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ENSAIO | ESSAY 593

Territórios e sentidos: espaço, cultura,


subjetividade e cuidado na atenção psicossocial
Territories and meanings: space, culture, subjectivity and care in
psychosocial attentiveness
Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima1, Silvio Yasui2

RESUMO No contexto da saúde coletiva e da saúde mental, o conceito de território está pre-
sente em múltiplas dimensões e sentidos. Aparece em documentos que expressam princípios
e diretrizes das políticas de saúde e no planejamento das ações locais, e é elemento central
para organizar a rede de cuidado na atenção psicossocial. O presente ensaio busca discutir
o conceito de território e seus usos nas práticas da atenção psicossocial, desenvolvendo um
diálogo com o geógrafo Milton Santos e os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, que, de
campos e perspectivas distintas, trabalham com esse conceito. Este diálogo possibilitou pen-
sar o território em sua complexidade, como espaço, processo e composição, de forma a po-
tencializar a relação entre serviço, cultura, produção do cuidado e produção de subjetividade.

1 Doutora em Psicologia PALAVRAS-CHAVEServiços de saúde mental; Saúde pública; Cultura.


Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP) ABSTRACT In the light of the collective health and of the mental health, the concept of territory
– São Paulo (SP), Brasil. is present in multiple dimensions and meanings. It appears in documents that express princi-
Professora do Curso de
Terapia Ocupacional, da ples and guidelines of the health policies and in the planning of local actions, and it is a central
Faculdade de Medicina element to organize the care network in psychosocial attentiveness. This present essay aims to
da Universidade de São
Paulo (USP) – São Paulo discuss the concept of territory and its uses in the practices of psychosocial care, developing a dia-
(SP), Brasil. Orientadora logue with the geographer Milton Santos and the philosophers Gilles Deleuze and Félix Guattari
no Programa de Pós-
Graduação em Psicologia who, from different fields and perspectives, work with this concept. This dialogue made it possi-
da Faculdade de Ciências ble to think the territory in its complexity, as space, process and composition, in order to optimize
e Letras, da Universidade
Estadual Paulista Júlio de the relationship between service, culture, production of care and production of subjectivity.
Mesquita Filho (UNESP) –
Assis (SP), Brasil.
beth.lima@usp.br KEYWORDS Mental health services; Public health; Culture.

2 Doutor em Saúde Pública


pela Escola Nacional de
Saúde Pública da Fundação
Oswaldo Cruz (ENSP/
FIOCRUZ) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Professor
do Departamento de
Psicologia Evolutiva, Social
e Escolar e do Programa
de Pós-Graduação em
Psicologia da Faculdade
de Ciências e Letras, da
Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita
Filho (UNESP) – Assis (SP),
Brasil.
syasui@assis.unesp.br

DOI: 10.5935/010 3-1104.20140055 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V . 38, N. 102, P. 593-606, JUL-SET 2014
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Introdução campos do conhecimento, como a Geografia,


a Biologia, a Antropologia, a Sociologia, a
No contexto da saúde coletiva, o conceito de Ciência Política e a Filosofia. Na saúde coleti-
território está presente em múltiplas dimen- va brasileira, este conceito adquire destaque,
sões e sentidos. Aparece em documentos que especialmente a partir da implantação do
expressam princípios e diretrizes das políti- Sistema Único de Saúde como um dos prin-
cas de saúde e está presente no planejamen- cípios organizativo-assistenciais mais impor-
to das ações locais, especialmente na Atenção tantes desse sistema (UNGLERT, 1999).O segundo
Básica. aspecto refere-se aos processos que ocorrem
A relação entre a produção de cuidado e o no território, considerando suas múltiplas
território no qual este cuidado é exercido é lógicas – algumas de emancipação e partici-
também uma questão central para a atenção pação, outras que produzem sujeição e domi-
psicossocial e aparece claramente enunciada nação. Para pensar a organização e as ações
em diversos documentos relativos à Reforma desenvolvidas nos serviços substitutivos ao
Psiquiátrica, a partir de 2002. A Portaria nº manicômio, é fundamental que possamos
336/02, por exemplo, institui os Centros de considerar as diferentes lógicas do território,
Atenção Psicossocial (CAPS) como serviços seus recursos, suas potencialidades, suas li-
substitutivos ao hospital psiquiátrico a serem nhas de captura.
criados de forma territorializada e tendo por É sob esses dois aspectos que o presente
característica ‘responsabilizar-se, sob coorde- ensaio pretende abordar a discussão do con-
nação do gestor local, pela organização da de- ceito de território. Após uma breve contex-
manda e da rede de cuidados em saúde men- tualização histórica, na qual evidenciamos a
tal no âmbito do seu território’. Esta mesma relevância do tema do território nas práticas
portaria estabelece, também, no Parágrafo 2 de saúde mental, buscaremos desenvolver um
do Artigo 1, que os “CAPS deverão constituir- diálogo com alguns autores que trabalham
se em serviço ambulatorial de atenção diária com o conceito de território, para que estes
que funcione segundo a lógica do território” nos auxiliem a pensar como potencializar a
(BRASIL, 2002). relação entre serviço, produção do cuidado,
A ‘lógica do território’ é uma ideia central, espaço e cultura.
norteadora das ações a serem engendradas Os autores que elegemos para este diálogo
pelos serviços, de forma intrinsecamente as- foram Milton Santos, Deleuze e Guattari, que,
sociada ao tempo e ao lugar em que as ações de perspectivas e campos distintos, pensam
são elaboradas e realizadas. Neste contexto, o território em relação aos processos que o
os CAPS aparecem como estratégia de orga- constituem e que o desmancham, sempre in-
nização da rede de cuidados, considerando- seridos em jogos de força.
se que a realização de parcerias entre serviços Para o geógrafo brasileiro,
de saúde e serviços com a comunidade é vital
para operar os cuidados em saúde mental, já O território tanto quanto o lugar são esquizo-
que nenhum serviço poderia resolver isolada- frênicos, porque de um lado acolhem os veto-
mente todas as necessidades de cuidado das res da globalização, que neles se instalam para
pessoas de um determinado território(DELFINI impor sua nova ordem, e, de outro lado, neles
ET AL., 2009). se produz uma contraordem, porque há uma
Porém, devemos estar atentos a dois aspec- produção acelerada de pobres, excluídos, mar-
tos relevantes: o primeiro refere-se aos múl- ginalizados (SANTOS, 2001, p. 114).
tiplos sentidos que a palavra território pode

conter,
sido já que eo conceito
utilizado de território
desenvolvido tem é pensando
em diversos Já para oscomo
filósofos
uma franceses,
construçãooprovisória
território

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que se dá sempre em relação a processos de doente. A doença, a pobreza, o ócio, o vício e


desterritorialização e reterritorialização. Nas o crime caminhavam juntos em cidades sem
palavras de Gilles Deleuze(1989, p. 4), “o territó- trabalho, luxo ilusório que a escravidão pos-
rio só vale em relação a um movimento atra- sibilitava. O estrangeiro (negro, oriental ou
vés do qual dele se sai”. E continua: “não há europeu) ocupava também um lugar central
território sem um vetor de saída do território, nas preocupações da higiene mental que to-
e não há saída do território, ou seja, desterrito- mariam corpo no início do século XX, como
rialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço se, para afastar e prevenir o risco da loucura,
para se reterritorializar em outra parte”. fosse preciso expulsar ou, em uma ação de as-
sepsia, evitar os riscos da contaminação que
aqueles que vinham de fora representavam.
O lugar da loucura Costa (1981) relata-nos a história da Liga
Brasileira de Higiene Mental, que, nos anos
O lugar das práticas psiquiátricas sempre se 1920 e 1930, tem a pretensão de constituir-
revestiu de especial importância. No Brasil, se em um projeto de regeneração nacional,
a expressão ‘aos loucos o hospício’, enuncia- tomando como tarefa o saneamento racial
da em 1830 pela Sociedade de Medicina, de- brasileiro. Com um discurso preventivo de
nunciava a situação na qual viviam os loucos ideal eugênico, alargava o campo de atuação
no Hospital da Santa Casa da Misericórdia e da psiquiatria para as diversas instâncias do
exigia a criação de um lugar diferenciado para social: a família, o trabalho e a escola.
um ‘verdadeiro tratamento’ da loucura. Uma Esse processo faz parte de um progressi-
doença especial requeria, para ser tratada, um vo desenvolvimento do poder sobre a vida,
lugar especial, definido e dirigido pelo saber que, a partir do século XVII, estará asso-
médico. Essa direção para a prática lançava ciado a um poder de normalização dos pro-
as bases de uma psiquiatrianascente e, simul- cessos vitais. Esse desenvolvimento deu-se
taneamente, incluía o louco nas medidas da em duas formas principais: a primeira foi
medicina social voltadas para a profilaxia do centrada no corpo e em seu adestramento,
meio urbano (MACHADOET AL., 1978). na ampliação de suas aptidões, no investi-
Machado et al. (1978) e Cunha (1988) eviden- mento em sua docilidade e utilidade, e na
ciam a influencia do alienismo na organização extorsão de suas forças, por meio do que
do espaço urbano e na manutenção da ordem Foucault chamou de disciplinas, caracteri-
social, na sociedade brasileira do século XIX zadas por uma anátomo-política do corpo.
e início do século XX. A maior parte dos hos- A segunda forma de poder sobre a vida, que
pícios brasileiros possui uma mesma caracte- emergiu em meados do século XVIII, cen-
rística: estão situados em lugares distantes do trou-se no corpo-espécie, como suporte dos
principal núcleo urbano dacidade. Sua arqui- processos biológicos, caracterizado pela di-
tetura e sua localização revelam uma de suas nâmica do vivo. Dessa forma de exercício
principais funções: a exclusão de indivíduos do poder, que Foucault (1979; 2001; 2008) cha-
não adaptáveis ou resistentes à ordem social. mou de biopolítica da população, interessa
Entre esses indivíduos, dois perfis desta- conhecer, regular e controlar os nascimen-
cam-se: o do vadio e o do estrangeiro. O va- tos, a mortalidade, o nível de saúde, a du-
dio era percebido como alguém perigoso, que ração da vida de determinadas populações
vivia no mato, separado das trocas humanas, e todas as condições que podem fazer esses
misto de homem e animal. Organizar os va- processos variarem.
dios era um problema a ser enfrentado. Era A partir da instauração dessa biopolítica

precisorevoltosa,
ótica, ordenar uma
mole,população
frouxa e, que era ca-
sobretudo, da população,
poder modalidade
própria dos de exercício
estados modernos, do
que faz

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sobreporem-se vida e política, vemos sur- da doença para a sua prevenção: prevenir a do-
gir um mecanismo de vigilância e controle, ença mental e promover a saúde, identificada
e a organização de populações divididas em aqui como promoção do ajustamento social
grupos com características peculiares toma- (BIRMAN; COSTA, 1994).

das como traço identitário. A população será, Do apresentado até aqui, podemos per-
então, objeto dos cálculos do poder e das ceber que a psiquiatria, em sua relação com
análises de risco, orientadas pelas flutuações a sociedade, tem funcionado como poderoso
das curvas de normalidade nas quais todos dispositivo de articulação de práticas discipli-
serão posicionados (FOUCAULT, 2008). nares, que investem na docilização dos cor-
Para falar da disciplina, Foucault(2001) uti- pos (FOUCAULT, 1979), e de práticas de controle
liza como modelo a exclusão dos leprosos, (DELEUZE, 1992)voltadas para a produção de cor-

que se caracteriza por uma prática de rejei- pos e modos de vida: do corpo dócil ao corpo
ção e marginalização dos indivíduos, que são útil, cúmplice, aparentemente participativo,
assim expulsos da cidade e impedidos de cir- ajustado, consumidor.
culação social. A disciplina associa-se à outra Assim, se nos colocamos na perspectiva de
modalidade de exercício do poder, que pare- uma ruptura com a racionalidade que deter-
ce ser mais duradoura e cujo modelo é o da mina o lugar do cuidado da loucura como o
peste. Esta modalidade concretiza-se no po- do isolamento, da exclusão, mas também de
liciamento da cidade e diz respeito ao contro- uma ruptura com a lógica do controle, que,
le dos indivíduos por meio de uma forma de por meio de diferentes dispositivos penetra
inclusão constituída pela análise pormenori- na sociedade com estratégias de vigilância e
zada do território e de seus elementos, e pelo domesticação, devemos estar atentos sobre as
exercício de um poder contínuo. relações entre a produção de cuidado e o ter-
ritório no qual se inscreve o serviço.
não se trata de uma exclusão, trata-se de uma
quarentena. Não se trata de expulsar, trata-se
ao contrário de estabelecer, de fixar, de atribuir O território vivo e dinâmico
um lugar, de definir presenças, e presenças no qual a vida se desenrola
controladas. Não rejeição, mas inclusão. [...]
trata-se de uma série de diferenças sutis, As discussões mais recentes sobre o tema do
e constantemente observadas, entre os território trouxeram para o campo da saúde
indivíduos que estão doentes e os que não um importante geógrafo brasileiro: Milton
estão (FOUCAULT, 2001, p. 57). Santos. Seus trabalhos serviram para reorien-
tar as concepções sobre espaço e saúde no
É nesse contexto que, na década de 1960, âmbito da saúde coletiva. Em seus estudos, o
surge a psiquiatria preventiva norte-ameri- território é uma categoria central. Negando a
cana, que desloca a sua ação preferencial do visão tradicional da geografia que considera o
hospital psiquiátrico para a sociedade, toman- território como um objeto estático com suas
do-a como seu locus privilegiado. A doença formações naturais, apresenta-o como um ob-
mental passa a ser vista a partir do modelo da jeto dinâmico, vivo, repleto de inter-relações,
História Natural das Doenças, estabelecendo- e propõe o detalhamento das influências re-
se, assim, uma evolução que pressupõe um cíprocas do território com a sociedade, seu
momento de prevenção da doença mental por papel essencial sobre a vida do indivíduo e do
meio da detecção precoce dos comportamen- corpo social. Para o autor, o território englo-
tos desviantes e de risco que surgem em uma baria as características físicas de uma dada

comunidade
trolada. específica,
O objetivo esquadrinhada
da psiquiatria e con-
passa da área, e também
cura homem. Assim, as marcas produzidas pelo

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Ele seria formado pelo conjunto indissociável do cotidiano é constituída de pessoas, empre-
do substrato físico, natural ou artificial, e mais o sas, instituições, formas sociais e jurídicas e
seu uso, ou, em outras palavras, a base técnica formas geográficas. Assim, após analisarem
e mais as práticas sociais, isto é, uma combina- outros aspectos do conceito do território,
ção de técnica e política(SANTOS, 2002, p. 87). aproximando-o ao campo da saúde, os auto-
res concluem afirmando que o território da
Ou seja, há uma inseparabilidade estrutu- saúde coletiva é composto de produções co-
ral, funcional e processual entre a sociedade letivas, com materialidade histórica, social e
e o espaço geográfico. O território, tomado configurações espaciais singulares compatí-
como um todo dinâmico, permite uma visão veis com a organização político-administrati-
não fragmentada dos diversos processos so- va e institucional do setor.
ciais, econômicos e políticos. A partir do acima exposto, podemos ca-
Nessa perspectiva, Moken et al. (2008, p. 5) minhar em direção a um entendimento do
destacam que território que supere a noção de delimitação
geográfica sobre a qual um determinado ser-
as discussões mais recentes sobre o territó- viço se torna responsável, devendo atender às
rio incorporam o componente cultural consi- pessoas com domicílio naquele local. O terri-
derando que o território carrega sempre, de tório, na concepção dos autores citados aci-
forma indissociável, uma dimensão simbólica, ma, é relacional. Ele diz respeito à construção
ou cultural em sentido estrito, e uma dimen- e à transformação que se dão entre os cená-
são material, de natureza predominantemente rios naturais e a história social que os homens
econômico-política. inscrevem e produzem: memória dos aconte-
cimentos inscrita nas paisagens, nos modos
A ideia de território transitaria do político de viver, nas manifestações que modulam as
para o cultural, das fronteiras entre povos aos percepções e a compreensão sobre o lugar;
limites do corpo e ao afeto entre as pessoas. relações que surgem dos modos de apropria-
Isso aponta para novas propostas teórico-me- ção e de alienação desse espaço e dos valores
todológicas, cujas bases estão na perspectiva sociais, econômicos, políticos e culturais ali
da operacionalização do conceito de ‘territó- produzidos; modos múltiplos, contíguos, con-
rio usado’, de Santos e Silveira(2001). Para es- traditórios de construção do espaço, da pro-
tes autores, ‘território usado’ corresponde a dução de sentidos para o lugar que se habita
qualquer pedaço do território, considerando por meio das práticas cotidianas.
a interdependência e a inseparabilidade entre Organizar um serviço substitutivo que
sua materialidade e seu uso. Ou seja, o terri- opere segundo a lógica do território é olhar e
tório usado é tanto o resultado do processo ouvir a vida que pulsa nesse lugar. Pensar na
histórico quanto a base material e social das organização de um CAPS em uma cidade situ-
novas ações humanas. ada no meio da floresta amazônica é distinto
Para Mokenet al. (2008), compreender o ter- de pensar o CAPS no interior deum estado do
ritório nessa perspectiva abre possibilidades Nordeste ou de um bairro da periferia leste da
para as análises em saúde e para o entendi- cidade de São Paulo. São territórios distintos,
mento contextual do processo saúde-doença, com suas histórias sociais, políticas e econô-
especialmente em espaços comunitários e micas de ocupação e usos dos espaços. Há his-
tendo como dimensão temporal o cotidiano. tórias que determinam os lugares e as formas
Os autores destacam, comoelementos impor- de acesso: os bairros nobres interditados aos
tantes, a copresença, a vizinhança, a intimi- pobres, exceto aos serviçais; a região do co-

dade,base
com a emoção, a cooperação
na contiguidade. e asociabilidade
Esta socialização ção;
mércio com suasenclausurado
o comércio ruas de intensa
nosmovimenta-
shoppings

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centers; os parques e equipamentos de lazer; revela o transcurso da história como indica a


os bairros pobres; a região do meretrício etc. seus atores o modo de nela intervir de maneira
Há histórias sociais que produzem marcas e consciente(SANTOS, 2001, p. 80).
formas peculiares de se expressar na mesma
língua portuguesa, com palavras e sons parti- O autor aposta que a luta por mudanças está
culares; modos de expressão cultural que re- na base das ações dos movimentos comunitá-
velam influências de diferentes culturas nas rios e populares como novas formas de fazer
festas e celebrações, na culinária, na dança, comunicação e realizar obras que sirvam ao
na música; territórios com sua base econô- outro, e destaca o papel dos pobres na produ-
mica e formas de exploração do homem com ção do presente e do futuro. Antes, distingue
suas consequências no modo de viver e levar pobreza de miséria, afirmando que esta últi-
a vida. A oferta, a organização, a distribuição ma acaba por ser a privação total, com oquase
e o acesso aos serviços e instituições também aniquilamento da pessoa. Já a pobreza é “uma
trazem as marcas locais da construção das po- situação de carência, mas também de luta, um
líticas públicas. estado vivo, de vida ativa, em que a tomada de
Esse fundo de permanência marcado por consciência é possível. [...] Miseráveis são os
tradições culturais é continuamente atraves- que se confessam derrotados. Mas os pobres
sado pela lógica do capitalismo globalizado, não se entregam”(SANTOS, 2001, p. 132). É no coti-
que intervém dissipando e desintegrando as diano, na lida diária, que eles descobrem e in-
fronteiras entre o local e o global, modifican- ventam formas de trabalho e luta, convivendo
do relações, gerando modos conformados e com a necessidade e com o outro.
consumistas de existir. É no território, tam- Assim a cidade cria e recria uma cultura
bém, que se exerce o controle das subjetivi- com a cara do seu tempo e do seu espaço, e de
dades. É nele que se instala o olho vigilante acordo ou em oposição aos ‘donos do tempo’,
do poder disciplinar que se ramifica e adere que são também os donos do espaço. Assim se
às rotinas cotidianas, transmutando-as ao sa- elabora a política dos de baixo, constituída a
bor das conveniências do mercado. E o que se partir das suas visões do mundo e dos lugares:
vende com as mercadorias são modos de ser, uma política dos pobres baseada no cotidiano
novos mundos e novas formas coletivas de vivido por todos, pobres e não pobres, e ali-
conceber a vida e a existência – subjetivida- mentada pela simples necessidade de conti-
des capturadas e ansiosas pelo consumo. Mas nuar existindo(SANTOS, 2001).
se, como propõe Foucault (2002), ali onde o Essa é a vida que pulsa no lugar. Essa é a
poder incide é onde se exerce a resistência, o aposta na construção dos serviços substituti-
território é ainda lugar de produção contínua vos territoriais.
de modos de vida e de relações que escapam
ao controle.
Milton Santos aponta essa dualidade de for- A clínica e os territórios
ças que incidem no território, afirmando que existenciais
o território não é um dado neutro nem um ator Se o território é, simultaneamente, espaço de
passivo. Produz-se uma verdadeira esquizofre- inscrição da racionalidade dominante e lu-
nia, já que os lugares escolhidos acolhem e be- gar de emergência de formas de resistência,
neficiam os vetores da racionalidade dominante o deslocamento espacial da atenção, do asi-
mas também permitem a emergência de outras lo ao território, não garante uma prática em
formas de vida. Essa esquizofrenia do território ruptura com as formas de poder que se exer-
e do lugar tem um papel ativo na formação da
consciência. O espaço geográfico não apenas cem sobre a vida.
substitutivos Do asilo aossua
que inscrevem novos
açãoserviços
em seu

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território de abrangência, poderíamos apenas e responsabilização para com o sofrimento


passar de uma prática disciplinar para uma humano, de construção de possibilidades de
prática de controle. Deleuze(1992) chamou a vida e de produção de subjetividades.
atenção para esse risco ao afirmar que, se a Essa reinvenção da clínica requer a des-
crise do hospital, os hospitais-dia e os servi- vinculação entre clínica e hospital e a criação
ços comunitários marcaram inicialmente no- de novas instituições que trabalhem na lógica
vas liberdades, eles também passaram a inte- da heterogeneidade, da implicação, da circu-
grar mecanismos de controle que rivalizam lação social, e que se coloquem a questão das
com as mais duras formas de confinamento. territorialidades, mas também dos proces-
Se o poder que incide sobre a vida e se sos de territorialização, desterritorialização
atualiza em práticas médicas e de saúde ten- e reterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 1997). O
de a passar cada vez menos pelo manicômio paciente aqui não é objeto de um saber ou de
(MARTINS, 2009), isto coloca novos desafios para uma prática, mas sujeito em construção em
a construção da atenção em saúde mental. A um processo de individuação complexo, que
reforma psiquiátrica brasileira, como um pro- se dá no interstício dos encontros. Abandona-
cesso social complexo (AMARANTE, 2003), vem se, assim, uma clínica centrada na pessoalida-
sendo construída no interior de uma tensão de e no sintoma individual, para dar lugar a
que atravessa a vida no contemporâneo, na processos de produção de saúde e de subjeti-
qual práticas de resistência – que afirmam a vidade, o que implica a inserção em processos
potência da vida de reinventar-se permanen- de criação voltados para a construção de no-
temente – estão em embate com linhas que vas línguas, novos territórios, novos sentidos.
tendem para a vigilância e o controle. As relações entre clínica, território e sub-
Assim, se a discussão das relações entre jetividade introduzem a noção de ‘território
território e produção de cuidado envolve existencial’, que envolve espaços construídos
o território como área sobre a qual o servi- com elementos materiais e afetivos do meio,
ço deve assumir a responsabilidade sobre as que, apropriados e agenciados de forma ex-
questões de saúde, ela também deve ir além pressiva, findam por constituir lugares para
e pensar o território como espaço e percurso viver.
que compõem as vidas cotidianas das pesso- Estamos aqui trabalhando com a perspecti-
as e dos usuários de serviços de saúde, espa- va de Deleuze e Guattari, que compreendem o
ço relacional no qual a vida pulsa. Isto sem território a partir de uma articulação entre os
esquecer o território como espaço no qual se sentidos etológico, subjetivo, sociológico e ge-
produzem modos de ser, de se relacionar, de ográfico do conceito, como um agenciamento
amar, de consumir, alguns engajados nagran- entre seres, fluxos e matérias(HAESBAERT; BRUCE,
de máquina capitalista, outros que resistem a 2002).

sua captura.
Não se trata apenas de pensar os desloca- A noção de território aqui é entendida num
mentos no espaço físico, mas de problema- sentido muito amplo [...]. Os seres existentes
tizar o olhar sobre o território, para pensar se organizam segundo territórios que os deli-
quais os modos de vida que estão sendo pro- mitam e os articulam aos outros existentes e
duzidos e que clínica é possível aí realizar. aos fluxos cósmicos. O território pode ser re-
Nesse percurso, coloca-se, portanto, a re- lativo, tanto a um espaço vivido quanto a um
construção do conceito e da prática clínica, sistema percebido no seio do qual um sujeito
que, segundo Amarante (2003), tem sido um se sente “em casa” (GUATTARI; ROLNIK, 198 6, p. 323).
aspecto fundamental da reforma psiquiátrica

abrasileira. Paraespaço
clínica como esse autor, é preciso
de efetivo reinventar desterritorialização
engajamento Esses territórios ecomportam vetores de
reterritorialização: “O

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território pode se desterritorializar, isto é, Félix Guattari (1992) analisa a sociedade


abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até contemporânea como o mundo da técnica e
sair de seu curso e se destruir” (GUATTARI; da desterritorialização, com a consequente
ROLNIK, 1986, p. 323). produção de uma homogênese capitalística,
Em relação a isso, é preciso considerar que impõe uma equivalência generalizada
que a experiência da loucura, do sofrimen- dos valores e uma padronização dos com-
to, da exclusão é marcada por um forte co- portamentos. A partir de processos inter-
eficiente de desterritorialização, entendido mitentes de desterritorialização e reterrito-
como movimento por meio do qual alguém rialização, desenvolveu, com Gilles Deleuze,
deixa um território, desfazendo tudo aqui- a noção de heterogênese, para afirmar que
lo que uma territorialização constitui como é por meio dela que se produz algo novo e
dimensão do familiar e do próprio. Esses inusitado. Podemos pensá-la como busca
movimentos de desterritorializaçã o são in- permanente, no âmbito da vida cotidiana, da
separáveis de novos mundos que se fazem instauração de um processo contínuo de pro-
em processos de reterritorialização, que dução singular da existência. Heterogênese
não consistem em um retorno ao território diz respeito à produção de diferença, daqui-
de srcem, mas na construção de um novo lo que escapa da homogeneidade e do já ins-
território. tituído. Os processos de reterritorialização
Ora, a problemática da loucura – e de referem-se à composição de territórios exis-
tantas outras linhas de fuga que são traça- tenciais, que se segue ao desfazimento de ou-
das em processos vitais de dissidência e/ tros. Guattari afirma que se trata de recons-
ou deserção – é a de uma desterritorializa- tituir uma relação particular com o cosmos e
ção que muitas vezes se reterritorializa em com a vida, na composição de uma singulari-
territórios mínimos, muito fechados, para dade individual e coletiva.
constituir uma proteção contra o caos, ou
em territórios paradoxais, quando se faz da
própria desterritorialização um território Territórios mínimos,
subjetivo (PELBART, 2003). territórios efêmeros
Na perspectiva da clínica, trata-se, então,
de acompanhar, cuidar e investir em movi- Gostaríamos de trazer aqui duas situações
mentos de reterritorilização para que estes clínicas para podermos visualizar como es-
possam operar a criação de uma nova terra sas diferentes ideias de território se com-
na qual seja possível traçar linhas de vida. põem e se atravessam no trabalho cotidiano
É preciso sustentar a construção de terri- de produção de saúde.
tórios existenciais, mesmo que efêmeros e A primeira situação, vivenciada com fre-
nômades, que possam se abrir, estabelecen- quência no cuidado de pessoas na atenção
do relações com outras vidas e com outros psicossocial, ocorreu em um acompanha-
mundos. E esses territórios não coincidem mento terapêutico realizado no Programa
necessariamente com aqueles circunscritos de Composições Artísticas e Terapia
pelos serviços, e podem aí constituir veto- Ocupacional (Pacto), programa didático-
res de desterritorialização. assistencial do Laboratório de Estudo e
Se o território é também, como suge- Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional,
re Deleuze (1992), o lugar por excelência do da Faculdade de Medicina da Universidade
controle, os processos de desterritoriali- de São Paulo (LIMA ET AL., 2009). Ulisses, como o
zação poderão ser pensados como proces- denominaremos aqui, era um jovem que se

sos de resistência que engendrariam novas


territorialidades. comportava em
clausurado de forma bastante
sua própria restrita,
casa, en-
passando

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Territórios e sentidos: espaço, cultura, subjetividade e cuidado na atenção psicossocial 601

os dias em seu quarto. Ele não transitava motorista do ônibus, com o segurança de um
pelo território de sua cidade e de sua comu- museu – enfim, todo um conjunto de ações
nidade; sua casa era seu território existen- que provoque, instigue, convide o território,
cial. Foi proposto a Ulisses e sua família um a cultura, a construir coletivamente novas
trabalho de acompanhamento terapêutico, formas de convivência com a diferença.
pelo qual se desenvolveria uma exploração A outra situação clínica que gostaríamos
acompanhada do entorno de sua casa, na de trazer para nos ajudar a pensar o território
procura de outros espaços de pertinência e e os processos coletivos e existenciais que o
sociabilidade. atravessam foi vivida junto a um usuário do
Essa sugestão aposta em uma ampliação Centro de Atenção Psicossocial Luis da Rocha
do território existencial de Ulisses, o que Cerqueira, em São Paulo (SP). Chamaremos
implica um processo de desterritorializa- aqui de Teodoro esse homem que ficava por
ção e requer, portanto, bastante prudência e muito tempo olhando revistas e jornais e es-
cuidado. Ela envolve, também, um processo colhendo figuras ou palavras que recortava
de desterritorialização de seu entorno, que e colava em sua roupa ou seu corpo, como se
está atravessado pelas mesmas forças de ex- quisesse criar para si um contorno(LIMA, 1997).
clusão que fizeram com que o jovem tives- Muitas vezes, as figuras que Teodoro re-
se vivido dentro de sua casa grande parte cortava eram depois coladas em diferentes
de sua vida. São essas forças as enfrentadas lugares da casa, como se ele estivesse trans-
quando Ulisses passeia por espaços que não formando um espaço desconhecido, sem mar-
parecem ter sido feitos para ele. Promove-se cas e sem história, em um território próprio.
uma desterritorialização do território social Teodoro estava envolvido na construção de
e cultural, que tem que se reconfigurar para uma morada, na qual pudesse se sentir ‘em
comportar Ulisses e tantas outras existên- casa’, o que possibilitaria frequentar o CAPS
cias dissidentes. Luis Cerqueira e também habitar seu corpo e
Assim, o trabalho de produção de saúde transitar pelo mundo. Criar territórios, mar-
deve sempre levar em conta o território da cando os espaços como próprios, tem a fun-
cidade no qual se insere a atenção, poden- ção de controlar o excesso, de possibilitar o
do entrar em processos de composição com enfrentamento do caos. Deleuze e Guattari
este – múltiplos e ricos processos de compo- (1997) dizem que, quando o caos ameaça, é

sição, que vão sendo engendrados quando muito importante traçar um território e, se
se passa a descobrir e ativar os recursos do for preciso, tomar o próprio corpo como ter-
próprio território. Este trabalho compreen- ritório, territorializar o corpo.
de, também, momentos de enfrentamento de Teodoro, ao mesmo tempo em que terri-
certos pontos duros, de captura e enclausu- torializava seu corpo, buscava domesticar o
ramentos, em que é necessário realizar inter- ambiente desconhecido. Ao espalhar figu-
venções no território, que podem levar a sua ras e fragmentos de textos pela casa onde se
reinvenção coletiva. dava seu tratamento, marcava o território de
Nessa perspectiva, a intervenção não es- forma a poder habitá-lo e transitar por ele. As
taria voltada para a inclusão de alguém em composições de figuras que criava constituí-
uma configuração social hegemônica, mas am um salto do caos em direção a um começo
para a reinvenção do território da cidade: de ordem. Em pouco tempo, poderia estar ‘em
reabilitar o território, em suas dimensões casa’ no CAPS.
geográficas, políticas e culturais, dimensões Como nos ensinam Deleuze e Guattari
que comportam ainda um plano micropo- (1997), o ‘em casa’ não preexiste; é preciso orga-

lítico, aquele
constelam na dos encontros
relação e afetos que
com o padeiro, comseo nizar um
torno em espaço
volta delimitado, traçando
um centro frágil eum con-
incerto.

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602 LIMA, E. M. F. A.; YASUI, S.

Para os autores, os territórios se fazem por e cuidadoso de construção de aberturas e de


procedimentos expressivos; eles são consti- linhas de singularização (LIMA, 1997).
tuídos ao mesmo tempo em que são produ- É preciso pertencer a um território para
zidas ou selecionadas as qualidades expres- desterritorializar-se, ou, como nos ensina
sivas que os compõem: formas que emergem Winnicott (1975), não há srcinalidade sem
do caos criando configurações, composições, uma base de tradição. No entanto, não há
sentidos. Componentes diversos intervêm vida sem movimento e criação e, portanto, é
e participam da construção desses territó- preciso apropriar-se da tradição, destruí-la
rios, em uma organização do espaço que visa para que algo novo advenha. O novo surge e
manter o caos no exterior: ambiente, coti- busca-se articulá-lo a uma rede coletiva de
diano, exposições de arte, cinema, música, sustentação, criando novos territórios; esta-
esporte. mos, assim, de volta ao campo cultural.
Deleuze e Guattari (1997) dizem, ainda, A clínica, nesta configuração, faz-se no
que esses processos de territorialização são território da cidade e na produção de novas
a base ou o solo da arte: de qualquer coisa, territorialidades espaciais e subjetivas nas
fazer uma matéria de expressão, em um mo- quais a vida seja possível. Poderia, então,
vimento do qual emergem marcas e assina- orientar-se pelas forças da srcinalidade e da
turas que são constitutivas de uma morada tradição como dois polos de um movimento
e de um estilo. No entanto, segundo os au- incessante de constituição sempre precária
tores, instalamo-nos em um território para das subjetividades. Está em jogo aqui a apos-
dele poder fugir. O movimento de constru- ta na sustentação e no acolhimento de uma
ção de territórios implica simultaneamente multiplicidade de formas de existência e, ao
a escavação de aberturas que permitam que mesmo tempo, seu agenciamento a redes de
algo ou alguém entre, ou então, que aque- sentido que venham a criar novos territórios.
le que habita o território seja lançado para Trata-se de uma clínica que exige deli-
fora, como se o próprio território “tendesse cadeza e atenção, pois há sempre o risco de
a abrir-se para um futuro, em função das for- que, ao convidar os loucos e sua loucura para
ças em obra que ele abriga” (DELEUZE; GUATTARI, participar das trocas sociais no território
1997, p. 117). da cidade, estejamos inadvertidamente, por
Assim, é preciso construir um mínimo de meio de uma sutil ortopedia, forçando-os a
contorno, de território existencial; enfim, adaptar-se aos modos de vida hegemônicos.
uma morada que possa funcionar como an- Nesse sentido, Peter Pál Pelbart(1993, p. 104)
coragem e proteção contra o caos. As marcas questiona:
vão constituindo essa ancoragem. Ao mesmo
tempo, essa morada é percorrida por movi- Ao borrarmos essa fronteira simbólica e con-
mentos de desterritorialização. creta entre a sociedade e seus loucos não es-
Essas considerações colocam-nos em po- taremos, sob pretexto de acolher a diferença,
sição de pensar uma clínica pautada no cons- simplesmente abolindo-a? Não estaremos,
trutivismo e na experimentação, uma clínica como um carinhoso abraço de urso, conjuran-
que se dá em duas direções ao mesmo tem- do o perigo que os loucos representam? Não
po. De um lado, possibilitando a atualização estaremos, através de uma tecnologia soft,
de devires, a produção de marcas e de sen- baseada na brandura e na diluição, domesti-
tido; trabalho de produção de contorno, de cando a fera que os habita e nos livrando da
construção de territórios existenciais, de estranheza que eles transmitem? Para dizê-lo
moradas. De outro lado, o trabalho clínico de modo ainda mais incisivo, será que a liber-
tação do louco não corresponde, no fundo, a
também
muito implica
restritos desestabilizar
e enrijecidos; territórios
trabalho lento uma estratégia de homogeneização do social?

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Territórios e sentidos: espaço, cultura, subjetividade e cuidado na atenção psicossocial 603

Seria interessante que, ao atuar em saúde da residência, das trocas materiais e espiritu-
mental, nos mantivéssemos acompanhados ais e da vida, sobre os quais ele influi. Quando
por essas perguntas. A racionalidade mo- se fala em território deve-se, pois, de logo, en-
derna, encarnada no gesto de Pinel, de re- tender que se está falando em território usa-
tirar os grilhões, também se ergueu como a do, utilizado por uma dada população. (SANTOS,
libertadora dos loucos. Hoje, estamos diante 2001, p. 96).

de novos desafios: exercitarmo-nos no aco-


lhimento de pessoas em sofrimento psíquico Organizar um serviço que opere segun-
sem produzir anulação das diferenças e ho- do a lógica do território é encontrar e ativar
mogeneização, e sem domesticar ou domar os recursos locais existentes, estabelecendo
a loucura, retirando dela sua potencialidade alianças com grupos e movimentos de arte
de romper códigos engessados e alienantes; ou com cooperativas de trabalho, para po-
construirmos espaços que possam ser habi- tencializar as ações de afirmação das singu-
tados pela radical diferença da desrazão, em laridades e de participação social. Para tan-
toda a sua plenitude provocativa, permeável to, é preciso criar uma intensa porosidade
e porosa a um estranho diálogo com a nossa entre o serviço e os recursos do seu entorno.
racionalidade ‘careta’, mas sem a qual ainda Significa, também, especialmente nos locais
não sabemos direito como viver. Construir precários e homogeneizados, criar outros re-
esses espaços implica reinventarmo-nos na cursos, inventar e produzir espaços, ocupar
relação com a experiência da desrazão; im- o território da cidade com a loucura – do ma-
plica, enfim, pensar, sentir e viver de forma nicômio, lugar zero das trocas sociais (ROTELLI
diferente, intensamente diferente. ET AL., 2001), ao espaço público como locus te-

rapêutico, de intervenção, de montagens


e instalações em permanente processo de
Conclusão produção.
Aqui, novamente podemos contar com a
Se o lugar das práticas psiquiátricas sempre contribuição de Milton Santos, que via no
se revestiu de especial importância, com a cotidiano das pessoas uma flexibilidade,
Reforma Psiquiátrica esse lugar deixa de ser uma adaptabilidade e um pragmatismo exis-
predominantemente o hospital para tornar- tencial que constituem a fonte de sua vera-
se o território de vida do sujeito, um objeto cidade e riqueza, e que os movimentos or-
dinâmico, vivo, de inter-relações. ganizados deveriam imitar (SANTOS, 2001). Em
Assim, organizar um serviço substituti- outras palavras, ir ao encontro do território
vo que opere segundo a lógica do território é estar atento para os modos de organização,
é olhar e ouvir a vida que pulsa nesse lugar. de articulação, de resistência e de sobrevi-
Para tanto, é preciso trabalhar com um con- vência que as pessoas que ocupam esses es-
ceito relacional de território, que leve em paços vão inventando no seu cotidiano.
conta modos de construção do espaço, de Organizar uma associação de amigos, fa-
produção de sentidos para o lugar que se ha- miliares e usuários; organizar eventos de
bita, ao qual se pertence por meio das práti- celebração do dia (ou semana) da luta anti-
cas cotidianas (YASUI, 2010). Nesta perspectiva, manicomial, com participação e cooperação
a contribuição de Milton Santos é indispen- de outras instituições do território; realizar
sável. Para ele, intervenções culturais, como exposições de
trabalhos, apresentações de teatro, dança e
o território é o chão e mais a população [...], música; produzir e colocar em circulação,
o fato e o sentimento de pertencer àquilo que
nos pertence. O território é a base do trabalho, na cidade,
de mental;jornal ouespaços
utilizar informativo sobre a saú-
nas feiras-livres

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604 LIMA, E. M. F. A.; YASUI, S.

para mostra e venda da produção artesanal; práticas cotidianas e heterogêneas é o co-


simplesmente caminhar com os usuários nhecimento que contribui na produção de
pelos espaços da cidade – são exemplos de sentidos para uma nova semântica do terri-
como podemos ter o território como cenário tório e seu viver.
dos encontros, como matéria-prima de pro- Pensar o território como espaço, como
cessos de subjetivação e de autonomização. processo, como relação e como composição
São encontros e ações provocativas e locais rompe com a noção de esquadrinhamento da
para produzir atos de cuidado para além do sociedade, que delimita áreas de abrangên-
serviço, a fim de construir outra lógica assis- cia e considera apenas o frio mapa de uma ci-
tencial em saúde mental, que se contraponha dade. Muitas vezes, ao definir territórios de
à racionalidade hegemônica e à lógica do ca- abrangência por meio de políticas públicas,
pitalismo globalizado. o Estado opera sobrecodificando os agen-
Nesse esforço de reinventar o território, ciamentos territoriais prévios, fazendo com
Deleuze e Guattari guiam-nos em uma leitu- que a multiplicidade de sentidos que reco-
ra do social a partir do desejo, oferecendo- brem o território tenda a um sentido único.
nos ferramentas para fazer a passagem do Como nos ensinam Deleuze e Guattari (2010),
desejo ao político, para pensar os territórios quando uma organização administrativa,
como agenciamentos de componentes hete- fundiária ou residencial opera a divisão dos
rogêneos, de ordem biológica, social, ima- espaços geográficos, o que acontece não é
ginária, semiótica, afetiva, política, cultural somente uma promoção de territorialidade,
etc. mas o efeito de um movimento de desterri-
Pensar esses agenciamentos é, segundo torialização de outras organizações e outros
Haesbaert e Bruce (2002), pensar uma geo- territórios.
grafia, mas uma geografia das multiplicida- Os autores que trouxemos aqui para o diá-
des e das simultaneidades, que comporta os logo ajudam-nos a considerar todos os terri-
modos de subjetivação, os processos de sin- tórios envolvidos em um dado agenciamento
gularização, a construção de lugares para vi- – uma rede de serviços, um encontro entre
ver e os processos de ruptura e de criação de um usuário e um serviço – e a mapear as for-
novos territórios existenciais. ças que os atravessam. A partir desse mapa,
O conceito de território é, portanto, com- é possível inventar espaços de subjetivação
plexo e deve ser abordado também na pers- nos quais o cuidado se daria em uma produ-
pectiva de libertar o conhecimento local, ção de atos regidos pela alegria e pela beleza,
advindo das necessidades e das realidades que promovem bons encontros, potenciali-
locais. O conhecimento local expresso nas zando a vida. s

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Territórios e sentidos: espaço, cultura, subjetividade e cuidado na atenção psicossocial 605

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