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RESUMO No contexto da saúde coletiva e da saúde mental, o conceito de território está pre-
sente em múltiplas dimensões e sentidos. Aparece em documentos que expressam princípios
e diretrizes das políticas de saúde e no planejamento das ações locais, e é elemento central
para organizar a rede de cuidado na atenção psicossocial. O presente ensaio busca discutir
o conceito de território e seus usos nas práticas da atenção psicossocial, desenvolvendo um
diálogo com o geógrafo Milton Santos e os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, que, de
campos e perspectivas distintas, trabalham com esse conceito. Este diálogo possibilitou pen-
sar o território em sua complexidade, como espaço, processo e composição, de forma a po-
tencializar a relação entre serviço, cultura, produção do cuidado e produção de subjetividade.
DOI: 10.5935/010 3-1104.20140055 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V . 38, N. 102, P. 593-606, JUL-SET 2014
594 LIMA, E. M. F. A.; YASUI, S.
conter,
sido já que eo conceito
utilizado de território
desenvolvido tem é pensando
em diversos Já para oscomo
filósofos
uma franceses,
construçãooprovisória
território
precisorevoltosa,
ótica, ordenar uma
mole,população
frouxa e, que era ca-
sobretudo, da população,
poder modalidade
própria dos de exercício
estados modernos, do
que faz
sobreporem-se vida e política, vemos sur- da doença para a sua prevenção: prevenir a do-
gir um mecanismo de vigilância e controle, ença mental e promover a saúde, identificada
e a organização de populações divididas em aqui como promoção do ajustamento social
grupos com características peculiares toma- (BIRMAN; COSTA, 1994).
das como traço identitário. A população será, Do apresentado até aqui, podemos per-
então, objeto dos cálculos do poder e das ceber que a psiquiatria, em sua relação com
análises de risco, orientadas pelas flutuações a sociedade, tem funcionado como poderoso
das curvas de normalidade nas quais todos dispositivo de articulação de práticas discipli-
serão posicionados (FOUCAULT, 2008). nares, que investem na docilização dos cor-
Para falar da disciplina, Foucault(2001) uti- pos (FOUCAULT, 1979), e de práticas de controle
liza como modelo a exclusão dos leprosos, (DELEUZE, 1992)voltadas para a produção de cor-
que se caracteriza por uma prática de rejei- pos e modos de vida: do corpo dócil ao corpo
ção e marginalização dos indivíduos, que são útil, cúmplice, aparentemente participativo,
assim expulsos da cidade e impedidos de cir- ajustado, consumidor.
culação social. A disciplina associa-se à outra Assim, se nos colocamos na perspectiva de
modalidade de exercício do poder, que pare- uma ruptura com a racionalidade que deter-
ce ser mais duradoura e cujo modelo é o da mina o lugar do cuidado da loucura como o
peste. Esta modalidade concretiza-se no po- do isolamento, da exclusão, mas também de
liciamento da cidade e diz respeito ao contro- uma ruptura com a lógica do controle, que,
le dos indivíduos por meio de uma forma de por meio de diferentes dispositivos penetra
inclusão constituída pela análise pormenori- na sociedade com estratégias de vigilância e
zada do território e de seus elementos, e pelo domesticação, devemos estar atentos sobre as
exercício de um poder contínuo. relações entre a produção de cuidado e o ter-
ritório no qual se inscreve o serviço.
não se trata de uma exclusão, trata-se de uma
quarentena. Não se trata de expulsar, trata-se
ao contrário de estabelecer, de fixar, de atribuir O território vivo e dinâmico
um lugar, de definir presenças, e presenças no qual a vida se desenrola
controladas. Não rejeição, mas inclusão. [...]
trata-se de uma série de diferenças sutis, As discussões mais recentes sobre o tema do
e constantemente observadas, entre os território trouxeram para o campo da saúde
indivíduos que estão doentes e os que não um importante geógrafo brasileiro: Milton
estão (FOUCAULT, 2001, p. 57). Santos. Seus trabalhos serviram para reorien-
tar as concepções sobre espaço e saúde no
É nesse contexto que, na década de 1960, âmbito da saúde coletiva. Em seus estudos, o
surge a psiquiatria preventiva norte-ameri- território é uma categoria central. Negando a
cana, que desloca a sua ação preferencial do visão tradicional da geografia que considera o
hospital psiquiátrico para a sociedade, toman- território como um objeto estático com suas
do-a como seu locus privilegiado. A doença formações naturais, apresenta-o como um ob-
mental passa a ser vista a partir do modelo da jeto dinâmico, vivo, repleto de inter-relações,
História Natural das Doenças, estabelecendo- e propõe o detalhamento das influências re-
se, assim, uma evolução que pressupõe um cíprocas do território com a sociedade, seu
momento de prevenção da doença mental por papel essencial sobre a vida do indivíduo e do
meio da detecção precoce dos comportamen- corpo social. Para o autor, o território englo-
tos desviantes e de risco que surgem em uma baria as características físicas de uma dada
comunidade
trolada. específica,
O objetivo esquadrinhada
da psiquiatria e con-
passa da área, e também
cura homem. Assim, as marcas produzidas pelo
Ele seria formado pelo conjunto indissociável do cotidiano é constituída de pessoas, empre-
do substrato físico, natural ou artificial, e mais o sas, instituições, formas sociais e jurídicas e
seu uso, ou, em outras palavras, a base técnica formas geográficas. Assim, após analisarem
e mais as práticas sociais, isto é, uma combina- outros aspectos do conceito do território,
ção de técnica e política(SANTOS, 2002, p. 87). aproximando-o ao campo da saúde, os auto-
res concluem afirmando que o território da
Ou seja, há uma inseparabilidade estrutu- saúde coletiva é composto de produções co-
ral, funcional e processual entre a sociedade letivas, com materialidade histórica, social e
e o espaço geográfico. O território, tomado configurações espaciais singulares compatí-
como um todo dinâmico, permite uma visão veis com a organização político-administrati-
não fragmentada dos diversos processos so- va e institucional do setor.
ciais, econômicos e políticos. A partir do acima exposto, podemos ca-
Nessa perspectiva, Moken et al. (2008, p. 5) minhar em direção a um entendimento do
destacam que território que supere a noção de delimitação
geográfica sobre a qual um determinado ser-
as discussões mais recentes sobre o territó- viço se torna responsável, devendo atender às
rio incorporam o componente cultural consi- pessoas com domicílio naquele local. O terri-
derando que o território carrega sempre, de tório, na concepção dos autores citados aci-
forma indissociável, uma dimensão simbólica, ma, é relacional. Ele diz respeito à construção
ou cultural em sentido estrito, e uma dimen- e à transformação que se dão entre os cená-
são material, de natureza predominantemente rios naturais e a história social que os homens
econômico-política. inscrevem e produzem: memória dos aconte-
cimentos inscrita nas paisagens, nos modos
A ideia de território transitaria do político de viver, nas manifestações que modulam as
para o cultural, das fronteiras entre povos aos percepções e a compreensão sobre o lugar;
limites do corpo e ao afeto entre as pessoas. relações que surgem dos modos de apropria-
Isso aponta para novas propostas teórico-me- ção e de alienação desse espaço e dos valores
todológicas, cujas bases estão na perspectiva sociais, econômicos, políticos e culturais ali
da operacionalização do conceito de ‘territó- produzidos; modos múltiplos, contíguos, con-
rio usado’, de Santos e Silveira(2001). Para es- traditórios de construção do espaço, da pro-
tes autores, ‘território usado’ corresponde a dução de sentidos para o lugar que se habita
qualquer pedaço do território, considerando por meio das práticas cotidianas.
a interdependência e a inseparabilidade entre Organizar um serviço substitutivo que
sua materialidade e seu uso. Ou seja, o terri- opere segundo a lógica do território é olhar e
tório usado é tanto o resultado do processo ouvir a vida que pulsa nesse lugar. Pensar na
histórico quanto a base material e social das organização de um CAPS em uma cidade situ-
novas ações humanas. ada no meio da floresta amazônica é distinto
Para Mokenet al. (2008), compreender o ter- de pensar o CAPS no interior deum estado do
ritório nessa perspectiva abre possibilidades Nordeste ou de um bairro da periferia leste da
para as análises em saúde e para o entendi- cidade de São Paulo. São territórios distintos,
mento contextual do processo saúde-doença, com suas histórias sociais, políticas e econô-
especialmente em espaços comunitários e micas de ocupação e usos dos espaços. Há his-
tendo como dimensão temporal o cotidiano. tórias que determinam os lugares e as formas
Os autores destacam, comoelementos impor- de acesso: os bairros nobres interditados aos
tantes, a copresença, a vizinhança, a intimi- pobres, exceto aos serviçais; a região do co-
dade,base
com a emoção, a cooperação
na contiguidade. e asociabilidade
Esta socialização ção;
mércio com suasenclausurado
o comércio ruas de intensa
nosmovimenta-
shoppings
sua captura.
Não se trata apenas de pensar os desloca- A noção de território aqui é entendida num
mentos no espaço físico, mas de problema- sentido muito amplo [...]. Os seres existentes
tizar o olhar sobre o território, para pensar se organizam segundo territórios que os deli-
quais os modos de vida que estão sendo pro- mitam e os articulam aos outros existentes e
duzidos e que clínica é possível aí realizar. aos fluxos cósmicos. O território pode ser re-
Nesse percurso, coloca-se, portanto, a re- lativo, tanto a um espaço vivido quanto a um
construção do conceito e da prática clínica, sistema percebido no seio do qual um sujeito
que, segundo Amarante (2003), tem sido um se sente “em casa” (GUATTARI; ROLNIK, 198 6, p. 323).
aspecto fundamental da reforma psiquiátrica
abrasileira. Paraespaço
clínica como esse autor, é preciso
de efetivo reinventar desterritorialização
engajamento Esses territórios ecomportam vetores de
reterritorialização: “O
os dias em seu quarto. Ele não transitava motorista do ônibus, com o segurança de um
pelo território de sua cidade e de sua comu- museu – enfim, todo um conjunto de ações
nidade; sua casa era seu território existen- que provoque, instigue, convide o território,
cial. Foi proposto a Ulisses e sua família um a cultura, a construir coletivamente novas
trabalho de acompanhamento terapêutico, formas de convivência com a diferença.
pelo qual se desenvolveria uma exploração A outra situação clínica que gostaríamos
acompanhada do entorno de sua casa, na de trazer para nos ajudar a pensar o território
procura de outros espaços de pertinência e e os processos coletivos e existenciais que o
sociabilidade. atravessam foi vivida junto a um usuário do
Essa sugestão aposta em uma ampliação Centro de Atenção Psicossocial Luis da Rocha
do território existencial de Ulisses, o que Cerqueira, em São Paulo (SP). Chamaremos
implica um processo de desterritorializa- aqui de Teodoro esse homem que ficava por
ção e requer, portanto, bastante prudência e muito tempo olhando revistas e jornais e es-
cuidado. Ela envolve, também, um processo colhendo figuras ou palavras que recortava
de desterritorialização de seu entorno, que e colava em sua roupa ou seu corpo, como se
está atravessado pelas mesmas forças de ex- quisesse criar para si um contorno(LIMA, 1997).
clusão que fizeram com que o jovem tives- Muitas vezes, as figuras que Teodoro re-
se vivido dentro de sua casa grande parte cortava eram depois coladas em diferentes
de sua vida. São essas forças as enfrentadas lugares da casa, como se ele estivesse trans-
quando Ulisses passeia por espaços que não formando um espaço desconhecido, sem mar-
parecem ter sido feitos para ele. Promove-se cas e sem história, em um território próprio.
uma desterritorialização do território social Teodoro estava envolvido na construção de
e cultural, que tem que se reconfigurar para uma morada, na qual pudesse se sentir ‘em
comportar Ulisses e tantas outras existên- casa’, o que possibilitaria frequentar o CAPS
cias dissidentes. Luis Cerqueira e também habitar seu corpo e
Assim, o trabalho de produção de saúde transitar pelo mundo. Criar territórios, mar-
deve sempre levar em conta o território da cando os espaços como próprios, tem a fun-
cidade no qual se insere a atenção, poden- ção de controlar o excesso, de possibilitar o
do entrar em processos de composição com enfrentamento do caos. Deleuze e Guattari
este – múltiplos e ricos processos de compo- (1997) dizem que, quando o caos ameaça, é
sição, que vão sendo engendrados quando muito importante traçar um território e, se
se passa a descobrir e ativar os recursos do for preciso, tomar o próprio corpo como ter-
próprio território. Este trabalho compreen- ritório, territorializar o corpo.
de, também, momentos de enfrentamento de Teodoro, ao mesmo tempo em que terri-
certos pontos duros, de captura e enclausu- torializava seu corpo, buscava domesticar o
ramentos, em que é necessário realizar inter- ambiente desconhecido. Ao espalhar figu-
venções no território, que podem levar a sua ras e fragmentos de textos pela casa onde se
reinvenção coletiva. dava seu tratamento, marcava o território de
Nessa perspectiva, a intervenção não es- forma a poder habitá-lo e transitar por ele. As
taria voltada para a inclusão de alguém em composições de figuras que criava constituí-
uma configuração social hegemônica, mas am um salto do caos em direção a um começo
para a reinvenção do território da cidade: de ordem. Em pouco tempo, poderia estar ‘em
reabilitar o território, em suas dimensões casa’ no CAPS.
geográficas, políticas e culturais, dimensões Como nos ensinam Deleuze e Guattari
que comportam ainda um plano micropo- (1997), o ‘em casa’ não preexiste; é preciso orga-
lítico, aquele
constelam na dos encontros
relação e afetos que
com o padeiro, comseo nizar um
torno em espaço
volta delimitado, traçando
um centro frágil eum con-
incerto.
Seria interessante que, ao atuar em saúde da residência, das trocas materiais e espiritu-
mental, nos mantivéssemos acompanhados ais e da vida, sobre os quais ele influi. Quando
por essas perguntas. A racionalidade mo- se fala em território deve-se, pois, de logo, en-
derna, encarnada no gesto de Pinel, de re- tender que se está falando em território usa-
tirar os grilhões, também se ergueu como a do, utilizado por uma dada população. (SANTOS,
libertadora dos loucos. Hoje, estamos diante 2001, p. 96).
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