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COMUN\CAÇÃO EOEM.OCRAC\A
Problemas & Perspectivas
~
PAULUS
Copyright © Paulus 2008
Direção editorial
Claudiano Avelino dos Santos
Coordenação editorial
Valdir José de Castro
Imagem da capa
sxc
Editoração
PAULUS
Impressão e acabamento
PAULUS
Gomes. Wilson
Comunicação e democracia: Problemas & perspectiva/ Wilson Gomes, Rousi-
ley C. M. Maia - São Paulo: Paulus, 2008 . - (Coleção Comunicação)
Bibliografia.
ISBN 978-85-349-2797-0
(© PAULUS - 2008
Rua Francisco Cruz, 229
0)4117-091 - São Paulo (Brasil)
lTel.: (11) 5087-3700 - Fax: (11) 5579-3627
VIVVVW.paulus.com.br
e,ditorial@paulus.com .br
1SiBN 978-85-349-2797-0
11
tlt ... . . .. . . . . . . . . . . . . . . .. . .. . .. . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . .. . . . . . .. . ... . . . . . . .. .. . . . . . . . . . . .. .
29
Jlll 1 /\ 1•01ITICA···············································································
CQJllUíl§ção
COMUNICAÇAo E DEMOCRACIA
6
O requisito da discussão .................................................................................. 57
Mudança estrutural como linha de defesa..... ................................................... 61
Culpa da comunicação ou da representação? ................................................... 63
3. DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
Wilson Gomes ........... .......................................... .... ... ........................................... 117
1. CARACTERISTICAS DA ESFERA PÚBLICA ........ ............. ..................................... 117
2. POSSIBILIDADES ARGUMENTATIVAS DA NOVA ESFERA PÚBLICA ..................... 121
O ceticismo quanto à argumentação ................................................................ 122
Pode-se prescindir da argumentação numa democracia? .................................. 126
Visibilidade versus argumentação .......... ........................................................... 129
Possibilidades argumentativas da esfera pública ............................................... 131
SUMÁRIO
7
3. A PUBLICIDADE SOCIAL E 05 DOIS SENTIDOS
DA EXPRESSÃO "ESFERA PÚBLICA" .............................................. .. ....... ... .. ..... 133
rARTE li
DELIBERAÇÃO PÚBLICA E CAPITAL SOCIAL. ........................ ....................... 163
... comun§ção
COMUNICAÇAo E DEMOCRACIA
8
6. CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA E TELEVISÃO
EM ROBERT PUTNAM
Wilson Gomes ....................................................................................................... 221
1. O CONCEITO DE CAPITAL SOCIAL .................................................................... 222
'l,
2. CAPITAL SOCIAL E ENGAJAMENTO CfVICO ...................................................... 226
3. O DECLÍNIO DO CAPITAL SOCIAL ...................................................... ............... 231
4. A DEMOCRACIA NUM MEIO AMBIENTE SOCIAL POBRE EM CAPITAL SOCIAL ... 239
5. TOCQUEVILLE NÃO VIA TV: A TELEVISÃO CONTRA A DEMOCRACIA ................ 245
6. CONTRA PUTNAM ........................................................................................... 254
Michael Schudson: e se a vida cívica não tiver morrido? ......... .......................... 255
Pippa Norris: O que é mesmo televisão? ...................................................... ..... 259
Eric Uslaner: a hipótese do efeito negativo zero da televisão ......... ................... 260
Dhavan Shah: contra o efeito unidirecionalmente negativo ............................... 263
7. A POLfTICA EA DEMOCRACIA NUM MUNDO COM TELEVISÃO ...................... 265
PARTE Ili
INTERNET E DEMOCRACIA .................................... .... ..... ..... ... .. ... .......... ... ...... .. 275
9
3. O QUE A INTERNET PODE FAZER PELA PARTICIPAÇÃO POLfTICA? .................... 302
4. A PERSPECTIVA DOS CRfTICOS ........ ....... ....................................... .................. 313
5. PARA CONCLUIR ................................................ .................. ........................... 324
:.. comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
12
aos estudos conhecidos como "mídia e eleições" (análise de campa-
nhas políticas e da cobertura jornalística dos episódios eleitorais,
estudo dos efeitos da comunicação em eleições, estudo da polfrica
de imagem e da disputa pela opinião pública nas competições elei-
torais) e à teorização sobre a interface entre comunicação e política.
Ultimamente, as questões relacionadas às ligações entre política
e novos meios de comunicação, particularmente a internet, vêm
atraindo muitos pesquisadores, sobretudo os mais jovens. Salvo
poucas exceções, problemas atinentes à comunicação e à democra-
cia nunca receberam a devida atenção.
Não que tenha existido interesse em questões relacionadas à
teoria democrática e à sua incidência sobre os fenômenos da comu-
nicação ou da comunicação e da política. Afinal, a especialidade
da comunicação e da política no Brasil nasce justamente no perí-
odo da redemocratização do país, e os seus pesquisadores sempre
acompanharam com grande atenção a revalorização da opinião
pública e da pluralidade da expressão política nos meios de massa,
bem como o papel de vigilância sobre o sistema político exercido
pelas indústrias da informação, para verificar a sua incidência
numa democracia que se restaurava. É que as questões especifica-
mente relacionadas à democracia pareciam "embutidas" naquelas
atinentes à interface entre comunicação e política, haja vista que
a política considerada era, ao fim e ao cabo, aquela situada em
ambiente democrático.
Outra limitação no tratamento habitual do tema "comunicação
e democracia" consiste, freqüentemente, numa abordagem pouco
cuidadosa no que se refere ao segundo termo da relação. Todo
mundo sabe o que é democracia, ainda mais depois que o século
XX expandiu as práticas e os imaginários dos sistemas democráticos
ao seu limite histórico máximo. Mas o inegável consensus gentium
obtido é satisfatório apenas se ficarmos no nível das práticas políti-
cas, às quais ele fornece um ingrediente indispensável para adesão
dos espíritos e, portanto, para ao menos dificultar a tentação das
alternativas autocráticas. No âmbito da pesquisa, contudo, ape-
nas ultrapassamos a soleira do que é básico, o consenso explode.
PREFAC IO
13
11,~toricamente, há praticamente um modelo ou, no mm1mo,
11111;1 versão da democracia para cada filosofia política digna deste
11tJme, pelo menos desde a Idade Moderna. Ainda mais nas últimas
de ·adas, quando a metafísica dominante das teorias econômicas
,l.1 Jemocracia foi desafiada, externamente, pela assim chamada
,/miocracia participativa, e, internamente, pelo paradigma liberal-
plmalista ou neopluralismo, por exemplo. O diagnóstico da então
cl1·!.ignada "crise da democracia liberal", com os típicos movimentos
q11c o acompanham - o inventário de perdas e a proposição de
11nvas arquiteturas institucionais - gerou uma enorme pluralidade
ele linhas de força em teoria democrática. Isso implicou um novo
1t•,1 linhamento no nível das macroteorias ou modelos (tradição
!ih 'ral, tradição republicana e, ultimamente, o modelo de demo-
' 1.1 ia deliberativa, para ficarmos no padrão de contraposições mais
l1eqüentado), assim como na geração de versões, releituras (neoplu-
1.1li mo, neomarxismo, neoliberalismo, neo-elitismo) e alternativas
(ex. John Rawls, Chamai Mouffe e Jürgen Habermas) referidas
h macroteorias ou na produção de confluências entre elas (Hirst,
Jt)90; Skocpol, 1985; Gray, 1995; Held, 1987; Mouffe, 2000;
ll:twls, 1993; Habermas, 1992).
Cada uma dessas linhas de força traz consigo o seu específico
p,ttrimônio de questões e de pressupostos e a sua própria agenda. A
.,bordagem da tradição liberal, por exemplo, mantém, como centro
das suas preocupações, a autonomia privada dos cidadãos, de forma
'l"e a sua agenda inclui a proposta, o reforço e a defesa de uma
.1rquitetura institucional destinada a assegurar as liberdades iguali-
1.frias dos cidadãos privados, materializada na proteção dos direitos
do cidadãos, na igualdade de acesso à justiça, nos meios normativos
que protegem os indivíduos da tirania e do autoritarismo do Estado
nc. Nesse horizonte, os problemas concernentes ao tema "comuni-
l :1ção e democracià' dizem, sobretudo, respeito ao papel dos meios
14
veis" e contra a tendência de uso patrimonialista do Estado, pelo .11
constrangimento exercido sobre os poderes públicos para forçá-los 111
15
11•, ; comunidade política (no nível micro, da comunidade local,
111 macro, do Estado), politicamente ativos, envolvidos em redes
1, interações sociais que findam por formar linhas de interlocução
/ 111 1 defesa em face das corporações ou da autoridade, dotados de
d,ilidades e de competências cívicas (atenção com o bem comum
11 , ·ocupação com a justiça; tolerância com o ponto de vista dos
111 11 o ; capacidade de argumentação em coletividades; respeito às
cemuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
16
rais e republicanos, cuja contraposição havia dominado o cenário
da teoria democrática nos vinte anos precedentes. Nos primeiros
anos do século XXI, já é reconhecido como a principal novidade
no contexto das teorias da democracia, sendo então submetido a
uma enorme carga de críticas, revisões, reforços e suplementações.
Tem fortes inspirações republicanas, a que se soma uma ancoragem
fundamental em algumas intenções de pensamento kantianas (prin-
cipalmente a idéia de razão pública) e iluministas, mas pretende
"corrigir" o incorrigível idealismo do republicanismo com aquilo
que, para uns, é uma saudável dose de realismo e, para outros, uma
resignação à democracia liberal.
Para o modelo de democracia discursiva - ou, para empregar-
mos aquela que vem se tornando a formulação-padrãó: "democracia
deliberativa" - o centro de atenção democrática deve ser a existência
de uma arena discursiva que funciona como esfera intermediária
entre o Estado e a sociedade. Essa arena há de existir, porque é
a concretização do pressuposto que está no coração do delibera-
cionismo, a saber, de que os cidadãos devem ter a capacidade e a
oportunidade de deliberar racional e publicamente sobre as decisões
coletivas que os afetam e importam. Em lugar da acomodação entre
interesses divergentes, mediante negociação e compromisso, os deli-
beracionistas acreditam que o meio fundamental para a produção
de decisões políticas legítimas é o debate razoável. Em lugar de uma
produção exclusivamente privada de decisões, como nas democra-
cias eleitorais, a práxis coletiva da troca pública de argumentos.
A rigor, a idéia de que deliberação pública deve ser o procedi-
mento básico para a formação da opinião e da vontade política é um
agregador suficientemente forte para permitir o reconhecimento da
democracia deliberativa como corrente importante da democracia
liberal, mas não o bastante para impedir uma diversidade inter-
na de tendências e auto-interpretações. De forma que podemos
identificar uma tendência ainda ancorada no macromodelo liberal
Oohn Rawls, Amy Gutmann, Dennis Thompson, por exemplo),
que acredita poder reformar certos aspectos do paradigma liberal
mediante a adoção da perspectiva deliberacionista. Outra tendência
PREFACIO
17
( Jürgen Habermas, James Bohman, John Dryzek, Seyla Benhabib)
pqr sua vez, apóia-se, em diferentes graus de distanciamento e de
, ngajamento retórico, na plataforma da democracia radical, indo
buscar numa perspectiva inspirada em Marx e na Escola de Frank-
li1rt o que os outros encontram em Locke e em seus seguidores.
E mesmo no interior deste último grupo, enquanto a escola de
l labermas tem um ponto de partida republicano e pressupõe e assi-
mila um conjunto de preocupações liberais ao seu modelo, outros
( John Dryzek, Nancy Fraser) têm fortes intenções polêmicas em
Llce da democracia liberal (Silva, 2004, p. 3).
A prescindir das suas clivagens internas, o endereço delibera-
i ionista em teoria democrática considera que a legitimidade de
18
política. Nesse quadro, o papel básico da comunicação de massa
consiste em (a) integrar-se, favoravelmente, na constituição de uma
esfera pública política forte, extensa, efetiva, definitivamente arrai-
gada na esfera civil, (b) abrir brechas na guarda do sistema político
que permitam nela a entrada da vontade e da opinião públicas. Em
suma, os meios de massa têm aqui uma dupla tarefa e uma dupla
agenda, (1) como conjunto de oportunidades para a existência de
uma esfera pública qualificada (constituição da esfera pública) e (2)
como conjunto de instrumentos para que a esfera pública se faça
valer nas esferas da decisão política (governo da opinião pública)
(Habermas, 2006, p. 415-6).
Afanção de constituição de esfera pública cumpre-se de muitos
modos. O modelo instrumental básico foi empregado, por exemplo,
às origens das revoluções burguesas, na forma de uma competição
argumentativa entre jornais. Naquele caso, cada jornal representava
uma posição numa discussão pública e o debate que se realizava por
esse meio constituía uma arena discursiva com grande visibilidade
pública. O modelo que pode ser empregado hoje ainda está em dis-
cussão e será em grande parte objeto deste livro. De qualquer modo,
espera-se que a comunicação de massa contemporânea alargue a
esfera pública, intensifique a visibilidade ao mesmo tempo em que
preserve níveis pregnantes de debate público, proporcione informa-
ção política qualificada para a comunicação pública, colabore na
mobilização ou na formatação de questões sociais relevantes no e
para o debate público, possibilite que tais questões sejam processa-
das, mediante argumentos apropriados, na forma de discussões sob
o olhar público, contribua para gerar posições e opiniões políticas
públicas racionalmente motivadas. Afanção de governo da opinião
pública (gouvernment by public opinion), menos caracterizada nessa
literatura, parece poder ser exercida pela influência sobre as agendas
do sistema político e, conseqüentemente, por meio da influência na
produção de políticas e normas em conformidade com a agenda da
discussão pública.
Nessa perspectiva, os problemas relacionados ao tema "comu-
nicação e democracia" estão todos ligados a esses dois aspectos. A
PREFÁCIO
19
111111111i ação pode falhar na sua contribuição para a constituição
I, 1111111 esfera pública atuante de muitos modos: uns reais e outros
,1,, 111 rentes de defeitos de interpretação dos fatos. Tanto assim,
•pir w formou um corpo de literatura dedicada a resenhar o modo
111 • 1<'11 i o com que os meios de massa teriam falhado com a esfera
1111ltlica; um corpo de literatura e de problemas que será objeto
, ·J'l"I fí1co de alguns capítulos deste livro. Ademais, a literatura
111·d:i.lizada registra muitas interpretações controversas sobre a
11 1111reza e a qualidade da contribuição dos meios de massa para
~comun~ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
20
comunicação de massa na configuração das arenas discursivas con-
temporâneas. A "agenda dois" de pesquisa, que se ocuparia com a
efetividade da deliberação pública no exercício de influência sobre
o centro do sistema político, é basicamente um projeto, embora
tenha recebido recentemente um conjunto de sugestões fecundas
com o interesse demonstrado pela democracia deliberativa pelos
estudos dos media effect, principalmente pelas pesquisas de agenda
setting e ftaming (Habermas, 2006).
***
Como vemos, uma discussão conseqüente sobre os problemas
oriundos da interface entre comunicação e democracia não pode
desconhecer o estado da discussão sobre teoria democrática. Este
livro lida com alguns problemas que emergem da interface entre
comunicação e democracia, principalmente com aqueles que emer-
gem de perspectivas republicana e deliberacionista, que constituem
a inflexão mais à esquerda na tríade dos principais paradigmas
contemporâneos de teoria democrática. São típicos da tradição
republicana, por exemplo, os problemas relacionados à participação
política, às redes cívicas e ao capital social, de que tratamos, respec-
tivamente nos capítulos 8, 9 e 6 deste livro.
A maior parte do livro se ocupa, entretanto, de questões de
comunicação e democracia decorrentes da abordagem delibera-
cionista. Este é quase certamente o primeiro livro brasileiro, e um
dos poucos na literatura internacional, a enfrentar diretamente a
"agenda um" da pesquisa sobre comunicação e democracia delibe-
rativa. As pesquisas aqui reunidas são o resultado de praticamente
uma década de atenção aos fenômenos relacionados às possibili-
dades e aos limites da idéia de esfera pública política, às relações
inevitáveis que o modo de vida contemporâneo estabelece entre
as arenas discursivas, a comunicação de massa e os novos meios de
comunicação, e à natureza e à propriedades da deliberação pública
mediada pela comunicação. Problemas típicos da "agenda um",
na perspectiva deliberacionista, são, por exemplo, o problema da
existência, possibilidades e alcance da esfera pública, a questão da
PREFÁCIO
21
11.1111reza da esfera pública mediada, as indagações acerca do engate
, 111 re a deliberação pública e a visibilidade pública dependente dos
~ comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
22
O propomo principal é o de examinar as chances reais da esfera
pública política, garantia da democracia moderna, em face da cena
política contemporânea, quase integralmente midiática e, portanto,
organizada segundo as lógicas próprias da visibilidade controlada
pelos meios de massa e dependente do seu sistema de funciona-
mento. Procura-se, aqui, sustentar a possibilidade de convivência
entre uma esfera argumentativa coerente, razoável e aberta, e uma
visibilidade pública política controlada pelas indústrias do entrete-
nimento e da informação.
O quarto capítulo explora distintos graus de autonomia dos
profissionais da comunicação para configurar a visibilidade midiáti-
ca e promover a mediação de debates públicos. Parte-se do suposto
que os agentes midiáticos podem tanto mobilizar questões políticas
relevantes, as informações requeridas e as contribuições apropriadas
para um debate público eficaz, quanto podem ignorar questões
importantes, banalizar ou distorcer informações, deslegitimar a voz
de certos atores, enquanto advogam em benefício de outros. Argu-
menta-se que as teorias do pluralismo ou do neopluralismo demo-
crático são relevantes para tratar a complexa relação que os meios de
massa estabelecem com o ambiente político, mas que elas são insu-
ficientes para lidar com as assimetrias de recursos, oportunidades e
competências de diferentes atores para ingressar no ambiente midiá-
tico e para engajar-se na comunicação pública. Sustenta-se que as
teorias deliberacionistas, ao enfatizar os efeitos da troca pública de
razões, abrem um novo quadro para analisar as condições correntes
de desigualdades e o papel que os meios de massa desempenham na
promoção da deliberação pública nas sociedades complexas.
O quinto capítulo tem o propósito de explicitar as relações que
os meios de massa estabelecem com diferentes arenas discursivas
do chamado sistema deliberativo, com particular atenção à esfera
cívica. Busca-se apontar não apenas a conexão entre as discussões
em ambientes privados e públicos, mas também que os efeitos
decorrentes daí são vitais à democracia. Exploram-se, por um lado,
os usos que os cidadãos fazem dos produtos midiáticos em suas
conversações nos domínios da vida cotidiana, no que diz respeito à
PREFÁCIO
23
l1111111 d:ição ou à reconceitualização das questões políticas; à auto-
J'H'\\.ÍO e ao compartilhamento de testemunhos e de experiências.
romuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
24
tal potencial à revitalização do debate democrático. Parte-se da
premissa de que a topografia da rede e o procedimento da interação
comunicativa são elementos, simultaneamente, autônomos na sua
origem, mas interdependentes no efeito que provocam. Defende-se,
assim, que, a fim de apreciar os efeitos democráticos, não se pode
perder de vista as regras da deliberação, isto é, as regras de inclusi-
vidade, de racionalidade, de não-coerção e de reciprocidade entre
os participantes.
O oitavo capírulo trata do tema da participação política na lite-
ratura recente sobre os efeitos políticos da internet. O seu propósito
é examinar a tese segundo a qual a internet constitui um ambiente
de comunicação que tenderia a transformar o padrão atual de baixa
participação política por parte da esfera civil nas democracias con-
temporâneas. Examina os argumentos correntes sobre uma reitera-
da crise de participação civil nos negócios públicos, acompanhando
a hipótese, também corrente, de que os meios de comunicação
de massa falharam na sua função de incrementá-la. Em seguida,
resenha os argumentos que ressaltam as possibilidades e as opor-
tunidades proporcionadas pela internet para resolver o problema
do déficit de participação civil nos assuntos políticos, para então,
por fim, mapear os argumentos em contrário, da literatura mais
recente, segundo os quais também a internet vem fracassando no
seu papel de indutor e promotor de participação política.
O capírulo nove explora como os atores coletivos críticos da
sociedade civil se valem dos recursos da internet para alcançar
propósitos "potencialmente" democráticos. O interesse aqui é o de
distinguir entre diferentes formas de organização, metas e desenhos
institucionais de associações cívicas e usos democráticos da inter-
net. Discute-se porque as associações voluntárias e os movimentos
sociais podem ser entendidos como mais aptos que os cidadãos
comuns, vistos de maneira isolada, para renovar os impulsos demo-
cráticos, nos âmbitos do desenvolvimento dos indivíduos, da esfera
pública e da política institucional formal. A partir dessa perspectiva,
busca-se rever casos empíricos em que as organizações cívicas fazem
usos diversos da internet, a fim de gerar efeitos democráticos especí-
PREFÁCIO
25
l II os, tais como a interpretação de interesses e a construção de iden-
11d.1de coletiva; a constituição de esfera pública; o desenvolvimento
,1, ,itivismo político, embates institucionais e partilha de poder; o
, ·,1 ,1bclecimento de processos de prestação de contas.
***
C capítulos que compõem este livro nasceram de autores
, 11\t intos e, na sua maior parte, nasceram separados. Mas não o
r11 1 ·ndemos como uma coletânea de artigos plurais, nascidos de
~comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DE MOCRAC IA
26
da literatura fundamental, com reflexo nas orientações de teses e
dissertações. A institucionalização recente de tal confluência, na
forma de encontros semestrais dos grupos de pesquisa de Mídia e
Esfera Pública (EME) , da UFMG, e de Comunicação e Democra-
cia, da UFBA, que culminou com o apoio da Capes na forma de
um PROCAD, apenas reforçou o projeto de estender a interlocução
à produção de um livro em conjunto sobre temas deliberacionistas e
deliberacionista-republicanos de comunicação e democracia.
Com a exceção dos capítulos 2, 5 e 6, todos os outros foram
produzidos separadamente e em diferentes momentos durante a
última década. Estes três foram escritos especificamente para este
livro. Os outros artigos, com exceção dos capítulos 7 e 8, foram
profundamente reelaborados para este livro. Alguns foram pratica-
mente reescritos mais de uma vez, ou porque mudamos de opinião
a respeito de aspectos específicos, ou porque o estado da pesquisa
havia nos superado e precisava ser alcançado, em mais de um aspec-
to, ou porque a nossa própria interlocução (e a leitura dos textos no
conjunto) nos levou a ver de maneira diferente alguns problemas
e perspectivas; ou, enfim, a crítica recíproca assim o recomendou.
Nesse sentido, a participação dos orientandos e colaboradores dos
nossos grupos de pesquisa foi preciosa para o exercício da reescrita
dos capítulos.
Um livro nascido dessa forma tem lá as suas peculiaridades.
As inevitáveis reiterações, diversidade de retóricas e estilo, sutis (e
nem tão sutis assim) diferenças de ênfase e perspectiva não foram
disfarçadas, pelo menos não ao ponto de escapar ao olhar do nosso
leitor. Afinal, confluência de interesse e agenda, partilha de um
grande número de convicções e hipóteses, múltiplas possibilidades
de afinar perspectivas nas nossas próprias arenas argumentativas
não existem para produzir homogeneidade tanto de pensamento
quanto de estilo de escrita, mas sim avanço da reflexão, amadu-
recimento conceituai, refinamento dos instrumentos de pesquisa.
O atrito de pensamento não é um estorvo nem à cooperação nem
à apresentação precisa do argumento, mas condição fundamental
para que a reflexão se faça mais refinada e, esperamos, mais aguça-
PREFÁCIO
27
1, (; m panheiros, mas distintos, nos caminhos do pensamento.
wnseguimos representar companhia proveitosa e agradável,
1•1111 ipalmente aos outros companheiros de viagem que agora se
111111.11n a nós, pelas sendas da comunicação e democracia, caberá
~"·· nossos leitores decidir.
Jlnr fi m, um livro é uma atividade que impõe muitos débitos,
111111., mais quando a sua feitura, a rigor, atravessa um período tão
I
ESFERA PÚBLICA POLÍTICA
1
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
32
pública" nos ambientes culturais europeus historicamente mais
importantes para a teoria democrática (Grécia, Roma, Inglaterra,
França e Alemanha); no segundo, examina as diversas formações
sociais a que as expressões se referem; no terceiro, resenha os autores
que formularam os modelos ideológicos que constituem o seu conceiro.
No que se refere ao primeiro aspecto, o autor parte da constata-
ção da mais absoluta polissemia no uso dessas expressões, mas tam-
bém da verificação de que apenas no século XVIII, pelo menos em
alemão, é que se forma o substantivo ôjfentlichkeit ("esfera pública"
ou "publicidade", em português), como correspondente e derivado
do antigo adjetivo õjfentlich ("público") (Habermas, [1962] 1984,
p. 15). 1 Mesmo assim, o substantivo é formado por analogia com
as expressões mais antigas, francesa e inglesa, publicité e publicity,
ambas referidas ao âmbito, domínio ou esfera daquilo que é público.
O eixo semântico do qual a palavra se deriva, não importa a língua,
é de origem grega, mediado por uma versão romana. No original
ambiente semântico grego, o emprego de tais expressões dá-se no
quadro de uma contraposição entre a esfera da pólis e a esfera da
óikos, o domínio daquilo que é comum a todos (koine") contraposro
ao âmbito daquilo que é próprio de cada um (ídia). "A vida pública,
biós politikós, desenrola-se na praça central, na ágora, mas não é res-
trita espacialmente: a publicidade se constitui tanto na conversação
(/éxis), que também pode assumir a forma de um conselho ou de
um tribunal, quanto na realização coletiva (práxis), trate-se da guer-
ra ou dos jogos que a imitam" (Habermas, 1990, p. 56). 2
A referência de uma expressão, sabemos todos, é a classe de fenô-
menos a que essa expressão se aplica. No caso em tela, as expres-
sões são convenientemente aplicadas a fenômenos da experiência,
1. Praticamente todas as referências ao texto Mudança estrutural da esfera pública neste capítulo
serão feitas a partir da tradução de Flávio Kothe (Habermas, 1984). Nos casos em que preferi
não empregar a versão de Kothe, devidamente apontados no texto, traduzi da 17' edição de
Strukturwandel der ôffentlichkeit (Habermas. 1990).
2. Na versão de Flávio Kothe (p. 15) não está presente a expressão"( .. .) spielt sich auf dem Markt-
platz, der agora (.. .)" [(. .. )se desenrola na praça (do mercado). na ágora]".
ESFERA PÚBLICA POL!TICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
33
mais exatamente a determinadas formações sociais (.gesellschaftliche
Formation), que Habermas resenha com cuidado, da conversação e
atividades coletivas gregas aos públicos modernos e contemporâneos
e as discussões que eles conduzem. A formação social e a questão da
sua denominação não estão, obviamente, separadas. Para Haber-
mas, se, ao menos na Alemanha, somente no século XVIII uma
determinada formação social fo rça a sua designação como "esfera
pública" é porque, de fato, apenas então é que ela se constitui
(Habermas, 1984, p. 15).
A formação social que produz a referência da expressão grega
equivalente a "esfera pública", na democracia ateniense, cons-
titui-se, naturalmente, em relação estreita com a comunidade
política. A esfera da política, ou daquilo que afeta e concerne a
todos, é a esfera pública, parte da vida humana que se destaca
sobre um fundo constituído pela esfera privada, que é a esfera
da posse pessoal de bens e pessoas, da unidade familiar em cuja
cabeça estava o senhor da casa. Sustentados na sua autonomia
privada, os varões podiam emergir para a esfera dos negócios rela-
cionados à comunidade política, domínio da visibilidade, âmbito
das decisões sobre o que é comum, esfera da conversação. Nessa
d imensão pública, sempre se parte de uma situação de paridade,
pois aí os cidadãos devem necessariamente circular como iguais,
para, em seguida, em função das habilidades demonstradas nas
d isputas argumentativas, estabelecerem-se as clivagens social-
mente reconhecidas.
3. Tradução minha .
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
34
O significado de uma expressão é a classe de conteúdos nocio-
nais que ela circunscreve. Na maior parte dos casos, os significados
são obra social mais ou menos espontânea, mais ou menos cons-
ciente. Noutros casos, os significados são, tecnicamente, conceitos,
isto é, delimitações, recortes, unidades nocionais que nos permitem
pensar a realidade e que são o resultado de um manejo de ferramen-
tas intelectuais orientado por um propósito analítico. Os conceitos
podem ser formados, por exemplo, tanto para dar conta de fatos da
experiência quanto para responder a princípios e a outras exigências
da reflexão. O modelo ideológico (ideologische Muster) de "público"
e de "esfera pública" não é simplesmente um estrato conceitua! que
acompanha o emprego das expressões na tentativa de recortar uma
experiência concreta. Bem mais, trata-se de um segmento de noções
que responde a determinados princípios, interpretações da experi-
ência e valores. Como a sua vinculação aos dados da experiência
é profundamente mediada por valores, princípios e interpretações
retroativas, facilmente os modelos ideológicos se destacam das
experiências concretas e das suas circunstâncias. Assim são criados
os descompassos ou hiatos entre as formações sociais e os modelos
ideológicos, embora ambos se possam denominar com as mesmas
expressões. A tese de Habermas a esse respeito é que, no caso da
passagem do modelo de esfera pública helênica para o modelo de
esfera pública burguesa, a formação social que constitui a referência
da expressão sofre uma considerável transformação, enquanto o
modelo ideológico relacionado à expressão manteve a sua continui-
dade (Habermas, 1984, p. 16).
Durante o longo período que nos separa das condições de vida
das sociedades modernas e contemporâneas, não há uma continui-
dade semântica integral, mas uma parte do material semântico se
preserva e propaga, principalmente no Direito Romano, mormente
na contraposição entre "público" e "privado", que terá emprego
ideológico importante na montagem da denominação moderna.
No que tange ao modelo ideológico, sabemos que essas "formas"
conceituais não precisam de continuidade real, bastando-lhe uma
continuidade no nível dos valores e dos princípios no mundo das
ESFERA PÜBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
35
idéias. O movimento intelectual de "volta aos clássicos" (e a pró-
pria noção de classicismo), que data do início do Renascimento,
realizou certa recomposição com o mítico passado grego, ideologi-
camente forte o suficiente para garantir a continuidade de valores e
princípios que justificam uma ocupação das categorias gregas para
"traduzir" perspectivas modernas relacionadas ao funcionamento
da política e do Estado. Por fim, no que se refere à formação social
que subjaz, como referência, às idéias de publicidade e de domínio
público, estas foram, evidentemente, descontinuadas, no longo
período que separa o quinto século a. C. do décimo oitavo século
d. C. Apenas no século XVIII, é que, de fato, são constituídas novas
fo rmações sociais, em pequena parte análogas, em grande parte dis-
ti ntas, daquelas clássicas, e que se considera merecer propriamente
uma designação equivalente.
:.. comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
36
trumentos e em torno de variados objetos de interesse específico
- numa discussão constante entre pessoas privadas em público.
O segundo requisito da esfera pública é que as trocas públicas
de argumentos sejam conduzidas com razoabilidade e racionalida-
de: interesses, vontades e pretensões dos cidadãos, mediados argu-
mentativamente, contrapõem-se e verificam-se reciprocamente.
Preferencialmente, de forma leal e orientada para a produçb de
convicções e de opiniões razoáveis e consensuais acerca das ques-
tões consideradas. Uma discussão dotada de sentido social, isto é,
que não seja uma mera competição verbal, supõe que aqueles que
discutem empreguem argumentos que são dispostos em posições e
contraposições, voltados para a obtenção de uma opinião prevalen-
te ou de um consenso possível. Afinal, não há realmente discussão
se os que estão nela envolvidos não pressupuserem que possam
convencer os outros ou serem por eles convencidos com base em
razões (Petrucciani, 1988).
Participar da esfera pública, nesse sentido, significa comprome-
ter-se a obedecer às leis da racionalidade (discute-se sinceramente
quando se quer expor razões e considerar as razões que os outros
queiram expor) e da discursividade (pretensões só podem ser con-
sideradas se apresentadas na forma de argumentos), 4 excluindo-se
eticamente todos os recursos e expedientes que a tais leis se opo-
nham. Dito de outro modo, a esfera pública é um âmbito da vida
social protegido, em princípio, de influências não-comunicativas
e não-racionais, tais como o poder, o dinheiro ou as hierarquias
sociais. A argumentação pública que nela se realiza constringe, por
princípio, os parceiros do debate a aceitar como única autoridade
aquela que emerge do melhor argumento. 5 A esfera pública como
37
que impõe uma paridade inicial entre os sujeitos de pretensões.
Uma paridade que perdura até o ponto em que as pretensões se
apresentem como argumentação; depois disso, os argumentos hão
de submeter-se apenas às regras internas ao processo de conversa-
ção ou de debate público, e as diferenças (na posse de razão ou na
habilidade de argumentar) podem ter o seu lugar.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
38
autoridade e toda dominação estão em princípio desautorizadas,
isto é, deslegitimadas, caso não se submetam à esfera da argumen-
tação das pessoas privadas reunidas num público, quer dizer, se não
se submetem à esfera pública, se não superam a prova do melhor
argumento. Disso decorre que, com a idéia de esfera pública, os
burgueses não pretendem simplesmente exigir uma melhor partilha
do poder; pretendem, ainda mais, que a negociação argumenta-
tiva tenha um "valor contratual" vinculatório (isto é, que afete e
obrigue) até mesmo para o domínio e a autoridade, a partir daí
submetidos aos critérios da razão. Em suma, pretende modificá-los
de modo substancial.
Sob esse aspecto, a esfera pública é a esfera do raciocínio público
ou do uso público da razão. O que significa que a esfera pública
é justamente o âmbito em que as pessoas privadas, reunidas num
público, engajam-se num esforço argumentativo voltado para o
recíproco esclarecimento (Aujklarung) acerca de objetos comuns de
discussão. A arte do raciocínio público - "aprendida pela vanguarda
burguesa da classe média culta em contato com o 'mundo elegante',
na sociedade aristocrática da corte" (Habermas, 1984, p. 44) - con-
siste em apresentar posições e contraposições, aduzindo argumentos
a favor e contra, dando razões ordenadas e convincentes da aprova-
ção ou reprovação de argumentos. 6
A demonstração dialogal ou comunicativa - o que Habermas
chama de raciocínio público - é um processo também competitivo,
na medida em que as posições diferenciadas engajam os debatedo-
6. E~ta dimens~o da esfera pública, fortemente destacada por Habermas, reproduz o argumento
kant1~no do opusculo Sobre a paz perpétua (Kant [1795]. 1977). Aquela breve indicação kantiana,
acolhida e destacada aqui por Habermas, constituirá a entrada fundamental para o acolhimento
da perspectiva habermasiana na teoria política de língua inglesa a partir dos anos 90. Um acolhi-
mento que culminará no modelo de democracia argumentativa ou deliberativa, que constitui neste
momento a corrente mais recente e mais forte da teoria democrática (cf. Dryzek, 1990; Bohman,
1996; G_utm_ann e Thompson, 1996; Benhabib, 1996; Bohman e Rehg, 1997; Elster. 1998; Macedo,
1999; F1shk1n e Laslett, 2003). Naturalmente, a perspectiva habermasiana recebeu considerável
reforço com a adoção, embora com diferentes premissas e aplicações, do modelo Kant-Habermas
da troca pública de razões na obra mais madura de John Rawls (Rawls, 1993). Confira sobretudo
o capítulo "The Public Use oi Reason". ' '
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
39
1• em esforços destinados a comprovar a superioridade da própria
posição contra qualquer posição contrária ou divergente. Isso admi-
tido, o raciocínio público comporta tanto a prática pedagógica do
,·sclarecimento e do entendimento mútuos, quanto a prática, um
tanto agonística, da crítica, da luta dos argumentos, da aprovação
ou rejeição de teses. Desse modo, a esfera pública é tanto o âmbi-
to em que um público busca, no raciocínio das pessoas privadas,
esclarecimento e entendimento recíprocos, quanto a arena da con-
rn rrência pública das posições privadas apresentadas na forma de
:1rgumentos.
De qualquer modo, o raciocínio público, ou o uso público da
razão em situação discursiva, sempre se realiza como debate, como
discussão. Todas as instituições de que se dota a esfera pública estão
destinadas a garantir algo como uma espécie de debate ou discus-
. ão permanente das pessoas privadas em público. A própria esfera
pública se entende, então, como o âmbito da discussão em sociedade
entre indivíduos privados. Temas e questões, gerados como tais fora
ou dentro da própria esfera pública, aqui são submetidos à comuni-
cação pública, no jogo de posições e réplicas.
Uma insistência tão grande no uso público - portanto, argumen-
tativo - da razão, constitui-se, historicamente, bem no espírito da
mo dernidade, contra determinadas práticas e instâncias. Antes de
tudo, contra a política do segredo de Estado praticada pela autori-
dade (Habermas, 1984, p. 71), em que decisões são tomadas e posi-
ções se estabelecem a partir do simples arbítrio, da mera vontade de
quem exerce o poder político. A prática do segredo leva à exclusão
de qualquer outra vontade. Uma vez atribuída ao raciocínio públi-
co a capacidade de estabelecer a posição que deve ser aceitável, o
domínio não está mais meramente submetido ao arbítrio, mas à
ratio discursivamente exposta.
Nesse quadro, um público não é uma mera aglutinação de
indivíduos, mas uma reunião de pessoas privadas, isto é, livres,
capazes de apresentar posições discursivamente, de transformá-las
em argumentos e de confrontar-se com as posições dos outros
numa discussão protegida da intromissão de elementos não-racio-
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
40
nais e não-argumentativos. Um público é uma reunião de sujeitos
capazes de opinião e interlocução. 7 A esfera pública é o âmbito da
negociação argumentativa dos cidadãos, o domínio do seu debate
racional-crítico, a dimensão social das práticas e dos procedi-
mentos mediante os quais os cidadãos reunidos podem elaborar,
estipular, rejeitar ou adotar posições sobre qualquer questão de
interesse comum.
Enquanto consiste em ser o âmbito discursivo-racional do modo
de vida democrático moderno, a esfera pública requer, como pré-
condição suficiente para a admissão dos parceiros da e na discussão
pública, apenas a capacidade de usar publicamente a razão, ou
seja, a posse de uma vontade livre e da maioridade racional. Dessa
forma, a condição é, pelo menos em princípio, uma exigência que
diz respeito a propriedades que têm a ver com a mera humanidade
dos sujeitos, excluídas as propriedades provenientes de status, força,
poder etc. Se isso é verdade, a publicidade comporta a exigência de
que os públicos não sejam excludentes, que sejam, em princípio,
sempre abertos, como também implica o requisito de acessibilidade:
todos devem ter a chance de introduzir-se na esfera em que possam
dizer e contradizer. Não é apenas que os que aí ingressam ganham
o direito de apresentar e defender, com idênticas oportunidades, as
suas preferências, vontades e concepções pessoais (Habermas, 1984,
p. 255-256), respeitados apenas o poder do melhor argumento e a
argumentação racional como procedimento; sobretudo, trata-se de
garantir que qualquer interessado, enquanto capaz de argumentar,
41
. t duz'1r se num público e fazer-se valer na esfera pública.
possa m ro - . Jh
om efeito, não seria possível a garantia da !e~ d~ me o_r argu-
mento nem a autenticidade da argumentação publica, se nao fosse
admitida a possibilidade de que qualquer argumento pode entrar na
pauta de qualquer discussão.
comunl§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
42
também o que a deve tornar normativa. Nesse sentido, no Estado
de Direito burguês, a opinião pública é chamada a tornar-se a única
fonte legítima das leis. O conceito está no coração mesmo da idéia
de Estado de Direito, que consiste na vinculação do Estado a um
sistema normativo legitimado pela opinião pública (Habermas,
1984, p. 102).
Desse modo, a esfera pública, garantindo uma comunicação
sem perturbações não-racionais e não-discursivas, bem como garan-
tindo o uso público da razão, torna-se, ao mesmo tempo, garantia
da formação democrática da opinião e da vontade.
43
trabalho social" (Habermas, 1984, p. 42). A institucionalização de
uma esfera pública, na qual se pudesse frear ou neutralizar o poder
e a dominação (Habermas, 1984, p. 104), interessava aos burgueses
como possibilidade de emancipar-se das diretrizes da autoridade em
era! e do poder público em particular.
Por outro lado, a esfera pública, embora seja a esfera de nego-
iação dos privados, não se confunde com a esfera privada. A esfera
privada inclui propriamente duas coisas: a) a esfera Íntima, da
família, lugar onde se estruturam e se constituem as subjetividades,
lugar da emancipação psicológica, fundo sobre o qual se destaca a
sfera dos negócios privados; b) a esfera privada propriamente dita,
da produção e reprodução da vida, a economia, o mercado. 8
O que caracteriza a esfera privada burguesa propriamente dita
é que a atividade econômica, reconhecida como privada desde os
regos, agora possui relevância coletiva, pública; a esfera privada da
;ociedade torna-se publicamente relevante. E isso na medida em
que a atividade econômica precisa agora se orientar por elementos
que estão fora do limite da própria casa (oikos), e que são do interes-
·e geral, como o intercâmbio mercantil mais amplo, publicamente
induzido e controlado (Habermas, 1984, p. 33). Essa esfera privada
moderna é, portanto, por um lado, uma esfera privada autônoma
a sociedade civil burguesa emancipada do Estado; por outro, é
uma esfera privada publicamente relevante, induzida a levar à nego-
·iação os próprios mecanismos da negociação, que considera que
o tirocínio argumentativo dos privados lhe é mais vantajoso que o
.trbítrio fundado na reserva por parte do poder estatal.
Mas a esfera privada se assegura enquanto tal, mesmo diante da
l'. f'era pública que ela solicita. ''A separação entre esfera pública e
8. "A esfera do mercado chamamos de esfera privada; à esfera da família, como cerne da esfera
privada, chamamos de esfera íntima. Esta crê ser independente daquela, quando na verdade está
profundamente envolvida nas necessidades do mercado" (Habermas, 1984, p. 73).
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
44
p. 221). A esfera pública, por sua vez, não é uma arena para relações
mercantis, mas um teatro de relações discursivas sobre quaisquer
objetos. A esfera pública política, mais restrita, materializa-se em
arenas argumentativas nas quais são considerados os negócios
públicos.
Dessa composição tinha de emergir a idéia da esfera pública
como esfera de mediação entre o Estado e a sociedade civil, entre
o poder público e a esfera privada. A esfera pública é um recurso
do domínio privado para contrastar, neutralizando, o que há de
arbitrário no poder e na dominação estatal. Nesse sentido, contrasta
com a esfera privada também na medida em que não permite que
a opinião e a vontade privadas permaneçam privadas, enquanto
exige que se submetam ao confronto argumentativo regido pela
racionalidade, pela discutibilidade e pela acessibilidade. Em suma,
a esfera pública contrasta com o Estado, enquanto reconhece como
instância legitimadora não mais o arbírrio e o segredo, mas a comu-
nicação não-distorcida e o uso público da razão; contrasta com a
esfera privada, enquanto desconhece a validade do interesse e do
desejo privado que não se submeta e seja aprovado numa discussão
em que quaisquer outros interesses e desejos expressos tenham tido
as mesmas chances de se lhes contrapor e confrontar.
Por fim, cabe anotar, na configuração histórica da esfera pública
moderna, certas instituições e instrumentos da esfera pública polí-
tica. Dois institutos sociais em especial - a imprensa e o parlamen-
to - merecem aqui consideração. Ambas as instituições tiveram,
desde o princípio, a sua própria existência associada à idéia de
esfera pública.
Sobre o parlamento - bem como sobre a conhecida relação entre
público, partidos políticos e parlamento - não há necessidade de
comentários, pois se sabe, com efeito, que o parlamento é a própria
função política da esfera pública concretizada e instituída. Quanto
à imprensa, é preciso notar o seu lugar estratégico como instituição
e instrumento da esfera pública. Em primeiro lugar, porque há
um vínculo essencial entre imprensa e público, a partir do qual se
pode dizer que só há propriamente imprensa quando a transmissão
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
45
1,·gular de informações torna-se acessível ao público em geral. Além
di sso, a imprensa muito rapidamente assume funções ligadas aos
interesses defensivos (em face do poder do Estado) das camadas
hurguesas, ou seja, funções não meramente informativas, mas crÍti-
c 1s e pedagógicas. O que se tornou possível apenas com a superação
do instituto da censura prévia nas várias democracias modernas.
Nesse sentido, a imprensa é tanto uma instituição da esfera
pública, pois passa a intermediar o raciocínio das pessoas privadas
reunidas num público, quanto um instrumento da construção e
,cunião de públicos, substituindo ou complementando, nesse senti-
do, os cafés, salões e comunidades de comensais (Habermas, 1984,
p. 68). À imprensa estará associada, desde então, a idéia de opinião
pública, particularmente da opinião pública política, na medida em
que se tornará instrumento com cuja ajuda decisões políricas são
tomadas e legitimadas perante esse novo fórum público (Habermas,
1984, p. 76).
46
alterando-a substancialmente, ainda que a conservando como um
ideal. Com isso, criou-se a ilusão de que a esfera pública moderna
se teria mantido nas nossas sociedades, quando na verdade ela deixa
de existir como tal, conservando-se apenas na aparência de uma
pseudo-esfera pública, encenada, fictícia, cuja característica maior
parece consistir em ser dominada pela comunicação e pela cultura
de massas.
As mudanças, no contexto social, que atingem decisivamente as
bases da esfera pública dizem particularmente respeito ao quadro
de contrastes que explicava a sua existência. Entram em crise tanto
a dimensão polêmica da esfera pública burguesa quanto a sua não
menos importante dimensão mediadora; dimensão que a esfera
pública exercia à medida que testava a legitimidade dos atos do
poder político por meio da discussão pública (com efeito, a rele-
vância civil da esfera privada do público consistia justamente na
sua capacidade de examinar, discutir e criticar, em arenas abertas, as
decisões do governo, pretendendo com isso aferir o que era efetiva-
mente legítimo e razoável no que tange aos negócios públicos).
A crise é proveniente, segundo Habermas, antes de tudo, da
mudança de estrutura pela qual passa o Estado e na qual se dilui o
contraste entre Estado e sociedade. De um lado, com a intervenção
de um Estado social, que permite e autoriza as intervenções crescen-
tes do poder público no processo de trocas das pessoas privadas, do
mercado às leis do trabalho social, dessa vez não contra o mercado,
mas a favor da sua evolução. Uma intervenção que, de algum modo,
não apenas não é contestada, mas solicitada pelo setor privado,
como se verificam no combate estatal contra a tendência à concen-
tração de capitais e à organização do mercado à base de oligopólios.
Isso é resultado de uma evolução da própria economia de mercado,
cujo modelo inicial era o comércio de pequena escala dos primiti-
vos burgueses, que acreditavam que "havendo livre-concorrência
e preços independentes, então ninguém deveria obter tanto poder
que lhe fosse possível dispor sobre o outro". Ora, justamente "con-
tra tais expectativas dá-se, agora, o caso de que há concorrências
imperfeitas e preços dependentes, o poder social em mãos privadas"
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
47
(Habermas, 1984, p. 172). Um Estado forte e atuando no privado
passa a ser, então, exigência da própria esfera privada.
Além disso, o reconhecimento social da esfera pública partia
do princípio da acessibilidade. Por isso mesmo, a burguesia não
poderia esperar que o critério da propriedade fosse considerado por
muito tempo condição suficiente para a liberdade da vontade e a
·apacidade de uso público da razão, ou seja, como pré-condição
para a introdução na esfera pública. Quando a consciência social
desvincula a propriedade de bens das condições de acessibilidade,
os interesses dos socialmente desfavorecidos, particularmente dos
trabalhadores, findam por ser admitidos à esfera pública. Essas
amadas pobres, como outrora os burgueses, apóiam-se na esfera
pública para neutralizar, de algum modo, a sua desvantagem social.
E o fazem no sentido de compensar politicamente a paridade que
~ negada na esfera da produção. A esfera pública torna-se, então,
um espaço em que os interesses políticos de classe se apresentam e
continuam como tal lutando para a sua sobrevivência na discussão.
Com os antagonismos econômicos transformados em antago-
nismos políticos, por meio de uma não-discursiva participação e
posição no debate público, a esfera pública perde aquela espécie de
"desinteresse" que a constituía tão fundamentalmente e que herdara
<la esfera pública aristocrática e letrada.
Também a família é "desprivatizadà', na medida em que é des-
ligada do trabalho social. A família não está mais.ª~~ cuidados ~o
produtor privado. Dessa forma, pouco a pouco a 1de1a de pro~ne-
dade familiar é substituída pela de renda individual; as garantias e
proteções familiares para o membro singular são substituídas pel~s
garantias sociais do Estado - que, ademais, não s_e destinam à_fam1-
lia, mas ao indivíduo -, o mesmo se podendo dizer das funçoes de
educação, acompanhamento, formação de comportamentos (poder
discricionário) que escapam quase completamente ao domínio pri-
vado. A conseqüência?
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
48
desnaturada exatamente por meio desse processo. Desapare-
cendo o momento da distância constitutivo da esfera pública,
se os membros dela ficam ombro a ombro, então o público se
transforma em massa (Habermas, 1984, p. 188).
49
111lcrar posições que, de maneira não-pública, apresentaram-se na
1 -,ri :ra pública. As pretensões ainda têm de ser mediadas discursi-
.1mente, mas não mais no interior da esfera pública e sim para a e
,/,ante da esfera pública. A discutibilidade não é mais um critério
I'·''· garantir que uma posição se exponha ao crivo da racionalidade
11gu mentativa na comunicação pública; é suficiente a discursivi-
d.1de, que agora serve apenas para que uma posição consiga a boa
v,,ntade do público. Segundo Habermas, tratava-se de discussão,
11,lta-se de sedução; tratava-se de crítica, agora, de manipulação.
Os novos meios e recursos da comunicação de massa ocupam,
11 ' se quadro de referências, um lugar decisivo. No modelo liberal,
., imprensa, o mais antigo sistema da comunicação de massa, era
, onsiderada um instrumento privilegiado da esfera pública. De
f.1co, o seu destino esteve historicamente ligado ao da esfera pública
de fo rma muito estreita. Não é de se surpreender, portanto, que a
111udança estrutural da esfera pública esteja profundamente vincu-
l.1da à mudança do papel da imprensa, e da comunicação em geral,
·m face dessa esfera.
No modelo liberal, a imprensa tinha sido ao mesmo tempo um
lugar, uma ocasião e um meio da comunicação pública. A opinião
pública emerge de uma esfera pública, que tinha na imprensa
11111a das suas plataformas, como a sua meta alcançada. Na con-
temporaneidade, a imprensa finda por ser o lugar, ocasião e meio
mediante o qual aquilo que se quer que se torne opinião pública
deve circular para obter assentimento dos privados. Não é um meio
de debate do qual se espera emergir uma opinião, mas um meio de
irculação de opiniões estabelecidas às quais se espera uma adesão,
o mais amplamente possível, de um público reduzido a uma massa
chamada de tempos em tempos a realizar decisões "plebiscitárias". 9
Uma esfera pública constituída dessa arte não passaria de um meio
de propaganda.
9. "Enquanto antigamente a imprensa podia intermediar o raciocínio das pessoas privadas reuni·
das em um público, este passa agora, pelo contrário, a ser cunhado primeiro através dos meios de
comunicação de massa· (Habermas, 1984, p. 221).
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
50
A origem da opinião que se quer difundir ou publicar são cer-
tamente interesses privados com acesso privilegiado aos meios de
comunicação. Com efeito, se, antes, o fato de a imprensa ser priva-
da significava ter garantida a sua liberdade crítica em face da auto-
ridade, agora, o fato de ser privada - portanto, de ser um campo de
ressonâncias de interesses particulares - é que freqüentemente com-
promete a sua função crítica e, por conseguinte, a sua capacidade de
servir na constituição de uma autêntica esfera pública. Agora ela é
simplesmente um campo em que proprietários privados agem sobre
pessoas privadas, enquanto público, para influenciá-las.
A mudança, em virtude da qual comunicação de massa deixa de
ser instrumento do público e modo de existência da esfera pública
para tornar-se ferramenta para a conquista do público por interesses
privados, explicaria a função estratégica desses meios na sociedade
contemporânea. Na verdade, aqui se pode flagrar a entrada em cena
de outra forma de publicidade, entendida não mais como exposição
discursiva das posições num debate acessível a todos os concernidos
e conduzido com razoabilidade, mas como exibição de posições e
exposição de produtos para os quais se deseja formas concretas de
adesão. A diferença entre as duas posições consiste, sobretudo, em
que da segunda estão excluídos tanto o debate quanto a racionalida-
de: as posições se verbalizam para convencer, não para demonstrar
dialogicamente. Esse convencimento prescinde da discussão e da
racionalidade, porque não quer conseguir convicção lógica: precisa-
se, isto sim, da simpatia, da boa vontade, da adesão, não importan-
do se a sua origem é racional ou meramente emocional - por isso
serve-se da sedução.
Tecnicamente, a esfera pública persuasiva se realiza mediante
estratégias cuidadosamente planejadas que levam em consideração
a lógica dos meios de comunicação e as necessidades eleitorais da
democracia. Trata-se de construir a adesão, de trabalhar a "opinião
pública", ou seja, de inserir na agenda temática do maior número
de sujeitos de uma área de interesse posições favoráveis às preten-
sões que se quer defender. Resulta disso uma opinião certamente
compartilhada por um número enorme de sujeitos, mas que nem
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
51
por isso se pode reivindicar "pública", no sentido moderno, por
11.1,1 decorrer da discussão pública. É uma opinião pública encenada
comuni§ção
COMUNICAÇAO E DEMOCRACIA
52
ou como quer que se chame esta dimensão da vida social, continua
sendo um conceito-chave da idéia de democracia. Eis porque na
contemporaneidade a idéia de esfera pública continua normativa,
fonte fundamental de legitimação social das decisões concernentes
ao bem comum, embora a sua configuração já tenha deixado de ser
a mesma do modelo iluminista.
1O. "As organizações buscam conquistar, junto ao público intermediado por elas, uma entusiástica
aprovação que ratifique formações de compromisso sujeitos ao crédito público, ainda que desen-
volvidos grandemente a nível interno, ou ao menos tratam de assegurar a sua passividade replena
de boa-vontade - seja pra transformar tal concordância em pressão política, seja para, à base da
tolerância alcançada, neutralizar pressões políticas contrárias" (Habermas 1984, p. 234).
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇAO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
53
1p1adro, as mediações são, enfim, dominadas por mecanismos e
1n ursos destinados aos necessários favorecimentos e compensa-
'•" ·s (Habermas, 1984, p. 232). Nessa forma de esfera pública,
,1·<1uer é necessário que a disputa seja integralmente discursiva; é
l 1,1~tante que o seja no seu momento de decisão para que garanta a
1, ·gitimidade do decidido como questão referente ao bem comum,
portanto, submetida ao conjunto dos cidadãos 11 e por ela aprovada.
l'or isso, respeitados os procedimentos das votações e apresentações,
1 p1 · em grande parte são meramente "cerimoniais", as negociações
comun~
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
54
privadas que querem valer publicamente e, para isso, precisam de
uma concordância plebiscitária do público.
Para Habermas, essa esfera cumpre, portanto, uma função sim-
bólica: sacramenta como questão do bem comum - por isso
mes-mo, do interesse público - pretensões privadas de muitos
indivíduos organizados em grupos de interesses, enobrece como
universal o interesse particular de uma organização. Nesse sentido,
os grupos de interesse e o próprio Estado (que, sob este aspecto, não
se diferencia das organizações) podem de algum modo "manipular"
o público, sem, de resto, submeter-se realmente à esfera pública.
Como diz Habermas, "o trabalho na esfera pública visa reforçar o
prestígio da posição que se tem, sem transformar em tema de uma
discussão pública a própria matéria do compromisso" (Habermas,
1994, p. 234). Nesse sentido, a opinião pública não é uma opinião
gerada publicamente, mas uma opinião capaz de capturar a adesão
pública. Como não é o resultado de um processo de convencimen-
to por demonstração, tampouco precisa ser racional, coerente ou
mesmo razoável.
Por isso, quando se pretende fazer valer uma pretensão, não
é mais imprescindível submeter-se à esfera pública. Precisa-se, isto
sim, submeter a esfera pública, trabalhá-la. A esfera pública ence-
nada torna-se exibição. Os argumentos não são propriamente mais
argumentos, como diz Habermas, "são pervertidos em símbolos,
aos quais não se pode, por sua vez, responder com argumentos, mas
apenas com identificações" (Habermas, 1984, p. 241).
Em suma, ocorreria uma redução da autenticidade da esfera
pública. E é estritamente associado a esse fato que surge e se conso-
lida o enorme mercado de comunicação voltado para se trabalhar
a esfera pública. Esse promissor mercado solicita um conhecimento
voltado para a elaboração e implementação de estratégias destina-
das à produção dessa nova espécie de opinião pública, mediante
os meios de ressonância da comunicação de massa, por meio de
linguagens e processos da comunicação de massa, e orientado
segundo princípios e técnicas da disciplina da administração de
negócios.
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
55
A. clientela desse mercado é substancialmente a indústria de cul-
1111.1, do lado da esfera pública cultural, e as organizações, partidos,
v,11 1pos de interesse e o próprio Estado, do lado da esfera pública
l'n lítica. É assim que surgem, por exemplo, tanto os negócios da
pwd uçáo cultural quanto do marketing político, em que . especia-
11\tas em matéria publicitária, a prescindir das próprias convicções,
·..10 contratados para vender política apoliticamente" (Habermas,
12. "Em vez de uma opinião pública, o que se configura na esfera pública manipulada é um clima
de opinião" (Habermas, 1985, p. 254).
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRAC IA
56
por uma espécie de representação - ou pela representação eleitoral
ou pela representação de organizações interessadas naquele âmbito
específico de discussões (Habermas, 1984, p. 270).
A nova esfera pública explica-se por essa duplicidade de fenôme-
nos, paradoxalmente compostos. De um lado, o reconhecimento
institucional da normatividade de uma esfera pública de orga-
nizações e instâncias que estão acima dos indivíduos. De outro,
a prática da esfera pública como instância de exibição destinada
a provocar reconhecimento público de posições e produtos. O
primeiro fenômeno permite e admite, em princípio, a disputa e
a crítica, podendo, enfim, garantir o princípio democrático da
"racionalização do exercício do poder social e político" (Habermas,
1984, p. 270). Combinado com o segundo aspecto, todavia, move-
se pelo pressuposto contrário de que se pode - talvez até mesmo se
deva - realizar o convencimento democrático acerca da validade de
uma posição sem submeter-se ao debate, comunicação ou discussão
pública sobre os objetos em questão, simplesmente mediante o uso
de estratégias persuasivas náo-dialógicas. Nesse caso, a aposta é que
a esfera pública, convenientemente dominada pelos meios e pela
cultura de massa, possa servir estrategicamente para o sucesso de
procedimentos de, como diz Habermas, engineering of consent.
É claro que para Habermas só aparentemente se dá no segundo
fenômeno uma autêntica esfera pública. Para Habermas, o proble-
ma consiste provavelmente na constatação de que a esfera pública
como esfera da exibição para o público, a esfera pública dominada
por meios e pela cultura de massa, não parece adequada e suficiente
para uma sociedade democrática. A insistência na transformação
estrutural da esfera pública finda por ser uma insistência na perda
da concepção moderna da vida pública democrática.
57
, 11 1,· nos separam da sua publicação. No mesmo sentido, a noção de
f1 · 1.1 pública formulada nesse livro já foi examinada, contestada,
, 1, quisito da discussão
A primeira dimensão que merece a nossa consideração é a carac-
11 , ização da esfera pública como o domínio social da argumentação
, 111 ·tiva. Em primeiro lugar, ela nos remete a Kant e ao seu prin-
' fpio da troca pública de razões, que deveria funcionar como um
in 1uisito fundamental do ideal de sociedade cosmopolita e escla-
", ida. Na verdade, essa caracterização, como vimos, aprofunda as
11 .1s raízes na invenção da democracia antiga. Há muitos meios e
:;.
comun!§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
58
nativas que a história nos apresentou em virtude do cumprimento
de três requisitos básicos: a) a igualdade, de dignidade e direito, de
todos os cidadãos; igualdade que se materializa no ato de criação
da lei e igualdade sob a lei assim estabelecida; b) o reconhecimento
do conjunto dos cidadãos como única fonte de poder político legí-
timo; c) o estabelecimento da discussão, aberta e igualitariamente
conduzida, como o único procedimento específico de produção de
decisão materializada como lei ou como políticas.
Este quadro de requisitos pode causar estranheza, sobretudo
em virtude da nossa experiência com as democracias liberais con-
temporâneas, nas quais as demandas mais proeminentes da prática
democrática parecem ser a eleição de representantes e a chamada
"regra da maioria", o princípio de decisão política em que o meio
fundamental é o voto. As democracias liberais tornaram-se princi-
palmente democracias eleitorais. Como pode ser, então, que a vota-
ção não apareça no quadro acima como requisito fundamental do
modo democrático de produção da decisão política? O modo como
os tomadores de decisão são escolhidos não representa, contudo,
uma questão para a democracia em seu período clássico. Antes de
tudo porque o modelo predominante na Antiguidade, aquele da
democracia direta, não solicitava a constituição de um colegiado de
representantes especializados em decisão política e diferenciados do
corpo social, como acontece nas democracias modernas ou liberais.
Mas, além disso, o princípio da igualdade de todos os cidadãos era
levado a sério de tal maneira que o sorteio podia ser empregado
como uma alternativa ainda mais democrática para escolha da
autoridade política, quando isso se fazia necessário. A democracia,
no momento da sua invenção, não podia, portanto, se pensar como
democracia eleitoral.
A regra da maioria é outra história, pois se deriva diretamente
dos requisitos a) e b) acima apresentados. E a sua aplicação impli-
ca, naturalmente, votação. Na verdade, contudo, ele se acopla no
requisito c) para a sua efetivação, isto é, ela nem precede nem subs-
titui a discussão entre os cidadãos como método para a produção
da decisão política. A regra da maioria é, na verdade, um método
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
59
I' 11 a terminar discussões. E "terminar", neste sentido, não significa
11r111 "impedir de continuar" nem "interromper" nem qualquer
11111 ra coisa que suponha que a discussão seja um estorvo ou um
111.d ou um defeito que precise ou possa legitimamente ser elimi-
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRAC IA
60
de vista histórico, a precedência é certamente o requisito da palavra
democrática, que serve de modelo ideológico para a esfera pública
moderna. De maneira que quando a reflexão conceitua! dá forma
à prática da discussão pública burguesa, na tese da esfera pública,
a rigor não está simplesmente conformando, filosoficamente, um
fenômeno qualquer do modo de vida burguês, nem sequer está
descrevendo uma experiência específica, que se restringe a uma
classe social na Europa do século XVIII; na verdade, está dando
uma formulação, moderna, em chave liberal e iluminista, a um
princípio e a uma prática que caracterizam a democracia desde a
sua invenção.
Não se trata, decerto, de uma coincidência. Os burgueses não
denominam "democracia" a sua proposta de Estado e o seu modelo
de produção da decisão política, em polêmica contra o Estado aris-
tocrático, por acaso; fazem-no porque querem atribuir um pedigree
filosófico, um passado clássico, a um modelo político formulado
por uma classe social que, em contraste com a aristocracia, tem
tudo menos justificação social, fundamento, passado, herança,
nobreza. Ir aos gregos é também um subterfúgio retórico na polê-
mica contra o Estado absoluto, é encontrar um fundamento para
além daquele da aristocracia européia; o clássico é o único refúgio
ideológico seguro contra os direitos das linhagens aristocráticas, que
chegam longe, mas não tão longe. A questão é que, uma vez que se
chegue à democracia ateniense, o princípio da palavra democrática
não é mais dispensável. Os burgueses, então, fazem carga nas reivin-
dicações igualitárias e na idéia de soberania popular, da sua própria
lavra, mas não esquecem de reivindicar um modo argumentativo,
inclusivo e aberto, de produção da decisão política, em polêmica
contra o segredo e a restrição do modo autocrático de produção da
decisão dos negócios públicos.
A própria idéia de que as decisões que afetam a comunidade
política são de concernência pública parece-me em perfeita coe-
rência com a tese segundo a qual o modo de produção da decisão
política a ser considerado legítimo (por satisfazer aos requisitos de
igualdade de todos os homens e de soberania popular) se realiza
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
61
111L diante uma competição argumentativa justa, inclusiva, gene-
• tlizada, protegida da intervenção da autoridade e dos constran-
•;1 111 entos que ela comporta. A troca de argumentos em público é
, 11111 0 um livre mercado de idéias, de pontos de vista, de problema-
• comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
62
O fato é que nem os burgueses propriamente inventam a tese da
discussão pública nem a tese da discussão pública como princípio
de legitimação é tipicamente burguesa. Nesse caso, a idéia de esfera
públi~a não é propriamente um produto originariamente burguês,
mas simplesmente a nova versão (moderna, liberal, iluminista) da
idéia de discussão democrática.
Por outro lado, é igualmente um fato que Habermas, nesse livro,
apega-se em demasia à formação social da esfera pública burguesa.
E de forma tal que quando percebe (com razoável lucidez, dando-se
considerável desconto em face das limitações da bibliografia sobre
comunicação e política no início dos anos 60), o meio ambiente
predominante da comunicação política que se estava modificando
em profundidade, teme pela preservação do princípio da discussão
democrática neste novo ambiente. Mudança estrutural funda-se
sobre uma ecologia e um discurso ambiental defensivos e trágicos.
Se ~ensarmos que a televisão, à época, era um fenômeno que estava
muito longe de produzir os efeitos e de ganhar a importância social
que ~ó conseguiria nas décadas vindouras, a tragédia projetada
devena, por conseqüência, chegar à proporção de uma devastação.
O espanto que conduz à ecologia habermasiana finda por com-
prometer consideravelmente a parte construtiva do seu estudo. O
projeto de Mudança estrutural incluía uma proposta de intensifica-
ção de um modelo de democracia com ênfase na esfera civil, que é,
na v~rdade, a fonte das preocupações de Habermas com a mudança
ambiental da esfera pública. Esse projeto redundaria numa espécie
de democracia social (ou de intensificação da democratização das
instituições da sociedade civil pelo incremento dos meios e modos
da discussão coletiva), 13 já que a democratização da sociedade política
13. Recolho a designação "democracia social" de Bobbio ([1984] 2004). Ofilósofo político italiano
fala na necessidade de uma passagem da mera democracia política para a democracia social
caracterizada assim"( ... ) quando se deseja saber se houve desenvolvimento na democracia de' u~
determ1n.ado pais, o ce~to é procurar.perceber se aumentou não o número dos que têm O direito
de ~a~_iopar n.as demoes que lhes dizem respeito, mas os espaços nos quais podem exercer este
dire1t~. (Bob~10, 2004, p. 40). O que significa que a pergunta central não é simplesmente "quem
vota? , mas onde se vota?".
ES FERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
63
I' ª". e, em grande parte, um caso perdido. De fato, há um esboço
1, 1.11 projeto na parte final do livro, pouco desenvolvido e, em
r• 1,1!, po uco notado pelos leitores de Habermas.
A rigor, no estágio de amadurecimento conceituai e de conhe-
, 1111 •n to do novo ambiente da comunicação política, fortemente
64
e de visibilidade pública se aplicassem às questões e às matenas
que são objetos da decisão do sistema político, bem como aos
procedimentos mediante os quais tais decisões são tomadas. O que
Habermas não reconhece com suficiente decisão, nessa época, é
que o princípio da discussão democrática se transferiu para dentro
da esfera de decisão política, que nas democracias representativas
é tipicamente separada da esfera civil, e, de algum modo, desapa-
rece da esfera da cidadania. Num Estado aristocrático, a burguesia
que lhe era antagônica precisava fundamentalmente de adensar a
discussão e a visibilidade civil dos negócios públicos, portanto de
uma esfera pública intensa, às bordas da esfera da decisão política,
esta sim, zona de segredo e reserva, fora do alcance dos cidadãos.
Com a sua vitória histórica, e a conseqüente implantação de um
Estado liberal, o que a classe vitoriosa faz é converter os princípios
da discussão e da visibilidade públicas em requisitos para os proce-
dimentos de produção da decisão política, que passa a ser ocupada
por representantes eleitos, autorizados a governar e a legislar "em
nome do povo". Os parlamentos ganharam a forma de uma assem-
bléia nacional, só que de representantes, e os ritos que constituíram
a arquitetura dos procedimentos de tomada da decisão devem, em
princípio, pelo menos, atender às demandas de publicidade e às
regras típicas da argumentação pública.
Alguma coisa nisso tudo é certamente incômoda para um mode-
lo de democracia de base, isto é, para aquele modelo que supõe que
a soberania popular se exerça por meio de um fluxo de poder que
parte da base social - como certamente é o modelo habermasiano.
Esse incômodo, contudo, não deveria ser localizado no monopó-
lio da comunicação pública pela comunicação de massa, como se
pode depreender do livro de Habermas, mas no fato mesmo de as
revoluções burguesas terem encontrado a sua satisfação em arquite-
turas do Estado baseadas no recurso da representação política dos
cidadãos e não no exercício direto e universal da decisão política
por parte da cidadania. Se um problema há, este se deve ao fato
de a democracia representativa comportar claramente a decisão de
transferir para a esfera especializada em decisão política a prática da
ESFERA PÜBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
65
,1, l ussão aberta, justa e argumentada dos negócios públicos como
111nodo deliberativo.
Num viés favorável à democracia de base, diríamos que a sobe-
, 111ia popular, de algum modo, é duplamente lesada nesse proces-
.11. pois o poder da cidadania se torna em grande parte restrito à
• comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
66
a pesquisa em comunicação e democracia, consiste na constatação
de que há certamente bastante espaço para a discussão pública
na sociedade dos mass media. A discussão ou, como preferem os
americanos, a deliberação pública não é uma vítima sacrifical da
comunicação de massa. Os públicos do século XXI têm se mostra-
do suficientemente convencidos da importância dos debates civis e
suficientemente astutos ao lidar com a comunicação de massa para
usar em benefício da discussão pública política e da conversação
civil os indispensáveis recursos de que tal comunicação dispõe.
Além disso, e de forma ainda mais relevante, contrariamente ao que
se pensava no início dos anos 60, a comunicação de massa não pode
nem deve ser pensada como adversária automática de uma discussão
e de uma visibilidade pública favoráveis à democracia. Ao contrário,
o que hoje é evidente é que a comunicação de massa leva a prática
política - tanto aquela do sistema político quanto aquela dos cida-
dãos - ao máximo histórico de discutibilidade e de visibilidade.
Habermas, por outro lado, tem o mérito de destacar uma
diferença entre os modelos clássico e liberal de esfera pública, dife-
rença que se funda numa diversidade de concepção de indivíduo,
cidadania, vida pública, liberdades, Estado. A esfera pública que
se desenha às vésperas das revoluções liberais se materializa numa
totalidade social em que a decisão política que afeta a coletividade
e a gestão dos negócios públicos constituem um reino apartado do
corpo social. Um desenho que Hegel captura magistralmente na
contraposição, inédita para a Antiguidade, entre Estado e sociedade
civil. A esfera pública antiga materializava-se no coração mesmo da
pólis, como meio e ambiente fundamental para o tratamento coleti-
vo dos negócios públicos. A esfera pública moderna é desenhada para
a assim chamada sociedade civil como dimensão da vida social que
desafia e se contrapõe polemicamente ao Estado autocrático.
A rigor, é possível distinguir, na apresentação da esfera pública
burguesa em Habermas, duas dimensões que se misturam e se
imbricam. De um lado, há os princípios iluministas da soberania
popular, das liberdades individuais e da discussão pública que
ganham a forma num desenho ou arquitetura de Estado em que a
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA
67
.1,, isão política deve ser obra de toda a cidadania, mediante trocas
11 i•,umentativas públicas. Esse desenho é emprega,d~ como peça
11 dlrica na guerra ideológica contra o Estado autocranco. De ~urro,
1
tontra ele, por isso mesmo precisa firmar e reivindicar, antes de
111
do, o valor, a legitimidade e a autoridade da esfera civil. Firma-
"', ao mesmo tempo, a convicção, que nos chega como legado
l',oblemático (Schudson, 1995) de que a esfera pública é, parte da
r,1•ra civil, 0 que equivale a dizer que é não-estatal e, ate mesmo,
., ticstatal. Deve-se, contudo, lembrar que, naquele modelo de esfe-
11
1., pública burguesa, há também uma reivindicação de que o Estado
., to rne coisa civil, coisa pública, res publica. Que a separação entre
I· ·,tado e sociedade civil é uma circunstância histórica, e não uma
, 11 flguração essencial a ser necessariamente herdada por sociedades
11
, ln11ocráticas.
' abemos como a história termina. A formação de um Estado
111 11 ,u •5 não significou a formação de uma comunidade política
ho mogênea, em que todos os interesses se pudessem apresentar
., ,. fe ra em que é tomada a decisão política e, assim, ser por ela
111 11
, i 1•rados. No Estado que se seguiu às grandes revoluções libe-
1,11 s, os bu rgu es assumem-se como classe social e outras cisões (a
.t, vi,ao d e lasses, por exemplo, no desenho de Marx) dividem o
q w ial l'. inílucn i:1111 a formação d~ e tados em que apenas os
11 10
t lll l l'\\l'' tlt· 11111.1 p .11 t , d.1 ,o, ircl .1cl c , • Ln •111 1ep1 ·sentar.
COMUNICAÇÃO E DEMOCRAC IA
68
Herdeiro da contraposição hegeliana, via Marx, Habermas só
consegue ver a evolução da esfera pública no Estado burguês como
parte da esfera civil. Pelo menos em Mudança estrutural, a reprova-
ção que Habermas faz de uma esfera pública mudada diz respeito
ao fato de ela estar sendo derrotada como parte das estratégias civis
de crítica ao Estado. Habermas não reconhece mais nesta esfera
transfigurada a intenção polêmica, os propósitos de contraposição
ao Estado, a sua firme posição pró-cidadania, a sua entusiasmada
emulação pró-civil, integralmente orientada para que a cidadania
mesma tome em suas mãos (ao menos) parte dos negócios públicos.
O declínio "daquela" esfera pública representa, para Habermas,
uma perda da liga entre os cidadãos que ela secretava e o arrefeci-
mento das energias reivindicatórias frente aos centros exógenos de
produção da decisão política. Assim, a questão aqui não é mais a
materialização do princípio da discussão pública (que fazia parte
do desenho iluminista de Estado), mas a materialização de uma
discussão pública civil numa situação em que a totalidade social está
(irremediavelmente?) cindida, e na qual, portanto, tal discussão só
será autêntica se crítica e polêmica ante um Estado que não é posse
comum nem igualitária da comunidade polfrica.
2
E
1
os anos 60, compelido a considerar e rever a sua posição
sobre a esfera pública. Isso acontece em virtude de algumas
ircunstâncias do panorama intelectual da época. Primeiramente,
Mudança estrutural da esfera pública ganha a sua primeira tradução
, nericana em 1989, celebrada com um famoso congresso sobre a
11
c~fera pública em Jürgen Habermas, de que o filósofo participou
,. no qual foi confrontado com releituras da sua obra e reexames
do conceito por ele desenvolvido em 1962. O resultado desse con-
gresso é uma influente coletânea, organizada por Craig Calhoun,
/ fabermas and the Public Sphere, publicada em 1992. Segundo, em1
I 990 se publica, na Alemanha, a 17ª edição de Mudança estrutural,
·om um novo prefácio que reflete a revisão já discutida no con-
•resso de 1989. Terceiro, nesses anos, Habermas está empenhado
na pesquisa que resultou na publicação de Direito e Democracia,
1. Cf. Habermas (1990, p. 11-50) Vorwort zur Neuauflage 1990. Esse prefácio é, na verd~d:· .º
mesmo texto, traduzido por Thomas Burger, que comparece na coletânea resultante do sem mano
americano acontecido em 1989 (vide Habermas, 1992).
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
70
em 1992, obra em que a noção de esfera úbl' , . .
vez em trinta anos read . 'd p JCa e, pela pnme1ta
, m1t1 a ao patrimô ·
pensador alemão. nw argumentativo do
Direito e Democracia eh .
al d ega Justameme em tempo d
gum mo o, completar a consa - - para, e
De conceito surpreendente graçao d6a noçao de esfera pública.
nos anos O a ·
nos anos 80 D' . D . , conceito contestado
' zrezto e emocracza ex
leva ao ponto mais alt pressa, e ao mesmo tempo
0 , um processo de e - d . ,
esfera pública como pal h . onsagraçao a ideia de
avra-c ave import .
processo que se estabelece . d ame em teona social. Um
.
1lteratura ' a pamr os anos 90 . . ]
anglo-american b 'prmc1pa mente na
case converte na ide'1·a de ~,'deml'bque ~ ase da noção de esfera públi-
e I eraçao púb] · "
o ponto de partida de tod ica e passa a representar
democr, . a a corrente contemporânea de teoria
atica que se denomina democracia deliberativa. 2
Em Direito e Democracia el . .
noção de esfera pública é reas;u~i:t:~:e1ra vez em trinta anos, a
tual habermasiano e o q , . d . .º parte do estoque concei-
' ue e am a mais 1mp ,.
ao seu repertório argumentativo. Além di ort~nte, ~ m~orporado
obra madura de Haberm 1· . sso, pe a pnme1ta vez, na
as, exp 1c1tam-se os en · .
a noção de esfera públ' . ca1xes que vinculam
" ica a temas importantes d . , .
como ação comunicativa" "fc - d' . o seu patnmonio,
' ormaçao 1scurs1va da opinião e da
2 H . h· d ·
·. ?Je, a uas linhas de pesquisa em teoria democrática
publica. De um lado, a expressão "esfera ública" . que dependem da velha noção de esfera
so?retudo para estudos que aplicam a ni - continua sendo uma importante palavra-chave
º?Jetos sociais. As_ aplicações à internet são ~;e~~;r~:~:dente a. um espectro cada vez maior d;
p~bl1ca afro-amencana, a esfera pública asiática a f e1;1plo disso. Estuda-se, ademais, a esfera
_çao de esfera pública, principalmente aquela de~en~sa~ra pubka_fem1n1na etc. De outro lado, a no-
1nf/uenc1ada pela Ética da argumentação d H b a em D1re_1to e democracia, mas fortemente
para a noção de discussão ou deliberaç!Ío eúbr ermas e Apel, e claramente a referência de base
discursiva ou deliberativa. p ica, ponto de partida para a idéia de democracia
ESFERA PÜBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA
71
11 made" e "discurso". Temas que ganharam elaborações intelec-
111.tis sofisticadas nos últimos trinta anos da pesquisa do filósofo,
111.1~ diante dos quais a velha idéia de esfera pública parecia fora de
lII g:u.
No centro da discussão sobre a esfera pública, estão os pro-
' n os pelos quais são formadas a opinião e a vontade coletivas.
1\ inspiração para essa abordagem vem do modelo republicano de
, I ·mocracia, e da sua idéia normativa de que devem haver proces-
·.o coletivos por meios dos quais se formam a opinião e a vontade
1',Cral. Tais processos são baseados em interações - em geral, intera-
\Ões discursivas-, de modo que demandam comunicação e busca
de consenso. De qualquer modo, a Habermas parece razoável e
democraticamente fundado que a opinião pública e a vontade geral
devam ser formadas discursivamente. Os processos mediante os
c1uais essas são formadas não apenas tornam democraticamente jus-
cificadas a opinião pública e a vontade comum; são também a fonte
de legitimidade para a produção da decisão política em geral, da lei
e das políticas públicas em particular. Assim, de certo modo, apenas
a lei que emerge de um processo discursivo de formação da opinião
e da vontade coletivas, levado a termo por cidadãos em situação de
eqüidade de direitos, é democraticamente legitimada.
Na verdade, a expressão "formação da opinião e da vontade",
tão cara a Habermas, é uma fórmula para designar tanto a geração
da opinião pública quanto a produção da decisão política. Tanto
o processo de produção quanto o seu resultado são, naturalmente,
coletivos - ou "públicos", como prefere a tradição republicana.
Ou, pelo menos, deveriam ser públicos, adotada uma perspectiva
normativa. O processo deve ser público no sentido de que deve
envolver (ou, ao menos, oferecer a possibilidade de que sejam
envolvidos) os cidadãos concernidos ou afetados pelo resultado a
ser produzido. O resultado deve ser público não apenas no senti-
do de que materializa um consenso de idéias ou uma decisão que
vincula e obriga todas as vontades no interior de uma comunidade
política, mas, também, no sentido de que reflete um processo de
produção entendido como investimento coletivo.
comun!Jção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
72
É isso, aliás, que permitiria o encaixe entre a dimensão factual e
a dimensão normativa da lei. E aqui está o centro da reivindicação
de Habermas em Direito e Democracia: a opinião e a vontade cole-
tivas, que formam a comunidade política e se materializam como
opinião pública e como decisão política legislativa, devem ser, de
algum modo e para garantir a sua legitimidade, produzidas median-
te a participação de todos os cidadãos que assim o desejem, em
situação de igualdade de oportunidades. Assim, nem há necessidade
de que o direito seja submetido à democracia nem a democracia
ao direito. Com efeito, de um lado, o Direito que emerge de um
processo coletivo de produção é pré-condição, demandada e aceita
pelos membros de uma comunidade política, para o exercício da
democracia; de outro lado, a democracia deve ser vista como um
modo mediante o qual o cidadão exerce a autonomia política, o que
é assegurado pela participação plena dos membros da comunidade
política no processo por meio do qual são formadas a opinião e a
vontade coletivas, materializadas no Direito.
Até aqui, temos um requisito típico da democracia participa-
tiva, sobre o qual se acopla, em seguida, o requisito propriamente
deliberativo: os processos de produção da opinião pública e de
tomada da decisão são processos discursivos. A interação discursi-
va, a prescindir da sua capacidade de produzir diversos níveis de
consenso, tem já a vantagem prévia de produzir mais informação
sobre questões e problemas socialmente compartilhados, mais
esclarecimento recíproco sobre perspectivas socialmente represen-
tadas, de criar oportunidades de reavaliação dos próprios pontos de
vista à luz das críticas, argumentos e posicionamento dos outros,
de proporcionar chances de melhorar a qualidade das próprias
razões nos procedimentos argumentativos quando todos deman-
dam uns dos outros mais e melhores justificações. Ademais, a
natureza mesma da interação discursiva porta consigo um conjun-
to de requisitos pragmáticos - que, portanto, não podem ser des-
respeitados por quem quiser argumentar com sentido - que finda
por configurar uma ética da argumentação. Não será examinado
aqui tal sistema de requisitos, mas é certo que uma opinião ou
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA
73
uma decisão legislativa formada discursivamente ~e 11;º.do leg~ti:o
requer que se assegure que ninguém seja, em prmc1p10, exc UI do
da ar umentação, que todos os que queiram expressar po~tos, e
vista gou apresentar reivindicações possam fazê-lo, f:qluednmguem
. .
·do que todos se obnguem a cons1·derar a a a os outros
seJa coagi , - . .
s part1c1pantes ad orem u ma
na sua própria argumentaçao, que o d . . 1·d -
atitude de respeito, de consideração pelo outro e e m~pa~c1a I a.
de (Apel, 1973; Habermas, 1983; Apel, 1988; Petrucc1am, 1988,
ornes, 2001).
74
materializadas como leis e políticas, dá-se mediante "deliberações
institucionalizadas" (Habermas, 1994, p. 225).
Do outro lado, temos a forma não-institucionalizada - ou
informal ou autônoma - de se realizar a formação da opinião e
da vontade públicas. É desse modo que se estabelece a primeira
caracterização da esfera pública que aparece em Direito e democra-
cia. "Esfera pública" designa o âmbito, domínio ou espaço, social-
mente reconhecido, mas não-institucionalizado, no qual há a livre
flutuação de questões, informações, pontos de vista e argumentos
provenientes das vivências quotidianas dos sujeitos. Assim como os
corpos parlamentares se concretizam por meio dos debates institu-
cionalizados, a esfera pública se realiza por meio da livre flutuação
de problemas, contribuições, informação e argumentos (Habermas,
1994, p. 226), por meio da circulação informal da comunicação
política geral. Os debates institucionalizados se concretizam em leis
e políricas, a comunicação pública informal, na opinião e vontade
públicas. Essa última deve ser caracterizada como um mercado livre
de argumentos e pontos de vista para gerar uma opinião pública,
tão dispersa pela esfera civil que, na prática, não tem propriamente
um sujeito, é anônima (Bohman, 1996, p. 178).
Habermas não o diz explicitamente, mas as deliberações institu-
cionalizadas são o modo fundamental de funcionamento de corres
judiciais ou tribunais, assim como de corpos parlamentares (que,
de certo modo, existem para que neles se realizem certos tipos de
debates com certos tipos de objetivos), de maneira análoga a como
a esfera pública é constituída estruturalmente pela discussão espon-
tânea ou, dito de outro modo pela livre circulação de questões, con-
tribuições, informações e argumentos - e de tal forma, que há de se
defini-la como o espaço abstrato, mas socialmente reconhecido (vs.
"instituído"), no qual tais matérias de opinião se formam e circu-
lam. É um mercado de idéias, uma arena não institucionalizada de
posições. De toda forma, a publicidade desse domínio social se dá
pelas interações argumentativas que o constituem .
A tabela abaixo oferece um diagrama bastante aproximado dos
procedimentos de produção da opinião e da vontade pública em
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM DIREITO EDEMOCRACIA
75
, , · rodas as modalidades - a
I i,rcíto e democracia. A meta e umca em ' . .
. - d . ._ - embora esta ulnma se matena-
11 odução da dec1sao e a opm1ao , , . . .
li,L' diferentemente nos meios informais (esf~ras_ ~u~licas) e msncu-
' lllnalizados (corpos parlamentares e corres Judiciais).
MATÉRIA METAS
MEIOS MODOS
Projetos, Decisão política
l orpos Deliberações parlamentar
institucionalizadas programas
p rlamentares ou opinião
e políticas.
e vontade
institucionalizadas.
Formação
[sfera pública Circulação informal Questões,
democrática
política e livre de questões iniciativas, da opin ião política;
mediantes contribuições,
canais informais problemas
de comunicação e perspectivas.
política; discussões
políticas públicas.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
76
do modelo republicano, está o desejo de preservar a comunicação
política pública, evitando tanto que ela seja engolida pelo aparelho
do Estado quanto que seja assimilada pelas estruturas do merca-
do.' "Na concepção republicana, a esfera pública política adquire
- Juntamente com a sua base, a sociedade civil - um significado
estratégico; ela deve assegurar às práticas voltadas para o entendi-
mento realizadas pelos cidadãos a sua autonomia e a sua força inte-
gradora" (Habermas, 1994, p. 327). Nessa perspectiva, os modos
se impõem aos meios de formação da opinião e da vontade, isto é,
as estruturas da comunicação política pública, orientadas para 0
entendimento recíproco entre os membros da comunidade política,
devem governar os parlamentos e a esfera pública. "Desse ponto de
vista, há uma diferença estrutural entre o poder comunicativo, que
a comunicação política traz à tona na conformação de opiniões da
maioria formadas discursivamente, e o poder administrativo dispo-
nível no aparato governamental" (Habermas, 1994, p. 332). O que
os republicanos advogam é que o poder comunicativo se imponha
sobre o poder administrativo.
A perspectiva liberal encaminha-se noutro sentido porque adota
outros pressupostos. O seu realismo peculiar atesta que a política
se caracteriza essencialmente como luta por posições em busca do
poder administrativo. Dessa forma, o processo de formação da
opinião e da vontade, em qualquer dos meios da sua realização, é
basicamente uma competição entre grupos que se movem estrategi-
~a~ente para assegurar º~,adquirir posições; uma competição cujo
exno ou fracasso se mede pela aprovação dos cidadãos, a pessoas e
programas, quantificada como votos" (Habermas, 1994, p. 331).
Com relação ao processo democrático de formação da opinião e
da vontade, Habermas procura construir a sua perspectiva, acrescen-
tando ao seu princípio discursivo certo número de aportes específi-
cos de um e de outro modelo. Conforme já dissemos, é da tradição
republicana a fórmula "produção política da vontade e da opinião"
e o destaque que ela ocupa numa teoria democrática. Destaque e
fórmula são incorporados por Habermas, mas são temperados com
uma importante concessão ao realismo liberal: a constituição não é
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA
77
11111 elemento secundário e a comunicação política da esfera pública
11.10 produz leis; o sistema político é quem as produz.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
78
funcionamento racional no caso em que "bloqueassem as fontes
espontâneas das esferas públicas autônomas ou se desconectassem
dos aportes provenientes da flutuação livre de questões, contri-
buições, informação e argumentos que circulam numa esfera que
é autônoma diante do Estado e estruturada de forma igualitária"
(Habermas, 1994, p. 225-6) . Há, portanto, uma base normativa
que, de algum modo, é democraticamente obrigatória para a
decisão legislativa. Tal base se apresenta como uma espécie de cris-
talização da "soberania civil", em si mesma comunicativamente
fluida, no "poder dos discursos públicos", que, por sua vez, brota
de "esferas públicas autônomas". Esse poder comunicacional
entretanto, "toma forma nas decisões de corpos legislativos que s~
portem democraticamente e sejam politicamente responsabilizáveis"
(Habermas, 1994, p. 228).
São democraticamente mandatórias, portanto, a abertura e a
vinculação do sistema parlamentar de formação da vontade e da
opinião, institucionalizado em procedimentos legais e programado
para produzir decisões, à esfera pública, aos seus modos, às suas
matérias e aos seus instrumentos. A esfera pública apresenta-se aqui
como parte fundamental de um processo legítimo de produção
democrática da decisão política.
79
f lá um outro modo por meio do qual Habermas encontra
11 111 espaço entre as perspectivas liberal e republicana p~ra o se~
l''")Hio modelo, a saber, considerando os aspectos rel~c10nados a
1, r,itimação dos procedimentos de decisão e com r~sp~1to ao_ que-
1,n da soberania popular. A questão aqui diz respeito a funçao da
11111ade e da opinião formadas democraticamente. A materialização
,I, opinião e da vontade coletivas, democraticamente, em_deci~ões
rlci torais, por exemplo, têm funções diferentes para liberais e
1, publicanos. Os primeiros, segundo Ha~ermas, rec?~hecem nas
, k·ições exclusivamente a função de autonzar o e~~rc1c10 ,do p~der
1,olf tico legítimo, a legitimação da liderança poli:1ca. Alem d1_sso,
11~ que exercem o poder político de forma autonzada, qu~r dizer,
.. comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
80
si só; no máximo, pode programar as decisões políticas de quem
está autorizado a tomá-las, ou, dito de outro modo, pode orientar
o uso do poder administrativo em direções específicas. Fiel ao seu
gosto por temperar com um pouco de realismo liberal o considerá-
vel idealismo republicano, Habermas reitera que apenas o sistema
político, um subsistema social especializado em decisões que nos
afetam coletivamente e coletivamente nos obrigam, pode, de fato ,
exercer o poder político institucional.
Com o genérico "formação democrática da opinião e da
vontade", a argumentação de Habermas não é muito precisa na
diferenciação entre as formas pelas quais estas se materializam e
o significado disso para os dois modelos de democracia. A rigor,
no modelo liberal há um espaço reservado - espaço que, aliás,
é nobre - para a manifestação democrática da vontade pública.
Uma vontade cuja manifestação clara e regulamentada é deman-
dada como essencial nos episódios eleitorais regulares. Mas que
também deve se fazer presente em referendos e plebiscitos. Como
e:sª. manifestação da vontade pública tem por fim , em geral, cons-
mmr a esfera daqueles que estão autorizados a decidir, é evidente
que a sua função é, antes de tudo, determinar o tipo de decisão
(e de tomador de decisão) política democraticamente legítima, à
exclusão de todos os outros tipos e modos que eventualmente se
apresentem. Se, na estrutura liberal, há espaço para a manifestação
da vontade coletiva, não se pode dizer o mesmo, entretanto, da
configuração da opinião pública, cujo papel na tomada de deci-
sões políticas coletivamente obrigatórias não tem propriamente
espaço nas constituições liberais. Os republicanos, sim, pretendem
ver na manifestação da vontade coletiva e na configuração de uma
opinião pública os meios e os modos mediante os quais se materia-
liza a soberania popular. O problema da perspectiva republicana
é que a idéia de comunidade política produz a sugestão de que a
vo~tade e a opinião públicas, democraticamente produzidas por
me10 dos recursos da esfera pública, são os meios do autogoverno,
que, portanto, elas podem governar sem mediação. Na perspectiva
adotada por Habermas, "legitimar" é demasiado pouco e "substi-
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM DIREITO EDEMOCRACIA
81
1uir" é excessivo. Pode-se pensar, nesse sentido, que, se a vontade
pública for apenas um poder legitimador, as esferas de d_ecisão
política se tornam excessivamente autônomas em face da ~i~a~a-
1113, com a qual precisam entrar em contato apenas nos ep1sod1os
ri ·itorais. A democracia se transforma em democracia eleitoral, a
Íi)r ma mais empobrecida que pode tomar uma democracia liberal.
l'or outro lado, imaginar que a opinião pública possa governar
diretamente lhe parece irrealista. A alternativa oferecida é, então,
1,anter a distinção liberal entre Estado e sociedade, entre opinião
1
pública e decisão política institucional, mas reivindicar um núme-
,o maior de canais e fluxos de comunicação mais intensos entre
.1 d uas esferas.
82
matérias mediante os quais tais opinião e vontade são formadas,
mas também com as razões por meio das quais estas assumem papel
fundamental em sociedades democráticas.
Um diagrama no caminho
83
derados os problemas que afetam o todo da sociedade (Habermas,
l 994, p. 364).
Na mesma linha de argumento, a sugestão dos radares sociais
se acopla à metáfora da caixa de ressonância. A esfera pública não
apenas captura (detecta e identifica) os problemas; ela amplifica a
pressão dos problemas no tecido da sociedade, porque é capaz de
1ematizá-los "de maneira convincente e influente", de os dotar de
possíveis soluções, bem como de "dramatizá-los de maneira tal que
ejam assumidos e considerados pelos complexos parlamentares"
(Habermas, 1994, p. 435). Em suma, como a esfera pública tem
uma capacidade limitada de resolver, sozinha, os problemas sociais,
• umenta o seu eco e volume de forma a chamar a atenção do domí-
nio parlamentar e a orientar a sua decisão nesta ou naquela direção.
A terceira sugestão, no mesmo sentido, consiste em materializar a
esfera pública em redes ou em estruturas para a comunicação no
interior do corpo da sociedade.
O diagrama a seguir assume um duplo risco. O primeiro, argu-
mentativo, consistiria em produzir uma excessiva simplificação
sobre a complexidade do tratamento habermasiano da esfera públi-
ca. O segundo, retórico, de estragar a história antecipando-lhe o
desfecho. O risco vale a pena. Em Direito e democracia, Habermas
vai acumulando definições, caracterizações e analogias no seu per-
curso de tal forma que, em geral, não deixa ao seu intérprete mais
do que a escolha de recolher o que pode, deixando de lado outro
tanto, mas sem conseguir ter certeza de apanhar o fio da meada do
argumento.
Assim, consideramos ser possível tentar escapar do cipoal de
sinonímias e de polissemia em que nos lança o Habermas de Direi-
to e democracia, quando trata do tema da esfera pública por meio
de seis perguntas básicas e de suas respectivas respostas. O contexto
argumentativo em que o tema da esfera pública necessariamente
emerge neste livro de Habermas é a consideração sobre a formação
discursiva e democrática da vontade e da opinião coletivas. O fenô-
meno a que se refere com a expressão "esfera pública'' é simples-
mente uma das junções ou conexões necessárias no processo pelo
:;. comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
84
qual a sociedade produz uma vontade comum e uma opinião com-
partilhada socialmente. É com relação a tal processo que podemos
formular as seis perguntas elementares a seguir, acompanhando-as
com as respostas que parecem mais óbvias no argumento haberma-
siano. 1) Por que meios se formam a opinião pública e a decisão
política? Por meio de algumas instituições sociais: parlamentos,
cortes de justiça, instâncias administrativas do Estado e, enfim,
esfera pública. 2) Como se realiza a esfera pública? Mediante flu-
xos comunicativos livres e abertos que atravessam a sociedade. 3)
Por meio de quais recursos essa comunicação pública se concretiza
na sociedade? Por meio de estruturas socialmente estabelecidas
que servem para a comunicação aberta e generalizada. 4) Qual o
objeto da comunicação pública ou, melhor, a comunicação pública
é sobre o que mesmo? Sobre matérias, temas, agendas, questiona-
mentos e sugestões relacionados a interesses, pretensões e proble-
mas da sociedade. 5) Quais são mesmo o resultado e o ganho de
uma comunicação pública generalizada a respeito de problemas
sociais? A formação de uma opinião pública e de uma vontade
coletivas. 6) Qual deveria ser o resultado de tal comunicação
numa democracia interessada na formação discursiva da opinião
e da vontade coletivas? A produção de uma decisão política, pelo
sistema nela especializado e para tanto autorizado, em consonância
com a opinião pública.
85
Neste esquema, a esfera pública é basicamente um meio para a
,odução de opinião pública e o modo fundamental da existência
11
,l.1 esfera pública é a comunicação pública, que se materializa em
11
m conjunto de estruturas para uma comunicação generalizada
(,1uer dizer, não-restritiva, não-especializada, não-excludente). A
matéria básica da comunicação pública (em outras palavras, aquilo
que responde à pergunta: qual é o objeto da comunicação gene-
1.1lizada?) são questões, idéias, formulações, problematizações,
\ugestões provenientes das interações vitais da vida em sociedade.
C valor, o sentido e o ganho representados pela esfera pública, no
mesmo sentido, exprimem-se, em primeiro lugar, como um resulta-
<lo real (que é a produção de certo tipo de opinião pública, a saber,
.l opinião elaborada argumentativamente, resultante de discussão
pública ou na troca pública de argumentos, apoiada em razões
públicas ou universalmente aceitáveis) e como um resultado desejá-
vel para o bem da democracia (que tal opinião pública influencie a
decisão da esfera política).
,. comun§ção
=
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
86
infra-estrutura material por meio da qual a comunicação se efetua.
Ademais, com esta caracterização, Habermas destaca apenas o fato
de a esfera pública ser o domínio social da circulação de informa-
ções, noções, idéias, pontos de vista. Por fim, a idéia de que a esfera
da comunicação pública finca raízes no mundo da vida por meio da
sua base na sociedade civil concede ares de nobre interesse cívico à
esfera pública, sugerindo (a este ponto do argumento, não mais do
que sugerindo) que a comunicação pública se relaciona aos estratos
mais importantes da vida social por meio das redes da sociedade civil.
Habermas continua:
A esfera pública política foi por mim descrita como uma caixa
de ressonância para os problemas que devem ser trabalhados
pelo sistema político, já que de outro modo não podem ser
resolvidos. Nesse sentido, a esfera pública é um sistema de
alarme dotado de sensores não especializados, mas de grande
sensibilidade que se estende pela sociedade (Habermas, 1994,
p. 435).
87
111davia, e o diz explicitamente reiteradas vezes, que a esfera públi-
' .1 só influencia a decisão política se o fizer por meio do sistema
político. Não se pode ignorar, contudo, contra Habermas, que é
11rnbém admissível considerar o fluxo da influência com um vetor
, ,rn trário, isto é, admitindo-se que o sistema político influencia
.1 sociedade civil por meio da esfera pública. Esta hipótese não
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
88
Um pouco mais adiante, Habermas se esforça para encaixar,
conceitualmente, a esfera pública na Beira de dois fenômenos
importantes: a ação comunicativa e o mundo da vida. A esfera pú-
blica, vimos, é como uma rede que liga, filtra e condensa opiniões
para formar opiniões públicas. Sua subsistência depende de um
tipo de ação social - que, aliás, é a mesma que sustenta a existência
do conjunto mais geral do mundo da vida -, a saber, a ação vol-
tada para o entendimento, o agir comunicativo. Por falar nisso, o
mundo da vida é um reservatório de interações básicas, nas quais se
apóiam sistemas especializados de ação e conhecimento, em geral
ou associados às funções que garantem a subsistência do mundo
da vida (como a família, a educação e a religião) ou às funções de
validação da ação comunicativa cotidiana (como o fazem a ciência
a moralidade e a arte). À diferença disso tudo, a esfera pública nãoé
especializada em qualquer função nem trata de forma especializada
de nada. Segue-se, nesta ordem de argumentos, uma caracterização,
pel~ negativo, da esfera pública, que desabrocha na idéia de espaço
social como seu definidor principal.
89
mesmo tempo constituem por meio das suas interpretações
cooperativamente negociadas. O espaço de uma situação de
fa la, compartilhado intersubjetivamente, é aberto quando os
participantes estabelecem relações interpessoais, assumindo
posições em ofertas recíprocas de atos de fala e assumindo
obrigações ilocucionárias. Todo encontro, no qual atores
não apenas observam uns aos outros, mas assumem uma
posição de segunda pessoa, reciprocamente atribuindo liber-
dade comunicativa para os outros, desemboca em um espaço
púb lico lingüisticamente constituído. Esse espaço se mantém
aberto, em princípio, para potenciais parceiros de diálogo que
estão presente sem participar ou poderiam vir à cena e se jun-
tar aos que ali estão (Habermas, 1994, p. 437).
:;
comun/§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
90
Habermas freqüentou juntamente com Apel nos anos dos estudos
sobre a "ética da argumentação". Habermas está aqui empregando
c_omo m~delo para a sua noção de esfera pública a situação pragmá-
tica das mterações lingüísticas. Um ato de fala (dotado de sentido)
contém ~m si uma série de implicações pragmáticas ou pressupostos
pra~mat1camente assumidos, dentre os quais está a própria situação
de mteração comunicativa. Com isso, ele espacializa a noção de
esfera pública, mas a constitui como um espaço particularmente
não-material; trata-se de uma situação que se (de-)marca pelas pes-
so!s (ve_rbais) d~ i~t~ração lingüística, o "espaço" do eu-tu, o "espa-
ço, ~a mtersub;et1V1dade que emerge como uma implicação prag-
mauca da ação lingüística dotada de sentido (ver as regras dos atos
de fala, quando todo falante supõe um ouvinte, que é, ao mesmo
tempo, um replicante e alguém a quem se obriga a ouvir). É curiosa
esta esfera pública que nasce de uma espécie de pragmática dos atos
de fala, como dimensão intersubjetiva implicada na fala, condição
de possibilidade para que o falar se torne falar-com, comunicação.
Essa perspectiva, entretanto, esconde certo número de decisões
e dificuldades: a) a dimensão da interação lingüística (o espaço
falante-ouvinte) precisa ser reformatada para além da dimensão eu-
tu de forma a incluir uma dimensão coletiva, que certamente não
é apenas uma extensão, em escala, da primeira; b) situar a esfera
~úb~ica na açã~ comunicativa (diferentemente da ação estratégica)
s1gn1fi~a excluir do seu alcance toda a dimensão não-cooperativa.
Mas, ;ustamente, não seria razoável esperar que a esfera pública
comportasse ao menos certo nível de não-cooperação?
Na perspectiva da pragmática, o entendimento procurado
refere-se ao que as sentenças significam e, sobretudo, ao efeito que
elas exercem. Para tanto, não é preciso necessariamente de entendi-
mento moral ou de uma acomodação de pretensões originalmente
díspares. Pragmaticamente, haveria pleno entendimento de um
ato de fala mesmo quando o ato praticado for ilocucionariamente
voltado para a ameaça ou, pior, para a ofensa. Para o entendimento
é bastante apenas que falante e ouvinte adotem as regras pragmati~
camente válidas de ameaçar e ofender.
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA
91
A perspectiva de Habermas não é tão neutra quanto a da
t 1.1r•,, 11 ática e o entendimento proposto não parece se resolver _na
.. ,preensão dos jogos locucionários, ilocucionários e perlocuc10-
11
11
11
da fala; o entendimento supõe acordos morais, convergên-
1os
11•, , cooperação. Assim, a comunicação pública habermasiana
1, ve basicamente comportar apenas lances voltados para o enten-
l1m •nto moral. Por que a lógica da interação incluiria apenas,
1'·11.1 ele, cooperação e não, por exemplo, competição e conflito, e
uir que as opções entre a ação estratégica e a ação comunicativa
1
-.1· olocam como excludentes, é algo que não se explica definiti-
., mente.
c) Os atos de fala supõem apenas um reconhecimento do outro
, 11mo alguém capaz de entender e de falar, não o reconhecimento
,l.t sua dignidade e da sua condição de par social; por isso mesmo,
• fala pode ser usada para produzir efeitos ilocucionários, como a
1
11fensa, e perlocucionários, como a humilhação; justamente por
.1 har que o outro me entende é que quero diminuí-lo, quando falo.
( ) u quero dominá-lo, enganá-lo, seduzi-lo. Isso tudo torna razoável
,upor que talvez a pragmática não dê tudo o que Habermas deseja
para a sua noção de esfera pública - nem que renda apenas aquilo
que a ele interesse.
No geral, então, a esfera pública vem pintada com tintas nobres
ao ser colocada como o espaço social gerado pelo agir comunicati-
vo. E, ao ser apresentada como implicação pragmática da interação
sociolingüística, ela deixa de ser algo circunstancial ou acidental,
para tornar-se uma dimensão essencial (pragmática) da vida s~cia~:
onde houver fala, aí haverá esfera pública. De um lado, não se ;ustt-
fica a tesoura que exclui da esfera pública a dimensão estratégica; de
outro, a afirmação da essencialidade social da esfera pública parece
pouco fundada se apoiada numa pragmática da interpessoalidade,
já que o coletivo não é apenas a extensão do interpessoal.
Rumo à abstração
Habermas procede à passagem da intersubjetividade (esque-
ma eu-tu) para o coletivo. "Fundada na ação comunicativa, essa
:. comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
92
estrutura espacial de encontros episódicos e simples pode ser 111
93
11
ica escala, dotada de graus diferenciados e ordenada segundo o
mesmo princípio. No caso, este princípio é o espaço social da inte-
",ão criado pelo agir voltado para o entendimento.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
94
requisito, pouco explorado, é a aprovação ou assentimento que ela
consegue arrebanhar.
O segundo requisito é um ponto delicado da reconsideração
habermasiana das relações entre esfera pública e comunicação de
massa. Aparentemente, a comunicação de massa representaria uma
considerável adição à comunicação pública, que, de outro modo,
estaria restrita ao sistema de lugares de convivência física. O que
seria uma contribuição significativa para o atendimento do requi-
sito do consenso público, além de permitir maior extensão cogni-
tiva dos temas e contribuições do debate público. Para Habermas,
embora tal faro contribua para o acréscimo das oportunidades de
inclusão na participação, por si só ele não se torna a única coisa que
importa, tampouco a mais importante. "Para a estruturação de uma
opinião pública, as regras de uma prática compartilhada de comu-
nicação, realizada por rodos, têm importância maior" (Habermas,
1994, p. 438).
Entre visibilidade e discutibilidade como propriedades da esfera
pública, a escolha de Habermas é clara desde Mudança estrutural: a
discutibilidade, entendida como a característica daquilo que é obje-
to de discussão, de argumentação, de debate, é o valor principal. E
se a extensão e/ou a intensidade da visibilidade, que é o que resulta
do predomínio da comunicação de massa, realiza-se em prejuízo da
discutibilidade, a escolha habermasiana será sempre a de criticar uma
coisa em favor da outra. E o diz, explicitamente, num trecho em que
aparentemente quer examinar o atendimento ao segundo requisito.
95
se produz uma opinião pública qualificada . As estruturas de
uma esfera pública controlada excluem discussões frutíferas e
esclarecedoras (Habermas, 1994, p. 438-9).
,;. comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
%
compartilhada de comunicação, a formação da opinião, controvér-
sia e discussões, que ele, aparentemente, usa como sinônimos. Se
por "opinião pública" devemos entender esse assentimento sobre
temas e insumos (contribuições, lances de cada participante gerado
na controvérsia pública), vale o registro de que, com a entrada em
cena das noções de controvérsia e discussão, o pêndulo aponta para
uma maior gravidade na idéia de debate e de competição argumen-
tativa. O que não deixa de ser bem-vindo na já tão excessivamente
"edificante" noção habermasiana de comunicação.
A opinião pública exerce influência sobre o sistema político (a
formação da decisão de corpos parlamentares, de governos e de
tribunais) e sobre o comportamento eleitoral dos cidadãos. Uma
influência a que, naturalmente, podem-se atribuir diversos graus
de legitimidade, a depender do modo como a opinião pública é
gerada. A influência se forma na esfera pública, na qual, ademais,
lura-se por ela. É claro, além disso, que a influência só se transforma
em poder quando afeta as convicções de membros autorizados do
sistema político e determina o comportamento deles. Essas são teses
básicas para Habermas (Habermas, 1994, p. 439).
Uma novidade consiste na caracterização da luta por influência
política na esfera pública. Os participantes da luta por influência
política baseada na opinião pública (que Habermas denomina
influência publicístico-política) são desde líderes políticos, pessoas
com cargos e mandatos, e os partidos tradicionais, até grupos reco-
nhecidos, como Greenpeace e Anistia Internacional, cuja influên-
cia está já estabelecida; mas são, também, pessoas que adquiriram
influência em virtude do prestígio acumulado em "esferas públi-
cas especiais" (lideranças religiosas, artistas e personalidades do
ambiente literário, ou esportivo, cientistas, estrelas de cinema e o
seu patrimônio de reconhecimento público, autoridade, reputação,
renome, popularidade).
Num esquema de interações básicas, falante e ouvinte são
papéis reversíveis, e a influência pode ser acompanhada em veto-
res precisos, relacionados às funções que cada um exerce em dado
momento. Num esquema de interações complexas, os papéis são
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA
97
mais demarcados, o que nos leva a precisar distinguir dois eixos
diferentes: de um lado, é preciso considerar a diferença entre
··organizadores, falantes e ouvintes; arena e galeria; palco e espaço
11· ervado ao público" (Habermas, 1994, p. 439); de outro, tenha-
e.: comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
98
mediante a comunicação pública apóia-se, no final das contas,
na ressonãncia, ou, mais exatamente, no assentimento de um
público leigo cuja composição é igualitária. O público de cida-
dãos precisa ser convencido mediante contribuições, compre-
ensíveis e dotadas de interesse para todos, das questões que
ele sente que são relevantes. O público possui essa autoridade
porque ele é parte constitutiva da estrutura interna da esfera
pública, que é onde os atores podem aparecer (Habermas,
1994, p. 440).
99
, orno domínio social operante e condição de possibilidade da
publicidade, a prévia existência de uma esfera pública.
A afirmação da autonomia da esfera pública (enquanto, nacu-
1.dmente, esfera do público) é muito interessante e é, por muitas
, ,1zões, preferível àquela clássica da esfera pública dominada. A
~ comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
100
que alcançam e afetam o mundo da vida - ou o componente social
do mundo da vida. Primeiro, as deficiências sistêmicas afetam,
privadamente, as biografias, as histórias de vida, as experiências pes-
soais. Depois, no meio-ambiente compartilhado da vida cotidiana,
as histórias se tocam, formam redes, as redes podem adensar-se nos
circuitos familiares, nos círculos de amigos, vizinhos, conhecidos.
Então podem ser vocalizadas ou verbalizadas na esfera pública,
dimensão da comunicação entre estranhos.
101
rnquanto o domínio privado se situa numa faixa de baixa visibilida-
1k, mas, também, numa escala de x a y (que vai desde o segredo e a
11nimidade até redes interpessoais de fofoca).
O primeiro movimento feito por Habermas, em Direito e demo-
' m eia, do normativo para o empírico vai encontrar uma caracteriza-
~ .lo da esfera pública que a situa entre a máxima publicidade do sis-
1 ·ma político (que afinal, lida com negócios públicos) e a máxima
• comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
102
~izaç~es interessantes sobre a esfera pública. Como a argumentação
e basICamente uma reconstrução de certo tipo de discussão sobre
sociedade civil nos Estados Unidos (aquela de Cohen e Arato,
1992) e na Alemanha, é difícil distinguir com exatidão o que é de
Habermas e que deve ser creditado ao discurso que ele apresenta.
Mas se pode seguir o argumento, que é bastante estruturado.
Primeiro, a esfera pública política continua sendo o domínio
para onde são dirigidos, pelas associações, organizações e movimen-
tos da sociedade civil, de forma ampliada, os problemas sociais que
res~o~1:1 no mundo da vida. E de tal maneira a função de ampliar
e dmgir os problemas para a esfera pública é importante para ela,
que o cerne da sociedade civil pode ser caracterizado pela institucio-
nalização de discussões sobre questões de interesse geral no quadro
de esferas públicas estruturadas. Claro, numa "esfera pública domi-
~ad~ pelos meios de massa e pelas grandes agências, observada por
mst1tutos de pesquisa de mercado e de opinião, e revestida pelo
trab~l~o de relações públicas [Ôffentlichkeitsarbeit], propaganda e
publicidade dos partidos políticos de grupos" tais discussões ins-
tit~cion~lizadas - ou designs discursivos - não constituem a parte
mais salie,nt~, mas o fato é que constituem o substrato organizacio-
nal _~o ~ublICo de cidadãos; cidadãos que "buscam interpretações
ace1tave1s para os seus interesses e para suas experiências sociais, e
que querem ter alguma influência na formação institucionalizada
da vontade e da opinião" (Habermas, 1994, p. 444).
Segundo, a esfera pública não é preservada ou, no limite, pro-
tegida de distorção simplesmente pelo aparato legal, mas por uma
sociedade civil que a emprega ativamente. Na verdade, a esfera
p~blica política, ao menos em certo sentido, deve ser capaz da pró-
pna reprodução e estabilização. Todas as expressões ou lances dis-
cursivos dos atores da sociedade civil na esfera pública, não impor-
tando exatamente qual o seu conteúdo semântico, comportam uma
dimensão performativa ou pragmática: aquela de tornar presente a
função de uma esfera pública política não-distorcida (Habermas,
1994, p. 447). Ao lutarem por influência e contestarem opiniões na
esfera pública, os atores civis, ao mesmo tempo, reafirmam a exis-
ESFERA PÚBLICA POLITJCA E COMUNICAÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA
103
1, ncia desta e reforçam a sua estrutura. É o que Habermas chama de
"o rientação dupla" dos atores que emergem da esfera pública: "com
m seus programas, influenciam diretamente o sistema político,
111 :is ao mesmo tempo lhes importa, reflexivamente, a revitalização
(' a ampliação da sociedade civil e da esfera pública, assim como
., confirmação da sua própria identidade e capacidade de agir"
(Ifabermas, 1994, p. 447).
comun§ção
COMUNICAÇAO E DEMOCRACIA
104
mas, a periferia tem mais sensibilidade para detectar e identificar
novas situações problemáticas do que o centro da política. De fato,
continua Haberrnas, é difícil imaginar que expoentes do aparato
estatal, das grandes organizações ou dos sistemas funcionais teriam
levado à discussão pública ternas corno o empobrecimento crescen-
te do Terceiro Mundo, riscos envolvendo engenharia genética ou
ameaças ecológicas decorrente da poluição da água ou da extinção
de espécies, por exemplo. Haberrnas chega a descrever um roteiro
cronológico da influência para situações como essas (embora admi-
ta haver outros): a) intelectuais, profissionais radicais, gente que faz
advocacia de interesses sociais levantam as questões, ainda na peri-
feria da política; b) as questões entram na agenda das revistas, das
associações, clubes, organizações profissionais, universidades, por
onde entram na roda de fóruns, iniciativas dos cidadãos e outros
meios e modos; c) os ternas cristalizam-se no cerne de movimentos
sociais e das novas subculturas, que os dramatizam a ponto de se
tornarem irresistíveis aos meios de massa; d) nos meios de massa,
os temas atingem um público alargado e podem ganhar um lugar
na agenda pública, alcançando o cerne do sistema político (no
qual serão considerados) ou exercendo influência em decisões, ou
fomentando novas plataformas dos partidos políticos ou influen-
ciando decisões das cortes judiciais (Habermas, 1994, p. 460-461) ..
Isso é possível mesmo na esfera pública mais esvaziada de poder
social e, conseqüentemente, mais visitada pelo poder proveniente
do sistema político. Em situações sentidas como urgentes ou críci-
cas pela sociedade, há uma mobilização endógena da esfera pública,
que reverte o padrão de fluxo de influência do sistema polícico. Uma
mobilização endógena em que, para citar Rawis, acontece um apelo
"ao senso de justiça da maioria da comunidade" (Habermas, 1994, p.
463, nota 76), por exemplo. E isso por causa de um fator fundamen-
tal, muitas vezes evocado por Habermas como regulador da relação
entre público e atores políticos: "os jogadores na arena devem a sua
influência ao assentimento da galeria" (Haberrnas 1994, p. 461-62).
Uma das observações finais do capítulo sobre sociedade civil e
esfera pública é particularmente elucidativa do papel que Haberrnas
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA
105
11ribui à esfera pública diante do sistema político. Falando deste
nltimo, Habermas explica que tal sistema está contido por dois
limites, um de cada lado. Enquanto sistema de funções sociais, o
mcema político é limitado por sistemas homólogos, que, em virtude
,l.1 lógica interna que os constituem, são barreiras diante do sistema
político (por exemplo, o poder administrativo e os seus instrumen-
tos fiscais e legais). Por outro lado, o sistema político é contido pela
r-~fera pública e depende "das fontes do poder comunicativo do
rnundo da vida". Nesse caso, não se trata de constrangimentos, mas
de uma "dependência de condições internas de possibilidade". "E
1 udo isso porque as condições que possibilitam a produção de leis
,. comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
106
contemporânea. As suas vantagens são muitas e qualquer resenha
demandaria mais do que algumas páginas. Provisoriamente, indico
cinco vantagens para o seu emprego em teoria polfrica, numa lista
incompleta e não devidamente elaborada: a) a idéia de esfera públi-
ca permite a superação da contraposição seca, de origem moderna,
entre sociedade e Estado. A esfera pública apresenta-se como uma
instância intermediária, atravessada por fluxos de comunicação e
influência de variada procedência e com múltiplos vetores; b) a
noção de esfera pública oferece uma oportunidade conceitua! para
o exame, empírico e normativo, das vinculações que a democracia
demanda que sejam estabelecidas entre cidadãos e sistema político.
A esfera pública não é um mero intermediário entre dois domínios
da vida política; sua mediação se realiza por meio das importantes
funções que cumpre no que se refere à legitimação do poder e da
decisão política; c) o conceito de esfera pública permite explicar
o lugar, o alcance e o papel de fenômenos sociais importantes
para a polfrica contemporânea, a começar pelos próprios meios
de massa, mas incluindo neste conjunto, também, por exemplo, a
profissionalização da polfrica institucional e daquela conduzida pela
sociedade civil organizada; d) a idéia de esfera pública permite, de
alguma forma, uma concepção mais secularizada do poder político,
que, nesse caso, submeter-se-ia aos constrangimentos do poder
comunicativo realizado pelos públicos de cidadãos; e) o conceito
de esfera pública certamente esteve na origem da formulação de
um modelo de democracia, a democracia deliberativa, que coloca a
discussão pública generalizada como centro gerador de legitimidade
da decisão polfrica.
Jürgen Habermas teve o mérito de trazer essa noção para o
centro da atenção intelectual da teoria social e o fez com tal sucesso
que os mais desavisados até esquecem que ele, desde o início, apre-
senta-se como quem quer examinar - e não fundar - uma categoria
historicamente dada. O sucesso da expressão, caprichosamente,
vinculou-se a ele de forma que o seu nome acabou dando origem
a um adjetivo que hoje em dia a acompanha. É assim que nasce a
esfera pública habermasiana, uma das importantes palavras-chave da
ESFERA PÚBLICA POLITICA ECOMUNICAÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA
107
tl'O ria social, mesmo para aqueles que o criticam, corrigem-no ou,
pdo menos, têm a pretensão de fazê-lo.
Esse justo reconhecimento não nos impedirá de levantar algu-
111::i.s objeções ao conceito e às caracterizações da esfera pública pre-
' ·ntes em Direito e democracia, obra em que este conceito encontra
, 1 sua formulação mais madura em Habermas. As reservas serão
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
108
diz, contudo, pelo menos não em Direito e democracia, como pode-
ria tal coisa acontecer uma vez que a esfera pública é escoadouro do
mundo da vida, que é a representação da rede de relações por meio
da qual se estabelecem as interações comunicativas básicas e reflexo
da sociedade civil.
A esfera pública parece sempre mais e melhor quando a refe-
rência é a esfera dos cidadãos. Naturalmente, isso se explica pelo
fato de a teoria da esfera pública de Habermas ter como propósito
dar suporte para o seu projeto de democratização social. Assim, a
esfera pública é mais sensível do que o Estado e as corporações às
questões do mundo da vida; ela funciona sempre em favor da esfera
civil (pois o Estado pode sempre fazer outros jogos), e ela cumpre,
sempre, a função de rematizar os problemas sociais que escapam ao
sistema político, num fluxo de comunicação pública, espontâneo,
cujas raízes estão nas experiências privadas dos cidadãos. As esferas
pública, privada e íntima se tocam; antes, a esfera pública parece
o desaguadouro de um fluxo de experiência proveniente das outras
esferas cujas raízes se aprofundam no mundo da vida. Habermas
insiste no seu argumento de que a esfera privada (da intimidade,
das redes de relações, não da economia e da política, o mundo da
vida, não o sistema) deságua seus temas e preocupações sociais na
esfera pública. Insiste, ademais, que o fluxo de remas ou questões
mantém sempre um vetor que vai do privado ao público. O fluxo
vai da vida vivida intimamente ao coletivo. Com isso, mantém as
raízes da esfera pública afundadas no mundo da vida, retirando daí
seu alcance e sentido social, argumento da sua predileção nessa fase
de esfera pública boazinha.
Há muito de republicano e de comunitarista nessa perspectiva,
mas há também algo das simpatias marxistas pela base da sociedade.
Numa perspectiva "basista", marxista ou republicana, autenticidade
e sentido estão no mundo da vida e os sistemas só podem deles apo-
derar-se se deitar as suas raízes no ambiente vital, espontâneo, real,
genuíno. Longe está a noção liberal de cidadãos egoístas autoconti-
dos pelo contrato social, más prontos para aproveitar as brechas do
controle e as situações de baixa vigilância para ações em proveito
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA
109
1 róprio. Aqui, não; aqui os indivíduos se dedicam maximamente
.1 cooperar em benefício da comunidade política. Não é preciso
nutrir excessivas simpatias teóricas pelos lobos hobbesianos (homo
homini lupus) para achar que esse paraíso comunicarista precisa de
11m pouco mais de realismo político.
Onde há cooperação, aí também pode haver competição, confli-
lO e conluio (Bartolini, 1999 e 2000). Seria um ganho admitir que
.1 esfera pública, como situação da interação, pode assimilar todas
as dimensões da lógica da interação social, até mesmo aquelas não-
·ooperativas. Para dizê-lo com clareza, a esfera pública de Direito
e democracia soa excessivamente cooperativa. 5 Primeiro, porque a
dimensão agonística, do debate social, da discussão pública, que
parecia tanto importar em Mudança estrutural, aqui aparece real-
mente muito pouco. A ênfase está posta no encaixe entre a esfera
pública e o mundo da vida, na materialização da ação comunicativa
(como ação voltada para o entendimento) na esfera pública e no
papel de mediação que a esfera pública exerce entre o mundo da
vida e o sistema político. Dá a impressão de que, diante de quase
trinta anos de crítica ao seu juízo sobre a esfera pública contempo-
rânea, Habermas tenha deslocado, excessivamente, o pêndulo para
o outro lado, e colocado demasiada ênfase numa esfera pública
que trabalha (sempre? apenas?) para o bem da sociedade civil e da
democracia.
Segundo, a esfera pública parece decididamente harmonizável
co m os dois domínios sociais que medeia. Ela se encaixa perfei-
tamente aos interesses do mundo da vida, a que funcionalmente
se espera que sirva, mas é também perfeitamente adequada para
5. Esta é uma base para a crítica à esfera pública e à democracia deliberativa realizada por Chantal
Mouffe ( 1999 e 2000) e para a formulação da sua idéia de "pluralismo agonística" . Também Jodi
Dean (2001) apresenta uma objeção semelhante. Em defesa de Habermas, John Brady (2004) tenta
demonstrar que na obra deste haveria lugar para uma dimensão agonística na noção de esfera
pública. Para ele, a insistência na cooperação e no consenso é simplesmente uma questão de ên·
fase, pois Habermas quer renovar as possibilidades de incremento dos mecanismos da democracia,
assegurando que ainda há lugar, e muito, para a sociedade civil nas democracias liberais. Na linha
de defesa, veja-se também Dryzek, 2005).
,. comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
110
o engate entre o sistema político e a esfera civil, integrando-se a
uma correia de transmissão que tem o propósito básico de produzir
legitimidade para a decisão política. A desarmonia, o desencaixe, as
aparas, as sobras, o atrito são dimensões admissíveis sociologicamen-
te, mas por que não o podem ser de um ponto de vista normativo?
"Normativo" não quer dizer depurado daquilo que empiricamente
nos desagrada; "normativo" tem a ver com a atitude intelectual de
considerar as coisas a partir do modo como elas devem ser essen-
cialmente. Não posso, por exemplo, por não me agradar a disputa e
preferir a serenidade, expurgar o conceito de político do seu aspecto
agonístico; se eu retirar a competição da política, não acredito que
me sobre ainda qualquer coisa de normativo, mas uma fantasia, um
construto mental a que nada corresponde na realidade. Por que à
esfera pública, ao domínio da interação social aberta e acessível, não
podem inerir essencialmente dimensões competitivas?
Numa esfera pública plausível, há de haver espaço tanto para
o lobo hobbesiano quanto para o cidadão socrático (Gundersen,
2000), tanto para a competição quanto para a cooperação, tanto
para o egoísmo quanto para o altruísmo, tanto para a vontade de
potência quanto para o reconhecimento do bem comum, tanto
para a ação estratégica quanto para o agir comunicativo.
Tomemos, ao acaso, um dos encaixes e vetores de Direito e
Democracia. Por que, por exemplo, o vetor vai só da privacidade
vital à publicidade discursiva, quando sabemos que a esfera públi-
ca pode invadir, predacoriamente, as esferas privadas e íntimas?
Esperamos que a esfera pública opere em benefício da esfera da
vida cotidiana, mas devemos esperar (e nos precaver contra) que
ela opere também em malefício, pois o essencial da noção de esfera
pública é a sua publicidade e não a sua bondade ou o seu funcio-
namento pró-cívico. Reservada esta publicidade, a esfera pública
tomará a forma que cada sociedade lhe conferir, operando tanto
de forma pró-cívica quanto anticívica, ou de ambas as formas ao
mesmo tempo.
Da mesma maneira, a esfera pública não necessariamente repre-
sentaria o desaguadouro discursivo das inquietações que nos afetam
ESFERA PÚBLICA POLITICA E COMUNICAÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA
111
110 nível mais básico da vida. No nível empírico, ela pode ser tam-
bém o instrumento pelo qual sistemas sociais e até energias endó-
genas à esfera civil nos conquistam e nos torcem nesta ou na~u.ela
direção, contra o nosso próprio interesse e o interesse democranco
da comunidade política.
No diagrama habermasiano, não se precisa sequer se a esfera
pública é apenas um desaguadouro, ou se é capaz de produção
endógena ou se há mesmo temas que provêm dos subsistemas
sociais. Na verdade, a esfera pública bem podia ser definida como:
a) o domínio social das coisas e temas com alta visibilidade social; b)
cm que são formulados e, eventualmente, examinados - por meio
de discussão, conversação ou qualquer outro procedimento discur-
ivo semelhante a estes - problemas sociais, questões relativas à vida
cm comum e à comunidade política, idéias e pontos de vista acerca
da res publica. Dessa forma, importa menos qual a natureza dessas
coisas e temas, ou onde elas estavam antes de virem à luz.
Ademais, é preciso admitir que a esfera pública é um domínio
ocial "insular". Mas é uma ilha não porque, de fato, constitua o
cerne da vida social, mas porque a visibilidade social é cercada de
reserva por todos os lados. Não apenas do lado de baixo, do lado
do mundo da vida, pois também a esfera privada em sentido estrito
(a esfera econômica) precisa de reserva e nutre-se dela; também o
campo da política precisa ao mesmo tempo de reserva e de visi-
bilidade, isso tudo sem falar em outros sistemas, como a religião,
que precisa da forma mais extrema de reserva, que é o mistério. A
categoria-chave é a publicidade, a acessibilidade. Quando falamos
de esfera pública contraposta à esfera íntima e privada, queremos
referir-nos a um alto nível de acessibilidade a fatos, informações,
interpretações. A rigor, a discutibilidade poderia ser bem caracteri-
zada como um modo da visibilidade, no sentido de que é ela que
permite uma visibilidade maior e mais qualificada - porque exami-
nada e testada por vários ângulos e em contraste com outros pontos
de vista - dos fatos, informações e interpretações da política.
A esfera pública não existe essencialmente para satisfazer os
nossos ideais de justiça, nem em virtude da soberania popu-
.. comun§ção
COMUNICAÇAO E DEMOCRACIA
112
lar nem para o bem da comunidade política. Esferas públicas
que satisfazem tais requisitos devem ser construídas, devem ser
acompanhadas por uma cultura política favorável, em que valo-
res democráticos sejam compartilhados extensa e intensamente,
devem ser guardadas e reforçadas. Sistemas de recompensas e de
constrangimentos precisam ser construídos para a sua salvaguar-
da, instituições precisam ser desenhadas para a sua reprodução,
leis precisam ser produzidas para que o Estado funcione como
garantidor da sua existência, cidadãos precisarão ser convencidos
da sua imprescindibilidade. Uma esfera pública pró-democrática
é uma tarefa, não uma conseqüência que se possa extrair norma-
tivamente do seu conceito.
113
Hoje se fala de opinião pública também em outros sentidos. O
I'' imeiro desses sentidos alternativos produz uma equivalência entre
, op inião pública e a opinião publicada. 6 Esta conserva a "publi-
' idade" no sentido de mera "acessibilidade" ou "disponibilidade",
,lhpensando , por não ser essencial, a idéia de a opinião pública ser
11·~ultado da discussão realizada em público e o fato de que a opi-
111áo é pública porque sustentada coletivamente. O modo de pro-
,111 ão não conta, a ausência de um sujeito coletivo não conta; a sua
t xposição ao olhar público, sim. Como, nesse caso, a publicidade
:. comun&,ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
114
Uma segunda alternativa ao tipo de opinião pública liberal-
iluminista é aquela opinião que aparece nas sondagens realizadas
para fins políticos ou mercadológicos. A rigor, o que estas pesqui-
sas oferecem são medições da disposição (no sentido que o termo
"disposição" tem num jogo de tabuleiros) do público em face das
posições (na verdade, um conjunto pequeno de opções pré-estabe-
lecidas) que lhe são apresentadas.
Naturalmente, quando Habermas fala de opinião pública,
refere-se ao nobilíssimo primeiro tipo de opinião. Não há razões,
do ponto de vista da teoria democrática, para discordar da sua
predileção. Mas pode haver uma boa razão sociológica para um
válido ceticismo sobre a influência, que ele tem por assegurada,
da opinião pública do primeiro tipo sobre o sistema político e
sobre a sociedade. Há boas e válidas razões, ao contrário, para
acreditar que o tipo de opinião reflexiva, apoiada em razões
públicas, produzida em público, depois de debates abertos,
exerce muito menor efeito sobre as esferas nas quais são tomadas
as decisões políticas, por exemplo, do que a opinião pública do
segundo ou, principalmente, do terceiro tipo. Parece bastante
razoável admitir que a opinião publicada exerça uma influên-
cia considerável sobre as decisões políticas, que os príncipes da
opinião política das indústrias da informação e do campo do
jornalismo possuam, ao mesmo tempo que um enorme patrimô-
nio de credibilidade jornalística, uma cota altíssima de capital
político. E, no que tange à opinião número três, a disposição
pública aferida pelas sondagens, o seu poder é ainda mais direto
pelo fato de que a disposição pública está sempre pronta a ser
convertida em votos. Na verdade, a influência da opinião publi-
115
, ,tt.bsobre o sistema político é tão grande justamente em função
.l.1 sua capacidade de, por sua vez, influenciar a opinião pública
rio terceiro tipo.
O ra, essa perspectiva tem conseqüências sobre as dimensões da
r-\Íe ra pública examinadas acima. A predileção pela discutibilidade
r m detrimento da visibilidade tem como conseqüência enfraquecer
,•mpiricamente a noção de esfera pública, embora, de um ponto de
vista ideal (epistemológico, como prefere Habermas), a escolha se
JU tifique. A rigor, o fato de as opiniões públicas do tipo dois e três
\ •rem mais eficazes do ponto de vista da influência política, aponta
para o fato de a visibilidade ser, na prática, mais influente do que a
liscutibilidade. Significa que a discussão pública tem menor efici-
~ncia na produção da influência do que a exposição pública. Signi-
fica que a visibilidade e os sistemas especializados na sua produção
· gestão, a começar pela comunicação de massa, têm papel central
para a democracia contemporânea. Mas, então, Direito e democracia
é um bom ponto de partida, não um ponto de chegada.
~ comun§ção
3
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
Wilson Gomes
Q
em quiser considerar a política e a democracia contem-
orâneas servindo-se, para tanto, da noção de esfera públi-
a política, não pode evitar uma herança complicada que
acompanhou a história dessa noção, a saber, o problema da ava-
liação das suas relações profundas com os meios de comunicação.
Esse problema é uma "herança" no sentido de que já se punha, com
sentido dramático, na obra de 45 anos atrás que ainda constitui a
referência histórica mais importante na construção da noção de
esfera pública: Mudança estrutural da esfera pública. E é também
uma "herança" no sentido de que a discussão do problema ainda
é muito dependente das bases narrativa e conceituai estabelecidas
naquela obra.
No arco desses quarenta e cinco anos, passamos de uma pers-
pectiva que claramente responsabilizava a comunicação industrial de
massa pela desvirtuação da esfera pública (Mudança estrutura~, para
uma perspectiva que aceita como fato concreto que a esfera pública
predominante repousa sobre a plataforma da comunicação pública
mediada pelos meios de massa, pagando, contudo, pelos ganhos
em acessibilidade e abstração com a perda da discutibilidade ou,
ao menos, de níveis democraticamente densos de discussão pública
comun/§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
118
(Direito e democracia). Os movimentos posteriores aproximam 0
Habermas de uma literatura mais qualificada e menos pessimista ma
sobre comunicação política e, embora o tom dominante seja ainda de
de resignação e de inventário das perdas, a cada nova intervenção Jo
Habermas reserva um pouquinho mais de espaço para o reconhe- idé
cimento de alguma contribuição da comunicação de massa para a ren
deliberação pública e, por conseqüência, para a democracia. 1 pú
Há um pressuposto inevitável que nos compele ao exame da
interface entre esfera pública e comunicação de massa: na sociedade qu
contemporânea, não há espaço de exposição, exibição, visibilidade o
e, ao mesmo tempo, de discurso, discussão e debate que se com- e
pare em volume, importância, disseminação e universalidade com se
o sistema da comunicação de massa. Por isso mesmo, grande parte in
das práticas políticas democráticas estabelece relações fundamentais m
com o espaço discursivo predominante: a cena midiática. Nesse co
contexto, parece natural indagar sobre a possibilidade de ainda
se pleitear a existência, por detrás da estruturação peculiar a que co
se submete tudo o que se expõe no grande palco dos meios de qu
comunicação, de formas de discussão pública em que se consiga 0
ainda reconhecer a existência de uma esfera pública dotada de valor, es
alcance e sentido democráticos. co
Na verdade, a categoria da ôffentlichkeit ou esfera pública d
habermasiana é um pólo magnético ao qual são atraídas e ao qual so
são agregadas certas noções básicas que, depois, não são destrincha- a
das com precisão pela análise. Em Mudança estrutural, por esfera
pública deve-se entender o domínio social das discussões em que o
H
v
1. Neste sentido, o artigo de 2006, fruto de uma conferência para pesquisadores de comunicação,
s
representa o ponto mais avançado a que o autor chegou no reconhecimento de algum valor para l
a comunicação de massa nos quadros da democracia deliberativa. Ainda assim, lá está o inven- p
tário das perdas: "( ... ) mas a esfera pública política é ao mesmo tempo dominada pelo tipo de
comunicação mediada, a que falta características fundamentais da deliberação. São deficiências l
evidentes, a esse respeito, (a) a falta da interação face a face entre participantes presentes em uma c
prática compartilhada de to mada coletiva de decisão e (b) a falta de reciprocidade entre os papéis p
de falantes e destinatários em uma troca igualitária de reivindicações e opiniões" (Habermas,
2006, 415). c
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
119
cidadãos privados se engajam quando reunidos em públicos. A
arca liberal do conceito é indisfarçável na privacidade evocada na
finição, na qual certamente ecoa a idéia de autonomia privada
os cidadãos. A marca iluminista está fixada definitivamente nas
éias de publicidade da discussão, na sua dupla condição decor-
nte das circunstâncias de sua realização (em público e por meio de
úblicos) e da natureza do: seus elemen:os _(us~ de raz~e~ públ'.cas).
Em Direito e democracia, a esfera publica e o dommto social em
ue os fluxos de comunicação provenientes dos contextos da vida
oncreta de atores sociais, individuais ou coletivos, são condensados
filtrados como questões, indagações e contribuições, firmando-
e ao redor do centro do sistema político como força tendente a
nfluenciá-lo de modo favorável à esfera civil. Representa basica-
mente O provimento de pressões e alternativas, provenientes do
orpo da sociedade, para a legitimação da decisão política. .
Em Mudança estrutural, a esfera pública burguesa caracteriza-se
omo parte de uma engrenagem historicamente dada, por meio da
ual se busca assegurar a autonomia privada ~os_ indivídu?s contra
Estado autoritário. Assim, entre a esfera mnma e privada e a
sfera estatal, forma-se uma esfera pública de indivíduos privados,
omposto essencialmente por visibilidade e discutibilidade, proce-
imentos voltados para (a) conter o avanço do Estado autocrático
obre os domínios da intimidade e da privacidade e (b) permitir o
avanço da cidadania para o interior do domínio estatal.
Direito e democracia não tem mais sobre os seus ombros as
obrigações de uma reconstrução histórica da esfera p~bli~a liberal.
Habermas está, então, livre para realizar uma cons1deravel con-
versão do material liberal, por meio do republicanismo, para o
seu modelo de democracia deliberativa. O modelo de democracia
liberal precisava de uma arquitetura institucional que, ori:ntada
pelo princípio da autonomia privada dos cidadãos, garannsse as
liberdades privadas e públicas. O modelo republicano, por sua vez,
colocava ênfase numa arquitetura institucional capaz de assegurar
participação civil nos negócios públicos, igualdade e inclusão da
cidadania na esfera política. O modelo deliberacionista, por sua
cgmun§ção
COMUNICAÇAO E DEMOCRACIA
120
vez, haveria de propor uma arquitetura institucional voltada para
garantir e intensificar a busca cooperativa, por parte de cidadãos
que discutem uns com os outros, da solução de problemas políticos.
Nesse sentido, a esfera pública é parte de uma engrenagem social
voltada para a solução coletiva - porque publicamente discutida,
formulada e deliberada - de problemas que afetam a comunidade
política, num sentido que faça valer os interesses da sociedade civil
(portanto da periferia do sistema político) no contraste com as
pressões sobre o Estado (portanto, o centro do sistema polírico)
exercidas pelos sistemas sociais.
A rigor, a caracterização de Direito e democracia não substitui
a definição de Mudança estrutural. As dimensões fundamentais da
noção são asseguradas: estão lá (a) a discursividade e a discutibili-
dade, (b) a publicidade como visibilidade, (c) a publicidade como
qualidade das razões. Apenas (d) a privacidade agora parece ser lida
em chave de (e) sociedade ou esfera civil, convertendo-se a ênfase
liberal na igualdade de direitos e liberdades do indivíduo diante do
Estado na ênfase deliberacionista, no governo exercido pela opinião
pública.
Em primeiro lugar, o debate público pressupõe que as posições
e interesses dos debatedores devam, imprescindivelmente, apresen-
tar-se na forma de enunciados e submeter-se ao jogo argumentativo
de objeções, demonstrações e contra-objeções. A argumentação
distingue-se da mera conversação porque cumpre duas exigências
de que se dispensa esta última: antes de tudo, é dominada pelo
uso da razão em procedimentos demonstrativos - a racionalidade
argumentativa; em virtude disso, orienta-se por um escopo preciso:
a obtenção de consenso, ainda que provisório e parcial, mediante
o convencimento racional dos antagonistas, a respeito da posição
em discussão.
Em segundo lugar, o debate deve ser público ou aberto no
sentido de que o objeto que se debate e os argumentos que se apre-
sentam, bem como as razões que presumivelmente os sustentam,
ganham exposição ou visibilidade e, por conseqüência, disponibili-
dade ou acessibilidade.
DA DISCUSSAO AVISIBILIDADE
121
Em terceiro lugar, o debate é conduzido por indivíduos na con-
elição de cidadãos comuns, não pelo governo ou por particulares.
No modelo da esfera pública burguesa, o cidadão comum é um
"privado", um desprovido de investidura ou poder provenientes do
Estado, da Igreja ou do sangue. A "privacidade" é, por princípio,
uma garantia de que não serão admitidos ao debate aspectos e
di mensões não-argumentativas da vida social, como o dinheiro ou
.1 fo rça. Isso porque, como participante do debate, cada cidadão, em
~ comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
122
período que nos separa de Mudança estrutural. Em geral, as ques-
l1
tões estão relacionadas às duas dimensões fundamentais envolvidas
1
na caracterização da esfera pública, a saber, a discutibilidade e a
d
visibilidade. Assim, as alternativas mais tradicionais em geral lidam
11
com uma tensão entre as duas dimensões, uma tensão que se resolve
"
pela exclusão, pela subordinação ou pelo engate entre elas.
,!
·,t
O ceticismo quanto à argumentação
Há, antes de tudo, a alternativa dominada por um forte ceticis- \,
em
2. No _quadro da dis_cussão_ que se pode realizar aqui, trata-se de uma reconstrução esquemá tica co
para fins de expos1çao, e nao de uma reconstrução do estado da pesquisa.
E
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
123
1léias nacionais, cujos nomes indicam que são âmbitos destinados
1 negociação discursiva e argumentativa - é, provavelmente, a
demo nstração mais cabal dessa tese. O paradoxal é que tal institucio-
1.dização da esfera pública legal, deliberativa e normativa, não mais
' estabelece para proteger os privados contra o Estado, como era o
!t-stino da esfera do debate público como invenção burguesa, mas
t' si tua dentro do Estado e como legitimador institucional deste.
O segundo fenômeno diz respeito ao fato de, com a sua conver-
10 em esfera pública midiática, a esfera pública ter praticamente
C01)1UílJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
124
para fazer com que as decisões ou opiniões que se produziram de
forma não-pública possam emergir publicamente de modo a obter
dos cidadãos assentimento, adesão ou, pelo menos, uma simpática
tolerância. A esfera pública conserva a sua dimensão discursiva e de
visibilidade, mas aqui o discurso se destina a conseguir boa vontade
do público para uma posição determinada, e a visibilidade se trans-
forma em exibição.
Obviamente, não se trata mais da esfera do debate público,
meio fundamental da produção da opinião e da vontade públicas,
mas de uma esfera da representação ou exibição pública, em que
um público, degradado à forma de um conjunto de espectadores,
comporta-se aclamativamente. Também a esfera pública legalizada
não funciona diferentemente. Para que cumpra o seu papel de
legitimação, basta que a opinião não-pública se apresente discursi-
vamente nas assembléias decisórias. Nelas, as decisões ficticiamente
requisitadas pelos oradores podem estar absolutamente desvincula-
das do tirocínio argumentativo que aí se encena, sendo o resultado
de cálculos de perdas e ganho ou de negociações compensatórias já
realizadas nos bastidores.
Para o jovem Habermas, a esfera pública midiática é, portanto,
uma esfera de representação pública de posições geradas de forma
não-pública. Porque discursiva, ganha a aparência de esfera pública.
Na realidade, é esfera pública encenada, espetacular, espaço de exi-
bição, vitrine de opiniões em disputa pela atenção e adesão.
Provavelmente, as maiores limitações da visão dessa primeira
fase de Habermas consiste em subestimar o potencial argumenta-
tivo da cena política midiática e a sua capacidade de produzir - e
não apenas representar - a opinião pública. O juízo genérico sobre
a existência de uma esfera aparentemente pública, mas desprovida
de função produtiva da opinião pública, por conseguinte um simu-
lacro de esfera pública, talvez se tenha orientado por uma visão
demasiadamente conspiratória do papel dos meios de comunicação
no sistema social.
Entretanto, como quer que se avalie, a posição do Habermas de
Mudança estrutural é muito importante na medida em que formula
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
125
iodas as características da cena política midiática que a diferenciam
ri · uma autêntica esfera pública, e na medida em que esta sua carac-
1erização fornecerá o quadro com que terá que lidar toda discussão
posterior a respeito do tema.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
126
Essa posição consegue algum sucesso, em tempos de desconfian-
ça disseminada em relação aos temas iluministas que orientaram a 11
f~rmação da idéia de esfera pública, mas se expõe facilmente em lm
vmude da deficitária compreensão de democracia que comporta. ' .,
Nã~ é di~ícil ,ªr~umentar que negar a esfera pública seria negar p
r~al1dade a propna democracia. O que o conceito de esfera pública p.
circunscreve ou recorta não é uma instituição circunstancial ou pt
eventual da sociedade burguesa, mas uma realidade essencial da ri
democracia moderna. .11
. Para ~urros, o problema da idéia de racionalidade prática polí- 11
tica consiste em subestimar que a razão pública, como outra razão
qualquer, é visitada por instâncias não-racionais que a controlam •1u
como o interesse próprio ou a posição de classe. Ao contrário d~ 1 o
céu ~luminista, a política sempre foi a arte de se lidar com emoções, ,·
deseJos, temores, cobiças. As assembléias políticas não conhecem tiv
u~a ise~ção que permita o exercício ponderado, leal e objetivo da do
racionalidade, mas são organizadas pelas disparidades que provêm •,6
de fora delas, pelo interesse e pela vontade de domínio.3 t· v
de
Pode-se prescindir da argumentação numa democracia? S
. Existem praticamente tantas listas de requisitos para a democra- ua
cia quanto os autores que formularam uma teoria da democracia.
Um bom método de seleção consiste em se colocar sob um deter- po
1:zi~ado aspecto da prática democrática para, a partir deste recorte, .1d
rndicar-se os componentes essenciais da arquitetura institucional ,\
d~mocrática. Pois bem, considero bastante razoável que do ponto de for
vista dos proc:ssos de p7:oduçáo da decisão política, duas instituições, me
ao menos, seJam consideradas essenciais para a democracia em seu Di
sentido moderno: a existência de eleições (eventualmente, de refe- sis
rendos) de tempos em tempos e uma esfera do debate público. raz
4. P
3: John Brady (2004) faz interessante resenha dessas posições, considerando particularmente as posi· biliz
çoes de Jod~.Dean (2001 e 2003) e Chantal Mouffe (1999 e 2000). Para a discussão da noção de "public sp
deliberatron , para a qual confluiu recentemente a idéia de "esfera pública", veja-se /an Shapiro (1999). con
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
127
O episódio eleitoral, em lapsos regulares, à base de um sufrágio
111iversal, estruturado como competição entre diferentes programas
mlitucionalmente representados e livres para apresentar-se publi-
.,mente, serve para garantir que o poder político não se torne um
piinhão estável dos que o exercem. O poder político que se torna
.ttrimônio de um grupo é expropriado da esfera civil, que sobre ele
t·rde o controle que lhe é de direito num sistema democrático. As
·ições têm o propósito de fazer com que o poder político retorne
1, cidadãos para que, de tempos em tempos, possam, de novo, o
ribuir a outros sujeitos e posições em disputa.
Uma esfera argumentativa, por sua vez, garante, em princípio,
ue as decisões concernentes ao chamado bem comum sejam
onseguidas por meio de um procedimento leal e justo, aberto,
·visável e visível. A democracia precisa que as instâncias delibera-
vas funcionem como esfera pública para proteger o bem comum
o arbítrio do domínio que não precisa dar razões das suas deci-
6es. O contrário seria aceitar que a política fosse pura estratégia
vencessem sempre e necessariamente os poderosos (os detentores
e qualquer poder, e não apenas daquele físico ou financeiro).
ria negar a democracia, que, em princípio, é incompatível com
arbítrio.
H á esferas deliberativas especializadas no centro do sistema
olítico, na forma de parlamentos, tribunais, conselhos e colegiados
dministrativos. O tirocínio argumentativo, que deve ser obediente
regra da maioria, serve, nesses casos para produzir decisões (na
orma de decisões legislativas, políticas, leis, veredictos, decretos e
edidas administrativas etc.) em conformidade com o Estado de
ireito. E há a esfera argumentativa generalizada, na periferia do
stema político, que ao condensar e testar, numa troca pública de
zões, as demandas provenientes da esfera civil, 4 torna-as legítimas
Para Habermas (2006, p. 416) a esfera pública deve principalmente cumprir a função de "mo-
zar e harmpnizar questões relevantes, e as informações que para tanto são necessárias e para
pecificar informações" . Mas também está no horizonte da deliberação pública "processar tais
ntribuições discursivamente por meio de argumentos apropriados a favor e contra· e "gerar as
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
128
diante dos sistemas socialmente especializados de produção de 11
decisão política. pú
Além disso, negar a esfera pública é desqualificar o episódio rm
eleitoral, esvaziá-lo de substância e desfigurá-lo de tal modo a ponto 1 1
de torná-lo irreconhecível. Uma eleição democrática não se destina m
simplesmente a autorizar certos sujeitos a governar ou a legislar, 11
mas a participar de forma deputada da esfera deliberativa legítima, ,o
no âmbito de alcance daquela eleição. Uma eleição destinada a N
autorizar o governo sem esfera pública seria, na verdade, uma auto- g
rização ao arbítrio, à ditadura: seria um monstro antidemocrático, 11
~c
a eleição do tirano. Justamente do contraste entre a pressão do
,
governo - autorizado eleitoralmente - e a contrapressão legalmente
garantida pela esfera pública e acionada pelo parlamento - autoriza- in
do eleitoralmente - nasce o jogo que rege as democracias modernas.
A qualidade democrática de uma sociedade depende obviamen-
V
te de índices associados às eleições. Nesse sentido, admitimos que
uma sociedade é democrática caso nela se realizem eleições regulares :u
e mais democrática, ou menos democrática, a depender de quanto n
for inclusivo o seu colégio eleitoral - isto é, quanto mais o seu m
número aproximar-se daquele dos indivíduos adultos -, de quanto ti
mais públicas e gerais forem as regras que a controlam etc. Todavia,
índices associados às eleições nem de longe são suficientes para o "
julgamento da qualidade democrática de uma sociedade. Um juízo s
seguro, nesse sentido, garante-se com índices associados às eleições P
compostos com índices associados à esfera pública. Assim, há de se c
reconhecer que mesmo uma sociedade cuja admissão à possibilida- u
de de governar e de legislar esteja vinculada a eleições democráticas é
não será realmente democrática sem que as suas instâncias delibera- m
tivas funcionem como esfera pública. c
É, por conseguinte, tanto mais democrática uma sociedade m
quanto mais inclusiva a sua esfera pública deliberativa, quanto
5
atitudes contra e a favor racionalmente motivadas, que se espera para determinar o resultado de b
decisões procedimentalmente corretas". s
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
129
11.üs as suas instâncias deliberativas ganharem a forma de discussão
ública, principalmente as suas instâncias deliberativas mais gerais
m que o interesse comum se converte em coisa pública. A demo-
1.1cia não pode ser simplesmente o sistema no qual o povo pode
mudar o governo, como reza uma frase atribuída a Popper; é, sobre-
11do, o sistema no qual a legitimação das questões relativas ao bem
omum se dá por meio de práticas de discussão pública autêntica.
Nesse sentido, é importante não só que a instância deliberativa mais
g ral - o parlamento - funcione com esfera pública; mas sim que,
1uanto mais as micro-redes de decisão no interior do tecido social
c apoiem numa argumentação pública, mais democrática seja essa
ciedade, mais enraizada seja a cultura democrática na alma dos
ndivíduos.
5. Esta é uma posição que se encontra, por exemplo, na literatura francófona sobre a esfera pú-
blica. Acredito que a tradução de "ôffentlichkeit" como "espace public" tenha influenciado nesse
sentido. Recomendo, nessa perspectiva, a leitura de DominiqueWolton (1983, 1990 e 1995),
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
130
tuem, evidentemente, aquilo que se poderia chamar de dimensão
ou esfera pública.
Alguma relação com a esfera pública que Habermas identifica à
origem da sociedade burguesa? A resposta só poderia ser afirmati-
va. De fato, a descrição da esfera pública em Habermas é ampla o
bastante a ponto de incluir: a) a esfera da visibilidade e exposição
social - a atualidade que se oferece ao conhecimento comum; b) a
discussão, o debate e a argumentação com propósito deliberativo,
demonstrativo, conclusivo; c) a conversa, o debate, a discussão, a
comunicação como formas de interação social. O que se faz nessa
posição é selecionar e destacar os aspectos comunicativos e de expo-
sição pública, diante da dimensão argumentativa que parece estar
incluída nas caracterizações habermasianas.
Operada tal seleção, não há como desconhecer o fato de que a
sociedade contemporânea também se dotou de uma esfera domi-
nante, de visibilidade e sociabilidade, praticamente organizada
ao redor dos meios de comunicação e estruturada segundo a sua
lógica. De modo que, se a esfera pública burguesa se caracteriza,
antes de tudo, pela publicidade e pela interação comunicativa,
por que não reconhecer, coerentemente, que ela é idêntica, em
todas as sociedades, à esfera da publicidade e visibilidade social?
Além disso, como a esfera da visibilidade social hodierna é quase
integralmente situada nos e estruturada pelos meios de massa,
por que não reconhecer que a esfera pública contemporânea é
midiática?
Essa posição, enquanto admite sem embaraço uma nova esfera
pública, estruturada e pré-formada pelos media, ela mesma um
medium de sociabilidade e visibilidade por excelência, permite con-
sideráveis avanços na compreensão da cena política contemporânea.
Entretanto, considerar que a visibilidade e a sociabilidade são tudo
aquilo que constitui a esfera pública é impedir uma compreensão
correta tanto da esfera de visibilidade pública quanto do lugar da
esfera pública na democracia. a
Ora, por mais ambíguas que sejam as caracterizações de Haber- C
mas, do ponto de vista conceituai, fica claro naquele autor que a p
a
DA DISCUSSÃO A VISIBILIDADE
131
r•J ·ra pública é principalmente a esfera do debate público; o seu
r feito não é mera visibilidade social, mas a acessibilidade das posi-
1,oes expostas ao juízo público; o seu propósito não é simplesme~te
,t criação de sociabilidade, mas o convencimento demonstrativo
6. No Brasil, além de Rousiley Maia e dos meus próprios estudos (agora reunidos ne~te livro, ,com
a exceção de Gomes 2001 e 2006), na área de Comunicação, também Leonardo Avntzer e Serg10
Costa, nas Ciências Sociais, vêm trabalhando desde os anos 90 com uma agenda de estudos
positiva sobre a idéia de esfera pública. Dois outros autores portugu.eses v.êm adotando a mesma
agenda: João Pissara Esteves, desde os anos 90, e João Carlos Correia, mais recentemente.
COMUNICAÇÃO EDEMOCRACIA
132
extensas micro-redes comunicacionais da Lebenswelt - quanto da
macropolítica.
Ainda que a esfera pública tenha se tornado midiática de forma
quase integral, conserva a sua capacidade de formar opinião. É pos-
sível, enfim, mesmo numa lógica do entretenimento, a realização
do crivo entre as posições que se apresentam na cena midiática.
De fato, a extinção da argumentação não é da natureza dos meios.
Tanto é verdade, que vemos discussão política acontecendo dentro
e fora da cena midiática.
Isso não significa que a cena midiática seja uma esfera pública
em sentido estrito. Não se pode transferir automaticamente todas as
propriedades da esfera pública para a esfera de visibilidade editada
e controlada pela comunicação de massa, a não ser que se desfigure
a noção de esfera pública ou que se exagere a importância dos fatos
argumentativos e comunicativos que existem na cena midiática.
A noção de argumentação pública, ou de troca pública de razões,
constitui essencialmente o conceito de "esfera pública". E Haber-
mas está certo ao dizer que a argumentação pública possui certos
requisitos que a cena midiática não é integral e automaticamente
capaz de atender.
E não simplesmente por causa do "face-a-face", que Habermas
considera essencial, mas que na verdade é apenas o meio mais fácil
de garantir o cumprimento de certos requisitos de uma discussão
leal e sincera: possibilidade de ser retrucado, obrigação de ouvir
e levar em consideração o que o outro diz, disponibilidade para
ser convencido, obrigação de competir pelas melhores razões etc.
Esses requisitos são fundamentais, mas só podem ser exigidos de
argumentações moralmente corretas - o que nos leva à questão,
que não podemos responder aqui, se apenas debates moralmente
corretos podem ser argumentações públicas. Além disso, Habermas
insiste que a esfera midiática não garante uma condição essencial da
discussão, que é a possibilidade de rodízio nas posições de falante e
ouvinte. A assimetria da opinião publicada consiste no fato de que
apenas alguns são falantes e de que quem exerce o papel de audiência
normalmente não pode ocupar espaço do palco no teatro político.
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
133
Além disso, a esfera midiática tem muito mais do que argu-
111 ' ntação. Muito mais, porque os seus materiais são da mais
v.1riada natureza. Na sua formulação mais ecumênica, Habermas
ulmite que "na periferia do sistema político, a esfera pública está
,·nraizada em redes de fluxos não-refinados de mensagens-notícias,
1 ·portagens, comentários, falas, cenas e imagens, e programas e
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
134
desde a invenção da democracia moderna. Para um juízo correto
sobre a democracia contemporânea, entretanto, é imprescindível
separá-los com precisão.
O primeiro fenômeno a que me refiro é aquele âmbito da
publicidade social que pode ser denominado "esfera de visibilida-
de pública". É a cena ou o proscênio social, aquela dimensão da
vida social ("polfrica" ou "civil", diriam os antigos) que é visível,
acessível, disponível ao conhecimento e domínio públicos. A esfera
(da visibilidade) pública responde a demandas de sociabilidade e
de comunicação. Fundamental em todas as formas sociais para a
constituição e manutenção do cimento social, ganha nas socieda-
des modernas um papel importante para a vida democrática, que,
como sabemos, comporta uma série de demandas cognitivas que só
aí são satisfeitas. Numa democracia de massa, não há como estabe-
lecer consensos, reconhecer as questões relativas ao bem comum e
as posições em disputa eleitoral sem que se passe por um tal meio
essencial de sociabilidade.
Por isso mesmo, sempre pareceu importante aos burgueses a
proteção da esfera de visibilidade pública - da qual faz parte a cena
polfrica - de qualquer ameaça de redução ou extinção. As chamadas
liberdades de expressão e de imprensa são tão-somente garantias,
legalizadas pelo Estado de Direito, voltadas para a proteção da
publicidade social, evitando as ameaças do domínio incontrolável
de um poder que pudesse ser exercido ocultamente e, portanto,
insubmisso a qualquer visibilidade, a qualquer controle. A visibili-
dade é instrumento da perda de altura e de aura por parte do poder.
A necessidade de que as posições e sujeitos em disputa se exponham
- alguns exageradamente falariam de necessidade de transparência
- é uma necessidade antitirânica, que substitui o temor e a venera-
ção pela adesão consciente.
Obviamente, a esfera de visibilidade pública não é necessaria-
mente moderna nem democrática. Toda sociedade constitui sua
própria esfera pública nesse sentido, e ali se depositam as suas for-
mas de comunicação e a sua sociabilidade. Assim, temos exemplo
de esfera pública de corte, de esfera pública eclesiástica etc. Típico
DA DISCUSSÃO A VISIBILIDADE
135
1 l.t esfera pública democrática, nesse sentido de cena pública, é que
., visibilidade é uma forma de controle do poder, é o meio funda-
mental da sua secularização.
O segundo fenômeno, que pode muito justamente ser chamado
"esfera pública", é o âmbito da publicidade social que é conveniente
no mear aqui como "esfera de discussão pública". Nela, mantém-se
orno fundamental a idéia de exposição, de visibilidade. As posições
1 m disputa expõem-se de forma que todos saibam delas e se dêem
~ comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
136
Enfim, a esfera de visibilidade pública é, além disso, fundamen -
tal para a esfera da discussão pública7 numa democracia de massa
por pelo menos duas razões: a) a esfera pública deliberativa precisa
da exposição da esfera de visibilidade pública para cumprir o seu
papel de discussão aberta a todos os concernidos. Numa socie-
dade de massa, a disponibilidade e a acessibifídade, características
essenciais da esfera do debate público, podem garantir-se apenas
formalmente - o que equivale a perder-se - se não se convertem
e~ visibilidade; b? a esfera de visibilidade pública torna disponíveis,
amda que na maior parte das vezes não os produza, os temas de
interesse público que são introduzidos no debate público ou que
provocam a instalação de debates públicos, internos ou externos à
própria cena pública.
Por outro lado, confundir ou identificar a cena pública com o
debate público é um pecado conceitua! grave. Infelizmente, a maior
parte das posições na discussão sobre esfera pública e media come-
tem-no ou chegam perto disso. Aliás, a discussão toda vem sendo
prejudicada por um pecado de origem que consistiu em confundir
os dois fenômenos, desde Mudança estrutura!. Na sua reconstrução
histórica, Habermas trabalha com a publicidade social como fenô-
meno unitário para referir-se ao qual, como é natural, o autor usa
ora conceitos ou definições, ora descrições ou caracterizações. O
problema consiste no fato que ele trata esse fenômeno ora usando
as descrições apropriadas à cena pública, ora aquelas apropriadas à
discussão pública, mas definindo-o nos termos da esfera do debate
público. O modo como ele vê a esfera pública contemporânea, em
termos de decadência e simulacro, é resultado dessa complicada
operação conceitua!.
É assim que ele vê a publicidade social, na origem da sociedade
burguesa, dominada pelo debate público, como se toda a esfera de
visibilidade pública fosse uma grande discussão, conduzida com
7. ~ esfe~a de visibilidade púbHca ou_ cena pública é fundamental para a democracia também por
razoes nao_ es'.ritamente associadas a esfera do debate público. Lembremo-nos, por exemplo, da
sua 1mportanc1a para as eleições contemporâneas.
DA DISCUSSÃO A VISIBILIDADE
137
1.1l ionalidade e voltada para o recíproco esclarecimento (Aujkldrung)
.!11, debatedores. Terá razão o crítico de Habermas que se predispõe
1 111n ceticismo razoável quanto às possibilidades de, mesmo em
11lt·na modernidade, imaginar uma publicidade social constituída
tntcgralmente por debate. Depois, em nossos dias, assim prossegue
1 .1rgumentação de Habermas, no interior da publicidade social, a
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
138
com critérios que a ela são estranhos, como a força das armas,
corrupção, ou a brutalidade da censura, mas a partir de critéri
internos, obedientes à sua lógica, mas sem se dobrar ao princípi
da visibilidade. É a invisibilidade no interior da visibilidade. Toda
as reflexões de Habermas sobre a encenação da publicidade con
temporânea parecem muito apropriadas a este ponto. O erro d
Habermas talvez tenha sido imaginar que se possa controlar com
pleta e homogeneamente a esfera pública. A sua confusão dos doi
tipos de publicidade social sabotou-lhe as chances de reconhecer
saídas para o seu labirinto.
Mas não só Habermas se confunde aqui. Os que negam consis-
tência à idéia de esfera pública são dotados de uma miopia funda-
mental que lhes faz enxergar apenas a esfera de visibilidade pública.
Não divisam debates, apenas representação, espetáculo. O mesmo
fazem os que aceitam a esfera pública, mas não a reconhecem como
argumentativa. Esses últimos sequer discutem a esfera do debate
público, pois não são capazes de divisá-la.
De qualquer modo, Habermas formula um fato fundamental
das relações entre esfera da discussão pública e esfera da visibilidade
pública: decisões e posições produzidas nos recônditos do poder
ganham a exposição pública apenas para legitimar-se, no caso, para
obter adesão ou, pelo menos, tolerância do conjunto dos cidadãos.
Como na democracia, a legitimidade deveria provir apenas do
debate público, o que aqui se dá é puramente simulacro de esfera
da discussão pública: esfera pública sem debate.
Este é um grande problema e significa afinal que se tenta produzir
legitimidade apenas pela exposição, como se a esfera de visibilidade
pública fosse legitimadora de decisões relativas ao bem comum. Mas
este tipo de publicidade social não pode ter esta função e é uma evi-
dente desqualificação da democracia contemporânea pretender que
o debate público seja substituído pela exibição pública. Não se quer
com isso dizer que não possa haver debate na esfera de visibilidade
pública, mas sim que a cena pública é constituída sobretudo por
exibição, exposição, pelo que Habermas chamou de representação,
ou seja, apresentação das posições para a obtenção do favor geral.
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
139
~ FERA DO DEBATE PÚBLICO ECOMUNICAÇÃO DE MASSA
- " f pública"
8. No sentido de facilitar a leitura, toda vez em qu.efor :mpregr~ a.expre.ss:~es~!r:r~o debate
nesta parte do capítulo, se~ .~ualque: º.utr~ espeof1caçao, a re erenc1a sera
público" em contraposição a cena publica . . .
9 A analogia não é sem propósito: mercado e esfera pública eram os dois instrumentos com que
historicamente se dotou o "privado" burguês para se proteger da esfera estatal.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
140
do ouro, mercado imobiliário, mercado de papéis, merca-
dos emergentes, mercado asiático), isso não quer dizer que
estejamos desautorizados a falar em "mercado" quando nos
referimos genericamente à negociação de valores e produtos.
Ao contrário, as formas adjetivas são vistas como modos
concretos de realização dessas negociações. A esfera pública,
da mesma arte, enquanto indica, da forma mais genérica, as
negociações argumentativas relativas ao interesse comum,
realiza-se concretamente nas diversas assembléias e debates
que se conduzem. Numa forma intencionalmente ambígua,
digamos que é tão justificado se falar de mercado quanto de
esfera pública, assim, no singular.
3. Reivindica-se o reconhecimento histórico de uma esfera
pública subalterna ou plebéia ao lado da esfera pública
burguesa, no passado, bem como de uma esfera pública
alternativa ao lado da esfera pública dominante e midiática,
atualmente. Entretanto, ser burguesa, plebéia, universitária,
subalterna não altera, em princípio, a natureza da esfera
pública que se realiza. Em outros termos, o que distinguiria
uma esfera pública burguesa de uma esfera pública plebéia
seria a diferença entre os dois tipos de público ou de parti-
cipantes do debate público: o proprietário burguês, de um
lado; os subalternos, de outro. Não se trata de uma diferença
no modo mesmo do debate, porque este só pode ser con-
siderado público se atende aos requisitos da esfera pública:
argumentação, abertura etc. Ora, podem ocorrer assembléias
não-públicas ou pseudodebates tanto entre burgueses como
entre proletários, não sendo a inscrição deste público no
modo de produção o que garante a "publicidade" da dis-
cussão ou o que faz com que este se perca. Uma discussão é
ou não pública em virtude dos meios, modos, princípios e
regras de procedimento empregados na sua realização, não
em função do status social dos argumentantes.
4. Nesse sentido, ganha-se muito mais flexibilidade se traba-
lharmos com um conceito de esfera pública, no sentido
DA DISCUSSÃO A VISIBILIDADE
141
de debate público, menos substantivo e mais pragmático.
Não há uma coisa que seja esfera pública; há, isto sim, uma
prática social, obediente a certas regras de procedimento e
conforme certas circunstâncias, que deve responder por este
nome.
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
142
esfera pública sem parceiros autorizados, porque do conceito não
faz parte essencial a autorização pública, mas a capacidade argu-
mentativa e a existência da discussão. Da mesma forma, a ausência
do face-a-face, da contigüidade ou convivência espacial, e de uma
duração temporal determinada, pode impedir a realização de uma
assembléia, não de uma esfera pública.
Do ponto de vista da natureza, somos levados hoje em dia
a pensar, sobretudo, na esfera pública institucional: assembléias
legais, com formato controlado e regras e rituais codificados, e reco-
nhecimento social. Modelamos a nossa concepção pela estrutura
parlamentar da esfera pública. Entretanto, nada impede a existência
de esfera pública circunstancial, ou seja, de debates organizados
circunstancialmente, com os parceiros que ocorrerem e com regras
ad hoc, exceto, obviamente, aquelas que fazem parte da natureza da
esfera pública.
Quanto ao resultado do debate público, espera-se que toda
esfera pública seja deliberativa: que considere uma matéria e pro-
duza uma conclusão consensual a respeito desta, mesmo que esta
conclusão seja sempre revisável em princípio. Teremos de admi-
tir, entretanto, que debates não-conclusivos e não-deliberativos
podem ser autêntica esfera pública. Pode-se realizar uma esfera
pública mesmo que o seu resultado não seja capaz de vincular ou
obrigar (no caso em que nos reunamos em algum lugar para dis-
cutir a reforma da previdência, por exemplo). O resultado, nesse
caso, será ajudar a produzir uma idéia a respeito da matéria ou,
pelo menos, da pauta polírica.
Enfim, com relação ao alcance das decisões que decorrem da
esfera pública, temos também dois tipos de esfera pública: esfera
pública deliberativa geral e esfera pública deliberativa específica ou
setorial. Uma coisa é a assembléia nacional, outra, muito diferen-
te, uma reunião deliberativa de alcance comunitário, mas ambas
podem configurar-se como esfera pública.
Portanto, muitas coisas, segundo muitos modelos, com di-
ferentes propósitos e alcances, configuram-se como esfera pú-
blica.
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
143
VARIÁVEL TIPOS DE ESFERA PÚBLICA POLfTICA
Modelos Assembléias Outros
de representação (contigüidade, face a face ... ) (não-contigüidade,
não-"face a face")
Natureza Debates ritualizados Discussões circunstanciais
e controlados por regras e com regras "ad hoc",
conversação política etc.
Resultado Debates deliberativos Discussões para
esclarecimento recíproco,
tomada de conhecimento
da agenda,
formação da opinião etc.
Alcance Debates de questões Discussões para deliberações
da questão de interesse sobre questões de interesse
em debate da comunidade política de partes
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
144
pública midiática. E, já à primeira vista, encontramos o complexo
convívio de materiais informativos (de atualidade, como no jorna-
lismo, de propaganda e opinião e de ciência e educação), materiais
culturais e artísticos, materiais destinados ao entretenimento e
diversão, materiais publicitários e materiais sintéticos que compõem
dois ou mais desses tipos. Já os materiais informativos, que são os
insumos para o debate público, se vistos de perto, compõem-se do
seguinte modo: a) opiniões em perspectiva; b) discurso dogmático;
c) discurso argumentativo.
As opiniões em perspectiva ("eu acho que ...") oferecem-se como
posição particular, fundadas em preferências singulares, admitindo
tolerantemente que outras posições alternativas possam coexistir. Às
vezes, tais opiniões são gentis e polidas, já que não solicitam atrito,
na medida em que nem dão nem solicitam razões para as decisões e
escolhas. Outras vezes, são polêmicas, mas de uma polêmica incon-
seqüente, incoerente e sem posições fixas, como em certas discus-
sões de mesa de bar. Aqui, freqüentemente os parceiros não preten-
dem que a própria posição valha apenas em virtude de razões que
podem ser apresentadas e refutadas. O confronto de tais opiniões
gera, no máximo, uma pseudo-argumentação.
O discurso dogmático ("tal coisa é assim ..."), abundante nos
meios, é um fala "competente". Oferece uma posição como se esta
tivesse já sido o resultado de uma argumentação e fosse fundamen-
tada num consenso sólido. É como se a discussão já tivesse sido
concluída e a posição fosse tão óbvia e objetiva que uma nova dis-
cussão fosse ociosa. Como no primeiro tipo de insumo informativo,
o discurso dogmático também não integra um debate, porque a
certeza e a evidência presumível da própria tese dispensa os proce-
dimentos demonstrativos e argumentativos.
O discurso argumentativo é aquele que se engaja numa conver-
sação coerente e conduzida com lealdade.10 Supõe que os interlocu-
tores negociem suas posições e que as modifiquem ou corrijam, se
1O. Uma argumentação leal é aquela em que cada um se empenha com sinceridade e correção.
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
145
lm o caso, no confronto dialógico entre as partes que se esclarecem
w ·iprocamente. Só esse tipo de discurso é capaz de gerar esfera
pi'1blica no interior do sistema expressivo dos media.
Os materiais expressivos de tipo informativo que compõem a
r\~Ta de visibilidade pública não se distribuem de forma homogênea
.lo ponto de vista da importância e da avaliação dos destinatários,
111as são sempre estruturados de um ponto de vista cognitivo em
.alguns estratos, cujos extremos, postos num continuum imaginário,
11odem ser caracterizados como fando e como tema. O fando é um
onj unto não rematizado, mas disponível, de fragmentos ou peças
d · qualquer tipo de material que passem "sob os olhos" do receptor
011 destinatário e que perduram por algum tempo na memória sem
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
146
das, no sentido musical do termo, por intérpretes reais. Mensagens
existem apenas para intérpretes de mensagens e apenas à medida
que eles são capazes de realizar uma operação de compreensão:
recepção é interpretação.
Ora, a recepção não acontece no vazio. O intérprete pode exe-
cutar a sua parte porque aciona molduras e horizontes de recepção
(códigos, preconceitos, informações, disposições, capacidades) que
já possui - ou pelos quais já está possuído, como afirma a herme-
nêutica. Os quadros e horizontes formam as condições da recepção.
Assim, a depender justamente dos seus conteúdos, o ato material de
interpretação, portanto, de composição da mensagem, pode variar
de um intérprete a outro. Esse princípio hermenêutico geral aqui se
aplica trazendo consigo a conseqüência de que o sistema expressivo
que constitui a cena pública é sempre um sistema interpretado, isto
é, estruturado, organizado, agenciado pelos seus intérpretes.
Nesse sentido, é importante destacar que a esfera de visibilidade
pública no espelho dos meios de comunicação pode ser editada,
estruturada e apreciada de maneira não-uniforme pelos seus fruido-
res, organizada a partir de filtros e lógicas individuais ou vinculada
a grupos ou instâncias de referência, a depender de seus interesses
{atenção seletiva, memória seletiva), da sua competência ou capa-
cidade e nível de absorção, bem como, enfim, das influências ou
disposições sob as quais se encontrem (líderes de opinião, suscetibi-
lidades idiossincráticas, estados de ânimo).
Assim, a esfera de visibilidade pública midiática não é nem
monolítica nem universal. Não é monolítica porque não temos
uma unicidade de emissor nem uma inteligência unificadora por
trás do que é dito, a controlar cada expressão. Certamente, há de
haver meios {no sentido de instituições) que funcionam assim, mas,
nesse caso, caminham numa direção oposta à sociedade democráti-
ca. Aliás, sequer a publicidade social moderna funcionava de forma
monolítica. Falar de debate público na imprensa na sociedade bur-
guesa não significa que cada jornal funcionasse como esfera pública
- ao contrário, talvez os jornais de hoje sejam mais pluralistas no
seu espaço interno -; trata-se, ao invés, de uma abstração que está a
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
147
lttdicar que cada jornal ou cada matéria publicada f~nciona~~ c~mo
11
m sujeito ou uma voz interveniente num debate mterpenod1cos,
que muitas vezes era mais polêmica pura que argumentação.
A esfera de visibilidade pública midiática tampouco é universal
porque não há um público único, uma espécie de "consumidor-
,! ·-massa-modelo" que desfruta das mesmas mensagens ao mesmo
tl'mpo. Na sua apreciação privada, de posse do co~trol~ remot~, de
uma conta na internet ou da assinatura de alguns Jornais ou revistas
r om todo o seu background (tempo, competência, disposições,
pública.
.i) A esfera pública externa à cena política
A esfera pública contemporânea, como esfera argumentativa,
realiza-se em grande parte fora da comunicação de massa. A come-
çar pela esfera pública geral e legal que são ~s P.ªrl~ment~s, m~s
.iqui incluindo uma infinidade de formas de mstanc1as del1berat1-
11. Ou, 0 que vem a dar no mesmo, a pergunta sobre as possibilidades argumentativas da publi-
cidade social midiática.
... comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
148
vas que a cultura democrática foi capaz de instalar nas sociedades
contemporâneas. Por outro lado, o fato de situar-se em instâncias
fora dos meios de comunicação não significa que a esfera pública
não guarde relações importantes com a cena pública, como meio
de assegurar a própria visibilidade, dado que isso se torna decisivo
quanto mais geral e mais abrangente for o alcance deliberativo da
esfera pública.
Isso significa também, e paradoxalmente, que é possível a exis-
tência de esfera pública independente da comunicação e da cena
pública midiáticas, na medida em que nem de longe é a cena públi-
ca quem possibilita ou legitima a esfera pública e nem sempre uma
discussão pública necessita de visibilidade pública maior que a do
círculo restrito dos seus concernidos. De novo, tudo vai depender
do alcance ou abrangência deliberativa da esfera pública, ou seja,
do universo de concernidos que estiverem implicados nas decisões
que deverão decorrer das discussões em pauta. Nesse sentido, a
cena pública midiática tem diferente valor para uma esfera pública,
a depender do fato de que esta seja uma assembléia das Nações
Unidas ou da Conferência Mundial sobre a Fome, ou uma sessão
do Senado Federal, a assembléia dos professores de uma universi-
dade, uma sessão da câmara municipal de Camacan, uma reunião
do clube de mães de certo bairro ou uma reunião deliberativa do
grêmio de um colégio. Nos primeiros casos, evidentemente, é a
própria democracia que torna a cena pública necessária para a esfe-
ra pública, porque só aquela garante a visibilidade que é condição
essencial para a realização desta. Nos outros casos, essa necessidade
é relativizada até cessar. Portanto, o princípio de que não pode
haver esfera pública contemporânea sem cena pública midiática
seria claramente falso .
De qualquer modo, mesmo que a relação com a cena pública
possa nada significar para certos tipos de esfera pública, o fato é que a
esfera de visibilidade pública dos meios pode pôr-se em variados tipos
de relação com as instâncias de esfera pública que lhes são externas.
Assim, mesmo os estratos discursivos e informativos da cena
pública midiática que não integram debates públicos internos sobre
DA DISCUSSÃO A VISIBILIDADE
149
,1, 1crminados temas ou matérias fornecem, pelo menos, insumos
.11 a a formação privada da opinião ou, ainda, para a formação da
1
npin ião numa esfera pública. É muito freqüente, em nossos dias,
'I'' · instâncias discursivas retirem da cena midiática parte consisten-
1r los temas que geram, mantêm ou alteram os debates públicos
_ comun§ção
COMUNICAÇAo E DEMOCRACIA
150
do-se a sua lógica, que debates públicos começados em qualquer
instância fora dos meios, deliberativos ou não, sejam continuados
no seu interior. Em alguns casos, nem é preciso que os debates
tenham começado, mas a pauta da esfera pública é suficiente para
que um debate se estabeleça no interior dos meios. É diferente de
permitir que debates externos possam ser acompanhados pelos
consumidores da cena pública midiática; trata-se da instauração de
esfera pública midiática com insumos da esfera pública externa à
indústria, a campos e a linguagens da comunicação.
Lendo em conjunto esses dois fluxos de insumo entre cena
pública midiática e esfera pública, poderemos, ao menos, imaginar
um diagrama circular de trânsito entre as duas esferas. Na verdade,
trata-se da fluidez fundamental das sociedades contemporâneas,
que faz com que temas "situados" na cena midiática "entrem" e
"saiam" dos meios de comunicação, provenientes da esfera pública,
ou dos sujeitos sociais, e destinados aos sujeitos sociais e à esfera
pública. Nessa perspectiva, a idéia da esfera pública política à mercê
da comunicação de massa, entendida como uma instância produ-
tora e gerenciadora de mensagens voltadas para a dominação, perde
força e capacidade de convencimento em considerável intensidade.
A idéia de uma inteligência central cede à imagem de uma massa
incontrolável de mensagens, situadas em circuitos de reverberações
e feedbacks nervosos, contínuos e velozes, provenientes da esfera
pública e direcionados à cena pública midiática e/ou oriundos do
sistema expressivo dos meios de comunicação e dirigidos à esfera
pública.
Por fim, temos o fato, extremamente importante, de que a esfera
de visibilidade pública pode trazer para o seu interior fatos, circuns-
tâncias, documentos, negociações, entre outros, que existem fora
dela. No seu interior, esses elementos podem, então, seguir os fluxos
normais em direção à esfera pública, transformando-se em temas
ou matérias de um debate público midiático e/ou convertendo-se
em insumos para a formação da opinião particular ou coletiva,
tomando a forma de insumos para o estabelecimento, continuação
e alteração dos debates públicos.
DA DISCUSSAo À VISIBILIDADE
151
Normalmente, esta é considerada a capacidade dos meios de
, omunicação mais temida pelo campo político e, talvez, a mais
1111portante do ponto de vista de uma sociedade democrática. Os
meios de comunicação podem seqüestrar para a cena pública e, por
1 ,1nseguinte, para a esfera pública, fatos e coisas do recôndito, do
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
152
pública: debates abertos ou fechados, não deliberativos, contínuos
ou temporalmente determinados, com parceiros predeterminados
ou não.
A esfera de visibilidade pública inclui, dentre outras modali-
dades discursivas, vários níveis de discurso argumentativo e, por
conseguinte, o debate. Há esfera pública no interior da própria cena
pública midiática. Não se pode dizer que tais debates constituam
a maioria dos materiais da esfera de visibilidade pública, mas não
podemos negar a sua existência e, além disso, podemos, a partir daí,
afirmar que a cena pública midiática não é, em princípio, refratária
à esfera pública.
Conhecemos desde Mudança estrutural uma crítica à esfera
pública dentro do sistema dos meios de comunicação. Habermas
argumentava que os debates na comunicação de massa eram sem-
pre algo insincero, em que as posições eram previamente ensaiadas
segundo a lógica do entretenimento e que, portanto, eram muito
mais espetáculo que esfera pública. Essa objeção é suficientemente
forte para que não sejamos tomados por demasiado entusiasmo
com relação aos debates midiáticos, que efetivamente precisam
obedecer à lógica dos meios. Por outro lado, a objeção simplifica
de tal forma a diversidade argumentativa que existe nos meios de
massa, variável em formatos, público-alvo, debatedores, duração,
importância, profundidade, que não pode atacar muito seriamente
o argumento que aqui se defende.
153
rm vários níveis de profundidade, experimentá-la ou vivenciá-la
11 0 esfera pública. Isso significa que se, por um lado, é falso
111
,
1 1
·ditar que a cena pública midiática seja integralmente argumen-
1
111
va, por outro, é perfeitamente plausível defender que ela pode
., 1 t'xperimentada como se fosse esfera pública. . . . . , .
Os materiais que constituem a esfera de v1s1b1ltdade publica
l'nd ·m ser editados como esfera pública de diversos modos. Tome-
11u1., o caso dos tipos de discurso informativo que estão presentes
1.1 ena pública midiática. Podem ser editados como esfera pública
1
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
154
ao contrário, retira as opiniões publicadas da mera justaposição, a
que são forçadas pela suberabundância de informação política indus-
trializada, e as faz contrastar, colidir, atritar, recirando desce atrito de
pensamento (e não é isso a argumentação pública?) os insumos para
a formação da própria opinião e vontade políticas. Ele transforma,
por exemplo, num debate o que era só polêmica, ou vários discursos
dogmáticos colhidos em diferentes meios de comunicação. Ele des-
constrói e remonta uma cena pública como esfera pública. Num ato
que é ao mesmo tempo privado e extremamente público, ainda que
não seja em público.
155
111 nrica esfera pública pelo seu consumidor e não que ela, de fato,
1 ,,, •ditada e vivenciada como esfera pública por todos os seus con-
1111tidores ou, mesmo, pela maioria deles. Os meios de comunica-
"' não constituem uma esfera pública para todos e, portanto, uma
f, ·ra pública monolítica e universal; porém, é fato que os meios de
111.1 sa, o sistema expressivo dos meios, melhor dizendo, podem ser
, 111p regados como esfera pública por aqueles que reunirem as con-
il1~m:s e o interesse para fazê-lo. De qualquer forma, é verdade que
,11 ,1 :t grande parte das pessoas, calvez até a maior parte delas, forme
J , 11:1 opinião - e não apenas seja seduzido ou convencido por pro-
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
156
Em Direito e democracia, a idéia de discussão apareceu raramente
associada à esfera pública (a discussão aqui é sempre menos impor-
tante que a comunicação) e a visibilidade, definitivamente, não
se demonstra algo da predileção de Habermas para a constituição
do conceito. Na verdade, basicamente, o que parece interessar a
Habermas naquele momento estava relacionado ao papel funda-
mental que a esfera pública exerce para a legitimação da decisão
política e da lei.
Mas é possível, no quadro do pensamento habermasiano, carac-
terizar de maneira mais detalhada o problema da visibilidade e da
sua importância para a esfera pública democrática.
Como dissemos anteriormente, à esfera pública estão relaciona-
dos dois tipos de publicidade. O primeiro, cercamente, define-se
pela contraposição à reserva, ao recato, à clausura, ao segredo. Nesse
caso, a esfera pública está associada à acessÍbilidade, à disponibi-
lidade, à abertura, à exposição, à visibilidade. Disso já se tratou,
longamente, em capítulos anteriores.
O segundo tipo se aplica às expressões, aos lances argumenta-
tivos, à fala pública, à comunicação, às razões que se trocam em
público. A publicidade das razões está relacionada à sua capacidade
de ser admitida ou considerada por um auditório universal. 12 Razões
são públicas, nesse sentido, quando são admissíveis por qualquer
um que raciocine lealmente. "Admitidas" não significa "assumidas
como verdadeiras ou justas", mas como aceitáveis, decentes, mere-
cedoras de exame e consideração em um processo ao final do qual
se poderá concluir, ou não, pela sua verdade ou justeza. Razões são
não-públicas quando não são generalizáveis, quando se apóiam de
tal forma em preferências, gostos, interesses particulares que só
poderiam ser admitidas por aqueles que compartilham o mesmo
horizonte estratégico que os falantes. São não-públicas porque não
podem ser admitidas em público sob pena de rejeição.
12. Trata-se, claro, do conhecido argumento kantiano, apresentado em seu opúsculo sobre a paz
perpétua e retomado recentemente por John Rawls.
DA DISCUSSÃO A VISIBILIDADE
157
A idéia de discussão, como vimos, é fundamental para a noção
, h· esfera pública. Para Habermas, e para os autores do modelo de
, kmocracia deliberativa, é a dimensão mais importante. Em Mudan-
r ,1 estrutural, a esfera pública materializa-se em públicos de indiví-
duos privados reunidos para discutir assuntos de interesse comum.
t ) fi m da discussão decorrente do controle da visibilidade pública
1,elos meios de massa teria, até mesmo, reduzido a esfera pública
hurguesa à sua sombra, a uma esfera pública meramente expositiva.
Do ponto de vista da visibilidade, a esfera pública, em suma, é
1) o domínio social da visibilidade, b) da troca de razões públicas e
1) da troca de razões em público. Cada dimensão dessas contém as
11:is próprias exigências e comporta conseqüências para a democra-
1 ia. Talvez sejam coisas demais para uma categoria só e talvez, por
13. Em teoria política, este argumento é um clássico do utilitarismo, explicitamente formulado por
Jeremy Bentham.
comun!Jção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
158
:elacionadas aos negócios de Estado para as expor ao olhar público
e algo dotado de enorme potencial democrático. Mesmo que não se
consiga, depois, passar do controle cognitivo generalizado (a publi-
cidade) à discussão pública sobre tais questões. Afinal, nem todos
discutem, porque não podem ou porque não querem. Discutir é
importante, mas pode ser separado de uma extensa visibilidade e
ainda assim permanecer democraticamente importante? A resposta
tem de ser negativa. Afinal, na reserva, na clausura, também se
pode discutir, e discutir em profundidade, mas o segredo não faz
boa democracia.
P~ra que a discutibilidade seja realmente relevante, é preciso
considerar com mais cuidado certos qualificadores da visibilidade
da discussão. A começar pela extensão da visibilidade da deliberação
pública ou, melhor, a extensão do público para o qual tais delibe-
rações são visíveis. Há determinadas perguntas que são importantes
para atestar a qualidade democrática de uma argumentação que se
queira pública. Primeiro, questões relativas à extensão do corpo de
cidadãos com acesso cognitivo à deliberação: esta discussão é visível
a quantos? Os argumentos ou razões que nela se apresentam são
visíveis a quantos cidadãos?
Além disso, são pertinentes questões relacionadas à intensi-
dade da visibilidade das razões e deliberações que se pretendem
públicas, à intensidade da visibilidade pública das deliberações e das
matérias de interesse público, ou ainda, à extensão ou alcance das
coisas que são visíveis ao público. Quanto da deliberação é visível?
Quanto da deliberação é visível a uma quantidade importante de
cidadãos? Quanto dos estratos mais sutis, complexos e profundos
da deliberação é visível a uma quantidade importante de cidadãos?
Ademais, há questões dessa mesma natureza que são atinentes aos
negócios públicos e à sua condição, e não simplesmente às discus-
sõ~s _públi_c~s .~esses negócios, porque, naturalmente não há que se
sol1c1tar v1s1bil1dade apenas das deliberações, mas também daquilo
que, eventualmente, certos agentes políticos não gostariam de ou
não pretendem submeter à deliberação, ainda mais à deliberação
em público. Podemos perguntar, então: quanto das coisas relativas
DA DISCUSSÃO À VISIBILIDADE
159
11•, negócios públicos é visível e/ou quantas e o quanto dessas coisas
il11 ri i cu tidas sob o olhar do público?
Iodas essas perguntas solicitam uma gradação que parte de um
w111 zero de acesso cognitivo público até chegar a uma grandeza
111Hitna correspondente, que, no caso da extensão do público, seria
,piiva lente ao "conjunto dos cidadãos" e, no da extensão das coisas,
, 11,1 equivalente a "tudo aquilo que for pertinente e relevante para
1, , 1•rcício da cidadania". Naturalmente, na escala, haver-se-ia de
1,I, 11tificar a partir de que grau existe visibilidade suficiente para
l1111damentar uma democracia qualificada. A primeira gradação é
11111.1"escala de público"; a Segunda, um "gradiente de intensidade".
1 l ·, do is vetores que organizam essas gradações devem constituir
11111.1 escala ou gradiente de visibilidade pública.
1lá, ademais, outra perspectiva que precisa ser inserida na
11\c ussão sobre a qualidade democrática das discussões públicas.
l', 1111 ' iro, aquelas relativas à extensão ou ao volume das discussões
1'111,licas, ' em andamento ou recentemente concluídas numa dada
,,. 1 ·dade: quanto são discutidas nessa sociedade as questões relati-
_comunáção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
160
Há, ademais, questões relativas não apenas à importância real
das discussões públicas numa determinada sociedade, mas que
dizem respeito aos negócios públicos e ao modo como eles são
conduzidos, pois há de se demandar a discutibilidade mesmo de
questões que os agentes políticos gostariam que fossem decididas de
outro modo. Torna-se apropriado, então, indagar sobre a extensão
da indiscutibilidade e, conseqüentemente, sobre o nível de efeti-
vidade das discussões que são levadas a termo: quanto das coisas
relativas aos negócios públicos é discutível, e/ou quantas e o quan-
to dessas coisas são discutidas? Quanto das decisões dos negócios
públicos se resolvem sem discussão, por meio de outros instrumen-
tos de mediação? Essas perguntas dizem respeito à intensidade da
discussão pública sobre as matérias de interesse público, ou ainda, à
extensão ou ao alcance das coisas que são publicamente discutíveis.
A comunicação de massa tem a ver com ambas as coisas: adis-
cutibilidade (o discutível e o indiscutível, quantos discutem, quanta
discussão, quantas posições estão presentes nas discussões, com que
nível de eficiência se discute, quem decide o que se discute, quanto
tempo dura a discussão, quem decide a duração da discussão) e a
visibilidade (o visível e o invisível, para quem é visível, que coisas
são visíveis, quem decide sobre o que se vê e a intensidade do que
é visto). Mas há, também, um gradiente de implicação da comuni-
cação: a visibilidade política contemporânea depende, em altíssimo
grau, da comunicação de massa; a discutibilidade depende, funda-
mentalmente, do sistema político e da esfera civil, mas o campo
da comunicação tem o poder de seqüestrar os temas políticos para
a esfera de visibilidade ou de iniciar discussões de temas políticos,
gerando com isso: a) uma discussão em público de tais temas por
agentes políticos e pelos que têm lugar de fala na sociedade; b) a
visibilidade de discussões que, de outro modo, aconteceriam em
âmbito particular ou reservado; c) o fornecimento de inputs para
muitas discussões com pouca visibilidade (mas com algum grau de
eficácia) na sociedade civil.
No que tange, enfim, ao teste kantiano das razões, à publici-
dade das razões entendida como a capacidade que elas têm de ser
DA DISCUSSÃO A VISIBILIDADE
161
d11iitida por qualquer público, a comunicação de massa, nesse
, .t>, cem um grau relativo de importância. De um lado, não pode
l,,1\.1r a que as razões circulantes se apóiem em motivações públicas
1, preferência a justificações não-públicas, pois razões não-públi-
' 1 (quer dizer motivadas por expectativas de ganhos particulares)
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
162
que constituem uma camada difusa que podemos apropriadamente
chamar de conversação civil. Pode-se admitir, ademais, que esta
camada aqui e ali se adense nas discussões propriamente ditas, que
essa conversação generalizada se materialize em diferentes públicos,
fóruns e debates alargados com diferentes cotas de visibilidade,
algumas apenas (aquelas mediadas pela comunicação de massa)
dotadas de uma cota altíssima de visibilidade. Tudo isso se pode
admitir, mas, ainda assim, uma sociedade altamente democrática
depende de um grau de visibilidade das discussões públicas que
levam adiante questões de interesse comum e redundam na produ-
ção de decisão política.
Concedamos a Habermas que a conversação civil alargada não
pode ser uma mera conversa fiada generalizada, se a ela quisermos
atribuir alguma pregnância política. Contra Habermas, contudo,
é inegável que a discussão de especialistas, restrita aos seus pares,
pode tornar-se mero concílio de sábios se não insemina uma dis-
cussão aberta e cognitivamente acessível a uma dimensão demogra-
ficamente relevante de cidadãos. Com isso, perde-se todo o sentido
de esfera pública como domínio social da formação da opinião e da
vontade coletivas. É a visibilidade que ancora a discutibilidade na
democracia.
P A R T E
II
DELIBERAÇÃO PÚBLICA
E CAPITAL SOCIAL
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4
VISIBILIDADE MIDIÁTICA
EDELIBERAÇÃO PÚBLICA
Rousiley C. M. Maia
CO[!)Uíli§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
166
num determinado momento, mas, sim, como processo argumenta-
tivo, "intercâmbio de razões feito em público" (Cohen, 1997, p. 73).
A amplitude das instituições modernas faz com que seja extre-
mamente difícil imaginar a coordenação das decisões políticas por
meio das práticas do debate. Os ideais do modelo deliberativo de
democracia parecem "viáveis" apenas em pequenas escalas espaciais
e temporais. No entanto, autores proponentes do modelo delibe-
rativo de democracia, tais como Habermas (1997), Cohen (1996
e 1997), Benhabib (1996), Bohman (1996), têm refutado os pres-
supostos básicos do elitismo democrático de que as formas mais
complexas de administração podem prescindir da participação ativa
e argumentativa por parte do público mais amplo. Esses autores
sustentam que é possível reconhecer a complexidade dos problemas
na sociedade contemporânea e o pluralismo dos interesses envolvi-
dos e, ainda assim, defender os ideais democráticos de autonomia
e soberania dos cidadãos. As associações voluntárias são vistas
como agentes que contribuem para articular interesses coletivos,
proporcionar voz, sustentar deliberações, a fim de contribuir nos
processos de definição de agendas políticas ou proporcionar modos
alternativos de governança.
O sistema dos media desempenha, indubitavelmente, um papel
central na disseminação de informações a grandes audiências.
"Para dar resposta a questões fundamentais sobre a experiência dos
cidadãos no processo democrático, requer-se, cada vez mais, que se
compreenda a centralidade da comunicação mediada nos processos
de governança e, também, nas percepções que os cidadãos têm da
sociedade e de seus problemas" (Bennet e Entman, 2001, p. 1).
Assim, torna-se instigante indagar o modo pelo qual os media
contribuem para "criar um espaço para deliberação social" e para o
"intercâmbio de razões em público".
Este capítulo encontra-se organizado em duas partes. Na pri-
meira, busco rever as contribuições dos estudos que visam inserir
os meios de comunicação na estrutura da sociedade de maneira
ampla, a fim de examinar o papel que exercem na pré-estruturação
da esfera pública política. Examino alguns elementos da noção de
VISIBILIDADE MIDIÃTICA E DELIBERAÇÃO PÚBLICA
167
t 11 1,licidade, com o propósito de apontar.certas tensões ~a chama-
i, vi ibilidade midiática. Na segunda, discuto certas dificuldades
I'' ,., ' ntadas pelas perspectivas pluralistas de democracia ao tratar
1l'su ições de acesso dos atores da sociedade civil aos canais dos
1
,,, /ia para a consecução de um debate público eficaz. Argumento
0
, 1 o espaço de visibilidade criado pelos meios de comunicação,
111
,
111
\iora marcado por profundas assimetrias na estruturação da
, 11 11 unicação dos atores sociais, contribui para a promoção de um
O VALOR DA PUBLICIDADE
1. A política para ser considerada justa deve passar pelo teste da publicidade: "Todas as ações
..comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
168
em torno de muitos elementos dessa concepção,2 o pensamento
kantiano tem inspirado diversos autores a desenvolver o princípio
da publicidade como forma de mediação entre a moralidade e a
política. Autores deliberacionistas (Cohen, 1996 e 1997; Haber-
mas, 1997; Bohman, 1996; Dryzek, 2000; Gurmann e Thompson,
1996 e 2004) defendem que o teste da publicidade, inscrevendo-se
no terreno moral, requer uma prática real e não meramente um
exercício de pensamento hipotético. Nessa perspectiva, Bohman
(1996) defende que a publicidade opera em três níveis: i) cria um
espaço para a deliberação social; ii) governa o processo de delibe-
ração e as razões aí presentes, e iii) produz um padrão para julgar
os acordos.
Em primeiro lugar, a publicidade cria um espaço para a delibe-
ração. Somente quando os atos, as intenções ou os planos podem
ser conhecidos, tem-se a possibilidade de gerar um processo dia-
lógico de troca de razões com o objetivo de solucionar situações
problemáticas. Obviamente, muitas formas de poder - seja poder
concebido genericamente como capacidade de agir sobre o outro e
produzir certos efeitos, seja concebido como relação de coerção para
levar o outro a comportar-se de acordo com os próprios desejos e
que se relacionam com o direito de outro homem são contrárias ao direito e à lei, se sua máxima
não permite publicidade". Kant descreve que a utilização pública da razão requer a capacidade
para um pensamento "alargado" , consistente e "isento de preconceitos", dado que isso depende
da capacidade de "pensar do ponto de vista de todos os demais" e revisar, subseqüentemente,
o próprio julgamento. O raciocínio moral que deve ser mantido em segredo é autoderrotista, não
sendo, portanto, moralmente aceitável (Eternal Peace, The philosophy of Kant, Nova Iorque, Ran-
dom House, 1949, p. 470).
2. Apesar de o pensamento kantiano capturar várias condições essenciais para o uso público da
razão. há diversas críticas em relação à forma de funcionamento da publicidade como "experimen-
to de pensamento hipotético". A estipulação de limites da própria justificação mostra-se precária
e excessivamente permissiva, uma vez que os agentes públicos poderiam justificar a ação desen-
volvida em segredo sempre que convencessem a si mesmos, mediante pensamento privado, de
que suas ações satisfazem o teste da publicidade. Além disso, o esquema kantiano, ao restringir-se
meramente ao sujeito singular, não chega a apresentar uma dinâmica convincente para a reflexão
pública. A necessidade de justificar as ações de fato publicamente, e não apenas hipoteticamente,
não se constitui num padrão crítico de teste nesse âmbito (Gutmann e Thompson, 1996; Cohen,
1997).
VISIBILIDADE MIDIÁTICA E DELIBERAÇÃO PÚBLICA
169
l1111·rcsses - estão assentadas, em grande parte, no segredo. Nem
1111.1\ as intenções ou razões podem ser manifestadas explicitamente
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
170
compreendidas e que, ainda, possam ser potencialmente aceitáveis,
isto é, justificáveis numa dada situação ou num dado contexto.
Em sua revisão procedimental e intersubjetiva da publicidade
kantiana, Habermas sustenta que o princípio da publicidade não é
algo excepcional na vida social, mas sim que várias formas de argu-
mentação são acionadas para lidar com problemas recorrentes no
3
dia-a-dia. Se os participantes têm em mente resolver os impasses
e os conflitos que os impedem de alcançar um entendimento com-
partilhado4 - lidar com situações atípicas, resolver controvérsias
entre pontos de vista, negociar uma nova definição da relação pro-
duzida entre falantes e ouvintes ou, ainda, falar de suas intenções
- emerge uma "comunicação de segunda ordem". Este é um discur-
5
so prático, como "forma refletida da ação comunicativa", em que
as reivindicações problemáticas precisam ser acordadas claramente
3. Na análise habermasiana dos atos de fala, os falantes e ouvintes estabelecem expectativas mútu-
as para uma interação futura, por oferecer ou aceitar reivindicações de validade. A base do caráter
vinculante é a expectativa de que os falantes serão capazes de proporcionar razões que sustentem
seus atos de fala, buscando redimir suas reivindicações quando requisitados a fazê-lo, por meio da
justificação para cada contestação particular. Isso se encontra assentado em um conhecimento im-
plícito, pré-reflexivo, de que fazemos uso de modo intuitivo, e que se torna expresso no ato de fala.
4. Quando a comunicação (a coordenação da interação lingüisticamente mediada) se rompe, os
falantes não podem simplesmente prosseguir como antes. Eles têm à frente diferentes opções:
"podem tentar restabelecer a comunicação, ignorando as contestações problemáticas, de modo
tal que as pressuposições compartilhadas se encolhem; podem mover-se para o terreno discursivo,
que é aberto a questões imprevistas, contendo resultados incertos; podem retirar-se da interação e
romper de vez a comunicação ou, ainda, podem volver-se para a ação estratégica. ( ... )A motiva-
ção racional baseada na capacidade de cada pessoa dizer 'não' possui a vantagem de estabilizar a
expectativa de comportamentos de maneira não coerciva" (Habermas, 1996, p. 21).
5. Habermas pretende, como Kant, fundar os princípios de justiça nas noções de razão prática e de
autodeterminação. Diferentemente de Kant, pretende fazer isso sem recorrer a noções não empí-
ricas de razão e autonomia. Por discurso prático, Habermas denomina a comunicação de segunda
ordem sobre a própria comunicação, que acontece, num nível reflexivo, mediante argumento. Por
meio do discurso, ou da argumentação, os falantes buscam reconstruir as pressuposições da co-
municação (parte do conhecimento pré-reflexivo, tomado como dado) que se mostraram falíveis
no contexto da interação. O discurso visa a um entendimento mútuo, o que significa, no mínimo,
uma compreensão dos tópicos que dividem o falante e o seu parceiro, e, no máximo, à conquista
de uma visão comum, compartilhada. Por conseguinte, um desentendimento racional exige que
se entendam as reivindicações que estão sendo rejeitadas (McCarthy, 1994, p. 462; Chambers,
1996, p. 90-105).
VISIBILIDADE MIDIÁTICA E DELIBERAÇÃO PÚBLICA
171
lln isam ser redimidas), para que a coordenação da co.°:un'.caç~o
11, ,estaurada. Nesse caso, a justificação de alguma re1v10d1caçao
, 11 ,1-se o tema explícito da comunicação. .
Por fim, a publicidade produz um padrão para Julgar o~ acor-
111 O uso público da razão, nesse sentido, permite descortm,ar ~s
h111ttações das razões em jogo e as restriçõ:s presen~es no propn~
O dell.berat1"vo São consideradas razoes convmcentes ague
t11rnc'S · d"' ·
11 . tiu e: a) são dirigidas a uma audiência e, mais, a uma au ienc~a
·
it11 lusiva; b) sustentam-se na s1tuaçao - de d"ia'1og0 , em que o assent1-
'"" " to e o dissenso possam ser livremente expressos.
7. VISIBILIDADE MIDIÁTICA
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
172
publicidade que é independente de ser visto ou ouvido direta•
mente pela pluralidade de indivíduos em situação de co-presença"
(Thompson, 1995, p. 126; 2000). Wilson Gomes considera que a
visibilidade midiática está ligada à cena, proscênio social, disponível
ao conhecimento e ao domínio público. "Cena pública é constituí-
da sobretudo por exibição, exposição, pelo que Habermas chamou
de representação, ou seja, apresentação das posições para a obtenção
do favor geral" (Gomes, 1999, p. 217).
O espaço midiático de visibilidade é constituído pelo conjunto
de emissões dos media, em suas diversas modalidades. De tal sorte,
não é possível pensar, primeiramente, que exista unicidade do
sujeito emissor (como no modelo da comunicação interpessoal)
nem uma lógica geral ou uma consciência que reúna em uma só
estrutura aquilo que é dito. Diferentes tipos de mídia, com for-
matos distintos de organização, funcionamento e regulamentação,
apresentam especificidades irredutíveis, constituindo uma produ-
ção diversificada e descentralizada.
Em segundo lugar, o espaço midiático de visibilidade é consti-
tuído por uma complexidade de conteúdos: materiais culturais e
artísticos, de entretenimento, jornalismo de diferentes formatos,
documentários, peças publicitárias. É preciso salientar que há
material de valor cognitivo distinto relacionado tanto ao reino polí-
tico-institucional estrito (informações sobre o que faz o governo, a
substância da política, falas de representantes do sistema político)
quanto a informações políticas num sentido mais amplo - sobre
educação, segurança, cuidados com a saúde física e mental, riscos
de ambiente de trabalho, problemas de assédio sexual no ambiente
de trabalho, etc. Nesse sentido, é difícil definir o que seria uma
informação política ideal, já que materiais de naturezas diversas
podem tornar-se relevantes para a ação dos indivíduos em seus múl-
tiplos papéis como cidadãos, e não apenas como eleitores (Norris,
2000: p. 213; Bennet e Entman, 2001: p. 470).
Ademais, há uma esfera de debate sobre questões determina-
das dentro da própria cena midiática. Não estamos nos referindo
apenas aos programas em que há uma troca de opiniões numa
VISIBILIDADE MIDIÁTICA E DELIBERAÇÃO PÜBLICA
173
it 1111,ão presencial, tal como nos debates televisionados . ou talk
'"'J, Também várias controvérsias e polêmicas, com diferentes
,,.,,!.didades de discurso (de especialistas, de representantes do
;1 , 11.1to estatal administrativo, de leigos ou de grupos organizados
1
IJ •,n iedade civil) desdobram-se na cena midiática. Os agentes dos
11 .. 1ns de comunicação processam e editam fluxos comunicativos
6. Afim de ultrapassar o recorte simplista de" ações mútuas entre produtor e receptor"'. J.osé Luiz
Braga argumenta que a preocupação central ?eve ser "ca~tar o mod_o pelo qual a 1nterat1v1dade se
desenvolve em conseqüência ou em torno de mensagens (propos1çoes, produ'.os..textos, d1scu~sos
etc.), e como ela opera - seja nos casos pontuais, específicos, seja como tendenoas, em relaçao a
determinados tipos de produtos ou tipos de situação" (Braga, 2001, p. 120).
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
174
nas rotinas práticas da vida cotidiana e utiliza tal material simb
lico de maneiras diversas dentro de comunidades particulares e/ou
contextos culturais e políticos específicos. Aquilo que se dispõe ao
conhecimento comum no espaço midiático de visibilidade pod
ser "destacado" do denso ambiente informativo e passar a alimen-
tar diferentes discussões politicamente relevantes. Isso coloca em
movimento diversas interações e lutas dentre e entre os agente
sociais, interferindo, dinamicamente, nas próprias relações sociais e
na organização dos debates fora dos media (Gomes, 1999; Gamson ,
2001; Bennet e Entman, 2001).
A comunicação e a argumentação presentes nos debates internos à
cena midiática podem ser estendidos, por meio da escrita e de outros
suportes tecnológicos, a uma variedade de contextos, e, em todos os
casos, novas dimensões temporais e espaciais acabam por emergir.
As pessoas são convocadas a se posicionar diante de determinadas
matérias publicizadas, mas a interpretação e o posicionamento são
sempre manifestações que dependem da ação autônoma dos indiví-
duos, podendo ou não ocorrer. Nesse sentido, o que se pode assumir
é que o material dos media fomenta, em processo circular, a esfera
pública política, como locus da argumentação, que ocorre por meio
da estrutura geral e inevitável da comunicação em encontros infor-
mais, episódicos, ou em fóruns de debates organizados em diversos
setores da sociedade, freqüentemente longe da visibilidade midiática.
7. Utilizo o termo "pluralismo" em relação à corrente de pensamento desenvolvida por seus expo-
entes originais - J. Madison, D. B. Truman e R. Dahl-, bem como às novas variantes denominadas
de "neopluralistas" ou de "pluralismo crítico", que têm tratado de revisar diversos elementos das
abordagens anteriores.
VISIBILIDADE MIDIÁTICA E DELIBERAÇÃO PÚBLIC A
175
l r 111 • político e os graus distintos de auto~o~ia _do~ profissi~-
,111., meios de comunicação com relação as mstanc1as formais
1 ,nna político. Elas apresentam, a meu ver, dive_rsas vantage~s
t, 1, , 1 perspectivas que entendem o papel_dos medi~ como mam-
1,, .1t> unificada, ou como porta-vozes duetos de interesses par-
111 '11 ·s. A relação que os profissionais da mídia estabelecen_i com
,, • políticos, quer essa relação prossiga med~a.nt~ modalidades
11 1
, rn,pe ração, visando ao fortalecimento d~ l~gmm1dade, quer :e
, volva por meio de modalidades ago01sncas, de_exacerbaçao
11
f I divergências e dos antagonismos, segue um padrao complexo
1 1111crações, e não uma relação singular. , . .
e: m udo , a perspectiva pluralista mostra-se fragt! para_h~ar com
,lesigualdades deliberativas. Quando falham as co~d1çoes para
, esso equilibrado à arena de discussão, a perspecnva ~o plura-
11111 1
li .1110 não consegue ir muito além da conclusão estabel:~1da pelas
"111 i:ts afeitas ao elitismo democrático. O jogo da polmca acaba
1
,.itar as desigualdades de ingresso e de pamc1paçao em arenas rele-
.intes de discussão. ,
Autores afiliados à perspectiva pluralista reconhecem que ha
11111
grande potencial para conflito nas, socieda~es _fu~c~onal~e~te
diferenciadas, altamente complexas; ha uma d1smbu1ça~ policen-
11 i a de poder e uma dispersão de influência, de autonda~e _e de
1
ontrole a partir de uma diversidade de instituições, asso~1açoes e
grupos políticos. A suposição presente é a de que o ~lur~hs'.11~ das
.,ociedades modernas contribui para uma melhor d1smbu1çao de
·ustos e riscos entre os poderes oficiais e os extra-oficiais d~ sistem.a
político, proporcionando também um ambiente informanvo poh-
êntrico, plural e controverso. ,. . .
Partindo da premissa de que o sistema polmco se const1tu1
como "estrutura global de centros de influência e informação
plurais e diversos" (Sartori, 1989, p. 139), os teóricos adeptos do
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
176
pluralismo assumem que os media possuem uma relação variada,
dispondo de graus distintos de autonomia, com os diferentes
poderes, seguindo as condições dadas pela estruturação prévia do
sistema (Lattman-Weltman, 2001; Page, 1996; Gurevitch e Levy,
1985). Evidentemente, não caberia aqui nenhuma das propostas
ingênuas dos pensadores liberais quanto à missão da imprensa livre
e autêntica, no exercício de suas funções de vigilante ou de fórum
neutro para o debate pluralista. Diversas relações de interesse se
estabelecem entre os atores políticos e os profissionais da mídia, os
quais possuem recursos diversos para filtrar, fazer cortes e edições,
seja para criar um enquadramento para os eventos, seja para favore-
cer intencionalmente determinados atores. Mais que isso, sabemos
bem o modo pelo qual a informação é controlada pelas elites, e
como os agentes da mídia gozam da prerrogativa de esconder infor-
mações políticas relevantes, mantendo fora do domínio público
questões de interesse coletivo (Dahl, 1985, p. 102; Bobbio, 1992;
Kellner, 1990; Keane, 1991).
A perspectiva do pluralismo reconhece que a comunicação mas-
siva constitui um alvo prioritário da ação estratégica dos diversos
agentes sociais, sobretudo dos atores do campo político, mas nega
qualquer causalidade única ou direta que sustente essa relação. As
próprias funções de vigilância do jornalismo, de estar atento ao
ambiente sociopolítico, expondo a corrupção oficial, os escândalos
e as falhas do governo ou de organizações sociais, podem ser - e
freqüentemente o são - utilizadas de maneira ardilosa pelos atores
políticos em conflito. O discurso, mesmo, de autolegitimação, de
que a imprensa deve "defender as pessoas", "salvaguardando o inte-
resse público e desafiando as autoridades", é explorado de maneira
tácita por atores com objetivos de alcançar ou manter posições
relativas a interesses particulares.
Assim, a perspectiva do pluralismo faz ver que a tentativa de
políticos e elites de administrar a visibilidade e fazer repercutir
discursos e versões do próprio interesse no ambiente midiático
constitui-se num campo de estratégias e contra-estratégias, como
em qualquer jogo político. Atores sociais e políticos contradizem-se
VISIBILIDADE MIDIÁTICA E DELIBERAÇÃO PÚBLICA
171
,os outros; imagens, discursos e ações táticas chocam-se entre
111li1rmações antes ocultas podem ser dadas a ver, gerando pres-
1 ontrapressões no jogo político. Nesse sentido, a perspectiva
11luralismo mostra a inutilidade de procurar deslindar entre as
1",.," e as "más" intenções dos agentes, já que não há um ponto
1 "'ª arquimediano para julgar tais interesses de forma externa.
1111Iítica é feita de "competição ideológica", de conflitos entre
1 1, 111as de pensamento e de ação. Diante da impossibilidade e da
1 1, ,ejabilidade de tentar especificar os "fins últimos" da política -
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
178
contínuas modificações no conhecimento que alimenta as eventuai
estratégias privadas dos atores políticos.
. Contudo: a perspectiva pluralista mostra-se inadequada para
lidar com situações correntes de desigualdade política entre 0
atores sociais e as respectivas oportunidades de acesso aos fórun
de discussão. Para reforçar o sistema de checks and balances, e
in:e:ferir na limitação e no autocontrole dos poderes oficiais, 0
teoncos pluralistas reafirmam que os media devem garantir uma
competição equilibrada entre os representantes e os representados
no ~spaço midiático de visibilidade. Pois bem, boa parte da crítica
a~ ~1stema dos media aponta exatamente o fato de que O mono-
pol10 de grandes conglomerados torna evidentemente precária a
competição entre os veículos e compromete a oferta de perspectiva
políticas alternativas (McChesney, 1997 e 1999; Keane, 1991).B Se
a maiori_a dos outputs dos media favorece apenas um ator político,
um pamdo, ou um ponto de vista ou, ainda, se exclui os partidos
menores e as perspectivas minoritárias, reduz-se o ambiente infor-
mativo. A oferta ampla e diversificada de canais de acesso ao campo
de discursos públicos e a distribuição relativamente equânime do
poder de agenda entre os veículos são elementos imprescindíveis
para a efetivação das premissas de participação e de competição no
processo democrático.
A perspectiva do pluralismo rompe com a unilateralidade da
relação dos atores políticos com os media, mas nada diz sobre
como o debate público pode ser conduzido na condição corrente de
desigualdade. Alguns teóricos propõem que seria preciso, primeira-
me~te, preenc~er os requerimentos da igualdade social para que 0
con3unto de cidadãos possa ter voz pública, superando aquilo que
8. O balanço pode ser definido em termos de diversidade externa e interna. Norris define" diversi-
dade.exte:na" como a compe.tição existente entre diferentes outlets da mídia, os quais oferecem
aos c1dadaos uma escolha variada de perspectivas políticas alternativas necessárias para preservar
o pluralismo. Como exe~plo, a autora cita os jornais impressos ingleses, mu itos deles fortemente
1'.gados aos partidos polit1cos. No caso da "diversidade interna", Norris ressalta que O modelo
t1p1co de coberturas favorece um tipo de balanceamento, "expressando de maneira justa a posição
de ambos os lados da disputa" (Norris, 2000, p. 27-28)
VISIB ILIDADE MIDIÁTICA E DELIBERAÇÃO PÚBLICA
179
, >' llcnominou de "o isolamento do público dos aspectos polí-
, I, vida social" (Dewey, 1954, p. 224). Outros defendem que
11 11' · iso "equiparar" as oportunidades de expressão, por meio
11111 pluralismo regulado de diversas organizações independentes
1111dia, para que os grupos possam beneficiar-se, como num
,, 11 !0, da publicização midiática (Thompson, 1995, p. 240-3;
11t • 1991). Em ambos os casos, fica implícita uma noção de
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
180
reais, sociais e temporais são fluídas" (Habermas, 1997, p. 33).
Nessa perspectiva, a esfera pública não é entendida de forma única
e global, mas, sim, constituída por diversos públicos que se organi-
zam em torno de temas ou causas de interesse comum.
Essa demarcação tem o intuito de preservar a dimensão crítica
do público, isto é, a possibilidade de o público contestar o modo
pelo qual os representantes exercem o poder, de reivindicar novos
direitos ou diferentes modos de participação política. Nesse esteio,
teóricos sobre movimentos sociais, tais como Touraine (1988),
Melluci (1996), Young (1996), Warren (2001) têm buscado evi-
denciar o modo pelo qual as diversas associações presentes na socie-
dade civil podem promover um tratamento crítico de problemas
sociais, estabelecendo uma importante relação entre participação
e argumentação pública. Os grupos cívicos são vistos como atores
que agem tanto para modificar os modos de perceber e interpretar
os problemas sociais quanto para articular projetos alternativos de
políticas públicas, propagando, em outros grupos da população, o
interesse por suas causas ou questões. De tal sorte, podem não só
modificar o contexto para o entendimento de determinados proble-
mas, como também propor o rumo de soluções mais apropriadas e,
assim, exercer uma pressão eficaz sobre aqueles que detêm o poder
de decisão no sistema político.
Por certo, o modo de acesso dos públicos fortes e dos públicos
fracos aos canais dos media é profundamente desigual. Os meios
de comunicação não oferecem um espaço equânime para os atores
sociais divulgarem suas causas. Esse é um espaço de acesso restrito,
que sofre forte pressão de anunciantes, segue regras impessoais do
mercado e está sob crescente controle dos profissionais da mídia.
Mesmo a cobertura jornalística diária está, como rotina, estreita-
mente relacionada ao centro do sistema político, e os grupos de
interesses políticos ou econômicos e representantes do aparato
estatal administrativo têm maiores oportunidades de propor uma
"agenda política governamental" nos media. Diante da necessi-
dade, por exemplo, de adquirir apoio público para implementar
certas políticas públicas ou para alcançar um tratamento formal
VISIBILIDADE MIDIÁTICA E DELIBERAÇÃO PÜBLICA
181
1 ilnc rminadas questões pelos poderes Legislativo ou Judiciá-
'"· pl'rsonalidades políticas, profissionais de partidos e lobbistas
11,1111r:i.m mobilizar a esfera pública, freqüentemente tentando
11 1111rnciar as manchetes jornalísticas e televisivas, por meio de
1
/n111' , entrevistas coletivas ou técnicas de marketing político
. J111 ris, 2000, p. 26; Balkin, 1999, p. 402; Coob, Ross e Ross,
1·1 '(1, p. 133). Atingem, assim, de cima para baixo, os cidadãos
,1 l' leitorado.
J,í. o conjunto de cidadãos ou os atores coletivos dispersos da
, " 1 ·dade civil não contam com organização suficiente, nem dis-
1111·111 de recursos financeiros e logísticos para transacionar com
, ,1gentes da mídia. Os chamados públicos fracos, não tendo
11
11 t'\ o regular ao campo jornalístico, precisam, como diz Traquina,
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRAC IA
182
mada sobre questões políticas relevantes. Nesse caso, a participação
pode ser pensada em termos de gradação e também de padrões de
interação comunicativa adotados. Acreditamos que tal percurso
permite construir uma nova crítica aos limites do acesso do público
de cidadãos aos canais dos media.
183
1, tp.tntes entram para a deliberação com recursos desiguais,
1 ,, 111.,des e posições sociais diferentes. Por certo, a desigualdade
J d 1 ·nde a reduzir a eficácia e a influência dos interlocutores
11,1 favo recidos. A falta de recursos culturais e de oportunida-
1111 na mais difícil, para aqueles que sofrem de desvantagens,
n1tarem publicamente suas razões de maneira convincente.
"·'º convertem sem custo ou esforço suas necessidades e
11 11 çóes em contribuições efetivas para as decisões políticas.
11,,1,· deliberacionistas argumentam que, quando se busca
, ,!ver conflitos mediante debate deliberativo, as conseqüências
11 11 1 io nais são distintas: 9 a troca de razões em público tem a
,w 1, idade de subscrever ou desestabilizar resultados coletivos;
1, , im portante também para delinear o que deve ser feito para
1 llH1rar a distribuição de recursos e engendrar novos modos de
1111 hecimento.
htabelecendo-se um paralelo das desigualdades políticas e
11,11,nicativas no terreno dos media, podemos dizer que os públi-
'. l1.1cos possuem desvantagens de assimetria de poder, a qual afeta
i1 11portunidade de acesso aos canais dos meios de comunicação de
·i r possível retomar, aqui, as críticas lançadas ao esquema da representação proporcional par~ su-
l er,1r as desigualdades do jogo político, quando se empregam meios estatísticos com o propos1to
,I,• h neficiar os menos favorecidos no jogo político. Mesmo quando se adota a regra de um voto
r 11 J ca da pessoa, a simples agregação de preferências ou a proporcionalidade da representação
11. n limina a diferença (Dryzek 2000; Bohman 2000) .
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
184
televisivos, aproximam-se da noção de "massa": uma opm1ao em
perspectiva pouco qualificada, de baixa sofisticação política, de
um "todos-juntos-indiferenciado". Seria muito exigente requerer
desse "público", muitas vezes "apanhado de surpresa", os recursos
necessários para a deliberação pública: informação suficiente sobre
a matéria em tela, a atenção e a disposição para se engajar em deli-
beração. Tais recursos dependem, em grande parte, de condições
anteriores: nível de competência polfrica; distribuição de recursos
cognitivos sobre o assunto; natureza da cultura pública. Nessa
perspectiva, o público disperso não se mostra preparado para esta-
belecer uma interlocução, de maneira recíproca, com os chamados
públicos fortes.
A noção de público modifica-se quando adotamos a noção
de atores coletivos: associações voluntárias, movimentos sociais
ou membros de redes cívicas. Como boa parte da literatura
contemporânea vem buscando demonstrar, esses atores coletivos
desenvolvem diversos elementos - habilidades cognitivas, opor-
tunidades de aprendizagem, escrutínio crítico e motivação para
a ação - que os capacita a superar as desigualdades deliberativas.
Associar-se em torno de uma causa comum, ou de problemas
que afetam diretamente a própria vida, desperta o desejo e a
vontade de aprender; faz aguçar a atenção para informações
relacionadas a tal matéria, seja por meio da vivência prática e de
discussões informais, seja por meio de publicações especializadas
ou de material divulgado pelos media (Warren, 2001, p. 140-62;
Melluci e Avritzer, 2000; Norris, 1999 e 2000). É nesse sentido
que os membros das associações voluntárias e dos movimentos
sociais podem transformar-se em cidadãos "bem informados"
sobre temas específicos. Podem, de tal sorte, formular propostas
e críticas relevantes, fazendo uso efetivo da expressão, quando
há oportunidade de participar em fóruns de discussão. Esse é
um modelo realista de participação, pois, como bem expressou
Simone Chambers, "não é possível manter altos níveis de parti-
cipação cívica, todo tempo e sobre todos os tópicos" (Chambers,
2000, p. 205).
VISIBILIDADE MIDIÁTICA E DELIBERAÇÃO PÚBLICA
185
m PÚBLICOS FRACOS NO ESPAÇO MIDIÁTICO DE VISIBILIDADE
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
186
relações entre os cidadãos e, também, entre estes e as instituições,
numa dada sociedade.
Os porta-vozes dos movimentos sociais ou membros de rede
cívicas, quando têm acesso aos canais dos media por meio de entre-
vistas, programas televisivos, documentários, buscam introduzir
seus temas e questões no proscênio público. Assim, as percepções e
os argumentos geridos em fóruns de debate crítico dessas associa-
ções, muitas vezes longe da visibilidade midiática, ganham acesso à
esfera de visibilidade pública. De forma indireta, seminários, coló-
quios, encontros promovidos por ativistas, acadêmicos, ou adeptos
dessas causas, contribuem para formar novos públicos e ampliar as
chances de cobertura da mídia de massa.
É preciso esclarecer aqui por que aqueles atores da sociedade
civil, com propósitos democratizantes, 10 buscariam construir con-
juntamente razões convincentes. Teóricos dos movimentos sociais
têm chamado a atenção, de modo particular, para a "consciência
moral" dos movimentos sociais, que procuram atuar sobre as
premissas do entendimento e interferir nos consensos éticos que
orientam a convivência social. Nesse sentido, tem-se afirmado que
tais atores buscam mobilizar princípios e entrar efetivamente no
mundo dos valores, indo além do estreitamento ético de operações
político-estratégicas de sindicatos, de grupos de pressão e, mesmo,
daquelas formas mais tradicionais de mobilização (Touraine, 1994,
p. 247-68; Melucci, 1996, p. 89-113). Além de tentar influenciar
diretamente os representantes do sistema político, seja por meio
de lobbies para que suas questões recebam atenção na agenda
governamental, seja por meio da articulação com partidos políticos
para que seus interesses sejam representados na agenda eleitoral,
os atores coletivos críticos se preocupam, ao mesmo tempo, em
1O. Não se trata de supor que os grupos da sociedade civil sejam necessariamente virtuosos ou
altru ístas, nem que tenham competência comunicativa, criatividade cultural, nem mesmo que eles
apresentem razões convincentes ou justas. Muitos grupos se organizam em torno de princípios
separatistas ou corporativos, associam-se para conquistar vantagens particularistas ou egoístas
(Chambers, 2002;Warren, 2001).
VISIBILIDADE MIDIÁTICA E DELIBERAÇÃO PÜBLICA
187
11.tlizar o debate e alargar o apoio público, como forma de obter
, nn hecimento de suas identidades, 11 interesses, e de sua própria
p.1 1 idade de ação (Cohen e Arato, 1992, p. 531-32; McCarthy,
11111h e Zald, 1996).
uperar as desigualdades não é tarefa fácil. Em primeiro lugar,
pwmoção de novos entendimentos culturais e/ou a correção
i11 ,ti 1 ucional de exclusões presentes ou passadas não podem ser
, 111 q uistadas pelo indivíduo de maneira isolada, mesmo_ mediant,e
, ri, feio de seu papel de cidadão, no uso de suas capacidades cn-
1
,111nizadas do Estado ou de subsistemas funcionais que se fazem
, ntir na vida dos indivíduos, ou contestar padrões culturais de
111 p1 tiça, pressupõe que os indivíduos cultivem uma con~ciência
, ( i a, assumam responsabilidade por estabelecer escolhas, Julgar e
1 1
.it;•r de acordo com certos valores. Esta é uma empreitada c~let~va
,pw nvolve uma rede de relações ativas. Apenas quando conv1cçoes
, ,,m uns emergem, os cidadãos podem agir em c~ncerto, d~sen-
·rilvendo uma perspectiva autocrítica e auto-reflexiva, traduzmdo
11.is experiências do particular para o geral, do instituci~nal para
11 l ivil e vice-versa (Cohen e Arato, 1992, p. 530; Melucci, 1996 e
11. Nas palavras de Jean Cohen e Andrew Arato, o "processo da comunicação pública constitui o
'nós' da ação coletiva; isso certamente ocorre antes mesmo de o grupo ser interpelado (formal-
mente) sobre quais seriam seus interesses na sociedade e antes mesmo de a solidariedade entre
,, 'US membros ser explorada para obtenção de fins coletivos" (Cohen eArato, 1992, p. 370).
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
188
grupo. A definição dos problemas e as reivindicações elaboradas
por um dado ator coletivo precisam ser reconhecidas pelo restante
da sociedade, o que pode implicar em assentimento, negação ou
oposição. A competência comunicativa ou a criatividade cultural
são elementos que são conquistados por meio de amplas seqüências
de falas e discussões, mais ou menos estruturadas com concernidos,
num sistema de relações internas e externas ao grupo. Isso implica
um investimento constante por parte dos promotores de certas
causas para sustentar a cooperação dialógica de modo público e a
negociação pragmática com diversos atores sociais.
E, por fim, a crítica social, para ser bem sucedida, precisa ter
efeito contextual, isto é, reorganizar novas suposições e premissas,
"re-orientando" novos entendimentos sobre as questões em tela e
novas atitudes, no campo mais geral da convivência social (Boh-
man, 1996). É por isso que os atores coletivos da sociedade civil são
importantes para a constituição do debate público, a fim de modi-
ficar a configuração das instituições sociais ou promover inovação
cultural a longo prazo.
189
., ·,1:_ibilizando formas inteiras de justificação. Também como
1111, .~ estratégicos, os representantes de movimentos sociais buscam
1 · velar", no cenário público, operações ocultas de poder, pontos
~;"'' nas políticas públicas, preconceito ou uso ilegítimo da auto-
1, l u 1• de outros atores. Em certas ocasiões, podem oferecer novas
l 11,, pretações que "enquadram" as questões de modos distintos dos
1 1.l I l) s convencionais. 12
< )s grupos de interesse ou representantes do aparato estatal-
• l111111istrativo são instados a se posicionar publicamente. Nem
11q)re eles estão interessados em desvelar suas intenções - freqüen-
1 11tt·nte não estão - nem em produzir uma discussão politicamente
' 1 por seus atos) pode levar alguém a dizer algo, ao ser requisitado
1 ,l.,r respostas, seguindo uma dinâmica de expressão que, de outra
111111 ·ira, não seguiria. Isso faz com que alguns atores incorporem
1•11111 s de vista alheios em seus proferimentos e/ou respondam às
111 i ·as em interações subseqüentes. E mais: diante de pontos de
1·,1.1 de razões dos atores cívicos, encontrados no espaço midiático
,1, vi ibilidade, as falas e os argumentos de um determinado ator
1°,11km revelar-se precários, parciais ou, mesmo, inaceitáveis publi-
' 1111 ·nte. A visibilidade midiática contribui para o estabelecimento
.comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
190
embate argumentativo. Pode-se tomar, como exemplo, 0 deba
que se desdobrou na cena midiática sobre a problemática do fum
motivado pela tramitação da Lei Antitabagista (Lei 10.167/00)
sanc.ionada em 1ezembro de 2000, que regulamentava a propagan
de cigarro (Santiago e Maia 2005). Ao serem convocados a expres
s~as ?piniões no~ media, diferentes atores sociais apelam para razõ
publicas, potencialmente capazes de ganhar assentimento dos cid
dãos: representantes de empresas tabagistas de porte transnacion J
defe~dem a importância da propaganda para diferenciar e garantir
qualidade dos produtos, em relação aqueles produzidos ilegalment
o~ con:ierciali:ad~s no mercado negro; esses atores advogam tam
bem a 1mportanc1a econômica de manter-se o equilíbrio das regra
de concorrência no mercado; políticos e grupos de interesse defen
de~ as vantagens advindas da geração de empregos e da arrecadação
de impostos pelas empresas tabagistas; especialistas do setor médico
fazem d~slanchar controvérsias acerca dos efeitos maléficos do cigar•
ro n~ saudei representantes do aparato estatal-administrativo probl •
matizam o impacto do gasto público no setor de saúde com doença
causadas pelo cigarro; grupos militantes antitabagistas apelam para 0
valor da qualidade de vida e lançam várias campanhas para educação
da população contra o fumo e, ainda, buscam exercer pressão sobre
r~presen~a~tes p:r~ que tomassem medidas efetivas de regulamenta-
çao; usuanos e vmmas apresentam testemunhos de suas histórias de
vida. No debate, os argumentos não são igualmente potentes, alguns
podem perder relevância ou mesmo desaparecer diante de novas
informações ou da contestação de outrem, enquanto outros podem
fortalecer-se e ser encampados por outros participantes.
Num processo em longo prazo, a incorporação das falas dos
atores críticos da sociedade civil no espaço midiático de visibilida-
de é 1:1elhor_ apr~endida _como uma contribuição à ação conjunta
de ~el1beraçao_ publica. E, assim, parte de um processo mais geral
de mterpretaçao, realizado por diferentes comunidades, em diver-
sos ambientes sociais, cada qual com seus próprios interesses, e
entrecortado por critérios de relevância e julgamentos conflitantes
(Maia, 2006; Warren, 2001, p. 215-16).
VISIBILIDADE MIDIÁTICA E DELIBERAÇÃO PÚBLICA
191
1111tribuição dos atores da sociedade civil para o debate públi-
1111 1 ,,x1ço midiático de visibilidade, pode ser pensada em dife-
1 11fveis analíticos. Em primeiro lugar, as questões colocadas
1 1111res críticos geralmente trazem considerações éticas, morais
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
192
nis Thompson, "uma deliberação ampliada traz sempre o risco de
desencadear um conflito mais intenso. Porém, o fato positivo da
deliberação é que ela pode trazer à superfície a insatisfação moral
legfrima, suprimida por outros modos de lidar com o desacordo.
O resultado que servir aos atores em deliberação terá mais chances
de gerar estabilidade" (Gutmann e Thompson, 1996, p. 42). Nesse
sentido, desacordos mais agudos e formulados com maior clareza
contribuem para uma melhor deliberação do que as tentativas pre-
maturas de consenso.
Se o público crítico percebe restrições nas formas de comuni-
cação, ou limitações nos argumentos de seus oponentes e busca
superá-las, apela-se para uma audiência ampliada, a fim de conven-
cer aos demais de que tais razões não são, na verdade, públicas, e,
portanto, não são nem responsáveis nem benéficas para o conjunto
de cidadãos. De tal forma, a deliberação pública ajuda a distinguir
pragmaticamente entre as reivindicações particularistas, egoístas, e
aquelas com maior apelo coletivo. É nesse sentido que a deliberação
pública deve existir para "processar os detalhes da concepção do
bem comum e aplicá-los a questões específicas da política públi-
ca" (Cohen, 1997, p. 362). Nas palavras de A. Gutmann e D.
Thompson, "mesmo quando os deliberadores deixam de produzir
uma resolução satisfatória de um conflito em qualquer momento
particular, a capacidade para uma autocorreção permanece como
a esperança mais consistente para descobrir tal solução no futuro"
(Gutmann e Thompson, 1996, p. 44). Assim, a publicidade per-
mite um ganho epistêmico: aperfeiçoa a qualidade da justificação
política e da tomada de decisão, por subjugá-la a um grande núme-
ro de opiniões alternativas possíveis.
CONCLUSÃO
193
l'll"l1dizado a atores específicos, entre aqueles que se encontram na
11.t e aqueles na platéia, ou na galeria. Isso serve não apenas para
, nores modificarem suas estratégias de apresentação e suas práti-
~-. discursivas na cena pública, diante de um público indefinido de
1, l.1dãos, mas também para moldar a maneira pela qual os mem-
l,111\ do grupo entendem a si mesmo e a seus interesses legítimos.
comunáção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
194
cativa e criatividade cultural, bem como descobrir razões convin-
centes para modificar os entendimentos dos demais nas relações
cotidianas e o "modo de ver as coisas" na cena pública, incluindo
os fóruns mais organizados como os dos media.
O quadro normativo da deliberação permite valorizar as contri-
buições dos atores da sociedade civil para "desvelar" novas questões
ou desencadear um debate público ampliado, sobre temas especí-
ficos, no espaço midiático de visibilidade, ainda que esses atores
sofram sérias limitações de acesso à comunicação massiva. Por sua
vez, a possibilidade de maior acesso dos poderosos aos canais dos
media não nos pode cegar para o fato de que não basta falar para
convencer. A oportunidade para falar não empresta nenhuma força
convincente ou efetividade àquilo que alguém diz.
Por isso é que é sempre uma tarefa empírica examinar qual o
padrão de argumentação efetivamente adotado pelos atores sociais
no espaço midiático de visibilidade: se a comunicação busca desen-
volver-se de forma cooperativa com os demais, ou se, ao invés, os
atores interrompem a comunicação e encerram o diálogo, igno-
rando os pontos de vista divergentes e as perspectivas conflitantes.
Pesquisas empíricas precisam ser realizadas para dar conta desses
problemas, destacando, até mesmo, os processos de mediação reali-
zados pelos profissionais da mídia com relação a eventos específicos
ou a debates particulares. Torna-se necessário, assim, investigar se a
comunicação estruturada pelos media se mostra accountable diante
do conjunto de cidadãos, ou se, ao invés, solapa as condições de
publicidade que ela deveria fortalecer.
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
196
eia, lança as bases para que se articulem, de maneira sistemática,
processos deliberativos em esferas civis informais e em esferas
for~ais do sist~~a político constitucional para tratar da formação
leg1t1ma da opm1ão e da vontade política. Em um artigo recente,
esse autor especifica a necessidade de se entender o processo deli-
berativo em múltiplos níveis. Nas palavras de Habermas (2006,
p. 415),
197
IJ11.1111 as deliberações estruturadas que ocorrem em instituições
11111 o judiciário, os parlamentos, os departamentos públicos e
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
198
como ideais 2 para o desenvolvimento da deliberação - a inclusivi•
dade de temas e de participantes; a razoabilidade dos argumentos;
a não-tirania; a consideração da igualdade moral e política entr
os participantes; a escuta efetiva, o respeito mútuo e a recipro-
cidade entre os interlocutores; a reversibilidade das opiniões
- ocorrem em gradações diversas. É preciso, contudo, pressupo r
o intercâmbio entre tais arenas, o processo de seleção e filtragem
dos fluxos comunicativos e, ainda, a complementaridade de seus
efeitos democráticos, para compreender como a opinião e a von -
tade política se formam discursivamente. Para Habermas (2006,
p. 416) : "Apenas por meio do sistema como um todo, pode-se
esperar que a deliberação opere como mecanismo de limpeza que
filtre os elementos 'sórdidos' de um processo de legitimação dis-
cursivamente estruturado".
Exploramos, em outro trabalho (Maia, Marques e Mendonça,
2008), o contexto periférico do processo deliberativo ampliado,
levando em consideração a natureza da conversação cotidiana e do
associativismo e seus efeitos democráticos. Procuramos explicitar o
modo pelo qual a comunicação assume diferentes formas em are-
nas distintas do sistema político. Neste capítulo, busco investigar o
papel que os media desempenham para sustentar a esfera pública
política, seja fomentando a conversação cívica politicamente rele-
vante na vida cotidiana, seja oferecendo plataformas para o debate
público mediado, que envolve diferentes atores políticos. Na pri-
meira parte, examino o valor da conversação cotidiana para o esta-
belecimento de uma democracia participativa forte. Na segunda,
busco especificar as relações que se estabelecem entre a conversação
politicamente relevante e os usos que os cidadãos fazem dos produ-
tos midiáticos, nos domínios privados da vida cotidiana. Na terceira
parte, trato da participação de atores coletivos da sociedade civil no
debate público e das formas de produção de visibilidade de causas
cívicas e seus efeitos democráticos na esfera pública.
199
HI LAÇÕES ENTRE A ESFERA PÚBLICA,
o MEDIA EA CONVERSAÇÃO COTIDIANA
.• tn dos representantes.
(\ discussão que ocorre na esfera pública informal - isto é, nos
l, 1111ínios da vida cotidiana, nos fóruns organizados da sociedade
i\ d e nos meios de comunicação - deve, segundo Habermas,
,,. , 1·ncher a função de "mobilizar ou articular questões relevantes
1 informação necessária, e especificar interpretações" (Habermas,
•()() , p. 416). Normativamente falando, tais contribuições devem
1,,11 deveriam) informar as pautas políticas e serem processadas dis-
111 sivamente nas instâncias de deliberação formal, isto é, deveriam
t VPr Benhabib 1996; Bohman 1996; Bohman e Rehg 1997; Cohen 1996 e 1997; Cooke 2000;
111ylf•k 2000 e 2004; Fish kin 1991 e 1997; Fishkin e Laslett 1997; Gutmann e Thompson 1996 e
,no~; Habermas 1997; Hendriks 2006; West e Gastil 2004.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
200
sobre as políricas alternativas importantes e suas prováveis conseqü-
ências e, também, ter oportunidades concretas para engajar-se na
investigação e na discussão das questões em pauta.
Nesse sentido, pensadores liberais clássicos já destacavam a
necessidade de garantias institucionais, tais como a liberdade de for-
mar e de aderir a organizações, liberdade de expressar-se, o direito
ao acesso a fontes alternativas de informação, o direito ao voto para
participação democrática conseqüente. Destaca-se, nessa perspecti-
va, a importância conferida à liberdade de imprensa, à qualidade e à
regularidade da informação ou, ainda, à preservação da diversidade
de perspectivas políticas e culturais no ambiente midiático, para
o esclarecimento dos cidadãos e a formação refletida da opinião.
Tais exigências normativas ainda se fazem presentes na maioria dos
estudos que tratam da interface entre o jornalismo e a participação
democrática. Nas palavras de Pippa Norris (2000, p. 26),
4. Segundo T. Patterson (1996), o jornalismo, na medida em que se torna mais negativo e cínico,
pro_d_uz uma ~rogress1va descrença dos cidadãos em relação aos líderes políticos e às instituições
pol1t1c~s e ate mesmo um afastamento da vida cívica. De modo semelhante, G. Sartori (2001) e P.
Bourd1eu. (1997) :ntendem _qu e o consumo televisivo freqüente leva a população a uma condição
de 1gnoranc1a pol1t1ca. de alienação e apatia generalizada.
s_. M. Delli Carp_i ni e S. Keeter (1996, p. 112), em estudo destinado a investigar o conhecimento
c1v1co dos americanos, sustentam que, apesar do significativo aumento do nível educacional da
população, num ambiente informativo "tão rico que o custo para o aprendizado político deveria
CONVERSAÇÃO COTIDIANA E DELIBERAÇÃO
201
.,,1 iar diretamente o desenvolvimento dos meios de comunica-
''· f'm particular o consumo da televisão, com a ignorância e a apa-
pnlítica. Sobretudo o entretenimento televisivo é criticad_o ,r.or
,
11 11
mir O tempo que seria utilizado em atividades comumtanas
, ,vicas, como a participação em associações voluntárias e redes
1
,. .1 ~. Esses escudos, muito criticados recentemente, baseiam-se
1
1 pesquisas experimentais ou semi-experimentais que negligen-
11
j4111 um conjunto de fatores ligados ao próprio sistema político e
,,. ~ignificativamente reduzido para a maioria dos cid~dãos": as pess?as, paradoxalmente, não se
1
,nn•,tram melhor informadas sobre a política do que ha um seculo atras.
1, t m outros trabalhos. exploramos o modo pelo qual o sistema dos media ~sta_be_le~e um comple-
,1 pa drão de interações com outros sistemas sociais, com suas respectiva~ !nst1tu1çoes e com seus
arwntes sociais. Em diferentes sociedades, os segmentos do sistema m1d1at1co seguiram_ diferentes
,1, ..,rnvolvimentos de auto-regulação, com maior ou menor grau de autonomia em relaçao ao Esta-
iln, aos setores do mercado e/ou outros grupos influentes na sociedade (Alexander, 1988; Blumler
" t,urevitch, 2000; Hallin e Mancini, 2004; Maia, 2006c).
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
202
o comportamento conformista ou mobilizar o poder de compra,
outros atores podem ter como meta promover a contestação políti•
ca, tematizar injustiças e politizar problemas sociais, fazendo avan-
çar causas de interesse comum (Camauer, 2000; Santiago e Maia, l
2005; Reis e Maia, 2006; Mendonça, 2006). Obviamente, o acesso
dos atores sociais à comunicação massiva é altamente diferenciado; 1
alguns atores são sobre-representados ao passo que outros são sub-
representados ou mesmo excluídos. Por sua vez, os próprios atores ,,
sociais contam com diferentes cotas de poder econômico e político 111
para transacionar com os agentes dos media, e dispõem de recursos
organizacionais e comunicativos altamente assimétricos para pro-
mover a comunicação pública. I
A fim de apreciar o potencial político dos media para pré-
estruturar a esfera pública política, faz-se necessário afastar-se de 1
concepções prima facie de que os meios operariam de modo unifi-
cado, seguindo uma lógica geral, determinista, seja para estimular
a ignorância e a apatia da população em relação à vida política, seja 1
para atuar como escola de civismo ou agente de mobilização. Nesse ,
sentido, cabe às pesquisas empíricas apreender a atuação dos meios ,
1
massivos em situações específicas, levando em consideração as insti-
tuições e os agentes da mídia, as instituições e os agentes do sistema ,l
político, as práticas receptivas e os usos que os cidadãos fazem do
material midiático, bem como o contexto sócio-histórico em que 1
203
111 tt· entre pessoas com afinidade de pensamento, enquanto a
~
1111
da, acionada para a solução de problemas, é essencialmente
11,li, a e pode ocorrer entre pessoas com um background seme-
. 111 1t· , mas com valores e pontos de vista diferentes. Ainda que
,tutores não utilizem o quadro teórico deliberacionista em suas
1 11111 ões, a comunicação política seria aquela que se aproxima das
11,lições deliberativas. 7 As trocas comunicativas na esfera pública
,, .. ·,upõem a reflexão, a crítica, a capacidade de defender seus pró-
1111•, posicionamentos por meio de razões, a capacidade de assumir
1.1pel do outro, articulando a escuta respeitosa, a sinceridade _e
1
111t lusáo formal. As interações cotidianas são marcadas pela flu1-
1,lr.d · da deliberação.
/\pesar de suas óbvias diferenças, entendemos que a conversação
,111diana e a discussão política não devem ser vistas como opostas
1 1.da, Marques e Mendonça, 2008; Marques e Maia, 2007; Marques
Htlcha, 2006) . A conversação cotidiana também é fundamental para
, v11alidade da democracia, já que ela provê tópicos e configura valo-
11, p:ua serem defendidos na esfera pública e, ainda, prepara os cida-
comun~ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
204
sem sua criatividade, sua variedade, sua abertura e flexibilida-
de, sua inventividade, sua capacidade para a descoberta, sua
efemeridade e complexidade, sua eloqüência, seu potencial
para a empatia e expressão afetiva (Barber, 2003, p. 173-4).
8. "Os interlocutores transitam rapidamentede questões políticas para uma fala desprovida de propó·
sitos sobre questões pessoais de uma maneira que não demarca claramente os espaços privado e pú·
blico (.. .).Aqui, tópicos políticos são discutidos, e algumas vezes debatidos, de maneira conjunta com
outros eventos comuns, tais como uma inundação, acidentes de aviões, aqualidade de filmes,ascausas
de uma criança cair de berços ou a superioridade do transporte local" (Wyatt, Katz eKim, 2000, p.89).
CONVERSAÇÃO COTIDIANA E DELIBERAÇÃO
205
lllll' a conversação cotidiana e os usos que os cidadãos fazem dos
t ,.,d 11 cos midiáticos no que diz respeito: (a) à reformulaçã~ ou à
, , 111 eirualização das questões políticas; (b) à auro-expressao, ao
.. 111 partilhamento de testemunhos e de experiências.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
206
coerente, suas preferências (Scheufele, 2000; Bennett et al., 2000;
Kim et al., 1999; Norris 2000, Kwak et ai., 2005).9 As pessoas, ao
refletirem sobre o material dos media e ao falarem e ouvirem umas
às outras, produzem uma constante reconceitualização dos negócios
públicos e da própria idéia de público; decidem qual polírica que-
rem, em conformidade com seus interesses e valores básicos.
9. Nas palavras de K~~k et ai. (2005, p. 1O~). "quando os indivíduos têm maior oportunidade para
aprecrar diferentes v1soes, mediante atençao acurada e interações inter-pessoais freqüentes, eles
podem ser capazes de chegar a conclusões sólidas que levam à ação política".
10. Ver, particularmente, Cohen, 1996 e 1997; Habermas, 1997; Fishkin, 1991; Bohman, 1996;
Gutmann e Thompson, 1996 e 2004.
CONVERSAÇÃO COTIDIANA E DELIBERAÇÃO
207
1q;umentos passíveis de serem defendidos diante de uma ampla
1,l1n1cia; a troca argumentativa deve admitir muitos pontos de
1 11, os participantes devem justificar suas preferências, examinar
, 1 1111ente os argumentos concorrentes, responder reciprocamente
111dagações uns dos outros e manter os próprios argumentos
1.. 110s à contestação. Em ambientes privados (reuniões em casa,
1111c a família ou os amigos) ou semipúblicos (encontros entre
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
208
der sua preferência por um determinado candidato ou, ainda,
persuadir outros - sem a experiência de tais ensaios. As discussões
privadas são estágios importantes para preparar as pessoas para a
discussões públicas, situações nas quais elas são freqüentemente
contestadas.
209
Neste sentido, os media criam novas oportunidades, novas
I",º · e novas arenas para que os sujeitos produzam sentido de si
11 ,111os, da relação com os outros, o que freqüentemente se entre-
comun~ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
210
estereotipados que carregam consigo um discurso social, com
determinadas assunções, juízos e predisposições que favorecem
grupos hegemônicos. Contudo, não se pode perder de vista a pos-
sibilidade de um posicionamento refletido por parte dos sujeitos
que sofrem de exploração, estigmatização ou de injustiças socais.
Um determinado discurso estabelece posições de uns em relação
aos outros, que os atores podem ou não reconhecer, podem ou
não assumir (Bourdieu , 1989; Habermas, 1992). Quando há um
potencial crítico disponível, grupos subordinados freqüentemente
reúnem fragmentos de discursos hegemônicos e produzem con-
tra-narrativas que são elaborados em seus próprios termos e nos
espaços que lhe são próprios. Tal posicionamento é, ele mesmo,
resultado das ações dos indivíduos, de suas interações e contendas
na sociedade.
Uma vez que os discursos hegemônicos ou as representações
estigmatizantes se encarnam nos produtos dos media e, assim, tor-
nam-se visíveis e disponíveis ao público, eles não podem evadir-se
da possibilidade de ser contestados por atores e públicos críticos.
Por meio da conversação, as pessoas procuram produzir sentido
acerca de diferentes discursos que lhes dizem respeito. Falando e
ouvindo os outros, considerando pontos de vistas uns dos outros, as
pessoas podem subverter as premissas de discursos e representações
hegemônicas, alterar o encadeamento de causalidades e subverter
juízos morais sobre a própria condição (Young, 2002; Gamson,
1992; West e Gastil, 2004; Marques e Maia, 2003 e 2007). Con-
seguem conectar as experiências particulares de si mesmos, de
um grupo ou de uma categoria com algum princípio mais geral
(Dryzek, 2004, p. 51). Constrói-se, assim, uma rematização de
valores considerados relevantes enquanto grupo ou uma narrativi-
zaçáo sobre situações comuns. Este é o primeiro passo para o com-
bate contra injustiças sociais e a conquista da auto-estima (Cohen
e Arato, 1992; Melucci, 1996; Honneth, 1996; Benhabib, 2002;
Gutmann, 2003; Maia e Marques, 2002). A conversação cotidiana
ajuda os indivíduos e os grupos a expressarem aquilo que é comum
ou diferente entre eles, verbalizarem preconceitos e estereótipos, e
_ ERAÇÃO
CONVERSAÇAO COTIDIANA _ _
211
lwg. 1rem a algum entendimento sobre experiências, necessida1
1trnc upações comuns. _ . .
1)eve-se levar em consideração que a conversaçao cot1d1a
1 11 dmente "passional, extrema, e derivada de interesses parti<
,, ," ( anders, 1997, p. 371). Além disso, o estilo de comunic
,,l111ária e, como Íris Young propõe, a "cultura de fala" de d,
11111 1.ldos grupos (como as mulheres e certos grupos não oci,
11·,) tende a ser "mais excitado e encarnado, valorizando par;
l 11111cnte a expressão da emoção, o uso figurativo da linguai
111ndulações no tom de voz e amplos gestos" (Young, 199<
t 1 \-4). Contudo, aspectos estéticos expressivos do discurso
l''ulcm, nem precisam, estar totalmente separados da comu1
111 racional. A paixão e a expressão da emoção não excluem
n~ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
212
constituem a esfera pública. Primeiro, o contar estórias ajuda a faze
com que as reivindicações se tornem visíveis como preocupaçõe
significativas para o debate público, numa situação em que elas são
desconsideradas no interior de uma ordem discursiva hegemônica,
a qual , geralmente, estabelece o que é ou não legítimo. "O contar
estória proporciona uma abordagem geral porque um problema
particular constitui uma injustiça que demanda atenção pública e,
mais especificamente, contribui para o desenvolvimento de uma
linguagem normativa que permite a expressão de uma injustiça
previamente não-denominadà' (Dahlberg, 2005, p. 118). Segundo,
o contar estória ajuda a explicar os sentidos e as experiências em
situações em que os grupos não compartilham premissas de modo
suficiente para dar prosseguimento ao argumento (Young, 2002,
p. 73). Terceiro, o contar estórias pode ter um papel central em
práticas comunicativas de grupos excluídos, diaspóricos ou grupos
locais, ajudando-os a desenvolver identidades e posições diante de
razões que são rematizadas diante de amplos públicos (Goodin,
2000).
Em discussões privadas, como já indicado, os cidadãos são mais
propensos a expressar mais livremente suas preferências e emo-
ções, sem propósito direto de influenciar as decisões do governo.
A comunicação visa, sobretudo, ao processamento cognitivo e
ético-moral das questões, em que sujeitos "entendem a si próprios
e aos seus interesses legítimos" (Habermas, 1997, p. 227) . Por
isso mesmo, a conversação fica mais sujeita à expressão aberra de
preconceitos, ódios ou hostilidades que as pessoas ou os grupos
nutrem uns pelos outros. Além disso, nem todas as reivindicações
elaboradas pelos grupos se baseiam em padrões democráticos ou
justos, ou apresentam razões passíveis de serem defendidas publica-
mente. Um dos propósitos da deliberação - em arenas com maior
grau de publicidade, isto é, voltadas para audiências mais amplas
- é exatamente produzir uma filtragem de preferências irracionais
ou pontos de vista moralmente repugnantes. Esse seria um modo
não paternalista de seleção de tópicos do debate público (Baynes,
1995, p. 216).
CONVERSAÇÃO COTIDIANA E DELIBERAÇÃO
213
VISIB ILIDADE DE CAUSAS CÍVICAS:
A INSERÇÃO DE NOVOS PONTOS DE VISTA,
HAZÕES E DEMANDAS PARA O DEBATE
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
214
centro do sistema político, com maior grau de efetividade política
(Warren, 2001; Maia e Fernandes, 2002; Fung, 2004; Fung e Wri-
ght, 2003; Mendonça, 2006; Mendonça e Maia, 2006).
É preciso fazer a ressalva de que não é o simples fato de os
indivíduos se auto-organizarem e agirem coletivamente que leva
a ganhos democráticos. Muitas associações negam os valores da
cidadania democrática: diversos grupos advogam o ódio e a intran-
sigência; organizam-se em torno da xenofobia, do racismo, da
homofobia ou da intolerância religiosa; disseminam a desconfiança
e a suspeição entre os atores sociais; dão suporte a políticas autori-
tárias ou tirânicas por parte do Estado ou fazem uso, eles mesmos,
da violência (Warren, 2001; Chambers, 2002; Gurza Lavalle,
Houtzager, Castello, 2006). Para a busca da justiça democrática,
faz-se necessário que os interesses e as reivindicações de diferentes
grupos sejam processados em contextos públicos, isto é, em arenas
públicas ampliadas. Nesse sentido, as regras e as condições para a
deliberação são importantes para fazer distinções normativas acer-
ca do procedimento do debate democrático. Atores cívicos mais
propensos a se engajarem no processo deliberativo ampliado são
aqueles com mais chances de submeter seus interesses e reivindi-
cações ao escrutínio e ao julgamento público e, assim, buscar uma
cooperação dialógica com outros atores sociais (Maia, Marques e
Mendonça, 2008).
Destaca-se, aqui, a importância dos media para ampliar os
debates públicos. Para nossos propósitos, interessa apontar o
modo pelo qual a comunicação massiva oferece uma oportunida-
de essencial para a expansão das causas cívicas e para a inserção
de novos pontos de vista, argumentos ou preocupações para o
debate público. Por meio dos media, as questões e causas de ato-
res cívicos podem alcançar uma audiência muito mais ampla do
que seria possível mediante ações diretas. Os media contribuem
para inserir temas na agenda pública, para configurar a percepção
que os cidadãos fazem das questões-chave da política e, também,
para construir o senso que as autoridades políticas formam sobre
a reação dos cidadãos.
CONVERSAÇÃO COTIDIANA E DELIBERAÇÃO
215
/\ fim de ampliarem sua influência, os movimentos sociais
~· 1.dmente procuram atingir diferentes agendas: a dos meios de
11lllunicação, a dos partidos políticos e a dos corpos parlamentares
.1drninistrativos. No caso particular dos media, os atores cívicos
p11•t isam engajar-se em processos competitivos, já que a atenção do
t' 111de público é escassa; há um espaço reduzido para a inserção
d, 11 tícias nos veículos de massa; o foco da definição das notícias
111ra-se na política institucional-formal e em falas de autorida-
tf, ·,; as empresas de comunicação operam com regras, estruturas e
111érios próprios. Repórteres e jornalistas, por exemplo, avaliam o
i111 ·ressede uma questão com bases em critérios de noticiabilidade
1,h orno o potencial para despertar a atenção do público; os graus
1, im portância, de impacto e de atualidade da matéria; a existência
1111 não do caráter espetacular ou chocante.
Apesar de terem um acesso restrito aos meios de comunicação e
d, ~crem sub-representados na pauta jornalística, os atores críticos
.11 \ ciedade "lutam por visibilidade" e desenvolvem uma série de
, 11.1 régias para ganhar entrada nos media (McCarthy e Zald, 1996;
1 ,mauer, 2000; Reis e Maia, 2006; Maia, 2006a). Valem-se, muitas
, ll' , de estratégias - manifestações, campanhas, ações espetacula-
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
216
res sociais. Eles filtram e enquadram sentidos, acomodando melhor
alguns modos de expressão e não outros. O embate e a negociação
de argumentos na cena midiática segue uma dinâmica própria, que
não pode ser reduzida às motivações, aos recursos e às habilidades
dos atores sociais.
Os media promovem uma complexa relação entre a agenda
pública e a agenda política. As organizações da mídia colocam em
contato fluxos comunicativos dos diferentes sistemas sociais e dos
setores privados da vida cotidiana, e contribuem para que eles se
interpenetrem. Os profissionais dos media podem absorver dis-
putas existentes na sociedade ou mesmo criá-las, ao editar falas e
recompô-las em termos de um debate (Page, 1996; Gomes, 1999;
Norris, 2000; Maia, 2006b). A transformação de certas matérias
em "questões públicas" não é óbvia ou imediata, como alguns
estudos sobre agendamento nos fariam pensar. Definir situações,
identificar causas e efeitos, apontar quem é afetado ou como é
afetado por certas decisões políticas e, ainda, construir um campo
prático de ações futuras envolve um complexo processo de trocas
comunicativas, sendo difícil definir, de maneira simples, "quem
influencia quem".
Os agentes da mídia processam discursos provenientes de dife-
rentes esferas de valor, comunidades e ambientes de ação. Contudo,
não se pode perder de vista que os discursos dos atores políticos
concorrem entre si na esfera midiática de visibilidade, num jogo
de equilíbrio instável entre diversas forças. Esse processo envolve
uma luta discursiva, um embate entre questões éticas e morais,
negociações pragmáticas e barganhas. Acreditamos que a passagem
pelos media contribui para promover a ampliação do debate, com
a generalização das temáticas em público, o que é extremamente
relevante para o processamento cognitivo e coletivo de problemas
de interesse comum. Ademais, o embate, no ambiente midiático,
dá-se diante de uma audiência implícita de todos os cidadãos, o que
apresenta riscos significativos e a necessidade de cálculos estratégi-
cos para a configuração das posições e disposições no jogo político,
fora da cena midiática.
CONVERSAÇÃO COTIDIANA E DELIBERAÇÃO
217
nNCLUSÃO
11 Épreciso levar em consideração que as conversações cotidi anas ta mbém sofrem regul am: nta-
}Jl'S sociais e que também dependem do interesse, da motivação, do sentim ento de com petenc1a
,ln~ fala ntes e, ainda, da disponibilidade de parceiros de discussão. Ver Conover et ai., 2002;
~nung, 2002.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
218
representantes políticos, agentes do Estado ou ocupantes de outras
instituições sociais.
Em todo esse processo, os meios de comunicação desempenham
um papel fundamental, ao dar visibilidade aos fenômenos sociais
e ao prover informações em torno dos quais se estruturam esferas
de discussão privada e pública. Os media estabelecem plataformas
que permitem a diferentes atores (políticos, grupos de interesse,
especialistas, porta-vozes de certas causas) apresentarem seus pontos
de vista e defendê-los em público. O entrecruzamento de diferen-
tes pontos de vista e discursos originados em diferentes domínios
sociais ajuda a ampliar o debate público. Para a estruturação - por
meio de um processo circular - de esferas privadas e públicas de
debate, tão importante quanto a qualidade, a regularidade e a
diversidade da informação é o fato de as pessoas se engajarem, com
relativa freqüência, em conversações e discussões politicamente
relevantes.
No que tange à deliberação, as trocas argumentativas que per-
passam diferentes arenas discursivas não podem ser entendidas
por meio do modelo de contestação recíproca, segundo o estilo de
interrogação de uma "lógica seca", com aspirações a um julgamento
imparcial, tal como se dá nas esferas da ciência e da lei moderna. Ao
invés disso, esse é um processo "anárquico", marcado muitas vezes
pela emoção e pelas paixões, e que segue uma dinâmica própria,
sem obedecer ao controle de um único ator. Adotar uma pers-
pectiva ampliada de política faz ver que os alegados benefícios da
deliberação - o poder educativo e o desenvolvimento de autonomia
e sentimento de eficácia política (Cohen, 1996 e 1997; Fishkin,
1997; Held, 1987; Cooke, 2000); o aperfeiçoamento cognitivo
ou o "ganho epistêmico" para o processamento de problemas e
questões morais controversas (Habermas, 1997; Benhabib, 1992;
Gutmann e Thompson, 1996 e 2004); o poder de gerar sentimen-
to de comunidade e vínculos de responsividade (Fishkin, 1991;
Gutmann e Thompson, 1996; Cohen, 1997); a justiça dos proce-
dimentos e a construção de legitimidade política para as instituições
democráticas (Habermas, 1997; Benhabib, 1992; Dryzek, 2000
CONVERSAÇÃO COTID IANA E DELIBERAÇÃO
219
'004) devem ser apreciados mediante cooperação de diferentes
1111<'. , em diferentes níveis e em diferentes domínios.
Por exemplo, os grupos subordinados despendem um grande
lnrço para expressar, em esferas privadas e públicas, o que consi-
1, 1.1 m aspectos importantes de suas identidades e culturas, e, ainda,
1 11.1 combater, como grupo, discriminações e outras injustiças.
1111tudo , as razões desces grupos por si não são suficientes para que
1tl1.1mos se suas demandas ajudam ou impedem a justiça demo-
1.11 ica. A busca por reconhecimento e justiça social é uma emprei-
comun§ção
6
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
222
"qualidade da vida pública e o desempenho das instituições social
(... ) são fortemente influenciados por normas e redes de engajament
cívico" (Putnam, 1995a, p. 66). Segundo tal pressuposto, em outra
palavras, onde houver conexões sociais intensas e envolvendo um
grande quantidade de membros da comunidade, onde se partilhem
valores sociais, tais como a confiança nos outros e o sentido de reci
procidade, as chances de sucesso de cada indivíduo e da comunida
de aumentarão consideravelmente diante das instituições políticas
sociais. Nessa batida, mesmo os governos representativos seriam afe
tados de maneira importante por tais redes e pelas normas que ela
comportam - como já se depreendia da perspectiva tocquevilleana
Assim, pesquisadores de áreas tão variadas como a saúde pública
a educação, a pobreza urbana e de outras vulnerabilidades sociai
como desemprego, controle de crime e abusos de drogas, parecem
ter encontrado uma fecunda chave de leitura para compreender
explicar fenômenos importantes da assim chamada questão social
O passo seguinte foi encontrar uma moldura teórica comum para o
entendimento desses fenômenos; o que se deu a partir do conceito
e da teoria do capital social.
Capital social é uma noção que entra definitivamente na roda da
pesquisa social no final dos anos 80, tendo sido introduzida como
moeda corrente nesse âmbito de investigação por obra do sociólogo
da Universidade de Chicago James Coleman (1988, 1990), que a
emprega, sobretudo, para tratar do contexto social da educação
Antes dele foi usado por outros seis autores, de forma independen
te, no curso do século passado, inclusive pelo economista alemão
Ekkehart Schlicht e pelo teórico social francês Pierre Bourdieu
O corpo de literatura sobre a teoria e a aplicação do capital socia
em diversos campos sociais hoje é vasto, variado e, infelizmente, já
excessivamente polissêmico.
223
l 111 • 1penas esclarecer como a noção é recebida e desenvolvida por
''" 11 D . Putnam e, depois, empregada para formar uma aborda-
a '" do fe nômeno do engajamento cívico, um indiciamento da rele-
i 111 · uma crítica de parte das práticas políticas contemporâneas.
m .\ noção de capital social assumida por Putnam forma-se a partir
, 1•1 w grau de analogia com as noções, anteriormente estabele-
a 1 li·,. de capital físico e capital humano. "Capital físico" refere-se
1,, 1.1mentas e equipamentos; "capital humano", a treino e habi-
e 1 l 11l<'s; os capitais físico e humano são basicamente dispositivos e
"l'l1·111entos materiais, de um lado, e competências e habilitações
a. 1111.111as, do outro, que se destinam a melhorar a produtividade do
a, .l1v1cluo. Por analogia, "capital social" refere-se a alguns aspectos
,,1 ,anização social que facilitam a coordenação e a cooperação
m ,, indivíduos, proporcionando-lhes, em razão disso, benefícios
11111 1ns. Os aspectos que Putnam especificamente tem em mente
l. 11.1 noção são apresentados numa lista, que aparentemente é
o f,. 11 .1, mas cujos componentes são sempre mostrados como uma
o IMI, .. redes de relações (networks), confiança recíproca (trust) e
,1111.1s (norms) ou princípios socialmente compartilhados que
da llr wm valores benéficos à cooperação. No que tange especifica-
o ' 1111· às normas, quando chega a caracterizá-las, Pumam as espe-
o lh, 1\ Ímplesmente como "normas de reciprocidade e de confiança"
a I 11111.1 m, 1995a, p. 19).
o. 1l11 que se depreende da compreensão de Putnam, trata-se de
- lor mas de capital que se pode acumular e empregar em bene-
o 111 dos indivíduos. Neste quadro, a terceira espécie de capital
u. 11 , 1.1 decisivamente o domínio privado e o coletivo (melhor,
al 1111111icário). Implementos e habilidades, por exemplo, podem
á ,, Tt suficientes para o sucesso da ação individual num ambiente
111,· ' m capital físico (p. ex., quando pequenos fazendeiros não
1tl' t11 ferramentas em número e variedade suficiente para o que
, 1·.. ttn) e/ou humano (por exemplo, quando, neste caso, nem
lm tê m a mesma competência para realizar todas as tarefas). Em
a 1 •,11 uações, o capital social, que é a conexão entre os indivíduos
s. t• .d ,o que decorre dessa conexão, não há suficiente precisão
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
224
quanto a isso), pode fazer a diferença - ferramentas podem
emprestadas e habilidades podem ser treinadas se houver confl
generalizada entre os cooperantes a partir de normas e garantia
reciprocidade. Os investimentos em capital físico e humano pod
ser, portanto, potencialmente aumentados com a suplementa
dos recursos que já se possui por meio da agregação, a eles, de
bom montante de capital social.
Explorando a analogia inicial, diria que o capital social são
tagens que podem ser desfrutadas por indivíduos e grupos, co
as ferramentas e as habilidades, com a diferença de que só pod
ser produzidas e concedidas pela interação social. Ademais, o capl
social é como se fosse um bem coletivo que existe para benefí
coletivo e individual, mas não uma propriedade privada para o go
particular daquele que o possuiria privadamente (Putnam, 199
p. 4), como é caso do capital econômico. Em ambientes ricos
capital social, pelo menos em princípio todos podem dele se ben
flciar. Por outro lado, é um capital produzido na interação e q
depende dos investimentos de cada agente nos liames sociais que
estabelecem no grupo.
Uma vez estabelecido um importante estoque de capital soei
ele pode ser transferido de uma esfera social para outra sem q
além disso, seja diminuído o seu valor relativo na esfera em q
se originou; antes, o capital pode crescer com a sua expansão pa
outros domínios. Assim, esferas ricas em capital social (igrejas o
associações recreativas, por exemplo) podem influenciar a constitu
ção de um montante análogo de capital social em outras esferas
política ou a economia). Estoques de capital social, por outro lad
tendem a retroalimentar-se. De forma análoga ao dinheiro, no q
tange às redes sociais e às normas de reciprocidade, quanto mais
tem mais se consegue produzir, e quem mais tem mais consegu
obter. Assim, quanto mais se colabora com sucesso, mais se tend
a confiar nos outros e a fortalecer a rede interpessoal de contara
Nesse sentido, quanto mais se usa o capital social, mais forte ele s
torna, valendo também o contrário disso - quanto não é ativado,
capital social atrofia.
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA ETELEVISÃO
225
Os aspectos que fazem parte da lista padrão de capital social,
i:11ndo Putnam, formam uma espécie de sistema de engates. As
1lc-ç sociais, por exemplo, são, em primeiro lugar, contatos ou
, 111 ·xões. Putnam acredita que conexões sociais bem azeitadas e
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
226
externos nem sempre são para o bem, quer dos que estão "fora
rede" ou da própria comunidade. Como qualquer outra forma
capital, Pumam admite, o capital social pode ser empregado pa
propósitos perversos e anti-sociais, como nos casos de sectarism
emocentrismo, xenofobia, patrimonialismo e corrupção. Toda
questão consiste, então, em como minimizar o lado sombrio d
capital social, maximizando, ao invés disso, o seu lado positivo
aquele voltado para objetivos de "suporte mútuo, cooperação, con
fiança, efetividade social" (Pumam, 1995a, p. 22).
1. Por" engajamento cívico", entende-se toda e qualquer atividade que expresse um compromisso
do indivíduo com a coletividade. É "engajamento cívico" tudo o que se faz para o bem da comu·
CAPITAL SOC IAL, DEMOCRACIA ETELEVISÃO
227
1111 -ricana. Afinal, Pumam é um cientista político, e não um
t.,d,•, desde a comunidade local até a comunidade política mais ampla. Nesse sentido, o seu ai-
~'"'' é mais alargado do que o abrangido pela expressão "participação política", que se restringe
" ,,11v1dades relacionadas à prática política institucional. Nesse sentido, ir contar historinhas aos
,, 11•1nes de um hospital para crianças com câncer é engajamento cívico, embora possa não ser,
, •11p11amente, participação política.
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
228
nam conduz com outros pesquisadores e cujo resultado está num
livro originalmente publicado em 1993 (Putnam, 1993a). A partir
dos anos 70, a Itália tentou implantar governos provinciais fortes.
As circunstâncias sociais das províncias não poderiam ser mais dis-
tintas, dada a formação histórica do que hoje constitui a República
italiana. Alguns governos deram certo, criando programas sociai
fortes e bem estabelecidos, e iniciativas de desenvolvimento social
e econômico; outros foram ineficientes, letárgicos e corruptos. Por
que isso teria acontecido? A organização governamental era seme-
lhante, os partidos políticos e as ideologias fizeram pouca diferença,
a prosperidade e a riqueza não tiveram efeitos diretos, tampouco a
estabilidade social ou movimentos populacionais desempenharam
papéis-chave. "Ao invés disso", afirma Putnam, "a melhor constante
explicativa é uma que Aléxis de Tocqueville teria esperado. Fortes
tradições de engajamento cívico - eleições, leitura de jornais, filia-
ção a corais e a círculos literários, Lions Club e clubes de futebol
- foram as marcas características de regiões bem sucedidas" (Put-
nam, 2000, p. 345). As províncias onde instituições e iniciativas
democráticas funcionaram, em suma, foram aquelas "comunidades
cívicas" do norte da Itália que valorizam solidariedade, participação
cívica e integridade. De outro lado, documentou-se o fracasso de
comunidades "incivis" do extremo sul italiano, dotadas de parca
vida pública associativa e onde se acredita que os assuntos públicos
são problemas dos outros. Então, explica Putnam, a democracia
funciona onde há capital social encarnado em normas de reciproci-
dade e redes de engajamento cívico, onde há confiança generalizada
na integridade dos outros, senso de responsabilidade geral pelos
assuntos públicos e locais, onde há um repertório histórico de cola-
boração e coordenação bem sucedidas.
O padrão de práticas democráticas configurado sobre esta base
é necessariamente um modelo de democracia participativa e de
base. No foco que a abordagem mediante capital social adota, a
política é considerada, sobretudo, a partir da esfera civil, isto é, de
valores, iniciativas e princípios praticados no domínio da cidadania.
E a democracia se qualifica a partir dos níveis de acompanhamen-
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA E TELEVISÃO
229
,. , 1v1eo nas comunidades dos assuntos públicos e dos níveis de
111pcnho, envolvimento, participação e interesse demonstrado nos
, 1111tos públicos e comunitários. Eis porque, para mim, o adje-
11., 1 "cívico" merece predileção sobre as alternativas mais comuns
,, I'' esentadas por "político" e "civil". "Político" aplica-se, em geral,
,, , que é relativo às instituições do Estado, ou ao funcionamento
1, ll' próprio, e aos assuntos concernetes à coisa pública. "Civil", em
111111ha opinião, aplica-se ao domínio da cidadania quando contra-
1..... , ao sistema político. "Cívico" refere-se à "comunidade políti-
i"', l esfera daquilo que é de concernência comum, não importa se
1, um grupo ou de uma nação. O círculo de concernência comum
11.11~ palpável, mais direto, mais vital, mais primário, nessa visão
1, coisas, é a vida da comunidade, e não a República ou o Estado.
1'111 i so mesmo, nesta perspectiva o adjetivo "cívico" tem uma refe-
1, 11t ia ao mesmo tempo mais precisa (designando tudo o que está
,, l ,cio nado à vida das comunidades) e mais ampla (à medida que
pode falar da nação como a comunidade das comunidades) que
,, 1djetivo "político".
1~ nesse horizonte de considerações que Putnam acolhe e faz sua
, ,p1' tão da participação política nas democracias liberais contem-
1·•11.111eas. Para ele, trata-se, antes de tudo, de "engajamento cívico":
,. ·o nexões das pessoas com a vida das suas comunidades, não
1,,1plesmente com a política" (1995b, p. 665). Como o conceito
1, l omunidade não é firmemente demarcado, freqüentemente o
d1c1ivo "cívico" desliza para incluir um genérico "as nossas relações
, 1111 os outros". A participação política, diferentemente disso, seria
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
230
que nós chamamos de vida social ou vida fora de casa, incluindo
aí o estar com a família ou com vizinhos, até comprometer-se co
ins:i:uições. Ig~almente multivariadas são as formas de participaç
polmca, que ~ao desde as que mais empenham tempo e compr
metem a dedicação (como militar em um partido político ou e
outras organizações, participar de campanhas como voluntário
candidatar-se a um cargo) até aquelas mais eventuais ou de menu
dedicação (assinar petições, contatar membros do parlamento, po
tar buttons e acompanhar o noticiário político).
Engajamento cívico e capital social encaixam-se normalmen
num jogo de pressupostos e conseqüências que produzem um
círculo virtuoso. A razão disso repousa no fato de que ambos s
referem às relações que temos uns com os outros, genericament
falan~o. Engajamentos não geradores de capital social não seriam
propriamente, engajamentos cívicos. Por outro lado, o capital socia
é fortemente relacionado à participação política, mas estabelece um
círc,u_lo virtuoso apenas com relação a certo tipo de participaçã
polmca, aquela que aciona redes de relações, confiança social
nor~as de reciprocidade. O que quer dizer que há participação
polmca que não cria capital social (como doações de campanha
por_exemplo) e há meios de criação de capital social (como joga
bolIChe ou tomar café com um amigo) que não são necessariament
formas de participação política (1995b, p. 665).
Donde se depreende que a noção de capital social não é empre
gada por Putnam apenas como um descritor das pré-condições do
engajamento cívico ou da participação política; é um qualificado
dos tipos de engajamento e de participação política considerados
por ele, adequados para um determinado modelo de política e
democracia. Aliás, é hora de dizer que a obra de Putnam que trata
do capital social, pelo menos no período que vai de Prosperous
Community (1993) a Bowling Alone (2000), apóia-se num juízo
de valor sobre a qualidade da vida cívica e social americanas hoje,
mensurada a partir da dimensão e da intensidade do engajamento
cívico verificado e dos estoques de capital social que a ele se vincu-
lam. Putnam não trata propriamente do engajamento cívico, mas
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA ETELEVISÃO
231
, 11 declínio e, conseqüentemente, da erosão ou destruição do
o 1'11.tl social na democracia e na política (americanas) contempo-
ç
r
e
o 1 tJ DECLÍNIO DO CAPITAL SOCIAL
u
or A tese de Putnam, causa da sua celebridade recente e um dos
f,11\0S para transformar capital social no conceito da moda em
t h 11 ·ias Sociais, é que o engajamento cívico em geral e a partici-
m 1 i•,.I!) política em particular estão em franco declínio nos Estados
s l lu 1dos há cerca de um quarto de século. E não obstante aquele
t ,11'., outrora a encarnação do modelo de democracia tocquevil-
m, 1 111.1, ainda representar, no reiterado auto-elogio de Putnam, o
al 1111 ll1o r padrão mundial de participação e engajamento, na verdade,
m 1•11· cnta neste momento as menores taxas de capital social da sua
ão lit 1<'iria.
'iobre a decadência dos níveis de participação política e de enga-
o j H11l'l1to cívico nos Estados Unidos há já um amplo corpus de evi-
a, ,1, m ia. O que possivelmente representa a contribuição de Putnam
ar 111 .1rgumento é, além da abordagem via noção de capital social, sua
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
232
conhecimento político e interesse nos assuntos públicos, militânc
e outras formas de participação voluntária nas atividades e org
nizações da política institucional, atividades políticas de alcan
comunitário e formas de expressão pública.
Putnam tenta medir todos esses índices, a começar pela parti i
pação em eleições presidenciais, cujas taxas teriam crescentement
caído, chegando a um declínio de 25% nos últimos 35 anos (Put
nam, 2000, p. 32). O mesmo número se aplica a eleições minori
cárias e locais. Para complicar, o comparecimento às urnas declinou
apesar de terem sido consideravelmente eliminadas as barreira
ou impedimentos ao voto neste mesmo período. O pior de tudo,
entretanto, é que os números indicam que o nítido declínio no
comparecimento às urnas deve ser atribuído não a mudanças indi-
viduais (indivíduos que votavam teriam deixado de fazê-lo), mas a
mudanças geracionais (as gerações anteriores ainda vivas continuam
votando, as novas gerações é que não votam mais, o que quer dizer
que a sociedade está se modificando sob este aspecto sem que os
indivíduos, em princípio, tenham mudado). Ora, mudanças gera-
cionais são, em geral, o tipo de mudança social "mais lento, mai
sutil e mais difícil de reverter" (Putnam, 2000, p. 34).
No tocante a conhecimento político e interesse em public affeirs,
também aqui há comprovações de que o interesse político real teria
despencado de maneira constante em cerca de 1/5 entre 1975 e
1999 (Putnam 2000, p. 36). Diminuiu em 20% a taxa de america-
nos que acompanham hoje o noticiário sobre os assuntos públicos,
se compararmos com o que acontecia há 25 anos, apesar de os
americanos de hoje terem tido mais anos de educação formal do
que os seus avós e, portanto, estarem mais dotados para a aquisição
e administração de volumes consideráveis de conhecimento cívico.
Conhecimento, informação e interesse políticos não são diretamen-
te formas de participação, mas sim pré-condições fundamentais
para tanto. Afinal, acredita Putnam, "se você não conhece as regras
do jogo e os jogadores, e não se importa com o resultado, tende a
não jogar" (Putnam, 2000, p. 35). Mas quando, apesar do cresci-
mento das oportunidades e da oferta, estudantes universitários de
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA E TELEVISÃO
233
I• . em média, conhecem menos sobre assuntos públicos do que
111nlia dos estudantes em 1940, isso é certamente um mau sinal
, 1 .1 participação política.
1-'. aqui, novamente o problema é mais de mudança geracional
•111 · de mudança individual: as pessoas abaixo de 30 representam
r.•·1.,ção que menos atenção presta a notícias políticas e sabem
1, 110s sobre a atualidade política do que as pessoas de sua idade
"More money meant more staff, more polling, more advertising, better candidate recruitment
•1111 training, and more party outreach. The number of political organizations, partisan and nonpar·
1, 111, with regular paid staff has exploded over the last two decades. Nearly every election year
mi' 1980 has seta new record by this standard of organizational proliferation, and the pace of
~· 1wth has clearly tended to accelerate. The growth chart of this political 'industry' exhibits an
,•,ullience more familiar in Silicon Valley. The business of politics in America has never been heal-
1111,•r, ar so it would seem" (Putnam, 2000, p. 37).
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
234
90" (Putnam, 2000, p. 38). 3 Antes, ao contrário, a crescente profl
sionalização da política se explica também em face do consideráv
decréscimo na dimensão da militância e da participação voluntári
em campanhas e outras atividades partidárias. Propriamente não h
um real paradoxo entre o fato de os partidos serem mais bem finan
ciados e contarem com maior dedicação profissional em contrast
com o fato de contarem com menor participação de afiliados, mili
tantes e simpatizantes; na verdade, segundo ele, o segundo aspect
é a causa do primeiro.
3. Segundo os dados de Putnam, "no mesmo período em que o envolvimento dos cidadãos em
atividades partidárias despencou mais da metade, os gastos para uma indicação presidencial e
para campanhas eleitorais explodiram de 35 milhões de dólares em 1964 para mais de 700 mi·
lhões em 1996, um crescimento de quase cinco vezes mesmo, mantendo-se a constância do dólar"
(Putnam, 2000, p. 39).
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA E TELEVISÃO
235
l 1 ponto percentual absoluto representa, segundo Pumam, dois
11'1"'· a menos de cidadãos envolvidos em atividades comunitá-
i a .1 cada ano. O que significa, ao fim e ao cabo, que 16 milhões
h i .1 1am de participar de reuniões públicas sobre assuntos locais, 8
n 1ill1"l' menos aceitam ser líderes de organizações locais ou mem-
t '" de comitês e três milhões abandonaram organizações que se
i 111, 1r~sam por um governo melhor, desde os anos 1970 (Pumam,
t IIIH), p. 42).
l 1.1ra Pumam, isso significa mais que um simples negar-se a par-
i lp.1r. ''Ano após ano, um número cada vez menor de nós toma
1"11,· nas deliberações cotidianas que constituem uma democracia
1 l1,1se popular. Com efeito, mais de 1/3 da infra-estrutura cívica
1" Estados Unidos simplesmente evaporou entre a metade dos
1111, 70 e a metade dos anos 90" (Putnam, 2000, p. 43).
l'nr fim, no atinente a atividades voltadas à expressão da opinião
t , pi'1blico, também aqui se constata a menor taxa de dedicação dos
lt1111os 25 anos a partir de aferidores tais como assinar petições
pirda de 22%), escrever a deputado ou senador (menos 23%),
, 1rvc r uma carta aos jornais (menos 14%), fazer um discurso
111 nos 24%) e escrever um artigo para uma revista ou jornal
1111110s 10%). Em todos os casos, o declínio acelerou a partir de
- 1 111, (Putnam, 2000, p. 44).
Pumam nota, ademais, que de todas as atividades políticas
, 11munitárias, a participação declinou de forma mais intensa
r ,p1das que envolvem atividades organizadas e no nível comuni-
, li11. Assim as formas de participação designadas por verbos como
- ,~h.dhar", "exercer" ou "comparecer", que refletem cooperação e
e l'odem ser exercidas se outros também se envolverem, declina-
111 de forma mais intensa e acelerada. Em contraste, o declínio
e
1, 11r1 · acelerado aconteceu com formas de participação que podem
1 xercidas individualmente, como aquelas que começam com o
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRAC IA
236
assim posso escrever ao meu deputado; mas não posso participa
um comitê ou de uma assembléia sozinho. No conjunto, os m
mos dados indicam que as atividades destinadas à expressão de
naram menos rapidamente que as cooperativas. E são justame
estas últimas as que conectam as pessoas, as que mais clarame
geram capital social.
E não há apenas um contraste entre expressão e cooperaç
há também entre participação e assistência. O caso das campan
eleitorais é uma ilustração interessante dessa perspectiva. An
tratava-se de um exercício que envolvia a todos, comprometen
esforços e tempo na militância e no trabalho voluntário, repres
tando a ocasião para uma grande deliberação nacional. "Ago
I
assegura Putnam, "para praticamente todos os americanos, u
campanha eleitoral é algo que acontece ao nosso redor, um rang
a mais no barulho de fundo da vida cotidiana, uma imagem e
!eirada na tela da TV" (Putnam, 2000, p. 41). Ou seja, pratica
menos o jogo cívico, embora se assista de forma mais intensa
que nunca ao jogo político. Acompanhar campanhas - assim co
votar - são formas de participação que exigem relativamente po
das pessoas e, no limite, sequer produzem o capital social, p
podem ser praticadas em absoluto isolamento. O predomínio d
sas formas diz muito, por outro lado, da classe de espectadores
política que constitui, sobretudo, as mais recentes gerações, qu
sentam para assistir à política nas últimas filas do estádio (Putn
2000, p. 37).
Tendo sido a atividade política reduzida drasticamente, Putn
dedica-se a encontrar medições precisas do envolvimento com
nitário ou engajamento cívico. E aqui o quadro é praticament
mesmo: os americanos estão cada vez mais jogando beliche s
nhos. As tendências fundamentais, resenhadas em todos os tex
de Putnam desde 1993, podem ser resumidas em algumas pro
sições básicas.
237
ar d cais organizações declinou consideravelmente. Mesmo con-
me siderando-se o aumento da população, houve um aumento
ecil de 2/3 no número de organizações nas últimas três décadas
ent (Pucnam, 2000, p. 49). O aumento da participação não
ent acompanhou esse volume: cresceu em apenas 10%. Portan-
to, há mais grupos, mas eles são muito menores.
ção ' As organizações voluntárias tradicionais, mesmo aquelas
nha dotadas de um número massivo de afiliados, que se caracte-
nte , rizavam por serem organizadas em redes que se espalhavam
nd pelo país, serem apoiadas na dedicação voluntária e depen-
sen• dentes do tempo e do trabalho de pessoas da comunidade
ora", em nome de causas e princípios, estão em franco declínio ou
um em vias de desaparecimento. Os números dessa decadência
gido são impressionantes, e Putnam os expõe a mancheias. A
enfl• glória tocquevilleana da América está ofuscada pelo fato de
a-se clubes, associações e fraternidades terem sido deixados às
a do moscas no último quarto de século.
omo L As mais novas e ativas dessas organizações passaram pelas
ouco mesmas modificações que os partidos políticos, no sentido
poi de que são mais ricas, mais estruturadas, além de dotadas de
des- mais dedicação profissional qualificada e remunerada. Por
s da outro lado, não têm base local nem são apoiadas centralmen-
es te no trabalho voluntário ou na afiliação que envolve parti-
am, cipação. O seu propósito é menos ser espaços de deliberação
e mais agências de representação de interesses civis, diante
nam da opinião pública e diante do sistema político. As conexões
mu- regulares entre os componentes que constituem as suas bases,
te o q ue cercamente produziriam capital culcural, não parecem
sozi- ser necessárias. O importante parece ser apenas impor
xtos agendas e fazer advocacia de perspectivas no debate político
opo- nacional, pois é este quem exerce influência considerável na
produção de leis e políticas públicas (Putnam, 2000, p. 51).
li. Esses mais novos movimentos relacionam-se com os cida-
árias dãos de maneira bem diferente dos antigos movimentos
em de base comunitária. Representam perspectivas que corres-
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
238
pondem a interesses presentes na sociedade civil (interesse
ambientais, por exemplo) e pretendem advogá-los diante d
campo político e da opinião pública. Mas dos seus afiliado
requer apenas contribuições financeiras (conseguidas por
meios remotos) e manifestações em petições e iniciativa
assemelhadas. Na maior parte deles sequer há formas cole-
giadas locais onde os seus "membros" pudessem reunir-se e
deliberar.4 Há pouca ou nenhuma geração de capital social
em organizações desse tipo. Como assevera Pumam, "eles
partilham alguns interesses comuns, mas ignoram a existên-
cia uns dos outros. Suas ligações são com símbolos comun ,
líderes comuns e talvez ideais comuns, mas não uns com os
outros" (Putnam, 2000, p. 52).
5. Em geral, a filiação a associações voluntárias com envolvi-
mento ativo dos membros declina de forma acelerada. Mas
este é apenas um caso do declínio geral de qualquer nível de
interação face a face civicamente significativa. Os americanos
gastam muito menos tempo em organizações comunitárias
de qualquer natureza (trabalhos de comitês, cargos em clu-
bes ou organizações, participação em reuniões voluntárias)
ou em qualquer forma de atividade de interação social (há
muito menos vida social e muito menos formas organizadas
de interesses uns pelos outros e pela comunidade) . O princí-
pio do "boliche a solo", vem devorando de forma acelerada
os meios e modos de produção de capital social. O resultado?
Queda nos indicadores de confiança recíproca, enfraqueci-
mento das redes sociais de contato.
6. A mudança é geracional. Os indivíduos não mudaram muito
nos meios e na intensidade da sua dedicação cívica, mas cada
geração é menos civicamente engajada do que a anterior
4. "These are mailing list organizations, in which membership means essentially contributing mo-
ney to a national office to support a cause. Membership in the newer groups means movi ng a pen,
not making a meeting" (Putnam, 2000, p. 51).
CAPITAL SOCIAL, DEMOC RACIA ETELEVISÃO
239
(Putnam, 2000, p. 62). Isso a despeito do fato de os meios
facilitadores do engajamento cívico (educação, informação,
tempo livre) serem hoje mais abundantes e mais bem dis-
tribuídos do que há três décadas. Mantendo-se a tendência
atual, no final desta década restará muito pouco do enga-
jamento cívico que tradicionalmente constituiu a base da
democracia americana.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
240
É o lugar em que se adquirem hábitos de cooperação, espf
rito público, em que se aprendem habilidades cívicas (fal
em público, escrever cartas, organizar projetos, coordena
reuniões, debater temas com pluralidade e civilidade) e vir
rudes cívicas (confiança, participação ativa na vida públil
e reciprocidade) (2000, p. 39). O que também fortalece
imunidade individual ao extremismo.
241
inst ituições e práticas - como o grau incomum de descentrali -
1 ção no nosso processo de governo, comparativamente com
o de outros países indu strializados - represen tam adaptações
,1essa estrutura. Como uma planta apanhada de surpresa por
uma mudança climática, nossas práticas políti cas teriam de
mudar se o capital social diminuísse definitivamente. Como
deverá fun cionar a comun idade po lítica americana em uma
. . , . 7
situação de muito baixo capital social e engaJamento c1v1co.
(Putnam , 2000, p. 341 ).
/\ politics without face-to-face socializing and organizing m_ight take the form of a Perot-style
. 11onic town hall, a kind of plebiscitary democracy. Many op1n1ons would be heard, but only as
• 11 ,ddle of disembodied voices, neither engaging with one another nor offenng much gu1dance
li>cision makers. TV-based politics is to politica l action as watching ER is to savin_g someone 1n
• rPSS. Justas one cannot restart a hea rt with one's remate contrai, one cannot 1ump-start re.:
, ilicdn citizenship without direct, face-to-face participation. Citizenship is nota spectator sport
111,1m, 2000, p. 341 ).
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
242
envolvimento direto, da conversa real: política não é um espore
para se assistir, mas uma atividade que requer de cada cidadão qu
sue a própria camisa. O contrário da política dotada de capital
social é a polfrica à distância, desconectada da concretude. Nela fal
tariam os ingredientes fundamentais do contato e o contraste direto
das opiniões e posições diante de pessoas reais em situações reais.
Sem deliberação em situações verdadeiras, é fácil o radicalismo e a
demonização dos outros, arremata Pumam (2000, p. 342).
Para o argumento de Putnam parece interessar particularmente
a denegação de qualquer valor ao diferido ou ao mediado. Agora,
as questões em pauta são a conversa e a deliberação, declarada
/ irresponsáveis e radicais quando mediadas ou à longa distância: só
na presença uns dos outros se debateria autenticamente. Um argu·
mento que mereceria demonstração. Primeiro, por que o debate
só é autêntico se for entre "associados" e em uma "comunidade"?
Estranhos que partilhem apenas a condição de concidadãos não
podem debater sincera, leal e autenticamente? Segundo, uma
grande parte das agendas políticas nacionais, por exemplo, não está
simplesmente sob o alvedrio comunitário ou associativo. Pode-se
debater presencialmente o tanto que se queira, mas se o sistema
político não assimilar o debate popular, este é inócuo na tomada
de decisão política.
Como a deliberação autêntica só se dá no face a face, menos
engajamento físico significa menos vozes empenhadas no debate
democrático, o que levaria a mais radicalismo e a menos pluralis-
mo político. Mais um "defeito" da política em ambiente de baixo
nível de capital social: a deliberação ficaria a cargo dos extremistas.
Quando não temos grande participação nas associações, os radicais
tomam conta da sala. Contudo, precisamos ainda decidir conceitu-
almente se o radicalismo é uma característica das associações ou se
é uma característica da baixa participação nas associações.
O mundo de Putnam é aquele das redes cívicas. Qualquer
alternativa é um empobrecimento simplesmente porque política e
conexões precisam andar juntas. Ele insiste num padrão de fluxo
da comunicação política e num ambiente de comunicação da
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA ETELEVISÃO
243
,lliica todo apoiado em redes interpessoais de comunicação. "A
11ft aprende sobre política por meio de conversas casuais", ele
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
244
efetividade do engajamento físico em redes cívicas. A razão dis
é uma compreensão da política e da democracia na perspecti
da comunidade e naquilo que a afeta (vide Shapiro, 2003, p. 91
Política não pode ser, para ele, principalmente produção de decis
na forma de leis e normas; o que realmente parece interessar é
resolução de problemas coletivos que afetam os indivíduos em su
comunidades. Nesse caso, jantares cívicos, e não organizações pr
fissionalizadas, baseadas na capital do país e destinadas à advoca
de interesses restritos, são o lugar de deliberações autênticas e d
refinamento das habilidades cívicas.
Ademais, acredita ele, "a maior parte das decisões polític
não são tomadas em Washington", mas na comunidade. Assim,
"desengajamento cívico no nível local detona a força da vizinhança
(Putnam, 2000, p. 344) . Há decisões e posicionamentos político
que não têm a ver com a produção de leis, mas com a tomada d
posição sobre iniciativas que afetam a vida de um conjunto d
pessoas. E onde não há redes cívicas ativas e extensas, a comunida
-:ie fica desprotegida diante de outros interesses e não pode reagir
politicamente. Onde há descompromisso, aí há enfraqueciment
popular.
Há verdades no argumento: nem cudo na política é produçá
de leis; cuidar dos interesses da comunidade (local ou nacional)
também é política na acepção mais plena do termo. Ademais, nívei
de organização são importantes para uma reação rápida e eficaz d
comunidade (ou da corporação - disso ele não fala). Mas essa "polí•
rica de pressão popular direta" é apenas uma face da ação polític
e, em minha opinião, uma face minoritária, exceto em situações de
crise política. Além disso, a criticada "estratégia de comunicação de
massa" não pode ser dispensada mesmo desse tipo de ação política.
Putnam tem dificuldade em incorporar à alternativa tocquevilleana
de efetividade política das bases sociais ou das redes cívicas outras
alternativas destinadas a fazer valer a sociedade civil na decisão dos
assuntos públicos locais ou nacionais.
Em suma, uma democracia com baixas taxas de engajamento
físico e com redes cívicas limitadas incomoda a Purnam por m uitas
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA E TELEVISÃO
245
, n·.,: porque quem controla a organização é o staff central dos
, n~ movimentos, e não o coletivo de membros envolvidos em
l1linações face a face em redes disseminadas localmente; porque a
1, li,sio nalização faz com que se prescinda da dedicação de volun-
1111, que cooperam e interagem; porque a participação requerida
1 ti) é distinta de engajamento cívico, resumindo-se ao pagamen-
' 1,· anuidades e à assinatura de petições; porque o funcionamento
1pó ia em estratégias de comunicação de massa, gerando uma
,1111 a para se assistir, e não para se participar; porque não há
11, 11tica deliberação, não se desenvolvem habilidades nem valores
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
246
versus atividade fora de casa; o quadro da programação
considerado.
No mesmo ano, em Tuning ln, Tuning Out: The Strange D
appearance of Social Capital in America, as coisas mudam. Nc
artigo, o centro da questão para Putnam consiste em demonstra
declínio do engajamento cívico/capital social nos Estados Unido
apresentar as suas razões. Pela primeira vez, emprega uma analo
entre a sua investigação e o romance de mistério. Sobre a ana
gia geral, desdobra-se uma outra: como no Assassinato no Ori
Express, conhecido romance de Agacha Chriscie, "este crime deve
sido cometido por mais de um assassino, de forma que precisam
separar os cabeças dos meros cúmplices" (Putnam 1995b: 66
Prudentemente, afirma não ter ainda certeza de ter resolvido o m
cério, mas declara grande convicção no seu prime suspect, emb
não renha ainda juntado evidências em número suficiente par
condenar.
Aqui, a pesquisa está mais refinada, os dados mais bem tra
lhados e algumas interpretações (na verdade, algumas atribuiç
de responsabilidades na causa do declínio) são corrigidas: duas
hipóteses anteriores demonstram-se improváveis. À diferença
artigo anterior, nesse ensaio o indiciamento da televisão é decid
e claro. No artigo anterior, a televisão era um dos elementos cau
dores do desengajamento; neste aqui, a televisão aparece numa li
com mais dez elementos suspeitos, que Putnam depois vai desc
tar um a um até que restem bem poucos. Dentre esses poucos
nível de responsabilidade é bem reduzido, até que fiquem apena
mudança geracional e, por último, o maior suspeito: a televisão.
Cruzando dados das sondagens de opinião de que disp
Putnam encontra uma expressiva relação entre o consumo de T
(descartado o consumo de nocícia), particularmente consideran
6. "I have discovered only one prominent suspect against whom circumstantial evidence ca
mounted, and in this case, it turns out, some directly incriminati ng evidence has also turned up.
is not the occasion to lay out the full case for the prosecution, nor to review rebuttal evidenc
the defense( ... ). The culprit is television" (Putnam, 1995b, p. 677).
CAPITAL SOC IAL, DEMOCRAC IA E TELEVISÃO
247
,, tl' mpo despendido em ver TV, e disposições pessoais sobre
1111 11sões do capital social (confiança nos outros, por exemplo)
D/ 11 11 udes sobre o engajamento cívico (quantidade, intensidade,
cs 111, e modos de participação em organizações voluntárias e redes
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
248
em pesquisa experimental e quase-experimental para mostrar q
quem vê muita TV tende a confundir a realidade externa com
mundo que se apresenta na tela e que, ademais, por isso mesm
tende a ser mais pessimista sobre a natureza humana; c) O con
mo de TV exerce efeitos psicológicos duradouros sobre as crianç
Crescer com a televisão não produz cidadãos mais confiantes
natureza humana e mais dispostos a sair de casa para engajar-se e
redes cívicas. É a hipótese do cultivo, mais uma vez.
The Strange Disappearance of Civic America, de 1996, é um
segunda versão de Tuning ln, Tuning Out, mais curta, com pou
quíssimas alterações textuais e sem referências. Não represem
/
qualquer novidade. Em seguida, Putnam e sua equipe estará
dedicados ao projeto de Bowling Alone, mas em face das duras crí
ticas sofridas pelas teses de indiciamento da televisão apresentada
nos textos de 1995 e 1996, volta ao mesmo argumento, dessa ve
em companhia de David Campbell e Steven Yonish, num paper
de 1999, apresentado no encontro anual da APSA (American
Political Science Association), denominado Tuning ln, Tuning
Out Revisited· A Closer Look at the Causal Links Between Television
and Social Capital.
Aqui o discurso contra a televisão ficou mais moderado, até cau·
teloso. Basicamente, Putnam e equipe parecem ter assimilado a crÍ·
tica de Pippa Norris (1996), reiterada e explorada posteriormente
por Dhavan Shah (1998) e Eric Urlaner (1998), de que não se pode
falar de televisão apenas em termo de quanto se vê, sem levar em
consideração o que se vê e como se vê. Além da crítica de Michael
Schudson (1996) sobre o fato mesmo de que a acusação carece de
demonstração. Putnam e equipe reiteram o argumento de que há
uma forte conexão, mensurável em séries de sondagens anuais, entre
hábitos de consumo de entretenimento televisivo e hábitos cívicos.
E reitera uma evidência "circunstancial": começa exatamente no
mesmo período em que a televisão é disseminada massivamente nos
lares americanos o declínio das redes cívicas, da confiança recíproca,
do engajamento social. Mas aqui se destaca mais uma cláusula de
prudência apenas mencionada anteriormente:
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA ETELEVISÃO
249
em experimentos controlados, nós estamos ainda presos na
questão se a relação entre ver televisão e engajamento cívico
é puramente endógena. Isto é, poderia se dar o caso que pes-
oas que tendem a ser menos envolvidas em assuntos cívicos
ejam justamente aquelas que vêem muita televisão, e não que
assistir televisão torne as pessoas menos dispostas a envolver-
e em assuntos cívicos. Em outras palavras, ver televisão pode
ocupar um certo montante de tempo que seria dedicado ao
ngajamento cívico, mas pode ser logicamente possível pen-
sa r que assistir à televisão pode ser simplesmente uma opção
automática para aqueles que tomaram uma decisão anterior
de deixar a vida cívica (Campbell et ai., 1998, p. 3).
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
250
é menos propenso a ser voluntário em atividades comunitárl
escreve menos para os amigos e familiares, vai menos a reun i
de clubes, freqüenta menos a igreja e trabalha menos em proj
comunitários. Por outro lado, o indivíduo "rv-maximalista" é m
propenso a atitudes anti-sociais, como o prosaico "dar o dedo"
trânsito, e até sente mais dor de cabeça, indigestão e insônia do q
os que vêem pouca TY. Em suma, os espectadores mais intensos
TV são um desastre cívico. Logo (!), a TV é o que provoca isso.
Para ele, portanto, uma conexão parece bem estabelecida pd
dados. A primeira questão que emerge em seguida diz respeito
"como". Como a TV pode fazer tudo isso? A hipótese a ser adota
aqui é, naturalmente, a do extremo efeito social da televisão.
começar por dois efeitos que incidem diretamente sobre a dedi
ção cívica: com a entrada em cena da televisão, a) o consumo
notícias e de entretenimento tornou-se uma atividade que se po
realizar isoladamente, sem coordenação de tempo e de gosto pe s
ais nem compartilhamento de espaço (Putnam, 2000, p. 216);
a tecnologia eletrônica permite-nos consumir o entretenimento
nossa predileção de forma privada, até mesmo sozinhos (2000,
217). A televisão deslocou o lazer para a privacidade dos nossos lar
e nos dispensou dos contatos interpessoais e das redes de relaçõe
Por outro lado, é preciso, prudentemente, ter claro que a cau
da apatia cívica não é o consumo da grade integral da TV, mas
consumo do entretenimento televisivo. Ao contrário, há evidênci
de que o consumo de notícias na TY, como em geral a leitura
jornais, está consorciado com bons níveis de engajamento cívico.
distinção parece-lhe importante conceitualmente, porque é par
tradicional do ponto de vista "tocquevilleano" o elogio do pap
da imprensa para a vida cívica - embora conceda que, de faro,
fronteiras entre informação e entretenimento tendem a misturar-
na televisão. De rodo modo, o entretenimento, que rouba temp
da atividade cívica e isola os indivíduos das redes sociais, é u
problema. Mesmo assim, a televisão não deixa de projetar a su
sombra malévola sobre a informação: "aqueles que Lêem notíci
são mais engajados e têm mais conhecimento sobre o mundo d
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA ETELEVISÃO
251
111r aqueles que só vêem telejornais" (2000, p. 218), embora os que
1.1m as notícias tendam mais a ler jornais do que aqueles que só
11·111 outras coisas (2000, p. 219). Para complicar, além disso, o
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
252
Por fim, apesar de a televisão ser em geral nociva para o capi
social, a sua incidência é ainda mais grave no que tange às for
coletivas de engajamento, que diminuíram muito mais rapidame
te nos últimos 25 anos que as formas de participação individu
Declinaram mais e mais rapidamente aquelas formas que reforça
as conexões sociais. 7 Donde a conclusão dura e direta: "Televisão
ruim tanto para as formas individualizadas quanto para as form
coletivas de engajamento cívico, mas é particularmente tóxica pa
atividades que nós realizamos juntos" (2000, p. 229). Esta persp
tiva só reforça a impressão de que o real problema de Putnam n
é nem participação política nem engajamento cívico, mas o rend
I
mento de uma e de outro para o estoque de capital social.
Putnam sabe que não pode demonstrar a sua tese; sabe que, n
máximo, estabeleceu uma correlação entre duas variáveis e qu
metodologicamente, "correlação não prova causação" (2000,
229). Sabe também que é difícil distinguir, sem o apoio de um
pesquisa experimental na qual se observariam pessoas expostas
pessoas não-expostas à TV durante um longo período, entre auto
seleção - "pessoas com certo tipo de traço procuram um meio d
comunicação em particular" - e efeitos dos meios - "pessoas desen
volvem certos traços porque expostas a este meio" (2000, p. 218)
Mas embora a tese não se prove, acredita o autor, o montante d
dados que reúne, tomados juntos, constitui uma evidência forte d
que se quer provar.
E já que estamos em território especulativo, não é um problem
se continuarmos o exercício. Com esse argumento, passa-se para
questão do por que a televisão reduz o engajamento cívico. Ness
quadro, Putnam mantém duas das razões já apresentadas no paper
7. "Whereas (controlling as always for demographic factors) watching lots ofTV cuts individual ac
tivities, like letter writing, by roughly 10-15 percent, the sarne amount of additional TV viewing cuts
collective activities, like attending public meetings ar taking a leadership role in local organizations,
by as much as 40 percent. ln short, justas television privatizes our leisure time, it also privatizes our
civic activity, dampening our interactions with on another even more than it dampens individual
political activities" (Putnam 2000, p. 229).
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA E TELEVISÃO
253
l 1J98 : a) a televisão compete por um tempo que é escasso; b) a
1sáo tem efeitos psicológicos que inibem a participação social.
1 rnbstitui o terceiro argumento: c) conteúdos específicos da
1, v1.~fo destroem as motivações cívicas.
<) primeiro argumento é o mais comum e aquele a que intui-
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRAC IA
254
distingue entre news e entertainment, uma distinção tão elemcn
mas completamente do seu agrado; a televisão tornou-se um bl
unitário que faz mal a quem a vê porque cria no espectador u
disposição de espírito que o afasta das outras pessoas.
O terceiro argumento mudou. Não mais o mal às criancinh
mas o problema do conteúdo da grade de programação. Como N
ris e outros lhe disseram que estava simplificando as coisas dem
com essa idéia homogênea de televisão, Putnam resolve admitir ti
o problema pode não estar só em assistir TV A mensagem "po
ser também responsável pelos efeitos aparentemente anticívico
TV" (2000, p. 243). Putnam, então, é levado a admitir que há ui
programação pró-cívica na TV("[ ... ] nem toda a TV é anti-social
concede [2000: 243]), como informativos e programas educativ
ao lado de outra anticívica, cujos extremos seriam constituíd
pelos dramas de ação, pelas soap operas e pela assim chamada "reali
TV". Então, estamos combinados que há distinção, mas é certo q
quem vê seriados românticos é um desengajado por causa do fa t
de ver seriados.
Por fim, até a segmentação do público dos programas de TVi
que se revela principalmente na TV a cabo, incomoda a Putnam
por que isso nos afasta ainda mais uns dos outros (Pumam, 2000
p. 245) . Será que seria melhor se, ao contrário, víssemos todos u
mesmo programa? Para rematar o argumento, Putnam lament
~m outro _efeito da televisão, particularmente da publicidade, qu
e o encorapmento de valores materiais. A este ponto não nos rest
mais que desligar a TV e sair de casa se ainda nos restam realment
convicções democráticas.
6. CONTRA PUTNAM
255
1111111icação. Há já um diminuto, porém consistente, corpus de
111 ura que polemiza com a idéia da televisão anti-social, anticívi-
1"'' tanto, antidemocrática, assim designada por Putnam. Alguns
1, ·, 1eagiram, atacando dois aspectos do seu argumento: a) a sua
I", 1rlação sobre as razões pela qual a TV faria mal à democracia;
, ·,ua tese empírica de que há evidências de que ver TV causa
, 11 ,ajamento cívico e destrói o capital social. Traço em seguida
111 , c>ntém o discurso mais duro contra a televisão. Putnam por sua
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
256
1. Putnam não credita na conta da democracia os novos m
mentos sociais, aqueles que se apóiam em mala direta, r
o seu quartel general perto dos centros de decisão polít
institucional, destinam-se à advocacia de interesses civis,
altamente profissionalizados e não requerem dos memb
muito mais do que um cheque anual. Isso é um erro. "N
são democracia tocquevilleana", diz Schudson, "mas e
organizações podem representar um uso altamente eficien
de energia cívica. O cidadão que a elas adere pode ter
mesmo resultado com menos trabalheira pessoal. O cidad
pode influenciar o governo mais satisfatoriamente com
filiação anual ao Sierra Club ou à Nacional Rifle Associati
que comparecendo a um jantar cívico local" (Schudso
1996, p. 2) . Isso não quer dizer, concede Schudson, que pol
rica seja apenas disputa pela produção de leis e pela adoç
de políticas de Estado.
A concepção de política adotada por Putnam é certamen
mais ampla e nela o resultado do engajamento cívico ná
necessariamente precisa ser algo mais do que a próprl
participação ("Participação é a própria recompensa") . Nã
obstante isso, Schudson tem mais chances de estar cert
Esse tipo de prática polícica não é certamente a realizaçá
de uma democracia basista de inserção física primária
direta a partir de redes, que constitui tanto o imaginário d
marxismo quanto o da sua contraparte liberal na forma d
democracia "tocquevilleana", mas é completamente sécul
XXI, gostemos dela ou não. Menos eficiente do que piquete
e passeatas, ou do que as discussões de base certamente nã
são, muito embora não envolvam grande empenho museu
lar, ou de tempo, nem convoque necessariamente múltipla
interações diretas entre pessoas, como a Putnam agrada.
Ademais, não há algo de radicalmente anticívico no direito
de as pessoas poderem ir para casa em paz e com a consci-
ência tranqüila. O hiperengajamento e a hipermobilização,
típicos das concepções basistas de democracia, parecem
CAPITAL SOC IAL, DEMOCRACIA ETELEVISÃO
257
hocar-se com a sensibilidade contemporânea, mas isso não
precisa nos levar fatalmente a um juízo sobre o anticivismo
do cidadão. O que acredito não ter cabimento é simplesmen-
te identificar-se, sem mais, democracia, redes cívicas e boa fé
republicana com a disposição a doses relevantes de interação
social.
Na mesma linha, Schudson usa a própria expansão do
conceito de política para afirmar que o declínio de formas
cívicas convencionais não demonstra, por si só, um declínio
da mentalidade cívica. Nem o "político" se confina no espaço
das organizações voluntárias nem depende necessariamente
da conectividade social (Schudson, 1996, p. 5). Em suma, a
política pode ser realizada individualmente.
1
Para se estabelecer o declínio histórico, seria preciso que
se encontrasse um ponto a partir do qual a mirada para o
futuro demonstrasse diminuição de alguma coisa que ali
havia em níveis superiores. O ponto de corte para Put-
nam são pessoas nascidas entre 1910 e 1940, a long civic
generation, que atingem a maturidade entre os anos 40 e
50. Pois bem, diz Schudson, a escolha é arbitrária, pois se
Putnam tivesse adorado como ponto de partida os anos
20, não teria obtido o mesmo resultado, como se prova
com os juízos severos de John Dewey e Walter Lippmann
sobre o eclipse do público naquela época. Na opinião de
Schudson, a geração que alcançou a maturidade ao redor
da Segunda Grande Guerra não é uma norma, mas uma
exceção, pois teve uma oportunidade ímpar de cimentar
ideais e práticas cívicas, seja por causa da guerra, seja
porque tinha um modelo excepcional de homem público
diante dos olhos (Roosevelt). Tivessem chegado à matu-
ridade nos anos de Nixon ou de Reagan, a história teria
sido muito diferente. "Assim", acredita, "se de fato houve
desengajamento cívico nas décadas passadas isso não deve
ser um declínio, mas um retorno à normalidade" (Schud-
son, 1998, p. 3).
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
258
3. A coincidência que Putnam quer fazer ver entre o fim
idade do ouro do civismo e o aparecimento de uma gera
com um pesado consumo de televisão não se sustenta, seg
do Schudson. Maiores cuidados na datação demonstrari
que o alegado declínio cívico começou com pessoas que
cresceram vendo TV.
4. Na verdade, afirma, mais apropriadamente não deveríam
falar de declínio: "É melhor conceber as mudanças q
encontramos como um novo meio ambiente de ativid
cívica e política com modificadas aberturas institucion
para o engajamento. A televisão é uma parte da ecologia, m
de uma forma complexa" (Schudson, 1996, p. 5). Segun
ele, em vez de substituir o engajamento cívico, a celevi
talvez se tenha tornado outra forma desse engajamento
que nunca foi tão politizada quanto agora.
5. Schudson não o diz diretamente, mas faz pensar que c
v~z o declínio do capital social não seja um fato tão gra
diante dos ganhos políticos da nossa época, que certame
é mais democrática em muitos aspectos, como se demon
tram pelos avanços nos direitos das mulheres, na liberaç
de homossexuais, nas oportunidades para afro-americ
nos, na segurança social para os velhos. Também deve
creditada na mesma conta a efetividade dos moviment
ambientais ou dos antitabagistas. Há mesmo evidênc
de ebulição nas bases cívicas, como se depreende do eng
jamento social no debate entre os partidários do direito
escolha versus o movimento do direito à vida. Ora, concl
eu, se o capital declinou e nunca houve tanta convicç
democrática, tantos avanços em direitos, tanto controle
política por parte do cidadão, então o capital social calv
não faça tanta falta assim e a televisão não cause tanto dan
quanto se pensa; antes, talvez seja parte dos benefícios
época. De toda sorte, crê Schudson, "não é fácil debit
todas essas coisas na conta do declínio das virtudes cívica
(Schudson, 1996, p. 5).
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA ETELEVISÃO
259
m d l'1ppa Norris: O que é mesmo televisão?
açã
gun Pippa Norris, igualmente cientista política na mesma Harvard
ia il, Putnam, também confronta as posições deste, em artigo de
n. l '1')6 que se chama Does Televísíon Erode Social Capital? A Reply to
/'11111am e no seu livro A Vírtuous Círcle, de 2000. Não são propria-
mo 111rme uma peça integralmente polêmica contra Putnam, como o
qu .1 Schudson. E é visível o efeito que o artigo provocou nas teses
ad •11· t ·ntadas em Bowlíng Alone. Na verdade, Norris duvida da leitura
0 111t· Putnam faz dos dados dos levantamentos que utiliza com rela-
nal
111 à televisão e, empregando uma outra base, tenta mostrar que
ma
nd Ir ·1-ra ao não considerar a programação televisiva como um todo.
isá • 1 ,eu objeto de referência é Tuníng ln, Tuníng Out, artigo de 1995
, j 1111 hlicado na mesma PS: Política! Scíence and Polítícs em que Norris
Lll publicar a sua réplica.
cal
av 1. Pippa Norris considera o artigo de Putnam na fileira das
nt críticas ferrenhas à televisão na política, entendidas por ela
n como uma crítica popular que só recentemente os estudiosos
çá encamparam (Norris, 2000, p. 42-46). O seu primeiro defei-
ca to é a simplificação do objeto:
s
Apesar do apelo dessas declarações, que parecem tocar numa
to
tecla popular, muitos dos ataques aos meios de comunicação
cia são desenhados em preto e branco, como se se pensasse que
ga há uma única experiência televisiva, ao invés de múltiplos
o canais e programas, e uma única audiência, ao invés de dife-
lu rentes tipos de espectadores (Norris, 1996, p. 475).
çá
d
Norris propõe, então, uma explicação alternativa sobre o
ve
impacto dos meios no engajamento cívico e na participação
no política nos Estados Unidos. Usando, então, dados de um
d
outro survey, o The Amerícan Cítízen Partícípatíon Study de
ta
Verba, Schlozman, Brady e Nie, de 1995, ela vai examinar a
as'
participação política dos americanos a partir de uma segmen-
tação mais refinada do que significa "ver televisão". Começa
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRAC IA
260
com uma anotação metodológica sobre o velho problem
o sujeito faz determinadas coisas porque tem determina
características ou adquire determinada características porq
faz determinadas coisas. Que, metodologicamente, é a qu
tão sobre como se descobre qual é direção da causalida
cruzando-se variáveis.
A sua conclusão é que o quadro muda uma vez que se de
a perspectiva que adota apenas a variável relacionada à qua
tidade de horas de consumo de televisão e se considera ta
bém uma variável relacionada ao conteúdo desse consum
O que indica "que não devemos culpar o ver televisão, por
pelo desengajamento político, como Putnam sugere, mas
que as pessoas estão assistindo" (Norris, 1996, p. 477). Ne
perspectiva, vamos identificar usos da televisão (assistir, p
exemplo, a programas sobre assuntos públicos em redes
TV) extremamente associados a grande interesse em políti
de nenhum modo causando dano à saúde democrática
sociedade, antes, provando-se benéficos (1996, p. 479).
3. Além disso, Norris conclui, talvez o prognóstico que a aval
ção de Putnam comporta não seja o mais apropriado. "N
é evidente", diz Norris, "que desligar a televisão e falar co
os vizinhos ou mesmo ir jogar boliche seja necessariamen
o melhor modo de considerar os problemas, de longo pra
relacionados à confiança no governo americano ou
uma sociedade americana profundamente divididà' (Norr
1996, p. 479) .
261
m 111nbate Pumam em seu próprio terreno, usando sondagens de opi-
d 111.w e séries, manipulando variáveis e buscando tendências. Tenta
q 1, .1creditar cada uma das teses de Putnam, não simplesmente dis-
ue 11111.indo interpretações, mas "medindo as coisas" como disse Put-
ad 1111 11 de si mesmo. O resultado é muito convincente. O que tenta
'" -r em geral consiste em: a) introduzir uma variável que explique
ei 11wlhor a queda nos níveis de confiança social e no engajamento
an , tvíco - o otimismo; b) desqualificar a tese que atribui à televisão
am , 11 dq uer efeito em tal declínio (com isso, desqualificando as teses
1
m ,1, media ejfect, principalmente aquelas da hipótese do cultivo) .
r si As teses gerais não podiam ser mais simples e diretas: a televi-
s 111 não pode ser indicada como causadora do suposto declínio do
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
262
mismo. Ora, os dados demonstram que há declínio no
mismo dos americanos, ano após ano. Usando uma resp
a um quesito do GSS ("Não é justo trazer a este mundo u
criança do jeito que o futuro nos parece") como aferidor
otimismo, Uslaner encontra que otimismo tem grande e~ 1
sobre confiança nos outros.
Primeiro, ele tentou encontrar conexões mensuráveis en t
hábitos de consumo de televisão e o pessimismo com r 1
ção ao mundo fora da tela. Garante não ter encontra
qualquer evidência de conexão entre conteúdos consurn
dos (de soap operas a videoclips) e as disposições anímica
não confiar, pessimismo e menor disposição a participar
vida pública (Uslaner, 1998, p. 442). Além disso, não h
qualquer evidência de que as pessoas confundam o "mund
d a te 1"
a com o "mun d o rea1" , am· d a menos os mais joven
que já cresceram grudados na tela (1998, p. 443). Por fii
uma vez que foi introduzida a consideração de variáveis qu
medem o otimismo no conjunto de fatores que dão form
à confiança, Uslaner acredita ter descoberto que os efeito
da televisão deixaram de ter qualquer valor explicativo com
respeito à confiança nos outros.
2. A hipótese do cultivo em que se apóia Purnam não é um
unanimidade. Não há evidência de que efeitos da televisã
sobre crianças sejam transferidos linearmente para a vid
adulta - na verdade, há uma descontinuidade interessam
nas fases da vida, com crianças e velhos muito influencia
dos pela televisão enquanto jovens adultos são bem meno
influenciados (Uslaner, 1998, p. 445) . Além disso, a hipótese
parece supor um isolamento dos efeitos da televisão dos efei-
tos gerais da sociedade, o que é um erro. Ademais, Uslaner
descobre que pessoas que nasceram logo depois de 1964
(que constituem a geração anticívica de Purnam), por exem-
plo, são a última geração otimista dos Estados Unidos, mas
segundo ele não por causa da televisão, mas porque experi-
mentaram a sensação de progresso, sendo mais educados e
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA ETELEVISÃO
263
ganhando mais do que os seus pais. Além do mais, pesquisas
mais recentes sobre efeitos de cultivo tendem a levar a crer
que as pessoas vêem um mundo cão na televisão porque a sua
experiência concreta, na lida com a realidade, é a de que o
mundo é péssimo.
1. O argumento geracional de Putnam também não mereceria
confiança. Uslaner acredita que a tese do declínio linear das
taxas de confiança é falsa justamente porque a geração que
Putnam considera intermediária é justamente aquela mais
otimista. Ora, essa geração, que os americanos chamam de
baby boomers, é justamente a primeira a ter crescido com a
televisão. O que torna o argumento de Putnam duas vezes
defeituoso.
li. Não há evidência de que o tempo de consumo de TV pro-
voque algum efeito importante na confiança nos outros. Na
verdade, a margem de erro padrão é do mesmo tamanho que
o coeficiente encontrado, como se vê no fato de que quem
vê 1O horas por dia de TV tende a confiar 4% menos do que
aqueles nunca vêem televisão. Em suma, em geral os mode-
los de análise com ou sem TV produzem resultados muito
semelhantes (Uslaner, 1998, p. 458).
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
264
tes e, embora não admita uma hipótese do "efeito zero" como
Uslaner, ataca com consistência algumas das teses fundamentai
Pucnam. Na perspectiva de Norris, conhece bem a televisão (
também sabe muito bem lidar com números) e propõe alterna tl
analíticas interessantes, sobretudo desdobrando os gêneros telcv
vos e adotando uma hipótese de usos e gratificações. Além di
separa engajamento cívico e confiança interpessoal, bem definid
diga-se de passagem, mostrando, no fim, que não há um cír u
virtuoso entre os dois. Conhece bem a literatura embora não ten
lido Schudson nem, naturalmente, tenha em consideração o liv
de Putnam. Diferentemente dos outros, Shah não está interessa
absolutamente na tese do declínio do engajamento, mas na tese
que a televisão é o culpado por baixos níveis de capital social.
Ele usa o DDB Needham Life Style Study, de 1995: uma sond
gem como um enfoque no nível individual de produção de capi t
social, também empregada por Putnam. Dentre os seus propósi to
está o esclarecimento do possível vínculo entre capital social e u
da televisão. Os resultados da sua pesquisa demonstram que:
265
·ngajamento cívico (1998, p. 487), quanto com a confiança
interpessoal (1998, p. 488) .
resultado deste escudo sugere, em suma, que:
0
acusado de Putnam - a televisão - relaciona-se com o capital
~ocial de maneira muito diferente daquela teorizada . O padrão
que aqui se revelou - de paralelos entre associações positivas_ e
negativas entre O uso de certos tipos de conteúdo da telev1sao
engajamento cívico e confiança nos outro~ - sugere . que .ª
re lação que a televisão estabelece com o capital socia l e dina-
mica e altamente contextual. Se a televisão permanece uma
va riável importante na pesquisa sobre o capital social, como
muita pesquisa sugere que deveria, então os achados desse
estudo indicam que ela deve ser tratada conceitualmente com
ma is cuidado (1998, p. 490).
266
as chances da política e da demo~racia em circunstâncias em
o meio ambiente fundamental da comunicação da política
centrado na televisão. E que juntamos evidências mais posirl
do que aquelas que Putnam reuniu. Convém, então, consid<:r
perspectiva dos fantasmas que o assombram.
A obra de Putnam representa uma tentativa de se afirmar u
mod,elo de democracia participativa, de base, num quadro libt·
no. s~:ulo XXI. Uma tarefa tremendamente difícil e que, em min
opin1ao, prova-se fadada ao malogro. Não por acaso ele se encarn
nha por uma retórica da decadência e para um projeto de res t,IU
raçã~, t.al a sua insensibilidade às circunstâncias contemporân
- pnnc1palmente as relacionados a aspectos de mentalidade e 1
sociabilidade, as referentes ao significado e alcance da comunicaç
de massa - ou o seu desconforto diante delas. Diante de circun
tâncias que não se enquadram no modelo, Putnam precisa rapl
damente descartá-las conceitualmente, ao mesmo tempo em qu
promove uma cruzada, pelo menos retórica, contra a sua existên j
Deixa, assim, de avaliar com maior fecundidade as novidades qu
fazem parte do mundo e deixa de apreciá-las mediante uma teori
adequada da democracia e da política.
Nesse sentido, Bowling Atone e os artigos que o precederam
representam, para mim, a comprovação de que a época da democra
eia tocquevilleana está passando nos Estados Unidos e nunca foi tão
pr~sente assim no resto do mundo. Em geral, pode-se mesmo gene-
ralizar, apontando-se para uma dificuldade dos modelos de demo-
cracia de base gerados no século XIX, seja aquele que se infere do
p.ensamento de Marx, seja este que se deduz da etnografia de Tocque-
v11le dos. costumes e leis americanos. Naturalmente, esse argumento
merecena melhor desenvolvimento, o qual não pode ser realizado
nesse espaço. De toda sorte, as dificuldades do modelo a que venho
chamando de tocquevilleano pode ser uma ilustração das dificulda-
des gerais dessa perspectiva. A proposta de Putnam - ou restaura-
mos a democracia tocquevilleana (e a disseminamos) ou a própria
democ:acia americana estará definitivamente em perigo - demons-
tra mais uma solução de desespero que uma alternativa possível.
CAPITAL SOCIAL. DEMOCRACIA ETELEVISAo
267
rfo modelo de Putnam, há uma correlação entre ver televisão
" rxtensão (não necessariamente a "intensidade") das interações
, l.1is fo ra de casa. É possível que seja verdade, embora as pessoas
1 , ,,tm também ficar em casa e distrair-se com a televisão simples-
w111, porque o "fora de casa" está cada vez mais ameaçador. :"1ªs
,L1P Vamos arrancar a televisão da vida das pessoas para faze-las
111 de casa e ir interagir com os outros? Se, por absurdo que seja,
comunt§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
268
termos de engajamento cívico e participação política. Ora, o
está em questão? A democracia ou a identidade cultural e polC
dos americanos, o sofrimento narcisista porque diminuem os s
outrora enormes, estoques de capital social? Se for a segunda qu
tão o que está em jogo, então o problema não nos interessa, p
fica assegurada a possibilidade de se ter níveis razoáveis de dcm
cracia, mesmo de democracia participativa, sem uma democr
tocquevilleana. Tanto lá como cá. Ou seja, capital social deve
bom para que as pessoas sejam mais felizes ou para os problema
ação coletiva, mas não se demonstra essencial para a vida públi
para a política e a democracia.
Por fim, há de se perguntar se, em vez de resmungarmos p
erosão do capital social, não seria mais produtivo examinar alter
tivas não-restauradoras. Não seria mais interessante entender co
se poderia desenhar uma democracia participativa para uma so
dade com televisão (e hedonismo, individualismo, privacida
louvor à intimidade entre outros) do que insistir no sonho de u
democracia participativa para uma sociedade sem televisão (e o
confiança nos outros, redes de relações, normas de reciprocidad
louvor ao coletivo, forte espírito público, dotada de habilidad
valores cívicos)?
A renúncia à perspectiva restauradora talvez nos leve a valo
zar justamente aquilo que Putnam considera um epifenômeno
degradação da cultura cívica: os meios e modos individuais (qu
dizer, que não supõem organização, harmonização, coordenaç
associação, mobilização constante, engajamento permanente)
participação e experiência política mediante os quais os cidadãos
qualquer sociedade democrática tentam fazer valer socialmente
seus interesses, perspectivas, valores e - por que não? - desejos n
que respeita aos assuntos públicos. Em vez de formas abjetas, talv
se trate das alternativas mais interessantes da política no século
que se somarão a todas as outras que um pouco mais de dois sécul
de experiência democrática produziu. Em vez de descartá-las, pre
saríamos estudá-las melhor. São um sinal de que o interesse políti
e a participação civil podem manter-se mesmo com a decadência d
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA ETELEVISÃO
269
111 .tmbiente fortemente cívico. E que o civil é mais importante para
,,,,, vida republicana do que o cívico. O que Putnam faz, entretanto,
,,·Jt.'itar - participação que é participação tem que ter reunião ,
1,111,tto "face a face", engajamento físico - e caricaturar. Os novos
111vimentos sociais, por exemplo, são formas de afiliação ideológica
111 v rdade, de filiação conceituai) sem mobilização contínua, sem
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
270
são as próprias) redes sociais, que, em última instância, têm a su
forma mais plena nas associações voluntárias. Então, a democraci
funcionaria melhor onde há um grande volume de associaçõe
voluntárias com grande participação. Essa cadeia de razões proced
no sentido inverso da demonstração. O que demonstra, em suma,
que a democracia funciona melhor em ambientes ricos em capital
social é, para ele, o fato de que em ambiéntes de muitas associaçõ
voluntárias, muito ativas e com muitos membros, a democraci
funciona melhor do que naquelas nas quais o volume das asso
dações é pequeno. O "fator italiano" seria a prova. Ora, eu pos o
imaginar um percurso alternativo de explicação do mesmo fator,
substituindo associações voluntárias por fenômenos como cultura e
instituições políticas pró-republicanas.
Sei que os abusos a que foi submetida a expressão "cultura polí-
tica" (abuso, aliás, que a explosão de estudos sobre o "capital social"
está produzindo igualmente neste outro conceito) têm tornado o
emprego desse seu conceito problemático, para dizer pouco. De
qualquer forma, acredito poder dizer que onde há uma cultura
política pró-republicana (entendendo cultura como representações,
valores, significados compartilhados socialmente) e instituiçõe
políticas (da esfera civil e do sistema político) pró-republicanas,
governos democráticos e democracia participativa realizam-se de
maneira adequada. A idéia de cultura política pode, no caso ita·
liano, dispensar a explicação por meio do capital social. A rigor,
acredito que o caso italiano seja de fato uma ilustração de que onde
há valores republicanos compartilhados socialmente - e instituiçõe
que os concretizem - aí temos mais possibilidades de democracia
participativa, de accountability política, de controle popular dos
governos e dos legislativos, um maior conjunto de iniciativas e par·
ticipação política dos cidadãos. Ora, onde há maior cultura política
republicana (ou, pelo menos, pró-republicana) há mais instituições
voltadas para o reforço da democracia participativa.
Mudada a base de demonstração, posso refazer a cadeia de ila-
ções. A democracia funciona melhor quando há condições sociais e
culturais pró-republicanas (entendendo-se por esse adjetivo a idéia
CAPITAL SOCIAL, DE MOCRAC IA E TELEVISÃO
271
,ll' que o Estado é um assunto , negócio ou coisa pública). Culturas e
111scicuições republicanas dependem de redes sociais, é verdade, mas
,ll'pendem, sobretudo, de um conjunto de valores, representações
,. significados compartilhados no grupo social, e vividos com mais
,11 1 menos intensidade por cada um dos indivíduos. Redes sociais
r associações voluntárias podem ser expressões dessa cultura de
fl, Sabemos que no direito público romano não se confundia civitas (a comunidade de cidadãos ou
r1ves, comunidade organizada a partir do status civitatis, o estado do cidadão) e urbs (o conjunto
tle edifícios).
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
272
to que as instituições comprometidas civicamente (para usar um
expressão de Ian Shapiro) são as que realmente importam para
democracia, conseguiria um argumento mais plausível. Ou seja,
que é relevante para a democracia não são as simples associaçõe
voluntárias, mas as instituições cívicas (instituições reivindicatória
de cariz republicano ou, pelo menos, instituições dotadas de agend
política). Além do mais, precisam ser instituições forjadas para
atrito e a pressão contra e diante do sistema político (nem todas o
são), que, portanto, "agüentem o tranco" de um sistema político
pouco interessado nas (ou adversário das) reivindicações provenien-
tes da esfera civil.
Na mesma linha, o elogio das associações voluntárias como a
última linha de defesa do cidadão comum contra o governo, contra
os interesses privados e, para sermos realmente tocquevilleanos,
contra as maiorias, seria educativo na primeira metade do século
XIX; no século XXI, ele soa apenas circunstancial, e não normativo.
Diz que sozinhos, realisticamente, teremos poucas chances de fazer
diferença; não diz que sozinhos, numa sociedade de direitos, não
devamos fazer diferença nem mereçamos ser ouvidos. Diz que jun-
tos temos mais chances, não que devamos estar juntos para que nos
seja dada uma chance. Nem que o Estado não precisa ganhar uma
configuração, um design que permita que o sujeito não associado,
não aglutinado e não-gregário possa fazer valer a sua opinião, ouvir
e ser ouvido. Em outras palavras, assim como o modelo basista de
esquerda precisa aprender a admitir que hoje nós temos cives sem
sociedade (pelo menos sem sociedade civil organizada) que podem
e querem fazer-se valer na vida republicana, este modelo de demo-
cracia liberal de base precisa admitir que hoje temos sujeitos não
associados (alguns, não associáveis de forma duradoura) que ainda
assim reivindicam-se cidadãos da república.
Além disso, o argumento das associações, como lugar por exce-
lência do aprendizado da virtude cívica, precisa de um grão de sal.
Nas associações também se aprendem vícios não cívicos, tais como
trapacear no argumento, barganhar, ou fazer conluios. Instituições
pró-republicanas podem (nem sempre o fazem) instilar hábitos de
CAPITAL SOCIAL, DEMOCRACIA E TELEVISÃO
273
noperação e inculcar um sentido de espírito público, ou conferir
11.,hilidades para a atuação na vida pública. Meras associações, não.
maior problema desse toquevilleanismo é a constituição de
11111 céu associacionista de onde, naturalmente, descartou-se con-
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
274
bem, esse padrão tem um sério concorrente, que tende mesm
levar vantagem sobre ele, representado e controlado pela comu
cação de massa. Um juízo de valor aq ui, como faz Putnam, não e
o menor cabimento. Não há como provar que a conversa inforrn
ou a discussão formal (sempre fora de casa) sobre política é essen 1
para que um cidadão do século XXJ, dotado de capital cultural n
sentido que a essa expressão confere Bourdieu, possa formar urn
opinião ou decisão política, nem que a opinião assim formada s J
mais qualificada do que aquela tomada mediante uma deliberaç
interior em seguida à leitura de jornais, por exemplo. O ambient
e o fluxo de comunicação política suposto por Putnam combina
com um mundo de redes cívicas; mas desconhece que pode haver,
há, um mundo de satélites cívicos, arquipélagos cívicos, de homen
pouco disponíveis ao hiper-engajamento, mas nem por isso desqu
lificados para vida republicana.
E não vejo o que a política, nos moldes atuais, perderia de tá
essencial. Não há, de todo o modo, grande capacidade de efetivida
de política da esfera civil, em função do atual nível de auconomi
do sistema político e de uma cultura política na qual a participaçá
não se demonstra um valor maior. Além disso, as pessoas não prc
cisam estar associadas para mobilizar-se eventualmente e para even
tualmente organizar-se em face de uma agenda precisa. Por fim,
opinião política formada à mesa de jantar ou na roda do cafezinho
não é necessariamente mais qualificada. Nem essas ocasiões repre·
sentam a nossa única oportunidade de formar uma opinião política.
Os jornalistas da Folha de São Paulo, por exemplo, parecem-me
mais qualificados na formação da minha opinião política do que o
meus velhos e bons companheiros do jogo de tênis.
P A R T E
III
INTERNET E DEMOCRACIA
7
DEMOCRACIA EA INTERNET
COMO ESFERA PÚBLICA VIRTUAL:
/\PROXIMAÇÃO ÀS CONDIÇÕES DA DELIBERAÇÃO
Rousiley C. M. Maia
comuni§ção
COMUNICAÇAO E DEMOCRACIA
278
democracia digital, 1 é comum enfatizarem-se exageradamente
dimensões tecnológicas e estabelecer-se, deterministicamente, u
associação entre o potencial das novas tecnologias e a revitaliza
de instituições e práticas democráticas. Questionar-se, simplesme
te, se "a internet é um instrumento de democratização" pode le
a diversos equívocos. Em primeiro lugar, se as novas tecnologl
podem proporcionar um ideal para a comunicação democráti
oferecendo novas possibilidades para a participação descentraliza
elas podem, também, sustentar formas extremas de centralização J
poder. No mercado, empresas de larga escala e provedores disputa
o controle desses meios, e vendem serviços e produtos num mund
virtual rápido, quase sem fronteiras (Malina, 1999, p. 24; Moor
1999: p. 42-4). Isso fortalece o grupo das elites transnacionai
pode beneficiar a expansão de grupos de orientação antidemocr
rica.
Em segundo lugar, é preciso levar em consideração que, pa
fortalecer a democracia, são necessárias não apenas estruturas comu
nicacionais eficientes, ou instituições propícias à participação, m
também devem estar presentes a motivação correta, o interesse e
disponibilidade dos próprios cidadãos para engajar-se em debate
As novas aplicações tecnológicas, independentemente de favorec
ou dificultar a democracia, devem ser pensadas de maneira asso
dada com os procedimentos da comunicação estabelecida entre o
sujeitos comunicantes concretos e seus respectivos contextos social
e históricos.
Neste capítulo, busco examinar as características da intern
como esfera conversacional, que pode operar como esfera públie,
virtual Exploro o modo pelo qual as novas tecnologias da comu
nicação e da informação criam modalidades inéditas de interaçã
1. A noção de democracia digital faz referência a uma variedade bastante extensa de aplicaçõe
tecnológicas, incluindo "parlamentos populares" televisionados ou júris-cidadãos, voto eletrônica,
atividades de lobby e campanhas por e-mails, redes cívicas e grupos de discussão eletrônica, pres
tação de serviços públicos por internet etc. (Hague e Loader, 1999; Hill e Hughes, 1998; Tsagarou
sianou, Tambini e Bryan, 1989; Wilhem, 1999 e 2000).
DEMOCRACIA E A INTERNET COMO ESFERA PÚBLICA VIRTUAL
279
, 111nunicativa sem, contudo, associar deterministicamente tal po-
1, 11cial à revitalização de instituições e práticas democráticas. A
.li.ilógico único).
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
280
teoria de democracia deliberativa habermasiana é construída
dois planos. Há uma distinção e uma descrição normativa (a)
processo informal da constituição da vontade na esfera pública
da deliberação polírica, a qual é regulada por procedimentos de
cráticos e orientada para a tomada de decisão em sistemas polítl
específicos. Essas são duas dimensões dependentes. Em uma so
dade descentrada, a soberania popular procedimentalizada, li
às esferas públicas, e o sistema político encontram-se intimam
associados (Habermas, 1998, p. 248).
Em suas formulações recentes, Habermas (1992 e 1997) bu
construir um conceito de esfera pública a-histórico, não data
como fenômeno social elementar (Habermas, 1997, p. 92). Es
pública é caracterizada como o locus da argumentação, os espa
nos quais as pessoas discutem questões de interesse comum, ap
sentam suas inquietações e formam opiniões. A definição de es
pública desenvolvida em Democracia e direito ([1992] 1997), a
como na influente obra Mudança estrutural da esfera pública (19
refere-se ao reino constituído pelo debate, fora das arenas form
do sistema político, em que as atividades das autoridades políti
podem ser confrontadas e criticadas por argumento racional e li
(Cooke, 1994; Boggs, 1997; Gomes, 1997 e 1999). A noção pres
te de "debate crítico" ainda retira inspiração da concepção kanti
do "uso público da razão", do valor da publicidade e da importân
do argumento, conduzido de maneira racional, entre cidadãos co
siderados como iguais moral e politicamente, como meio de for
a opinião pública. No entanto, dentro do paradigma lingüístico
ética do discurso, a noção de discurso recebe uma formulação mui
mais detalhada e complexa. Discurso refere-se a situações de ar
mentação idealizada, seguindo basicamente as condições de u
versalidade, racionalidade, não-coerção e reciprocidade. Discurs
são tipicamente contrafactuais e não serão, como regra, satisfeito
pois são realizados, ao invés disso, apenas de maneira aproximati
Na definição contemporânea de Habermas, a esfera públi
como locus da discussão, está associada tanto às interações simpl
que ocorrem nas arenas conversacionais da vida cotidiana quan
DEMOCRACIA E A INTERNET COMO ESFERA PÚBLICA VIRTUAL
281
, fóru ns mais ou menos organizados da sociedade civil. Nas pala-
de Habermas,
COOJUíl§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
282
essa rede se articula, objetivamente de acordo com pontos
de vista funcionais, temas, círculos políticos etc., assumindo
a forma de esferas públicas mais ou menos especializadas,
porém, ainda assim acessível a um público de leigos. (Haber-
mas, 1997, p. 107)
283
lt11co, nos Estados constitucionais, não há fronteiras rígidas. Os
1111 pios constitucionais do Estado democrático de direito preser-
111 n princípio de inclusão de novos temas e de novos participan-
111> debate público. Isso se dá seja por meio da "politização" de
A TOPOGRAFIA DA INTERNET
1 AS CONDIÇÕES DE UNIVERSALIZAÇÃO
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
284
em primeiro lugar, que não pode haver barreiras que excluam e
pessoas ou grupos do debate. Supõe, idealmente, a inclusão de to
aqueles potencialmente concernidos ou afetados. Vários crítico
objetaram que o acesso profundamente desigual às tecnologia
comunicação cria novas e severas assimetrias entre "os plugado
os "não plugados", ou destituídos das tecnologias da informa
(Wilhem, 1999 e 2000; Milner, 1999; Tsagarousianou, 199
Se tomarmos a questão do acesso às novas tecnologias de man
ra muito literal, pouco teríamos a recomendar acerca dessa es
de debates virtuais para ampliar a participação democrática,
vistas à inclusão de toda a população. O alto custo da tecnolo
e o elevado índice de analfabetismo barram o acesso de muiro
espaço cibernético. Anthony Wilhem, elaborando o modelo
tro-periferia do acesso tecnológico, discute o problema da barr
digital (digital divide), chamando a atenção para a necessidad
distinguir-se entre os vários níveis de "acesso" e de "utilização"
meios, a fim de capturar a lógica de exclusão proporcionada p
novas tecnologias. No centro da sociedade de informação, há aq
les que têm pleno acesso aos seus recursos como instrumentos
informação e comunicação. Na camada seguinte, há os "usuár
periféricos", que, embora tenham acesso às tecnologias, utiliza
nas de maneira episódica, sobretudo para propósitos comerei
e de entretenimento. Na terceira camada, estão aqueles que t
"acesso periférico", que podem ter o próprio computador,
não estão conectados à rede e dependem de acesso público.
fim, estão os chamados "imunes ao progresso", que nunca usa
o computador, não dispõem da educação necessária para faz
e encontram-se irremediavelmente excluídos. Conforme Wilh
busca evidenciar, tais barreiras digitais acabam por reforçar os ei
de exclusão socioeconômicos e culturais, quando as instituiç
políticas decidem fazer uso das novas tecnologias para forro u
serviços baseados na escolha dos cidadãos, disponibilizar servi
e democratizar os processos de tomada de decisão. Isso gera
mecanismo retroalimentador, reforçando assimetrias e amplian
as exclusões (Wilhelm, 2000, p. 73-85).
DEMOCRACIA E A INTERNET COMO ESFERA PÚBLICA VIRTUAL
285
Para evitar que as "barreiras digitais" ampliem as desigualdades
111 iais, reforçando ainda mais as vozes daqueles que já são privi-
1, i·,iados no sistema político, o poder público, em parceria com o
, wr privado, deve estabelecer políticas agressivas para garantir o
,, nso comunitário às novas tecnologias, por meio da implementa-
1,> de equipamentos na rede escolar, em bibliotecas e em pontos
1•11hlicos. Além disso, para que as pessoas possam utilizar as tecno-
l111;ias com propósito e confiança, pouco adianta ter computadores
, nnexões disponíveis, se os recursos educativos e cognitivos, e a
1p.1citação técnica específica, não são providos. Projetos de demo-
' 11 ização do acesso às tecnologias e de capacitação para possibilitar
p.1rticipação são fundamentais.
Entender, contudo, a participação apenas como questão de
, r, ·o físico à tecnologia é equivocado. A questão da participação
1 11 à tona o complexo problema relacionado à formação discur-
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
286
4. APROXIMAÇÃO ÀS CONDIÇÕES DE RACIONALIDADE
E DE NÃO COERÇÃO
287
Ademais, o cyberespaço, por prescindir da presença física dos
11,l,víduos, cria um anonimato. Alguns aurores defendem que esse
1111nimato contribui para estabelecer uma condição mais paritária
Ir participação no debate, já que as desigualdades sociais (estigma-
1i1 ·~·ões culturais, de classe e de gênero; papéis sociais, diferenças de
tl.lf11s; habilidade retórica dos participantes etc.) sofrem um certo
r 1'·1, mento (Barglow, 1994; Reingold, 2000). Se a discussão acon-
; 1•, ,. em um ambiente livre de medo, de intimidação ou de ridículo,
ár 11111 ,1 variedade maior de pontos de vista pode ser expressa. A "força
f 1,, melhor argumento", que não guarda relação com o papel social
o ,lo1\ participantes, tem maiores chances de impor-se num fórum
17 l'"hlico virtual.
rl ontudo, se haverá ou não o processo de debate é algo que não
ir 1111dc ser decidido a priori, pois o debate depende da livre motivação
• da ação dos próprios concernidos, que é contingencial e impre-
1\fvel. Além disso, é preciso cumprir certas condições. O "debate
, , Lico-racional" é mais que uma pura pluralidade de vozes, pois é
ir l,i, .ido e se caracteriza por discussões singulares. Requer que os par-
ti ', 1ros construam, de maneira coordenada e cooperativa, um enten-
r ,lunento partilhado sobre uma matéria comum. As pessoas devem
a , pressar o que elas têm em mente; devem ouvir o que os outros
. 1rm a dizer e responder as questões e os questionamentos. Isso
e drmanda, por sua vez, uma atitude de respeito mútuo. Os debates
u 1,·.ds, em qualquer fórum que eles ocorrem, sofrem constrangi-
111,·ntos diversos: os participantes possuem assimetrias de poder, de
da ,1,1tus, de habilidades retóricas etc.; os participantes nem sempre
b , mostram preparados para a reflexão ou dispõem de informação
çã 111l 1ciente, nem, ainda, estão interessados em ouvir atentamente os
comun§ção
COMUNICAÇAO E DEMOCRACIA
288
mente presente em grupos virtuais de discussão política, apr
tam um quadro que deixa poucos motivos para o entusiasmo.
ambiente da rede, não é incomum que o público fique inun
por palavras sem edição, filtros ou outros dispositivos que facill
a apreensão. Se todos falam e ninguém ouve, temos o resul
semelhante ao de uma torre de Babel. Conforme os estudo
Wilhem (1999, p. 169-175). Hill e Hughes (1998, p. 71) e D
berg (2001) evidenciam, a grande maioria dos participante
listas de discussão política e chats expressam a própria opin
"buscam" e "disponibilizam" informação, sem que se vincule
um debate propriamente dito. A prática argumentativa, o diz
o contradizer com vistas a resolver discursivamente ("por raz
impasses ou diferenças de pontos de vista, é relativamente redu
se comparada com outras modalidades de comunicação, n
grupos. As tecnologias da informação e da comunicação facilita
armazenamento e a circulação dos estoques informativos, agili
as buscas, tornam a vida mais veloz. Contudo, não determina
procedimento da interação comunicativa nem garantem a refl
crítico-racional.
Além disso, dada a utilização da internet por grupo
sociedade civil, não se pode estabelecer antecipadamente
propósitos políticos da mobilização. A internet, apesar de a
as possibilidades para uma comunicação mais horizontal
favorecer os alegados "efeitos desinibidores", pode ser urili
de forma altamente hierárquica, reproduzindo padrões au t
tários de comunicação de grupos sectários e xenofobistas.
exemplo, o estudo de Oliver Schmidtke (1989, p. 73) demon
o modo pelo qual grupos racistas e da extrema direita em Ber
têm usado a internet de maneira altamente eficiente e releva
publicamente. No caso examinado, a internet, enquanto medi
facilitou a integração e a coordenação da ação de grupos
antes se encontravam dispersos e favoreceu a propagação ilegal
propaganda nazista.
Estaríamos adotando, então, uma posição de profundo
cismo quanto às possibilidades oferecidas pelas novas tecnolo
DEMOCRACIA E A INTERNET COMO ESFERA PÚBLICA VIRTUAL
289
pC'la rede de comunicação flexível para favorecer a participação
fortalecer a democracia? Vou agora reformular tais questões
111,I. ndo o foco da reflexão. Em vez de pensar a deliberação como
wsultado de um encontro dialógico singular (o ato de fala que
1111tece pela internet), podemos pensar as condições da delibera-
11,1 numa dimensão cultural mais ampla. Nessa visada, discurso é
11 cbido num sentido cultural abrangente, na medida em que
, ondições de um discurso ideal não são jamais perfeitamente realizadas no mundo real. O
w.n ideal encontra várias e inevitáveis limitações tele, já que os atores encontram-se sob a
~orlas condições assimétricas de poder e status, premidos pela necessidade de agir, sob as
,~flt'\ de tempo e espaço etc. Por tudo isso, o discurso ideal deve ser visto como princípio
lottvo, sendo os discursos práticos falíveis e de fim aberto, sempre passíveis de revisão.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
290
Retomo aqui o problema da deliberação. Na perspectiva da p
tica deliberativa, os atores políticos devem perseguir e especifi
próprio interesse, mas devem também ser responsáveis, justifi a
seus propósitos. Se apreciamos o processo de debate público
a longo prazo, as condições de razoabilidade e de reciprocid
não se apresentam tão exigentes e utópicas quanto pode parec
situação do diálogo singular.
É irrealista esperar que os cidadãos estejam inteiramente pr
rados e prontos para especificar racionalmente suas próprias nc
sidades (Benhabib, 1996; Gutmann e Thompson, 1996). C
relação a questões sociais e políticas complexas, os cidadãos t
inclinações e desejos, mas raramente um conjunto ordenado e
rente de preferências. Muito freqüentemente eles não estão cien
das implicações, dos méritos e riscos relativos dessas preferên
No entanto, é plausível defender que é por meio do próprio deb
público, envolvendo as informações dos especialistas, bem co
questões efetivamente colocadas por aqueles sujeitos envolvid
que as pessoas podem clarear os problemas em questão e os inter
ses em conflito. Por intermédio do próprio debate, as pessoas t
nam-se mais críticas a respeito de suas opiniões e de suas prefer
cias iniciais. Esse é um processo de aprendizagem e de organiza
de um corpo de conhecimento que permite novas interpretaç
de necessidades, implicando novas atitudes e orientações políti
Críticos têm demonstrado que, quanto mais aberto e livr
debate, menos provável é que se chegue a um entendimento fi
No debate, há uma enorme variedade de opiniões que permane
sem acordo. Entramos no debate, possuindo um conjunto de o
niões, e dela saímos com o mesmo conjunto de opiniões. Mui
vezes, não gostamos de mudar o nosso ponto de vista imediatam
te, numa situação de troca argumentativa. Contudo, o proce
de reavaliação de nossas próprias posições ocorre, com maior
qüência, nos intervalos entre os debates, do que propriamente
próprios debates. Conforme Simone Chambers (1996) apont
nem somos, geralmente, capazes de perceber, com clareza, qu
nossa visão se alterou em função de críticas e desafios que nos for
DEMOCRACIA E A INTERNET COMO ESFERA PÜBLICA VIRTUAL
291
111 I •reçados. Esse é um processo gradual e disperso, que nem sem-
li· o termo "racionalização" para significar a avaliação critica das razões que os interlocutores
•·.,•ntam para sustentar, ou não, um sistema de proposições, regras ou normas.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
292
não é tão exigente como imaginado pelos teóricos liberais dássi
Diferentemente do discurso singular, que tem por objetivo eh
a um consenso para uma decisão obrigatória num determin
tempo e lugar, e que, normalmente, exige dos participantes
alto comprometimento, tempo e ativismo político, o ideal pres
no discurso prático diz respeito a um processo comunicativo m
reflexivo e disperso, que já acontece, com maior ou menor inte
dade, em nossas vidas.
Por certo, muitas das praticas comunicativas que aconte
nos contextos socioculturais da vida diária e nas esferas públ
periféricas não alcançam as instâncias formais do sistema polítl
Permanecem sem expressão política e, conseqüentemente, sem
cácia política. Contudo, no quadro da sociedade em rede, co1
novas tecnologias da informação e da comunicação, que ultra
sam a perspectiva dos meios massivos e o monopólio da infor
ção, os processos conversacionais e de aprendizagem social d
ser seriamente considerados. O processo discursivo e a negocia
de interesses, por meio de práticas comunicativas com maior
menor grau de formalidade, acontecem dentro de um campo
oportunidades e constrangimentos.
1,,,=,......,. odo tema tem os seus truísmos: uns efetivos, outros pre-
sumidos. Nas discussões sobre new media e democracia,
por exemplo, presume-se que sejam truísmos as afirma-
de que meios e modos da comunicação são fundamentais
, 1 a democracia de massa, e de que nas sociedades contem-
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
294
1. O PROBLEMA DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
295
ilr mocracia liberal, os seus procedimentos de condução dos negó-
' lrJs públicos, ou de tomada de decisão; e a sua vinculação à von-
1.;dc e à opinião públicas. Ao mesmo tempo resultado, e também
•l11toma de tal crise, seriam, numa lista aleatória e com imbricações,
~ .,patia dos eleitores, a ausência de efetividade (disempowerment)
,1., cidadania, no que tange aos negócios públicos, o desinteresse
1111blico na vida política, uma informação política distorcida ou
, , 'ssivamente dependente dos meios de massa, o baixo capital
l'o lítico da esfera civil, a desconexão entre sociedade polfrica e esfera
, ,vil, a ausência do mais elementar sentido de soberania popular e a
,Ir~ onfiança generalizada com respeito à sociedade política (Cobb
l!lder, 1983; Bucy e Gregson, 2000, Blumler e Gurevitch, 1995;
'ri ba et al., 1995; Coelho e Nobre, 2004).
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
296
Mas se falta participação política é porque faltam tam
outros requisitos da vida democrática. Algumas dessas fal ta
relacionadas à cultura política, sendo "cultura" entendida
como mentalidades, valores, convicções e representações com
tilhadas. Faltaria à cultura política dos cidadãos nas democra
contemporâneas um elementar sentido de efetividade das prátl
políticas civis. Parece ausente a essa mentalidade a sensação de q
há uma conexão de causa e efeito entre a ação do cidadão e o mo
como as coisas referentes ao Estado se decidem. Esse sentimento
reforça pela impressão de que, com efeito, as indústrias da notí 1
do lobby e da consultoria política têm muito maior eficácia junt<
sociedade política e ao Estado de que a esfera civil. Haveria co1
que uma marginalização do papel dos cidadãos.
A ausência de efetividade se experimenta, no final das cont
como desconexão entre a esfera em que se toma a decisão políti
e em que se controla o Estado, de um lado, e a esfera da cidadan i
do outro. Sucessivas ondas de profissionalização da função poU
tica - primeiro, profissionalização da classe dos representantes
tomadores de decisão, depois, dos agentes envolvidos nas funçó
de pressão externa à sociedade política (lobistas, jornalistas e con
sultores) , por fim, da própria sociedade civil (a profissionalização
das ONGs, sendo apenas um exemplo) - geraram a sensação d
ineficácia da ação polícica do cidadão comum e teriam contribuído
para arruinar as condições da participação cívica.
A essa convicção deve se somar, ademais, a formação de uma
péssima imagem pública da sociedade política, entendida como
orientada exclusivamente por linhas de força imanentes ao jogo
político (acúmulo de capital político para o próprio grupo ou par-
tido, contraposição entre governo e oposição etc.) ou por interesses
não-públicos oriundos da esfera econômica ou das indústrias espe-
cializadas em produção da "opinião pública".
Ainda no horizonte da cultura política, são indicados freqüen-
temente como déficits fundamentais uma generalizada falta de
conhecimento e de interesse políticos. Primeiro, faltaria à esfera
civil o conhecimento ou uma visão acurada da vida pública, um
INTERNET E PARTICIFAÇÃO POLITICA
297
1 1•t·rtório suficientemente provido de informações sobre processos
, onteúdos que orientam o funcionamento da sociedade política,
l r 111 como sobre o estado das coisas e das circunstâncias concretas
, 11t• constituem as conjunturas políticas. Segundo, a literatura
1
, 1111rem porânea sobre o tema insiste fortemente no baixo nível
,Ir interesse político por parte do público em geral. Talvez em
11 tude de a imagem pública predominante do campo político o
1
rpresentar como infestado por inconfessáveis e inegáveis interesses
1
1,1c,-públicos, talvez em virtude do sentimento dominante de parca
, letividade da ação política do cidadão comum, o fato é que um
ntvel relevante de interesse político é considerado, na literatura
, ,irrente sobre o tema, posse específica apenas de parcela muito
pl'quena da população.
Por fim, há faltas diretamente relacionadas aos meios, modos e
11portunidades de participação civil na vida política. Há, antes de
Ilido, a questão dos mecanismos de participação política, considera-
,los fundamentais para uma democracia na qual a esfera civil tenha
nma presença forte (Barber, 1984; Conway, 2000); mecanismos
que são uma fonte de preocupação "em parte porque são vistos
, c)mo formas de manter um acesso aberto ao sistema político"
(l3 ucy e Gregson, 2000). Reduzida principalmente a plebiscitos
, om "cardápio restrito" (ou seja, com opções já pré-estabelecidas
pelo campo político), a movimentos sociais "profissionalizados"
· a esporádicas manifestações públicas, as oportunidades que o
domínio civil teria de fazer-se valer na esfera da decisão política são
poucas, controladas pelo gatekeepíng do Estado , ou do jornalismo, e
produzem resultados que não obrigam nem comprometem a classe
política.
Analisando conforme os modelos de democracia deliberativa,
ademais, a questão não diz respeito simplesmente a meios e opor-
tunidades, mas à qualidade e a requisitos referentes aos modos de
participação civil disponíveis. O fulcro do problema seria a questão
da argumentação pública, desde a troca de razões em público sobre
questões de concernência comum (Maia, 2002) até o escrutínio
público das deliberações políticas do Estado. Nessa perspectiva, são
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
298
hoje raras e pouco efetivas as oportunidades de participação cl
mediante discussão pública dos negócios públicos. Ainda mais,
o requisito for de uma discussão pública que satisfaça os requ i
tos de autenticidade e de efetividade. ''Autenticidade" no senti
de imunidade a coações externas à discussão, lealdade no deba
racionalidade ou, pelo menos, razoabilidade argumentativa. "Efot
vidade" diz respeito à possibilidade de produção de efeitos na esft'
da decisão política. Em outras palavras, faltaria, então, um volu rn
qualificado de arenas públicas autênticas ou uma densidade social
mente importante de oportunidades de deliberação pública.
Do conjunto da crítica, pode-se, por outro lado, inferir as con
dições requeridas para a participação política. E essas são, em geral
de tríplice natureza: cognitiva, cultural e instrumental. São condl
ções cognitivas, naturalmente, aquelas relacionadas à informação
ao conhecimento, tanto aquelas que nos instruem sobre a naturc
do Estado e da sociedade política, seus instrumentos, instituiçó
e processos, como aquelas que nos aparelham para formar um
opinião suficientemente qualificada sobre as circunstâncias do jog
político, sobre as posições em disputa, sobre o estado do camp
político.
Há, também, as condições culturais, relacionadas à cultura polí
tica, entendida a cultura ainda no sentido indicado acima. Ness
âmbito, lidamos com concepções disseminadas, imagens pública
dominantes, impressões e opiniões sobre matérias, posições
sujeitos, e tudo o mais do domínio das representações, dos valor
e do imaginário. Pois bem, parece bastante comum a idéia de qu
convicções e representações podem ser importantes para promove
ou desestimular a participação civil na política. Assim, se o público
tem a impressão de que a sua intervenção política pode fazer algu -
ma diferença para conduzir nesta ou naquela direção a decisão acer•
ca dos negócios públicos, então possivelmente se sentirá compelido
a produzir intervenções mais constantes e mais qualificadas. Na
mesma linha, estaria a convicção de que a esfera civil é, ao fim e ao
cabo, aquela que exerce a soberania política e que a ela estaria asso-
ciada, essencialmente, como mandatária de uma mandante civil, a
INTERNET E PARTICIPAÇÃO POLITICA
299
,, ·iedade política. Ainda, acredita-se, uma imagem adequada dos
rrpresentantes, do Estado e das suas demais instituições, entendidos
, nino coisa e serviço públicos, seria decisiva para uma cultura cívica
,Ir maior participação.
Por fim , há as condições de natureza instrumental, aquelas refe-
11d:is aos meios e aos modos destinados a assegurar as oportunidades
,li· participação política. Convicções e informação são ainda pouco
,r não apoiadas em oportunidades. Mesmo porque tanto umas
q111nto outras recebem considerável reforço positivo quando con-
11 o n tadas com a experiência concreta de efetividade política da esfera
, 1vil ou com um conjunto de experimentos e iniciativas que obtêm
rx ito na extensão das oportunidades de participação democrática.
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
300
E aqui o discurso costuma ter duas dimensões complementa
A primeira destas costuma insistir no fracasso dos meios de com
nicação de massa - e fracasso freqüentemente atribuído não à
natureza, mas às circunstâncias atuais do seu uso - em cumprir
suas promessas como instrumentos privilegiados para a exten
das possibilidades de participação democrática. É um discurso
frustração. A segunda dimensão tende a impingir aos meios
massa responsabilidades pelo baixo padrão de democracia particip
tiva nas sociedades contemporâneas, não apenas, portanto, pelo q
deixa de fazer, mas, sobretudo, porque o que faz resulta daninho
"hostil à causa da democracia, servindo na verdade para a solapa
(Barnett, 1997). Trata-se de um discurso de imputação de culp
Os dois discursos freqüentemente são misturados, como aco
tece em artigo de Barnett (1997, p. 203) que aponta conseqüênci
deprimentes da tradicional comunicação de massa sobre as cond
ções fundamentais para a participação política: a) o entendimen
básico das posições em competição no interior do jogo políti
seria prejudicado pelo material distorcido produzido pelos meios d
comunicação de massa, embora também pela informação oferecid
pelos políticos, considerada sumária e insuficiente; b) o "debat
racional é comprometido em virtude das matérias sensacionalist
e com um enfoque personalista que permeiam a esfera públi
mediante os meios de massa"; c) a "participação ou é desencorajad
ou tem diminuída a sua importância pelo desprezo crescente pel
representantes políticos, o que deve ser atribuído, em boa par
pelo menos, ao tratamento desdenhoso (e freqüentemente ridícul
a que os submetem os meios de massa"; d) o "conceito de represen
tação perde legitimidade à medida que os representantes eleitos sá
apresentados como desconectados do interesse do seu eleitorado"
Na já vasta literatura devotada a apontar o deficit democrátic
dos meios de comunicação de massa, identificam-se razões circuns
tanciais e razões estruturais para tanto. São circunstanciais, digamo
assim, aquelas relacionadas ao estado atual de funcionamento d
indústrias da informação e da cultura de massa, aos princípios qu
atualmente orientam os campos sociais que se formaram no s
INTERNET E PARTICIPAÇÃO POL!TICA
301
1r11crior e à forma contemporânea da sua relação com os mercados
, nnsumidores de notícias e entrete:iimento. Razões estruturais estão
, 111 relação à natureza mesma dos meios de massa, não obstante a
,liversidade dentre eles, tendo particular ênfase o fato de produzi-
" m fluxos de informação com vetor unidirecional - a famigerada
111.10-única da comunicação de massa.
e todo modo, da configura;:ão dos meios de comunicação
, 111 ·rgiriam, segundo os críticos, algumas das suas características
•111 • atingem diretamente as con:l.ições cognitivas e culturais da
l' 1rcicipação política. A forte concorrência interna entre as indús-
11 i,lS de informação e, nesse contexto, o imperativo de atendimento
1\ necessidades do mercado de nctícias e entretenimento, levaram
, omunicação de massa a assumir características que, numa lista
tll':i.tória, vão do sensacionalismo à simplificação das questões e das
111íormações política, da seleção e ordenação das matérias políticas
wgundo interesses de competição e consumo a distorções, voluntá-
11.1s ou involuntárias, em virtude de a pauta política estar orientada
11dos imperativos de venda. O resultado seria um baixo teor de
111fi rmação política e um nível ainda menor de informação política
q11ali ficada, a que se contrapõe um volume considerável de repre-
,rnrações que desqualificam sujeitos, procedimentos e princípios do
, .,mpo político. Com isso, o campo político aparelha-se para tentar
,!obrar o fluxo da comunicação política aos seus interesses, com
.tlw padrão de profissionalização no gerenciamento da informação
·om o desenvolvimento de ferramentas e habilitações agilmente
11
,anejadas com os quais busca administrar não apenas o que exibir
r O que proteger da esfera de visibilidade midiática, mas também
l,lt ca manipular ou, em geral, ter supremacia, sobre os agentes da
indústria da notícia, no controle da informação política circulante.
Na tensão entre os dois campos, então, seria gerada uma espiral
,1ue conduziria a níveis cada vez mais baixos de participação pol_í-
1ica. O jornalismo, na fase da indústria da informação, não tena
mais a cidadania como sua referência básica, orientando-se por
princípios internos ao campo do jornalismo ou por circunstâncias
111dustriais de sobrevivência e lucro num mercado competitivo. Por
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
302
sua vez, a esfera civil tenderia a não conferir credibilidade ao jor
!ismo, outrora autodenominado cão de guarda do interesse públl
e passaria a desconfiar da relevância e da veracidade da informa
política disponível. Assim como historicamente desconfia de qu
informação produzida pela esfera política está, antes, voltada p
a sua manipulação. 1
1. Há uma literatura sobre comunicação e política bastante volumosa com forte ênfase na demons
tração da deficiência circunstancial e estrutural da comunicação de massa no que tange à qua·
lificação da cidadania, dentre as quais destacam-se Patterson, 1994; Blumler e Gurevitch, 1995;
Entman, 1989; Yengar e Kinder, 1987; Postman, 1985; Jamieson, 1992; e Fallows, 1997.
INTERNET E PARTICIPAÇÃO POLITICA
303
~v.diação mais ponderada das promessas e realizações da internet
11.11 :i a democracia.
Antes de tudo, não há como negar que o advento do formato
,,.rf; da internet, no início dos anos 1990, trouxe consigo enormes
, pectativas no que respeita à renovação das possibilidades de
p.1rticipação democrática. Os exageros da retórica da revolução
1,·, nológica são por demais conhecidos para que mereçam maiores
, omentários. De todo modo, havia, nos planos teórico e prático, a
;t 11 cera esperança de uma renovação, induzida pela internet, da esfe-
1.1 pública e da democracia participativa. Praticamente sem exceção,
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
304
tings eletrônicos e a democracia de apertar botões venham
finalmente substituir as velhas instituições da democracia
representativa.
305
universal, comunicação não-coercitiva, liberdade de expressão,
agenda irrestrita, participação fora das tradicionais instituições
políticas e porque gera opinião pública mediante processos de
discussão, a internet parece a mais ideal situação de comuni-
cação (Buchstein, 1997, p. 251 ).
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
306
uma dimensão sem fronteiras ou se a compreendemos como um
malha que inclui o local, o nacional ou o internacional. Assir
para alguns, governos e sociedade civil locais, nacionais e intern
cionais deveriam ter a responsabilidade de promover as iniciativ
instrumentais para o debate; para outros, "a internet mesma r
comunidades de notícias e leva a situações ideais de comunicaç
entre sujeitos fisicamente remotos, mas virtualmente conectado
por meio disso configurando condições ideais para o surgimento J
uma nova esfera pública" Qensen, 2003, p. 350).
O segundo tema é aquele da superação do viés não democrá t
co e, no limite, antidemocrático, dos meios de comunicação mal
antigos. Tanto da perspectiva do campo político quanto daquela d
esfera civil. A sociedade política ganha à medida que:
307
p1ofissionalizado e que tenderia a tornar o público meramente apre-
' 1.1<lor do jogo político. Ademais, o enorme sistema de informação
l'nlícica - proveniente do campo político, da própria esfera civil
, .1cé mesmo da indústria da notícia - disponíveis nos ilimitados
1rposicórios web permitiria ao cidadão uma avaliação mais acurada
,l.1 vida política e da esfera pública. A informação política nas redes
,li· co mputadores é mais variada do que a informação industrial,
l'ni contém não apenas o registro da atualidade jornalística sele-
' lnnada e editada pelo campo do jornalismo, mas também toda a
,111 ce de registro de fatos e atos políticos do passado. Ademais, esta
l11formação há de ser mais integral e mais rica, pois, em princípio,
" ,iscema de informação web configura uma gigantesca e completa
, 11 iclopédia política e cultural, na qual se tem desde a atualidade
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
308
p. 194). Não só essa troca de idéias - que off-line pode dar-se
nas em tempo real e é limitada à obrigação de contemporanei
entre os que discutem, além de ser dotada de restrições de conte
e de número - admite a não-contemporaneidade, inclui qualq
volume de pessoas e quaisquer lugares. E a troca de idéias é ape
um exemplo de participação política, de forma que o que dela a
se diz, poder-se-ia igualmente dizer da disseminação de infori
ções políticas, da cobrança exercida sobre os representantes eleit
da contribuição para a produção de leis, de eventuais ou poss{v
participações em plebiscitos ou eleições etc.
II Extensão e qualidade do estoque de informações on-line. l
informações políticas fundamentais para a formação da posi
política do cidadão já falei, na contraposição anterior, entre novo
velhos meios de massa. Ademais, temos a informação instrumen
necessária para que a cidadania usufrua dos serviços do Estad
possa exercer cobrança e pressão sobre governos e parlament
tenha controle cognitivo sobre o estado dos negócios públic
De forma que, no que tange ao aumento de informação políti
e conhecimento público das matérias e questões políticas, tal v
jamais a cidadania tenha estado tão bem fornida de insum
(Gimmler, 2001, p. 32). Barnett vai mais além na sua resenha d
características da informação política on-line.
309
III Comodidade, conforto, conveniência e custo. A idéia de um
11gajamento estóico e de uma equivalência entre ação política,
111.11 rírio e sacrifício não poderia parecer mais distante dos imaginá-
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
310
net, nem política nem criminal nem moral" (Buchstein, 1997,
252) . Os mais destemidos chegaram mesmo a levantar, nos an
mais entusiasmados, a tese de que a rede, em virtude da sua desc
tralização e do seu espraiamento transnacional, não só não dever
como não poderia ser controlada por corporações ou por govern
nacionais e locais. Este é provavelmente o âmbito da literacu
sobre internet em que as perspectivas do libertarianismo mais pro
peraram. Imune ao controle de conteúdo e de provimento, a r · 1
seria uma zona protegida em que poderiam prosperar as liberdad
básicas de expressão e opinião.
v7. Interatividade e interação. Trata-se de argumento central n
afirmação do papel dos novos meios de massa no incremento d
participação política: a estrutura e os dispositivos mais comuns d
internet, particularmente a web e o correio eletrônico, fazem co
que ela forneça eficientes canais perfeitamente adaptados para flu
xos de comunicação e informação em mão dupla entre cidadãos
sociedade política. Canais que, em princípio, "mantêm os cidadão
informados sobre o que estão fazendo aqueles que exercem funçõ~
no Estado e mantêm os que têm funções no Estado informado
sobre o que os cidadãos querem" (Milbrath, 1965, p. 144).
O conceito de interatividade torna-se peça-chave da argumen
tação a respeito da qualidade democrática de uma sociedade. Se
idéia de soberania popular sustenta uma dada forma de governo
esta idéia há de materializar-se em meios e modos pelos quais
mandante político, o povo, faz-se valer na esfera restrita da produçá
da decisão política, ocupada pelos representantes ou mandatário
Se os fluxos de informação provêm unilateralmente do centro d
esfera da decisão política, orientando-se vetorialmente em direçá
ao público, entendido apenas como consumidor de informação,
esporadicamente como eleitorado, falta a esta democracia qualque
sentido de soberania popular que supere o mero e episódico exer
cício eleitoral. Nesse sentido, uma estrutura multilateral, dotada de
fluxos multidirecionais de informação e de comunicação, é sintoma
de uma estrutura política na qual se reconhece que a esfera civil tem
algo a dizer e pode influenciar diretamente a decisão política, de
INTERNET E PARTICIPAÇÃO POLITICA
311
11ma estrutura na qual governos e legislativos são sensíveis à vontade
r à opinião da cidadania.
A noção de interatividade política ancorada na internet refere-se
1 uma comunicação contínua e de iniciativa recíproca entre esfera
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
312
quadamente empregada pela esfera civil, essa mesma arquitet
pode incrementar uma democracia eletrônica qualificada, p
permite uma expansão potencialmente ilimitada das vozes q
podem vir a ser ouvidas na esfera política, reforça o sentido
responsabilidade do sistema político, revigora a esfera públic
os fluxos horizontais de comunicação entre cidadãos, revigora
sentido de conexão entre cidadania e sociedade política. Como
Rachel Gibson (2001, p. 563):
313
foram confinados, a rede vem sendo vista como o paraíso dos meios
p tlt ·rnativos ou radicais de comunicação política.
q O s exemplos se multiplicam, bem como a lista das vantagens da
1111ernet para a intervenção política de grupos alternativos e margi-
11.dizados. É inegável o valor e o sentido da internet para a sociedade
a , ,vil organizada, mas também para as mobilizações esporádicas e
J\ intervenções pontuais que mais correspondem aos modelos de
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
314
nova literatura tem vários estratos e vários níveis de radicali
pois pode envolver desde publicações dotadas de um viés anti
pico, neoludita e tecnofobico até as posições céticas e realistas, d
as posições que incluem a internet em teorias da conspiração
cujo centro estaria o capitalismo avançado e a sua ideologia, p
uns, ou simplesmente o mal moral, para outros - até aqueles l
consideram-na um meio neutro, com enorme potencial demo r
co, mas que em geral não tem entregue o que promete. Vale no
que grande parte da crítica à internet não se dirige diretament
sua arquitetura técnica, nem à rede como fato social, mas tem cor
endereço cerco um sistema de representações empolgadas sobr
internet, que elevou à última potência as suas características posi
vas, sem se importar em oferecer apoios concretos às suas assunço
Em suma, o adversário em geral é menos a internet e mais a retórl
sobre a internet e os imaginários ciberentusiasmados que prospera
na academia e no jornalismo.
315
111\ da sociedade civil, em geral qualificada, em geral composta
f"" dados e análises de faros e circunstâncias políticas, séria e
11
11\iStente, mas naturalmente rescrita ao interesse, viés e foco da
111,1 icuição. Temos, ainda, informação produzida por agentes do
11npo político, em geral peças da política de imagem, intervenções
, 1w fu ncionam como lances na tentativa de imposição da imagem
1
1,11lilica predominante do grupo político e dos seus adversários. Um
ilpo de informação que, por isso mesmo, é de baixa qualidade para
,1111. formação adequada da opinião pública.
problema relativo à informação proveniente de fontes priva-
,!,~ dotadas de interesse política diz respeito a seleção, credibilidade,
11 1•vância e confiabilidade. Como pode o cidadão comum distin-
comun§ção
COMUNICAÇAO E DEMOCRACIA
316
também em formato web, e a informação política mais extensam
te disponível é, em geral, de pouca serventia para o público, p
representa normalmente uma massa disforme de dados desprovi
ademais, de marcadores de credibilidade. E o Estado se fecha ain
em reserva, silêncio e segredo, protegendo-se do olhar públi
como sempre o fez.
Esse diagnóstico, obviamente, não fecha a questão; apenas sul
titui uma insensata laudatio às maravilhas da informação polítl
on-line por uma tarefa política, se queremos realmente explorar
alternativa da internet como instrumento de extensão das oport u
nidades políticas e não acreditamos que a democracia desça gratul
e espontaneamente do céu.
317
frnômenos que impõem naturalmente a busca da inclusão de todos
11\ cidadãos na situação em que oportunidades, meios e recursos
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
318
altas e médias tenham um acesso homogêneo ao mundo digit
prescindir de diferenças de sexo, status e idade, por exemplo.
extremo, integrará, por meio do serviço público, os membro
classes baixas que possuam capital cultural semelhante àquele
classes superiores. Tudo isso certamente não é pouco, mas simpl
mente replicará o padrão de injustiça social que já opera em toda
sociedades. Provavelmente, chegaremos a igualar as diferenças en
classes estabelecidas por razões econômicas e culturais, e as elas
estabelecidas pelas oportunidades digitais. O que não passa de ur
isonomia da injustiça.
2. Stephen Coleman (1999, p. 17) ilustra, a meu ver, adequadamente esta situação: "The lacto,
wh1ch determines whether ICTs serve as democratizing force is the political culture in which th
develop. Clearly, a public which opted (by autonomous choice rather than market imposition) to
use the vast expansio~ of digital television channels to become more intimately involved in gam
shows and tele-shopping rather than empowering themselves in relation to government would
be e1ther complacently 1nd1fferent ar happy with the delivery of government ar both. There is no
reason to force people to be informed, as long as they are sufficiently informed to know what
they're missing".
INTERNET E PARTICIPAÇÃO POLfTICA
319
111 meio de informação e de envolvimento político possa alterar a
111 lwra política predominante.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
320
critérios e interesses das indústrias da informação, da cultu
entretenimento-, a internet aumentou em muito pouco a su
ência alternativa (aos outros meios de massa) sobre grandes e
de público. O seu poder como fonte alternativa, capaz de revi
o processo democrático, manteve-se, então, pouco significacl
sua presença demonstrou-se ainda muito pouco construtiva d
alteração no panorama político (Wilhelm, 2000). A comunl
política com capacidade de atingir públicos de massa e pm
efeito sobre o domínio público e sobre a esfera política con
sendo aquela produzida e distribuída pelos meios de mas a,
todos os limites que isso, em princípio, comportaria.
Essa, porém, pode ser em grande parte uma falsa questão.')' 1
tenha chegado o momento de pelo menos desafiar a tese de qu
meios de massa se tornaram intrinsecamente antidemocrático ,
certamente ainda muito espaço para a deliberação pública
meios de comunicação e estes são ainda os provedores prin
dos estoques disponíveis de informação política atualizada, obj
e crítica. De perto, a comunicação de massa revela um perfil mu
mais complicado na sua relação com a democracia e a política
a retórica hipercrítica dos anos 90 permite supor.3
321
, d.\ expectativa anterior: um meio de comunicação, per se, não
1.1 para modifkar um sistema político.
V ·jamos, por exemplo, o caso dos partidos políticos, formidável
111piinaria devotada ao funcionamento da política institucional.
1'tiu ao contraste com outra gigantesca e socialmente influente
, 1r1uinaria, aquela da indústria e do campo da informação, adap-
111!0-se onde houve necessidade, impondo-se como e quando
f "ll', aproveitando-se das brechas no sistema que lhe se contrapu-
1 1, 1 Por que não haveria de resistir à internet, que é muito mais fle-
1 r•I, ainda em formação e maleável? Ora, não resta dúvida de que
partidos políticos se adaptam com velocidade à época e à voga
1~ 111 ternet, mas, pelo menos por enquanto, fazem isso basicamente
1 11.1, pela internet, fazer o que sempre fizeram: propaganda, política
Ir , magem, condução da opinião pública. Aliás, como corretamen-
1, d 'Stacam Bucy e Gregson (1997, p. 358), "dada a tendência dos
1• 11 tidos tradicionais a normalizar a atividade política, esperanças
d, 11 ma radical transformação da política, mesmo no ciberespaço,
l>l t.~ umivelmente não se realizarão". Os partidos são uma máquina
I' 11 a a normalização, isto é, um aparelho de assimilação, de enfra-
•i11<· imento de alternativas ousadas, de manutenção do seu sistema
,1, vida, de forma que as forças que defendem a internet como
1l1 l'rnativa teriam de representar um contrapoder muito mais forre
.lo que atualmente representam para ter alguma chance contra eles.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
322
forma mais extremada. Há informação má, perigosa, cnm111
falsa, ofensiva à dignidade humana, injuriosa e antidemocrát l
e defender o seu direito de existir não é o mesmo que lutar
direitos civis no ciberespaço, como querem os libertarianistas.
contrário, pode significar um engajamento na proteção do di1
ao hate speech, ao racismo publicado, à discriminação de mino rl
(Gomes, 2002). E se na internet de fato floresce um espa o
liberdade de expressão e de experiência democrática, ela igualm t•r
se transformou no paraíso dos conservadores, da ultradireita, d
racistas e dos xenófobos, um refúgio que, aliás, tem-lhes sido 111
seguro e próspero do que o mundo off-line.
No rol dos paradoxos que comprometem a performance dem
crática da internet está, por exemplo, o anonimato. Antes, não
via na possibilidade de participar de debates ou produzir inform
ção anonimamente nada além de vantagens para a democracia. l
perspectiva do debate, por exemplo, o anonimato represent;ll
efetivamente uma vantagem porque, como diz Jensen, "o statu ,
trabalho e a educação do debatedor perderiam importância e a qu
!idade dos argumentos se tornaria a questão-chave". Hoje, começa r
a despontar os aspectos negativos implicados no anonimato, porqu
se sabe que este "pode levar à irresponsabilidade, ao hate speech e .1
declínio de uma cultura de debate" (Jensen, 2003, p. 358) .
323
capitalistas. Dado o fato de que praticamente cada movimento
singular na rede deixa rastros digitais que se podem seguir, as
novas tecnologias da informação e da comunicação permitem
a um pequeno número de pessoas, do gov.erno e de agências
corporativas, por exemplo, monitorar e praticamente controlar
um enorme número de pessoas.
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRAC IA
324
5. PARA CONCLUIR
325
democráticas dos meios de massa. Talvez, por isso mesmo, ela
11'1.1 parecido, naquele momento, o modelo das nossas esperanças
111ocráticas. Estabeleceu-se uma simetria com o sinal invertido:
11111to mais intensamente alguns falavam contra os meios de
11·,•,a já estabelecidos (Newton, 1999) , tanto mais intensamente
lv.1111s falavam em favor do novo meio emergente. E, facilmente,
,liscursos entregaram-se a hipérboles nos dois sentidos, para falar
14! da televisão e dos jornais de massa, de um lado, e para falar
111 da internet e seus dispositivos, do outro. Os discursos, de
lr;11m modo, devem ter-se contaminado reciprocamente. Quinze
111·, depois, talvez se possa admitir o exagero retórico tanto num
N•ste sentido, estou disposto a concordar com Kirsi Kallio e Jyrki Kakõnen, quando eles falam
,,. o problema aqui é de estrutura e de intervenção no nível estrutural (2003, p. 3). "To our
nrh•rstanding the problem could be that both politics and democracy do not anymore have a real
.. ,.111ing in current political structures and therefore people are loosing their interest in politics. ln
•.,, this is a justified conclusion e-democracy fails to increase democracy. lt only creates an illusion
1d •m ocratic participation. ln case the problem is more structural than just lack oi participation
1h~ whole question about e-democracy has to be connected to de- and re-construction oi social
i!lld political structures".
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
326
cidade de de~olver-lhe as oportunidades de participação pol(
de que necessita. Tanto a internet quanto os meios tradicionai
ma:sa devem ~er _explorados, isso sim, no sentido de que se dob
ao mte~ess,e _publico. Como isso pode ser feito, entretanto, já é u
outra h1stona.
_ Como
, corretamente apontou Peter Dahlgren , "a questao- 11
nao e tanto como a internet vai mudar a vida política, mas, sob
tudo, o que pode motivar mais pessoas a ver-se como cidadão ~
u.ma democracia, a envolver-se na política e _ para aqueles (I
tem acesso - a empregar as possibilidades que a rede ainda ofer
Al~u~as re:postas deverão ser encontradas na própria rede, ma
ma1~na res1~e nas nossas circunstâncias sociais" (2001, p. 53).
preci:o, e,nt~o, que se saia o mais rapidamente possível da retórl
do d1a~~ost1co (positivo ou negativo) para uma perspectiva de ,e
ponsab1Iidade e tarefa.
9
1 Ver particularmente teóricos deliberacionistas, tais como: Habermas, 1995, 1996 e 1997; Benha-
bib, 1996; Cohen, 1997; Cooke, 1999; Bohman, 1996; Chambers, 1996; Dryzek, 2004; Gutmann
eThompson, 1996 e 2004.
comuni§ção
COMUNICAÇAO E DEMOCRACIA
328
ações diversas, por parte dos cidadãos, possam subsidiar e contr
democraticamente a agenda e a produção da decisão polfrica.
Nesse cenário, destaca-se a importância das associações dvl
para desenvolver habilidades políticas e cultivar virtudes cívicas
cidadãos, para oferecer suporte à constituição de debates na es
pública, para proporcionar representações de interesses coleti
ou, ainda, para monitorar e estabelecer limites às atuações dos E
2
dos e dos mer~ados. Contudo, o terreno do associativismo é plu
e complexo. E preciso ter em mente que nem todas as associaç
têm propósitos democráticos (Warren, 2001; Chambers, 200
Gurza Lavalle, Houtzager, Castello, 2006; Young, 2006) . Simo
Chambers (2002), ao alertar para os riscos do que denomina
bad civil society, ressalta que a sociedade civil pode tornar-se u
reduto em que os indivíduos se engajam em grupos corporativl
tas e defensivos, um local em que o particularismo e a diferen
definem a participação. Associações corporativistas podem min
o potencial de discussões democráticas e de votações - dois recu
sos-chave da prática democrática. Grupos xenófobos ou racista
ao combinar ódio e atuação secreta, podem prejudicar processo
deliberativos, mesmo quando a violência não chega a substitui
as ações políticas. Alguns tipos de associação são bairristas e cert
seitas religiosas transportam a intolerância para o âmbito polític
Determinadas associações têm como meta a manutenção de um
proclamada distinção e de uma demanda de deferência dos demai
tal como clubes de status, grupos ligados à defesa do ensino priva
do etc. Os benefícios e os direitos almejados por esses grupos sã
freqüentemente negados àqueles que a eles não pertencem. Todo
esses grupos se valem dos recursos oferecidos pela internet para dis
ponibilizar e trocar informações e coordenar suas ações.
Para avaliar os efeitos das associações, é preciso investigar, alén
da organização, do poder e das metas das organizações, seus proc •
2. Ver Hendriks, 2006; Alexander, 1998; Cohen e Arato, 1992; Haberrnas, 1994 e 1997; Fishkin,
1997; Young, 1997, 2002 e 2006; Costa, 1994 e 1997; Dagnino, 2002; Doirno, 1995.
REDES CIVICAS E INTERNET: EFEITOS DEMOCRÁTICOS DO ASSOCIATIVISMO
329
dimentos políticos e legais, em relação aos múltiplos planos deman-
dados pela democracia, num dado contexto. Para tanto, é relevante
1preciar os padrões de interação dos membros da associação com
ou tros atores sociais, e também se a comunicação pública segue ou
não os procedimentos democráticos da deliberação - participação
inclusiva de todos os afetados ou concernidos, respeito à igualdade
111oral e política dos demais participantes, não-tirania, escuta respei-
1osa e justificação recíproca das próprias proposições e revisibilidade
rias opiniõ'é!s. Não se pode apreciar os efeitos das associações cívicas
ele modo dissociado do contexto em que elas se ancoram.
·A partir desse quadro, indaga-se: como os atores coletivos críti-
·os da sociedade civil se valem dos recursos da internet para alcan-
ar propósitos "potencialmente" democráticos? Meu interesse, neste
capítulo, é distinguir entre diferentes formas de organização, metas
· desenhos institucionais de associações cívicas e usos democráticos
da internet. Na primeira parte, discuto porque os movimentos
sociais e as associações voluntárias são mais aptos que os cidadãos
omuns, vistos de maneira isolada, para renovar os impulsos demo-
cráticos, nos âmbitos do desenvolvimento dos indivíduos, da esfera
pública e da política institucional formal. Na segunda, procuro
especificar diferentes usos que as organizações cívicas fazem da
internet, a fim de gerar efeitos democráticos específicos, tais como:
a) interpretação de interesses e construção de identidade coletiva; b)
constituição de esfera pública; c) ativismo político, embaces institu-
cionais e partilha de poder; d) supervisão e processos de prestação
de contas.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
330
preender um ambiente de conexão e interações - viesse aperfei
a qualidade do conhecimento político e incrementar a particip
dos cidadãos (Rheingold, 1993; Tsagarousianou, Tambini e Br
1989; Hill e Hughes, 1998). 3 A internet pode ser entendida,
primeiro lugar, como uma teia extremamente extensa de conteú
disseminados por computadores em rede por todo o mund
web constitui-se num estoque altamente volumoso de informa
de toda natureza e sobre qualquer tipo de objeto. Nesse sentid
internet ultrapassa a tradicional distinção entre as diversas mod
dades de veículos de comunicação. Há na internet uma competi
pluralista entre diferentes outlets provenientes de diversos veícu
(emissoras de TV, rádio, jornais, revistas populares, revistas esp
lizadas) que criaram seus sites on-line. Além disso, há um esto
de informação proveniente de uma enorme variedade de fontes,
como dados governamentais, informação de especialistas e de
pos cívicos, avaliação e comentários pessoais etc. Com isso, os 1
dãos têm acesso a um ambiente informativo denso e diversific
com informações em níveis distintos, desde as mais técnicas,
explicações provenientes do sistema de especialistas, até abordag
mais simples ou pessoais. Uma vez que as pessoas estão associacl
política por meio de diferentes backgrounds, interesses e habilid
cognitivas, elas precisam de uma variedade de tipos de informa
políticas pragmáticas, em diferentes formatos e níveis, de modo
possam selecionar os tipos de informação prática mais útil a
Em segundo lugar, podemos tomar a internet como ambi
de interconexão e interações. A comunicação mediada por
putador se distingue da comunicação produzida pelos meio
comunicação convencionais por permitir que qualquer suj
possa tornar-se emissor, provedor de informação, produzi
informação ou repassando-a a outro (Malina, 1999; Wilhem, 1
e 2000; Gomes, 2001; Mitra, 2001 e 2004; Bohman, 1996).
3. Esses estudos vêm sendo bastante criticados e diversos desafios lançados sobre essa persp
otimista. Ver Gomes, 2005; Fishkin, 2002; Wilhem, 1999 e 2000; Dahlberg, 2001; Sparks, 2
Hague e Loader, 1999; Lilleker e Jackson, 2004.
REDES CIVICAS E INTERNET: EFEITOS DEMOCRÁTICOS DO ASSOCIATIVISMO
331
u l modo, as novas tecnologias da comunicação permitem colocar
iliíerentes parceiros de interlocução em contato, mediante ações
,,. íprocas e vínculos virtuais variados, criando um potencial de
interação inédito, se comparado com os veículos de comunicação
11.,dicionais. Além da prática da conectividade isolada do usuário da
1t'de, a internet proporciona uma forma de conexão "coletivà'. Isso
,11 orre desde a troca de e-mails numa base cidadão-cidadão, chats,
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
332
ignorância do público sobre os negócios políticos rotineiros, li
atenção reduzida sobre as ações do governo, sobre os governan
e sobre as plataformas partidárias. As pessoas, em geral, retêm u
parcela mínima das informações relativas à polírica factual, expo
nos noticiários jornalísticos. Mesmo quando o acesso à intern
possível, muitas pessoas não têm tempo, capacidades técnicas
motivação para fazer uso dos recursos oferecidos pela web. Ass i1
é improvável que os cidadãos venham a desenvolver um interc
político ativo apenas porque têm mais informação à disposh,
ou apresentam mais chances de participar em discussões polítil
sobre questões públicas em geral. Grupos de ativistas já mobilizad,
e com elevado grau de interesse político são os mais propensos
desenvolver a interatividade na rede, ao contrário de cidadãos co,
baixos níveis de interesse e eficácia política.
Nesse sentido, destaca-se a importância das associações volun
tárias e dos movimentos sociais para superar os obstáculos d
ignorância polírica e da apatia. Em termos de motivações, os atol
coletivos da sociedade civil podem nutrir o desejo e a vontade de
aprender, prestando maior atenção às informações disponíveis sobr
as questões de seu próprio interesse. Ademais, as organizações cívi
cas tendem a ser mais eficazes para reunir dados de fontes variada
de informação, a fim de construir um conhecimento próprio
organizar ações políricas diversas com outros que partilham um
interesse comum, que os cidadãos isolados.4
As associações com propósitos democráticos produzem efeito
em diferentes domínios, e, como Warren (2004) discute, elas ten -
dem a especializar-se em determinadas funções, seja no âmbito do
desenvolvimento dos indivíduos, seja no domínio da esfera pública
ou, ainda, no âmbito institucional. Quanto ao desenvolvimento
dos indivíduos, algumas assç,ciações com propósitos democráticos
contribuem para que as pessoas possam informar-se sobre deter-
4. Este ponto tem sido desenvolvido por diversos autores. Ver Cohen eArato, 1992; Melucci, 1996;
Warren, 200 1; Young, 2002 e 2006; Mendonça, 2006; Mendonça e Maia, 2006; Scherer-Warren,
1999 e 2006.
REDES CIVICAS E INTERNET: EFEITOS DEMOCRÁTICOS DO ASSOCIATIVISMO
333
11 1inadas questões e aperfeiçoar capacidades críticas, n~t~ir virtu~~s
1
fvicas, adquirir autoconfiança e o sentimento de eficac1a; adqumr
habilidades políticas, tais como a competência para e:pre~sar e
11 •gociar os próprios interesses com outros atores. No amb1to da
t·s fera pública, algumas associações ajudam a trazer novo_s temas
para a atenção pública e incorporar vozes de grupos previamente
t·x:cluídos no debate público (Minow, 1997; Young, 1997 e 2002;
1:raser, 1997; Mitra, 2001 e 2004); construir interpretações de
interesses coletivos e sustentar a comunicação pública, com o
intuito de estabelecer acordos possíveis sobre conflitos e desacordos
morais, sem o recurso da violência (Cohen e Arato, 1992; Melucci,
1996; Costa, 1994 e 1997; Fishkin, 1997 e 2002). No_ ch~mado
reino institucional-formal, o associativismo pode contnbmr para
representar interesses de indivíduos e grupos; inserir demand~s ~a
agenda política e estabelecer condições institucionais de negoc1aç:o
das reivindicações; planejar ações coletivas, a fim de exerce~ p~essao
sobre os representantes; monitorar ocupantes de cargos publicas e
de outras instituições sociais para que estes prestem contas de suas
ações; encaminhar soluções e cooperar na resolução de problemas
coletivos· estabelecer vias alternativas para a governança (Fung e
Wright, 2003; Fung, 2004; Wampler e Aritzer, 2004). Além disso,
as associações podem confrontar a representatividade f~rmal de
representantes e partidos políticos com aquela qu~ se articula n?s
espaços de participação da sociedade civil (Dagnmo, 2002; Reis,
2004).
Nesse cenário, mesmo que adocemos a premissa de que o uso
politicamente relevante da informação disponív~l na intern~: n_ão
se estende a todos, mas, ao invés disso, somente aqueles que Jª sao,
de alguma forma, interessados, como corretamente propo~to por
Lilleker e Jackson (2004), isso não é insignificante. Os efeitos do
associativismo produzem determinadas conseqüência~ ~ue_ re~er-
cutem no âmbito da própria sociedade civil e da polmca msmu-
cional-formal. Por exemplo, as organizações cívicas, ao ajudar que
os indivíduos desenvolvam habilidades cognitivas, críticas e políticas,
contribuem para que eles possam expressar, sustentar e atualizar a
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
334
autonomia individual e política5 na esfera pública, e, ainda, int
ferir no funcionamento concreto das instituições democráticas
governo. Torna-se, assim, um desafio teórico e metodológico ap
ender o modo pelo qual as organizações cívicas fazem uso da inte
net para produzir efeitos democráticos em processos de inovaç
cultural e institucional que se desdobram ao longo do tempo.
335
centros de pesquisa universitários, criou uma biblioteca vir-
tual, englobando arquivos sobre um conjunto de diferentes
direitos, em diversos formatos e com vocabulário acessível
a leigos. Tal rede também promove cursos para educar pes-
soas sobre direitos humanos, cívicos, políticos e sociais. São
particularmente relevantes os cursos interativos on-line para
capacitar os chamados "agentes de cidadania", isto é, líderes
de movimentos sociais de pequenas comunidades ou em
cidades afastadas de grandes centros.
b) Redes de memória ativa têm como propósito digitalizar docu-
mentos de movimentos sociais (estatutos, jornais, material
didático para divulgação, atas, relatos pessoais etc.) para
armazenamento livre em portais, na rede, a fim de que se
tornem acessíveis para outros movimentos sociais e para a
sociedade em geral. Essas podem ser vistas como centros vir-
tuais de informação e de documentação (Doimo, 1995), que
contribuem para construir uma memória dos movimentos e
preservar suas experiências compartilhadas. Um exemplo é o
site Favela tem memória, que busca organizar dados estatísti-
cos sobre as favelas e traz depoimentos, histórias, fotografias
e documentos oficiais sobre a história das favelas do Rio de
Janeiro. Nas palavras dos editores,
O site Favela tem memória vem se somar às várias iniciativas
recentes de construção da memória das favelas no Rio de
Janeiro. Queremos valorizar as lembranças dos moradores
mais velhos e resgatar experiências coletivas de participação
política, associativa ou religiosa. Queremos fazer circular his-
tórias do passado para reforçar laços, identidades e sonhos do
presente. 6
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
336
oportunidades de comunicação, auxiliando grupos sub
dinados e marginalizados a articular, de modo autônom
seus próprios interesses e suas necessidades. Um exemplo
Redelê (Rede de inclusão e capacitação digital), que promo
educação digital de grupos em desvantagem (moradores
favela, comunidades rurais, populações indígenas). Rr d
dessa natureza buscam dar assistência a esses grupos 0 11
essas comunidades no sentido de ganhar habilidades també
para confecção de material informativo (webpages, materi .11
audiovisuais e impressos), a fim de disseminar informaç;11
superando as barreiras de acesso à comunicação dos m<:i,
massivos.
d) Redes de vigilância e solidariedade à distância têm como obj
tivo defender direitos, protegendo os cidadãos ou lucand
contra discriminação, ou exercendo função de vigilân 1
sobre os dirigentes e outras instituições. Tem-se, com
exemplo, a organização "Human rights Watch", "DH Nct''.
"CMI" (Centro de Mídia Independente - "Indymedia")
Por meio dessas redes, busca-se expor delitos ou violações J
direito, fazendo com que os transgressores respondam po
seus atos. Além de procurar ampliar o apoio para suas causa
essas organizações esforçam-se para expandir a influênd
de determinados movimentos, para desafiar governantes
dirigentes a investigar e punir práticas abusivas. Coordenam
ainda, o ativismo cívico e ações diretas em diferentes nível
locais e em ambientes transnacionais (Palczewski, 2001) .
337
(Rheingold, 1993; Dahlberg, 2001 , p. 11). Para nossos objetivos,
interessa ressaltar o modo pelo qual os movimentos sociais e as asso-
·iações voluntárias utilizam a internet, com efeitos potencialmente
democráticos nos seguintes domínios: a) interpretação de inter-
esses e construção de identidade coletiva; b) constituição de esfera
pública; c) ativismo político, embates institucionais e partilha de
poder; d) supervisão e processos de prestação de contas.
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
338
2004, p. 493) . O portal - com páginas dedicadas a temas
"casamento", "divórcio", "violência doméstica", "organização
mulheres do sul da Ásia", "lesbianismo", "artigos" (textos de in
nas sobre mulheres indianas) - estabelece vários links hipertext
para espaços de discussão e páginas pessoais, feitos de maneira au
noma e sem organização central. A autora destaca a importância
acúmulo de muitas vozes individuais, formando uma "hiperv
para que grupos marginalizados possam obter poder discursi
O portal é "um indicador de que há uma massa crítica de vo
no espaço cibernético, (...) interessadas em articular questóe
grupos tradicionalmente sem poder" (Mitra, 2004, p. 504). AI
disso, a auto-organização é valorizada por permitir a essas mulhe
"reivindicar a autoridade e a autenticidade de suas vozes por m 1
próprios, em vez da associação com qualquer outra voz com au r
ridade tradicional" (Mitra, 2004, p. 506).
Ganhar voz na internet não depende necessariamente
privilégios financeiros, raciais ou geográficos, mas se relacion
com a aquisição de capacidade discursiva. Por exemplo,
moradores de favelas e grupos organizados dessa populaça
no Brasil, utilizam a internet de diversos modos em su
lutas por reconhecimento, seja para questionar representaçõ
estigmatizantes e questões controversas que envolvem a con
trução simbólica sobre a favela (www.observatoriodafavela
o www.cufa.com.br), seja para promover projetos culturai
educativos desenvolvidos nessas comunidades (www.ceasm
org.br; www.casadecultura-rocinha.com.br), ou, ainda, pa
buscar alternativas locais para a solução de problemas viven
dados por esta parcela da população (www.vivafavela.com.b
e www.favelaeissoai.com.br; www.an(org.br). Para se ter um
idéia, o site "Favela é isso aí" (www.favelaeissoai.com.br) foi
criado para divulgar a produção cultural das favelas de Bel
Horizonte, trazendo desde textos reflexivos produzidos po
moradores (alguns deles também estudantes universitários)
até guia cultural dos bares, grupos artísticos e pontos de lazer
das favelas da capital. Nesses sites, são comuns textos qu
REDES CIVICAS E INTERNET: EFEITOS DEMOCRÁTICOS DO ASSOCIATIVISMO
339
.1nalisam, por exemplo, a cobertura da mídia em relação aos
.1ssuntos envolvendo comunidades populares. A Agência de
Imagens da Favela (www.olharesdomorro.org.br) apresenta
diversas fotografias feitas por jovens moradores do morro
Santa Marta, no Rio de Janeiro,? com o propósito de docu-
1nentar a vida dos moradores de favelas, com rodas as suas
nuanças, e fazer um contraponto às imagens produzidas pelos
media comerciais. O projeto visa a:
7 Oconjunto das fotos foi apresentado em exposição nos Encontros Internacionais da Fotografia de
A.rl es (04/07/2005 a 18/09/2005), um evento dentro das programações do º'Ano do Brasil". na França.
8. Texto de apresentação do projeto "Olhares do morro", que con sta do site http://www.olhares-
domorro.org.br. Acesso em 03/2006.
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
340
atores sociais, bem como construir novos padrões de auto-apre
tação e reconhecimento (Alexander, 1997, p. 25; Habermas, 199
341
e É preciso considerar, contudo, que diferenças de identidade e
9 status são construídas on-line, reproduzindo as estruturas sociais
e culturais ojf-line. Mesmo quando as identidades se mantêm
desconhecidas no debate virtual, os participantes fazem uso de
sexismo, racismo e outras formas de abuso ou discriminação
(Schmidtke, 1989, p. 73; Yang, 2003, p. 477). Seguindo a estra-
ti ficação de recursos do mundo social (como tempo, dinheiro e
habilidades retóricas), alguns atores dispõem de maior capacidade
para fazer suas vozes ouvidas do que outros, sendo esses os que
monopolizam a atenção, controlam a agenda e o estilo da discusão
i ,1 (O'Brien, 1999; Wilhem, 1999 e 2000; Dahlberg, 2001). Nem
r sempre os participantes se mostram interessados em considerar
d cuidadosamente as opiniões dos demais participantes ou de refor-
r~ mular suas próprias posições, cumprindo as exigências do debate
t~ crítico-racional. Muito freqüentemente, os indivíduos fazem
'
avançar suas próprias idéias, mas raramente reconhecem o vigor
das crÍticas endereçadas a eles, ou alteram as próprias posições ou
seus compromissos, no curso da discussão (Rheingold, 1993; Hill
a e Hughes, 1998).
ci Cabe ressaltar que boa parte dos estudos que tratam do debate
m, vi rtual, concebe-o como o resultado de um encontro dialógico sin-
n, gular, isto é, o ato de fala "aqui e agora" entre os usuários da inter-
o, net. Teóricos da democracia vêm sustentando que a deliberação
0
pública demanda um agente plural, em vez de um agente individual
a ou coletivo. Habermas (1997, p. 22) e Benhabib (1996) propõem
ão que a opinião pública se forma por meio de uma rede de discursos
o que se interpenetram e se sobrepõem. Nas palavras de Bohman, "a
d deliberação pública não pode ser realizada de maneira individual,
n, uma vez que um sujeito singular não pode efetivá-la isoladamente.
á- Ela é desenvolvida apenas por sujeitos plurais, constituídos por
e. indivíduos autônomos" (Bohman, 1996, p. 55). Também Dryzek
o (2004) propõe que se entenda a deliberação pública como uma
~ competição de discursos em longo prazo, na esfera pública.
s Se o processo de debate é concebido como uma troca argumen-
. tativa que se estende no tempo e no espaço, podemos amenizar
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
342
aquelas criticas ao debate crítico-racional que se desdobra en
sujeitos singulares na internet. Em médio prazo, grupos e org
zações cívicas têm maiores oportunidades para: conquistar cap
dades a fim de construir uma "presença" nos fóruns de discuss
se posicionar como agentes interlocutores ativos , isto é, com u
voz específica para si; articular seus próprios interesses, indep
dentemente de assimetrias financeiras, geográficas, de gênero t
encontrar estratégias para garantir maior grau de escuta e respo
efetiva dos demais participantes. Os atores críticos da socieda
civil sustentam o debate na esfera pública de maneira mais pe
manente que os indivíduos isolados, os quais o fazem apenas
maneira episódica e efêmera.
É preciso salientar que as redes cívicas tendem a produzir um
intensa comunicação interna entre seus próprios membros e/o
entre outros grupos com interesses afins. Ao examinar relaçó
associativas na internet, Palczewski (2001) e Hill e Hughes (1998)
apontam que grupos com foco em questões políticas tendem
desenvolver "comunidades de interesse" ideologicamente hom o
gêneas, em vez de reunir pessoas com interesses e valores divergcn
tes ou conflitantes. Mesmo sob tais circunstâncias, deve-se consi
derar a importância da internet para preparar os indivíduos par
o engajamento em fóruns abertamente contestatários e promov
o que Bohman (1996) chama de "descentramento" da esfer
pública. Nesse sentido, as organizações cívicas, ao se valerem d
comunicação mediada por computador, não apenas no context
nacional, mas também em redes de amplitude transnacional, têm
novas oportunidades para engajar-se em uma atividade reflexiv
e democrática, a fim de testar idéias, de imaginar novas possibi•
!idades de ação e propor soluções alternativas para os problema
vivenciados (Yang, 2003; Mitra, 200 l , Scherer-Warren, 1999
2006). 9 Além disso, a troca de experiência ancorada em realidade
9. Uma série de fatores devem ser considerados para apreensão desses efeitos, tais como a escala
da organiza ção voluntária, a existência ou não de parcerias com instâncias do governo, o grau de
democracia interna da organização. ·
REDES CIVICAS E INTERNET: EFEITOS DEMOCRÁTICOS DO ASSOCIATIVISMO
343
t' contextos distintos facilita a aprendizagem dos atores cívicos
\o bre o desenvolvimento de agendas ou planos de política públi-
l ;l, sobre quando e como estabelecer compromissos, bem como
.imeaçado.
Os discursos e a troca argumentativa na esfera pública, ao pene-
trarem as relações sociais de qualquer tipo, e tendo a ver com a base
~ cial dos conflitos de qualquer natureza, podem influenciar direta-
mente o modo pelo qual os agentes políticos tomam decisões. Isso
po rque os atores críticos podem afetar democraticamente o enten-
J imento que os indivíduos têm sobre os problemas sociais e alterar
as relações que eles estabelecem com as instituições do Estado e do
mercado. Ademais, as associações, ao colaborarem na justificação
pública, podem contribuir, também, para conferir legitimidade às
próprias ações dos dirigentes, a fim de que o Estado possa fazer
) frente a interesses antidemocráticos e a poderes corporativistas de
instituições privadas.
comuni§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
344
luta virtual que os atores coletivos empreendem imbrica-se, muit
vezes, com a mobilização social, estabelecendo uma relação de con
fluência, de acréscimo ou de sinergia entre o concreto e o virtu 1
(Moraes, 2001; Scherer-Warren, 1999 e 2006).
Se adquirir competência política e técnica para transacion
com os atores políticos formais é por demais oneroso para o cidadal
isolado, o mesmo não procede para os atores coletivos cívicos. Esr
podem vir a desenvolver - e freqüentemente desenvolvem - conh
cimentos específicos de orçamentos, de planilhas, de técnicas d
gestão em áreas de interesse particular, além de conhecimento sob1
o próprio funcionamento do Estado, tais como procedimentos pa1 a
a tramitação de leis, estabelecimento de acordos, realização de ba1
ganhas para a implementação de políticas públicas.
Nesse sentido, podem ser ressaltadas algumas experiências de
participação interativa bem sucedida, construídas por atores coleti
vos, em que há uma partilha de poder de instâncias do Estado com
os cidadãos. Um exemplo interessante é a criação de comunidade
políticas virtuais, empreendida na Finlândia. Em Espoo, o Con
selho Jovem criou um site chamado NuvaNet, que estabelece um
canal de comunicação direta com as autoridades locais. Seu princi
pai objetivo é o de explorar a tecnologia para ampliar a democracia
e estimular a participação popular, especialmente dos jovens, na
política local. Por meio desse site e da plataforma JdeaFactory, o
jovens discutem suas idéias e enviam moções diretamente para :i
Assembléia Municipal. O Conselho Jovem busca fomentar a parti
cipação, visitando escolas e estimulando os jovens a envolver-se nas
discussões do site (Frey, 2002, p. 154).
345
Conforme a avaliação de Frey, os processos de discussão e de
ativismo empreendidos no site, e em ambientes de interação ojfline,
realmente influenciam as tomadas de decisão, o que fomenta, por
sua vez, a própria participação dos jovens. É interessante assin~lar
que o sucesso dessa iniciativa se deve, :ambém, ao Fª~el exercido
pelos moderadores, que buscam garantir a transparenc1a e a orga-
nização nos debates, e ao apoio e à responsividade dos governantes
locais.
comun§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
346
ções do governo e a exigir que dirigentes e representantes de outro
poderes prestem contas de suas declarações e ações. Quando o
movimentos sociais se encontram especialmente envolvidos em
promover certas causas, eles acionam recursos informativos fund a
mentais para monitorar instâncias do governo e outras instituiçõe ,
de tal forma que elas mantenham compromissos, a observância dl'
leis e de tratados. Redes como a "DH Net" e a "lndymedià' po
suem seus próprios especialistas e profissionais para converter um
grande volume de informações complexas em conhecimento práti
co, para o monitoramento e o controle das ações de dirigentes.
Algumas experiências apontam que as próprias instituições
governamentais podem estabelecer recursos para a comunicação
entre o poder público e a sociedade civil, facilitando processos de
prestação de contas. O Departamento de Justiça do Canadá, po r
exemplo, criou um site, chamado Access to Justice, que foi rapi
damente utilizado pela comunidade. O site mostrou-se útil para
conectar o público à discussão e ao esclarecimento de questões de
interesse jurídico. Sobre essa experiência, Richard (1999) destaca
que as cobranças iniciadas por um determinado grupo, muitas
vezes, passaram a integrar o rol de reivindicações da sociedade como
um todo. "Ao estreitar as fronteiras existentes entre o governo e os
promotores de uma determinada causa, a internet também criou
questões de accountability" (Richard, 1999, p. 79).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
347
Alguns críticos alegam que as políticas cívicas são fragmentadas
ou setorializadas, restritas a temáticas ou a grupos específicos, e,
por isso mesmo, o alcance político de suas ações é limitado. Por
certo, o Estado permanece como agente central para alcançar jus-
tiça distributiva, implementar direitos, proporcionar segurança,
distribuir e sancionar poderes e desempenhar muitas outras funções
necessárias a uma democracia robusta. Contudo, dada a larga escala
da sociedade contemporânea e a complexidade de suas instituições,
nem sempre é desejável uma política nacional e geral que afete o
país inteiro e toda a sua população de modo igualitário e univer-
salizante. A sociedade civil não expressa um projeto político único
e homogêneo, mas, pelo contrário, organiza-se de modo relativa-
mente autônomo em uma multiplicidade de espaços de disputa
e de negociação. O aprofundamento da democracia exige, assim,
uma pluralidade de relações entre forças políticas distintas dentro
da própria sociedade civil e, também, nas instituições do centro
do sistema político. Em outras palavras, uma democracia robusta
requer uma pluralidade de formas de participação polírica por parte
dos cidadãos, de associações com diversos nichos de especialização e
de formas distintas de articulação com os agentes do Estado.
As oportunidades oferecidas pela internet - como um complexo
de conteúdos e um ambiente de conexão e interações - devem ser
vistas de modo associado com as motivações dos próprios atores
sociais e com os procedimentos da comunicação efetivamente ado-
tados. A comunicação mediada por computador pode ser utilizada
por indivíduos e grupos com metas e funções democráticas ou por
aqueles com metas antidemocráticas. De tal sorte, é fundamental
fazer distinções entre a diversidade de metas e de modos de organi-
zação das agregações, a partir de diferentes tipos de funções demo-
cráticas que as associações podem desempenhar, levando em conta,
também, o contexto social e histórico.
A internet facilita a operacionalização de formas variadas de par-
ticipação em âmbitos distintos - no nível local, nacional e transna-
cional. Atores coletivos crÍticos da sociedade civil têm utilizado os
recursos da rede com criatividade, para gerar conhecimento técnico
comunJ§ção
COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA
348
competente, memória ativa, recursos comunicativos, exigência
prestação de contas e solidariedade à distância. Como expusem
neste capítulo, experiências empíricas diversas demonstram q
cada modalidade de associação cívica tende a especializar-se nu
determinada função e, por isso mesmo, nem sempre é capaz
exercer outras funções.
Dentro do quadro teórico mais amplo da democracia delib
rativa, novas questões podem ser colocadas na agenda de pesqui
sobre a internet. As conclusões apresentadas aqui, envolvendo
movimentos sociais e as associações voluntárias, não elimina
obviamente muitos dos problemas que atualmente afetam
democracias, seja a apatia política, o individualismo e a deman
por uma privacidade extrema, por parte de alguns cidadãos, seja
negligência quanto às demandas populares, o autoritarismo, a buro
cracia excessiva ou a corrupção dentro das instituições política ,
Contudo, diversas evidências empíricas mostram que as associaçõe
com propósitos democráticos utilizam os recursos da internet pa
adquirir competência crítica e política, para mobilizar a ação
interagir com os agentes do centro do sistema político, responsávei
por tomar decisões e institucionalizar demandas. Para além da per
pectiva individual, que tem como foco a participação de sujeito
singulares, faz-se necessário refinar instrumentos teórico-analítico
para avaliar a qualidade da participação de atores coletivos e seu
efeitos democratizantes - que não podem ser negligenciados - na
sociedade, em longo prazo.
Este trabalho representa resultados derivados do projeto de
pesquisa "Mídia e debate público: dimensões da deliberação II",
financiado pelo CNPq e pela FAPEMIG. Um agradecimento espe-
cial a Patrícia Marcolino Costa Ferraz e a Márcia Maria da Cruz
pela colaboração na revisão deste texto.
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