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Revista Semestral do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

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VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/


Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº1 (maio 2002 - ). - São Paulo: o Programa, 2002-
Semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090 CDD 300.5

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade


Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais da PUC-SP. Coordenadoras: Lucia M. M. Bógus e Vera L.
M. Chaia.

Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol
Acácio A. Sebastião Jr., Ana Luiza C. Rocha, Andre R. Degenszajn, Beatriz
S. Carneiro, Edson Lopes Jr., Edson Passetti (coordenador), Francisco E. de
Freitas, Guilherme C. Corrêa, Heleusa F. Câmara, José Eduardo Azevedo,
Lúcia Soares da Silva, Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Rogério
H. Z. Nascimento, Salete M. de Oliveira, Thiago M. S. Rodriques.

Conselho Editorial
Adelaide Gonçalves (UFCE), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick
(UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Margareth Rago (Unicamp), Rogério
H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo
Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Perez – CELIP/RJ),
Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti
(PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara
(UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Maria
Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam,
Paulo-Edgard de Almeida Resende (PUC-SP), Plínio A. Coelho (Instituto de
Cultura e Ação Libertária – ICAL/SP), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep).

ISSN 1676-9090

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revista de atitudes. transita por limiares e
instantes arruinadores de hierarquias. nela,
não há dono, chefe, senhor, contador ou
programador. verve é parte de uma associação
livre formada por pessoas diferentes na
igualdade. amigos. vive por si, para uns.
instala-se numa universidade que alimenta o
fogo da liberdade. verve é uma labareda que
lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos,
como ardentia. ela agita liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.

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SU M Á R I O

Algumas Observações Provisórias a


Respeito do Estado Fundado no Amor
Max Stirner 13

A Arte da Amizade
Edson Passetti 22

Ocre
Salete Oliveira 61

Limiares
Thiago Rodrigues 65

Equívocos dos Movimentos Sociais Anti-globalização


José Maria Ferreira Carvalho 75

O-BE-DE-CER: o “abcd” do Princípio da Autoridade,


ou da Covardia.
Rogério Nascimento 90

Conversas com um Abolicionista do Sistema Penal


Entrevista com Louk Hulsman 106
Abram as Prisões, Dispersem as Tropas
Manifesto Surrealista 122

A Escola Pública numa Perspectiva Anarquista


Sílvio Gallo 124

Escola-Droga
Guilherme Corrêa 165

Antimilitarismo e Anarquismo
Jaime Cubero 183

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Revolta e Ética Anarquista


Nildo Avelino 198

Anatomia da Crise: do Sindicalismo Revolucionário ao


Colaboracionismo Cooperativista.
Alexandre Samis e Renato Ramos 211

Mistério e Hierarquia
Christian Ferrer 226

Analíticas Anarquistas do Federalismo


Natalia Montebello 242

RE S E N H A S

A Dialética da Autoridade e da Liberdade


Paulo-Edgar Resende 260

Visões do Estado
Andre Degenszajn 264

Luce em Travessias, Memórias


e Percursos Anarquistas
Edson Lopes 266
Ousar ser uns
Thiago Rodriques 269
Estrela de Vestido Azul e Óculos Escuros
Salete Oliveira 273

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amigos, a nossa época não está doente.


não a torture também tentando curá-la,
apresse a sua última hora abreviando-a,
e como não é possível curá-la,
deixe-a morrer.

M AX S TIRNER

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algumas observações provisórias a


respeito do estado fundado no amor

max stirner *

O “Memorandum” do Barão de Stein é


universalmente conhecido. É a esse texto que remonta
a opinião segundo a qual a época da Reação que mais
tarde fará a sua aparição, ter-se-ia afastado dos
princípios aí expressos, tendo-se orientado para outra
forma de pensar; assim, o liberalismo dos anos 1808,
após uma curta duração, teria soçobrado num sono que
prosseguiria ainda nos nossos dias. Todavia, pode pôr-
se em dúvida o pretenso desconhecimento desses
princípios; mesmo a um olhar superficial deveria
parecer surpreendente que tenham sido as mesmas
pessoas cheias de energia, que aliás se pretende que
ostentaram alguns anos antes, nas circunstâncias
mais tumultuosas, um espírito liberal, afastarem-se
desses princípios, sem cerimônia, pouco tempo depois,
tomando uma via oposta. Não se reconheceu
finalmente, que a opinião durante muito tempo
sustentada, segundo a qual a Revolução Francesa teria
sido infiel a si própria devido à mudança de direção que

* Século XIX, autor de um único livro e alguns escritos esparsos anarquizantes.


Textos dispersos. Lisboa, Via Editora, 1979. Publicado originalmente em 1844,
na Gazeta Mensal de Berlim, de Ludwig Buhl. Tradução para o português de J.
Bragança de Miranda.

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lhe foi imprimida pelo império napoleônico, assentava


apenas num erro e não num ajuizamento superficial?
Por que razão não existiria entre o liberalismo de Stein
e o dito período de Reação que se seguiu, um encade-
amento semelhante? Nesta perspectiva examinemos
de perto o Memorandum de Stein.
Stein, e isto salta imediatamente à vista, tem em
comum com a Revolução Francesa duas finalidades —
a liberdade e a igualdade; trata-se então de saber o modo
como ele caracteriza uma e outra.
Relativamente à igualdade, ele reconhece que a
preponderância das pessoas favorecidas por privilégios
devidos ao seu estado, deveria ser eliminada: para isto
precisava-se substituir a multiplicidade dos governos
por uma completa centralização. Deveria terminar
também essa forma de “vassalagem” que possibilitava
a dominação dos súditos de um soberano, o rei, por
numerosos pequenos senhores: deveria subsistir
somente uma forma de vassalagem, universal, que
precisamente consolidaria a deposição desses
numerosos senhores. As forças de polícia privadas
também deveriam desaparecer a fim de que apenas
uma única polícia vigiasse todos súditos. A justiça
senhorial, apanágio de alguns senhores privilegiados
por antigos direitos, deveria ceder perante uma única
justiça, a da monarquia, dependendo os juízes apenas
“do poder supremo”. Através desta centralização o
interesse de todos fica centrado num único ponto: o rei.
Doravante, apenas se está submetido a ele, está-se
desobrigado de qualquer vassalagem para com outros
súditos; está-se sob a dependência de suas forças de
polícia exclusivas. Somente à justiça real cabe
pronunciar uma sentença. Já não se depende da
vontade das pessoas de alto nascimento, mas
exclusivamente dos altamente colocados, daqueles que
o rei, para realizar o seu querer , introduz em seu lugar
e coloca acima das pessoas que eles deverão cuidar em
seu nome ou seja, em suma, os funcionários. A doutrina

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da igualdade tal como se acha expressa no Memo-


randum equivale portanto a colocar cada um ao mesmo
“nível” de submissão. Nenhum súdito do rei poderá ser,
simultaneamente, súdito de um vassalo. As formas de
dependência, devidas às diferenças de condição, seriam
assimiladas, tornando-se igual para todos.
É impossível confundir este princípio da igualdade
com o da Revolução Francesa. Enquanto esta reclamava
a igualdade dos cidadãos, a do Memorandum é a
igualdade dos súditos, a submissão legal. Esta diferença
consegue também exprimir-se de forma adequada no
fato de que a “representação nacional” invocada pelo
Memorandum deve relatar junto do trono os “desejos”
dos súditos cujo grau de submissão está nivelado,
enquanto que em França os cidadãos têm, expressa por
intermédio dos seus representantes, uma vontade,
muito embora seja uma vontade de cidadãos e não uma
vontade livre. É que, de direito, um “súdito” não pode
fazer mais do que “emitir os seus desejos”.
Em segundo lugar, o Memorandum não se limita a
exigir a igualdade, reclamando também a liberdade para
todos. Daí o seguinte apelo: “Cuidai que cada um — é
através destas palavras que se exprime a igualdade dos
súditos —, cuidai que cada um possa desenvolver
livremente as suas forças numa perspectiva moral”.
Numa perspectiva moral? Que se deverá entender por
isto? Seria errôneo opô-la à perspectiva física já que o
Memorandum “visa alcançar uma espécie moral e
fisicamente mais forte”. Também só muito dificilmente
se poderia excluir da perspectiva moral a perspectiva
intelectual, porque se procurava favorecer a ciência
tanto quanto possível. Da forma mais simples do mundo,
resta em oposição à perspectiva moral, a perspectiva
imoral. Ora um súdito só se torna imoral quando sai do
círculo das suas atribuições. Um súdito que, na vida do
Estado, na vida política, pretendesse ter uma “vontade”
em vez de emitir “desejos” seria manifestamente
imoral, porque na submissão só subsiste o valor moral

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do súdito — isto é, na obediência e não na livre


determinação de si. Assim, a perspectiva moral
manifesta-se incompatível com uma perspectiva de
espontaneidade, com a de um querer livre, de uma
autonomia e soberania da vontade, e como a palavra
“moral” está referida a uma idéia de obrigação, ter-se-
á procurado despertar o sentimento do dever
compreendido como “livre desenvolvimento das suas
forças”. Sois livres se fizerdes o vosso dever, é este o
sentido da perspectiva moral. Mas em que consiste o
dever? O Memorandum di-lo em termos claros e precisos
através destas palavras, de que se fez uma divisa: “o
amor a Deus, ao rei e à pátria”. Desenvolve-se
livremente numa perspectiva moral todo aquele que se
transforme por este amor. Conferia-se assim à educação
uma finalidade bem definida — tornava-se numa
educação para a moralidade ou para a lealdade, numa
educação para o sentimento do dever, a que certamente
se deverá acrescentar a educação religiosa; esta, ao
inculcar os deveres para com Deus, não passa na
realidade de uma educação para a moralidade. Sem
dúvida é-se moralmente livre desde o momento em que
se cumpra o dever. A consciência, essa instância da
moralidade, juiz da moral, soberana do homem moral,
diz ao homem do dever que ele agiu corretamente: “O
que fiz foi-me ditado pela minha consciência”. Mas que
o dever cumprido fosse realmente um dever, isso já a
consciência não o diz. Ela só fala quando negligenciou
o que considera como tal. Aliás, o Memorandum também
recomenda que se desperte a consciência, se
impregnem os corações com o “dever para com Deus, o
rei e a pátria”, se informe o espírito religioso e que se
tenha o máximo cuidado com a educação e o ensino da
juventude. É com esta liberdade que, segundo o
Memorandum, dever-se-ia gratificar o povo: a liberdade
do cumprimento do dever, a liberdade moral.
Da mesma maneira que, como vimos acima, a
igualdade enunciada era essencialmente diferente da

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que tinha sido proclamada pela Revolução francesa, dá-


se o mesmo com a liberdade. A doutrina da Revolução
era que só é livre o cidadão soberano de um povo
soberano. O ensinamento do Memorandum é que só é
livre aquele que ama Deus, o rei e pátria. Ali, é o cidadão
soberano que é livre, aqui, o súdito fortalecido pelo seu
amor; ali, tratava-se de uma liberdade civil e aqui, de
uma liberdade moral.
E aliás o princípio dessa igualdade e liberdade,
igualdade na sujeição e liberdade moral, não era
apanágio exclusivo dos redatores do Memorandum,
porque correspondia ao sentimento prevalecente em
todo o povo. Foi com apoio neste princípio novo e
entusiasmante que se investiu contra a dominação
napoleônica. Eram a liberdade e a igualdade
revolucionárias tornadas cristãs. Numa palavra, este
foi o princípio do povo alemão e, em particular, do povo
prussiano, desde a sua sublevação contra a potência
estrangeira, durante o período dito de Reação ou de
Restauração até..., bem, até que acabe! Deverá também
rejeitar-se, por falsa, a opinião segundo a qual teria sido
uma necessidade de liberdade política idêntica à da
Revolução que conduziu o povo à vitória sobre Napoleão.
Se o seu princípio tivesse sido político, o povo não o teria
abandonado ou não consentiria no seu
enfraquecimento. É indevidamente que se imputa ao
governo a responsabilidade de ter retirado ao povo algo
porque este aspirava conscientemente. Abstraindo de
que semelhante subtração é impossível, acontece que
o governo e o povo estavam realmente de acordo em se
defenderem contra a liberdade política, esse “aborto da
revolução”. Isso exigiu de Frederico Guilherme III tanta
dedicação e amor que este acabou por ser, por assim
dizer, a encarnação acabada dessa liberdade moral, de
tal modo que foi, integralmente, um homem do dever,
um homem consciencioso, “o justo”!
Como vemos, o amor ao dever está no centro da
liberdade de moral. É costume conceder, e com razão,

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que o cristianismo, em conformidade com a sua


essência mais autêntica, é a religião do amor. A
liberdade moral, que se resume a um mandamento — o
amor, será portanto a realização mais pura e consciente
do cristianismo. Aquele que só tem amor atinge o
supremo, o verdadeiramente livre, tal é a proclamação
do evangelho da liberdade moral. Mal esta convicção
desponta corações para os repletar com a beatitude da
verdade triunfante, a força do déspota será
inevitavelmente demasiado ínfima para se opor ao poder
de semelhante sentimento e assim, o cristianismo, na
mais elevada transfiguração da sua envergadura moral,
como amor, avança inflamando os povos e certo da sua
vitória, contra o espírito da Revolução. Esta pretendera
apagá-lo da superfície da terra, mas ele reergueu-se
com toda força da sua natureza e entrou na liça contra
ela, como amor. Seja o que for que do cristianismo foi
derrubado pelos golpes da Revolução, o amor, a sua
essência mais autêntica, permaneceu acoitado no
coração da liberdade revolucionária. Esta alimentava o
inimigo no seu seio e tinha necessariamente que
sucumbir quando ele acatou também do exterior.
Todavia, aprendamos a conhecer um pouco melhor
este inimigo da liberdade revolucionária. Costuma-se
opor o egoísmo ao amor porque está na natureza do
egoísta o agir sem contemplações e sem piedade para
com os outros. Se postularmos que o valor do homem
estaria em ser determinado por si mesmo e em não se
deixar determinar por uma coisa ou uma pessoa alheias,
sendo antes o seu próprio criador, englobando assim,
num só, o criador e a criatura, é indubitável que o
egoísta é o que está mais afastado da finalidade cristã.
O seu princípio enuncia-se assim: as coisas e os homens
estão aqui para mim! Se ele pudesse acrescentar: e eu
também estou aqui para eles, então já não seria
inteiramente um egoísta. A sua única finalidade é a de
se apoderar do objeto do seu desejo e no seu ardor
perseguirá, por exemplo, uma jovem para seduzir... essa

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“coisa” adorável (pois, para ele, esta não passa de uma


coisa). Tornar-se outro homem, fazer de si alguma coisa
para merecê-la é algo que nem lhe passa pelo espírito:
ele é como é. E o que precisamente o torna tão
desprezível é que não se possa descobrir nele nenhum
desenvolvimento, nem nenhuma determinação de si.
Bem distinto é o amante. O egoísmo não muda o
homem, mas o amor transforma-o “Desde que ama
tornou-se uma pessoa totalmente diferente”, costuma-
se dizer. É que, ao amar, ele faz de si qualquer coisa,
destruindo nele tudo o que contradiz a amada; com a
sua anuência e até com abandono, ele deixa-se
determinar e, transformado pela paixão do amor,
conforma-se ao outro. Se no egoísmo os objetos não estão
aqui para mim, no amor eu estou aqui para eles: nós
somos um para o outro.
Deixemos, contudo, o egoísmo entregue ao seu
destino e comparemos ao invés o amor com a
determinação de si ou liberdade. Através do amor, o
homem determina-se, confere-se certas
características, torna-se o seu próprio criador. Somente
faz tudo isto tendo em vista um outro e não a si mesmo.
A determinação de si está ainda dependente do outro:
ela é simultaneamente determinação pelo outro e
paixão: o amante deixa-se determinar pela amada.
Pelo contrário, o homem livre não é determinado nem
por um nem por outro, mas puramente a partir de si.
Ele “escuta-se” a si próprio e encontra nessa “escuta”
de si o impulso para se determinar: “escutando-se”
somente a si, ele age como um ser fundado na razão
livre. Há uma diferença entre aquele que se deixa
determinar por um e aquele que é a origem das suas
próprias determinações, entre um homem repleto de
amor e o que se funda na razão. O amor vive segundo a
máxima de que cada um aja tendo em vista o outro, e a
liberdade segundo a máxima que cada um aja tendo a
si mesmo em vista. Na primeira, é o respeito por outrem
que nos faz agir, na outra, obedeço ao meu próprio

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impulso. O homem amante age por amor a Deus, por amor


aos seus irmãos não tendo, regra geral, nenhuma vontade
própria. “Que seja feita, não a minha vontade mas a tua”,
é esta a sua fórmula favorita; o homem de razão não quer
realizar nenhuma outra vontade que não seja a sua e
concede a sua estima ao que obedece à sua vontade
pessoal, e não ao que segue a de um outro. Assim, o amor
pode perfeitamente ter razão contra o egoísmo pois é mais
nobre fazer a vontade de outro que a sua própria e, realizá-
la do que deixar-se aguilhoar, sem vontade, pela avidez
excitada diante da primeira coisa aparecida. É mais nobre
deixar-se determinar por outro do que simplesmente não
se determinar, deixando-se ir. Mas contra a liberdade o
amor não tem razão porque é somente nela que a
determinação de si acede à sua verdade. O amor é decerto
a mais bela e derradeira repressão de si, a forma mais
gloriosa de se aniquilar e sacrificar, a vitória sobre o
egoísmo mais culminante em delícias; mas ao despedaçar
a vontade própria obstaculiza ao mesmo tempo a própria
vontade que é, para o homem, a fonte primeira da sua
dignidade de ser livre. É por isso que no amor deveremos
distinguir duas coisas. Em comparação com o egoísmo, o
homem celebra no amor a sua glorificação, porque o ser
amante, se não tem vontade própria, demonstra pelo
menos vontade, diferentemente do egoísta. Ele determina
a si mesmo porque faz de si alguma coisa por amor ao
outro e porque se metarmofoseia na forma que mais lhe
convém; por seu lado, o egoísta ignora qualquer
determinação, permanecendo no seu estado grosseiro e
em nenhum grau se torna seu próprio criador; o homem
amante é criação de si mesmo pelo fato de se buscar e
achar no outro, enquanto o egoísta é um produto da
natureza, uma pobre criatura que não se busca nem se
acha. Mas como se manifesta o amor perante a liberdade?
A Noiva de Corinto pronunciou estas palavras que nos
desvelam o crime horrível que ele comete contra a
liberdade:

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“Aqui as vítimas caem


Não são nem cordeiros nem touros,
Mas vítimas humanas, Oh, coisa inaudita!”

Sim, coisa inaudita, são vítimas humanas! Porque


aquilo que antes de mais nada faz de um homem um
homem é a vontade livre; o amor, montado nas costas do
cavalo, ao declarar que o seu reino é a única fonte de
beatitude, o terraço iluminado pelo relâmpago, proclama
a soberania da privação da vontade.
Como nem tudo se pode dizer em qualquer época,
detemo-nos aqui e remetemos para circunstâncias mais
favoráveis à exposição pormenorizada das manifestações
do Estado fundado no amor2. Por todo lado tropeçaremos
então no princípio de que o homem submetido ao amor
não tem vontade, só tem desejos para exprimir, e veremos
quão profética era essa grande sentença do governador
de Berlim, o conde de Schulenburg: a tranqüilidade é o
primeiro dever dos cidadãos! Nos braços do amor repousa
e dorme a vontade e só os desejos e petições estão de
vigília. Mas não há dúvida de que um combate ainda
perpassa nesta época arregimentada pelo amor: é o
combate contra as pessoas sem amor. Como o
entendimento é a essência do amor, como os príncipes e
os povos estão unidos por ele, é preciso excluir tudo o que
tende a desmanchar essa aliança: os descontentes
(Demagogos, Carbonários, as Cortes em Espanha, os
Nobres da Rússia e da Polônia). Eles perturbam a confiança,
a abnegação, a concórdia, o amor; essas “cabeças quentes”
turvam a tranqüilidade suscitadora da confiança e a
tranqüilidade é o primeiro dever dos cidadãos.

Nota

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Valeria a pena fazê-lo porque é a forma mais acabada — e a última — do
Estado (Nota do autor).

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a arte da amizade

edson passetti *

Um homem maduro, após dedicar muitos anos de sua


vida atuando diretamente ao lado dos governantes, ao
ser desalojado de suas tarefas, toma a iniciativa de
escrever dois estudos normativos sobre a soberania e os
encaminha a potenciais governantes. Esse homem foi
Maquiavel. Pensava na unificação da Itália, extraindo
dos estudos sobre a antigüidade e das suas experiências
na diplomacia uma gramática do poder centralizado. Ao
soberano, governante legítimo do povo num território,
caberia zelar pela sua conservação no governo protegendo
as pessoas sob seu comando e buscando unificar as
armas para garantir novas conquistas. Para a segurança
de todos, o soberano precisa ser amado e temido pelo
povo. Se por ventura tiver de fazer uma escolha, não
deverá duvidar: é preferível ser temido a amado.
No mesmo século XVI, um jovem, chamado Etienne de
La Boétie, investe radicalmente contra a figura do
soberano centralizado, o UM. Num território unificado como

*
Professor no Departamento de Política, no Programa de Estudos Pós-
Graduados em Ciências Sociais e Coordenador do Nu-Sol.

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o da França, levanta a seguinte questão: por que


escolhemos servir voluntariamente a um soberano? Para
respondê-la, não se volta para o humanismo
renascentista em busca das formas da antigüidade ou de
uma história da origem da servidão voluntária. Sua
preocupação é imediata e trans-histórica. É preciso mudar.
Maquiavel via os costumes como fonte de referência
para a unificação em torno da figura do governante
centralizado do Estado moderno. Procurava encontrar
meios para afirmar uma reforma italiana e acabava por
fazer de O príncipe e Comentários sobre a primeira década
de Tito Lívio — ambos escritos simultaneamente, no
exílio, em 1513 — duas referências obrigatórias para a
ciência política. La Boétie, publicava “A servidão
voluntária”, agitava os acomodados e marcava uma
descontinuidade. Era preciso pensar e agir para mudar
os costumes. Diante da unificação pelo alto, por parte
do soberano, propunha a associação por baixo, por meio
da associação de amigos, dissolvendo a hierarquia.
Diante da maturidade de Maquiavel e da política
moderna emerge, simultaneamente, a juventude e a
radicalidade de La Boétie, apostando em novos costumes
vivenciados como criança a partir do momento em que
cada um disser não ao soberano. Para o sim do povo ao
governante, de Maquiavel, um não afirmativo dos
súditos para abolir esta condição, de La Boétie.
Educar as crianças para a liberdade é o tema do
ensaio XXVI do livro I escrito por Montaigne.
Curiosamente, é o escrito que praticamente antecede
aquele muito conhecido, dedicado ao amigo La Boétie e
à amizade, o de número XXVIII. A curta e incisiva
reflexão estóica de Montaigne, fala de uma educação
livre voltada para o corpo e o espírito na mesma grandeza,
na qual o instrutor não busca um discípulo, mas uma
amizade. À sua maneira, o ensaísta francês se opunha
à consagração do soberano na casa, na escola, no
exército, no comando do trabalho. Sua delicada e
contundente visão das coisas não dissociava o homem

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dos animais e meio ambiente. Havia, como há, muito a


aprender com a natureza por sermos parte dela e não
seus domesticadores.
A contestação ao UM e a educação de crianças
evitando a prática moderna mais eficiente da soberania
— pela ameaça e o exercício do castigo —, tomou a
dianteira nas análises críticas empreendidas pelos
anarquismos desde William Godwin, no final do século
XVIII. Proudhon, em seu muito criticado e pouco lido
Filosofia da miséria, encerra o livro afirmando ser
impossível pensar em igualdade sem estética. Ela é a
base do novo mundo da liberdade que se constrói
diuturnamente lutando contra o soberano onde quer que
ele se encontre, da casa ao Estado e em sentido contrário.
Na passagem da primeira para a segunda parte do
século XIX — muito antes do anarquismo se tornar um
grande movimento social capaz de desestabilizar o
Estado, como na Comuna de Paris — em Berlim, um
jovem professor, chamado Max Stirner, após uma série
de escritos para publicações locais, dedica-se a escrever
um longo e único livro, chamado, precisamente, O único
e sua propriedade. Para ele a educação das crianças
dependia de um distanciamento radical tanto do
humanismo como do realismo advindo com a descoberta
da utilidade dos corpos. No opúsculo O falso princípio de
nossa educação, dedica-se a opor saber a vontade e a
encontrar na criança não o lugar de investimento em
libertação, mas o princípio da liberação. Interessava-
lhe um pensar criança que viesse a se opor ao
casamento indissolúvel entre fé e razão celebrado pelo
Estado moderno. Ao declarar-se livre da religião, este
nada mais teria feito que consagrar a sua proliferação
e substituí-la pela razão científica. Diante dos soberanos
ou de soluções para a sociedade como identificavam as
propostas de Proudhon, Stirner prefere associações
livres, formadas por indivíduos livres educados para
serem livres para si e não para a sociedade.
Desta maneira, o percurso que seguiremos vai da

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maturidade do adulto, seu saber contínuo e civilizatório,


normativo e adestrador de Maquiavel, à juventude de
La Boétie e sua aversão ao UM buscando afirmar a
soberania do indivíduo, para chegarmos ao pensar
criança de Stirner como forma de afirmação de um
Único diante de todos, muitos ou seletos grupos. Neste
percurso, nos encontraremos com um duplo fluxo. De
Maquiavel procede a crença e a afirmação do Estado
moderno laico e racional de cuja centralidade depende
nossas vidas, assim como a continuidade das relações
de soberania pela sociedade, por meio dos costumes
favorecem as reformas necessárias para a conservação.
O grande tema daí derivado é o da amizade entre os
povos, coisa somente possível por meio de tratados que
celebram a paz temporária. A centralidade do poder e a
amizade entre os povos confirmam a guerra como mote
da vida. De La Boétie a Stirner procede um outro fluxo,
heraclítico, que se volta para a vida livre com base na
amizade associativa, maneira pela qual somos capazes
de inventar a vida, um povo, por meio de miríades de
associações.
Contudo, daí jorra um terceiro fluxo e, possivelmente,
outros mais. Ele diz respeito à noção de poder de
Maquiavel como forças em atuação que não dão
descanso às utopias e que alimentarão a filosofia
criança de Nietzsche: guerreira sem ser destruidora
fazendo aparecer o amigo como o melhor inimigo. Vem
de Nietzsche um caudaloso rio que lambe riachos e se
embebeda de outras águas, um ato sem descanso repleto
de desassossego. Então, se alguém imaginava que esta
reflexão iria desembocar na mera oposição entre
soberania e autonomia individual, já deve ter reparado
que se equivocou.

Ame e tema seu príncipe em nome do povo e de sua vida

Somos invejosos e dispostos a agir com perversidade.


É assim que os escritos sobre política e numerosos

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exemplos históricos orientam Maquiavel a constatar que


os homens somente fazem o bem quando necessário.
Na maior parte do tempo, não vacilam em caluniar. “Os
povos que receberam sua liberdade são mais atrozes
na sua vingança do que povos que nunca foram livres”1.
Agimos por necessidade ou escolha e a coragem brilha
mais intensamente quando a escolha é livre. Nada é
permanente ou estável. As coisas sempre melhoram
ou pioram, exigindo esforços dos homens para
conservarem o que conquistaram. É preciso o governo
e este deve sempre manter-se cheio de vida mesmo
depois da morte do governante.
Nada é mais inconstante que a multidão. Abandonada
aos próprios impulsos ela busca o tirano como forma de
superação do caos momentâneo. Somente a República,
segundo Maquiavel, traz o sentimento de igualdade
entre os homens, diferentemente do principado
governando por uma aristocracia que vive no ócio. O
príncipe, preferivelmente, deve ser sempre um
republicano.
Os legisladores sábios escolhem sempre uma forma
mista de governo. Maquiavel se distancia da tipologia
descendente dos regimes elaborada por Platão, que vai
da monarquia degenerando em aristocracia e
culminando em democracia. Assume, também, posição
eqüidistante de Aristóteles que elabora as
degenerações sendo correlatas aos melhores regimes
hierarquicamente dispostos. À monarquia corresponde
a tirania, à aristocracia a oligarquia e à democracia a
permissividade, também redimensionada mais tarde,
por Rousseau, como oclocracia. Segundo o autor
florentino, “se o príncipe, os aristocratas e o povo
governam em conjunto o Estado, podem com facilidade
controlar-se mutuamente.” 2. Entende-se porque na
abertura de O príncipe irá afirmar que para conhecer a
natureza dos povos é preciso ser príncipe e para se
conhecer a natureza do príncipe é preciso ser povo. A
relação governante/governados é uma relação de mando

26
verve

e obediência estabelecida por cada um dos pólos e desta


unidade depende a realização do desejo natural de
conquista e as suas respectivas conservações.
Uma boa república depende de sorte e disciplina
(militar, religiosa e das leis) para que sua conservação
seja garantida por meio da expansão de territórios. Um
bom governo republicano (Roma) cuida do seu povo em
qualquer lugar. Investir contra o Estado, por conseguinte,
é uma ação pela qual os agentes não desconhecem o
exercício do castigo. A punição por meio de leis, mesmo
injustas, não causa desordem à república. É preciso
conter as paixões no povo porque são agenciadoras de
interesses de terceiros capazes de trazer um perigo
maior. É preciso saber governar para evitar as calúnias.
O bom governo deve estar aberto às denúncias. Desta
forma, evita a aplicação imediata de castigos, reforça
as leis, infunde o temor e inibe o crime. Todos devem
saber a todo instante que o interesse do povo está acima
de tudo.
Maquiavel classifica os que são dignos e os que
merecem infâmias. Os primeiros são por ordem
hierárquica: os chefes e fundadores de religiões,
seguidos dos fundadores de repúblicas e reinos, os
chefes de exércitos, os letrados e o número infinito de
homens que mereçam elogios por sua arte e profissão.
Os indignos maiores são os destruidores de religiões,
seguidos dos que permitem às repúblicas e reinos que
lhe foram confiados se perderem em tiranias, dos
inimigos das virtudes e das letras e, enfim, dos ímpios,
furiosos, ignorantes, covardes, ociosos e inúteis. Notava,
ainda, que a república deveria manter as religiões e as
instituições religiosas separadas do Estado, contudo,
ressaltando suas importâncias, pois delas depende o
Estado para obter a confiança dos soldados diante da
guerra. A confiança gera, quase sempre, vitória.
O povo não suporta viver sob a lei de outrem, mesmo
que este o tenha libertado. A minoria dos libertos se
levanta pretendendo assumir o comando, enquanto a

27
1
2002

maioria exige viver em segurança. Em O príncipe,


Maquiavel, deteve-se longamente sobre as forma da
conquista. Os libertos em sua maioria aderirão, de
imediato, ao príncipe libertador por supor que
melhorarão de vida. Contudo, o príncipe deve tomar
cuidado com aqueles que se sentirão ofendidos e os que
o apoiaram na empreitada. Oferecer liberdade a um povo
que compartilha a mesma língua é uma ação mais
eficiente se conseguir eliminar a linhagem do antigo
príncipe, recomendando-se não alterar os impostos e
leis consideradas justas pelo povo. Mas se o principado
conquistado tiver leis e costumes diferentes, as
dificuldades serão maiores, seja trazendo ao povo
liberdade ou submissão. É preciso que o príncipe vá ali
residir ou instale colônias, a forma mais barata por
evitar gastos com forças armadas e ofensas
suplementares aos conquistados (os únicos prejudicados
serão aqueles que cederão terras e moradias aos
conquistadores). Os súditos verão nestes gestos mais
razão para amá-lo e temê-lo. Portanto, é preciso
prudência para ganhar a adesão da maioria que apenas
deseja viver em segurança. Nada de cercar-se de
autoridades locais ou estrangeiros poderosos. É
conhecendo os males com antecedência que se evita a
protelação. Um bom príncipe deve ser inovador,
prudente, imitando os grandes conhecidos pelo povo e
possuir fortuna.
Conquistar para conservar exige que o príncipe se
assegure contra os inimigos; vença pela força e astúcia;
seja amado e temido pelo povo; seguido e respeitado
pelos soldados; capaz de extinguir todos aqueles que
possam ofendê-lo. Ele deve ser um renovador de antigas
instituições por meio de novas leis; mostrando-se ao
mesmo tempo severo e grato, magnânimo e liberal. É
imperativo dissolver toda milícia infiel. Para manter a
amizade de reis e príncipes deve certificar-se que estes
serão solícitos no benefício e temerosos se ofendê-lo.
Maquiavel consegue apanhar ao mesmo tempo as

28
verve

relações territoriais do Estado moderno e as relações


internacionais.
Sublinha em Comentários..., que a corrupção e a
inaptidão para viver em liberdade decorre das
desigualdades introduzidas no Estado. Para postular um
cargo no Estado o cidadão deveria, anteriormente, ser
considerado digno. Mas a realidade nada tem a ver com
o ideal. A decadência dos costumes faz com que os cargos
de magistrados sejam postulados pelos mais poderosos
e não pelos mais virtuosos. Maquiavel está atento às
exigências da burocracia moderna, sua impessoalidade
como forma de dar continuidade ao Estado, ou seja,
adianta-se em mostrar a necessidade do Estado ser o
proprietário de seus meios materiais de gestão. Ele quer
uma burocracia limpa e para mantê-la nesta condição
é fundamental a institucionalização da denúncia.
Entretanto, esta só se torna possível e digna na medida
em que o povo se veja livre e acima de tudo seguro na
pólis ou na colônia articuladas por uma cidadania que
dá os mesmos direitos em territórios distintos. O
governante depende da burocracia para levar a cabo as
reformas que evitem na sucessão que príncipes
vigorosos sejam substituídos por fracos.
Ao lado da burocracia, o príncipe necessita um
exército próprio e forte, treinando os cidadãos como
soldados.3 Uma ditadura nem sempre é um mal; o é
quando deixa de ser uma delegação temporária para se
caracterizar como usurpação. No primeiro caso é de
curta duração e restauradora. No segundo, é
devastadora, provocada por maldade do príncipe ou por
favorecimentos aos conterrâneos, não necessitando de
muitos méritos, apenas da astúcia do demagogo.
A conservação de uma república exige a anexação
de territórios, um império. Para se manter no governo,
o príncipe deve realizar os benefícios gradualmente e
executar medidas punitivas e de restrição de uma só
vez. Deve ser amigo ou conquistar a confiança do povo.
Segundo Maquiavel, o povo deve devotar a amizade ao

29
1
2002

príncipe ou ele fracassará (pelas ameaças externas ou


internas). Na verdade, o príncipe depende da fidelidade
do povo. Este é o sentido que o autor atribui à amizade
entre povo e governante. É preciso ser fiel. Não
precisamos nos alongar. A fidelidade supõe trapaças
tanto no âmbito da burocracia civil como militar,
fomentando possíveis ditaduras, na mesma medida em
que supõe traição. O traidor do príncipe pode ser então,
tanto da ordem interna do governo como exterior a ele.
O Estado moderno será sempre guerra.
Segundo Foucault, a guerra não é um prolongamento
da política por outros meios, mas ao contrário, a política
é guerra prolongada por outros meios.4 Está no interior
como guerra civil antes de qualquer confronto com
outros Estados. Amigos e inimigos interna e
externamente dependem das circunstâncias. Por isso
mesmo, Maquiavel defenderá o temor do povo ao príncipe
como virtude primordial do príncipe.
Amar supõe fidelidade, trapaças e traições, ódio, um
valor que se apresenta altruísta para realizar seus
interesses mesquinhos e misteriosos. O amor nas
religiões é o espelho do amor ao Estado. O amor pelo
pastor é o mesmo que o amor pelo pai ou governante.
Quem sabe o que é o amor é o soberano esteja ele no
governo, em casa, na escola, nas fábricas, nas
empresas. O amor é um valor que vem de fora para
sufocar as paixões, domesticar os impulsos, dar sentido
à liberdade. Maquiavel sabe de tudo isso.
O príncipe deve se manter sem a ajuda de terceiros.
Para possuir exércitos próprios é preciso além de
homens devotos, dinheiro. Quando não se tem condições
materiais necessárias deve-se evitar o combate em
campo aberto com o inimigo e fortificar suas muralhas,
o que supõe capacidade de infundir no povo a idéia de
inimigo cruel.
Um bom Estado deve possuir boas leis elaboradas por
legisladores sábios, sob a forma mista de regime e boas
armas. Para conservar o governo, o príncipe tradicional

30
verve

ou moderno, deve aprender a ser mau e prudente. Os


seus defeitos ele deve saber utilizá-los ao sabor das
situações. Vícios e virtudes, segundo as situações
trocam de sinais, para trazerem segurança. Para
precaver-se de calúnias o governante deve evitar
demonstrar suntuosidade ou avareza. Ele deve saber
ser parcimonioso. Contudo da mesma maneira como o
autor lida com a relação amor-temor, entre a
suntuosidade e a avareza o governante deve preferir
demonstrar ser avaro. O povo deve desejá-lo piedoso e
cruel, o que lhe exige cuidados para não ultrapassar a
linha do temor e passar a ser odiado, uma precaução
relativa ao sentido do próprio amor. O temor implica
uso de lei e força, a ameaça do uso do castigo físico ou
não por meio da lei como prevenção geral.
O bom príncipe não pode ser, deve aparentar ser
caridoso, fiel, humano, religioso e íntegro. Ao mesmo
tempo deve ter clareza nas decisões para evitar a ira
dos estrangeiros, manter a estabilidade interna e evitar
conspirações. Não pode descuidar de criar grandes
empreendimentos, ser um exemplo, obter fama de
grande homem e sempre ser verdadeiramente amigo
ou inimigo, ou ainda, jamais deve se mostrar neutro
ou estabelecer aliança com outro príncipe mais
poderoso. A prudência faz do príncipe alguém capaz de
introduzir uma novidade como se fosse uma tradição.
Deve fomentar entre o povo festas e espetáculos com a
mesma prudência que utiliza na escolha dos ministros
(estes devem sempre pensar no príncipe e não em si
mesmos) para honrá-lo e enriquecê-lo. Há uma nova
precaução relativa à burocracia. O príncipe deve evitar
os bajuladores: um príncipe se aconselha quando quer
e não quando os outros pedem. Enfim, o príncipe deve
preferir ser impetuoso a circunspecto.
Segundo Maquiavel, um governante deve ser amado
e preferencialmente temido pelo povo e ter na prudência
a sua principal virtude, ao lado, é claro, da sorte. Para
bem governar é preciso ser um inovador. São as

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1
2002

reformas que dão continuidade aos governos modernos. É


preciso manter os costumes ajustando-os gradativamente,
criando a sensação que cada gesto inovador é uma tradição
reescrita. O povo espera boas leis e boas armas, isto é
certo. Mas só é possível saber se as leis e as armas são
boas se elas inspirarem segurança. Para isto existe
Estado, porque somos incapazes de nos sentir seguros sem
um soberano que nos mostre os valores corretos, as boas
leis, e nos introduza gradativamente nos costumes e
numa tradição que já existe antes de eu nascer e que
deve perpetuar-se depois de minha morte. É preciso
segurança para haver liberdade!
Cuida-se do povo e do território, das novas conquistas
anexadas, das colônias aí instaladas, dos cidadãos livres,
por meio de uma legislação elaborada por homens sábios,
o que modernamente pode ser definido como os
competentes dentro da racionalidade legal e legítima. Um
povo é o que o Estado agrupa, organiza, define e controla.
Não é uma abstração, é apenas o produto de um
determinado entrevero de forças em constante
atualização, porém dirigidas para a continuidade do
soberano, da autoridade central. Religião e Estado, sorte
e privilégios, senhores e súditos, são elementos constantes
que expressam as virtudes das forças em combate. Não
há relações apartadas da simultaneidade entre vícios e
virtudes. A moral do governante é a moral do Estado, sem
ela não há ética. O Estado moderno requer a continuidade
da antigüidade, um humanismo na forma, uma afirmação
de origem religiosa e de chefias abraçadas para criar
segurança entre os súditos. Cremos e devemos crer nisso.
Não pode haver vida fora do Estado e de toda e qualquer
relação fundada na autoridade centralizada. Maquiavel
pretendia ver apenas como uma gramática do poder se
afirma a partir da autoridade centralizada. Nisso nos legou
livros normativos que servem a gregos e baianos. Eu só
existo mediante o Estado exercitando uma liberdade que
se funda na prevenção geral para a manutenção dos
governos.

32
verve

Eu não existo na servidão

Foucault mostrou em “A governamentalidade” que


nesta época uma vasta bibliografia abordava as relações
de poder segundo o movimento ascendente e
descendente em relação à soberania política. Para ser
um bom soberano se exigia não apenas as virtudes do
príncipe na condução do governo, mas também na casa
e na economia. Contudo, este discurso acabou sendo
interceptado pelo contratualismo. As relações de poder
como forças instituídas a partir da centralidade da
autoridade como proteção ao território descritas por
Maquiavel, coloca modernamente, e em poucas palavras,
a possibilidade de vida a partir de uma relação de
segurança que a autoridade central cria. Sem ela, não
é possível existir ordem.
Deixando de lado os efeitos consensuais de poder
decorrentes do exercício do soberano que supõe adesão,
ameaça de punição e omissão, legitimando o exercício
legítimo da força repressiva, um outro discurso anti-
Maquiavel também se afirma como força e encontra em
Etienne de La Boétie um dos seus formuladores. Trata-
se do discurso libertário que ganhará projeção como
anarquismo a partir do século XIX. É um discurso ao
mesmo tempo anti-Maquiavel, mas também avesso à
governamentalidade ou, se quisermos, que apanha a
ambos como formas de continuidade do UM.5
Há um infortúnio que nos atinge: é o de estar sob
um ou mais senhores sem possibilidade de certificarmo-
nos que eles sejam bons, apenas de que têm o poder
para fazer o mal. Por que, então, preferimos tolerar o
tirano a contradizê-lo? Estamos enfeitiçados? Diante da
fortuna do príncipe de Maquiavel, La Boétie opõe o
infortúnio dos súditos e sua imobilidade diante desta
condição de servidão voluntária. Sentimo-nos nus
diante da possibilidade de não obedecermos ao soberano
e, por isso, nos deixamos dominar. Precisamos da
liberdade do soberano. Perdê-la é estar a mercê de uma

33
1
2002

série de males. Devemos obediência. Pouco importa se


diante da situação na qual o governante se apresenta
como amigo, este a qualquer instante possa fazer o mal.6
Para La Boétie não é preciso guerrear para ser livre,
basta não servir mais ao soberano. Elaborando um vetor
no sentido inverso de Maquiavel, não está mais em
discussão maneiras pelas quais os súditos podem
desestabilizar um soberano, mas a afirmação de outras
existências alheias ao príncipe e capazes de anular o
sentido da autoridade centralizada. Não é por meio da
política e da guerra que se encontra liberdade ou
garantias de vida. O ato de pronunciar-se contra o Um
institui outras possibilidades de vida. Diante da política
e da sociedade, La Boétie insinua a vida em associações
livres de amigos que pelas suas próprias existências
inibem, até anular, a pertinência do soberano e da
autoridade centralizada. O autor está interessado em
mostrar a liberdade do soberano de si diante do soberano
sobre todos nós.
O que teria levado ao enraizamento de nossa vontade
de servir, esta vontade de ser súditos, de assujeitar-se,
de criar entre nós esta condição de reprodução do
soberano para além de sua existência?
Segundo La Boétie, os direitos de natureza nos
mostram que somos naturalmente obedientes aos pais,
sujeitos à razão e, portanto, servos de ninguém. Na
natureza não há servidão, mas uma liberdade que nos
indica um governo de irmãos, de companheiros, que
não desconhece a diferença de talentos e de estruturas
físicas e incentiva a ajuda e o recebimento de ajuda.7
La Boétie não se propõe a encontrar o momento histórico
em que um mau-encontro apareceu para desnaturalizar
o homem. Como bem notou Pierre Clastres, em
“Liberdade, mau encontro, inominável”, o problema
abordado pelo jovem La Boétie é trans-histórico, liberto
de territorialidade social e política. A sociedade que
serve ao soberano é histórica, não é eterna, nem sempre
existiu. Algo se passou para que o homem passasse da

34
verve

liberdade para a escravidão. Para Clastres, o nascimento


da história é acidental e coincide com o nascimento do
Estado, perda da liberdade na resignação e amor à
servidão 8 . Não espere de La Boétie um tratado
psicológico, ele está interessado em mostrar uma
mecânica, não havendo, portanto um deslizamento
progressivo da liberdade para a servidão. O nascimento
da história é fruto de um mau encontro.
Há três tipos de tiranos. Os que obtêm o reino por
eleição do povo (democracia), pela força das armas
(ditaduras) e por sucessão de sua raça (monarquias).
Mesmo com diferenças a respeito dos meios, eles geram
maneiras semelhantes de governar. É preciso obediência
para conter aqueles a serem domados, as presas de
guerra e os escravos naturais. Qualquer forma de
governo centralizado é, portanto, uma tirania. Daí
decorre tanto uma aversão às tipologias de Platão e
Aristóteles, como à prescrição do governo misto de
Maquiavel ou ainda suas respectivas justificativas para
ditaduras. Diante da veracidade das proposições
herdadas da antigüidade, La Boétie introduz uma outra
vontade de verdade proveniente de um sujeito avesso ao
assujeitamento naturalizado pela servidão voluntária.
O assujeitamento para La Boétie9 exige uma outra
coisa. Eles precisam de ilusão ou de serem forçados a
algo: nascidos sob o jugo, educados sob o jugo, os homens
se conformam. Sob a tirania, as pessoas se tornam
covardes e efeminadas, fracas. Os costumes são a
primeira razão da servidão. Neste sentido, seria
precipitado apenas opor La Boétie a Maquiavel, ou seja,
diante da inevitabilidade do soberano para um, a
negação do mesmo para o outro. O percurso é mais
acidentado. Para la Boétie está em jogo reverter a
tradição dos costumes, desnaturalizá-los da obediência,
operar existências de associações de amigos que anulam
a falsa amizade no interior dos governos e entre Estados
que é fomentadora de guerras, rodízios de governantes
e perpetuação da condição de súdito. Mesmo porque para

35
1
2002

La Boétie tudo isso depende de uma vontade voluntária


dos súditos para que isso aconteça e não somente da
prudência do príncipe.
O tirano teme a todos, afirma La Boétie, invertendo
a máxima de Maquiavel. Há um perigo rondando o
príncipe advindo dos próprios súditos. Caso não houvesse
o temor dos súditos pelo príncipe jamais existiriam leis
e armas para se governar a todos. O argumento não se
escuda na justificativa que entre os súditos haverá
sempre aquele que postulará a soberania do príncipe. O
autor vai mais longe. O príncipe precisa ser temido não
apenas porque outros possam postular o cargo — solução
que a democracia encontrou para pacificar esta forma
de luta institucionalizando o conflito —, mas porque
também vive o risco de ter a autoridade centralizada
contestada. No limite, diante da democracia e da
necessidade de ela compor formas mistas de governos,
encontra-se o risco da revolta pacífica, aquela na qual
se diz apenas não.10 Depreende-se de La Boétie que
qualquer revolução nada mais cria do que a restauração
da autoridade soberana superior.11
O tirano necessita de um anteparo que é a religião.
Toda autoridade soberana exige devoção. Portanto, quem
governa precisa de obediência, servidão e devoção. É
bom lembrar, diz La Boétie, que o povo não acusa os
governos, mas os governantes, e dessa maneira exige
substituições e reformas constantes.
O tirano não é amado nem ama o povo; ele o teme.
Desta maneira, por dentro do território ou nas relações
com outros Estados não há amizade que não esteja
baseada na diplomacia externa ou no reconhecimento
da autoridade dos governantes, maneiras para a
realização do prolongamento dos estados de paz. É
preciso uma paz precária e uma ilusão de paz perpétua
que cada governo instaure e que cada súdito aspire.
Não há Estado sem religião, trata-se de um casamento
indissolúvel na Terra, ainda que La Boétie imagine que
o amor a Deus possa ser uma maneira de estancar a

36
verve

violência, como se houvesse uma existência para


religião monoteísta dissociada de Estado12. Serão os
costumes inventados pelos que dizem não ao soberano
e se associam, que darão conta de equacionar esta e
outras questões que se respondem por meio de novas
perguntas. Apenas é certo que devemos voltar à
natureza, incluindo-nos como sua parte constitutiva e
não domesticadora.
No âmbito público, La Boétie opõe à tirania a amizade,
a qual nos entregamos como pessoas de bem com mútua
estima e que se mantém por meio de uma vida boa,
nem tanto pelos benefícios, reconhecendo-se a
integridade de cada participante: “as garantias que se
tem são sua bondade natural, fé e constância”13
Os discurso de Maquiavel e La Boétie funcionam em
direções opostas. Para a necessidade de autoridade
centralizada de um, a liberdade de cada um, para o outro.
Se para Maquiavel há uma natureza humana negativa
fomentadora de conspirações e cumplicidades, em La
Boétie há uma volta à natureza que nos indica a
amizade como forma pacífica de convivência. Diante de
um príncipe amado e temido, o Um para o qual o
respeito à liberdade se funda na obediência ao soberano,
se opõe um príncipe temido e que teme o povo, o Um
que precisa ser ignorado para que a liberdade como
soberania de si possa ocorrer. Para as formas diferentes
de governo, na qual sobressai a república, a constatação
da invariância dos governos como exercícios de tirania.
A amizade é a resposta, à vida pautada na guerra. Aos
costumes a serem respeitados pela continuidade dos
governos é interposta outra noção de costumes vistos
de dois ângulos: a tradição que se atualiza para manter
o UM e a experiência de novos costumes para inventar
povos. Diante de um povo unificado pelo Estado, a
diversidade de povos, o que não situa La Boétie num
campo multiculturalista como o atual, pois para ele,
este seria uma nova recriação das unidades
estatizantes. Em vez de continuarmos na condição de

37
1
2002

servos voluntários, uma nova vontade de verdade. Enfim,


para o discurso histórico fundado na conquista e
conservação, apanhado na normatividade por
Maquiavel, abre-se com La Boétie a possibilidade de
máquinas desejantes. Para uma sublimação chamada
povo, um soberano real, Eu.
Montaigne foi o primeiro a dedicar-se à sugestão de
La Boétie acerca da amizade e da educação para novos
costumes, não deixando de atentar para o fato de que
sua realização somente é possível por meio de
investimentos na educação autônoma e livre.
A amizade para Montaigne está relacionada com a
vida adulta, a maturidade dos espíritos, e se diferencia
do amor pela concordância de vontades, por ser
temperada e serena, suave e delicada, sem aspereza e
excessos. Nela as almas se confundem numa só. Trata-
se de uma identidade compartilhada, desterrito-
rializante, alheia à prudência, serviços e favores. O que
se dá ao amigo é por satisfação, por prazer. É uma
relação pautada na indivisibilidade. Nada resta para
dividir; estamos desobrigados de tudo e silenciamos
segredos. Contudo, a reflexão de Montaigne situa a
amizade no âmbito privado. Ainda que no âmbito público
possa vir a ser confrontada, como ética, ao plano político,
não devemos esquecer do conservadorismo político de
Montaigne14.
Contudo é no seu ensaio “Da educação das crianças”,
afirmando-se seguidor de Plutarco e Sêneca, que ele
trará um detalhamento importante para entendermos
a invenção dos costumes, sob a perspectiva de La Boétie.
Para ele a grande dificuldade do humanismo repousa
no tema da instrução e educação das crianças. Os
filhotes de animais mostram suas tendências naturais.
Os homens por sua vez, “sob hábitos, preconceitos e leis,
mudam ou se mascaram constantemente” 15 . Um
instrutor deve ter mais inteligência que ciência para
exercer suas funções evitando que as crianças sejam
em suas mãos aqueles que repetem o que foi dito. Para

38
verve

tal, ele deve estabelecer com a criança uma relação na


qual não fale sozinho, mas crie condições para que o
discípulo fale. Está em jogo estabelecer uma relação que
se paute pela diluição da hierarquia, na medida em que
sua tarefa primordial é a de evitar a continuidade em
crenças e fantasmagorias que nos tornam servos
cativos. Um instrutor inteligente não pode subestimar
a inteligência da criança e uma boa maneira de
implementar esta inteligência é não a fazendo
depositária de costumes tradicionais. Diante de um
diálogo em que o mestre provoca o esclarecimento no
discípulo, afirma-se um debate diante do conhecimento,
sem tomar a priori um valor universal.
Não há um princípio único na educação, seja ele
estóico, epicurista ou aristotélico, diz Montaigne. Não
há princípio quando está em jogo a escolha livre. É
preferível a dúvida diante da certeza, pois somente os
loucos têm certeza absoluta de sua opinião. Seguir a outro
é o mesmo que não encontrar nada, pois não há procura.
Apoiando-se em Sêneca dirá: “não estamos sob o
domínio de um rei; que cada qual governe a si”16.
Uma criança não deve ser poupada do perigo. Deve
viver ao ar livre, viajar, tomar contato com outros povos
e línguas, fortalecer sua alma tanto quanto o corpo17. É
preciso pronunciar a palavra não18. O livro do aluno é o
mundo. É ele que nos ensina a comparar, reconhecer
nossas imperfeições, as fraquezas naturais, a
diversidade cultural, e isso não é pouco. É preciso mais:
conhecer-se, saber viver e morrer bem. É preciso
trabalhar: o jovem deve estar apto à fadiga e à aspereza.
Não pode haver ensino dissociado do trabalho.
A restrição de nossas necessidades para a existência
informa que “a maior parte das ciências em uso é sem
utilidade para nós”19. Montaigne está ao mesmo tempo
voltando-se para a natureza, constatando a distância
das ciências da própria natureza e propondo ter a
criança o mundo como livro. Andar, conhecer pessoas,
conhecer-se, notar, anotar e reparar na diversidade, na

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1
2002

regra geral da submissão. O jovem tem pressa e não


pode ficar entregue após os 15 ou 16 anos aos pedagogos.
O instrutor se dissolve em poucos anos porque ele está
lá para não formar discípulos. Ali se encontra para
fomentar a ação. Nossos colégios são “verdadeiras
prisões para cativeiro da juventude, e a tornam cínica
e debochada antes de o ser”20. Montaigne anuncia a
rebeldia stirneriana contra a educação e a instrução e
a bizarra busca por um ensino geral e público
comandado pelo Estado.
Para Montaigne a criança e o jovem devem
reconhecer os erros para evitar a teimosia e a
contestação, considerados defeitos de almas vulgares.
Para haver filosofia, e agora segue Epicuro, é preciso
praticá-la desde pequeno e dela jamais se cansar mesmo
na velhice. Para haver filosofia é preciso voltar atrás,
corrigir-se, saber que tudo se encontra sob mudança.
Portanto, um péssimo instrutor é aquele que prende o
jovem a horas intermináveis de estudo tanto quanto
lhe infunde o espírito melancólico e reservado do amor
aos livros, que afastam o jovem da vida. Uma filosofia
contemplativa é aquela que tem regras que vão do
recém-nascido ao decrépito. “O ofício da filosofia é
serenar as tempestades da alma e ensinar a rir da fome
e da febre, não mediante um epiciclo imaginário
qualquer, mas por meio de razões naturais sólidas. Tem
por fim a virtude, a qual não está, como quer a
escolástica, colocada no cimo de algum monte
alcantinado, abrupto e inacessível. Os que dela se
aproximam afirmam-na ao contrário, alojada em bela
planície, fértil, e florida de onde se descortinam as
coisas”21.
A um jovem basta “um gabinete, um jardim, a mesa
e a cama, a manhã e a tarde, todas as horas e lugares
lhe servirão”22. Não há escola para acolher as crianças
e jovens e também não há um instrutor único ou
especialista. A educação das crianças em Montaigne,
relacionada à associação de amigos na ação pública de

40
verve

La Boétie, inventa outras maneiras de existir23. Uma


educação livre é aquela que implica instrução pela qual
“é melhor atrair a vontade e a afeição, sem o que se
conseguem apenas asnos carregadores de livros”24.
Outros costumes, livres da servidão voluntária, em
busca de um sujeito soberano de si, acoplam as reflexões
de La Boétie e Montaigne como partes constitutivas do
discurso libertário anarquista. É preciso inventar um
povo agora e não no futuro guiado por uma consciência
superior. Dizer não ao soberano é afirmar a criança,
não a partir de quem disse não como se aí repousasse a
verdadeira consciência, mas como potência de
liberdade. Neste caso não há porque subordinar a
criança a uma pedagogia superior. Educar exige um
reposicionamento do adulto diante da criança, um
descolamento das fantasmagorias da razão e da religião.
Montaigne que se mostrava um homem estóico maduro
ao falar da amizade, neste momento encontra-se tocado
pela rebeldia de La Boétie. Mais do que se podia
imaginar é neste “Educação das crianças”, que mais
presente está o seu consagrado amigo.

Únicos, Uns

Max Stirner é um homem feito ao escrever seu O


único e sua propriedade. Um homem maduro tomado pela
juventude como La Boétie e voltado para a liberdade da
criança. Em Stirner não há a busca pela sociedade
humanista realizando a autonomia do sujeito. Diante
da sociedade somente o indivíduo e este se realiza ao
não sacrificar sua individualidade à coletividade, mas
ao afirmar a associação.
Entre os anos de 1842 e 1844, ele escreve alguns
opúsculos publicados em Berlim, que dizem respeito
diretamente aos preceitos dos governos e à educação
livre. São escritos preparatórios para seu único livro.
Diz-se, e também o afirmo, que Stirner teria levantado
diversos problemas anteriores e análogos a Nietzsche25.

41
1
2002

O principal deles diz respeito à criação do Homem, um


efeito filosófico de transcendentalidades. Ele quer, como
o outro pensador alemão, algo mais do que nos legou
Kant e Hegel como apogeu da filosofia. É preciso uma
filosofia criança, comum aos homens livres, instintiva,
capaz de despedaçar a relação entre razão e religião.
Não há no mundo moderno mais do que um reacender
da antigüidade capitaneada por Platão. É preciso
abandonar a pólis, a cidade feliz, as utopias, a dicotomia
que assola os livres opondo Bem e Mal, vício e virtude,
saúde e doença, amor e ódio, certo e errado, guerra e
paz. O melhor inimigo é o amigo, afirmará Nietzsche.
Não há único sem outro único, eu e tu associados pela
razão do outro, afirmará Stirner. Não há outro, espelho,
identidade, continuidade, mesmo de mim. Só há únicos
e como tal não almejam ser todos, muitos ou alguns
especiais. São apenas uns que não se apartam da vida
política, sabem da sua existência como realização da
democracia como religião do rebanho moderno, mas não
se voltam para integrar-se a ela como contestação ao
soberano e afirmar lutas que se quererão capazes de
uma consciência superior. Stirner, incisivamente quer
imediato prazer, vida imediata para aqueles que
privilegiam a vontade diante do saber. Não é possível
subordinar-se ao soberano centralizado.
Em Stirner não há uma negação a ser superada
numa síntese. A associação não é mais do que vontade
de pessoa livre, algo que se passa por dentro e por fora
da tradição. Não há um passado a ser negado por um
presente mais justo, real e pleno. Há uma vontade de
único que se associa a outra cuja existência se opõe à
moral, sem desconhecer a história da moralidade e da
piedade, ao afirmar os instintos. Não se trata de mera
oposição de instinto à razão, de pré-história à história
e de um pensar apartado do domínio das paixões, mas
fusão de corpo e pensar, um corpo que ataca a razão
para defender a pele. Trata-se de um pensar pela vontade
de verdade avessa a domesticações, capaz de realizar a

42
verve

morte do saber, mostrando como se sabe morrer. Não é


a morte da filosofia que faz renascer uma nova filosofia.
É uma filosofia, de crianças jovens e adultos, feita da
preciosidade que é lutar por um objeto, de não se apartar
do objeto por criações da razão ou das religiões. É debate
aberto, construção da associação, efeito do ato de saber
dizer não ao soberano.
La Boétie expressava a profusão instintiva ao nos
apanhar como servos voluntários. Stirner, a seu modo,
investe na associação de amigos livre da transcen-
dentalidade da amizade. Não há Amizade, mas amigos
que a fazem em cada associação, coisa que jamais poderá
ser apanhada pelo conceito. É existência pelo lado de fora
do privado, diferenciando-se de Montaigne; ela é sempre
pública e, obviamente, jamais aparentada com a sua
versão estatal: amizade entre os povos e sua possível
derivação em hospitalidade como projeto filosófico de paz
perpétua, como o elaborado por Kant. Amizade não como
conceito e tampouco como prática, uma possível rotina,
mas experiência pública entre amigos, livres de Estado,
de autoridade centralizada.
De La Boétie a Stirner há força como vontade e uma
constatação de que jamais se encontrará uma
autonomia real. Vontade de oposição e contestação, devo
sublinhar, que não aguarda ou constitui compa-
tibilidades com a vontade da coletividade — uma
espiritualidade —, mas que faz e quer acontecer
independentemente da vontade do mundo. Dirão: é
niilismo. Pouco importa o que dirão, o nada criador não
se refere a palavras, substância ou experiência passada
revigorada por tradições, experiência congelada: “O
homem prefere a vontade do nada ao nada da vontade”,
encerrou Nietzsche a Genealogia da moral.26
Seria convincente, ainda nesta brevíssima
apresentação de Stirner, afirmá-lo como um
anarquista? Sem dúvida, do ponto de vista da crítica da
sociedade, do Estado e da afirmação da liberdade, as
dúvidas não permanecem de pé. Seria um desvão colocá-

43
1
2002

lo pacificamente neste lugar. O humanismo anarquista


que se anunciava com Proudhon, a quem ele dedica
longuíssima reflexão em seu livro, é inaceitável,
transcendental, utópico e exercício de inversão de
termos (ou séries no dizer de Proudhon), no qual
deixamos o mundo restrito da propriedade privada pelo
impessoal da propriedade coletiva ou posse transitória.
Para os anarquistas, Stirner somente tem sentido se
for lido como um anarquista no anarquismo, vontade
que não lhe dá sossego diante da utopia e da justiça
social. Para ele não há um agora como preparação para
o futuro; não há futuro, somente o presente. Diante da
preparação pelo saber, a intensidade. É um anarquista
que se distancia das afinidades que os diversos
anarquismos buscam por meio de suas singularidades.
É uma singularidade que se lixa para afinidades. Não é
uma extravagância, apenas um atrevimento. É o
inacabado como constatação que o distancia da
conclusão perfeita. Trata-se de uma ética e não mais
de moral.
É preciso ser guerreiro. O pensar criança tem sempre
um objeto com que se ocupar, como a criança mesma.
Choca-se com outro com a mesma pretensão e conflito.
Lutamos quando crianças contra a razão: Estado,
religião, ciência e filosofia. E reagimos fortemente às
carícias e aos castigos. Vida, na força e no instinto, na
qual não precisamos destruir o outro. Entre crianças o
guerreiro existe na luta pelo objeto e não pela destruição
da outra criança. Uma batalha sem guerra diante de
uma paz que o pensar adulto pretende impor a esta
suposta guerra.
Quando atingimos a juventude o processo de
distanciamento do objeto está para se completar. Pais,
escolas, relações de vizinhanças, paróquias, diversas
maneiras de realização da sociabilidade contribuem com
igual força. Prepara-se o momento para o distanciamento
final do objeto, a confirmação do absoluto. É o momento
de tensão e apaziguamento, explosão de rebeldias como

44
verve

expressão do resultado da domesticação dos instintos.


A pessoa está quase pronta para a vida em sociedade
segundo os costumes e a política; encontra-se na
iminência de tornar-se um adulto. Estamos diante da
glória do humanismo, que corresponde segundo Stirner
ao tempo de Péricles e Maquiavel, tempo de Sócrates
revigorado, liberto do cristianismo que afirmou o amor
desinteressado. Estão os jovens educados pela possessão
do Espírito invisível e sagrado que não lhes pertence e
os confunde. Crêem, agora, num homem superior. E
todo homem superior é apenas uma moralidade que se
opõe à piedade. O Homem substituiu Deus, instituindo
a nova moralidade que substitui um pelo outro.
Como lidar com educação de crianças? Como tal
educação é parte constitutiva da associação e não é
como pedagogia sua condição de existência?
Tomaremos quatro artigos de Stirner, anteriores ao O
único e sua propriedade (1845). São eles “Arte e religião”,
“Algumas observações provisórias a respeito ao Estado
fundado no amor”, “Mistérios de Paris” e “O falso princípio
de nossa educação”. Os dois primeiros de 1842 e os
seguintes de 1844. Sendo o foco da discussão a
emergência de um discurso libertário a respeito da
supressão do soberano e da relação amor-temor que ele
exige, a apresentação da vontade de Stirner estimula o
leitor a ler sua realidade presente. O homem deverá
ser formado para a sociedade ou para si próprio?
“Amigos, nossa época não está doente, acontece que
já viveu tudo; não a tortureis também vós tentando curá-
la, aligeirai antes a sua última hora abreviando-a e já
que não é possível curá-la, deixai-a morrer”27. Ela está
velha e não necessita de uma medicina de charlatão,
afirma Stirner ao comentar neste artigo o livro, de
Eugène Sue, Mistérios. Está em jogo a discussão moral
acerca do vício e da virtude, no qual o Bem é tomado
como algo sem existência, que exige de nós a
exemplaridade obrigando-nos a confessar: “a verdadeira
moralidade e a verdadeira piedade não se deixam nunca

45
1
2002

distinguir completamente. É que mesmo os adeptos da


moral que negam a existência do Deus pessoal
conservam no bem, na verdade e na virtude, o seu Deus
e a sua Deusa”28. Um moralista liberal exige nada de
excessos, tanto quanto um piedoso. O que era virtude
para um ou vício para o outro, se intercambiam sem
abalar a ordem, ao mesmo tempo em que se erguem os
deuses da virtude e do vício e os seus respectivos fiéis.
Pessoas honradas exibem uma existência virtuosa
e submissa a Deus. É preciso tanto a punição canônica
como a punição moderna; é preciso castigar para libertar
o corpo tomado pelo mal; é preciso antes de mais nada
interceptar a sexualidade. As ações se voltam para
melhorar o estado das coisas. Em tempos mais
distantes, afirma Stirner, procurava-se reformar a
Igreja, agora se busca melhorar o Estado. Moralidade e
piedade precisam afirmar seus deuses diante de uma
guerra de deuses, advindos da precária cura dos
instintos. A nós resta constatar que para tornar a
criança um ser moral precisa-se antes de tudo
reconhecer nela o potencial do mal expresso pela
intensidade dos afetos. Ela pode ser guerreira e amante
pela força dos instintos, mas deve-se incutir-lhe o amor
como maneira de sujeitá-la antes a si própria. É preciso
formar as massas; entretanto, não se pode desconhecer
que as massas também possuem calosidades na pele e
são “capazes de mostrarem-se insensíveis perante as
circunstâncias rigorosas dos seus artigos de fé”29.
É possível imaginar, a partir de Stirner, que existe
uma massa tomada por uma falsa consciência? A
resposta positiva diria que somente os esclarecidos
seriam capazes de crítica. A maioria não passaria de
receptores inofensivos subjugados ao poder das
instituições e que ao ter suas boas almas sendo
instruídas por uma moral e pelos deuses da virtude dos
modernos missionários da filosofia seriam despertas da
vida vegetativa para seu grandioso destino. Elas não
sabem que fazem a história? Qual história? Aquela a

46
verve

ser reconstruída pelos historiadores que a sabem fazer


e dar-lhe infinitude? Aquela a ser ordenada e provocar
respostas à sua época? Pobres massas dispostas aos
saberes dos condutores! Mal sentem os calos na pele!
Reconhecem-se pobres de Espírito, incapazes de perceber
seus próprios problemas e que somente encontrarão
soluções por meio de reformas que lhe são exteriores.
Criaram a si próprios em conformidade com a piedade.
Esperam da moral do Estado a mesma piedade da Igreja.
São súditos que reescrevem sua condição de súditos.
Quem quer pai, Estado ou Deus, quer pai, Estado e
Deus. Precisa de amor: “é o mistério que faz duma
questão do entendimento um assunto do coração — o
homem inteiro, através de seu entendimento, é o seu
assunto isto é o que faz deste último um assunto do
coração”30. Para Stirner a criança comporta-se como um
ser sensível que não experimenta o amor a não ser
quando em sua relação com os homens passa a distingui-
los e aos objetos transferindo sua afeição a outro. É com
temor e respeito que começa a sentir amor. “Uma
criança ama porque uma forma exterior ou objeto, uma
presença humana, exerce sobre ela o seu império ou
seu encanto — ela consegue distinguir perfeitamente
dos outros seres a significação maternal da sua mãe,
mesmo que não saiba exprimi-la de forma racional.
Antes de sua inteligência despertar, a criança não ama
e o seu mais profundo abandono amoroso não é mais
que compreensão íntima”31. Para haver amor é preciso
um objeto com propriedade de entendimento e este
necessita de um objeto para fazer valer a compreensão
de um mistério. Desta maneira é ao se refazer que o
amor não se dissolve e se faz coisa do coração. Amar
aos pais, a Deus e ao Estado são deveres do enten-
dimento tocados pelos mistérios do coração.
Na soberania moderna há menos vida no ditador que
nas instituições democráticas, mesmo porque estas se
baseiam no reconhecimento da imperfeição humana.
A perfeição de Deus jamais poderá ser alcançada pelo

47
1
2002

ditador, um homem. Nós, homens, diante do Um, o Deus,


somente damos longevidade à nossa soberania como
povo por meio de instituições fundadas na
impessoalidade. O entendimento acerca do imperfeito
faz com que amemos a democracia. A busca da perfeição,
por sua vez, realiza-se no desejo de ditador — um
misterioso pai que ao mesmo tempo é o entendimento
pelo ato de existir como o corpo acabado dos que
abdicaram de si. Amor e temor são partes constitutivas
do ideal, do amor ao Estado.
Respondendo a Hegel, Stirner procura mostrar que a
arte não segue a religião, mas é sua companheira,
começo e fim das religiões. “Sem a arte e o artista,
criador do ideal, a religião não poderia nascer”32. O
artista cria o ideal a partir de uma projeção futura, um
além que deve comportar a completude que os estados
naturais e animais atuais são impossíveis de satisfazer.
Cria o objeto para o entendimento, repleto de seu espírito
que perdura pelo olhar do outro e pela reprodução da
forma. A religião é a manifestação do ideal da criação
artística, a separação do homem de sua existência, o
entendimento. A arte constitui o objeto e “a religião vive
somente pelo encadeamento a este objeto” 33. Seria
leviano identificar razão com entendimento. O esforço
de Stirner é para liberar a razão de sua forma acabada
como idealização sustentada pelo entendimento. Se é
este que faz a criança amar e temer, e o homem ver a
inocência da criança realizada na moral do ideal, nada
mais verdadeiro que fazer saber ser a religião uma arte
perfeita e limpa inventada pelo próprio homem. A
criança é um objeto de entendimento, um objeto de
investimento do ideal, e o homem moral é o futuro da
criança e de sua inocência. Não há vida como obra de
arte, mas arte e religião como ideais de vida. Então, na
medida em que o homem se distanciou de Deus e da
piedade e projetou seu ideal no humano baseado na
moralidade, o ódio perdeu parte de sua força tanto quanto
o amor a Deus. O amor e o temor ao homem agilizam a

48
verve

perfeição, uma guerra interminável entre piedade e


moralidade, apesar de ambas jamais se dissociarem.
Teocracia e democracia se digladiam no mundo
moderno em torno dos ideais, do entendimento. Contudo,
seria equivocado dizer que se opõem. Concentram forças
diferenciadas em torno do amor e do temor. O artista
da piedade cede lugar ao artista da moralidade sem
progresso ou superação, apenas como efeito de forças
em torno do entendimento sobre o ideal. O artista
anônimo das paredes das cavernas externava o mundo
na sua completude animal e natural, da mesma
maneira que o artista indígena deixa invadir-se pelas
suas relações com a natureza. Mas diante do
sobrenatural ele também inventará o objeto de cura,
temor, culto e parte de ritual que traz certo
entendimento às coisas. Inventa mitos que criam os
homens, aqueles específicos homens. Esta arte de viver
e criar objetos procura responder ao presente, ao
fortalecimento dos laços entre os homens, mulheres e
crianças que o constituem. Não trazem piedade ou
moralidade, não criam o Estado e as figuras soberanas.
Assim como na natureza, nada é fixo, constante e
imutável.
A arte moderna vai em busca da expressão da
perfeição visível do corpo herdada do renascimento para
decompô-la pela genialidade do artista revolvendo o
entendimento do ideal. Ela não reinventa a natureza,
mas interpõe o homem revolvendo sua natureza
humana, até chegar ao surrealismo como ato de
exposição dos interiores, renovando o ideal pela
assimilação do inconsciente, sua desmesura, um
irracional como parte constitutiva do racional. Um outro
entendimento projetado sobre o objeto que se projeta
como objeto de arte, ideal que se perpetua tanto quanto
imagens santificadas apropriadas por colecionadores
privados e públicos como expressão artística. É espelho
que projeta um ideal aos espectadores. É parte
constitutiva da continuidade para a qual a descontinu-

49
1
2002

idade da arte primitiva se interpõe desalojando o


entendimento. A arte cria o ideal, a religião seus
mistérios.
Stirner irá contrapor brevemente a filosofia à arte.
Para o filósofo a razão busca a si própria, não ama pois
se relaciona consigo e não com qualquer objeto.
“Quando se ocupa de Deus não é para venerar, mas para
rejeitar, — nela só habita a razão que busca a centelha
de razão que se ocultou sob esta forma”34. A filosofia é
um ato de instabilidade, de crítica sobre o pensamento,
de liberação dos ideais.
Se a arte é começo e fim das religiões o que seria o
Estado fundado no amor? Para Stirner, a liberdade
democrática será superior à liberdade cristã.
Entretanto, ela só existe pela negação da autonomia. A
revolução Francesa introduziu uma representação da
vontade, que embora seja uma vontade de cidadãos não
é uma vontade livre. Stirner se encontra no interior de
vasta discussão radical da década de 1840 que investe
no entendimento acerca do direito e que o coloca como
forma específica diante da generalidade, tema que
atravessou os jovens hegelianos. Os direitos como
entendimento do dever agilizam a liberdade moral em
progresso e fazem com que os efeitos da Revolução
Francesa sejam disseminados pelo mundo. Um
progresso que refaz a beleza do amor: “o amor é decerto
a mais bela e derradeira repressão de si, a forma mais
gloriosa de aniquilar e sacrificar, a vitória sobre o
egoísmo mais culminante em delícias; mas ao
despedaçar a vontade própria obstaculiza ao mesmo
tempo a própria vontade que é, para o homem, a fonte
primeira de sua dignidade de ser livre”35.
Amor e temor pelo soberano são expressos por
incontáveis atos dirigidos a objetos e a idealizações. É
preciso melhorar o Estado, amá-lo acima de todas as
coisas, porque na sua materialidade ele acomoda o amor
e o temor a Deus. É preciso a confissão do rebanho
crente na razão de Estado como representação da

50
verve

vontade de todos. Ele castiga para ensinar, ameaça com


punição para ser melhor amado e respeitado. Apresenta-
se como a parte real diante do ideal religioso e é o meio
para ascendermos de nossa condição de miséria.
Respeitando sua força e amando suas ações melhoramos
de vida.
O Estado possui seus artistas que materializam seus
grandes feitos em obras públicas; e também
genialidades que criam leis, são capazes de nos
representar interpondo ao monarca uma razão comum
e humana. Se a democracia perpetua no futuro o
presente pela imperfeição institucional, o socialismo é
a realização da perfectibilidade no futuro. Se antes
teocracia e democracia compunham a família e o amor
aos súditos e cidadãos, o socialismo será a dissolução
da generalidade na emancipação humana, colocando-
nos o ideal de igualdade, ainda que o homem livre, mais
uma vez não passe de um ideal em progresso.
Por Stirner encontramo-nos diante do entendimento
da gramática do poder maquiaveliana, tanto quanto o
intempestivo e voraz “não” proferido por La Boétie. O
jogo de forças que se encontra pacificado em Maquiavel
pelo exercício do soberano e que foi instabilizado por La
Boétie como reverso do temor do príncipe pelo povo,
encontra em Stirner uma possibilidade para a relação
de homens livres de Estado, inventando associações
diante da recriação da arte da sociedade.
Talvez seu mais contundente opúsculo seja “O falso
princípio de nossa educação”. O tema é apresentado ao
leitor havendo uma oposição entre humanistas e
realistas. Ele designa os primeiros como aqueles cuja
formação está pautada nos ensinamentos da
antigüidade, voltados para a erudição e o investimento
nas massas visando a superação da ignorância; e os
segundos, que pretendem sucedê-los, voltados para a
utilidade. Stirner procurará mostrar as
complementaridades.
O ensino superior até o iluminismo, incontestavel-

51
1
2002

mente dirigido pelos humanistas, debruçava-se sobre


a compreensão dos antigos tanto quanto aos estudos da
Bíblia, que também tinha por referência a mesma
antigüidade. O povo deveria permanecer ignorante para
venerar o saber dos humanistas.36 A educação deveria
ser formal, fundada no gosto, o apreço pelas formas, um
ensino elegante. O realismo veio interpor-se trazendo
programas pedagógicos a serem aplicados a todos
contemplando os princípios do moderno direito de
igualdade para a emergência de um indivíduo
independente e autônomo, segundo os princípios da
liberdade. Desta maneira, se o humanismo pretendia
enaltecer o passado, o realismo voltava-se para o
presente. Entretanto, a distinção nada mais faz do que
reafirmar o domínio do temporal. A libertação da
autoridade não trazia consigo, segundo Stirner, a
igualdade e a liberdade sem autodeterminação, mas
apenas uma reconciliação com o nosso ser eterno. O
homem deixava de voltar-se para uma cultura formal
baseada na cultura geral para compor-se com a utilidade
do homem prático.
A educação formal, realista e moderna vai em busca
do útil e utilizável consagrando as formas e propiciando
a habilidade. Ela passa a ser inevitável. Assim sendo a
obrigatoriedade se entende pela educação das crianças,
voto e serviço militar. (A passagem do tempo consagrará
melhor ainda a escolha obrigatória por meio da
legitimidade da abstenção eleitoral e do serviço militar
opcional). A escola, particular ou estatal, segundo
Stirner, é a forma educativa para volatilizar a autonomia
individual em obediência. É a maneira pela qual o saber
se consagra e os realistas explicitam sua hostilidade à
filosofia. A educação com base na utilidade visa
longevidade, aperfeiçoamento, ascensão, dedicação,
especialização, domínio 37 . Corresponde ao
industrialismo, um tempo de saber simples e direto que
“manifesta-se e recria-se em vontade em todas as
nossas ações”38. Não devemos, diz Stirner, passar por

52
verve

cima da “vontade de Saber”39, para afirmar um estado


de Querer, pois o saber culmina em querer ao despojar-
se do sensível, criando-se como um espírito que constrói
o próprio corpo. E qual humanismo ou realismo desejará
a morte de tal saber? Um saber impessoal não nos
prepara para a vida, mantém-se como abstração, só pode
ser o fim último da educação. É inibição da vontade,
contradizendo, simultaneamente, o idealismo e o
materialismo.
A educação ensina a obedecer. Impede a vital
indisciplina ao mesmo tempo em que interrompe o
próprio saber se transfigurando em vontade livre. Para
Stirner não está em discussão opor, tão somente, Saber
e Vontade. Não há vontade que emerja senão a partir
de uma vontade de morte ao saber, o que por si nos
reporta à crítica à vontade de saber (o espírito criando o
corpo) para vontade de querer (o corpo e suas
calosidades). Stirner não está declarando a morte do
saber pelo exterior, mas pelo exercício livre de suas
próprias proposições levadas ao limite. A morte do saber
está nele mesmo, o que faz da filosofia um exercício
para qualquer um opondo-se a uma verdadeira educação
nas mãos dos filósofos. Saber e poder não estão
dissociados. A consciência maior do filósofo sucumbe
diante da menoridade do exercício crítico de filosofar.
Não se trata de liberdade de vontade — o que é próprio
do saber — pois “se a idéia de liberdade desperta no
homem, uma vez livre, ele não cessa de continuar a
libertar-se; mas se é apenas culto, ele se adaptará às
circunstâncias como pessoa altamente culta e refinada
e não será mais do que servidor de alma submissa”40.
Não está em questão formar homens de princípios que
respeitem leis, e que se mantenham fiéis às suas
convicções. É preciso sofrer de liberdade, estremecer,
um rejuvenescimento constante. Uma situação na qual
se instala a dúvida que nos faz escolher, transfigurando
o saber em vontade. Não há pedagogia que não infunda
um saber sem vontade visando a concordância entre a

53
1
2002

escola e a vida. Stirner quer que a escola seja a vida. “A


teimosia e a indisciplina da criança têm tantos direitos
quanto seu desejo de saber. Estimulam delibera-
damente este último; que também suscitem essa força
natural da Vontade: a oposição. Se a criança não aprende
a tomar consciência de si, é claro que ela não aprende
o mais importante. Que não seja sufocado nem seu
orgulho, nem sua franqueza natural. Minha própria
liberdade permanece sempre ao abrigo de sua
arrogância. Pois se o orgulho degenera em arrogância,
a criança desejará usar de violência contra mim”41.
Para uma educação que ensina “a arte de fazer
habilmente seu caminho na vida, esta dá o poder de
fazer brotar das profundezas do Eu a fagulha da vida;
aquela prepara para estar consigo num dado mundo,
esta a estar consigo mesmo”42. Trata-se da liberdade
de si na qual o saber só se torna livre internamente,
diferindo daquela dos humanistas e realistas que velam
pela liberdade de pensamento, pela libertação, uma
liberdade que nos calcifica submissos. O saber depende
desta liberdade exterior tanto quanto a vontade depende
de uma liberdade interior. Diante da moral, a ética.
Somente uma existência ética sustenta uma educação
pessoal.
Abalando as convicções humanista e realista,
Stirner também abala os anarquismos no que crêem
de futuro e utopia. Se eles têm algo a ver com Stirner
está em desfazer-se das construções do presente em
direção ao futuro, para ser presente despojado de moral.
A tão efetivos e esfuziantes críticos da sociedade,
capazes de inventarem associações para a vida livre,
reclamaria deles Stirner a vontade de deixar de ser
sociedade. Serem nômades, como bandos de homens e
bichos abandonando os grandes defensores do saber —
e os que o denigrem — à própria sorte dos seus criadores.
Mas isto é de um lado, a confirmação da própria liberdade
do saber que cedo ou tarde a ele declarará guerra; e de
outro lado, é a constatação dos limites desta liberdade,

54
verve

um efeito de liberação, uma ética da amizade que ri


entre amigos, os melhores inimigos, a cada migração.
Aos tristes e aos escravos as migalhas da liberdade, ou
os sonhos de uma liberdade que jamais será vivida!
Por Stirner se redimensiona a arte da amizade, a
arte dos amigos pessoais alheia a convicções, algo que
ocorre pelo ato de fazer e existir, não regulando a moral
no âmbito dos espaços delimitados, mas fazendo-a
acontecer por fluxos. Não se queira eterno como idéia
ou realidade. Nem o Estado é para todos, de todos e de
todas as épocas, nem a associação é para sempre. É
preciso ser livre para sair e inventar. Os anarquismos
precisam de outras liberdades anárquicas.
Um comentário final, até certo ponto alheio ao que
foi discutido. Se há alguma relação entre este percurso
de La Boétie a Stirner e, a partir deste principalmente
em relação à arte que conhecemos, a relação pode ser
encontrada no dadaísmo; arte aquém e além do objeto.
Hans Richter afirmou que “Dada não se limitava a
não ter programa, era contra todos os programas”. Isso
não exclui, completou Paul Feyerabend, em Contra o
método, “a habilidosa defesa dos programas para mostrar
o caráter quimérico de todas as defesas, ainda que
racionais”43. Um anarquista, para Feyerabend, “é como
um agente secreto que participa do jogo da Razão para
solapar a autoridade da razão (Verdade, Honestidade,
Justiça e assim por diante)” 44. Aí se encontra Max
Stirner, numa posição de agente secreto, radical e
distante, daquilo que concluiu Sun Tzu, em A arte da
guerra, escrito na China por volta do século V AC:
“somente um príncipe esclarecido e um general digno
podem aliciar os espíritos mais penetrantes e realizar
feitos notáveis. Um exército sem agentes secretos é
um homem cego e surdo.”
Este rio não desembocou na oposição entre soberania
e autonomia individual, apenas passou, por grandes rios,
como um afluente que se ramifica segundo a época das
chuvas. Em tempo: as chuvas não foram suficiente-

55
1
2002

mente abundantes para fazê-lo não mais que resvalar


em Nietzsche. Será preciso esperar a nova estação das
chuvas. Mas com ou sem ela sabemos que a amizade
não é um tema exclusivo de filósofos, nem a eles cabe
localizar as práticas de amizade. A arte da amizade está
em fazer publicamente miríades de associações
formadas por pessoas condutoras de desejos, uns. Os
anarquistas são uns.

Notas
1
Nicolau Maquiavel. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília,
UNB, 1994, p. 97.
2
Idem, p. 25.
3
A fase mais fértil de Maquiavel como homem público é no governo Soredini.
Propõe e organiza o alistamento e treinamentos militares, inclusive em dias de
feriados, com o objetivo de formar milícias próprias e acabar com a necessidade
de se recorrer a exércitos de mercenários. O confronto com os espanhóis e o
fracasso desta milícia custa-lhe o cargo e o exílio. Apesar de Florença ser
considerada a mais republicana das repúblicas do norte da Itália, desde a
Constituição de 1293, transformando os privilégios dos nobres (exercício do
poder central e monopólio da cavalaria) para acomodar os interesses dos
comerciantes, ela nunca deixou de ser oligárquica.
4
Neste sentido é sempre bom lembrar do opúsculo de Plutarco, “Como discernir
o bajulador dos amigos”, tarefa árdua e incansável do governante.
5
A rebeldia de La Boétie atinge em cheio as formas de continuidade do soberano
na Terra. Porém, o autor se esquiva em ampliar sua demolição à religião, que
permanece intocável, uma forma moral irredutível, ainda que os governantes
venham a utilizá-la como escudo. Uma familiaridade a ser melhor traçada pode
ser localizada no transcendentalismo emersoniano de David Henry Thoureau,
no opúsculo conhecido por “A desobediência civil”.
6
“Nossa natureza é de tal modo justa que os deveres comuns da amizade levam
uma boa parte do curso de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os
belos feitos, reconhecer o bem de onde o recebemos, e muitas vezes diminuir
nosso bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que
o merece” (La Boétie, E. Discurso sobre a servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense,
1982 p. 12).
7
Muito tempo depois, na passagem do XIX para o XX, o pensador anarquista
Piotr Kropotkin, partirá da noção de ajuda mútua para opor-se à construção da

56
verve

natureza humana competitiva aprofundada pelo darwinismo, procurando


elaborar um anarquismo científico. Para nossos interesses, neste momento,
basta reconhecer isto. Entretanto, convém não deixar de sublinhar que a visão
positivista de Kropotkin, estabelecendo uma lei determinista para sociedade
igualitária será bastante combatida no interior do próprio anarquismo que
considera a atitude como existência libertária diante das leis da história.
8
Um outro percurso, por meio da análise do nomadismo é elaborado, em especial,
por Gilles Deleuze e Felix Guattari em “Tratado de nomadologia”, publicado
em Mil platôs (São Paulo, 34 Letras, 1997, vol. 5). Para Clastres, La Boétie seria
o fundador de uma antropologia moderna: as sociedades primitivas evitam o
mau encontro pela recusa da instituição Estado.
9
Tomo aqui a noção de assujeitamento depreendida de Foucault por Guilherme
Castelo Branco em “Considerações sobre ética e política” (in, Portocarrero, V.
e Castelo Branco, G. (orgs) Retratos de Foucault, Rio de Janeiro, Nau Editora,
2000 p.326) que diz: “escolhi a expressão ‘assujeitamento’ ao invés de
‘sujeitamento’ para seguir à risca a idéia de Foucault: trata-se de um modo de
realização do controle da subjetividade pela constituição mesma da
individualidade, ou seja, da construção de uma subjetividade dobrada sobre si
e cindida dos outros”. Sobre as relações entre o pensamento de La Boétie e
Foucault ver Amizade: Ensaios, Foucault, Nietzsche, Stirner..., tese de livre-
docência, PUC-SP, 2000, por mim apresentada e defendida.
10
Para Claude Lefort, em “O nome do Um”, em La Boétie não há transição da
autoridade para a liberdade. Trata-se de uma inversão do desejo: deixar de
querer o tirano é derrotá-lo. Há no poder um feitiço e, neste sentido, La Boétie,
chamou atenção para os elementos sobrenaturais do poder.
11
Neste caso as reflexões levadas a cabo por anarquistas como Godwin,
Proudhon e mesmo Stirner, filiam-se a essa reflexão, ainda que no anarquismo
o vetor revolucionário tenha grande penetração e, sem dúvida, predominância,
o que sob certas circunstâncias, também deriva para o terrorismo.
12
Talvez tenha sido Errico Malatesta , entre os anarquistas, o autor que tenha
melhor captado uma dissociação da religião do Estado. Para ele o movimento
anarquista não pode excluir a priori os devotos de uma religião. Encontra na
luta pela liberdade afinidades entre pessoas que vivem sob o jugo da autoridade.
O movimento anarquista deveria incorporar todos aqueles que se vêem oprimidos
independentemente de coloração religiosa. A educação na luta libertária
incluindo vivências, solidariedades, ajudas mútuas, elaboração de novos
costumes e existências é que situará os efeitos religiosos entre eles. Portanto, se
havia em Maquiavel uma associação intrínseca entre religião e governo de
maneira positiva, em La Boétie e no anarquismo de Malatesta, com as diferenças
notadas, evita-se prescrever quais serão as necessárias tarefas para a edificação
do libertarismo.
13
Etienne de La Boétie. Discurso da servidão voluntária. São Paulo, Brasiliense,
1987, p. 35.

57
1
2002

14
Ver a esse respeito as sugestivas reflexões de Salma Tannus Muchail “Sobre a
amizade - considerações casuais”, São Paulo, Margem nº 9, Faculdade de Ciências
Sociais PUC-SP/ EDUC/FAPESP, pp. 131-139 e de Jean Starobinski, Montaigne
em movimento, São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
15
Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios, vol. I, São
Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores, p. 76.
16
Ibidem, p. 78.
17
Segundo Montaigne, devem ser as seguintes as matérias para educar o corpo:
exercícios, jogos, corridas, lutas, música, dança, caça, equitação e esgrima. O
corpo deve estar habituado a todos os usos e costumes. Seguindo Cícero, afirma
que desejaria formar o jovem envergonhando-se de seus trapos e espantando-
se com a riqueza. Seus conhecimentos devem servir-lhe, não para mostrar o
que sabe mas para ordenar seus hábitos, se é capaz de se dominar e obedecer a
si próprio.
18
A inspiração para La Boétie escrever “A servidão voluntária”, de acordo com
Montaigne, que foi seu amigo intenso durante quatro anos, veio da constatação
que os habitantes da Ásia, acostumados a servir um único senhor, não
pronunciavam a palavra não.
19
Michel de Montaigne, op. cit., p. 81.
20
Ibidem, p 84.
21
Ibidem, p. 82.
22
Ibidem, p. 83.
23
Foi comum na educação anarquista que os jovens fossem estimulados a
conhecer o mundo como aspecto principal da sua formação.
24
Michel de Montaigne, op. cit., p. 89.
25
Sobre a influência de Stirner em Nietzsche, ver inventário em Passetti op.
cit., e em especial, Rüdiger Safranski, Nietzsche: biografia de uma tragédia, São
Paulo, Geração Editorial, 2001, pp. 97-119.
26
Segundo Bragança de Miranda na apresentação de Textos Dispersos (Lisboa,
Via Editora, 1979, pp. 26-27) de Stirner, “o Eu, o Único é uma dessas metáforas
brancas que não significam nada. Daí sua ambigüidade fundamental. Stirner
pretendeu cunhar uma palavra que cortasse com a abstração e o geral, que
conseguisse designar o indizível, o inexprimível, sem que este algo imediatamente
se evaporasse no nada; sem conteúdo, ela não remeteria para conceitos, nem
permitiria que se encetasse uma ‘nova série conceitual’, socavando,
simultaneamente, o terreno da metafísica onde medram os sistemas. (...) A
metáfora branca, sem significado, é uma metáfora produtiva de diferenciações,
oferece-se como passagem ao Tu que projetando-se nela a encheria de conteúdo.”
Stirner quer saber o que fizemos de nós e o que pretendemos saber como
vontade de pessoa livre. Como bem lembrou Jean Barrué, em “Da educação”
(in Stirner, Max O falso princípio de nossa educação, São Paulo, Imaginário, 2001),

58
verve

em Stirner, como em Montaigne, prepondera o “faz valer-te a ti mesmo!”.


27
Max Stirner. “Mistérios de Paris” in Textos Dispersos. Lisboa, Via Editora,
1979, p. 148.
28
Ibidem, p. 131.
29
Ibidem, p. 137.
30
Max Stirner. “Arte e religião” in Textos Dispersos. Lisboa, Via Editora, 1979,
p. 104.
31
Idem, p. 102.
32
Ibidem, p. 104.
33
Ibidem, p. 109.
34
Ibidem, p. 110.
35
Max Stirner. “Algumas observações provisórias respeitantes ao Estado fundado
no amor” in Textos Dispersos. Lisboa, Via Editora, 1979, pp. 121,122.
36
Não foi por mera casualidade que o libertário William Godwin ao escrever o
Political justice, no final do século XVIII, chamava a atenção para o fato das
massas verem os homens letrados e governantes como o agrupamento composto
por homens portadores de virtudes, ou segundo as circunstâncias, os verdadeiros
corruptos e viciosos.
37
“As liberdades de pensamento, de crença e de consciência, essas flores
maravilhosas que são a obra de três séculos, se fecharão no seio da terra para
nutrir com suas preciosas seivas uma nova liberdade, a liberdade de querer.
Saber, ter a liberdade de saber, tal era o ideal dessa época, ideal enfim alcançado
no apogeu da filosofia. Agora o herói deve erigir ele mesmo sua fogueira e
salvar sua parte de eternidade sobre o Olimpo. A filosofia põe um ponto final
no capítulo do passado; os filósofos são os Rafael da época do pensamento;
graças a eles, os antigos princípios encontram seu acabamento numa cintilante
orgia de cores, e esse rejuvenescimento os faz passar do temporal ao eterno.
Doravante, quem quiser conservar o Saber o perderá, mas quem o abandonar
o encontrará. Só os filósofos são aptos a essa renúncia e a essa aquisição: em pé
diante das chamas ardentes, é-lhe necessário, como o herói, deixar consumir-se
seu invólucro mortal se quiserem dele libertar seu espírito imortal”. Max Stirner.
O falso princípio de nossa educação. São Paulo, Imaginário, 2001, p. 73.
38
Max Stirner. O falso Princípio de nossa educação. São Paulo, Imaginário, 2001, p. 74.
39
Idem, p. 74.
40
Ibidem, p. 78.
41
Ibidem, pp. 81-82.
42
Ibidem, p. 83.
43
Paul Feyerabend. Contra o método. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1989, p. 44.

59
1
2002

44
É importante salientar que Feyerabend não fecha com o anarquismo por
considerá-los, à maneira de Foucault, repleto de características que se encerram
num “tipo de seriedade e dedicação puritanas que eu detesto” (op. cit. p. 25).
Sua reflexão sobre o que chama anarquismo político está marcada pela sua
leitura de Bakunin; por uma certa displicência evitou constatar o pacifismo no
interior dos anarquismos do mesmo século, como em Godwin e Proudhon.
Recorreu então ao dadaísmo: “um dadaísta não feriria um inseto já para não
falar em um ser humano. Um dadaísta não se deixa absolutamente impressionar
por qualquer tarefa séria e percebe o instante em que pessoas se detêm a sorrir
e assumem aquela atitude e aquelas expressões faciais indicadoras de que algo
importante está para ser dito. Um dadaísta está convencido de que uma vida
mais digna só será possível quando começarmos a considerar as coisas com leveza
e quando afastarmos de nossa linguagem as expressões enraizadas, mas já
apodrecidas, que nela se acumularam ao longo dos séculos (‘busca da verdade’;
‘defesa da justiça’; ‘preocupação apaixonada’, etc.). Um dadaísta está preparado
para dar início a alegres experimentos até mesmo em situações onde o alterar e
o ensaiar parecem fora de questão (exemplo: as funções básicas da linguagem).
Espero que, tendo conhecido o panfleto, o leitor lembre-se de mim como um
dadaísta irreverente e não um anarquista sério” op. cit. pp. 25-26, grifos do
autor.

resumo abstract
O cristianismo e o Estado moderno The Christianity and the modern
destinaram a amizade à vida state have placed friendship in
privada. Retomar sua importância private life. Recover its public
pública, alheia à formalidade importance, apart from the state
estatatizante sob o nome de formality under the name of
amizade entre os povos, requer friendship among peoples, requires
buscar uma ética existencial atenta searching for an existential ethics
à política para nela não sucumbir. O that considers politics, so it will not
modelo da soberania inspirado por parish with it. The model of
Maquiavel é contraposto aos sovereignty inspired by Maquiavel
libertarismos ético e estético de La is the opposite of the ethic and
Boétie e aos escritos de Max Stirner aesthetic libertarisms of La Boétie
a n t e r i o r es a O único e sua and the works of Max Stirner, prior
propriedade. to The Ego and Its Own.

60
verve

ocre
salete de oliveira *

Rastros estridentes de mil vozes assumem a forma das


massas invisíveis apontadas por Canetti, diluídas na
figura do vento. As escadarias na porta do tribunal pululam
em freqüências díspares e rostos anônimos. Latas de
alumínio, perfazem danças tortas e apressadas na água
que corre no meio-fio da calçada, trombam com cigarros
recém apagados e são, abruptamente, engolidas por
bueiros imprevistos.
A espera escalda sob o sol. A espera encharca sob a
chuva. A espera da vez sem vez reaparece no anônimo a
ser catalogado, mapeado, esquadrinhado, inventariado.
Mães sem dentes mastigam lanches vagabundos
comprados do outro lado da rua, na fila excessiva de carnes
e ossos dispostos na vasta espera da apoteose do
procedimento. O açougue da formalidade. Crianças sobem
e descem as escadarias, tornando brinquedo degraus
gastos da hierarquia supérflua.
Sons de conversas entrecortadas, por dúvidas
concretas de mulheres com seus filhos, invadem o ar
saturado de amarelo ocre. A água do meio-fio cheira a
mijo. Urina reluzente. Crianças cagadas desassossegam
ao sol. O burburinho aumenta. Lá dentro um agente da
lei grita, impassível, um a um o número das senhas.
‘Diante da lei há sempre um porteiro’ disse Kafka. Pela

*
Salete de Oliveira é pesquisadora do Nu-Sol.

61
1
2002

porta suntuosa e carcomida a fila se espreme e adentra


pela antes larga e agora estreita passagem.
O coro de mil vozes bipartidas é esquartejado por
inúmeros corredores labirínticos do impossível cansaço
do procedimento burocrático. Existências engolidas,
digeridas, regurgitadas, evacuadas, pairam sob
instrumentos de registro, identificação, violação, para
melhor recontar uma verdade que já estava construída
para fazer caber cada existência no interior dela. Não
importa o que vibra, excede ou escapa. O julgamento
individualizado deve ser capaz de outorgar a cada um o
que de antemão é validado como universal. Esta é a cota
que cabe a todos os mortos-vivos que acreditam na
universalidade da lei e no direito de justiça.
A miséria da espera por trás de portas taciturnas eclode
na miséria da sobriedade, na miséria que comporta
qualquer tipo de esperança. A esperança, seja ela qual
for, é desprezível, pois não passa do paliativo fugaz que
anda de mãos dadas com o calmante perpétuo do compasso
do perdão. O que era um problema pessoal e intransferível
entre pessoas concretas se esfuma para virar adereço
regular na abstração da rotina burocrática, com toda sua
parafernália de atenuantes e agravantes perfilados nas
mil fases de boletins de ocorrência, inquéritos, diligências,
averiguações, provas e contra-provas, laudos médico-
legais, representações, sindicâncias, apurações,
testemunhos, pareceres bio-psico-sociais, alegações
parciais, alegações finais, sentenças, encarceramentos,
acórdãos desfavoráveis, manutenção de sentenças, sobre-
encarceramentos.
O tribunal se alastra para muito além de seu território,
sua porta de entrada, este beco sem saída, já era o pedaço
ínfimo perpetuado no cotidiano em várias casas que
reinventam o tribunal da família; em escolas que
reconstroem o tribunal da instrução; no trabalho de cada
um que edifica o tribunal da competência; na mídia que
reedita o tribunal generalizado; na religião que santifica
o tribunal da salvação; na universidade que descortina o

62
verve

tribunal do esclarecimento; na polícia que legitima o


tribunal da tortura; na prisão que refaz o efêmero acordo
do tribunal na continuidade biológica; no Estado que coroa
o tribunal do rebanho; na moral, toda e qualquer moral
cuja sobrevivência se perpetua na certeza atroz e suave
que começa lá onde se inicia a sujeição imperceptível da
sintaxe amedrontada de cada um de nós — todas as vezes
que se crê e que se quer fazer crer, que o prescritível
tribunal é a sombra segura na fugacidade da vida.
O silêncio do tribunal, cheira a oco. Não há espaço para
o vazio repleto de sons, mesmo sons silenciosos. É o oco
dos ruídos que fala mais alto nos tribunais. Sem ruídos!
Existências sobre-contadas no dedilhar de escrivãs
reimprimem falas descortinadas na santa confissão de
todo dia. Muros de labirintos do processo formal legal.
Tribunal-parede. Tribunal-parente. Tribunal-patente.
Tribunal-ponte-que-leva-à-cruz. JULGAMENTO. Jugo do
cimento de lodo. O lodo de códigos e leis. O lodo da moral.
O trono da enorme bunda.

Texto extraído de Política e Peste: Crueldade, Plano Beveridge, Abolicionismo Penal.


São Paulo, Tese de Doutorado em Ciências Sociais - PUC/SP, 2001.

resumo abstract
A tradição do tribunal destinada a The tradition of the tribunal directed to

crianças e adolescentes, considerados children and teenagers, considered


transgressors, in Brazil, saves for them
infratores, no Brasil, reserva a estes a
the modern profile of the transfiguration
face moderna da transfiguração do
of just judgment, shaped for its ideal
julgamento justo parametrado por seu partner: the asepsis of death
parceiro ideal: a assepsia da morte measurable in the proliferation of life

mensurável na proliferação da vida sob under security. Adults are afraid of


children because the arrows thrown by
a égide da segurança. Adultos temem
them reach accurately their target, there
crianças porque as flechas arremessadas
and here, where remains butt and lack
por elas incidem certeiras, lá e aqui, ass.
onde sobra bunda e falta cu.

63
1
2002

em circunstâncias de paz, o homem


guerreiro se lança contra si mesmo

Nietzsche

64
verve

limiares
thiago rodrigues *

o que não entorna, se conforma.


arnaldo antunes

O período demarcado historicamente entre anos 1945


e 1989 foi profícuo na construção de imagens. O mundo
passara a ter dois pólos de magnetismos opostos: ‘Leste’
e ‘Oeste’ se personificaram em antagonistas de uma
guerra global nunca deflagrada; ‘fria’ às lentes das
Relações Internacionais, vívida para alvos macartistas,
recrutas soviéticos no sudoeste asiático, soldados norte-
americanos no sudeste asiático. Alegorias em conflito,
as ideologias, virulentas em suas semelhanças,
forneceram vagueios de orientação para crentes em
luta. No choque de metáforas, o muro que cindiu a ex-
capital nazista, em princípios dos anos sessenta,
assume a carga de prova imagética da nova ordem
planetária. Algumas quadras berlinenses rasgadas por
uma armação de concreto encerravam a representação
da humanidade cindida. Quando as lascas do muro vêm

*
Poeta, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisador do Nu-Sol.

65
1
2002

ao chão, em meio à festa da reconciliação fraternal


alemã, o signo da fissão entre comunistas e
capitalistas é substituído por um novo arsenal de
retratos e prefigurações: a Europa Unida, a Liberdade
libertada, o apaziguamento com o Próximo.
A escolha de iguais, toleráveis em aparências e
aspirações, pressupõe, contudo, a produção
ininterrupta de alteridades. A aceitação utópica do
‘mesmo’ não prescinde da rejeição contundente do
‘outro’. As fronteiras, limiares conformadores do Estado
Moderno, não se dissolvem, mas se atualizam em novas
barreiras, ‘virtualizadas’ muitas vezes em
rastreamentos eletrônicos, mas sempre rígidas em sua
existência. Dos metros do Muro de Berlim que se
multiplicavam nas milhas metafóricas do mundo
bipolar, cancelas concretas se interpõem ao trânsito
livre de indesejados. Dentre tais obstáculos, um outro
muro se posta não entre alvos germânicos, mas entre
mexicanos, de um lado, e a promised land estadu-
nidense, do outro.
Centenas de quilômetros na fronteira entre México
e Estados Unidos foram convertidos nos últimos anos
numa faixa de bloqueio. Placas de concreto, arame
farpado, chapas de metal e um implacável deserto se
colocam como desestímulo àqueles que intentam
avançar rumo ao norte. Em adição, há o trabalho da
guarda de fronteira norte-americana que sobre-vigia
as passagens permitidas e rastreia, com todo aparato
tecnológico criado para desvelar a astúcia clandestina.
Se o pretendente a imigrante ilegal lograr iludir os
guardas federais e resistir aos coiotes, ao frio extremo
da noite e ao calor insuportável do dia no deserto, ele
ainda há de superar os novos rangers texanos, cujo
esporte preferido parece ser caçar latinos pelas rochas
e vazios da fronteira, fazendo uso das mesmas armas,
rádios, localizadores e equipamentos de visão noturna
utilizados pela polícia estadunidense nas bordas do
México e pelas forças armadas norte-americanas

66
verve

alhures. A caça é, declaradamente, apenas de ‘captura’;


sendo, os ilegales, supostamente entregues às
autoridades para repatriação.
Às vezes, mexicanos ludibriam todos empecilhos à
sua entrada nos EUA, se ocultando nos fluxos
permitidos entre os dois países. A descoberta recente
de imigrantes ilegais sufocados num container, sugere
que muitos já foram exitosos em furar os bloqueios se
imiscuindo entre, ou fingindo ser, mercadorias. Estas
sim podem circular com certa tranqüilidade liberal
desde que o North American Free Trade Agreement
(NAFTA) entrou em vigor, em 1994, abrindo as portas
para que produtos e capital transitem entre os
acordantes Canadá, EUA e México. Como uma zona de
livre comércio que é, o NAFTA destina-se à
liberalização das trocas comerciais e das transações
financeiras, vedando o ir-e-vir de pessoas. Princi-
palmente, mexicanos. E não se trata de insurretos
indígenas, mas de pessoas, homens e mulheres
desejosos em realizar o ‘sonho americano’:
ambicionam trabalhar para as empresas norte-
americanas em troca de dólares norte-americanos.
O rechaço não é, pois, ‘ideológico’ ou metafórico. O
muro México-EUA, feito de concreto, deserto, guardas,
cães e cidadãos norte-americanos farejadores, não é uma
imagem a dividir cosmovisões ou formas de vida. É um
limite erigido de fato, amplo e contumaz, que objetiva
repelir a alteridade. O mexicano, e também outros
latinos, não são meramente ‘imagens do outro’
repudiadas pelos WASP (White Anglo-Saxon and Protestant)
americanos, são realmente uma alteridade invasora que
mobiliza diversos setores e interesses políticos e
econômicos nos Estados Unidos. Há que se lidar com
antígenos internos — afro-americanos e chicanos há muito
estabelecidos — e com novos bárbaros que pressionam a
fronteira. Sim, há fronteiras a defender e ‘outros’ a serem
golfados pelo asco intransigente dos americanos
temerosos e sempre ciosos de si.

67
1
2002

II

Dos intoleráveis à moralidade ocidental, duas práticas


emergem com destaque neste começo de século:
terrorismo e narcotráfico, ‘flagelos da humanidade’. A
vinculação entre tais atividades não é nova, e sua
genealogia pode ser perscrutada, ao menos, retornando
aos anos oitenta e ao discurso governamental norte-
americano. Em 1986, o governo republicano de Ronald
Reagan declara que o narcotráfico, entendido então
como ‘império clandestino conspiratório contra a saúde
e a moral estadunidense’, passara a ser tido como
ameaça real à segurança nacional norte-americana. O
significado desta afirmação, já então, não pareceria
vago aos que nutrissem alguma familiaridade com a
história das relações entre EUA e América Latina.
Conceito fundamental do modo de organização política
do Estado-Nação, a defesa da segurança nacional para
os norte-americanos ultrapassa a idéia de resguardo
de suas fronteiras e seu entorno para projetar-se sobre
todo o continente americano. Para os EUA, potência
regional e mundial, os acontecimentos distantes da
‘Pátria-Mãe’ são de vital interesse. Na lide da política
externa, considerar algo uma ‘ameaça à segurança
nacional’ significa o aval interno (político, midiático e
social) para possíveis intervenções diplomáticas e
militares nos ‘focos’ ou na ‘origem’ do problema. Neste
momento, a terminologia classificatória ‘país produtor
de droga/país consumidor de droga’, cunhada ainda no
governo do republicano Richard Nixon, nos anos setenta,
é de extrema eficácia. Um país seria, assim,
responsabilizado pela produção do ‘mal’, enquanto outro,
vitimizado pela afronta exógena, teria o direito de se
defender atacando a ‘fonte’.
Diante do declínio do ‘perigo vermelho’ ao longo da
década de oitenta, o ‘demônio branco’ da cocaína parecia
assumir o espaço que aos poucos era desocupado pelos
insurretos de esquerda que povoaram as preocupações

68
verve

estadunidenses na década precedente e no começo


daquele decênio em curso. Nesta transição de alvos,
uma hibridização ocorreu. Na Colômbia, país localizado
pelos EUA como ‘centro produtor’ primordial, as
atividades das guerrilhas marxistas em longa luta pelo
poder, passam a ser vinculadas pelo discurso
governamental estadunidense ao tráfico de drogas.
Grandes capos da droga agiriam em consonância com
guerrilheiros, partilhando territórios, colheitas, armas,
dólares. A ameaça tradicional da Guerra Fria —
comunistas em armas — reaparecia, assim, relacionada
ao novo oponente: o tráfico de drogas. Confeccionava-
se a idéia de narcoterror. Termo que tem utilização
ampliada quando, na passagem dos anos oitenta para
os noventa, inúmeros atentados e seqüestros
patrocinados por empresários ilegais da cocaína, como
Pablo Escobar, visam juízes e figuras públicas com o
objetivo de pressionar o governo colombiano a não
aplicar a lei de extradição firmada com os EUA, na
década de 1970.
Independente da aproximação proporcionada pelo
discurso do narcoterror, conectando um perigo
emergente a outro em dissolução (‘ideológica’, ao
menos), o tráfico de drogas e o consumo de substâncias
psicoativas ilegais, assumiam a ponta das preocupações
do governo norte-americano. Preocupação em nada
novidadeira, uma vez que a elaboração de marcos legais
internacionais de cunho proibicionista deve em muito
ao esforço diplomático estadunidense, desde meados da
década de 1910. Os diversos acordos e convenções
celebrados entre os Estados do globo que pretendiam
coibir, em intensidade crescente, o comércio e o uso
de drogas, foram fomentados, em grande parte, pela
iniciativa das delegações norte-americanas que
exportavam ao mundo, um modelo de repressão à
ebriedade química calcado no pudico lastro das práticas
sociais moralistas domésticas e que colocava em
marcha um eficaz instrumento de rastreamento de

69
1
2002

‘comportamentos desviantes’ levados à cabo por


‘indivíduos perigosos’, notadamente negros
(‘cocainômanos agressivos’), mexicanos (‘indolentes
usuários da maconha’), chineses (‘introdutores do ópio’),
irlandeses e eslavos (‘bêbados inveterados’). O
narcotráfico despontava, nos governos do republicano
George Bush e do democrata Bill Clinton, como inimigo
preferencial a ser combatido dentro de casa (no duplo
sentido de ‘dentro do país’ e ‘dentro das famílias, escolas
e comunidades locais’) e no além-fronteiras. Contudo,
outro ‘anômalo’ despontava dividindo atenções: o
terrorismo extremista islâmico.
Proveniente da vociferação contra o ‘Grande Satã’
de Khomeini, nos anos oitenta, o ativismo islâmico
anti-americano não se revela tão-somente com o triplo
atentado aos Estados Unidos em setembro de 2001. A
laicização dos países islâmicos, tônica dos governos pós-
coloniais na África e no Oriente Médio, cedia espaço
para movimentos políticos de inspiração muçulmana
‘puritana’, desde ao menos os anos 1970. A Revolução
Iraniana e o assassinato de Sadat são marcos deste
crescimento. Os alvos deste islamismo de luta são
constituídos nos interstícios de temas ancestrais
traduzidos e reapresentados: Israel e os Estados Unidos
são infiéis em terra santa, imperialistas em terra
empobrecida.
Após o primeiro ataque ao World Trade Center, em
1993, a ameaça de ‘ataques extremistas’ é lançada para
os norte-americanos como uma possibilidade concreta
em tempos de guerra na Bósnia, no qual
internacionalistas arriscavam prefigurar que os
embates do futuro seriam entre culturas antagonistas.
A crença na ‘guerra cirúrgica’ criada, fazia pouco pela
intervenção no Iraque, se apresentava tolerável às
sensibilidades ocidentais, tornando ainda mais
impactante a possibilidade de uma ‘guerra suja’, na qual
o inimigo não se exibe com insígnias. O intuito do terror
fundamentalista é causar destruição e mortes que não

70
verve

são indiscriminadas: civis são o ‘povo (do) inimigo’. Ou,


como testemunharam atônitos os estadunidenses com
a explosão de Oklahoma, os cidadãos norte-americanos
podem ser também inimigos. Inimigos que se
multiplicam, sem rosto, mas com perfil: a produção de
alvos trabalha com afinco para ‘localizar’ metas de
ataque. As embaixadas americanas explodidas na
África, em 1998, seguidas da incursão suicida contra
um navio da marinha estadunidense no Golfo Pérsico
são creditadas a um homem: Osama bin Laden, filho de
uma família saudita bilionária. Considerado um homem
abnegado por abrir mão de luxuosa vida para lutar contra
os soviéticos no Afeganistão nos anos oitenta, o filho
desgarrado do clã endinheirado, já contava com uma
ordem de prisão editada pelo governo estadunidense
antes de ser responsabilizado pelos eventos em Nova
Iorque e Washington. Seu rosto já estampava uma
mensagem de captura veiculada pelo site do FBI, versão
tecnológica dos ‘Wanted’ dos caubóis de outrora.
Assistimos aos incontáveis video-tapes das torres
gêmeas sucumbindo, como se a CNN passasse a exibir
filmes-catástrofe. Mortos, não os vimos. Somente nomes,
inclusive de latinos. Ilegales, mas inocentes vítimas.
Os responsáveis estavam à mão, ainda que distantes,
em galerias subterrâneas do sudoeste asiático. O
contra-ataque dos EUA é montado sobre o susto em ser
alvejado em casa e sobre a imprecisão legal de se
combater um agressor sem pátria. O republicano George
W. Bush, tece a reação identificando um Estado inimigo,
condição fundamental para uma declaração de guerra
que seguisse o direito internacional. Tal Estado era o
Afeganistão, não seu povo, mas a ‘milícia’ (e não
‘governo’) que o controlava: o Taleban. Os radicais que
forçam mulheres a andar de burca e que implodem
budas milenares, cometem o crime insuportável de
esconder Osama e sua organização terrorista, a Al
Qaeda. A debilidade retórica de Bush Jr. é amparada
pela argúcia do colega inglês, o trabalhista Tony Blair.

71
1
2002

Dando a tônica do que significava o atentado e a força


de sua reação, Blair destilou um discurso civilizatório
de nova feição: em tempos de multiculturalismo e defesa
dos direitos universais do Homem, os inimigos não
podem ser os muçulmanos, mas sim, os radicais
islâmicos que ‘distorcem a fé’ e, pior, renegam as
universalidades inquestionáveis da paz na Terra:
liberdade e democracia. Os terroristas são, assim,
violadores do Ocidente; não mais o Ocidente geográfico,
mas o Ocidente moral que se espalha por todos os
rincões do mundo representado por ONGs, empresas,
dólares voláteis, coca-colas, e novos países que se
formam (ou lutam para se formar) ambicionando se
tornar ‘Estados Modernos’. De fato, os muçulmanos não
são os inimigos, já que todos têm direito a cultuar seu
deus, desde que seja na intimidade. Os ‘alvos’ são, ao
contrário, representantes de um ‘arcaísmo contra-
histórico’, radicais do passado, antagonistas do futuro.
São, em suma, a alteridade intolerável.
Alteridade moral que peca. Peca porque ataca o projeto
de progresso desterritorializado (não mais ‘ocidental’),
peca porque viola os direitos humanos, peca porque
denigre Deus em sua violência, peca porque se
financia, em parte, com dólares conseguidos em troca
da preciosa heroína nascida dos campos de papoula do
Afeganistão. Afrontas à moralidade ocidental, os alvos
de hoje são compostos pela aliança entre a ‘corrupção
do corpo e da alma’, representada pelos ‘venenos do
tráfico’, e a destruição dos magnos valores da
convivência fraternal entre povos democrática e
universalmente conectados. Expelidos também devem
ser, os párias da Humanidade.

III

Os grupos que traficam armas ou drogas, e as redes


de terroristas que declaram guerra ao Ocidente são
consórcios privados ilegais perfeitamente afeitos ao

72
verve

mundo midiatizado e ‘global’. Traficantes transitam


com desenvoltura pela superfície e pelas entranhas do
capitalismo, ao tempo em que não se pode negar o
desembaraço com que ‘extremistas’ manejam seu
capital especulativo e pilotam jatos comerciais. Nesta
guerra de novo tipo, Estados perseguem inimigos fluidos,
presentes lá e cá, sem pouso fixo, com mobilidade
transnacional. ‘Extremistas’ parecem reivindicar uma
utopia islâmica; traficantes anseiam pela manutenção
da criminalização de suas atividades que maximiza
infinitamente seus lucros. E a batalha contra o
irrefreável se cristaliza como combate a todos. Todos os
inconformes, dissonantes, refratários.
Uma onda de expurgos se anuncia nas medidas de
exceção justificadas pela prevenção ao terrorismo.
Cidadãos aflitos apóiam a suspensão de direitos civis
em nome da segurança, exibindo, num lampejo
hobbesiano, que a propriedade e a proteção à vida lhes
são mais fundamentais que a ‘liberdade’. Na varredura,
as classes perigosas, sempre atualizadas e
remodeladas, continuam a ser alvo do controle
governamental e da ojeriza social. Intolerâncias
catalizadas por Estados também consorciados em
máquinas híbridas semi-privadas, ampliando os canais
de circulação do capital pelos veios virtuais das bolsas
de valores e pelas searas concretas dos muros prisionais
e dos novos grilhões eletrônicos. Consorciada parece,
também, ser a nova utopia de Estado, multi-étnico,
pluralista, democrático: Estados-modernos convertidos
em atualizado modelo supra-estatal. ‘Supra’, e não ‘pós’
estatal. Aliás, será possível falar em algo como ‘pós-
nacionalidade’ quando vemos palestinos, bascos,
israelenses, ex-iugoslavos, curdos, entre outros,
lutarem pela construção ou consolidação do seu Estado,
nos moldes modernos de “um território, uma cultura”?
Será possível defender algo como uma ‘sociedade civil
pós-nacional’ quando novos países independentes
surgem, como Timor Lorosae, tutelados e confeccionados

73
1
2002

pela ONU a partir de um receituário de Estado, que


recomenda a forja de três poderes, a adoção de uma língua
ou de línguas oficiais, a imposição de uma democracia
representativa que jamais fez parte da organização
política local, entre outras importações? Será possível
sustentar que exista tal ‘supra-nacionalidade’ quando o
paradigma desta construção ‘pós-nacional’ é a União
Européia, modelo de Estado-nacional ampliado que
instaura um ‘parlamento supranacional’, um ‘direito
comunitário’, uma ‘corte de justiça comunitária’ e até
mesmo ‘forças armadas supranacionais’?
No multiculturalismo excludente desta utopia
democrática de Estado, unidades de soberania clássica
se interligam política e economicamente, constituindo
agregações centralistas calcadas no modelo kantiano de
um super-Estado pacificador, que nada mais é do que
um novo alvéolo de soberania, onde um governo controla
um território ampliado e sua população, sem importar
se este Estado leva prefixos pretensamente inovadores
ou se seus ‘cidadãos’ são constituídos por povos
semelhantes irmanados no respeito mútuo a seus
direitos transcendentais.
Nódulos avessos ao outro, os super-Estados do idílio
democrático globalizado são territórios para que os
‘próximos’ se congreguem, erigindo barreiras ao trânsito
indiscriminado do intolerável. Intoleráveis são
mexicanos, contestadores anti-globalização, libertários,
crianças transformadas em ‘menores’ e todo um rol de
práticas constantemente repelidas, negadas, instauradas
à margem, ainda que insuportavelmente imiscuídas,
neste campo da moral universalizante que se forma.

resumo abstract

Ensaio em três movimentos sobre Essay in three movements about


muros antropoêmicos, substâncias anthropoemic walls, illegal substances,
ilegais, imigrantes ilegais e projetos de illegal immigrants and projects of super-
super-Estados. states.

74
verve

equívocos dos movimentos sociais anti-


globalização

josé maria carvalho ferreira *

Neste mundo em que vivemos, cada vez mais


desesperado e angustiado pelas misérias e desgraças
que cria, as reflexões e as práticas emocionais e
maquiavélicas sobrepõem-se sobremaneira àquelas
cuja impotência histórica as torna objetos de morte e
de genocídio de uma engrenagem que lhes escapa.
Outros seres humanos, entre os quais se incluem os
que se autodenominam de anarquistas ou libertários,
com alguma lucidez e revolta tentam inverter esse
processo, mas até hoje nada mais são que seres
humanos impotentes face a uma tragédia histórica que
nos vai destruindo lentamente. O dia 11 de Setembro
de 2001, embora pese os seus simbolismos midiáticos
espetaculares, nada mais é que um dos efeitos ou
derivações negativas de uma sociedade que se estrutura
através da morte, da violência, do crime, da guerra e do
terror. Num passado recente foram as populações
indígenas e os escravos africanos que foram
assassinados e colonizados pelo terror das baionetas dos

*
Editor da Revista Utopia e professor na Universidade Técnica de Lisboa.

75
1
2002

exércitos e dos Estados; no presente e provavelmente


no futuro, as vítimas do genocídio e da barbárie são os
seres humanos alienados e atomizados que habitam o
planeta Terra, que nada mais são que objetos
manipulados por um poder sem rosto e abstrato.
Por tudo isto, quando falamos, agimos ou escrevemos
sobre a problemática da globalização devemos ter sempre
presente uma série de fatores que muitas vezes dão
origem a uma série de equívocos, inclusive, entre
aqueles que se integram no imaginário anarquista e
libertário. Na atualidade, a visibilidade e a pertinência
histórica dos movimentos sociais antiglobalização são
um exemplo flagrante do que acabo de referir. Para
tornar mais claro o que pretendo desenvolver, em
primeiro lugar debruçar-me-ei sobre os conteúdos e as
formas da globalização que dão sustentabilidade à ação
reivindicativa e revolucionária dos movimentos sociais
antiglobalização. Num segundo momento, tentarei
discernir sobre as contradições e os conflitos que
atravessam os diferentes tipos de ação coletiva que
integram estes movimentos.

Características tendenciais da globalização

Se há algo que nos pode aproximar de um


conhecimento mínimo dos efeitos da globalização na
vida quotidiana das pessoas à escala mundial, são sem
dúvida as formas padronizadas de comportamento
humano em termos sociais, econômicos, culturais e
políticos. O comportamento humano em volta do valor e
das funções do dinheiro enquanto elemento de troca
mercantil, mas também como elemento de riqueza, de
poder e de sobrevivência histórica, é, nesta assunção,
emblemático.
Se generalizarmos essas funções e o valor simbólico
do dinheiro para o que é convencional chamar a prática
sofisticada e complexa do capitalismo financeiro,
depressa nos apercebemos da sua importância nos

76
verve

mecanismos de exploração e de opressão do capitalismo


à escala universal. Pela via das ações, das fusões, das
aquisições e concentrações de um capital sem rosto e
abstrato, as transnacionais investem, acumulam,
enriquecem, empregam, desempregam, criam
empresas, fecham empresas, sem que a grande maioria
dos trabalhadores assalariados possa intervir ou decidir
sobre esse processo. Fábricas, tecnologias, capitais,
trabalhadores assalariados são localizados, deslocados
ou realocados num espaço-tempo em que os domínios
do virtual e do real muitas vezes se confundem. A
“pequenez dos trabalhadores assalariados” revela-se
cada vez mais importante face à onipotência das
transnacionais, cujas atividades econômicas se
inscrevem nos setores primário, secundário e terciário.
Embora pese todas as diferenças de salário, de direitos
e deveres, de condições de trabalho, a dimensão desta
tendência de padronização econômica-financeira afeta
negativamente todos os trabalhadores assalariados do
mundo. Como escravos modernos e objetos manipulados
pelos desígnios das transnacionais, a emergência de
uma identidade coletiva dos trabalhadores assalariados
é, no meu entender, mais importante que uma suposta
divisão ou desigualdade de incidência local, regional ou
nacional.
Em sintonia estreita com este processo histórico de
capitalização dos seres humanos, a natureza vem sendo
objeto de uma transformação desenfreada. A crescente
integração da ciência e da técnica e o modelo de
crescimento e de desenvolvimento baseado no ferro, no
vidro e no cimento têm contribuído para a destruição
irreversível dos solos, rios, mares, florestas, recursos
naturais, espécies animais e vegetais que são
essenciais para a manutenção do equilíbrio
ecossistêmico da natureza, mas sobretudo para a própria
perenidade histórica dos seres humanos que ainda têm
o nome de “gente” ou de “pessoas”. O capitalismo e, por
conseguinte, a globalização em associação estreita com

77
1
2002

os ditames da sua racionalidade instrumental, trans-


forma a natureza num simulacro de vida e num caixote
do lixo de uma espécie humana acéfala, atomizada e
estupidificada. Neste sentido, a globalização do
capitalismo é a destruição do planeta, porque ela produz
seres humanos que não se identificam como a sua
essência biológica e sociológica, provocando perversões
que culminarão na sua morte e das outras espécies
animais e vegetais.
Do mesmo modo que estas perversões da tendência
econômica-financeira afetam sobremaneira todos os
trabalhadores assalariados do mundo e todos aqueles
que vivem à sua margem, também não é menos verdade
que no quadro da racionalidade instrumental do
capitalismo, a sobrevivência histórica deste só é possível
desde que persista a capitalização de pessoas, mercados,
tecnologias, matérias primas, recursos naturais e
dinheiro, a única forma consistente para que seja
materializada a sua expansão territorial e geográfica.
Os ditames do Banco Mundial, do FMI e mais
recentemente da OMC e das reuniões midiáticas do
Grupo dos 8 (G8) são os contornos institucionais
hegemônicos de uma regulação e controle mundial da
economia. A crise do Estado-Nação, no que concerne à
sua manifesta incapacidade em suprir as insuficiências
de regulação do mercado através de políticas
econômicas keynesianas, é uma prova sintomática da
sua fraqueza perante a força estruturante das
transnacionais.
Para a maioria dos analistas, a força irrefreável do
capitalismo é subjacente à força onisciente do mercado
que tudo compra e vende: pessoas, dinheiro e
mercadorias. Nas últimas décadas, a mercadoria que
mais se compra e vende é sem dúvida a informação. É
um tipo de mercadoria imaterial, sem rosto, abstrata,
cujos signos e significados são hoje a grande essência
da estrutura dos custos de produção diretos e indiretos
da generalidade dos bens e serviços, tornando-se, em

78
verve

última instância, a base da opressão e da exploração


capitalista. E neste sentido, não estamos nos limitando
em termos da energia, da informação e do conheci-
mento que todos os trabalhadores assalariados do
mundo despendem nos locais de trabalho, mas
sobretudo nos referimos a todos os aspectos da sua vida
quotidiana que é atravessada pela socialização da
informação.
Logo a seguir à força do sistema econômico-
financeiro e à catástrofe ecológica por ele gerada, a
globalização torna-se também cada vez mais visível no
domínio sócio-cultural. O poder dos media está justa-
mente na sua capacidade em difundir e socializar a
informação em escala universal. Como acontece com
todas as mercadorias, a informação é objeto de
padronização e capitalização. Só que, para além disso,
é também um fenômeno da aculturação e de
aprendizagem sócio-cultural. Ainda que em situações
discrepantes, como ocorre num bairro pobre no Cairo
e São Paulo ou num bairro rico em Nova Iorque, a
simbologia da informação veiculada pelo poder
midiático introduz-se paulatinamente nos neurônios
de todos os indivíduos que habitam o planeta Terra.
Assim, a globalização não se explica exclusivamente
pelo fato de se assistir a uma tendência a trabalhar,
produzir e consumir da mesma maneira, por vestir as
mesmas calças, ver televisão todos os dias ou beber a
mesma coca-cola, mas sobretudo pela mesma maneira
de pensar e agir em relação à natureza, ao trabalho,
ao dinheiro, ao Estado, ao capital e à religião.
Hoje, socializar a informação implica transformar
os seres humanos em mercadorias na totalidade do
espaço-tempo da sua vida quotidiana: nos locais de
trabalho, nos cafés, nas praças, nos jardins, nos
transportes, na família, inclusive quando mergulham
no asfalto da estrada da miséria e na ignomínia do
escravo pós-moderno que pede esmola e se considera
um beneficiado na situação de pobreza. A assunção

79
1
2002

naturalista desta realidade está bem presente nos


olhares e na indiferença com que as diferentes pessoas
se cruzam nos grandes centros urbanos dos países
capitalistas desenvolvidos e nos países capitalistas
considerados subdesenvolvidos. A padronização do
pensar e agir reporta-se também ao conteúdo das
relações interpessoais. Quem não for suficientemente
competitivo, violento, eficiente e obediente é
sancionado negativamente pela brigada dos bons
costumes, pela polícia ou, em caso extremo, pelas
prisões, hospitais psiquiátricos e a exclusão social.
Portanto, se o espaço-tempo de estruturação da
informação atravessa os nossos neurônios de uma
forma sub-reptícia quando somos levados a pensar da
mesma maneira ao codificar e decodificar as
linguagens que nos relacionam com o outro ou os
outros, não é menos importante observar a sua
influência nas formas padronizadas de integração e
de controle social. Ou seja, ao perceber do mesmo
modo o léxico da informação que é contrária à
denúncia e à crítica radical do sistema social vigente,
os seres humanos tornam-se adaptáveis às normas
e regras sociais persistentes. Não é de admirar assim
que, pela via da omissão ou da adaptação identitária
ao sistema social vigente, tornem-se expoentes da
integração e do controle social, sem que para isso
sejam induzidos a tal ação individual e coletiva pelas
estruturas repressivas clássicas: polícia, tribunais,
exército, ideologias, governos, religiões.
Ainda que possamos afirmar que as características
atuais da globalização são menos visíveis nos aspectos
culturais e políticos, porque a força reativa e a
resistência das religiões monoteístas e dos valores
tradicionais do Estado-Nação conflitam com os
desígnios hegemônicos dos valores baseados no lucro,
no dinheiro e na troca mercantil das empresas
transnacionais, quer um quer outro tenderão a
integrar-se na lógica destas. Entretanto, os negócios

80
verve

do petróleo e do material de guerra, assim como das


várias drogas, demonstra à saciedade da cumplicidade
subsistente entre as transnacionais, as religiões e o
Estado-Nação, a maioria dos quais baseados em governos
despóticos de maioria cristã ou islâmica. Este tipo de
cumplicidade entre o poder hegemônico do capitalismo
mundial e formas arcaicas do capitalismo está, no
entanto, gerando grandes contradições.
Várias razões estão na origem desse fato. Em
primeiro lugar, o Estado-Nação clássico está perdendo
a legitimidade do controle e administração político-
administrativa do seu território, para além de já ter
perdido grande parte das suas funções de bastião da
política econômica a favor das transnacionais. A perda
de legitimidade do Estado-Nação sobre a sociedade civil,
assim como a crescente burocratização e inutilidade
das suas políticas sociais, traduz-se num fator de
deterioração política da burocracia estatal.
Todavia, a força estruturante e avassaladora da
globalização decorrente do sistema econômico-
financeiro, das novas tecnologias, da informação e do
poder midiático não se coadunam com realidades
políticas e culturais inadequadas e ultrapassadas. As
guerras regionais na ex-Iugoslávia e no Kosovo, e mais
recentemente no Afeganistão, são formas diferenciadas
de resolução dos mesmos problemas: identificar os
sistemas políticos, culturais e sociais ao sistema
econômico-financeiro das transnacionais. Para estas,
podem existir Estados, pátrias, religiões e ideologias
políticas contrastantes, mas desde que submetidas à
lógica de um Estado universal alicerçado no valor do
dinheiro, do mercado, da mercadoria e do lucro. Todos
os meios são bons para atingir esses grandes objetivos,
desde que feitos em nome da democracia e do capital.
Por isso é que a guerra, a destruição do planeta Terra,
o terrorismo, os genocídios, a fome, a miséria, o crime
e a violência que ocorrem atualmente são algo que é
justificado e legitimado por esse Estado mundial em

81
1
2002

formação (NATO; ONU; OMC; Banco Mundial) e pelas


suas democracias representativas.
Esta situação de conflito decorrente de estágios de
desenvolvimentos capitalistas diferenciados é fácil de
superar quando a mudança se faz pela via do sistema
econômico-financeiro, mas é muito mais difícil de
realizar em termos sociais, culturais e políticos. As
resistências à globalização provêm da dificuldade em
instaurar regimes políticos baseados na democracia
representativa, na medida em que para sustentar e
regular as contradições e os antagonismos gerados pela
opressão e a exploração nos países capitalistas menos
desenvolvidos só é possível através de regimes políticos
ditatoriais, na maioria dos casos militares e teocráticos.
A irreversibilidade (?) da globalização determina que não
possam mais existir mecanismos de natureza política,
cultural e religiosa que inviabilizem a transformação
de todos os seres humanos em objetos de produção, de
distribuição e de consumo de mercadorias. Por isso,
quando existem situações políticas, sociais ou religiosas
contraproducentes ou condicionadoras desse processo
histórico, os guardiões político-militares das trans-
nacionais dão-se ao direito legítimo de provocar ou
intervir em todas as guerras regionais ou locais em
prol desse grande objetivo.

Contradições e conflitos entre os movimentos sociais


antiglobalização

Numa primeira aproximação das contradições e


conflitos gerados pela globalização pode-se afirmar que
quase todos evoluem para configurações polarizadas à
volta de quatro dimensões básicas. A primeira reporta-
se às perversões do desemprego, da precariedade da
vinculação contratual, dos salários baixos, pobreza e
exclusão social decorrentes da degradação da condição-
função do trabalho assalariado. A segunda deriva da
degradação do ambiente e da destruição da natureza

82
verve

em termos da diminuição drástica da camada do


ozônio, da poluição atmosférica, da destruição
massiva de recursos naturais, cujos sintomas são
cada vez mais visíveis com a tendência crescente de
ocorrência de catástrofes e calamidades naturais. A
terceira, situa-se nos antagonismos e contradições
provenientes das lógicas de desenvolvimento e
crescimento econômico diferenciados que são
prioritariamente centrados nas lógicas de
administração político-administrativa e territorial do
Estado-Nação ou aquelas que são decorrentes de uma
administração político-administrativa e territorial de
âmbito mundial, cujos objetivos se identificam com
as tendências de dominação de organizações e
instituições de características transnacionais. Por
fim, uma quarta dimensão situa-se nos fenômenos
de resistência radical à mudança imposta pela
globalização em relação a países, regiões e
continentes que ainda não atingiram a modernidade
capitalista. Essa resistência baseia-se essencial-
mente na tradição cultural e religiosa, na medida em
que face à situação de miséria e pobreza da maioria
das populações desses países, regiões ou continentes,
esses fatores funcionam como os únicos “analgésicos”
ou uma “tábua de salvação” de uma tragédia histórica
de opressão e exploração estimulada pela moder-
nidade e, mais recentemente, pela pós-modernidade
da globalização.
Qualquer uma dessas dimensões potencializa
conflitos e ações coletivas de âmbito local, regional e
nacional, mas a sua configuração ideológica e religiosa
só tem cabimento no quadro de um imaginário coletivo
de natureza universal. Por isso, na luta contra os
aspectos negativos da globalização persistem quase
sempre os mesmos denominadores comuns: o Estado, o
capitalismo, as políticas dos governos dos países mais
desenvolvidos e as instituições e organizações de caráter
transnacional. O inimigo é comum, só que as soluções

83
1
2002

para o reformar ou extinguir são diferenciadas. Não


admira, assim, que se assista à integração e à
convergência de ideologias e práticas contrastantes na
construção de um imaginário coletivo contra a
globalização e depois no contexto das manifestações
surgem conflitos e equívocos inesperados entre os
múltiplos manifestantes. Os exemplos das manifestações
de Seattle, Praga, Gotemburgo, Nice e Gênova são
elucidativos a esse respeito. A partir de um leque político
e partidário que vai da esquerda à direita, dos pacifistas
aos violentos, dos reformistas aos revolucionários, dos
grupos ecologistas aos militantes das ONG’s e grupos
religiosos, passando pelos anarquistas e libertários, todos
participam com a sua ideologia e a sua prática no mesmo
espaço-tempo da luta contra os aspectos negativos da
globalização e, contra o poder econômico, social, político
e cultural que lidera esse processo histórico.
A explicitação de posições contrastantes far-se-á
inevitavelmente com o decorrer da luta contra a
globalização, mas, entretanto, os paradoxos e os
equívocos emergem com relativa visibilidade. São
equívocos que se relacionam com os objetivos das lutas,
os conteúdos e as formas de organização que são
desenvolvidos pelos movimentos sociais
antiglobalização. Entre a esquerda e a direita, entre
ecologistas e apologistas do progresso e da razão, entre
os reformistas e os revolucionários, ter objetivos
centrados na persistência e mudanças hipotéticas do
Estado-Nação, do capitalismo e da importância
inexorável da existência de Deus, ainda é admissível,
mas em relação aos que se consideram anarquistas e
libertários, é um absurdo histórico. Por outro lado, em
termos organizacionais já está sobejamente
demonstrado que sindicatos, partidos e igrejas primam
por relações sociais e processos de socialização
assentes na dominação e na autoridade hierárquica.
A confusão e conflitos gerados entre espontaneísmo e
auto-organização, violência e pacifismo, liderança e

84
verve

hierarquia, com os pressupostos da democracia direta,


é continuar a agir coletivamente de forma mecânica,
esquecendo que a democracia direta só é possível com
indivíduos livres e soberanos e que são capazes de
viver simultaneamente a revolta e a lucidez.
Não obstante sabermos da tragédia histórica que
estamos vivendo e não obstante a nossa impotência, o
sentido histórico da utopia anarquista continua mais
válido do que nunca. Eu afirmo isto por duas razões
fundamentais. Em primeiro lugar, porque os seus
pressupostos de emancipação social estão
fundamentados na solidariedade, na cooperação, no
amor, na liberdade e na fraternidade. É uma opção
societária simultaneamente societária, filosófica e
ética e que pode inverter os pressupostos da sociedade
capitalista e do Estado, baseados na competição, na
violência, na guerra, no crime, na alienação e
atomização dos indivíduos. A transversalidade destes
pressupostos é visível nos dilemas e perversões
estruturados pela globalização. Neste capítulo, é
chegado o tempo histórico dos anarquistas e libertários
pensarem e agirem como atores universais.
É um desafio enorme, porque esse grande objetivo
que sempre acompanhou o imaginário individual e
coletivo dos anarquistas é algo que nos situa nos
domínios da realidade e da utopia. Para evoluirmos
nesse sentido, na minha opinião, há de se ultrapassar
os equívocos que são, ainda, alimentados pelos mitos
da revolução, da luta de classes, do poder e da
instauração de uma sociedade anarquista.
Pela experiência histórica acumulada ao longo de
séculos, pensar que é possível realizar uma revolução
social, cujas mudanças substantivas implicam rupturas
e descontinuidades políticas, econômicas, sociais e
culturais de tipo absoluto é, no mínimo, um absurdo,
na medida em que nós, enquanto seres biológicos e
sociais, somos irredutivelmente uma construção
histórica estruturada pelo passado, o presente e o futuro.

85
1
2002

Nesse processo, as mudanças podem ser mais


radicais ou mais reformistas, mas isso não implica
necessariamente que possamos eliminar
mecanicamente, de um dia para o outro, da cabeça
dos indivíduos e grupos que constituem todas as
sociedades, as relações sociais, os processos de
socialização, os valores, a moral e a ética que estão
na origem do Estado e do capitalismo e, logicamente,
na base de todas as formas de opressão e exploração
entre os seres humanos e entre estes e as outras
espécies animais e vegetais. Portanto, a alternativa
entre reforma e revolução, como se fosse uma
hipótese de escolha absoluta entre o bem e o mal, é
um falso dilema, pois toda e qualquer ação de
mudança inserida no processo histórico das
sociedades implica sempre uma situação estrutural
e funcional de interdependência e complementaridade
entre ambas.
Hoje, com as mudanças operadas no seio do
capitalismo e do Estado em escala universal, é difícil
discernir da homogeneidade e da disparidade
subsistente nas situações de dominação e exploração.
É um fenômeno que emerge nas múltiplas realidades
da condição-função de trabalhador assalariado no
sentido genérico, mas é também visível nas múltiplas
relações sociais entre homens e mulheres, entre pais
e filhos, entre os próprios trabalhadores assalariados,
entre ricos e pobres, entre integrados e excluídos na
ordem social vigente, entre povos e etnias diferentes.
A multidimensionalidade das contradições e conflitos
que podem desenvolver ações individuais e coletivas
que tendem para a emancipação social não pode ser
restringida a qualquer grupo ou classe social, mas a
todos os indivíduos que se integrem num processo
histórico de luta contra todas as formas e conteúdos
de dominação e exploração entre seres humanos e
entre estes e as outras espécies animais e vegetais.
Neste sentido, toda e qualquer luta de incidência

86
verve

coletiva deve ter presente uma assunção de


participação e de decisão para a qual confluem natural
e espontaneamente todos os indivíduos potencial-
mente livres e soberanos.
Outro mito que provoca muitos equívocos entre os
anarquistas e os libertários é a extinção do poder através
de uma hipotética revolução social, como se o poder,
enquanto manifestação política inscrita nas nossas
decisões e participações no contexto de qualquer grupo,
comunidade ou sociedade, não implicasse sempre uma
relação social. Ora como sabemos pela nossa vivência
quotidiana, em toda e qualquer relação em que
participamos não existem situações plausíveis de
simetria e reciprocidade absoluta, na medida em que
as nossas diferenças individuais irredutíveis não o
permitem. Na mesma medida, enquanto indivíduos
falamos, sentimos, agimos em função das estruturas e
das funções que temos em qualquer sociedade, também
pensamos, agimos e sentimos a partir de nós mesmos.
Uns falam mais alto que outros ou gostam mais da cor
azul, verde ou vermelho. São relações sociais que têm
uma incidência informal e espontânea e que não podem
ser objeto de formalização e institucionalização estatal
ou societária. Neste tipo de relações sociais, queiramos
ou não, persistem sempre formas de poder que podem
não implicar dominação e coação. Portanto, quando os
anarquistas ou os libertários afirmam ser contra o poder
e, logicamente, são apologistas da sua extinção,
esquecem-se, quase sempre, que o poder, enquanto
relação social assimétrica, não existe exclusivamente
nas instituições e estruturas do Estado e do capital, mas
também que ele é imanente à nossa condição humana,
social e política. Ao integrá-lo na nossa lógica de
emancipação social, temos é que socializar o poder de
uma forma livre e soberana, solidária e fraterna,
extirpando-o de todas as formas e conteúdos de natureza
formal e institucional que assume na autoridade
hierárquica e na dominação.

87
1
2002

Finalmente, importa referir o mito da realização da


sociedade anarquista. Como o sentido etimológico da
palavra anarquia indica, nos pressupostos básicos que
a informam subsiste a inexistência de qualquer
governo ou autoridade hierárquica sobre qualquer
indivíduo ou grupo de uma dada sociedade. Neste
sentido, podemos pensar o conceito de anarquia como
uma filosofia, uma ética e até como um projeto
hipotético de sociedade. Todavia, ao contrário do que
ocorreu com o comunismo, o fascismo, o socialismo e
o capitalismo, a anarquia etimologicamente não sendo
um ismo, pode e deve ser interpretada, explicada e
vivida conforme cada sensibilidade e personalidade
individual, como vivida e praticada por cada grupo ou
sociedade. Mas, também por isso, a anarquia nunca
poderá ser transformada num dogma, numa doutrina
ou religião. Por outro lado, nunca qualquer indivíduo
ou grupo se pode arrogar o dono de uma filosofia, de
uma ética ou de um projeto de sociedade anarquista
onde não existirão deuses nem amos. Pelas razões
sublinhadas, nunca poderá existir uma sociedade
anarquista no sentido finito do termo, na medida em
que a liberdade, o amor, a fraternidade, a cooperação
e a solidariedade não têm limites espaço-temporais
no seu aperfeiçoamento. A anarquia é e será sempre
uma utopia permanente pela qual se luta e vive todos
os dias. E mesmo que o sentido histórico da huma-
nidade fosse a anarquia, porque nunca poderá ser
objeto de institucionalização e de formalização
definitiva, nunca poderá ser um modelo de sociedade
acabada e perfeita.
A força histórica da anarquia sempre foi a sua
dimensão universal. Com base nos desafios e
perversões que emergem da globalização do capital e
do Estado, hoje, mais do que nunca, em termos teóricos
e práticos, importa que a anarquia seja uma base
estruturante da emancipação social que os seres
humanos tanto necessitam. Para a consecução desse

88
verve

grande objetivo, talvez uma probabilidade positiva seria


a de desfazer os equívocos que existem entre os
anarquistas e libertários e entre estes e os movi-
mentos sociais antiglobalização.

resumo abstract

O movimento anti-globalização visto The anti globalization movement, seen


pela análise anarquista. Discute-se a through anarchist analysis. This article
ecologia no interior da globalização discusses ecology into capitalist
capitalista, os efeitos das mídias, globalization, media effects, financial
repercussões econômico-financeiras e and economic impact and regional
guerras regionais. Diante de um Estado wars. Before a global state in
mundial em formação, os anarquistas development, the anarchists take part
fazem parte diferenciadamente dos differently among the other actors
demais atores envolvidos no involved.
movimento.

89
1
2002

o-be-de-cer: o “abcd” do princípio de


autoridade, ou da covardia

rogério nascimento *

Muitos são os termos utilizados por estudiosos da


sociedade para definir a época na qual vivemos: pós-
moderna, moderna, pré-moderna, crise dos paradigmas,
mundo desencantado, niilismo. São algumas das
expressões de maior destaque. Todas elas, são
disseminadas no conjunto da sociedade, decerto,
enfatizam um ou outro aspecto marcante da vida social
nos tempos recentes e atuais. Por conta disto possuem
alcance considerável na medida em que traduzem certos
aspectos de inquestionável urgência, para um
entendimento mais completo dos fenômenos sociais
contemporâneos, como também muitos sentimentos e
perspectivas de análises das problemáticas sociais mais
candentes.
Diversos historiadores, para não falar em outros
investigadores e especialistas, caracterizam o século
passado como tendo sido marcado por conflitos os mais
sangrentos e sem precedentes na história humana:
duas grandes guerras mundiais — e há quem sustente
*
Professor da Universidade Federal da Paraíba, músico e pesquisador do Nu-
Sol.

90
verve

ter iniciado uma terceira guerra ainda em andamento


com a diferença de esta agregar à forma convencional
outras estratégias inusitadas —; uma infinidade de
conflitos localizados; eclosão, de maneira quase geral,
de sistemas de governos totalitários como fascismo,
nazismo, nacionalismos, imperialismos, além de
catástrofes sociais como fome, pestes, epidemias e
também catástrofes naturais... e a lista seria deveras
longa caso tentássemos descrever com maior precisão
o rol de misérias de nosso tempo.
Se juntarmos a esta lista referências às agressões
sistemáticas feitas contra os ecossistemas com suas
biodiversidades — isto é, com os diversos seres vivos
neles existentes — pelos tubarões das finanças, das
indústrias e pela especulação imobiliária; se adicio-
narmos ainda o sem-número de doenças psicosso-
máticas provenientes do estilo de vida das chamadas
sociedades modernas como também de uma organização
do trabalho na qual o ser humano cumpre papel de
apêndice de máquinas ou de sistemas de oferecimentos
de serviços; se somarmos, também, as estatísticas sobre
a situação dos sem-teto, dos sem-terra, da infância e
da velhice abandonada e indigente; e se não
esquecermos também nesta lista dos extermínios dos
chamados índios, de homossexuais, de prostitutas e da
população negra; os casos rotineiros das chacinas dos
moradores das periferias nas grandes cidades, dos
favelados, das crianças, dos trabalhadores urbanos e do
campo... Se considerarmos estes elementos e tantos
outros ainda, a violência cotidiana contra a mulher ou
a truculência característica de todos os governantes
com os mais diversos segmentos sociais apenas no
período da República no Brasil, teremos uma idéia mais
aproximada do número e da magnitude dos pequenos e
grandes holocaustos acontecendo de forma simultânea
e recorrente em diversos pontos de nossa sociedade, ao
nosso redor, por vezes bem do nosso lado!
Disfarçado em formas sutis como uma anedota, uma

91
1
2002

ironia, uma frase sarcástica ou o pagamento de um


(notem bem o termo) “imposto” ou um “cumprimento de
um dever” cívico, militar ou religioso; manifesto em
formas grosseiras, cruas mesmo, claras e cristalinas,
como uma agressão ou um massacre televisado para
milhões (e vivenciado por uns poucos, sofrido por menos
gente ainda, mas não menos intenso e inominável para
estes), o domínio, o abuso, o arbítrio, rotineiramente,
banaliza a vida e a morte. Se prestarmos atenção um
pouco mais, veremos ser ele, além de rotineiro,
sistemático e calculado. Se afinarmos mais um pouco
ainda nossos sentidos e procurarmos perceber os sinais
dos acontecimentos ao nosso redor por uma janela
diferente da proporcionada pelos ilustres, graves e
tapados tele-jornalistas como também pelos alegres,
divertidos e idiotizados entretenedores da Televisão ou
dos abastados e sinistros empreendedores de Orlando, o
que significa dizer, se procurarmos perceber os eventos
ao nosso redor com sensibilidade e atitude iconoclasta,
notaremos, ao mesmo tempo, o absurdo do modo de vida
vigente como também delineados ante nossos olhos os
propósitos inconfessados, deliberadamente planejados de
tantas dores, de tantas misérias.
Pode-se levantar objeções, afirmando a elasticidade e
aprofundamento das liberdades individuais e coletivas
depois da queda do muro de Berlim, do fim da chamada
“cortina de ferro”, da guerra fria, fazendo coro com os
vencidos alegres; caso nos objetem ainda acenando com
um pretensamente fatal e inevitável estabelecimento da
democracia em todo o mundo com a conseqüente
sustentação de uma lógica globalizante e de um mercado
planetário como único pensável e possível caminho a ser
trilhado de hoje em diante, ainda assim sustentaremos o
colocado mais acima. Mais que isto: estas objeções nos
oferecem elementos para recrudescer nossas convicções,
nos dando argumentos favoráveis às assertivas acima
arroladas. Isto porque, primeiro, o muro de Berlim, a
U.R.S.S. e a guerra fria não apontam para campos exclu-

92
verve

dentes, inconciliáveis, opostos. Expressam uma mesma


causa; são fenômenos intrinsecamente ligados à lógica
dominante sob o capitalismo e sob o estatismo, apesar de
esconderem e mascararem este fato ao aplicarem
maquiagens com tonalidades diferentes e uma retórica
recheada de supostos radicalismos conjugados a termos
peremptórios, incisivos.
Segundo, se a construção de um muro dividindo e
separando a Alemanha em duas, a instauração da hoje
finada U.R.S.S. e a guerra fria nos foram mostradas, na
vitrine das relações internacionais, como provas
factuais da existência de campos políticos e ideológicos
inconciliáveis, houve e há na verdade muito mais coisas
em comum entre eles do que uma história oficial — à
direita ou à esquerda (?) — pretenda admitir. Dessa
forma, podemos sem dúvida nenhuma nos referir a
ambos os campos como constituintes de uma mesma
dinâmica e se valendo dos mesmos processos sociais,
respeitadas certas especificidades, relativas mais a
grau e menos a gênero. Assim, numa perspectiva
econômica não houve diferença entre países
comunistas (?) e países capitalistas: ambos eram — e
os ainda existentes também o são — capitalistas; a
diferença está no fato dos primeiros desenvolverem um
capitalismo de Estado enquanto os segundos
desenvolvem um capitalismo de mercado. Ainda para
realçar mais as similitudes entre democracia e
socialismo (?) de Estado e em detrimento da idéia de
existência de um pretensamente intransponível fosso
divisor entre estes dois sistemas de governo, como
defendem os demagogos da democracia e os psicóticos
ao mando da ideologia vermelha, temos o estatismo
como forma comum de gestão da vida social. No
estatismo — democrata, vermelho ou outro — perma-
nece o princípio de autoridade como postulado
fundamental da sociabilidade humana, mantendo-se a
hierarquização da sociedade e, portanto, a existência
tanto do centralismo, na forma da heterogestão social,

93
1
2002

como também, implicação lógica e necessária, uma


verticalização na dinâmica das relações sociais.
Isto nos leva ao terceiro ponto. Em ambos, é a mesma
intervenção na vida da sociedade, respeitadas, nunca é
demais lembrar, as especificidades de cada caso, de cada
localidade e de cada situação particular. Intervenção esta
justificada seja na idéia de fazer cumprir uma pretensa
“vontade geral”, uma “vontade da maioria” ou um
“interesse nacional”, seja na de fazer valer uma “verdade
científica”, uma “verdade revolucionária” ou um
“interesse do operariado” por sobre o conjunto dos demais
segmentos sociais e dos indivíduos. Nesta direção
utilizou-se e utiliza-se, do mesmo modo, fatal e
necessariamente, de expedientes violentos. Por sua vez
tais expedientes remetem à necessidade da criação e
manutenção de exércitos, de policiais, de um corpo
extenso de magistratura, de oficiais, de carcereiros, de
prisões, de paredões, de cadeiras elétricas e similares...
e de muitos funcionários públicos para fazer funcionar
toda esta imensa rede de compressão.
Uma vez as coisas tomadas nestas proporções podemos
nos perguntar como são possíveis tamanhos absurdos num
mundo tido como totalmente voltado para a comunicação
rápida, para a informação precisa, para a tecnologia de
ponta? Como tolerar tantas violências corriqueiras e
naturalizadas no reino dos Direitos e no império do Estado
de Direito? Como tem sido possível a convivência com
tantas arbitrariedades e tantos abusos depois de extintos
os reis absolutos e de ter sido instaurado um período de
garantias de liberdade e justiça, como definem, grosso
modo, o seu sistema, republicanos e democratas
estadunidenses? Mais ainda: como se sustentam e se
proliferam por todo o mundo as carnificinas por motivos
étnicos, religiosos, econômicos, políticos ou outro numa
época de pretenso “fim das ideologias”?
Levantemos algumas saídas apontadas pelos
falaciosos da demagogia democrática e das tiradas
ditatoriais — mesmo com o verniz da urna eleitoral —

94
verve

do socialismo jacobino nas diversas versões reclamadas


de inspiração marxiana. Na perspectiva de ambos, o
futuro vislumbra a construção de governos nacionais
(quer fortes – que é a tendência de toda forma de governo
– quer diminutos – sempre apenas em tese pois na
prática todo governo é açambarcador), convergindo para
o estabelecimento de órgãos mediadores das relações
internacionais, de grandes blocos econômicos
intercontinentais e de instituições e de legislações
reguladoras de acordos de extradição, de expulsão, de
cooperação comercial e dos órgãos de repressão; de
conexão de cadastros pessoais, de empresas e de outros
dados, enfim, uma espécie de governança mundial. É
desnecessário dizer ser este governo, de certo modo, já
existente. Mas cada vez se torna mais nítida a intenção
de se instaurar um “de fato” e não só “de direito”. O
diferenciador entre democratas e socialistas, além do
oportunismo e demagogia dos primeiros e da falácia e
da arrogância dos segundos, está apenas em certos
arranjos na tessitura deste novo império e não no
questionamento da elaboração de mais um projeto de
despotismo, de mais um altar onde se pretende imolar
as liberdades individuais e coletivas.
Pelo que vimos acima, podemos perceber as respostas
dadas pelos governos de plantão e também pelos demais
pretendentes ao poder — tomados pela psicose
autoritária — como passando obrigatoriamente ou por
uma reforma nos mecanismos e instituições de governo,
isto é, por crescente aprimoramento, atualização e
conservação nas estratégias de controle social, e/ou,
pela mudança nas pessoas dos mandatários, ou ainda
por uma composição das duas. De um modo ou de outro,
as questões sociais são percebidas, nesta perspectiva,
como assuntos alheios aos diretamente interessados,
dizendo respeito mais a especialistas e a “represen-
tantes do povo” e menos a este mesmo povo; este não
pode ter o controle de seu destino ou por pura
incapacidade ou por causa de uma concepção de ser

95
1
2002

humano como lobo do próprio homem, cultivada pelos


orbitais do princípio de autoridade. A pretensa incapacidade
da população em gerir sua própria vida vem do preconceito
cientificista. Este preconceito está diretamente ligado à
superstição filosófica segundo a qual toda e qualquer
dimensão da vida humana possui uma verdade essencial,
pura ou superior a ser alcançada, ou descoberta, única e
exclusivamente pela ciência. Os conhecimentos
existentes fora dos cânones sagrados da ciência ocidental
são tidos como crendices, preconceitos ou superstições...
para os novos sacerdotes da religião de ciência!
A noção do homem lobo do homem, do homem mau
por natureza ou do ser humano natural ou
espiritualmente degenerado constitui na idéia basilar
de todo o edifício filosófico das instituições vigentes e,
portanto, da forma como se estabelecem as relações
políticas, econômicas, intelectuais, pessoais, religiosas
e demais nas sociedades reclamadas tributárias de um
chamado modo de vida ocidental. Os filósofos do
liberalismo partem da concepção de uma conjectura,
como eles mesmos denominam seu mito de origem. Um
dito estado de natureza seria uma época muito remota;
tão distante a ponto de ser impossível provar, com
documentos, ter este estado existido. Mesmo assim, se
baseiam nesta ilusão para erguer todo seu edifício
filosófico, seguindo-se a eles todos os defensores de uma
centralização social. No pretenso estado de natureza, os
seres humanos viveriam isolados tendo posteriormente
criado a sociedade com outros semelhantes apenas por
motivos utilitaristas. Na vertente hobbesiana dos
jusnaturalistas a sociedade passou a existir a fim de que
os seres humanos não se destruíssem mutuamente; só
sob ameaças e medo de sofrer punição e castigos seria
possível barrar os ímpetos anti-sociais próprios dos
humanos. O Leviatã seria o ser a pairar sobre todos,
impondo, pela magnitude e poderio, temor e respeito,
contendo em todos os indivíduos suas inclinações anti-
sociais. A escola de Maquiavel iria também somar com

96
verve

a de Hobbes na elaboração de uma natureza humana


essencialmente má, configurando um espectro medonho
da sociabilidade humana. Nesta dinâmica se encontram
todas as escolas científicas, ideológicas, de doutrina
social e filosofias defensoras de uma organização social
centralizada, hierarquizada, verticalizada.
Além destas escolas do pensamento social, fundadas
em princípios de uma sociabilidade humana má por
natureza, temos a tradição religiosa judaico-cristã
instaurando uma cosmologia, uma forma de ver o
mundo a partir de pressupostos autoritários. Assim,
nosso mito de origem sacramenta a idéia da
possibilidade do homem isolado. Através deste mito
fundamental, básico ou central na teologia cristã, Adão
passou um longo período apenas tendo a figura de Deus
como interlocutor diário; possuindo todos os predicados
de humanidade em si mesmo, sem nenhum contato
com semelhantes, falou, nomeou os animais e procedeu
no geral como qualquer ser humano faria. Apenas num
momento posterior sente solidão e pede à divindade uma
companheira que lhe seja “idônea”, depois de observar
todos os animais possuindo uma. Sua relação com esta
companheira, como com toda a existência, é
fundamentada no domínio. No texto sagrado, o criador
lhe dá a faculdade de usar, do modo como quisesse, de
todos os seres existentes. Sem esquecer do fato de no
mesmo texto todo o processo de passagem à existência
dos seres ter se dado de uma forma totalmente diferente
da do surgimento de Adão; enquanto os animais e
plantas surgiam apenas a partir de uma ordem verbal
da divindade, nosso Adão foi formado com a modelagem
em barro feita pela própria mão de Deus; findo este
primeiro momento do processo de criação de Adão, o
próprio Deus soprou vida nas narinas do barro inerte,
tornando-o, a partir deste momento, uma “alma vivente”.
Coloca-se, nesta altura, sub-repticiamente, um abismo
de distância entre os seres humanos, os demais seres
vivos e materiais inorgânicos. Instalam-se as dicotomias

97
1
2002

existência e humanos, natureza e cultura, justificando,


a partir de então, um enfoque onde os homens ocupam o
centro da existência e, desdobramento natural, exerce
sobre todos os seres uma relação de exterioridade e
superioridade no sentido de dominação.
Outros mitos, que poderíamos classificar como
secundários, de reforço ou orbitais sedimentam esta
percepção da existência através da ênfase em outras
nuances nas sociabilidades autoritárias. Os mitos do
dilúvio, da torre de Babel, de Caim e Abel, e outros mais,
alimentam o mito principal ao redimensionarem certos
aspectos deste, afirmando uma forma de sociabilidade
entre Deus e os homens, entre os homens e a natureza
e entre os próprios humanos na qual a hierarquização,
a autoridade e o poder são apresentados como elementos
primordiais para a existência. De qualquer forma um
coração e um cérebro místicos constituem um terreno
propício para disseminação da transcendência, venha
ela sob qualquer manifestação; substitua Deus por leis
da história, Estado, dever, humanidade, justiça ou outra
abstração, e as coisas permanecerão as mesmas. No
texto sagrado os termos chaves e mais recorrentes
resultam na elaboração e disseminação de uma
sociabilidade autoritária: “Rei dos reis”, “Senhor dos
senhores”, “Deus vingativo, ciumento e iracundo”,
“Deus dos exércitos” entre outros que se desdobram no
estabelecimento de relações baseadas no domínio, na
punição e no castigo, na premiação e na glorificação.
As coisas não mudam o conteúdo quando a divindade
de nossa sociedade passa a ser apresentada como “Deus
de amor”, “piedoso”, “misericordioso, “infinitamente
bom”, ou outro termo equivalente, pois o abandono pela
divindade das atitudes marcadamente duras de um
período adotando outras brandas e bondosas apresenta-
se como uma mudança sem causa, sem motivo,
legitimando o arbítrio. A própria idéia de Deus instaura
o absoluto uma vez ele não precisar ser “bom”, “fiel”,
“justiceiro”, “zeloso” ou outro qualificativo. É o Todo-

98
verve

Poderoso e ponto final. O que passa disto são exercícios


de contorcionismos no pensamento propostos pelos
teólogos a fim de ludibriar e desvanecer as inquietações.
Toda cosmologia instaura, de uma forma geral, um
tipo de sociabilidade. A maneira como percebemos a
existência inaugura o modo como nos relacionamos com
todos os seres vivos, com nosso planeta e com os demais
humanos; neste último conjunto a maneira de
balizarmos nossos relacionamentos com povos
longínquos, próximos e de nossa íntima familiaridade
passa por uma formatação dada pelos mitos, por uma
cosmovisão. O modo como pensamos está intrinse-
camente ligado a como sentimos, ao mesmo tempo em
que o modo como sentimos depende diretamente de como
pensamos; pensamento e sentimento oferecem os
referenciais através dos quais selecionamos os estímulos
que nos chegam a todo instante, num processo contínuo
de criação de realidades. Nosso olhar, sobretudo, ao nosso
redor encontra-se modulado por um conjunto complexo
de elementos os mais variados possíveis. Nossas
maneiras comportamentais possuem referenciais
fundamentais nos conceitos e afetos aprendidos e
apreendidos no meio e nos coletivos onde nos iniciamos
culturalmente. O pavor da morte cultivado pela religião
cristã, por exemplo, não impede a experiência da finitude;
impede antes a experimentação plena da vida; o medo
de morrer não gera imortalidade mas sim mortos-vivos!
Neste ponto surgem os mal-amados, os ressentidos, os
recalcados; o fiel abraça um código de comportamento
por demais rígido; suas relações pessoais e coletivas são
estabelecidas a partir de balizas instauradoras do
absoluto. Por outro lado a vida é percebida como
diretamente relacionada ao número de dias de respiração
e de manutenção das funções primárias de um
organismo; a forma como este período se passa não é de
modo algum levado em consideração. Desta maneira se
instaura um tipo de sociabilidade baseada no sacrifício,
na dor, na angústia, no sofrimento.

99
1
2002

O amor e a sexualidade, particularmente na tradição


judaico-cristã, são objetos de um regramento mortal,
ocasião propícia para o estabelecimento de uma
profunda miséria existencial. Os fascismos de todos os
matizes precisam deste terreno para florescer, com todo
vigor, individualidades incompletas, deformadas,
castigadas; são estas as matérias-primas fundamentais
para o estabelecimento de “governos fortes”! São pessoas
estilhaçadas afetiva e psicologicamente dispostas à
prática da delação sistemática ou esporádica, condição
sine qua non de todos os totalitarismos. Os governos
autodenominados modernos têm em uníssono cultivado,
de uma maneira calculada, sociabilidades fundadas na
alcagüetagem; uma sociedade de alcagüetes é a cicuta
oferecida disfarçada em vinho. Todas as instituições
das sociedades modernas objetivam inocular nos
indivíduos a consciência de ser um “cidadão” livre onde,
através de novos contorcionismos e mistificações, a
liberdade é totalmente negada por tantas regula-
mentações e códigos. As instituições não funcionam?
Seus direitos não são respeitados? Não há segurança?
A saúde e a educação são precárias? O salário é
insuficiente? A polícia é violenta? Os governantes são
corruptos? DE-NUN-CI-AR é a grande e maravilhosa
saída apontada pelos ditadores de plantão! A realização
da cidadania é manifesta quando o indivíduo, pasmem,
“denuncia” à Providência política; da mesma forma a
realização do ser do fiel se dá ao recorrer, e ao confiar,
plenamente à Providência divina todos os seus
problemas, toda a sua vida!
Os mitos religiosos ao lado das superstições
filosóficas e dos preconceitos cientificistas findam por
engendrar individualidades místicas e irresponsáveis.
Baseado em religião, quer em ideologia, filosofia ou
alguma escola teórica, todo o pensamento fechado em
si mesmo reinstala o absoluto, o transcendental. A idéia
de um ser supremo, seja ele Deus, Pátria, leis da
história, Humanidade, Ciência, Estado, Inconsciente,

100
verve

estruturas profundas, ou outra abstração qualquer anula


dos indivíduos a possibilidade de uma ação responsável
e consciente, enquanto estes se encontrarem sob o
arbítrio de uma entidade todo-poderosa, a quem
direcionam a causa e o fim de toda a existência. Os
indivíduos se tornam pessimistas, fatalistas e resignados
ao adotarem qualquer das seitas como referencial para
suas relações. Isto porque a crença num ser superior,
pairando sobre todos e sobre tudo, funda tipos de relações
sociais e pessoais reproduzindo esta perspectiva de modo
a conduzir os fiéis à procura de superiores entre si. É
desnecessário dizer ser este o terreno adequado para a
adoção de atitudes de adaptação, reprodução e
manutenção das relações hierarquizadas. Estas têm
como requisito fundamental o cultivo da obediência por
um considerável estrato social. Insubmissão,
indisciplina, irreverência são posturas inconciliáveis
com uma sociedade onde as relações entre pessoas e
coletividades são verticalizadas.
O ser obediente é passivo e irresponsável; passivo
por não exercer a imaginação e criatividade, limitando-
se a persistir num circuito estímulo-resposta ou,
quando muito, exercitando sua imaginação no estreito
campo balizado por uma verdade oficial (um limitante e
não um militante). Irresponsável porque ao cumprir
ordens acha-se moralmente irrepreensível ante as
conseqüências de suas atitudes. Desta forma, pode
tranqüilamente jogar bombas em populações civis,
apertar um botão de descarga elétrica numa pessoa
presa a uma cadeira, desviar recursos públicos,
administrar e auxiliar o “bom funcionamento” dos novos
campos de concentração (asilos, quartéis, manicômios,
presídios...), enfim, realizar qualquer atividade ordenada
pelos seus “superiores” (não é este o termo?).
O medo é o sentimento a orientar as ações do místico,
do crente em seres ou entidades supremas. “O temor
do Senhor é o princípio da sabedoria”, reza o texto
sagrado, sem alertar os fiéis ser este temor extensivo

101
1
2002

a tudo relacionado e relacionável a este “Senhor”. Este,


por sua vez, toma a forma ora de chefe da sessão, ora do
patrão, ora do pai ou da mãe, ora do professor, ora do
policial, ora da Pátria... O indivíduo temeroso espera de
Deus, do Estado, de instituições, da polícia, da “justiça”
a resolução de seus problemas. O ensino oficial, a
família, o sindicato, a igreja, o ambiente de trabalho, o
trânsito, cultivam, por entre suas finalidades mais
explícitas, o narcótico da pusilanimidade. Também, na
chamada sabedoria popular encontra-se instalado o
fermento do temor: “Manda quem pode, obedece quem
tem juízo”, diz um dos ditados, sedimentando relações
de dominação como sendo naturais e, mais que isto,
inevitáveis, necessárias. Este pensamento ao lado do
mais badalado ainda “cada macaco no seu galho”, forma
uma dupla medonha procurando inocular nos indivíduos
a predisposição à obediência, a vontade de servir e o
medo de sofrer punições e castigos. Se este tipo de
pensar e sentir é disseminado na população em geral,
com ênfase nos trabalhadores, entre os dirigentes, por
outro lado, cultiva-se a lógica da dominação. Assim
temos entre os chefes um ditado orientando-os a
gritarem sempre com o subordinado, pois caso o chefe
não saiba, às vezes, porque está gritando, o outro saberá
sempre o porquê de estar sendo insultado.
Todos estes elementos conjugados resultam na
existência de uma forma de relação social baseada no
mando e na subserviência; há pessoas predispostas para
dominar e outras predispostas para obedecer. Cultivam-
se, desta maneira, pendores para a obediência em uns
e a vertigem do mando em uns poucos. Isto se estabelece
de uma maneira relacional: o conjunto da sociedade
possui, regra geral, poucos segmentos orientados para
o domínio, e os demais, ou a quase totalidade destes,
inclinados à obediência; isto significa também existir
a mesma dinâmica no interior de cada um destes
segmentos. A lógica do mando e da obediência se coloca
como uma forma de ver o mundo e de se portar diante

102
verve

das situações rotineiras como também das inusitadas.


Assim, todo o conjunto das relações de um indivíduo de
qualquer dos segmentos sociais vai se realizar tendo
como pano de fundo orientador das suas atitudes
símbolos e signos culturais, processos e mecanismos
do poder instauradores de hierarquias. Na medida em
que alguém ou um evento, que entre no campo sensorial
de um indivíduo das chamadas classes dirigentes,
procurando interagir com ele ou instando-o a adotar
alguma ação, será correspondido ou não, desta ou
daquela forma, a depender da situação dos campos
culturais implicados.
Se alguns entendem ser o niilismo, o desencan-
tamento, a crise, o pessimismo, um pós-modernismo,
ou outra ainda, a característica mais marcante de
nossa época, acredito ser a COVARDIA a marca mais
destacável (e detestável) da civilização ocidental. Só uma
sociedade de covardes possibilita o surgimento dos
fascismos nas versões das mais diversas (socialismo
de Estado, nazismo, totalitarismo, teocracias,
democracias, imperialismos). Apenas covardes
contumazes conseguem se enganar e passar a vida sem
agir (entendido na concepção plena do verbo), vegetando,
esperando, esperando...
a posição correta dos astros,
um salvador,
o terceiro milênio,
a vitória de seu partido ou de seu candidato,
um grande líder mundial,
um sistema de governo perfeito, racional e justo,
o advento do super-homem,
acertar na sena acumulada,
que seja chamado para o show do milhão,
a outra vida,
a batalha final,
a solução final,
uma promoção,
que o marido se toque,

103
1
2002

que a mulher se toque,


o reconhecimento geral do gênio que é,
o contato dos ets,
outra capicua,
a segunda vinda de cristo
ou outra coisa qualquer. Esta espera sem fim não
acontece impune nem inocentemente, uma vez que
guarda em si a manutenção de uma sociabilidade
sinistra porque disseminadora de relações verticais,
insensibilidade nas reações e um modo de vida
hierarquizante.
Nossa época seria justamente conceituada caso fosse
estabelecido o termo COVARDIA como síntese geral e
definição cabal de todos os avanços... para trás! De todas
as conquistas... de grilhões! De todas as vitórias... do
arbítrio! Ficaria muito mais adequada uma obra tratando
do século XX, e sobretudo de nossos dias, como TEMPOS
DE COVARDIA ou A ERA DA COVARDIA. Nem pós-moderno,
nem pré-moderno, nem moderno, nem desencantamento
do mundo, nem crise dos paradigmas, nem niilismo
conseguem exprimir meu sentimento ao olhar para as
pérolas legadas para todos nós pelos esforçados altruístas,
salvacionistas, bondosos estadistas e caridosos religiosos.
Todo o processo social tem desembocado na elaboração de
individualidades fracas, disciplinadas, domadas, místicas.
O rumo tomado pelas instituições vigentes traduz o
estabelecimento de vontades deformadas, estas
abandonam uma vibração ativa passando para um circuito
de passividade, ou de uma vontade ativa... de servir! Toda
a programação midiática, exemplo contemporâneo de
meios de construção de imaginário — naturaliza cenas
de lutas sangrentas, morte, hierarquias, assassinatos,
carnificinas; a começar pelas programações infantis,
trabalhando nesta tanto a naturalização da violência como
uma difusão sistemática de termos militaristas. O mundo
das fábulas infantis espelha uma sociabilidade fundada
no autoritarismo, procurando fixar nas mentes imberbes
uma cosmologia de tipo mística. Reis, princesas, monstros,

104
verve

magos, bruxas, seres fabulosos, mulheres frágeis ou


extremamente cruéis, são os habitantes do mundo das
fábulas e das lendas estabelecidas, sedimentando
sutilmente as relações fundadas no princípio de
autoridade. Reverência, temerosidade, pusilanimidade,
covardia, enfim, são os elementos constituintes da
matéria dos seres humanos sob regime disciplinar; este
é o terreno adequado e favorável ao estabelecimento de
projetos de dominação e controle. A disciplinaridade e o
domínio reproduzem a velha escravidão negra; a diferença
da escravidão moderna se deve ao fato de hoje a escravidão
ser mais ampla e não restrita apenas a negros; como
também ao fato desta escravidão ser mais eficaz na
medida em que a quase totalidade das pessoas se vê como
“livre” ao mesmo tempo em que atribui à existência de
um governo — democrático, socialista, teocrático ou de
outra variação — esta prerrogativa.

resumo abstract

Os cuidados com os procedimentos The care with the proceedings applied in social
usados nas pesquisas sociais têm produ- research has produced assorted debates and
zido debates e orientações as mais orientations. Many theoretical perspectives
diversas. Várias escolas teóricas point out different ways to deal with the so-
apontam diferentes maneiras de trata- called “object” of research. Florentino de
mento do chamado “objeto” da Carvalho, in his criticism of transcendence,
pesquisa. Florentino de Carvalho, em treated this subject in a particular manner.
sua crítica à transcendência, abordou Building a relational perspective in action and
este tema de uma forma bem particular. reflection, where the nomad movement
Elaborando uma perspectiva relacional disrespects borders placed among
na ação e na reflexão, onde movimento knowledges and between them and life; we
nômade desrespeita fronteiras fixadas also see an anthropophagical manner of
entre os saberes e entre estes e a vida; appropriation being established; savage
vemos também ser instalado neste attitude in opposition to domestication of
processo um modo antropofágico de thought, feelings, bodies. Finally, indiscipline
apropriação vivencial; atitude selvagem as existential attitude, diluting hierarchies,
opondo-se à domesticação dos establishing sociabilities to escape from
pensamentos, sentimentos, dos corpos. centralisms, from sedentariness.
Enfim, indisciplina como postura
existencial, diluindo hierarquias, instau-
rando sociabilidades em fuga dos
centralismos, dos sedentarismos.

105
1
2002

conversas com um abolicionista do


sistema penal

entrevista com
louk hulsman

Louk Hulsman é professor emérito na Universidade de


Rotterdam e membro de diversos foros internacionais – das
Nações Unidas, do Conselho da Europa e das Sociedades
de Direito Penal e Criminologia. Hulsman é um abolicionista
penal que desestabiliza não só o direito como o próprio
abolicionismo. Desconcerta o Direito ao sacudir as certezas
pensadas em torno de legalidades e ilegalidades. É
Professor de Direito Penal e, simultaneamente, defende a
sua extinção, afirmando, entre outras coisas, não haver
natureza ontológica do crime. Convulsiona o abolicionismo
pois, não restringe sua perspectiva à extinção das prisões
mas afirma a possibilidade de que os problemas tragados
pela esfera criminal sejam resolvidos no âmbito do Direito
Civil, ressaltando que uma sociedade sem penas já existe.
Pratica o abolicionismo investindo em duas frentes: o
abolicionismo social e acadêmico. Hulsman divulga o
abolicionismo no jardim de sua casa em Dordrecht na
Holanda; na Universidade e em várias partes do planeta.
Nesta entrevista, dividida em duas partes — a segunda
será publicada no próximo número — concedida à

106
verve

Jacqueline de Celis, com quem mantém uma parceria


abolicionista intensa, explicita que seu abolicionismo
provém de espaços diversos, imbricados nas situações
concretas de sua vida. De seus problemas concretos as
respostas diretas encontradas fizeram Hulsman deslizar
rumo ao Abolicionismo. Acontecimento tecido em sua
própria superfície, simultâneo à sua invenção. Hulsman é
um convite à inquietude do abolicionismo, distante, muito
distante, das utopias que convivem tão bem com as práticas
consoladoras. E, como ele próprio gosta de afirmar, em meio
a um sorriso alegre, o abolicionismo faz bem à saúde.

Esta entrevista faz parte do livro de Louk Hulsman e


Jacqueline Bernart de Celis, Penas Perdidas: o sistema
penal em questão. Rio de Janeiro, Luam, 1993. Traduzido
por Maria Lucia Karam, encontra-se esgotado aguardando
uma nova edição.

Salete Oliveira

situações e acontecimentos

Jacqueline Bernat de Celis — Então, quem é você,


Louk Hulsman?
Louk Hulsman — Sou professor da Universidade de
Rotterdam, há quase 18 anos. Lembro-me muito bem
de como isso aconteceu. Um dia, alguém que eu
conhecia só de nome me telefona, me diz que quer me
falar sobre a nova Faculdade de Direito... Foi em 1964.
No ano anterior, duas novas Faculdades tinham sido
criadas, uma de Direito e uma de Ciências Sociais, que
viriam se somar à antiga Faculdade de Economia. No
primeiro ano, não se dá Direito Penal. Mas, para o
segundo ano, era preciso um professor. Não sei porque,
eu disse sim, sem hesitar.

107
1
2002

— Você não fez um concurso? Esta é uma maneira normal


de se tornar professor numa universidade holandesa?
— Sim, as nomeações, na maioria das vezes, se
fazem em função do curriculum vitae da pessoa.

— O que você havia feito anteriormente, que o


recomendava para o cargo?
— Quando me ofereceram a cátedra de Direito Penal,
eu estava no Ministério da Justiça. Além disso,
presidia, na época, o Comitê Europeu para Problemas
Criminais, em Strasbourg, do qual fiz parte durante
muitos anos. Antes de pertencer ao Ministério da
Justiça, trabalhei no Ministério da Defesa dos Países-
Baixos, onde ingressei logo que concluí meus estudos
de Direito. Durante mais de dois anos, através deste
Ministério, participei, em Paris, dos trabalhos do Comitê
Interino para a Comunidade Européia de Defesa, de modo
que, há muito tempo, eu já havia adquirido uma boa
prática em relações internacionais.

— Estas primeiras funções, sem dúvida, nada tinham a


ver com os problemas do sistema penal...
— Sim, sem dúvida. Trabalhei, em Paris, num projeto
de Código Militar Europeu e na preparação de um
Regulamento Europeu de Ajuda Mútua Judiciária, que,
na verdade, não deram em nada, pois a França se
recusou a assiná-los... Me engajei neste trabalho, lhe
dediquei muitas energias, e fiquei bastante frustrado
na época, ao ver que tanto esforço, tanto vaivém entre
Paris e os Países-Baixos, não tinham servido para nada.
Sem dúvida, foi essa uma das razões que me fez passar
para o Ministério da Justiça...

— E antes de ser enviado a Paris?


— Trabalhei em meu país, durante três anos, no
Serviço Jurídico do Ministério da Defesa. O mais curioso,
quando penso nisso, é a espécie de vocação que, desde
o começo, levou a que eu me insurgisse contra a

108
verve

maneira desumana com que se aplicam as decisões


penais. De imediato tive que me ocupar com questões
relativas ao Direito Penal Militar. O Serviço onde eu
estava, dentre outras atribuições, se pronunciava sobre
pedidos de graça e livramento condicional e eu me
sentia muito mal em ter que responder a estas
demandas sob as orientações de meus chefes, que me
pareciam incrivelmente severas. “Não, não”, diziam eles,
quando eu queria conceder graça ou livramento; “você
deve recusar”. O Departamento Pessoal também tomava
decisões disciplinares, algumas das quais me revoltavam.
E, jovem com era, eu não hesitava em correr atrás e cobrar
dos responsáveis. A um deles, que decidira revogar um
benefício com efeito retroativo, interpelei sem cerimônia:
“O que você faria se fosse pessoalmente atingido desta
maneira?” Enquanto isso, eu procurava um meio de
conseguir uma evolução da política de livramentos
condicionais que fosse favorável aos condenados.

— Naturalmente, era um sonho impossível...


— Não totalmente. Com o tempo, consegui dar uma
inclinação mais liberal à política de livramentos
condicionais. Aprendi muito cedo — e esta foi uma das
grandes descobertas da minha vida — que, mesmo de
certos postos bem modestos, é possível sacudir as
burocracias, desde que, naturalmente, haja um
empenho profundo e se esteja bem preparado
tecnicamente. Sem dúvida, também fui favorecido pela
sorte. Eu estava num posto bastante interessante. Ao
meu Serviço vinham, para consulta, todas as questões
econômicas ou as não estritamente militares. Por outro
lado, todos os projetos elaborados pelos outros
Departamentos passavam pelo Ministério da Defesa
antes de ir para o Conselho de Ministros. Quando
cheguei, todos os outros membros da equipe estavam
absorvidos com o problema da Indonésia. Nesta época,
havia a guerra da Indonésia e era preciso preparar a
transmissão da soberania. Isto dava um trabalho

109
1
2002

enorme às pessoas do meu Serviço. De modo que era a


mim, o recém-chegado, que se encaminhavam as
questões mais ‘corriqueiras’... que, nem sempre, eram
banais! Eu estava no Serviço, há não mais de dois
meses, quando chegou, por exemplo, um projeto de lei
sobre energia nuclear. Ora, eu não sabia nada sobre
energia nuclear! Me pus, então, a trabalhar neste
projeto com o maior cuidado. Meu trabalho foi apreciado
e começaram a ter consideração por mim. Isto, de certa
forma, me deu uma moeda de troca: precisavam de mim,
tecnicamente, para fazer um trabalho considerado
importante na tradição do Serviço; com isso, chegada a
hora, pude reivindicar menos restrições na concessão
de livramentos condicionais. Além disso, aprendi outros
pequenos truques, através dos quais também pude
exercer minha influência: por exemplo, na ocasião das
notas trocadas pelos Ministérios. Para que uma matéria
passasse no Conselho de Ministros, era preciso que os
Ministros se pusessem de acordo. Assim, se um
Ministério quisesse ganhar tempo, o meu poderia ser
exigente, o que levaria o primeiro a ter interesse em
aceitar o que reivindicássemos, para que a matéria
passasse. Com este poder em retardar ou acelerar o
processo, e podia ver certas coisas... De certo modo, no
Ministério da Defesa, tive, antes da consciência, uma
espécie de prática abolicionista...

— Estas suas explicações mostram uma imagem bastante


inquietante da forma de aprovação de projetos de lei!
— E de sua elaboração! Durante este período da
minha vida, vi muito claramente como as leis são
produzidas: geralmente feitas por reles funcionários e
emendadas precipitadamente e por compromissos
políticos; não têm absolutamente nada de democráticas
e, dificilmente, são fruto de uma coerência ideológica.
Pior ainda: são editadas na ignorância da diversidade
de situações sobre as quais vão influir... Mas, este
desnudamento de uma realidade sem correspondência

110
verve

com os princípios ensinados não passou de uma etapa


na descoberta de que, em nossas sociedades, no fundo,
nada funciona segundo os modelos que nos foram
propostos. Para explicar isto, porém, seria preciso voltar
bem mais atrás em minha história pessoal...

— Se você pudesse fazê-lo seria interessante, na medida


em que sua experiência poderia ser reveladora para outras
pessoas.
— Talvez seja. Pois bem, durante longo tempo,
acreditei que aquilo que ensinava era realidade: uma
determinada teologia moral, por exemplo; ou a ideologia
do Estado protetor da pessoa. Mas, diante de certos
acontecimentos, me dei conta de que nada disso se
sustentava.

— De qual moral você fala?


— Eu cresci numa região dos Países-Baixos onde
reinava, de forma absoluta, a doutrina católica oficial
— aquela pré-Vaticano II. Inculcavam-nos a estranha
idéia de que havia umas pessoas eleitas e outras não.
Na ideologia escolástica, tudo é ordenado por Deus e
quaisquer definições são dadas de uma vez por todas.
Então, há pessoas escolhidas por Deus, que pertencem
ao Corpo Místico de Cristo, ao Povo Eleito; e há os outros
que estão de fora.

— Você não está exagerando? A gente lê no Evangelho:


“Eu vim buscar e salvar o que estava perdido”!
— De forma alguma. Sempre me ensinaram que
somente aqueles que são batizados estão com Deus. É
certo que a noção de batismo ampliou-se um pouco.
Consideram-se como batizados aqueles que tiveram
desejo de sê-lo. Também se inventou o batismo de
sangue. Mas, foram extensões de um princípio estrito,
pelo menos no que se refere ao ensinamento que recebi.
Não falo no Evangelho; falo de uma certa corrente da
Igreja, a corrente especificamente jurídica, aquela que

111
1
2002

forjou a fórmula “fora da Igreja, não há salvação”. Um


homem como meu santo padroeiro, a quem acho até
bem simpático, Luís, rei de França — não queria fazer
a guerra... Mas, fez a de Túnis. Quando se lê o que ele
escreve, fica-se confuso. Segundo ele, não se deveria
fazer a guerra contra os ingleses, porque os ingleses
também são seres humanos. Mas, era preciso fazer a
guerra contra os árabes, porque eles não são nada, não
pertencem ao Corpo Místico... Dizia-se: “é pena, mas é
assim; eles são perdidos”. Eram pessoas que, de todo modo,
não podiam compreender o sentido das coisas... Porque
as coisas tinham um sentido que apenas os eleitos podiam
compreender; aliás, em graus diversos, conforme sua
posição hierárquica, entendido que somente o Papa via
toda a verdade, em função de seu vínculo direto com Deus...
Então eu vivia inquieto, sempre me perguntando se não
iria para o inferno, pois, durante muito tempo, acreditei
no inferno. Será que eu não iria parar lá? Eu queria, ao
menos, sabê-lo, e inventava umas espécies de jogos para
obter uma resposta: se eu chegar ao cruzamento antes
de ter contado até tanto, vou para o inferno; se não, não
vou... Todo o jurídico já estava ali! Falei publicamente disto
há não muito tempo. Mencionei alguns problemas de
consciência que tive por causa de penitências que podiam
ser feitas e que valiam um tempo a menos no purgatório,
para si mesmo ou para outro qualquer. Era possível ganhar
60 dias, rezando tal oração; e indo à igreja no Dia de Todos
os Santos, qualquer um poderia ser totalmente perdoado...
Ainda me lembro de um certo 1o de novembro... Fazia um
tempo lindo! Será que eu poderia ir brincar, ou deveria
cumprir esta penitência que dava a absolvição total?
Tantas almas gemendo no purgatório! Como passear nos
bosques, se eu poderia salvá-las?

— Como você, finalmente, saiu desta inquietude?


— Durante meu último ano de internato — vivi muitos
anos num colégio interno — estudei teologia moral, por
minha própria iniciativa, pois não fazia parte do

112
verve

programa. Então, comecei a não acreditar mais no que


contavam, havia, de fato, uma grande distância entre o
que ensinavam e minha experiência. Aí, comecei a forjar
minha própria religião. A princípio foi extremamente
difícil obter informações diferentes daquelas que a Igreja
transmitia. Num dado momento, consegui me apoderar
da Bíblia. Tal leitura foi como dinamite. Subitamente,
encontrei ali, inclusiva nos Evangelhos, toda espécie de
material contrário ao sistema e mesmo à liturgia que
nos faziam seguir e que, aliás, me agradava... De fato,
era difícil sair dos marcos impostos, pois, não só não
davam livros críticos na classe em que eu estava, como,
além disso, no contexto católico da região onde eu vivia,
não havia a menor possibilidade de encontrar noutros
lugares, seja em bibliotecas ou livrarias, qualquer
literatura contrária às idéias da instituição Igreja. Nesta
etapa da minha vida, realmente senti a dominação
totalitária de um sistema institucional que fechava as
portas a qualquer outro modo de pensar. Entretanto, a
dúvida ia começar a se desalienar.

— Como assim?
— Escapar do conformismo permite o acesso a um
universo de liberdade. Mas, nem sempre é fácil largar o
establishment, embora, às vezes, isso dê prazer. Alguns
acontecimentos me ajudaram. A guerra civil espanhola,
por exemplo, foi uma etapa importante. Na região onde
eu vivia, os jornais eram todos franquistas. Com uma
tal imprensa, eu também acabava ficando interiormente
contente quando Franco tomava mais uma cidade,
quando seu exército avançava. Mas, em 1938, comecei
a ter acesso a outras fontes de informação e, de repente,
me vi muito pouco orgulhoso de meus sentimentos.
Percebi que tinha sido totalmente enganado pelo sistema
onde eu tinha estado encerrado. Agora que lia os livros
dos republicanos e daqueles que, na França e nos Países-
Baixos, tinham participado da luta contra Franco, me
dava conta do erro profundo em que eu havia mergulhado

113
1
2002

e minha vergonha crescia... Jamais fui à Espanha antes


da morte de Franco, pelo trauma profundo que vivi
naquela época. Este episódio me marcou bastante.

— Também foi neste momento que você começou a se


interessar sobre os princípios legitimadores do Estado?
— Foram a ocupação, a resistência e a guerra que,
para mim, desmistificaram o Estado. Num dado
momento, como eu usava uma identidade falsa para
não ir trabalhar na Alemanha, fui preso pela polícia
holandesa — a polícia do meu país! — e enviado para
um campo de concentração. Eu já tinha constatado que
todo o aparelho estatal holandês funcionava sob a
ocupação alemã como se nada tivesse acontecido; os
altos funcionários permanecendo em seus postos e
continuando a produzir leis. Agora, eu percebia que as
leis e as estruturas teoricamente destinadas a proteger
o cidadão podem, em determinadas circunstâncias, se
voltar contra ele. Ou seja, descobri a falsidade do discurso
oficial que, de um lado, pretende ser o Estado necessário
à sobrevivência das pessoas e, de outro lado, o legitima,
revestindo-o da representatividade popular. Descobri
que tinha sido enganado pelo discurso político, da
mesma forma que fora enganado por minha educação
escolástica e induzido ao erro pelo meu meio a propósito
da guerra na Espanha. Um ceticismo profundo tomou
conta de mim, finalmente me impedindo de admitir
qualquer sistema acabado de explicações gerais, que
não pudesse ser verificado.

— Este tipo de filosofia deve ter feito de você um


professor bem diferente do modelo convencional...
— Evoluí neste sentido. Devo dizer que depois de
aceitar, muito espontaneamente como já disse, a
responsabilidade da cátedra de Direito Penal que me
propuseram em 1964, tive um momento de estupor.
Como me posicionar? É bem verdade que, por ocasião
dos encontros do Comitê Europeu para Problemas

114
verve

Criminais, conheci especialistas das ciências criminais


de inúmeros países; eu já tinha uma idéia do que eram
os sistemas penais em diferentes contextos, pelo menos
na Europa, e já tinha alguns contatos com criminólogos
avançados. Estas relações me ajudaram a ultrapassar o
enfoque jurídico dos problemas. Por outro lado, estive
preso durante a ocupação alemã, e a condição de detento
ficou gravada no mais fundo de mim como uma questão
em aberto. Também é certo que aprendi com Van
Bemmelen, meu professor na Universidade, a me
posicionar criticamente em relação aos sistemas
existentes: numa época em que os professores de Direito
Penal geralmente se limitavam a fazer desta disciplina,
estranhamente considerada menor, uma simples
técnica legalista, ele lhe dava um enfoque de criminólogo
e soube fazer com que eu me apaixonasse pelo que
ensinava, a tal ponto que, com meu curso concluído, em
alguns meses tornei-me seu assistente na
Universidade... Mas, tudo isso que me impelia a aceitar
o posto não me dava os conhecimentos específicos para
me transformar num docente, pelo menos na concepção
clássica do cargo que eu ainda adotava. Eu me sentia
muito pobre, muito mal preparado para esta nova tarefa.
Eu não sabia, por exemplo, nada de história do Direito
Penal e não via como me lançar no ensino de um sistema
sem ter uma idéia clara do que o havia precedido, de
suas origens, de sua evolução. Eu também me colocava
a questão da metodologia: para chegar a dar o que eu
acreditava ser um ensino deste nome, seria preciso
repensar todas as categorias. Me vi, assim, mergulhado
na história e na pedagogia... Porém, uma surpresa me
esperava. À medida que eu lia as obras mais importantes
sobre o ensino em geral e sobre o conceito de
humanidade no ensino, ia descobrindo que eu tinha tido
uma visão apriorística totalmente falsa sobre o papel do
professor. Há uma obra de Bloom bastante esclarecedora
sobre os diferentes níveis das atividades cognitivas. No
que concerne ao aspecto cognitivo do ensino, ele distingue

115
1
2002

cinco níveis: nível 1) conheço o texto, posso repeti-lo; nível


2) compreendo o texto; nível 3) posso aplicar os conceitos;
nível 4) analiso; nível 5) posso fazer a síntese. Então, disse
para mim mesmo: se clarifico e organizo, me encontro
neste nível superior de análise e síntese; mas, se dou
tudo pronto para os pobres estudantes, eles ficarão sempre
no nível do ‘conhecer’ ou do ‘compreender’ — o que estou
me dispondo a fazer é totalmente aberrante. Decidi,
assim, não dar aos estudantes as idéias prontas e
acabadas, claras e compreensíveis, que tinham se tornado
as minhas, mas apenas lhes fazer chegar elementos de
reflexão que lhes permitissem encontrar seus próprios
caminhos em situações complexas. Seriam eles que
fariam as análises, procurariam a síntese e tirariam
suas conclusões pessoais sobre os problemas que
evocaríamos...

— Ao tomar posse em sua cátedra na Universidade, você


já era abolicionista?
— Não propriamente. Na realidade, foi na
Universidade que a idéia mesma do abolicionismo
tomou corpo em mim. Percebi que, a não ser por um
acaso excepcional, o sistema penal jamais funciona
como querem os princípios que pretendem legitimá-lo.

— Pois, como professor da Universidade, você teria que


justificá-lo?
— É certo que, em grande parte, a Universidade tem
uma atividade de justificação do sistema estatal. Mas,
ao mesmo tempo, ela favorece uma atividade crítica. A
Universidade me pôs em contato com a pesquisa
empírica e com enfoques outros que não o jurídico. Neste
sentido, foi exatamente ela que me permitiu chegar a
uma nova visão global do sistema penal e afirmar minha
posição abolicionista...
Eu diria ainda que, afinal de contas, se as ciências
sociais me levaram a esta posição foi porque,
praticando-as, descobri que elas não davam o tipo de

116
verve

resposta que eu esperava. Elas me ensinaram que o


‘saber’ científico, em última instância, passa sempre
pelo ‘vivido’, que, em nenhuma hipótese, pode ser
substituído, ao contrário do que eu erroneamente
acreditava. Nesse sentido, foram as ciências sociais
que me revelaram a importância do vivido e, igualmente,
me levaram a pensar que, ao favorecerem uma melhor
compreensão deste mesmo ‘vivido’, podem ter uma feliz
incidência sobre ele. Paralelamente, elas foram, pouco
a pouco me fazendo aparecer diante dos meus olhos o
nonsense do sistema penal, no qual justamente o vivido
quase não tem lugar, nonsense este que algumas
pesquisas empíricas iriam me ajudar mais diretamente
a descobrir.

— Você pôde demonstrar o nonsense do sistema penal?


— Você verá em que medida. No começo do meu curso,
me mantive dentro de uma perspectiva mais ou menos
tradicional, tratando de colocar limites racionais para a
experimentação. Mas, ao mesmo tempo, eu queria dar
espaço para minha visão global do social, da vida, para
as conclusões que eu havia verificado pessoalmente.
Uma pesquisa sobre o modo de sentenciar me deu uma
oportunidade única. A partir desta pesquisa, desenvolvi
um modelo normativo no qual se tratava de
operacionalizar os princípios amplamente aceitos por
juristas e criminólogos, segundo os quais é possível
proferir uma sentença ‘justa’ (proporcionalidade entre a
pena e o delito, subsidiariedade do sistema penal,
informação exata sobre o imputado, etc.). Um dos meus
colaboradores colocou o modelo no computador e, quando
resolvemos trabalhar com ele em cima de problemas
concretos, chegamos a uma experiência assombrosa —
perguntávamos: “em tal caso... e neste outro... qual é a
pena correspondente?” E a máquina sempre respondia:
“nenhuma pena”. Jamais se reuniram todas as condições
para que o tribunal pudesse impor uma pena justa, nos
marcos do sistema! Isto foi em 1970.

117
1
2002

— Não foi no ano em que Denis Chapman publicou, na


Inglaterra, seu famoso ‘estereótipo do delinqüente’? Você foi
influenciado por ele e pelos criminólogos pelos americanos?
— Não, eu ainda não os conhecia. Eu fazia, por conta
própria, experiências de sociologia empírica que começara,
um pouco por toda parte, de maneira independente. Só
mais tarde conheci os trabalhos de Denis e convidei-o a
se juntar a meu grupo de pesquisa sobre
descriminalização do Conselho da Europa... Então, através
daquele estudo em torno do sentencing, percebi ser quase
impossível que uma pena legítima possa sair do sistema
penal, dada a maneira como ele funciona. Saltava aos
olhos que tal sistema opera como base na irracionalidade,
que ele é totalmente aberrante. Neste momento, descobri
ter a solução para uma indagação profunda, que eu me
fazia desde a juventude e que fora deixada sem resposta.
Desde minha adolescência, eu me perguntava, a a
propósito da civilização romana, por que aquelas pessoas
faziam depender suas decisões do vôo dos pássaros, ou do
aspecto das entranhas de aves sacrificadas. Esta
indignação não tinha me abandonado nem mesmo depois
da obtenção do bacharelado. Tratei de esquecê-la, dizendo
que, afinal de contas, os romanos estavam muito longe
de nós. Mas, a dúvida tinha ficado guardada num canto de
mim e reapareceu, por ocasião de uma estada de algumas
semanas em Roma. A imagem que eu tinha construído
da civilização romana retornou ao meu espírito e tive a
sensação de não ter decorrido muito tempo desde os
romanos da antigüidade, de que eles não deviam ser assim
tão diferentes de nós, e de que toda nossa vida, em certa
medida, estava ainda cheia de suas idéias... e também,
um tanto paradoxalmente, tive a sensação de que poderia
ser de outra forma num momento dado, de que o tipo de
civilização na qual vivemos poderia ser detido um dia...
Entretanto, ainda não tinha conseguido responder à
lancinante questão sobre as aves e suas entranhas... Foi
na Universidade, naquele momento de revelação do
nonsense do sistema penal, que encontrei a resposta para

118
verve

a pergunte que me perseguia. Compreendi, de repente,


que o que fazemos com o Direito se parece com que os
romanos faziam com seus pássaros e suas aves. Vi que o
Direito, a teologia moral, a interpretação das entranhas,
a astrologia... no fundo, funcionam da mesma forma. São
sistemas que têm sua lógica própria, uma lógica que não
tem nada a ver coma vida ou com os problemas das pessoas.
Em cada um destes sistemas, dizia eu, fazem-se depender
as respostas de signos que nada têm a ver com as
verdadeiras questões dadas. Para nós, a resposta está no
Direito; para os romanos, estava nas entranhas; para
outros, ela se acha na astrologia, mas o mecanismo é o
mesmo... No meu curso, costumo comparar o pensamento
jurídico ocidental aos flippers, estas máquinas que existem
nos bares e fazem brilhar todos os tipos de luzes... Este
jogo tem sua lógica própria. Naturalmente, se é livre para
dizer: se der 1000, eu me caso; se der 800, aceito aquele
trabalho... podemos tirar na sorte decisões que vamos
tomar, mas não nos enganemos: é preciso que estejamos
bem conscientes de que estamos obedecendo a uma lógica
especial.

— Foi neste exato momento que você disse: é preciso


abolir esse sistema irracional?
— Não houve um momento espetacular em que a
idéia bruscamente brotasse. A necessidade do
abolicionismo foi se impondo gradualmente.
Paralelamente, às minhas experiências empíricas na
Universidade, eu recebia informações de outros
pensadores e pesquisadores que me ajudaram em certos
pontos de partida. Notadamente com a leitura de
algumas obras de história, percebi que, em toda parte,
se manifesta uma espécie de movimento circular de
onde não se sai. Os sistemas se encontram, aqui e
acolá, em diferentes estágios, mas sempre voltam ao
mesmo ponto, e isto ocorre de forma semelhante em
todos os países... São os círculos que se movem... O livro
de Thomas Mathiesen, Politics of abolition, teve um

119
1
2002

grande papel nesta etapa de minhas reflexões, quando


eu já estava totalmente maduro. Há muitas coisas
impressionantes neste livro, escrito de um jeito todo
pessoal... É um pouco como a Bíblia. Também é
inacabado e, para mim, este aspecto conta muito. Eu
tinha também o grande Relatório em quatorze volumes
da Presidential Commission dos Estados Unidos: Challenge
of crime in a free society. Para quem quer compreender o
que é o sistema penal e no que ele está se convertendo,
este informe é luminoso. Entre todos os aspectos
considerados pelas inúmeras pesquisas que compõe
este enorme documento, trazendo uma combinação de
dados sobre o sistema penal sem precedentes, há uma
análise que mostra clarametne como se forma a cadeia
de decisões. Esta leitura também me provocou um
turbilhão. Devo muito ainda a Ortega y Gasset, mesmo
tendo que retroceeder bem longe para reencontrá-lo,
aos tempos de minha juventude. Guardei uma imagem
importante: a de que construímos sistemas abstratos
para nos sentirmos em segurança como civilização e
trabalharmos para aperfeiçoar estes sistemas; mas, os
elaboramos com tantos detalhes e as condições para as
quais foram criados mudam tanto que, com o tempo,
toda esta construção não seve mais para nada. A
distância entre a vida e a construção torna-se tão
grande que esta acaba desmoronando...

— Você está sugerindo que o sistema penal é uma


construção abstrata tão distante da realidade que deverá
desmoronar sozinha? Na realidade, infelizmente, este
sistema não dá nenhum sinal de queda. Dá até mesmo
vontade de dizer: ao contrário! Diante da avalanche de
novas leis, cada vez mais repressivas, que vêm sendo
promulgadas no mundo inteiro, diante de tantas
“Comissões de Revisão do Código Penal” que, um pouco
por toda parte, se prestam a revigorar o sistema, talvez se
devesse, ao contrário, estar pessimista...
— Do ponto de vista pessoal, não sou radicalmente

120
verve

pessimista. Quero dizer que, sem ser de um otimismo


irreal, tenho razões para ter esperanças. Mas, para
apreender estas razões e, ao mesmo tempo, compreender
como pude realizar esta minha travessia para o
abolicionismo, talvez seja preciso que eu trate de
informar o que se passou comigo num nível mais
profundo, sair do campo dos fatos, dos acontecimentos
que marcaram minha vida, para tentar alçar as
experiências interiores. Determinadas circunstâncias
levaram a que eu assumisse responsabilidade neste
campo. Isto foi o que acabamos de ver. Mas, certas
experiências profundas — evidentemente ligadas aos
acontecimentos que teceram a trama da minha vida —
influíram sobre toda minha maneira de pensar. São estas
experiências as fontes ocultas de minha verdadeira
atitude em relação ao sistema penal. Após uma
determinada crise pessoal, atravessada há uns quinze
anos, tomei consciência do fato de que minha explicação
do mundo e a explicação que dou de mim mesmo são
processos paralelos, como duas faces de uma mesma
moeda. Isto deve ser verdadeiro para cada um de nós —
o acesso a nossas próprias angústias e a nossos próprios
desejos influi sobre nossa compreensão do mundo e vice-
versa: utilizarmos o que aprendemos do exterior para a
decodificação das experiências interiores.

— Você quer dizer que, para assumir sua posição


abolicionista do sistema penal, você mergulhou no mais
profundo de si mesmo?
— Sim, é isso! A evolução da minha visão de mundo
— e, portanto, do meu olhar sobre o sistema penal — é
necessariamente paralela à minha evolução pessoal
interior.

— Neste caso, teremos que marcar uma segunda


conversa, para partirmos rumo à descoberta das instâncias
mais secretas de sua posição abolicionista.

121
1
2002

abram as prisões dispersem as tropas

A coerção social já teve seus dias. Nada, nem


reconhecimento de uma falta cometida nem
contribuição à defesa nacional, podem forçar um
homem a abrir mão de sua liberdade. A idéia de prisão
e a idéia de quartéis são lugares — comuns hoje: estas
monstruosidades não chocam mais. A infâmia repousa
na calma daqueles que contornaram a dificuldade por
diversas abdicações físicas e morais (honestidade,
doenças, patriotismo).
Uma vez que a consciência tenha se recuperado do
abuso que compõe parte da existência destas masmorras
— a outra parte sendo a degradação, a diminuição que
elas engendram naqueles que delas escapam, assim
como os lá aprisionados; e existem, ao que parece, alguns
loucos que preferem a cela ou a caserna — uma vez que
essa consciência é finalmente recuperada, nenhuma
discussão pode ser reconhecida, nenhuma retratação.
Nunca foi tão grande a oportunidade de resgatá-la,
portanto não fale em oportunidade. Deixe os assassinos
começarem, se quiser; a paz prepara para a guerra, tais

122
verve

propostas escondem somente os mais profundos medos


ou os desejos mais hipócritas. Não nos deixe ter medo
de perceber que estamos esperando, que estamos
convidando à catástrofe. Catástrofe? Esta seria a perma-
nência de um mundo onde o homem tem direitos sobre
o homem. A sagrada união diante de facas e
metralhadoras. Como este argumento desqualificado
pode ainda ser usado? Envie os soldados e os réus de
volta aos campos de batalha. Liberdade? Não há liberdade
para os inimigos da liberdade. Não seremos cúmplices
dos carcereiros.
O Parlamento vota por uma anistia mutilada; a classe
que se forma na próxima primavera partirá; na
Inglaterra uma cidade inteira tem sido impotente para
salvar um homem; soube-se, sem grande surpresa, que
nos Estados Unidos a execução de vários condenados
foi adiada para depois do Natal porque eles tinham boas
vozes. E agora que já cantaram, podem muito bem
morrer, pela cerimônia. Nas guaritas, nas cadeiras
elétricas, a espera mortal; você os deixará perecer?

abram as prisões dispersem as tropas

In La Revólution Surrealiste, número 2, janeiro 1925. Tradução de Andre


Degenszajn e Ana Cernov, pesquisadores do Nu-Sol.

123
1
2002

a escola pública numa perspectiva


anarquista1

sílvio gallo *

Instrução Pública e suas relações com o Estado

A história da educação mostra-nos que, de modo geral,


a instrução quase sempre foi, em maior ou menor grau,
um assunto mais próximo da sociedade que do Estado
— salvo, talvez, nas burocracias orientais analisadas
por Weber. A educação foi, durante a maior parte da
história, um assunto do âmbito privado, e não do público.
A ingerência do Estado nas questões de educação
começa a ganhar vulto a partir do século dezoito, conco-
mitante com a idéia do desenvolvimento de sistemas
nacionais de educação, ligados aos processos político-
sociais de consolidação dos Estados nacionais europeus,
instâncias que culminariam com o sistema de instrução
pública instalado com a Revolução Francesa e que se
estenderia depois pelo mundo.

*
Doutor em Filosofia da Educação, Professor Assistente-Doutor no Depto. de
Filosofia e História da Educação da FE-Unicamp e Professor Titular da
Faculdade de Filosofia, História e Letras da Unimep, da qual é o atual diretor.

124
verve

As raízes da educação pública encontram-se, porém,


alguns séculos antes. Numa obra clássica sobre o tema,
“História da Educação Pública”, Lorenzo Luzuriaga
aponta quatro diferentes perfis dela que se sucedem
historicamente: a educação pública religiosa, a estatal,
a nacional e a democrática.
Enquanto a primeira, que vicejou entre os séculos
dezesseis e dezessete tendo por base a Reforma Protes-
tante, tinha como objetivo explicito a formação do bom
cristão através da disseminação da alfabetização para
a leitura da Bíblia na língua nativa — apresentando já,
portanto, um caráter nacionalista —, a segunda, que
floresceu durante o século dezoito baseada nos ideais
do Iluminismo visava à formação do súdito, tanto o
militar quanto o funcionário; marcada que era pelo
despotismo esclarecido, constituía-se numa educação
autoritária, de caráter disciplinar, mas também
intelectual.
A grande virada que marca a gênese da instrução
pública que nos interessa mais de perto acontece,
segundo esse autor, ainda no século dezoito,
estendendo-se também pelo seguinte; a Revolução
Francesa é a grande desencadeadora do terceiro tipo de
educação pública, a nacional, que tem por objetivo a
formação do cidadão, constituindo-se numa instrução
cívica e patriótica do indivíduo, com um caráter popular,
elementar e primário. O quarto e último tipo, a educação
pública democrática é, ainda de acordo com Luzuriaga,
o desenvolvimento natural da anterior, marcada pelo
crescimento da participação popular nas tomadas de
decisão, processo que se estende do século dezenove ao
vinte. Esse quarto e último tipo de educação pública
teria por meta a formação do homem completo,
independentemente de sua posição econômica;
apresenta um caráter humanizador e aculturador,
procurando levar um maior nível ao maior número de
homens possível.
Através desse brevíssimo esboço, podemos perceber

125
1
2002

que a origem da instrução pública repousa no


movimento de Reforma Protestante, tendo em Martinho
Lutero um dos seus principais expoentes. Ainda que
religiosa — a escola como lugar da “guerra contra o
demônio” — a educação pública preconizada por Lutero
já mostra preocupações sociais, como a necessidade de
instrução para a provisão de determinados profissionais
que não podem ser formados na mais completa
ignorância. Obviamente, essa escola mantém fortes
interesses classistas, pois não seriam os mais humil-
des homens do povo que tornar-se-iam jurisconsultos,
médicos, professores, párocos... A eles bastaria os
rudimentos da leitura para o contato purificador e
pacificador com as escrituras.
Esse perfil classista e pouco democrático da educação
pública incipiente perdura por um bom tempo. Na
Alemanha, por exemplo, em fins do século dezessete, o
sistema de ensino previa três níveis de escolas:
a. escolas primárias: de caráter estritamente
religioso, eram destinadas ao povo em geral e as aulas
eram ministradas em alemão;
b. escolas latinas (ou secundárias): de caráter
humanista, eram destinadas aos burgueses, com aulas
em latim;
c. escolas superiores (universidades): de caráter
profissional e eclesiástico, baseadas na religião
reformada.
Essa necessidade de uma educação que abrangesse
a totalidade da população, obedecendo, porém, às
especificidades de cada classe social foi defendida
também por aquele que foi, quiçá, o maior teórico da
educação no período, o morávio Jan Amós Comenius.
Com o processo de secularização do Estado e formação
dos Estados-nações europeus, a educação pública
religiosa ganha cada vez mais os contornos de uma
educação estatal; como o Estado começa a regulamentar
e a exigir a presença das crianças — e mesmo adultos
— nas escolas, começa também a delinear o aparelho

126
verve

educativo de acordo com seus interesses próprios.


A influência do Estado na educação cresce
principalmente na Alemanha, de certo modo ainda sob
influência de Lutero e de suas escolas dominicais, esse
profundo esforço de alfabetização popular para acelerar
sua conversão, ainda que se distanciando sensivel-
mente do projeto pedagógico-religioso do monge
protestante. Sob o reinado de dois Fredericos, os Kaisers
Frederico Guilherme I e Frederico Guilherme II,
implementa-se um sistema estatal de ensino, com
vistas à formação de competentes soldados e bons
súditos, que seriam os pilares de um Estado prussiano
forte e engrandecido. Esse sistema germânico já
preconizava a laicização da escola, paralelamente a sua
obrigatoriedade: “todo pai tem o dever de mandar seu
filho à escola”.
Se o primeiro Frederico aproveita-se da estrutura
das escolas religiosas, reformando-as a seu modo através
de sucessivas leis de ensino, seu sucessor, Frederico
Guilherme II, vai promover a total secularização da
escola, tornando-a plenamente estatal, embora não
abandone o ensino de religião, agora porém submetido
aos interesses do Estado.
Também, em França, cuja educação estava
principalmente em mãos de congregações religiosas,
dos jesuítas em especial, a educação estatal começa a
ser alvo de significativos esforços governamentais,
ainda no século dezoito, impulsionada pelos ideais
iluministas, pleiteada por pensadores de vulto, como
Voltaire ou Diderot, por exemplo.
Paralelamente à implementação de um sistema
estatal de ensino que tornasse a educação parte da
esfera pública e não apenas da privada, mas afastando-
se dos interesses unicamente religiosos, desenvolvia-
se a discussão em torno da necessidade de desenvolver-
se um ensino nacional, que tivesse por finalidade gerar
na população o sentimento do civismo e do patriotismo,
possibilitando a consolidação do Estado-nação através

127
1
2002

de laços mais fortes que os estritamente políticos.


Também essa discussão é fomentada e alimentada pelos
filósofos iluministas; mas mesmo Rousseau, um
outsider do Iluminismo, mostrando o caráter da época,
anuncia, em suas “Considerações Sobre o Governo da
Polônia” que só um povo livre pode ter uma educação
nacional, ao mesmo tempo em que é ela própria quem
garante a liberdade deste povo.
A conjunção desses dois processos — progressiva
ingerência do Estado nas questões de educação e
constituição de uma educação cívica que desenvolvesse
o senso de nacionalidade — é a grande responsável pelos
primitivos delineamentos do sistema de ensino público
que perdura até nossos dias. Sua gênese dá-se em fins
do século dezoito, com a Revolução Francesa; nesse
momento histórico e político, a educação estatal do
despotismo esclarecido iluminista baseado na formação
do bom súdito do Estado perde a razão de ser, tomando
seu lugar a necessidade de preparar, através da
instrução pública, o cidadão, aquele que deve participar
ativamente da vida de sua nação. Se a educação pública
estatal nascia como resultado do processo de
secularização do Estado, essa nova modalidade aparece
como resultado de sua progressiva democratização.
Não podemos imaginar, entretanto, que esse
processo é mecânico e simples; ao contrário, é resultado
de tumultuadas discussões e reivindicações que
permearam os diversos momentos políticos da Revolução
Francesa. Estão já presentes como queixas populares
(do Terceiro Estado) nos “Cahiers de Doléances” os
registros das queixas dirigidas aos Estados Gerais. Como
mostra Antoine Léon, muitas reclamações eram
dirigidas contra a instrução eminentemente religiosa
oferecida aos camponeses, embora alguns dos redatores
julgassem oportuna essa situação, pois “a ignorância
dessa ordem baixa é não somente útil, como necessária,
para preencher e prover a todos as necessidades da
sociedade...” 2

128
verve

Esses “Cahiers” são extremamente heterogêneos,


por um lado devido às diferenças regionais e, por outro,
devido à própria constituição do Terceiro Estado,
composto por toda a sociedade francesa com exceção da
nobreza e do clero: dos burgueses alijados dos direitos
políticos aos despossuídos de toda ordem. Assim, são
múltiplas as queixas e muitas as exigências, das mais
diversas ordens. Durante o processo da Revolução, essas
questões vão ser exaustivamente examinadas e traba-
lhadas, com as discussões sendo embaladas de acordo
com o momento político; muitas posições são assumidas
e abandonadas, no processo de criação de um sistema
estatal e nacional de ensino que se coloque de acordo
com os preceitos da “Declaração Universal dos Direitos
do Homem e do Cidadão”, adotada pela Assembléia
Constituinte em 26 de agosto de 1789.
Na Assembléia Constituinte, Mirabeau e Talleyrand
foram as figuras que mais se destacaram em matéria
de educação; o segundo chegou a redigir um “Relatório
e Projeto de Decreto”, que apresentou à Assembléia em
1791 e onde sistematiza suas idéias sobre a educação
e como a Revolução deve caminhar nesse aspecto
específico. Segundo ele, a nova Constituição — que
institui uma nova sociedade — exige um novo sistema
de educação, uma educação que seja a garantia da
liberdade, pois “os homens declaram-se livres; não se
sabe, porém, que a instrução amplia sem cessar a esfera
da liberdade civil, e só ela pode sustentar a liberdade
política contra todas as espécies de despotismo?”3 A
educação é, ainda, vista como a possibilidade da
igualdade de fato.
Se o relatório de Talleyrand toca em pontos impor-
tantes para a consolidação da instrução pública, como
sua necessária universalidade nos mais diversos
aspectos, a garantia da liberdade e da igualdade etc.,
deixa de tocar em um ponto fundamental, a
obrigatoriedade deste ensino. Dada a intransigente
defesa da liberdade, a obrigatoriedade do ensino também

129
1
2002

não estaria presente no próximo relatório sobre a


educação, desta vez apresentado por Condorcet, em
1792, já a uma nova instância da Revolução, a
Assembléia Legislativa.
Condorcet inicia seu relatório definindo já o caráter
da educação revolucionária: sua publicização, sua
universalidade, sua capacidade de promover a
igualdade. Mesmo não impondo a obrigatoriedade do
ensino, Condorcet está preocupado com sua abran-
gência, e procura instituir a gratuidade, pelo menos em
alguns níveis, como forma de fomentar a maior
assiduidade possível do maior número de cidadãos; se a
Constituição já previa a gratuidade do primeiro dos
quatro níveis da instrução, propõe ele que essa
gratuidade seja estendida para todos os níveis, como
forma de, ao garantir o desenvolvimento das habilidades
dos mais pobres, possibilitar à nação uma maior
prosperidade.
Sem nos aprofundarmos nos meandros político-
sociais deste processo de construção do sistema público
de ensino em França, é importante ressaltar que, se a
Revolução Francesa não chega propriamente a instalar
um sistema público de ensino em sua completude,
fornece as bases políticas e sociais, teóricas e práticas
para que ele se consolide ao longo do século dezenove
em toda a Europa. Na perspectiva de Luzuriaga, é esse
sistema de ensino nacional que evolui para o atual
sistema de instrução pública que conhecemos no século
vinte e ao qual ele denomina democrático, por contem-
plar, além de todas as características já citadas, a
gratuidade, o que possibilita sua extensão a todas as
camadas da população, independente de suas rendas
específicas.
Esses tópicos representam a base do projeto liberal
de educação, com seus principais cânones, a defesa da
educação como meio de ascensão social e fonte de
igualdade, motor do progresso individual e da
humanidade e base do civismo. Além disso, tanto o

130
verve

relatório Talleyrand quanto o de Condorcet defendiam


a universalidade do ensino, embora o primeiro falasse
nela referindo-se ao conteúdo da instrução e o segundo,
pensando em sua clientela. Nesta perspectiva, é de
extrema importância que percebamos os objetivos
implícitos da publicização do ensino. O próprio
Condorcet, ao mesmo tempo em que propunha a
gratuidade em todos os níveis da instrução, estabelecia
também seu estrito controle pelo Estado, em dois níveis:
primeiro, fazendo a seleção, contratação e alocação dos
professores e, segundo, indicando os livros e materiais
pedagógicos a serem utilizados. Se isso visa a garantir
a universalidade e uniformidade do ensino em toda a
nação, tem também o caráter implícito do controle
ideológico: o Estado não abre mão de escolher e
determinar quem vai trabalhar, onde vai trabalhar, com
o que vai trabalhar e como vai realizar esse trabalho.

Considerações sobre a relação Estado e Educação


no Brasil

As relações do Estado com a educação no Brasil são


por vezes obscuras e freqüentemente ambíguas. Sem
dúvida, a principal questão que perpassa essas relações
é a da publicização ou privatização do ensino, que hoje
encontra eco nas propostas que se auto-intitulam
“neoliberais” e advogam a desestatização das escolas,
abrindo-as plenamente à iniciativa privada.
As contradições deste neoliberalismo são apontadas
e suas considerações desmontadas, tanto pelo aspecto
teórico quanto pelo prático, na exposição que Demerval
Saviani realizou durante a 6ª Conferência Brasileira
de Educação, intitulada “Neoliberalismo ou pós-
liberalismo? Educação pública, crise do Estado e
democracia na América Latina”. Após demonstrar que,
tanto histórica quanto conceitualmente, a educação
pública é a regra geral do liberalismo, considerando-se

131
1
2002

que o Estado deve ser o seu organizador e o seu gestor,


o educador conclui que, longe de ser neoliberal e
moderna, essas posições hoje apregoadas melhor se
caracterizariam pelos epítetos “pós-liberal” e “pós-
moderna”, com toda a carga de ambigüidades e
dissolução conceitual que eles acarretam.
Essa discussão entre nós não é, entretanto, nova.
Ela permeia toda a história da educação no Brasil, da
colônia até nossos dias. Para situá-lo brevemente na
tentativa de sua compreensão, tomaremos alguns
momentos básicos onde ela aparece de forma mais
explícita.
O primeiro momento que nos chama a atenção é,
ainda durante o período colonial, aquele das reformas
pombalinas, aguçando as rivalidades entre o Estado
português e a Igreja, particularmente os jesuítas, na
segunda metade do século dezoito.
Sabemos da importância dos jesuítas para o
estabelecimento de um sistema de educação no Brasil.
Chegados ao país meio século após seu descobrimento e
uma década após a fundação de sua Companhia de Jesus,
esses padres tinham a função original de converter os
índios, levando a eles a fé cristã. Entretanto, a vocação
jesuítica para a educação que se cristalizaria
teoricamente no famoso “Ratio atque Instituto Studiorum
Societas Jesu”, promulgado definitivamente em 1599 e
na prática nas escolas de todos os níveis que estavam
criando em várias partes do mundo, fez com que eles se
dedicassem, também no Brasil, à educação em geral e
não apenas à catequização dos índios.
O primeiro colégio jesuíta no Brasil foi fundado ainda
em 1550, apenas um ano após sua chegada, na então
sede do governo, a capitania da Bahia. A este, vários se
seguiram, oferecendo cursos dos níveis mais
elementares até o superior, com o ensino de Artes,
Humanidades e Teologia, principalmente. Com a
consolidação destas escolas, os jesuítas começaram a
reivindicar a extensão dos privilégios das escolas da

132
verve

metrópole para as da colônia. Nos sucessivos debates que


se seguiram na busca do reconhecimento destes cursos,
uma questão foi importante para a delimitação dos limites
do público e do privado na educação brasileira, aquela
que ficou conhecida historicamente como a “questão dos
moços pardos”, posto que esses se viram impedidos de
estudar no Colégio da Bahia.
Vencidas essas dificuldades, as escolas jesuítas
floresceram e, sem exagero, dominaram plenamente a
educação colonial até a segunda metade do século dezoito,
quando principia o assim chamado período pombalino,
dada a ação política do Marquês de Pombal em Portugal,
que teve na expulsão da Companhia de Jesus uma de
suas ações centrais. São conhecidos os motivos e os atos
de Pombal em sua tentativa de modernização e
industrialização de Portugal; deter-nos-emos aqui apenas
nos efeitos da expulsão dos jesuítas para o sistema de
ensino brasileiro.
A saída dos jesuítas da colônia significaria a completa
desarticulação do sistema educacional escolar; sem
jesuítas, não haveria escolas no Brasil. O Estado
metropolitano, aberto que estava para a modernidade
européia, incorpora partes de discursos sobre a ação do
Estado na educação e resolve ocupar o vácuo que seria
deixado com a saída dos jesuítas, pelo menos no que diz
respeito ao controle e gestão administrativa do sistema
escolar.
Tal ação do Estado dá-se, primordialmente, através
do “Alvará Régio de 28 de junho de 1759, em que se
extinguem todas as Escolas reguladas pelo método dos
jesuítas e se estabelece um novo regime. Diretor dos
Estudos, Professores de Gramática Latina, de Grego e
Retórica”. Esse documento oficial, ao decretar fechadas
todas as escolas jesuíticas no território colonial, faz uma
dura crítica ao método do “Ratio Studiorum”. Feitas as
críticas e extintas as escolas, cabe à Coroa que instale
um novo sistema de ensino, e é exatamente essa a linha
pela qual segue o mesmo “Alvará Régio”.

133
1
2002

Com uma ação intensiva, o Estado português assume


definitivamente o controle da educação colonial. A
criação da figura do “Diretor dos Estudos” deixa bem
clara, no mesmo “Alvará”, a intenção da Coroa de
uniformizar a educação na Colônia e fiscalizar a ação
dos professores — desde já por ela nomeados — do
material didático por eles utilizado — também
devidamente “recomendado” no mesmo documento —
de modo a que não houvesse choque de interesses —
isto é, que não houvesse nenhum outro poder, como
era o dos jesuítas, a afrontar as determinações da Coroa.
Foi de quase trinta anos o tempo de que o Estado
português necessitou para assumir o controle
pedagógico da educação a ser oferecida em terras
brasileiras; da completa expulsão dos jesuítas e do
desmantelamento sistemático de seu aparelho
educacional, dos métodos aos materiais didáticos, até
a nomeação de um Diretor Geral dos Estudos que
deveria, em nome do Rei, nomear professores e fiscalizar
sua ação. A educação no Brasil passa a ser uma questão
de Estado. Desnecessário frisar que este sistema de
ensino cuidado pelo Estado servia a uns poucos, em sua
imensa maioria, filhos das incipientes elites coloniais.
Um segundo momento importante para a
compreensão das relações Estado versus Educação no
Brasil é novamente um período de rupturas políticas e
sócio-culturais. Após o grande impacto das reformas
pombalinas, é quando o Brasil declara sua indepen-
dência política de Portugal que a educação novamente
é lançada para a linha de frente das discussões.
Tratava-se agora da necessidade da formação de quadros
administrativos, da constituição de uma nova elite
burocrática que substituísse a administração lusitana.
Tal preocupação do agora estado imperial brasileiro
acabaria por consolidar como sua principal realização
a Academia de Direito do Largo de São Francisco, após
intensos debates parlamentares que delinearam os
contornos do projeto. O Estado, obviamente, tomou as

134
verve

devidas precauções para o controle do ensino oferecido


pela Academia.
Luís Antônio Cunha aponta que nesse período, em
que pese o processo largamente difundido a nível
mundial de publicização e secularização do ensino, no
Brasil a educação prosseguia sob influência da religião,
dada a aliança constitucional da Igreja Católica com o
Estado. A linha geral era a da regulamentação do ensino
estatal, deixando o aparelho particular — que com a
saída dos jesuítas perdeu quase a totalidade de sua
importância — funcionando por sua própria conta e
ordem. O ensino estatal, por sua vez, estava dividido
em duas esferas: a nacional e a provincial. A nacional
era responsável pelos níveis primário e secundário, na
corte, e pelo nível superior em todo o país; já a provincial
respondia pelos níveis primário e secundário nas
províncias.
Vemos, assim, que o ensino estatal brasileiro ficava
circunscrito quase que apenas ao ensino superior,
embora sua influência se estendesse aos demais níveis,
dada a necessidade de seleção para o ingresso em sua
escolas. Tal fato gerou diversos manifestos e movi-
mentos em nome da liberdade de ensino, no qual os
representante das escolas particulares reivindicavam
a não regulamentação pelo Estado, discussão que
arrastou-se sem maiores conseqüências práticas por
longo tempo. Deste modo, a educação estatal continuava
atendendo a uma minoria, ainda bastante longe dos
ideais de publicização, gratuidade e obrigatoriedade do
ensino básico que já grassavam pela Europa.
A preocupação com a publicização do ensino básico
vai disseminar-se em um terceiro momento, o do
advento da república. Embalado que foi pelos ventos de
“modernidade” europeus, de cunho eminentemente
positivista, o ideário republicano incorporou a defesa
do ensino básico como responsabilidade do Estado.
Certamente mais por ver no Estado o promotor
necessário da ordem social que seria o único caminho

135
1
2002

para o progresso do que por julgar que fosse esse um


direito básico do cidadão; republicanos liberais e
esclarecidos, entretanto, como foi o caso de Caetano de
Campos que exerceu importante ação na educação
pública em São Paulo. defendia o caráter humanitário
e cívico da educação pública, afilado com os debates que
já um século antes animaram as Assembléias durante
a Revolução Francesa.
A aplicação do ideário liberal-positivista dos republi-
canos brasileiros passava por uma sólida ação do Estado
no campo educacional; entretanto, seria um contra-
senso inibir ou proibir a ação de particulares na educa-
ção. A ação do Estado justificava-se, porém, dada a
insuficiência dos esforços privados para suprir toda a
demanda por escolas da população. O Estado deveria
reservar-se, por outro lado, o direito de fiscalização sobre
as escolas, para garantir uma ação didático-pedagógica
eficaz, tanto nas escolas sob a tutela quanto nas escolas
mantidas pela iniciativa privada.
Não podemos imaginar, porém, que esse período que
acabaria sendo caracterizado pelos historiadores da
educação como o de “entusiasmo pela educação” foi
marcado apenas e tão somente por uma efetiva e direta
ação do Estado na educação, o que essa ação se deu de
modo “desinteressado” e sem pressões populares. Por
trás do “entusiasmo” republicano, embalado pelo
positivismo e pelos ideais da burguesia esclarecida
européia que viam na educação o caminho da civilidade
e da cidadania, estavam as pressões e reivindicações
populares, que apareceriam cristalizadas nos discursos
e publicações do incipiente movimento operário
brasileiro, fruto dos primeiros esforços de industriali-
zação do país.
Fundamentais para esse processo e exemplos
sintomáticos das reações populares mais esclarecidas
à ação governamental no âmbito educacional fora as
ações dos socialistas na virada do século e dos
comunistas a partir da década de vinte; o hiato de duas

136
verve

décadas foi preenchido por uma ação hegemonicamente


anarquista no movimento operário brasileiro que, como
temos visto, pauta-se por um afastamento tático e
metodológico do Estado, inclusive na questão educacional.
Os socialistas parecem partilhar com os liberais
positivistas seu “entusiasmo pela educação”; os motivos,
porém, são outros. Se os primeiros vêem na educação o
caminho da construção da cidadania, da participação
política numa sociedade liberal que é marcada pela
diferença de classes, embora a “igualdade de
oportunidades” seja tomada por princípio, os outros a
têm como um veículo necessário para a tomada de
consciência destas diferenças sociais e a conseqüente
opção por sua transformação. Enquanto os liberais
querem com a educação preparar pessoas que possam
bem servir à comunidade e tomam o Estado como seu
necessário organizador e controlador, os socialistas
exigem do Estado que o dinheiro arrecadado com os
impostos seja revertido em benefícios básicos para a
população em geral, especialmente para os menos
favorecidos, sendo a educação um desses benefícios.
O que fazem os socialistas é levar ao extremo a
concepção de Estado dos liberais, cobrando sua coerência
e consistência. Se o Estado tem a função de administrar
com justiça os esforços sociais, garantindo a igualdade
de oportunidades e a liberdade de ação, deve
necessariamente garantir a educação pública, laica e
gratuita para todos e não para alguns privilegiados
apenas. Este é o mote do discurso socialista, que aparece
em diversos artigos publicados na imprensa operária.
A reivindicação da educação pública básica, não
apenas para as crianças, mas também para os
trabalhadores desejosos de instrução, aparece primeira-
mente como uma tentativa de minorar a situação de
miséria e penúria da classe operária, o que é exigir
nada mais nada menos do que a efetiva ação do Estado
liberal republicano no cumprimento dos seus princípios.
Num segundo momento, porém, o caráter

137
1
2002

eminentemente político e contestatório da reivindicação


educacional socialista fica claro, mostrando a
extremização dos princípios liberais, que levariam à
dissolução mesma desta sociedade.
A hegemonia anarquista no movimento operário
brasileiro durante as duas primeiras décadas deste
século, se significou um importante avanço para a
instrução da classe trabalhadora significou, também,
um retrocesso nas reivindicações operárias e populares
por um ensino público a cargo do Estado. Tais
reivindicações voltariam a ganhar força no cenário
político na década de vinte, após a fundação do PCB em
1922; partindo da divulgação dos avanços da educação
na União Soviética e de seus novos métodos de ensino
popular, os comunistas chegaram à formulação de uma
política nacional de educação.
O processo de implantação sistemática da escola
pública no Brasil aparece então como resultado de
reivindicações oposicionistas e ações situacionistas
que, partindo de pressupostos e objetivos díspares,
concordam com a necessidade de consolidação de um
aparelho estatal de ensino. Tal processo não é simples
nem tampouco homogêneo; as ações do Estado flutuam
ao sabor do momento político. Em momentos de ditadura,
como as do Estado Novo e a mais recente, do Regime
Militar, vemos ações incisivas do Estado no sentido de
reformar a educação para possibilitar um controle maior
e mais profícuo; em outros momentos, governos de
orientação um pouco mais progressista agem no sentido
de buscar uma maior democratização do ensino, o que
nem sempre surte os efeitos desejados.
No período mais recente de nossa história, as contra-
dições ganham vulto: se do processo de democratização
da sociedade parece aos poucos surgir também uma
escola mais democrática, aqueles que fazem plantão
na defesa de um suposto neo-liberalismo advogam uma
ingerência cada vez menor do Estado na educação,
abrindo-a paulatinamente à exploração pela iniciativa

138
verve

privada. Acontece que muitas vezes esses neoliberais,


quase inimigos do Estado, tomam-no de assalto — não
para destruí-lo, realizando o velho sonho anarquista,
mas supostamente des-regulamentar a sociedade,
tornando-a mais livre — e em lugar de desenvolver
políticas públicas no campo da educação cuidam de
desmantelar e sucatar o pouco que existe.
Essa tensão entre o público e o privado na educação
brasileira atravessa toda a república e permanece na
Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, de 1996. Fala-se agora em duas
modalidades de escolas: as públicas e as privadas, sendo
que essas últimas se subdividem em lucrativas e não
lucrativas. As não lucrativas, por sua vez, podem ser
comunitárias ou confessionais.
Essa distinção entre as modalidades das escolas pri-
vadas tem o objetivo claro de permitir a alocação de
recursos públicos para entidades privadas que
trabalhem com a educação. Seria um absurdo que o
Estado injetasse recursos públicos numa iniciativa
privada funcionando no contexto do mercado e apta,
portanto a auferir lucros desta atividade; por outro lado,
se a escola, mesmo sendo gerida pela iniciativa privada
não se coloca o lucro como fim último, mas sim uma
atuação no sentido da promoção do indivíduo e da
sociedade, que mal haveria em ela receber uma
contribuição dos cofres públicos para a realização desta
atividade comunitária ou mesmo filantrópica?
As escolas ditas confessionais, ou seja, ligadas a uma
congregação religiosa, têm o impedimento teórico de
visar ao lucro; outras instituições de caráter
“filantrópico” também não teriam nele sua razão de ser;
é verdade, entretanto, que poucas são as escolas
privadas que não se encaixariam em nenhuma dessas
modalidades constitucionalmente previstas, se nos
afastamos do âmbito da educação infantil pré-escolar,
onde elas dominam, posto que só mais recentemente a
ação do Estado tem se intensificado nesse nível de

139
1
2002

ensino, através das EMEIs — Escolas Municipais de


Educação Infantil.
A ação dos defensores das escolas privadas é bastante
clara: desqualificar o ensino público, impondo aquele
oferecido na iniciativa privada como padrão de qualidade.
Não podemos pensar, entretanto, que esse processo
acontece à revelia do Estado. Nas últimas décadas, temos
assistido a uma ação do Estado na área da educação que,
veladamente e sem grandes alardes, tem pactuado com
o sucateamento do sistema público de ensino e aberto
espaços para a atuação da iniciativa privada. Com esse
processo o Estado exime-se cada vez mais de suas respon-
sabilidades com a educação, embora ela seja uma figura
constitucional. A reflexão parece ser a seguinte: se temos
um ensino privado de uma qualidade tal que a iniciativa
pública — burocratizada e ineficiente — não tem mesmo
como acompanhar, por que não oficializar a educação
como esfera primordialmente privada?
As conseqüências destas ações, sejam do Estado,
sejam de grupos privatistas por ele toleradas — e até
estimuladas, em alguns casos — sentimos até hoje,
estejam elas ainda em vigor ou não. É verdade que com
a redemocratização do país a partir dos anos oitenta
temos visto diversas administrações municipais e
estaduais progressistas comprometidas com a qualidade
do ensino público; os resultados eficazes destas
administrações, entretanto, não se têm feito sentir com
a intensidade desejada.
Os administradores e educadores progressistas
nessa incipiente democracia acabam por ser vítimas
do mesmo instrumento que os leva ao poder e possibilita
sua ação: o voto. Uma ação séria no campo da educação,
traduzida na melhoria dos salários e condição de
trabalho dos professores e na melhoria das condições e
qualidade de ensino não são sentidas senão a médio e
longo prazo; não trazem, pois resultados imediatos ao
nível de votos numa próxima eleição. Já a construção
de prédios — lembremos dos CIEPs e dos CIACs — se

140
verve

não traz efetivas contribuições para a melhoria da


qualidade do ensino, é muito mais visível para os
eleitores e portanto fonte mais segura de votos.
A questão das relações do Estado com a educação no
Brasil está, pois, muito longe de encontrar uma solução.

Por uma educação pública não estatal

Quando falamos em educação pública, pensamos, de


forma quase que imediata, em educação fornecida pelo
Estado, como se entre as duas expressões houvesse um
laço, invisível e indissolúvel; mas será que
conceitualmente podemos reduzir a educação pública
apenas àquela fornecida pelo Estado?
Num movimento que ganhou mais ênfase durante
as discussões que nortearam a redação da Constituição
Federal promulgada em 1988 e que se agitou novamente
em torno das discussões sobre a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, aprovada em dezembro de
1996, alguns grupos — bastante heterogêneos em sua
composição — defenderam e têm defendido através de
seus poderosos lobbies que a educação pública não pode
ser resumida à educação estatal, mas englobaria ainda
outras modalidades de ensino. Um exemplo típico seria
a parcela das escolas confessionais que defendem para
si próprias o epíteto de escolas comunitárias, por
pautarem-se em reais interesses sociais — calcados
na chamada “opção preferencial pelos pobres” da Igreja
Latino-americana — e não em meros interesses finan-
ceiros e empresariais, como as escolas privadas propria-
mente ditas.
À parte dos verdadeiros e honestos interesses sociais
destas escolas, que em alguns dos casos realmente
existem, não podemos deixar de explicitar que por trás
desta simpática autodenominação passa, sorratei-
ramente, o interesse de conseguir acesso às verbas que
o poder público destina à educação que, se não são no

141
1
2002

montante que seria minimamente desejável para suprir


nossas necessidades, também estão muito longe de
serem desprezíveis. Assim, as ditas escolas
comunitárias também receberiam verbas estatais que,
a princípio, deveriam ser encaminhadas apenas e tão
somente àquelas escolas cuja manutenção e gerência
é função direta do Estado.
Para a questão que é de nosso interesse e deixando
de lado o juízo ético-político sobre essas escolas
comunitárias, essa sua ação (ou seu discurso, pelo
menos) é importante e profícua, pois coloca em xeque a
exclusividade do Estado em oferecer uma educação que
seja pública, isto é, voltada para todos e para os
interesses comuns. Se outros grupos sociais e/ou
instituições também podem desenvolver um processo
educacional público, será mesmo necessária essa
onipresente e onipotente mediação do Estado?
Hoje vemos a educação, antes de tudo, como uma
função do Estado, assim como a saúde; a iniciativa
particular, no caso da educação, deve funcionar apenas
no nível complementar ou de escolha ideológica dos pais.
Esta escolha é, porém, bastante limitada, pois os
currículos, atividades etc. são todos definidos, regula-
mentados e fiscalizados pelo Estado.4 Mas por que é
precisamente esta a visão socialmente dominante
entre nós?
Se estudamos a questão conceitual do Estado moderno
e a gênese da instrução pública, fica claro que a educação
como função do Estado é um fenômeno histórico, bem
definido e bem caracterizado; podemos precisar como,
quando e por que surgiu, como se desenvolveu, como se
dá o funcionamento dos vínculos com o Estado, a que
interesses ela esteve e está vinculada, quais foram seus
sucessos e seus fracassos e por que eles se deram.
Uma das funções determinantes na gênese histórica
da instrução pública, talvez mesmo a mais importante,
foi a da promoção da nacionalidade. Em um contexto
bem específico da Europa da época, tratava-se de incutir

142
verve

na população um sentimento cívico de nacionalidade que


fortalecesse os laços eminentemente políticos que
possibilitavam a constituição dos Estados nacionais. Uma
população largamente ignorante que pouco ou nada
conseguia enxergar além de sua estreitíssima esfera
social precisava ver crescer em si mesma um senso de
abrangência quase que impensável: camponeses que
nada conheciam além das terras em que trabalhavam e
das poucas pessoas com quem tinham contato, aldeões
que muito raramente conseguiam ultrapassar os limites
da vila precisavam, de repente, conseguir intuir limites
geográfico-territoriais e populacionais muito além de
suas capacidades, para poder abarcar em si o conceito
de nação e o de nacionalidade. A conceituação, porém,
não era o bastante: era preciso criar laços afetivos; o
indivíduo precisaria sentir-se parte integrante da nação
para defendê-la, se preciso até com a própria vida. Sem
dúvida alguma, a criação de laços sociais, profundamente
entranhados nos indivíduos, criaria uma “amarração”
muito mais forte. Podemos aqui traçar uma analogia com
a teoria do poder de La Boétie: quanto mais disseminado
entre os indivíduos o sentido da nacionalidade, mais forte
torna-se a Nação mesma.
Neste contexto, urgia que aqueles indivíduos, em sua
maioria iletrados e ignorantes, desenvolvessem uma
maior capacidade de abstração e conceituação, o que
só seria possível através da instrução, à qual eles só
poderiam ter acesso caso as condições fossem
enormemente facilitadas. A educação pública tinha,
pois, no momento de sua origem, uma função política
específica e importante a cumprir — significava a
manutenção e o crescimento do próprio Estado — além
de, é claro, acalmar os ânimos das massas que
reivindicavam melhores condições sociais de vida.
O processo que acontece tardiamente no Brasil é
análogo a este, embora mudem bastante as especifi-
cidades; a importação das idéias, porém, tanto do lado
dos trabalhadores, cada vez mais influenciados pelo

143
1
2002

crescente fluxo de imigração européia que trazia para cá


as “visões da modernidade”, quanto do lado dos
republicanos que, profundamente embebidos pelo
positivismo europeu, vislumbravam um destino de “ordem
e progresso” onde a educação é peça-chave, garante a
implantação de nosso sistema de instrução pública, muito
embora os interesses do Estado sejam outros.
Voltando ao momento presente, não são poucos os
que afirmam que o país vive hoje uma crise de naciona-
lidade, e que urge que despertemos o sentimento cívico
na população. A campanha ganha a mídia de forma nada
subliminar, mas intensamente: a grande imprensa, o
rádio e a televisão pululam de discursos cívicos e
nacionalistas; não bastando isso, novelas começaram,
nos últimos anos, a tratar o tema e até mesmo o
marketing assume uma feição cívica, com o
nacionalismo sendo usado para vender de sabonetes a
serviços bancários. Numa outra face da moeda,
empresários abandonam seus interesses privados para
assumir, na feição pública, uma imagem de “defensores
da pátria”, de preocupados e comprometidos com a
situação político-social do país.5
Correndo o risco de sermos crucificados pelos
defensores do “pensamento politicamente correto” —
essa outra pérola da modernidade! — cabe aqui que
enfrentemos o problema com a profundidade conceitual
que ele merece. Devemos, pois, colocar a questão:
precisamos realmente desse sentimento de naciona-
lidade? Ou, aprofundando ainda mais: tem algum
sentido para nós o nacionalismo?
Para assegurar a pretendida profundidade da
resposta, faz-se imprescindível que busquemos o apoio
da filosofia da cultura numa obra fundamental de
Gilberto de Mello Kujawski, A Crise do Século XX. Nessa
obra, ele analisa a crise contemporânea como, antes
de tudo, a crise da modernidade, apoiado um pouco mais
em Ortega y Gasset e um pouco menos em Julián
Marías. Nessa análise, ele nos mostra que um dos

144
verve

conceitos cânones da modernidade é exatamente o


conceito de Nação, e orteguianamente demonstra que
as nações não nascem nem da unidade lingüística nem
das fronteiras territoriais comuns mas, ao contrário,
que essas duas características são decorrentes do
próprio ato originário de uma nação: o pacto político.
Esse pacto é um ato cotidiano, refeito e recriado a cada
instante, lançando-se, como utopia, ao futuro. Após
demonstrar que a idéia de nação representa um avanço
astronômico em abstração, se comparada com a polis
grega ou a urbs romana, nas quais, dada a limitação no
tamanho populacional havia um relacionamento face-
a-face entre os indivíduos e, portanto, uma instituição
política mais direta, ele afirma que a nação, ao contrário,
é a constituidora dos indivíduos.
Para manter essa abstração constituinte dos
indivíduos é preciso, porém, que eles a recriem
permanentemente através do pacto; a estabilidade
temporal de uma nação reside na re-criação contínua,
ad infinitum, de sua instabilidade. Daí o fato de a
educação ser de suma importância na construção e
manutenção de um projeto nacional. Não se constrói
uma nação, assim como ela não pode viver, sem o
concurso direto de toda a população, e a educação vai
justamente criar e animar os laços de civismo que
constituirão o orgulho da nacionalidade — algo
puramente artificial e abstrato, portanto.
Assim, se realmente pretendemos fazer deste país
uma nação,6 a educação e a mídia terão importância
capital. Mas é aqui que a filosofia da cultura de Kujawski
vem em nosso apoio: faz sentido a defesa da construção
de um projeto nacional para o Brasil hoje?
O que o filósofo orteguiano vai demonstrar é que a
América Latina em geral e o Brasil em particular
“perderam o bonde da modernidade”; essencialmente,
nós nunca fomos modernos, pois as condições histórico-
culturais de nossa região estiveram sempre muito
distantes das condições européias, o palco por

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1
2002

excelência da modernidade. Deixando de lado a


pluralidade de conceitos que sustentam a modernidade
e atendo-nos apenas a um deles, o de nação, podemos
afirmar, com toda certeza, que os países latino-
americanos jamais se constituíram em nações como
as européias, assim como os Estados Unidos da América
nada mais são do que uma federação de cinqüenta
Estados.7 Mas, hoje, com a crise da contemporaneidade,
a própria nação está em crise; o possível desenvolvi-
mento político das atuais nações deve dar-se no sentido
de uma supranacionalidade, com a diluição do poder dos
Estados-nações.8
Deste modo, a crise da modernidade não é a nossa
crise, assim como a busca de uma nova alternativa
política, mais abrangente, para os Estados-nação não
é, necessariamente a nossa busca. É neste contexto
que levamos uma certa vantagem sobre a Europa: por
não sermos modernos, é muito mais simples para nós
superarmos a crise da modernidade, achar nosso
caminho próprio e particular, como também afirmava,
partindo de um outro referencial, o francês Félix
Guattari, ao explicar que a criatividade européia está
morta, e que a esperança da humanidade hoje reside
na inventividade do assim chamado Terceiro Mundo.9
Podemos, sem dúvida alguma, engajarmo-nos no
projeto de encontrar a modernidade, a despeito do atraso
histórico e da busca que se assemelharia a correr atrás
de um crepúsculo que a cada instante mais e mais
prenuncia o anoitecer, e aí a construção de um projeto
nacional será de extrema importância e a educação
pública terá seu papel cívico a desempenhar, de forma
determinante. Mas qual seria o sentido de buscar uma
fórmula histórica que se “desmancha no ar”, para-
fraseando Marx?
Mas, se mais sabiamente, optarmos por dedicarmo-
nos socialmente a um projeto inovador e transformador
em sua singularidade, teria então sentido o papel que
tradicionalmente se atribui à educação pública? Não

146
verve

deveria ser ela profundamente reformulada, passando


a ser construída comunitariamente, com o trabalho e o
engajamento responsável dos indivíduos, em
consonância com o caminho escolhido que, pensamos,
deveria ser o do desenvolvimento de uma nova vivência
comunitária, que resgatasse para a ação política a
dimensão da ampla participação popular?
Fechada esta contextualização histórico-conceitual,
podemos retomar, agora melhor amparados, o problema
da educação pública como função exclusiva do Estado e
perguntar: se não existem já as bases históricas que
dariam sentido para um amplo sistema de educação
pública estatal, o que leva parcelas tão significati-
vamente esclarecidas e engajadas da população a
reivindicá-la tão intensamente?
Em meio à multiplicidade de sentidos que permeia
toda situação concreta, duas circunstâncias aparecem
como as principais e determinantes a suscitar tal
reivindicação. De um lado, é significativo o fato de a
sociedade estar imersa na ideologia liberal, tão
competentemente trabalhada e distribuída pela
burguesia nos últimos séculos. Essa ideologia liberal
está de tal modo entranhada no imaginário social e na
consciência individual do homem contemporâneo, que
mesmo os críticos do liberalismo acabam por
desenvolver, em última análise, um esquema de
pensamento que é análogo ao do liberalismo; isto é, não
existe um novo paradigma de pensamento, mas
variações positivas e negativas de um mesmo
paradigma. Sartre argutamente afirmou a mesma coisa
em seu Questão de Método, ao definir o marxismo como
a filosofia insuperável de nosso tempo; dizer que
enquanto não forem superadas as condições histórico-
sociais que deram origem ao marxismo não surgirá
uma nova filosofia, é afirmar que o marxismo, apesar
de expor e desmontar a lógica do capital, continua, em
última instância, a desenvolver a mesma lógica.10
A lógica implacável do liberalismo instalou em cada

147
1
2002

um de nós, como corpo social, a idéia de que o Estado é


o provedor da sociedade; sem Ele nada somos, sem Ele,
o grande Senhor Civilizador, somos feito bárbaros em
luta pelo fogo. Assim, acostumamo-nos à cômoda
situação de termos um “indivíduo coletivo”, superior a
nós mas que, no final das contas, é constituído por nós
mesmos, que amavelmente assume por nós as nossas
responsabilidades, como a de educar às nossas crianças.
Não nos debruçaremos aqui sobre os traços
psicanalíticos do ser humano que o levam a fugir de
suas responsabilidades, de resto já bem explorados por
investigadores da psiquê humana como Erich Frömm
ou Wilhelm Reich, por exemplo, ou mesmo por filósofos
como o próprio Sartre anteriormente citado;11 basta-nos
assinalar que, inconscientemente, preferimos deixar
por conta do Estado a tarefa de educar do que tomá-la
para nós, com todas as responsabilidades que isso
significaria.
De outro lado, a segunda circunstância que
anunciávamos diz respeito ao fato de o Estado ter tomado
gosto pela atividade da educação. Sem sombra de dúvida,
o “indivíduo coletivo” que se exprime na abstração do
Estado tomou consciência do poderoso instrumento que
tão inocentemente foi colocado em suas mãos e, não
maquiavelicamente — o que significaria uma ação
consciente na perspectiva valorativa —, mas como
resultado de sua própria lógica interna, de seu modo de
ser, arvora-se em Senhor Civilizador, Pedagogo-Mor das
Massas Incultas que, sozinhas, estariam destinadas a
perecer.
Em outras palavras, experimentamos dois fatos
complementares que se reforçam reciprocamente: os
indivíduos fogem à sua responsabilidade deixando a
educação a cargo do Estado e passando a exigi-la deste;
este, por sua vez, toma gosto pela idéia e não quer mais
abandoná-la, fiscalizando mesmo as atividades
educacionais que se colocam fora de seu raio de ação
ou, pelo menos, tentam construir-se à sua sombra.

148
verve

O fato é que o fenômeno ideológico é muito mais


amplo e, portanto, tem uma importância maior do que
aquela que deixa antever certo reducionismo marxista.
Para além da falsificação do real e da “câmara escura”
que inverte a realidade, a ideologia pode e deve ser
compreendida, em horizontes menos estreitos, como
fenômeno encarnado no cotidiano da existência
concreta. Não estamos negando a importância da
Ideologia Alemã, que é magistral na análise do fato
estrito que ela própria se coloca como objetivo, mas
apenas afirmando que outras análises, como as de Max
Weber ou as de Wilhelm Reich na Psicologia de Massas
do Fascismo, por exemplo, podem nos trazer uma visão
muito mais abrangente do fenômeno. Se escaparmos
de nossa cegueira habitual, conseguindo ao menos
vislumbrar a multiplicidade do real, poderemos
entender a importância que a educação assume para o
Estado, como os anarquistas, dentro de sua relativa
ingenuidade, perceberam e denunciaram já há tanto
tempo.
Se tomamos a ideologia como parte do aparelho
reprodutor do Estado e da estrutura social que ele
gerencia, percebemos que a escola é, ainda hoje, um
poderoso veículo ideológico nas mãos do Estado, embora
esteja cada vez mais perdendo terreno para os meios
de comunicação de massa.12 Como a educação não
acontece apenas no contexto da instituição escolar,
não é nenhum absurdo prever que o Estado cada vez
mais se utilize da mídia, não só como veículo de
informação ideológica, mas também como veículo de
educação ideológica, o que já está implícito em alguns
projetos de ensino à distância desenvolvidos pelo
tecnicismo da década de setenta,13 cujo exemplo mais
próximo hoje provavelmente esteja representado nos
Telecursos e mesmo nas Telesalas. Deixando de lado
os futurismos, hoje a escola ainda é um veículo
importante para levar a amplas camadas da população,
em idades em que são mais facilmente influenciáveis,

149
1
2002

a ideologia que o Estado quer ver disseminada entre a


população.
Alguém poderia objetar que, no caso brasileiro, o
descaso que o Estado vem, há décadas, apresentando
com relação à educação, refutaria essa tese. Entretanto,
esse suposto descaso do Estado é também uma ação
política e ideológica muito clara: oferecer uma educação
de baixa qualidade ou mesmo não oferecer vagas em
quantidade suficiente para atender às necessidades da
população mais carente é deixá-las, cada vez mais, à
mercê de um veículo mais dinâmico na difusão
ideológica e menos crítico, por ser apenas receptivo que,
a cada dia, chega a um maior número de lares, a
televisão. Não caiamos aqui, porém, no discurso demodé
de ver na televisão a “monstra condenada, a fenestra
sinistra”, 14 pois é óbvio também seu conteúdo
positivamente educativo, desde que bem utilizado. O fato
é que o aparente descaso do Estado com a educação
pública pode mascarar um interesse muito grande em
dar ao povo uma ilusão de educação; ainda em meados
do século passado, Proudhon afirmava que a educação
das massas não passava de rudimentos:
“O que querem para o povo não é a instrução; é
simplesmente uma primeira iniciação aos rudimentos
dos conhecimentos humanos, a inteligência dos signos,
uma espécie de sacramento de batismo intelectual,
consistente na comunicação da palavra, da escrita, dos
números e das figuras, mais algumas fórmulas de
religião e de moral. O que lhes importa é que, ao ver
estes seres que o trabalho e a mediocridade do salário
mantêm em uma barbárie forçada, desfigurados pela
fadiga cotidiana, curvados sobre a terra, as naturezas
delicadas que constituem a honra e a glória da
civilização possam constatar, ao menos, nestes
trabalhadores condenados ao penar, o reflexo da alma,
a dignidade da consciência e que, por respeito a eles
mesmos, não precisem envergonhar-se demais pela
humanidade.” 15

150
verve

Além do caráter de disseminação da ideologia,


constituindo-se no aparelho de Estado que garante a
reprodução da produção, poderíamos agregar também à
importância ideológica da escola para o Estado a noção
weberiana de que a escola não é um instrumento de
dominação propriamente dito, mas sim um instrumento
de legitimação da dominação.
Posto que concordemos, pelo menos em parte, com a
importância ideológica da escola para a manutenção
da instituição política do Estado e do sistema social que
ela suscita, seja no aspecto da disseminação dos
conteúdos e formas ideológicas, seja no aspecto da
legitimação mesma da dominação, consideramos como
absolutamente inócuas — para não taxá-las de absurdas
— as discussões que desenvolvem-se no sentido de
exigir socialmente a melhoria da qualidade, a maior
democratização do sistema público de ensino e a sua
atuação para o resgate da cidadania do povo brasileiro.
Passaremos a discuti-las, começando pela última, dado
seu caráter mais globalizante.
A questão da educação como promotora da cidadania
está, também, intimamente ligada à gênese histórica
dos sistemas de instrução pública. Durante a Revolução
Francesa, tratava-se de transformar o súdito, que
apenas obedecia, em cidadão, que teria participação
efetiva nos destinos da nação; para nós, após décadas
vivendo sob regimes políticos que pouco ou nada
respeitavam os direitos individuais e sociais, trata-se,
argumentam seus defensores, de resgatar na população
a consciência de seus direitos e deveres político-sociais.
Mas, como belos discursos podem perfeitamente
mascarar práticas sociais inócuas ou até mesmo
impossíveis, cabe-nos perguntar: a cidadania, essa
“noção ligada aos tempos heróicos”,16 pode, realmente,
ser construída ou mesmo resgatada através da
educação?
Primeiramente, precisamos colocar com muita
clareza o caráter de historicidade do próprio conceito

151
1
2002

de cidadania; uma coisa era ser cidadão numa polis


grega, outra muito diferente era o ser no calor
revolucionário da França de fins do século dezoito,
assim como outra coisa ainda é ser cidadão na
sociedade contemporânea que pretendemos
democrática. Procurando na filosofia política contem-
porânea o sentido da sociedade democrática, Patrice
Canivez conclui que ser cidadão nessa sociedade é ser
um “governante em potencial”.17
Uma educação para a cidadania na sociedade
democrática consistiria, pois, em preparar cada
indivíduo para que seja um possível governante dessa
sociedade; em outras palavras, formar não indivíduos
passivos, mas indivíduos potencialmente ativos, que
podem entrar em ação a qualquer momento, de acordo
com os desenvolvimentos políticos da sociedade. Esta
noção poderia dar sustentação para uma certa visão
“militantista”, que procura fazer da escola um local de
proselitismo político; nada mais errado, na concepção
de Canivez: a escola é o espaço da cultura, e nela a
construção da cidadania deve dar-se neste âmbito.
Baseada em Eric Weil, mostra que a escola não é o lugar
da política, isto é, um espaço de militância, mas é um
lugar essencialmente político, pois é nela que se
assimila toda a base conceitual necessária para a ação
política eficaz. 18
A educação do cidadão deve, pois, circunscrever-se
muito mais ao campo da cultura do que ao da política
propriamente dito, o que em nada diminui o seu caráter
essencialmente político. Para a constituição de uma
sociedade democrática, a educação do cidadão deve
privilegiar o aprendizado e o exercício do diálogo, base
da própria democracia.
A relação da educação com a cidadania só tem
sentido, então, se tomada num aspecto bastante restrito,
delimitado pela historicidade da cidadania que ela vai
promover; assim, não é o mesmo sistema público de
ensino idealizado para produzir a transformação do

152
verve

súdito em cidadão durante a Revolução Francesa que


vai produzir o cidadão ativo de uma sociedade
democrática contemporânea. Dadas as características
desse novo cidadão, seria interesse do Estado financiar
um sistema de ensino que o produzisse? Discutiremos
essa questão quando abordarmos o aspecto da
democratização do ensino público, pois ambas estão
muito intimamente relacionadas.
Passemos à discussão do primeiro aspecto dos três
que havíamos levantado anteriormente, o que diz
respeito à reivindicação da melhoria da qualidade do
ensino oferecido pelo sistema estatal de educação. Já
ficou mais do que claro que o Estado percebe a
necessidade de oferecer às massas uma certa educação;
sem dúvida, não a escola que queremos, mas a escola
que Ele quer, embora na maioria das vezes os
mecanismos de convencimento ideológico dos quais
falamos funcionem perfeitamente, e sejam mais do que
suficientes para garantir que aquilo que nós queremos
— ou pensamos querer — seja exatamente aquilo que
Ele quer.
Assim, a escola pública que temos é a escola pública
que o Estado nos quer financiar, seja ela legitimadora
da dominação, seja ela o mecanismo distribuidor de um
arremedo de educação que mantenha o povo em um
estado de semi-ignorância e apatia político-social,
pareça isso um descaso do Estado com a educação
pública ou não.
A reivindicação de uma educação pública de
qualidade, deste modo, parece encontrar limites muito
estreitos; enquanto ela significar o atendimento de uma
necessidade do Estado liberal de prover o sistema de
produção com profissionais tecnicamente melhor
preparados, pode até encontrar eco nos administradores
da educação estatal e ser atendida, virando mesmo
ponto de pauta dos discursos oficiais. Ir muito além disso,
porém, parece-nos improvável. Uma educação de
qualidade, o que significaria proporcionar aos

153
1
2002

educandos condições para que assimilem não só o


conjunto do legado cultural historicamente produzido
pela humanidade, mas também condições para que se
tornem metodologicamente aptos a produzir eles
mesmos o saber científico, afasta-se demasiado de uma
mera capacitação tecnológica para um sistema de
produção um pouco mais desenvolvido. Ora, não sejamos
ingênuos: uma educação deste tipo choca-se
frontalmente com os interesses estatais, seja de
disseminação ideológica, seja de legitimação da
dominação; tal educação impossibilitaria o objetivo da
dominação ideológica e da manutenção da ordem social
e, mais ainda, seria ela própria uma subversão dessa
ordem, pois colocaria em xeque o sistema de exploração
e distribuição desigual da produção social. Deste modo,
seria paradoxal esperar do Estado uma educação pública
de qualidade, obviamente tomando por princípio que a
distribuição dessa educação fosse justa, alcançando
amplas camadas da sociedade e não apenas uma elite
de privilegiados, preparada para assumir os cargos da
tecnocracia.
Alguns eminentes educadores e filósofos brasileiros
da educação, trabalhando na produção de análises e
concepções dialéticas da educação, têm colocado a
questão da qualidade do ensino; um bom exemplo
estaria no da Pedagogia Histórico-Crítica19, que defende
que a escola pública deve dar instrumentos às classes
desprivilegiadas para que possam enfrentar a
burguesia em pé de igualdade no processo da luta de
classes. E este instrumental de luta estaria
representado justamente no acesso a um ensino de
qualidade, como o que vimos discutindo. Como
concepção pedagógica que se propõe pensar dialeti-
camente a educação e a ação transformadora em seu
contexto, a Pedagogia Histórico-Crítica é bastante
coerente com seus princípios; mas tentando enxergar
através dos monstruosos e abstratos olhos do “Leviatã”
— um imenso olho formado por milhões de olhos,

154
verve

provavelmente diria Hobbes —, teria praticidade tal


concepção pedagógica?, isto é, permitiria — e ainda
mais, financiaria — o Estado tal educação?
Não, não estamos propondo a volta às teorias crítico-
reprodutivistas da década de setenta, que cairiam no
impasse da impossibilidade da ação educacional
transformadora, mesmo porque tais teorias já foram
desmanteladas por autores do calibre de Georges
Snyders 20 e pelo próprio Saviani; entretanto, se
aceitamos as concepções filosófico-políticas do Estado
aqui discutidas e estamos falando da escola
essencialmente como unidade de um sistema público-
estatal de ensino, não que a luta de classes seja
inexistente ou impossível no espaço social da escola,
mas existem limites estreitos para a ação daqueles que
procuram fazer da escola sua trincheira de lutas, seja
em que aspecto for.
Poder-se-ia objetar que o Estado somos nós, que ele
é nada mais do que o representante e promotor da
rousseauniana “vontade geral” e que cabe ao conjunto
da sociedade fazer com que o Estado promova e
implemente a educação pública que queremos.
Retrucaríamos, então, com a própria pergunta que
intitula este capítulo: seria necessária essa
intermediação do Estado para a realização de nossos
interesses sociais?
Devemos reiterar que não discordamos do fato de que
existem no sistema educacional público-estatal brechas
que podemos usar para o desenvolvimento de um
processo de auxílio à transformação da realidade social
— já que a escola sozinha é incapaz de mudar toda uma
estrutura social. O Estado, porém, continua o
gerenciador da educação pública, e absolutamente nada
nos garante que, a qualquer momento, ele não venha a
retomar o absoluto controle do processo, destruindo os
esforços coletivos que buscavam uma melhoria no
ensino das classes populares, afrontando o próprio poder
do Estado. Entretanto, se há o caminho da ação nas

155
1
2002

brechas deixadas pelo Estado, há também uma


multiplicidade de caminhos novos a serem criados, à
margem da ação estatal... Mais interessante seria que
buscássemos novas formas de fazer social, afrontando
diretamente a instituição Estado, e não servindo-nos
dela, habitando suas brechas como nossos milhões de
miseráveis habitam as brechas no concreto dos grandes
viadutos de nossas ricas metrópoles.
Deixando um pouco de lado a questão da qualidade
de ensino, à qual voltaremos adiante ao discutir o
conjunto dos três aspectos problemáticos das
reivindicações progressistas em relação ao sistema
público de educação, passaremos agora ao aspecto mais
diretamente político dos três, o da democratização do
ensino público.
Esse aspecto divide-se em duas questões principais:
de um lado, democratizar o acesso à escola, que significa
estendê-la o máximo possível, até abarcar toda a
população; de outro lado, democratizar a vivência política
na escola, que se traduziria no desenvolvimento de um
processo de educação cívica, de formação de um “cidadão
consciente”.
Quanto à primeira questão, muito pouco resta a ser
dito, pois democratizar o acesso à escola pública
consiste, do ponto de vista lógico, na própria essência
do sistema: se é público, deveria ser necessariamente
dirigido a todos, a toda a população. Neste aspeto, é
bastante questionável chamar de público um sistema
de ensino que não consiga abarcar, na prática, a
totalidade da população em idade escolar, como é o caso
do sistema de educação brasileiro contemporâneo em
que, antes mesmo de faltar qualidade, falta vaga para
atender completamente à demanda.
Já a segunda questão ligada a este último aspecto é
mais profunda e mais complexa, oferecendo uma maior
margem para discussão. Devemos, de antemão,
enunciar a tese que será trabalhada, e que pode ser
resumida na seguinte fórmula: “a extremização da

156
verve

vivência e da gestão democrática na escola pública leva,


necessariamente, ao rompimento desta com o Estado, assim
como a extremização da gestão democrática do Estado leva
à sua própria destruição.”
A tese acima enunciada está diretamente ligada à
questão da relação entre o poder e a democracia, que,
tomada em seus princípios políticos e levada às últimas
conseqüências, significa que a democracia só tem
sentido no contexto da existência do poder que, por sua
vez, pressupõe a existência da dominação; se não há
domínio de uns sobre outros, não há poder e não é
necessária a organização deste poder. Sendo a
democracia uma das formas de organização do poder —
aquela que, por princípio, tenta minimizar o seu
exercício, dividindo-o entre o maior número possível de
indivíduos —, se não há poder, temos a completa
autonomia individual e aí já não há mais lugar para a
própria democracia. Em outras palavras, levar a
democracia às últimas conseqüências significa a
destruição da própria democracia ou, se preferirem,
também poderíamos dizer que a verdadeira democracia
seria a extinção do poder personificado e, assim, só
existiria democracia de fato no contexto da absoluta
autonomia.
Superando a discussão conceitual, dela podemos
auferir que existe um limite muito definido para o
discurso democrático e que se torna ainda mais nítido
para a ação democrática, sendo que este limite é a
própria razão de sua existência: levada até seus limites,
a ação democrática implica na dissolução do poder e na
destruição da própria democracia, ou na instituição da
verdadeira democracia, mas aí a ação que leva até sua
instituição não passaria de uma ação pró-democrática,
ou mesmo pré-democrática...
Sintetizando, a democracia — por mais absurdo e
reacionário que possa parecer para a mentalidade
liberal que, como afirmamos, encontra-se disseminada
ideologicamente entre nós — só tem sentido enquanto

157
1
2002

expressão de um sistema de poder, de dominação, por


mais que represente um abrandamento da própria
dominação.
Voltando ao contexto da educação, os discursos que
se arvoram em “progressistas” lutam por uma maior
democratização da escola pública. Depois de muita luta
política e social, sem dúvida alguma presenciamos uma
série de conquistas que, entretanto, colocam-se dentro
de um limite muito específico, limite este que o Estado
faz toda a questão de mascarar. A educação pública é
democrática, ou pode sê-lo, até onde interessa ao
Estado; não podemos, porém, nos enganar: assim que
essa democratização colocar em risco suas instituições
políticas — se é que ela pode chegar a tanto — ela será
imediatamente desviada, abrandada ou mesmo extinta.
Para compreender melhor este tríplice aspecto da
educação pública — a melhoria da qualidade, a promoção
da cidadania e a democratização — gostaria de buscar
no folclore infantil e na fábula, esse imenso depositário
do imaginário coletivo que tem o poder de, através da
simplicidade da palavra, desvendar a alma humana, a
metáfora perfeita: passeamos no bosque, enquanto “Seu
Lobo” não vem... Brincamos de democracia na escola —
se me permitem brincar com essa coisa tão séria... —
enquanto o “Lobo Estado” não aparece; mas, se tomarmos
o “caminho do rio”, aquele que os poderes instituídos —
os pais — nos alertaram para não seguir, se afrontarmos
o território de domínio do “Lobo Estado”, claramente
demarcado, aí ele aparece, implacável...
No confronto, experimentamos duas situações-limite:
ou somos devorados pelo “Lobo Estado” ou o matamos. A
convivência só é possível quando habitamos territórios
diferentes (“esta cidade é pequena demais para nós
dois!”), não sendo, portanto, con-vivência.
O que tentamos exprimir através desta pequena
brincadeira metafórica é que, na vivência política no
território do Estado, as ações progressistas encontram
limites muito próximos. Não que elas não sejam

158
verve

possíveis, são até mesmo louváveis, embora sua eficácia


política, se as tomarmos em suas últimas
conseqüências, seja dubitável.
Já deixamos claro que, do ponto de vista da qualidade,
a escola que queremos — falando na perspectiva das
camadas progressistas da sociedade, que buscam a
igualdade e a justiça sociais — não é aquela que o Estado
capitalista quer; o assumir do discurso da qualidade de
ensino pelas esferas oficiais significa, no limite
máximo, a busca de melhor qualificação de
trabalhadores, exigida pela complexificação tecnológica
da indústria. Forçar socialmente o Estado a oferecer a
escola que queremos, que seria um instrumento a mais
no processo de luta pela transformação desta sociedade,
seria levar a uma situação-limite em que o conflito só
poderia ser resolvido através do confronto, estando o
Estado numa posição tática privilegiada para resolvê-lo
a seu favor.
Na perspectiva da promoção da cidadania e da
democratização do ensino que, em última análise
podem ser reunidas numa única, dado que a promoção
da cidadania não se daria jamais através de discurso
mas, como vimos anteriormente, através da assimilação
dos conceitos básicos para a compreensão da vivência
política, além do aprendizado de uma ação que, se não
é estritamente política no contexto mais geral, o é ao
nível específico da convivência em uma comunidade, a
própria escola, estando aí de certo modo representada a
sua democratização, a questão não é menos complexa.
Assim como a extremização da gestão democrática da
escola leva ao rompimento com a estrutura de poder
sustentada pelo Estado capitalista e, conseqüentemente
a um necessário rompimento com esse próprio Estado,
a realização de um processo educacional que seja
responsável pela formação de um cidadão no real sentido
contemporâneo que a palavra alcança, e de um cidadão
de fato e não apenas de direito, representa, também, o
acirramento de um confronto com o Estado que,

159
1
2002

enquanto provedor e gerenciador dessa educação, não


teria o mínimo interesse em mantê-la nessas condições.
Ao levantar essas críticas, que buscam o sentido
último de uma educação pública e de suas necessárias
relações com o Estado, não pretendo, de modo algum,
defender a impossibilidade de uma ação político-
pedagógica progressista no contexto do sistema público
de ensino. Também não pretendo, como já foi frisado
anteriormente, retomar as críticas produzidas no
contexto das teorias crítico-reprodutivistas, que de resto
já foram superadas por teorias mais lúcidas e
abrangentes. Meu objetivo foi trazer para a discussão
uma perspectiva que, se não é nova, estava há muito
esquecida, ou feita esquecer pela intensa repressão
social e política. Os anarquistas procuraram sempre
construir alternativas pedagógicas aos sistemas
públicos de ensino, como forma de escapar das óbvias
limitações de uma educação comprometida com o
Estado, o máximo representante e depositário do poder
social.
Não, a mediação do Estado não é absolutamente
necessária; os grupos sociais poderiam perfeitamente
organizar e gerir os seus próprios sistemas de ensino,
escapando das perniciosas influências desta instituição
que, ao fazer-se o Mediador, constitui-se, na verdade,
em Interventor, gerenciando a educação que ele julga
necessária e desejável e não exatamente aquela que o
grupo social deseja.
Na perspectiva do modelo sócio-político da oposição
Estado versus sociedade, podemos perceber que, embora
aquele deva constituir-se na instância político-
administrativa desta, sua ação dá-se no sentido de
manter e perpetuar essa estrutura social; para aqueles
que se propõe às atividades de transformação da
estrutura social, abrem-se, portanto, duas perspectivas
de ação: trabalhar com as armas políticas do próprio
Estado, sustentados por uma concepção filosófica que,
se afasta-se radicalmente daquela que exprime essa

160
verve

estrutura social, em última instância não abandona a


lógica que estrutura essa concepção; tal parece ser a
situação dos socialismos marxiano e marxista, que
defendem o “assalto ao Estado” como arma para a
transformação. A outra perspectiva seria buscar a
transformação já nos próprios meios, assumindo armas
de luta que não são as mesmas usadas pela estrutura
social vigente; no caso específico, negando o próprio
Estado de antemão, e não apenas após a tomada do poder
social, o que, em linhas gerais, caracteriza a situação
do socialismo libertário, ou anarquismo.
No contexto educacional em geral, e no da educação
pública também, os conceitos anarquistas representam
um outro paradigma de pensamento, pois afastam-se
tanto do liberalismo ou neo-liberalismo quanto das
visões socialistas de inspiração marxista. Assumir a
perspectiva anarquista não significa negar a eficiência
de nenhuma das outras, mas sim a tentativa de um
caminho diferente que, se traz determinadas inovações,
não deixa de apresentar também suas dificuldades, como
o assumir abertamente a luta contra o Estado, com toda
as conseqüências que ela deva trazer.
No paradigma anarquista, a educação pública não é
e nem deve ser uma função do Estado, mas sempre uma
responsabilidade da comunidade, da sociedade. Assim,
cada grupo social deve se auto-organizar para constituir
seu sistema de ensino, definindo-lhe os conteúdos, a
carga-horária, a metodologia, os processos de avaliação
etc., sempre num regime de autogestão.
A ação político-pedagógica norteada por este outro
paradigma implica, claro, numa responsabilidade
imensamente maior de toda sociedade e em muito mais
trabalho por parte de todos, estejam diretamente
envolvidos com a escola ou não. Tal responsabilidade
ganha contornos ainda mais abrangentes ao
lembrarmos que estamos, todos, acostumados a esperar
do Estado paternalista a resolução dos nossos problemas.
O paradigma anarquista apresenta também os seus

161
1
2002

problemas, talvez mais complexos até, mas problemas


que devem ser encarados de frente, do mesmo modo
que deixar a adolescência assumindo cada vez mais as
responsabilidades pela maturidade da “idade da razão”
tampouco é um processo simples e sem traumas, mas
do qual não podemos jamais fugir...

Notas
1
Este artigo retoma considerações desenvolvidas em minha tese de doutorado
Autoridade e a Construção da Liberdade: o paradigma anarquista em educação,
apresentada à Faculdade de Educação da Unicamp em 1993, e de textos já
publicados em outras revistas.
2
Da Revolução Francesa aos começos da terceira República in Maurice Debesse,
História da Educação. São Paulo, Nacional, 1977, p. 338.
3
Apud Lorenzo Luzuriaga, História da Educação Pública. São Paulo, Nacional,
1959, p. 44.
4
A situação ideal, apresentada no texto, tem sido cada vez mais desestruturada
no Brasil dos últimos anos; como o Estado tem sido incapaz de oferecer educação
na quantidade — para nem tocar no aspecto da qualidade — de que a sociedade
necessita, abre cada vez mais espaço para a iniciativa privada, como forma de
reparar essa defasagem. Entretanto, pratica uma fiscalização mais intensa sobre
as escolas particulares — justificável, em alguns casos — do que sobre as suas
próprias, imiscuindo-se inclusive nas questões de fixação das mensalidades e
reajustes salarial dos professores, como pudemos acompanhar cotidianamente
pela grande imprensa.
5
Seria curioso, não fosse trágico, percebermos o outro lado do nacionalismo: a
xenofobia e o racismo que alimentam as diversas formas de fascismo, agora
reeditadas pelos grupelhos fascistóides que infestam as periferias das grandes
cidades, tanto na Europa como no Brasil; no fundo, o nacionalismo que alimenta
sua covarde violência nada mais é do que resultado de um processo de criação
de um sentimento abstrato de “nacionalidade”, criado e desenvolvido séculos
atrás, com o objetivo de unir os povos de determinadas regiões!
6
Podemos lembrar aqui de uma canção de Caetano Veloso, gravada em seu
disco de 1987, que equaciona muito bem o impasse político brasileiro, dentre
outros, em versos como esses: “E quem vai equacionar as pressões/ do PT e da
UDR/ e fazer dessa vergonha uma nação?” (“Vamos Comer”).
7
Gilberto de Mello Kujawski. A Crise do Século XX. São Paulo, Ática, 1988,
p. 114.

162
verve

8
Um exemplo desses blocos supranacionais são os blocos econômicos, como a
Comunidade Européia, o Mercosul etc. Por outro lado, não podemos deixar de
assinalar as análises que Toni Negri e Michael Hardt desenvolvem em Império
(Rio de Janeiro, Record, 2001).
9
Cf., por exemplo, os ensaios de Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo,
São Paulo, Brasiliense, 1985, 2ª ed. ou os de Micropolítica: cartografia do desejo,
com Suely Rolnik, Rio de Janeiro, Vozes, 1986. Numa palestra na FAU-
PUCCAMP nos idos de 1985, Guattari afirmava, entusiasmado, que a
criatividade e inventividade já morta na arquitetura européia, estava mais que
presente nas favelas brasileiras, onde do quase-nada arrancava-se um teto, uma
habitação...
10
A própria concepção da tática política de Marx corrobora essa tese: embora
considere que seja necessário destruir o Estado para construir a nova sociedade
(comunismo), ele afirma a necessidade de assumir o controle político do
Estado para, depois, destruí-lo. Deste modo, a tática a ser usada contra o
capitalismo é a mesma tática dele e a lógica desta tática, quer intitule-se
dialética ou formal é, no fundo, a mesma; de certo modo isso explicita o
receio de assumir a esquizofrenia de uma outra lógica, completamente diferente
para a opor à lógica liberal/capitalista. É nesse sentido que Deleuze e Guattari
abordam a esquizofrenia como essencialmente revolucionária, por
desterritorializar completamente os sentidos do capital, em Capitalisme et
Schizophrénie.
11
Ver Erich Frömm, O Medo à Liberdade, Wilhelm Reich, Psicologia de Massas do
Fascismo, dentre outros, e em Sartre, as relações entre liberdade, responsabilidade
e angústia, em O Ser e o Nada.
12
Na década de trinta, Reich afirmava na Psicologia de Massas do Fascismo que a
escola tomava cada vez mais da família e da Igreja a função de transmissão
ideológica e formação das novas gerações, fato que consolidou-se nas últimas
décadas, como podemos constatar. Hoje, a mídia eletrônica e a informática
tomam cada vez mais o espaço da escola, e seu progressivo fortalecimento deve
levar rapidamente a uma nova hegemonia na transmissão ideológica para as
novas gerações.
13
Ver, por exemplo, Laymert Garcia dos Santos, Desregulagens: educação,
planejamento e tecnologia como ferramenta social, onde é analisado o Projeto SACI/
EXERN.
14
Caetano Veloso num verso de “Santa Clara, padroeira da televisão” (1992).
15
Apud Maurice Dommanget, Los Grandes Socialistas y la Educación, de Platón a
Lénin. Madrid, Frágua, 1972, p. 268.
16
Expressão utilizada por Patrice Canivez em Educar o Cidadão?. Campinas,
Papirus, 1991.
17
Patrice Canivez, op. cit., p. 31.
18
Ver Canivez, op. cit., p. 159.

163
1
2002

19
Ver Dermeval Saviani, Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. São
Paulo, Cortez/Autores Associados, 1991, pp. 70 e seguintes.
20
Ver Escola, Classe e Luta de Classes, de Snyders e Escola e Democracia, de
Saviani.

resumo abstract

A escola pública é comumente vista The public school is commonly seen as


como uma escola estatal. Mas será a ‘state’ school. Should it be necessarily
necessariamente assim? Essa mediação like that? Would this mediation of the
do Estado entre a sociedade e a state between society and education
educação será, de fato, necessária? Este be really necessary? This article intends
artigo pretende mostrar que não, to prove the contrary, exploring the
explorando as propostas anarquistas de anarchist proposals for education to
educação para mostrar a viabilidade de show the viability of a public school apart
uma escola pública não-estatal. Para from the state. In this attempt, it
isso, busca as origens históricas da searches the historical origins of public
educação pública, desvelando seus elos education, revealing its ties with the
com a constituição dos Estados-nações constitution of European nation-states,
europeus, e em seguida analisa as and then analyzes the particularities of
peculiaridades das relações entre Estado the relation between state and
e educação no Brasil. Finalizando, education in Brazil. Finally, it questions
problematiza a questão da the issue of democratization of public
democratização da escola pública no schools in Brazil since the 1980s,
Brasil desde a década de oitenta, criticizing the so-called progressive
fazendo a crítica das chamadas conceptions and affirming the possibility
concepções progressitas e defendendo of an anarchist approach to the subject.
a possibilidade um approach anarquista
da questão.

164
verve

escola-droga

guilherme corrêa *

O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um


regime de governamentalidade múltipla.

Michel Foucault

Imagine-se com dez anos de idade e aluno em uma


sala de aula de quarta série do ensino fundamental;
não se veja no passado, quando cursou a quarta série,
mas como uma criança hoje, num universo onde contam
‘vídeo games’, computadores, tênis da moda, as
infindáveis sessões de marquetagem destinadas às
crianças em que se transformaram os programas
infantis na televisão, ‘pokemons’, o medo de seqüestros,
etc1. Então, em sua sala de aula — que não mudou muito
em relação àquela em que você estudou, a não ser talvez
os materiais e o desenho da mobília — a professora, ou
professor, como queira, distribui uma folha de papel na

* Pesquisador do Nu-Sol. Professor do Centro de Educação da Universidade


Federal de Santa Maria, mestre em Educação pela UFSC e doutorando no
PEPG em Ciências Sociais na PUC/SP. Desenvolve pesquisas sobre estratégias
educacionais não escolarizadoras no Brasil contemporâneo.

165
1
2002

qual vocês devem fazer uma redação com um tema que


diz respeito à aula sobre drogas ministrada
anteriormente. Assim, acima das linhas em branco da
folha, diante de você está o título: ‘Eu conheço um viciado’.
Antes de ‘sair’ de sua sala de aula, elabore
rapidamente as linhas gerais da sua composição —
lembre-se que tem dez anos: conhece alguém viciado
em drogas? é algum parente, amigo, conhecido? como
sabe que é viciado? viciado em quê? Este exercício que
lhe propus eu mesmo o fiz quando chegou às minhas
mãos umas folhas fotocopiadas do que, a primeira vista,
parecia ser um livro didático para crianças, devido ao
grande número de ilustrações. As cinqüenta páginas
não numeradas e sem referência bibliográfica, tratavam
de um projeto chamado ‘Drogas? Tô fora!’ com o
planejamento de cinco aulas de ‘Língua Portuguesa/
Educação para Saúde’. A redação referida acima é o
exercício final sugerido como avaliação da primeira
dessas aulas. A publicação na qual este material estava
inserido2 foi encontrada numa escola de uma pequena
cidade do interior de Santa Catarina. É um material
bastante curioso e mereceria um artigo inteiro
apresentando não só sua noção de drogas, mas também
as estratégias de saúde a serem desenvolvidas junto a
crianças das quatro primeiras séries do ensino
fundamental 3 . Destinado a professores do ensino
fundamental tem por objetivo desenvolver o tema
transversal4 “Saúde”.
Recorrendo sempre a ilustrações — árvores, sóis
brilhantes e muitas carinhas infantis nas mais
diversas situações —, encaixadas no clichê do mundo
infantil feliz, o material vai apresentando sua versão
pedagógica da abordagem do uso de drogas. Assim, ao
sugerir ao professor que faça alguns adesivos para
serem distribuídos pela escola, um deles tem a frase:
“Ao ir ao hospital, visite a enfermaria de pneumologia,
não para ver como os enfimatosos [sic] vivem, mas sim,
para ver como é que eles estão morrendo”. Ilustrando

166
verve

esta frase há um leito de hospital, com um crucifixo


sobre a cabeceira, e deitado sob as cobertas um menino
exibe seu rosto tranqüilo. Noutra sugestão de adesivos,
em que o livro comenta “overdose de tranqüilizantes”,
aparece o desenho de um menino com as pernas e o
olhar desencontrados, como que embriagado. Ao sugerir
ao professor que crie cartazes a serem reproduzidos,
logo em seguida recomenda as frases ou cartazes que
deve criar: “Evite a tentação da primeira dose”, “Droga
é uma droga”, “Eu não entro nessa fria!”. Do mesmo
modo, abaixo da sentença: “Crie um cartaz alertando
sobre o perigo do consumo de cigarros”, aparece já pronto
o desenho de um cartaz, no qual se vê um menino de
óculos escuros com três cigarros acesos ao mesmo
tempo, tossindo muito, e a frase “Você está bem... perto
da Morte.”
Assim, entre as várias imagens de crianças — ou
adultos infantilizados? — fumando, bebendo álcool, chá
de cogumelo, cheirando lança-perfumes, imagens de
seringas, caveiras, sepulturas com uma carinha
sorridente na lápide, e muitas carinhas sorridentes,
este livro da série “Alfabetização sem segredos” vai
construindo uma noção de drogas, baseada no conceito
de que “droga é toda substância que, introduzida no
organismo, altera suas funções”. A droga aparec
estreitamente ligada à degradação da vida e à morte,
ao mesmo tempo em que promove uma espécie de
sondagem da índole do aluno: “Você aceitaria
experimentar algum tipo de droga para não ser criticado
pelos colegas? Por quê?”; “Qual seria sua reação se
alguém lhe oferecesse drogas?”; “Caso algum colega
estivesse usando drogas, você falaria com a família dele?
Por quê?”; “O que você costuma fazer quando se sente
aflito ou inquieto?”
Imaginar os possíveis efeitos do desenvolvimento do
trabalho escolar com o título “Eu conheço um viciado”,
deixou-me curioso a respeito do modo como o tema das
drogas vem sendo tratado nas escolas.

167
1
2002

Uma vez que todas as escolas espalhadas pelo


território nacional — sejam elas financiadas pelo Estado
ou privadas — são orientadas pela LDB, cabe, antes de
saber como essas escolas desenvolvem um tema como
o das drogas, perguntar o que o Estado diz sobre as drogas.
Uma tarde na biblioteca da Secretaria de Educação do
Estado de Santa Catarina rendeu quase oito quilos de
fotocópias. Deste material tomei cartilhas, relatórios e
pesquisas feitos por órgãos oficiais do Estado, mais
especificamente pelo Ministério da Saúde, pela
Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), Casa Militar,
Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
Psicotrópicas (CEBRID) e pela Universidade de Brasília.
Com este material tentei apreender a noção de ‘drogas’
que orienta as ações do Estado brasileiro. Com a outra
parte, composta por cartilhas, programas de prevenção
e folhetos elaborados por especialistas da área de
educação, tento mostrar a correspondência do debate e
das estratégias de abordagem da problemática das drogas
nas instituições de ensino responsáveis pelo ensino
fundamental. A organização do material em ordem
cronológica — a partir, principalmente, da última
metade da década de noventa — mostrou-se bastante
esclarecedora do movimento pelo qual passa a noção de
droga neste curto período.
Em meados dos anos noventa a sociedade brasileira
mobilizou-se a partir da promoção pelo Estado para
diversos encontros, seminários e fóruns, a propósito da
questão das drogas. Ao dar mostras claras de que não
era uma doença circunscrita aos grupos de homos-
sexuais e de usuários de drogas injetáveis — derru-
bando a noção moral e administrativamente confortável
de grupo de risco —, a AIDS mostrou uma possibilidade
concreta de larga contaminação de indivíduos
pertencentes aos mais variados estratos sociais. Isso
fez com que o Estado, cuidadoso em melhorar a sorte da
população, elaborasse uma série de campanhas com a
finalidade de conter o avanço da doença sobre os

168
verve

cidadãos. Os números referentes aos infectados


chamavam especial atenção para o grupo dos usuários
de drogas injetáveis. É dessa constatação que acontece
a passagem da utilização de estratégias de controle da
AIDS para o emprego de estratégias de prevenção
integral tendo como coluna mestra a prevenção ao uso
indevido de drogas. Para enfrentar a ameaça
representada por uma possível explosão do contágio de
AIDS por meio dos usuários de drogas injetáveis, e lidar
diretamente junto à população, foram publicadas
cartilhas, fitas de vídeo, e promovidos cursos para
multiplicadores5.
Estas estratégias, então, empregadas pelo Ministério
da Saúde enfatizavam a política da redução de danos e
dirigiam-se especificamente às populações em situação
de risco, a saber: “profissionais do sexo, jovens
socialmente marginalizados, presidiários, populações
de rua, e usuários de drogas”6. O trabalho preventivo e
educativo com essas populações não ficava como
responsabilidade dos serviços formais de saúde,
educação e serviço social, mas das emergentes
organizações não governamentais7. Neste contexto, a
droga é tratada como fenômeno histórico, reconhecendo
que “o ser humano sempre conviveu com drogas, e delas
fez diferentes usos, ao longo da história.” 8 E é
interessante ver referências a grandes nomes da
literatura mundial e ao uso que fizeram de drogas
‘perturbadoras’: Fernando Pessoa — “há doenças piores
que as doenças...” —, Baudelaire e o ópio e Aldous Huxley
e suas experiências com a mescalina; a droga como
substância que “transportava o espírito para outros
territórios, para outras sabedorias”9.
O problema do abuso de drogas, ainda nestes
materiais do Ministério da Saúde, é situado dentro do
espectro das drogas legais: “o panorama epidemiológico
do Brasil (...) mostra a prevalência das drogas legais:
elas representam mais de 90% dos abusos ou usos
freqüentes praticados pela população. Seu custo social

169
1
2002

é altíssimo, ultrapassando de longe aquele das drogas


fora da lei. Em termos de mortalidade, o abuso de álcool
e fumo é responsável por cerca de 95% dos casos de
óbito devidos a drogas, sendo que somente 5% são
imputados às ‘outras drogas’, no seu conjunto”10.
É clara a oposição às posturas radicais defendidas
pelos setores da organização estatal responsáveis pela
repressão ao uso de drogas ilegais: “os expoentes da
postura antidroga, (...) não enxergam o óbvio: que a
‘guerra contra as drogas’ é inoperante, e que nunca
haverá ‘vitória final’, já que as drogas fazem parte, desde
sempre da vida humana. Mas há ainda mais: todas
aquelas intervenções que se pautam na abordagem
exclusiva do ‘dizer não’, são contraproducentes e surtem
efeitos contrários”11.
A preocupação aqui não é criminalizar o uso de
drogas, mas recuperar o dependente, que deve ser
considerado como um doente 12, dentro do ideal da
reinserção social, pela via da reconstituição familiar13.
É neste ponto “ideal” que ocorre a reintegração dos que
se encontram em situação de risco. Ponto no qual esses
sujeitos passam a estabelecer laços familiares, mesmo
que tênues, no qual, automaticamente, as instituições
formais passam a atuar. Reinseridos, reajustados, eles
restabelecem contato com a rede formal de assistência
à saúde, educação e serviço social. Ou seja, o isola-
mento, que é a condição que caracteriza as populações
de risco, impede qualquer intervenção preventiva;
portanto, qualquer ação neste sentido deve promover o
restabelecimento dos vínculos sociais, num crescendo
que vai da família à escola, aos grupos de auto-ajuda e
à rede formal de assistência. Dentro deste conjunto de
ações de ajustamento e de reinserção, a escola assume
um papel de grande importância.
Desta maneira, “freqüentar uma escola representa
um referencial de cidadania e fortalece a identidade
pessoal, tantas vezes abalada sob o impacto das
adversidades sofridas. Devidamente instrumentalizada

170
verve

e com habilidade para segurar e direcionar o aluno, a


escola é capaz de manter os jovens afastados da
marginalização, mesmo com suas estruturas familiares
precárias ou quase inexistentes”14.
Em novembro de 1998, acontece o “I Fórum Nacional
Antidrogas”, evento que inaugura um importante passo
para a compreensão de uma noção de “drogas” utilizada
pelo Estado brasileiro. Com o objetivo de abrir um diálogo
entre a sociedade e o Governo Federal, e de ouvir as
sugestões da sociedade, o Fórum, destinado exclusiva-
mente às organizações não-governamentais15, reuniu
representantes dos mais diversos setores. Ao todo foram
30 subgrupos separados em quatro grupos de trabalho:
grupo de prevenção, de tratamento, de repressão e um
último grupo chamado global. Entre todos estes
subgrupos havia, por exemplo, um subgrupo para o
pessoal da redução de danos, outro chamado Populações
Excluídas, e ainda Criação de Empregos, Internação,
Reinserção Social, Mútua-ajuda, Comunidades
Terapêuticas, Modificações Legislativas, Comunicação
e Marketing, etc. Havia também o subgrupo Escola, um
dos treze subgrupos do Grupo Global, juntamente com
outros como Família, Local de Trabalho, Mulheres,
Crianças e Adolescentes, Instituições Religiosas e
outros. No discurso que profere na abertura do encontro,
o Presidente da República refere-se à escola da seguinte
maneira: “Precisamos, no Brasil, ampliar a consciência
do professorado, da gestão das escolas, mas, sobretudo,
das famílias, com relação à questão das drogas”16.
E segue apresentando um outro lado da questão:
“mas, há o outro lado, digamos, propriamente repressivo,
da questão das drogas. (...) Isso requer um trabalho de
inteligência e de informação. Não é apenas um trabalho
de repressão, mas é de conhecimento das tramas que
estão por trás daquilo que aparece à primeira vista e
que é, normalmente, o objeto da repressão. O objeto da
repressão, raramente, está diretamente vinculado à
trama de sustentação do tráfico de drogas (...) É ilusão

171
1
2002

pensar que as informações, hoje, são monopólio do


Estado. Pelo contrário. Hoje, também a sociedade dispõe
das informações. E, muitas vezes, até mais depressa e
mais abundante do que o próprio aparelho de Estado”17.
Consultando cuidadosamente o relatório, ficam mais
claras frases tais como ‘Isso requer um trabalho de
inteligência e de informação’ ou ‘É ilusão pensar que
as informações, hoje, são monopólio do Estado.’, ou ainda
‘Hoje, também a sociedade dispõe das informações’. O
“subgrupo R2” — um dos três subgrupos do “grupo de
repressão” —, responsável pelo tema “Participação da
Sociedade na repressão ao Tráfico - Proteção à
Testemunha e Definição do Campo de Atuação das
ONGs”, em seu relatório “deu destaque à necessidade
de estimular-se a denúncia; incentivar-se a delação
premiada e de editar-se lei estabelecendo regras de
proteção às testemunhas, concedendo-se às ONGs as
missões de dar apoio psicossocial aos familiares de
testemunhas protegidas e fornecer moradias
provisórias”18.
Chamo atenção para a proximidade, a sinonímia
mesmo, entre as palavras denúncia e delação. Nesse
contexto de “participação da sociedade na repressão ao
tráfico” a diferença possível é que a delação pode
mobilizar uma rede de proteção à testemunha, todavia,
perde sua diferença qualitativa ao produzir o mesmo
efeito: ao chegar aos órgãos oficiais competentes, “por
correio, telefone ou outros meios”19, transformam-se em
informação, em trabalho de inteligência.
As situações apresentadas até agora, enfatizando os
discursos produzidos por órgãos e pessoas repre-
sentantes do Estado, compõem uma galeria que tenta,
mesmo que apressadamente, mostrar o largo espectro
do que se diz, oficialmente, em relação às drogas. Desta
variada flora discursiva, muitos espécimes são
aproveitados para decoração, enquanto outros são
produzidos e distribuídos gratuitamente à população e
devorados vorazmente. O efeito ornamental de alguns

172
verve

discursos não deve, todavia, ser subestimado pois são


estes que dão corpo a uma imagem de Estado acolhedor,
no qual o cidadão tem ampla liberdade de expressão.
Um episódio ocorrido no Fórum permite começar a
delinear o discurso sobre drogas que o Estado brasileiro
efetivamente faz funcionar, que tem força e volume
para preencher os largos canais das políticas destinadas
aos grandes contingentes populacionais e, ao mesmo
tempo, fluidez e simplicidade suficientes para percorrer
os complicados e finíssimos canais que penetram nas
comunidades, nas famílias e, até o mais íntimo da vida
de cada um, ali onde percebe-se a si mesmo como
cidadão, com direitos deveres e sujeito ao assédio do
Estado em vista do cumprimento das leis.
O subgrupo chamado Redução de danos e portadores
de HIV, teve uma participação inesperada de pessoas
ligadas a grupos religiosos — Federação Brasileira de
Comunidades Terapêuticas, Amor Exigente, Pastoral de
Dependência Química/CNBB — e ao aparato policial,
que correspondeu a 68% dos integrantes; eram
contrários à troca de seringas e propunham a
abstinência como única forma de tratar a questão das
drogas. Os outros 32% eram pessoas envolvidas em
atividades de redução de danos em instituições
governamentais e não-governamentais. Foram
produzidos, assim, dois relatórios, um incluindo troca
de seringas e outro excluindo troca de seringas20. Esta
reunião insólita de membros de ONGs, professores
universitários, religiosos e policiais, põe em cena os
principais atores do teatro da prevenção ao uso de
drogas e expõe o argumento da pantomima: grupos com
interesses realmente opostos — confrontando ciência
e dogma religioso, estratégias libertadoras e medidas
repressoras — unidos na promoção da impossibilidade
de pensar a vida sem governo.
Os diversos grupos ali presentes legitimam e
conferem, pela sua diversidade e proveniências —
militares, policiais, religiosos, advogados, agentes

173
1
2002

comunitários, assistentes sociais, professores, pesqui-


sadores... — uma voz à sociedade. Seus relatórios —
pedindo verbas; aperfeiçoamento de leis e regulações;
integração entre agências federais, estaduais e
municipais; aumento de pessoal qualificado, cursos de
aperfeiçoamento; campanhas de prevenção; repressão
policial; criminalização; descriminalização; reformu-
lação de práticas pedagógicas; reinserção social, etc. —
dirigem-se ao Estado e reforçam seu qualificativo de
democrático.

Escola e droga

A partir das recomendações do I Fórum Nacional


Antidrogas, foi organizado, pela Secretaria Nacional
Antidrogas e pela Universidade de Brasília, o curso
“Prevenção ao Uso Indevido de Drogas: diga sim à vida”.
Este curso visava “contribuir para a formação de
profissionais ou de membros da comunidade em geral
devidamente qualificados para atuar na prevenção ao
uso de drogas”21. Os conteúdos elaborados por especia-
listas tinham por objetivo “oferecer informações consis-
tentes (...) de maneira clara e fundamentada em
literatura atualizada” 22 . As estratégias de ensino
empregadas neste curso — oferecido gratuitamente a
trinta mil futuros trabalhadores da missão de prevenir
contra o uso indevido de drogas — surpreendem ao
ressuscitar a instrução programada 23. Enquanto os
conteúdos eleitos para o programa seguem a já
consolidada liturgia dos cursos de prevenção às drogas
— definição de droga, classificações das mesmas
(naturais, sintéticas, psicotrópicas, lícitas e ilícitas —,
classificação dos usuários (experimentador, recreativo,
funcional e dependente), uma listagem das drogas e
seus efeitos e estratégias de prevenção — a instrução
programada, rediviva, causa a impressão de que o que
importa aprender são os conteúdos expressos no
programa, quando o que está se processando, é um amor-

174
verve

tecimento da capacidade de pensar e de querer, do


exercício da vontade. A descrição de um desses
exercícios presente na apostila do curso não vai deixar
dúvidas sobre o que estou dizendo: sob o título “auto-
avaliação” está a sentença “Complete as lacunas
utilizando a palavra-chave adequada:”, segue então um
conjunto de doze palavras que devem ser colocadas nas
lacunas existentes nas frases de ‘a’ a ‘f’, imediatamente
após as frases aparece o mesmo conjunto de palavras
só que desta vez colocadas na ordem em que devem
aparecer nas lacunas das frases acima.

“AUTO-AVALIAÇÃO

Complete as lacunas utilizando a palavra-chave adequada:

Palavras-Chave

experimentador controlada motivação


habitual consciência ocasional
abusivo tranqüilizantes pessoa
comportamento dependência droga

a) As drogas psicotrópicas são substâncias capazes de


alterar o ________________ das pessoas.

b) Mesmo certas drogas chamadas lícitas podem ter sua


comercialização ______________ por leis. É o caso dos
_____________ .

c) O uso indevido de certas drogas lícitas é uma questão


importante em relação à saúde da população porque pode
causar _____________ .

d) Existem tipos diferentes de usuários de drogas. O


usuário ____________ é aquele que experimenta um ou
mais tipos de drogas sem dar continuidade ao uso,

175
1
2002

enquanto o usuário ___________ faz uso freqüente,


podendo ocorrer prejuízos à vida profissional ou familiar.
Há também o chamado usuário ___________ que se
utiliza da droga esporadicamente, numa situação
especial, como no caso dos bebedores sociais e o usuário
____________ cujo consumo adquire papel de destaque
na sua vida, acarretando sérios prejuízos profissionais,
sociais e familiares.

e) O triângulo básico do consumo de drogas é


representado pela _____________ pela ____________ e
pelo contexto sócio-cultural.

f) Existem diferentes _____________ para o consumo de


drogas como a obtenção do prazer ou a modificação
deliberada do estado de _____________ .

Gabarito:
a) comportamento
b) controlada; tranqüilizantes
c) dependência
d) experimentador; habitual; ocasional; abusivo
e) pessoa; droga
f) motivações; consciência”24.

Os materiais didáticos utilizados nas escolas seguem


a liturgia, acima referida, dos cursos de prevenção às
drogas. E este é um dos fios discursivos com que a escola
tece a teia da prevenção, uma teia que arrasta consigo
toda sorte de sanção moralizadora: “Todo uso de drogas é
arriscado!”25; “(...) Não significa eximir o consumidor
ocasional (mesmo criança ou adolescente) da aplicação
da pena da lei,...”26; “Solte todas as suas angústias para
aquele que patrocinou sua vida, que ELE o ajudará a levar
avante seus projetos. [...] Assuma seu papel de cidadão e
mude sua vida como você gostaria...”27; “O consumo de
drogas deve ser considerado como um sinal de destruição
da vida em termos de saúde e de valores...”28 .

176
verve

Uma boa visão da rede tecida pela prevenção no


ensino escolar é dada pelo sumário com “subsídios de
prevenção integral para o educador”, constante do
“Programa de Prevenção Educação e Vida” realizado pela
Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina. A
partir da identificação da gravidade do problema das
drogas, este programa compõe uma grande e complexa
seqüência de vinte cinco temas29 organizados em planos
de aula com os ítens: objetivos, desenvolvimento do
tema, atividades da clientela (alunos).
Entre todas essas opções a disposição de professores
e alunos, a escola institui um tipo de liberdade ao qual
seremos, se já não estamos, acostumados: a liberdade
de escolher entre um conjunto restrito e estabelecido
previamente de itens postos à disposição, que
desembocam sempre na normalização e no ajustamento
dos sujeitos de modo a caberem confortavelmente na
figura do cidadão livre dentro do horizonte delimitado
pelas leis e pela moral.
Agora sim, sinto-me falando de drogas. Refiro-me ao
efeito narcotizante dessas intervenções, dessas
aplicações diárias, pacientes, constantes, desde a mais
tenra idade, de drogas que abalam a vida ao produzi-la
morna, prevenida, segura e que têm como princípio
ativo o “saber sem vontade”30.
Arremato o vislumbre, que espero que este texto
tenha proporcionado, da pedagogia que interessa ao
Estado brasileiro na atualidade, com a seguinte
declaração do Ministro da Educação, ao comentar os
desvios de verbas do Programa Federal Bolsa-Escola e a
importância da “participação social nas deliberações
públicas”: “é importante que tenhamos pessoas como o
vereador Otto Barroso, responsável pela denúncia de
fraude no município de Jutuabá (MG). O aumento da
participação social nas deliberações públicas significa
a radicalização da democracia. Certamente surgirão
pessoas, atentas como ele, capazes de identificar
problemas e denunciá-los. [...] Desde julho o Ministério

177
1
2002

da Educação vem investigando denúncias de


irregularidades na destinação de recursos. Trezentas
denúncias chegaram por meio do telefone 0800-616161,
e estão sendo apuradas”31.
A denúncia como forma de participação social e
exemplo de radicalização da democracia, sublinhada
pelo Ministro, dá idéia da eficiência de uma espécie
de pedagogia da delação — com programas, conteúdos
e técnicas didáticas — que vem sendo largamente
implantada no país. Basta atentar para os programas
vespertinos de televisão nos quais o principal
argumento são as denúncias da população feitas por
meio de telefones gratuitos. Os meios de comunicação
de massa mais importantes — televisão, rádio,
imprensa, internet e escola —, e também o Governo
Federal, têm dado mostras de seu empenho em educar
o povo dentro dessa perspectiva, por assim dizer,
democrática. Inventa-se no Brasil um povo que sente
que decide, quando delata.
Olhando os créditos das publicações oficiais que
utilizei neste ensaio, encontrei vários nomes nas
comissões de consultoria, equipes de elaboração,
colaboradores, especialistas... Adriano, Nelita, Sueli,
Gilson, Maria, Almeli, Lídia, Saulo, Fernando, Ione,
Marisa, Flávia, Carlos, Eliseu, José, Izilda, Clarinha,
Ruy, Rosane, Shirley, Juçara, Araí, Mileide, Gey, Ana,
Dóris, Liana, Márcia, Thérèse, Aluísio, Waleska, Alício,
Aracy... são alguns nomes de pessoas que, como
qualquer um de nós, freqüentaram escolas, estudaram
segundo as determinações da LDB, tornaram-se
profissionais e agora fazem aparecer a expressão do
Estado em palavras. Assim, Como sabemos muito bem,

“o Estado não tem entranhas, e não simplesmente no


sentido de que não tenha sentimentos, nem bons nem
maus, mas que não tem entranhas no sentido de que
não tem interior. O Estado não é nada mais que o efeito
móvel de um regime de governamentalidade múltipla.”32

178
verve

Notas

1
Esta lista de situações que cercam um estudante brasileiro de dez anos embora
pareça ‘típica’ é bastante limitada, pode-se ter uma noção disto lembrando
que,em 1990, 60% das unidades escolares do Brasil eram escolas multisseriadas,
ou seja escolas que reúnem, simultaneamente, em uma mesma sala de aula e sob
a responsabilidade de um mesmo professor as primeiras quatro séries do ensino
fundamental, cf. Cássia Ferri. Classes multisseriadas: que espaço escolar é esse?
Florianópolis, 1994, p. 152. Dissertação de Mestrado em Educação - Centro de
Educação, Universidade Federal de Santa Catarina. Com isto quero lembrar a
grande parcela dos alunos brasileiros nesta faixa etária que não tem acesso a
computadores, não conhece ‘vídeo games’, não tem tênis da moda e sequer
energia elétrica em suas casas, ou seja, a realidade dos estudantes do país é
muito variada e desigual não podendo ser tomada como padrão a classe média
dos centros urbanos, até porque classe média no Brasil, com casa, carro e
computador, é muito pouca gente.
2
Maria Radespiel. Alfabetização sem segredos: temas transversais. Contagem, Editora
IEMAR, 1998.
3
Ensino fundamental é a denominação que substitui, na nova Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei Federal n.9.394 de 20/12/1996, a
antiga denominação de primeiro grau da LDB anterior, Lei Federal n. 5692 de
11/08/1971. O ensino fundamental refere-se às oito primeiras séries (mais
rigorosamente aos quatro primeiro ciclos, correspondendo cada ciclo a duas
séries) da educação escolar e corresponde ao ensino obrigatório exigido pelo
Estado, cf. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares
nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília, MEC/SEF, 1997.
4
Temas transversais, são uma série de cinco temas (ética, saúde, meio ambiente,
orientação sexual e pluralidade cultural), instituídos pela nova LDB para o
ensino escolar. Não constituem disciplinas e podem ser desenvolvidos dentro
de qualquer disciplina, com maior ou menor grau de aprofundamento, segundo
necessidades que podem variar quanto a faixa etária dos alunos, especificidades
regionais ou demandas de cada grupo. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros curriculares nacionais: Apresentação dos temas transversais e ética. Brasília,
MEC/SEF, 1997.
5
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Coordenação-
Geral do PNDST/AIDS. Drogas, AIDS e Sociedade. Brasília, Coordenação Geral
de Doenças Sexualmente transmissíveis/AIDS, 1995, p. 3.
6
Richard Bucher. Prevenindo contra as drogas e DST/AIDS: populações em situação
de risco. Ministério de Saúde. Programa Nacional DST/AIDS. Brasília, out.
1995, p. 22.
7
Idem, p. 22.
8
Neri Filho. “ Preconceitos e conceitos sobre drogas in: Drogas, AIDS e Sociedade.
Brasília: Coordenação Geral de Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS,

179
1
2002

1995, p. 28.
9
Idem, p. 29.
10
Richard Bucher. “Drogas na sociedade” in: Ministério da Saúde. Secretaria de
Assistência à saúde. Coordenação-Geral do PNDST/AIDS. Drogas, AIDS e
Sociedade. Brasília: Coordenação Geral de Doenças Sexualmente Transmissíveis/
AIDS, 1995, p. 35.
11
Idem, p. 48.
12
Richard Bucher. Prevenindo contra as drogas e DST/AIDS: populações em situação
de risco. Ministério da Saúde. Programa Nacional DST/AIDS. Brasília, out.
1995, p. 08.
13
Idem, p. 27.
14
Ibidem, p. 28.
15
I Fórum Nacional Antidrogas (Brasília: 1998). Relatório do I Fórum Nacional
Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasília, SENAD, 1999, p. 05.
16
Discurso do presidente Fernando Henrique, na abertura do I Fórum Nacional
Antidrogas in: Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas, 27 a 29 de novembro de
1998. Brasília, SENAD, 1999, p. 08.
17
Idem.
18
Relatório do Grupo de Repressão in: I Fórum Nacional Antidrogas in: Relatório
do I Fórum Nacional Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasília, SENAD,
1999, p. 40.
19
Idem, p.42.
20
I Fórum Nacional Antidrogas in: Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas, 27
a 29 de novembro de 1998. Brasília, SENAD, 1999, pp. 17-24.
21
Eliane Maria Fleury Seidi (org). Prevenção ao uso indevido de drogas: diga SIM à
vida. Brasília, CEAD/UNB, SENAD/SGI/PR, 1999, vol. 01, p. 04.
22
Idem.
23
Instrução programada é um conjunto de técnicas de ensino baseadas nas
teorias da comunicação em que o aluno é encarado como um dispositivo
receptor de informações input que processando-as pode devolvê-las ao meio,
output; a análise da qualidade da informação processada permite avaliar a
aprendizagem. Uma das novidades disso tudo são os materiais auto instrucionais,
elaborados por programadores especializados, que segundo a lenda permitem
ao aluno aprender conteúdos escolares sozinho, sem a intervenção do professor.
Posta em marcha nos anos setenta, a instrução programada foi a panacéia
pedagógica da Ditadura Militar, adquirida por preços altos com a celebração do
acordo MEC/USAID, quando a educação pública passou a ser estratégia de
segurança nacional.
24
Cf. Elaine Maria Fleury Seidl (org.). Prevenção ao uso indevido de drogas: diga sim
à vida. Brasilia, CEAD/UnB; SENAD/SGI/PR, 1999. Vol. 1, pp. 20-21.

180
verve

25
Carlos dos Santos Silva. Drogas! Se eu quiser parar você me ajuda? Rio deJaneiro,
Autores e Agentes Associados, 1977. 3ª ed., p. 17.
26
Idem, p. 8.
27
Secretaria Municipal de Educação de Criciúma. Criciúma cuidando da sua
saúde: diga nãao às drogas. Curitiba, Base Editora, p. 13.
28
Governo do Estado de Santa Catarina. Previda, programa prevenção educação e
vida: subsídios de prevenção integral para o educador. Florianópolis, Secretaria de
Estado da Educação, Cultura e Desporto, p. 11.
29
Família; Adolescência; Sexualidade; DST; AIDS; Relacionamento; Amizade;
Religiosidade; Valores; Meios de Comunicação; Poder de Decisão; Projeto de
Vida; Participação do Jovem na Construção da História; Educação Ambiental;
Educação para o Trânsito; Trabalho e Lazer; Recomendações Gerais; Abordagens
de Prevenção; Drogas Psicotrópicas; Automedicção; Álcool; Tabagismo; Drogas
Voláteis; Maconha e,finalmente, Cocaína.
30
Max Stirner. O Falso Princípio de Nossa Educação. São Paulo, Imaginário, 2001.
31
Folha de São Paulo, 01/01/2001.
32
Michel Foucault. “Fobia al Estado” in La Vida de los Hombre Infames — ensayo
sobre desviación y dominación. Madrid, La Piqueta, 1990, p. 308.

resumo abstract
Uma problematização do apelo, cada vez A problematization of appeal, increas-
mais efetivo e insistente, para que a ingly effective and insistent, to make
sociedade participe das decisões society participate in government’s
governamentais por meio de denúncias decisions through denouncing is the final
é o ponto de chegada deste trabalho. A destination of this work. It is possible,
partir disto pode-se falar de uma espécie based on these elements, to speak of a
de pedagogia da denúncia levada a certain type of pedagogy of denounce
termo pelos principais meios de comuni- carried out by the mass media –
cação – televisão, rádio, jornais e rede television, radio, newspaper and school
escolar. A abordagem das drogas legais system. The approach given to legal
e ilegais encaminhada por órgãos e and illegal drugs by governmental
representantes oficiais do Estado agencies and official representatives of
brasileiro é apresentada aqui como the Brazilian state is presented as an
exemplo do modo de funcionamento de example of the way governmental
estratégias de governamentalidade. strategies operate.

181
1
2002

criticamos mais duramente um pensador


quando ele oferece uma proposição
que nos é desagradável; no entanto,
seria mais razoável fazê-lo quando sua
proposição nos é agradável

Nietzsche

182
verve

antimilitarismo e anarquismo

jaime cubero*

Se fizermos a qualquer pessoa a pergunta se ela é


favorável à guerra, acreditamos que não haverá uma
só que responda afirmativamente. No entanto, qualquer
estudo, mesmo não aprofundado, demonstra que nos
últimos 50 anos o militarismo cresceu de tal forma no
mundo que com exceção do que resta das sociedades
primitivas não há uma só sociedade organizada que não
esteja fortemente militarizada.
O problema é tão complexo e tão vasto que apenas
podemos apontar alguns aspectos básicos para serem
debatidos. Vamos dividir o tema em três partes para
facilitar a análise, ainda que em seus aspectos mais
gerais: o soldado profissional em sua estrutura
organizacional moderna; o militarismo e a indústria de
armamentos e o movimento anarquista em face dessa
realidade. Evidentemente durante nossas análises não
poderíamos deixar de enfocar o aspecto crítico anarquista.

*
Jaime Cubero participou da reativação do Centro de Cultura Social de São
Paulo, nos anos 80. Aglutinou anarquistas e libertários e se tornou referência
para militantes e pesquisadores, acolhendo-nos com generosidade, humor e
contundência (Nota dos Editores). Palestra proferida na Universidade Estadual
do Rio de Janeiro em Agosto de 1991.

183
1
2002

Em todos os países, sem exceção, as forças armadas


acumularam um poder gigantesco que se projeta em
todo o emaranhado político da sociedade contempo-
rânea, apesar de um forte conflito interno de inte-
resses; e parecerem impraticáveis as ditaduras
militares à moda antiga nas modernas sociedades
industriais. Os controles políticos passam por outras
instâncias.
Os profissionais da violência mudam no ritmo da
constante transformação da tecnologia de guerra,
embora a imagem que o povo tem do soldado profissional
seja anacrônica. As pessoas, inclusive as politizadas,
preferem permanecer desinformadas e de um modo
geral vêem os oficiais superiores das forças armadas
como pessoas que tomam decisões políticas e muitos
gostariam de ver seus filhos seguindo a carreira
militar, principalmente nos EUA, porque uma elite,
dentro da profissão, detém o poder real e potencial de
exercer controle sobre o comportamento dos outros.
A partir do século XIX, as instituições militares de
países industrializados tornaram-se organizações
integradas com uma elaborada estrutura hierárquica
quando a concepção do estado-maior se torna uma
necessidade administrativa. Há uma alteração no
fundamento da autoridade e da disciplina, uma
mudança de dominação autoritária no sentido de
manipulação, persuasão, explicação e especialização,
apesar da organização militar continuar rigidamente
estratificada pelas condições de comando na guerra. A
mudança lenta e contínua, o caráter técnico da guerra
moderna, exigindo soldados altamente qualificados, faz
com que, em qualquer equipe militar complexa, um
importante elemento de poder passe a residir em cada
membro que deve prestar sua contribuição técnica.
Mas sendo o princípio organizacional autoritário a
dominação — a emissão de ordens diretas sem que se
dê suas razões —, o oficial profissional é um discipli-
nador. Como toda organização de grande escala hierar-

184
verve

quizada burocratiza-se, a instituição militar moderna


não escapa à regra.
A partir do começo deste século, o desenvolvimento
militar tecnológico tornou-se tão amplo que se pode falar
de uma revolução organizacional das forças armadas,
assim como houve uma revolução organizacional na
produção industrial, com a entrada de armas e balísticos
nucleares, todo tipo de foguetes e aviões super-sofis-
ticados, a informática no uso de quase todas as armas,
a guerra química, etc. As forças armadas parecem ter
se transformado num gigantesco complexo de
engenharia. Hoje, o profissional militar se divide nos
três papéis, o herói glorioso, o administrador e o tecno-
logista, sem perder o plano da hierarquia e da auto-
ridade. Um exemplo é o Regulamento de Contingências
para o Exército e a Marinha do Brasil de 100 páginas
com 315 artigos, muitos divididos em parágrafos que
devem ser cumpridos à risca. O capítulo I começa com
os sinais de respeito assim:
“1) Todo militar deve aos seus superiores obediência
e respeito como tributo à autoridade de que se acham
investidos pela lei.
2) As provas de disciplina devem ser manifestadas
em todas as circunstâncias de tempo e lugar, por
atitudes e gestos precisos, rigorosamente observados.
3) A espontaneidade e a correção dos sinais de
respeito são índices seguros do grau de disciplina de
uma corporação militar, bem como da educação
profissional e moral dos seus elementos, pois só homens
de músculos flexíveis e bem educados moralmente são
capazes de cumprir com perfeição, elegância e boa
vontade esta parte do dever militar.
4) Nas escolas, navios, corpos de tropas e
estabelecimentos militares ou navais, deve haver maior
empenho em que os sinais de respeito regularmentares
se transformem em atos reflexos, mediante cuidadosa
instrução e continuada exigência”.
Do artigo 288, que ocupa quase uma página, sobre

185
1
2002

cerimônias de compromisso destacamos o seguinte: “O


oficial presta em voz alta e pausada o seguinte
compromisso: Perante a bandeira e pela minha honra,
prometo cumprir os deveres de oficial do Exército e
dedicar-me inteiramente ao serviço da Pátria”.
Toda uma ideologia contribui para a formação
psicológica do profissional militar: a idéia da pátria, o
culto e as cerimônias com a bandeira, os hinos, honras
aos oficiais superiores, honras funerais, as insígnias,
etc. São elementos de um ritual que conforma a
submissão e a lealdade ao poder constituído, seja qual
for e a própria hierarquia. O subordinado se humilha
ante o seu superior e humilha o seu inferior, do chefe
supremo até o recruta sobre quem cai o peso da
deformação que o sistema faz da condição humana. O
recruta não tem a quem humilhar.
Mas, modernamente, a tecnologia da guerra é tão
complexa que a mera disciplina autoritária não é
garantia para a coordenação de um complexo de
especialistas. A ação é cada vez mais dependente da
eficiência de cada membro do grupo do que da estrutura
disciplinar autoritária. Mas como as ações se
fundamentam em violência e crise extrema, as
organizações militares se reservam o direito de exercer
sanções drásticas contra o seu pessoal. As tensões da
vida militar não conduzem à perpetuação da velha
ordem como tal, mas à perpetuação de extenso
ritualismo e crises de rigidez organizacional.
As forças armadas têm crescido relativamente no
mundo, numa proporção muito maior que o crescimento
da população. Além dos treinamentos, a profissio-
nalização significa incorporação “num esquema de
ferro” e doutrinação. Por princípio, todo profissional
militar está obrigado à honra. Supõe-se que a honra
assegure a lealdade para com a carreira. Hoje em dia
há uma progressiva incapacidade da honra de resolver
as tensões no seio da profissão, apesar dos esforços para
tornar compatível o desempenho e a especialidade

186
verve

técnica com o código de honra e a busca de glória. Os


comportamentos mais surpreendentes se manifestam.
No dia 14 deste mês, a rede SBT de televisão, em seu
noticiário internacional anunciava que o governo dos
EUA expulsara em torno de mil militares homossexuais,
das três armas, que “aprontaram” na Guerra do Golfo.
Alguns setores do movimento gay protestaram
informando que isso de nada adiantaria uma vez que o
número de homossexuais nas três armas ultrapassa a
casa dos cem mil.
Segundo as definições da honra militar, o soldado
profissional está “acima da política”. Em qualquer
sociedade autoritária estar acima da política significa
que o oficial está comprometido com o “status quo”. O
conservadorismo militar proclama ser imprescindível
a propriedade privada como base de uma ordem política
estável, ou a propriedade vinculada ao Estado, como nos
países comunistas. E é da doutrina militar que as
guerras são inevitáveis: que a natureza do homem faz
com que a violência organizada seja o árbitro final entre
as nações. Assim, as guerras são essencialmente ações
punitivas. Se a guerra é inevitável, justifica-se a
máxima eficiência técnica organizacional. A ação
militar é planejada para facilitar uma total incorporação
política ou simplesmente “punir” os fora da lei. Exemplo:
a guerra recente do Golfo Pérsico. O uso da força nas
relações internacionais foi alterado de tal maneira que
hoje parece mais apropriado falarmos de forças policiais
que militares. O estabelecimento militar transforma-
se numa força policial continuamente preparada para
agir. Noam Chomsky, num artigo sobre as questões que
envolveram a Guerra do Golfo, expressa bem o papel
dos EUA como atual explorador do “virtual” monopólio do
mercado de segurança, como meio de obter concessões
econômicas de outros países por serviços prestados como
policiais de aluguel do mundo inteiro.
A ascensão do administrador militar, significa um
maior esforço dos oficiais para se manterem a par das

187
1
2002

correntes intelectuais. Sua atitude em relação à


atividade intelectual é ambígua, porque sua função
consiste em proporcionar soluções específicas para
complexos problemas administrativos e organizacionais.
Citemos a utilização da antropologia. Informações
antropológicas foram obtidas para silenciar, por via
aérea, aldeias asiáticas tanto quanto a utilização de
dados antropológicos para assassinar lideranças
comunitárias na Ásia.
Mas o grande problema do militarismo, a mais séria
questão a ser encarada e que só o movimento anarquista
coloca, está além da estrutura da organização militar.
Por que fracassam todas as conferências de paz? Não
têm efeito todos os movimentos de jovens de todo o
mundo pela cessação das intervenções armadas? Muita
gente neste mundo é pacífica. Luta contra a guerra.
Mas o grande e mais poderoso inimigo da paz está na
“indústria da morte”, o grande complexo industrial
militar. As economias dos países do primeiro mundo,
principalmente os EUA, são altamente militarizadas.
Os donos das grandes empresas, das grandes
corporações, bancos, inclusive, mais do que qualquer
outro grupo social detêm os efetivos instrumentos do
poder político, ocupam posições estratégicas no governo,
e fazem a política em nome de toda a nação. Esses grupos
acumulam lucros exorbitantes, fabulosos, na indústria
de armamentos. Fomentam as guerras, frias e quentes,
limitadas ou amplas, manifestam as intervenções
militares e são responsáveis pelos riscos que ameaçam
a humanidade. A vida norte-americana assumiu o feitio
de uma nação em guerra permanente e o desarma-
mento pra valer seria uma ruína econômica em termos
capitalistas. O poderoso parque industrial de bens de
consumo que serve à imagem externa dos EUA tornou-
se um gigantesco complexo industrial-militar. Os
industriais da morte exercem poderosa e sinistra
influência no mundo de hoje. No mundo capitalista não
há conciliação entre o ideal de paz e a sede de lucros

188
verve

desses monopólios, dessas multinacionais da morte, que


nunca se satisfazem.
Atualmente, em torno de dez milhões de pessoas
trabalham na indústria da armas e munições dos EUA.
Todo o relativo conforto dessa gente repousa no sacrifício
de soldados e na dizimação de povos estranhos a eles.
Daí, as conseqüências desastrosas, que se estendem
para países dependentes da esfera do dólar. Daí, o
aviltamento dos preços de exportação desses países,
controlados que são pela demanda da indústria norte-
americana.
Os grupos que auferem lucros de armamentos e da
guerra têm responsabilidade maior pela situação tensa
com que toda a humanidade se defronta. Eles contam
com a colaboração de economistas acadêmicos e de
instituições oficiais, para elaborar técnicas econômicas
para aperfeiçoar a eficiência do militarismo e para
solidificar o papel por ele desempenhado na economia
global. Hoje, a associação de interesses que lucram com
os armamentos é o fator mais importante na promoção
da corrida armamentista. Numa aquisição de US$30
bilhões correspondentes a equipamentos, suprimentos,
e serviços comprados pelas forças armadas e pela
Comissão de Energia Atômica dos EUA. Os lucros foram
de US$13,3 bilhões antes da taxação e de US$6,4 bilhões
depois, considerando um imposto de renda de 52%1.
Os lucros obtidos na indústria eletrônica e na
exploração de novos metais para uso militar são
fantásticos, para uma demanda criada pelo avanço
tecnológico. As universidades participam intensamente
nas pesquisas e na preparação de pesquisadores
caracterizando um dos mais sombrios aspectos que o
professor Maurício Tragtenberg chamou de “delinqüência
acadêmica”.
As grandes corporações, através de seus prepostos
no governo, pressionam permanentemente pelo
aumento de verbas para o Departamento de Defesa dos
EUA. Exemplo típico é o do grupo Rockfeller quando, tendo

189
1
2002

Nelson Rockfeller como Conselheiro Presidencial e


Presidente do Conselho, publicou relatório sobre
segurança internacional. Com Henry Kissinger, como
relator e diretor do projeto, advogava com êxito o
aumento crescente no consumo de armamentos. O
grupo tem muitos investimentos na indústria de armas.
Grandes organizações bancárias têm investimentos na
indústria bélica e no exterior, investimentos em
petróleo, etc. O Chase Manhattan Bank, a Casa de
Morgan — a mais famosa de Wall Street —, o City Bank,
etc. Está claro que a comunidade financeira nada fará
para deter a marcha progressiva dos militaristas e dos
que se beneficiam dos armamentos em direção ao
Estado militarista e à guerra.
Depois da grande exibição de força e tecnologia que
foi a Guerra no Golfo Pérsico, em 17 de julho, foi assinado
o acordo sobre o Tratado de Redução de Armas
Estratégicas (Start) que prevê o corte de 30% do arsenal
nuclear de longo alcance. O acordo, um documento de
700 páginas, que ainda deverá ser ratificado pelo
Congresso norte-americano e pelo “Soviete Supremo”,
da União Soviética, diz selar o fim da guerra fria. Para
acreditar seria necessário desconhecer totalmente o
retrospecto dos acordos de paz. O primeiro acordo de
controle de armamentos nucleares foi assinado em
1968, onde EUA, União Soviética e Inglaterra se
comprometiam a suspender a transferência de armas
nucleares para outros países. Desse primeiro acordo ao
último assinado este ano, ao todo, foram 14 acordos.
Todos sabem como foram cumpridos. Os arsenais de
guerra cresceram assustadoramente após cada acordo.
Apesar da propaganda e do alcance do alarde da mídia
sobre esse último acordo assinado numa reunião de
cúpula, os EUA ainda ficarão com nove mil armas
nucleares estratégicas (admitindo-se que o acordo fosse
cumprido) e a União Soviética com sete mil (mísseis
intercontinentais com ogivas atômicas), muito mais do
que em 1982 quando se iniciaram as negociações para

190
verve

o acordo Start. A verba para o Departamento de Defesa


dos EUA, aprovada em dezembro de 1990, foi de US$3,9
trilhões. O orçamento militar da URSS é gigantesco. O
próprio Gorbachev admitiu que mais de 40% dos
recursos soviéticos são destinados à indústria militar.
Os grandes produtores de armas, na atualidade, estão
voltados para países do terceiro mundo, que lutam por
adquirir tecnologia nessa área. O comércio de armas
não está nas mãos dos “mercados da morte” isolados,
mas também nas mãos dos governos. As vendas ao
exterior impedem às indústrias de armamentos de
sofrer flutuações das encomendas de material militar
e aliviar o orçamento de defesa do país de origem. Com
um faturamento de bilhões de dólares, as vendas de
armas são uma benção para a balança comercial. Assim,
quando os Estados entram em conflito com um país do
terceiro mundo, ele luta contra tanques, aviões ou
navios que eles mesmos venderam. Foi o caso da
Inglaterra durante a Guerra da Malvinas e dos aliados
na Guerra do Golfo, um incentivo para o aumento dos
arsenais do terceiro mundo.
Alguns países, como o Brasil, embora de terceiro
mundo são produtores de armas e até grandes
exportadores. Com total apoio das Forças Armadas vem
se preparando para ingressar na era das armas
nucleares. Segundo declaração do Ministro, a Marinha
inicia o submarino nuclear até 1992; o programa
nuclear da Aeronáutica se desenvolve no Instituto de
Estudos Avançados, subordinado ao Centro Técnico
Aeroespacial, em São José dos Campos; o projeto do
Exército, que já gastou US$ 49 milhões, é desenvolvido
pelo Centro Tecnológico do Exército, em Curitiba, e
trabalha como elemento chave para a produção da bomba
atômica.
A humanidade gasta com armas, em menos de três
horas, o equivalente ao orçamento total concedido pela
Organização Mundial da Saúde à luta contra a varíola.
Em cinco horas, o total que a UNICEF (órgão das nações

191
1
2002

unidas para ajuda à infância) destina anualmente a


crianças necessitadas. Em doze horas, uma quantia que
seria suficiente para erradicar a malária e
enfermidades endêmicas em 66 países. Todos os países
do mundo poderiam pagar sua dívida externa se lhes
fossem concedidos em investimentos produtivos um
décimo do total despendido com armas. Os recursos
destinados em média por todos os países do mundo à
investigação médica constituem o equivalente à quinta
parte dos aplicados ao estudo e desenvolvimento
tecnológico do setor militar. Estas são algumas das
conclusões que um grupo de economistas e cientistas,
integrantes de organizações de defesa dos direitos
humanos divulgaram. Segundo as estatísticas
divulgadas há, nos países subdesenvolvidos, atualmente,
em média, um soldado para cada 250 habitantes e um
médico para cada 3.700. Para cada cem mil habitantes
do planeta, 556 soldados e 85 médicos. Gasta-se
atualmente por ano, com cada soldado, US$19.300
enquanto que os fundos públicos destinados à educação
são de US$380 a cada criança. O custo de um caça-
bombardeiro é, em média, equivalente ao necessário à
construção e equipagem de 75 hospitais de cem camas
cada um. O valor dos 27 mísseis que os EUA instalaram
em territórios de países-membros da Organização do
Tratado do Atlântico Norte pagaria o investimento em
máquinas agrícolas suficientes para assegurar, em
quatro anos, auto-suficiência alimentar aos países
pobres.
Os anarquistas têm a convicção de que numa
sociedade capitalista, seja de livre mercado, seja de
capitalismo de Estado, o militarismo jamais será
eliminado. O nacionalismo exacerbado que informa toda
ideologia do Estado nacional moderno, fonte e
sustentação de privilégios, exploração e opressão, em
qualquer sistema político que nele se fundamente,
também sustenta o militarismo, que se alimenta da
mesma ideologia. É tradição do movimento anarquista

192
verve

combater o militarismo. A luta contra a instituição


militar, face às suas características atuais, não pode
ser isolada da grande luta pela transformação da
sociedade. Combater o capitalismo e o Estado é a melhor
maneira de combater o militarismo. Libertar as
consciências com análises críticas, objetivas, com
clareza, mostrando que o problema é muito maior, que
vai muito além da farda.
A luta vem de longe. Em 1868, o Congresso
Internacional Socialista de Bruxelas, adota por unani-
midade uma resolução em que os operários eram
exortados a tornar a guerra impossível por meio de greve
geral. Mas contrariando a proposta, quando Domela
Nienwenhuls, grande militante do anarquismo, propôs
no Congresso Internacional Socialista de 1891, em
Bruxelas, e em 1893, em Zurique, que recomendassem
a greve geral e a recusa de marchar para a guerra, como
meio de evitar guerras ameaçadoras, a maioria rejeitou
a proposição. Apenas, em Zurique, os delegados da
Austrália, da França, da Holanda, e da Noruega quiseram
ainda continuar a luta socialista revolucionária contra
a guerra. Quando no princípio do século XX uma guerra
mundial ameaçava os povos, Domela Nieuwenhuls,
juntamente com Janvion, Almereyda, Ivetot e Jourdan
convocaram um congresso Internacional Antimilitarista
em 1904, em Amsterdam, que se realizou entre 26 a 28
de junho do mesmo ano. Havia delegados de várias
regiões mineiras, que representavam 116000
operários. Com representantes dos companheiros da
Boêmia, da França, da Holanda, da Áustria, de Portugal
e da Itália, fizeram-se grandes demonstrações.
Posteriormente realizaram-se vários congressos que
deram origem ao Bureau Internacional Anti-Militarista,
B.I.A., com sede na Holanda, congregando as diferentes
organizações anti-militaristas, tanto anarquistas como
sindicalistas. Esse Bureau foi fundado num congresso
Internacional realizado em Haia, em março e abril de
1921, com a seguinte declaração de princípios: “O B.I.A.

193
1
2002

contra a guerra e a reação, composto por organizações


anti-militaristas revolucionárias, tem por objetivo
trabalhar internacionalmente contra o militarismo. A
fim de tornar impossível a guerra e a opressão das
classes trabalhadoras, esforça-se por desenvolver no
espírito dos trabalhadores a consciência do seu decisivo
poder econômico”
“Empreende propaganda de greve geral e recusa em
massa do serviço militar”.
“Preconiza a cessação imediata de todo o fabrico
destinado à guerra e a não participação no militarismo”.
“Esforça-se por tornar inúteis as armas e os navios
de guerra”.
“Rende homenagem a todos aqueles que se recusam
individualmente a todo o serviço militar”.
“Opõe-se de forma veemente contra qualquer
tentativa de nova dominação exercida por intervenção
armada contra um proletariado que tenha rompido com
o jugo capitalista”.
“Opõe-se veemente contra todas as formas de
exploração econômica e opressão militar de que são
vítimas as raças de cor; procura a união e colaboração
do proletariado revolucionário do Norte ao Sul, do
Oriente ao Ocidente”.
“A organização do B.I.A. é de caráter federativo. No
congresso foi expresso o desejo de que todas as
organizações anti-militaristas revolucionárias de um
determinado país se unissem num Bureau Nacional,
que trabalharia tanto quanto possível de acordo com o
B.I.A. Compõe-se pelo menos de um membro em cada
país onde existam organizações aderentes. Este Bureau
designa, por um espaço de tempo determinado, um certo
país, onde esteja domiciliado o Comitê Executivo. O
Congresso designou os Países-Baixos. O Comitê
Executivo não tem poder dirigente. Faz correspondência,
recolhe dados, envia comunicados à imprensa, estuda
tanto quanto possível as relações políticas e econômicas
internacionais, lança o alarme internacionalmente em

194
verve

caso de guerra imediata, incita a agir no sentido da


declaração de princípios e estimula em seguida por todos
os meios, conforme está fixado no programa e é aceito
como meio de luta.”
Depois de arrolar uma espécie de trabalhos
desenvolvidos pelo B.I.A., o Secretário do Comitê
Executivo comunica os futuros congressos até o de
janeiro de 1923, em Berlim, com as adesões da
Argentina, Finlândia, Itália e Brasil. A divisa do B.I.A.
era a seguinte: “nem um homem, nem um centavo,
nem um gesto a favor do militarismo”.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o B.I.A. deu
lugar à “Internacional dos Resistentes à Guerra”, com
sede na Inglaterra. Editando um Boletim em inglês e
francês, com edições mimeografadas também em
alemão e esperanto, sua propaganda sempre foi
dirigida para o Movimento dos Objetores de
Consciência.
Os objetores de consciência desenvolvem uma luta
contra o serviço militar obrigatório e o direito à
insubmissão. Vale a pena conhecer o manifesto dos
objetores de consciência publicado, recentemente,
numa revista argentina:
“Manifesto dos Insubmissos:
Os objetores de consciência, que estamos
recebendo ordens de incorporação ao Exército para
prestar o serviço militar, queremos dar ao recru-
tamento forçado uma resposta ativa e coletiva,
apresentando-nos publicamente ante a Jurisdição
Militar, para a qual é delito nossa postura pacífica e
solidária, e manifestamos:
1) Que fazemos objeção de consciência negando-
nos a prestar o serviço militar; conscientes de que
com isso estamos contribuindo para que as relações
entre as pessoas e os povos sejam baseadas na justiça
e na solidariedade.
2) Que somos partidários da liberdade, da
responsabilidade, da participação e da paz e

195
1
2002

entendemos que tudo isso contraria a lógica militar.


Por isso, não queremos colaborar com o Exército
prestando o Serviço Militar, por entender que se o
fizéssemos estaríamos afirmando valores negativos,
como a obediência cega, o machismo, a dominação e
o poder. Estaríamos colaborando com a chamada ordem
econômica internacional; transformar-nos-íamos em
consumidores de orçamentos astronômicos que,
impedindo o desenvolvimento desviam os recursos do
planeta para a guerra e a destruição. Não queremos
ser parte do Exército porque não queremos ser
instância necessária da dominação de umas nações
sobre outras, do domínio de umas pessoas sobre
outras.
3) Que ao negarmos expressamente a prestação do
serviço militar entendemos que não podemos ser
considerados como militares, mas mantemos sempre
nossa condição de civis.
4) Que somos objetores de consciência, sem
necessidade de que nenhum organismo adminis-
trativo tenha porque declarar nossa condição como
tal, no âmbito de uma lei cujo objetivo é conseguir
que o protesto contra o serviço militar obrigatório, que
os objetores de consciência fazem, não seja levado
em consideração.
5) Que a imposição de uma prestação de serviço
por outra que a substitua, para os objetores de
consciência não tem sentido se não é entendida no
âmbito do recrutamento forçado.
6) Que fazemos um chamamento a toda a população
para que da mesma forma que nós, desobedeçam as
imposições militares fazendo objeção de consciência
(antes, durante e depois do serviço militar) impedindo
a implantação das mulheres nas forças armadas. Não
cumprindo as tarefas que substituem o serviço militar
e combatendo o financiamento das despesas militares
mediante a objeção fiscal.
Por tudo isso, entendemos que nossa oposição a

196
verve

toda conscrição, a todo recrutamento, ainda que sob


ameaça de prisão, constitui um gesto de
responsabilidade social que estamos dispostos a levar
adiante e para o qual esperamos o apoio e a
compreensão de toda a sociedade civil”2.
Como já dissemos, a luta dos anarquistas contra o
militarismo significa uma luta maior. A história da
origem e desenvolvimento dos mercadores de armas
revela-os como uma ameaça crescente. Toda guerra
moderna ameaça envolver metade do mundo. O
negócio da indústria cresce constantemente e os
governos, em toda parte, estreitam os laços que os
ligam, numa parceria com os mercadores da morte.
A guerra já aparece como maior e mais importante
atividade dos governos. O desarmamento e a
verdadeira paz só serão atingidos quando as forças
representadas pelos fabricantes de armas forem
esmagadas e eliminadas. O problema do desarma-
mento e da verdadeira paz é, por conseguinte, o
problema de construir uma nova civilização. É a
grande luta dos anarquistas. E no aqui e agora só resta
às pessoas interessadas apoiar todas as ações e todos
os movimentos contra a guerra. Lutar contra o
nacionalismo, o chauvinismo onde quer que eles se
apresentem, na escola, na imprensa, no trabalho e
em todos os lugares.
A guerra é feita pelo homem; e a paz, na nova
sociedade, quando chegar, também será feita pelo
homem.

Notas:

1
Extraído de: Victor Perlo. Militarismo e indústria: armamentos e lucros na era dos
projéteis. Rio de Janeiro, Paes e Terra, 1969.
2
Manifesto da FOSMO — Frente de Oposição ao Serviço Militar Obrigatório
— publicado na revista La Letra A, anarquista, de Buenos Aires, julho de
1991.

197
1
2002

revolta e ética anarquista

nildo avelino *

Estudar a memória do Centro de Cultura Social e de


seus membros é um trabalho de geração. Fundado em
14 de Janeiro de 1933, ele é resultante de uma tradição
anarquista que remonta ao início do século XX com uma
intensa atividade anarco-sindicalista na cidade de São
Paulo.
No início do século passado, o sindicato foi o grande
baluarte das lutas e reivindicações operárias de
influência anarquista; houve outras frentes de batalha
dos libertários, como o anti-clericalismo e o anti-milita-
rismo, mas quase sempre foram conduzidas tendo à
frente o sindicato operário como força de mobilização
para a prática revolucionária.
Os antecedentes históricos do anarco-sindicalismo
brasileiro são encontrados na fundação da Associação
Internacional de Trabalhadores, conhecida como 1ª
Internacional, no dia 28 de setembro de 1864, durante
o meeting de St. Martin´s Hall, em Londres. O histórico
da 1ª Internacional é fundamental para se entender o
movimento social europeu e seus desdobramentos
futuro, correspondendo aos anos de 1860-1870, uma

*
Mestrando em Ciências Sociais na PUC-SP e integrante do Centro de Cultura
Social de São Paulo.

198
verve

década localizada entre os acontecimentos de 1848 e a


Comuna de Paris, refletindo o despertar do movimento
operário para um radicalismo crescente.
Alguns dos traços distintivos da ação sindicalista
revolucionária são encontrados já no 1º Congresso de
Genebra, em 1866, quando na seção do dia 5 de setembro
são discutidos os onze artigos que compõem seus
estatutos provisórios. Em relação ao artigo 8º, que trata
das condições exigidas para adesão, o congresso registra
“uma longa e animada discussão”1; parte da assembléia
pede que qualquer cidadão, mesmo não sendo traba-
lhador manual, possa fazer parte da Associação; já os
delegados de Paris e Suíça, em sua maioria
proudhonianos, exigiam ao contrário, a qualidade de
trabalhador manual, sob alegação de que a Associação
poderia ser vítima de muitos ambiciosos e aventureiros,
objetivando tornarem-se senhores da Associação e
utilizá-la para seu próprio interesse. Depois de longa
discussão, a assembléia pronunciou que:
“Será admitido como membro da Associação
Internacional de Trabalhadores qualquer homem que
possa justificar sua qualidade de trabalhador; deste
modo, cada seção terá liberdade para admitir, sob sua
responsabilidade, a quem julgue conveniente”2.
Todavia, a polêmica reaparece na seção do dia 8,
novamente envolvendo os proudhonianos, e desta vez na
discussão do item 11 dos “regulamentos especiais” da
Associação, o qual dispunha que “cada membro da
Associação tem direito a votar e ser votado para delegação”3.
Nesta ocasião Tolain, delegado da seção parisiense, objeta:
“Se é indiferente admitir como membro da
Associação Internacional cidadãos de todas as classes,
trabalhador ou não, não deve ocorrer o mesmo quando
se trata de eleger um delegado. Em presença da
organização social atual em que a classe trabalhadora
sustenta uma luta sem trégua nem descanso contra a
classe burguesa, é útil, é mesmo indispensável que
todos os homens que sejam encarregados de representar

199
1
2002

grupos operários, sejam trabalhadores”4.


A mencionada preocupação do proudhoniano Tolain,
que ao querer como delegados dos operários apenas
trabalhadores manuais, além de exteriorizar sua
desconfiança das profissões liberais de origem
burguesa, denota igualmente, e com mais força, a
influência das idéias de Proudhon, e mais particu-
larmente de sua obra póstuma A Capacidade Política da
Classe Operária, na qual Proudhon coloca o operário
como sujeito da ação revolucionária sem qualquer
intermediação.
Com isso quero afirmar que, abstraindo as origens
filosóficas do anarquismo e de sua eventual filiação em
revoltas e aspirações populares de um passado anterior,
é certo dizer que seu aparecimento enquanto
movimento social definido se dá como expressão do
movimento operário, como sindicalismo revolucionário
desde o berço. Proudhon, considerado o “pai do
anarquismo moderno”, tem ele mesmo origem operária
e todo seu pensamento constituiu uma reflexão sobre a
realidade destes a quem ele considerava “irmãos de
miséria”; após sua morte, o pequeno grupo que irá
constituir o núcleo da AIT na França se declarará
mutualista. Desta forma, o anarquismo ganha
expressão de movimento social, inicialmente, vendo no
sindicato o grupo essencial, o órgão específico da luta
de classes e o núcleo re-organizador da sociedade
futura: a emancipação operária se daria pela prática
revolucionária na luta solidária dos operários contra os
patrões, cujo o objetivo buscava a organização e a
crescente federação dos sindicatos.
Se essas são as origens das práticas anarquistas,
muito ainda se daria com a cisão da 1ª Internacional
entre centralistas e federalistas, uma nova orientação
seria dada às concepções anarquistas do sindicalismo.
Durante o congresso de Berna, em 1876, a discussão
sobre a origem dos delegados da Associação foi
reacendida e o discurso de Errico Malatesta, então

200
verve

delegado da seção italiana, estende o anarquismo para


além da causa operária ao afirmar “que a Internacional
não deve ser uma associação exclusivamente operária”
e que “o fim da revolução social, com efeito, não é só a
emancipação da classe operária, mas a emancipação da
humanidade inteira”5. Malatesta havia compreendido os
cismas intestinos que dividiram a Internacional,
extraindo deles ensinamentos que seriam adotados pelos
anarco-sindicalistas de todo mundo. Sua notoriedade
enquanto pensador e homem de ação já era bastante
sentida nesta época, o que tornou sua influência muito
forte entre os anarquistas. Num artigo reproduzido por
Neno Vasco, na sua Concepção anarquista do sindicalismo,
o autor destaca as seguintes palavras de Malatesta:
“Na Internacional, fundada como federação de
associações de resistência para dar mais larga base à
luta econômica contra o capitalismo, bem depressa se
manifestaram duas tendências: uma autoritária outra
libertária, que dividiram os internacionalistas em duas
facções inimigas, conhecidas ao menos nas duas alas
extremas, pelas designações dos nomes de Marx e
Bakunin.
Um queria fazer da Associação um corpo disciplinado
às ordens duma Comissão central, os outros queriam
que ela fosse uma livre federação de grupos autônomos;
uns queriam submeter a massa para fazer, conforme a
rançosa superstição autoritária, o bem dela à força, os
outros queriam sublevá-la e induzí-la a emancipar-se
por si mesma; mas um traço comum caracterizava os
inspiradores das duas facções: uns e outros prestavam
à massa dos associados as suas próprias idéias,
julgando que a tinham convertido quando haviam obtido
a sua adesão mais ou menos inconsciente”6.
Malatesta conclui seu artigo afirmando que não se pode
cometer os mesmos erros e que “as causas que por fim a
mataram, isto é, a oposição entre autoritários e libertários
dum lado, e do outro a distância existente entre os homens
de idéias e a massa semi-consciente só movida pelos

201
1
2002

interesses [imediatos], acham-se hoje prontas para


impedir o nascimento e o crescimento de uma nova
Internacional, que fosse como a primeira ao mesmo tempo
sociedade de resistência econômica, oficina de idéias e
associação revolucionária”7. E por fim, fornecendo a
orientação que seria adotada pelos sindicalistas
revolucionários, termina Malatesta dizendo que:
“A nova Internacional só pode ser uma associação
destinada a reunir todos os operários (isto é, o maior
número deles) sem distinção de opiniões sociais,
políticas e religiosas para a luta contra o capitalismo, e
por isso não deve ser nem individualista, nem
coletivista, nem comunista; não deve ser nem
monárquica, nem republicana, nem anarquista; não
deve ser nem religiosa nem anti-religiosa. Única idéia
comum, única condição de admissão: querer combater
os patrões”.8
Esses foram alguns dos desdobramentos que
sofreram as concepções anarquistas e os militantes
brasileiros estavam sensíveis a tais desenvolvimentos;
é forçoso dizer que tais mudanças de concepção foram
frutos da experiência de seus militantes, dos erros e
acertos do próprio movimento. Este fato foi mal
compreendido por diversos historiadores que atribuem
este caráter de organização do movimento operário
brasileiro a uma fase “primária” ou “pré-política” de sua
evolução. Porém, sendo em si uma questão de método
de grande relevância política para os anarquistas, por
ele pautaram-se os congressos operários brasileiros
ocorridos respectivamente em 1906, 1913 e 1920,
garantindo os princípios do sindicalismo revolucionário
nos moldes europeus.
Com a proliferação das ligas operárias durante os anos
de 1903 à 1905, em novembro de 1905 é criada a FOSP
(Federação Operária de São Paulo) e em abril do mesmo
ano já acontece o “I Congresso Operário Brasileiro”.
A presença dos anarquistas é decisiva para orientar
os principais rumos do movimento. Entre outras coisas,

202
verve

combateram a orientação política do movimento,


devendo este ser orientado apenas economicamente:
os sindicatos são órgãos de resistência econômica,
devendo abster-se do processo eleitoral e das questões
religiosas; os anarquistas combateram as posições dos
moderados de que uma burocracia remunerada dina-
mizaria o movimento: defenderam que a remuneração
deveria acontecer apenas para um executivo por
sindicato somente em casos e circunstâncias muito
especiais, e que o salário não excedesse o dos demais
trabalhadores sindicalizados; os anarquistas também
propuseram a criação da COB (Confederação Operária
Brasileira). Dentre as Resoluções do I Congresso
Operário Brasileiro, vale destacar duas: sobre orientação
e modalidades sindicais.
Sobre orientação, aprovou o congresso:
“Considerando que o operariado se acha
extremamente dividido pelas suas opiniões políticas e
religiosas; que a única base sólida de acordo e de ação
são os interesses econômicos comuns a toda classe
operária, os de mais clara e pronta compreensão; que
todos os trabalhadores, ensinados pela experiência e
desiludidos da salvação vinda de fora de sua vontade e
ação, reconhecem a necessidade iniludível da ação
econômica direta de pressão e resistência, sem a qual,
ainda para os mais legalitários, não há lei que valha.
O I Congresso Operário aconselha o proletariado a
organizar-se em sociedade de resistência econômica,
agrupamento essencial, e sem abandonar a defesa, pela
ação direta, dos rudimentares direitos políticos de que
necessitam as organizações econômicas, a pôr fora do
sindicato a luta política especial de um partido e as
rivalidades que resultariam da adoção, pela associação
de resistência, de uma doutrina política ou religiosa,
ou de um programa eleitoral.”9
Em modalidades sindicais foi vivamente rejeitada a
remuneração de cargos nos sindicatos por serem
suscetíveis de “produzir rivalidades e intrigas, ambições

203
1
2002

nocivas à organização” e por atraírem “indivíduos


unicamente desejosos de se emancipar individualmente,
trabalhando com o exclusivo fim de perceber o ordenado”10.
Nos casos excepcionais por excesso dos serviços sindicais,
era permitido um único expediente que não recebesse
ordenado superior ao salário normal da profissão. O
Congresso decide que esse funcionário não votaria e nem
poderia ser votado e que para tais cargos seriam admitidos
aqueles sócios inutilizados pelo trabalho
O congresso ainda rejeita a intervenção nos sindi-
catos de pessoas movidas por interesses contrários ou
por idéias e sentimentos estranhos aos interesses dos
operários, e decide não admitir patrões e nem qualquer
espécie de não-trabalhadores, mas apenas unicamente
assalariados; também impede a inclusão de mestres e
contra-mestres por serem os representantes dos
patrões. Sobre as conquistas imediatas, entre aumento
de salário e diminuição das horas de trabalho, esta
última é preferida pelo congresso, pois que o descanso
facilita o estudo, a educação associativa, a emancipação
intelectual e combate o alccolismo, fruto do excesso de
trabalho embrutecedor e exaustivo11. Enfim, o congresso
aprova campanha de denúncias contra a imigração,
incitando os colonos “a não emigrarem para o Brasil,
enquanto vigorar a escravidão nas fazendas”.
Durante o 2º Congresso Operário Brasileiro, realizado
em 1913 na cidade do Rio de Janeiro, fora apresentada
pela Federação Operária Local de Santos uma moção
para que aquela instância nacional recomendasse a
propaganda anarquista nos sindicatos; a moção foi
rejeitada tendo Edgar Leuenroth, militante expressivo
do anarquismo da época, se oposto pelo fato dela violar o
princípio de neutralidade dos sindicatos e limitar seu
apelo12. Os anarquistas pretendiam com a neutralidade
sindical ressaltar o que havia de essencial no
sindicalismo revolucionário13: a organização e a ação
direta do operário. O sindicato era o meio de “estar entre
as massas” e, ao invés de impor-lhes um programa,

204
verve

devia-se incitar o operário a agir por ele mesmo e cultivar


a consciência do antagonismo de classe e a necessidade
da luta coletiva.
No entanto, outra questão se impõe: se por um lado o
sindicato não pode e nem deve ser declarado
artificialmente anarquista, por outro é preciso evitar o
que os anarquistas chamaram de “automatismo sindical”,
que tende a atribuir virtudes intrínsecas ao sindicalismo,
virtudes que conduziriam “automaticamente” e
“fatalmente” a uma transformação da sociedade.
Sustentavam os anarquistas que “o fato e a ação só valem
enquanto produzem a idéia, enquanto são refletidos,
enquanto criam um pensamento diretor”14, daí o risco das
conquistas sindicais resultarem estéreis do ponto de vista
do projeto revolucionário. Contrapondo-se a esta situação,
o sindicato era concebido como instrumento de preparação
do terreno para receber a semente lançada pela
propaganda revolucionária. Sem a propaganda, comenta
Neno Vasco, “as massas, embora associadas, não saberiam
interpretar os fatos, nem aproveitar as circunstâncias,
lendo, pelo contrário, as lições da experiência no sentido
mais grato à sua preguiça e à sua inércia”15.
É aqui que a luta econômica liga-se a uma ética e
uma estética anarquistas que ultrapassam o limitado e
sufocante cotidiano fabril; novos lugares são inventados
e um novo cotidiano é dado ao indivíduo na forma de
bibliotecas, conferências, concertos, piqueniques,
espetáculos filo-dramáticos e musicais, realizados pelos
sindicatos ou por outras organizações por eles criadas
como o Centro de Cultura Social de São Paulo. São lugares
cujo objetivo é fazer o operário encontrar, nas palavras
de Neno Vasco, “o conforto convidativo da luz, do ar e da
arte [antípodas do ambiente fabril], eí-lo definitivamente
roubado às consolações dúbias do botequim e das
ilusórias fustigações do álcool [...] A música, o teatro, a
arte declamatória, enchendo os merecidos ócios do
trabalhador, enriquecendo-lhe o cérebro, burilando-lhe
o sentimento!”16.

205
1
2002

O tema da subjetividade é hoje bastante relevante


nas pesquisas em ciências sociais. Guattari17 chamou
a atenção para a importância dos fatores subjetivos em
acontecimentos como a revolta dos estudantes chineses
e o colapso da ex-URSS na medida em que foram
acompanhados de um estilo de vida, de uma concepção
das relações sociais e de uma ética e estética coletivas.
São práticas que criam valores a partir dos quais os
indivíduos se posicionam em relação aos seus desejos
e afetos na gestão de suas pulsões. Não se trata, no
anarquismo, de valores universalistas, mas de criações
heterogêneas e poéticas no sentido etimológico deste
termo. E neste aspecto, Foucault chamou de “artes da
existência [...] práticas refletidas e voluntárias através
das quais os homens não somente se fixam regras de
conduta, como também procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida
uma obra que seja portadora de certos valores estéticos
e responda a certos critérios de estilo”18.
A vida como poesia, quer dizer, a vida como criação
encontra no anarquismo uma proximidade irredutível. De
um lado ela delineia regras facultativas de conduta e de
outro se articula como antípoda da dominação simbólica
estatal, como redes articuladas de anti-disciplina para
fazer frente à disciplina industrial da paulicéia19. A prisão,
a fábrica, o hospital e as vilas operárias, possuíam os
corpos dos operários e concorriam para sua docilidade;
era preciso subtrair-lhes as vontades que, burilada pela
propaganda anarquista, despertava na existência a
invenção de outros horizontes. É como o anarquista Hebert
Read concebeu a arte e sua função criadora; segundo ele:
“Para criar é preciso destruir, e o agente da destruição
na sociedade é o poeta. Eu creio que o poeta é
necessariamente anarquista, e que deve opor-se a todas
as concepções organizadas de Estado, não somente as que
herdamos do passado, mas também aquelas impostas à
humanidade em nome do futuro. Neste sentido não faço
distinção entre fascismo e marxismo”20.

206
verve

Com este objetivo, as práticas de centros de cultura e


grupos filo-dramáticos foram privilegiadas; já no II
Congresso Estadual Operário de São Paulo, em 1908, é
aprovada a resolução que “aconselha aos sindicatos a
fundação de centros dramáticos sociais e de sessões onde
se entretenham os sócios em palestras amigáveis”21;
Edgar Rodrigues conta como a representação da peça
anticlerical Electra em Sábado de Aleluia escandalizou a
sociedade paulista no ano de 1901, assim como no ano
de 1902 o jornal O Amigo do Povo noticia a representação
— interrompida pela polícia — da peça Primo Maggio de
Pietro Gori22; esses primeiros registros de atividades
dramaturgas sinalizam um processo anterior de
associação e autoconhecimento do movimento
fomentado pela atividade sindical; registra-se uma
intensa atividade dramaturga na cidade de São Paulo,
com finalidades diversas: de solidariedade, propaganda,
comemoração ou simples entretenimento. As atividades
tinham geralmente o seguinte formato: 1) Concerto
Musical de hinos ou canções operárias e revolucionárias;
2) Conferência de algum tema relevante; 3)
Representação teatral, e; 4) Baile. “Era hábito comemorar
o 1º de Maio, 14 de Julho (tomada da Bastilha) e o 13 de
Outubro (fuzilamento de Ferrer) com representação de
peças sociais”23. O anarquismo ganha a dimensão da vida
dos indivíduos e isso é verificado num ilustrativo artigo
escrito pelo militante paulista Souza Passos no jornal A
Plebe, em 16/07/1948, no qual afirma que não se pode
reter do anarquismo apenas seu aspecto de crítica social
em detrimento de sua finalidade estética, e grifa que “a
arte, essencialmente anárquica, porque é, sem dúvida,
a expressão mais livre do individualismo e que tem uma
função criadora, quase nunca esta ligada aos motivos de
luta e combate (...). Isto tem feito com que (...) não se
conceba o anarquismo senão como um ideal de famintos,
apenas como instrumento de reivindicações proletárias,
encerrado num problema econômico e moral das massas
trabalhadoras”24.

207
1
2002

Podem ser destacados vários temas valorizados


dentro desta ética anarquista, mas falaremos de um
deles, e o mais relevante: o espírito da revolta. O
anarquista A. Hamon, depois de coletar os resultados
de um questionário aplicado em 1893, visando
descobrir o “estado d’alma” dos adeptos do anarquismo,
chegou à conclusão de que “todos os anarquistas-
socialistas são revoltados, embora nem todo revoltado
seja um anarquista-socialista” 25. No anarquismo, a
rebelião do indivíduo é a condição primeira de sua
libertação do sistema autoritário; por ela, o indivíduo
se coloca em estado de perpétua desobediência frente
aos guardiães da autoridade. Não é uma revolta lógica,
mas visceral, é um grito como nas palavras de
Proudhon: “A cólera, a indignação, o desespero, todas
as paixões de uma alma exaltada que, sentindo-se
esmaga por uma força superior quer, antes de morrer,
lançar seu dardo o mais profundamente possível: tais
têm sido as verdadeiras motivações de minha conduta
política”.26
O tema da revolta leva, no anarquismo, à questão
da auto-responsabilidade do indivíduo27 no sentido em
que, negando-se a tutela da autoridade, o indivíduo
chama para si o governo e a responsabilidade de seus
atos. Implica faculdade ética como conteúdo moral, que
Proudhon denomina moral imanente; se em Kant o
conteúdo moral é transcendente, em Proudhon e no
anarquismo ele é imanente ao indivíduo. Ora, esse é
um tema de grande atualidade e corrobora as teses
foucaultianas do “cuidado de si”. Na estética da
existência grega, Foucault chamou a atenção para as
práticas que constituem uma “moral” cuja importância
recai nas formas das relações que o indivíduo mantêm
consigo, nos procedimentos pelos quais essas práticas
são elaboradas e nos exercícios pelos quais os
indivíduos permitem transformar seu próprio modo de
ser; por isso Foucault disse que esta seria uma moral
orientada para a ética, ao contrário da moral cujo valor

208
verve

recai sobre os códigos ligados a instâncias de


autoridade que os fazem valer pela imposição sob pena
de incorrer num castigo.
É assim que “agir livremente” implica “querer
livremente”, e o anarquista acaba por autoconstituir-
se enquanto indivíduo com vontade autônoma em sua
relação com o outro. As conseqüências são uma reela-
boração das práticas sociais e a invenção de um estilo
de vida singular. O “homem revoltado” é um dos grandes
temas para se estudar a ética no anarquismo, e dele
podemos tirar lições valiosas para nossa época.

Notas
1
Jacques Freymond. La Primera Internacional. Tomo I. Madrid, Editora Zero, 1973.
2
Ibidem, p. 93.
3
Ibidem, p. 112.
4
Ibidem, p. 113
5
Neno Vasco. Concepção anarquista do sindicalismo. Porto, Afrontamento, 1984,
pp. 87-88.
6
Ibidem, pp. 89-90.
7
Ibidem, p. 90.
8
Ibidem, pp. 90-91.
9
Edgar Rodrigues. O anarquismo na escola, no teatro, na poesia. Rio de Janeiro,
Achiamé, 1992, p. 121.
10
Ibidem, p. 125.
11
Ibidem, p. 129.
12
Maram Sheldon Leslie. Anarquistas, Imigrantes e o movimento operário brasileiro –
1890/1920. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 92.
13
Os termos anarco-sindicalismo e sindicalismo revolucionário são geralmente
empregados para distinguir o sindicalismo de tipo anarquista, com métodos de
ação direta e federalista, daquele sindicalismo ligado a instâncias de poder e que
se pauta pelo método da representação; uma outra distinção se refere às questões
de concepção: na 1ª Internacional os sindicalistas criticavam nas Trade´s Unions
“sua obra de reação imediata” e predicavam que a submissão do trabalho é a
fonte da servidão política, moral e material; assim, o objetivo da ação sindicalista
era o da emancipação integral do trabalhador pelo próprio trabalhador.

209
1
2002

14
Neno Vasco, op. cit., p. 97.
15
Idem, p. 101.
16
Neno Vasco, 1984, pp. 130-131.
17
Félix Guatarri. Caosmose – um novo paradigma estético. São Paulo, Ed. 34, 1992.
18
Michel Foucault. História da Sexualidade 2 – o uso dos prazeres. 7ª ed., Rio de
Janeiro, Graal, 1984, p. 15.
19
Margareth Rago. Do cabaré ao lar – a utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-
1930). 2ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
20
Herbert Read. Anarquia y ordem. Buenos Aires, Tupac, 1959, p. 60.
21
Maria Thereza Vargas. Teatro operário na cidade de São Paulo. São Paulo: Secretaria
Municipal de Cultura, Departamento de Informação e Documentação Artística,
Centro de Pesquisa de Arte Brasileira, 1980, p.13.
22
Edgar Rodrigues. O anarquismo na escola, no teatro, na poesia. Rio de Janeiro,
Achiamé, 1992, p. 110-111.
23
Ibidem, p. 112.
24
Maria Thereza Vargaas. op. cit., pp. 142-143.
25
Hamon Augustín . Psicolojia do Anarquista-Socialista. Lisboa, Guimarães
Editores, 1915, p. 59.
26
Heintz Peter . Problemática de la autoridade en Proudhon. Buenos Aires, Ed.
Proyección, 1963, p. 141.
27
Ibidem.

resumo abstract

A partir da noção de estética da From the concept of aesthetic of


existência de Michel Foucault, o existence of Michel Foucault, this article
presente artigo discute como práticas discusses how anarchist cultural
culturais anarquistas levam a uma practices lead to a problematization of
problematização da pessoa e a the individual and the construction of a
construção de uma subjetividade libertarian subjectivity. The theme of
libertária. O tema da revolta leva, no revolt, in anarchism, conducts to the
anarquismo, à questão da auto- question of self-responsibility. By
responsabilidade do indivíduo no denying the guardianship of authority,
sentido em que, negando-se a tutela the individual assume for himself the
da autoridade, o indivíduo chama para government and responsibility for his
si o governo e a responsabilidade de acts.
seus atos.

210
verve

anatomia da crise: do sindicalismo


revolucionário ao colaboracionismo
cooperativista

alexandre samis * e renato ramos **

Ao conceituar o chamado “trabalhismo carioca”, Boris


Fausto deu importante contribuição à investigação das
origens do cooperativismo no Brasil. Entre outras
conclusões, o historiador afirma que, a partir da sua
base no Rio de Janeiro, o cooperativismo teria dominado
a cena sindical, na última década do século XIX,
perdendo gradativamente, no início do século seguinte,
o controle de grande parte das organizações operárias
para os sindicalistas anarquistas.1
A perda de sua primazia não impediu, no entanto,
que em muitas associações permanecessem vestígios
de antigas práticas, galvanizadas em bases de acordo e
na formação de grupos internos dissidentes. Nas franjas
das organizações operárias mais expressivas, manti-
veram-se ativos os sindicatos descomprometidos com
os novos princípios do sindicalismo revolucionário. A
disposição em atribuir ao Estado a interlocução e o papel

*
Membro do Círculo de Estudos Libertários Ideal Peres e professor de História.
**
Membro do Círculo de Estudos Libertários Ideal Peres e pesquisador.

211
1
2002

mediador nos conflitos de natureza salarial e operária


não desapareceu.
Em muitos aspectos, o então Distrito Federal reunia
as condições necessárias à permanência de tais
aspirações, graças a uma elite política de oposição que
acenava constantemente com a possibilidade de
consecução da harmonia social através das instituições
do Estado. Entretanto, associada ao campo da política, a
questão social, sob perfil operário, serviu a projetos que
possuíam pouco apoio popular. Para Boris Fausto:
“Sem dúvida, os setores intermediários carecem
social e politicamente de homogeneidade. Ainda assim,
a existência destes setores em uma situação de menor
dependência das classes agrárias e as características
apontadas do proletariado nascente dão fundamento aos
tímidos projetos de constituição de partidos operários
do tipo trabalhista.”2
Com o avanço do século XX, os “trabalhistas” perdem
gradualmente muitos dos espaços conquistados na
última década do século anterior. O protagonismo da
estratégia sindical anarquista empurrou, em um não
longo espaço de tempo, os cooperativistas para o campo
de oposição ao novo elemento de inspiração
organizativa. A despeito de alguns contatos pontuais
amistosos, os anarquistas cedo demarcaram as
diferenças entre uma e outra corrente, conforme se lê
na Voz do Trabalhador de 1908:
“Não há dúvida que os libertários, mais do que os
outros homens hão de contar com a força da associação,
porque tudo o esperam da livre afinidade entre as
personalidades livres; mas não creio que as associações
cooperativas de trabalhadores possam realizar uma
transformação importante na sociedade. As tentativas
feitas neste sentido são experiências úteis e devemos
felicitar-nos de que tenham sido postas em prática;
porém bastam, e já podemos formar sobre o assunto um
juízo.”3
As primeiras críticas ao cooperativismo aconteceram

212
verve

dentro da polidez e ponderação típicas dos debates de


idéias.
O “Primeiro Congresso Operário”, no Rio de Janeiro,
em 1906, contou com a presença de Mariano Garcia e
Antônio Augusto Pinto Machado, dois líderes históricos
do movimento reformista. Os debates marcaram, a
partir das divergências ideológicas presentes nos
discursos, definitivamente as diferenças e os campos
de atuação dos dois segmentos de representação dos
interesses dos trabalhadores.
Dessa forma, a expressão que assumiram os
sindicalistas revolucionários e a própria difusão do
ideário anarquista, que não cessava de crescer nos
meios operários, rivalizava ainda com iniciativas
paralelas dos cooperativistas. Estes, a despeito do
crescimento da proposta de radical independência
oriunda do programa anarquista, insistiam em
organizar entidades que deveriam atuar em
conformidade com os princípios de um tipo específico
de evolucionismo positivista.
Algumas experiências cooperativistas calcadas no
“culto ao trabalho”4, como a do funcionário do Arsenal
de Guerra, Francisco Juvêncio Saddock de Sá, iniciadas
ainda em 1900, buscavam inserir alguns setores do
operariado estatal na lógica de organização reformista.
Saddock de Sá, que não abandonou a luta associativa
até sua morte em 1921 5, foi um bom exemplo de
organizador de classe que, para garantir melhorias para
os operários do Estado, não hesitou em isolá-los das
propostas congêneres do período. De forma ilustrativa
podemos evidenciar tal comportamento quando o
“Círculo de Operários da União”, fundado em 1909 e
dirigido pelo referido funcionário, recusou-se a
comparecer ao “Congresso Operário” convocado pelos
reformistas em 1912. Embora as organizações de cunho
cooperativo compartilhassem dos mesmos interesses,
ao priorizarem a via de diálogo permanente com o
governo, nem todas buscavam uma ação conjunta.

213
1
2002

Após alguns anos de debilidades os reformistas


retornariam com relativa força em meados dos anos 10
e seriam, em 1912, a condição fundamental para a
organização do “Congresso Operário”, sob a tutela do
Tenente Mário Hermes da Fonseca, filho do Presidente
Hermes da Fonseca. 6 Deste encontro resultaram a
consolidação das propostas reformistas e a formação da
“Confederação Brasileira do Trabalho”, organismo que
combinava, simbioticamente, funções organizativa e
partidária.
No seu antagonismo às propostas libertárias, os
“trabalhistas”, a partir de 1912, segundo Boris Fausto,
davam ênfase aos melhoramentos econômicos; às
elevações social, intelectual e moral da classe, evitando
o envolvimento do proletariado nas questões
internacionalistas, antimilitaristas, antiestatais e nos
problemas da organização da propriedade. Na apreciação
dos “trabalhistas”, o meio utilizado pelos sindicalistas
revolucionários, a ação direta, era incapaz de garantir
as transformações sociais necessárias à classe
operária. O caminho preferencial era o da política,
dentro dos quadros do sistema. Argumentavam que, em
um país guarnecido por instituições democráticas, o
abandono, por parte do proletariado do exercício dos
direitos políticos, conduziria ao predomínio das figuras
mais conservadoras e comprometidas com o capital.7
Em harmônica parceria com estes princípios
trabalhava desde 1907, ano da aprovação do decreto lei
nº 1637 de incentivo às cooperativas, o funcionário do
Ministério da Agricultura, Custódio Alfredo de Sarandy
Raposo8. Este “sindicalista” muito depressa se tornou o
expoente máximo de uma linha associativa ainda mais
estreitamente ligada às instituições do governo;
diferente de Saddock de Sá, que aceitava dialogar, mas
não se beneficiava diretamente das instâncias do
Executivo, Sarandy Raposo encarnou o paroxismo do
“colaboracionismo de classe”.
Os anarquistas, após uma breve política de tolerância

214
verve

com relação a Sarandy Raposo 9 e os princípios do


cooperativismo, iniciam pesada investida contra as
iniciativas nesse sentido. Organizado pela
“Confederação Operária Brasileira” (COB), o “Segundo
Congresso Operário”, de setembro de 1913, delibera
então, entre outras questões, o combate ao
cooperativismo. E, no seu jornal, A Voz do Trabalhador,
a Confederação publicava sua posição:
“Bem sabemos que os governos, para se tornarem
populares, para se mostrarem liberais costumam
fomentar a propaganda destas cataplasmas, destas iscas
traiçoeiras, como o é o cooperativismo ora propagado
por influência do ministério da agricultura — e o fazem
justamente para desviarem, por uma enganosa
melhoria — hipocritamente filantrópicos — como são
todos que vivem parasitariamente — com o fim de,
distraindo os trabalhadores com este chamariz,
desviando-os do caminho já traçado e que devem
continuar, implantar-lhes a discórdia, a desorientação,
sabedores como estão de que enquanto assim acontece
mais se vai mantendo a escravidão operária e por
conseguinte prolongando a orgia dos que bacanalmente
vivem.”10
Respondendo a uma circular enviada por Sarandy
Raposo, do “Escritório de Informações sobre Sindicatos
e Cooperativos”, órgão ligado ao Ministério da
Agricultura, aos secretários do COB, estes utilizariam,
mais uma vez, o veículo classista, A Voz do Trabalhador:
Cidadão C. A. Sarandy Raposo.
— Recebemos a vossa circular, e mais os estudos do
Sindicato Profissional dos Operários do Arsenal de
Guerra do Rio de Janeiro e da Cooperativa de Consumo
dos Operários do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro.
Em resposta a ela temos a declarar-vos:
Que absolutamente de modo nenhum queremos
aceitar o ‘sindicalismo e o cooperativismo’ propagados
e auxiliados pelas autoridades do país.
E não os queremos aceitar pelo seguinte: esta

215
1
2002

Confederação e todas as federações e sindicatos que a


compõem são organismos de luta, de combate,
essencialmente baseados na resistência à exploração
capitalista.
Ora, sendo as autoridades governamentais simples
instrumentos de defesa da classe capitalista, evidencia-
se desde logo que com elas só poderemos ter uma
espécie de relação — a resultante da luta quotidiana e
tenaz, que constitui a mesma base em que assentam
as nossas organizações.”11
Aos olhos dos anarquistas a classe operária já havia
optado pelo protagonismo histórico de sua luta; ceder
ao cooperativismo não só representaria retrocesso
como, também, o triunfo da classe contra a qual se
deveria lutar.
O ano de 1917 confirmaria os prognósticos dos
sindicalistas revolucionários do Rio de Janeiro. Na
sucessão de greves, motins e levantes armados, que se
prolongaram pelo ano seguinte, os cooperativistas, além
de manterem as associações a eles ligadas alheias às
lutas, manifestariam reiteradas vezes seu apoio ao
governo12. Este fato acirraria ainda mais as disputas
pelo espaço sindical que, a partir de então, não se
circunscreveriam apenas ao plano do livre debate.
O ano de 1921 foi significativo para Sarandy Raposo,
pois neste período, na vigência do governo Epitácio
Pessoa, ele ampliaria ainda mais sua inserção nos
meios operários. Boa parte de seu sucesso deveu-se ao
“auxílio pecuniário” fornecido pelo governo,
possibilitando, em março de 1921, a fundação da
Confederação Sindical Cooperativista do Brasil, a
CSCB.13 O falecimento de Saddock de Sá, representante
da outra vertente cooperativa, naquele mesmo ano,
implicaria em alguma medida na ampliação das bases
sociais do fundador da CSCB.
A ação de Sarandy Raposo parece ganhar mais
notoriedade em conformidade com a sua assunção na
orientação da “Seção Operária” do periódico governista

216
verve

O País, em fevereiro de 1923.14 Estampados nas páginas


do jornal, encontramos não só os presságios de
inspiração triunfalista como também apelos eloqüentes
ao governo para o auxílio às suas iniciativas.
Tentando representar o espírito da conciliação, a
CSCB contava com a colaboração de patrões e
empregados, além de “prestigiosas instituições”.
Procurava, com o apoio da Liga de Defesa Nacional, a
Sociedade Nacional de Agricultura, o Centro Industrial
do Brasil e o Instituto de Engenharia Militar,15 manter-
se no limite entre as reivindicações sociais e os
interesses patronais.
Os cooperativistas, no intuito de captar simpatias e
firmarem-se como síntese do processo traumático da
luta entre capital e trabalho, traçavam estratégias que
se caracterizavam por ataques nem sempre
dissimulados ao anarquismo, enfatizando e associando
aos libertários o viés violento da revolução. Em
contrapartida, reforçavam, na mesma proporção, a sua
vocação “apaziguadora” e conciliatória.
Dentro da lógica de ampliar ao máximo sua esfera
de representação, não demorou muito, a CSCB, a tomar
a iniciativa de se aproximar dos sindicatos dirigidos
pelos comunistas. Parecia uma aliança quase natural
na medida em que os preceitos do sindicalismo
revolucionário, eminentemente anarquistas,
impossibilitavam de todo o crescimento da base de
diálogo com o governo. Os comunistas, virtuais
antagonistas dos anarquistas no campo revolucionário,
ao contrário destes, não rejeitavam a participação nos
espaços formais de representação e, em última análise,
haviam trazido para o campo do “bolchevismo” muito do
prestígio adquirido no meio operário em décadas
anteriores de hegemonia anarquista.
Para Sarandy Raposo, a exemplo do que previam os
cooperativistas para o anarquismo, ao contrário do
fortalecimento da facção “neo-comunista” 16 , a
“confluência” dos membros do PC para CSCB era uma

217
1
2002

questão de tempo, ou amadurecimento. E, como ensejo


a esta apreciação, um acordo com os mesmos, em que
estava prevista a formação da grande “frente proletária”,
parecia razoável.
Não só os anarquistas, mas mesmo alguns
comunistas, entre eles Antônio Bernardo Canellas,
viram no projeto um oportunismo vergonhoso. A
aprovação, através de pressões internas, na CSCB, da
inserção das disputas eleitorais nos planos táticos da
entidade, aproximou-a ainda mais das premissas dos
comunistas. Assim:
“A CSCB, a partir de então, precisava remodelar suas
próprias linhas de convergência e divergência com as
duas outras facções existentes no movimento operário.
Sua distância em face do anarquismo crescia. Quando,
em outubro de 1923, uma assembléia geral da
Confederação aprovou formalmente a prática da ação
parlamentar, os libertários estavam sendo definidos
como ‘o inimigo irreconciliável do sindicalismo
cooperativista, do comunismo, do governo russo, de todos
os governos e até de toda revolução limitada.”
Já os neocomunistas estavam cada vez mais no
caminho da evolução, apresentando ‘em suas atitudes e
seus atos, judiciosas tendências para a prática do
cooperativismo e até da ação parlamentar, tendências estas
que os aproximam da eficiência do sindicalismo
cooperativista.”17
Ao receberem um convite para a “Conferência dos
Presidentes das Associações de Classe”, organizada por
cooperativistas e comunistas, os sindicalistas
anarquistas iniciam uma seqüência extensa de artigos-
resposta. Não só para justificar sua objeção em
participar de tal encontro como também para evidenciar
as opiniões sobre a aliança “frentista”.
O operário maleiro e sindicalista anarquista Antônio
Vaz18, para demonstrar a impossibilidade de colaborar
com a “frente” convocada pelos cooperativistas,
evidenciava, em um de seus artigos publicados em A

218
verve

Pátria19, as finalidades do estatuto de uma cooperativa


ligada a CSCB em Petrópolis:
‘”Art 2o - São seus fins:
a) Promover entre os seus membros e para eles, a
venda de todos os gêneros de consumo agrícolas, pastoris
e industriais, adquiridos diretamente ou
indiretamente;
b) Adquirir para serem vendidos aos sócios, todas as
mercadorias e manufaturas domésticas produzidas por
sócios e suas famílias;
c) Adquirir terras e instrumentos de trabalho para
sócios que desejarem residir em regiões rurais,
mediante pagamento a prazo e em produtos agrícolas.
Art 3 o - Para o primeiro item (a) do artigo 2 o, a
Cooperativa de Consumo estabelecerá em local
apropriado, um armazém regional e tantos armazéns
distritais quantos necessários se tornarem pelo
desenvolvimento de suas operações e aumento de
numero de sócios consumidores.
Art. 4o - Para o segundo item (b) do art. 2o, instalará,
por intermédio do Sindicato Profissional, tantas
cooperativas distritais de consumo forem os grupos de
sete ou mais aderentes a estes estatutos, que realizem
qualquer cultura ou indústria doméstica, por si ou suas
famílias, ou que residam em regiões rurais, onde
possam colaborar como adquiridores diretos de
mercadorias necessárias ao consumo dos membros das
cooperativas urbanas de consumo.
Art. 5o - Para o terceiro item (c) do art. 2o, organizará
nas regiões rurais, por intermédio do Sindicato
Profissional, pequenas cooperativas de produção em
terrenos coletivos, até que esses terrenos se tornem
propriedades individuais, mediante pagamento da parte
destinada a cada sócio, na forma indicada no mesmo
item (c) do art. 2º.”20
Segundo Antônio Vaz o “canto de sereia” do
cooperativismo não resolveria o problema social, mas
“insuflaria em seus cooperadores” a falsa crença na

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1
2002

harmonia com os regimes de “salariato” e propriedade.


Assim:
“Como se vê não visam nem a extinção do dinheiro,
nem da lei, isto é, aceitam a sociedade conforme está
constituída — com todo o vampirismo, toda a opressão
do forte contra o fraco, a exploração do senhor contra o
escravo. Não resolvem nem a questão econômica, nem
política, nem social. São trambolhos aos quais o
proletariado só deve ligar para afastá-los do seu caminho
com a ponta do pé.”21
Vaz também denunciava a influência negativa do
aparecimento de cooperativas em locais onde já
existiam sindicatos de resistência, tomando como
exemplo o fechamento da sucursal da União dos
Operários em Fábricas de Tecidos, no bairro da
Cascatinha, em Petrópolis, causado pela fundação da
cooperativa dos operários da Companhia Petropolitana.
Segundo este, a sucursal da UOFT:
“(...) não seria vista com bons olhos pelos magnatas
do industrialismo desse bairro. Não hesitamos por isso
até afirmar que foram eles os primeiros a sugerir a
criação dessa tal cooperativa com o fito de desnortear
seus assalariados, de lhes desviar a atenção da
Sucursal. Mas mesmo não sendo eles os promotores
diretos e indiretos de tais “arapucas” irrecusáveis
aceitam mais depressa uma cooperativa que em nada
os prejudica, do que uma organização que procura
esclarecer seus componentes, pondo-lhes bem diante
dos olhos os motivos do seu mal-estar, de sua miséria
em contraste com a abastança dos plutocratas.”22
No Distrito Federal, as cooperativas de operários
têxteis fundadas nos bairros da Gávea, Vila Isabel e
Andaraí, ocasionaram um influxo irreversível na União,
que, já em 1923, não era mais ocupada de maneira
preponderante pelos sindicalistas anarquistas que a
haviam fundado em 1918.
Ainda no mesmo contexto, o operário sócio da União
Geral dos Trabalhadores em Hotéis, Restaurantes, Cafés

220
verve

e Similares, Manuel A. Pereira, ao denunciar a


colaboração do Centro Cosmopolita 23 com os
cooperativistas, aproveitava para definir, com alguma
ironia, a sua opinião sobre o líder reformista e suas
relações com o PCB:
“Mas isso é vergonhoso. Porque se há traidores, se
há quem esteja de acordo com o patronato, este é o sr.
Sarandy Raposo que, como presidente da Confederação
S. Cooperativista, a quem deseja ver filiadas todas as
associações operárias do Brasil (pasmai, oh! gentes!),
defende o interesse das duas classes.
O Sr. Sarandy quererá negar que o Centro Industrial
do Brasil, a Liga de Defesa Nacional, Centro dos
Proprietários de Hotéis e outras associações retinta-
mente burguesas fazem parte da Confederação?
Quererá negar?
O Sr. Sarandy, cujas intenções políticas estão sendo
exploradas pelos bolchevistas da zona (que por sua vez
fornecem meios de exploração política ao sr. Sarandy)
quererá dizer que a Confederação só defende os
interesses das associações operárias? Não quererá
dizer! Mas se se atrever a tal nós os desmascararíamos
com os seus próprios atos.
Pescadores de águas turvas, filadores, candidatos a
deputados, a senadores, a ministros, a comissários do
povo, a ditadores — tudo tem passado pelo campo dos
trabalhadores de todo mundo. Os do Brasil também já
têm sido vítimas de muitos embusteiros; e se não se
precaverem agora serão novamente vítimas — e
vítimas do mais audacioso de todos os empreiteiros da
gamela orçamental.”24
Mas talvez um dos artigos mais significativos seja o
de Antônio Bernardo Canellas, particularmente por ser
ele um comunista assumido25. Ao denunciar o interesse
do PC nos cem mil filiados da CSCB — número
anunciado pela própria Confederação em sua
convocatória para a “Conferência dos Presidentes das
Associações de Classe”26 — Canellas critica duramente

221
1
2002

a aliança articulada por Astrojildo Pereira e a ingenu-


idade dos comunistas ao franquearem à pregação
reformista espaços sindicais antes exclusivos dos
revolucionários. Segundo o comunista, a frente proposta
pelo Komintern confundia-se, dessa forma, com a
“unificação atuadora” pregada por Sarandy Raposo. E
conclui:
“O autor do nosso Duhring pró-mussoliniano é agora
o Sr. Sarandy Raposo. Vamos ver o que vai sair dessa
aliança realizada com assistência passiva dos
comunistas oficiais, que deste modo malbaratam o
prestigio da revolução russa, à sombra da qual têm
vivido e que é pena seja assim tão mal aproveitada.”27
A vinculação dos comunistas dirigentes da Federação
dos Trabalhadores do Rio de Janeiro (FTRJ) à CSCB,
denunciada nas “primeiras horas” pelo anarquista
Marques da Costa, responsável pela coluna trabalhista
de A Pátria28, se encontrava expressa na representação
que possuía a Associação dos Gráficos do Rio de Janeiro,
na referida Confederação, a partir do sócio Astrojildo
Pereira. Assim como, a “Seção Operária”, do jornal ligado
a administração de Arthur Bernardes, O País, também
abrigava artigos de comunistas como Octávio Brandão29
que, sob pseudônimo, divulgavam as premissas do
partido no Brasil. Mesmo, o segundo número do jornal
oficial do PCB, A Classe Operária, foi impresso nas
oficinas gráficas do periódico governista30.
A despeito da estratégia que iriam adotar os
comunistas no Bloco Operário, nos pleitos de 1927, ao
apoiarem os nomes de políticos “pequeno-burgueses”
como Azevedo Lima e Mário Rodrigues31 e a ação junto
aos sindicatos cooperativistas, em agosto daquele
mesmo ano, o governo baixa a “lei celerada”32. Tal
medida iria afetar duramente as pretensões de ascensão
do movimento comunista e dificultaria ainda mais a
manutenção de um modelo sindical revolucionário. Mas,
de alguma forma, a relação que se estabeleceu entre
os membros do PCB e os líderes reformistas habilitou

222
verve

aqueles a uma sobrevivência relativa no meio sindical


da década seguinte. A experiência adquirida nas
manobras trabalhistas no interior do estamento oficial,
observadas muito de perto pelos comunistas, possibilitou
a sobrevivência dos “bolchevistas” à crise do
sindicalismo revolucionário.
Destarte, podemos observar sem maiores
dificuldades, que a crise pela qual passa o sindicalismo
revolucionário, nos anos que se seguiram à pesada
repressão dos órgãos de polícia e leis de deportação, foi
causada por uma perda gradativa de militantes jogados
em cárceres, internados no exílio do Oiapoque,
assassinados por agentes de polícia, convertidos ao
“bolchevismo” e ao avanço do corporativismo
“trabalhista”. Entretanto, o anarquismo, nas décadas
posteriores ao advento do sindicalismo corporativo, iria
ainda se manter como um vigoroso conjunto doutrinário
de crítica ao capitalismo e às estruturas de poder
vigentes no país. A opção posterior dos anarquistas pela
aglutinação de suas forças em torno de periódicos de
combate, ligas anticlericais e centros de cultura deveu-
se, em grande medida, à perda de seu vetor de inserção
social, o sindicalismo revolucionário. Carente de uma
estratégia mais concreta de classe, o anarquismo
perderia muito de sua visibilidade social, apesar de
manter sua vigência ideológica. A teoria anarquista,
dessa forma, no pós-30, iria se caracterizar como
expressão cultural e manancial revolucionário a ser
oferecido aos grupos sociais em rebelião contra qualquer
alternativa institucional de reforma.

Notas
1
Boris Fausto. Trabalho Urbano e Conflito Social. São Paulo, Difel, 1977, p. 41.
2
Ibidem, p. 42.
3
A Voz do Trabalhador, 15/08/1908.

223
1
2002

4
Angela de Castro Gomes. A Invenção do Trabalhismo. São Paulo, Vértice; Rio de
Janeiro, IUPERJ, 1988, p. 123.
5
Ibidem, p. 56.
6
Fausto. op. cit., p. 55.
7
Ibidem, p. 56.
8
Castro Gomes. op. cit. p. 124.
9
Ibidem.
10
A Voz do Trabalhador, 15/10/1913.
11
Ibidem.
12
Castro Gomes, p. 125.
13
Ibidem, p. 159.
14
Ibidem.
15
Ibidem.
16
Nos primeiros anos após a fundação do Partido Comunista do Brasil seus
militantes foram, em determinadas ocasiões, qualificados na imprensa operária
e nas colunas trabalhistas de “neo-comunistas”. Tal fato explica-se pela utilização
do termo comunista para identificar determinadas tendências no interior do
próprio anarquismo.
17
Castro Gomes. op. cit., p. 164.
18
O português Antônio Vaz foi deportado para o seu país de origem em 1924.
Edgar Rodrigues. Os Companheiros. Rio de Janeiro, VJR, 1994, p. 39.
19
A Pátria 11/11/1923.
20
Ibidem.
21
Ibidem.
22
A Pátria 21/11/1923.
23
O Centro Cosmopolita, fundado em 1903, local do “Segundo Congresso
Operário”, em 1913, era uma associação de caráter classista. Os seus filiados
pertenciam ao segmento dos “gastronômicos” e prestavam, no próprio
estabelecimento, serviços, de natureza diversa, ligados à classe. Até a fundação
do PCB esteve o Centro sob hegemonia dos anarquistas; após 1923 passa a
integrar o grupo de associações ligadas aos “bolchevistas”. Neste período, o
Centro Cosmopolita, passa a disputar com a União Geral dos Trabalhadores em
Hotéis, Restaurantes, Cafés e Similares a legitimidade junto à classe.
24
A Pátria 01/11/1923.
25
Antônio Bernardo Canellas foi protagonista de um dos primeiros casos de
expurgo do PCB nos anos 20. Ver Edgard Carone. “Uma Polêmica nos
Primórdios do PCB: O incidente Canellas e Astrojildo (1923)”. In Memória &
História, São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas Ltda., 1981.

224
verve

26
A Pátria 27/10/1923.
27
Ibidem, 04/05/1924.
28
Ibidem, 17/08/1923.
29
Octávio Brandão. Combates e Batalhas. São Paulo, Alfa-Omega, 1987, p. 240.
30
Alexandre Ribeiro Samis. Clevelândia do Norte: anarquistas, repressão e exílio
interno no Brasil dos anos 20. UERJ, Dissertação de Mestrado, 2000.
31
Mário Rodrigues era à época o proprietário do jornal A Manhã, apoiou o
Bloco Operário e seu candidato Azevedo Lima. O jornalista candidatou-se
também, no mesmo período, à intendência do Distrito Federal. Ver Samis. op.
cit. p. 338.
32
A lei Aníbal de Toledo, de agosto de 1927, inspirada nas suas congêneres de
1907, 1913 e 1921, atualizava as medidas de deportação e perseguição ao
elemento “radical” no país. A lei, por sua impopularidade, ficou conhecida nos
meios operários como “celerada”.

resumo abstract

O texto procura demonstrar a trajetória This article seeks to demonstrate the


do sindicalismo no Brasil a partir do history of trade unionism in Brazil in
início do século XX. As disputas entre the beginning of the 20th century. The
os modelos sindicais “trabalhista”, dispute among unionist models of
anarquista e comunista definiram, em “workers”, anarchists and communists,
grande medida, as transformações nas largely shaped the changes of
estratégias do governo para enfrentar government strategies in fighting labor
as organizações operárias. A organizations. The differences between
aproximação dos comunistas de socialist and anarchist became deeper
tendências reformistas com o with the approach of the socialist with
cooperativismo ampliou ainda mais as a reformist orientation. The crisis that
divergências entre aqueles e os has afflicted the revolutionary unionism
anarquistas. Tais querelas podem, com in the late 1920s, can be analyzed, in
alguma precisão, esquadrinhar os some degree, by the study of those
motivos da crise que abateu fights among socialist factions.
profundamente o sindicalismo
revolucionário no fim da década de
1920.

225
1
2002

mistério e hierarquia

christian ferrer *

Um

Em qualquer cidade do planeta, não importa seu


tamanho, há pelo menos uma pessoa que se diz
anarquista. Esta presença solitária e insólita segu-
ramente oculta um significado que transcende o
território da política, da mesma maneira que a dispersão
triunfante das sementes não pode ser resumida apenas
como luta pela sobrevivência de uma linhagem botânica.
Talvez a evolução “anímica” das espécies políticas seja
equivalente à sabedoria da aspersão seminal na
natureza. Da mesma maneira, as idéias anarquistas
não foram nunca orientadas por métodos intensivos do
“plantio” ideológico-partidário: espalharam-se seguindo
as ondulações inorgânicas da erva plebéia. Um
pensamento que teve início na metade do século XIX,
conseguiu proliferar sobre uma base bastante frágil na
Suíça, Itália e Espanha, até chegar a ser conhecido
praticamente em todo lugar habitado do planeta. Assim,

*
Professor da Universidad de Buenos Aires, editor da revista Artefacto e autor
de diversos livros sobre temas anarquistas. Tradução de Natalia Montebello.

226
verve

é possível considerar o anarquismo, depois da evan-


gelização cristã e a expansão capitalista, a experiência
migratória mais bem sucedida da história do mundo.
Quem sabe seja este o motivo pelo qual a palavra
“anarquia”, antiga e ressonante, esteja ainda aqui,
apesar dos agouros que deram por acabada a história
libertária. Referir-se ao anarquismo supõe um tipo de
“milagre da palavra”, sonoridade lingüística quase
equivalente a acordarmos vivos cada novo dia. Também
pode ser considerado um milagre o fato de que o ideal
anarquista tenha aparecido na história, uma dádiva da
política; sendo a política, por sua vez, uma dádiva da
imaginação humana. A persistência desta palavra se
sustenta, sem dúvida, em sua potência crítica, na qual
habitam tanto o pânico como o consolo, ambos derivados
do estilo “de garra” e da sede de urgência próprios dos
anarquistas: suas biografias sempre adquiriram o
contorno da brasa ardente. Mas se a idéia anarquista
persiste é também porque nas significações que ela
absorve se condensa o mal-estar que a hierarquia gera.
Porém, para a maior parte das pessoas, o anarquismo,
como saber político e como projeto comunitário,
transformou-se num mistério. Não necessariamente
em algo desconhecido ou impossível de conhecer, mas
em algo semelhante a um mistério. Incompreensível,
inaudível. Invisível.
Não há indício de que a aparição histórica do
anarquismo no século XIX fosse um acontecimento
necessário. As ideologias operárias, o socialismo, o
comunismo, foram frutos inevitáveis, germinados na
selva da vida industrial. Mas o anarquismo não: sua
presença foi um acontecimento inesperado, e é possível
especular que poderia nunca ter se apresentado em
sociedade alguma. Sei que uma tal suposição é inútil,
pois o anarquismo efetivamente existiu, e qualquer
historiador profissional saberá dispersar bandeiras
causais sobre o mapa da evolução das idéias operárias
e da política de esquerda. Mas a ucronia que esta

227
1
2002

especulação supõe não é ociosa. Facetas políticas do


anarquismo estavam presentes nas idéias marxistas,
nas idéias liberais, nas construções comunitárias dos
primeiros sindicatos. Por que, então, este hóspede
incômodo e inesperado fez seu abrupto e notório
aparecimento e se instalou como uma farpa nas idéias
políticas de seu tempo? Foi o anarquismo uma errata
no livro político da modernidade? Penso que o mistério
desta anomalia política é diretamente proporcional ao
mistério da existência da hierarquia. Erro ou dádiva,
sua difícil persistência e o fato de que em certos
momentos a população confiou e depositou no
anarquismo a chave de compreensão do segredo do poder
hierárquico e, ao mesmo tempo, um ideal de sua
dissolução, faz supor que esta idéia desmesurada é a
única saída existencial que aquela época ofereceu a
sofredores e ofendidos, que ainda tem força, mesmo que
sua voz não consiga atravessar a barreira do som
midiática e política.
Cada época segrega uma zona secreta, um tipo de
“inconsciente político” que opera como um ponto cego e
centro de gravidade soterrado que não admite ser
pensado por um povo, e as linguagens que tentam
penetrar nessa zona são tratadas como blasfemas,
ictéricas ou exógenas. O anarquismo foi o estilhaço, o
irritador dessa zona, a invenção moderna que a própria
comunidade, obscuramente, precisou, para poder
compreender provisoriamente o enigma do poder. Toda
época e toda experiência comunitária propõem
interrogações quase sem solução para seus habitantes.
É exatamente por isso que em toda cidade estão
distribuídos alguns recintos e rituais que devem tornar
provisoriamente compreensíveis seu mal-estar e seus
enigmas. Assim, prostíbulo, igreja, estádio de futebol e
sala de cinema acolhem as interrogações proferidas
pelo desejo, a criação do mundo, a guerra e os sonhos.
O anarquismo acolheu interrogações associadas ao
poder, foi a cratera histórica pela qual emanaram

228
verve

respostas radicais ao problema, a encruzilhada de idéias


e práticas na qual se condensou o drama do poder. O
fato de que, em suas linguagens e em suas condutas, a
sinceridade consumasse um vínculo sólido e peculiar
com a política, deu a esse movimento de idéias uma
potestade singular, subtraída para sempre ao marxismo-
leninismo e ao republicanismo democrata, obrigados a
contínuas negociações entre meios e fins. A conduta
irredutível, o fundamentalismo da consciência, a
convicção inegociável, a política da contrapotência,
foram as qualidades morais que garantiram que a
imaginação popular confiasse em líderes sindicais
anarquistas ou em certos homens exemplares, mesmo
quando aqueles que se diziam anarquistas fossem uma
minoria demográfica no campo político. Essa
determinação demográfica explica por que as vidas dos
anarquistas foram tão importantes quanto suas idéias
teóricas. Cada vida anarquista era a prova da liberdade
prometida, o testemunho vivo de que uma parte da
liberdade absoluta fora prometida e existia na terra.
A hierarquia se apresenta diante de milhões como
uma verticalidade, imemorial como uma pirâmide e
perene como um deus. Pouco menos que invencível.
Mas a história de um povo é a história de suas
possibilidades existenciais, e o reaparecimento espo-
rádico da questão do anarquismo — isto é, da pergunta
pelo poder hierárquico — significa, talvez, que essa pos-
sibilidade permanece em aberto, e que através dela
filtra-se o retorno de tudo que é reprimido no território
da política. Logo, o anarquismo seria uma substância
moral flutuante que atrai intermitentemente as
energias refratárias da população. Opera como um
fenômeno raro, como um eclipse ou um arco-íris duplo,
um ponto de atração dos olhares que precisam
compreender o poder separado da comunidade. A última
das terras raras da tabela periódica dos elementos de
Mendeleiev. Seria possível dizer que o anarquismo não
existe, mas insiste.

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1
2002

Dois

Evoca-se toda palavra como objeto de museu, mas


também se degusta como um fruto apenas arrancado
do galho. No ato de nomear, um equilíbrio sonoro
consegue que se evidencie um resto animador na
rotineira fossilização das palavras. O anarquismo, que
conviveu intimamente com esse equilíbrio por muito
tempo, debate-se hoje entre ser tratado como resto
temático pela paleontologia historicista e sua vontade
de continuar sendo uma ramificação da ética (uma
possível moral coletiva) e uma filosofia política vital.
Resolver esta questão requer identificar seu “drama
cultural”, conformado por paradoxos e por redemoinhos
de tensões que se tornam evidentes em situações de
extremo perigo ou quando o tempo de uma idéia começa
a esgotar-se.
Sabe-se que a luta por expandir os limites da
liberdade, mito político, consigna e emblema afetivo
vitorioso que mobilizou as energias emotivas de milhões
de pessoas, foi a paixão do século XIX. No final desse
século o mito da liberdade separou-se em três direções,
orientadas pelo comunismo, o reformismo e o
anarquismo. Quando aquela paixão política foi
“capturada” vitoriosamente pelo marxismo e endossada
a todo o imaginário e à maquinaria que conhecemos
sob o nome de “comunismo”, ou de suas várias
ramificações paralelas, não somente foi desdobrado um
modelo de ação política e de subjetivação do militante,
mas também um triunfo histórico que ao mesmo tempo
iniciaria — ainda que inadvertidamente para seus fiéis
— seu “drama cultural”: a cristalização liberticida de
uma idéia num molde, despótico-nacional primeiro,
depois imperial. Décadas mais tarde, custou-lhe muito
caro à esquerda a longa subordinação sem crítica ao
modelo soviético. A obsessão pela eficácia e o
centralismo autoritário, a relação oportunista entre
meios e fins, os silêncios diante do intolerável, são

230
verve

cargas históricas pesadas demais até para um santo


ou um titã. É muito difícil que volte a aparecer uma
crença no “modelo” asiático de revolução e, lentamente,
os partidos autodenominados marxistas vão se
transformando em grupos apóstatas ou em seitas em
vias de extinção. Suas linguagens e seus símbolos
rangem e se dispersam, talvez para sempre.
O drama cultural do reformismo socialdemocrata
também deriva, em parte, curiosa ou tristemente, de
seu êxito como eficaz substituto do caminho “maxi-
malista” de transformação social. As expectativas
depositadas nos partidos reformistas foram enormes na
maioria dos países ocidentais, entre a Primeira Guerra
e 1991, ano do fim do regime comunista na União
Soviética. A “genialidade” do reformismo residiu em sua
habilidade para devir em um eficaz mediador entre
poderosos e “perdedores”, e para humanizar essa
relação. Mas com o passar do tempo, a socialdemocracia
deixou de representar um avanço em relação à cultura
política conservadora para se transformar no ideal de
administração do estado de coisas nas democracias
ocidentais. A “atualização” dos partidos de direita, o
desaparecimento do “cosmos soviético” e a renovada
pujança do capitalismo nas duas últimas décadas
tornaram a socialdemocracia incapaz de diferenciar-
se da direita liberal, além dos barulhentos rituais
moralistas, sendo ainda a recente proposta da “terceira
via” pouco menos que um farol publicitário. Seu drama
cultural é que a “reforma” é levada adiante por forças
que tradicionalmente foram consideradas de direita,
inclusive quando as mudanças são feitas por líderes de
centro-esquerda. Perdido o monopólio da transformação
no capitalismo tardio, e sendo as reformas prote-
cionistas comparativamente paupérrimas em relação
à atual e descarnada construção do mundo, o ciclo
cultural do reformismo começa a estreitar-se
dramaticamente. Já é uma moral de retaguarda.
O comunismo pareceu sempre uma corrente fluvial

231
1
2002

que se dirigia, impetuosamente, para uma desem-


bocadura natural: o oceano pós-histórico unificador da
humanidade. Para seus críticos, esse rio estava sujo,
irremediavelmente poluído, mas inclusive para eles era
impossível deter a corrente. Entretanto, esse rio secou
como se um sol super potente o tivesse dissolvido apenas
num instante. Restou apenas o molde vazio do leito. E
as estrias que ali restam, e a ressaca acumulada, já
estão sendo numeradas e classificadas por historiadores
e curadores de exposições. Se insistíssemos com as
metáforas hidrográficas, não corresponderia ao
anarquismo a figura do rio, mas sim a do gêiser, como
também a do trasbordamento, da inundação, do rio
subterrâneo, da tormenta, do redemoinho do mar, do
romper da onda, do olho da tormenta. Fenômenos
naturais, todos, inesperados e desordenados, ainda que
dotados de uma potência particular e irrepetível. Este
diadema de fluídos já nos adverte sobre seu drama, no
qual não se podem conciliar seu poder de transtornar e
sua frágil persistência posterior, sua capacidade para
agitar e mobilizar o mal-estar social de uma época e
sua incapacidade para garantir uma sociabilidade
harmoniosa depois da purga de uma situação política,
sua tradição impetuosa de acosso ético à política da
dominação e sua dificuldade para amplificar seu
sistema de idéias. A palavra “anarquismo” tem ainda
um sonoro, mesmo que focalizado, prestígio político
(tendo-se salvado das máculas endossáveis ao
marxismo, já que suas mútuas biografias divergiram
há um bom tempo). Esse prestígio — talvez um pouco
equívoco — está tingido de uma cor tenebrosa, que não
deixa de ser percebida por muito jovens como uma aura
lírica. O tenebroso acopla o anarquismo à violência e
ao jacobinismo plebeu; o lírico, ao desejo de pureza e à
intransigência.
Mas não há quase anarquistas, ou então suas vozes
não são audíveis. Talvez nunca existissem muitos, se
aceitamos que a definição de anarquista supõe uma

232
verve

identidade “forte”, esforçado ativismo de resultados


mínimos, e uma ética exigente. As circunstâncias
históricas nunca lhes foram propícias, mas ainda assim
conseguiram ser “contrapesos” ético-políticos,
compensação a uma espécie de maldição chamada
hierarquia. Talvez o mundo seja ainda hospitaleiro
porque este tipo de contrapesos existe. Uma cidade seria
inabitável se nela só acontecessem comportamentos
automáticos, maquinais e resignados. O anarquismo,
pensamento anômalo, representa “a sombra” da política,
o que não pode ser representado, a imaginação anti-
hierárquica. E o anarquista, ser improvável, mesmo
existindo em quantidades demográficas quase
insignificantes, assume o destino de exercer uma
influência libertária de tipo radical, que muitas vezes
passa inadvertida e outras se condensa num ato
espetacular. Destino, e condena, porque ao anarquista
não lhe é dado estabelecer nem fáceis nem rápidas
negociações com a vida social atual, e justamente é
essa impossibilidade que em algum momento de sua
existência faz com que o anarquista padeça de seu ideal
como de um feitiço, do qual não sabe como se libertar.
Aquela influência tem seu objetivo: a dissolução do
velho regime psicológico, político e espiritual da
dominação. Para realizá-lo, o anarquismo recorreu a
um arsenal que só ocasionalmente — e não
substancialmente — pode ser acolhido por outros
movimentos políticos: humor de paródia, temperamento
anticlerical, atitudes irredutíveis de autonomia pessoal,
ebulição espiritual acoplada a urgências políticas,
comportamento insolente, impulso da ação política à
maneira de contrapotência e, enfim, uma teoria que
radicaliza a crítica ao poder até limites desconhecidos
antes da época moderna. Sua imaginária impugnadora
e seu impulso crítico nutrem-se de uma gigantesca
confiança nas capacidades criativas dos animais
políticos, uma vez libertos da geometria política
centralista, concêntrica e vertical.

233
1
2002

A dissolução do mundo soviético e a crise do


pensamento marxista pareceram dar ao anarquismo a
oportunidade de sair das catacumbas. Porém, a queda
do “sovietismo” levou consigo o abanico socialista
inteiro, pois inclusive o anarquismo estava familiarizado
com o imaginário comunista afetado pela derrubada:
era uma de suas varetas soltas. Os acontecimentos
políticos do biênio 1989-91, festejados midiaticamente
como se se tratasse da decapitação de Luís XVI, abriam
comportas geopolíticas mas também enclausuravam
tradições emancipatórias. Não só o pior, também o
melhor delas. Junto à derrubada da ordem soviética,
fechava-se um espaço auditivo para as mensagens
proféticas de tipo salvador. E na voz anarquista ressoou
sempre um tom bíblico. Para seus profetas, a ordem
burguesa equivalia à Babilônia. No início dos anos 90
não estava concluída a história — tal como sugerido
por uma consigna veloz e banal —, mas sim, talvez, o
século XIX: constatava-se que as doutrinas marxistas,
anarquistas e inclusive as liberais em sentido estrito,
liquidificavam-se e evaporavam-se da história do
presente. Presenciávamos o canto do cisne do huma-
nismo. Uma de suas conseqüências foi o desapareci-
mento da memória social, isto é, das linguagens e
símbolos que carregavam o projeto emancipatório
moderno e o modelo de antropologia que lhe
correspondia. Ao mesmo tempo, a política clássica,
vinculada à representação de interesses (versão
reformista) ou à pugna social contra o absolutismo e a
ordem burguesa (esquerda e anarquismo), perde força
e legitimidade. Já faz tempo que a política, em escala
mundial, opera segundo o modelo organizacional da
máfia. A ordem mafiosa é, de saída, a metáfora de
fundação de um novo mundo, e isso em todas as ordens
institucionais, das gremiais às universitárias, das
empresariais às municipais. Ou se está dentro da esfera
de interesses de uma máfia particular, ou se está
desamparado até limites apenas comparáveis com o

234
verve

começo da revolução industrial. Este pode ser o destino


que enfrentaremos, mal cruzadas as portas do terceiro
milênio.
Já que todo Estado precisa administrar a energia
emotiva da memória coletiva, as maneiras de controle
e moldagem dos relatos históricos chegam a ser
assuntos estratégicos de primeira ordem. A ruptura da
memória social foi causada, em alguma medida, por
mudanças tecnológicas, particularmente pela
articulação entre os poderes e os instrumentos
midiáticos de transmissão de saberes. É possível
encontrar uma causa, talvez mais ativa, no
desaparecimento de subjetividades urbanas que eram
resultado de um molde popular não ligado à cultura das
classes dominantes. Essas trivialidades urbanas eram
efeito da “cultura plebéia”, que na Argentina e durante
meio século foi dominada pelo imaginário peronista. Ao
longo do século passado, a velha cultura popular (mistura
de imaginário operário e antropologia “folk”) se
metamorfoseou em cultura de massa, o que transformou
lenta porém radicalmente a maneira de arquivo e
transmissão da memória das lutas sociais. E quando a
história e a memória se retraem, as populações podem
edificar seu agir apenas em fundamentos tão
instantâneos quanto frágeis. Por sua vez, o destino da
paixão pela liberdade — mito central do século XIX — é
incerto em sociedades permissivas, do tipo das atuais
sociedades ocidentais, nas quais o “libertário” chega a
ser uma demanda possível de acoplar às ofertas de um
mercado de produtos “emocionais”, da psicoterapia à
indústria pornográfica, da produção de fármacos
harmonizadores do comportamento às promessas da
indústria de biotecnologia. Esta última, em particular,
revela certos sintomas sociais da atualidade: leitura
do mapa genético, transmutação da carne em
alambiques de clonagem, aprimoramento tecnológicos
dor órgãos, cirurgia plástica, silicone injetável no corpo
à maneira de vacina contra a rejeição social. O “modelo

235
1
2002

estético-tecnológico” desdobra-se como um “sonho” que


pretende apaziguar um mal-estar que, por sua vez, nada
tem de superficial. Em economias flexibilizadas, em
países nos quais foi destruída a idéia coletiva de nação,
com habitantes que mal conseguem se projetar para o
futuro, condenados a idolatrias menores, a recorrer à
moeda como lugar-comum, a realizar apostas que não
se sustentam no talento de cada um, a experiência
coletiva torna-se dura, cruel, carente e, por momentos,
delirante. Cada pessoa está solitária junto ao seu corpo
descarnado, aquilo no que, em última instância, se
sustenta. A “ansiedade cosmética” revela-nos o peso que
arrastamos, o esforço que fazemos por existir. Mas
também nos revela que a “arte de viver contra a
dominação”, na qual se desenvolveu o anarquismo, está
suspensa, porquanto as necessidades humanas se
transformam drasticamente e hoje não mais se
articulam com a memória das lutas sociais anteriores.
Se o destino da época seguisse este curso, uma força
semelhante àquela do dilúvio derrubaria as pontes da
história.

Três

Autocracia e fome. Os dois irritadores do “mal-estar


social” na modernidade. Não mais o são, ou ao menos
não estão ativos na mesma medida em que as imagens
de sofrimento nos acostumaram a pensá-los. Diferente
deve ser, então, o destino da política libertária numa
situação social assinada pela licenciosidade em
questões de comportamento, por uma notável capacidade
estatal de recuperação das invenções refratárias ou pelo
menos por uma inesgotável capacidade de “negociação”
com estas invenções, e na que as pessoas no melhor
dos casos estão desorientadas e, no pior, dotadas de uma
percepção cínica da vida social. Para imaginar as formas
de luta do próximo futuro seria necessário identificar
não somente o rumor do mal-estar social em nossos

236
verve

dias, mas também se deveria dirigir o olhar para as


transformações existenciais do século. A última
memória de lutas sociais transmitida à atualidade foi
a das rebeliões juvenis dos anos 60, em especial suas
facetas associadas às mudanças subjetivas — o
“parricídio de costumes” — e à música eletrônica
urbana. Memória que é transmitida, quase em sua
totalidade, pela ordem midiática e pasteurizada, para
torná-la compatível às indústrias do ócio. É evidente que
não é o modelo da fome aquele que informa às atuais
gerações no ocidente. O mal-estar político, porém, para
poder desdobrar-se sobre um terreno social não adubado
ou trilhado pela imaginação hegemônica atual, precisa
identificar novas formas de viver: contrapesos
existenciais. Cada época contribui com a história da
dissidência humana com um “contrapeso”, individual
ou coletivo, que balanceia o despotismo e a sujeição. O
contrapeso “libertário” esparziu, ao longo de sua mais
que centenária história, práticas organizacionais e
emocionais: invenções sociais. E assim com os pré-
históricos inventaram a roda e a agricultura, os gregos
o conceito e o teatro, e os primeiros cristãos o ideal de
irmandade, assim também os anarquistas inventaram
algo: o grupo de afinidade. “Invenção” que ingressa no
tipo superior das obras humanas, onde se acostuma
incluir o jogo, a festa e a melodia.
A defesa anarquista da autonomia individual
questionava a tradição da heteronomia eclesiástica ou
estatal, mas o substrato existencial que permitiu sua
expansão não dependeu de uma idéia ou uma técnica,
mas sim de sua articulação com práticas sociais que
necessariamente eram culturalmente preexistentes ás
teorias libertárias. Essas práticas vinham germinando
na longa história da experiência humana que
antagonizou os usos hierárquicos. Para Marx — como
também para aqueles que se empaparam da tradição
anarcosindicalista —, a fábrica e o mundo imaginário
do trabalho supunham um excelente cimento para uma

237
1
2002

nova sociedade. Mas outro foi o substrato existencial


no qual se enxertou o grupo de afinidade anarquista.
Esse espaço antropológico já começava a germinar no
século XIX e os anarquistas foram os primeiros em
perceber sua silenciosa expansão. Antes que a aliança
sindicato-anarquismo estivesse bem consolidada (e já
desde que os primeiros grupos de simpatizantes “da
idéia” se organizaram no amplo círculo que o compasso
de Bakunin desenhou da Espanha à Besarábia) a prática
grupal na qual as pessoas se vinculavam “por afinidade”
concedeu ao anarquismo um traço distintivo,
distanciando-o da centralidade vertical concêntrica
própria dos partidos políticos democráticos ou marxistas,
modelo que se incrusta no imaginário político
tradicional. A afinidade não só garantia reciprocidade
horizontal, mas também, e mais importante, promovia
a confiança e o mútuo conhecimento dos mundos intele-
ctuais, emocionais e hedonistas de cada um dos
integrantes. Esta condição grupal permitia uma melhor
compreensão da totalidade da personalidade do outro,
assim como de suas potencialidades e dificuldades. De
onde provém o ideal dos grupos de afinidade? Talvez da
tradição dos clubes revolucionários prévios à Revolução
Francesa, ou dos “salões literários” que floresceram no
século XVIII, e seguramente na longa época na que os
grupos carbonários do século XIX experimentaram a
clandestinidade, condição de imediato herdada pelo
anarquismo; enfim, da tradição da “autodefesa” e da
“conspiração”. Também, talvez, dos usos e rituais
maçônicos, dos quais Bakunin era próximo, tendo sido
membro de uma seção italiana da franco-maçonaria.
Pense, por exemplo, na importância que teve a taberna
(ou pub) na constituição da sociabilidade de classe nos
primórdios da revolução industrial, ou o café público na
construção da opinião pública liberal do século XIX, ou
— para as sufragistas — os salões que ampararam uma
nova figura social da mulher na metade desse mesmo
século, ou os grupos de leitura entre os camponeses

238
verve

espanhóis no começo do século passado, ou ainda e


atualmente, a prática de trocar “fanzines” entre
adolescentes em idade ainda escolar em praças públicas
ou concertos de rock. As práticas de afinidade não são,
portanto, a prerrogativa do “local militante”, mas a
efusão possível de experiências afetivas compartilhadas
pela coletividade.
A afinidade é o substrato social do anarquismo, mas
um horizonte mais amplo acolhe o espaço antropológico
que é sempre favorável a ele e desde sempre recebe o
nome de “amizade”. Variadas são as linhas genealógicas
que se confluem no desdobramento moderno da amizade,
tal como a conhecemos atualmente. Seria necessário
agregar ao ideal clássico da philia grega o ideal da
fraternidade revolucionária. Um e outro insistiram na
igualdade posicional dos amigos e nas ações de “cuidado
do outro”. Durante o século XX, a amizade começou a
transcender a relação interpessoal e passou a ser uma
prática social que transita sobre espaços afetivos,
políticos e econômicos antes ocupados pela família
tradicional, fazendo o papel de resguardo contra a
intempérie a qual o Estado ou o capitalismo submetem
a população. A amizade supõe ajuda mútua, econômica,
psicológica, reanimadora, inclusive consultiva, e —
eventualmente — política, transformando-se assim num
tipo de tônico e numa rede fundante da sociabilidade
atual. Ai de quem não tem amigos! Carece então de
uma das amarras que nos unem à vida e nos
reconciliam com ela. A esta genealogia de práticas
amistosas, deve-se incorporar a amizade entre mulher
e mulher, entre homem e mulher, que foram
propiciadas, como nunca antes, pelas transformações
culturais do século passado somadas ao desvanecimento
do “lar” como espaço econômico obrigatório. Cabe
adicionar a elas a amizade entre homossexuais e
mulheres, antes sustentada em certa clandestinidade
e em certos guetos e hoje exposta abertamente. Talvez
também cabe adicionar a amizade entre ex-casais.

239
1
2002

Todas essas formas da amizade eram quase


insignificantes no século XIX, ou seu raio de ação era
muito limitado. Muito mais que as viagens para o
espaço, Internet, o transplante de órgãos ou a
penicilina, são estes novos formatos da amizade as
grandes inovações que devem ser creditadas no
inventário do século XX.

Quatro

O anarquismo foi o contrapeso histórico da domi-


nação. Mas não foi o único: também a socialdemocracia,
o populismo, o marxismo, o feminismo e, inclusive, o
liberalismo reclamam essa categoria. Mas o
anarquismo foi a mais descarnada de todas as autópsias
políticas modernas e a mais exigente de todas as
propostas para superar o estado de coisas do século XIX.
Justamente por ter escolhido um ângulo de observação
tão vertiginoso, também o anarquismo se transformou
— imperceptivelmente no começo, para seus próprios
pais fundadores — num saber trágico. Pois descobrir
que a hierarquia é constante histórica, peso ontológico
e enraizamento psíquico tão imponentes, leva a admitir
que seu desafio suscita pânico, como se tratando de
renegar um deus olímpico ou abandonar para sempre a
casa paterna. Os anarquistas são conscientes de sua
própria desmesura conceitual e política. Suspeitam que
seu ideal nasceu contra as leis da natureza, que poderia
ter sido abortado, que a imaginação coletiva poderia não
tê-lo como necessário. E o anarquismo, que passou por
muitas fases lunares em sua história (as fases
carbonária, messiânica, insurrecional, anarco-
sindicalista, sectária, sessentista-libertária, punk,
ecológica) precisa hoje de um mito da liberdade que seja
“revelador” do mal-estar social e que dê a boa parte da
população um impulso de rejeição, tal como o desafio
blasfemo e desculpabilizador empurrou os anarquistas
contra a igreja, e o desafio anti-hierárquico ao negar a

240
verve

ordem estatal. Se continuará existindo “milagre da


palavra”, isto é, anarquismo, é porque ele pode vir a ser
contra-senha para a esperança coletiva e para lutas
sociais libertas do lastro de modelos autoritários. O
mistério da hierarquia cederia então sua opacidade a
uma revelação política.

resumo abstract

A presença insistente do anarquismo The insistence of anarchism in the present


no mundo atual é problematizada world is taken in this article as a political
aqui como anomalia política e and mysterious anomaly that has been
misteriosa que em suas muitas fases historically questioning the insistence
históricas tem questionado constan- verticality that hierarchy has presented to
temente a perenidade e a vertica- peoples. The anarchist uneasiness before
lidade com que a hierarquização tem the historical drama over power and the
se apresentado aos povos. A invention of sociabilities as living practices
inquietação anarquista frente ao and existential possibilities, ended up
drama histórico do poder e a invenção transforming it in a tragic knowledge, and
de sociabilidade como efeito da being so, restless and revealing of a deep
desmesura de lidar com a hierar- discontent.
quização como sendo apenas uma
das possibilidades existenciais de um
povo, acabam por transformá-lo
num saber trágico e como tal,

241
1
2002

analíticas anarquistas do federalismo

natalia montebello *

Com o fim da Segunda Guerra, o século XX


redimensionou muitas das opiniões que fundaram, até
então, as demarcações territoriais do Ocidente. Não que
a necessidade do Estado, sua força ou sua soberania
fossem colocadas em questão: podemos pensar que a
territorialidade do Estado ganharia novos contornos,
talvez mais elásticos ou dinâmicos, ou melhor, mais
federativos. Quando Winston Churchil propõe, em
setembro de 1946, a idéia de Estados Unidos da Europa,
enuncia uma urgência que seria a marca da política
deste continente em toda a segunda metade do século.
Século que se encerra cronologicamente, mas que, ao
contrário, abre-se politicamente com a discussão
federativa como urgência que perpassa nomes e nações,
e se potencializa planetariamente, assim como o século
XVIII fechou com o federalismo norte-americano.
Longe de anunciar a ineficácia das fronteiras bem

*
Mestre em ciências sociais pela PUC-SP e pesquisadora do Nu-Sol. Este
artigo tem por referência minhadissertação de mestrado, Federalismo e anarquismo:
uma cartografia dos princípios de autoridade e liberdade, apresentada à Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo em 2000.

242
verve

traçadas de territórios e/ou, ideologias, o segundo


grande espetáculo da guerra entre os modernos Estados
nacionais pôs em prática justamente a força dos
governos que surgem do interior dessas fronteiras,
anunciando, sim, a multiplicação exponencial que se
imprime na força do Estado quando a ciência abre o
caminho da tecnologia a serviço da violência
sistemática e legítima, que é a prerrogativa do Estado.
Temos aqui uma problemática, a do Estado,
apresentada pelo ponto de vista da crítica anarquista,
ou melhor, anarquizante: aquela que questiona o Estado
abandonando as preocupações de grau e privilegiando
as analíticas dos efeitos, que resultam sempre em
submissão. E falo de submissão ao pensar na repetição,
por consentimento expresso ou omissão, do princípio
de universalismo que se expressa como necessidade
do Estado. Chamo de pensamento anarquizante em
relação à problemática do Estado aquele pensamento
que investe, como filosofia política, na afirmação de
práticas libertárias, prescindindo, antes de mais nada,
da universalidade do próprio pensamento, questionando
o pensar que consagra esta ou aquela necessidade do
Um — qualquer um — que fala por todos.
Nas linhas que seguem, apontarei para três
problematizações possíveis, escolhidas por pura
vontade, mas segundo a noção de série, analítica
apresentada por Proudhon como pensar não
universalista e não centralizador. Pensar federativo
sobre o federalismo...
Minhas palavras provêm de afinidades, aqui, de três
textos: O princípio federativo, também de Proudhon,
Investigação sobre a justiça política, de William Godwin,
e Discurso da servidão voluntária, de Etienne de La Boétie.
Estas afinidades são possíveis pela série, que combina
unidades analíticas, não por continuidade cronológica,
ou mesmo por relações estabelecidas pelos próprios
autores, mas por conexões que buscam problematizar,
nunca demarcar territórios teóricos. Problematizar para

243
1
2002

abandonar fórmulas que prometem soluções segundo


este ou aquele padrão, abandonando, assim, qualquer
síntese de contrários como solução última a se esperar.
Tomo de La Boétie a negação do Um para combiná-
la, neste ensaio analítico, com o pensar de Godwin e
Proudhon sobre o federalismo. Seu contra o Um dissolve
o imperativo da obediência universal, assim como em
Godwin e Proudhon o incômodo que a universalização
da obediência provoca resulta em investimento para
pensar a política — ou também para pensar o pensar da
política — pelo ponto de vista da federação
descentralizada. Godwin e Proudhon, por sua vez, não
nos oferecem nenhuma fórmula do tipo “a maneira
anarquista de pensar o federalismo”; não se trata disto.
Há, nestes três autores, uma interrogação contundente
à unicidade que deriva do Estado centralizador,
interrogação esta que em La Boétie se desdobra na
afirmação da vida sem o senhor, assim como em Godwin
e Proudhon desdobra-se em descentralização federativa.

a analítica serial

Quando lanço mão da analítica da série, opero numa


extensão de pensamento que é, antes de tudo,
descentralizada, horizontal e localizada. Extensão
descentralizada, porque a série não aponta para
problemas e soluções universais, mas para
problematizações específicas; horizontais, na medida
em que dispensa as profundidades ideais; e, portanto,
também localizada, uma vez que a série não tem
validade para além do seu ponto de vista. A própria noção
de ponto de vista nos remete não só à localização, mas
também à superfície, a diferença da profundidade
teórica, o que novamente interrompe qualquer
universalização.
Assim, a série reclama por noções com as quais
pensamos localizadamente — ou dispensando a
dimensão universal. Opero com noções que remetem à

244
verve

visibilidade permitida pelo ponto de vista. Não que o


ponto de vista imponha um ponto final, ou mesmo
anuncie uma solução definitiva. Nem solução, muito
menos definitiva, nem ponto final: ao se propor uma
série, propõe-se uma possível problematização, um olhar
direcionado a um problema, e o resto estará sempre por
ser pensado.
A série proposta, que chamo de “não ao Um”, descreve
uma extensão do pensamento político que interrompe a
continuidade do argumento da necessidade do governo
universal. Por governo universal, entendo o governo
centralizado, fundado na obrigatoriedade da obediência à
lei, tanto da lei que deriva da vontade do príncipe, como da
lei que deriva da vontade geral. A interrupção da
continuidade do governo é dimensionada, nesta série,
como federalismo descentralizado. E, na medida em que o
federalismo descentralizado traduz a dissolução da relação
entre autoridade institucionalizada e obrigação de
obediência, podemos entender os efeitos deste federalismo
como uma extensão de afirmação e crítica anarquista.
Meu interesse, entretanto, não me leva a pensar o
anarquismo como discurso que responde
modernamente à existência do governo pela supressão
deste e pela afirmação de um conjunto de noções que
possibilitam espaços de liberdade. Interessa-me pensar
o federalismo descentralizado como proveniência
moderna do anarquismo e, sinalizar que o anarquismo
se atualiza em práticas descentralizadas e federativas.
Na série devem ser encontradas as unidades com
as quais serão propostas combinações, no que se chama
de razão ou relação entre elas, segundo o ponto de vista.
Se a série é o “não ao Um”, como interrupção ao
argumento da necessidade do governo, e o ponto de vista
é a afirmação do federalismo descentralizado, como
ampliação progressiva de espaços de liberdade, resta
encontrar as unidades e as combinações.
As unidades da série, na ciência da política, são, diz
Proudhon, seus dois princípios: autoridade e liberdade.

245
1
2002

Se esta ciência é potencializada, através da metodologia


serial, por dois únicos princípios, o mesmo Proudhon
quebra a delimitação pela possibilidade infinita de
combinações destas duas unidades. Isto é, se combinamos
os princípios de autoridade e liberdade, numa extensão
que é mostrada pelo ponto de vista federativo, vemos que
é a nossa escolha de combinações possíveis o que
determina a extensão da série, ou melhor, o que nos
oferece as demarcações dos mapas. Desta maneira,
observamos que, por responder ao governo como
continuidade, portanto logicamente, a nossa série dialoga
tanto com o que podemos entender como extensões de
autoridade, como com extensões caracterizadas pela
preponderância do princípio de liberdade.
A noção federativa, no interior da analítica proposta,
responde ao governo, à geografia, unitária ou federativa,
que resulta de sua soberania. Privilegiar o diálogo, ora
com uma série que investe no princípio de autoridade
ora com outra que investe no de liberdade, não é mais
do que o resultado de uma escolha. Mesmo considerando
a noção progressiva da ação do princípio de liberdade,
mostrada por Proudhon em O princípio federativo, no
próprio texto, Proudhon também dissolve as divisões
convencionais entre tipos de governos ou regimes,
apontando para o que ele chama de defesa fanática de
uma pureza de idéias que não existe na aplicação, e
mostrando que chamar um governo de monárquico ou
democrático não é, na maior parte das vezes, mais do
que uma convenção.
O mesmo poderíamos encontrar na Justiça política,
redimensionando a discussão pela ótica da moral, onde,
ao mostrar que o governo é sempre a cristalização de
um erro — ou a institucionalização de uma injustiça —
, Godwin dialoga tanto com concepções conservadoras
do governo — e neste caso Burke é seu interlocutor
preferencial —, como com concepções que investem na
ampliação de liberdades civis, como é o caso de Paine e
os Federalistas, Rousseau, Montaigne e Locke,

246
verve

igualmente interlocutores privilegiados de Godwin —


como também depois de Proudhon.
Outras combinações? Conectar o “não” de La Boétie
ao tirano — que abre as portas da Renascença — com o
não ao governo que se debruça sobre as Revoluções
Americana e Francesa, em Godwin e Proudhon, dentro
de uma cartografia federativa, que, mais uma vez, não
investe nas origens, ou no traçado contínuo e necessário
que surge da interpretação sobre as origens. La Boétie,
Godwin e Proudhon guardam afinidades, no interior das
diferenças, dentro de um discurso no qual o “não” —
demolição — é afirmação de liberdades.
É, então, dentro desta extensão do pensamento
libertário, onde o pensar anarquiza o pensamento, que
a política torna-se vital, dispensando instâncias e
reivindicações de ampliações de direitos, assim como
reformas ou trocas de nomes para preservar o mesmo.
Ao pensar o federalismo descentralizado, lançando mão
do “não ao Um”, mostra-se que este pensar não é uma
saída teórica que responde a uma discussão de época
ou de continuidades e sínteses conceituais, mas sim
uma problematização pertinente a afirmações de
universalismos, possível, no pensar político, como
extensão horizontal e descentralizada, que reclama por
vontades interessadas em afirmar liberdades recíprocas.
Na série, então, não se discutem totalidades, de
idéias ou de obras, mas, novamente, algumas
combinações das suas unidades que permitem verificar
o ponto de vista proposto. Qual será o nosso ponto de
vista? Queremos saber qual o percurso que nos permite
afirmar o federalismo descentralizado como resposta
política que interrompe a continuidade do governo como
necessidade, principalmente nas extensões nas quais
é possível preservar o argumento da necessidade do
governo quando este é considerado um mal necessário.
Devemos ainda observar que esta extensão do
anarquismo não recorre à luta revolucionária, e a
entendo, portanto, como proveniência pacifista do

247
1
2002

anarquismo e, em especial, do federalismo anarquista.


La Boétie o dissera claramente: ao tirano não é
necessário derrocar, enfrentar, enfim, resistir pela
força, basta deixar de obedecer, basta querer não mais
servir. Se, ao mostrar o funcionamento da servidão, o
que La Boétie descreve é a ação da vontade de todos,
dos cinco sentidos de todos, prolongando e infiltrando o
poder do mais fraco dos homens, o tirano, bastaria deixar
de prestar este serviço para ser livre; sem a vontade de
servir, a dominação do tirano é inviável.
Godwin tem por intenção, ao escrever Enquiry
Concerning Political Justice, pensar a problemática do
governo como assunto de argumento e demonstração,
e mais, como assunto que deve ser sempre submetido
à discussão de todos. Ao pensar as revoluções, sua
intenção não faz mais do que prolongar-se: as revoluções
devem ser revoluções, antes de mais nada, de
sentimentos e disposição, provenientes do uso da razão,
nunca da violência. A intensidade de uma revolução no
pensamento é inversamente proporcional à violência
da luta revolucionária. Pelo pensar os homens
aproximam-se da verdade — é o que Godwin entende
por capacidade, própria a todos, de aperfeiçoar-se —, pelo
erro da violência.
Se há alguma coisa que possa ser chamada de
verdade, diz Godwin, ela deve ser superior ao erro. O
erro, por sua vez, é minimizado ou evitado no terreno
da ciência, isto é, pelo uso ininterrupto da razão. Logo,
para revolucionar o presente nos sugere três verbos:
“escrever, argumentar, discutir”; que opõe a três
substantivos: “indignação, furor, ódio”. Assim, à razão,
exercitada pela livre e ampla discussão, Godwin opõe a
violência. Avisa-nos, ainda, que “quando descendemos
do terreno da luta violenta, abandonamos de fato o campo
da verdade e lançamos o resultado à sorte e ao cego
capricho. (...) No bárbaro fragor da guerra, do clamoroso
estrépito das lutas civis, quem poderá predizer se o
desenlace será miserável ou venturoso?”1

248
verve

Godwin e La Boétie buscam a afirmação de espaços


de liberdade que prescindem da reivindicação por serem
“naturais” ou “lógicos”, muito mais do que discorrer
sobre o problema da luta revolucionária. Estão interes-
sados em afirmar, não em derrocar. Da mesma maneira
Proudhon, não tanto pela sua consistente crítica às
revoluções — principalmente à Americana e à Francesa
—, mas sim pela afirmação de liberdades que perpassa
sua filosofia o faz descartar, primeiro da lógica, a luta
revolucionária. A ampliação progressiva da liberdade,
efeito potencial de seu método, é uma clara resposta à
violência, mesmo que supostamente libertadora, das
lutas revolucionárias. Se tomamos de Proudhon, ainda,
suas palavras sobre as mais espetaculares revoluções
de seu tempo, vemos que sua crítica dirige-se ao que
pode ser considerado como sua iniqüidade: o senhor-
rei cedeu lugar ao povo-rei. Como Godwin, Proudhon
também relaciona o resultado de uma revolução ao tanto
de pensamento e discussão que a antecede. A aposta
na política-ciência o leva, em O que é a propriedade?, a
diferenciar “progresso” de “revolução”, e reforma de
mudança.

não ao Um: as analíticas

Quando, no final do século XVIII, William Godwin


encontra na história a repetição da violência e da
guerra, responde à violência e à guerra com a supressão
da forma política que lhes dá continuidade: o governo.
O alvo de Godwin: a inquestionada associação entre
autoridade institucionalizada e obediência universal.
Constata que a história dos governos é a história do
crime, como ameaça e como castigo, ou a história da
violência sistemática enquanto efeito da prerrogativa
do Estado de garantir a segurança das vidas e da
propriedade privada. Diante desta constatação responde
com a interrupção do argumento da prevenção geral,
que transforma o Estado em máquina de violência, sendo

249
1
2002

que minimizar os perigos da violência é a atribuição


ontológica do Estado. Se o Estado é o produtor universal
da violência que ele deve eliminar, operar no seu
interior para deter os efeitos indesejáveis de toda sua
auto-suficiência é, no mínimo, um lírico exercício de
candidez — poderia muito bem ser, no entanto, o cálculo
estratégico de adoçar estes efeitos para preservar as
vantagens.
Se Godwin escancarou a injusta institucionalização
da violência no governo, sua preservação nas opiniões
que o consideram necessário e a preservação,
novamente, destas opiniões, como reverência ao
passado, Etienne de La Boétie, escancara o acaso, o mau
encontro que dá sentido às palavras “tirano” e “súdito”,
dissolvendo uma na outra. O próprio percurso da Servidão
voluntária nos mostra como “tirano” não é antônimo de
“súdito” e vice-versa, como não há oposição ou
exterioridade que delimite governo e governados: há
uma progressão geométrica que relaciona um a dez,
dez a dez mil, dez mil a milhões... e, assim, não havendo
uma origem que explique e que, portanto, permita
pensar medidas, há um acaso que determina uma
medida: o governo é sempre absoluto. Diante do acaso e
de sua totalização, La Boétie irrompe com a
insubmissão, com não mais servir, de onde as relações
devem ser inventadas entre iguais.
Nesta desobediência, mais do que uma negação do
tirano, há uma afirmação que desobedece às palavras:
não há tirano melhor ou pior, mas também não há súdito
mais ou menos subjugado. Simplesmente, não havendo
servidão, não há tirano, não há súdito. Desta maneira,
se é terrível que o tirano seja o ponto de vista que
descreve o súdito, é igualmente terrível que o cidadão
seja o ponto de vista que descreve o governo.
Godwin, no século XVIII, e anteriormente La Boétie,
no XVI, disseram claramente que o governo não perde
força nenhuma, eficácia nenhuma ou violência
nenhuma quando se tenta, mesmo que benevolen-

250
verve

temente, redimensioná-lo, atualizá-lo, suavizá-lo,


humanizá-lo. Entenderam que o governo se prolonga em
si mesmo, se refaz e se atualiza. Ou melhor, entende-
ram que é o governo, a institucionalização da violência,
aquilo que transforma a violência em necessidade de
governo.
Por que se preserva o governo? Porque muitos tiram
muitas vantagens disto, diria La Boétie, e porque os
homens nem imaginam que podem querer, que bastaria
querer para não ter um tirano. Bastaria um “não” lógico
ao governo. Por que os homens nem imaginam que
podem viver sem governo? Porque não pensam,
escrevem e discutem sem pensar o governo a não ser
como uma necessidade, diria Godwin. Aqui, um “não”
moral.
Podemos, então, perguntar: é possível pensar,
escrever e discutir descartando a oposição tirano-
súdito? Ou antes: quais são os efeitos desta oposição
que aprisionam a imaginação e o pensamento entre as
palavras? Respondendo a esta pergunta, diria que
resulta, da oposição, uma centralização: do tirano sobre
os súditos, no tempo de La Boétie, ou dos cidadãos sobre
o governo, no tempo de Godwin, mas uma não difere da
outra. Monarquia ou democracia: há sempre um lugar,
institucionalizado, para colocar a própria vontade.
Tirania ou governo representativo: há sempre uma voz
que fala por todos. Do século XVI até a primeira metade
deste século, a voz e a vontade ecoaram em territórios
que prometiam, com certa tranqüilidade, a paz e a
prosperidade geral.
Acreditou-se, neste tempo, que os problemas
colocados pelo território, problemas políticos e econô-
micos evidentes, seriam resolvidos pelo dimensiona-
mento do território. Encontrou-se, assim, uma equação:
repúblicas pequenas para a paz e a ordem internas,
repúblicas grandes para a força política e econômica.
Esta equação, que modernamente é republicana e
federalista, colocou definitivamente em discussão um

251
1
2002

tema que, a despeito da coincidência das palavras


(Estados Unidos, da América, no século XVIII; e da
Europa, no XX) se mostra insuficientemente pensado.
Europa, na segunda metade do século XIX, escuta
novas palavras libertárias: a teoria sobre o governo
federal não tinha sido nunca pensada. Se entendemos
isto como não foi satisfatoriamente ou suficientemente
pensada, hoje ainda nos fazemos esta pergunta: o
federalismo foi, ou é hoje, suficientemente pensado?
Proudhon potencializa o “não lógico” de La Boétie e o
“não moral” de Godwin, desenhando um pensamento
moderno.
Depois da Segunda Guerra, a promessa da paz e a
prosperidade geral tornou-se a grande incerteza, frente
à missão do governo: garantir a segurança, interna, dos
cidadãos, e externa, da nação. Quando, em 1788, os
norte-americanos resolveram a equação da segurança
— que devia resultar em paz e prosperidade —, pela
inserção da variável federativa, redimensionaram a
centralização, preservando o governo ao eliminar os
perigos que territórios isolados, grandes ou pequenos
oferecem a sua continuidade. A revolução em nome do
governo constituiu os Estados Unidos da América. Pouco
mais de 150 anos depois, a Europa teria que reavaliar
os perigos que a força — também autodestrutiva — de
seus territórios isolados oferecia diante da promessa
de paz e prosperidade. Churchil propõe os Estados Unidos
da Europa. Até hoje, sabemos muito bem, não houve
governo que pudesse oferecer, tranqüilamente, a
promessa de paz e prosperidade, mas sucessivas
federalizações de territórios isolados tornaram-se a
única saída diante do aniquilamento econômico e o
único refúgio, mesmo que frágil, diante da guerra.
A supranacionalidade que caracteriza o
internacionalismo deste meio século não parece ter
incorporado a dúvida diante da centralização: a palavra,
“supranacionalidade” já é uma descrição eloqüente do
dimensionamento das urgências políticas e econômicas

252
verve

que surgem do interior de territórios demarcados pela


continuidade do governo. O prefixo potencializa o
conceito: o intervencionismo, na política e na economia,
parece ser a tradução mais acabada da promessa que o
Estado moderno não esquece. Todos devem ser iguais,
todos devem associar-se — ajustar-se —, e aqueles que
não prosperem e que insistam no confronto bélico serão
castigados pelo isolamento.
Da mesma maneira, reivindicar o isolamento não é
mais do que aniquilamento romântico que apenas
poderia satisfazer ideologias. Assim, entre a federação
e o isolamento de territórios centralizados, voltamos à
pergunta: é possível pensar, escrever e discutir
descartando a oposição tirano-súdito? Pensamentos
anarquizantes perpassam de múltiplas maneiras esta
pergunta. Anarquizantes: pensar sem o governo é uma
maneira de pensar que não presta contas nem às
demarcações políticas e econômicas, nem tampouco às
históricas, que conformam territórios, confinando
inteligências e talentos em servidões voluntárias que
perderam a imaginação.
Não ao Um, tirano ou governo, é uma proveniência
anarquista que dissolve, e não divide, fronteiras
artificiais. Neste sentido, Proudhon, Godwin e La Boétie,
a despeito de histórias de idéias, pronunciaram
verdades que ainda hoje continuam insuportáveis para
um mundo que insiste em destilar prefixos para as
totalizações que confinam em nome da paz e da
prosperidade.
Pensamentos anarquizantes têm respondido a
confinamentos territoriais de toda índole. Se o
federalismo é o tema que perpassa a solução norte-
americana à continuidade do governo, encerrando o
século XVIII, o internacionalismo do final do século XX
mostra que o tema não foi ainda esquecido, e que é
maior do que as cronologias.

253
1
2002

federalismo

O federalismo, modernamente, foi em primeiro lugar


a resposta republicana ao problema do tamanho do
território em relação ao tanto de liberdade civil, isto é,
de garantia de segurança individual e nacional, que
governos inspirados na vontade geral poderiam oferecer.
Por sua vez, a interrupção anarquista à continuidade
do governo se torna federativa ao dispensar a autoridade
central, afirmando que esta não é necessária.
Estas duas extensões federativas da política são,
também, uma resposta ocidental, não só à monarquia
ou aos governos antigos, mas a um problema que a
antigüidade não conhecia: a população. A população, não
só por seu acelerado crescimento potencial, mas por
seu acelerado e, também, potencial trânsito, tornar-se-
ia uma força política que dividiria o pensamento entre
aqueles que equacionavam a forma de pacificá-la e
aqueles que a entendiam como uma força que devia, de
fato, atualizar-se.
No primeiro caso, deu-se à população a cadeira do
rei, o trono. E assim separa-se, na política, o mundo
antigo do mundo moderno: o argumento da vontade geral
como fundamento do governo. Preservando-se o trono,
preservou-se também a forma circular da soberania: a
vontade geral antecede à lei, que funda o governo, que
deve resguardar e executar a vontade geral. Para tanto,
o governo tem a prerrogativa da força e os cidadãos a
prerrogativa da obediência à lei. Chama-se a isto
liberdade civil. Nada mais elucidativo a este respeito
do que a frase que Thomas Paine pronunciara alguns
meses antes da independência norte-americana: assim
como nos governos absolutos o rei é a lei, nos países livres
a lei deve ser o rei.
A vontade geral torna-se, desta maneira, a
atualização do rei e, quando a política se dispõe a come-
morar a preservação do governo, o aumento da população

254
verve

coloca novamente em sério risco o princípio do governo:


a medida que a república aumenta, a vontade geral,
seu fundamento, torna-se mais dispersa, e o bem
comum, sua missão, mais comprometido. Da mesma
maneira, quanto menor a república maior a
possibilidade de um ataque estrangeiro, o que
evidentemente também compromete o bem comum.
Como solucionar este impasse? O que Locke anunciara
como poder federativo, Montesquieu assentara como
república federativa, e os Estados Unidos, pouco mais
de vinte anos depois do pronunciamento de Paine,
consagraram como revolução em nome do governo. Tudo
coerente, entretanto, com Paine — basta lembrar que o
grande argumento a favor da república federativa,
apresentado por Montesquieu, é a fórmula que conjuga
a força da monarquia com a liberdade da república.
A república federativa se mostrou a resposta moderna
mais consistente ao problema do território, quando este
representa uma ameaça à vontade geral. E de fato o é,
sempre que as demarcações geopolíticas resguardem
as fronteiras que instauram e preservam a necessidade
do governo. Também foi a equação mais acabada da
continuidade do governo. Mas quando o governo é
interrogado em seu princípio, estas fronteiras
logicamente se dissolvem e deslocam o problema, não
mais para o tamanho do território, mas para o conjunto
de opiniões que fundamentam este território como
demarcação legítima de fronteiras. Desta interrogação,
resulta uma demarcação arbitrária, que está na base
da obediência irrestrita e eterna à lei.
O anarquismo responde à máxima da necessidade
do governo sobre todos, seja este do rei ou da lei — do
povo. Mostrando a continuidade entre um e outro,
desliza-se da história para a lógica para demonstrar,
como o fizera Godwin, que todo governo é fundado em
opiniões. Nada mais do que opiniões.
Mais do que dissolver territórios centralizados, o
pensamento anarquista dissolve, com a mesma

255
1
2002

intensidade, territórios de saber que, lançando mão de


verdades inexplicáveis, centralizam o discurso da
ciência que mais interessa aos homens, a política. Ao
escrever a Justiça política, Godwin submete ao exercício
da demonstração e da argumentação as opiniões que
fundam o governo. Dirige-se ao governo para interrogar
tanto a reação conservadora diante da Revolução
Francesa, quando Edmund Burke faz a apologia da
monarquia, quanto o entusiasmo liberal que precedera
a Revolução Americana com Locke, Montesquieu e
Rousseau, e que a acompanhara com Paine e os
Federalistas. Godwin responderá a este entusiasmo
provocado pelo mundo novo, dissolvendo a necessidade
de pensar a liberdade do ponto de vista do governo,
investindo, portanto, contra os efeitos deste ponto de
vista na política. Responde particularmente à afirmação
de Paine sobre o governo, que pode ser sintetizada na
expressão de que qualquer governo é, em última
análise, um mal necessário, de onde restaria apenas
dimensioná-lo segundo o maior bem que se possa extrair
de sua inquestionável existência — e dimensionar,
também, as formas institucionais de controle ou
preservação deste máximo de bem.
Relaciono assim o percurso de Godwin, ao mostrar a
continuidade da obediência, tanto a La Boétie, que
dissera, no século XVI, que para não ter um tirano
bastaria não mais servi-lo, como a Proudhon, que três
séculos depois investiu não na interrupção da
continuidade da vontade do senhor, mas no federalismo
descentralizado como interrupção libertária da
continuidade do governo na modernidade, afirmando a
potencialização da ação do princípio de liberdade, em
detrimento do princípio de autoridade. De certa maneira,
o pensamento de Godwin preparou uma extensão na
qual o federalismo descentralizado encontraria
ressonâncias no que a história das idéias chama de
anarquismo. Mas esta extensão, se vista pela negação
ao poder do Um, dá visibilidade a uma afirmação que

256
verve

transborda as leituras cronológicas: afirmação de que


os homens podem inventar suas relações, e que para
tanto contam com sua razão, seu talento e sua vontade.
E mais: que nunca uma autoridade universal poderá
dizer, e ao dizer ordenar, de que maneira cada um deve
viver. Extensões de liberdade que se abrem no
pensamento político, se projetam, pelo anarquismo, como
resposta federativa diante de qualquer centralização.
Mas o anarquismo não é um decálogo — tanto faz se
teórico ou religioso — que diz de que maneira viver
melhor; mesmo porque a vida, assim como sua negação
sistemática e legitimada na forma do governo, não
aponta para uma discussão de grau ou intensidade. Ao
contrário, ao pensarem a política como argumentação
e demonstração, Godwin e Proudhon imprimiram, na
política, seu federalismo: isto é, sua forma de proferir
não ao Um.
Afirmações de federalismo descentralizado ou de
sociedades sem senhor interrompem toda uma série
de verdades que muito bem poderíamos ver como
demarcações da obediência irrestrita à lei. Numa
guinada lógica que sempre nos surpreende por sua força,
La Boétie desmonta a legitimidade do senhor, deixando
em evidência apenas o que esta tem de acomodação ou
conveniência. Tanto Godwin como Proudhon pensaram
em seus detalhes as idéias que consagraram a
necessidade do governo. Nos mostraram, certamente,
uma história da violência sistemática e do pensamento
complacente. Mas muito mais do que mostrar a
invalidade destas idéias, investiram na
descentralização federativa como extensão do
pensamento político que não se amolda ao
universalismo e a qualquer um de seus qualificativos
de ocasião. O Um, senhor ou governo centralizador desta
ou daquela vertente, desvanece pelo gesto irreverente
que o entende apenas como “mais um”.

257
1
2002

Nota

1
Wlilliam Godwin. Investigacion acerca de la justicia politica y su influencia en la
virtud e la dicha generales. Buenos Aires, Editorial Americanale, 1945, p. 123.

resumo abstract

Para equacionar o federalismo no interior In order to think federalism into an


de uma analítica anarquista, afirmações anarchist analysis, claims from La Boétie,
de La Boétie, Godwin e Proudhon são Godwin and Proudhon are combined
combinadas, segundo a noção de série, according to the concept of theories built
proposta metodológica apresentada por by the latter. Thus, it is possible to come
este último. Assim, desenha-se uma up with a theory that denies central
série que investe na negação da authority as an universal imperative, on
autoridade central como imperativo behalf of anyone. Lord or state, subject
universal, em nome de qualquer bem. or citizens, it does not matter. The
Senhor ou Estado, súditos ou cidadãos, necessity of the ONE is questioned apart
tanto faz. Questiona-se, cronologias a from chronologies. An answer is possible:
parte, a necessidade do Um. Uma decentralize federalism.
resposta possível: o federalismo
descentralizado.

258
verve

quando o sol penetra no dia


dá um dia de sol muito bonito
muito belo

Stela do Patrocínio

259
1
2002

Resenhas

a dialética da autoridade e da liberdade


paulo-edgar almeida resende *

Pierre Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo,


Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.

Esta obra trata do Federalismo enquanto princípio


geral de reorganização revolucionária da sociedade.
Toda a reflexão tem como eixo a dialética da Autoridade
e da Liberdade. Por autoridade entendam-se as
soberanias, embasadas na tríplice transcendência: do
Estado sobre a Sociedade, do Capital sobre o Trabalho,
da Religião sobre a Mente. Por liberdade o movimento
de ultrapassagem da sociedade do capital pela sociedade
do trabalho, do regime governamental pelo regime
econômico, da revolução política pela revolução social;
do socialismo estatal pelo socialismo libertário. Trata-
se do cerne teórico de toda a sua produção posterior.
Diante da crítica radical ao Estado em suas obras
anteriores, Proudhon se coloca diante do horizonte mais

*
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais PUC/SP. Co-
organizador, com Edson Passetti de Proudhon. SP, Ed. Atica, 1985.

260
verve

amplo das relações entre povos. A federação se apresenta


como forma de contrabalançar a liberdade e a
autoridade. Isto se torna possível na medida em que
Proudhon, ao invés de aprisionar seu raciocínio no par
Estado-Mercado, aprofunda sua reflexão sobre as lutas
contra a desigualdade econômica, coroada pelo autori-
tarismo em nível político. Concebe a federação como
rede de associações autônomas, com interesses
comuns.
A sociabilidade nos clássicos da antiguidade tendia
a ser naturalizada. As posições estruturais do escravo
e do amo, do servo e do senhor seriam pré-ordenadas
na nascença. A explicação da desigualdade nos clássicos
da teoria política da modernidade, chega a Proudhon
historicizada, mas como unificação, unidade precária,
à base do contratualismo ou da dicotomia hegeliana
entre entendimento corporativo no nível da sociedade
civil e razão universal do bem comum, acessível apenas
do ângulo estatal. É uma sociabilidade sujeita a desfazer-
se e a refazer-se, sempre a dano dos que, na correlação
de forças, encontram-se sem o controle da produção. O
raciocínio de Proudhon se torna cristalino: se não há a
pré-ordenação da sociabilidade hierarquizada, se não
vigora o arranjo de natureza, se a desigualdade não é
fenômeno natural, a questão do poder econômico e
político tem de ser apreendida em sua realidade
histórica. Por esta trilha, desvela as relações da política
e da economia na sociedade capitalista do século XIX.
A unidade de objetivos entre os desiguais no
interior do Estado nacional é problematizada. A partir
do movimento operário revigorado pela revolução
industrial e a urbanização, a idéia libertária da
insuficiência da política e dos limites do pacto social,
na sociedade do capital, consubstanciam-se as
potencialidades da sociedade do trabalho. Passa pelo
crivo de sua crítica à Revolução Francesa, que proclama
o advento da igualdade, da liberdade, da solidariedade.
Mas ela se esgota nos formalismos de participação.

261
1
2002

Deixa como legado a autoridade, e não consolida a


sociedade, antes se esmerando no seu governo. O
movimento revolucionário esterilizou-se nas consti-
tuições políticas. O nivelamento dos indivíduos pelo
sufrágio universal deixa intacta a não reciprocidade
social. O povo sobe um degrau na ordem político-
institucional, mas permanece a inferioridade do
trabalho em relação ao capital. Longe de pura e
simplesmente desqualificar o processo desencadeado
pelas Revoluções burguesas, Proudhon anota a queda
da venda monárquica dos olhos do povo, que se depara
com a grande contradição de participar da soberania
política e permanecer subjugado economicamente.
A revolução deverá então gestar o regime
econômico, superando o seu contrário, o regime gover-
namental. O revolucionário terá sobretudo de lidar com
as contradições do presente, sem o afã de ter o futuro
aprisionado numa ordem de idéias que o enclausure.
Ninguém será capaz de ser portador de um projeto pronto
para ser implantado, formulado por vanguardas
iluminadas. O que cabe é detectar o movimento da
história a cada passo. E 1848 revela a consciência mais
desenvolvida dos trabalhadores, que se defrontam com
duas correntes de opinião: o sistema comunista
governamental e o sistema mutualista proudhoniano.
No sistema comunista governamental a
comunidade uniformizada é concebida sob a influência
do próprio preconceito da propriedade. A comunidade é
proprietária não só dos bens, mas das pessoas, das
vontades. Tudo é propriedade do Estado. O movimento
operário é cooptado pela burocracia opressora que resta-
belece a autoridade e anula a liberdade. A diferença
entre o sistema capitalista e o sistema comunista
estatal está no fato de o sistema de propriedade e suas
vantagens mudar de endereço, com exclusão em ambos
os casos, dos produtores.
O revolucionário não visa a purificar o capitalismo,
como tampouco opta pela profilaxia do Estado. Tendo

262
verve

como forma e conteúdo de sua ação o trabalho, convence-


se que antes de qualquer tipo de convenção, os
trabalhadores se associam na produção. Antes mesmo
da legislação, da administração que centralizam o
processo decisório, impondo disciplina e obediência, a
sociedade se constitui de várias formas pela dinâmica
econômica e é neste nível que se desvela seu formato,
seu significado. Nas duas situações anteriores do
capitalismo e do estatismo, o coletivo é entregue pronto
de modo transcendente.
No sistema mutualista, a iniciativa da ordem
coletiva se constitui sem apelo a instâncias superiores,
prescindindo de qualquer tipo de delegação, que rati-
fique a verticalização das relações. A recuperação do
coletivo pela mediação do trabalho realiza a liberdade
dos produtores, no sentido da autogestão, em lugar da
heterogestão. Constitui-se, assim, no nível econômico
a Federação agrícola-industrial.
Ao mutualismo autogestionário, em nível econômico,
corresponde o federalismo descentralizador no nível
político, o oposto da hierarquia ou centralização
administrativa e governamental. A federação se ancora
na autonomia das unidades federadas, com articulação
não burocrática. A era constitucional da razão de Estado
é chamada a ser superada pela era da Federação política
ou da Descentralização. Na direção contrária ao Estado
nacional, de direção centralizada, Proudhon detecta, no
movimento histórico, a alternativa da Federação
progressiva que leva à confederação de regiões, de
províncias, com fluidez de fronteiras, delineadas e
modificadas à medida que o desenvolvimento social o
postule, sem sobrepor-se como marco limitador.
Em resumo, na república de Proudhon, a liberdade é
elevada à potência três, a autoridade é reduzida à sua
raiz cúbica.

263
1
2002

visões do estado andre degenszajn*

Frank Harrison. The Modern State. Montréal, Black Rose


Books, 1983, 227 pp.

(…) por mais profunda que seja a perda da liberdade,


nunca está perdida o bastante, nunca se acaba de perdê-la
Pierre Clastres

Frank Harrison apresenta em seu livro um


panorama sobre o Estado moderno. Apesar de ter sido
escrito há quase duas décadas, mostra-se mais atual
do que a maior parte das análises contemporâneas sobre
o tema. Harrison constrói sua argumentação a partir
da perspectiva da resistência ao Estado, através das
múltiplas correntes do pensamento crítico. Conceitos
como propriedade, revolução, poder e liberdade são
discutidos a partir das concepções de diversos autores
e tendo como pano de fundo o debate entre socialistas e
anarquistas.
Esta não é uma obra imparcial ou isenta. E não
pretende ser. O subtítulo do livro, an anarchist analysis
(uma análise anarquista), explicita a abordagem e a
crítica que o autor desenvolve. O livro de Harrison
adquire maior relevância neste momento em que
críticas e contestações parecem ser absorvidas pelo
conservadorismo dominante, que nutre uma falsa
esperança de um novo mundo reconstruindo o que já
está colocado. Faltam espaços para reflexões que
radicalizem a crítica e procurem buscar possibilidades
além daquelas que nos são apresentadas — das cédulas
aos reality shows.
The Modern State é um livro da Black Rose Books,

* Mestrando em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisador do Nu-Sol.

264
verve

editora canadense que publica, desde 1970, livros


críticos e contestadores no campo das ciências
humanas. Longe de ser uma editora comercial, a Black
Rose Books é um projeto editorial que contribui para o
debate crítico a partir de novos pontos de vista e
referenciais. Em um contexto no qual a decisão de
publicar livros é resultado de um cálculo econômico
definido pela demanda, é importante que (ainda) existam
editoras orientadas por estes princípios. Não é por acaso
que o livro não foi traduzido para o português.
A afirmação do anarquismo diante de outras formas
de sociabilidade ganha ainda mais validade no momento
atual, em que este é esvaziado de seu sentido e sua
força. Quando não se identifica o anarquismo à baderna,
ele é enquadrado como socialismo revolucionário,
pacificando, assim, o debate. Harrison, a partir de sua
fundamentação histórica e da apresentação dos embates
entre socialistas e anarquistas, deixa claro quais são
os elementos de ruptura entre as duas perspectivas.
A partir de formulações teóricas de individualismo e
anarquismo, Harrison apresenta críticas às concepções
socialistas de Estado e de organização social. Seja pelo
viés liberal de pensadores como William Godwin ou por
meio do individualismo de Max Stirner, a argumentação
do autor mostra que o Estado, independente de sua
forma ou organização, é um instrumento de repressão
e de proteção da propriedade, seja este um Estado liberal
ou socialista. “Todo Estado”, afirma Max Stirner, “é
despotismo, seja o déspota um ou muitos”.
Em uma época em que as discussões preponderantes
realizam-se em torno da reforma do Estado, Harrison é
preciso em demonstrar que este tem sido reformado
incessantemente, e desde sua origem tem permanecido
o mesmo. Para que o Estado sobreviva e possa se
conservar, são necessárias reformas que tragam a idéia
de um constante aprimoramento. Esta idéia também
não é recente. Maquiavel já dizia que um bom príncipe
é aquele capaz de introduzir aquilo que já existe como

265
1
2002

se fosse a novidade, e assim conservar o Estado e o poder


do soberano.
A análise apresentada sobre o Estado e sua relação
com o indivíduo não perderá sua atualidade enquanto a
sociedade estruturar-se sobre valores de autoridade e
hierarquia. Harrison pretende, em seu livro, des-
construir a concepção socialista de revolução e liber-
dade, demonstrando que a dominação não é determinada
pelas condições daquele que está no controle do Estado,
mas pela sua própria existência. A liberdade no
anarquismo não se alcança pela conscientização das
massas ou pela tomada do Estado, pela substituição da
propriedade privada pela propriedade estatal ou pela
mobilização e participação de todos. A liberdade realiza-
se na sua prática, por meio de associações livres e,
principalmente, por uma experiência libertária de vida.

luce em travessias, memórias


e percursos anarquistas edson lopes *

Margareth Rago. Entre a liberdade e a história: Luce Fabbri e o


anarquismo contemporâneo. São Paulo, UNESP, 2001, 368 pp.

Não se trata de uma biografia, mas de um diálogo


entre a vida da libertária Luce Fabbri e sua produção
intelectual, com a constituição do movimento
anarquista na Itália e América Latina. Margareth Rago
não se aparta das conversas miúdas, inventando o
passado, desvelando ínfimas, expressivas e
incomensuráveis personalidades anarquistas e
conquistas do movimento, em diferentes momentos

*Pesquisador do Nu-Sol.

266
verve

históricos. A presença dos fragmentos da memória de


Luce Fabbri, não está para a construção fixa, linear e
pronta de seu passado. Respeita-se aí a possibilidade
caótica da rememorização, com sua temporalidade
própria, imbricada em sentimentos e silêncios e suas
emergências desconhecidas ou ao menos provocadas:
“não se trata apenas de contar a história de uma
anarquista, mas de contá-la libertariamente” (p. 26).
Entre os capítulos do livro, os aspectos mais
marcantes da vida de Luce, sua relação com o pai, o
anarquista Luigi Fabbri, a ascensão do fascismo na
Itália, perseguições, exílio, a luta no espaço político, a
poesia, o casamento, a experiência espanhola — enfim,
a Luce anarquista —; não numa dispersão que os isolam,
mas interligados aos acontecimentos históricos do
período entre guerras do século XX, ditaduras latinas e
tantos anarquistas em trânsito nômade, entre lugares
e costumes.
Para Margareth, boa parte da história da tradição
libertária encontra-se velada, interrompida pelo
silêncio; desconhece-se muito da produção intelectual
de alguns anarquistas e as editoras insistem em não
os publicar. A narrativa da própria Luce, faz resgatar
alguns anarquistas já de vozes caladas pelo tempo,
apresentando tanto à pesquisadora como ao leitor a
surpresa de ter de encontrá-los e às suas vidas intensas,
inquietas e arriscadas. Entre eles, o próprio Luigi Fabbri,
que trabalhou insistentemente em diversas imprensas
anarquistas, na Europa e América Latina; ou
Concepción Fernandes, que Luce chegou a conhecer,
manter em memória, mas que sem nenhum livro
escrito, é citada apenas em notas da revista Argentina
“Todo es História” em que é apresentada como “oradora,
poeta excepcional e dirigente política de grande
coerência”.
À intensidade do fluxo de imigrantes à América
Latina, que possibilitou a existência do anarquismo em
países como Uruguai, Argentina, Brasil, México, Chile

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1
2002

e Peru, correspondia o fluxo de idéias. A “imigração


francesa, italiana, portuguesa e espanhola, reunindo
muitos ativistas internacionalistas, anarquistas e
socialistas fugitivos de seus países, provoca, sem dúvida,
uma intensa movimentação social entre 1870 e 1930”
(p. 118). Esses anarquistas se aglutinaram em
sindicatos, centros de cultura social, grupos de estudo,
bibliotecas livres, teatro, imprensa, etc. Por todos os
lados, o fascismo, as ditaduras e as perseguições
policiais. Este é o percurso de Luce, que foge do fascismo
de Bolonha, na Itália, exila-se com a família no Uruguai,
onde encontra um povo de tradição libertária que remete
à década de 1870, quando imigrantes franceses
provenientes da Comuna de Paris, já haviam criado a
Seção Uruguaia da Associação Internacional dos Traba-
lhadores (AIT), além de periódicos como El Internacional,
La Revolución Social, La Lucha Operaria e La Federación
de los Trabajadores, que já apresentavam os ideários
anarquistas aos trabalhadores uruguaios; a fuga de
Malatesta para Argentina e sua errância pela América
já havia intensificado também a propaganda libertária.
Luce esteve altamente engajada na luta contra
os totalitarismos, fossem eles os de Mussolini, Franco,
Gabriel, Terra, ou as ditaduras militares das décadas
de 1970 e 1980, atuando com amigos e colaboradores
como Max Netlau, Abad de Santillán, Hugo Treni, Maria
Lacerda de Moura, Louise Michel, Nelly Ferreira, Ana
Maria Gómez, Ermácora, e outras, em revistas, jornais,
fundos de apoio e inventando sociabilidades libertárias
opostas ao autoritarismo, em momentos nos quais os
anarquistas eram progressivamente derrotados tanto
pela repressão do Estado burguês como pelo comunismo.
Nesta constelação de preocupações e radicalidades
resistentes, confunde-se a história do anarquismo e a
história pessoal de Luce Fabbri, como se formassem
uma malha.
O anarquismo para Luce constitui-se como
experiência intensa, não só como resposta ao poder

268
verve

centralizado, mas como uma prática libertária que


impregna a vida, como constituição ética sofisticada.
Luce esforçou-se em dizer que o anarquismo não
comporta catecismo. Implica pequenas construções
coletivas e individuais que ampliem a liberdade; e se
em algum momento arriscou definições é porque
entende o anarquismo como um saber histórico que
necessita atualizar-se sem apagar suas marcas. Sua
concepção dispensa uma certeza metafísica de um final
perfeito, absoluto: interessam-lhe os meios, o presente
cheio de invenções para construção de uma vida baseada
na liberdade, solidariedade e justiça social, temas que
lhe são caros.
Luce e Margareth Rago se encontraram pela
primeira vez por ocasião do Congresso “Outros 500.
Pensamento Libertário Internacional”, realizado em
1992 na PUC/SP. Margareth procurava figuras
marcantes do anarquismo, quando estudava as
“mulheres anarquistas”. Tornaram-se amigas. No livro
encontramos algumas anarquistas marcantes,
delicadas inquietas com a coragem de afirmar
anarquismos.

ousar ser uns thiago rodrigues

Doris Accioly e Silva & Sonia Alem Marrach (orgs.). Maurício


Tragtenberg, uma vida para as Ciências Humanas. São Paulo, Editora
da Unesp/Fapesp, 2001, 328 pp.

Maurício, um homem de palavra. Da gramática


acadêmica antropofágica, do verbo combativo popular,
das idéias flamejantes em duelos viscerais, do
compromisso consigo. Em sala de aula, nas páginas de
jornal, na porta de fábricas, em teses, em livros, em

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casa: coerência heterodoxa. Este Maurício salta, plural


em si, desta coletânea de textos nascida de uma jornada
de palestras, homônima ao livro, e realizada na Faculdade
de Filosofia e Ciências da UNESP de Marília, em 1999.
Falecido, então, há pouco, Maurício emerge das falas, forte,
íntegro, vivo. Os textos trafegam entre depoimentos
pessoais, muitas vezes emocionados e quase herméticos
àquele que não partilhou das experiências relatadas, e
reflexões sobre a produção acadêmica de Tragtenberg, sua
trajetória intelectual, sua influência na academia e sua
postura nos embates políticos. Das três partes em que se
estrutura o livro, respectivamente, Memórias de um
convívio, Contribuição às ciências humanas e Coerência entre
teoria e prática, o mosaico de contribuições dos autores
compõe um Maurício Tragtenberg firme e combativo,
corajoso não por ambicionar o status de mártir, mas por
deliberada escolha existencial.
Somos apresentados ao autodidata, ausente da escola
desde muito jovem e sem afinidade alguma pela prática
comercial tão valorizada em sua família. Longe da escola,
mas imerso numa sede insaciável de saber, Maurício
não se forma, ao contrário, se constrói aproximando-se,
com ouvidos interessadíssimos, de pessoas
interessantes. Em “Maurício Tragtenberg e a família
Abramo: algumas lembranças” e “Maurício Tragtenberg
na mocidade” temos acesso, pelos relatos de Lélia Abramo
e Antônio Cândido, a fragmentos desse Maurício jovem
e sedento, devorador de livros na Mário de Andrade,
participante ativo de discussões políticas. Discussões que
vibravam no campo da crítica social, da militância
socialista, do aprendizado dos clássicos. Nutrindo-se do
convívio com o velho socialista Hermínio Sacchetta,
Maurício leu, discutiu e filtrou o saber produzido por
‘marxistas malditos’ como Rosa Luxemburg em tempos
de stalinismo. Conheceu, também, os pensadores
libertários: Proudhon, Bakunin, Kropotkin. Incômodo em
ambientes sectários e exclusivistas, Tragtenberg era
avesso a verdades, ao incontestável.

270
verve

A aversão ao esquerdismo autoritário, conduziu


Maurício a produzir-se, como afirma Edson Passetti em
seu artigo, um “socialista heterodoxo”. “Intelectual
herético”, ressalta Ricardo Antunes, autêntico e, por essa
razão, insuportável aos muitos sacerdotes das certezas.
Ao conjugar Marx, Bakunin e Weber, Tragtenberg
produziu uma ferina reflexão acerca da burocracia no
capitalismo contemporâneo, sem jamais descuidar da
crítica contumaz à “universidade tecnocrática” formadora
de “assessores de tiranos”, “‘recursos humanos’ para a
burocracia das empresas privadas e do Poder Público”1.
A rigidez no pensar era inconcebível para alguém que
aprendeu em liberdade, investindo em seus talentos para
se tornar, como nos diz Paulo Resende em seu texto, um
“intelectual sem cátedra”.
Intelectual iconoclasta, Maurício foi, também,
militante singular. Sempre desconfiado das convicções
intransigentes, Tragtenberg atrevia-se a não se
identificar com um partido, um sindicato, uma corrente
de pensamento. No livro, relatos de José Carlos Morel e
Antônio Ozaí da Silva, entre outros, nos apresentam um
Maurício Tragtenberg em permanente atividade política
extra-acadêmica. Ainda que presente em momentos
importantes do novo sindicalismo do final da década de
1970, Maurício não exibia suas armas preferencialmente
em palanques. Convicto de que um trabalhador só seria
livre se não delegasse a ninguém a tarefa de lutar por
si, Maurício Tragtenberg investiu com determinação na
defesa da autogestão, da organização sem
representantes, da autonomia na reivindicação por
interesses locais. Socialista libertário, Maurício não
acreditava na elaboração vanguardista dos anseios
proletários. Assim, através da sua coluna “No Batente”,
publicada duas vezes por semana no Notícias Populares
dos anos oitenta, o pensador-militante não se arvorou a
falar pelos trabalhadores, mas noutro sentido, fez daquele
espaço uma via para que assalariados pudessem falar e
se ouvir. Postura anarquista contrária à cessão de voz e

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inimiga das vanguardas clarividentes. A coluna, segundo


Maurício, “dirige-se a quem está ‘no batente’ e não
àqueles que estão afastados da produção querendo falar
em nome dos que trabalham” (apud Silva:123). Em
linguagem direta, um golpe certeiro em intelectuais
oportunistas e sindicalistas pelegos.
Em discussão que nos evoca o diálogo Deleuze-
Foucault acerca do papel do intelectual, Maurício crê
na validade de um ‘saber operário’ completamente apto
a entender e criticar sua realidade, fato que faz do
intelectual instrumento para a luta dos trabalhadores,
não cabendo a interpretação e o refino dos supostos
murmúrios pueris emitidos pelas massas. A visão
libertária acerca do indissociável duplo teoria/prática
se fez impressa em reflexões como A delinqüência
acadêmica e Saber e poder (ambos de 1979) e na sua
atividade militante-jornalística. Maurício via a
pequenez das disputas por prebendas e títulos, postos e
honrarias porque dispunha de olhos que aprenderam a
enxergar ‘de fora’ e ‘para fora’ da academia, mesmo
fazendo parte dela. Ou melhor, mesmo estando nela.
Podemos, certamente, desconfiar de um livro que
homenageia quem não dispunha o peito a comendas.
Contudo, os textos se mostram, em sua grande maioria,
como relatos sobre uma grande vida. Vida que, sem
dúvida, seduz e instiga o leitor que pouco conhece a
obra de Maurício Tragtenberg. De fato, as poucas páginas
reproduzidas de seu livro Memórias de um autodidata no
Brasil, deixam vontade por mais. Maurício, o que não
falava pelos outros, ainda é mais saboroso quando fala,
ele mesmo, de si. A coletânea de artigos, no entanto,
não pode ser considerada laudatória: é homenagem, sim,
mas sem devoção. Os textos apresentam portas para
que outros sedentos adentrem o mundo deste interessa-
díssimo interessado que foi Maurício Tragtenberg.

Nota
1
Tragtenberg em Burocracia e Ideologia, apud Gandini: 170, 172.

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estrela de vestido azul e óculos escuros


salete oliveira

Stela do Patrocínio. Reino dos bichos e dos animais é o meu


nome. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2001, 157 pp.

Stela rocha em menir. Stela estrela. Não uma estrela


aleatória. Estrela do mar, assim ela designa seu nome.
Estrela salgada de mergulhos rasos e profundos. Estrela
na superfície da explosão de gases que lhe imprimem
cor.
Stela-livro. A publicação de Reino dos bichos e dos
animais é o meu nome é resultado do esforço de inúmeras
pessoas que esbarraram em Stela em meio a sua
existência livre, apesar de seu confinamento
manicomial durante trinta anos. O livro foi organizado,
cuidadosamente, por Viviane Mosé, em nove partes
intituladas por versos extraídos dos poemas falados de
Stela, pois ela fazia poesia falando: “Um homem
chamado cavalo é o meu nome”; “Eu sou Stela do
Patrocínio, bem patrocinada”; “Nos gases eu me formei,
eu tomei cor”; “Eu enxergo o mundo”; “A parede ainda
não era pintada de azul”; “Reino dos bichos e dos animais
é o meu nome”; “Botando o mundo inteiro pra gozar e
sem gozo nenhum”; “Procurando falatório” e “Stela por
Stela”. A Azougue-Editorial no gesto certeiro de argento-
vivo presenteia a poesia com a presença da arte de
Stela. A sensibilidade do editor e poeta Sérgio Cohn foi
tomada pela palavra-invenção da estrela-salso-argento.
Stela-Baía da Guanabara. O leitor é arremessado para
dentro da boca banguela da artista repleta de seu
“falatório”, como ela prefere dizer. A boca insubmissa
que cospe psicotrópicos e ignorâncias. Ela sabe muito
bem o que quer degustar. Gosta de cigarros, fósforos,
bolachas de chocolate, coca-cola e óculos de sol. Não
nasceu para pastar. Negra alta de porte altivo,
caminhando elegantemente sobre o ossário do cárcere

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manicomial, enfeitada de panos deixando antever seus


braços pintados de branco. Espargindo em seu redor o
desconcerto do ar no espaço vazio.
Stela foi apanhada na juventude, arrancada de seu
vestido azul quando debruçava no chão da Rua
Voluntários da Pátria, em Botafogo, na busca de seus
óculos escuros. Stela foi apanhada aos 21 anos pelos
voluntários da pátria e da normalidade da razão. Deram
seu diagnóstico. Construíram Stela como doente mental:
“personalidade psicopática mais esquizofrenia
hebefrênica, evoluindo sob reações psicóticas”.
Internaram-na em 15 de agosto de 1962 no Centro
Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro. Mas ela
no seu vestido azul só queria achar seus óculos escuros
para ir até a Central do Brasil e depois a Copacabana.
Seus óculos escuros quebraram. Em 1966 foi transferida
para a Colônia Juliano Moreira, onde permanece até
sua morte, em 1992. Acometida de uma hiperglicemia
grave amputam-lhe uma perna. Stela, a partir de então,
se nega a comer e a falar. Seu corpo é tomado por uma
infecção. Arrancaram seus dentes, sua perna, seu
vestido azul e seus óculos escuros.
Stela falatório-artista. Stela se negou a morrer todas
as vezes que a mataram. Sua poesia é uma evidência
disto. Evidência no sentido atribuído por Artaud ao
afirmar que só acreditava nas evidências capazes de
agitar sua medula e suas vísceras. A arte de Stela
convulsiona os sentidos e subverte a linguagem.
Contradiz a convenção formal que provoca a cisão entre
a língua que fala e aquela que escreve. O dito do espaço
grafado do papel jorra de sua boca no exercício de uma
fala que não cessa de dizer. Escrita-gesto de saltos dos
mil ritmos impressos por seu diafragma. Linguagem
livre. Abolição da sintaxe. Língua e estômago exigentes.
Estes eram seus instrumentos, aliados de sua paixão
pela vida.
Stela-inventa-corpo. De gestos precisos faz nascer
língua, pernas, cabeça, pés, estômago. Milbichos

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reinventados. Distante e próxima do grito selvagem no


silêncio do nada. Repleta no vazio transbordante da
guerra incessante contra paredes brancas, paredes
pintadas de azul. Guerra declarada contra o
confinamento, em favor da vida. Stela não se engana,
na batalha entre razões soberanas em nome da verdade
centralizada, ela afirma: “só o cientista vence outro
cientista”. Stela intensifica suas cores na tessitura
escatológica de quem se sabe viva. Seu gesto-força
sofistica a crueldade. Coragem audaz na ultrapassagem
do gozo. Instante átimo no vácuo de sua boca
antropofágica. Engolir Stela é um convite e um risco,
para quem, como ela, ainda se sabe vivo.

275
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NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa
de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

hypomnemata

Publicação eletrônica mensal. 1999-2002.

vídeos

Libertárias, 1999
Foucault-Ficô, 2000

Coleção
v Escritos Anarquistas

1. a anarquia Errico Malatesta


2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice
Cranston

3. a guerra civil espanhola nos documentos


anarquistas C.N.T.
4. municipalismo libertário Murray Bookchin

5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux


6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky
7. a bibliografia libertária - um século de anarquismo

em língua portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva


8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin

276
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9. deus e o estado Mikhail Bakunin


10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin
11. escritos revolucionários Errico Malatesta

12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares


13. do anarquismo Nicolas Walter
14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin,

Malatesta, Mirbeau, Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue &


Cubero
15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret,

Doumayrou, Breton, Schuster, Kyrou & Legrand


16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia
Nestor Makhno, Alexandre Skirda e Alexandre Berkman

17. arte e anarquismo Pietro Ferrua, Michel Ragon,


Gaetano Manfredonia, Dominique Berthet e Cristina Valenti
18. análise do estado - o estado como paradigma do
poder Eduardo Colombo

19. o essencial proudhon Francisco Trindade

20. escritos contra marx Mikhail Bakunin

Livro

Pierre Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo,


Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.

277
1
2002

Achiamé — estante libertária

Anarquismo no Banco dos Réus (O) (1969-1972) – Edgar


Rodrigues – 206 P. Ilust.
Anarquismo e Feminismo – Margareth Rago – 32 P.
Anarquismo ou Marxismo: uma opção política – Gilberto
Green – 200 P.
Anarquismo – uma Introdução Filosófica e Política –
Sílvio Gallo – 100 P.
Anarquismo à Moda Antiga – Edgar Rodrigues – 48 P.
Anarquismo Hoje (O) – Jorge E. Silva – 80 P.
Atuação Libertária no Brasil – Oscar Farinha Neto – 104 P.
Anarquismo na Escola, no Teatro, na Poesia (O) – Edgar
Rodrigues – 340 P. Ilust.
Bartolomeu & Nicolau – Olavo Cabral Ramos Filho – 24 P.
Banqueiro Anarquista (O) – Fernando Pessoa – 56 P.
Colônia Cecília – (Um Pouco de Ideal e de Polenta) –
(Teatro) - Renata Pallottini – 72 P.
Companheiros (Os) – Edgar Rodrigues – Vol. 1, 2, 3, 4, 5.
Construção da Anarquia – Gilbert R. Ledon – 56 P.
Despindo a Política: Notas Para Uma Crítica das Visões
Políticas do Mundo – Jean-Michel Michelena – 56 P.
Dois Textos da Maturidade – Errico Malatesta – 16 P.
Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos (A) – José Oiticica
– 152 P.
Educação Libertária: textos de um Seminário – Maria Oly
Pey (Org.) e Outros – 208 P.
Democracia no Trabalho – Harold B. Wilson – 176 P.
Entre Ditaduras (1948 - 1962) – Edgar Rodrigues – 304 P.
Ilust.
Esboço para uma História da Escola no Brasil – Algumas
Reflexões Libertárias – Diversos Autores – 128 P.

278
verve

Foucault e o Anarquismo – Salvo Vaccaro – 40 P.


Florentino de Carvalho – pensamento social de um
anarquista – Rogério N. Z. Nascimento – 208 P.
Guia dos Cornudos – Charles Fourier – 24 P.
Homem em Busca da Terra Livre (O) – Edgar Rodrigues -
272 P.
Imprensa Libertária do Ceará (1908 - 1922) (A) –
Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva – 316 P.
Indivíduo na Sociedade (O) – Emma Goldman – 40 P.
Libertários (Os) (José Oiticica, Maria Lacerda de Moura,
Neno Vasco, Fábio Luz) – Edgar Rodrigues – 218 P. Ilust.
Moral Pública & Martírio Privado – A Colônia Penal da
Clevelândia do Norte – Alexandre Samis – 88 P.
Nova Aurora Libertária (A) (1945-1948) – Edgar Rodrigues
– 232 P. Ilust.
12 Provas da Inexistência de Deus – Sébastien Faure – 80 P.
Pedagogia Libertária na História da Educação Brasileira
(A) – Neiva B. Kassick E Clóvis N. Kassick – 36 P.
Poder e Domínio: uma visão anarquista – Fábio López
López – 200 P.
Política da Libertação Urbana – Stephen Shecter – 200 P.
Porque não Eleger Governantes – Marcos Cesar (Grito) –
72 P.
Pós-Estruturalismo e Anarquismo – Todd May – 40 P.
Letralivre (Revistas) – No 29, 30, 31 E 32

Letralivre:

Caixa Postal 50083


20062-970 - Rio de janeiro - RJ
letralivre@gbl.com.br
Tel./Fax. (21) 2544-5552

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1
2002

deste modo, amigos meus, poder-nos-


emos defender, pelo menos por algum
tempo das duas terríveis pestes que nos
ameaçam: o tédio profundo do
homem e a profunda compaixão pelo
homem

Nietzsche

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verve

281
1
2002

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