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Educação & Sociedade

ISSN: 0101-7330
revista@cedes.unicamp.br
Centro de Estudos Educação e
Sociedade
Brasil

de Freitas, Luiz Carlos


OS REFORMADORES EMPRESARIAIS DA EDUCAÇÃO E A DISPUTA PELO
CONTROLE DO PROCESSO PEDAGÓGICO NA ESCOLA
Educação & Sociedade, vol. 35, núm. 129, octubre-diciembre, 2014, pp. 1085-1114
Centro de Estudos Educação e Sociedade
Campinas, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=87335770006

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CARTOGRAFIA DAS INFÂNCIAS EM REGIÃO DE
FRONTEIRA EM BELO HORIZONTE

Samy Lansky*
Maria Cristina Soares de Gouvêa**
Ana Maria Rabelo Gomes**

RESUMO: As crianças, como sujeitos sociais, lidam com o espaço conferindo-lhe


significados próprios, a partir de diferentes dimensões de sua identidade, entre
elas a geracional. Se os espaços urbanos são via de regra construídos pelos adultos,
nos processos de circulação são produzidas formas singulares de relacionar-se com
a cidade pelos sujeitos infantis. Neste sentido, busca-se investigar como crianças
vizinhas em uma mesma região urbana utilizam os espaços localizados na fronteira
entre bairros de classe média e uma favela. Foi desenvolvida uma proposta de
cartografia etnográfica dos “espaços com crianças”, buscando apreender os usos
(im)previstos e as brechas que encontram para se apropriar da cidade, apesar das
demarcações impostas pelo mundo adulto.
Palavras-chave: Criança. Infância. Cidade. Espaço público. Cartografia.

Childhood cartography of an urban border in


Belo Horizonte city

ABSTRACT: Children, as social subjects, deal with space by assigning specific


meanings to it, according to the different dimensions of their identity, one
of them being age/generation. Urban spaces are usually built by adults, but,
through an appropriation process, children as subjects produce unique ways
of relating with the city. In this direction, this article presents data from an
investigation carried out with neighbouring children of an urban region that
explores how they appropriate the spaces located on an urban border between
middle class neighbourhoods and a slum in Belo Horizonte. A proposal of an
ethnographic cartography of the “space with children” was developed, in order
to grasp the (un)predictable uses and the gaps that they could find in order to
appropriate the city, despite the demarcations imposed by the adult world.
Keywords: Children. Childhood. City. Public Space. Cartography.

*  Universidade Fumec e Centre Universitário Una, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail de
contato: samy@lanskyarquitetura.com.br
**  Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, Belo Horizonte, Minas Gerais,
Brasil.

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Cartografia das infâncias em região de fronteira em Belo Horizonte

Cartographie des enfances dans une zone frontalière à


Belo Horizonte

RÉSUMÉ: Les enfants, en tant que sujets sociaux, interagissent avec l’espace
en lui donnant des significations propres à partir de différentes dimensions
de leur identité y compris la générationnelle. Si les espaces urbains sont
normalement construits par les adultes, dans les processus d’appropriation, les
sujets infantiles produisent des formes singulières par rapport à la ville. Dans
ce sens, nous cherchons à analyser comment des enfants voisins, dans une
même zone urbaine, s’en servent des espaces situés sur la frontière entre des
quartiers de classe moyenne et une favela de Belo Horizonte. Une proposition
de cartographie ethnographique «des espaces avec des enfants» a été développée,
en cherchant à saisir les usages (im)prévus et les lacunes qu’ils trouvent pour
s’approprier de la ville, malgré les démarcations imposées par le monde adulte.
Mots-clés: Enfant. Enfance. Ville. Espace public. Cartographie.

Mapeando infâncias urbanas

O
presente artigo apresenta uma cartografia de infâncias urbanas, bus-
cando-se conferir visibilidade aos processos de circulação e trânsito de
crianças em espaços urbanos contemporâneos. Para tal, foi realizado
o estudo dos usos dos espaços públicos urbanos de uma região da cidade de Belo
Horizonte por crianças moradoras dos bairros de classe média alta ou da favela que
lhe fazia fronteira. Embora dividissem o mesmo território geográfico, tais crianças
revelavam relações distintas com o espaço público, definidas por seu pertencimen-
to social, de gênero e idade.
Tal estudo, ao buscar dar visibilidade às distinções sociais no uso do
espaço urbano pelas crianças, envolveu a construção de estratégias metodológicas
de investigação que permitissem observar, mapear e, principalmente, construir um
registro cartográfico da relação que estes sujeitos tinham com tal espaço, resgatan-
do sua perspectiva, o que denominamos etno-grafia espacializada.
Trata-se de uma investigação transdisciplinar, a partir do diálogo entre
os estudos da sociologia e antropologia da infância  1, antropologia, cartografia
e planejamento urbano. Neste texto, iremos concentrar a análise na construção
de estratégias metodológicas, bem como na descrição dos resultados sobre as
diferenciações no uso do espaço pelas crianças. Para tal, inicialmente será descrito
o universo da pesquisa, caracterizando o espaço investigado e os sujeitos nele
presentes. Posteriormente, serão apresentados os instrumentos metodológicos de
desenvolvimento da investigação, no diálogo entre a antropologia e a cartografia.
Por fim, serão analisadas as distinções nas formas de circulação e uso do espa-

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ço, apreensíveis pelos mapas, tendo como referência as diferenciações sociais de


classe, gênero e idade das crianças investigadas, e categorias trabalhadas no seu
entrecruzamento. A investigação propõe-se a contribuir para um diálogo entre os
estudos da infância e os estudos sobre a vida urbana, buscando apreender como
a criança explora e circula pela cidade e neste processo constrói formas singulares
de apropriação do espaço urbano definidas por sua identidade geracional. Mais
exatamente, o foco foram os locais de proximidade da moradia, em uma região de
fronteira entre diferentes classes sociais.
Embora essa circulação envolvesse em grande medida o percurso neces-
sário para se deslocar até à escola, o foco da pesquisa era o trânsito e circulação
pelos espaços públicos urbanos não-escolares, destacadamente as vias e o parque
público da região.
A presença das crianças nas vias e no parque é marcante nessa região
da cidade. Embora o espaço-tempo da escola fosse constitutivo da vida cotidiana
dessas crianças, pois todas frequentavam a instituição, a pesquisa voltou-se para o
tempo-espaço não-escolar, onde a cidade se oferece como lugar de experiência e
exploração de diferentes aspectos da vida urbana. Tal perspectiva não desconsidera
que a escola constitui também locus de formação e elaboração de experiências da
vida urbana, mas tem em vista contemplar a singularidade das formas de partici-
pação na vida social características destes outros espaços.
Ao tratar da temática da criança no espaço urbano, cabe reiterar que o
contraponto moderno-industrial entre vida pública (relacionada ao homem adul-
to) e vida privada (relacionada à mulher e à criança) deu origem à separação entre
o universo adulto e o infantil (SENNET, 1988 [1974]) e significou o surgimento
de uma série de espaços e objetos produzidos especificamente para as crianças, tais
como as escolas, creches, parques, museus, dentre outros. Importante assinalar
que tal contraponto não é universal, e não é encontrado em outros meios, como
apontam diversos estudos sobre os povos indígenas brasileiros. (COHN, 2005;
SILVA, 2011)
A criança urbana progressivamente tornou-se uma das principais víti-
mas da segregação socioespacial nas metrópoles modernas, resultando em casos de
confinamento e/ou controle excessivo para alguns grupos e marginalização para
outros. As condições de acesso e uso dos espaços públicos (no caso de sociabilidade
e lazer) são definidas tanto a partir das políticas estatais, quanto pelas diferenças
socioeconômicas e culturais no desenvolvimento de uma sociabilidade urbana.
Neste sentido, estudos de urbanistas chamam atenção para a priva-
tização dos locais de sociabilidade nas cidades brasileiras, em que as formas
segregacionistas de lazer restringem as classes médias a espaços como shoppings,
clubes e condomínios, “vedados” às camadas populares, estas circunscritas a
espaços públicos precários e mal cuidados, demonizados como locais de perigo.

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Cartografia das infâncias em região de fronteira em Belo Horizonte

(CALDEIRA, 2000; SOJA, 2000) As crianças experimentam, neste contexto,


uma dupla segregação, quer pela visão do espaço público como inapropriado à
circulação infantil, quer pela representação de sua periculosidade nas metrópoles
brasileiras contemporâneas.
No entanto, a criança constitui sujeito que faz uso dos espaços públicos
e constrói formas próprias de participação na vida urbana. Tais formas tomam
expressões distintas, em contextos socioculturais diferenciados. Assim é que Parga
(2004) ressalta como as crianças dos países latino-americanos mostram-se mais
presentes na cena urbana que crianças dos países europeus.
No caso brasileiro, o estudo da presença, circulação e usos dos espaços
urbanos pelas crianças vem sendo contemplado nas investigações da sociologia e
antropologia da infância. O clássico estudo de Florestam Fernandes, As trocinhas
do Bom Retiro (1944/2004), em que o autor buscou dar visibilidade às formas de
uso dos espaços públicos pelas crianças paulistanas na década de 40, destacando as
brincadeiras infantis, indicou um fértil campo de investigação. Este vem sendo de-
senvolvido de forma mais sistemática em produções mais recentes em que, a partir
de estudos etnográficos, busca-se registrar e problematizar as distintas formas de
participação na vida urbana de crianças de diferentes grupos sociais. 2
O estudo que desenvolvemos insere-se nesta tradição, buscando conferir
visibilidade a como no uso dos espaços pelas crianças estão presentes as tensões
urbanas características das metrópoles brasileiras contemporâneas.

A Barragem como espaço de fronteira

Ao considerar que a desigualdade social brasileira imprime na cena


urbana fronteiras na ocupação do espaço, buscamos dar visibilidade às zonas de
fronteiras, quais sejam, locais de encontro e desencontro entre grupos sociais
distintos. Para tal, estabelecemos como recorte espaciotemporal os arredores do
Parque da Barragem Santa Lúcia em Belo Horizonte, localizado entre uma favela
e um bairro de classe média alta – uma fronteira urbana (Figura 1).
Atualmente, Belo Horizonte é dividida em nove regionais administrati-
vas, sendo que a Centro-Sul engloba toda a área do Plano Original elaborado por
Aarão Reis no final do século XIX, alguns bairros “valorizados”, a maior favela do
município – o Aglomerado da Serra – e outras duas favelas, o Conjunto Santa
Maria e o Aglomerado Santa Lúcia ou Morro do Papagaio (assim denominado
pela população local). É, portanto, uma das regionais mais desiguais do município
de Belo Horizonte, o que contextualiza a escolha de um espaço público nessa
região para a pesquisa: região de uma metrópole onde a diversidade e a desigualda-
de sociocultural e econômica são marcantes. Num espaço de fronteira, um parque

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foi implantado próximo a um batalhão de polícia, uma escola pública, dentre


outros equipamentos públicos e privados: o Parque Jornalista Eduardo Couri, ou
simplesmente Barragem Santa Lúcia, como referido pelos moradores da região.

Figura 1
Regional Centro-Sul de Belo Horizonte

Fonte: Elaboração própria, com base nos dados do Censo Demográfico de 2000.

Nos arredores deste Parque, o contraste social é facilmente perceptível,


característica própria dos locais onde favelas fazem fronteira com bairros de classe

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Cartografia das infâncias em região de fronteira em Belo Horizonte

média nas metrópoles brasileiras. A fronteira neste estudo é, portanto caracteri-


zada pela linha da desigualdade socioeconômica perceptível pela observação das
diferentes formas de morar, usar os espaços públicos, consumir e circular dos
moradores. Apesar de visível, a fronteira apresentava-se muito porosa, onde os
usos dos espaços pelos moradores dos bairros e do Morro se cruzavam em ocasiões
que foram exploradas nesta investigação.
A expressão espaços com crianças busca contrapor-se à concepção de
espaços infantis especializados, espaços de ou para crianças. Ou seja, buscou-se
neste estudo apreender a presença das crianças tanto nos espaços produzidos por
adultos para o uso infantil, como o parque em questão, quanto a circulação por
vias públicas no entorno do mesmo. Além disto, tal expressão busca destacar a
participação ativa das crianças na coleta de dados. Para Gulløv e Olwig (2003)
a criança usa tais locais adultos como espaços de resistência. Para os adultos, tais
espaços são inadequados para circulação das crianças sem sua presença ou mesmo
potencialmente disruptivos, restringindo sua circulação. Porém, (e também por
isto mesmo) exercem atração entre os grupos infantis, que os utilizam a partir de
uma lógica própria.
Para buscar apreender e fazer o registro da circulação e trânsito das crian-
ças neste espaço, adotou-se como procedimento metodológico o movimento a pé
pelas ruas da vizinhança do parque, a circulação pelos lugares, num experimento
de mudança de perspectiva e de confronto entre a posição social do pesquisador
– adulto e arquiteto – e a dos sujeitos – pobres e ricos, adultos, idosos, jovens,
meninos e meninas, todos usuários dos arredores do Parque. A pesquisa sobre
co-presença, sociabilidade e o encontro desses sujeitos num espaço público urbano
contemporâneo efetivou-se através do movimento de circulação entre um mundo
e outro, em suas fronteiras, que descreveremos a seguir.

A construção de uma etno-grafia espacializada

Como procedimento metodológico da observação participante, foi


adotada a interação direta do pesquisador sem a mediação de qualquer instituição
ou de pessoa previamente conhecida por este. Em ambiente tido como hostil,
representação característica de espaços públicos urbanos, buscou-se experimentar
as possibilidades de interação, suas expressões e demarcação espacial, as zonas de
fronteira, bem como as interdições, barreiras e conflitos, construindo uma brecha
ou espaço de interstício.
Nesse sentido, o pesquisador se expõe como transeunte, tentando cal-
cular e correndo os riscos próprios da atitude de estar em público num espaço de
fronteira. Ao se deslocar a pé pelo campo e se posicionando distintamente, aos

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poucos foram encontradas formas de conhecê-lo, mediante a interação com os


sujeitos da pesquisa. Inspirado em De Certeau (1994 [1990]), para quem o ato
simples de andar pela cidade pode revelar sentidos e apropriações atribuídos ao
espaço para além da ordem dominante, Lopes (2005, p. 72, grifos do autor) evoca
a metodologia andante:

Importa reiterar o quanto andar desafia o medo da cidade e as


gestões políticas desse medo, impondo, passo a passo, o direito
de transgredir fronteiras sociais e simbólicas, acabando com as
cidades interditas, os bairros do estigma, as separações ‘naturais’,
‘puras’ e ‘fixas’, as abstracções do outro como excluído e mar-
ginal, a descoincidência, tantas vezes demonstrada, entre a (in)
segurança subjectiva e a (in)segurança objectivamente medida.
Aliás, é pela transgressão de fronteiras e pelo mover-se na frontei-
ra que as legitimidades dominantes vão sendo, a diversos níveis,
questionadas. (LOPES, 2008, p. 78, grifos do autor)

Ingold (2000) considera que o conhecimento sobre o ambiente sofre


formação contínua durante o movimento das pessoas pelo mesmo. Conhece-se
enquanto caminha-se: “Unidos pelos itinerários de seus habitantes, os lugares exis-
tem não no espaço, mas, como nós, em uma matriz de movimento”. (INGOLD,
2000, p. 219) Segundo o autor,

[...] enquanto seria errado, ou pelo menos enganoso, comparar o


conhecimento do nativo a um mapa, há certo paralelo que pode
ser traçado entre os processos de conhecer e de mapear. Ambos
são atividades situadas no ambiente, ambos são realizados ao
longo de trilhas de circulação, e ambos se desenvolvem ao longo
do tempo. (INGOLD, 2000, p. 220)

O recurso ao trânsito como procedimento metodológico de investigação


não significa considerar tal movimento como igual ao do sujeito que caminha e
conhece o espaço através deste transitar. Tal analogia não constitui uma identidade,
mas reveste-se da mesma intensidade que caracteriza a imersão etnográfica em que
o próprio pesquisador, na interação com as pessoas e com o ambiente, produz em
primeira mão os dados sobre os quais deve depois se debruçar. (GEERTZ, 1976,
1997) O trânsito realizado pelo pesquisador permitiu repercorrer, junto com as
crianças, o percurso realizado por elas mesmas; além de registrar as informações
que os próprios sujeitos da investigação traziam enquanto circulavam naquela
região da cidade.
O registro cartográfico teve em vista, o que Ingold considera “[...] um
paradoxo no coração da cartografia moderna. Quanto mais ela procura prover
uma representação exata e abrangente da realidade, menos verdadeira esta re-

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Cartografia das infâncias em região de fronteira em Belo Horizonte

presentação parece”. (INGOLD, 2000, p. 242) Nessa perspectiva, os mapas


moderno-científicos apresentam uma lacuna na representação gráfica do espaço,
ao desconsiderar a jornada realizada pelos cartógrafos. Eliminam-se dos mapas as
rasuras e práticas de sua produção, como se estes não dependessem de nenhum
ponto de vista. (TURNBULL 1996 apud INGOLD, 2000, p. 229)
Em contraponto à cartografia moderna que pretende a produção de
representações exatas e objetivas do mundo, Ingold prefere a ideia de que conhe-
cemos o ambiente enquanto caminhamos; e que o viajante que conhece enquanto
caminha não está elaborando um mapa, nem utilizando um. Assume, assim, a ideia
de “cartografia de processo” de Rundstrom (1993, apud INGOLD 2000, p. 231),
no qual mapear é visto como um movimento “[...] aberto, contínuo, sempre le-
vando ao próximo instante do mapear, ao próximo mapa”, constituindo‑se numa
narração verbal das jornadas efetuadas ao longo do tempo. Segundo Ingold (2000,
p. 231) elaborar mapas não é mapear. Aquele que conhece enquanto caminha
não está elaborando nem utilizando mapas, está “simplesmente mapeando”. Ao
se desconsiderar o movimento dos habitantes no mapa moderno, são deixados de
lado todos seus movimentos e práticas, como se nada acontecesse nesses espaços,
e como se a representação deles antecedesse a presença das pessoas. Trata-se de
espaços tornados conceitualmente vazios.
Neste sentido, os mapas etno-gráficos utilizados como escrita neste artigo
são distintos dos mapas utilizados na cartografia tradicional, por se referirem aos
sujeitos (etno). Eles não podem ser considerados figuras estáticas, acabadas, pois
apresentam o processo em andamento e as ferramentas utilizadas. Provavelmente
os cartógrafos e geógrafos diriam que não são mapas, mas simples figuras, ou
croquis.
A busca por uma espacialização dos dados – uma escrita que lançasse
mão tanto de recursos textuais quanto de imagens referidas ao espaço para re-
construir os conhecimentos e práticas dos sujeitos – foi central neste trabalho.
Propôs-se elaborar um outro tipo de leitura, alterando a perspectiva e os modos
de analisar os espaços públicos de grandes cidades. A exploração de um possível
registro gráfico espacializado permitiu progressivamente a construção de um po-
sicionamento singular, que alternava posições, e exigiu a busca por outras formas
de proceder com as notas de campo. Este conjunto de elementos, de alternância
de posicionamentos, de perspectivas e de registro gráfico foi denominado neste
estudo, etno-grafia espacializada.
Ao circular pelos arredores da Barragem Santa Lúcia, era necessário
encontrar brechas onde a pesquisa fosse possível, uma possibilidade de estar em
campo diante da violência e a prioridade dada ao trânsito de automóveis em de-
trimento da circulação das pessoas; da normatização e privatização dos usos dos
espaços públicos de lazer; a luta pela sobrevivência e as formas de resistência dos

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moradores do aglomerado diante das contínuas agressões a que estão submetidos,


numa sempre tensa relação de disputa por um lugar na cidade, diante da ameaça real
que a violência urbana impõe.
Foi ainda necessário encontrar uma brecha possível para estudar as crian-
ças nos espaços públicos numa interação direta que impunha dificuldades dadas
as diferenças culturais, sociais e etárias entre o pesquisador e os sujeitos infantis.
Além disso, tal presença se distinguia de acordo com a inserção social
dos grupos estudados e refletia nos modos como viam o pesquisador, o recebiam
ou não em campo. Nos extremos, enquanto algumas crianças dos bairros expe-
rimentavam o controle excessivo ou confinamento, ou seja, eram quase ausentes
na cena, algumas moradoras do aglomerado experimentavam a vulnerabilidade e
completa exposição à violência, tendo sido muito presentes no local da pesquisa.
No entanto, apesar das formas de controle e de imposição de modos de vida,
ambos os grupos de crianças encontravam suas brechas e alteravam, de forma
própria, o ambiente e as relações com o mesmo.
Especialmente algumas crianças moradoras do aglomerado criavam suas
formas próprias de estar no local, circulando com muito mais desenvoltura do
que o pesquisador. Não só não tinham medo de serem assaltadas, como extraíam
das oportunidades de interação com o outro, formas próprias de (sobre)viver. Por
meio dessas habilidades adquiridas no cotidiano, elas participavam como atores na
produção de seus lugares. Se, por um lado experimentavam a violência urbana na
carne e de pé no chão, por outro aprendiam a circular pelos espaços, a brincar en-
tre pares, a fazer amigos nos espaços públicos e com jogo de cintura “se viravam”,
encontrando suas brechas.
Inspirados nas suas analogias das interações humanas com a drama-
turgia realizadas por Goffman (1959), fez-se um estudo da cena, tempo-espaço
em que uma atividade ocorre, cujo cenário é o espaço urbano público aberto
e que o pesquisador imprime atenção especial na interação das pessoas. A cena
foi, neste estudo, a unidade de análise utilizada para a organização e o registro
da observação de campo nos arredores da Barragem Santa Lúcia e foi associada
à presença de crianças em um local e um momento específico do dia e ao tipo
de atividade desenvolvida, bem como a presença de brinquedos, equipamentos e
demais elementos do ambiente.
As crianças e seus acompanhantes presentes nas cenas foram classifica-
das por gênero, faixa etária, local de moradia (bairros, favela ou não moradoras
dos arredores), se estavam no espaço entre pares ou se estavam a sós. O foco deu
destaque aos meninos e meninas entre 6 e 12 anos aproximadamente, sem deixar,
no entanto, os outros atores na “sombra”.
Em busca da espacialização da etnografia, o diário de campo foi trans-
crito, as cenas numeradas, categorias e aspectos relevantes destacados e os dados

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foram organizados em planilhas. Essa opção por organização dos dados teve como
objetivo a utilização das informações em programa de geoprocessamento, o Siste-
ma Geográfico de Informações (GIS – Geographic Information System).
Os dados apresentados se referem à primeira entre as duas fases da ob-
servação em que foram realizadas incursões em distintos dias da semana, horários
e espaços, com o objetivo de identificar a presença de crianças, a circulação e os
usos dos espaços por elas. A recorrência de certas presenças e situações acionou
interlocuções aproximadas com algumas crianças, que foram acompanhadas em
suas brincadeiras, conversas, no deslocamento e demais atividades.
Nessa primeira fase de observação, foram 88 dias de campo descritos em
diário. Além da circulação pelos arredores da Barragem Santa Lúcia, adotou-se os
seguintes procedimentos para coleta de dados: visitas ao Morro, circulação pelas
padarias e outros estabelecimentos comerciais, academias de ginástica; conversas
com diversos usuários desses espaços; coleta de informações e folders a respeito do
funcionamento dos prestadores de serviços; observação em torno de algumas das
escolas particulares dos bairros Santa Lúcia e São Bento.
No total, foram registradas 266 cenas, observadas entre maio de 2009
a agosto de 2010, em dias da semana e horários variados, incluindo os finais de
semana e feriados. Nessas cenas foi registrada a presença das crianças nos espaços
públicos, acompanhadas ou não por seus pares e/ou por adultos, assim como fo-
ram registradas as atividades por elas desenvolvidas. Dentro do grupo de crianças
que compunham as cenas, foi destacado um grupo de 11 crianças entre 6 e 11
anos (4 meninas e 7 meninos), todas moradoras do Morro do Papagaio, as que
mais assiduamente frequentavam o parque e que configuravam um grupo de
sociabilidade infantil. Com essas crianças foram realizadas 12 seções de fotos e 2
filmes curtos. Além disso, foram realizadas 16 entrevistas informais.
A partir das cenas registradas, foi montada uma tabela com as seguintes
colunas:

Cena:
•  tempo-espaço em que ocorre a presença de pessoas;
Turno: período do dia em que ocorre a cena;
• 
Local: onde acontece a cena. Esse território é definido pelo(s)
• 
elemento(s) que o caracterizam e que se relacionam com a ocorrência
de certo(s) uso(s), ou seja, uma característica do ambiente, equipa-
mento ou um mobiliário urbano intimamente ligado à ação e ao(s)
uso(s) de tal espaço;
Pessoas: os dados levantados levaram em conta a faixa etária, gênero,
• 
local de moradia;

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Acompanhantes:
•  subcategoria associada às crianças que qualifica a
presença delas no espaço, segundo a presença ou não de outra pessoa
acompanhando-as; a categorização dos acompanhantes leva em
conta a inserção geracional, gênero, moradia e foram abreviados na
planilha da mesma maneira descrita acima; quando eram da mesma
faixa etária e moradia, foram considerados “pares”. Foram observa-
das crianças: sozinhas, entre pares, acompanhadas de jovem(ns), de
adulto(s), de idoso(s) e da família;
Dados complementares receberam colunas específicas na plani-
• 
lha: tipo de atividade; brinquedo ou brincadeira presente na cena;
equipamento, mobiliário ou característica do espaço que interfere
na cena; aspectos relevantes ou destaques; categoria temática relativa
à cena observada; discurso local, ou seja registro da fala dos sujeitos
na cena em curso; e fontes, que indica ou não se foram produzidos
outros tipos de informação, tais como fotos, desenhos ou entrevistas.

Além da busca por categorias locais e aspectos recorrentes, essa opção


por organização dos dados teve como objetivo a utilização das informações em
programa de geoprocessamento.

Distinções sociais no uso do espaço urbano pelas crianças

Os mapas apresentados a seguir resultam da espacialização das 266


cenas com crianças lançadas no programa ArcGis sobre foto de satélite extraída
do Google Earth e se diferem pelos filtros aplicados às planilhas que geraram o
geoprocessamento, que variaram de acordo com o local de moradia, gênero e faixa
etária. Com base no geoprocessamento das cenas foi utilizado o Kernel – comando
do programa ArcGis que analisa os dados e representa, por meio de manchas, as
densidades de determinados fenômenos. Como resultado, observam-se manchas
que variam entre o vermelho e o azul, dependendo da quantidade de cenas obser-
vadas, neste caso, as cenas com crianças. Como exemplo, no mapa de densidade
de cenas com crianças moradoras do Morro (Figura 2), foram representadas 143
cenas.
Entre estas, 31 cenas entre o Coco e a Biquinha, 26 cenas na Quadra/
Parquinho e cinco cenas no Campo, representadas através da gradação de cores no
mapa. Em outras palavras, as manchas nestes mapas representam graficamente os
espaços nos arredores da Barragem Santa Lúcia que as crianças usavam com mais
recorrência.

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Cartografia das infâncias em região de fronteira em Belo Horizonte

Figura 2
Densidade de cenas com crianças moradoras do
Morro do Papagaio

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do autor.

Na primeira análise comparativa do local de moradia (Figuras 2 e 3), foi


possível concluir que a presença das crianças dos bairros nos espaços públicos dos
arredores da Barragem Santa Lúcia era bem distinta da presença das crianças do
aglomerado. Ao considerar que os horários de tempos não escolares desses grupos
pouco diferiam, pois a permanência na instituição, bem como os horários de
entrada e saída eram muito parecidos, verifica-se que os tempos de circulação e as
oportunidades possíveis de usarem os espaços públicos coincidiam. Além de um
primeiro turno em escolas, tanto as crianças moradoras dos bairros quanto as do
aglomerado participavam de atividades complementares no segundo turno, mes-
mo frequentando espaços distintos. Enquanto as crianças do Morro permaneciam
nas escolas em tempo integral ou participavam, no segundo turno, de programas
ofertados por instituições religiosas, não governamentais e de assistência social,
as dos bairros frequentavam escolas privadas de línguas, de dança, de futebol,
academias ou clubes. Ou seja, observa-se que os tempos dedicados às atividades
relacionadas à cultura escolar, projetavam-se para além do horário escolar strictu
sensu em ambos grupos.

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Figura 3
Densidade de cenas com crianças moradoras dos
bairros

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do autor.

A presença de crianças na Barragem Santa Lúcia distinguia-se de maneira


clara e recorrente. As crianças moradoras dos bairros foram observadas em oca-
siões espaço-temporais específicas e invariavelmente acompanhadas por adultos.
Já entre as crianças moradoras do aglomerado observavam-se variações, em que
algumas eram acompanhadas por adultos, principalmente nos finais de semana,
outras invariavelmente entre pares e desacompanhadas de jovens e adultos.
É possível considerar, então, que, apesar de vivenciarem de maneira
muito semelhante a organização de seus tempos (visto que são definidos prin-
cipalmente pelos tempos escolares) e da coabitação na região do Santa Lúcia,
as crianças dos distintos grupos sociais pouco cruzavam umas com as outras e,
portanto, pouco se conheciam. Em outras palavras, como sujeitos de um único
grupo geracional, mas que não participavam do mesmo grupo social, as crianças
moradoras da região pesquisada experimentavam uma segregação do tipo intrage-
racional e interclasses.
No que tange às relações de gênero, se comparada a densidade de cenas
com meninos e meninas moradores do aglomerado por meio dos mapas (Figuras 4
e 5), observa-se que as distinções eram menos visíveis e ocorriam, principalmente,
no espaço da quadra/parquinho e em frente à padaria. No caso da quadra/parqui-

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nho, esse fato se deve, principalmente, ao uso da quadra para a prática do futebol,
visivelmente associado aos meninos. No caso do espaço em frente à padaria, as
meninas foram observadas com maior intensidade, em atividades de busca pelo
recurso ao pedir dinheiro e comida aos adultos que estacionavam nos passeios e
compravam.

Figura 4
Densidade de cenas com meninas moradoras do
Morro do Papagaio

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do autor.

Ao comparar a presença das crianças moradoras dos bairros segundo a


faixa etária, observamos crianças maiores (entre 8 e 10 anos) no Clube da Troca
de figurinhas e as pequenas (entre 0 e 4 anos) pelas manhãs entre o coco e a
“biquinha” (Figuras 6 e 7). Nesses horários, as crianças maiores dos bairros foram
observadas nas escolas de idiomas e na academia, ou em aulas de natação.
O Clube da Troca de figurinhas é realizado há mais de uma década
pela banca de revistas existente no local. Reunia muitas pessoas, especialmente as
crianças de ambos os grupos sociais do entorno. Os meninos eram mais presentes,
visto o apelo do jogo a esse grupo e a atração que lhes causava. Nos finais de tarde,
mas especialmente aos sábados pela manhã, os meninos dos bairros iam até a
“pracinha” de carro com os pais, se encontravam e interagiam com desconhecidos
em situações que serão abordadas aqui.

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Samy Lansky et al

Figura 5
Densidade de cenas com meninos moradores do
Morro do Papagaio

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do autor.

Figura 6
Densidade de cenas com crianças pequenas dos bairros

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do autor.

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Cartografia das infâncias em região de fronteira em Belo Horizonte

Figura 7
Densidade de cenas com crianças maiores
dos bairros

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do autor.

Figura 8
Densidade de cenas com todas as crianças

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do autor.

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Samy Lansky et al

Ao registrar todas as cenas com crianças na Barragem Santa Lúcia,


obteve-se o mapa da Figura 8. É possível constatar a forte presença de crianças nos
diversos locais observados. Em alguns desses locais, essa presença era ainda mais
evidente e visível: no Clube da Troca da “pracinha”, entre o coco e a “biquinha”,
nos arredores da quadra pequena e do parquinho e em frente à drogaria, à farmácia
e ao centro comercial.

O Clube da Troca

Se no cotidiano do Parque a ocupação e uso do espaço mostravam-se


rigidamente definidos a partir do pertencimento social dos usuários, um espaço-
-tempo rompia, ainda que de forma limitada com as barreiras sociais, a partir do
desenvolvimento de uma atividade ligada a cultura infantil contemporânea, o que
descrevermos a seguir.
Trata-se do Clube da Troca de figurinhas que acontecia mediante um
regulamento e horários estabelecidos pela banca de revistas existente no local.
Como dito, reunia muitas pessoas, no entanto, nesta convivência, as formas de
apropriação do espaço e os significados impressos ao jogo pelas crianças do Morro
e pelas dos bairros eram distintas.
A presença das crianças dos bairros, especialmente meninos, era mais
visível, ao contrário dos outros horários em que a presença das crianças do
aglomerado era dominante. Em torno da atividade da troca de figurinhas, estas
crianças participavam muitas vezes apenas como espectadores. Porém, a atração
que o espaço exercia era evidente, levando-as a procurar brechas para brincar com
autonomia, resultando numa relação em que os adultos tinham de se esforçar
para acompanhá-los, enquanto trocavam figurinhas dos álbuns dos filhos. Tanto
meninas quanto meninos dos bairros não foram observados entre pares; estavam
sempre na companhia de jovens ou de adultos, presença claramente distinta se
comparada com a presença das meninas e meninos do Morro, ambos presentes
entre pares em todas as ocasiões observadas.
A entrada de meninos e meninas do aglomerado no jogo acontecia de
forma distinta, pois era necessário um investimento financeiro para participar. No
início, observavam, tentavam ajudar os meninos dos Bairros e acabavam entrando
na brincadeira ao receberem as figurinhas repetidas daqueles que completavam os
álbuns. A partir daí passavam a trocá-las e a vendê-las, a participar do jogo e da
troca. As crianças do Morro encontravam, portanto, uma abertura e se tornavam
jogadores, ao buscar as figurinhas para outros, trocá-las, vendê-las e jogar. A troca
tornou-se, nesse contexto específico, partilha, interação e copresença no espaço;
no entanto, grupos distintos ocupavam papéis também distintos no jogo.

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Cartografia das infâncias em região de fronteira em Belo Horizonte

Os objetivos e significados impressos ao jogo eram igualmente distintos


se comparados os grupos. Para as crianças dos bairros, o jogo tinha significado
enquanto tal; já para as do aglomerado, além da brincadeira, significava acesso a
recursos financeiros. Cabe destacar também a participação de diversas gerações na
atividade e a forma como as interações ocorriam, em que esta expressão da cultura
infantil era incorporada à sociabilidade e cultura adulta urbana. (CORSARO,
2002)
O Clube da Troca revelou, ainda, a presença marcante e a importância
do jogo na cidade. (LEFEBVRE, 2009 [1968]) Enfatize-se que ocorria – apesar
das complexas nuances presentes – interação intergeracional e interclasses, pro-
movida por um estabelecimento comercial privado e que, para além das relações
em torno da busca por recursos, possibilitaria ou criaria uma oportunidade para
que um encontro entre grupos etários e sociais distintos ocorresse por meio de um
jogo no espaço público.

A circulação no espaço urbano

Figura 9
Fluxos de circulação das crianças do Morro nos
arredores da Barragem Santa Lúcia

Fonte: Elaboração própria, através do programa Google Earth.

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Os mapas de fluxos do movimento das 11 crianças do Morro investi-


gadas foram realizados mediante a marcação das diversas cenas em que cada uma
dessas crianças foi observada. Esse exercício de mapeamento revelou, portanto,
os locais nos arredores frequentados por essas crianças e os caminhos que faziam
entre um espaço e outro, principalmente a pé e de bicicleta. O recorte espacial
adotado assumiu a Barragem Santa Lúcia como centro e as diversas escolas, como
os limites da observação realizada para esta investigação. O primeiro mapa, numa
escala mais ampla, demonstra a circulação das crianças por toda a região pesqui-
sada (Figura 9) e o segundo estabelece um zoom nos arredores da Barragem Santa
Lúcia (Figura 10). Ressalte-se que a moradia dessas crianças, todas localizadas no
Morro do Papagaio, não foram representadas nestes mapas, para não identificá-las.
Ao representar a circulação das crianças pelos espaços como linhas,
representamos – inspirados em Ingold (2011) – o movimento que realizavam ao
longo do tempo e o entrelaçado de suas jornadas de vida. Ao se referir ao ema-
ranhado tecido pelas linhas de movimento das pessoas, animais, plantas e coisas,
Ingold (2011) contesta a ideia de ligação entre pontos que o conceito moderno
de transporte urbano adota e, portanto, questiona a metáfora das redes (networks)
que essas linhas formariam. Nesse sentido, prefere tomar emprestado o termo
meshwork, de Lefebvre (1991 [1974], p. 117-118):

Existe algo em comum, observa Lefebvre, entre o modo como as


palavras são inscritas sobre uma página escrita e o modo como
os movimentos e ritmos da atividade humana e não-humana são
registrados no espaço vivido, mas somente se pensarmos na es-
crita não como uma composição verbal, mas como um tecido de
linhas – não como um texto, mas como textura. ‘Atividade prá-
tica escreve na natureza’, ele comenta, ‘numa mão que rabisca’.
Pensa nas trilhas reticulares deixadas pelas pessoas e animais na
medida em que caminham por seus negócios em torno da casa,
povoado e cidade. Apanhados nestes múltiplos emaranhados,
cada monumento ou edifício, visto em seu contexto e entorno,
é mais ‘archi-textural’ do que arquitetural. (INGOLD, 2011,
p.  84, tradução nossa)

Ao sobrepor as linhas de circulação das crianças nos arredores da Barra-


gem Santa Lúcia aos dados sobre a densidade de cenas com crianças, representamos
– a título de síntese da observação da presença e da circulação das crianças nos
arredores da Barragem Santa Lúcia – o mapa etno-gráfico da Figura 11. Essas
imagens deram elementos para desenvolvimento de outros procedimentos da
pesquisa, ou seja, as entrevistas informais com os sujeitos adultos envolvidos nesta
pesquisa: usuários do parque, comerciantes, diretores e educadores das escolas e de
projetos socioculturais locais, agentes de ONGs, associações do Morro e dos bair-
ros, policiais e planejadores urbanos, dentre outros. Diante de propostas que vem

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Cartografia das infâncias em região de fronteira em Belo Horizonte

sendo desenvolvidas de integração das atividades escolares com os demais espaços


e tempos da cidade – como a proposta da Escola Integrada, implementada pela
Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte – a ferramenta desenvolvida
se mostra como um instrumento que pode aportar contribuições para as análises e
planejamentos a serem desenvolvidos.
Esses mapas etno-gráficos são apenas algumas das possibilidades de apli-
cação de filtros às planilhas e seus resultados na representação gráfica em termos
de densidade de cenas com crianças. Demonstram o potencial da ferramenta do
geoprocessamento, associada à interface com programas do tipo Google Earth (que
disponibiliza uma imagem fotográfica de fundo e, portanto, facilita o reconhe-
cimento do local) em uma etno-grafia. Outras possibilidades de cruzamento de
dados e análise poderiam ser experimentadas a partir desse processo, tais como
acrescentar dados demográficos, dados qualitativos associados aos pontos que
representam os diversos equipamentos, associação de fotos, textos e cruzar com
informações que os diversos atores achassem pertinentes – inclusive, e especial-
mente, as próprias crianças.
Evidentemente o universo investigativo aqui contemplado – o estudo
e registro dos usos dos espaços públicos por 11 crianças moradoras da favela da
região – é necessariamente circunscrito. No entanto, a riqueza dos dados obtidos,
ao conferir visibilidade às distinções não apenas de classe social, mas de gênero
e idade permitem-nos fornecer elementos para a melhor compreensão dos usos
distintos dos espaços urbanos.

Figura 10
Fluxos de circulação das crianças do Morro pela
Barragem Santa Lúcia

Fonte: Elaboração própria, através do programa Google Earth.

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Figura 11
Presença e circulação das crianças na Barragem
Santa Lúcia

Fonte: Elaboração própria, através do programa Google Earth.

Considerações finais: uma cartografia dos espaços com


crianças nos arredores da Barragem Santa Lúcia

Os mapas etno-gráficos apresentados são apenas algumas das possibilida-


des de aplicação de filtros às planilhas e seus resultados na representação gráfica em
termos da recorrência de cenas observadas. Ao desenvolver ferramentas de leitura
e de registro gráfico do mundo urbano nesta pesquisa, tentou-se contribuir para a
exploração das possibilidades e potencialidades que esse tipo de instrumento – ao
focar nos usos que as pessoas fazem destes espaços – pode revelar.
O potencial da ferramenta do geoprocessamento, associada à interface
com programas do tipo Google Earth em processos de planejamento espacial e
em uma etno-grafia espacializada levanta diversas possibilidades de ulteriores
desenvolvimentos da própria ferramenta e de suas possíveis utilidades. Outras
possibilidades de cruzamento de dados e análise podem ser experimentadas a
partir desse processo. Foi possível considerar ainda que essa metodologia pode
ser experimentada por distintos atores e pesquisadores de diversos campos, até
mesmo em outros contextos e recortes espaciotemporais, distintos do adotado.
Esse experimento procurou produzir uma ferramenta interativa, através da qual
se pudesse dar expressão às percepções e demandas dos diferentes atores, com

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Cartografia das infâncias em região de fronteira em Belo Horizonte

especial atenção ao modo de circulação e uso dos espaços urbanos próprios das
crianças.
As informações tornadas visíveis nos mapas podem ser um interessante
instrumento para provocar interações entre os diferentes campos de políticas para a
infância. Podem sugerir uma maior integração entre programas e políticas públicas
urbanas e de atenção à infância. Podem suscitar uma maior atenção na produção
dos espaços urbanos pelos quais as crianças circulam, por exemplo, os trajetos
entre as escolas, indicados pelos próprios sujeitos como corredores preferenciais
nos quais a presença poderia ser cuidada, acompanhada e potencializada. Enfim,
os mapas tornam visível a presença das crianças na cena urbana, e desafiam a lógica
contemporânea de quase completa institucionalização da vida infantil na cidade.
Com base no conjunto de dados produzidos, foi possível considerar
que a infância toma expressão nos espaços da cidade – apesar da percepção de
sua inadequação – e que, portanto, requer atenção específica dos estudiosos e
planejadores. Essa perspectiva, ao imprimir atenção às especificidades dos sujeitos
e não somente das questões macroestruturais (economia, transporte, segurança,
dentre outras), pode contribuir para uma inversão na lógica do planejamento dos
espaços – nesse caso, a partir das crianças.

Notas
1.  Tais campos buscam apreender a criança como sujeito social, que na relação com o mundo adulto
produz formas singulares de apreensão e significação, configurando uma cultura infantil a partir das
interações com adultos e crianças em distintos espaços e tempos sociais. Veja-se: Corsaro (2011),
Corsaro; Qvroutrup; Haning (2010), Sarmento (2008).
2.  Veja-se, entre outros, Vasconcellos e Sarmento (2007), Debortoli; Martins; Martins (2008), Mul-
ler (2006, 2012 e 2014).

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Recebido em 29 de abril de 2014.
Aprovado em 24 de outubro de 2014.

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