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expresso.sapo.pt/sociedade/2017-11-05-A-vida-dos-sentimentos
luís barra
“Nunca escrevi um livro para ser popular. O livro tornou-se popular. E os livros seguintes
correram bem, incluindo aquele onde digo que, ao contrário de Descartes, Espinosa tinha
razão”.
“Vemos os nossos esforços atuais do mesmo modo que as outras ciências sociais o
fazem, não como um substituto. Trazemos as ferramentas biológicas para a compreensão
do que acontece no espaço social — governança, comunicação, o tecido social dos
grupos, o fabrico de narrativas e o jogo teatral da imaginação. O estudo dos efeitos da
música no cérebro das crianças e no seu comportamento é importante, tal como o
sentimento, a consciência, e a interação desta nova biologia com os campos da
inteligência artificial e da robótica.”
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O novo livro, “A Estranha Ordem das Coisas”, segue-se a “O Livro da Consciência”, de
2010. Repararão no hiato de sete anos entre um livro e outro, pouco habitual no autor.
Esta “Estranha Ordem...” deu muito trabalho e precisou de muito tempo para sedimentar. A
ambição da explicação aumentou exponencialmente e estamos já distantes de “O Erro de
Descartes”, ou mesmo de “Ao Encontro de Espinosa” ou de “O Sentimento de Si”, três dos
meus favoritos. Entramos agora no espaço sideral que vai da origem da vida, e da
homeostasia, à “versão algorítmica da humanidade”. Os novíssimos campos da robótica e
da IA ou as tentações da imortalidade como um objetivo realizável merecem da parte de
António e Hanna Damásio uma atenção científica que contradiz as utopias ou distopias,
dependendo do ponto de vista, dos dólares e megalomanias dos techies de Silicon Valley.
É, pelo menos para mim, infinitamente interessante e compensador verificar que a fantasia
humana de fazer de Deus tem os seus limites biológicos. Já lá iremos.
“Este livro é novo em muitos aspetos mas tem o ADN da família a que pertence. O centro
do livro está nos afetos. A inteira realidade dos sentimentos e a ciência dos sentimentos e
do que está por baixo dos sentimentos. O sentimento é a personagem central. É também
central uma coisa que me preocupa muito, o presente estado da cultura humana. Que é
terrível. Temos o sentimento de que não está apenas a desmoronar-se, como está a
desmoronar-se outra vez e de que devemos perder as esperanças visto que da última vez
que tivemos tragédias globais nada aprendemos. O mínimo que podemos concluir é que
fomos demasiado complacentes, e acreditámos, especialmente depois da Segunda Guerra
Mundial, que haveria um caminho certo, uma tendência para o desenvolvimento humano a
par da prosperidade. Durante um tempo, acreditámos que assim era e havia sinais disso”.
Em 1989, por exemplo, com a queda do Muro de Berlim? “Sim, sem dúvida, embora o bom
senso nos obrigasse a pensar que depois da Segunda Guerra Mundial tivemos a Guerra
da Coreia e a Guerra do Vietname. Mas 89 foi um tempo de otimismo”.
“Do lugar onde estamos podemos ver não apenas com muita clareza, como podemos
acompanhar de perto o modo como as coisas deixam de correr bem para passarem a
correr muito mal. A Califórnia é, de certo modo, um país. São 40 milhões de pessoas, uma
das maiores economias do globo, poderia separar-se dos Estados Unidos e continuaria a
ser um país importante. E tem uma tradição de bom governo, ou governança. É liberal.
Tem uma população rica e altamente educada. Tem uma capital avançada e progressista,
Los Angeles. Tem as melhores universidades, as melhores tecnologias, e as melhores
propriedades agrárias, onde se cultiva de tudo e se pode fazer tudo bem, como vinho.
Onde existe Hollywood. E onde existe Silicon Valley, para o melhor e para o pior. Voltando
ao livro, nele está uma ideia que sempre me interessou, os estados da consciência social.
O problema da consciência e a resposta à pergunta, porque é que os seres humanos,
entre todas as criaturas, incluindo criaturas com sistemas nervosos semelhantes, ou com
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inteligência, foram os criadores desse espetáculo extraordinário que é a arte ou a religião?
Utilizo a palavra cultura no seu sentido mais lato, mais amplo. As artes e sistemas sociais e
morais, governança, justiça, economia… tudo o que foi criado pelos seres humanos e nos
distingue de todas as outras espécies. Nas outras espécies nada existe que se pareça com
a criação da escrita ou da religião. O modo de responder a isto é fazer a pergunta e segui-
la pela pergunta lógica seguinte e ver o modo típico como a pergunta é respondida. Os
humanos não têm apenas a inteligência, têm, por exemplo, a linguagem. E temos uma
socialidade muito mais complexa do que a de outras criaturas. E os impulsos criativos. E
analisando estas respostas, vemos a ideia. A ideia forte é a de que tudo o que há de bom e
de bem, tudo o que ajudou instrumentalmente a criar culturas, nunca teria acontecido se
não tivéssemos sentimentos. Sentimentos ora de dor e sofrimento ora de plenitude e
prazer.”
“Sentimentos e consciência têm a mesma raiz, é quase paradoxal, porque não podemos
ter consciência sem sentimentos e não podemos ter sentimentos sem consciência”.
“Esse é o tema do meu próximo livro! E esse livro vou escrevê-lo num ano! O ponto crítico
é este, em passar do lugar onde nos encontramos agora culturalmente para o sentimento,
sendo o sentimento o delegado da homeoestasia. Os sentimentos fundamentais são dor,
sofrimento, bem-estar, mal-estar, doença, e por aí fora... o sentimento é uma expressão do
estado em que o organismo se encontra. Diz-nos se esse estado é válido ou não. A
expressão de uma emoção diz-nos se o nosso organismo está a funcionar bem ou não.
Quando não está a funcionar bem, sofremos. Quando está a funcionar bem, sentimo-nos
bem. Se alguém nos trair, por exemplo, a nossa mente induz um estado que causa
sofrimento. O que os franceses chamam douleur morale.”
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E em que se distingue essa dor da dor física? Se alguém me agride e causa dor, sofro
simultaneamente a dor física e a dor moral da agressão, da violência. Se me insultarem
chamando-me um feio nome ou se me esfaquearem como distinguir uma dor da outra? E
os caminhos neuronais são os mesmos? O que se passa no cérebro nesse momento?
“As raízes da dor física e da dor moral são exatamente as mesmas. E dentro do cérebro, o
ponto onde tudo isso termina é o mesmo. Com avenidas de aproximação diferentes. O
caminho é diferente mas a certo ponto convergem no mesmo lugar.”
E isso vê-se? Realmente pode ser observado? Nos scanners? E vê-se o ponto terminal?
Ou infere-se?
“Sim, realmente vê-se. Nos scanners. E a fisiologia é a mesma. O ponto terminal é por
inferência e pelas sucessivas camadas de complexidade atravessadas, os vários sistemas,
os cognitivos, os sistemas de larga escala, etc., e tudo isso pode ser estudado por técnicas
diferentes. O problema está em construir a história de tudo isso, em montar a história,
porque a pessoa que estuda os sistemas não é a mesma que estuda as células. A ideia é
integrar conhecimento que vem da filosofia, das ciências cognitivas, da psicologia… somos
várias vezes multidisciplinares e esse é o método a diferentes níveis”.
Sendo António e Hanna médicos, a tentação é pensar que trabalham com médicos, mas a
aproximação é muito mais vasta.
“Os médicos existem, a começar por nós, mas trabalhamos com cientistas de muitas áreas
e não apenas cientistas. Se queres saber sobre a dor tens certos fatores que determinam a
sequência. Tens sentimentos que são delegados da homeoestasia, a regulação da vida,
depois tens a regulação da vida, que mantém a vida num sistema bioquímico. Tenho um
belo capítulo no livro a que chamo ‘Numa Região como Nenhuma Outra’. ‘A Region of
Unlikeness’. A tradução é difícil em português.”
Resumindo, não apenas os sentimentos são importantes, mais do que o famoso intelecto,
ou razão, como são fundamentais para compreender a vida inteligente e criativa da
condição humana.
Um mundo robótico “Westworld”, como na série HBO. Hanna diz que é “totalmente ridículo”
pensar nisso. “Não podemos criar sentimentos nos robôs. É impossível. Estamos
absolutamente certos disso. É impossível. Porque os sentimentos, tal como acontece com
todos os aspetos da mente, são gerados por um arranjo cooperativo e interativo entre os
sistemas nervosos e o corpo em geral. E porque os sistemas nervosos não são as joias da
coroa da natureza, é o corpo. É a vida. Os sistemas nervosos são servos. São sempre
subservientes. No processo de se tornarem muito bons administradores dos sistemas da
vida, os sistemas nervosos podem desenvolver mentes que são capazes de fazer montes
de coisas que nos distraem e que acabam por atestar isso mesmo, que os sistemas
nervosos são servos do corpo”.
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E o corpo o que é? “É tudo o que no teu organismo é vida. Imagina que podias extrair um
sistema nervoso, o cérebro, e os sistemas nervosos, e retirá-los do corpo. Impossível”. E
não poderá um dia ser feito, ligando um cérebro humano a um robô? Silicon Valley acha
que sim.
Aqui está uma novidade. Nunca tinha ouvido António Damásio dizer isto. “Isto faz parte das
muitas coisas que mudaram com este livro. O primado da biologia. E o livro começa com a
bactéria e com o que a bactéria faz e que nós também fazemos mas de modo diferente”. E
os vírus também? “Não, os vírus são diferentes, estão mais próximos dos ácidos
nucleicos. Não são uma verdadeira célula, não são autónomos. O vírus depende de ti,
depende de outras células vivas para sobreviver. As bactérias são organismos completos,
só lhe falta uma mente. Porque não têm cérebro”.
Será que não têm uma mente apesar de serem unicelulares? Sendo tão inteligentes.
“Exato, algumas pessoas dão esse salto em frente e dizem, quem sabe? São demasiado
espertas para não terem mente. Mas posso dizer que não têm, embora possamos dizer
que não sabemos. Mas não têm. Não têm. E no livro explico as razões pelas quais não
têm. Não precisam de uma mente para fazer o que fazem. E para ter uma mente é preciso
a capacidade de fabricar imagens, esta é a parte intermédia do livro, e as bactérias não
têm essa capacidade.”
“Mais do que isso, são incapazes de construir uma imagem porque não têm um sistema
nervoso para isso. Só podes ter numa imagem de mim se tiveres um sistema nervoso que
possa fazer um mapa de mim e apanhar a minha configuração. Isto é uma coisa que
podemos ver no cérebro, não apenas dos humanos mas de outros animais. Até nos ratos.
Os ratos têm hipocampo, a capacidade de fazer imagens. E não são só os mamíferos.
Existe em certos invertebrados, ou insetos sociais, que têm cérebros, mentes, imagens e
até um bocadinho de cultura. Vê as abelhas. Ou os lagartos, que são muito espertos.
Bichos encantadores. Mas a hidra não pode fabricar imagens. Não passa de um estômago
flutuante. No livro, faço um gracejo, o primeiro cérebro não foi tanto o chamado cérebro
límbico, o primeiro cérebro foi no intestino.”
“As bactérias têm memória. Os insetos sociais, abelhas ou formigas, têm uma cultura,
conseguem construir colónias que exigem uma arquitetura com sistemas de ventilação e
transporte, de limpeza, salas próprias para a rainha, têm uma organização social em
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castas com distribuição de tarefas, como ir buscar comida e trazê-la para a colmeia ou o
ninho, podem reconhecer a importância da rainha, podem mudar a colónia se sobrevier
um problema com a sua estrutura física, enviando batedores, e por sistemas de
comunicação através das asas podem descrever a outras abelhas o sítio para onde devem
mudar-se. A seguir, mandam vir uma companhia de carregadores e mudam-se todas ao
mesmo tempo. Isto é organização social e cultural e não no aspeto mais simples.
Escusamos de ter peneiras humanas, não somos os únicos a ter uma cultura.”
“Exatamente! É esse o ponto. Onde é que esses insetos aprenderam essas rotinas? Não
foram para um caro colégio privado. Tudo aquilo foi transmitido através dos genes. Os
genes criaram as estruturas nos sistemas nervosos nos cérebros que as autorizam a fazer
isto. É muito belo, muito complexo e tem o arquétipo das culturas. O que lhes falta? As
abelhas não se interrogam sobre a mortalidade, sobre a doença, não têm preocupações
metafísicas. E não fazem nada que não lhes seja transmitido pelos genes. Toda a vida
delas, incluindo a cultural, está programada. O que é diferente em nós é que temos uma
consciência mais desenvolvida e temos uma capacidade de intelecto e de afeto mais
desenvolvida, passando a ter a possibilidade de fazer interrogações. E de prestar atenção
a um problema. De diagnosticar e resolver um problema. Um exemplo que dou logo ao
princípio, no capítulo ‘Inícios’, a medicina é o arquétipo do desenvolvimento cultural. Claro
que nenhum animal até aos humanos tem medicina. É um desenvolvimento humano, uma
mistura de tecnologia e ciência, e existe porque há pessoas que estão doentes e quando
estão doentes têm um sentimento de doença. Dores, uma queixa. Os primeiros doentes
eram assim, como são agora, e os primeiros médicos foram pessoas que tiveram
compaixão pelo doente. E empatia. E procuraram resolver o problema. Este é para mim o
modelo do desenvolvimento cultural. Acontece o mesmo com as artes, com a música, com
a religião. Donde vieram os Dez Mandamentos? Do mesmo lugar. Donde vieram as
religiões que se desenvolvem nos 500 anos antes de Cristo? Todas as religiões
monoteístas. E antes disso com o confucionismo na mesma época. Ou o budismo. Essas
religiões desenvolveram-se a partir do confronto com o sofrimento humano. E da
necessidade de reduzir esse sofrimento criando regras e leis de comportamento em
sociedade. Quando Moisés vem da montanha, com os Dez Mandamentos, não foi Deus
Nosso Senhor que lhos deu, nasceram da necessidade de obter uma coleção de regras de
vida para o grupo, como não matar, não atraiçoar, etc.”
Onde se instala a diferenciação dos monoteísmos das outras religiões? Outras religiões,
incluindo as animistas, faziam sacrifícios humanos e não possuíam grande compaixão ou
empatia. Os deuses gregos ou maias eram cruéis e caprichosamente exigentes. Os judeus
e os cristãos inventaram um deus novo.
O corpo tende para o seu bem-estar. E como deriva isto para os outros sistemas sociais?
“Deriva, por exemplo, para a economia, para o lucro, que é uma manifestação intelectual e
social do desejo de ter dinheiro. Que é uma maneira de ter poder. E assim comprar o bem-
estar. O que eu quero com o livro, e esta é a ideia principal, é que as pessoas parem de
dizer que as culturas são criadas por intelecto. São criadas por intelecto mas graças à
motivação que lhes é dada pela vida dos sentimentos. Poderia dizer-se que isto é tão
lógico que seria estúpido contra-argumentar. Mas há aqui uma originalidade na vida dos
sentimentos, foram eles que serviram de monitores e determinaram se uma invenção
cultural funciona ou não. Vou outra vez ao exemplo da medicina. Tens uma dor e o médico
dá-te um medicamento para a dor. Como é que o médico e tu sabem se a intervenção
funcionou? Através de um sentimento, o de não ter dor. Ou seja, bem-estar. Não é só a
motivação, é a motivação e o controlo da execução. E existe ainda a constante negociação
que os afetos introduzem em qualquer atividade social”.
António Damásio foi convidado a ir a Dharamsala ter com o Dalai Lama, com outros
neurocientistas. As neurociências monitorizaram a mente budista em meditação. Como se
explica, a esta luz, o controlo da dor pelos mestres tibetanos?
“A mente não controla a dor, a mente desvia a dor, desvia o sítio da dor. No budismo, a
mente cria uma concentração muito grande e cria uma técnica que permite não prestar
atenção ao que se está a passar na mente. O Buda é um enorme aliado meu. Aquilo que o
Buda diz, o príncipe Siddhartha Gautama, é que não existe dúvida sobre o facto de a vida
ser sofrimento e que não existe solução para esse sofrimento. O melhor que temos a fazer
é desviar a atenção. Se conseguires concentrar-te ao ponto de criar uma insulação não
sofres com o grande sofrimento mas tão pouco tens o grande prazer. Buda percebeu muito
bem o problema. O “NY Times” pediu-me para fazer uma recensão a um livro que saiu
com grande êxito chamado “Why Buddhism is True”. Um best-seller. De um jornalista
budista, Robert Wright. Primeiro resisti e depois acedi, e acedi porque quis usar um
exemplo. Não gostei do livro, fui respeitosamente crítico, de modo simpático. Claro que há
coisas, no livro e no budismo, que aprecio.”
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Como é possível, simplesmente, desviar a atenção? Se um filho, ou uma pessoa de que
gosto, ou eu mesma, tiver uma doença terminal, estiver em sofrimento, como vou desviar a
atenção disto concentrando-me? Do ponto de vista do corpo, e não do Buda, como é isto
possível? Isto implica uma transformação biológica?
“Não, esse é o grande perigo. Os robôs por si não vão poder fazer nada contra nós. Mas
vão poder ser programados por pessoas como o Vladimir Putin ou o pateta da Coreia do
Norte para fazer as coisas mais horríveis. E isso vai acontecer.”
“Era completamente impossível. Mas tudo o que se passa com a IA tem duas raízes. Uma
é Alan Turing e outra um grupo de pessoas no MIT que se convenceram de que seria
possível fabricar inteligência humana com inteligência artificial. Nos anos 40. E esse
projeto falhou redondamente tendo sempre parecido que não ia falhar porque todo o
desenvolvimento tem sido positivo em matéria de sucesso da IA. O sucesso dos robôs e o
dinheiro gerado, porque tudo isto tem gerado fortunas incalculáveis. É extraordinariamente
difícil a essas pessoas aceitarem que o projeto está fundamentalmente errado. Fazer com
que criaturas tenham comportamentos é uma coisa, fazer com que criaturas tenham
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sentimentos é outra. É tão impossível nos robôs como é impossível nas bactérias. Apesar
de podermos fazer com que as bactérias tenham emoções. Falta-lhes a maquinaria
necessária!”
Hanna interrompe para dizer que podem ter a maquinaria mas não têm a substância. A
humana substância. É por isto que António diz que ouviu falar do sucesso de “Westworld”
mas não quer ver a série. Acha tudo o que está por trás do argumento horrível. Hanna diz
que mesmo que assinalemos sentimentos aos robôs, e chamemos a programações
sentimentos, não são sentimentos. O que nos consola na vitória de “Deep Blue” sobre
Kasparov é que “Deep Blue” nunca sentirá a euforia da vitória. A alegria de vencer o
desafio. E sem a alegria o exercício é inútil.
“Se não tiveres uma vida, não tens a alegria de estar viva.”
E onde pode entrar aqui o argumento de sermos diferentes porque somos criados por
desígnio de uma inteligência superior? Se não lhe quisermos chamar Deus. O argumento
não fica invalidado. A gente de Silicon Valley é muito mais perigosa do que os religiosos,
porque lhes falta o argumento humano, e porque têm uma fé inabalável não em Deus, um
desconhecido sem existência provada, mas na máquina. E assim se acham os donos da
razão. Uma nova espécie de fanatismo científico e tecnológico.
“Podes usar esse argumento, ir contra a evolução, mas felizmente não sou religioso.
Concordo absolutamente que argumentar contra Silicon Valley é muito mais difícil do que
argumentar com a religião. São fanáticos. São fanáticos poderosos que querem comprar a
imortalidade.”
António Damásio conhece bem o lunático contratado pela Google a peso de ouro que toma
dezenas de pílulas por dia para nunca morrer. Ray Kurzweil. O profeta da dieta imortal. “O
tipo é aterrador, profundamente aterrador. Medonho. E ganha muito com estas teorias
absurdas. Sabes o que ele fez ao pai, quando morreu? Criogenia. Para o poder reviver.”
“Acabas de dar a resposta à pergunta. A própria vida quer perpetuidade. É assim que a
vida funciona. Os organismos unicelulares começaram em continuidade há 3,9 mil milhões
de anos, ao dividirem-se. Depois, num determinado ponto, os poder combinatório dos
ácidos nucleicos e a capacidade de cópia permitiu a construção dos genes. Assim que
vieram os genes, as células começaram a construir a geração seguinte. E a geração
seguinte é a manutenção da vida. A perpetuidade. A ideia da eternidade está implícita na
vida. A homeoestasia não é uma tentativa de equilíbrio. O equilíbrio, termodinamicamente,
é a morte. A homeoestasia é a escolha automática que a célula faz do estado estável que é
mais conveniente para o momento e para continuar a ficar com energia para o seguimento
da vida. Não é estabilidade, pelo contrário, é uma instabilidade. O steady state que é
escolhido é o estado que vai ser possível à célula ter a energia suficiente para manter o
seu interior e ter um surplus de energia. Um extra que vai ser utilizado se a célula entrar
em stresse. O que os nossos pais nos costumavam dizer, não seja tão magro porque se
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for magro tem uma doença e morre. É preciso o surplus. E tudo isso existia há
praticamente quatro mil milhões de anos. E tem continuado. A ideia de continuidade, de
imortalidade, não é estúpida, é uma ideia não razoável no mundo que conhecemos. Ora
esta gente que tem de si uma ideia grandiosa, verdadeiros deuses tecnológicos, querem
conquistar a imortalidade.”
E nesses mil milhões de anos não subsiste um exemplo de qualquer coisa que se tenha
mantido estática. Tudo acusa a degradação. Tudo morre.
“Os donos da Google são algumas das pessoas mais ricas do mundo e estão convencidas
de que vão contrariar isso porque são de uma ambição desmedida que raia a loucura.
Silicon Valley começa em San Diego e acaba em Seattle. Larry Ellison, Jeff Zuckerberg,
Elon Musk, e os outros, acreditam nestas fantasias.”
“Sim, mas é louco. Essa gente é que tem, verdadeiramente, o que eu chamo uma
inteligência artificial. Uma inteligência de intelecto com pouco sentimento.”
Uma acusação que não pode ser dirigida aos Damásios. Todas as decisões que tomaram,
incluindo a decisão de sair de Portugal e abandonar a investigação e a vida académica em
Portugal, tomaram-nas pesando conscientemente a sua vida e o que dela queriam retirar.
“Foi a melhor decisão que tomámos”. Hoje, estão no ponto ótimo e têm, de facto, uma vida
ideal. O Dornsife Brain Institute é o sonho de qualquer cientista, com a sua arquitetura
orgânica, o bom gosto, a aliança entre o equipamento científico e a preocupação cultural.
O auditório foi pensado e construído por um dos peritos mundiais em acústica e acolhe
concertos e amigos músicos como Barenboim e Yo-Yo Ma, com quem colaboram.
Barenboim estará presente no lançamento de “A Estranha Ordem das Coisas” em Berlim,
uns dias a seguir ao de Lisboa. A vida pessoal do casal, que mantêm longe dos holofotes,
é enriquecida por viagens e um consumo desmesurado de cultura. Foi na rua de acesso
ao Musée d’Orsay que nos conhecemos, há muitos anos. Sabendo uns dos outros, nunca
nos tínhamos visto, apesar de António e Hanna terem acabado de ganhar o Prémio
Pessoa. Eu caminhava pela Rue Solférino quando os vejo sair de um café de esquina ao
meu encontro. Eles vinham do museu e eu ia para o museu. Foi o princípio de uma bela
amizade. A exuberância de António é completada, sem nunca ser contrariada, pela
tranquilidade silenciosa de Hanna, que foge das atenções e tem horror a luzes e multidões.
A página da Wikipédia dela em português foi escrita por um brasileiro e está errada e
desatualizada. A página em inglês tem as informações corretas. Não que isso lhe importe,
não quer ficar na fotografia. Na casa, um retrato de Hanna quando jovem, fotografia feita
pelo marido, mostra uma mulher bonita com uma determinação de aço que se reflete na
voz pausada e no olhar. A vida secreta deve permanecer secreta mas os dois tomaram a
decisão de não terem filhos. Ou teriam filhos ou teriam a carreira académica que queriam.
E sabiam, conscientemente, que não poderiam ser os cientistas que são e serem bons
pais. Não é assunto de que falemos. É, como a decisão de deixar Portugal, um assunto
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arrumado. Hanna diz que não sacrificaram nada, porque a vida que têm é muito melhor do
que a que acham que poderiam ter tido. “No fim, tomámos a decisão certa.” Pouca gente
pode dizer o mesmo.
“Nós queríamos fazer o Brain Institute num sítio que funcionasse. Podíamos tê-lo feito no
Iowa mas não seria a mesma coisa. Ou em Nova Iorque, e teria sido um erro colossal. Em
Nova Iorque, passou o momento de originalidade. É uma cultura europeia adaptada aos
Estados Unidos. Esteve sempre dependente das ideias da Europa, do Louvre, do British
Museum, das instituições culturais que queriam imitar. Na Califórnia, estão-se nas tintas
para a Europa. Está no apogeu da sua civilização e começa a prestar atenção à Europa,
mas faz as coisas à sua maneira. É por isso que Silicon Valley está na Califórnia. A
Google.”
No rescaldo da guerra na Europa, as cabeças foram para a Califórnia, que tem um clima
mais amável do que a Costa Leste, Boston ou Nova Iorque. Era, homeoestaticamente,
mais interessante.
E a Europa? “Onde? Mesmo com a admiração que tenho pela Alemanha, não podia ser.”
Hanna fala na abertura de ideias, que na Europa é diferente. “Na América, se funciona,
ótimo, se não funciona, extingue-se. Tem de funcionar. Somos obrigados a ser bem-
sucedidos.” António diz que a resposta de Hanna é a mais inteligente. “Não sacrificámos
nada porque tivemos uma enorme recompensa. Embora, quando fizemos o sacrifício, não
sabermos se íamos ter a recompensa. Por isso, de certo modo, foi sacrifício. Quando se
trabalha com entusiasmo e agrado não se sente o sacrifício.”
Nunca tiveram um momento de remorso. Nem no Iowa, onde ficaram muito tempo, e que
tem uma grande universidade. Apesar de terem tido convites para Boston e Nova Iorque
escolheram o Midwest.
“A ida para Iowa, ao princípio, foi um sacrifício. Percebemos que seria o melhor lugar para
o nosso trabalho. Mesmo os nossos amigos americanos não perceberam a escolha. Hoje,
está tudo tão polarizado que as grandes universidades ou estão na Costa Oeste ou na
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Costa Leste. O interior da América está a esvaziar-se. Trump conseguiu o voto das
pessoas abandonadas. Exaustas. Quando estivemos no Iowa era maravilhoso.
Humanamente maravilhoso.
Não estará a falha primordial na natureza humana? A falácia não faz parte de nós?
“Contradiz e não contradiz. Se tudo for harmonizado à volta, é possível manter o bem-
estar. Trago para o livro a correspondência de Freud com Einstein. Em 1931, Freud deu a
Einstein conselhos sobre como evitar a catástrofe nazi. E Freud respondeu que nada havia
a fazer. Era impossível evitá-la, evitar a destruição. E neste momento da história do mundo
existe essa tensão. Podemos ter esperança e continuar a tentar”.
Não será a rutura um modo de contrariar a estranha ideia da perpetuidade? De trazer a
normalidade da morte para o processo? Nada permanece assim sempre. “Gostaria que
não fosse necessária, mas está nas cartas da vida. Nas razões biológicas do nosso
falhanço. Vais gostar do capítulo 12.”
“O lançamento de “A Estranha Ordem das Coisas” terá lugar terça-feira, pelas 10h30, na
Escola Secundária António Damásio, nos Olivais. A obra será apresentada pelo autor
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