o que você pede. Não enviei antes por [que] estava
fazendo desde logo relatório circunstanciado e... não havia tempo para isso. Esta prestação de conta vai
elementar. Além dos gastos aqui indicados, o restante até quatorze contos estão na conta de inúmeros
pequenos gastos, pagamento de cantores, correspondências etc.
(...)
Agora respondo os seus ítens: a-) aí vai b-) sim c-) responderei adiante d-) ciente e-) já estou fazendo
isso desde nossa partida de São Paulo; f-) Na última vez que estive com o judeu ele me informou que já
vendera a imagem, porém acredito que seja mentira. Providenciarei um recado a respeito g-)
relativamente a reclamação minha a respeito do Martin [Braunwieser] houve um engano ou na redação
da minha carta ou na compreensão dela. Eu não haveria nunca de querer que o Martin traduzisse pro tal
trabalho as linhas gravadas. O que pedi a ele foi que desse as linhas escritas e colhidas quando a
situação não permitia gravação. A indicação dada por você e pelo Mário a respeito de execuções de
registros sonoros em discos está sendo obedecida a risca. O trabalho que estava fazendo para a SEF
[Sociedade de Etnografia e Folclore] está prejudicado pela falta de tempo e pela incompreensão da minha
736
carta. Porém aqui mesmo da Paraíba mandarei duas [comunicações].
Na Paraíba ainda faremos a zona do Estado chamada brejo que me parece a mais importante. Teremos
ainda certamente uns 15 ou mais dias neste Estado. Aqui estamos eficientemente amparados pela
proteção oficial mas além da estadia e viagens tenho muito mais coisas a ver nesse sentido. Enviarei
daqui mais uma remessa de material colhido. Quanto aos discos [ainda virgens] mandarei dizer para
onde devem enviar com a necessária antecedência.
Espero que os resultados da missão estejam agradando. O Pernambuco não foi grande coisa sob certos
pontos de vista. Houve razão forte para isso e só poderá ser explicada aí mesmo. Tudo vai indo bem de
saúde e de outras coisas (...) abraço do Saia (...)”. 737

A segunda correspondência lida por Luiz Saia em 26 de abril, foi redigida por Ademar Vidal. O escritor paraibano
havia deixado a carta no hotel da equipe em João Pessoa, enquanto a expedição se encontrava no município de
Sousa, em 13 de abril.
A carta de Ademar Vidal foi dividida em duas partes distintas: na primeira, em duas páginas manuscritas,
Ademar Vidal solicitou a Luiz Saia cópia de documentos etnográficos colhidos pela Missão, particularmente de
manifestações populares de origem negra, como o reis de Congo. Sua intenção era a inclusão dos informes folclóricos
resgatados pela expedição em livro sobre o assunto.
A segunda parte da correspondência de Ademar Vidal, em 3 páginas datilografadas, contém instruções e
orientações para Luiz Saia durante a 2ª viagem da equipe pelo interior do Estado - zona do brejo. Ademar Vidal
forneceu vários nomes de personalidades políticas contatadas previamente por ele. Nesses contatos, o escritor
paraibano procurou facilitar os trabalhos da Missão, indicando informantes populares e solicitando ajuda material. A
viagem à zona do brejo começaria dali poucos dias, em 2 de maio:

“Luiz Saia: / você leia umas instruções sobre a procura de elementos, muitos já falados, outros a falar
ainda, todos, enfim, de importância para o sucesso da Missão. Espero que você consiga muita coisa na
Paraíba. É pena que me ache ausente no momento em que regressa à capital.
Vou renovar um pedido, mas renovar encarecidamente: por favor tire cópia dos versos que conseguir dos
congos, cabindas, cocos (os mais interessantes), enfim tudo quanto se relacionar ao negro. E se puder e
quiser fazer-me o obséquio completo: alguns croquis de negros dançando ou cantando.
Ficar-lhe-ia muitíssimo grato se cumprisse o que peço e que naturalmente nada afetará aos interesses da
Missão. Eu tenho um livro sobre negro na Paraíba e há necessidade de completá-lo. Você poderia
facilitar a coisa. No rol das tradições citadas, queira incluir cantigas de carregar piano (...). Estou sem
material e por esta razão é que venho insistir no meu pedido. Não dispensarei os desenhos e tudo o mais
que achar interessante.
Sinto muito a minha ausência.
Disponha do seu amigo e por favor apresente em meu nome cumprimentos aos companheiros de
pesquisas. Espero vê-los todos quando regressarem do extremo norte. / Ademar Vidal / Em 14-4-938 /
738
Não há pressa quanto ao que lhe peço. Basta que eu receba o material que desejo pra junho”.
736
- É provável que Luiz Saia tenha enviado em data não especificada apenas uma comunicação à SEF, em que relatou os
contatos estabelecidos com catimbozeiros de Pernambuco e Paraíba: Os Catimbós do Nordeste. Esta comunicação
redigida em três páginas datilografadas está incompleta. Acervo Histórico DPM: T52P6
737
- Corresp.Doc.39 - de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga, João Pessoa, 27 de abril de 1938. Os grifos são de Luiz Saia
738
- Corresp.Doc.s/nº - de Ademar Vidal a Luiz Saia, sem local, 14 de abril de 1938
114

Apesar da solicitação ser de Ademar Vidal - um grande colaborador da equipe na Paraíba como pôde-se
verificar -, Luiz Saia ao que tudo indica, não atendeu o pedido do escritor paraibano. O Chefe da expedição
provavelmente se orientou pelas recomendações iniciais feitas por Mário de Andrade à equipe, proibindo a cessão de
cópias do acervo folclórico recolhido pela Missão antes de chegar a São Paulo e ser estudado pelo técnicos do
Departamento de Cultura.
Ademar Vidal, personalidade intelectual significativa na Paraíba e Brasil - autor de diversos estudos sobre
linguística popular, lendas e superstições folclóricas 739 -, exercendo uma função política importante (Procurador Geral
do Estado), usou de sua influência e amizade com diversos prefeitos da zona do brejo com intuito de favorecer os
trabalhos etnográficos da Missão:

“(...) Em Mamanguape, procurar o prefeito Eduardo Ferreira. Por intermédio deste mandar avisar a Afrísio
Paltar, em Itapapessirica, para fazer as demonstrações prometidas a Ademar Vidal. Visitar a Baía da
Traição e a ilha em que vivem os índios. Eduardo Ferreira prometeu apresentar o bumba-meu-boi, cantos
populares, cocos, aboiadores, etc.
Em Itabaiana, procurar o prefeito Antônio Santiago. Por seu intermédio mandar avisar a Otávio Ribeiro,
na fazenda Chaves, as encenações prometidas a Ademar Vidal como sejam o cavalo marinho,
aboiadores, cantadores e uma vaqueijada. O prefeito Santiago é muito nosso amigo e poderá com
grande boa vontade facilitar tudo à Missão.
Em Guarabira, procurar o prefeito Sabiniano Maia. Já está avisado da visita e está muito empenhado pra
que a Missão obtenha a maior colheita possível no município, que, aliás, talvez seja o mais rico de
tradições folclóricas. Por seu intermédio, isto é, o prefeito, avisar ao dr. Olívio Maroja a vaqueijada
prometida a Ademar Vidal e também cantadores, etc.
Em Bananeiras, que é também muito rico de tradições folclóricas, o prefeito já se acha avisado pelo dr.
José Mariz, a quem prometeu arranjar a contribuição de motivos populares a maior possível.
(...)
É bom atender ao pedido do dr. José Mariz sobre a realização da conferência. Ele pediu-me para
apresentá-lo ao público e só deixo de fazê-lo por causa de minha viagem. Outro há de dar o recado com
brilho e prestígio.
Estou escrevendo estas instruções pela madrugada. Faça tudo para entender o meu brasileiro e a minha
740
datilografia”.

Além dos locais acima mencionados, Ademar Vidal entrou em contato com personalidades de outros
municípios, vilas e fazendas também localizados na zona do brejo: Areias, Esperança, Alagoa Grande, Alagoa Nova,
Pilar, Fazenda Miriri, Cruz de Almas, Mussu-Magro. Alguns deles foram visitados pela equipe da Missão durante a
viagem à região.
Ainda em 27 de abril, conforme arranjado por Ademar Vidal mesmo antes da viagem da Missão ao sertão
paraibano, a equipe deveria documentar a dança dramática da barca (nau catarineta ou ainda cheganças de marujos)
encenada por um grupo de João Pessoa. Em sua carta com instruções, Ademar Vidal comunicava ao Chefe da
expedição que “(...) na capital, a nau catarineta já deverá encontrar-se aparelhada, pois o interventor mandou gastar o
que precisasse para que se faça uma encenação fiel (...)”. 741
No entanto, pelo que se pode deduzir pela documentação original, o apoio financeiro oficial ao grupo da barca
não ocorreu, e os informantes populares, alegando falta de figurinos e vestimenta apropriada, não estavam preparados
para o trabalho etnográfico no dia combinado. Com tempo escasso para aguardar todos os preparativos necessários, a
expedição partiu em viagem à zona do brejo, esperando encontrar em seu retorno - dali 11 dias -, a manifestação já
preparada.
As negociações com o responsável pelo grupo da barca de João Pessoa foram bastante difíceis e conturbadas.
Segundo correspondência entregue a Luiz Saia, o respon_ável pela barca - não identificado nominalmente - não teve
condições financeiras de subsidiar sozinho os gastos do empreendimento, necessários para restaurar e mesmo
adqüirir o figurino exigido para a encenação completa da manifestação dramática. Sem o apoio financeiro do governo
do Estado, sem a vestimenta e adereços, o mestre da barca foi contra o trabalho de filmagem e gravação da Missão
naquele dia:

“(...) mais sobre a filmagem e gravação da Nau, sou contra em fazer-se este serviço sem a toiellete,
preciso, para ele como o meu amigo vês, sacrifiquei o brinquedo dos rapazes, comprando um barco que
não foi de posto da diretoria e caríssimo, gastando mais 1:300$000 para terminá-lo, ficando com o atrazo
para o technico de 500$000, tudo isto fiz para servir ao senhor e seus auxiliares e que podia ter tido mais
pasiencia e feito do gosto de todos.

739
- cf. VIDAL, A. - “Lendas e superstições: contos populares brasileiros.” Rio de Janeiro, Emp.Graf.O Cruzeiro. 1950. 626 p.
740
- Corresp.Doc.s/nº - de Ademar Vidal a Luiz Saia, sem local, 14 de abril de 1938
741
- Corresp.Doc.s/nº - de Ademar Vidal a Luiz Saia, sem local, 14 de abril de 1938
115

Mais diante do vexame que o sr. apresentou-me foi o que me fez, fazer o que acima explico e agora filmar
diante do povo do meu distrito, sem a toiellete competente, é sofrer uma crítica mais forte do que já sofri.
E é por isto, que declaro que não sou de acordo [com] a filmagem e gravação sem a toiellete.
Contra mandar um meu auxiliar falar com as altas autoridades isto não me fica bem, só eu pessoalmente
e deixo de fazer por que me acho acamado. / Sem mais subscrevo-me com estima e consideração / (...)”.
742

Apesar disso, mesmo “impedida” pelo mestre de gravar e filmar a manifestação, a Missão teve, durante a tarde
de 27 de abril, oportunidade de encontrar-se com os componentes da barca, assistindo um ensaio dessa dança
dramática. Na ocasião, foram efetuadas diversas anotações para controle de registros etnográficos posteriores. 743
Com o grupo, foi acertado trabalho de documentação a ser efetuado após o retorno da Missão em sua viagem à zona
do brejo. Durante o ensaio, Luiz Saia gastou 11$000 réis com o oferecimento de aguardentes. 744
Em 28 de abril, a equipe da Missão se deslocou à periferia de João Pessoa visitando a praia da Penha e o
bairro do Róge. Na praia da Penha, Luiz Saia teve oportunidade de realizar um levantamento mais extenso sobre
características da arquitetura e construção de algumas habitações populares. Os dados foram fornecidos por
Florentino José Gurchidia, um pescador das redondezas. O chefe da expedição efetuou diversos croquis das
habitações e plantas baixas, anotando os tipos de madeiras utilizadas, e alguns detalhes internos como o mobiliário e
utensílios domésticos. 745 Ao pescador, Luiz Saia ofereceu a gratificação de 2$000 réis. 746 Ainda na praia da Penha, a
Missão visitou uma capela não identificada que foi documentada em duas fotografias efetuadas pela equipe. 747 Ao
zelador do local foram oferecidos 5$000 réis. 748
No bairro do Róge, a Missão conheceu o grupo de cabocolinhos Tupi-guarani, assistindo um ensaio. Luiz Saia
efetuou diversas anotações e croquis particularmente sobre a coreografia com descrição das evoluções características
e o enredo dramático. Esses dados, efetuados para controle de documentação posterior, foram anotados por Luiz Saia
em uma caderneta de campo. 749 Com o mesmo grupo de cabocolinhos, a Missão combinou trabalho de gravação e
filmagem a ser realizado após o retorno da zona do brejo. Pelo ensaio e para mestre do grupo de cabocolinhos, Luiz
Saia ofereceu como pagamento 20$000 réis. 750
Também em 28 de abril, Martin Braunwieser registrou uma melodia de pedinte entoada por um colaborador da
equipe, funcionário do governo paraibano, em João Pessoa - Nestor Figueiredo. 751 Segundo informações anotadas
pelo maestro, esta “(...) velha canção dos cegos foi cantada antigamente na ponte Bela Vista em Recife, e hoje nas
feiras do interior do Estado de Pernambuco (...)”. 752
Em 29 de abril, a equipe da Missão procurou entrar em contato com um catimbozeiro para arranjar sessão de
gravação e filmagem. É interessante notar que a procura por informantes de cultos de feitiçaria nacional como o
catimbó foi sistemática durante toda a viagem da Missão. Naquele dia, foi realizado o contato com um mestre
catimbozeiro e as conversações efetuadas. Luiz Saia chegou inclusive a oferecer um adiantamento de 20$000 réis por
uma sessão de catimbó. 753 No entanto, devido à intensa repressão policial, o mestre desconfiado, por medo e receios
mais do que justificáveis, não se dispôs mais a colaborar. A dificuldade de estabelecer contato com os feitiçeiros foi
comentada por Luiz Saia em sua inacabada Comunicação à Sociedade de Etnografia e Folclore:

“(...) Em João Pessoa fiz força muita pra arranjar um catimbó que sabia dever existir ali. Desde
Pernambuco possuía indicação de forte núcleo catimbozeiro no lugar chamado Liandra e em Sapé. Na
Paraíba vim saber da morte da mestra que funcionava em Liandra e da de Sapé. No entanto a existência
de núcleos fortes não me deixavam dúvidas a respeito que devia restar qualquer coisa por ali. Pedro
Batista me desanimava contando que Gonçalves Fernandes passara dois anos em João Pessoa à cata
disto sem resultado nenhum. A gente da Barca com quem entrei em contato nos ensaios da Nau
Catarineta, alguns davam indicações muito medrosas. (...) Já possuía ordem do Chefe de Polícia e afinal
um dia me aparece um catimbozeiro quando eu estava almoçando. A conversa dele foi a mais melosa
possível. Eu procurava convencê-lo e ele me fugia das mãos como um bagre. A polícia não deixava,
dizia. Com um pouco mais estava convencido da ordem da polícia. E começou opor outras razões. Se eu
não tivesse indicações seguras de se cantar muitas linhas e dançar no catimbó dele, não insistiria muito
porque ele entrou numa linguação onde havia muito de espiritismo: a corrente dele estava numa cura
importante. Questão de vida ou de morte. Se houvesse um bombardeio na corrente era morte certa pra

742
- Corresp.Doc.17 - do mestre da barca de João Pessoa a Luiz Saia, sem local, sem data.
743
- Cad.de Campo 5, p.108-115. Acervo Histórico DPM: D28P2
744
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.10
745
- Cad.de Campo 5, p.116-121.
746
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.10
747
- Documentos originais da MPF: Fotos 632, 686
748
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.10
749
- Cad.de Campo 5, p.123-132. Acervo Histórico DPM: D30P2
750
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.10
751
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946. Coleção Martin Braunwieser, melodia 418, p.300
752
- idem ibidem
753
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.10
116

alguém. Sugeri que pedisse licença pra corrente e quando nos despedimos ele foi embora prometendo
consultar os espíritos sobre a possibilidade de uma sessão pra mim. Não vi mais ele (...)”. 754

O período entre os dias 29 de abril a 2 de maio a equipe da Missão cuidou dos preparativos para a viagem à
zona do brejo. Em 30 de abril, Luiz Saia enviou telegrama a Oneyda Alvarenga solicitando remessa de material escrito
sobre Departamento de Cultura de São Paulo e seus objetivos, com intuito de subsidiar a palestra solicitada por José
Mariz: “(...) Remeta urgente indicações estrutura e trabalho Departamento (...)”. 755 No dia da partida, em 2 de maio,
Oneyda Alvarenga escreveu carta-resposta a Luiz Saia, em que se fazia novamente interlocutora de Mário de
Andrade:

“(...) Saia, seguem com esta os dados que você pediu sobre o Departamento. Recebi sua carta de 27.
Satisfeitíssimos com o ótimo resultado dos trabalhos. (...) Esclarecida a encrenca das notações
[musicais]. Mário manda-lhe dizer que faça a conferência na Paraíba e consinta publicação dela. Quanto
ao trabalho para a Sociedade [de Etnografia e Folclore], Mário torna a lhe afirmar que é perfeitamente
dispensável a documentação musical, visto que nem haverá jeito de revelá-la.
(...) Logo que for possível, remeterei mais dinheiro para a Missão. Abraços. (...)”. 756

A partida da Missão de João Pessoa com destino à região do brejo ocorreu em 2 de maio. Viajando com o
caminhão de João Gomes de Brito, contratado para a viagem, a primeira escala da equipe foi no município de
Itabaiana, cidade natal do motorista da expedição. O retorno a João Pessoa aconteceu em 13 de maio.

754
- Comunicação inacabada de Luiz Saia à Sociedade de Etnografia e Folclore. sem data. Acervo Histórico DPM: T52P6. Os
grifos são de Luiz Saia
755
- Corresp.Doc.41 - de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga, João Pessoa, 30 de abril de 1938
756
- Corresp.Doc.25 - de Oneyda Alvarenga a Luiz Saia, São Paulo, 2 de maio de 1938
117

2.8 - De 2 a 13 de maio: segunda viagem ao interior da Paraíba - a zona do brejo

Em 2 de maio, segunda-feira, às 13:00 horas, a equipe partiu de João Pessoa com o caminhão de João Gomes
de Brito, viajando para o município de Itabaiana, distante cerca de 50 quilómetros da capital. 757 Durante o trajeto,
realizado em aproximadamente duas horas, a Missão passou por Santa Rita e Socorro. Em Santa Rita, Luiz Saia
anotou a presença de uma habitação popular de interesse etnográfico. Em Socorro, havia a “(...) capela da N. Senhora
do Socorro com alpendre e imagens ótimas (...)”. O Chefe da expedição registrou o edifício em “(...) duas fotografias
exteriores (...)”.758 Um pouco além, “(...) 500 metros adiante, na margem do Paraíba, capela da Batalha e fim do filme
(...)”. Luiz Saia registrou o local ou o que restava da construção em 3 fotogramas: “(...) 1ª foto - altar-mor em ruínas; 2ª
foto - vista interna vendo-se altar mor em ruínas; 3ª foto - vista externa vendo-se a capela mor e a água do Paraíba
(...)”. 759
Às 16:30 horas a equipe da Missão chegava ao município de Itabaiana, hospedando-se dessa vez em um hotel
da cidade. Logo em seguida, Luiz Saia procurou o prefeito de Itabaiana - Antônio Santiago, amigo de Ademar Vidal e,
como será visto, grande colaborador da equipe na cidade. Seguindo recomendação do escritor paraibano, a Missão
deveria localizar e documentar em Pilar - município distante cerca de 20 quilómetros de Itabaiana - um aboiador
afamado na região: “(...) Em Pilar, procurar o prefeito João José Maroja. Por seu intermédio providenciar sobre o
aboiador, considerado o melhor da Paraíba, existente na fazenda do cel. Custódio. Aliás, o prefeito de Itabaiana
poderá facilitar a ida desse aboiador, uma vez que fica perto, dispensando, assim, a Missão de ficar no Pilar, onde
também é notável a contribuição folclórica a colher (...)”. 760
Assim foi feito. Com a colaboração do prefeito Antônio Santiago, a Missão iniciou em 3 de maio, terça-feira, os
trabalhos de gravação com um grupo de 3 vaqueiros vindos da fazenda do coronel Custódio de Pilar. Com eles, foi
gravado um disco de 12 polegadas contendo 8 melodias de aboios, 761 além de registradas 3 fotografias. 762 Os dados
sobre os informantes e a relação de melodias foram anotadas por Ladeira e Pacheco em duas cadernetas de campo.
763
Para os vaqueiros, Luiz Saia ofereceu como pagamento 28$000 réis. 764
Além dos aboiadores, contando sempre com a assistência do prefeito Antônio Santigo, a Missão gravou ainda
nesse dia várias cantigas de pedintes. Com três cegos mendigos foram gravados 2 discos de 12 polegadas, com
exemplos entoados para solicitar e agradecer esmolas. 765 Os mendigos foram registrados em 4 fotografias efetuadas
por Luiz Saia. 766 Os dados sobre os informantes, os textos e a relação de toadas gravadas foram anotados por
Ladeira e Pacheco em duas cadernetas de campo. 767 De um dos mendigos - José Francisco Cardoso - Antônio
Ladeira anotou um texto de toada denominada pelo informante como sendo um Conselho de Padre Cícero. 768 Esta
toada não foi gravada pela equipe.
Com os mesmos pedintes acompanhados por outros informantes populares - formando um grupo com solo,
coro de 10 pessoas, além do acompanhamento de 2 ganzás -, a Missão gravou nesse dia 3 de maio três discos de 12
polegadas contendo cerca de 25 melodias com diversos exemplos de coco: embolada, parcelado, roda, arriba,
martelo, trocado e gabinete. 769 Com excelente qualidade etnográfica, os trabalhos de gravação com o grupo de
coquistas somente foram finalizados no dia seguinte, quando então a Missão registrou mais 3 discos de 12 polegadas,
com outras de 30 melodias de cocos. 770 Com esses informantes foram efetuadas 8 fotografias realizadas por Luiz
Saia. 771 Os dados sobre eles, os textos e a relação das melodias gravadas foram anotados por Ladeira e Pacheco em
duas cadernetas de campo. 772 Os gastos da Missão com os coquistas/pedintes somaram a quantia de 183$000,
incluindo-se a aquisição de folhetos de literatura de cordel no valor de 33$000. 773
Em 4 de maio, quarta-feira, nas cercanias de Itabaiana a equipe da expedição teve oportunidade de gravar os
cantos de trabalho entoados por trabalhadores de uma pedreira do local. Com três informantes, a Missão registrou um
lado de disco de 12 polegadas com quatro toadas de remoção de pedras. 774 Dos trabalhadores foram realizadas 3
fotografias. 775 Como pagamento pela contribuição à equipe, os carregadores de pedra receberam de Luiz Saia
757
- Cad.de Campo 5, p.132
758
- Cad.de Campo 5, p.133
759
- idem ibidem
760
- Corresp.Doc.s/nº - de Ademar Vidal a Luiz Saia, 14 de abril de 1938
761
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.26. Discos F.84B-F.85A, fons.559-565
762
- Documentos originais da MPF: Fotos 211-213
763
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 4, p.9-14 (Ladeira)
764
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.10
765
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.40-41. Discos F.85-F.86, fons.566-574
766
- Documentos originais da MPF: Fotos 226-230
767
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 4, p.15-26 (Ladeira)
768
- Acervo Histórico DPM: T33P3 (“Conselho de Padre Cícero”)
769
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.53-54. Discos F.86-F.89, fons.575-598
770
- idem, p.54-55. Discos F.91-F.93, fons.609-633
771
- Documentos originais da MPF: Fotos 230-237
772
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 4, p.27-39; 59-63 (Ladeira)
773
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.10-11
774
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.41. Disco F.90B, fons. 605-608
775
- Documentos originais da MPF: Fotos 256-258
118

20$000 réis. 776 Bem próximo à pedreira, Luiz Saia teve oportunidade de recolher mais um ex-voto em uma capela da
redondeza. Essa pequena igreja e o milagre de madeira recolhido foram registrados por Luiz Saia em uma
fotografia. 777
De volta à cidade, a equipe documentou em filme cinematográfico e disco aspectos da coreografia e música de
um grupo de cabocolinhos, integrado por caixa, pife e 2 zabumbas. Segundo anotações de Luiz Saia, o grupo era
antigo e não tinha nome algum, tendo reassumido suas atividades às vésperas do contato com a Missão: “(...)
Cabocolinho de Itabaiana não tem nome. Foi formado há muito tempo. Há quatro anos havia se acabado e voltou pro
carnaval de 1938 (...)”. 778 Com o grupo foi gravado um lado de disco de 12 polegadas, contendo 5 exemplos melodias
características juntamente com fragmentos das partes dialogadas da manifestação - as embaixadas. 779 Além do
registro em filme cinematográfico, 780 a Missão ainda efetuou 18 fotografias dos informantes, com detalhes da
coreografia apresentada. 781 As anotações escritas sobre o grupo de cabocolinhos de Itabaiana, descrição de
coreografia, dados sobre os dançantes, a relação das melodias gravadas foram realizadas por Ladeira e Pacheco em
duas cadernetas de campo. 782 Como pagamento pela colaboração, a Missão gastou com o grupo de cabocolinhos
129$000 réis, incluindo-se o oferecimento de aguardentes.
Ainda no dia 4 de maio, seguindo indicações do prefeito Antônio Santiago, a equipe entrou em contato com
outro catimbozeiro, morador “(...) num sítio retirado umas três léguas da cidade de Itabaiana (...)”. 783 Para chegar ao
local indicado, a Missão necessitou da colaboração de um guia para quem foi oferecido a quantia de 20$000 réis. 784
Em negociações com o mestre catimbozeiro e sua assistente - Manuel Laurentino da Silva e sua mulher Maria da
Conceição -, Luiz Saia conseguiu arrumar uma sessão de gravação para o dia seguinte, oferecendo ao mestre um
adiantamento no valor de 20$000 réis. 785
Em 5 de maio, quarta-feira, pela manhã, a equipe se preparou para seguir viagem. Foram acertados os gastos
com o alojamento em Itabaiana, somando a quantia de 261$800 réis, incluindo-se o oferecimento de gratificações
(22$000). 786 Em seguida, Luiz Saia enviou um telegrama (1$900) comunicando ao prefeito do município de Alagoa
Nova - a próxima escala - a chegada da expedição na noite do dia 5. Esse procedimento do Chefe da expedição,
adotado sistematicamente durante toda viagem da equipe, visava à preparação dos colaboradores populares da
cidade e região, procurando economizar o pouco tempo disponível para os trabalhos da Missão.
Saindo de Itabaiana em torno das 14:00 horas, 787 a Missão passou por um cruzeiro - Cruzeiro de Maria Melo -
onde Luiz Saia procurou recolher ex-votos de madeira, não obtendo porém nenhum resultado positivo. Ao zelador do
local foi oferecido uma gratificação de 10$000 réis. 788 Logo em seguida, a equipe se deslocou para o “sítio” do mestre
Manuel Laurentino da Silva, realizando conforme combinação prévia a gravação das toadas características de seu
catimbó. Foram registrados 6 discos de 12 polegadas contendo 33 melodias. 789 Da moradia e dos informantes foram
realizadas 5 fotografias para controle do material. 790 Os dados sobre o mestre e sua ajudante, as características
principais do ritual, o flos santorum, os textos e a relação das melodias gravadas foram anotados por Luiz Saia, Ladeira
e Pacheco em 5 cadernetas de campo. 791 Como pagamento aos informantes, Luiz Saia ofereceu 54$500 réis,
incluindo-se a compra e aquisição de uma garrucha de propriedade do mestre Manuel Laurentino da Silva. 792
A chegada ao município de Alagoa Nova aconteceu em torno das 21:00 horas, depois de escalas nas cidades
de Ingá - cerca de 24 quilómetros de Itabaiana -, e Campina Grande - 30 quilómetros de Ingá. Depois de encontro com
autoridades locais, a equipe instalou-se em um hotel da cidade, que ofereceu hospedagem à Missão gratuitamente. No
dia seguinte, iniciaram-se os trabalhos. Em uma casa da cidade, a Missão montou suas aparelhagens. Pela cessão do
espaço à equipe, Luiz Saia ofereceu ao dono do imóvel 5$000 réis. 793 Em seguida, com dois cantadores - Josué Cruz
e Evaristo -, arregimentados pelo prefeito, a Missão gravou 3 discos de 12 polegadas com 16 melodias com exemplos

776
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
777
- Documentos originais da MPF: Foto 75
778
- Cad.de Campo 4, p.50-51 (Saia)
779
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993 p.39. Disco F.80A, fons.599-603
780
- Documentos originais da MPF: Filme 6.C, P&B, silencioso, 1'12”
781
- Documentos originais da MPF: Fotos 238-255
782
- Cad.de Campo 4, p.40-45; 51-54 (Ladeira); Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco)
783
- Cad.de Campo 5, p.151
784
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
785
- idem ibidem
786
- idem ibidem
787
- Cad.de Campo s/nº, p.74-75 (Braunwieser)
788
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
789
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.42-44. Discos F.94-F.99, fons.637-668
790
- Documentos originais da MPF: Fotos 259-263
791
- Cad.de Campo 5, p.134-151; Cad.de Campo 8, p.15-59; Cad.de Campo 9, p.18-49 (Saia); Cad.de Campo 4, p.64-69
(Ladeira); Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco). Acervo Histórico DPM: T54P6, T90P9, T108P10
792
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11. As melodias, juntamente com as fotos e informações referentes ao catimbó de mestre
Manuel Laurentino da Silva, foram transcritas em notação musical e publicadas no ano em que se comemorou o centenário
de nascimento de Mário de Andrade: CARLINI, A. - “Cachimbo e maracá: o catimbó da Missão (1938).”, São Paulo, CCSP,
1993. 221 p.il. - p.137-188
793
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
119

de cocos e desafios: coco de roda, embolada, de 8ª rebatido, de meia fala, gabinete e coco martelo. 794 Com os dois
cantadores Luiz Saia efetuou 2 fotografias. 795 Os dados sobre eles, sobre a técnica de improvisação, os textos e a
relação das toadas gravadas foram anotados por Luiz Saia e Pacheco em duas cadernetas de campo. 796 Pela
colaboração, o Chefe da expedição ofereceu 42$600 réis, incluindo-se o pagamento de refeições e aguardentes
(12$600).
Sobre o cantador Josué Cruz é interessante a transcrição literal de um comentário de Luiz Saia no momento em
que pesquisava alguns aspectos sobre o processo de rimas utilizado. Nesse comentário, o Chefe da expedição
realizou uma abordagem também psicológica sobre o informante:

“(...) Quando o Josué estava respondendo a minha pergunta sobre rimas ele precisou se socorrer de uma
estrofe conhecida que cantarolou. Isto mostra que ele conhece a técnica tradicionalmente mas sem
consciência intelectiva dela. Ele é pretencioso e se imagina discorrendo muito bem sobre qualquer
assunto. É célebre no Brejo. Já cantou no sertão porém é localizado sobretudo aqui no Brejo (...).” 797

Logo após o término das pesquisas com os cantadores, seguindo informações sobre mais um catimbozeiro
morador da região - mestre Zé Hilário -, a equipe da Missão partiu, ainda pela manhã, à procura do feitiçeiro. Após
conversações com Luiz Saia, mestre Zé Hilário não concordou em realizar de sessão especial de catimbó para os
trabalhos da equipe. Segundo o Chefe da expedição,

“(...) Às 9:30 saímos atrás de um catimbozeiro chamado Zé Hilário morador no Caxangá (5 léguas pras
bandas do Cariri). Paramos em Alagoa da Roça e seguimos pra casa dele. Ele não quis. Voltamos pra
Alagoa da Roça e aí encontramos um aleijado que, se curando com Zé Hilário, aprendeu as linhas dele.
Começamos a tirar os aparelhos do caminhão e em meio o Pacheco verificou que não trouxera o
microfone. Agora são 3:10 da tarde e estamos em Alagoa Nova com o Aleijado pra gravar sem almoçar
798
até agora (...)” Não foi possível trazer este mestre ou então convencê-lo da gravação. A história é
longa e cheia de incidentes interessantes. Afinal, conseguimos trazer um aleijado que passara 15 dias em
cura no catimbó do mestre Hilário. Deste aleijado são os informes e as linhas colhidas por nós. (...)”. 799

O aleijado chamava-se José Anísio Xavier. Com ele a Missão gravou um disco de 12 polegadas contendo 6
melodias do catimbó de mestre Hilário. 800 José Anísio Xavier foi registrado em uma fotografia efetuada por Luiz Saia.
801
Os dados sobre ele, sobre o catimbó de mestre Hilário, os textos e a relação das melodias foram anotados por Luiz
Saia, Ladeira e Pacheco em três cadernetas de campo. 802 Como gratificação e pagamento a José Anísio Xavier, além
de transporte para o retorno à Alagoa da Roça, Luiz Saia ofereceu 45$000 réis. 803 Além de José Anísio Xavier, ainda
em 6 de maio, a Missão conheceu um grupo de cabocolinhos da região, combinando para o dia seguinte trabalho de
gravação. Como adiantamento, Luiz Saia ofereceu 10$000 réis. 804
Em 7 de maio, sábado, pela manhã, a Missão inicialmente gravou com 3 cantadores as melodias de reis de
Congo por eles conhecidas. Foram registrados 2 discos de 12 polegadas contendo 12 melodias desta manifestação
dramática. 805 Do grupo foi efetuada apenas uma fotografia realizada por Luiz Saia. 806 Os dados sobre os informantes,
o histórico do grupo de Alagoa Nova, descrição da encenação e vestimenta, textos e relação das melodias gravadas
foram anotados por Ladeira e Pacheco em duas cadernetas de campo. 807 Como pagamento pela colaboração, Luiz
Saia ofereceu aos cantadores 24$000 réis. 808
O último trabalho de gravação em Alagoa Nova foi com o grupo de cabocolinhos arregimentado no dia anterior.
Às 12:30 horas, a Missão registrou em um lado de disco de 12 polegadas 3 melodias entoadas pelo grupo. 809 Os
cantadores foram documentados em uma fotografia efetuada pelo Chefe da expedição. 810 Os informes sobre eles, o

794
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.55-56. Discos F.99B-F.101, fons.671-684
795
- Documentos originais da MPF: Fotos 264, 266
796
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 5, p.162-169 (Saia)
797
- Cad.de Campo 5, p.162-169. Acervo Histórico DPM: D31P2
798
- Cad.de Campo 5, p.152-160
799
- Acervo Histórico DPM: T53P6
800
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.44. Disco F.102, fons.687-692
801
- Documentos originais da MPF: Foto 265
802
- Cad.de Campo 4, p.70-74 (Ladeira); Cad.de Campo 5, p.152-160 (Saia); Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco)
803
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11. As melodias, juntamente com as fotos e informações referentes ao catimbó de mestre
Zé Hilário, foram transcritas em notação musical e publicadas no ano em que se comemorou o centenário de nascimento de
Mário de Andrade: CARLINI, A. - “Cachimbo e maracá: o catimbó da Missão (1938).”, São Paulo, CCSP, 1993. 221 p.il. -
p.191-213
804
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11: “6-5 gratificação ao pessoal do cabocolinho incolhível... [sic]....10$000
805
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.70. Discos F.80-F.81, fons.701-712
806
- Documentos originais da MPF: 267
807
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 4, p.81-91 (Ladeira)
808
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
809
- Cad.de Campo 5, p.169. cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.39. Disco F.106B, fons.713-715
810
- Documentos originais da MPF: Foto 268
120

texto e a relação das músicas gravadas foram anotados por Luiz Saia e Pacheco em duas cadernetas de campo. 811
Como pagamento, o Chefe da expedição ofereceu outros 10$000 réis. 812 Apesar de documentado pela equipe, o
grupo de cabocolinhos de Alagoa Nova não agradou a Luiz Saia. Na realidade, o Chefe da Missão considerou as
toadas registradas pela equipe uma “porcaria”, conforme ele anotou em uma caderneta de campo. Segundo ele, isso
ocorreu devido a influências provenientes de pessoas da cidade sobre o mestre do grupo:

“(...) Este mestre parece que soube bem estes cantos porém agora está ruim que está danado. O
desembaraço que ele apresenta agora parece que vem de conselhos de outras pessoas que
industriaram-no a respeito do comportamento em relação a nós (...)”. 813

Às 14:00 horas de 7 de maio a Missão deixou Alagoa Nova, viajando ao município de Areia - distante cerca de
20 quilómetros. Como gratificação aos funcionários do Hotel de Alagoa Nova, que abrigou gratuitamente a equipe, Luiz
Saia ofereceu 15$000 réis. 814 A chegada ao município de Areia ocorreu cerca de 2 horas depois, com a equipe sendo
recebida por autoridades locais. Nesse dia, foram apresentadas à equipe duas informantes populares - Garbina Maria
da Conceição e Lourença Amélia Machado, conhecida com Siá Lourença -, contadoras de contos tradicionais
conhecidos como histórias do troncoso ou trancoso. Os textos de cinco histórias foram anotados por Antônio Ladeira
em uma caderneta de campo. 815
Em 8 de maio pela manhã, a equipe visitou Alagoa do Remígio, distante cerca de 10 quilómetros de Areia. Lá,
os integrantes da Missão - acompanhados de um funcionário da prefeitura -, foram ao “(...) ao chã de jardim, hoje chã
do cruzeiro (...)”, 816 onde, segundo relato de Luiz Saia, foram “(...) apanhadas 13 peças de escultura popular (...)”. Do
local, o Chefe da expedição registrou 3 fotografias: “(...) da capela dentro da qual está localizado o cruzeiro (...)”; de
uma imagem católica e de um ex-voto recolhido no cruzeiro. 817 Luiz Saia ainda informou que “(...) as imagens que
estão nesta capela vieram de Joazeiro do Padre Ciço [sic]. O resto é enfeitação da capela que consta de retratos de
imagens católicas e flores (...)”. 818 Ao zelador do chã do cruzeiro, Luiz Saia ofereceu uma gratificação de 5$000 réis.
819

Também em Alagoa do Remígio, Luiz Saia teve oportunidade de realizar duas extensas pesquisas: a primeira,
sobre o processo improvisatório de loas e glosas, entoadas na beberagem de aguardente e outros gêneros poéticos; a
segunda sobre arquitetura popular e os componentes vegetais utilizados na construção de habitações. Com dois
cantadores - Henrique Ferreira Dias e Diniz Ferreira de Lima, o Ferreirinha -, Luiz Saia anotou diversas glosas
proferidas à aguardente:

“Glosa: sem que não tome aguardente / Não diverte im poesia.


Sou eu o Diniz Ferreira / Em que se ver conversá / Nu céu, na terra i nu má / O grósador da frontêra /
Cantador de regra entêra / Di força i poca energia / Di rima i sabedoria / Porem di versos decênti / Sem
820
que não tome aguardente / Não divirtu em poesia (...)”.

Aos cantadores, o Chefe da expedição ofereceu 29$000 réis, incluindo-se o pagamento de aguardentes. 821
A pesquisa sobre arquitetura popular realizada por Luiz Saia foi “(...) feita em um trabalhador rural assistido por
um morador da casa vizinha. Foi feita durante uma chuva que caiu quando nós três íamos ao cemitério (...)”,
provavelmente em busca de outros objetos de madeira. O levantamento efetuado pelo Chefe da expedição visou
particularmente estudar os tipos de vegetação utilizados para a cobertura de uma habitação popular: as folhas das
palmeiras uauá e os gravatás. Além disso, Luiz Saia anotou que

“(...) sistematicamente na arquitetura desta zona, mesmo e sobretudo na urbana, surge um encanamento
para utilizar a água da chuva que cai nos telhados das casas cobertas com telhas. A calha é colocada
inclinadamente na beira destes telhados de maneira que a água escorrendo, vai para numa tina ou
recipiente de barro colocado em posição conveniente no chão, na posição de fim da calha na sua parte
mais baixa.
[croqui esquemático]
Às vezes isto é encontrado de tal maneira bem arranjado e tão tecnicamente definitivo que nota-se ser
uma necessidade perfeitamente definitiva na zona onde água é uma falta sempre problemática. Em
certas casas, por exemplo, se encontra um encanamento soldado na calha. Em outras, como a do nosso

811
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 5, p.169-175. Acervo Histórico DPM: T106P10
812
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
813
- Cad.de Campo 5 p.172-173
814
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
815
- Cad.de Campo 4, p.95-104 (2 contos de Garbina); p.105-113 (Siá Lourença)
816
- Segundo o Novo Dicionário Aurélio, chã, “terreno plano, planície; Alagoas e Paraíba, “planalto”
817
- Documentos originais da MPF: Foto 669-670, 706
818
- Cad.de Campo 6, p.1
819
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
820
- Cad.de Campo 6, p.1-10. Acervo Histórico DPM: T73P8
821
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
121

chofer João Gomes de Brito de Itabaiana, um verdadeiro sistema hidráulico é cimentado, com depósito [?]
de concreto armado etc. com chuveiros e muitas torneiras. (...)”. 822

Luiz Saia documentou a habitação popular pesquisada em vários croquis e 4 fotografias. 823 Em outra
observação dessa pesquisa de arquitetura popular, o Chefe da expedição comentou alguns aspectos sobre a
confiança conquistada junto aos informantes. É interessante notar como, progressivamente, Luiz Saia e os demais
integrantes da Missão foram sabendo manipular as situações e os diversos aspectos da pesquisa etnográfica,
contornando adversidades que poderiam prejudicar os trabalhos etnográficos:

“(...) A pesquisa que vem nas páginas anteriores [cad. de campo 6] foi feita com dois moradores do
agreste que estavam construindo a casa fotada em construção. Eles desconhecem quasi completamente
as madeiras existentes no brejo porém sabem muito das coisas do agreste. Respondem com precisão e
confiança. Esta confiança sobretudo porque quem nos acompanhava na pesquisa teve a péssima e besta
idéia de se mostrar dizendo aos construtores que eles precisavam tirar licença na prefeitura.
Naturalmente eu ajeitei o negócio pr'eles. O rapaz da prefeitura ficou com cara de tacho e eu fiquei com a
confiança deles. São dois negros meio mestiçados. Um mais velho de + ou - 50 anos, o outro de 20 ou 25
824
anos (...)”.

De volta a Areia, conforme combinado previamente, a Missão encontrou-se com um grupo de nau catarineta da
cidade, composto por 19 integrantes. Com eles, a equipe gravou 4 discos de 12 polegadas contendo o registro de 26
melodias características. 825 Luiz Saia efetuou 2 fotogramas do grupo de nau catarineta e seus integrantes. 826 Sobre
as anotações escritas realizadas pela Missão, convém registrar as observações de Oneyda Alvarenga efetuadas na
edição do material, em 1956. Pode-se notar que as anotações da Missão foram bastante improvisadas, incompletas e
imprecisas:

“A MPF praticamente nada registrou sobre esta dança dramática colhida em Areia. Em seguida à ficha do
inf.nº482 [balisa da maruja Francisco Gomes Cordeiro], Luiz Saia anotou uns versos, seguramente uma
loa recitada, e um comentário: 9-5-38 / dados sobre o cantador de maruja de Areias [seguem-se
indicações sobre o informante] A parte deste 2º balisa é de: senhores eu saúdo o segundo / que também
venho louvar / a minha vida é triste / da família esqueci-me / levo a vida a chorar / Nesta vida de labour /
não posso mais viajar.
[Ao lado dos versos:] isto me foi dado por escrito pelo próprio fulano que tem cara de passarinho e é
francamente besta.
Examinando-se a nota original do “próprio fulano”, catalogada como T71P8, se vê que Luiz Saia não
entendeu o primeiro verso da loa: Senhores eu sou o segundo (...)
Além disso, Luiz Saia escreveu esta nota: “Pesquisa da maruja de Areia com mestre Artur Lopes da Silva.
/ O m. Arthur vai copiar e o Luís (?) mandará pro Paraíba Hotel [Cad.de Campo 6, p.45] Evidentemente o
mestre Arthur não fez o prometido, pois nada mais se encontra entre os papéis da MPF, senão: as
resenhas de gravação e informantes feitas por Antônio Ladeira [Cad.de Campo 4, p.115-129]; uma
observação de Antônio Ladeira, indicando que “época da bricadeira dos marujos é na Páscoa” [Cad.de
Campo 6, p.40]; os relatórios do discos feitos por Benedito Pacheco [Cad.de Campo “Discos 1”] e Martin
827
Braunwieser [papéis avulsos] (...)”.

Além dessas observações, Oneyda Alvarenga ainda fez notar que os integrantes da Missão registraram a dança
dramática de Areia com diversas denominações: os marujos (Ladeira), a maruja (Luiz Saia), marujo ou nau catarineta
(Braunwieser) e barca (Benedito Pacheco). 828
Em 9 de maio, segunda-feira, a Missão finalizou os trabalhos etnográficos em Areia. Pela manhã, a equipe
realizou gravações de bumba-meu-boi, cantos de pedintes, canto de engenho, aboios e cocos. Com quatro cantadores
de bumba-meu-boi vindos das cercanias - sítio Pirauá -, foram gravados dois lados de discos de 12 polegadas
contendo 10 melodias características da dança dramática. 829 Esses mesmos integrantes do grupo de bumba-meu-boi,
entoaram três melodias de aboios para a gravação em discos. 830 Dos informantes, Luiz Saia efetuou somente uma
fotografia. 831

822
- Cad.de Campo 6, p.23-25
823
- Documentos originais da MPF: Fotos 670-673, 729
824
- Cad.de Campo 6, p.35
825
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.66-67. Discos F.107-F.110, fons.716-741
826
- Documentos originais da MPF: Fotos 269-270
827
- ALVARENGA, O. (org.) - “Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro: Chegança de Marujos.”, São Paulo, Discoteca
Pública Municipal, 1956. p.99-100.
828
- idem, p.101
829
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.33-34. Discos F.111B-F.112A, fons.741-750
830
- idem, p.26. Disco F.112B, fons.752-754
831
- Documentos originais da MPF: Foto 271
122

Também pela manhã, a equipe realizou a gravação de duas melodias de cantos de pedintes. 832 O mendigo foi
registrado em uma fotografia, realizada por Luiz Saia. 833 Além disso, com um coquista da cidade foram gravados 5
exemplos de cocos - 2 de embolada, 2 de roda, e martelo -, e 1 de canto de engenho. 834 Esse cantador foi registrado
em um fotograma. 835 As anotações sobre os informantes, textos e relação de melodias gravadas foram registradas
por Luiz Saia, Ladeira e Pacheco em 3 cadernetas de campo. 836 Os gastos da equipe para o pagamento e
gratificação dos informantes populares somou a quantia de 89$900 réis, assim distribuídos: coquista (15$000), pedinte
(15$000), aboiadores (20$000), cantadores de bumba-meu-boi (35$000), gastos com o oferecimento de aguardente
(4$900). 837
Após os trabalhos de gravação, auxiliado por funcionário da prefeitura, Luiz Saia teve oportunidade de consultar
alguns exemplares de periódicos antigos da cidade. Assim, durante a tarde de 9 de maio, Luiz Saia realizou a leitura
de dois jornais: o Areiense, datado de 2 de julho de 1887, e a Verdade, de 1889. Deste último periódico, o Chefe da
Missão anotou em sua caderneta de campo:

“(...) Num jornal de 3 de maio de 1889 (Verdade) comemorava o “primeiro aniversário da emancipação
deste município - o único desta província que libertou todos os seus escravos - por iniciativa particular”.
Mais adiante um tal Pires de Melo assina um artiguete onde diz que essa iniciativa de libertação “da
degradante e torpe escravidão, independente da intervenção do Governo da Sra.D.Isabel. Este mesmo
Pires de Melo termina o artigo exclamando: “República Brazileira / Salve data gloriosa / Que aqui
T'immortalizaste; / Salve aurora redemptora / Que o carpintero esmagaste.” No mesmo jornal (mesmo
exemplar) um José A. Santiago termina o artigo dizendo: “Viva o Município d'Areia / Viva a liberdade /
Viva a bonita República Brazileira” 838

Às 18:45 horas de 9 de maio, após as despedidas e agradecimentos às autoridades locais, a Missão partiu do
município de Brejo de Areia com destino à cidade de Alagoa Grande, distante cerca de 20 quilómetros. Durante o
trajeto, realizado em 45 minutos, Luiz Saia em conversa com o calunga (ajudante) de caminhão de João Gomes de
Brito, chamado Severino, conseguiu informações sobre um catimbozeiro morador de Itabaiana, obtendo dele o
compromisso de ajuda para os trabalhos da Missão: “(...) Durante a viagem o Severino (Calunga) nos informou
conhecer em Itabaiana um catimbozeiro. Se comprometeu a fazer força para ele com o ajudante [ir] pra João Pessoa
depois desta viagem. Em João Pessoa conheceremos ele. O Severino diz que este catimbozeiro tem mais de 50 linhas
839
(...)”. Como forma de adiantamento pela colaboração, ou talvez pela disponibilidade de ajuda à Missão, Luiz Saia
ofereceu uma gratificação 15$000 réis ao calunga do caminhão de João Gomes de Brito. 840
Logo após a chegada em Alagoa Grande, em torno das 19:30 horas, a equipe iniciou seus trabalhos. Em
conversa com um integrante do grupo de barca da cidade, a equipe ficou sabendo de um ensaio de de cabocolinhos,
orientados por Manuel Severino da Cruz, então com 77 anos de idade. Esse informante era o mestre da barca e
cabocolinhos de Alagoa Grande. Apesar de conhecer profundamente a dança dramática da barca, Manuel Severino da
Cruz não conseguiu ensinar de maneira satisfatória a manifestação à população do município. Apresentando baixa
qualidade etnográfica, Luiz Saia decidiu e solicitou a Martin Braunwieser que somente fosse realizado o registro
manual das melodias entoadas por Manuel Severino, o que foi feito no dia seguinte. Além disso, ainda no dia 9 de
maio já pela noite, Luiz Saia, Antônio Ladeira e Benedito Pacheco, acompanhados do jardineiro da prefeitura,
coletaram mais alguns ex-votos dispostos em um cruzeiro da cidade:

“(...) Chegada a Alagoa Grande às 19:30 horas. Imediatamente um rapaz da barca nos informou que
estavam ensaiando o cabocolinho. Fomos ver este cabocolinho. É formado só de crianças e de uns
homens poucos. Como tradição resta o que o preto mestre parece que pôde ensinar porém a molecada
não... aprendeu o negócio. Está um problema este cabocolinho. Conversei aí com o mestre da barca. Ele
841
me deu as partes copiadas. Mais tarde voltaremos lá pra ver o ensaio da barca. Desse ensaio do
cabocolinho voltamos pra “rua” e aí fomos encontrar o prefeito Dr. Clodoaldo Trigueiros na farmácia. Ele
vai viajar amanhã cedo e vai deixar o secretário da prefeitura a nossa disposição. Daí, acompanhados
pelo jardineiro Francisco Bernardino Rodrigues, fomos até o cruzeiro (talvez uma diferença de + de 100
metros) depois de uma subida ingrimíssima. Deste cruzeiro trouxemos (eu, Ladeira, Pacheco e

832
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.41. Discos F.112B-F.113A, fons.756-757
833
- Documentos originais da MPF: Foto 272
834
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.40, 56. Discos F.112B-F.113, fons.752, 758-762
835
- Documentos originais da MPF: Foto 273
836
- Cad.de Campo 4, p.131-139 (Ladeira); Cad.de Campo 6, p.29-59 (Saia); Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco). Acervo
Histórico DPM: T24P2 (Cantos de Pedintes); T86P9 (Bumba-meu-Boi de Pirauá)
837
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
838
- Cad.de Campo 6, p.41. Grifo de Luiz Saia.
839
- Cad.de Campo 6, p.60
840
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
841
- quatro páginas de papel almasso, manuscritas a tinta, posteriormente datilografadas por Oneyda Alvarenga. Acervo Histórico
DPM: T12P1
123

Francisco) 12 peças de madeira. Tomamos um café e agora eu e Martin vamos ao ensaio da barca. São
22 horas.
São 22:30. Estivémos eu e Martin assistindo ao ensaio da barca. É uma porcaria inigravável. O pessoal
da barca... é a mesma meninada do cabocolinho. A solução é fugir daqui. Há o problema do velho. Este
sabe melodias riquíssimas porém está em estado inigravável. Talvez o Martin possa escrever as
melodias dele... e fugiremos lá pro meio-dia dizendo que na volta filmaremos e gravaremos o negócio
todo. Amanhã cedo, às 5:00 da manhã, o Francisco passará aqui para levar-me a um outro cruzeiro.
10/5/38 - Alagoa Grande / Me levantei cedo. O pessoal da barca estava no hotel às 7:30 e se verificou ser
impossível colher eles gravando. O Martin está escrevendo a música do velho (...)”. 842

Em 10 de maio, terça-feira, Martin Braunwieser registrou as melodias de barca entoadas por Manuel Severino
da Cruz. Foram anotadas somente 3 melodias, pois o informante, devido à idade avançada, estava com a memória
bastante enfraquecida. 843 Enquanto Braunwieser anotava as melodias, Luiz Saia anotou os textos e realizou um
croqui de Manuel Severino da Cruz. 844 Em um dos relatórios entregues à Discoteca Pública Municipal, Martin
Braunwieser teceu alguns comentários sobre seu trabalho com o mestre da barca:

“(...) Em Alagoa Grande, o mestre do brinquedo “Nau Catarineta”, Manuel Severino da Cruz, um homem
de 75 anos de idade, cantou-me com a mais boa vontade as toadas que ele sabia. Mas a memória dele
estava muito fraca e sempre mudava a melodia e as palavras, começava e logo depois cantava a mesma
toada diferente. Parece-me também que misturou as toadas dos brinquedos - anotei por exemplo, uma
estrofe que ele cantou entre as toadas da “Nau Catarineta” e que eu penso deve ser do “Catimbó” ou
“Candomblé”: “Eu sou Manué Boju / A minha costa stá quebrada / Sereia veiu do fundo do mar, / Eu [me]
chamo Josezinho”. Com muita paciência, consegui grafar as três toadas (...)”. 845

Ao contrário do previsto, a visita de Luiz Saia a outro cruzeiro da região, acompanhado do jardineiro da
prefeitura de Alagoa Grande somente ocorreu após o término dos trabalhos com o mestre da barca Manuel Severino.
Partindo da cidade às 12:00 horas, a equipe parou no cruzeiro indicado pelo informante sem no entanto recolher ex-
voto algum. Ao jardineiro, Luiz Saia ofereceu 5$000 réis como pagamento pela indicação do local. 846
O roteiro da Missão incluía agora os municípios de Mamanguape, Rio Tinto e Baía da Traição - distantes cerca
de 100 quilómetros na direção do litoral norte do Estado da Paraíba. O trajeto foi realizado em dois dias, com
pequenas escalas em Lagoinha, Guarabira, Mulungu, Sapé, Mamanguape, e pernoite em Rio Tinto, onde foram
recebidos pelo prefeito do local. Também em Mamanguape, o prefeito local recebeu a Missão, oferecendo um
automóvel para facilitar o deslocamento da expedição pela região. Durante a viagem, Luiz Saia aproveitava para
registrar em seu diário de campo informações de interesse etnográfico, alguns detalhes e suas impressões pessoais:

“(...) Saída de A.Grande 12 horas.


[croquis esquemáticos]
Duas plantas de casas populares do povoado de Lagoinha entre A.Grande e Guarabira. Em Guarabira
chegamos às 13:30. Fui a prefeitura e perguntei pelo prefeito. Não estava. Perguntei pelo secretário da
prefeitura. Não estava. Perguntei se a cidade estava sem governo. Estava. Vamos, portanto, embora
daqui... pra Mamanguape.
Numa farmácia local existe uma porcelana magnífica comprada em Recife por 200$000. Representa
Minerva. Está atualmente em uma fileira de lâmpadas coloridas no capricho. Existe nesta cidade um
bairro localizado num morro perto da cidade - Nova Discoberta - que é completamente povoado de
mucambos de palha - palmas de palmeira pindóba (...).
Esta cidade, sobre a disposição geral não tem nada de antigo. Um convento mais em cima do morro
parece ser antigo não foi visitado. Partida de guarabira às 2 horas [14:00 horas], depois de um caldo de
cano e uma laranja.
[croquis de casas de palha].
Chegada a Lagoinha, parada pra um café [nota na pg. anterior: “gasto café 2$000 Lagoinha”], e partida
15:10. Às 15:30 chegamos a Mulungú (talvez Santo Antônio do Mulungú, pois a feia capela daqui dentro
dela tem só Sto. Antônio). Isto já é caatinga, aliás, logo depois de Lagoinha já começa a caatinga.
Foto 2 - Cruzeiro e capela 847 (no cruzeiro veem-se alguns milagres dependurados nele. Num destes é
interessante porque apresenta a mesma estilização que são [sic] encontrada em A.Grande.
[croqui de ex-voto]
Partida às 3:35.

842
- Cad.de Campo 6, p.60-62
843
- cf. ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946. p.318-320. Coleção Martin Braunwieser, melodias 437-439
844
- Cad.de Campo 6, p.62-71
845
- Acervo Histórico DPM: D5P1
846
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.11
847
- Documentos originais da MPF: Foto 645
124

Entre Lagoinha e aqui [Mulungu] notamos algumas casas cobertas com palha de coqueiro catolé (esta
palha é de folha mais estreita e mais fina que a pindóba).
Um oásis de babassu num alto também foi visto no meio desta viagem.
Também, já no fim quasi perto de Mulungú foram vistas 2 casas com paredes de palma (estas dispostas
verticalmente).
Na caatinga daqui existe vastas matas formadas de 1,50 a 2,00 ms de altura. Esta planta chama[-se]
mamêlêro. Por esta zona existem vastas plantações de abacaxí. Além disso, tem milho e mandioca.
Veem-se algumas casas de farinha.
Em Sapé as casas populares são cobertas com “páia de câna”.
Nesta zona da caatinga o barro usado nas casas de “taipa” são de uma cor cinzenta que, nas casas
novas, as torna extremamente bonitas.
Estamos esperando o café. O João descreve doenças de família com a comadre dele.
O João Gomes de Brito conversando durante o café com a velha tia dele, meio mouca, exclamou: - “Ah!
tá co'as ôiça fartano.” (Oiça é audição).
Partida pra Mamanguape [às] 17:10.
Escureceu logo na saída de Sapé e então nada se pôde mais ver pelo cminho sobretudo a respeito de
arquitetura. Só se pôde notar o aparecimento cada vez mais intensificado, a medida que nos
aproximávamos de Mamanguape, do uso da palma de coqueiro catolé na cobertura das casas. Logo que
se sái de Sapé se entra novamente na caatinga - ou melhor: curumataú [?] que é a zona que intermedêa
[sic] brejo e caatinga.
Aliás, aqui nesta viagem, do nosso lado esquerdo (...) da estrada vimos um cactus mandacaru (este
mandacaru é um cactus cujos galhos têm um corte igual a um polígono estrelado e é todo ponteado de
longos espinhos usados no fabrico de bilros de bordar, recoberto de uma trepadeira. Esta trepadeira é
característica do Brejo. este cactus surge intensamente na caatinga (não é exclusivo da caatinga pois tem
no cariri e no sertão).
A zona onde estava localizada a combinação indicada era zona de transição evidentemente = portanto a
curumataú [?]
Às 18 horas chegamos a Mamanguape. Esta cidade é bem antiga e está em ruínas. Perguntando a um
homem do lugar por um hotel bom e pelo prefeito, ele me informou que ambas as coisas seriam
encontradas em Rio Tinto daí pra diante 7 1/2 kilómetros [sic]. Daí 20 minutos estávamos em Rio Tinto
que é uma cidade igual a Paulista (Pernambuco) só que a entrada é mais bunita com 2 longas aléas de
palmeiras imperiais. Este lugar deve ter sido primitivamente uma riquíssima fazenda sem o que não se
explicaria estas palmeiras assim. Em todo caso só vi isto a noite e portanto nada está ainda assentado
para mim a respeito.
Procurei o prefeito Eduardo em sua casa e imediatamente mandou providenciar o “chalé” e a “bóia”no
hotel “da companhia”. Jantamos bem (em termos) e depois encontramos com o prefeito que nos levou
para casa dele, apresentou-nos [?] a umas pessoas que aí estavam e ofereceu cerveja. Ouvimos [...?] e
daí a pouco fomos pro nosso “chalé”. Aí agora o pessoal peida [sic] e conversa - quem conversa coisas
de cigano é o João. Aqui no chalé tem muriçoca, pernilongos de Malária, maleita, amarelão, etc.
Aqui nesta zona de Mamanguape e rio Tinto a coisa sobretudo usada na cobertura e mesmo nas paredes
das casas populares é a “páia” de cana. A ligação desta páia é feita assim: [croqui]
848
Fim do dia 10-5-38. O Ladeira mata pernilongos com a toalha (...)”.

Como pode-se perceber, a descrição do cotidiano da Missão de Pesquisas Folclóricas passou a ser mais
detalhada por Luiz Saia a partir de 9 de maio de 1938. Com efeito, o relato diário das atividades da equipe no período
compreendido entre 9 de maio e meados de julho de 1938 foi inteiramente efetuado pelo Chefe da expedição em 3
cadernetas de campo (nºs 6, 7 e 8). Ao contrário do que vinha acontecendo, Luiz Saia passou a redigir o cotidiano da
Missão de maneira descritiva/narrativa e não por pequenos “lembretes oficiais” escritos para subsidiar o relatório final
da expedição. Desde 9 de maio de 1938, o dia-a-dia da Missão está minuciosamente relatado nas cadernetas citadas.
É interessante notar como desde então Luiz Saia abandonou um tom formal de redação para progressivamente
expressar suas opiniões pessoais sobre os acontecimentos. A partir dessa data, portanto, para o presente trabalho que
pretende recontar o cotidiano da equipe, serão apresentados de maneira mais sistemática transcrições do diário de
campo do Chefe da Missão.
No dia 11 de maio, quarta-feira, pela manhã a Missão partiu de Rio Tinto com destino ao município de Baía da
Traição. O objetivo era documentar a dança do coco existente no litoral norte paraibano. Depois de Baía da Traição -
cerca de 10 quilómetros da cidade -, a expedição visitou o povoado de São Francisco, um aldeamento de
remanescentes indígenas. Nesse local, foi possível à equipe registrar melodias de toré 849 e cabaçal, fotografar e filmar
o grupo de cantadores, além de documentar o processo de construção de uma habitação destinada ao processamento
de farinha de mandioca, uma casa de farinha:

848
- Cad.de Campo 6, p.72-80. Grifos de Luiz Saia.
849
- Segundo Luís da Câmara Cascudo (“Dicionário do Folclore Brasileiro, 1985), Toré ou Ken são danças indígenas
comemorativas da raça tupi para a caça, pesca e vitórias guerreiras.
125

“(...) Saímos às 9 horas de Rio Tinto para São Francisco - vila indígena - perto da Baía da Traição. Meia
hora depois paramos no lugar Marcação (muitas casa de palha, pau-a-pique e mais uma igreja do século
passado com cruzeiro na frente.
Em Caiêra, na beira da Lagoa Caiêra (antigamente houve aqui uma caiêra de sal - o informante não sabe
há quantos anos desapareceu) às 10 horas. Aqui estavam fabricando uma casa de farinha. Tem aqui
duas casas uma de pau-a-pique e outra de palha (...)”. 850

A pesquisa efetuada pela equipe em Caiêra limitou-se às anotações de arquitetura popular realizadas por Luiz
Saia em seu diário, com 3 croquis de detalhes internos da construção, 851 e duas fotografias dessas habitações. 852 O
Chefe da expedição em conversa com informante do local, conseguiu firmar o compromisso de receber exemplares da
madeira (imburana) utilizada na construção quando a equipe retornasse à capital: “(...) Luiz Antônio - nome do rapaz
de Caiêra que vai mandar 3 pedaços de imburana para João Pessoa, de Rio Tinto e Pirituba (...)”, informando ainda
que o “(...) engenho da casa de farinha aí é em sucupira e pau marfim (...)”. 853 Ao que tudo indica, Luiz Antônio não
cumpriu o prometido.
Após 40 minutos de conversa, a Missão deixou Caiêra e se dirigiu à São Francisco. O percurso ao povoado foi
realizado com o caminhão da equipe trafegando em terrenos arenosos e alagados. Segundo relato de Luiz Saia:

“(...) Saída de Caiêra às 10:40. Logo foi encontrado um aterro que tem paú. O carro deslizou um bocado.
Este paú é capim em cima d'água. [Aqui,] tem caminhos d'água com canoas que transportam lenha.
[croqui esquemático]”. 854

A chegada ao povoado de São Francisco foi logo em seguida. Luiz Saia, particularmente interessado em
arquitetura popular, contou as habitações do local: “(...) Em São Francisco tem 48 casas de taipa e pau-a-pique (...)”.
Aí, a equipe encontrou-se com o “Chefe dos Índios” - Manuel Santana dos Santos, que passou a Luiz Saia algumas
informações. Segundo ele, os índios por ele chefiados eram remanescentes da “Nação Potiguára” [sic]. Sobre o idioma
dos Tupis, informou o Chefe dos Índios que “(...) ninguém mais sabe falar a língua deles nem mais se lembra de
palavra nenhuma (...)”. Segundo Manuel Santana, “(...) os índios [da Nação Potiguára] são quasi mil distribuídos entre
este povoado e os seguintes: Santa Rita (1/2 légua), Tracuêra (1/2 légua), Laranjeiras (2 kilómetros), Silva (1 légua),
Gulpiúna (1 kilómetro), Estira Véia (3 kilómetros), Jacaré (2 léguas), Carnêra (2 léguas), Tramataiá (2 léguas e 1/2),
Cumurupim (2 léguas e 2 kilómetros) [sic] Paú (2 léguas), Vila São Miguel (3 léguas), Tapírio (1 lg.), Galego (1/2 légua),
Lagoa da Mata (1 légua) (...)”. 855
No aldeamento de São Francisco, o Chefe da Missão efetuou diversos apontamentos sobre a arquitetura e
processo de construção das habitações, realizando também um levantamento sobre o mecanismo de funcionamento
de uma prensa de madeira existente em uma casa de farinha no local. Foram efetuadas diversas fotografias 856 e
vários croquis explanativos. 857 Com um grupo de 4 instrumentistas do local - caixa, reco-reco, privâna (flauta) e bombo
-, foram gravadas três melodias de toré e uma de cabaçal, em 1 disco e um lado de disco de 12 polegadas. 858 Dos
informantes de toré/cabaçal, a equipe efetuou 12 fotografias que documentam os indivíduos e detalhes característicos
da coreografias apresentadas. 859 Os dados sobre eles, o texto e a relação das melodias registradas foram anotados
por Luiz Saia, Ladeira e Pacheco em três cadernetas de campo. 860 Os gastos da Missão com os cantadores de São
Francisco somaram a quantia de 106$000 reís, incluindo o pagamento de refeição completa para oito pessoas
(12$000). 861
Os trabalhos etnográficos da Missão em São Francisco terminaram no final da tarde de 11 de maio. A expedição
então rumou para o município de Baía da Traição, alojando-se em um hotel da cidade. Já à noite, Luiz Saia procurou
estabelecer contato com outros coquistas da região, além daqueles já contatados pelas autoridades locais, para
gravação no dia seguinte:

“(...) Às 18:30 saímos de S.Francisco para chegar em Baía da Traição 19 horas. Aqui o Ladeira me
contou que na rua ali adiante existia um canhão holândes (há a notar que aqui no nordeste - pelo menos
na parte já visitada até agora - tudo o que tem ar de muito velho é holandês na batata). Fomos ver este

850
- Cad.de Campo 6, p.81
851
- idem ibidem, p.82-84
852
- Documentos originais da MPF: Fotos 563, 565
853
- Cad.de Campo 6, p.85
854
- Cad.de Campo 6, p.85
855
- Cad.de Campo 6, p.87, 104
856
- Documentos originais da MPF: Fotos 502-503, 518-519 (casa de farinha); 533, 561 (vista da aldeia), 746, 753 (tipos
populares da aldeia de São Francisco)
857
- Cad.de Campo 6, p.88-95
858
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.38, 79. Discos F.113B- F.114A, fons.763-766
859
- Documentos originais da MPF: Fotos 274-285
860
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 4, p.140-148 (Ladeira); Cad.de Campo 6, p. 87, 96, 98-104 (Saia)
861
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório...” p.12
126

canhão e nele surge uma coroa numa cruz de malta, logo deve ser portuga. Me informaram que ali no
chão, perto deste que está de pé, existe um [outro canhão] deitado e coberto pela areia. No “forte”
existem outros canhões. Logo depois jantamos peixe-cavala [sic] com arroz. Depois do jantar apareceu
no hotel um velho “chefe dos indígenas” (federal, heim!) Vicente Ferreira Viana que... se faz à nossa
disposição. 862 Depois fui visitar o sargento e saí com ele pra arrumar os coquistas. O coquista Tavares
(mui conhecido aqui) diz que não canta mais. Fomos “à maré” conversar com outro “o Custódio” e depois
fui sozinho falar com outro que estava dormindo e ía sair amanhã cedo de jangada pra pescar no mar: é o
tal Flores a quem prometi 1$000 por coco que tirasse. Fui ver o cruzeiro que nada tem de interessante a
não ser a varanda na frente. Porém a construção é nova. Em S.Miguel (10 minutos daqui) existe uma
igreja... do tempo dos holandeses. Aí parece haver qualquer coisa de interesse. Aqui, em frente ao hotel,
tem uma cotiazinha que me estragou metade do naco de melancia com que eu estava enchendo a bixiga.
Agora são 11 horas da noite e vou dormir. (...)”. 863

Em 12 de maio, quinta-feira, após uma noite dormida inteiramente no caminhão de João Gomes de Brito, Luiz
Saia teve intenção realizar as gravações de cocos característicos, com os informantes arregimentados por ele na noite
anterior. O trabalho deveria pela equipe no período da manhã. No entanto, os coquistas arranjados por Luiz Saia se
atrasaram no horário combinado. As gravações tiveram que ser adiadas para mais tarde naquele dia. Enquanto a
equipe aguardava, Luiz Saia aproveitou o tempo, visitando a Vila de São Miguel - poucos quilómetros de Baía da
Traição - com o objetivo de conhecer a igreja do local. Na volta do Chefe da Missão, a equipe finalmente realizou as
gravações dos cocos:

“(...) Dormi no caminhão resguardado por uma coberta. Pacheco e Ladeira também aí dormiram.
Severino [calunga] dormiu na capota da boléia. Martin e João dormiram no Posto Fiscal do município. De
manhã, às 5 horas, eu e Severino fomos tomar banho de rua. [?] Uma velha viu e foi reclamar ao
sargento. Ele veio falar comigo. A vista disso não fui tomar leite na casa dele. Tomei café com cucus de
milho no hotel. Até agora, 7 horas, nada de coquistas. Vou até S. Miguel e vamos ver si na volta estão
arranjados [os] coquistas... sinão piraremos pra Rio Tinto e daí pra Mamanguape. Mudei o filme da
máquina.
São Miguel (20 minutos de auto de Baía da Traição). Esta igreja é de pedra até a altura de 2,50 ms e
depois idem com revestimento de reboco aparente. As imagens principais são muito ricas porém tem os
rostos e mãos estragados (...). A roupagem, entretanto, se conserva ainda foleada a ouro e very good
[sic]. A fachada é muito pobre de linhas e algo feiosa. [croquis de igreja] (...)”. 864

Quando Luiz Saia voltou de São Miguel, os coquistas arregimentados já haviam finalmente chegado: um grupo
de 7 cantadores e 7 dançarinos provenientes das cercanias de Baía da Traição. Com eles, foram gravadas 48
melodias distribuídas em 5 discos e um lado de disco de 12 polegadas com exemplos de coco embolada, de roda, de
865
linha, de rima, martelo e parcelado. Além dos registros fonográficos, a Missão documentou o grupo de coquistas e
sua dança em filme cinematográfico 866 e 9 fotogramas. 867 Os dados sobre os informantes, anotações sobre cine e
foto, descrição da coreografia, texto e relação das melodias gravadas foram registrados por Luiz Saia, Ladeira e
Pacheco em três cadernetas de campo. 868 Como pagamento ao grupo, Luiz Saia ofereceu 110$000 réis. 869
Logo após o término dos trabalhos, a equipe se preparou para deixar a Baía da Traição. Para sair da cidade,
cercada de montes de areia e água, a equipe necessitou utilizar uma espécie de capim característico da região - o
“paú” -, para forrar o trajeto, fazendo um tipo de esteira para o caminhão. O roteiro da Missão agora era voltar à João
Pessoa fazendo uma escala para pernoite no município de Mamanguape. Relativamente isolada pela ausência de
meios de comunicação mais eficientes, os componentes da expedição tomaram conhecimento de acontecimentos
políticos ocorridos na então capital federal, quando chegaram em Rio Tinto:

“(...) 12-5-38 - Terminamos hoje em B. da Traição o trabalho de gravação e dança de cocos aí, lá pelas 3
horas. Acabou meu estoque de filmes fotográficos. Saímos depois do caminhão e atingimos este perto da
primeira porteira. O Severino calunga do caminhão estava repondo o [...?] da porteira. Passamos eles e
viemos esperá-los na ponte do “paú”. Aí, quando o caminhão chegou tivemos que fazer uma esteira de
paús sobre a areia de subida brava que vem logo depois da ponte. Depois da esteira pronta saímos, o
Ladeira e Martin no automóvel que ofereceu a prefeitura de Mamanguape e chegamos em Rio Tinto já
entrada a noite. Parando no hotel pra mandar aprontar a “bóia”, encontrei o prefeito “Coronel” Eduardo

862
- O “chefe indígena” Vicente F. Viana havia vindo da Vila de São Miguel, visitada por Luiz Saia no dia seguinte.
863
- Cad.de Campo 6, p.105-106
864
- Cad.de Campo 6, p.106-107
865
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.56-59. Discos F.114B-F.119, fons.767-815
866
- Documentos originais da MPF: Filmes 8.B/C, P&B, silenciosos, 1'47” / 2'45” - (“Coco ou Toré”)
867
- Documentos originais da MPF: Fotos 286-294
868
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 4, p.149-163 (Ladeira); Cad.de Campo 6, p.111-114, 116-118
869
- Corresp.Doc.44 “1º Relatório...” p.12
127

que nos entregou a correspondência vinda de João Pessoa e... nos informou sobre os acontecimentos
ocorridos no Rio de Janeiro. (...)
Mandei telegrafar ao Paraíba Hotel pra arrumar quarto pra amanhã. Amanhã devemos trabalhar cedo
aqui, ir a Mamanguape e depois... J.Pessoa (...)”. 870

Assim que chegou em Rio Tinto, a Missão foi notificada do assalto ao Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro,
ocorrido durante a madrugada de 11 de maio de 1938. Esse ato foi uma iniciativa dos integralistas de Plínio Salgado
aliados com liberais anti-Vargas. Ressalta-se que uma das conseqüências diretas desse pretenso golpe integralista ao
Palácio Guanabara, residência de Getúlio Vargas, foi o recrudescimento da política ditatorial do Estado Novo, refletindo
em São Paulo no afastamento do Governo liberal de Armando Salles de Oliveira, do prefeito Fábio Prado, do deputado
Paulo Duarte, além Mário de Andrade da direção do Departamento de Cultura do município. O assalto ao Palácio
Guanabara, foi descrito e comentado por L. Basbaum, segundo relato do tenente Severo Fournier, líder do assalto: 871

“(...) O plano de ataque ao Palácio foi desencadeado na madrugada de 11 de maio de 1938, seis meses
após o golpe de novembro. (...) o ataque ao Palácio Guanabara, onde residia Getúlio Vargas, foi levado a
efeito, com alguma violência, embora com pouca decisão. Aí, um grupo de civis e marinheiros a paisana
e alguns fuzileiros navais fardados mesmo, haviam conseguido transpor os portões do jardim, com a
conivência da guarda palaciana e já estavam atirando para dentro do palácio.
(...)
Os sitiados do Palácio Guanabara trataram evidentemente de pedir socorro de fora, mas as linhas
telefônicas estavam cortadas, só restando uma linha secreta ligada diretamente à Chefia de Polícia que,
avisada, prometeu enviar socorros, os quais chegaram... com 5 horas de atraso! Afinal, chegaram.
Cercados, com a retaguarda indefesa, os assaltantes se renderam, ou melhor, abandonaram as armas e
trataram de fugir pelos morros vizinhos. Muitos foram presos e a seguir sumariamente fuzilados no fundos
dos jardins do Palácio. Observe-se que nenhum dos sitiados ou defensores do palácio foi morto ou
sequer ferido, apesar do intenso tiroteio. (...)”. 872

Uma análise mais aprofundada sobre o assalto ao Palácio Guanabara e suas conseqüências na vida política
brasileira foge ao âmbito do presente trabalho. Aqui, importante é frisar a situação da Missão de Pesquisas Folclóricas
que, ainda em plena viagem pelo Nordeste brasileiro, perdia seu suporte político-ideológico com o afastamento
definitivo de Mário de Andrade da direção do Departamento de Cultura de São Paulo. Sobre o assalto ao Palácio
Guanabara no Rio de Janeiro e suas conseqüências mais diretas, cabe aqui transcrever o comentário de T. Skidimore
sobre o assunto: 873

“(...) Ao surgir do golpe [de novembro de 1937], um grupo político parecia ainda desfrutar de plena
liberdade: os radicais de direita. Plínio Salgado e seus seguidores integralistas pensaram, errôneamente,
que iriam ser os principais beneficiários do movimento de Vargas. Seus arquiinimigos de esquerda
haviam sido eliminados. Parecia agora que os integralistas deveriam fornecer os quadros e, talvez, a
liderança do novo Brasil. Mas Vargas não tinha a intenção de entregar a sua vitória política aos camisas-
verdes. O instrumento político ostensivo dos integralistas, a Ação Integralista Brasileira, foi suprimido em
2 de dezembro de 1937, juntamente com todos os outros partidos políticos. No seu ressentimento
subseqüente, os integralistas ficaram nas mãos de Vargas, em circunstâncias quase tão estranhas
quanto as que cercaram o abortado levante comunista de 1935.
Em maio de 1938, um pequeno bando de integralistas armados, ajudados por alguns militares não-
integralistas e anti-Vargas, atacou o palácio presidencial. Se bem que uma parte da guarda do palácio
colaborasse com os atacantes, e a guarnição militar local demorasse para mandar reforços, os guardas
legalistas ajudaram Vargas e sua filha, de arma em punho, a conter os atacantes, até que fossem levados
pela polícia. Agora, Vargas tinha a mesma justificativa para reprimir os integralistas que a que lhe havia
sido fornecida pelos comunistas em 1935. (...)”. 874

Para D. Ribeiro, 875 a “Intentona Integralista” “(...) mostra como Getúlio Vargas estava desprotegido dentro do
palácio, uma vez que nem a polícia nem as forças armadas se abalam para socorrê-lo(...)”. A Intentona foi “(...)
chefiada por Severo Furnier que, à frente de dezenas de integralistas assalta de madrugada o Palácio Guanabara e o
mantém sob cerco por mais de cinco horas, abatendo quatro guardas. A própria família Vargas, com uns poucos
revólveres, é que se defendo. Quando o socorro, afinal, chega, cercam e dominam imediatamente os integralistas que
persistiam no ataque e fuzilam oito deles nos jardins do palácio. Em represália, são perseguidos e presos mais de mil
integralistas e deportados alguns líderes liberais que os apoiavam, como Otávio Mangabeira, Júlio de Mesquita Filho e

870
- Cad.de Campo 6, p.121-122
871
- BASBAUN, L. - “História sincera da República, vol.3: de 1930 a 1960.”, São Paulo, 6ª e., Ed.Alfa-Omega, 1991.
872
- BASBAUM, L. - op.cit.1991. p.110-111
873
- SKIDIMORE, T. - Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco, 1930-1964.”, 7º ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
874
- SKIDIMORE, T. - op.cit.1982. p.52-53
875
- RIBEIRO, D. - “Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu.”, 1ª ed., Rio de Janeiro, Ed.Guanabara, 1985.
128

Armando Salles de Oliveira, Paulo Duarte e Flores da Cunha. Mas os chefes dos camisas-verdes, Plínio Salgado e
Gustavo Barroso, não sofrem qualquer vexame e continuam apoiando Getúlio. Severo Furnier morre na prisão em
conseqüência dos maus tratos, da tuberculose e de amargura contra correligionários. (...)”. 876
Além das informações sobre os acontecimentos no Rio de Janeiro, a Missão recebeu das mãos do prefeito de
Rio Tinto as correspondências enviadas à equipe durante a viagem ao brejo paraibano. Dessa maneira, Luiz Saia
pôde ler três correspondências escritas por Oneyda Alvarenga: a primeira, redigida no dia da partida para a viagem ao
brejo, em 2 de maio; a segunda, escrita quando a equipe ainda se encontrava no município de Itabaiana, em 5 de
maio; e a terceira, datada de 9 de maio, refletindo já a preocupação dos responsáveis pelo sucesso da Missão com a
saída de Mário de Andrade da direção do Departamento de Cultura:

“(...) Saia, / Mário manda avisá-lo que da Paraíba vá imediatamente ao Maranhão, dispondo as coisas de
modo que a Missão possa estar em junho, sem falta, no Pará, a fim de colher o material das festas de
São João e os cordões de bichos que lá se realizam (...)”. 877

A preocupação da equipe agora era chegar o mais rapidamente possível a João Pessoa, partindo com destino
aos Estados do Norte do Brasil. Em 13 de maio, sexta-feira, um dia chuvoso, a expedição se deslocou de Rio Tinto a
Mamanguape. Após haver realizado levantamentos sobre arquitetura de uma igreja local, a Missão deixa o município
com destino à capital, onde chega no meio da tarde:

“(...) Mamanguape 13/5/38 - tempo chuvoso.


[croquis e comentários sobre igreja]
Depois de almoçar em casa de D. Sofia - velha que dá pensão em Mamanguape (por favor à cidade,
porque sinão aí não haveria nem juiz nem promotor nem advogado nem viagem - 1:134$000) partimos
para J.Pessoa. Até Sapé, a viagem foi bem agradável tendo saído eu na boléia do caminhão logo depois
de Mamanguape para aí vir o Martin. Em Sapé, paramos 5 minutos e depois seguimos... com chuva até
Cobé onde paramos para café na venda de uma comadre do João. Seguimos daí ainda com chuva que
se aumentou muito perto de Santa Rita. revemos neste trecho as capelas da Batalha e do Socorro (onde
surge a deliciosa capela com alpendre absolutamente antifamiliar). Antes destas duas capelas, à direita
da estrada se assiste [sic] outra, da 2ª metade do século XIX com decoração no frontão. A chuva foi
878
tremenda e... extra folclórica. À tardinha, 16:30, entramos desacatadamente em João Pessoa fazendo
879
o caminhão parar em frente ao granfiníssimo Paraíba Hotel (...)”.

Após um período de 11 dias, a viagem da Missão ao brejo paraibano - a segunda pelo Estado - chegava ao
final.

876
- RIBEIRO, D. - op.cit.1985, verbete 910, 1938
877
- Corresp.Doc.27 - de Oneyda Alvarenga a Luiz Saia, São Paulo, 9 de maio de 1938
878
- Desacatar era uma gíria bastante utilizada durante o final dos anos 30. Segundo o “Novo Dicionário Aurélio”, a pessoa que
“desacata” “(...) procova admiração, ficando num plano superior às demais, pela beleza e/ou por outra qualidade (...)”.
Lembramos o samba E por causa de você, ioiô, de Assis Valente, gravado em 1934 por Carmen Miranda, um grande
sucesso na época: “E por causa de você, ioiô / Que eu agora vou desacatar / E vou andar toda bonita, meu bem / Pra todo
mundo ver / tudo que você me dá... (...)”.
879
- Cad.de Campo 6, p.129-130
129

2.9 - De 13 a 31 de maio: últimas coletas na capital João Pessoa - afastamento de Mário de


Andrade em São Paulo: incertezas da continuidade da Missão

Após a “desacatada” entrada da Missão no Hotel Paraíba, durante a tarde de 13 de maio, Luiz Saia foi
surpreendido ao chegar aos seus aposentos: um inesperado encontro com Gilberto Freyre. A repercussão dos últimos
acontecimentos ocorridos em São Paulo com o afastamento de Mário de Andrade era ainda algo tênue, não sendo
nem objeto de menção no diário de Luiz Saia:

“(...) O Pacheco e [os] outros foram descarregar os aparelhos na casa do Rádio e eu subi para o quarto
onde fui encontrar Gilberto Freire [sic] fazendo a barba. Em nossa conversação entre outras coisas ele
me informou que o judeu do Recife lhe pediu barato pelo marfim e que sugeria a mim que fizesse o
relatório da arquitetura colonial paraibana dando uma cópia a ele e outra enviando ao Departamento. O
Ulisses Pernambucano vai fazer uma conferência e naturalmente irei assistí-la.
Saí para fazer a barba e o barbeiro estava fechado. Voltei para o quarto. Antes do jantar encontrei o Raul
[de Góis] [Secretário da Interventoria] e o técnico [?] Gilberto [?]. Aí surgiu o Pedro Cavalcanti.
Conversamos. Jantei e à noite fui a conferência do Ulisses. Apenas interessante. De volta fomos a um
880
sorvete e depois... dormir (...)”.

O retorno da expedição à João Pessoa foi marcado por uma intensa atividade de pesquisa e de contatos com
personalidades locais. A preocupação da equipe era finalizar o mais rapidamente os trabalhos etnográficos na capital,
documentando manifestações folclóricas arregimentadas antes mesmo da viagem ao brejo paraibano -como o catimbó
ou a barca -, para, em seguida, partir em direção aos Estados do Norte do Brasil. A ameaça de interrupção da viagem
da Missão devido à nova conjuntura política e ao afastamento de Mário de Andrade do Departamento de Cultura
passava progressivamente a ameaçar continuidade da viagem.
Em 14 de maio, sábado, pela manhã, Luiz Saia recebeu a visita de Luís Gonzaga Ângelo - mestre catimbozeiro
do bairro de Torrelândia -, que o procurou preocupado com a possível repressão policial de que ele seria vítima caso
colaborasse com a Missão. O contato da Missão com Luís Gonzaga Ângelo foi efetuado antes da viagem da equipe à
região do brejo paraibano. Luiz Saia tratou de acalmar o informante, garantido-lhe a tranqüilidade dos trabalhos e
marcando sessão especial para equipe na noite daquele dia. Também em 14 de maio, Luiz Saia visitou um hospital
881
psiquiátrico do Recife, recebendo de um paciente da instituição um fetiche de feitiçaria - um oxê de xangô -, por ele
manufaturado. O restante do dia foi dedicado aos encontros com personalidades da capital:

“(...) 14-5-38 / Me levantei às 8:30 e esperei o Pedro Cavalcanti que ficou de me encontrar aqui para
irmos ao H. de A. J. Moreira onde eu iria buscar o oxê de xangô feito pelo squizofrênico [sic] Augusto.
Apareceu-me no hotel o Luís do Catimbó com as toadas dele escritas 882 e... se queixando da polícia.
Disse-lhe que ajeitaria tudo.
Fui só ao hospital e lá encontrei o Leal e o rapaz de Natal (que vai levando um cartão para o Cascudo).
Visitei com Leal as dependências do J. M. já minhas conhecidas e outras novas para mim: a Colônia e a
Zona das Mulheres. Nesta última numa cela 2 mulatas (com tendências manqfreanas [sic]) estavam nela.
Numa outra teve possessão [?]. Mais tarde chegou Ulisses [Pernambucano], Pedro [Cavalcanti] e uma
porção de gente. Visita, visita, coktail e ficamos Pedro, Leal e eu para sairmos juntos (já perdera a hora
do banco). Trouxe o meu oxê de xangô - está bom. O Pedro ofereceu 100$000 por ele para politicar
gorgeta que devo dar ao Augusto... evidentemente? O Leal almoçou comigo. Daqui do almoço se foi. Vim
ao quarto trabalhar um bocado até que apareceu o rapaz médico que tem quadros em casa. Saí com ele
e vi um Portinari da fase marrom muito bom. Aí tem Santas Rosas [sic] medíocres e um péssimo - de um
tal Luiz Soares - dois quadrinhos aquarelados, coloridos intencionalmente por demais (um pau-de-sebo
[sic] me parece) e um xangô, porém algo visíveis. Daí, saí com um livro que o rapaz me deu. Voltamos ao
883
hotel (...) Aí vem o [Luiz] Clerot e saímos para visitar o material dele. Mais de 4 horas. (...)”.

Na noite de 14 de maio, a equipe assistiu uma sessão do catimbó de Luís Gonzaga Ângelo realizada
especialmente para a Missão. Nessa sessão foram anotados os dados para trabalhos de documentação posterior,
realizado em 19 de maio. Aqui, é interessante notar dois aspectos: 1-) a sessão de catimbó foi acompanhada por
policiais que ali estavam para “ajudar em qualquer circunstância”, o que certamente colaborou para inibir os
informantes populares, constrangindo-os; 2-) devido à presença de agentes da polícia, pode-se supor que a validade

880
- Cad.de Campo 6, p.130
881
- Segundo Luís da Câmara Cascudo (“Dicionário do Folclore Brasileiro, 1984”), Oxê: “Verga ou vara curta, usada nos
sortilégios e também nas cerimônias de Xangô. Do iorubano oshé, o pequeno bordão ou cacete do deus do trovão; sabão
negro, em forma de bola, conhecido também por sabão da Costa (...)”.
882
- Os textos originais das toadas do catimbó de Luís Gonzaga Ângelo foram incorporados ao Acervo Histórico da DPM: T42P4.
São oito páginas manuscritas a lápis, em papel almaço pautado.
883
- Cad.de Campo 6, p.131-133
130

“científica” do catimbó de Luís Gonzaga Ângelo seja questionável. Em sua inacabada Comunicação à Sociedade de
Etnografia e Folclore, Luiz Saia comentou os trabalhos da equipe realizados naquela noite de 14 de maio:

“(...) Foi então que me apareceu o Luís Gonzaga. Não era propriamente um catimbozeiro, dizia ele,
conhecia sim algumas linhas que ouvira em Recife, em Liandra, por aí. Arrumaria caso interessasse uma
espécie de sessão pra gente ver. A conversa que fui tendo com ele me sugeria, cada vez mais
fortemente, uma simulação por medo da polícia. Umas linhas que cantou ali mesmo no hotel me
pareceram bem interessantes e combinamos que seria visitada uma sessão arrumada por ele. Saímos
pra zona paraibana do brejo pra voltar no dia 13 de maio, à tarde.
No dia seguinte pela manhã me apareceu o mestre Luís contando coisas da polícia. Aquietei ele e
marcamos a sessão para a noite desse dia. É necessário contar que, para os serviços de gravação e
filmagem das peças colhidas, a gente sistematicamente assistia antes uma sessão ou representação
apenas como assistente. Então se colhia o suficiente para depois controlar a colheita em discos e filmes.
Esta sessão foi que assistimos na noite do dia 14 de maio, na rua Nova Descoberta, bairro da Torre (hoje
Torrelândia). A casa do Luís é igual às habitações deste bairro pobre de João Pessoa. As paredes de
pau-a-pique só parcialmente recobertas de rebôco e pintadas, chão de terra batida e cobertura de palma
de côco de praia. (...) Atrás da habitação tem um alpendre coberto de palha e depois um quintalzinho
desarrumado. Tanto de móveis como de enfeites é muito pobre esta casa. Na rua tinha muita gente
curiosa e por ali soldados que o delegado do distrito - sr. Catita [sic] - havia mandado pra ajudar a gente
884
em qualquer circunstância (...)”.

Os trabalhos de documentação em discos e filmes do catimbó de Luís Gonzaga Ângelo foram realizados pela
equipe 5 dias após essa sessão especial. Entre os dias 15 e 17 de maio, a Missão realizou poucos trabalhos
etnográficos. Luiz Saia procurou nesse período elaborar o “1º Relatório de Atividades e Enumeração das Despesas da
Missão de Pesquisas Folclóricas”, até o dia 15 de maio, 885 enviando-o à Discoteca Pública Municipal acompanhado
de correspondência a Oneyda Alvarenga. O relatório oficial de atividades e gastos da expedição havia sido solicitado à
Discoteca Pública Municipal pela nova Chefia do Departamento de Cultura de São Paulo - coordenada agora por
Francisco Pati -, que, obedecendo ordens do então prefeito Francisco Prestes Maia -, passava a questionar a
continuidade da Missão. Lembramos que após seu afastamento da direção do Departamento de Cultura, Mário de
Andrade ainda manteve a chefia da Divisão de Expansão Cultural - a qual estava vinculada a Discoteca Pública
Municipal -, até fins de maio de 1938. No relatório da expedição, Luiz Saia manifestou sua preocupação pelo futuro da
Missão, defendendo a continuidade do empreendimento e solicitando mais informações sobre como deveria proceder
de agora em diante:

“(...) [Observação colocada ao lado da página:] Não posso passar a limpo agora de noite. É impossível
escrever à máquina nesta hora da noite (2 horas). Os hóspedes do hotel protestam. É a razão desta ir a
punho mesmo.
Oneida, Recebi ontem seu telegrama e, verificando o horário de fechamento das malas aéreas pro sul,
verifiquei que só poderia enviar o relatório oficial na mala que aqui se fecha na quarta-feira. Como, pelo
que eu sabia, nada adiantava atrasar outro serviço aqui por causa do relatório e da prestação de conta
oficiais a remeter, e então trabalhei ontem e hoje aqui em J. Pessoa distribuindo o serviço de maneira a
poder mandar o s/ pedido com a 1ª mala. Agora à noite porém encontrei um amigo que vai a Recife e de
lá parte mala amanhã ou depois. Aproveito ele e mando esta.
Estivemos 11 dias na zona do brejo da Paraíba (e litoral também). Colhemos aboios, cabocolinhos,
toadas de catimbó, cantos de pedintes, Nau Catarineta, bumba-meu-boi rural (estas toadas são
muitíssimo interessantes por causa da primitividade e do jeito religioso delas). Na Baía da Traição fomos
atraídos pela existência ali do “toré”... que não passava de um coco de praia dos índios descaracterizados
que moram nas redondezas. Aí colhemos e filmamos cocos. Proporcionalmente ao tempo e dinheiro
gastos esta viagem foi muito mais proveitosa que a anterior. A colheita foi mais farta.
De volta a João Pessoa estamos trabalhando na filmagem e gravação de uma “Nau Catarineta” e de
catimbó. Esta “Nau Catarineta” parece que vai ser a peça mais completa da colheita paraibana. Me
parece que musicalmente não apresenta grande beleza, porém é muito conservada e tem riqueza
coreográfica. O que me parece de 1ª ordem também, este não só do ponto de vista da beleza melódica
mas também coreográfica é o catimbó que conseguimos por aqui. Vou filmar também outro cabocolinho
muito interessante (mais que o outro filmado aqui em J.Pessoa). Temos colhido alguns cadernos dessas
peças. A pesquisa sobre cantadores vai também indo bem. Instrumentos também sempre se colhe. Vai
também indo otimamente a colheita de arte plástica popular. No conjunto [temos] mais ou menos
recolhido com largueza algumas peças magníficas. (...)

884
- Acervo Histórico DPM: T52P6. Comunicação inacabada de Luiz Saia à SEF, sem data.
885
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório e Enumeração das Despesas da Missão de Pesquisas Folclóricas”, 15 de maio de 1938. Esse
documento foi parcialmente citado nesse trabalho.
131

Estamos com muita vontade de saber alguma indicação a respeito da saída do Mário e da situação da
Missão. Você compreende que a gente ficou assim no ar. A incerteza desanima bastante. Partimos pro
Rio Grande do Norte? até o fim da semana teremos liqüidado o trabalho aqui. Penso que agi
acertadamente alongando a estadia e a colheita aqui, pois assim colhemos bastante com pouco
dispêndio. E a gente não sabe si em outros lugares acontecerá o mesmo! (...)”. 886

Como em um apelo, Luiz Saia procurou justificar a continuidade do empreendimento apontando como uma das
razões o constante aperfeiçoamento metodológico da equipe nas coletas de campo. Com a experiência adqüirida nos
primeiros meses de trabalho, a Missão agora estava em condições de registrar maior quantidade de manifestações
populares com gastos ainda menores. Além disso, segundo Luiz Saia, a expedição já estava suficientemente
divulgada por toda aquela região, o que era bastante útil para os trabalhos etnográficos da equipe:

“(...) Como se pode verificar através deste ligeiro relato dos trabalhos da Missão, a primeira temporada -
de Pernambuco - foi quasi toda ela de aprendizagem e aclimação no ambiente, tendo prejudicado
bastante a missão certas condições que só podem ser expostas aí mesmo. A segunda temporada teve
um rendimento maior com maior economia. Se aprendeu a provocar assistência e também a arrochar nos
gastos. Pelo que esperamos encontrar pela frente, pois os informes são muitos, acharia lamentável que
esta missão perdesse a oportunidade de percorrer certos Estados com largueza de tempo - sobretudo
Pará, Maranhão e Bahia. Uma medida certa das possibilidades da Missão daqui pra diante está na
diferença da produtividade entre os primeiros dias e os últimos. Ademais, só o conhecimento espalhado
pelo Nordeste a respeito da existência de uma Missão de Pesquisas [Folclóricas], desaconselha a
887
interrupção de uma viagem que poderá ser cada vez mais produtiva (...)”.

Como será visto, a Missão esteve somente nas capitais do Maranhão e Pará, permanecendo alguns dias em
cada uma, não chegando a percorrer o interior desses Estados. O Estado da Bahia, não pôde sequer ser pesquisado.
Em 16 de maio, segunda-feira, Luiz Saia compareceu a uma agência do Banco do Brasil em João Pessoa para
retirar a segunda parcela da verba inicial de 60:000$000 (sessenta contos de réis) destinada à viagem da equipe. O
dinheiro havia sido enviado por Oneyda Alvarenga de São Paulo. O Chefe da expedição lhe remeteu o recibo no
mesmo dia:

“João Pessoa, 16 de maio de 1938. / Recebi, por intermédio do Banco do Brasil, a importância de
20:000$000 (vinte contos de réis) enviado pela Diretoria da Discoteca Pública Municipal, para os gastos
888
da Missão de Pesquisas Folclóricas em viagem pelo Nordeste brasileiro (...)”.

Em 18 de maio, quarta-feira, o dia foi reservado para os trabalhos de documentação em filme e fotos de um
grupo de cabocolinhos em um bairro periférico da capital João Pessoa. Com este grupo, a equipe efetuou dias depois,
trabalho de gravação em discos. Após contatos realizados pela manhã, a Missão se deslocou à tarde ao bairro do
Róge, onde filmou a dança do cabocolinhos Tupi-guarani, arregimentados antes mesmo da viagem ao brejo. 889 Foram
também efetuadas 22 fotografias com detalhes da coreografia apresentada. 890 As anotações sobre a dança, e os
dados sobre a documentação em cine-foto foram efetuadas por Antônio Ladeira em uma caderneta de campo. 891
Em 19 de maio, quinta-feira, foi a vez do grupo de catimbó de Luís Gonaga Ângelo. Logo pela manhã, às 9:00
horas, na casa do mestre situada no bairro de Torrelândia, a equipe da Missão gravou, filmou e fotografou esse culto
de feitiçaria nacional. Foram registrados 4 discos de 12 polegadas contendo 28 melodias distribuídas entre toadas de
abertura de mesa e toadas invocatórias dos mestres sobrenaturais. 892 Além de filme cinematográfico, 893 Luiz Saia
registrou detalhes do catimbó de Luís Gonzaga Ângelo em 33 fotografias. 894 Os dados sobre os informantes,
descrição do culto, os textos e a relação das melodias gravadas foram anotados por Luiz Saia, Ladeira e Pacheco em
três cadernetas de campo. 895
Com duas integrantes do catimbó de Luís Gonzaga Ângelo - as irmãs Maria Rita e Amélia de Souza -, a Missão
realizou gravações de acalantos (cantigas de ninar) e cambinda (dança dramática). Foram registrados 1 disco de 12
886
- Corresp.Doc.43 - de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga, João Pessoa, 15 de maio de 1938.
887
- Corresp.Doc.44 - “1º Relatório de Atividades e Enumeração de Despesas da Missão de Pesquisas Folclóricas.” João
Pessoa, 15 de maio de 1938
888
- Recibos e Termos de Compromisso Doc.nº 29 - de 16 de maio de 1938
889
- Documentos originais da MPF: Filme 6.B, P&B, silencioso, 3'15” (“Cabocolinhos Tupi-Guarani”)
890
- Documentos originais da MPF: Fotos 329-350
891
- Cad.de Campo 6, p.134-136
892
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.44-45Discos F.120-F.123, fons.815-833
893
- Documentos originais da MPF: Filme 9.A, P&B, silencioso, 5'38” (“Catimbó do mestre Luís Gonzaga Ângelo”)
894
- Documentos originais da MPF: Fotos 295-327
895
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 4, p.165-176, 193-198 (Ladeira); Cad.de Campo 6, p.136-141 (Saia).
Acervo Histórico DPM: T42P4, D20P1. As melodias, juntamente com as fotos e informações referentes ao catimbó de mestre
Zé Hilário, foram transcritas em notação musical e publicadas no ano em que se comemorou o centenário de nascimento de
Mário de Andrade: CARLINI, A. - “Cachimbo e maracá: o catimbó da Missão (1938).”, São Paulo, CCSP, 1993. 221 p.il. -
p.191-213
132

polegadas contendo 10 melodias - 4 de acalantos e 6 de cambinda -, 896 além de uma fotografia das informantes. 897 O
contato da equipe com o grupo de Luís Gonzaga Ângelo não parou por aí. Antes de deixar João Pessoa, a Missão
ainda se encontrou com alguns integrantes do grupo de catimbó, procurando coletar outras informações de interesse
etnográfico.
Em 20 de maio, sexta-feira, Luiz Saia viajou desacompanhado para o Recife, encontrando-se com Ascenso
Ferreira e Mário Melo. Os motivos para essa viagem do Chefe da Expedição não estão claramente especificados na
documentação original. Nesses encontros de Luiz Saia com Ascenso Ferreira e Mário Melo, além de assuntos
correlatos à expedição, pode-se supor que a temática tenha versado sobre os últimos acontecimentos políticos
ocorridos no Rio de Janeiro e São Paulo. Nessa breve estadia no Recife, Luiz Saia tratou de questões práticas como a
revelação dos filmes cinematográficos realizados pela Missão ou a aquisição de mais objetos de fatura popular para o
acervo da Discoteca. Na volta a João Pessoa, o Chefe da Expedição encontrou um telegrama de Mário de Andrade
pedindo o deslocamento imediato da equipe para o Maranhão. A continuidade da Missão de Pesquisas Folclóricas
perante a nova administração política de São Paulo estava sendo insistentemente questionada:

“(...) No dia 20/5/38 saí de J. Pessoa às 2 horas com o Lapa-Sousa [ônibus-jardineira?] com destino ao
Recife. Em Goiana [50 quilómetros ao Norte da capital] fui visitar a igreja do quartel [?] da Lapa [?]. Más
imagens. Repintada toda. Porcaria.
Às 17:30 cheguei ao Recife. Estive à noite com o Ascenso e fui na casa dele. Antes estive com Mário
Melo.
Dia 21 fui ver imagens. Comprei cabeça pedra e imagens barro. Custo 80$000. Comprei 2 filmes cine. C-
10 plus pro Pacheco. Fui buscar roupa lavadeiras [?]. (...) Ascenso me emprestou o livro “Museu secreto
de Nápoles” de M.L.Barros e Césare Farmim (tradução de Emílio Pompéia) (...) É medíocre com gravuras
vagabundíssimas. Entregues em Recife (Casa Stolze) 11 filmes cinematográficos com as seguintes
indicações [segue relação de filmes]
Volta do Recife às 3 horas da tarde. Chegada às 7 horas da noite. Cinema e cangica na casa de Pedro
[Cavalcanti]. Encontrei por minha chegada um telegrama de Mário aberto pelo Pacheco no qual Mário
dizia seguirmos, imediatamente (Cadê Mário?) pro Maranhão indo depois, em junho, pro Pará. Tá
898
impossível resolver isto agora. Espero receber carta prometida pelo Mário (...)”.

Em 22 de maio, domingo, a Missão prosseguiu seus trabalhos etnográficos em João Pessoa. Pela manhã, a
equipe foi ao bairro do Róge onde deveria realizar a documentação do grupo da barca da capital. Formado por 25
pessoas, nem todos integrantes conseguiram chegar no horário combinado com a equipe, havendo por isso um atraso
para o início dos trabalhos. Além do atraso do grupo, Benedito Pacheco havia esquecido no hotel a chave do baú que
acondicionava os discos virgens para gravação. Após o retorno do Técnico, enquanto aguardavam o grupo da barca, a
equipe da Missão aproveitou para registrar fonograficamente as melodias do grupo cabocolinhos Tupi-Guarani,
presentes no mesmo bairro do Róge:

“(...) Às 9 horas fomos à barca. Pacheco esquecera dos discos e precisou tomar um táxi para ir buscar a
chave e depois ainda usamos táxi para levar-nos de lá. De volta voltamos de bonde. O pessoal da barca
falhou. Foi o pessoal do cabocolinho. Aproveitamos e gravamos as linhas do cabocolinho do Róge.
Marcado pras 2 horas a vinda pessoal da barca deixamos armados os aparelhos e... até agora (2:30)
899
nada do pessoal da barca. (...)”.

Com o grupo de cabocolinhos Tupi-Guarani a Missão registrou meio lado de disco de 12 polegadas contendo 4
toadas instrumentais - 2 bumbos, 2 ganzás e uma gaita (flauta). 900 Tendo já realizado a documentação em filme e
fotos em 18 de maio, Luiz Saia solicitou a Ladeira e Pacheco que apenas relacionassem as melodias gravadas, o que
foi feito em duas cadernetas de campo. 901
O trabalho da Missão com o grupo da barca de João Pessoa teve início somente às 20:30 horas de 22 de maio.
Acompanhava o grupo um conjunto instrumental bastante curioso integrado por cavaquinho-banjo (4 cordas); banjo-
bandolim (8 cordas); 2 violões e violão-banjo. Sobre as influências e características desse conjunto instrumental,
comentou Martin Braunwieser em relatório entregue à Discoteca:

“(...) Como tive ocasião de presenciar, o brinquedo “Nau Catarineta” é cantado e dançado ao mesmo
tempo desde o começo até o fim - os marujos sempre em movimento. Quando há partes faladas, estas
são curtas e poucas. Infelizmente hoje em dia [1938] os brinquedos do povo estão sendo esquecidos e
vão talvez desaparecendo com o tempo. A “Nau Catarineta, por exemplo, nos lugares onde é lembrada
ainda sofre a influência da música das danças de hoje ou das mais comumente espalhas pelos rádios.

896
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.26, 39. Disco F.124, fons.833-842
897
- Documentos originais da MPF: Foto 328
898
- Cad.de Campo 6, p.142-143
899
- Cad.de Campo 6, p.149
900
- cf. CARLINI,A & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.39, 113. Disco F.125A, fons. 843-846
901
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 5.A, p.1 (Ladeira)
133

Em João Pessoa as toadas dos marujos foram acompanhadas por uma orquestra (conjunto) com os
instrumentos seguintes: 1) Cavaquinho-banjo; 2) Violão; 3) Violão-banjo; 4) outro violão; 5) Banjo-
bandolim. Não só o timbre dos banjos lembrava o Jazz, mas muitas vezes também o ritmo e a harmonia
das toadas (...)”. 902

O trabalho da equipe com o grupo da barca de João Pessoa foi efetuado em vários encontros. Nesse dia 22 de
maio, a Missão gravou com o grupo 3 discos de 12 polegadas contendo 11 melodias. 903 Foram também realizadas
por Luiz Saia descrições sobre a coreografia apresentada com intuito de subsidiar as filmagens cinematográficas
realizadas dias após. Em 24 de maio, foram gravadas outras 25 melodias distribuídas em 4 discos e um lado de disco
de 12 polegadas. 904 Também em 24 de maio, Luiz Saia efetuou 16 fotografias do grupo, documentando aspectos
particulares da coreografia e dos informantes. 905 Em 29 de maio, a equipe cinematografou o brinquedo da barca de
João Pessoa. 906 Os dados sobre a documentação em foto e cine, sobre os informantes, descrição da manifestação e
de sua característica coreografia, textos e relação de melodias gravadas, foram anotados por Luiz Saia, Ladeira e
Pacheco em 4 cadernetas de campo. 907
Além do grupo da Barca, a Missão encontrou-se em outras oportunidades com os integrantes do grupo de
catimbó de Luís Gonzaga Ângelo. Com o próprio mestre, Luiz Saia encontrou-se em 23 de maio, quando anotou uma
história de trancoso - “Dom Carlos de Orquino” - e uma série de adivinhas. 908 Em 26 de maio, mais histórias de
trancoso e outra série de adivinhas, agora contadas por outros integrantes do grupo de catimbó -Severino Bezerra e
Amélia de Sousa, que já havia registrado um disco com a Missão contendo melodias de acalantos e cambinda. 909
Durante o período de 21 a 30 de maio, pode-se supor que Luiz Saia tenha recebido a “carta prometida pelo
Mário”, solicitando à equipe que partisse imediatamente para o Norte do Brasil. É mesmo possível que Mário de
Andrade tenha dado instruções mais detalhadas sobre como proceder de agora em diante, ordenando à Missão que
“desaparesse do mapa” em uma viagem de caminhão pelo interior da Paraíba, Ceará e Piauí, com destino à São Luís
do Maranhão. O fato é que não há nenhuma correspondência entre São Paulo e o Chefe da Missão durante esse
período preservada entre a documentação original, exceção feita a uma consulta por telegrama realizada por Luiz Saia
a Mário de Andrade, em 26 de maio: “(...) Em vista uma batuta 30 centímetros pontas marfim numa ponta simbologia
musical terminando em busto de Carlos Gomes vale 500$000? Saia”. 910 A resposta do Turista Aprendiz seguiu no dia
seguinte: “Batuta Carlos Gomes não interessa”. 911 Com efeito, na noite de 30 para 31 de maio de 1938, a Missão
partiu de João Pessoa em viagem realizada quase inteiramente no caminhão de João Gomes de Brito com destino a
São Luís do Maranhão.
Em 23 de maio, segunda-feira, Mário de Andrade redigiu um longo documento, já citado parcialmente neste
trabalho, onde, como Chefe da Divisão de Expansão Cultural, defendeu a continuidade da viagem da expedição
perante a nova administração da Prefeitura do Município de São Paulo. Nesta “exposição dos atos e consequências da
Missão Folclóricas atualmente em viagem pelo norte do Brasil”, documento já mencionado e analisado em trabalhos
de outros autores, 912 Mário de Andrade reafirmou a importância da continuidade da expedição que já vinha
oferecendo e poderia oferecer ainda mais material de estudos dos aspectos formadores da nacionalidade
particularmente para São Paulo, “a região mais afastada da essencialidade nacional (...) cruzada de imigrantes de
vária proveniência” e de aproveitamento por compositores eruditos. É interessante notar que, mesmo redigido em 23
de maio, Mário de Andrade faz questão de afirmar que a Missão estava naquela data em trânsito para o Norte do
Brasil, significando talvez que, mesmo que a interrupção da expedição fosse determinada pela nova administração da
Prefeitura de São Paulo, as comunicações com a equipe agora estavam prejudicadas:

“(...)
Finalidade / O Brasil realmente não conhece a sua música nem seus bailados, porque, devido à sua
enorme extensão e regiões perfeitamente distintas uma da outra, ninguém, nenhuma instituição se deu
ao trabalho de coligir essa riqueza até agora inativa. / A Discoteca Pública resolveu por isso enviar ao
Nordeste e Norte do Brasil, que são as regiões mais ricas em música popular, a Missão que por lá viaja
atualmente. Todo o aparelhamento, máquinas de gravação, de filmagem (16 m/m), e fotográficas,
pertencem à Discoteca

902
- Acervo Histórico DPM: D5P1, p.1
903
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.29-30. Discos F.125B-F.128A, fons.847-857
904
- idem, p.30-31. Discos F.128B-F.132, fons.858-883
905
- Documentos originais da MPF: Fotos 351-366
906
- Documentos originais da MPF: Filme 5.C, P&B, silencioso, 3'00”
907
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 2.B, p.95-116; Cad.de Campo 5A, p.2-33 (Ladeira); Cad.de Campo 6,
p.152-158, 171-173 (Saia). Acervo Histórico DPM: T70P8, D8P1, D9P1, D28P2
908
- Cad.de Campo 5A, p.188-192, 200-201
909
- Cad.de Campo 6, p.159-170
910
- Corresp.Doc.47 - de Luiz Saia a Mário de Andrade, João Pessoa, 26 de maio de 1938
911
- Corresp.Doc.28 - de Mário de Andrade a Luiz Saia, São Paulo, 27 de maio de 1938
912
- cf. SANDRONI, C. - “Mário contra Macunaíma: cultura e política em Mário de Andrade.” São Paulo, Vértice, 1988. p.127-128;
cf. SCHELLING, V. - “A presença do povo na cultura brasileira: ensaio sobre o pensamento de Mário de Andrade e Paulo
Freire.”, Campinas, Ed. da UNICAMP, 1990. cap.III, item 3.4, p.169 e ss.
134

(...)
Razões por que deve a Missão continuar
(...)
3-) As canções gravadas, pela sua variedade de gêneros e seu número, dão a São Paulo uma fonte
incomparável no Brasil, para estudos sobre a musicalidade do Nordeste. Já ricos pois de documentação
nordestina, deve agora a Missão estar partindo (si já não partiu) para o Maranhão e Pará, região
inteiramente distinta, classificada como “Norte”. Assim, teríamos o Nordeste e o Norte para estudo
científico para o conhecimento dos nossos compositores. Si pequenos trabalhos publicados pela
Discoteca (...) causaram grande interesse, farta divulgação e numerosa correspondência no país e no
estrangeiro, é fácil imaginar o que não causará futuramente os estudos que realizaremos com a
documentação inédita que ora se colhe.
4-) Ousa ainda esta Chefia lembrar que o trabalho que se está realizando não escapa do âmbito de
cultura do município. A documentação colhida fica em S. Paulo, e será objeto de estudos para os
Paulistas precipuamente. E si cuidamos todos na atualidade de abrasileirar o Brasil e torná-lo uma
entidade realmente unida, talvez não haja no país região mais afastada da essencialidade nacional que
esta região de S. Paulo, a mais cruzada de imigrantes de vária proveniência. Nada mais justo que
buscarmos as fontes das nossas tradições onde elas ainda sobrevivem. O ano passado já as crianças
italianas, espanholas, russas, húngaras dos Parques infantis, realizaram o bailado tradicional da Nau
Catarineta, com elementos nordestinos pertencentes ao já importante acervo conseguido pela Discoteca.
913
Futuramente, com a colheita que a Missão está fazendo, São Paulo possuirá uma base para estudo
das nossas tradições populares, absolutamente incomparável no país.
Por tudo isto ousa esta chefia solicitar do Sr. Diretor [Francisco Pati] [que] consiga do sr. Prefeito [Prestes
Maia] a permanência da Missão no norte, para que ela possa levar até o fim o seu destino. Os dinheiros
já estão retirados, as despesas principais já feitas, o rendimento é esplêndido, o benefício cultural será
enorme. Que se não realizem outras missões no futuro, mas que se termine o que está em meio. Este é,
s.m.j., o parecer desta Divisão [de Expansão Cultural] / Mário de Andrade (...)”. 914

Esta veemente defesa de Mário de Andrade pela continuidade da Missão de Pesquisas Folclóricas foi
rapidamente encaminhada para o novo diretor do Departamento de Cultura Francisco Pati, e submetida a julgamento
pelo então prefeito Prestes Maia. A resposta ao ofício de Mário de Andrade chegou no dia 2 de junho de 1938, quando
a Missão já estava em viagem em direção ao Norte do Brasil, de passagem pelo sertão paraibano, nos municípios de
Cajazeiras e Guariba:

“(...) Tendo sido submetida, por esta Diretoria, a apreciação do Sr. Prefeito a presente “exposição dos
atos e consequências da Missão Folclórica atualmente em viagem pelo norte do Brasil”, apresentada por
esta Chefia, deliberou S.Excia., o seguinte: 1) Que se prossiga nos seus estudos e pesquisas, nos termos
da referida exposição; 2) Que se faça o possível para se conter dentro da verba de 60 contos já recebida,
de maneira a não ser preciso lançar mão da verba de 50 contos para gravações [da Discoteca] etc. /
915
Saudações / Francisco Pati - Diretor (...)”.

A viagem da Missão para Teresina, no Estado do Piauí, com destino final em São Luís do Maranhão, teve início
na madrugada de 30 de maio. Durante um período de 17 dias - 31 de maio a 17 de junho, em que a expedição viajou
de caminhão pelo interior da Paraíba, Ceará e Piauí -, não foram realizados extensos trabalhos de documentação
etnográfica seja em discos, filmes ou fotografias. A principal atividade de pesquisa foi desenvolvida por Luiz Saia com
um levantamento de informes sobre arquitetura popular, os tipos de vegetação, e dados sobre a geografia das regiões
percorridas anotados em seu diário de viagem. Todos estes fatos sugerem as seguintes considerações:

1) A partida da Missão de João Pessoa pode ter sido determinada por Mário de Andrade, por correspondência a Luiz
Saia não preservada entre a documentação original, antes mesmo da aprovação do Ofício “exposição dos
atos e consequências...” em favor da continuidade do evento pela nova administração da prefeitura paulista;
2) A viagem de caminhão a Teresina no Piauí e São Luís do Maranhão poderia ter sido realizada por via marítima. Os
custos financeiros seriam equivalentes e haveria economia de tempo, favorecendo os trabalhos etnográficos.
Dada a ausência de coletas documentais durante esse período, pode-se supor que o deslocamento da Missão
via terrestre visou à maior dificuldade de comunicação com a equipe, impedindo o cancelamento da viagem e
o retorno da expedição sem antes coletar manifestações folclóricas da região Norte;

Antes da expedição partir de João Pessoa, Luiz Saia concedeu entrevista em forma de relatório para A
Imprensa, jornal periódico da capital, onde realizou um balanço das atividades da Missão na Paraíba. Nessa matéria,

913
- A representação do brinquedo da “Nau Catarineta”, sob supervisão do maestro Martin Braunwieser (Instrutor Musical dos
Parques Infantis da Prefeitura), ocorreu durante a realização do I Congresso da Língua Nacional Cantada, em julho de 1937.
914
- Corresp.Doc.30 - “Exposição dos atos e consequências da Missão Folclórica atualemnte em viagem pelo norte do Brasil”, de
Mário de Andrade a Francisco Pati, São Paulo, 23 de maio de 1938
915
- idem ibidem, de Francisco Pati a Mário de Andrade, São Paulo, 2 de junho de 1938
135

publicada em 1º de junho de 1938, em um preâmbulo para o relato dos trabalhos da equipe pelo Estado, o Chefe da
Missão fez uma análise crítica da exigüidade de tempo disponível para pesquisas mais extensas na região. Além
disso, segundo Luiz Saia, a Missão foi surpreendida pela grande quantidade e variedade de manifestações de cultura
popular na Paraíba, o que, aliado ao desconhecimento das regiões percorridas pelo Estado, conferem à expedição,
segundo nos parece, um aspecto de improvisação metodológica considerável. Por outro lado, devemos levar em conta
que, sendo um evento marcadamente etnográfico que coletou grande quantidade de material folclórico, não era
responsabilidade da equipe a compreensão e estudo do acervo resgatado, o que seria realizado em análise posterior
efetuada pelos técnicos dos Departamento de Cultura de São Paulo:

“(...) Me sinto incapaz de dar uma impressão do conjunto da Paraíba. Pelo menos por enquanto. Me
defendo justificando essa incapacidade. Quem, vindo lá do sul, viajar o sertão, o brejo, a caatinga, o
curumataú, o litoral e mais um mundo de pequenas zonas perfeitamente diferenciadas, tudo em pouco
mais de um mês, e encontrando em cada lugar uma quantidade enorme de sugestões novas e
interessantes, tem que ficar como fiquei, em estado de choque. No mínimo. Digo em estado de choque
por reserva. A vontade e talvez a verdade fosse dizer em estado de transe. Porque não acredito que
exista um temperamento de curiosidade que se mantenha frio diante das descobertas, das revelações
inesperadas, de mil detalhes que a sensibilidade em tensão forçada vai coordenando, juntando,
separando, concluindo. Acho que me defendi bem. E, si essa defesa não bastasse, tenho mais razões
ainda. A impressão que atualmente eu e meus companheiros de trabalho guardamos da Paraíba vem
mais da nossa emotividade superlotada do que propriamente de um conhecimento sistemático daquilo
que colhemos. E si eu fosse aventurar afirmações sérias, teria sido sobretudo leviano demais confiando
na emoção sem um lastro de frieza que a proximidade dos fatos não nos permite agora. Boto essa
reserva nas minhas palavras para depois não me arrepender do que possa dizer. Porquanto além de me
justificar perante os amigos paraibanos me defendo de mim mesmo pro futuro. Não tem dúvida que estou
agindo direitamente.
Espiando ligeiro
A primeira viagem que fizemos pelo interior da Paraíba objetivou o sertão e foi de 25 dias. A segunda,
depois de uma semana de fôlego em João Pessoa, foi de 12 dias pelo brejo e litoral. Nesses trinta e sete
dias de viagem parávamos um, dois ou três em algumas cidades. Noutros lugares paramos momentos,
meia hora, o tempo de tomar uma café, de espiar uma capela interessante, de perguntar informes
guiadores do nosso trabalho, de fotar uma casa popular, de pesquisar rapidamente um detalhe curioso de
916
latada ou de uma casa de farinha, raramente estacionando o suficiente para colher uma história ou
lenda popular. Porém, em todos os lugares de latada ou de uma casa de farinha era infaltável um detalhe
permanente. É que a gente lamentava não poder ficar muito tempo neles, mais dias, semanas talvez e
quem sabe até mesmo morar ali, que se entrevia variada sugestões de estudo a fazer, através das
conversas rápidas, de informações lacônicas e prometedoras. Nessas condições, a necessidade de estar
vendo tudo em pouco tempo cansava mais do que o maior catabi 917 que o inverno bom pusesse na
estrada em nossa frente.
Foi assim no sertão e precisou ser também assim no brejo e litoral. É verdade que aonde a gente
chegava logo ia entrando em contato com o que havia íntimo e expressivo do lugar. Mas o sentimento da
pouquidão de tempo esteve sempre em nossa presença. (...)”. 918

As fortes características regionais do Estado da Paraíba deixaram profundos sentimentos e impressões em toda
equipe da Missão. Como um porta-voz autorizado dessas emoções, Luiz Saia prosseguiu a entrevista n'A Imprensa
realizando um relatório geral de atividades na Paraíba acompanhado de observações sobre tipos humanos existentes
nas diversas regiões do Estado - particularmente o negro -, além de considerações e avaliações sobre o acervo
folclórico registrado pela equipe. Nesse parte da entrevista, Luiz Saia expressou-se em uma linguagem carregada de
lirismo, demonstrando o que pode ser considerado um bom preparo teórico em arquitetura - sua profissão, era diretor
de Seção do SPHAN em São Paulo -, folclore e etnografia -era membro da Sociedade de Etnografia e Folclore. Além
disso, essa entrevista pode ilustrar a aquisição de um conhecimento específico do Chefe da expedição sobre a
formação social da Paraíba. Luiz Saia chegou inclusive a sugerir temas para pesquisas ulteriores, manifestando um
amadurecimento pessoal provocado pela maior experiência e vivência com o fato folclórico. A ausência de outros
relatórios oficiais entregues pelo Chefe da Expedição à Discoteca Pública Municipal, levou-nos a transcrever esta
matéria jornalística quase integralmente:

“(...)
Cariri Seco

916
- Segundo o Novo Dicionário Aurélio, Latada é uma expressão do Nordeste e Norte brasileiros que indica uma “(...) cobertura
improvisada (em geral de folhas de coqueiro) para abrigar alguém ou alguma coisa”.
917
- Segundo o “Novo Dicionário Aurélio”, catabi no Nordeste denomina o “(...) acidente de terreno que origina o solavanco dos
veículos”.
918
- Hemeroteca Doc.nº 48x: “A Contribuição da Paraíba ao folc-lor nacional - Fala-nos o Dr. Luis Saia depois de visitar todo o
nosso Estado.”, João Pessoa, A Imprensa, 1º de junho de 1938
136

O cariri conhecemos logo em começo de abril, antes das chuvas, com os seus pequenos açudes
particulares secos de três anos, o gado desengordado e magricelo, urubu voando por riba da estrada
atrás de teju 919 distraído que ficasse debaixo das rodas de carro corredor. A vegetação do carrasco
estava seca e quebradiça. Na fazenda onde fizemos, no Corta-Dedo, de longe em longe se descobria um
cangaço de boi esqueletado por cima da areia cheia de pedras. Só o pavão que tinha ali dava a
impressão de estar vivendo muito ancho da vida. A notícia do inverno que vinha descendo do Ceará
destruíra na feição dos moradores a expressão de amargura que a gente imaginava longíqua. Não vou
falar não que vi então uma amostra de que seja uma seca. Porém foi a única oportunidade que tive de
observar um detalhe da terra desinvernada. Me contaram que num lugar não longe dali tinha uma criança
de 7 anos que não conhecia ainda o que era uma chuva. Eu fiquei com vontade de ver o jeito dessa
criança, a alegria na cara dela, na primeira vez que visse uma aguada forte cair do céu.
Sentido Geográfico
Pra diante do cariri, depois da serra da viração, é que fomos encontrar o sertão invernado de quasi um
mês. Árvore ramalhuda alteando por cima dos campos lisos que nem um parque. Me lembrei de um
amigo meu [Mário de Andrade?] que se enliricou bastante numa sombra ramalhuda da beira-Tietê, lá por
São Paulo, e crivado de carrapatos por três dias.
No sertão paraibano, e no brejo como verificamos mais tarde, o viajante sente uma sugestão muito
predominante da geografia. Do alto da serra da “viração” se percebe nitidamente o sistema da Borborema
se bipartir e se alargar em leque, cada vez mais pro norte e pro sul. O vasto vale que se estende depois
da “viração” desde Salgadinho até o Ceará, fechado pelos sistemas rochosos que separam a Paraíba de
Pernambuco e Rio Grande do Norte, é a geografia que circunscreve o tipo sertanejo paraibano. Pelo que
me contaram, pois que não estive nem na zona de Princesa e Teixeira, pro sul, e nem na de Luís Gomes
e Alexandra além serra, no Rio Grande do Norte, o tipo do homem desses lugares já se diferencia
bastante do sertanejo típico da bacia do Piranhas.
Folclor
Foi nesta zona que a Casa da Torre veio trazer a sua contribuição importante, juntamente com as
bandeiras baiana e paulista, na formação social da Paraíba. A colheita folclórica que pudemos fixar
sugere interessantes estudos neste setor. Por exemplo: o caso da presença do elemento negro no sertão
deste Estado, que me parecera muito mais importante do que faz crer a versão corrente; a sua influência
na arquitetura, no folclore, na arte e na técnica populares, no tipo de vida corrente ali tem aspectos
curiosíssimos que merecem ser revelados. Há o caso do negro que não se misturou não sei porque
cargas d'água, com a mesma gente que, noutros pontos do país, se andava misturando a torto e a direito.
A colheita de escultura popular que realizamos nessa zona é muito rica de sugestões nesse sentido. A
existência de festanças populares hoje adotadas por brancos também, como a de “reis de Congo” e a do
“bumba meu boi”, pode indicar boas pistas para pesquisas a respeito da contribuição do negro na
formação social do sertão paraibano. Si não me engano foi em Pombal ou em Sousa que colhemos uma
linha melódica parecida por demais com outra que conheço do Estado do Rio de Janeiro para não
parecer caso de telepatia musical.
A presença da Casa da Torre deixou vestígios até hoje. A fazenda Acauan, perto de Sousa, é um deles.
Outras duas que existiam por estas bandas parece que já desapareceram. A de Acauan está bastante
conservada para que garanta uma constituição completa e indiscutivelmente muito valiosa. Em Pombal
há outro caso arquitetônico de máximo interesse. É a igreja do Rosário. Meio espanholada na estrutura,
conserva no seu interior trabalho de pintura e de talha que merece ser... reenvelhecido fielmente.
Reenvelhecido, mas por técnico entendido no assunto, pelo amor de Deus.
(...)
Do sertão viemos pro brejo, caatinga e litoral. Aqui a população apresenta outros traços, outros detalhes
diferenciadores, outra situação social. Enquanto no sertão o negro ganhou uns traços de sobranceria e
independência, no brejo, a formação social baseada no latifúndio, no engenho, na moral de misturança,
deu o mestiço mais parecido com aquele de Pernambuco, do Rio de Janeiro e certa zonas de São Paulo.
O seu folclore me pareceu mais impressionante. Uma turma rural de Areia nos deu um bumba meu boi
interessantíssimo pela primitividade e religiosidade intensas. (...) A cidade de Areia me pareceu mais
representativa do Brejo. Pelo seu jeitão de coisa aristocrática, portuga, procurando climas e se cercando
de uma mucambaria alastrada. É bem o tipo da cidade patriarcal brasileira, que teve escravaria muita e
hoje tem mestiçagem bastante pra forçar a raça. Eu esperava encontrar isso em Mamanguape. Fui
verificar entretanto que esta última cidade foi mais um entreposto comercial do que propriamente uma
zona de fixação e elaboração social. Aliás eu devia ter pensado nisso sabendo do seu lustro antigo e do
seu atual estado de decadência.
A musicalidade [do litoral] está fixada no coco. (...) Na capital paraibana estivemos pouco tempo
relativamente. O suficiente entretanto para fixar cabocolinhos, catimbó e barca. (...) Para arranjar o
catimbó lutamos muito. A decadência dele é visível a olho nu. Ainda conserva melodias bastante
interessantes e lindas. Interessante notar que um conhecido médico interessado nestes estudos passou

919
- Segundo o “Novo Diocionário Aurélio”, teju (variante de teiú - gafanhoto)
137

um bocado de tempo aqui e não conseguiu arranjar uma “sessão”. 920 Aliás, si nós conseguimos muita
coisa aqui na Paraíba devemos em grande parte à assistência concreta que recebemos do governo
Argemiro de Figueiredo. Com esta assistência foi possível fazer o serviço de colheita e acumular um
cabedal que constitui por si só uma documentação valiosíssima. (...)”. 921

Após uma estadia de 65 dias na Paraíba, tendo realizado duas viagens etnográficas pelo interior - zona do
sertão e zona do brejo, efetuando coletas também na capital -, a Missão partiu de João Pessoa na madrugada de 30
de maio para chegar em Teresina no Piauí em 13 de junho de 1938. As coletas da expedição no Estado da Paraíba
superaram todas expectativas: cerca de 30 gêneros folclóricos musicais, mais de 700 melodias gravadas distribuídas
em aproximadamente 100 discos de várias dimensões; mais de 500 fotografias; cerca de 10 filmes cinematográficos;
uma grande quantidade de objetos de fatura popular - ex-votos de madeira, instrumentos musicais, vestimentas
características, entre outros -, além de uma infinidade de anotações escritas pelos componentes da equipe. O início da
viagem de caminhão com destino à Teresina no Piauí, para alcançar São Luís do Maranhão foi anunciado pela A
Imprensa em 29 de maio:

“Partirá amanhã desta capital com destino a Teresina, capital do Piauí, a missão Cultural Paulista, que se
encontrava neste Estado há mais de um mês, coletando dados sobre o nosso folclore, por conta do
Departamento de Educação Cultural da Municipalidade de São Paulo. [sic]
Os distintos investigadores, que aqui reuniram abundante material, viajarão de caminhão, devendo
atravessar o interior da Paraíba e Ceará, para alcançar o Piauí onde esperam obter êxito na sua missão
922
(...)”.

920
- Luiz Saia refere-se ao médico pernambucano Gonçalves Fernandes, autor de “O Folclore Mágico do Nordeste.”, publicado
em 1938 (Ed.Civilização Brasileira, 177 p.)
921
- Hemeroteca Doc.nº 48x: “A Contribuição da Paraíba ao folc-lor nacional - Fala-nos o Dr. Luis Saia depois de visitar todo o
noss Estado.”, João Pessoa, A Imprensa, 1º de junho de 1938
922
- Hemeroteca Doc.nº 47x: “Missão Cultural Paulista - Os resultados das pesquisas na Paraíba excedeu todas as
expectativas.”, João Pessoa, A Imprensa, 29 de maio de 1938
138

2.10 - De 31 de maio a 16 de junho: a caminho de São Luís do Maranhão - A parada forçada


em Jaicós no Piauí

Na madrugada do dia 31 de maio a Missão partiu de João Pessoa se dirigindo a Teresina, Piauí. A intenção era
prosseguir a viagem até São Luís do Maranhão e Belém do Pará para documentar as manifestações populares do
Norte brasileiro que ocorrem durante o mês de junho, nos festejos de São João, com realização dos cordões de bichos
e o boi-bumbá. A equipe chegou em Teresina 14 dias após, em 13 de junho à tarde, depois de uma parada forçada de
3-4 dias no município de Jaicós, devido a quebra do caminhão de João Gomes de Brito. Com vários imprevistos que
atrasaram o cronograma da equipe, houve necessidade de encurtar a estadia em São Luís do Maranhão. Em Belém
do Pará, julho de 1938, a Missão recebeu ordens para encerrar suas atividades e retornar à São Paulo.
As principais referências para a reconstrução cronológica das atividades da equipe nessa viagem de 14 dias à
São Luís do Maranhão e Belém do Pará estão registradas no diário de Luiz Saia, que, a partir dessa data, passou a
923
ser anotado em duas cadernetas de campo. A documentação original da Missão durante o período de 31 de maio a
8 de julho de 1938, se resume praticamente a essas anotações efetuadas pelo Chefe da expedição. Além do diário de
Luiz Saia, constam como documentos desse período 9 artigos de imprensa relativos à equipe ou à coleta folclórica por
ela efetuada; 924 e somente 3 telegramas de Luiz Saia à São Paulo. 925 Foi esse material que subsidiou a descrição do
dia-a-dia da expedição a partir dessa data.
Às 23:40 horas de 30 de maio, com o caminhão de João Gomes de Brito, a Missão partiu da “(...) Praça dos 100
réis (em frente do Hotel Paraíba) (...)” indo antes “(...) parar no Bar Aliança para enviar alguma coisa (...)”:
provavelmente telegramas às autoridades dos Estados do Norte que seriam visitados pela equipe, e ainda, cartas,
talvez à São Paulo. No Bar Aliança, a Missão gastou 11$500 réis com lanches e cafés; e 11$000 réis com “(...)
telegramas e cartas (...)”. 926
Antes da partida de João Pessoa, Luiz Saia fez questão de anotar em seu diário as “(...) pessoas do Governo
que prestaram assistência (...)” à equipe, relacionando entre elas “(...) Governador: Argemiro Figueiredo / Secretário do
Governador: Raul de Góis / Prefeito da Capital: Fernando Nóbrega / Chefe Polícia: Dr. João França / Obras contra as
Secas: Dr. Ávila Lins / Diretor [do Jornal] União: Dr. Osiris Barbosa (...)”. O Chefe da expedição também anotou
algumas distâncias entre municípios, esboçando talvez o que pode ser considerado um roteiro de viagem à Teresina:
“(...) João Pessoa-Cajazeiras: 83 léguas / Cajazeiras-Crato: 20 léguas / Crato-Picos: 50 léguas / Picos-Inhuma: 15
léguas / Picos-Teresina: 60 léguas (...)”. Aos funcionários do Hotel Paraíba, Luiz Saia ofereceu 84$000 réis como
gratificação. A viagem à Cajazeiras, distante aproximadamente 400 quilómetros de João Pessoa, foi realizada com
algumas escalas não previstas pela equipe. 927
A primeira etapa da viagem tinha como objetivo o município de Itabaiana onde a equipe realizaria o pernoite na
casa do motorista João Gomes de Brito, prosseguindo a viagem à Cajazeiras pela manhã. Sobre João Gomes de
Brito, é interessante notar que o motorista além de servir à expedição realizou pequenos transportes de mercadorias e
pessoas pela região, ganhando um dinheiro extra além daquele pago pela Missão. Sobre o caminhão de sua
propriedade, apesar de não haver nenhuma observação sobre seu estado de conservação, pode-se supor que este
era bastante precário. Já no primeiro dia de viagem o caminhão quebrou, antecipando, como será visto adiante, todos
os problemas que a equipe teve que enfrentar no restante do percurso. Esse foi apenas o primeiro dos diversos
atrasos no cronograma da expedição provocados pela quebra do veículo:

“(...) À 1:50 do dia 31/5/38 paramos em Cobé. Durante a viagem pra cá apanhamos uma chuva dos
diabos. Há duas léguas de Itabaiana passamos pelo lugar da bulha [?] Jararaca. Chegamos às 3:30.
Às 8:10 terminava o café. Ele constituiu para mim numa das coisas mais absurdas. Bebi em jejum um
meio copo de cognac de alcatrão porque estou fodido de constipado. Dormimos em casa do prof. G. de
Brito, em cima do depósito de água. Ontem [em João Pessoa] dei ao Ladeira 20$000 pra ir procurar o
928
França [Chefe de Polícia] que nos daria o “passaporte”. Ele gastou dez de auto e outros 10$000
ficaram pra gastos pessoais dele. Parece que esqueci meu molho de chaves em J.Pessoa!!! Depois de
perder tempo com a arrumação da casinha [?] até às 9:45 saímos da casa de João e fomos pra “rua” de
Itabaiana onde ele foi pôr gasolina no carro (a necessária pra viagem). Deve ser mais de 10:30 e ainda

923
- Cads.de Campo nºs 7 e 8
924
- Hemeroteca Docs.nºs 48, 49, 50, 51, 54, 55, 56, e outros dois sem número de classificação.
925
- Corresp.Docs.nºs 48 e 49 (de Luiz Saia a Mário de Andrade) e 50 (de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga)
926
- Cad.de Campo 7, contracapa, p.s/nº
927
- Cad.de Campo 7, contracapa, p.s/nº, p.1. Nas páginas iniciais da caderneta existem dois croquis: 1-) 2 mulas com
carregamento em frente à mata, com a inscrição: “Itabaiana - 31-5-38 - Lsaia.”. 2-) Croqui de mapa da costa do Brasil, com o
roteiro realizado pela equipe e destaque para as seguintes localidades: “[Recife / Natal / Fortaleza / J.Pessoa - C.Grande -
Pombal - Cajazeiras -Várzea Alegre - Crato - Araripe - C.Salles - Jaicós -Picos (Ipiranga) - Inhuma -Valença - Coroatá -
Cantinho - Terezina - Caxias - S.Luis”. Além disso, no canto inferior da p.1, a seguinte nota: “Estamos enviando: Carmen:
Vestia uma Camisa listrada e... saiu por aí. / Partida de J.Pessoa 24,30 do dia 30/5/38”
928
- Provavelmente uma autorização do Chefe de Polícia de João Pessoa com intuito de facilitar as comunicações com
autoridades dos locais por onde a expedição passaria. Seja como fôr, não há nenhum documento entre a Missão e o Dr. João
França preservado no acervo histórico da Discoteca Pública Municipal.
139

não há possibilidade de partida. Um rapaz do cabocolinho filmado aqui [dia 4 de maio] nos informou que o
prefeito Santiago ainda lhes deu 5$000 [para] cada um depois da nossa saída. Isso que é ser burro!
[segue croquis de figuras humanas carregando objetos] Chegamos em Campina [Grande] às 13 horas.
Imediatamente fomos descarregar 60 caixas que vieram de João Pessoa (ou Cabedelo?) a 3$000 o
transporte de cada. São 180$000. Veio de Ingá do Bacamarte um passageiro que pagou 5$000. (...)
Partimos de C.Grande à noitinha com destino ao sertão. Tínhamos tomado um lanche antes de sair. Eu
estava é com febre muita e ruim da vida. Pouco depois do açude de Boedengó se quebrou o cabo da
direção e precisamos parar. O Pacheco ficou no caminhão e eu, Martin e Ladeira viemos pro Hotel de
Campina. Não foi possível encontrar aqui os jornais de J.Pessoa. Os de Recife se encontra facilmente. O
rapaz do hotel me informou que jornais de J.Pessoa se vendem no máximo uns 20 por dia. Só os
advogados e funcionários o compram. Pra noticiário mesmo todos procuram os jornais do Recife. Tomei
929
mais duas pílulas “bromo-quinina” que venho tomando desde a tarde e fui pra cama (...)”.

Impedida de prosseguir viagem, a equipe pernoitou em Campina Grande. Logo pela manhã, após conserto do
caminhão a expedição deixou a cidade. A intenção era chegar, como planejado inicialmente, ao município de
Cajazeiras. No entanto, novos imprevistos ocorreram e a Missão chegou somente à cidade de Sousa - distante cerca
de 350 quilómetros de João Pessoa e aproximadamente 40 quilómetros de Cajazeiras - durante a noite, às 22:15
horas. Durante o trajeto a equipe realizou uma escala em Salgadinho, para o almoço, e outra em Pombal, onde a
Missão encontrou-se com o prefeito Sá Cavalcanti - um grande colaborador da equipe durante a viagem ao sertão
paraibano (1º a 24 de abril) -, jantando com ele em hotel da cidade. O imprevisto ocorreu logo após a saída de Pombal.
Para chegar em Sousa, a equipe teve que atravessar novamente o rio Piranhas. Sendo período de seca, com o
leito do rio Piranhas praticamente exposto, foi resolvido que a travessia seria realizada sem a utilização das barcas
disponíveis para o transporte de veículos, que, ao que tudo indica, durante a noite não operavam. No meio do trajeto, a
água do rio entrou pelo cano de escapamento e atingiu o carburador do caminhão, acarretando novo atraso no
cronograma da viagem, impedindo que a equipe chegasse ao município de Cajazeiras ainda em 1º de junho, como
planejado. É também interessante observar como as condições de viagem da expedição vão progressivamente
tornando cada vez mais difíceis, com a frequente utilização da boléia do caminhão como leito, e ainda, mais adiante,
com a ausência da água e alimentação:
930
“(...) 01/06/1938 - Às 5 horas o Ladeira me chamou avisando que o José informara já estar soldada a
peça que se quebrara. Às 6 me levantei. Não havia café nem leite ainda. Chupei uma laranja. Procurei
saber si era possível encontrar os jornais de J.Pessoa. Impossível. Só depois das 8 horas. Desisti de
comprá-los - insisti neles porque devem trazer entrevista minha que deve constar relatório geral. 931
Tomamos um carro na praça (10$000 gastos no hotel) às 6:40 e fomos pro lugar onde ficara o caminhão.
Aí encontramos o Pacheco que dormira no caminhão mesmo. Enquanto o José ficou colocando a peça
soldada, o João, Ladeira e Pacheco ficaram acertando as peças que carregam o caminhão de maneira a
viajarmos mais ajeitadamente.
[croqui de caminhão com equipe na boléia e a inscrição colocada abaixo: “Às 8:30 estamos de partida”]
Parada em Corta-Dedo às 9:20. A arquitetura popular urbana e rural desta zona apresenta alguns
detalhes interessantes. A casa é sistematicamente mais baixa que a do sertão. O pé direito aqui é
pequeno. As laterais não atingem a altura de 1,60. O acabamento do barreado é também característico.
Certo amarramento muito parecido com o da taipa (taipa mesmo) paulista. As quinas são
sistematicamente arredondadas. Nesta arquitetura não surge a latada; esta é característica do sertão.
Ainda por aqui apareceram algumas casas de tijolo. Poucos contudo.
Café em Corta-Dedo 9:30. 5$000 gastos em café.
Em Joazeiro - 14 léguas de Campina [Grande] e 14 léguas de Patos - chegamos às 10:50. Paramos pra
pôr gasolina no caminhão. Desde Corta-Dedo o Martin passou a viajar em cima, passando o Pacheco a
viajar na boléia. (...)
Ao meio dia chegamos na [serra da] viração. Antes de começar a descida notamos qualquer ruído
anormal e verificamos, parando, que o varão do freio se quebrara. Foi sorte a gente perceber isso ali pois
si fora na viração já chegada em meio estaríamos... fodidos. Aqui no cariri se vê duas coisas, além das
anotadas atrás, na arquitetura:
[seguem notas sobre arquitetura com croquis esquemáticos]
Partida pra descer a Viração: 12:30. Chegamos a Salgadinho, primeira localidade depois da “viração” às
13 horas. Aí paramos e almoçamos o almoço mais vagabundo do mundo - arroz e feijão cozinhados com
sebo, juro por Deus, macarrão (Paraíba é o Estado onde mais se come macarrão), galinha e pirú [sic]
inomináveis. Banana verde e marmelada que nem merda [sic]. Aqui em Salgadinho encontramos uma

929
- Cad.de Campo 7, p.2-5
930
- talvez outro ajudante de caminhão - calunga - contratado por João Gomes de Brito e pela Missão em substituição ao
Severino, calunga da primeira viagem ao sertão paraibano, em abril de 1938. Depois desta data, não há mais referências a
este calunga.
931
- Artigo já transcrito. Vide Capítulo II, item 2.9. Hemeroteca Doc.nº 48x, A Imprensa, João Pessoa, 1 de junho de 1938.
140

“garrafa térmica” sui generis: o bule do café é esquentado num “abafadô” de pano. Um lugar de calor
como aqui isto é besteira.
[segue croqui de “abafadô”]
Neste hotel há um detalhe de arquitetura hidráulica sertaneja interessante:
[croqui de habitação popular]
Notar aqui que essas calhas reaproveitam da água de 2 telhados. A água da chuva, vinda pela calha,
aqui nesta casa, vai diretamente à cozinha.
Conta do hotel 24$000 (6 almoços e 3 águas). Deste 24$ tem uma água e dois almoços, 6$000 do João.
Não dei gorgeta porque estava uma porcaria o almoço. (...)
Chegada em Pombal às 18 horas. Depois da viração a presença da jurema é intenssísima. E de
imburana também. Pouco antes de Patos há um distancião [sic] de jurema que me pareceu o maior.
Depois da viração começam a surgir as latadas. E também as casas com alpendres na frente.
[croqui de habitações populares]
Estas casas são em geral de pau-a-pique (taipa) já pronunciadamente normais, isto é, sem grandes
detalhes diferenciadores regionais, a não ser certa permanência da técnica do pau-a-pique do cariri. A
cobertura é quasi sistematicamente de telha. Antes de Pombal já surgem os pés de oiticica. Em Pombal
procurei o Sá Cavalcanti que veio conosco pro Hotel onde jantamos. Ele pagou o jantar (lucramos + ou -
uns 30$000). O Sá falou que soube que do Rio viera ordem de não derrubar a cadeia e a igreja.
Saímos de Pombal às 19:30. Passamos o Rio Piranhas sem barcas... a água entrou no carburador e no
cano e o Pacheco, João e José estão se apertando pra solucionar a encrenca. Antes do rio, que está
quasi vazio, uns 30 homens querem tapiar os passantes. Depois de uns 20 minutos de arranjo no cano
partido e viajando numa noite mais ou menos fresca, chegamos em Sousa às 22:15. Viemos pro mesmo
932
hotel (...)”.

No dia seguinte pela manhã, em 2 de junho, quinta-feira, a viagem recomeçou. Nesse dia, a Missão deixou o
Estado da Paraíba entrando pelo interior do Ceará, para atingir o município de Várzea Alegre durante a tarde. O
pernoite da equipe foi realizado em um vilarejo próximo, em um local chamado Guariba:

“(...) Partimos de Sousa às 5 horas. De noite o rapaz me “emprestou” o caderno da barca. 933
Partida de Marizópolis às 6 horas. 6 passageiros. De Sousa até Lagoinha (Ceará) tem um vento [...?] da
várzea fruto de Sousa e depois entra em um trecho mais acidentado que atinge Cajazeiras e vai pra
diante até quasi a fronteira com Ceará. A presença da umburana e da jurema verifica-se por aqui. Já no
Ceará a vegetação se torna muito parecida com a caatinga de Pernambuco. Vegetação de mamelêro
altos de 2 metros. Tipo da vegetação pra roupa de couro. Perto de Lavra surgem 6 plantações de arroz.
Algodão muito. Um viajeiro acompanhante comentava com outro que algodão de caatinga murcha cedo.
Na estrada de Lavras tem um barragenzinha e o caminhão passou por cima de um sangrador. Em Lavras
tem pinha. Tem uma cadeia imperial mui esquipática [sic]. De Lagoinha a perto de Lavra 1 passageiro.
[segue croqui da cadeia de Lavras]
Às 11:20 chegamos a São José. Encontrei no começo desse lugar... um páteo espanhol! Que coisa mais
louca. Dentro do páteo o pessoal se comporta como se fosse na rua.
[croqui do páteo]
Saída de São José - 11:50.
No caminho vimos um lugar (Cajazeiras) à direita da estrada (uns 2000 ms de distância). Mais ou menos
na metade do caminho paramos numa casa (lugar chamado Maria) e aí indagamos as distâncias e o
934
Pacheco machucou a mão. Anotei no mapa as localidades de Maria e Cajazeiras
Em São José gastei 4$000 de guaraná. Partida de Maria às 12:30. Paramos perto de Várzea Alegre
(antes de descer na Várzea) numa sombra para tratar do carro, descansar o motor, e fazer coberta contra
o sol. A madeira pra coberta foi tirada de uma cerca de entrançado (nome desta zona). Esta cerca é
assim:
[croqui]
Isto já está anotado como sendo cerca de vara ou cerca de lanço. Aqui chama cerca de entrançado.
Chegada a Várzea Alegre às 2 horas da tarde. Houve uma increnquíssima a respeito da estrada daqui
pra Crato. O que há de positivo é que as estradas são danadas de ruim. Fui até a prefeitura porém aí não
sabiam nem a altitude do lugar. Consegui fazer uma espécie de roteiro com informes colhidos de várias
pessoas dali.
[croquis de figura feminina; de criança ajoelhada com a mão no queixo; e vista geral de Várzea Alegre
com a inscrição: “303 metros acima nível do mar”)

932
- Cad.de Campo 7, p.6-14
933
- A Missão trouxe dois cadernos manuscritos com os textos da barca, classificados como “Textos trazidos pela MPF,
Or.ms.nºs 15/16. Oneyda Alvarenga os datilografou em cópias fiéis, classificando-os como T13A/BP2.
934
- Apesar de não mencionado entre o material levado pela equipe, Luiz Saia carregava consigo uma carta geográfica do Brasil,
com detalhes das regiões Nordeste e Norte brasileiras. Este mapa está ainda preservado entre a documentação original da
expedição - Acervo Histórico da Discoteca Pública Municipal -, permanecendo entretanto, sem número de catalogação.
141

Aqui em Várzea Alegre surge o mesmo páteo encontrado em São José. Não esquecer de notar nesta
zona a vermelhidão do barro com que são feitas as paredes do pau-a-pique. Também notar que há
predominância do alpendre no lado do outro [?]. A latada é rara. Um detalhe interessante nas casas
populares [é que estas] são enormes nesta zona. Consegui durante a viagem ver um interior de casa
rural.
[segue croquis de habitação popular, com a inscrição: “é sistemática esta divisão aqui = cumieira”]
Dormimos no lugar (1 casa) chamado Guariba. Ladeira e João foram dormir na casa de um rapaz que
viera conosco. Martin e Ladeira dormiram na casa em frente da qual ficou o caminhão e eu e José. (...)”.
935

Partindo pela manhã de 3 de junho, sexta-feira, do lugar chamado Guariba, a equipe chegou em outra
localidade próxima - Monte Alegre - onde pôde se alimentar. Um pouco adiante, a Missão teve que passar pelo riacho
da Fortuna para seguir a viagem com destino ao município de Crato, a segunda etapa do roteiro inicial esboçado por
Luiz Saia. No entanto, o caminhão da equipe atolou no leito do riacho dando grande trabalho para desencalhar do
local. Enquanto trabalhavam no caso - em que a Missão contou com a colaboração de moradores da região -, a equipe
teve oportunidade de banhar-se no riacho da Fortuna, buscando refrescar-se do intenso calor. As dificuldades
enfrentadas pela expedição durante essa viagem de caminhão foram aumentando progressivamente. Como será visto
adiante, esta foi a última oportunidade de banho para a Missão até o dia 15 de junho. Por volta do meio-dia, a Missão
chegou a uma venda de beira de estrada - venda de cipó - permanecendo até o final da tarde. Na saída do local, um
novo encalhe com o caminhão ocorreu, desta vez devido a presença de uma ladeira muito íngreme no trajeto do
veículo. Esses encalhes do caminhão - no riacho da Fortuna e depois na ladeira próxima da venda de cipó - impediram
o prosseguimento da viagem ao município de Crato ainda naquele dia. O pernoite foi em um lugar chamado
Logradôro:

“(...) Às 8 horas chegamos na “bodega” do Monte Alegre. Aí lanchamos queijo de “coalho”, guaraná, café
bunda suja, [sic] laranja azeda e bolachas pedra. Aqui vende vinho Catuaba [que] “combate a prostração
nervosa e a fraqueza dos órgãos”. (catu = bom com aba = homem). Às 8:45 estamos de partida. Gasto
na venda 28$500.
Pouco adiante de Monte Alegre (ainda Monte Alegre) o caminhão encalhou no riacho da Fortuna. Pra sair
daí precisou trabalhar de enxada, etc. Tomei um banho no riacho. Banho bom e fresco. Agora 12:10
ainda estão recarregando o caminhão que fôra descarregar pra poder sair do riacho. O alagoano que
mora aqui perto e com quem mantive uma boa conversa é um mulato camarada. O pessoal cearense é
936
um povo munganguêro. Não me acostumo com o cearense.
[croquis de habitação popular]
(...)
O cariri novo vai de Lavras até ao pé da Serra do Araripe. A vegetação é jurema, favela, marmelêro,
aparecendo de vez em quando um xique-xique ou um mandacarú.
A altura da vegetação daqui é mais ou menos parecida com a da caatinga pernambucana na zona de
Tacaratu. A plantação de Várzea Alegre é sobretudo arroz. Pra diante é algodão, milho. Dá mandioca
mas não plantam.
O Cariri verdadeiro é aquela zona constante ao pé da serra do Araripe. Todas as “plantáge” pegam aí. É
só plantar. Depois de Várzea Alegre, sobretudo aqui em cipó, a população tornou-se mais simpática. Às
vezes aparece umburana nesta zona talvez [no] cariri inteiro. Tem uma fruta que dá muito e serve pra
fazer sabão = cozido com banha. nome: [em branco]
Foto 4 - Casa fotada do caminhão com latada ao lado e gradil de pau-a-pique e de paus fincados
937
verticalmente no alpendre. Barro bem vermelho como de tudo nesta zona. Aqui nesta zona (pouco
depois de Monte Alegre) vi uma casa de pau-a-pique com o mesmo aspecto exterior que a do sítio Santo
Antônio de São Roque (São Paulo) porém de tamanho um pouco menor.
[croquis de habitação popular]
Pouco adiante surgiu uma casa assim:
[croqui de habitação popular, com a inscrição: “telha (só telha por aqui) pau-a-pique vermelho é muito
grande”]
Surge o xique-xique na vegetação daqui. Será que chamam isto de cariri porque o terreno é todo
empedrado?
[croquis da venda de cipó com as inscrições: “O entrançado deste pau a pique é igual ao de São Paulo. A
terra é vermelha quasi sangue. A cobertura da latada é de palha de alpiste. Venda de cipó - onde
comemos milho verde cozido]

935
- Cad.de Campo 7, p.14-20. Os grifos são de Luiz Saia
936
- Segundo Luís da Câmara Cascudo (“Dicionário do Folclore Brasileiro”), Muganga são trejeitos, caretas, movimentos bruscos
sugerindo comicidade.
937
- Esta, como uma série de fotografias do acervo original registrado pela Missão, não foi identificada. Na sistematização e na
incorporação do material ao acervo da Discoteca Pública permaneceram sem identificação alguma cerca de 300 fotogramas
efetuados pela expedição.
142

Às 16:20 saímos da venda do cipó. Logo adiante topamos [com] uma ladeira “da molésta” onde além do
mais que tem sido normal nesta viagem depois de Lavras (fechar buracos, tirar marrotes, etc) precisamos
desmanchar (para depois de passado o carro refazer) uma cerca de vara alta de 2 ms.
Tem vários sistemas de cerca por aqui. Um tipo que foi visto no Pernambuco (Tacaratu) surge
frequentemente. É a “cerca de cama no chão” que consta de 2 paus fincados inclinadamente de distância
em distância (1 a 2 ms) deste jeito:
[segue croqui esquemático]
Um outro tipo é a cerca de rua. Aqui a técnica é a seguinte: fincam-se paus de 1 a 2 metros de distância e
transpassa-se as varas cujo comprimento atinge, no mínimo 3 paus fincados. A [...?] colocar as varas é
seguindo de um vão pro seguinte e assim por diante. Tem ainda a cerca de pau-a-pique que é de paus
fincados simplesmente no chão um encostado no outro. Afinal tem a cerca de faxina (é conhecida aqui
porém ainda não enxerguei uma nesta zona do cariri).
Já tarde da noite, 10 horas, conseguimos tirar o carro do lugar (era ainda cipó) onde derrubamos a cerca.
Antes de chegar no lugar “Logradôro” (onde pousamos) tivemos que atravessar um rio... zinho. O
Pacheco, por sugestão minha, tinha vindo na frente pra ver se arrumava algum que cumê [sic] na venda
do “Lenço” que diziam estar perto. Voltando ele disse que encontrara este rio fundo de 2 ms. e chamou-o
de “empáio” duro.
[Nota lateral: “lacráio = escorpião por aqui (tem nas pedras)”]
Depois fomos verificar se um riachinho razo que varamos depressa [poderia servir para passar o
caminhão.]
[croqui esquemático]
Paramos às 23 horas no lugar “Logradôro” onde arranjamos com o velho Boaventura pouso pra nóis.
Pacheco dormiu na boléia do carro. Aí mandei o Joaquim (cabôco que está ajudando nos empáio da
estrada) buscar o que cumê na venda do cipó. Gastou 15$600 e trouxe mais garrafa de água, bolacha e
938
rapadura. Chegou com isto já todos em sono. 1 hora da manhã. (...)”.

Em 4 de junho, sábado, pela manhã a Missão reiniciou a viagem ao município de Crato. Preocupado com o
cronograma de viagem, o Chefe da expedição começou a registrar em seu diário seus receios com o tempo perdido
em diversos imprevistos e trabalhos com o caminhão. A quantidade de ladeiras íngremes, de buracos no trajeto, e de
pedras existentes em leitos secos de rios por onde trafegou o caminhão da equipe era enorme. O trabalho braçal para
superar os obstáculos do percurso provocou cansaço e irritação, causando por vezes um estado de ânimo exaltado
entre os componentes da Missão. As anotações de Luiz Saia deixam entrever seu aborrecimento com o maestro
Martin Braunwieser que, segundo sua avaliação, pouco colaborava com o trabalho físico e não sugeria nenhuma
solução para os problemas do percurso.
Além desses aspectos internos da Missão, é interessante observar também as diversas técnicas utilizadas pela
equipe para aplanar o terreno na travessia do caminhão.
A partir desse ponto do relato de Luiz Saia, será possível também verificar outras adversidades vivenciadas pela
Missão durante sua viagem pelo interior do Ceará e Piauí como, por exemplo, a crescente escassez de alimentação
regular e água potável disponível, provocando fome e sede nos componentes da expedição; ou ainda a precariedade
dos alojamentos utilizados pela equipe que, ao que tudo indica, não apresentavam ao menos condições mínimas de
manter a higiene pessoal de cada integrante.
Outro aspecto interessante que passou a ser abordado com alguma freqüência a partir desse ponto do diário do
Chefe da Missão -e que talvez se relacione somente a ele -, se refere ao incômodo causado pelo longo período de
abstinência sexual desde a partida de São Paulo, em fevereiro de 1938, inteirando 4 meses de viagem da Missão. As
anotações de Luiz Saia sobre essa questão sexual vão se tornando cada vez mais específicas e intensas. Ressalte-se
que essa observação somente é factível por se tratar de documentação de caráter pessoal e estritamente particular -
um diário de viagem. Por outro lado, esse material se tornou público por estar preservado no Acervo Histórico da
Discoteca.
A Missão chegou a Crato somente na madrugada do dia 4 de junho, domingo. Antes de atingir a essa cidade, a
expedição realizou algumas escalas em vilarejos da região. É bem possível que a equipe tenha se perdido durante
esse trajeto à cidade, se desviando primeiramente ao norte de Crato - atingem o município de Cedro -, para somente
corrigir seu itinerário já tarde da noite, quase madrugada. Em um dos vilarejos visitados - São Sebastião (Ipueras) -, a
equipe teve oportunidade de visitar uma feira que estava sendo realizada no local. Nessa oportunidade, a Missão ouviu
um grupo de cabaçal (música instrumental) proveniente da região. Com o grupo foi realizada uma rápida pesquisa
sobre os instrumentos e a música executada. Era o primeiro levantamento musical efetuado pela equipe,
particularmente por Braunwieser e Luiz Saia, após o lapso de alguns dias, desde a partida de João Pessoa:

“(...) 4.6.38 - Acordei às 5 horas e levantei os outros. O Martin andou um pouco e oh! inexplicável! muito
inexplicável! descobriu um desvio possível pra ladeira de pedra que precisávamos subir descendo a
carga.

938
- Cad.de Campo 7, p.20-33. Os grifos são de Luiz Saia.
143

Afinal foi só arrancando algum mato e um pé de cana-físta (cana-fístula) e o carro subiu. O café foi
simples e com bolacha com gosto de barata [sic] por cima.
Enquanto subiam o carro na 1ª ladeira do logradôro, eu e Pacheco fomos ajeitar a 2ª ladeira desse lugar
que pro carro passar só precisou mais de um naco de terra num buraco. Aí o carro passou também.
Paguei ao Boaventura, que por sinal me arranjou umas laranjas verdes, 3$200 + 5$000.
Leite aqui tem, tem, não tem. Hoje cedo um caboco daqui passou por mim com uma cuia dele e eu
perguntei si vendia. Fugiu dizendo que não. O velho me informou que leite tem no Piauí. Água mineral,
[...?] ou outra coisa parecida não há por aqui. Nunca senti tanta sede na minha vida como sinto agora
neste sertão carrasquêro do Ceará (aqui é carrasco o tipo de vegetação). O carrasco é rastêro.
[Nota Lateral: “a diferença entre carrasco e caatinga, pro pessoal daqui, está na altura da vegetação. A do
carrasco é rastêra. Neste carrasco tem xique-xique, mandacarú, macambira. Fachêro não tem.”]
Fome então estamos passando mesmo. Hoje, na hora, eu fui cagar, quasi não caguei porque nada há pra
cagar. só caguei milho e pouco.
Logo depois da 2ª ladeira tivemos um empáio pequeno. O perigo é que o carro está falhando. É no
intervalo deste empáio que estou escrevendo. São 8 e meia. Parece que afinal estamos perto do lugar
chamado Lenço (é um sítio) onde devemos encontrar a estrada que vem de Quixará [?] e que, dizem,
tem tráfego de caminhão pra Crato.
A planta da casa onde dormimos é assim:
[croqui de habitação popular com a inscrição: “As casas desta zona são notavelmente enormes não
surgindo atá agora o detalhe [?] tesoura. O bracinho [?] até agora nem sobra dele por aqui.”]
[Nota lateral: “tiguí = fruta que fazem sabão ( o u não se pronuncia.”]
O caminhão passou por mim que estava escrevendo e parou lá adiante. Quando cheguei mais Pacheco,
disseram que não tinha ninguém tomando conta dele. Ladeira e Martin deixaram o carro com o material
na estrada. Pacheco foi agora lá pra mandar alguém de volta que eu também quero tomar banho no
açude do Cedro.
O lugar onde pernoitamos chama Cedro e as ladeiras Ladeiras do Cedro. Logradô é o lugar pouco atrás
onde passamos o rio que o Pacheco disse que era empáio. O açude do Cedro é particular de João
Salvina.
Madeira de casas: aroêra (esteio e enchementi) (enchementi é o entrançado) cedro: pra porta. Cana físta
pra janela. Marmelero pra ripas. Amarração é feita com cipó verdadeiro. Caibro de marmelêro. Batentes
de baúna. A telha é feita de oleria.
Às 9:00 horas se acabaram as piores atrapalhações nas 7 léguas que [separam] Várzea Alegre a Lenço.
Às 10:30 chegamos ao lugar chamado Contenda onde precisou consertar a estrada pra passar. Tá
fazendo um sol dos mil diabos. O José [calunga] é o tipo do capitão do mato. Solícito e delicado com os
superiores e malcriado com os comandados.
939
Logo depois de entramos na “estrada real” ? encontramos uma casa de fibra (a 1ª aqui no Ceará). Era
muito primariamente coberta e [com] parede de palha de alpiste.
[croqui de habitação popular com a inscrição: “Esta casa é muito pequena e... transparente.”]
Adiante, em Contendas ainda, tivemos que parar um bocado pra conserto da estrada. Por aqui tem muita
criança e as mulheres quasi não andam de vermelho. 940 O elemento negro aqui é muito raro. A
cabelâima do pessoal quando não é holandeza é cabôca.
Paramos pouco adiante numa casa onde soubemos venderem banana!!!!! 941 Aí enganamos um bocado
o estômago. Não resisti mais a sede e tomei da água servida aí na casa. Espero talvez desarranjos no
estômago por causa disso. Aí na casa onde nos venderam banana tinha uma caboca saudável, gordota,
hipersexuada. Com os braços levantados e mãos seguras num varão de balanço, balançando o corpo
farto e arredondado de formas. Me fez esquecer a fome, a sede e a higiene. Ela foi pior do que qualquer
chá de catuaba. Esta catuaba é uma árvore que surge na serra do Araripe. O chá da sua casca, o seu
vinho, dá tesão. Contaram-nos que basta uma pessoa armar a rede debaixo dela pra... armar o circo. Em
Crato fazem um vinho da casca dela. No rótulo desse vinho aparece um velho sentado numa mesa e
uma mulher com a saia levantada aparecendo a liga (não sei porque este desenho parece francês do fim
do século passado apesar de sua feitura ser certamente desta zona de Joazeiro). As “plantáges”
principais continuam ser o algodão, o milho e o arroz. O pessoal - João e Calunga - estão arranjando uma
ladeira da “mulésta”.
Acabados estes apontamentos acima, dormi no leito de um riacho sem nome que estava seco. Depois do
caminhão passado o Ladeira veio me chamar e andamos seguramente 1 kilómetro pra alcançar o
caminhão que estava novamente parado para o conserto de uma ladeira.
Por aqui usam muita alparcáta porém não roupa de couro. Ainda não vi uma destas. Couro de veado tem
muito. Hoje, sábado, devíamos estar, segundo o João, na feira de Picos no Piauí. Ficarei contente se
chegarmos a Crato hoje.

939
- interrogação, aspas e grifo no original de Luiz Saia
940
- Talvez uma referência à prostituição.
941
- No original, a palavra banana está cinco vezes grifada e seguida por treze pontos de exclamação...
144

Foto 6 - Removendo pedras do leito de um rio na viagem de V. Alegre a Crato.


[croqui esquemático]
Às vezes as estradas do nordeste tomam o leito de rios. Esta fotada por exemplo. É um rio que está seco.
[nota lateral: Este riacho chama Passagem aos cavalos]
O seu leito é por demais empedrado. Hoje mesmo parece que já passou um carro de passeio por aqui.
Dizem que há dias passou um carro carregando porcos. Não sei si por esta estrada. A gente precisa tirar
pedras do leito do rio pro carro poder passar. O calor está danado. A sombra é um bocado mais
agradável. Há tempos estou pondo reparo que a diferença de temperatura entre o sol e a sombra aqui no
nordeste é bastante grande. À noite então por esta zona do Ceará até faz frio. Mas qual seria a causa da
tão notável diferença entre o sol e a sombra? A pouca densidade atmosférica? que também causa uma
conjura extraordinária ao céu e dá uma visibilidade tamanha? Ou seria mesmo da consistência do
terreno? Este mesmo terreno incapaz de reter a água, que escorre muita na chuva e vai toda imbora
deixando a terra seca. Parece-me que esse mesmo terreno com o “envisagement” [sic] da vegetação tem
incapacidade de comunicar o calor.
Outra coisa: as pedras que temos encontrado nos caminhos e que frequentemente precisamos partir ou
esfarelar, parecem podres. São quasi todas de acumulação aluviônica, apresentando o mesmo aspecto
de muitas chapas coladas uma a outra que se nota nas micas. Nestas pedras, basta uma bundada da
enxada que elas se quebram facilmente; às vezes seguindo a direção das chapas que formam a sua
estrutura e outras vezes, menos frequentemente, se esfarelando toda que nem estivesse podre.
942
Nunca na minha vida senti tanta fome e sede. Nem em 1932. Também estou um bocado sujo porém
943
nem tanto de corpo que ontem tomei um banho de rio, mas a roupa está dominada de sujeira. O
paletó branco está em estado desanimador e fedendo. Ainda estou defluxado um pouco.
Plantação aqui é algodão e milho. Devemos estar bem perto do tal lugar chamado São sebastião que
devia ser duas léguas distante de Contenda. Me parece que, si não andamos 2 léguas, pouco falta. A
situação está se tornando desanimadora. Nunca vi moscas tão pouco medrosas como as que estão me
rodeando aqui. A gente precisa encostar a mão nelas pra fugirem. Abanando só elas não ligam a mínima.
[croqui esquemático com a inscrição: “Croqui do alto da serra que tem antes de São Sebastião e logo
depois do riacho Passagem dos Cavalos”).
[Notas de Martin Braunwieser - notação musical de grupo de cabaçal, com os seguintes observações:
Marcha; Cabaçal: 2 bifes [sic], 1 zabumba, 1 caixa ou tambour / marchas, tangos, valsas, choros,
mazurcas, baião]
Chegamos às 16 horas em S. Sebastião (nome axial [?] de Ipueras). A localidade estava em feira. No
centro da rua um barracão de 5 X 10 ms. sem paredes. Dentro dele a feira, uma banda de Zabumbeiro
(também chamam de cabaçal) e um porta bandeira tirador de esmola. Esta banda é composta de uma
zabumba, uma caixa e um “casal de píferos” (2 pifes). De vez [em quando] a banda sai tendo na frente o
porta bandeira. Dão uma volta em torno da barraca central e voltam a sentar no lugar onde foram fotados.
Num dos lados da rua as casas atingem espanholamente a ponta da calçada com alpendre. Surgiu aqui
o detalhe léque [sic] visto em S. Paulo. Tem 2 capelas desinteressantes o lugar. Comemos num hotel
vagabundo. Comemos bastante e até abacaxi tinha. Comemos a valer. São 5 horas e já está
anoitecendo.
Gastos em São Sebastião - 4 cigarros 4$800 (um pro Martin, um por Ladeira, um pro Zé Calunga e outro
pra mim - Total (com nota) 37$800 / águas / Dado ao pifeiro 1$000
Partida São Sebastião: 17 horas e 50 min.
Mais ou menos às 19 e 15 minutos, subindo uma ladeira do lugar Arrodeadô, o caminhão não aguentou a
ladeira porque vinha em segunda [marcha] e, voltando, quasi entrou numa barroca à esquerda. O Martin
deu um pulo só mesmo de gente muito ágil que ele não demonstra ser.
Numa tentativa de retirar o carro dessa enrascada aconteceu o mesmo vindo o carro [parar] em uma
posição parecida... e mais perigosa ainda. Si não tivesse ali uma pedra que mandei um muleque buscar
teríamos nos fudido porque o cêpo que o calunga colocou debaixo da roda traseira foi por esta atirado de
lado na ré do carro.
Resolveu-se então descarregar. Eu fiquei um bocado ali e vim me informar nesta venda umas 50 braças
adiante. Me informaram que já andamos 2 léguas e faltam ainda três que tiraremos numa hora.
A plantação daqui é arroz e milho. O algodão só tem nos lugares mais altos e aqui é um baixio. (...)
paguei 4$000 aos que ajudaram
Às [em branco] horas saídos deste empáio, rumamos pra diante. Uma ou outra ladeira sempre
aporrinhava a gente. Teve-se até que consertar a estrada em certos trechos. Andamos léguas e léguas e
nada de findar as 3 léguas que segundo disseram faltavam pra Crato.
5.6.38 - A meia-noite estávamos a caminho de Crato e nada desta cidade chegar. Uma chuva
aporrinhante, que grudou sujeira no vidro do carro e molhou a roupa do Zé Calunga.

942
- Ao que tudo indica, Luiz Saia participou ativamente do movimento constitucionalista de 1932.
943
- Banho tomado no riacho da Fortuna
145

+ ou - 24:40 encontramos uma estrada que desembocava naquela que vínhamos. Não houve outro meio
sinão perguntar acordando gente dali. Afinal nos disseram que estávamos perto e daí 20 minutos
entrávamos em Crato. A arquitetura de 1 hora antes da chegada se transforma bastante: a-) se torna
pequena a casa b-) a técnica do pau-a-pique se junta também a da palha. Enquanto antes o alpendre
assim: [croqui esquemático] surge sistematicamente, aqui ele vai desaparecendo para dar lugar a casas
de palha e pau-a-pique onde o oitão 944 (cumiêra) fica perpendicular à entrada.
Hoje durante o dia, depois de Lenço, encontrei uma construção muito interessante pela riqueza de forma
e pelo agenciamento da varanda enorme. É um caso certamente individualista porém interessa como
curiosidade. Era mais ou menos assim:
[croqui e planta baixa de habitação popular]
Chegados em Crato rumamos pro Crato Hotel. Parece ter boas instalações. Pelo menos tem rede.
Comemos um doce de laranja em calda e bebemos água mineral. São 2 horas e vou dormir. Amanhã
partiremos talvez às 9 horas da manhã. (...)”. 945

Ao contrário do que foi planejado por Luiz Saia, a Missão não saiu no horário previsto, partindo de Crato com
destino a Campos Sales - distante cerca de 100 quilómetros - somente próximo do meio-dia de 5 de junho, domingo. O
novo atraso foi provocado por problemas não especificados com o caminhão da equipe. Devido a isso, a expedição
somente chegou ao município de Araripe - cerca de 80 quilómetros de Crato -, onde realizou o pernoite. Em Araripe,
Luiz Saia encontrou-se com autoridades locais. Além disso, pôde obter informações fornecidas por um viajante de
Fortaleza. O conhecimento adqüirido pelo Chefe da expedição sobre a região do interior do Ceará permitiu a Luiz Saia
prestar ajuda a esse viajante da capital, colaborando com ele para a elaboração de um roteiro de viagem pelo interior
do Estado. Ainda em Crato, Luiz Saia enviou um telegrama para Mário de Andrade em São Paulo, comunicando o
andamento da viagem:

“(...) Me levantei às 7:30 horas e fui chamar o pessoal. O João saíra para ver qualquer coisa a respeito do
caminhão. Agora, 9 horas, só estamos a espera dele pra partir.
Gasto Hotel 37$700 + 3$000 gorgeta.
Vou telegrafar daqui a Mário nestes termos: Mário de Andrade. Rua Lopes Chaves nº 546 - S.Paulo - Est.
946
de S.Paulo. Viajando S.Luiz. Tudo bem. Saia.
Partida 11:30 rumo Campo Sales.
Foto 7 - Ceguinho de Crato que nos deu toada de pedinte (o Martin tem o caderno onde está o nome dele
posto por mim juntamente com a letra da tal toada. Ele deu as informações mais ou menos
medrosamente. É analfabeto. Caboco mestiço)
Às 13:50 estamos subindo a serra. Subindo é uma maneira de dizer porque estamos parados de frente à
venda de Campo Alegre. Dentro dela um magote [?] de 10 pessoas em diversas posições, estão
absolutamente estáticas [?] ouvindo um deles que está contando uma história qualquer baixinho e
devagar. Vagarosamente. Aqui tem uns enormes pés de café.
Às 14:10 entramos nas ladeiras das guaribas (que vem desde o lugar da nota anterior onde tinha pés de
café). Logo depois destas ladeiras está o platô da serra. Daqui se avista Joazeiro.
Aqui neste lugar tem um posto de expurgamento. Isto porque há semanas houve 5 ou 6 casos de peste
bubônica em Pernambuco - na Serra da Inveja. Por aqui há banana muita. Mamão alguns. Água como
sempre é suja; aqui com alguns indícios de sujeira porém não chega a ser colorida.
A cobertura das casas é de palha de coco morondongo [?] e palmeiras macaúbas. Usam mais a palha de
coco morondongo [?].
[croquis com a inscrição: “Plantas de casas avistadas pouco depois da saída de Crato, muito antes
daqui.”]
A mulher de Crato é muito boa. Tem negro na zona e a mulher rural também é bastante apetitosa. Não
usam quasi o vestido vermelho.
Nas tropas muitas de burros que encontramos por aqui, estes vão amarrados de dois em dois. Os carros
de boi de roda fechada surgem por toda a Paraíba e pelo Ceará (nesta zona percorrida também). As
mulheres usam flores na cabeça. Tem jurema por aqui. Do outro lado desta Serra do Araripe fica novo
Exu [município ao norte do Estado da Bahia].
Nesta Serra tem uma nascença da Batateira [sic] que vão usar para a usina hidráulica para fornecer força
elétrica para Crato. Tem também engenhos movidos a água por estes brejos ao pé da Serra do Araripe.
Tem mamona por aqui. Tem jatobá (árvore grande muita). Tem aquela frutinha das cercas de São Carlos
que eles chamam melão [?]. Tem tabóca (bambu da índia em São Paulo). No posto de expurgo daqui
jogam sueca.

944
- Segundo o “Novo Dicionário Aurélio” Oitão - “(...) cada uma das paredes laterais da casa, situadas nas linhas de divisa do
lote (...)”.
945
- Cad.de Campo 7, p.33-50. Todos os grifos são de Luiz Saia
946
- Corresp.Doc.48 - de Luiz Saia a Mário de Andrade, Crato, 5 de junho de 1938
146

O cipó caitetú [sic] é usado aqui pra amarrá cerca. Por aqui também tem caçuá feito deste cipó caitetú.
Esta planta tem em São Paulo:
[croqui com a inscrição: “flor do cipó caitetú - tamanho natural”]
16:10 - Paramos no lugar chamado Moita (antigamente chamado Cajuêro) o dono da casa diz
invariavelmente: -”aqui é a casa, Moita é ali onde está o carro”.
A zona é chamada Serra. Daqui a 2 léguas e meia desce pro Sertão.
A florzinha encarnada que beira a estrada é churiço de moça. Árvore grande chama banhêra (de cuja
fruta tem um caroço coberto duma manteiga, de onde vem o nome de banha de galinha). O arvorêdo de
50 m. nos campos daqui é velâme e malsa [sic]. Por aqui tem cutia (que come a banha de galinha da
banhêra)
Foto 8 - tipos de meninas de Moita (platô da Serra do Araripe)
Chegamos às 19:45 em Araripe. O distrito está em festa. Um palanque térreo armado na rua e estão
leiloando 2 copos de cerveja a 1$500. No Bar tem bilhar e rádio de pilha - Carmem Miranda. Aqui em
Araripe também surge o cuméço [comércio] quadrangular nas ruas. Não vi esse cuméço por dentro
porém me informaram que tem alpendre em volta.
Logo depois da nossa chegada, mandei arrumar a bóia. Pacheco e Ladeira foram num cruzeiro onde
nada arranjaram. Fui procurado pelo delegado que depois foi chamar o juiz. Coversa burra deles.
Sr. Juiz Distrital (Comarca de Assaré) Vicente Gonçalves de Figueiredo. Se prestou a dar informes a
respeito do folclore local.
Estive com um viajante de Fortaleza estudando pra ele um plano de viagem por toda esta zona do Ceará.
Fui dormir meia-noite. Reunião boa. Depois de entrar no quarto saí pra ver luz e vi a mulher da pensão
947
em trajes menores correndo. Dormi bem. (...)”.

Em 6 de junho, segunda-feira, a equipe partiu de Araripe, passando por Campos Sales, com o objetivo de atingir
o município de Picos, no Piauí, ainda naquele dia. No entanto, chegando durante a noite em Jaicós - distante cerca de
50 quilómetros de Picos - Luiz Saia decidiu que a equipe realizaria o pernoite nesta cidade partindo na madrugada do
dia seguinte para Picos.
Durante a viagem, transcorrida sem maiores problemas em relação às condições de rodagem para o caminhão
da equipe ou de quebra do veículo, com poucas interrupções, Luiz Saia deu continuidade em suas anotações sobre
arquitetura popular, técnicas de construção e diferenças regionais, tipos humanos, vegetação, etc como vinha
sistematicamente realizando. Antes da partida de Araripe, na manhã de 6 de junho, a surpresa do Chefe da Misssão
ao presenciar uma festa realizada no local. Já na cidade de Jaicós, no Piauí, Luiz Saia conseguiu obter informações
etnográficas de interesse com um outro viajante da região:

“(...) Acordei de manhã, 5 horas, a chamado do João. Daí a pouco rompeu furiosa a bandinha local (não é
local, é de Campos Sales) num dobrado rendidor. Fogos barulhentos encobrem [?] a banda. A musicaria
dos galos idem. Que farra!!! Tomamos café, paguei a conta (30$000) e estamos esperando consertos no
carro pra partimos já...
Foto 9 - rapúca (cuméço ou quadrado do mercado) de Araripe. A feira “é” aqui dentro.
Tem 2 qualidades de gerimum aqui: gerimum de leite (o interior é mais encarnado e saboroso). Chamam
também de abóbra [sic]. É o mais achatado e de casca mais clara. Gerimum cabôco. Tem carne escuras,
é de forma mais alongada e casca mais escura verde puxando a marrom.
Usam romã pra remédio (chá ou casca mastigada pra gargarejo) pra ferida usa a massa.
Coco macahyba (notar a pronúncia do y). Fazem rosários comíveis de coco catolé.
[croqui de figura feminina com a inscrição: “Retrato tirado a craion em Araripe (pensão)”].
(...)
6-5-38 - Saída de Araripe 7 horas em ponto. Numa estrada má (sem ver sinal à de V. Alegre nem de
longe) fizemos o trajeto Araripe - Campos Sales em 2 horas em ponto chegando a C. Sales às 9 horas. A
cidade de Campos Sales é completamente desinvernada [?], desértica e uma só árvore. [?] Venta
arenosamente. Surge o quadro alpendrado do comércio.
Esta zona por onde passamos já está bem seca pois depois de abril ou maio não chove mais. O inverno
este ano foi pouco. A arquitetura da zona percorrida, sem ter a vastidão da notada anteriormente, é
avantajada. Salvo raras exceções o alpendre fica na caída da água (influência portuga). A entrada pela
porta do oitão quasi não se verifica por aqui si não esporadicamente. A técnica predominante em absoluto
948
é o pau-a-pique (falo palestra).
No platô da serra do cariri tem aspectos interessantes na arquitetura. As casas são de entrada na frente
do oitão, este sendo de um comprimento notavelmente grande. Sem janelas de lado. Quasi
sistematicamente o primeiro lanço de divisão é vazio e serve de alpendre. Também surge comumente 2
casas juntas assim:
[croqui com a inscrição: “comprimento vasto”]

947
- Cad.de Campo 7, p.50-56. Os grifos são de Luiz Saia
948
- Certamente palestra planejada para a Sociedade de Etnografia e Folclore após o retorno da expedição à São Paulo.
147

De vez em quando neste platô aparece a latada. Em Araripe o Pacheco indo ao cruzeiro viu lá uma
cabeça [ex-voto] [com] característicos de regressão mental. Foi desprezado por estar podre.
De Campos Sales a Socorro a arquitetura varia um bocado. Aqui surge um tipo de acréscimo na casa
deste tipo:
[croquis de habitação popular]
A vegetação desta zona é de caatinga. Está tudo completamente seco. É verdade que está proibida a
demagogia de dizer que não tem folha verde. Isso não. A perêra não seca. O xique-xique, o mandacaru,
o fachêro e a coroa de frade estão verdes também. A vegetação absolutamente predominante é a
umburana. A beira estrada quasi só si vê dela. O marmelêro é abundante e seco. O angico e a favela
surgem não tão frequentemente. Tem uma “barba de de bode” nas baixadas que chamam de capim... De
vez em quando, porém muito raro, surge a latada por aqui.
Entramos no Estado do Piauí precisamente às 9:45 no lugar chamado Lagoa Seca. Mais pra diante tem
um lugar chamado Capela.
Se vê muito por estas estradas o sertanejo... é antes de tudo um forte. No Piauí vimos um sertanejo
funcionando perto duma cerca.
No caminho vimos bandos de gangá [?] (parece piriquitin' porém é maior e todo verde por cima). Aparece
o tetéu (pernalta e cinza - este é o que dorme com o pé na cabeça. Quando cochila o pé escorrega e ele
acorda. Bicho besta). Tem o pinica-pau. A Maria de Barro. Tem muito carnêros por aqui.
Foto 12 - Túmulo que fica atrás da igreja de N. Senhora do Perpétuo Socorro.
[croqui esquemático com a inscrição: “Colheita de um menino da N.S. daí e uma cabeça (milagre)”]
Saída de Socorro pra Boa Esperança 13:30. A viagem foi + ou - boa. Por caatinga e sertão. Às vezes a
caatinga nesta zona nesta zona se parece com a de Pernambuco e em certos trechos com a do sertão
da Paraíba. [...?] Quasi não tem casas por aqui.
Partida de Boa Esperança 16:30 - idem idem.
Chegada a Jaicós 18:10 (10$000 transporte de meninos de Socorro pra Jaicós). Esta cidade é por
demais interessante. Tem um mercado com alpendre por fora em três lados. A praça é em desnível,
quadrada e grande. Na frente a igreja já centenária tem uma plataforma alta que termina em escadaria
em frente da qual tem um cruzeiro. A cadeia é quadrada e assobradada.
Gasto Hotel 20$000.
Aqui desaparece a ventilação por cima. Partida às 19:40.
[croquis da Igreja de Jaicós com a inscrição: “Igreja de Jaicós (Centenário em setembro de 1937)”]
A vista da promessa que o João me fez de estarmos amanhã, às 8 horas, em Picos, adiei nossa partida
para a madrugada. Provavelmente sairemos às 5 da manhã. Dormiremos aqui mesmo em Jaicós, na
pensão onde jantamos arroz, macarrão, ovos, carne de sol, carne de porco, perú, água natural. Eu comi,
com Ladeira e Martin, um mamão pequeno e verde. A dona da pensão é uma cinquentona (cálculo
paulista) feia e simpática. Disse na minha fuça que ficava muito contente quando surgiu a oportunidade
de hospedar gente boa. Antes do jantar estive conversando com um viajante admirador do Leonardo
Mota. Divergimos. Mais tarde, depois do jantar ele conversa com Pacheco entrando eu na conversa ele
se mostrou submisso e cordato. Certamente o Pacheco informou a ele a que vínhamos. Ele me deu
alguns informes. Disse por exemplo, que há dias ouviu em Quixará (Ceará - perto de V. Alegre) uma
cantiga de adjunto (mutirão) na colheita do arroz aí. Umas 30 moças no coro e mais uma só voz
949
masculina. No extremo norte - Amazonas - diz ele, o canto de trabalho é ajurí. Ele me falou da
miragem [?] das 7 cidades existente no norte deste Estado ou no Ceará, não sei mais agora. Em São
Luís, diz ele, os negros se localizam na zona da estiva. Na cidade baixa tem samba e catimbó em São
Luís. Em Fortaleza, também tem catimbó. Talvez mesmo aqui nesta zona de Picos e Jaicós se encontre
alguma coisa a respeito. Tenho perguntado a respeito de romance sertanejo e, até agora, nada. 950
Eu ia me esquecendo de um detalhe interessante de porta de casa rural na zona de Campos Sales -
Socorro. É o seguinte: numa casa de taipa (pau a pique em São Paulo), coberta de telha (como
sistematicamente usam aqui), a porta é constituída de uma espécie de cerca de vara onde havia um só
varão no meio e os batentes servindo de sustento pra tensão do encurvamento das varas.
[croqui do detalhe de porta]
Fui pra rede. Estou ouvindo rádio aqui - Rádio Inconfidência de Minas. (...)”. 951

Conforme o planejado, a Missão saiu de Jaicós com destino a Picos na manhã de 7 de junho, terça-feira. No
entanto, logo após a partida, o caminhão de João Gomes de Brito quebrou novamente, obrigando a equipe a retornar a
Jaicós para conserto do veículo. A expedição permaneceu nessa cidade até a madrugada de 9 de junho sendo
impedida de prosseguir a viagem a São Luís do Maranhão devido a demora nos reparos necessários para o veículo.

949
- Segundo Luís da Câmara Cascudo (“Dicionário do Folclore Brasileiro”), Ajuri “Aiuri, ajuntamento, reunião (rio negro,
Amazonas). É a reunião que se efetua a pedido do dono do trabalho, que precisa de adjutório para levar a efeito algum
trabalho, que precisa fazer-se no menor tempo possível (...)”
950
- Lembramos que Mário de Andrade havia instruído insistentemente a equipe da Missão para coletar romances sertanejos.
Apesar disso, nenhum romance foi resgatado.
951
- Cad.de Campo 7, p.56-68. Os grifos são de Luiz Saia.
148

Este fato, que atrasou ainda mais o cronograma da Missão, foi relatado em pormenores pelo Chefe da expedição que
expressou também suas preocupações com o atraso da equipe.
Para aproveitar o tempo, foram realizadas ainda naquele dia visitas aos edifícios da igreja e da cadeia de Jaicós.
Além disso, a Missão encontrou-se com o vigário da cidade - um alemão de nascimento, “adiposamente nojento com
rádio, vitrola, geladeira”. A presença do padre alemão e do seu rádio foi registrada várias vezes no diário de Luiz Saia.
Enquanto permaneceram na cidade, os componentes da Missão, antes de dormir, ouviam o aparelho radiofônico
soando à distância, quebrando o silêncio natural de Jaicós. Luiz Saia obteve também informações sobre um grupo de
reisado (ou bumba-meu-boi) atuante na região. Na noite de 7 de junho, Luiz Saia e Martin Braunwieser encontraram-
se com um dos integrantes do grupo de reisado, realizando pequena pesquisa sobre a manifestação:

“(...) 7.6.38 - Às 4:15 da madrugada o João veio me acordar pra sairmos. Acordei bem já que estava meio
acordado por causa da ventania que parecia tempestade. Às 5 horas nos levantamos apressadamente e
depois de café rapidíssimo partimos. Mais ou menos 2 kilómetros saídos da cidade depois de uma subida
desimportante, notou-se qualquer desarranjo no caminhão. A verificação mostrou que tinha se torado a
bomba d'água arrebentando o radiador. A situação era desanimadora. Fala-se em 5 dias ou mais. Voltou-
se pra Jaicós e parou-se em frente a casa do padre local. Aí verificou-se que nada estava torado e que a
hélice apenas havia escapado machucando seriamente o radiador. Toda a desgraça passou a se resumir
no radiador. Depois de um bocado de tempo perto do carro voltamos pra pensão pra tomar um café. (...)
No café tomamos leite e café acompanhado de cuscús de arroz. (...) Escrevi um bocado e depois fui pro
caminhão trocar o filme da máquina que se acabara. De volta deste serviço com Pacheco fui fotar a igreja
e visitá-la.
(...) Ela é de 1837. (tem inscrição de data na frente.) Por dentro ainda conserva parte da fatura primitiva
tendo entretanto santos novos e bestas. Nem uma grande imagem. Todas medíocres. O teto da capela
mor é assim [croqui esquemático]. Desenfeitado. Nem um detalhe de beleza e nem de interesse. Os
castiçais que são as peças de madeira mais trabalhadas são feios e deselegantes (conservando aquela
mesma linha catiçalal [sic] de São Paulo). Os púlpitos (só um dos dois existentes está funcionando) são
circulares e com decoração pobre, constando de iniciais [?] entrelaçadas (as mesmas encontráveis nem
teto de capela-mor em Recife) rodeadas por 2 ramos de folhas irreconhecíveis, tudo em alto relevo de
talha. A Santa [...?] apresenta uma bonita coroa de prata. Por falar em prata, me informaram aqui [que]
em Vieiras tem uma concentração de trabalhadores em prata. A prataria daí é muito boa, dizem, e
bastante procurada. Talvez esta coroa venha dalí. Ela é boa. Esta igreja tem muitas portas abríveis [sic] e,
por uma localização num alto, quando elas se abrem se enxerga a cidade em várias direções com boa
visibilidade. Tem um jeito talvez asseada (não deixa de ter morcêgos) e é certamente muito ventilada,
muito varrida pelo vento. Esta noite ventou que se ouvia da rede como si fosse barulho de chuva. (...)
Depois da igreja minha atenção se voltou pra cadeia que é uma prédio extremamente interessante pelo
aspecto de limpeza (falo arquitetonicamente), variedade e elegância que ela tem. É um prédio do século
passado, retangular quasi quadrado e assobradado. O equilíbrio das proporções é perfeitamente
realizado como poucas vezes tenho visto. Tem sobretudo um aspecto de cadeia dificilmente encontrado.
A de Pombal, por exemplo, é exageradamente acachapada. É bonita, sem dúvida. O telhado grandão é
predominante no todo. Mas é acachapada. A de Mamanguape é besta e pernosticamente imperial.
Pintada de vermelho. Deselegante. Esta de Jaicós é cadeia séria, branca [?], honestamente cadeia.
Um outro prédio de interesse aqui em Jaicós é uma casa que tem um portal croquizada na p.72 deste
caderno. Infelizmente não consegui a divisão interior dela pois a dona estava doente. Porém uma coisa
verifiquei: a arquitetura residencial de Jaicós apresenta sempre a entrada com um pequeno hall de
comunicação (como aqueles verificados em Itú - São Paulo) - porém sem a escada de subida. [sic] [...?]
praticamente térreos. A subida sistematicamente se verifica na calçada que é sempre alta e, às vezes,
com escadas invadindo a rua.
A planta da pensão onde estamos é assim:
[planta baixa com as inscrições: “C,D,E,G = quartos / M = Sala refeições / F = Sala visitas / N = Alpendre /
B = Depósito / A = Cozinha”]
As paredes que separam os quartos os corredores atingem o teto porém as que separam os quartos
entre si atingem a altura do pé direito mínimo. A cozinha não tem fechada a parede de fora. Esta o é só
até meia altura e depois tem um gradeado de madeira. A casa tem, como todas as urbanas daqui (menos
a cadeia) 2 águas desenvolvidas (portuguesamento) na direção da frente.
Ainda antes do almoço fui ver o trabalho que estava se fazendo no radiador - que tinta filha da puta esta
com que estou escrevendo - quando lá cheguei estavam acabando de encher os buracos do radiador
com cimento. A composição da argamassa era de 1,5 X 1. A areia era suja e a argamassa estava mal
amassada. Fiz outra argamassa de 1 X 1 bem amassada e coloquei no radiador. Esperava a pega em
1/2 hora. Sendo + ou - 11 horas disse ao João que iria experimentar pondo água só às 2 horas. O
soldador me mostrou um couro de onça caçada a 12 léguas. É um couro enorme e bem escuro com
bolas pretas. A cabeça desta onça está com [...?]. Têm 4 [couros] destes mestres de... carnivoridade.
Dizem que um homem não anda sozinho por certas zonas daqui que é, na certa, apanhado por onça.
Quando uma onça consegue caçar um animal grande - homem, bezerro - carrega ele nas costas e
149

depois de comer um bocado vai escondê-lo. Se descobrindo uma carne assim escondida pode-se tocaiar
a onça. Na certa que ela volta ali. Batata. Aqui na casa do soldador ainda tem uns chifres de veado
galheiro que veio de Goiás.
Almoçamos às 11:30. Macarrão, feijão, arroz, ovos, carne de galinha, banana e café.
Depois do almoço dormi um bocado indo depois ver o caso do radiador. Quando lá cheguei, 13 horas, o
João já havia provado por água e, como não havia esperado a hora marcada por mim... vasou água e
então tiraram todo o cimento posto e o Calunga João Bianô fez uma argamassa só de cimento e água
que estava acabando de colocar no radiador. Aí fiquei um bocado com o pessoal. O Bianô garrou contar
façanhas [?] sem graça e um rapaz daqui comentou dizendo que contando histórias do trancoso de dia
nasce rabo no contador. Fiquei chateado pois parece que esta viagem se atrasa cada vez mais.
Certamente não chegaremos em teresina sinão daqui 3 dias e em S. Luís no mínimo no dia 11 ou 12 [de
junho]. Está ruim.
Além do cimento colocado no radiador, se soldou alguns trecos. Só amanhã de madrugada se vai
verificar si ele ainda vasa. Saindo daí fui com Pacheco e Ladeira visitar a bica onde a gente da terra tira
água.
[croqui esquemático, com a inscrição: “bica - Rocha em depósito horizontal”]
As mulheres do Piauí são boas e bem recheadas. Tem negro por aqui. Uma menina mulata que voltava
da bica era de um sexo absolutamente total. As formas dela pareciam querer rasgar o vestido. Bunda
separada e grande. Apititosa. São em geral, de flancos redondos se verificando certa secura só nas mais
velhas. Secos e enxutos de carne são os homens daqui, exceção feita ao vigário alemão que é
adiposamente nojento com rádio, vitrola, geladeira, macaquinho [?], ouvindo hora sul-americana em
ondas curtas no seu rádio cuja bateria é carregada por um mariano local (uma hora de trabalho girando
uma manivela pra 5 horas de funcionamento da bateria). Na visita que à noite fizemos a este padre, ele
dobrou alemão com o Martin e informou que as imagens velhas [da igreja] foram queimadas. Aí consegui
informar que tinham o uso do reisado (bumba-meu-boi) no lugar, porém meio desaparecido. Por
indicação do mestre da banda local e em companhia dele fui até a casa de um tal Alfredo que mora num
mucambo arrebentado das redondezas. Este Alfredo nos levou ao pai dele que veio comigo pra nos dar
umas toadas de bumba-meu-boi daqui que chamam de reisado. Em Picos, dizem aqui, tem reisado
funcionando e Floriano tem também reis de Congo. O padre local pediu que o Martin levasse um
embrulho pro coadjunto da igreja em Picos. Talvez nos abra mão de alguma imagem interessante por ali.
Até agora nada consegui de romance sertanejo apesar da procura insistente. Tenho em vista a compra
de um couro de veado (querem 7$000) que está todo furado de chumbo e curtido. Agora resolvi comprar
o couro de viado mesmo que não seja curtido pois em S. Luís consiguirei facilmente (dizem aqui) curtí-
los. O couro de onça, apesar de não estar a venda, foi avaliado em 50$000. Durante todo o dia ventou
bastante. Este lugar é bastante seco e também desabrigado. Distante 3 léguas daqui tem um cruzeiro
onde tem milagres (o padre disse que vai mandar queimar). Por divertimento e passatempo tenho
brincado um bocado com o endó-tirírí que eu estou fazendo força pra me lembrar onde ouví ou lí.
952
Ninguém sabe dele. Depois do jantar (6 horas) visitamos o padre, busquei o cantador do reisado, vim
pra pensão com ele e depois disso fui fazer uma visita ao caminhão pra, na volta, escrever este trololó.
Todos estão dormindo e se ouve o rádio fora na rua. Vou olhar a rua e voltarei pra dormir. Fim do dia
7/6/38. (...)”. 953

O cantador de reisado - “(...) Antônio Boiêro, 50 anos aproximados, moreno cabôco, analfabeto (...)” -, foi
documentado em uma fotografia, 954 porém Luiz Saia não conseguiu fazer seu desenho pois foi impedido: “(...) não
deixou tirar croqui da cara dele (...)”. Ao contrário do esperado, Martin Braunwieser registrou somente uma melodia -
com 4 textos e algumas variações rítmico-melódicas - de reisado entoada por Antônio Boiêro. Em um de seus
relatórios entregues à Discoteca após o término da expedição, Braunwieser procurou justificar relatando que, “(...)
como o cantor tinha cantado há anos as toadas de Reisado, ele não se lembrava mais delas no momento. Pensei que
o cantor ia cantar várias toadas diferentes, mas verifiquei que se tratava de uma toada apenas, com quatro estrofes, o
que também o cantor afirmou. Copiei [Transcrevi] a toada do Reisado tal qual como foi cantada e juntei a toada assim
como devia ser, segundo o cantador (...)”. 955 Os textos da melodia foram também anotados por Luiz Saia em seu
diário. Ao cantador, foram oferecidos 2$000 réis. 956
Em 8 de junho, quarta-feira, a Missão foi novamente impedida de prosseguir sua viagem pois o conserto do
radiador do caminhão ainda não havia terminado. Mesmo preocupado com o atraso no cronograma da expedição,
porém sem nada a fazer para adiantar o conserto no veículo, Luiz Saia decidiu realizar uma visita ao cruzeiro da região
- “distante 3 léguas” - em busca de ex-votos, em particular, cabeças de madeira. Nesse passeio, Luiz Saia foi
acompanhado por Benedito Pacheco e um guia; todos montados em lombo de burros alugados para o trajeto.

952
- Não foi possível identificar a brincadeira de Luiz Saia.
953
- Cad.de Campo 7, p.69-87. Os grifos são de Luiz Saia
954
- Documentos originais da MPF: Foto 747
955
- ALVARENGA, O. (Org.) - op.cit.1946. p.337-339. Coleção Martin Braunwieser, melodias 486-487, Jaicós, 7 de junho de 1938
956
- Cad.de Campo 7, p.75-76. Acervo Histórico DPM: T85P9, D35P2
150

O grupo partiu de Jaicós pela manhã retornando somente no final da tarde. Apesar do empenho, poucos objetos
de madeira foram considerados aproveitáveis e somente três foram resgatados, causando grande frustração no Chefe
da Missão. Apesar das observações sobre a geografia e vegetação típicas da região, o passeio ao cruzeiro foi
considerado uma “viagem perdida!!!”. De volta a Jaicós, Saia verificou o andamento do conserto do caminhão,
observando que restava pouco para finalizá-lo. Mais animado com a possibilidade de partida, Luiz Saia conseguiu
obter informes sobre os horários de trem que partiriam de Teresina a São Luís do Maranhão, planejando chegar na
capital do Piauí no sábado, 11 de junho. Como será visto, isto não ocorreu:

“(...) 8/6/38 - Às 6:30 me acordei e soube por Ladeira que o João já havia saído. Às 7 me levantei e saí da
cama. Esta noite não ventou tanto. Tomei café (com leite e duas espécies de bolinhos, um parecido com
sequilho e outro como o doce chamado bomba). Depois do café fui ver em que condições estava o
arranjo do radiador. Lá chegando encontrei o João Bianô fazendo outro concreto que o colocado ontem
não dera resultado. Fiquei positivamente puto da vida e saí de lá com intenção de aproveitar o dia de
qualquer maneira. Fui arranjar cavalos porém logo verifiquei ser muito difícil. Me informaram que a única
pessoa que poderia alugá-los era um comerciante que, indo eu lá e indagando, me informou que os
cavalos dele estavam a 3 léguas do “má”. Voltei pra frente da pensão. Aí a dona da pensão estava
fazendo força pra arranjar cavalos pra mim. Um cavaleiro parou em frente de uma casa pouco acima da
pensão. Perguntei a ele se ele queria alugar o cavalo. Me respondeu negativamente pois estava de saída
pra viagem. Estava mesmo desanimado de encontrar animais pra ir ao tal cruzeiro quando o cavaleiro
que parara pouco antes alí, veio me oferecer a sua cavalgadura e outras duas que arranjara por... preço
exortativo. 30$000. Fiquei puto com a exploração pois como vim verificar depois o preço era alto demais.
O costume é alugar um animal por 5$000 por dia. Afinal chegamos a acordo por 24$000. Às 8:30 horas
saí com Pacheco e mais um guia - João - pro lugar onde está localizado o tal cruzeiro onde dizem ter
muitas cabeças. Viajamos em 2 burros e uma burra. Eu vou num burrinho preguiçoso e desanimado.
Catei um saco no caminhão e saímos. Logo antes de sair da “rua” resolvi mudar o estribo com o qual não
me dei bem pois o apoio possível era só nas pontas dos pés. Este tipo de estribo, com cara medieval, é
muito usado aqui. É de metal e apresenta a seguinte forma: [croqui esquemático]. Me parece de cobre.
Mudei o estribo e... saímos da “rua”. O nosso guia, que me passara o estribo da sela dele, passou em
casa dele pra pegar sela própria. Além de uns mulequinhos mestiços que estavam em baixo da latada, 2
meninas surgiram à porta e janela. Uma pequena de 7 a 10 anos, bonitinha e mestiça, outra moçoila,
magra, com seios fortes, linda de rosto... e cuspindo de lado. Porém linda de rosto e de olhar sincero e
carinhoso pra mim.
Bom, partimos pra logo entrar numa caatinga que nunca mais se acaba. O terreno é, em princípio, uma
vastíssima planície arenosa. A vegetação sobe a 2 e 3 metros de altura, muito seca e quebradiça. A
957
predominância é de jurema. Tem jurema que até parece ser aqui a “cidade de jurema”. Depois vem o
marmelêro, o perêro. Algumas umburanas. Cactus xique-xique, mandacaru (este nunca seca. O gado
come este cactus), fachêro (fazem doce dele), macambira, coroa di frade, rabo de raposa (este cactus é
fino, espinhoso e comprido - só apareceu aqui - antes ainda não o encontrara). A palmatória minúscula
que vimos encontrando no Ceará e Piauí e que aqui tem [...?] é a quipá. Dá um fruto parecido com o figo
da índia de São Paulo porém bem menor (proporcionalmente à rama desta palmatória). O João disse que
alguns comem esta fruta porém que ela tem uns espinhos que pegando na mão ou na boca desgraçam o
fulano. Na ponta desta fruta tem uma florzinha vermelha. Florzinha vermelha também encontramos
depois da metade da viagem pra diante, num cipó chamado Camaratuba (parece com capim com
galhos). Encontrei também depois da metade de viagem uma espécie de macambira muito fina e
comprida que o João disse ser o carôa que usam para fazer corda. A estrada está apresentando uma
variedade repetida de terreno arenoso nas partes planas e invariavelmente pedras nos declives. Esta
pedra é sempre esfarelenta e parecendo podre. Como o terreno é quasi sempre desvendado, o vento tem
uma ação erosiva de cavar buracos nessas pedras ou então dar formas arredondadas caprichosamente
a elas. De vez em quando passamos por um roçado de mandioca e algodão. Avista-se algumas
melancias e cabaças no meio desses roçados fechados por cerca de cana. A distância que nos disseram
separar Jaicós da Serra dos 3 irmãos era 3 léguas (alguém disse 2 léguas) porém o certo é que somente
chegamos lá depois que tem 5 léguas. O Pacheco está quebrado e no meio do caminho pediu pra
descansar um bocado. No meio do caminho se avista a Serra do Conjé, [...?] de um lugar de descida
onde a caatinga dá lugar a um pequeno descampado. Pouco antes de atingir a base da serra avistamos
um grupo de casas de palha que fica quasi ao sopé dela. Os cavalos vão subindo bem mais de 50
metros. Daí pra diante tem uma escadaria mandada cavar na rocha pelo padre que nas festas vem aqui
dizer missa. A escada não segue sempre a mesma direção. Se encurva procurando a encosta mais
suave cujo declive deve ser de 70% mais ou menos. Atingimos o alto. O cruzeiro é encostado numa
parede de construção recente. Encaixado nesta tem um... cofre de pôr esmolas. Adiante do cruzeiro tem
uma plataforma cheia de pedras e seixos que termina uns 30 metros além num vastíssimo precipício alto
mais de 200 metros. Diante desta plataforma tem vários túmulos de pessoas que morreram - o João

957
- Luiz Saia refere-se ao reino sobrenatural da “Cidade de Jurema”, existente na feitiçaria do catimbó.
151

informa - 3, 2 ou 4 léguas nos arredores e são praí trazidas em redes. Bem no meio desta plataforma tem
um monte de milagres. Quasi só pernas e braços e pés. Expostos como estão à chuva e ao sol
apodreceram muito. Aí umas poucas e desinteressantes cabeças. Dois corpos inteiros mutilados. Viagem
perdida!!! Uma cabeça recentemente colocada ali não é lá muito interessante. Outra está absolutamente
podre e talvez tenha sido muito interessante. Hoje nada vale. Colhi 3 peças... por honra da prima. [sic]
Da beira do precipício - lá vem demagogia, meu Deus - a paisagem da caatinga ao longe parece um mar
azul e tão desertamente que se extende em todo o redor. Só atrás de nós, que é na direção sudoeste se
enxerga a Serra do Araripe, atrás da qual está parte do estado de Pernambuco. Aqui em cima estivemos,
eu e Pacheco, vendo algumas pedras. Tem um gessito [?] amarelecido de uma consistência muito fina.
Vimos dela uma pedra grande de 50 ms de altura. As pedras grandes que encabeçam as partes da rocha
são cobertas de um pó cor de zinco que nos pareceu ser... zinco. Na própria estrutura das pedras existe
uma tonalidade cor de zinco. Parece puro por aqui, a [...?] à cor, consistência e peso de certas pedras aí
vistas. Descemos e Pacheco foi me tirar umas fotos da arquitetura improvisada aí por ocasião das festas
anuais. Pau-a-pique, alpendres, palha de carnaúba e ramos de mato, latada surgem aqui. A localização é
estabanada e em desnível sistematicamente.
Partimos daí às 13 horas pra chegar às 16:30 em Jaicós. A fome e a sede foram tapeadas com umas
melancias verdes que o João roubou de um roçado. Pacheco, que ficou quebrado da viagem, bebeu
água na casa de um sertanejo na volta.
Chegados, tomei café, mamão, bolinhos (os do café da manhã).
[Nota acima da página: “A localização da Serra dos 3 irmãos é 5 léguas de caminho pra banda do
sudoeste de Jaicós”]
Ladeira e Martin jogam gamão. Fui espiar o estado do radiador e depois voltei a espiar o gamão. Às 6
jantamos a mesma bóia das refeições anteriores. Depois do jantar estive um bocado na calçada,
conversando com Pacheco, Ladeira, assistidos pelo Martin. Eles entraram prum café e veio o João com 2
meninos. Aí paguei o explorador dos cavalos (24$000) e dei 6$000 ao João nosso guia. Um dos meninos
que veio com o mestiço João é morador de Teresina e me deu uns informes:
Teresina - Rua Estrada do gado procurar o badô = do brinquedo do Boi
Estrada da Catarina procurar o Manué = maruja e congo.
Estrada de S. Raimundo = procurar o Joaquim = gosta de cantar e brincar.
Entrei pra tomar lanche e discutir com o João. Depois o Martin e Ladeira continuaram o... campeonato de
xadrez e terminado este - 22 horas - vim escrever este relatório de hoje. Durante toda viagem [...?] céu
encoberto de nuvens e ventou. Só na volta, à tardinha e perto de Jaicós, solzou [sic] um pouco. Sol
quente este. Parece que o radiador do caminhão desta vez vai ser mesmo consertado. O pai do calunga
Bianô andou dando uns conselhos de entendido no assunto e... esperemos amanhã cedo. Todos já estão
dormindo e o rádio do padre está funcionando. Minha distração durante o dia foi cantar versos do catimbó
de J.Pessoa [mestre Luís Gonzaga Ângelo].
O rapaizinho [sic] de Teresina me informou [que parte] trem para S. Luís nas 3ª, 4ª, 6ª e sábados. Será
que conseguiremos tomar o de sábado?! Está frio um bocado aqui em Jaicós nesta noite. Será que este
vento vai me chatiar? Má hora pra me surgir isto. Agora que já estou quasi são da gripe com que iniciei a
958
viagem. (...) Deve ser 23 horas no máximo. Vou ver a rua e virei dormir. (...)”.

A situação da Missão estava complicada. Mesmo com um conserto mais definitivo, o caminhão de João Gomes
de Brito deixou de ser confiável, pois, com todos os remendos o radiador não poderia mais funcionar com capacidade
plena. Já atrasada em seu cronograma - os trabalhos etnográficos a serem realizados no Norte, tanto no Maranhão
como no Pará ocorrem em sua maioria durante o mês de junho, com a realização do boi bumbá -, a Missão somente
partiu de Jaicós na madrugada de 10 de junho. Em sua avaliação pessoal, Luiz Saia considerou esse atraso forçado
da Missão como a primeira grande falha da equipe durante toda a viagem.
A necessidade e urgência de sair de Jaicós levou Luiz Saia procurar outro caminhão que completasse o
percurso. Na noite de 9 de junho, Luiz Saia conseguiu informações sobre um motorista que partiria de Picos indo para
Teresina na manhã do dia seguinte. Mesmo sendo tarde, o Chefe da Missão tentou telegrafar para aquele motorista
sem, no entanto, obter resultado positivo. Sem nada a fazer, Luiz Saia procurou se distrair jogando bilhar com Pacheco
em um bar, e parando depois do jogo na praça de Jaicós onde pôde observar com o sistema de ecos do local. Além
disso, em conversa com seu companheiro de viagem procurava entender algumas características e aspectos
psicológicos da população local, cercada de silêncio e o do sentimento de vagareza:

“(...) [9.6.38] - Hoje o João veio me acordar às 6 da manhã pra dizer que no radiador só faltava soldar uns
pedacinhos. Acordei pra levantar às 8 da manhã. Depois do café fui ver a criança. Estavam cimentando o
resto da parte ferida dela. No final das contas, o radiador ficou cimentado em quasi toda a parte de baixo.
Isto parece que vai prejudicar bastante a eficiência dele. [croqui esquemático do radiador]. Desde cedo já
estou procurando continuar a viagem num outro caminhão qualquer. Estamos muito atrasados e isto vai
mal. Esta é a primeira mancada nossa que dependeu da falta de sorte. Foi uma verdadeira bosta pois

958
- Cad.de Campo 7, p.87-97. Os grifos são de Luiz Saia
152

teremos nem 10 dias no Maranhão. Depois do almoço dormi tanto que esqueci como é o jeito de não
dormir. Até agora, à tarde, ainda tenho sono. O cimento do radiador está secando e talvez possamos
partir na madrugada de amanhã - 2 ou 3 horas. Durante o dia tentei trabalhar na conferência que devo
enviar pra João Pessoa. Impossível fazer qualquer coisa. 959 (isto foi escrito à tarde)
[croqui vista de Jaicós com destaque para a igreja]
[Nota em cima da página: [“dados = bozó / Jogo de bozó”]
[nota lateral: “isto foi escrito na hora do jantar”].
Uma expressão regional muito usada aqui é um uso particularíssimo do advérbio até. A gente pergunta à
um local, por exemplo: como se vai daqui pra Picos, de automóvel? O fulano responde: pode até í. A
gente fala pros daqui: daqui de Jaicós ao morro dos 3 irmãos tem 3 léguas. Ele responde: pode até tê.
Assim por diante. 23 horas. Hoje depois do jantar me pus a escrever a conferência pro [José] Mariz.
Estava fazendo isso quando apareceu um carrinho [?] de um fulano de Fortaleza que me deu uns
informes sobre as viagens por estas zonas. Ele disse ter saído de Floriano 960 hoje de madrugada pra
chegar a Picos às 11 horas perfazendo um total de 59 léguas até Jaicós (parou 5 horas em Picos) onde
chegou às 19 horas. Disse ele além disso que costumam cobrar uma fretada de caminhão até Teresina
1:800$000. Disse estar em Picos um caminhão que parte pra Teresina amanhã cedo. Nesta madrugada
devemos partir pra Picos estando lá amanhã cedo si não acontecer nada. Parece que agora o radiador
ficou completamente cimentado. Este “chaufer” de Fortaleza nos disse, entretanto, que a cimentagem
feita com cimento puro parte-se logo. Ele costuma misturar 1/2 de areia na argamassa. Informou ele
ainda que já fez este serviço de cimentagem usando pasta de mandioca. Procurei passar um telegrama
pra Picos propondo ao chaufer do caminhão que sai pra Teresina amanhã (e que está na pensão
Macedo) que nos esperasse lá. O rapaz do telégrafo me disse que só amanhã, às 7:50, poderia obter
comunicação com Picos. Danou-se.
Fui jogar uma partida de bilhar com Pacheco. As bolas desta carambola são... mais ou menos redondas.
A planta da mesa é de madeira recoberta com pano. As bolas de massa. Cobram 2$400 a hora. 2$500
um guaraná Brama. O costume de jogar aqui é cada jogador joga com uma das brancas. Depois do jogo
saímos e ficamos verificando o sistema de ecos da praça de Jaicós. De certos lugares (sentado na
escadaria da igreja) a gente consegue ouvir 3 a 4 repetições do som. Uma palmada se ouve uma vez
bem forte e duas outras mais fracamente e em sons muito próximos um do outro. A assobiação dá a
impressão nítida de sapos se respondendo. Pus reparo então que às vezes a gente pode perfeitamente
estar ouvindo um só sapo e a pensar que está ouvindo 3 ou 4 deles. Endó-Tirírí
O pessoal desta terra é muito devagar. Estive conversando com o Pacheco que isto é mais silencioso que
Carapicuíba [SP]. Ele disse que não se acostumaria aqui com este silêncio e com a vagareza da vida.
Argumentei: O sujeito vem pra cá e vai vivendo. Ele sabe que tem o silêncio e nada se faz. É verdade que
tem uns acontecimentos em Jaicós. A batida das horas na igreja, por exemplo. Então ele fica esperando
a batida da hora um pouco antes dela bater. Espera devagar. Bateu. Só vai bater meia hora depois. Uns
10 minutos antes da neia hora ele garra a esperar. Devagar. Bateu. Pouco antes do almoço, fica
esperando o almoço porque nada há que fazer. Espera devagar que é o único meio. Espera. Almoça.
Almoçado tem que esperar o café. Devagar. Depois de um certo tempo o cara vai se devagarinhando aos
poucos e fica completamente do lugar. Pronto, se acostumou.
Quando estavamos verificando o negócio de ecos, tive a impressão que alguém viria achar ruim o fato da
gente estar assobiando e batendo palmas e, enfim, falando por ali. Por mais absurdo que pareça, eu acho
que daria razão à pessoa do lugar que achassse ruim. Porque o que fazíamos era um verdadeiro
atentado contra o que o lugar tem de mais característico: o silêncio. Assim como daria razão a alguém
que protestasse estarmos com pressa de sair dali. O fazer as coisas devagar é também característica
961
deste lugar. Ponto. Vou dormir. (...)”.

Próximo das 4 horas da madrugada de 10 de junho, sexta-feira, a Missão finalmente deixou Jaicós, para atingir
o município de Picos às 8:30 da manhã, depois de uma escala em fazenda da região - a Fazenda dos Veados. Após o
almoço, realizado já em Picos, Luiz Saia obteve informações e contratou os serviços de um outro motorista de
caminhão, vindo de Crato (CE) com destino a Teresina, para transporte dos equipamentos e da equipe. Foi necessário
então realizar as contas e acertos financeiros com o motorista João Gomes de Brito que havia trabalhado para Missão
desde sua chegada à Paraíba, em março de 1938, dispensando-o a partir de então. As negociações com ele foram
algo conturbadas, conforme se pode observar no relato de Luiz Saia. Já com o novo caminhão contratado, a equipe
deixou Picos em torno das 18 horas, realizando escala em Ipiranga do Piauí e pernoite no município de Inhuma:

“(...) 10/6/38 - Levantei há 30 minutos pra ver o negócio do conserto do carro. Chamei o João e fomos
buscar o radiador. Chamei o Zé e o Bianô. Estive depois ajudando a colocação do radiador. São 2:45. O

959
- Conferência sobre o Departamento de Cultura de São Paulo solicitada pela Interventoria da Paraíba quando a expedição
encontrava-se em sua primeira viagem ao sertão paraibano, em abril de 1938.
960
- Município próximo à divisa do Piauí com o Estado do Maranhão.
961
- Cad.de Campo 7, p.98-103. Os grifos são de Luiz Saia.
153

caboré é um pássaro que canta a noite imitando qualquer outro pássaro. Come-os atraindo-os assim. O
pessoal está acordado e devemos sair agora. Comprei um couro de veado, curtido e furado, por 7$000.
Dado ao Martin 5$000 (neste momento Martin me deve 3 maços de cigarros. 2 de 1$000 e um de 6$000).
Partida de Jaicós [às] 3:45. Às 6:30 caminháramos 6 léguas chegando à Fazenda dos Viados. O pau-a-
pique aqui consta de paus grossos que atingem a altura do teto separados pela largura do seu diâmetro.
(+ ou - 12 a 15 cms). Este pau-a-pique tem poucos paus horizontais separados por mais 20 cms. Nos
interstícios a pedra surge recoberta e ajuntada à terra vermelha desta casa sede da Fazenda dos Viados.
[croqui planta baixa da casa sede]
Foto nº 4 (...) foi tirada de manhã, contra o sol, abrigada a máquina na sombra da própria casa. Distância
infinito, máquina abaixada, lente amarela, diafragma 4 e velocidade 5. Esta casa é acompanhada de um
vasto curral e está localizada numa baixada de terra vermelha e sem grama. O aspecto meio montanhoso
dos arredores é muito parecido com o que se observa na saída de S. Paulo pro interior perto do rio Tietê.
O curral é de paus horizontais [croqui esquemático] grossos de 15 cms de diâmetro.
Viagem - A primeira hora e meia de viagem foi feita no escuro se percebendo entretanto a caatinga
parecida com aquela vista na ida à Serra dos 3 Irmãos. Quando começou a quilariá, [sic] a caatinga foi se
tornando mais alta. Bem claro já se desceu a serra. Os caminhos até aqui se tem revezado entre areia e
areia e um pouco de ladeiras arenosas. Depois da descida da serra entramos num baixío (várzea) onde a
vegetação muda muito pouco. O Zé (Calunga do caminhão) informa que este sertão é carrasco
acatingado. E dá o nome a uma árvore de nome carrascá que informou ser característica do carrasco.
Porém aqui o chão não é empedrado. A caatinga está bastante seca. O João informa que todo o Piauí é
assim acatingado. Porém logo mais viemos verificar a mentira da informação dele pois encontramos o
baixío desnudo onde se localiza a Fazenda dos Veados. De vez em quando o carro parava para rebotar
água no radiador. Aqui nesta fazenda parou; fotei a casa de pau-a-pique (com pedra, barro, alpendre etc
coberta de telhas). Esta várzea se chama Várzea dos Veados. No tempo do inverno os carros passam
dias e dias atolados aqui. Agora a estrada está apenas transponível. A sede da Fazenda dos Veados é
num plano alimpado e seco. A impressão é de planície ainda que nossos olhos [?] desmintam esta
impressão. Mais adiante, igualmente localizada em terreno parecido, encontramos um grupo de casas
que pertencem à mesma fazenda. Consta este grupo de umas 4 ou 5 casas de pau-a-pique cobertas de
telha e orientadas sistematicamente com entrada perpendicular à direção do oitão. Aqui surge um detalhe
que venho encontrando em variados lugares. No brejo paraibano encontramos pras bandas de Muquem.
No Ceará e Piauí também vimos encontrando. É o seguinte: a estrutura do telhado avança, às vezes um
ou dois metros porém mais geralmente o comprimento de um compartimento. Às vezes, as paredes
laterais deste compartimento aberto em alpendre na fachada se fecha nos lados; outras e assim mais
comum ainda, se fecha somente no lado de onde a ventagem [sic] é mais intensa. Croquisando de
memória este detalhe anotarei também a estrutura do telhado.
[croqui de habitação popular]
No caso das casas desta fazenda a cobertura é de telha e a parede de pau-a-pique. Dificilmente nas
casas mais ou menos fixas desta zona as residências são cobertas de palha. Só as habitações mais
miseráveis o são. Particularmente nesta zona da última viagem, perto da fazenda (daqui pra diante escrito
em Inhuma), algumas casas espalhadas nos terrenos limpos são cobertas de palha de carnaúba. Aliás,
por aqui há muita carnaúba. Nem tanto, entretanto, como mais adiante, mais próximo de Picos, depois
desta fazenda de que falamos há pouco e daqui de um outro trecho da caatinga. Aqui nesta várzea tem
uma plantação de carnaúba. A disposição das plantas é irregular o que dá ao lugar um pitoresco
desprogressigante [?]. Mais caatinga, mais várzea, mais arquitetura e depois Picos, às 8 horas da manhã.
Um café e depois uma redezinha vagabunda até as 13 horas que levantei como um sono doído (ou doido
mesmo) pra vir almoçar pouco e mal espelido [?]. Depois do almoço fui pro quarto escrever
apontamentos. Estava no começo desta página quando me chamaram pra estudar o caso de um
caminhão que vinha de Crato e poderia talvez ir pra Teresina. Depois de muito futríco, chegamos a um
acordo por 500$000. Fui então fazer (...) as contas com o João. Discutimos e, pra não brigar, fiz
concessões a ele. Dei ainda aos calungas 30$000 (já dera 10$000 pra mulher do Zé). Ainda gastos com
os calungas 6$000 de pinga. (...) Antes de sair tomamos um café e eu fui visitar o cruzeiro de Picos ($400
ao guia). Aí nada de aproveitável. Pés, cabeças desinteressantes e mãos. [...?] enfiados num rancho do
pau do cruzeiro. As peças aí encontradas estão dependuradas no cruzeiro que fica na rua. Saímos de
Picos às [18:00] horas. Caatinga e casas de pau-a-pique cobertas com palha de cana. Serra com ladeira
danada. Um bocado de plano e outra serra mais danada ainda. Subimos muito [croqui esquemático].
Depois da subida areia muita, frio algum e areia de fora que nos traz a Teresina.
Ipiranga - [21:20] - topamos com uma vilazinha desensarada [?] e limpa de vegetação. A “rua” é
desvegetada e varrida de vento.
Despesas, cajú, rapadura, cana e cigarros pra alguns 7$000.
Saímos de Ipiranga pela caatinga ainda com o mesmo frio e o mesmo areião danado. Em Ipiranga
compramos pinga, rapadura e tomamos café.
Em Inhuma (3 1/2 léguas depois de Ipiranga) chegamos às [21:45]. Quadrado na praça, paramos bem
debaixo de uma vasta árvore. O caminhão daí foi pra porta da pensão São José. Um rádio está
154

funcionando. Na pensão tem uma pequena mais ou menos muito linda. Penso que este muito linda quer
dizer muito fodável [sic] porque estou em estado desesperador de catuabismo. Aqui nesta pensão comi 2
ovos com passoca de carne seca com café. Passageiros do caminhão que em Picos me haviam
prometido estar lá hoje estão conversando. Parece que entre eles tem uma mulher magra, desasexuada
e chata que viaja atrás do marido. A conversa é sobre noivados e fugas dos rapazes [?]. Conversas
bestas. Nesta pensão é notável a quantidade e variedade de tipos de candieiros [croqui esquemático].
Amanhã cedo devemos partir pra diante (...)”. 962

Em 11 de junho, sábado, pela manhã a equipe seguiu viagem em direção à Teresina, realizando uma escala no
município de Valença do Piauí onde teve oportunidade de observar um grupo de bumba-meu-boi da cidade. Talvez por
apresentar pouca qualidade etnográfica, talvez devido ao pouco tempo disponível para pesquisas mais extensas dado
o atraso de dias no cronograma da viagem, a Missão não realizou trabalho de documentação em discos, filmes ou
fotografias. Foram efetuadas somente algumas observações sobre a manifestação anotadas no diário do Chefe da
expedição. 963 Partindo de Valença do Piauí depois do almoço, a Missão se dirigiu para Coroatá - atualmente Elesbão
Veloso -, onde chegou no final da tarde, seguindo logo após para Cantinho, pernoitando no local:

“(...) Levantamo-nos às 6 horas. O caminhão foi descarregar uma parte da carga [...?] que traziam.
Tomamos café com roscas de tapioca. Aqui no Piauí não conhecem o pão quasi, só em Teresina.
Em Boa Esperança tem brinquedo de Boi.
Em Picos tem brinquedo de Boi.
Em Floriano tem boi e Reis de Congo.
Aqui na parede tem um aviso escrito [?] a tinta num papel pautado:
Attenção - / In humenseo!... Aqui esta / o teu carro, olhas e Desannima / é o “Novo Paraíso” / o único que
tem mantido / linha regular e transporte / certo - Do [...?] - 937 / Conforto e Rapidez / Com este offereço a
Imª Zefinha / o quadro aludido deste avizo / Jacob de Mello Sobrinho / Aviso - / Terminado o inverno este
carro terá / horário certo e será: - / Sahida de Terezina - as quartas feiras - 2 / horas da tarde / Dormida -
4ª feira - Cantinho. Almoço / 5ª feira em Valença - Jantar 5ª / feira em Picos / Sahida de Picos / Sábado as
5 horas da tarde, Dormida Sábado / na Inhuma, Almoço em Coroatá. Dormida no / Cantinho. Almoço em
2ª Natal Jantar / em Teresina.
Aqui em Inhuma a gente daqui vive é de cana de cana. [sic] Tem muitos engenhos por aqui.
Predominantemente engenhos. A solução do fundo da habitação em alpendre é normal tanto em Picos
como aqui em Inhuma. Geralmente a casa se desenvolve assim:
[croqui planta baixa de habitação popular com a inscrição: “1-cozinha / 2-dispensa / 3-quarto de criados
ou quarto / 4, 9, 10, 11-quarto / o conjunto 5 e 6 às vezes se resolve num só quarto e outras em 2, 3 e até
mesmo 4 quartos. 8 é corredor. 7 é sala de jantar onde surge o pote dágua. Na indicação da flecha o que
tem é alpendre com parapeito e gradeado que geralmente vai até a cozinha.”]
[Nota lateral: “Tem abafador por toda esta zona o Piauí”]
Aqui em Inhuma é muito usado o tijolo. Aliás este tijolo aqui no Piauí é popular, cozido em forno [croqui
esquemático] e feito de barro escuro com mistura de capim. Não é raro aparecer o tijolo cozido e de barro
branco. As casas são quasi sistematicamente descobertas de maneira a aparecer o tijolo. Aqui em
Inhuma, no quadrado da praça tem só duas [...?] sendo uma certamente de 1937 e a outra de alguns
anos. O restante é de biquêra. Estão descarregando o caminhão. 7:15.
O mercado daqui é quadrado, recente e com alpendre por dentro. A cobertura é uma água só caindo pra
dentro do páteo central. Tem 2 entradas. Aliás tem muitas entradas porém as outras além dessas duas
são passagem através das [...?]. Muita andorinha neste mercado. A árvore grande sob a qual paramos
ontem é uma tamarineira...
Partida de Inhuma 8:30. Estrada por caatinga, e agreste, caatinga e agreste de novo. Perseguimos umas
sariêmas. (...) Aqui neste lugar entre Inhuma e Valença é a Candêia.
Foto 5 - aspecto do mercado (feira) de Valença
Foto 6 - tipo mestiço do Piauí na feira de Valença (Leondra Francisco Lopes de Araújo - idade 40 anos)
964
Bumba-meu-boi de Valença - brincam 6, 8 ou 10 pessoas (...)
Dado ao cantador 5$000 / Foto 7 - cantador de Bumba-meu-boi de Valença / gasto 14$000
(...)
Saída de Valença às 13 horas. Daí pra diante se encontrou caatinga e agreste por um pouco de tempo
pra logo depois se topar uma várzea que vai até 1 légua de Coroatá. 5 léguas antes de Coroatá tem um
rio com leito de pedra e quasi seco. Este rio, como outros que iremos encontrar até Coroatá, tem pontes
de madeira. Paramos nesse rio e fui conversar com um vaqueiro de gibão comprido até a metade da
coxa. Este vaqueiro nos informou que daí a 3 léguas (portanto a 2 léguas de Coroatá) encontraríamos
962
- Cad.de Campo 7, p.104-114. Os horários citados entre colchetes foram extraídos da Cad.de Campo s/nº (Braunwieser),
p.75. Os grifos são de Luiz Saia.
963
- Cad.de Campo 7, p.119-127. Acervo Histórico DPM: T84P9
964
- As páginas 119 a 127, da Cad.de Campo 7, que contêm as anotações sobre o Bumba-meu-Boi de Valença, foram
datilografadas por Oneyda Alvarenga e classificadas como T84P9 (Acervo Histórico DPM)
155

uma fazenda de Tapéra. De fato, depois de andarmos 3 léguas de estrada vagabundérrima, mais rio
(onde colhemos um cágado que depois atiramos novamente no rio), várzea aparqueada onde pastavam
os vastos e enormes bois piauienses, e surgiam sariêmas ou xexém (qualquer gavião também)
encontramos essa fazenda onde bebemos água suja. O sol estava de matar e ficamos com vontade de
descansar mas... continuamos a viagem. Continuamos a viagem pelas várzeas até 1/2 légua de Coroatá
onde encontramos... a catingueira de São Paulo. Mata pura. Águas e riachos. Árvores enormemente
altas. Cipós. Grama limpa e lisa. Alguns vaqueiros voltavam da feira de Coroatá. A arquitetura popular
daqui apresenta um detalhe novo. Tem telhado de no mínimo 3 águas. O processo de combinação delas
é que as 2 águas que estão nas pontas do oitão ficam debaixo das outras.
[croqui de habitação popular].
O processo de segurar o capote é com dois paus amarrados numa ponta e postos nos dois declives. As
paredes são de pau-a-pique.
[croqui esquemático]
Os informes dados pelas pessoas daqui são notáveis. Quando a rodagem [?] é grande a distância é por
exemplo 10 léguas. Quando é pequena [...?] as léguas. Isto é só um exemplo. Centro: se perguntou aqui
em Coroatá qual era a distância entre Cantinho e Barro Duro o sujeito disse 4 kilómetros. Um outro que
estava ao lado disse uma légua e o que disse que tinha 4 kil. disse, dando umas passadas, que tinha 3
kilómetros.
O nome atual de Coroatá é Lesbão [sic] Veloso.
Tomamos café com bolachas, garaná e cerveja. Despesa: 15$000 (com nota).
[Dois croquis - mercado e sua planta baixa acompanhados de informações técnicas de medição do
espaço em passos e metragem, seguidos da inscrição: “Este lugar data de 1924 - mercado daqui”]
Chegada em Cantinho - 23:30. A viagem de Coroatá pra Cantinho foi feita numa estrada menos ruim que
as informações diziam ser. Um pouquíssimo de caatinga e o resto todo de agreste. O agreste está fixado
para mim; é assim: campo gramado (ou com capim agreste) e árvores aqui e ali.
Pouco antes de chegar em Cantinho topa-se um matagal de coqueiros que vem até a cidade. Chegamos
às 23:30 e nada havia para comer na pensão. Fui mais Martin procurar samba que ouvíamos desde a
entrada na cidade. O samba era dançaria besta de marchinhas, choros (sambinhas) etc. Aí fui
gentilmente recebido pelo dono da festa. Comprei bolo de fubá (feito de fubá e rapadura) e achei gostoso
(seria a fome cruenta?) e trouxe-o pro pessoal. Dei explicações ao chaufer a respeito de Geo e mecânica.
965
É uma hora [da madrugada] e vou dormir. (...)”.

Em 12 de junho, domingo, a equipe finalmente chegou em Teresina, depois de escalas em Barro Duro e Natal -
município distante cerca de 50 quilómetros da capital do Piauí. Em Natal, Luiz Saia fez amizade com um advogado -
procurador da Fazenda Federal em Teresina -, que lhe informou da presença do escritor Paulo Barreto na capital
realizando trabalho para a diretoria do SPHAN. Na capital piauiense, Luiz Saia encontrou-se com ele, com quem
estabeleceu a partir de então uma relação de amizade.
O pernoite da equipe foi efetuado em um hotel de Teresina. No dia seguinte, 13 de junho, a Missão atravessou
de barca o rio Parnaíba, chegando ao Estado do Maranhão. No embarque, despediu-se da equipe o escritor Paulo
Barreto que havia programado novo encontro com a expedição em São Luís do Maranhão.
Em Flores, cidade na margem oposta do rio Parnaíba, já Estado do Maranhão, a equipe teve oportunidade de
registrar os textos de um cântico de pagelança, entoado por uma informante local. A exemplo do que ocorreu em
Valença do Piauí com o grupo de bumba-meu-boi da cidade, não foram realizados trabalhos de pesquisa ou
966
documentação extensos, resumindo-se apenas nas anotações efetuadas por Luiz Saia em seu diário de viagem.
De Flores, a Missão continuou a viagem por trem, com destino a São Luís do Maranhão. Luiz Saia enviou antes
da partida do trem um telegrama ao governador do Estado comunicando chegada em breve da expedição na capital.
No final da tarde de 15 de junho, quarta-feira, a Missão chegava ao município de Caxias, primeira escala do trem
utilizado na viagem. É interessante notar, como um registro das difíceis condições enfrentadas pela equipe, que foi
somente nesse dia que Luiz Saia pôde banhar-se novamente - a última oportunidade ocorrera em 3 de junho quando a
Missão encontrava-se na travessia do riacho da Fortuna, próximo de Guariba no Ceará:

“(...) [12.6.38] - Plano da pensão de Cantinho. Paredes de pau-a-pique. As janelas são por demais
pequenas. O estifão [?] é colocado num alto de maneira que pra rua tem uma calçada alta. As redes são
dependuradas [?] em paus e que são atravessados no relativo [?] perpendicular ao oitão.
[croqui esquemático]
O café daqui é com passoca de carne, cuscus de arroz e... restos de bolos de fubá de ontem. A mata de
coqueiros por aqui é de coco babassá.
Os castros [?] do telhado são postos assim:
[croqui esquemático]

965
- Cad.de Campo 7, p.114-133.
966
- Cad.de Campo 7, p.141. Acervo Histórico DPM: T67P8
156

Chegada em Barro Duro (3 kilómetros de Cantinho e 7 léguas de Natal) às 8 horas. Esta zona é que
abastece o Piauí de cereais. As coisas são vendidas por quartas (50 kilos). O milho por exemplo, 3$000 a
quarta. A arquitetura continua a mesma de Cantinho. O Pacheco fotou um mercado de Cantinho do qual
eu não pus reparo. Aqui tem muito mulato e cafuso. Bananeiras. Mamão. Laranjas. Grandíssimas
mangueiras.
Foto 8 - Casa popular (não tem aqui nenhuma que não o seja) de Barro Duro. Ver detalhe de Tacaniça
(não conhecem a palavra Tacaniça). Chamam guiêro - guiêro são os caibro (da tacaniça) que ajunta na
ponta da linha. Cumiêra. Os tirantes laterais são travessas. Peitoril. Não usam a palavra alpendre para
alpendre que é fechado até a metade pelo peitoril. A isto chamam camarivela. [?] Alpendre é quando é
todo aberto. Furquía. Usam a palavra taipo pra dessignar o pau-a-pique. Coberta de páia de coco
967
babassu. (...) * Em Natal [próximo de Teresina] encontramos depois do almoço, um advogado de
Teresina com quem fiz camaradagem e me disse estar o Paulo Barreto nessa cidade a serviço do Sphan.
Chegamos a Teresina na entrada da noite e fomos pro hotel. Na porta, o Ididio [?] (o tal advogado) me
apresentou ao Paulo Barreto. Já antes, na entrada da cidade, num posto nos exigiram passaporte [?]
quando este senhor Ididio [?] interveio ajeitando as coisas [porque] ele é procurador da fazenda federal
em Teresina. Entrei a conversar com Paulo que se mostrou bastante camarada assim como um cubano
que viaja com ele. O hotel onde estamos hospedados se desenvolve em uma rua e tem o fosso [?]
sistematicamente realizado com entrançado que às vezes apresenta-se bastante rico. (...) A planta do
Hotel é mais ou menos a que vai na página seguinte.
[croqui planta baixa do hotel]
Parece ser um prédio velho sem ser muito antigo. A capital deste Estado não é muito antiga. Mais do que
ela são Vieiras e Campo Maior (que não visitei). A arquitetura desta cidade assim como o restante da vida
968
é muito influenciado pelo Maranhão. [13.6.38 - 13 horas] Telegrama Governador do Maranhão
Partida de Flores 15 horas da tarde. O Paulo Barreto foi me acompanhar até o ponto de Barca do Rio
Parnaíba.
Estação de Luiz Domingos às 15:20. Forno de terra.
Aarão Reis 16:00 horas
Foto 9 - 2 casas populares mostrando 2 tipos de varanda (alpendre) usados nesta zona do Maranhão
(depois de Codó 2 estações). Esta foto foi tirada do trem em movimento (...) Pode se que tenha saído um
tipo popular bem na frente da foto. Paciência. Uma das casas fotadas é assim:
[croqui esquemático de casa popular]
Tipo de casa de palha rural do Maranhão
[croqui e planta baixa]
Os talos de babassu de que é feita esta casa que apresenta 2 técnicas diversas de colocação: uma no
telhado e outras nas paredes. A do telhado surge sistematicamente com as folhas do talo mais altas
caindo por cima das do talo imediatamente inferior
[croqui esquemático]
Nas paredes, em geral as folhas do talo de cima (a colocação do talo horizontalmente é sistemática.
Raríssimas sendo as exceções) caem por trás do talo imediatamente inferior.
[croqui esquemático]
Às vezes nas paredes se encontra a mesma técnica de colocação das folhas verificada no telhado. Este
fato dá à casa um aspecto contrastante com as executadas [com] os talos aparecendo. Nestas de talo
aparecendo a horizontalidade dos talos é predominante e às vezes adquire riqueza de movimento e
beleza de claro-escuro quando bem plantada [?]. Nas de talo por baixo a horizontalidade de linhas
desaparece dando lugar a formas mais arredondadas subindo do chão numa concavidade pra fora [sic]
como se fosse continuação.
[croqui esquemático]
As portas e janelas de palha de babassu são comuns por aqui e tomam o nome de porta ou janela de
“estêra”. A técnica da fatura deste entrançado é diversa da encontrada no Nordeste (Pernambuco e
Paraíba) onde o conjunto é dividido pelo talo da palha geralmente em 2 partes aparecendo três talos: 2
nas bordas e um no meio. A técnica do telhado de mais de 2 águas vem se afirmando resolutamente por
aqui. A técnica do pau-a-pique que tem surgido normalmente por aqui é mais parecida com a verificada
em São Paulo. É verdade que o aspecto tem mais inteireza e as formas apresentam mais apuro. Uma
coisa interessante que vem aparecendo desde o Piauí (visto de Teresina), intensificada de muito na
capital desse Estado do Piauí, é a cor encarnada de sangue de boi na pintura das casas. Ainda não sei
como eles fabricam esta tinta. Deve ser com qualquer minério desses facilmente encontrado por aqui.

967
- Parte do relato desse dia está registrado na Cad.de Campo 8, p.63-65. Segundo Luiz Saia, “(...) 21.6.38 - Já por duas vezes
tentei escrever os apontamentos da viagem desde Cantinho (Piauí) até Teresina. Inutilmente. Vou tentar agora: Antes de
chegarmos a Cantinho entramos por uma babassual enorme. Uma verdadeira mata de babassú. Chegamos em Cantinho
bem tarde e fui tentar arranjar de cumê numa brincadeira que se ouvia da pensão. Arranjei umas roscas que devem estar
anotadas no outro caderno [sic] (...)”.
968
- O restante do relato desse dia está registrado na Cad.de Campo 7.
157

Parada pequena em Conceição - 22:30 - casa de palha e pau-a-pique. Uma só rua. Ontem a noite avistei
a cidade de Caxias.
Esta parada não tem estação. A povoação entra de uma rua que se deslocou [?] de um lado e outro da
linha. Mangueiras altas. Nas casas daqui surge um detalhes interessante na amarração da palha nas
paredes. O último talo de cima ao virar sua palha passa por baixo do talo inferior, como nos talos
seguintes, passa por cima. A amarração de palha no alto da cumieira se faz aqui dobrando o talo da
babassu sem o cambito [sic]. Na técnica do pau-a-pique [que] vem usando desde bastante atrás (antes
de Codó) o talo (depenado) do babassu [é usado] como varas pro entrançado (os elemento horizontais).
Às vezes os talos varam as aberturas das janelas, gradeando-as. Também vimos observando certo
sistema de portas, janelas e mesmo paredes de currais [?] e, raramente, paredes de casa, feita somente
com os talos do babassu ligados paralelamente um ao outro. (...)
[croquis esquemáticos]
[15.6.38] Caxias - Chegamos a Caxias às 18:15. Um viajante havia informado que havia um banheiro
muito magnífico numa pensão onde a bóia não era má. Descemos e... toca a procurar a tal pensão. Na
frente da estação nada mais além de lama e mato. Pras direita sai uma estrada [...?] larga. Vai pra longe.
Afinal fui perguntar ao chefe de trem qual era o lugar indicável pra gente ranchar. Ele falou que [era] a
pensão do João Paulo. Praí fomos deixando toda a bagagem no carro. Ficamos arranchados numa vasta
sala térrea com uma porta pra fora e 4 janelas. Dormiremos em rede. Todos. Antes de jantar fui aproveitar
o magnífico banho indicado. O chuveiro, de fato, era muito bom pro lugar, porém a luz era pouca e
arrebentei os cordões da minha bota que se haviam emaranhado no escuro. Banho reconfortador pois o
último que tomara fora no Riacho da Fortuna entre Várzea Alegre e Viera (São Sebastião-Ceará) uns 6
969
ou 7 dias antes. Me sentia incomodado e às vezes tinha nojo de passar a mão pelo meu corpo.
Passando a mão pelo peito ou braços saíam grossas e muitas “bananinhas” (...)”. 970

Em 16 de junho, quinta-feira, a Missão partiu de Caxias chegando São Luís do Maranhão durante a tarde.
Terminava a viagem iniciada em 31 de maio, quando a equipe deixou João Pessoa na Paraíba para chegar na capital
do Maranhão depois de um período de 17 dias. Devido aos vários imprevistos dessa viagem, a Missão não realizou
pesquisas extensivas no Maranhão, permanecendo na capital somente 5 dias.

969
- Na realidade, 13 dias antes.
970
- Cad.de Campo 7, p.134-152; Cad.de Campo 8, p.63-65. As datas e horários colocados entre colchetes foram extraídas da
Cad.de Campo s/nº (Braunwieser), p.75. Os grifos são de Luiz Saia.
158

2.11 - De 17 a 20 de junho: contatos com autoridades e trabalhos etnográficos realizados


em São Luís do Maranhão
É provável que ainda na tarde do dia da chegada da equipe à São Luís do Maranhão, em 16 de junho, Luiz
Saia, se guiando por instruções fornecidas anteriormente, tenha procurado estabelecer contato com integrantes de
cultos de feitiçaria presentes na capital - como o Tambor-de-Mina e Tambor-de-Crioulo. Esses cultos, como todos
rituais fetichistas, estavam proibidos de funcionar sendo objetos de intensa perseguição e repressão policial. A
exemplo do que havia ocorrido em outros locais, particularmente na capital pernambucana, Luiz Saia teve que solicitar
aos poderes policiais locais a permissão para a realização de sessão especial para os trabalhos da equipe.
Em 17 de junho, sexta-feira, o Chefe da Missão passou boa parte da manhã providenciando a autorização
necessária ao funcionamento de sessão de Tambor de Mina junto ao Delegado Flávio Bezerra, da capital. De posse
da autorização, a Missão se deslocou com todos equipamentos ao bairro periférico de João Paulo. Aí, a equipe assistiu
um rápido ensaio de sessão para tomar conhecimento das necessidades técnicas para os trabalhos de gravação. A
Missão trabalhou com o grupo toda a tarde de dia 17 de junho e a intenção inicial era continuar as gravações também
durante a noite. No entanto, uma pequena quebra do aparelho gravador Presto Recorder obrigou parte da equipe a
retornar ao hotel para conserto da máquina. Luiz Saia e Braunwieser permaneceram no local dando continuidade às
pesquisas sobre o Tambor de Mina:

“(...) 17.6.38 - De manhã me levantei e fui imediatamente providenciar, às 8 horas, uma licença pra fazer
funcionar uma sessão do “Tambô de Mina” no bairro do João Paulo. Na chefatura de polícia me
informaram que eu só conseguiria uma ordem dessa natureza com o chefe da polícia, Dr. Flávio Bezerra.
Tomei um automóvel e fui à casa dele. Entreguei meu cartão e dali há pouco surgiu a senhora do homem,
grande, majestosa, talvez boa, dizendo que o marido se desculpava por não poder me atender por estar
acamado. Conversamos e eu contei a ela a que vinha. Foi pra dentro e dali há pouco voltou perguntando
onde eu queria localizar a ordem. Respondi, foi e voltou dizendo que às 3 horas da tarde eu poderia
procurar a tal ordem na chefatura. Expliquei-lhe novamente que tinha certa pressa e muito interesse em
poder trabalhar hoje mesmo no período da manhã. Ela foi pra dentro novamente e passados alguns
minutos chegou o catatau [sic] do chefe de Polícia em pijamas e violentamente enraivecido, dizendo que
estava acamado, febril, que eu vinha na última hora exigindo pressa etc etc. Me desmanchei em
desculpas por fora e por dentro me remoí de raiva. Ele pouco a pouco foi se vencendo e afinal aderiu.
Pediu que eu esperasse um bocado e depois de bem uns 15 minutos me surgiu vestido e convidou para
acompanhá-lo na chefatura. Na chefatura ele me tratou muito bem - diferença enorme do primeiro trato -
e me deu o cartão. (...)
[“Chefatura de Polícia / Estado do Maranhão / Gabinete do Chefe / O sr. Luiz Saia, tem permissão para
realizar sessões de macumba, tambor de mina, tambor de criolo, onde e quando lhe aprouver, contanto
971
que seja nos subúrbios desta Capital. São Luís, 17.6.938. Flávio Bezerra”]
(...) Deve ser um ótimo chefe de polícia... pro governo.
Daí saí pra ULI [?] 972 onde conversei com o gerente que é um sujeito besta e burro. Nada arranjei apesar
de cantá-lo de todo o jeito. Saí daí puto da vida e vim buscar Martin e dizer a Pacheco e Ladeira que
levassem os aparelhos pra J. Paulo pra trabalharmos. Com Martin fui a J. Paulo. Pacheco e Ladeira
chegaram às 11 e meia hora. Descarregamento de material, um pouco de dançaria e cantoria pra anotar
o material que deveria ser trabalhado e viemos almoçar. À tarde trabalhamos até 6 horas. Na hora do
almoço e na do jantar Ladeira ficou tomando conta dos aparelhos e almoçou e jantou depois. Quando
jantamos soube que fora procurado pelo Paulo Barreto. Depois do jantar fui procurá-lo e fomos juntos
mais o cubano que viera com ele, pro “tambô de Mina”. Aí o Pacheco verificou desarranjo na máquina de
gravação e resolvemos voltar até consertar os aparelhos. Paulo Barreto e uns companheiros saíram
antes. Eu fiquei anotando as cantorias, os detalhes da dança que executavam; sutilmente sugeri ao
Martin que garantisse o material procurando fixar escritamente as linhas que cantavam e às 22:30 viemos
973
pra casa. Fui tomar lanche com Pacheco e gastei aí 2$000 de água.
Gastos nos trabalhos de gravação, além das horas de automóvel a pagar:
- transporte aparelhos - 25$500 pg na hora
- bonde volta de J.Paulo / Almoço 3$000
- Dados pros meninos e cantores 10$000
- Águas para Ladeira e Pacheco 4$000
- aluguel lampeão 12$000
- pagamento transporte aparelhos a noite 15$000 (vinte pra nóis e aparelhos)
- Gasto com a Dona Maximiliana (adiantados) 30$000

971
- Documentos originais da MPF: Doc.nº12 - Cartão de Apresentação e Autorização - De Flávio Bezerra a Luiz Saia, 17 de
junho de 1938
972
- não foi possível identificar o significado da sigla
973
- Não há nenhuma melodia de tambor de Mina grafada em notação musical por Braunwieser preservada entre a
documentação original.
159

O automóvel fez as seguintes viagens: 2 horas de manhã. Foi nos buscar na hora do almoço. Nos levou à
noite depois do jantar. (...)”. 974

Nesse dia 17 de junho, a Missão registrou 5 discos e um lado de disco de 12 polegadas contendo 39 toadas de
Tambor de Mina, executadas pelo grupo de 19 integrantes do terreiro de Maximiliana Silva - solistas e coro,
acompanhados por 3 tambores, 1 cabaça e um triângulo. 975 As anotações de Luiz Saia sobre a coreografia
apresentada, detalhes do ritual, e particularmente, os textos dos câtincos foram efetuadas em duas cadernetas de
campo. 976 A relação das melodias gravadas foi realizada por Benedito Pacheco em sua caderneta de campo
destinada ao controle do material fonográfico. 977
Em 18 de junho, a Missão completou os trabalhos com o grupo de Tambor-de Mina. Durante todo o dia foram
registrados 8 discos de 12 polegadas contendo 67 melodias do ritual, 978 além de 36 fotografias dos cantores e/ou
instrumentistas e de detalhes da coreografia. 979 A relação das melodias gravadas e os dados sobre informantes foram
dessa vez anotados por Antônio Ladeira e Pacheco em duas cadernetas de campo. 980 Segundo Luiz Saia, a equipe
terminou “(...) as gravações do tambô di Mina a 1 hora da madrugada do dia 19/6/38 (...)”. 981 É provável que
Maximiliana Silva tenha trajado uma vestimenta especial durante os trabalhos de gravação, segundo pode-se deduzir
pela relação de gastos do dia efetuada pelo Chefe da Missão:

“(...) - Dado a Dona Maximiliana 150$000


- Por causa da amarração do lenço 10$000
- Gasto com água 4$000
- Gasto com o rapaz da conta [?] 4$000
- 2 dias de aluguel do candieiro 24$000
- Dado Pacheco 100$000
- Pago chaufer (serviços passados c/ conta) 80$000
982
(...)”.

Em 19 de maio, pela manhã, a equipe realizou a documentação de outro culto de feitiçaria caracte_ístico de São
Luís do Maranhão, provavelmente relacionado com o Tambor de Mina: o Tambor de Crioulo. Com um grupo integrado
por 7 elementos liderados por uma mulher - 3 instrumentistas -, a Missão registrou 1 disco de 12 polegadas contendo 6
melodias do ritual. 983 Além disso, foram registradas 20 fotografias com detalhes da coreografia e do grupo. 984 Os
dados sobre os informantes, a relação e os textos das melodias gravadas foram anotadas por Luiz Saia, Ladeira e
Pacheco em três cadernetas de campo. 985
Sobre a provável relação entre os rituais de Tambor de Mina e Tambor de Crioulo, é interessante transcrever
aqui os comentários realizados por Oneyda Alvarenga, quando da divulgação desta parte do acervo coletado pela
Missão, dez anos após o retorno da expedição a São Paulo, em 1948. Talvez devido ao pouco tempo disponível, a
Missão pouco anotou sobre as características desses cultos, configurando uma grande falha metodológica de coleta
folclórica observada pela Chefe da Discoteca Pública Municipal:

“(...) Não nos cabe aqui, nesta publicação meramente expositiva dos textos necessários à utilização dos
discos, traçar um quadro dos cultos fetichistas afrobrasileiros. 986 Por outro lado, pareceu-nos inútil
fornecer dados gerais sobre as religiões populares afrobrasileiros, porque: a) ao que nos conste, os cultos
apresentados nestes discos ainda não possuem documentação bibliográfica; b) sendo poucos os dados
de que sobre eles dispomos, não poderíamos indicar, pelo menos com relativa segurança, quais os
elementos que unem o Tambor-de-Mina e o Tambor-de-Crioulo ao conjunto das manifestações religiosas
populares do Brasil e quais os elementos que os distinguem nesse conjunto.

974
- Cad.de Campo 7, p.185-188. O restante da caderneta nº 7 contém: p.189: “Caderno foi terminado a 17.6.38”, seguido de
croquis sobre geografia.; p.190-191: em branco; p.192-197: Contas de acerto financeiro com João Gomes de Brito.; p.198:
Final contas com João / “São Luiz - Mangueira - Bairro J.Paulo / onde se reúnem todos os bois / São José - onde há
milagres.; p.199: notas diversas.
975
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.75-76. Discos F.133-F.138A, fons.884-922
976
- Cad.de Campo 7, p.157-184; Cad.de Campo 8, p.1-30. Acervo Histórico DPM: T69P8
977
- Cad.de Campo “Discos 1”
978
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.76-78. Discos F.138B-F.145A, fons.923-989
979
- Documentos originais da MPF: Fotos 367-402
980
- Cad.de Campo 5A, p.69-88; Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco)
981
- Cad.de Campo 8, p.30
982
- idem ibidem
983
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.74. Discos F.27B-F.28A, fons.990-995
984
- Documentos originais da MPF: Fotos 403-423
985
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 5A, p.89-93 (Ladeira); Cad.de Campo 8, p.31-40 (Saia). Acervo
Histórico DPM: T68P8
986
- Oneyda Alverenga refere-se à coleção “Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro”, editada para divulgar os discos já
preservados pelo processo de matrização - série de discos FM da Discoteca Pública Municipal. Vide Capítulo IV
160

Infelizmente, do Tambor-de-Mina e do Tambor-de-Crioulo a Missão de Pesquisas Folclóricas apenas


registrou textos de cânticos e breves anotações coreográficas. Dos seus documentos de colheita nada
consta sobre a organização dos cultos (ritual, sacerdócio, divindades, etc.). A ausência de tais
esclarecimentos impede qualquer veleidade de caracterização positiva do Tambor-de-Mina e do Tambor-
de-Crioulo. Alguns elementos caracterizadores podem ser extraídos dos próprios textos dos cânticos,
bem como das informações existentes sobre os indivíduos que participaram das gravações. Os
especialistas, e interessados em geral, saberão ver bem esses elementos.
(...)
Os textos e as poucas informações da MPF sobre o Tambor-de-Crioulo são profunda e lamentavelmente
mudos a respeito da natureza e organização religiosa do culto. Pelas informações fica-se sabendo
apenas que: o culto documentado em discos é dirigido por uma mulher e se revelou bastante
desorganizado; há cânticos e danças acompanhados por três tambores.
Além da provável formação nacional do culto, indicada pelos seus cânticos em português, o que os textos
do Tambor-de-Crioulo revelam é exclusivamente um fato de ordem poético-musical: seu caráter
essencialmente profano; o parentesco evidente que apresentam, pelo seu espírito e estrutura, com os
cânticos do samba rural, principalmente com a modalidade já conhecida e documentada deste - o samba
rural paulista, analisado por Mário de Andrade. (...) Embora o material fonográfico colhido pela MPF seja
pequeno, pelos seus cânticos e por algumas fotografias de suas danças este Tambor-de-Crioulo suscita-
nos perguntas e dúvidas. Não sendo oportuno formulá-las aqui, deixa-las-emos para mais tarde, caso a
987
Discoteca Pública Municipal possa continuar a publicação de seu “Arquivo Folclórico”. (...)”.

Também em 19 de junho de 1938, a Missão realizou outros trabalhos de documentação: bumba-meu-boi e a


dança do carimbó. Com um grupo de bumba-meu-boi formado por 10 indivíduos do mesmo bairro de João Paulo de
São Luís do Maranhão, foram registrados 5 discos de 14 polegadas contendo 25 melodias da dança dramática, 988
além de 3 fotografias. 989
Em seguida, com “(...) uma cantadeira e um dançante de carimbó (...)”, a equipe registrou um lado de disco de
14 polegadas contendo 2 melodias. 990 A Missão realizou também o registro cinematográfico deste carimbó, segundo
pode-se deduzir das anotações de Luiz Saia: “(...) A filmagem da dança do carimbó vai de 80 a 61 (...)”. 991 Talvez
devido a isso, a Missão não foi efetuou nenhum registro fotográfico do carimbó. Os dados sobre informantes, a relação
e os textos das toadas gravadas foram anotados por Luiz Saia, Ladeira e Pacheco em três cadernetas de campo. 992
No dia 19 de junho, a equipe terminou seus trabalhos de gravação em torno das 19:30 horas, quando retornou ao
hotel. Foram gastos durante o dia 155$000 réis, distribuídos entre “(...) cantadeira e dançante de carimbó 10$000 /
compra de 2 tambô 20$000 / pagamento pessoal tambô de criôlo 40$000 / águas 8$000 / Dado ao pessoal do Boi
50$000 / empréstimo e transporte tambôs 20$000 / transporte aparelhos e caixa motor 7$000 (...)”. 993
Em 20 de junho, segunda-feira, a equipe se preparou para partir de São Luís do Maranhão com destino a Belém
do Pará. O trajeto seria realizado a bordo do mesmo navio-vapor Itapagé utilizado no início da viagem da expedição.
Antes da partida, programada para aquela tarde, a Missão ainda realizou um levantamento complementar de informes
junto aos grupos documentados anteriormente. Dessa forma, com o mestre do grupo de bumba-meu-boi gravado -
Manuel Secundino dos Santos -, o maestro Martin Braunwieser recolheu 3 toadas características. 994 Já Luiz Saia
preocupou-se em fixar elementos característicos fundamentais da manifestação folclórica. Finalizadas essas
pesquisas complementares, o Chefe da expedição pagou “(...) ao fulano que arranjou o boi e o tambô de criôlo (...)” a
quantia de 15$000 réis. 995
Com tudo arranjado, a Missão se dirigiu ao porto embarcando no Itapagé no período da tarde. Antes da partida,
Luiz Saia registrou 6 fotografias, 996 “(...) 4 vistas da cidade de São Luís - 3 próximas à rampa de embarque e duas do
lugar onde o Itapagé está atracado (as três primeiras foram com chuva) (...)”. 997 O Itapagé partiu de São Luís do
Maranhão às 15 horas. À noite, depois do jantar servido a bordo, Luiz Saia retomou de maneira mais sistemática o seu
diário de viagem, relatando mais um pequeno atraso no cronograma da equipe, resultado das dificuldades do Itapagé
deixar o porto da capital:
“(...) (noite a bordo) O navio estava de bunda pra cidade da baía de São Luís. Pra sair se virou quando a
maré já estava baixando e a gente quasi só via areia em torno. Este porto é uma porcaria e si um navio

987
- ALVARENGA, O. (org.) - “Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro: vol.II - Tambor-de-Mina e Tambor-de-Crioulo.”,
São Paulo, Departamento de Cultura, Discoteca Pública Municipal, 1948. p.4
988
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.34. Discos F.146-F.150, fons.995-1020
989
- Documentos originais da MPF: Fotos 424-426
990
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.41. Disco F.150B, fons.1021-1022
991
- Cad.de Campo 8, p.58. Documentos originais da MPF: Filme 10.C: “Sem identificação”, P&B, silencioso, 0'36”
992
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 5A, p.94-115 (Ladeira); Cad.de Campo 8, p.41-59, 56-60 (Saia).
Acervo Histórico DPM: T83P9 (“bumba-meu-boi”)
993
- Cad.de Campo 8, p.59
994
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1946. Coleção Martin Braunwieser, melodias 373-375, p.293-294
995
- Cad.de Campo 8, p.61
996
- Documentos originais da MPF: Fotos 674-677, 683, 692
997
- Cad.de Campo 8, p.62
161

não se apressa pra sair na mesma maré alta que entrou, tem que gramar em 500$000 pro Estado
(menos os do Loyd). O Pacheco quando contratou o transporte da bagagem para bordo não fixou o preço
de maneira que quando chegou a hora do pagamento o preço enguiçou [?]. 11$600 pedia o carregador e
[ainda] precisavamos pagar 105$000. Uma merda.
Impossível tomar apontamentos. O navio está jogando muito e não se pode escrever, Onze horas e vou
dormir. (...)”. 998

A rápida passagem da Missão por São Luiz do Maranhão, somente 5 dias, foi objeto de avaliação crítica
efetuada por um jornalista local não identificado. Segundo esse jornalista, os resultados etnográficos obtidos pela
equipe na capital não eram suficiente para representar parte significante do folclore maranhense, que, de acordo com
ele, ainda se encontrava intacta no interior do Estado. Demonstrando ter conhecimentos sobre etnografia, o jornalista
criticou as coletas efetuadas na capital, questionando a veracidade dos informantes populares arregimentados pela
equipe e a metodologia empregada para os trabalhos de gravação. Além disso, o jornalista considerou a época de
passagem da equipe pela capital maranhense como inapropriada pois “(...) as danças e cantos rituais não podem ser
executadas senão em determinadas ocasiões (...)”, senão, “(...) pode acontecer que se esteja vendo e ouvindo (...)
coisa muito diferente do que se desejava ver... (...)”.
Apesar do caráter contundente, ao final do artigo o autor ponderou sobre a realização do evento Missão,
considerando-o como “(...) um primeiro passo para estudos menos de raspão das tradições populares do Brasil (...)”. É
interessante observar que essa matéria jornalística é a única a criticar abertamente os resultados obtidos pela equipe
preservada entre a documentação original:

“Passou por S. Luís missão paulista encarregada de fazer pesquisas folclóricas nos Estados do Nordeste,
Meio-Norte e Norte.
A demora dos ilustres pesquisadores no Maranhão foi pouca: estiveram pela nossa Capital apenas
alguns dias. E não nos consta houvessem estendido suas investigações a algum ponto do interior do
estado.
É, todavia, no interior, e não na capital do Maranhão, que se encontram mais vivas e abundantes as
tradições maranhenses, inclusive a poesia e a música populares. Muita coisa do nosso “folclore”
desapareceu mesmo de São Luís, achando-se refugiada em outras localidades. Haja vista o que se
passa com o Fandango, o Congo, o Tereco, o Baile de São Gonçalo, a Chegança, a Caninha Verde e
outros “brinquedos” que já não se observam há bons vinte anos, senão mais, nesta cidade. Neste
capítulo de nossas tradições estamos, na ilha do Maranhão, reduzidos ao Bumba-meu-Boi, aos Pastores
e aos Reis.
A poesia dos desafios e, em geral, tudo o que produziam os “cantadores” desertou da terra entre as baías
de São Marcos e São José.
Da nossa música popular tradicional ainda existe alguma coisa, mas apenas em pontos da ilha distantes
da capital e que, parece, não foram visitados pela comissão paulista.
Que viram os pesquisadores enviados de São Paulo pelo brilhante e culto espírito de Mário de Andrade
em São Luís? Dizem-nos que estiveram no João Paulo, filmando um Bumba-meu-Boi e uma dança em
casa de Minas e fazendo gravações para discos, de cantos daquele “brinquedo”e das negras de Nagô.
Segundo as informações que tivemos, o Boi era de gente da cidade, do que para logo se vê que as suas
“cantigas” não podiam vir do filão autenticamente tradicional desse gênero, fonte rica em toadas
belíssimas e características da alma do maranhense.
Por outro lado, essa questão de anotar dados referentes aos cultos negros do Maranhão tem, como lá diz
o povo, os seus “porquês”. O que se observa nem sempre é a realidade. As danças e cantos rituais não
podem ser executadas senão em determinadas ocasiões. E pode acontecer que se esteja vendo e
ouvindo, fora de tais ocasiões coisa muito diferente do que se desejava ver... Isto sem falar na parte do
[...?] somente acessível a um número reduzido de pessoas.
Que teriam visto os paulistas pelas casas de Minas? Não se sabe como responder a esta pergunta, mas
não é muito difícil que, não tendo aparecido em ocasião oportuna, ouvissem e vissem pouco mais do que
nada, se encarado pelo lado das verdadeiras tradições do animismo fetichista do negro maranhense. Em
matéria de folclore há uma precaução indispensável [para] quem quer pesquisar: sondar bem o terreno,
até saber onde está a realidade.
O fato, porém, da vinda da comissão paulista à nossa terra é motivo para lovarmos a iniciativa de Mário
de Andrade. Ela representa um primeiro passo para estudos menos de raspão das tradições populares
do Brasil, desconhecido que é quasi tudo o que encontramos da Bahia até ao Amazonas e o qual
devemos tratar de revelar, antes que desapareçam as suas tradições, batidas por toda a parte pelo
999
cinema e o carnaval. (...)”.

998
- idem ibidem.
999
- Hemeroteca Doc.s/nº - “O Folklore.”, São Luís do Maranhão, Diário do Norte, 26 de junho de 1938
162

No dia seguinte, 21 de junho às 19:00 horas, a equipe chegava a Belém do Pará, aí permanecendo até o dia 7
de julho, quando teve que encerrar suas atividades e retornar rapidamente a São Paulo.
163

2.12 - de 21 de junho a 21 de julho: trabalhos etnográficos em Belém do Pará, contatos com


autoridades e personalidades locais - a “filha da rainha Luzia” - retorno a São Paulo

Logo após o desembarque em Belém do Pará, em 21 de junho às 19:00 horas, Luiz Saia já instalado no Grande
Hotel, procurou entrar em contato com Gastão Vieira - escritor, jornalista paraense, amigo pessoal de Mário de
Andrade, que viera recomendado pelo Turista Aprendiz desde a partida da equipe de São Paulo. 1000 O Chefe da
Missão tratou de estabelecer contato ainda na noite de 21 de junho. Após telefonema, foi marcado encontro entre os
dois no Teatro da Paz em Belém, onde, acompanhado de Antônio Ladeira, Luiz Saia conversou rapidamente com
Gastão Vieira, e marcou um novo encontro para o dia seguinte ao final da tarde, quando conversariam mais
detalhadamente.
Nestes primeiros dias da equipe em Belém, Luiz Saia procurou várias personalidades locais. Além de Gastão
Vieira, destacaram-se o Diretor do Museu Goeldi de Belém - Dr. Carlos Estevam - e o Diretor do Serviços de Barcas do
Estado - Dr. Pires Teixeira. O objetivo de Luiz Saia era obter auxílio junto às autoridades, particularmente o apoio do
Prefeito da capital - Abelardo Condurú - para os trabalhos da expedição. Essa ajuda material constava principalmente
da cessão de transporte da equipe e seus equipamentos aos locais onde estariam sendo realizados as manifestações
folclóricas características durante o mês de junho, como os cordões de bichos e boi-bumbá.
Com Gastão Vieira a equipe se encontrou praticamente todos os dias de permanência em Belém. O intelectual
paraense chegou inclusive a acompanhar alguns dos trabalhos de gravação da Missão. Foi também por mediação
dele que a expedição obteve mais facilmente a autorização concedida pelos poderes policiais paraenses para a
realização de sessão especial dos cultos de feitiçaria então proibidos e perseguidos.
Cabe também sublinhar um aspecto secundário registrado com alguma insistência no diário de Luiz Saia a partir
de 21 de junho: quando à noite foi ao Teatro da Paz no primeiro encontro com Gastão Vieira, Luiz Saia conheceu no
saguão um pouco antes do início do espetáculo uma linda mulher, - “(...) uma morena do outro mundo (...)” -, por quem
se sentiu muito atraído. Com essa pessoa - identificada sempre por a filha da rainha Luzia -, Luiz Saia se encontrou
diversas vezes, estabelecendo uma relacão que pode ser considerada mais do que amigável, quase um namoro. A
“filha da rainha Luzia” esteve presente em vários momentos durante a estadia da equipe em Belém. A empolgação e
1001
interesse do Chefe da expedição pela mulher ficou manifesta logo no primeiro contato:

“(...) Chegamos no “Port of Pará” às 19 horas. Custou o desembarque por causa da chuva e de precisar
passar revista na bagagem.
camareiro dos quartos 15$000
2 carros pra transporte de malas e passageiros ao hotel 20$000 / 2 entradas R. Viana 22$000 / Lanche à
noite 7$000
Assim chegado, como não havia lugar no tal Hotel Suiço que vinha recomendado de S. Luís, fomos pro
Grande Hotel de Belém. Imediatamente telefonei ao Gastão Vieira que disse poder me visitar no dia 22
pruma conversa de meia hora. Depois propôs que encontrassemos no teatro. Deu o número das cadeiras
onde estaria com a senhora e toca pro teatro. É a companhia do R. Viana. Pouco antes de começar o
espetáculo passeava com Ladeira pelo saguão quando entrou “a filha da rainha Luzia”, uma morena do
outro mundo parece que aqui do Pará mesmo com cara de mestiça e linda pra burro. Com ela vinha uma
irmã parecida e morena idem que parece casada e é mais mulherona. E vinha também uma loura do
mesmo estilo caral [sic]. Parecem ser irmãs. Não tenho dúvida que são filhas da rainha Luzia. O couro
aderia e tem perna fina mas é pralá de boa. Aderi. Depois do teatro localizei a casa dela. No intervalo do
1º ato saí pro saguãozinho e aí veio me encontrar o Gastão Vieira com quem tive uma ligeira palestra
cordial. Ele disse que me procuraria amanhã às 6 horas da tarde pra conversarmos mais longamente.
1002
Depois do teatro fui cear com Ladeira (...)”.

Os integrantes da Missão procuraram orientar a realização dos trabalhos etnográficos segundo as atividades
comemorativas dos festejos de São João, realizadas particularmente entre os dias 23 e 24 de junho. Naquele ano de
1938, parte das festas tradicionais dessa época seriam patrocinadas com o intenso e efetivo apoio da prefeitura local -
tendo à frente o prefeito Aberlardo Condurú -, além de jornais e rádios da capital. Além disso, estavam em plena
atividade os diversos grupos de Boi-Bumbá e cordões de Bichos já tradicionais em Belém. Era a oportunidade de
efetuar registros etnográficos com maior facilidade de coleta:

1000
- Segundo um artigo de jornal escrito por Gastão Vieira, Luiz Saia foi portador de uma carta de apresentação redigida por
Mário de Andrade. Esse documento não se encontra entre aqueles preservados no acervo original da Missão: “(...) Não faz
muitos dias, recebi uma telefonada do Grande Hotel. Atendi prontamente ao chamado e, durante alguns minutos, conversei
com o sr. Luiz Saia, que desembarcara, havia pouco, do “Ita”, e era portador de uma carta para mim, de Mário de Andrade.
(...)”. (Hemeroteca Doc.nº 56X - “Missão de pesquisas folclóricas que vem de S. Paulo ao Pará - Gastão Vieira.”, Belém, 24
de junho de 1938
1001
- Foi impossível determinar o significado exato do termo “filha da rainha Luzia”. Tratar-se-ia somente de um apelido?
1002
- Cad.de Campo 8, p.67-68
164

“(...) Em Belém, disseminados pelos vários bairros da capital, existem, mais ou menos, dez “bois”
conhecidos de toda a população.
Quando os festejos joaninos se aproximam, os postes das artérias concorridas e as paradas de bonde
ficam enfeitadas carnavalescamente com grandes cartazes deste jaez:
Terça-fêra, 21. Todos. Todos. - Grande ensaio geral do boi “Estrela D'alva”, em seu curral, à avenida de
São João. Morenas desacatantes.
O transeunte lê. O passageiro de automóvel, do ônibus, do elétrico lê. O carroceiro, o carregador, a
lavadeira, o operário e operária também. Todo mundo fica sabendo que o “Pai do Campo”, bicho duro,
com trinta anos de existência vai ensaiar. Quem não lê, ouve os comentários.
De maneira que, ao chegar à noite, o carroceiro, o passageiro, o operário, acorrem ao parque, onde há
cerveja quente e pastéis frios.
Vão ver o “boi” que entra no pavilhão, gingando em trinta quadris. Então, para o forasteiro, para o
desconhecido surge uma sensação inédita... Mulheres e homens suarentos se agitam e se requebram no
palco de madeira mal ajustada, bizarra e exótica.
(...)
Em geral, o dono do “boi” é um agente de segurança pública... Aluga as barracas que constituem o
arraial, fica explorando uma e o teatro, ao lado, inovação do modernismo. É quem compra a indumentária
1003
do pessoal e se esforça para ver o “bezerrinho” se exibir. Não tira, nunca, lucro da empresa. (...)”.

Também nas festividades patrocinadas pela prefeitura de Belém do Pará, realizadas principalmente em palco
armado na praça Floriano Peixoto na capital, havia grande participação popular com apresentação de diversos grupos
e de artistas consagrados na região. Entre as atividades programadas com apoio municipal estava a promoção de um
“concurso oficial dos bumbás e pássaros”, que se iniciar-se-ia “às vésperas de São João”:

“(...) Prosseguem com vibração as festas joaninas na praça Floriano Peixoto, patrocinadas pelo prefeito
Abelardo Condurú, promovidas pelo O Estado do Pará, Vanguarda e Rádio Club.
O arraial deve encher hoje [22 de junho], pois vai ao palco do arraial a apreciada artista paraense Stella
Sousa, que, com seu Grupo das Sereias, apresentará ao público um programa variado e interessante.
O programa começará às 10 horas da noite, prevendo-se grande sucesso.
O público vá aguardando o desenrolar do grande programa organizado pela comissão de festejos,
contando do mesmo nas vésperas de São João, o início do concurso oficial dos bumbás e pássaros.
Vem também a noite dos Balões, da Festa da Fogueira e dos Fogos de Artifício com suas surpresas
mirabolantes.
A festa da Floriano Peixoto, assim, conseguiu ser o ponto de concentração das festas joaninas, onde o
prefeito Abelardo Condurú, oferece aos seus munícipes, gratuitamente, as diversões mais tradicionais da
época.
(...)
São João no Mosqueiro
Sob o patrocínio do prefeito Abelardo Condurú, do dr. Alcindo Cacella, do sr. Carlos Bentes e de
cavalheiros da localidade e do comércio, veranistas, etc., realizar-se-á a 24 do corrente, na vila do
Mosqueiro, a festa escolar de São João.
Os festejos se promoverão ali pela terceira vez e os seus promotores professor Luiz de Oliveira e sr.
1004
Juvêncio Gomes, não tem poupado esforços para o brilho dos mesmos. (...)”.

Um dia após a chegada em Belém, 22 de junho, terça-feira, o Chefe da Missão se dirigiu ao Museu Goeldi para
se apresentar oficialmente ao seu diretor - Dr. Carlos Estevam. Além de comunicar a presença da expedição na
cidade, Luiz Saia procurou solicitar ajuda à equipe no que fosse possível. Personalidade influente no meio intelectual
paraense, Carlos Estevam se comprometeu a facilitar a apresentação de Luiz Saia ao prefeito Abelardo Condurú no
dia seguinte.
Também no dia 22, Luiz Saia retomou as comunicações com São Paulo depois de lapso de alguns dias, desde
5 de junho, quando a expedição encontrava-se em viagem pelo sertão cearense. Desde então, o Chefe da Missão
enviou somente telegramas a Mário de Andrade, comunicando de maneira muito suscinta as atividades da equipe.
Pode-se supor que essa forma abreviada de comunicação foi combinada previamente por ambos, talvez com o intuito
de evitar maiores problemas com a nova administração municipal de São Paulo.
À noite, depois de um novo encontro no hotel com Gastão Vieira onde foram apresentados os demais
integrantes da Missão - Braunwieser e Pacheco -, é provável que Luiz Saia tenha se comunicado com a “filha da
rainha Luzia”, convidando-a para assistir uma peça teatral em cartaz no Teatro da Paz. Ao que parece, apesar de ter
aceito o convite, a “filha” não compareceu. Antes do início do espetáculo, o Chefe da Missão aproveitou o tempo
observando e tecendo considerações sobre a iconografia do Teatro da Paz:

1003
- Hemeroteca Doc.nº 54X - “As tradições populares na reportagem da Folha.”, Belém, Folha do Norte, 23 de junho de 1938
1004
- Hemeroteca Doc.nº 51X - “Os grandes festejos joaninos da praça Floriano Peixoto segue com intensa vibração popular e
grande animação.”, Belém, O Estado do Pará, 22 de junho de 1938
165

“(...) [22.6.38] Dormi bem numa noite quente de danar e debaixo de mosquiteiro pois estamos no 1º andar
e só lá pro terceiro é que os mosquitos não entram. De manhã lá pras 10 horas fui ao Museu Goeldi pra
ver si encontrava o prof. Carlos Estevam. Não estava e eu esperei um bocado que o porteiro disse que
ele deveria chegar ainda antes do almoço. Cansei de esperar vendo os pássaros e cerâmica (...) do
museu e fiquei de voltar às 3 horas da tarde. Voltei pro hotel, passei 2 telegramas, um a Mário (...)
[“Maranhão ótimo trabalhamos Belém”] 1005
(...) e outro pra casa 6$600 + gorgeta 1$000.
Fui almoçar e depois fiquei em conversa ali fora. Voltei ao hotel, escrevo estas notas e agora irei pro
Museu encontrar o Carlos estevam. Parece que a Prefeitura patrocina os cordões de Bichos. Estou
olhando [?] de interesse num entendimento meu com o Sr. Prefeito a respeito. Espero boa colheita aqui.
Ainda não encontrei as cartas escritas a bordo pro Otacílio [?] e pro Mário. Encontrei, estavam na
máquina de escrever. Vou mandá-las. São 14:30. 1006
[Nota acima da página: “pagelança - chaçéu virado / dia 23 cedo (4 ou 5 horas) Ver o peso e os
mucambos. Banho cheiro”]
Às 14:50 cheguei ao Museu Goeldi à procura do prof. Carlos Estevam. Como ele estava entretido com
dois visitantes, no parque, fiquei esperando por ali. Quando os visitantes se foram fiz-me anunciar com
meu cartão. Imediatamente o prof. Estevam me recebeu com toda a cordialidade e camaradagem.
Pusemo-nos logo a vontade na conversa e vim saber que ele foi designado pelo Rodrigo [Mello Franco
de Andrade - diretor do SPHAN] para assistente do Sphan aqui. Tem cultura etnológica porém está
francamente descambado para a ciência pura. É uma merda. Me informou sobre a venda dos cheiros no
Ver o Peso e nos mercados, amanhã cedo. Se dispôs a me ajudar em tudo que puder e amanhã mesmo
me apresenta_á ao prefeito Aberlardo Condurú. Isto é de extremo interesse uma vez que a prefeitura
patrocina, neste ano, as festas joaninas populares. De volta do Museu dormi até 17:30. Tomei banho e
desci para tomar um grogue [sic] e esperar o Dr. Gastão que viria às 18:30. Fiquei na calçada sentado
[em] uma das mesinhas do bar com o anglo-carioca Daniel [?]. Pouco depois das 18:30 veio o Dr.
Gastão. A conversa dele foi hoje muito mais amiga e menos cerimoniosa. Se abriu mais mas ainda me
chama de senhor. Recebi-o ali mesmo e apresentei a ele ao Martin e Pacheco. Ladeira já apresentara no
Teatro ontem. 19 e tanto Gastão se foi. Jantamos, saímos pra passear até perto de casa da filha da
rainha Luzia e depois eu e Ladeira fomos ao teatro. Durante o jantar o D. Gastão me telefonou pedindo
informes pruma notícia nos jornais daqui pra amanhã. Vou deixar isso escrito no hotel e ele procurará
1007
amanhã cedo.
Este teatro da Paz, além de mal localizado, tem um plano verdadeiramente incômodo. Pra se entrar nas
cadeiras, se desce uma escadaria e quasi se passa pelo porão entrando pela frente diante da caixa. O
pano de boca tem uma pintura feia representando a República. Embaixo, nesta pintura tem uma [...?] azul
onde se inscreveu 1889 em ouro. O quadro, de uma composição e simbologia primária, representa a
República (mulher) em atitude demagógica tendo em volta figuras de índios e negros. Um índio oferece à
república um filho de barriga inchada. Flores no chão. No teto deste teatro a pintura [é] graciosamente
empetecada. Quadriga na frente (com indefectíveis corcéis fogosos e com enfant terrible de bronze quasi
caído do carro). Os outros 3 grupos ao lado e atrás representam guarany (o detrás) e não sei mais o que.
O Gastão me disse [...?] pintura notável aí e na catedral de um tal De Angelis, contratado na Itália no fim
do século XIX para essas decorações. Parece que a pintura deste De Angelis está no salão nobre do
Teatro. Vi ela e não achei boa. Além de estar estragada - má técnica e besta de mal desenhada. O todo
do teatro apresenta alguma riqueza... de mau gosto. XIX no seu fim com a borracha saindo do
Amazonas. A filha da rainha Luzia não apareceu no teatro e a peça “Ladrão” foi uma porcaria. Um
verdadeiro xarope. Aguentei a xaropada de versos dele (Bilac) e do de Basile Horrible [sic]. A única coisa
que salvou o espetáculo de ser merda completíssima (porque merda completa foi) foi a dança de M.
Caetana ao som de um gramofone ruim do diabo. O espetáculo foi das danças [?] armadas. Palmearam
os autores. Refresco antes de dormir. 2$400. Faço estes apontamentos. Ladeira 5$400. 1 hora do dia
1008
23/4/38. (...)”.

Em 23 de junho, quinta-feira, o objetivo de Luiz Saia foi conhecer o prefeito Abelardo Condurú que lhe seria
apresentado através da mediação do diretor do Museu Goeldi de Belém, Carlos Estevam. Agindo conforme o que
havia sido previamente combinado, Luiz Saia se encaminhou pela manhã ao Museu Goeldi com o intuito de encontrar-
se com Carlos Estevam, indo depois, acompanhado dele, à sede da prefeitura para ser apresentado a Abelardo
Condurú. No entanto, tudo aconteceu de maneira imprevista para o Chefe da expedição.
Devido às intensas atividades comemorativas programadas para aquela época, o prefeito Condurú estava com
sua agenda completamente tomada. Em 23 de junho, Abelardo Condurú recebeu a visita do Embaixador da Inglaterra

1005
- Corresp.Doc.49 - de Luiz Saia a Mário de Andrade, Belém, 22 de junho de 1938
1006
- Esta correspondência a Mário de Andrade não está preservada entre documentação original da Missão.
1007
- O artigo de Gastão Vieira foi publicado em 24 de junho. Hemeroteca Doc.nº 56X - “Missão de pesquisas folclóricas que vem
de S. Paulo ao Pará - Gastão Vieira”, Belém, sem identificação do título do períodico.
1008
- Cad.de Campo 8, p.68-73
166

- não identificado nominalmente por Luiz Saia -, com quem permaneceu boa parte do dia. Mais tarde, o Abelardo
Condurú se encaminhou à vila de Mosqueiro com o objetivo de acompanhar a festa da noite de São João naquele
local, com o patrocínio da Prfeitura. Devido a esses compromissos Abelardo Condurú não pôde reservar tempo para
conversar com o Chefe da Missão.
Quando Luiz Saia chegou ao Museu Goeldi na manhã de 23 de junho, ficou sabendo que Carlos Estevam fôra
chamado à sede da prefeitura para recepcionar, juntamente com o prefeito, o embaixador inglês. Luiz Saia então para
lá se encaminhou. Quando chegou, soube da intenção e vontade do embaixador inglês em realizar uma visita ao
Museu Goeldi, de onde acabara de sair. Rapidamente Luiz Saia e Carlos Estevam voltaram à sede do Museu,
procurando chegar antes da comitiva oficial.
O prefeito Abelardo Condurú e o embaixador inglês chegaram momentos depois. De posse de uma câmera
cinematográfica, o embaixador inglês entusiasmado passou a filmar aspectos internos do Museu Goeldi em particular,
dos viveiros de aves e outros animais além de plantas típicas existentes no local. Carlos Estevam, percebendo que
não seria possível conversar com Abelardo Condurú naquele momento, solicitou ao Chefe da Missão que retornasse
no período da tarde. Assim foi feito.
Por volta das 15 horas, Luiz Saia e Carlos Estevam se encontraram novamente no Museu Goeldi indo em
seguida à sede da prefeitura de Belém. Porém, ao chegar foram informados que Abelardo Condurú havia já se
deslocado à vila de Mosqueiro para acompanhar durante a noite as festas de São João.
Sem perder o ânimo, Luiz Saia e Carlos Estevam saíram à procura de outra autoridade local - o Diretor dos
Serviços de Barcas do Estado do Pará, Dr. Pires Teixeira. Com ele, Luiz Saia conseguiu obter o transporte da equipe e
seus equipamentos de gravação à vila de Mosqueiro - onde afinal, ao que parece, Luiz Saia pôde conversar com o
prefeito Abelardo Condurú.
A vila de Mosqueiro seria uma escala para o município de Souré, na Ilha de Marajó, onde a Missão daria
prosseguimento em seus trabalhos etnográficos. Após esse encontro com o Dr. Pires Teixeira, ocorrido em uma oficina
de consertos de navios, Luiz Saia e Carlos Estevam retornaram ao Museu Goeldi. Para facilitar os contatos do Chefe
da Missão com o prefeito de Belém, Carlos Estevam entregou a Luiz Saia uma carta de apresentação por ele redigida.
Às 19:00 horas, a equipe da Missão embarcava em navio-vapor para a vila de Mosqueiro:

“(...)
[No pé da página anterior: Diretor serviços barcas do Estado Dr. Pires Teixeira].
(...) De manhã fui a procura, como combinara, do prof. Carlos Estevam no Museu Goeldi. Ele não estava
porém deixara um recado pra eu encontrá-lo no palácio. Fui pro palácio (10$000 para automóvel) ele lá
estava com o governador, embaixador inglês e etc. O embaixador disse querer então visitar o Museu
então partimos apressados pro Museu pra chegar lá antes. Aí, quando a besta do Embaixador chegou
garrou a cinematografar os pássaros que ficou até meio dia pra diante. Então o Estevam chegô sem jeito
pra mim, tremendo e pediu que eu o fosse procurar às 3 horas. Voltei, almoçei, ajudei Ladeira fazer a
1009
prestação de contas dele e à tarde fui ao Correio e casa cinematográfica. Desta última tomei um
automóvel e fui pro Museu onde cheguei logo depois das 3 horas. Saí com Carlos [Estevam] e fomos a
procura do prefeito Abelardo Condurú que fôra a Mosqueiro. Procuramos então o Diretor da Companhia
Estadual de Navegação que faz a linha Mosqueiro - Souré, etc. [na Ilha de Marajó]. Íamos encontrá-lo na
oficina de consertos de navios. Pra poder chegar até o navio (300 toneladas) onde ele estava precisamos
atravessar uns tantos outros velhos em conserto ou abandonados, em seco. Caminho pelos cascos (...)
encontrando porcos, galinhas, roupa a secar e cozinha improvisada. Gente morando ali. O diretor Sr.
Pires Ferreira fiscalizava o conserto de um navio de linha que deveria no próximo domingo transportar o
governador. O Estevam me apresentou a ele [que] me pareceu inofensivo com ar respeitoso de
camarada. Dali voltamos, eu e Estevam pro museu onde o Estevam me deu uma carta de apresentação
[pro] Aberlardo que estava em Mosqueiro. 40$000 de automóvel com isso.
Voltei pro hotel e providenciei [...?] o embarque do pessoal e material pra Mosqueiro. O Martin e Pacheco
tinham saído. Ladeira providenciou caminhão para transporte do material. Às 6 horas [da tarde] chegou
1010
Martin Braunwieser. (...)”.

Às 19 horas de 23 de junho, a Missão viajou para a vila de Mosqueiro, embarcando em seguida em navio vapor
que fazia a linha Mosqueiro - Souré, na ilha de Marajó.
O diário de Luiz Saia se interrompe a essa altura da narrativa. Depois do trecho acima transcrito, restam breves
anotações do Chefe da expedição referentes às manifestações populares registradas pela equipe no Estado do Pará,
além de breves notas sobre as atividades da Missão em outros dois dias, 27 e 29 de junho.
A equipe permaneceu em viagem pela ilha de Marajó pelo menos até o dia 26 de junho. É interessante notar
que durante esse período em que esteve em Mosqueiro e certamente na ilha de Marajó, a Missão não realizou
nenhuma atividade de coleta etnográfica, não obstante ter provavelmente assistido diversas atividades comemorativas
pela passagem do dia de São João, como as festas joaninas patrocinadas pela prefeitura de Belém.

1009
- Não há nenhuma correspondência nessa data preservada no Acervo Histórico da Discoteca
1010
- Cad.de Campo 8, p.74-88
167

A ida da expedição à Ilha de Marajó tinha provavelmente a intenção de registrar os cordões de Bichos
realizados durante aquela época. Segundo depoimento prestado por Martin Braunwieser, as melodias então entoadas
apresentavam um aspecto primitivo de polifonia a duas vozes. No entanto, não foram realizados trabalhos de
documentação. Ao que parece, ainda segundo o depoimento do maestro, quando a Missão se encontrava na ilha de
Marajó, a equipe recebeu um telegrama de São Paulo com ordens experessa de retorno imediato da expedição. 1011
Este documento não foi localizado entre aqueles preservados no Acervo Histórico da Discoteca Pública Municipal.
O breve relatório de Luiz Saia sobre o dia 27 de junho de 1938 não contém nenhuma menção explícita à ordem
de retornar à São Paulo. A narrativa sobre as atividades do Chefe da Missão durante esse dia foi efetuada de maneira
bastante suscinta revelando porém, a preocupação de Luiz Saia em acertar a situação financeira entre os
componentes da Missão e outros gastos da equipe, realizando a prestação de contas da expedição até aquela data.
Também nesse dia, Luiz Saia retirou em uma agência bancária a última parcela da verba inicial destinada à realização
da Missão, enviada por Oneyda Alvarenga de São Paulo.
Além disso, como um aspecto secundário da viagem, o relatório do dia 27 de junho pode demonstrar que a
relação do Chefe da Missão com a “filha da rainha Luzia” havia se tornado bastante amigável, pois a freqüência de
encontros entre os dois estava cada vez mais intensa. Naquele dia 27, Luiz Saia avistou-se com a mulher paraense
pelo menos duas vezes: pela manhã, em visita à sua residência; e à tarde, em um novo encontro mais demorado. Um
terceiro encontro foi programado para a noite, depois de conversa com Gastão Viera. No entanto, segundo as
anotações de Luiz Saia, a “filha da rainha Luzia” não compareceu:

“(...) 27.6.38 - Me levantei às 7:30. Às 10 conversei com a filha da rainha Luzia ao telefone e depois estive
em casa dela. Às 11 voltei, fiz um bocado de prestação de contas e fui almoçar. Às 13 fui à cidade, retirei
9:000$ do banco e recebi dinheiro enviado pela Oneida. Às 16 estive com a filha da rainha Luzia. Voltei,
jantei, fonei para Gastão [Vieira] que fui encontrar no teatro onde a filha não foi. Liquidei contas com o
Pacheco pagando a caneta [?] também. Paguei o mês passado ao Martin e dei 50$ ao Ladeira. Pro
1012
Martin dei 62$600 e pro Pacheco dei 265$000 + 50$000. (...)”.

Entre 29 de junho a 4 de julho a equipe da Missão procurou efetuar pesquisas sobre a dança dramática do boi-
bumbá - encontrada em Belém do Pará - sendo auxiliada, para o contato com os informantes populares, por Gastão
Vieira. Ao que parece, em 29 de junho, foram realizados os primeiros contatos da Missão com o grupo de Boi Bumbá
“Pai do Campo”, sediado no bairro da Cidade Velha ou Jurunas da capital do Pará, bastante afamado pela cidade.
Segundo as anotações, o grupo era formado por cerca de 25 integrantes - coro de 8 a 12 pessoas, com 3
tambores, 1 cuíca, 6 pares de palmas, 1 xéque-xéque e 4 pandeiros. Em 29 de junho pela manhã, acompanhados por
Gastão Vieira, os componentes da Missão assistiram a um ensaio, iniciando em seguida os trabalhos de gravação. Ao
que parece, o serviço somente foi interrompido em torno das 13:00 horas por solicitação do integrantes do boi-bumbá
que alegavam estar cansados. Nesse primeiro dia de trabalho, foram registrados 3 discos de 14 polegadas contendo
1013
30 melodias características da dança dramática.
Após o término das gravações, durante a tarde de 29 de junho, Luiz Saia encontrou-se mais uma vez com a
“filha da rainha Luzia” permanecendo em sua companhia até a entrada da noite, quando retornou ao hotel. Após o
jantar, os componentes da expedição tiveram oportunidade de assistir uma comédia joanina - O Pitauam - em teatro
popular da periferia capital. As melodias dessa manifestação foram registradas dias após em notação musical pelo
maestro Martin Braunwieser:

“(...) Neste dia 29.6.38 o Dr. Gastão veio me procurar às 8:30 pra irmos começar o trabalho de gravação.
Fomos ver o lugar e Pacheco veio buscar os aparelhos voltando com Ladeira que ficara. O auto esperou
Dr. Gastão para voltar às 11 e 30. Ladeira durante os trabalhos se sentiu mal. Terminamos o serviço de
hoje às 13 horas pois o pessoal do boi não aguentava ir pra diante. Almoçamos no hotel pagando 5$000
de serviços garçon. extraordinário.
Gasto viagens automóvel 40$000
A “filha” me telefonou às 13:40 e às 16 fui encontrar com ela e estive até às 18. À noite depois do jantar
voltei e o velho [?] deu chamada. O Ascânio chegou de S. Luís e contou o negócio dos comentários que

1011
- Depoimento cedido ao autor em 1988: “(...) CARLINI - O senhor chegou a encontrar algum contraponto primitivo por lá? ou
não, era sempre uma melodia? / BRAUNWIESER - Pode ser. Mas se foi, foi muito pouquinho... Muito pouca coisa. Mesmo a
duas vozes quase não existe. / CARLINI - E instrumental a duas vozes? / BRAUNWIESER - Instrumental a duas vozes? Isso
não. / CARLINI - Não existe? / BRAUNWIESER - Não existe. Lá em Belém, já a nossa passagem era comprada e... avisa
tudo... viajamos dia seguinte. Ouvimos e estivemos até a ilha de passagem. Marajá, chama-se. / CARLINI - Marajó. ilha de
Marajó. / BRAUNWIESER - Lá tem um conjunto, uma tribo, não me lembro mais, que canta a duas vozes. / CARLINI - E
vocês não chegaram a gravar? / BRAUNWIESER - Eu fiz força, estava com tudo já pronto e antes de sair chegou o
telegrama... voltar para São Paulo. Mudou prefeitura e o prefeito [Prestes Maia] não achava importante. Achava mais
importante gastar o dinheiro com rua, não? (...)”.
1012
- Cad.de Campo 8, p.88
1013
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.34-35, 99-101. Discos F.151-F.153, fons.1020-1050
168

1014
se fizeram de nós falando a respeito do artigo saído lá. À noite fomos também a S. Braz. assistir a
comédia do “Pitauam”. Voltei. Café. Dormir. (...)”. 1015

Em 30 de junho, às 7:30 da manhã, a Missão deu continuidade aos trabalhos de pesquisa e gravação com o
grupo de boi-bumbá “Pai do Campo”. É provável que devido à ordem de retorno a São Paulo, a equipe tenha se
preocupado em finalizar o mais rapidamente as pesquisas etnográficas em Belém do Pará voltando o quanto antes à
capital paulista. Em dia 30 de junho foram gravados outros 14 discos de 14 polegadas contendo 107 melodias da
dança dramática. 1016
Entre 1º a 4 de julho, a equipe efetuou o documentário em fotos 1017 e filme cinematográfico. 1018 Os textos das
toadas gravadas foram anotados por Luiz Saia em uma caderneta de campo. 1019 Além disso, o Chefe da Missão
conseguiu obter junto aos integrantes do grupo um caderno manuscrito contendo todas as particularidades da
manifestação - como o número de personagens envolvidos, suas falas características e textos de melodias cantadas.
Esse caderno foi integralmente copiado e datilografado por Luiz Saia sendo posteriormente incorporado ao Acervo
Histórico da Discoteca Pública Municipal. 1020 Os dados sobre os informantes e a relação das melodias gravadas,
descrição das fotografias e do filme cinematográfico foram anotados por Antônio Ladeira e Benedito Pacheco em três
cadernetas de campo. 1021
Paralelamente aos trabalhos com o boi-bumbá, entre o período de 1º a 4 de julho, Luiz Saia estabeleceu contato
com os poderes policiais da capital obtendo autorização, com o auxílio decisivo de Gastão Vieira, para efetuar
trabalhos de gravação junto a grupo de cultos de feitiçaria de Belém. Entre 5 a 7 de julho, os integrantes da expedição
estabeleceram contato com Satiro Ferreira de Barros - mestre de culto fetichista denominado por Babassuê. Sobre
essa manifestação folclórica convém transcrever aqui os comentários de Oneyda Alvarenga, publicados em 1950,
quando foram divulgados os discos dessa parte do acervo em discos já preservados pelo processo de matrização:

“(...) Em nenhum dos livros de nosso conhecimento, encontramos ainda qualquer referência à palavra
Babassuê, como designação de algum culto religioso popular brasileiro. Na verdade, não só nesse, mas
em qualquer sentido, a palavra nos é inteiramente desconhecida e não a achamos nos dicionários da
língua que pudemos consultar.
(...) [Satiro Ferreira de Barros] considera-a originária da Barba (Bárbara) Suêra. Se não derivou do nome
desta divindade ou espírito, cultuado também em religiões afro-brasileiras do Maranhão [cf. Otávio da
Costa Eduardo: “Three-Way Religious Acculturation in a North Brazilian City”. AfroAmérica, vol.II, p.27],
Babassuê tem ao menos um ar de parentesco com Barba Suêra. Qual a ligação possível existente entre
os dois, a razão e origens dela, são coisas que não sabemos dizer e nem podemos inquirir no momento,
1022
dada a natureza deste trabalho. Apenas lembramos que Babassuê apresenta a raiz africana baba ou
babu, que significa pai.
A MPF trouxe poucos informes sobre este Babassuê. Segundo declara seu pai-de-terreiro, o culto se
chama realmente Batuque - de - Santa - Bárbara, nome que substituiu o antigo e verdadeiro: Candomblé
(nota de Luiz Saia). Antônio Ladeira, auxiliar da MPF, registra as designações “Candomblé-Batuque-de-
Mina” (Cad.5.A, p.159)
Pelo documentário da MPF, e principalmente pelos cânticos gravados, se vê que este Babassuê,
Batuque-de-Santa-Bárbara, Batuque-de-Mina, Candomblé, e talvez ainda Pagelança, funde tradições
religiosas negro-africanas, nagôs e gêges (seu elemento básico, possivelmente), a crenças recebidas da
Pagelança amazônica, culto de inspiração ameríndia cujo correspondente mais franco é o Catimbó
nordestino e nortista. Este Babassuê equivale pois, quem sabe, ao Candomblé-de-Caboclo baiano e
outras misturas religiosas afro-ameríndias que existem no país, mostrando predominância ora de uma,
1023
ora de outra das tradições. (...)”.

Em 5 de julho, terça-feira, com o grupo de Satiro Ferreira de Barros, integrado por 19 pessoas, entre as quais 6
instrumentistas - 3 abadãs, 1 xéquéré, 1 agogô, 1 xéque -, foram gravados 4 discos e um lado de disco de 14
polegadas contendo 50 melodias características de Babassuê. 1024

1014
- Transcrito integralmente no presente trabalho. vide Capítulo IV item 2.11
1015
- Cad.de Campo 8, p.106-107
1016
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993, p.35-38, 101-111. Discos F.154-F.167, fons.1051-1154
1017
- Documentos originais da MPF: Fotos 427-450
1018
- Documentos originais da MPF: Filme 7.C, P&B, silencioso, 2'06” (“Boi-bumbá Pai do Campo”)
1019
- Cad.de Campo 8, p.89-191. Acervo Histórico DPM: T82P9
1020
- Acervo Histórico DPM: T50P6
1021
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 5, p.118-150 (Ladeira); Cad.de Campo 5.A, p.151 (Pacheco)
1022
- Oneyda Alvarenga refere-se à coleção “Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro”, que possuía somente caráter
expositivo do material coletado pela Missão e não o seu estudo analítico.
1023
- ALVARENGA, O. (org.) - “Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro, Vol.IV: Babassuê.”, São Paulo, Departamento
de Cultura, Discoteca Pública Municipal, 1950. p.9-10
1024
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.27-28. Discos F.168-F.172A, fons.1158-1187
169

No dia seguinte, 6 de julho, a equipe completou os serviços de gravação com o grupo, registrando outros 2
discos e um lado de disco de 14 polegadas com mais 30 melodias do ritual de feitiçaria. 1025 Também em 6 de julho
foram efetuados todos os registros em fotos 1026 e filme cinematográfico 1027 documentando os informantes populares
e aspectos da coreografia característica do culto.
Em 7 de julho, quinta-feira, no hotel que abrigou a equipe em Belém do Pará, a Missão trabalhou novemente,
desta vez apenas com o pai-de-terreiro Satiro Ferreira de Barros. Nesse encontro, a Missão soube que Satiro era
também conhecedor de melodias de pagelança - culto de feitiçaria de formação nacional, ligado ao catimbó e ao
candomblé-de-caboclo. Com ele, foi gravado 1 disco e um lado de disco de 16 polegadas contendo 16 melodias
entoadas sem acompanhamento instrumental. 1028 A relação e o texto das melodias gravadas, juntamente com outras
observações foram anotadas por Luiz Saia e Benedito Pacheco em duas cadernetas de campo. 1029 Este foi o último
trabalho de gravação efetuado pela Missão de Pesquisas Folclóricas.
Durante a tarde de 7 de julho, após o término dos trabalhos de gravação com Satiro Ferreira de Barros, Martin
Braunwieser teve oportunidade de assistir novamente a comédia joanina O Pitauam, presenciada pelo maestro na
noite de 29 de junho em companhia dos demais integrantes da equipe. Em 7 de julho, Martin Braunwieser realizou
anotações musicais das 16 melodias apresentadas durante a encenação. 1030
Segundo o maestro, O Pitauam era uma comédia joanina escrita por David G. dos Santos com músicas de
Joventino Ponce de Leão. O Pitauam “(...) foi escrito para as festas joaninas em Belém no ano de 1938 e levada pela
primeira vez nestas festas no mesmo ano (...)”. 1031 Em seus comentários sobre a obra, Martin Braunwieser não deixou
de efetuar observações críticas às músicas ouvidas naquela tarde de 7 de julho. Para ele, “(...) a impressão dessas
orquestras é pobre. Todos os instrumentistas pretendem tocar a melodia. Eu ouvi durante meia hora o 1º violino,
pistão, 1º saxofone e trombone tocarem em uníssono a melodia, às vezes o trombone passando para a 2ª voz. Não se
ouve harmonia, o som do cavaquinho ou da viola perto do pistão e trombone desaparece. Se ouve bem só a melodia,
o baixo e o ritmo da bateria. Nas músicas das comédias nota-se às vezes uma influência da música de dança norte-
americana. Mas domina em todos os pontos a nossa música popularesca (...)”. 1032 É importante ressaltar no entanto
que Martin Braunwieser observou que nessas pequenas peças cênicas de origem popularesca a presença da música
ocorria em grande quantidade. Este fato sugeriu ao maestro a hipótese de estar diante de um embrião de ópera
nacional: “(...) Das comédias joaninas consta geralmente mais música (canções) que prosa e elas dão a impressão de
uma opereta nacional. Talvez o começo verdadeiro de uma ópera popular nacional? (...)”. 1033
Com a comédia joanina O Pitauam, com o grupo de Babassuê e a pagelança de Satiro Ferreira de Barros, a
equipe da Missão de Pesquisas Folclóricas encerrou os trabalhos de documentação folclórico-etnográfica iniciada em
em princípios de fevereiro de 1938.
No mesmo dia 7 de julho, às 20:45 horas, a equipe embarcou a bordo do mesmo Itapagé e de outra
embarcação irmã - o navio-vapor Itanagé - com destino a São Paulo. As escalas dos navios vapor foram as seguintes:
dia 9 de julho, São Luís do Maranhão, onde embaracaram no Itanagé; dia 11, Fortaleza (Ceará); dia 12, Macau (Rio
Grande do Norte); dia 13, Natal (Rio Grande do Norte); dia 14, Recife (Pernambuco); dia 14, Maceió (Alagoas); dia 16,
Salvador (Bahia); dia 18, Vitória (Espírito Santo); dia 19, Rio de Janeiro (Rio de Janeiro); dia 21, Santos (São Paulo).
Logo em seguida, a equipe deixou Santos por trem chegando à Estação da Luz em São Paulo às 13:25 horas. 1034
Terminava após um período de 6 meses - fevereiro a julho de 1938 - a viagem da Missão de Pesquisas
Folclóricas.

1025
- idem, p.28-28. Discos F.172A-F.174B, fons.1188-1208
1026
- Documentos originais da MPF: Fotos 451-476
1027
- Documentos originais da MPF: Filme 9.B, P&B, silencioso, 3'06” (“Babassuê”)
1028
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.67-68. Discos F.174B-F.175, fons. 1208-1223
1029
- Cad.de Campo “Discos 1” (Pacheco); Cad.de Campo 1.A, p.141-145 (Saia). Acervo Histórico DPM: T55P6, T66P8
1030
- ALVARENGA, O. (Org.) - op.cit.1946. Coleção Martin Braunwieser, melodias nºs 420-436
1031
- idem, p.304
1032
- idem, p.305
1033
- idem ibibem
1034
- Cad.de Campo s/nº, p.75-76 (Braunwieser)
170

CAPÍTULO IV
A DIVULGAÇÃO DOS RESULTADOS

1 - Registros fonográficos: os discos das séries F e FM da Discoteca Pública Municipal


A preservação, divulgação, estudo e aproveitamento do acervo folclórico-musical registrado pela Missão de
Pesquisas Folclóricas nos Estados do Nordeste e Norte brasileiros - objetivos que nortearam a realização da viagem -,
não ocorreu de imediato. Enfrentando situações adversas após o afastamento de Mário de Andrade do Departamento
de Cultura de São Paulo, a Discoteca Pública Municipal somente pôde iniciar esse trabalho 7 anos após o término da
expedição.
Para Oneyda Alvarenga, responsável pela preservação e divulgação do material etnográfico colhido pela
equipe, os meses e anos seguintes ao retorno da expedição foram marcados pelo trabalho, e pela constante decepção
com o poder público resultado da progressiva restrição financeira e política sofrida pela instituição que dirigia. A
incompreensão dos objetivos gerais e etnográficos da Discoteca Pública Municipal foi manifestada pela nova
administração pública logo após a chegada da expedição à São Paulo, em julho de 1938.
Em agosto daquele ano, o novo prefeito engenheiro Francisco Prestes Maia realizou uma visita oficial às
dependências da Discoteca Pública Municipal. Naquela ocasião, Prestes Maia manifestou um ostensivo desinteresse
pela Discoteca desconsiderando a importância de seu acervo folclórico, especialmente a coleção de objetos recolhidos
pela Missão, então considerada “bugiganga” e ocupando espaço físico em demasia. Em seu desprezo pela instituição,
Prestes Maia chegou a cogitar a retirada de alguns móveis da Discoteca para levá-los ao seu gabinete na Prefeitura.
Oneyda Alvarenga, amargurada e ofendida com o desrespeito profissional, pressentiu naquele momento um perigo
iminente em relação ao futuro da instituição que dirigia, conforme desabafou em correspondência ao amigo e ex-chefe
1035
afastado, Mário de Andrade, então já “exilado” no Rio de Janeiro:

“(...) Mário,
tivemos ontem a visita do chefão. E dela resultou uma amargura tão funda, uma tão funda impressão de
tempo perdido, que tive um verdadeiro ataque de desespero, diante do nosso pessoal. Apesar de que eu
considero todos amigos, serenada a crise, tive a sensação de uma desagradável leviandade, embora eu
esteja ainda agora perfeitamente convencida de que não poderia mesmo absolutamente me conter. Os
meus nervos andam profundamente tensos e foi um escapamento momentâneo das contrariedades
acumuladas.
O homenzinho viu a casa. Só. Sobre tudo quanto quis mostrar, passou os olhos aborrecidos e ia
continuando a andar. O material folclórico é bugiganga que precisa ser retirada daqui. Vai retirar móveis
da seção para levar para o gabinete dele. E sobre tudo isso, a atitude mais agressiva, a cara mais
amarrada deste mundo. Mal resmungou duas palavras. Olha a gente como quem estivesse olhando um
salteador de estrada. Fiquei, como resultado da visita, com uma nítida, uma aguda sensação de perigo. E
com a convicção de que precisamos tratar de salvar isto aqui, principalmente o material folclórico, de
qualquer jeito. Vigora ainda a sua idéia de trabalhar o espírito desta gente para uma venda de tudo ao
1036
Rio? Espero apenas sua opinião para começar a campanha. Pode ser que meu julgamento seja
prematuro e que nada sobrevenha de pior. Em todo caso, as condições de trabalho continuam péssimas,
o regime do papelório e da desconfiança não melhora. Aquela esperança de andamento rápido das
coisas que nos surgiu justamente no dia da sua volta (você decerto se lembra) ficou em esperança
apenas. Isto, se não morrer a um golpe decisivo, morrerá de inanição ou atulhado em ofícios e processos,
o que vem afinal a dar na mesma coisa. Nada espero do novo chefe.
(...)
Estive ouvindo ontem alguns fonogramas colhidos pela Missão. Estão ótimos. Ótimos como registro,
ótimos como qualidade musical e folclórica. Há coisas de uma beleza admirável. Certos cantos da
pagelança e de catimbó são absolutamente de desacatar. Os últimos filmes revelados são também muito
bons. Podemos dizer de cabeça bem alta que colhemos material de primeiríssima qualidade. Fiquei toda
1037
gloriosa e, meu Deus!, quase me esqueci da burrice circundante. (...)”.

1035
- Mário de Andrade mudou-se para o Rio de Janeiro, em meados de julho de 1938, para retornar a São Paulo somente em 1941.
Em fins de maio de 1938, Prestes Maia havia nomeado o jornalista Francisco Pati para ocupar a direção do Departamento de
Cultura de São Paulo. Em fins de julho, foi nomeado Guilherme de Almeida para a chefia da Divisão de Expansão Cultural, a qual
estava vinculada administrativamente a Discoteca Pública Municipal.
1036
- Sobre a transferência do acervo da Discoteca Pública Municipal para o Rio de Janeiro, diz Oneyda Alvarenga (ANDRADE, M.
de & ALVARENGA, O. - op.cit.1983, p.141, nota 2): “(...) Em face do descaso pelo Departamento de Cultura, especialmente pela
Discoteca, manifestado pelo prefeito Prestes Maia, ocorreu a Mário a idéia de sugerir ao Ministério da Educação e Cultura a
compra do acervo da Discoteca. Mas tudo ficou só em projeto. (...)”.
1037
- ANDRADE, M. de & ALVARENGA, O. - “Cartas.” São Paulo, Duas Cidades, 1983. p.140. Correspondência de 5 de agosto de
1938
171

Dias após a visita do prefeito Prestes Maia, em 13 de agosto de 1938, Oneyda Alvarenga escreveu novamente
a Mário de Andrade, no Rio de Janeiro:

“(...) A visita que lhe relatei não teve, até agora, conseqüência desastrosa nenhuma. Ontem, até, o
escrevedor de tópicos [Francisco Pati] mandou um repórter da Folha da Manhã, para que eu desse uma
entrevista sobre a Missão. 1038 Entenda-se! Continua-se, pois, na marcha anterior: ele e o Gui [Guilherme
de Almeida] servindo apenas de peninha pra tapear, e eu fazendo o mais que posso, apesar deles.
Estou também mais serena. Aprendi a me repetir sempre um conselho do qual, diz o pessoal da Missão,
os nordestinos usam e abusam: “Não se avéxe, véxame é doença”. Deixe-se o barco correr, pois não há
outro remédio. (...)”. 1039

Entre os dias 11 a 29 de agosto de 1938, Oneyda Alvarenga e Luiz Saia concederam diversas entrevistas aos
principais periódicos da capital paulista. 1040 Essas entrevistas tinham como principal objetivo tornar público os
resultados etnográficos obtidos durante os 6 meses de viagem da Missão, procurando estabelecer um clima favorável
que viabilizasse -, através da concessão de recursos financeiros oficiais -, a preservação, divulgação, estudo e
aproveitamento de vasto material folclórico. Apesar do empenho, as verbas oficiais para o trabalho somente foram
concedidas entre os anos de 1945-1956.
Como visto, a totalidade do material coletado pela Missão foi bastante vasta e diversificada, com documentos
interrelacionando-se entre si: cerca de 1500 melodias gravadas em 169 discos de acetado, 12, 14 e 16 polegadas, 78
rpm; 12 rolos cinematográficos silenciosos de 16 mm, P&B; 1200 fotografias; cerca de 3000 páginas manuscritas com
anotações diversas em cadernetas de campo; aproximadamente 800 objetos de fatura popular entre instrumentos
musicais e ex-votos. 1041 A divulgação mais cuidadosa do acervo ocorreria somente após trabalho de preservação e
organização do material implicando em razoáveis gastos financeiros.
Nas entrevistas realizadas entre 11 e 29 de agosto, Luiz Saia e Oneyda Alvarenga procuraram constantemente
relacionar o evento Missão de Pesquisas Folclóricas com as demais atividades patrocinadas pelo Departamento de
Cultura de São Paulo, destacando e sublinhando aspectos científicos, artísticos e educacionais resultantes do estudo e
aproveitamento do material popular documentado:

“(...) Todo um longo trabalho de classificação e manipulação do material precisa ser feito ainda. Quando o
Departamento decidiu enviar a Missão ao norte e nordeste, já estava preparado para promover esse
aproveitamento. Os objetivos da viagem não constituíam mais do que um aspecto particular dos estudos
promovidos pelo Departamento de Cultura, nos vários setores de sua atividade. A compra de duas
importantes brasilianas, a criação e o amparo dispensado à Sociedade de Etnografia e Folclore, ora
presidida pelo Dr. Nicanor Miranda, a Discoteca, ora com suas palestras populares sobre grandes nomes
da música e concertos de discos, e com o aproveitamento quasi imediato de peças tradicionais do nosso
riquíssimo folclore no moderno sistema educacional dos parques infantis esparramados pelos bairros
proletários da cidade - enfim todo o organismo que aí está já deu provas de que, cada vez mais, se
1042
dedica à cultura, sob os mais diversos aspectos (...)”.

O acervo folclórico recolhido pela Missão, especialmente o documentário fonográfico registrado em discos de
acetato pela expedição, deveria ser matrizado, preservado e divulgado, fornecendo material de estudo e de
aproveitamento pelos compositores eruditos interessados na questão da brasilidade em Música segundo pressupostos
de Mário de Andrade. 1043 Além disso, o conteúdo desses discos deveria ser transcrito em notação musical
subsidiando a edição de livros especializados, que relacionassem as melodias folclóricas com observações e
fotografias dos eventos populares.
Para a divulgação completa e eficiente do acervo, todo material recolhido pela equipe deveria ser organizado,
catalogado, fichado e incorporado à Discoteca Pública Municipal, responsável pela guarda do material etnográfico. A
intenção inicial do projeto de divulgação contaria com grande participação dos integrantes da Missão, especialmente
Luiz Saia e Martin Braunwieser, que, através de depoimentos pessoais e observações, forneceriam informações
complementares às gravações realizadas. Segundo entrevista concedida por Luiz Saia ao Diário Popular, em 29 de
agosto de 1938:

“(...)
- O que será feito de esse material colhido?

1038
- Hemeroteca Doc.nº 63X: “Os trabalhos realizados no Norte do país pela Missão de Pesquisas Folclóricas do Deparetamento de
Cultura.” São Paulo, Folha da Noite, 12 de agosto de 1938
1039
- ANDRADE, M. de & ALVARENGA, O. - op.cit.1983. p.143. Correspondência de 13 de agosto de 1938
1040
- Hemeroteca Docs.nºs 61X (Diário da Noite, 11/8/38); 62X (O Estado de São Paulo, 12/8/38); 63X (Folha da Noite, 12/8/38); 64X
(Diário da Noite, 16/8/38); 65X (Diário Popular, 28/8/38)
1041
- CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.6
1042
- Hemeroteca Doc.nº 64X - “Aproveitamento do nosso folclore no moderno sistema educacional dos parques infantis.” São Paulo,
Diário da Noite, 16 de agosto de 1938
1043
- Vide Capítulo II
172

- Naturalmente depois de tudo fichado e organizado, o que levará algum tempo para ser feito, o material
será posto à disposição dos estudiosos do assunto. A função do Departamento de Cultura é
principalmente, possibilitar a realização de estudos, criando ambiente necessário e fornecendo o material
indispensável. Daí ter o Departamento ampliado sua biblioteca, comprando mais duas coleções da
“Brasiliana”.
- De que forma será apresentado o material colhido?
- Sobre cada fato, sobre cada peça, terei que fazer um relato, não só apresentando as circunstâncias em
que foi colhido, descrevendo o ambiente, a psicologia dos informantes e os demais dados necessários
para a manipulação desse material mais possivelmente aproximado da realidade. Enquanto este serviço
fôr se fazendo as peças que apresentarem conjunto mais interessante serão objeto de uma comunicação
1044
à Sociedade de Etnografia e Folclore. (...)”.

O projeto de divulgação do acervo resgatado pela Missão não ocorreu da maneira prevista, devido a várias
razões e diversos contratempos resultantes da delicada situação político-financeira vivenciada pela Discoteca a partir
daquele ano de 1938.
A principal preocupação de Oneyda Alvarenga era a preservação do acervo de discos registrados em acetato
pela Missão. O acetato era um material de pouca resistência que durante o processo de gravação permitia à uma
agulha de safira registrar o evento sonoro sulcando o disco. O registro em acetato impedia porém a audição dos discos
diversas vezes, impossibilitando o seu aproveitamento imediato e divulgação.
Na realidade, o registro fonográfico em acetato consistia apenas na primeira das diversas etapas para a
confecção de cópias em vinil, material mais resistente que possibilitava a audição dos discos várias vezes viabilizando
a divulgação do acervo fonográfico registrado pela Missão. Esse processo de copiagem e preservação de discos de
acetato era denominado matrização. O processo de matrização era o que a tecnologia em som do final da década de
1045
30 dispunha para a preservação de registros fonográficos. No entanto, o processo de matrização dos discos de
acetato implicava em gastos razoavelmente vultosos.
Em 1945, quando finalmente houve a concessão de verbas oficiais para a preservação e principalmente
divulgação do acervo folclórico da Discoteca, Oneyda Alvarenga já havia organizado todo o material recolhido pela
Missão de Pesquisas Folclóricas: discos originais, textos poéticos, textos das melodias registradas, fotos, filmes
cinematográficos, cadernetas de campo, artigos de jornais (hemeroteca), etc.
A classificação original atribuída aos discos originais em acetato estabelecida pelos integrantes da expedição,
foi alterada por Oneyda Alvarenga no processo de incorporação do material ao acervo da Discoteca Pública Municipal.
A nova classificação englobava também o material já existente na instituição, fruto de pesquisas e registros
fonográficos musicais realizados anteriormente, entre 1936-1937.
Dessa forma, os 169 discos de acetato registrados pela Missão de Pesquisas Folclóricas tiveram a classificação
numérica determinada por Benedito Pacheco - Técnico de Gravação da equipe - substituída por outra mais completa.
A classificação de Benedito Pacheco, iniciava-se com o número 101, o primeiro disco gravado: canto de carregadores
de piano registrado no Recife (PE), em 18 de fevereiro de 1938; e finalizava-se com o número 269, toadas de
1046
Babassuê, culto fetichista Afrobrasileiro registrado em Belém do Pará, no período de 5 a 7 de julho de 1938.
O acervo em discos de acetato registrado pela Missão incorporar-se-ia à coleção de registros fonográficos de
folclore musical brasileiro pertencentes à Discoteca Pública Municipal. Esta coleção, designada pela letra F (Folclore),
contava já com as gravações realizados pela Discoteca em 1937: um total de 10 discos de 12 e 16 polegadas. A
classificação desses discos em acetato é a seguinte: F-1 a F-5, discos com 12 polegadas, documentando a Dança de
Santa Cruz de Itaquaquecetuba (SP); F-6 a F-10, discos com 16 polegadas, registrando folia de reis, cana-verde,
modinha, entre outras manifestações populares encontradas na cidade de Lambari (Minas Gerais). 1047
Os 169 discos de várias dimensões - 12, 14 e 16 polegadas -registrados pela Missão nos Estados de
Pernambuco, Paraíba, Maranhão e Pará, foram incorporados à série F da Discoteca Pública Municipal, dando
continuidade à classificação pré-existente. Assim, o primeiro disco coletado pela expedição, com parte do canto dos
carregadores de piano do Recife (PE), passou a ser designado como F-11, e o último disco, com as toadas de
Babassuê coletadas em Belém do Pará, como F-175. 1048
Entre o material escrito de controle de gravação, encontra-se a pequena caderneta de campo onde Benedito
Pacheco anotou descritivamente cada faixa de disco. Essas faixas foram numeradas por Oneyda Alvarenga na própria
caderneta e, posteriormente, nomeadas por fonograma. A Missão de Pesquisas Folclóricas registrou exatamente 1223
fonogramas. Esses fonogramas documentam cerca de 1500 melodias, pois alguns deles contêm mais do que um
documento musical. 1049

1044
- Hemeroteca Doc.nº 65X - “Folk-lore musical e ethnographia brasileira.” São Paulo, Diário Popular, 29 de agosto de 1938
1045
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.3-4. Apresentação. Vide também nesse sentido a entrevista com Benedito
Pacheco, realizada em 28 de junho de 1984, pela Divisão de Pesquisas do CCSP, localizada no Arquivo Multimeios, sem nº de
classificação.
1046
- Cad.de Campo “Discos 1” (Benedito Pacheco)
1047
- cf. CARLINI, A. & LEITE, E.A. - op.cit.1993. p.5-6
1048
- idem ibidem
1049
- Cad.de Campo “Discos 1” (Benedito Pacheco)
173

A diferença de 4 discos anotada entre o F-11 e F-175, do total de 169 unidades coletadas pela expedição, se
deve à deficiência das anotações originais realizadas por Benedito Pacheco: por um lapso, o Técnico em Gravação da
Missão não descreveu o conteúdo - cada fonograma de disco - de uma pequena parcela do material, precisamente
aquela que se refere aos registros fonográficos realizados nos municípios pernambucanos de Tacaratu e Barão do Rio
Branco, entre os dias 9 e 15 de março de 1938, durante a viagem ao interior do Estado. Devido a este fato, Oneyda
Alvarenga classificou esses quatro discos restantes, deslocando-os para o final da série: de F-176 a F-179. 1050
Foi somente a partir da concessão de verbas oficiais para a matrização dos discos e outros fins, em 1945, que a
Discoteca Pública Municipal iniciou o serviço de preservação dos discos e divulgação do material coletado pela
Missão. Assim, no período entre fins de 1945 a dezembro de 1946 foi matrizado o primeiro lote de discos coletados
pela expedição - 87 unidades do total de 169 discos originais da expedição, em 78 rpm e várias dimensões - 12, 14 e
16 polegadas.
Essas 87 unidades em acetato com várias dimensões, foram matrizadas em um padrão de 12 polegadas, vindo
a se transformar em 115 discos de vinil 78 rpm. Esses 115 discos então matrizados e copiados em vinil,
correspondentes às 87 unidades originais em acetato, iniciaram uma sub-série da Discoteca Pública Municipal: a
sub-série FM (Folclore Musical), pertencente também a série F original.Assim, a série F contém a totalidade dos
registros musicais de folclore brasileiro efetuados pela Discoteca, incluindo os discos matrizados e os ainda não
matrizados; enquanto que a série FM, conta somente com as gravações já preservadas pelo processo de
1051
matrização.
Oneyda Alvarenga organizou a matrização do primeiro lote com 87 discos, agrupando-os segundo uma
classificação global das manifestações musicais registradas pela Missão. Assim, por exemplo, os discos FM.1 ao
FM.51 - correspondentes a F.20-F.26, F.94-F.99A, F.102, F.120-F.123, F.133-F.146A e F.168-F.175 -, formam um
primeiro grupo destinado aos cantos de feitiçaria coletados pela Missão de Pesquisas Folclóricas: Xangô (Pernambuco
- FM.1 ao FM.14); Tambor-de-Mina e Tambor-de-Crioulo (Maranhão - FM.15 ao FM.28 A); Catimbó (Paraíba - FM.28.B
ao FM.38); e Babassuê (Pará - FM.39 ao FM.51). 1052
A preservação de parte dos discos originais da coleta através do processo de matrização, possibilitou à
Discoteca Pública Municipal o início de seu projeto de divulgação do acervo. Em 1949, após organização do material
complementar referente ao primeiro lote de discos, diversas unidades passaram a ser doadas às instituições culturais
como o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Escola Nacional de Música (RJ), Discoteca Pública do
Recife (PE), Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo:

“Discoteca Municipal / Discos de Folclore Musical Brasileiro / Comunica-nos a Discoteca Pública


Municipal que os discos FM-1 a 28 (Folclore Musical Brasileiro), referentes aos 1º e 2º volumes da série
“Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro”, respectivamente “Xangô”e “Tambor-de-Mina e
Tambor-de-Crioulo, podem ser encontrados para consulta e estudos nos seguintes institutos culturais: /
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo / Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo / Escola Nacional de Música - Rio de Janeiro / Discoteca Pública Municipal de
1053
Recife - Pernambuco. (...)”.

Além disso, os discos da sub-série FM passaram a ser comercializados ao público em geral, divulgando a
música folclórica brasileira gravada pela Missão e pela Discoteca:

“A Discoteca Pública Municipal, do Departamento Municipal de Cultura, comunica que estão a venda 36
coleções de seus discos FM 1 a 14 e FM 15 a 28, nos quais estão gravados, respectivamente, um
“Xangô” do Recife, um “Tambor-de-Mina” e um “Tambor-de-Crioulo” de São Luís do Maranhão. Sobre
esses discos existe um documentário impresso nos volumes 1º e 2º da série “Registros Sonoros de

1050
- cf. Fichário Folclórico da Discoteca Pública Municipal, subdivisåo Fonogramas, organizado por Oneyda Alvarenga, Acervo
Histórico DPM do CCSP.
1051
- As outras séries de discos organizadas pela Discoteca Pública Municipal são a série ME (Música Erudita) com registros das
obras de compositores paulistas ou residentes em São Paulo; e a série AP (Arquivo da Palavra), com duas subdivisões: Homens
Ilustres (alocuções de personalidades significativas) e Pronúncias Regionais do Brasil, com registros destinados aos estudos de
fonética. Vide Capítulo I
1052
- Os outros discos também matrizados com registros de folclore brasileiro, pertencentes à subsérie FM da Discoteca Pública
Municipal, são: FM 52 a FM 59A - Bumba-meu-Boi (Recife - PE, em 18.3.38) / FM 59B - Cabocolinhos “Índios Africanos” (João
Pessoa - PB, em 31.3.38) / FM 60 a FM 61 - Bumba-meu-Boi (Patos - PB, em 8.4.38) / FM 62 a FM 63 - Reis de Congo (Pombal
- PB, em 11.4.38) / FM 64 a FM 67 - Reisado (Sousa - PB, em 13.4.38) / FM 68 a FM 71 - Reisado (Curema - PB, em 21.4.38) /
FM 72 a FM 73 - Nau Catarineta (Sousa - PB, em 22.4.38) / FM 74 a FM 75A - Reis de Congo (Sousa - PB, em 23.4.38) / FM
75B a FM 79 - Bumba-meu-Boi (Sousa - PB, em 23.4.38) / FM 80A - Cabocolinho (Itabaiana - PB, em 4.5.38) / FM 80B a FM
82A, primeira faixa - Reis de Congo (Alagoa Nova - PB, 7.5.38) / FM 82A, segunda faixa - Cabocolinho (Alagoa Nova - PB, em
7.5.38) / FM 82B a FM 86 - Nau Catarineta (Areia - PB, em 8.5.38) / FM 87 a FM 89, FM 90 a FM 95A - Congada e Folia de Reis
(Lambari - MG, entre 6 e 9.5.1937), coletado anteriormente à Missão / FM 95B - Cabocolinhos “Tupi-Guarani” (João Pessoa - PB,
em 22.5.38) / FM 96 - Cambinda (João Pessoa - PB, em 19.5.38) / FM 97 a FM 104 - Barca (João Pessoa - PB, entre 22 a
24.5.38) / FM 105 a FM 110 - Bumba-meu-Boi (São Luís do Maranhão, em 19.6.38) / FM 111 a FM 112 - Bumba-meu-Boi (Areia -
PB, em 9.5.38) / FM 113 a FM 115 - Praiá (Brejo dos Padres/Tacaratu - PE, em 11.3.38
1053
- Hemeroteca doc. s/nº - O Estado de São Paulo de 30 de abril de 1949
174

Folclre Musical Brasileiro”. / Os preços de cada coleção são os seguintes: / FM 1 a 14 (“Xangô” gravado
no Recife, no terreiro de Idida Ferreira Mulatinho) 14 discos de 12 polegadas a Cr$ 20,00 - (Cr$ 280,00)
FM 15 a 28 (“Tambor de Mina” e “Tambor de Crioulo” gravados em São Luís do Maranhão, o primeiro, no
Terreiro de Maximiliana Silva) 14 discos de 12 polegadas, a Cr$ 20,00 - (Cr$ 280,00). (...)”. 1054

Após a matrização do primeiro lote de 87 discos originais em acetato, realizada entre fins de 1945 e princípio de
1946, nada mais pôde ser feito com os registros fonográficos em acetato realizados pela Missão, o que impediu
durante largo tempo, a divulgação do acervo folclórico-musical coletado pela Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938.
1055

Ainda em 1946, a Discoteca Pública Municipal iniciou a publicação das duas coleções de livros planejadas por
Oneyda Alvarenga para a divulgação do material pertencente à instituição, constituído pelo acervo coletado pela
Missão, juntamente com o restante do material folclórico coletado em 1937: a coleção Arquivo Folclórico e a coleção
Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro (RSFMB).

1054
- Hemeroteca doc. s/nº - Diário Popular de 31 de dezembro de 1949
1055
- Em 1992, através da contratação de estúdio de som, os discos originais registrados pela Missão, em acetato, foram regravados
em sistema DAT (Digital Audio Tape) além de copiados em fitas-cassete de alta qualidade. Somente através desse processo é
que os registros originais da expedição de 1938 não-matrizados puderam novamente ser devolvidos aos pesquisadores e público
interessado. Esse projeto de preservação foi coordenado por Álvaro Carlini, e contou com a preciosa colaboração de funcionários
da Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural São Paulo.
175

2 - Publicações da Discoteca Pública Municipal referentes ao acervo da Missão

2.1 - Coleção “Arquivo Folclórico”: projeto de transcrições musicais dos discos gravados
pela expedição

Com a mesma verba que possibilitou parte da matrização dos discos originais da Missão, a Discoteca passou a
editar ainda em 1946, o material folclórico-musical grafado em notação musical pertencente à instituição. Entre esse
material, doado à Discoteca Pública Municipal ou por ela recolhido, encontrava-se a coleção de melodias registradas
por Martin Braunwieser durante a viagem da expedição.
O material musical grafado por Martin Braunwieser durante a viagem da Missão, cerca de 200 documentos, foi
publicado em 1946 juntamente com outras três coleções de melodias folclóricas também pertencentes ao acervo da
Discoteca Pública Municipal: a coleção de Mário de Andrade, constituída em sua maioria por documentos a ele doados
ou por ele coletados; a coleção de Oneyda Alvarenga, fruto de pesquisa da Chefe da Discoteca Pública Municipal
realizada na cidade de Varginha (MG) no período de janeiro a julho de 1935; e a coleção de Camargo Guarnieri
relativa à sua viagem a Salvador (BA) em 1937 quando acompanhou as atividades do II Congresso Afrobrasileiro. Os
conteúdos musicais das três coleções foram doados ou recolhidos pela Discoteca em um período anterior à realização
da Missão (1936-1938).
A publicação desse acervo iniciou a coleção do Arquivo Folclórico da Discoteca Pública Municipal. Essa coleção
tinha como objetivo divulgar o material folclórico-musical pertencente à instituição:

“A Discoteca Pública Municipal de São Paulo iniciou a publicação do material folclórico que, de 1936 a
1938, conseguiu colecionar. / O plano total do “Arquivo Folclórico”, compreende a publicação dos
seguintes materiais: 1) Melodias registradas por meios não-mecânicos, colhidas pela Discoteca Pública
Municipal ou a ela doadas; 2) Objetos pertencentes ao Museu Folclórico da Discoteca P. Municipal
(Catálogo Ilustrado); 3) Transcrições gráficas das melodias que a Discoteca P. Municipal registrou em
discos, em vários Estados do Brasil. / O primeiro volume corresponde ao item 1º, o item 2º, constituirá o
2º volume, o item 3º, dividir-se-á em vários volumes. Além do volume das melodias também já se acham
em divulgação os seguinte volumes: “Trabalhos fúnebres na roça”, “Cururu”, “Tambor-de-Mina e Tambor-
de-Crioulo”, e “Xangô”. Estes trabalhos foram dirigidos e orientados por D. Oneyda Alvarenga, Chefe da
1056
Discoteca Pública Municipal.”

O volume I dessa coleção - Melodias Registradas Por Meios Não-Mecânicos - contém 570 melodias
pertencentes a cerca de 70 gêneros folclórico-musicais. Todas essas melodias foram registradas, como o título indica,
por meios não-mecânicos, isto é, grafadas manualmente por seus recolhedores. 1057
O volume II da coleção do Arquivo Folclórico - Catálogo Ilustrado do Museu Folclórico, foi editado em 1948.
Como visto, esse museu estava constituído, em sua maioria, por objetos resgatados pela Missão. Segundo Oneyda
Alvarenga, “(...) as coleções de instrumentos de música e de objetos ligados a fatos musicais populares (...) visou
tornar completos, na medida do possível, os elementos esclarecedores das pesquisas e registros sonoros de música
folclórica nacional (...)” 1058 realizados pela Discoteca Pública Municipal. Além dos objetos e instrumentos relacionados
diretamente à música, completavam o acervo do Museu Folclórico, peças pertencentes a candomblés baianos
(coletadas por Camargo Guarnieri em 1937); objetos usados no culto de Xangô (Pernambuco) e esculturas de madeira
utilizadas como ex-votos. 1059
Nos dois volumes editados da coleção do Arquivo Folclórico, Oneyda Alvarenga esclarecia o caráter expositivo
da coleção, justificando que “(...) dadas as circunstâncias especiais da vida da Discoteca Pública Municipal, seria
impossível fazer-se também, como se desejaria, o estudo do documentário apresentado (...)”. 1060 A publicação do

1056
- Hemeroteca Doc. s/nº - “Publicações”, Diário Popular, 18 de janeiro de 1950
1057
- Os gêneros folclórico-musicais documentados no vol.I da Arquivo Folclórico da Discoteca Pública Municipal - Melodias
Registradas Por Meios Nåo-Mecânicos, em suas quatro coleções, por ordem alfabética, são os seguintes: acalanto, batuque
bumba-meu-boi, cabocolinhos, cana-verde, candomblés, candoblé-de-caboclo, cantiga, canto de pedinte, canto de trabalho,
capoeira, capoeira-de-Angola, carretilha, cateretê, chegança-de-marujo, choro, coco, coco-embolada, comédia joanina, dobrado,
folia de reis, grilinho, jaculatória, jogo-de-anel, jongo, loa de reis, lundu, mancado, maracatu, marchinha, mazurca, modinha,
mudança, nau catarineta, pagelança, pastoril, pega-no-balão, polca, praiá, pregão, quadrilha, queromana, rancho do boi,
recortado, reisado, roda, romance, samba, toada, xangô.
1058
- ALVARENGA, O. (org.) - “Arquivo Folclórico - II vol.: Catálogo Ilustrado do Museu Folclórico da Discoteca Pública Municipal”,
São Paulo, Departamento de Cultura/Discoteca Pública Municipal, 1950. Introdução.
1059
- No ano de 1991, iniciou-se a reidentificação, restauração e preservação dos objetos pertencentes ao Museu Folclórico da
Discoteca Pública Municipal. Este trabalho, coordenado por equipe de funcionários especializados do Centro Cultural São Paulo
(CCSP), encontra-se em fase adiantada: em uma sala apropriada, munida com termohigrômetro e desumidificador, os objetos
foram limpos, descupinizados e reetiquetados. Atualmente esse acervo pode ser consultado pelos pesquisadores e público
interessado.
1060
- ALVARENGA, O. (org.) - “Arquivo Folclórico da Discoteca Pública Municipal - I vol.: Melodias Registradas Por Meios
Não-Mecânicos”, São Paulo, Departamento de Cultura, 1946. Apresentação.
176

Arquivo Folclórico obedeceu portanto, ao critério da necessidade de divulgação, pensando-se com isso “(...) que mais
valia simplesmente vulgarizá-lo, do que guardá-lo indefinidamente à espera de condições propícias para o seu exame.
Se esta repartição [Discoteca Pública Municipal] está no momento impedida de estudá-lo, quis ao menos dar
elementos de trabalho aos folcloristas, aos músicos, e aos cultores das ciências que utilizam o folclore como fonte de
informações. (...)”. 1061
A realização das transcrições em notação musical das melodias contidas nos discos gravados pela Missão e
sua conseqüente divulgação nos livros do Arquivo Folclórico nunca ocorreu de fato, apesar deste ser um dos motivos
principais para a realização da expedição. Ainda em 1946, quando a Discoteca Pública Municipal recebeu verbas
oficiais para iniciar seus projetos de divulgação e preservação do acervo, parte dela foi destinada à contratação de um
músico para realizar a tarefa.
A escolha de Oneyda Alvarenga recaiu sobre o compositor Camargo Guarnieri, contrariando de certa maneira, a
expectativa de contratação do maestro Martin Braunwieser, músico integrante da Missão, responsável pela seleção
musical e pela movimentação do microfone durante as gravações. 1062 A proximidade do fato folclórico vivenciada pelo
maestro Martin Braunwieser auxiliaria sobremaneira na transcrição dos fonogramas coletados.
Camargo Guarnieri iniciou o trabalho de transcrição musical em 1946. Realizou-o experimentalmente e, por
motivos desconhecidos, não o concluiu. Nenhuma manifestação folclórica gravada em discos pela Missão foi transcrita
em sua totalidade pelo compositor. 1063 Talvez devido a esse motivo, nenhum documento das quase 250 melodias
transcritas em notação musical por Camargo Guarnieri foi aproveitada em publicações especializadas. Mais
recentemente, por ocasião das comemorações ao centenário de nascimento de Mário de Andrade, (1993) foram
editadas duas obras de divulgação referentes ao acervo musical registrado pela Missão, uma delas contendo
transcrições musicais completas, realizadas recentemente, do ritual de catimbó gravado na Paraíba durante a viagem.
1064

A participação efetiva dos componentes da expedição no projeto de divulgação do acervo folclórico


documentado pela Missão também não ocorreu de fato. Martin Braunwieser e Luiz Saia não foram, como inicialmente
previsto, convocados a fazer um relato “(...) sobre cada fato, sobre cada peça (...)” apresentando “(...) as circunstâncias
em que foi colhido, descrevendo o ambiente, a psicologia dos informantes e os demais dados necessários para a
manipulação desse material mais possivelmente aproximado da realidade. (...)”. 1065

1061
- idem ibidem
1062
- Corresp.Doc.30 - ANDRADE, M. de - “Exposição de atos e conseqüências da Missão [de Pesquisas] Folclóricas atualmente
pelo Norte do Brasil.”, 23 de maio de 1938
1063
- Transcrições musicais experimentais feitas por Camargo Guarnieri: Acervo Histórico DPM - códices nºs 8 e 9
1064
- cf. CARLINI, A. - “Cachimbo e maracá: o catimbó da Missão (1938).” São Paulo: CCSP, 1993. 221p.:il. / cf. CARLINI, A. &
LEITE, E.A. - “Catálogo histórico-fonográfico Discoteca Oneyda Alvarenga - Centro Cultural São Paulo” São Paulo: CCSP, 1993.
143p.
1065
- Hemeroteca Doc.nº 65X - “Folk-lore musical e ethnographia brasileira.” São Paulo, Diário Popular, 29 de agosto de 1938
177

2.2 - Coleção “Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro”


Em 1948, a Discoteca Pública Municipal iniciou a publicação de uma nova coleção denominada Registros
Sonoros de Folclore Musical Brasileiro (RSFMB), destinada a subsidiar e auxiliar a audição dos discos já matrizados.
Esses discos pertenciam à sub-série FM (Folclore Musical) com 115 discos em vinil, 78 rpm, padronizados em 12
polegadas.
Os cinco volumes da coleção Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro, editados entre 1948-56 - Xangô
(1948); Tambor-de-Mina e Tambor-de-Crioulo (1948); Catimbó (1949); Babassuê (1950); Chegança de Marujos (1956)
-, apresentavam aos consulentes do acervo da Discoteca Pública Municipal, dados necessários ao controle das
gravações, incluindo-se noções gerais sobre a manifestação musical gravada, juntamente com o texto das melodias e
dados sobre os informantes.
Os quatro primeiros volumes do RSFMB, foram organizados sob a mesma classificação geral que orientou a
matrização dos discos originais, correspondentes aos rituais de feitiçaria, contidos nos discos FM 1 a FM 51. O quinto
volume do RSFBM - Chegança de Marujos com coletas realizadas nos estados da Paraíba e Pernambuco (discos FM
72 e FM 73, FM 82 B a 86, FM 97 a FM 104) -, iniciou a divulgação do material referente às danças dramáticas
documentadas pela Missão.
A coleção do RSFMB se destinava “(...) essencialmente a fornecer os dados necessários ao controle científico
1066
das gravações, bem como os textos das melodias gravadas (...)”. O total das informações recolhidas pela Missão,
juntamente com os depoimentos pessoais dos integrantes da expedição, da transcrição em notação musical das
melodias gravadas nos discos, incluindo as fotografias referentes a cada manifestação folclórico-musical, estavam
reservados para planejados volumes da coleção do Arquivo Folclórico.
No entanto, devido às dificuldades principalmente de ordem financeira, a Discoteca Pública Municipal não
encontrou condições de dar prosseguimento à divulgação de seu acervo. As duas coleções - RSFMB e Arquivo
Folclórico -, foram interrompidas sem a realização total de sua planificação elaborada por Oneyda Alvarenga.
A série destinada às danças dramáticas (coleção RSFMB), iniciada com o volume V - Chegança de Marujos
(1956), abordaria também, segundo seu planejamento original, outras danças dramáticas brasileiras, como
Bumba-Meu-Boi ou Reis de Congo, gravadas pela Missão de Pesquisas Folclóricas. Os registros fonográficos dessas
danças dramáticas foram matrizados juntamente com o primeiro lote de 87 discos de acetato, e passaram a integrar a
1067
sub-série FM.
Editado em 1956, o volume V do RSFMB - Chegança de Marujo, o primeiro relativo às danças dramáticas
brasileiras documentadas pela Missão, foi o único dessa parte do acervo a ser publicado.
Com crescentes dificuldades para dar prosseguimento às séries de edições destinadas à divulgação do acervo
da Discoteca Pública Municipal, Oneyda Alvarenga se viu obrigada a realizar mudanças na planificação original das
edições do Arquivo Folclórico e Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro (RSFMB).
Assim, a partir de 1949, com a publicação do III volume do RSFMB - Catimbó, Oneyda Alvarenga passou a
incluir os informes antes destinados ao Arquivo Folclórico, excluindo-se as transcrições musicais dos fonogramas e as
fotografias das manifestações populares, nos volumes da coleção do Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro:

“(...) a Discoteca Pública Municipal tem encontrado sérios obstáculos para conseguir a indispensável
transcrição [musical] dos fonogramas. Esses impecilhos tornam muito duvidoso, pelo menos durante
largo tempo, o prosseguimento do Arquivo Folclórico (...). Por outro lado, é bastante minguado o material
informativo escrito trazido pela Missão de Pesquisas Folclóricas, reduzindo-se, na sua quase totalidade,
aos textos dos cânticos registrados em discos. Em face desses problemas, pareceu-nos melhor
transformar estes livrinhos [coleção RSFMB] em veículo dos informes gerais, reservando para a outra
1068
coleção, a continuar-se em época imprevisível, as transcrições dos fonogramas e as fotografias. (...)”

Foi, portanto, a partir do III volume da coleção RSFMB - Catimbó (1949), que a totalidade das informações
complementares ao material fonográfico registrado pela Missão - com exceção das transcrições musicais e das
fotografias -, passou a ser incluída nos livros destinados a subsidiar a audição dos discos registrados pela expedição -
a coleção RSFMB. As informações publicadas a partir do III volume do RSFMB - Catimbó, reúnem inclusive algumas
sistematizações de dados complementares colhidos pela equipe realizadas por Oneyda Alvarenga que a princípio
destinavam-se à coleção do Arquivo Folclórico.
Oneyda Alvarenga, apesar das grandes dificuldades enfrentadas pela instituição que chefiava, acreditava ainda
na continuidade da coleção do Arquivo Folclórico. No III volume RSFMB - Catimbó, ela afirmou que o restante dos
dados complementares sobre o Xangô pernambucano e sobre o Tambor-de-Mina e Tambor-de-Crioulo, seriam

1066
- ALVARENGA, O. (org.) - “Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro - I vol.: Xangô”, São Paulo, Discoteca Pública
Municipal, 1948.
1067
- Bumba-meu-Boi: FM 52 a FM 59, recolhido no Recife (PE), em 18.3.38; FM 60 a FM 61, recolhido em Patos (PB), em 8.4.38;
FM 75 a FM 79, recolhido em Sousa (PB), em 23.4.38; FM 105 a FM 112, recolhido em São Luís do Maranhão, em 19.6.38. /
Reis de Congo: FM 62 a FM 63, recolhido em Pombal (PB), em 11.4.38; FM 74 a FM 75B, recolhido em Sousa (PB), em 23.4.38;
FM 80B a FM 82, recolhido em Alagoa Nova (PB), em 7.5.38.
1068
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1948.
178

publicados em planejado volume do Arquivo Folclórico. No entanto, esse material apesar de pronto para a publicação,
não chegou a ser editado. 1069
A divisão dos informes complementares pelas duas coleções (RSFMB e Arquivo Folclórico) foi a única maneira
encontrada pela Discoteca e por Oneyda Alvarenga de devolver ao público interessado o acervo folclórico resgatado
pela Missão:

“(...) Reconhecemos que de tudo isso resultará uma falha metodológica: cada tipo ou gênero musical
encontrável nos discos, terá seu documentário dividido em duas publicações (se houver duas...).
Supomos, todavia, que o defeito não é muito grave: estando a música já contida nos discos e sendo as
transcrições dos fonogramas essencialmente um trabalho para auxiliar o estudioso, aos volumes da série
Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro faltarão realmente apenas as fotografias. Acentuamos
de novo que tais falhas independem da nossa vontade, decorrendo de dificuldades técnicas e
econômicas que nos impedem a realização de trabalhos mais satisfatórios. Temos consciência de estar
fazendo quanto podem as nossas forças, afim de assegurar a estas publicações o máximo de eficiência.
1070
(...)”.

A credibilidade e confiança de Oneyda Alvarenga em relação à preservação dos discos originais da coleta
realizada pela Missão, através do processo de matrização, não se justificou com o passar dos anos. Desde 1946,
quando a Discoteca Pública Municipal enviou o primeiro lote de discos originais para matrização, nada mais foi feito. O
segundo lote de discos originais da coleta, outras 89 unidades, permanece ainda hoje em seu estado bruto, isto é,
discos de acetato com base de alumínio, material que se desgasta e se consome rapidamente sendo de natureza
frágil. 1071
A fragilidade é também característica da história de vida da Discoteca Pública Municipal. Criada como uma
importante seção dentro da estrutura do Departamento de Cultura de São Paulo, essa intituição vem perdendo seu
espaço ora político, resultante das diferentes diretrizes culturais imprimidas pelas administrações públicas, ora físico,
com constantes mudanças em sua sede e locomoção total do seu frágil acervo, inclusive o referente à Missão. É
notável também o enorme descaso dos poderes público, em particular da Prefeitura paulista, com todos aqueles que
contribuíram para a realização dos estudos etnográficos em São Paulo nos anos subseqüentes ao término da
expedição de 1938.
Apesar das crescentes dificuldades, da incompreensão geral, da burrice circundante, da situação indefinida e
delicada, Oneyda Alvarenga persistiu à frente da Discoteca Pública Municipal, dando prosseguimento aos trabalhos
internos de organização, preservação e divulgação do material folclórico. Oneyda permaneceu na função de chefia da
Discoteca até o ano de 1969, quando se aposentou após 34 anos de serviço público. Oneyda Alvarenga faleceu em
fevereiro de 1984. Atualmente, a Discoteca Pública Municipal carrega o nome de sua primeira diretora e está
localizada no Centro Cultural São Paulo, órgão da Secretaria Municipal de Cultura.
Mário de Andrade, após seu afastamento do Departamento de Cultura de São Paulo, transferiu-se para o Rio de
Janeiro, lecionando Estética na Universidade do Distrito Federal e trabalhando em projeto de Enciclopédia Brasileira,
na qualidade de funcionário do Instituto Nacional do Livro. Escreveu como correspondente para o jornal Estado de São
Paulo e fez críticas literárias para o Diário de Notícias do Rio de Janeiro. Retornou a São Paulo em março de 1941
como comissionado do SPHAN, iniciando pesquisa sobre o pintor e compositor Padre Jesuíno do Monte Carmelo.
Promoveu o restauro do Convento de Embu e da Igreja de São Miguel Paulista. Em 1942, retomou suas atividades
pedagógicas no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Em 1943, iniciou a publicação completa de sua
vasta produção ensaística e literária. Mário de Andrade faleceu em fevereiro de 1945.
Luiz Saia após o término da viagem da Missão retomou suas atividades de chefia à frente da 6ª Região do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), Seção São Paulo. Além de atividades pessoais, era
sócio do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Luiz Saia prestou serviços sem vínculo empregatício ao Departamento de
Cultura de São Paulo. Durante os anos de 1950-60, Luiz Saia coordenou a seleção de monumentos históricos
paulistas para serem tombados pelo SPHAN. Nesse período, efetuou o levantamento dos edifícios e a restauração
arquitetônica de casas e sítios do Estado de São Paulo, destacando-se entre eles, Casa do Bandeirante, Casa do
Caxingui, Casas de Câmara e Cadeia de Santos e Atibaia, Capela de São Miguel Paulista, Sítio do Padre Inácio em
Cotia, Sítio Santo Antônio em São Roque. Nos anos 1970, coordenou equipe para levantamento das fazendas de café
1072
em São Paulo, não completando o trabalho. Luiz Saia faleceu em 1975, com 64 anos de idade.
Martin Braunwieser, no segundo semestre de 1938, passou a lecionar no Instituto Musical de São Paulo. De
1948 a 1951, foi professor de Harmonia Superior, Contraponto e Composição no Conservatório Musical Santa
Marcelina; de 1949 a 1971 ensinou Regência no Conservatório Estadual de Canto Orfeônico, depois Faculdade de
Música “Maestro Julião Baptista” (atualmente Instituto de Artes da UNESP). De 1949 a 1964, organizou e dirigiu o

1069
- ALVARENGA, O. (org.) op.cit.1948. p.4
1070
- ALVARENGA, O. (org.) - op.cit.1948. Apresentação.
1071
- vide nota 21
1072
- Essas informações sobre Luiz Saia foram obtidas através de conversas com um seus filhos, José Saia; com seu amigo José
Bento Faria Ferraz; ex-funcionário da Discoteca Pública Municipal e secretário particular de Mário de Andrade; e com José
Eduardo Azevedo, sociólogo, ex-funcionário do SPHAN, atualmente trabalhando na Discoteca Oneyda Alvarenga do CCSP.
Ainda está por ser feita pesquisa biográfica mais extensa sobre Luiz Saia.
179

ensino musical nos parques infantis da Prefeitura de São Paulo. Membro fundador da Academia Brasileira de Música,
foi também compositor e autor de obras didáticas. Martin Braunwieser faleceu em 1991, com 90 anos de idade.
Praticamente nada se sabe sobre Benedito Pacheco e Antônio Ladeira após o término da viagem da Missão.
Em 1984, Benedito Pacheco realizou entrevista com funcionários da Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São
Paulo. Infelizmente, nenhum contato posterior foi realizado e foi impossível localizar novamente Benedito Pacheco, não
obstante várias tentativas.
180

CONCLUSÃO
A Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938 foi o último trabalho experimental do Departamento de Cultura de
São Paulo, inserindo-se no quadro de outras atividades patrocinadas pela instituição, com trabalhos de natureza
científica e voltados à coleta, estudo e aproveitamento de fontes folclóricas. Entre essas iniciativas destacaram-se a
criação da Discoteca Pública Municipal (1935) e da Sociedade de Etnografia e Folclore (1936), como resultado final de
curso ministrado pela etnóloga Dina Lévi-Strauss em novembro de 1936.
A Missão de Pesquisas Folclóricas foi idealizada por Mário de Andrade e consumada sob a responsabilidade da
Discoteca Pública Municipal, seção do Departamento de Cultura de São Paulo dirigida por Oneyda Alvarenga. Essa
expedição, marco na história da etnografia folclórica e musical no Brasil, possuía como objetivo fundamental fornecer
subsídios materiais ao projeto de nacionalização da música brasileira esboçado pelo Turista Aprendiz em diversas
oportunidades.
No entanto, através da contextualização e análise do processo histórico que antecedeu a idealização da Missão
de Pesquisas Folclóricas; da descrição do cotidiano da equipe na viagem de 6 meses pelo Nordeste e Norte
brasileiros; e da pouca divulgação de alguns resultados etnográficos musicais obtidos pela expedição, podemos
observar que, não obstante ser este um evento significante para a etnografia brasileira, ele é praticamente
desconhecido da maioria dos estudiosos no assunto. Na realidade, a Missão de Pesquisas Folclóricas ficou somente
parcialmente conhecida a partir da divulgação de cerca de um terço do total do acervo coletado através das coleções
de livros e discos editados entre 1946-1956, sob responsabilidade e por vezes esforço pessoal de Oneyda Alvarenga.
A história da Missão tem um final melancólico. Não obstante seu relativo sucesso como evento isolado, os
objetivos fundamentais para a realização da viagem - divulgação, estudo, aproveitamento do acervo folclórico
registrado pela equipe - foram somente parcialmente consumados com o passar dos anos. Idealizada por Mário de
Andrade ao longo dos anos 20 e 30 com o intuito de subsidiar o estudo e o resgate de parte da cultura popular
brasileira pouco conhecida em São Paulo - “(...) E si cuidamos todos na atualidade de abrasileirar o Brasil e torná-lo
uma entidade realmente unida, talvez não haja no país região mais afastada da essencialidade nacional que esta
1073
região de São Paulo, a mais cruzada de imigrantes de vária proveniência (...)” - a Missão de Pesquisas Folclóricas
foi prejudicada em diversos aspectos pela instauração do Estado Novo Getulista em novembro de 1937 e por suas
conseqüências.
As mudanças político-conjunturais provocadas pela instauração do Estado Novo provocaram o adiamento da
partida da expedição. Planejada para fins de 1937, a viagem somente começou em fevereiro de 1938, prejudicando
coletas etnográficas inicialmente previstas para o Estado da Bahia e outras localidades.
Também devido às instabilidades políticas e administrativas de então, Mário Andrade, o principal idealizador da
Missão, não pôde integrar a equipe técnica, como desejava e anunciava às vésperas da partida da expedição,
impedido assim de realizar sua “terceira viagem do Turista Aprendiz”, onde poderia talvez, coordenar a coleta eficiente
de vasto material folclórico musical, fornecendo subsídios complementares ao seu planejado volume de Na Pancada
do Ganzá.
Outro aspecto a ser considerado foi a proibição e perseguição policial de rituais de feitiçaria nacional e
afrobrasileira, conseqüências indiretas da decretação do Estado Novo, que intensificaram-se a partir de 1938, vindo a
colidir frontalmente com os objetivos etnográficos da equipe nos vários Estados percorridos. Em todas as capitais do
Nordeste e Norte brasileiros visitadas pela Missão, houve necessidade de obtenção de autorização expressa cedida
pelos poderes policiais para viabilizar a realização de sessões especiais de cultos de feitiçaria para os trabalhos
etnográficos da equipe.
Com o recrudescimento da situação política estadonovista logo após a partida da equipe de São Paulo -
provocando indiretamente o afastamento de Mário de Andrade da direção do Departamento de Cultura e da chefia da
Divisão de Expansão Cultural -, houve a necessidade da Missão abreviar sua viagem e retornar a São Paulo. A partir
de maio de 1938 foram realizadas coletas etnográficas sem disponibilidade de tempo e/ou metodologia apropriada -
como aquelas ocorridas em São Luís do Maranhão e Belém do Pará. Este fato contribuiu negativamente na qualidade
das coletas etnográficas efetuadas pela equipe, conforme assinalou Oneyda Alvarenga nas publicações por ela
coordenadas para a divulgação do acervo registrado pela Missão, sob responsabilidade da Discoteca Pública
Municipal.
A ausência de Mário de Andrade como integrante da equipe e maior interessado pelo sucesso do evento,
transformou a Missão de Pesquisas Folclóricas em uma expedição acéfala, sem coordenação e orientação precisa.
Apesar de chefia exercida por Luiz Saia, engenheiro arquiteto então com apenas 27 anos, a Missão foi integrada por
quatro componentes com experiência de coleta etnográfica de campo restrita e sem o conhecimento real das regiões
percorridas - nenhum dos integrantes da equipe havia estado antes no Nordeste e Norte brasileiros. Martin
Braunwieser, talvez o componente com maior experiência profissional da Missão, era austríaco de nascimento, havia
chegado há apenas 10 anos no Brasil (1928) vindo da Grécia, sentindo ainda grandes dificuldades com a língua
portuguesa. Esses fatos conferiram à expedição de 1938, aspectos e situações de improviso verificados através de
análise da documentação original e da reconstrução cronológica da viagem.

1073
- Corresp.Doc.33 - “Exposição dos atos e conseqüências da Missão...”, de Mário de Andrade a Francisco Pati, 23 de maio de
1938
181

É necessário salientar que, apesar do grande empenho e das diversas dificuldades enfrentadas pelos principais
responsáveis pelo sucesso da expedição - os quatro componentes da equipe, além de Oneyda Alvarenga, responsável
pela divulgação do acervo folclórico registrado à frente da Discoteca Pública Municipal -, a Missão de Pesquisas
Folclóricas foi o primeiro e principal evento etnográfico de grande porte que privilegiou a coleta de música folclórica
realizado do Brasil.
Esse trabalho de dissertação teve como intenção analisar a Missão de Pesquisas Folclóricas e seus
antecedentes históricos, privilegiando a atuação do Departamento de Cultura de São Paulo na gestão de Mário de
Andrade. Além disso, foi nossa intenção a reconstrução cronológica e a descrição do cotidiano da Missão de
Pesquisas Folclóricas de 1938, buscando contribuir para a melhor compreensão da trajetória modernista e seu projeto
de construção do conceito de brasilidade em música. Nesse sentido, fez-se uso de documentação ainda inédita do
período em questão (1937-1938), com objetivo de observar as alterações ocorridas em localidades brasileiras
distantes dos grandes centros políticos-culturais, decorrentes da instauração do Estado Novo, e refletidas no cotidiano
da expedição. Não foi objetivo desse trabalho realizar uma interpretação de época, mas apenas uma abordagem
factual que, longe de esgotar o tema, amplia suas possibilidades de interpretação e recontextualização histórica.
A reconstrução cronológica e análise dos eventos ocorridos durante a realização da expedição, podem permitir
a outros pesquisadores a análise das relações entre o modernismo (representado pela Missão e pela Discoteca
Pública Municipal - órgão responsável pela realização da viagem) versus Estado Novo (pequenas estruturas de poder,
censura, proibição de cultos religiosos populares), contribuindo para a revalorização histórica-cultural desse evento
etnográfico como marco significante na trajetória do projeto musical modernista.
182

ALGUMAS FONTES DOCUMENTAIS PERTENCENTES AO


ACERVO HISTÓRICO DA DISCOTECA PÚBLICA
MUNICIPAL

a) Correspondências (classificação original)


-Corresp.Doc.1: Telegrama do Prefeito de Tacaratu (PE) a Luiz Saia, 16 de março de 1938.
-Corresp.Doc.2: Telegrama de Ademar Vidal (PB) a Ernâni Sátiro (PB), 6 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.3: Telegrama de Raul Góis (Secretário da Inverventoria da Paraíba) para Luiz Saia, 6 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.4: Telegrama de José Mariz (Secretário da Interventoria da Paraíba) para Luiz Saia, 8 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.5: Telegrama de José Mariz (Secretário da Interventoria da Paraíba) para Luiz Saia, 13 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.6: Telegrama de Ademar Vidal (PB) a Luiz Saia, 13 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.7: Telegrama de Pedro Batista (PB) a Luiz Saia, 25 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.8: Carta de João Medeiros Frazão (Responsável pela organização da nau catarineta na praia de
Tambau - João Pessoa -PB) a Luiz Saia, 30 de março de 1938.
-Corresp.Doc.9: Carta de Luiz Saia para João Gomes de Brito, 20 de outubro de 1938.
-Corresp.Doc.10: Carta de Luiz Saia para João Gomes de Brito (PB), 20 de outubro de 1938.
-Corresp.Doc.11: Carta de João Gomes de Brito (PB) para Luiz Saia, 23 de dezembro de 1938.
-Corresp.Doc.12: Carta de Luiz Saia para João Gomes de Brito (PB), 8 de janeiro de 1939.
-Corresp.Doc.13: Carta de João Gomes de Brito (PB) para Luiz Saia, 10 de janeiro de 1939.
-Corresp.Doc.14: Carta de Antônio B. Santiago (Itabaiana - PB) para Luiz Saia, 19 de janeiro de 1939.
-Corresp.Doc.15: Carta de João Gomes de Brito (PB) para Luiz Saia, 11 de abril de 1939.
-Corresp.Doc.16: Carta de José Freire Abus (Chefe de nau catarineta - PB) a Luiz Saia, sem data.
-Corresp.Doc.17: Carta de integrante de nau catarineta (não identificado - PB) a Luiz Saia, sem data.
-Corresp.Doc.18: Carta de Oneyda Alvarenga para Luiz Saia, 21 de fevereiro de 1938.
-Corresp.Doc.19: Carta de Mário de Andrade para Luiz Saia, 9 de março de 1938.
-Corresp.Doc.20: Carta de Oneyda Alvarenga para Francisco Mignone (RJ), 5 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.21: Carta de Oneyda Alvarenga para Luiz Saia, 5 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.22: Carta de Oneyda Alvarenga para Luiz Saia, 7 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.23: Carta de Oneyda Alvarenga para Luiz Saia, 26 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.24: Carta de Oneyda Alvarenga para Luiz Saia, 28 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.25: Carta de Oneyda Alvarenga para Luiz Saia, 2 de maio de 1938.
-Corresp.Doc.26: Carta de Oneyda Alvarenga para Luiz Saia, 5 de maio de 1938.
-Corresp.Doc.27: Carta de Oneyda Alvarenga para Luiz Saia, 9 de maio de 1938.
-Corresp.Doc.28: Telegrama de Mário de Andrade para Luiz Saia, 27 de maio de 1938.
-Corresp.Doc.29: Ofício de Encaminhamento da Discoteca Pública Municipal nº 270, 7 de junho de 1938, redigido por
Oneyda Alvarenga e dirigido a Luiz Saia.
-Corresp.Doc.30: Manifestação de Mário de Andrade (então Chefe da Divisão de Expansão Cultural) a Francisco Pati
(então Diretor do Departamento de Cultura) denominada “Exposição dos atos e conseqüencias da Missão [de
Pesquisas] Folclóricas atualmente em viagem pelo norte do Brasil”, datado de 23 de maio de 1938.
-Corresp.Doc.30A: Ofício de Encaminhamento da Discoteca Pública Municipal nº 271, 13 de junho de 1938, redigido
por Oneyda Alvarenga e dirigido a Francisco Pati (novo Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo.
-Corresp.Doc.31: Carta de Luiz Saia a Mário de Andrade, 9 de fevereiro de 1938.
-Corresp.Doc.32: Telegrama de Luiz Saia a Mário de Andrade, 13 de fevereiro de 1938.
-Corresp.Doc.33: Carta de Luiz Saia a Mário de Andrade, 14 de fevereiro de 1938.
-Corresp.Doc.34: Carta de Luiz Saia a Mário de Andrade, 16 de fevereiro de 1938.
-Corresp.Doc.35: Carta de Luiz Saia a Mário de Andrade, 26 de fevereiro de 1938.
-Corresp.Doc.36: Carta de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga, 28 de março de 1938.
-Corresp.Doc.37: Telegrama de Ademar Vidal a Mário de Andrade, 5 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.38: Telegrama de Luiz Saia a Mário de Andrade, 26 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.39: Carta de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga, 27 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.40: Cópia do Corresp.Doc.39.
-Corresp.Doc.41: Telegrama de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga, 30 de abril de 1938.
-Corresp.Doc.42: Carta de Martin Braunwieser para Oneyda Alvarenga, 2 de maio de 1938.
-Corresp.Doc.43: Carta de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga, 15 de maio de 1938.
-Corresp.Doc.44/45: 1º Relatório de Atividades da Missão de Pesquisas Folclóricas e relação das despesas efetuadas
pela equipe até 15 de maio de 1938, redigido por Luiz Saia.
-Corresp.Doc.46: Relação de objetos ritualísticos coletados pela equipe e despachados por Luiz Saia a São Paulo,
datado de 26 de maio de 1938.
-Corresp.Doc.47: Telegrama de Luiz Saia a Mário de Andrade, 26 de maio de 1938.
-Corresp.Doc.48: Telegrama de Luiz Saia a Mário de Andrade, 5 de junho de 1938.
-Corresp.Doc.49: Telegrama de Luiz Saia a Mário de Andrade, 22 de junho de 1938.
183

-Corresp.Doc.50: Carta de Luiz Saia a Oneyda Alvarenga, 30 de junho de 1938.


-Corresp.Doc.51: Carta de Martin Braunwieser para Oneyda Alvarenga, sem data.
-Corresp.Doc.52: Breve avaliação sobre os processos de coleta e os resultados obtidos pela Missão, sem data, sem
identificação de autor mas provavelmente redigido por Luiz Saia.

b) Hemeroteca (classificação original)


-Hemer.Doc.s/nº: “Missão de folcloristas ao Nordeste.”, Jornal do Brasil (Rio de Janeiro-RJ), 8 de janeiro de 1938.
-Hemer.Doc.4: “Entre os pancarus do Brejo dos Padres, em Tacaratu.”, Diário de Pernambuco (Recife-PE), 18 de abril
de 1938.
-Hemer.Doc.9: “Uma Grande Obra em Favor da Cultura Nacional.”, Diário Carioca (Rio de Janeiro-RJ), 8 de fevereiro
de 1938.
-Hemer.Doc.10: “Uma Campanha Necessária.”, Folha da Manhã (Recife-PE), 12 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.11: “Fechados pela polícia vários xangôs.”, Diário de Pernambuco (Recife-PE), 13 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.12: “Para estudar o folklore musical do norte.”, A Ordem (Natal-RN), 13 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.13: “Sobre a missão que virá ao norte, estudar o nosso folk-lore musical.”, Gazeta de Notícias (Fortaleza-
CE), 13 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.14: “Em pesquizas folklóricas pelo Norte do Brasil.”, Diário de Nordeste (Recife-PE), 15 de fevereiro de
1938.
-Hemer.Doc.15: “O Folklore como Base de Investigação Histórica.”, Diário da Manhã (Recife -PE), 15 de fevereiro de
1938.
-Hemer.Doc.16: “Percorrendo o Sertão Pernambucano.”, de Mário Melo, Jornal do Comércio (Recife-PE), 15 de março
de 1938.
-Hemer.Doc.17: “Para effectuar pesquisas folclóricas neste Estado.”, Jornal do Comércio (Recife-PE), 15 de fevereiro
de 1938.
-Hemer.Doc.18: “Para investigar o folk-lore musical no Norte.”, Folha da Manhã (Recife-PE), 15 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.19: “A polícia por dentro e por fora - Catimbó, Xangô e o sapateado da Macumba.”, Diário da Manhã
(Recife-PE), 15 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.20: “Veem estudar o folk-lore nordestino em missão do Departamento de Cultura da Municipalidade de
São Paulo.”, Diário de Pernambuco (Recife-PE), 15 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.24: “Notas de Arte.”, de Waldemar de Oliveira, Jornal do Comércio (Recife-PE), 18 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.25: “Carnaval Histórico de Olinda.”, Diário do Nordeste (Recife-PE), 20 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.26: “Na polícia e nas ruas - Chronica da Cidade.”, Jornal do Comércio (Recife-PE), 20 de fevereiro de
1938.
-Hemer.Doc.27: “Fechados dois centros de catimbó na Avenida Norte.”, Jornal do Comércio (Recife-PE), 22 de
fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.28: “A polícia por dentro e por fora - As diligências da polícia sobre o fechamento de casas de Xangô e
Catimbó.”, Diário da Manhã (Recife-PE), 22 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.30A: “Saneando nossos costumes - A polícia vareja dois centros catimbozeiros.”, Jornal do Comércio
(Recife-PE), 22 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.30B: “Carnaval.”, Diário de Pernambuco (Recife-PE), 23 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.31: “Notas de Arte.”, de Waldemar de Oliveira, Jornal do Comércio (Recife-PE), 23 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.32A: “Visitou hontem, esta Capital, o Chefe da Missão de Pesquizas Folk-loricas de São Paulo.”, A União
(João Pessoa-PB), 24 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.32B: “Mocambos do Recife e do Sertão.”, de Hildebrando Menezes, Diário de Pernambuco (Recife-PE),
16 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.33: “Notas de Arte.”, de Waldemar de Oliveira, Jornal do Comércio (Recife-PE), 26 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.34A: “De como vivem os índios pancarus no sertão de pernambuco.”, de Mário Melo, Jornal do Comércio
(Recife-PE), 17 de março de 1938.
-Hemer.Doc.34B: “O Nosso Folck-lore.”, de Ademar Vidal, A União (João Pessoa-PB), 27 de fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.35: “A Missão do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo em Pernambuco.”, Revista
Fronteiras (Recife-PE), fevereiro de 1938.
-Hemer.Doc.36A: “Missão de pesquisa folcklóricas que vem de S.Paulo ao Pará.”, de Gastão Vieira, Folha do Norte
(Belém-PA), 24 de junho de 1938.
-Hemer.Doc.36B: “Para efetuar pesquizas folclóricas em Pernambuco.”, Correio da Noite (Porto Alegre-RS), 3 de
março de 1938.
-Hemer.Doc.37: “Informações literárias - A Missão folklórica.”, Gazeta de Alagoas (Maceió-AL), 5 de março de 1938.
-Hemer.Doc.38: “Contra a prática do Baixo Espiritismo.”, Diário de Pernambuco (Recife-PE), 8 de março de 1938.
-Hemer.Doc.40: “Repressão tenaz aos exploradores da crendice popular.”, Jornal do Comércio (Recife-PE), 19 de
março de 1938.
-Hemer.Doc.41: “Seguem hoje, para Parahyba, os membros da Missão de Pesquisas Folclóricas, de São Paulo.”,
Jornal do Comércio (Recife-PE), 26 de março de 1938.
-Hemer.Doc.42: “Pesquizando o Folclore nortista.”, A União (João Pessoa-PB), 27 de março de 1938.
184

-Hemer.Doc.43: “Está nesta Cidade a Missão de Pesquizas Folclóricas de São Paulo.”, Voz da Borborema (Campina
Grande-PB), 2 de abril de 1938.
-Hemer.Doc.44: “A Contribuição da Paraíba para o folclore Nacional.”, A Imprensa (João Pessoa-PB), 13 de abril de
1938.
-Hemer.Doc.45: “Obteve pleno êxito no interior paraibano a Missão Folclórica da Municipalidade de São Paulo.”, A
União (João Pessoa-PB), 27 de abril de 1938.
-Hemer.Doc.46: “Maracatús do Nordeste.”, de Severino Alves Rocha, A Imprensa (João Pessoa-PB), 7 de maio de
1938.
-Hemer.Doc.47: “Missão Cultural Paulista.”, A Imprensa (João Pessoa-PB), 29 de maio de 1938.
-Hemer.Doc.48: “A Contribuição da Paraíba ao folc-lor Nacional.”, A Imprensa (João Pessoa-PB), 1º de junho de 1938.
-Hemer.Doc.49A: “O Folklore como base de investigação histórica.”, Folha do Norte (Belém-PA), 18 de fevereiro de
1938.
-Hemer.Doc.49B: Sem título, O Estado (Fortaleza-CE), 1º de junho de 1938.
-Hemer.Doc.50: “Usos e Tradições da Cidade - Belém do tacacá e do assahy.”, Folha do Norte (Belém-PA), 21 de
junho de 1938.
-Hemer.Doc.s/nº: “O Folklore.”, Diário do Norte (São Luís-MA), 26 de junho de 1938.
-Hemer.Doc.51: “Os Grandes festejos joaninos da Praça Floriano Peixoto segue com intensa vibração popular e
grande animação.”, O Estado do Pará (Belém-PA), 22 de junho de 1938.
-Hemer.Doc.54/55: “As tradições populares na reportagem da Folha.”, Folha do Norte (Belém-PA), 23 de junho de
1938.
-Hemer.Doc.60: “Vae colher material sobre as tradicionaes festas do Bom Jesus de Pirapora e Perdões.”, Diário da
Noite (São Paulo-SP), 2 de agosto de 1938.
-Hemer.Doc.61: “Do Norte para São Paulo.”, Diário da Noite (São Paulo-SP), 11 de agosto de 1938.
-Hemer.Doc.62: “Notícias Diversas - Folclore Brasileiro: A Missão de Pesquisas Folclóricas ao Norte do País.”, O
Estado de São Paulo (São Paulo-SP), 12 de agosto de 1938.
-Hemer.Doc.63: “Os trabalhos realizados no Norte do País pela Missão de Pesquizas Folclóricas do Departamento de
Cultura.”, Folha da Noite (São Paulo-SP), 12 de agosto de 1938.
-Hemer.Doc.64: “Aproveitamento do nosso folclore no moderno sistema educacional dos parques infantis.”, Diário da
Noite (São Paulo-SP), 16 de agosto de 1938.
-Hemer.Doc.65: “Folk-lore musical e Ethnographia brasileira.”, Diário Popular (São Paulo-SP), 29 de agosto de 1938.
-Hemer.Doc.67: “Predomina a música sinfônica na preferência dos brasileiros.”, Folha da Noite (São Paulo-SP), 1939.
-Hemer.Doc.69: “As actividades da Commissão do Departamento de Cultura de São Paulo.”, Jornal do Comércio
(Recife-PE), fevereiro de 1938.

BIBLIOGRAFIA

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