Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Émile Durkheim
(In A Ciência Social e a Acção)
Resumo
A Procissão dos Caixões desperta emoções e sentimentos díspares. Vis-
lumbrando o fenómeno de várias perspectivas, apercebemo-nos dos extremos
dos juízos valorativos. Ir no caixão em cumprimento de promessa é porventura
sórdido e tenebroso. Mas os caminhos da fé e do desespero quando se cruzam
originam um palco de gigantescas façanhas humanas.
Tratava-se de um controverso desfile de cumprimento de promessa em que
os protagonistas, homens e mulheres, velhos e crianças, eram transportados
vivos desde o salão paroquial até à ermida da Senhora Aparecida, em urnas
abertas, carregadas por familiares e amigos num percurso de 400 metros.
Do choque das duas facções litigantes nesta polémica resultaria a extinção
do fenómeno. Foi um confronto entre sagrado e profano, isto é, entre o oficial
e o estranho. Triunfou a via institucional.
*
Sociólogo do Pelouro do Património Cultural da Câmara Municipal de Lousada.
105
106
107
108
Manuel Araújo promoveu uma cruzada contra esta vação da “religião oficial”, a religião popular socor-
manifestação de fé e de sacrifício religioso, que vi- reu-se de subterfúgios ou camuflagem? Questões
ria a ser proibida pela primeira vez em 1994. Mui- interessantes, sem dúvida, mas não é esta a oportu-
tas vozes discordantes se levantaram. Numa edição nidade para indagar respostas para elas. Importa aqui
desse ano do semanário regional Terras do Vale do esmiuçar o desaparecimento do fenómeno popular
Sousa lia-se que alguém da localidade teria dito que às mãos do fenómeno oficial.
“nenhum mortal pode calar a tradição”. Profunda- Nos anos que se seguiram a 1994 o reverendo
mente bairrista e tradicional, a povoação de Senho- José Manuel Araújo não quis abordar mais a ques-
ra Aparecida, insurgiu-se largamente contra a in- tão. Para ele, a Procissão dos Caixões era tema do
tenção do pároco, conforme se constata no docu- passado. Estava enterrado. Estando agora a
mentário filmado em 1994 pela antropóloga Catarina paroquiar no concelho de Vale de Cambra, o prota-
Alves Costa, que ilustra a derradeira realização da gonista do fim deste controverso ritual acedeu a
Procissão dos Caixões. “reviver o passado na Senhora Aparecida”.
O Padre José Manuel Araújo manteve-se intran- Começou por referir: “É já com muita distância
sigente na proibição de tal cerimónia, que conside- no tempo que abordo a “Procissão dos Caixões” e o
rava inadequada aos valores e princípios católicos, caminho percorrido até à sua extinção. Com efeito,
catalogando-a de “macabra e pagã”. A falange dis- desde há mais de um ano que já não sou pároco dessa
cordante foi diminuindo. paróquia e, tendo-a paroquiado nove anos, foi logo
A “Procissão dos Caixões” deixou de se reali- no segundo ano que a dita procissão se extinguiu”.
zar. Importante seria proceder à investigação dos Prosseguiu a sua abordagem relatando os factos
sucedâneos daquele fenómeno. De que forma os cronologicamente: “cheguei à paróquia de S. Fins
devotos da Senhora Aparecida fazem os seus pedi- do Torno (Sra. Aparecida) em Outubro de 1992. Era
dos e cumprem as suas promessas? Terá havido padre há apenas um ano e ali tomo conhecimento
mutação da religiosidade popular? Face à desapro- desta realidade: na famosa Romaria da Senhora
Aparecida realiza-se uma procissão no dia princi-
Foto Lemos, Aparecida , 1992.
109
110
111
do-se da urna aos pés da Senhora, diante dela. Da promitente clama ao alto a atenção para com alguém.
cidade, os “forasteiros” chegavam e estranhavam; As penitências de altruísmo são bonitas. Tangem
não vestiam a pele do crente e como tal não enten- sentimentos arrebatadores. É uma certa forma de
diam aquela religiosidade, pois esta só existe en- solidariedade de fé e de martírio. Como que dar a
quanto vista com os mesmos olhos do crente. E o vida por alguém. Diz aquele autarca que, nestes ca-
crente, não apenas o que vai deitado, mas também sos, “a promessa era cumprida com o promitente
os que seguram as pegas do caixão, admite em so- deitado no caixão e, muitas vezes não se sabia, ou
ciedade, perante os magotes de gente, que crê, que não se falava à boca cheia sobre a promessa que
foi salvo por Ela, aquela que é fonte de Vida. Mas o originara tal ida, casos havia em que nem mesmo
sacrifício é grande. Implica uma espécie de temor quem havia sido protegido sabia da promessa”.
destemido; afinal, é estar no lugar do morto e imitar Com o fim da Procissão dos Caixões dissolveu-
o ritual derradeiro da vida. se aquilo a que Frei Bento Domingues chama de “um
“Não há maior sacrifício do que ir onde é mais dos modos de relação pessoal e comunitária com
difícil”, refere o já citado professor de história Rui Nossa Senhora”. Foi o epílogo do “enfrentamento de
Graça Feijó. (Feijó e Cabral, 1999) duas competências na relação com o sagrado”, em
Na povoação os autóctones sabem quem se es- que o padre pretendeu (e conseguiu) “ser dono da
cusou a ir na procissão, quem fugiu, quem se escon- relação com o sagrado” (Zoom, 1995:7).
deu, quem se fechou, para não ir deitado no caixão O que sucedeu na Aparecida foi um dejá vu, pois
depois de familiar seu ter prometido tal à Senhora. Frei Bento salienta que “assisti desde criança a es-
Fulano do Outeiro, sicrano da Torre, esta do Tan- sas disputas entre povo e padres. Foi sempre a di-
que, aquela de Vilar, recusaram-se. mensão religiosa da vida que saiu diminuída”. Isso
“Muitas vezes, nem o beneficiário, quando o decorre da frenética procura de “cristianização das
pedido era feito para outrém, sabia desse pedido até festas pagãs”, que “redundam sempre num desastre
ao dia da procissão”, revela Carlos Fernandes, o cultural e religioso”.
popular “Massas” da agência funerária da povoa- Corroboro da impressão também partilhada por
ção da Senhora Aparecida. Ao contrário do seu este teólogo, segundo a qual a falta de compreensão
antecessor, António Fernandes, seu tio e igualmen- do tecido cultural do fenómeno religioso em apreço
te presidente da Junta, o novel autarca e agente fu- motivam a delapidação do património identitário e
nerário aceitou bem os desígnios do Padre Araújo. colectivo de uma sociedade tradicional. “Sem re-
Os mais velhos é que têm saudades. Aliás, são curso à prática da antropologia cultural ou social (e
estes quem se refere em tom depreciativo e acusa- da sociologia – N. do A.), não se pode captar o al-
dor àqueles que se recusaram a cumprir a promes- cance simbólico das expressões deste catolicismo
sa... Já os mais novos, os que aderiram à extinção, popular”, afirma Frei Bento Domingues. (Idem,
consideram que esses que se recusaram simplesmen- Idem)
te anteciparam a história, o fim da procissão. Coadunando-se com a necessidade de indaga-
Quanto ao contraditório no modus operandi da ção que foquei atrás, sobre as práticas religiosas
promessa, aquela figura pública local revela que na relação vida-morte após o fim da Procissão dos
“regra geral, a promessa não era cumprida por Caixões, este teólogo refere: “do meu ponto de vis-
quem fazia o pedido à Senhora Aparecida, mas sim ta, o pároco deve questionar e procurar caminhos
a pessoa beneficiada pelo pedido, o que não quer de evangelização daquele mundo religioso. Duvi-
dizer que não acontecesse que fosse o promitente do que o processo escolhido seja o mais adequado
a cumprir a promessa pela pessoa bafejada”. Era para os encontrar. E a questão é mais vasta. (...) a
este o caso de noivas e mães de soldados no Ultra- igreja não dispõe de uma pastoral em relação à
mar. doença e à morte que traduza hoje, e nas diferen-
Tratava-se de imponentes assomos de entrega, tes culturas, o que foi a atitude de Jesus no meio
de imperscrutáveis actos de amor e de altruísmo, de do seu povo. É nesse vazio que campeia a manipu-
certo modo a-racionais (não irracionais!) em que o lação de algumas seitas”.
112
Bibliografia
CÂMARA MUNICIPAL DE LOUSADA (1999) - Jornal Vida Nova, edição de 27 de Agosto de 1929.
O Século XX em Lousada. [S.I.]. Jornal Terras do Vale do Sousa, edição de 10 de
COSTA, C. A. (1994) - Senhora Aparecida. [S.l.: s.n.]. Agosto de 1995.
DIAS, Fr. G.C. (2002) - O Sonho da Escada de Jacob. Jornal de Lousada, edição de 14 de Agosto de 1956.
[S.l.: s.n.]. MARTINHO, S. e BARROS, J. (2003) - Festas e
DOMINGUES, Fr. B. (1995) - Vida e Morte na Se- Tradições Portuguesas. Círculo de Leitores. [S.l.].
nhora Aparecida. [S.l.: s.n.] PIMENTEL, V. (1992) - Os vivos e os mortos na
ESPÍRITO SANTO, M. (1990) - A Religião Popular Aparecida. [S.l.: s.n.].
Portuguesa. Assírio e Alvim. [S.l.]. Revista Zoom. Edição de 4 de Agosto de 1995.
FEIJÓ, R.G. e CABRAL, P. (1983) - A História da SIMMEL, G. (1903) - A metrópole e a vida do espí-
Morte em Portugal. Oxford. rito. [S.l.: s.n.].
113
114
Romaria, Arcos. Bandeiras. Bandolins a voar. E o andor grande, um colosso, aos ombros de
Tamboreiros e foguetes. Alegria às catadupas. E vão mais de cinco dúzias de latagões, fazendo remoinhar
chegando romeiros. Os admiradores de cavalicoques a festança. Andor assim, onde se vê? Crê-se que é
e alimárias têm onde escolher. Não é doutra coisa a único em tamanho e folclore.
feira. Um frenesim, uma animação, coroada pelo No Domingo, ainda há festa. Ao fim da tarde
sussurro ululante de quem se diverte, das fusas partem romeiros para todas as bandas. Uns para o
musicais... e das goladas do rascante que faz des- Basto, outros para as vertentes de Vizela, muitos
temperar os mais sisudos e até espalhar bordoadas para aquém de Lousada. Com a Virgem e o Santuá-
de punho em riste ou cajadadas para dirimir con- rio ficam só os briosos festeiros,
tendas.
O arraial estende-se por três dias pegadinhos. O Adeus ó Vila Real,
adro da ermida é exíguo para tanta a gente. Adeus estrada seguida;
Adeus, ó Torre dos Mouros
A Senhora d’ Aparecida Da Senhora Aparecida.
S’ tá em cima do andor,
Coberta com o seu manto,
Não tem frio nem calor. In Jornal de Lousada de 14 de Agosto de 1956
115