Sei sulla pagina 1di 11
Antonio Quinet A Descoberta do Inconsciente Do desejo ao sintoma Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Preambulo Desejo logo ex-sisto Aonde ex nito estou as palavras me acham. MB. “O que sou eu?” — é a pergunta que leva Descartes a fundamentar pela primeira vez na histéria das idéias 0 conceito de sujeito. O projeto do Discurso do métodose encontra explicito em seu préprio titulo: trata-se de “procurar a verdade nas ciéncias”. O que é verdadeiro para Descartes é 0 que pode ser concebido “clara e distintamente” unicamente pela razo. Eis 6 passo precursor para o desenvolvimento da ciéncia moderna. O sujeito que serd definido pelo método cartesiano nao é outro senao o sujeito da ciéncia. E esse mesmo sujeito da ciéncia sobre o qual opera a psicandlise — eis a tese de Lacan. Sem o advento do sujeito com Descartes, a psicandlise nao poderia tet vindo & luz. Para responder & pergunta sobre “o que sou eu”, Descartes, em suas Meditacoes filoséficas descarta de entrada os sentidos, pois estes séo sempre enganadores, assim como o corpo proprio. O que vejo, 0 que ougo, apalpo ou sinto nao me dizem 0 que sou; meu corpo tampouco me define. Descartes poe-se a duvidar da existéncia de tudo e concebe um Deus como um Génio maligno cuja intencionalidade nao € outra senao a de enganar 0 sujeito. Recusa assim qualquer autoridade externa, mesmo divina, que garanta a existéncia das coisas. Esse Deus enganador faz parte da diivida hiperbélica de Descartes, a qual apés colocar toda a existéncia em suspenso ¢ anular todo o saber atinge seu pice em um tinico ponto de certeza: 0 pensamento. Nesse duvidar de tudo uma coisa é pelo menos certa: que estou pensando. “... encontro aqui, diz Descartes, que 0 pensamento é um atributo que me pertence; sé ele no pode ser destacado de mim. Sou, existe isto € certo, mas por quanto tempo? O tempo que eu pensar, pois, talvez, se eu deixasse de pensar eu poderia deixar de existir. Nao admito agora nada que nao seja necessariamente verdadeiro: nao sou senZo uma coisa que pensa”.! n 12 A descaberta do inconsciente Res cogitans— é a definigao desse sujeito que é uma coisa cuja substancia € pensamento. O sujeito do pensamento considera verdadeiro tudo 0 que a azo concebe de forma clara e distinta, como, por exemplo, a idé¢ia de Deus que Descartes restitui a partir da “terceira meditagdo” nao mais como um génio maligno, mas como “autor de minha existéncia”.? Com esse procedimento, Descartes postula um Outro divino como garantia do pensar e do existir: um Outro, em suma, garante do sujeito. Freud com/contra Descartes Para a psicandlise, 0 sujeito é também sujeito do pensamento — pensamento inconsciente. Pois 0 que Freud descobriu € que o inconsciente é feito de pensamento. Trata-se aqui do sujeito néo da desrazio ¢ sim da razio inconsciente, cuja légica é também apreendida através de um método — o método psicanalitico. Essa heranga da filosofia cartesiana conserva o ideal de cientificismo da psicandlise cujos efeitos de sua pratica devem ser verificados, cujo modo de operagao pode ser explicitado e cujos conceitos podem ser transmitidos, justificando assim o ensino da psicandlise, inclusive na Universidade. Foi nessa ofientacéo que Jacques Lacan propés maternas para a psicandlise, © procedimento freudiano ¢ andlogo 20 adotado por Descartes, na medida em que, na restituigao de um sonho, muitas vezes 0 sujeito € tomado pela divida, pautando o relato do sonho com esse mesmo aspecto de cogitacao dubitativa, E essa dtivida que traz, propriamente falando, a certeza de que af se trata do pensamento inconsciente. Como diz Lacan no Seminério 11: La “onde ele duvida ... € certo que um pensamento If se encontra, 0 que quer dizer que ele se revela como ausente. E a este lugar que ele (Freud) chama, ... 0 eu penso pelo qual vai se revelar o sujeito.”> Fagamos um paralelo com a diivida do sonhador freudiano descrita em A interpretagio dos sonhos A divida, em relaggo 2 um elemento impreciso do sonho, é um indice de que af se trata de uma representacao vitima do tecalque. A divida assinala assim a presenga de uma formagio do incons- ciente. Para Freud é precisamente a perturbacao que a dtivida provoca na andlise que a desmascara como “um produto e um instrumento da resisténcia psiquica”. F nesse lugar da resisténcia da qual a ditvida € 0 indice que se manifesta 0 sujeito: ou seja, no campo do inconsciente como pensamento ausente. E esse fundamento que motiva a primeira definigo estruturalista { dialética do inconsciente enunciado por Lacan: “O inconsciente é 0 capitulo | ! | ee Desejo logo ex-sisto 13 de minha histéria que ¢ marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: ¢ 0 capitulo censurado.”4 Quando, no meio do relato de um sonho, o sujeito comenta “aqui o sonho esté apagado” ou, como disse um paciente de Freud, “aqui existem algumas lacunas no sonho; estd faltando algo”, € justamente af que Freud conyoca 0 sujeito, € que, no caso, respondeu com a restituicéo de uma lembranca infantil relativa 2 um gozo escdpico: a visio do sexo ferinino. LA onde falta alguma coisa, se encontra o sujeito como correlato do sexo no inconsciente.° O sujeito para a psicandlise é essa lembranga apagada, esse significante que falta, esse vazio de representacdo em que se manifesta 0 desejo. Desidero é 0 pensar freudiano, pois o inconsciente nos ensina a seguinte proposigio: penso logo desejo, cogito ergo desidero, pois a cogita¢ao inconsciente presentifica 0 desejo sexual, indestrutivel, inominavel, sempre desejo de outra coisa. Mas o pensamento nao o define, pois nao ha representacao propria para o desejo, pois, como 0 sujeito, ele ndo tem substincias é vario, aspiracao, falta, se ndo deixaria de ser desejo. O cogito freudiano ¢ antes de tudo “desidero ergo sum”, uma vez que I onde se encontra 0 desejo esta o sujeito como efeito da associagao das representacées. Desejo logo existo. Desejo é 0 nome do sujeito de nossa era: a eta freudiana. Portanto, o sujeito que a psicandlise descobre nos escombros das patologias, nos caleidoscépios oniricos, nas fantasmagorias da dpera privada, nos corredores das vesinias — esse sujeito é fundamen- talmente desejo. Se 0 sujeito da psicandlise é o sujeito relativo a0 pensamento, esse pensamento no 0 identifica: © sujeito € nio-identificdvel ¢ por isso pode ter vitias identificagdes, as quais s4o, uma a uma, desfolhadas em uma anilise. Ele se encontra, como diz Lacan, nos intervalos significantes, pois ele assombra a cadeia significante como se diz de uma casa assombrada. Assim, se 0 procedimento cartesiano € freudiano convergem no sentido de definir 0 sujeito pela razio, eles divergem em relagéo & substancia: para Descartes 0 sujeito ¢ uma coisa pensante, enquanto para a psicandlise o sujeito nao tem substancia, manifestando-se na hesitagdo, na duivida entre isto e aquilo. Para Descartes 0 sujeito est no pensamento “Ld onde penso eu sou”; para Lacan, relendo Freud, 0 sujeito est4 no pensamento como ausente, como pensamento barrado. Lé onde penso eu nao estou, eu nao sou. O sujeito como efeito da articulacao significante ¢ 0 sujeito do pensa- mento inconsciente, que Lacan identifica com 0 sujeito como o descreve Descartes. E 0 ponto em que Freud e Descartes convergem. Em Descartes, 14 A descoberta do inconsciente a certeza do sujcito € aprecendida através da duivida e, para Freud, como vimos, a dtivida que aponta o lugar de um branco, que surge no pensamento, nos fornece a certeza de que af se encontra o inconsciente como pensamen- to ausente (da consciéncia), Descartes parte do pensamento ¢ chega na existéncia; Freud parte do pensamento inconsciente e chega no desejo. Com Seu cogito ergo sum apesat de sua relaco causal, Descartes separa o ser e 0 Pensamento e prepara a scparacao que a psicandlise trard & luz, ou seja, que penso onde nao estou, onde nao sou, o que qualifica o inconsciente como. pensamento sem ser. Pois o ser se furta ao significante. Por outro lado, sou onde nao penso, l4 onde se encontra meu ser de gozo que escapa a todo pensamento: eis af meu semblante de ser, que tento cingir no objeto 2. No processo da andlise, o sujeito se experimenta como falta-a-ser, na medida em que nao encontra representa¢ao simbdlica para seu ser. Volta-se entao para 0 gozo a fim de tentar apreender esse ser. Mas tampouco o encontra, pois 0 gozo é pendido ¢ ele sé encontra o simulacro de seu ser (e mesmo assim de maneira episddica) sob a forma do objeto a de sua fantasia. As concep¢oes do sujeito em Descartes ¢ na psicandlise divergem em outros pontos. Em Descartes, ha uma substantificagio do sujeito na medida em que ele € uma coisa, uma coisa que pensa, a0 passo que o sujeito da psicandlise € sem substancia. Sua falta de substancia lhe permite ser um sujeito suposto, inclusive suposto saber, que é a mola da transferéncia. O sujeito em Descartes é um sujeito unificado pelo pensamento, e essa unidade subjetivada do penso é transferida ao Outro na figura de Deus como garante tanto dessa unidade quanto dessa identificagio do sujeito ao pensamento. O Deus de Descartes € 0 sustentéculo da equagéo penso = existo (pensa- mento=ser): 0 ergo s6 se sustenta a partir de Deus, ergo é de fato 0 nome do Deus cartesiano. ergo —~ penso sou NOC” Deus A idéia de sujeito em Descartes sé se sustenta, portanto, na idéia teoldgica de um Deus uno garante do principio de identidade desse sujeito. Aqui nao ha partigéo, como no espago cartesian (partes extra parte}, pois 0 sujeito nao se parte, ele € uno como Deus. A res cogitans nao se divide, cla é una Desejo logo ex-sisto 15 €m oposicao & res extensa suscetivel de se dividir em varias partes; a mente € una ¢ o corpo é divisivel. Encontramos em Descartes portanto a presenga de um Outro divino que gatante 0 sujeito como pensamento, e, ademais, 0 garante de sua unidade. Para Descartes 0 pensamento define portanto o ser substantificando 0 sujeitos para a psicandlise o sujeito nao tem substincia ¢ seu ser esté fora do pensamento — Ié onde se encontra a pulsio sexual, E mesmo 14, ele é semblante de ser, como nos indica Lacan no Seminério 20. E 0 Outro, Jonge de ser divinizado, é inconsistente e, portanto, nada garante. Para a filosofia cartesiana 0 sujeito é Uno, inteiro, identificdvel, enquanto para a psicanélise nao ¢ identificavel, mas sujeito a identificacio; e longe de ser unificado, ele é dividido — ele se divide em telagao ao sexo € A castragao, que ele nega mas nao deixa de reconhecer, A castragao, que denota a divisao subjetiva, ¢ a verdade do sujeito banida pelo discurso da cigncia, assim como a castracéo do Outro é negada no discurso da religiao Sujeito do pensamento para Descartes, 0 sujeito para a psicandlise € um vazio — oco que estrutura 0 homem nfo tanto como vir-a-ser mas como falta-a-ser, falta constitutiva do desejo de ser e de ter aquilo que jamais tera € jamais scré. Penso logo nao sou. O cogito lacaniano opée o “penso onde nao sou” do sujeito do inconsciente ao “sou onde nfo penso” relativo ao objeto a, fora do signifi cante, I4 onde o sujeito busca seu ser para-além (ou para-aquém) da linguagem. Mas mesmo af ele nao encontta seu ser: 0 objeto a como causa do desejo, néo é mais do que um semblante de ser. © objeto € semblante do ser ¢ 0 sujeito é falta-a-ser, want to be Sujeito desejo Como apreender esse sujeito que nao tem substancia? O sujeito nao é 0 eu, aquilo que apresento ao outro, meu semelhante, igual ¢ rival, como sendo © que quero que 0 outro veja. Nao é a imagem corporal, nem tampouco © somatério das insignias com as quais me paramento para as ceriménias de convivio com o grande Outro da coletividade. O que o sujeito apresenta € seu eu-ideal, auto-retrato pintado segundo as linhas mestras dos ideais daqueles que construiram os Outros primordiais em sua existéncia. Imagem pintada com as tintas do desejo dos ancestrais, que vio compor os matizes de seu eu pela via da linguagem constituindo assim 0 eu como um retrato falado. 16 A desccverte do inconsciente jeito néo € o homem ¢ tampouco é a mente suscetivel de estar doente ou saudavel. Ele nao € 0 objeto da satide mental nem da doenga mental. O sujeito é patolégico por definicéo, sujeito ao pathos, afetado pela estrutura que obedece a uma légica: os significantes que o determinam ¢ 0 gozo do sexo que o divide, fazendo-o advir como desejo. Eis 0 que nos ensina a psicopatologia da vida cotidiana. O sujeito & desejo. A existéncia do sujeito é correlativa a insisténcia da cadeia significante do inconsciente, porém como exterior a ela: é uma ex-sisténcia, Desejo logo ex-sisto. Em 1900, na Interpretagéo dos sonhos, Freud desvela as. leis do incons- ciente, fazendo emergir 0 sujeito do desejo como sujeito determinado pelas leis da linguagem, ou seja, por leis em que as palavras sao tratadas como puros sinais sonoros, significantes, sem significado, por onde desliza o desejo. O significado delas é, na verdade, o desejo, tao fugaz quanto o sujeito que af se manifesta. O sonho é como o fogo de artificio, preparado durante muito tempo e que se acende em um instante. O sujeito do desejo é esse fogo no artificio da linguagem. Hlustremos a manifestacéo do sujeito como desejo nas veredas da lin- guagem com uma das Primeiras estérias de Guimaraes Rosa. Conta-se que um bravo sertanejo da Serra das Gerais, “jagunco até na escuma do bofe”, foi chamado de famigerado por um mogo do governo. E nao tinha a menor idéia de que tratamento era aquele. E “desaforado? E cacodvel? E de arrenegar? Farsincia? Nome de ofensa?” — indagava. Ao ser escutado, esse significante famigerado colocou o sujeito “nos vermelhées da raiva, sua voz fora de foco”. E, por nao ter 4 mao “o livro que aprende as palavras”, decide percorrer seis Iéguas a cavalo até 0 arraial do sujeito suposto saber o significado de famigerado. Ao chegar, “cabismeditado”, disse de chofte: —— “Vosmecé agora me faca a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que ¢: fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-gera- do...? Por nao conhecer 0 significado da palavra famigerado, 0 sujeito destia a cadeia associativa de seu desejo que emerge como interrogacio sobre a geragio ¢ a familia. As questdes, tais como qual o seu lugar na famflia, nas geragdes e como ele foi gerado, fazem surgir af o desejo como enigmitico, seu desejo relativo ao desejo do Outro que o gerou. A palavra fumilhas-gerado € a interpretacao do sujeito do significante famigerado e que faz surgir 0 desejo ¢ a lei (a lei da filiagdo que € a lei paterna) no registro da injuiria. Essa cadeia associativa aponta para 0 pathos do sujeito aludindo ao desejo enquanto enigmatico. O desejo é 0 enigma que impele o sujeito a saber — para desvendar o cnigma do desejo que o anima em sua existéncia, a cifta Desejo logo ex-sisto W7 de scu destino. Mas, na estéria rosiana, 0 personagem, que era para 0 nosso jagungo, 0 sujeito suposto saber o significado de famigerada, responde & demanda dando-lhe a significagao dicionaresca, apagando assim a questo do desejo ¢ negando a implicagéo do sujeito. E o sertanejo, em vez de escutar-se nas associagdes a que o significante enigmético o remetera em relagéo a sua histéria ou suas fantasias, preferiu favorecer o recalque despre- zando-as: “A gente tem cada cisma de divida boba, dessas desconfiangas... s6 pra azedar a mandioca...” Por sua vez, 0 narrador da estéria que Ihe deu a significagao que estancou 0 desejo de saber assegurou sua posi¢ao idealizada de autoridade sapiente. “Nao h4 como as gtandezas manchas de uma pessoa instrufda!” — conclui 0 famigerado sertanejo. Moral da histéria: ao lidar com o individuo cabe ao analista solicitar 0 sujeito — sujeito do desejo, sujeito do inconsciente — e nao responder ao eu que ndo quer saber nada disso. O sintoma nos indica que o passado é atual e o desejo eterno déi. O sintoma neurético, assim como o sonho, é uma formagao do inconsciente e, enquanto tal, é a expresso metaférica do desejo para o sujeito: Ele revela a articulagao do desejo com a lei, tal como Freud apreendeu através do mito de Edipo. Eis 0 que vemos num sintoma do Homem dos Ratos, em que uma idéia o obcecava: se en vir uma mulher nua meu pai deve morrernde aparece a articulagio entre o pai como representante da Iei e o desejo proibido. O sintoma ¢ portanto uma metéfora da estrutura edipiana onde se presentifica a articulagao da lei com o desejo — desejo que af se manifesta em suas impossibilidades. Tomemos o exemplo de uma fobia em que o ataque de angiistia € desencadeado em situagdes meteorolégicas ou fisicas sob as quais a paciente nao pode sair do recinto em que se encontra. A cada vez que ela se sente presa, a angiistia é desencadeada. Presa é 0 significante fobico ao qual se agarra 0 sujeito para uagar a geografia de compromisso de sua existéncia de confinamento. O significante fobico ¢ aquele que vem suprir a faléncia do pai simbélico a barrar 0 gozo da mie, Pois, no caso, o significante que representa o pai, longe de barrar a fiiria materna, é 0 que a justifica, pois é€ 0 que lhe faz semelhante fisicamente ao pai aos olhos da mae. Dai o sujeito recorrer sintomaticamente a um significante de evitagéo como meio fisico de escapar da mae-monstro. A equivocidade do significante presa aponta para um possfvel lugar em relagdo ao Outro materno: ela é a presa da mae. Mas é também um significante que caracteriza seu desejo como desejo advertido para além do qual sopra a ventania da angustia. Na entrevista psiquidtrica, a prépria paciente associa 0 medo atual de ficar presa com o 18 A descoberta do inconsciente medo do monstro que a prendia do sonho de infincia, apontands a presenca dos dois tempos do sintoma neurético exigidos por Freud em sua constituicao ¢ a origem infantil do desejo. Ja no caso de um outro sujeito, que desenvolveremos no capitulo II, desta vez um menino de oito anos, seu ato sintomético consistia em arrebentar-se periodicamente em acidentes cuja repeticao revelava a insis- téncia da determinagao inconsciente em sua vertente mortifera. Sua hemofilia ja colocou em risco sua vida em diversos acidentes que tinham um ende- recamento: o pai. E através deles, como num apelo, parecia dizer: “Pai, nao vés que estou morrendo?”. Para os pais, formados no saber médico — cles fizeram um curso dirigido a pais de hemofilicos —, 0 comportamento de seu filho constituia um enigma. E os acidentes adquiriram o valor de sintoma, como 0 retorno da verdade numa falha do saber médico. O saber do Outto parental fundamentado na ciéncia médica, e transmitido ao filho, por excluir © sujeito do inconsciente, nao podia dar conta do sintoma. A anédlise fez logo surgir a dimensao do sujeito do desejo e sua verdadeira preocupacio: ele se via caido em plena guerra dos sexos, onde no campo de batalha de Eros brotam as flores da morte. Ao ser representado pelo significante hemofilico para o saber médico, sustentado pelos pais, 0 sujeito € um condenado morte. A anélise vem abalar a identificagao do sujeito com o significante hemofilico ao wazer de volta & pauta a questio filica que faz o sujeito do desejo um condenado a castracao e & diferenca dos sexos. A atividade do desejo, que é sempre uma constante, como Freud assinalou, fez uma analisante sonhar que a0 chegat no analista nao sé era uma mulher que a atendia, € nao eu, mas também que sua linha nao era lacaniana mas godivana Este neologismo é assim explicado por esta histérica espirituosa: “E derivado de Lady Godiva, cuja lenda minha professora de inglés adorava contar.” Lembra-se entao de uma outra parte do sonho em que havia uma mulher muito branca ¢ muito linda montada ndéo num cavalo como a famosa lady, mas num dnibus, e para a qual a analisante ficava olhando admirativa. “Tem af a coisa do olhar” — diz ela, apontando o lugar de objeto (objeto da pulsio escépica) que para ela ocupa o analista na transferéncia, Fala entao que costuma olhar muito para as outras mulheres em geral e que tem mania de ficar observando detidamente as mios delas para ver se af encontra sinais de envelhecimento e as compara com as suas. “Minha vontade, diz ela, é que todas as mulheres fossem mais velhas do que eu!” — o que a faz estar sempre insatisfeita com sua aparéncia. A insatisfagdo é, de fato, 0 nome de seu desejo. Como foi ilustrado nesses exemplos, 0 sintoma, indice da articulagao com a lei, € uma manifestaao subjetiva do desejo na fobia, na neurose Desejo logo ex-sisto 19 obsessiva e na histeria, respectivamente, como advertido, impossivel ou insatisfeito. A estrutura de linguagem do inconsciente é 0 que faz a psicandlise como praxis operar por meio da fala ¢ sua ética ser definida por Lacan em Televisao como ética do bem dizer. Trata-se de uma ética relativa 4 implicacéo do sujeito, pelo dizer, no gozo que seu sintoma denuncia — ética de bem dizer © sintoma. O psicanalista tem uma atitude diferenciada diante do sintoma apresentado pelo paciente, precavendo-se contra o furor sanandi de exigir a qualquer custo a suspensao do sintoma. Pois 14 onde ha sintoma, est4 o sujcito. Nao atacar o sintoma, mas abordd-lo como uma manifestacio subjetiva, significa acolhé-lo para que possa ser desdobrado € decifrado, fazendo ai emergir um sujeito. Tratar do sintoma nao significa, portanto, barrar ao sujeito 0 acesso ao real que o sintoma denota ¢ dissimula. Trata-se, pelo contrario, de fazer com que o sintoma se transforme (no sentido temporal) para o proprio sujeito, no intuito de deixar de ser sintoma do momento de concluir — concluir em sua incapacidade de lidar de outra forma com 0 gozo —, para transformar-se em um enigma do tempo para compreender. Em outros termos, trata-se de transformar o sintoma-resposta em sintoma-pergunta. O desejo € sempre enigmético e por isso mesmo ele apela ao saber, constituindo assim o sujeito articulado a um desejo de saber. E, com efeito, aponta Freud, a partir do enigma colocado pelo sexo que a inteligéncia é despertada na ctianca. Ele 0 denomina “Enigma da esfinge”, que traduz pela pergunta “de onde vém os bebés?”; trata-se portanto de uma pergunta sobre 0 desejo parental que o gerou como bebé. Em suma, o Enigma da esfinge, que se coloca para todo mundo, é uma questéo sobre o desejo enigmdtico do Outro. E todo homem é impulsionado & sua decifragio, uma vez que a pulsio participa do saber, manifestando-se inicialmente na curio- sidade sexual infantil. Mas hé obstdculos ao saber. No nivel imagindrio, esse obstéculo se chama o ex — que representa o nivel da consciéncia que funciona como uma barreira ao sujeito do inconsciente ¢ ao saber que the é proprio. No nivel simbélico os obstdculos ao saber se modulam segundo as estruturas clinicas em: recalque (Verdrigung), desmentido (Verleugnung) e foraclusio (Verwerfung). Estas so as trés formas de negacao do saber sobre a verdade do sexo dada pelo complexo de Edipo, que se encontram, respectivamente, na neurose, na perverséo € na psicose. Essa negacao se expressa no neurético por um “nao quero saber nada disso”, no perverso por um “cu sci... mas mesmo assim”, ¢ no psicético por “cu no sei nada disso”. O saber que é negado pelo sujeito faz retorno e se presentifica nesse fenémeno que Freud designou por transferéncia e cujo pivé é justamente 20 A descoberta do inconsciente © que Lacan chamou de o sujeito suposto saber, que é encarnado por aquele a quem se dirige nosso bravo sertanejo para saber o significado de “fami- gerado”. A transferéncia permite a passagem do horror ao saber (efeito de sua negacio) ao amor dirigido ao saber que € 0 suporte do tratamento psicanalitico. O operador dessa transformacao é o desejo do analista, que se presta a fisgar o sujeito cavalgado pelos significantes de sua alienacao ao Outro. O desejo do analista é 0 desejo de se lancar no vazio sustentado no trapézio do saber que ele sabe ser instével, incompleto ¢ sempre a ser reconstruido — para no circo das paixdes da alma proceder ao ato analitico sem a rede de seguranga do grande Outro. Eis a condicao para deixar barer as asas do desejo do sujeito, que ¢ sempre um equilibrista na corda da linguagem. O dinico, seja analista ou nao, nao é um anddino observador do paciente, pois por meio da transferéncia pode ser incluido na trama com a qual o sujeito envolve o real de seu sofrimento, seja no sintoma, seja no delirio. O que o sujeito faz de seu interlocutor, em que lugar o situa, de onde recebe seu dizer sio critérios a serem levados em conta tanto no diagnéstico, no qual o préprio clinico esta inclufdo, quanto na orientagao terapéutica. O amor de transferéncia € a unica vereda que dé uma chance ao sujeito de advir como desejo de saber. Poder sustentar a existéncia do saber inconsciente através da convocagio da subjetividade como desejo — eis um dever ético que a psicandlise prope ao mundo. As pesquisas organogenéticas, que fazem do homem um ser neuronal, fazendo crer na correlagéo distirbios do corpo-transtornos do espirito, se sustentam nas ciéncias bioldgicas. Ora, o discurso cientifico prescreve de sua drbita tudo que seja relative ao desejo ¢ ao sujeito do inconsciente, para referir ntimeros, relacionar comportamentos ¢ medir sensagées. Mas ao rejeitar o inconsciente, isto ndo quer dizer que ele cesse de se manifestar, Tal € 0 caso do quimico que, em andlise com Freud, sonha estar preparando uma substincia, o brometo de fenil magnésio. Mas, no sonho, ele mesmo € 0 magnésio. Percebendo que seus pés se decompéem e seus joelhos amolecem, ele retira suas pernas do alambique. Logo em seguida acorda e, em estado de exaltacao, brada: Fenil! Fenil! Suas associacoes levam-no, pela rima, a palavra em hebraico Scblemil que significa incapaz ¢ infeliz, fuzendo assim surgir a dimens&o da falta, explicitada pela associagao do cientista sonhador: ele se lembra de um capitulo de um livro que tem por titulo: Os exclutdos do amor. Quando se trata de “quimica silébica”, como diz Freud, a historia € Outra, é a histéria da Outra Cena.

Potrebbero piacerti anche